Teixeira S G Careaga Queering Problematizaciones e Insurgencias
Teixeira S G Careaga Queering Problematizaciones e Insurgencias
Teixeira S G Careaga Queering Problematizaciones e Insurgencias
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Fernando Silva Teixeira Filho
Wiliam Siqueira Peres
Carina Alexandra Rondini
Leonardo Lemos de Souza
(Organizadores)
Queering
problematizações e insurgências
na Psicologia Contemporânea
Cuiabá, MT.
2013
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© Fernando Silva Teixeira Filho | Wiliam Siqueira Peres | Carina Alexandra Rondini | Leonardo Lemos de Souza, 2013.
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Sumário
Prefácio................................................................................................ 7
Anna Paula Uziel
La dignidad gay......................................................................................... 21
Marina Castañeda
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”..........................................115
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Prefácio
Anna Paula Uziel
Tania Navarro Swain abre seu texto Identidade nômade perguntando: “que esta-
mos fazendo de nós mesmos?” (p. 325). Convido vocês, leitores e leitoras, para uma
inquietação desse tipo na leitura deste livro Queer. Com os cuidados que a leitura de
Colombrook (2009, p. 11) os faz ter com essa afirmação: “a teoria Queer é um reflexo do
que define como Queer ou o conceito de Queer muda nos caminhos de sua teorização”?
Apoiando-se em Butler, Swain (2002) afirma o caráter provisório da norma, o que faz
com que estejamos em movimento. O binarismo que nos habita instala em nós sentidos
fixos e unos das sexualidades, organizando identidades e aprisionando corpos e prazeres. Por
que insistimos em ordenar o múltiplo, o diverso, as diferenças?
Michel Foucault, Judith Butler, Gilles Deleuze atravessam muitos dos textos deste
livro. Talvez para chacoalhar já que juntos, como diz Pelbart (2007, p. 61), “estamos
todos à mercê da gestão biopolítica, cultuando formas-de-vida de baixa intensidade,
submetidos à mera hipnose, mesmo quando essa anestesia sensorial é travestida de hipe-
rexcitação”. Imiscuído em fragmentos sobre a biopolítica em nós, este livro transborda
resistências que podem ajudar no enfrentamento de vidas bestas. “Vida besta é esse
rebaixamento global da existência, é essa depreciação da vida, é sua redução à vida nua,
à sobrevida, é esse estágio último do niilismo contemporâneo” (Pelbart, 2007, p. 61)
O livro, resultado das conferências e mesas redondas dos trabalhos apresentados duran-
te o III Seminário Internacional “Pensando Gêneros: a psicologia para além do espelho”,
bem como da parceria do Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades (GEPS) com
outros grupos de pesquisas e pesquisadores afinados às discussões contemporâneas sobre
a necessidade de queerizar a Psicologia, é dividido em duas partes: Descontinuidades e
Quering e as práticas psi. Ambas afirmam movimentos, desafiam os saberes psi, o-devir-
-pesquisador-em-nós, as sexualidades heteronormativas – todas aquelas que se pautam
por esta referência e exploram sentidos da teoria queer.
Diálogos sobre la adopción en España por parejas del mismo sexo: el problema de las
prácticas psicológicas discriminatorias, de Rosa Borge Bravo e Raquel (Lucas) Platero, revela
tensões entre a legislação sobre adoção no país e as práticas profissionais de psicólogos e
assistentes sociais no âmbito da justiça quando precisam se posicionar frente ao desejo
de constituição de laços legais de filiação por pais gays e mães lésbicas. A proposta Queer
dos autores se expressa também no formato que elegem para envolver os leitores em seu
diálogo. O fato de as leis não discriminarem direitos que casais possuem, sejam de mesmo
sexo, ou de diferentes sexos, não significa que a sua aplicação garanta a igualdade de
direitos. Inclusive porque as mediações são feitas muitas vezes por instituições privadas e
por profissionais que pouco conhecem as discussões recentes sobre família LGBT. Para os
autores, é preciso que se garanta transparência nos processos de adoção, entendendo que o
sigilo profissional não é suficiente para um funcionamento ético, ao contrário, pode gerar
arbitrariedades e reforçar a homofobia e a transfobia.
Marina Castañeda, em La dignidad gay, mostra como no Ocidente a crescente
aceitação da homossexualidade convive com a intolerância de parte da sociedade que
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
ela denomina como “direita religiosa militante”. Apesar dos direitos conquistados nos
últimos anos, são fortes esses movimentos que pretendem cercear não apenas o que já
se conseguiu em relação à população LGBT, mas por a perder os avanços com relação
ao aborto, divórcio, igualdade de gênero, entre outros. A autora destaca não apenas a
normalização da homossexualidade e suas consequências, mas a importância da internet
na construção de redes que prescindem de coincidência de espaço e que são funda-
mentais no fortalecimento de movimentos minoritários. E aposta em um momento de
construção do que ela propõe como “dignidade gay”, o que demonstra uma passagem
do pedido de compreensão para a exigência de respeito e que talvez tenha que passar,
também, por mudanças no jeito cotidiano de se ser gay.
Ambos os textos sublinham o caráter nefasto da homofobia e suas consequências
tanto para a vida privada das pessoas envolvidas, quanto para a formação da sociedade.
E demonstram que são muitos os passos entre a garantia legal de direitos, a variedade de
olhares sobre as sexualidades e a micropolítica cotidiana. Talvez uma frase de Deleuze
(2002) resuma bem algumas das tensões que habitam o que escapa do heteronormativo:
“basta não compreender para moralizar” (p. 29).
Os três textos que se seguem nos colocam em movimento. O trânsito, o incessante
incômodo com a diferença, as experimentações que propõem nos atiram e atiçam a
lugares que se inventam ao chegar.
Em Las diferencias desigualadas: multiplicidades, invenciones políticas e transdisciplina,
Ana María Fernández elenca e analisa brevemente diferentes movimentos políticos e aca-
dêmicos de início na década de 1980, a partir de três dimensões: política, epistemológica
e filosófica. Como pano de fundo, uma grande questão: o que fazer, como lidar com a
diferença sem se remeter a idênticos ou origens? Trata-se, segundo a autora, de forçar os
limites do possível para resistir e inventar dispositivos de forma cada vez mais coletiva.
“Quem se importa com experimentos?” Ontologias variáveis, inquietações queer, de Dolores
Galindo, nos convida a pensar sobre a noção de experimentos que movimenta sensações e
devires. Acompanhada por Donna Haraway e outros autores, desliza do debate sobre sexo
e heteronormatividade para relacionalidades entre humanos e não/humanos provocando
o que chama de humanonormatividade, utilizando-se, para tal, de referências à arte.
Wiliam Peres, em Psicologia e Políticas Queer, destaca as amarras do sistema que Butler
intitula sexo/gênero/desejo/práticas sexuais e que cria viciados em identidades. Como
estratégia de rupturas, toma Queer não como identidade, mas como verbo, possibilidades
de movimentos que rompam com os imperativos da norma. O desafio, propõe o autor,
seria borrar as fronteiras sem desmanchar pontes de conexão. Assim, aposta na transito-
riedade dos sujeitos nômades e intima a Psicologia Social a se intrometer neste universo
que explode binarismos.
Gloria Careaga Pérez, em La sexualidad, aún un desafío para la Psicología, interpela a
psicologia ao perguntar se há disposição para construções para além de categorias. O es-
quadrinhamento, propõe a autora, não pode se restringir ao que notamos como exótico, é
preciso perturbar o hegemônico. Estão na cena os movimentos feministas e o que a autora
denomina de LGBTI: se o primeiro não conseguiu, segundo a autora, dissociar sexualidade
de reprodução, este último avança com propostas integracionistas. Historiciza, de forma re-
sumida e precisa, percursos e apropriações da teoria Queer para discutir as relações entre sexo,
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Queering: problematizações e insurgências na Psicologia Contemporânea
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Queering: problematizações e insurgências na Psicologia Contemporânea
Elcio Nogueira dos Santos, em Vapores etnografados. Dos desejos de clientes, michês e
pesquisador, se propõe a discutir a “subjetividade do pesquisador e as relações de poder
que se estabelecem entre este e seus pesquisados”. Imerso em uma pesquisa etnográfica,
nos convida a conhecer saunas gays de São Paulo fazendo uso da teoria Queer para brincar
com suas experimentações de antropólogo que transitavam entre o uso ou não de roupas
adequadas ao local que frequentava.
Provocada pela compreensão de monstro da psicanálise, Paola Zordan, em Matéria
monstra: digressões esquizoanalíticas da Figura, convoca Deleuze e Guattari, entre outros,
para uma digressão sobre o monstro, aquele que carrega em seu corpo o “pânico da
indistinção e da perda de referência, as incertezas do verdadeiro, que, por natureza, é
sempre diferente”.
Trabalhando com histórias de vida de mulheres que não vivem em acordo com
a sexualidade heterossexual, Lívia Gonsalves Toledo, em Quando a violência se torna
vergonha: a expressão da homofobia interiorizada em narrativas sobre o homoerotismo entre
mulheres, se debruça sobre uma homofobia “interiorizada”, conceito que ela problema-
tiza, para tratar da construção política e existencial de seres sexuados e generificados.
Swain (2002, p. 341) diz que “mudar um regime de verdade significa mudar de
lugar, inverter os paradigmas para melhor dissolvê-los”.
O tempo do nômade, diz Braidotti (2000), é o imperfeito. Sejamos nômades nas
leituras desta obra. E aproveitem as piruetas1 que este livro certamente propiciará.
Referências bibliográficas
BRAIDOTTI, Rosi. Sujetos nómades. Buenos Aires, Paidós, 2000.
COLOBROOK, Claire. On the Very Possibility of Queer Theory, in: NIGIANNI, Chrysanthi e
STORR, Merl. Deleuze and Queer Theory. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2009.
DELEUZE, Gilles. Espinosa. Filosofia prática. São Paulo, Escuta, 2002.
PELBART, Peter Pal. Biopolítica, Revista Sala Preta, v 7, n 7, 2007, p 57-66, disponível em http://
www.eca.usp.br/salapreta/PDF07/SP07_08.pdf, acesso em 28 de outubro de 2012.
SWAIN, Tania Navarro. Identidade nômade: heterotopias de mim, in: RAGO, Margareth;
ORLANDI. Luiz B. L. e VEIGA-NETO, Alfredo (orgs.) Imagens de Foucault e Deleuze. Res-
sonâncias nietzchianas. Rio de Janeiro, DP&A Editora, 2002, pp.325-341.
1 A ideia de pirueta é inspirada em uma entrevista concedida por Félix Guattari à revista Teoria e Debate nº 12, em 2006,
em que ele afirma ser sempre possível dar uma pirueta com a esperança.
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SEÇÃO I
(Des)Continuidades e Rupturas
com e na Psicologia Contemporânea
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Diálogos sobre la adopción en España
por parejas del mismo sexo: el problema de
las prácticas psicológicas discriminatorias
Abstract: Nuestra propuesta para el área “Queering y las prácticas psicológicas” se trata de un diálogo
entre Rosa Borge Bravo, politóloga y profesora de la Universidad Oberta de Cataluña y Raquel
(Lucas) Platero Méndez, psicólogo e investigador en la Universidad Complutense de Madrid, en el
que discutimos el ámbito de la adopción por parte de las parejas lesbianas y gays en el contexto de
Cataluña. Hacemos énfasis no sólo en el marco legal y de derechos del estado español, sino en las
prácticas profesionales de la psicología a la hora de delimitar el tránsito entre la política pública y
la implementación de la misma. La ley que permite el matrimonio entre personas del mismo sexo
aprobada en 2005 establece las mismas condiciones para todo tipo de uniones, incluyendo entre
otros derechos la adopción. Sin embargo la adopción sucede en el ámbito de las Comunidades
Autónomas, donde las realidades son tremendamente heterogéneas. En el contexto de Cataluña, como
ocurre en otras Comunidades Autónomas, estas adopciones públicas están mediadas por entidades
privadas, en las que los profesionales de la intervención social son psicólogos y trabajadores sociales.
Discutiremos algunos casos e informes de peritaje, así como las preguntas al Parlamento Catalán y los
informes de la Fiscalía Antidiscriminación en los que se plantea las dificultades que surgen cuando las
prácticas profesionales, en concreto desde la psicología, contiene valores heterosexistas, machistas y
homófobos. Y cerraremos haciendo propuestas para una psicología crítica con una mirada Queer.
Palabras clave: adopción por parejas del mismo sexo, Cataluña, lesbianas, gays, España, psico-
logía crítica, Queer
Introducción
Cuando recibí (Lucas) la propuesta de Dr. WiliamSiqueiraPeres del Departamento
de Psicología Clínica de la UNESP/Assis desde el mismo Brasil, en la que me proponía
escribir en su libro “Psicologia y Estudios Queer”, me entusiasmé sin remedio. En seguida
me vino a la cabeza mi formación, en la carrera de Psicología que hice en la Universidad
Complutense de Madrid y cuánto eché de menos una mirada crítica y Queer sobre lo
que estábamos aprendiendo. Pensaba en todas las personas que queriendo trabajar desde
las diferentes disciplinas de la intervención social y las ciencias del cuidado aportar una
mirada que supere los marcos patologizantes sobre la sexualidad, las diferentes familias,
deseos e identidades. No pude sino reflexionar sobre cuán necesarias son estas iniciativas,
no sólo para quienes nos hemos formado en cualquiera de las especialidades de la Psi-
cología, sino también aquellas personas que están y estarán comenzando sus estudios. Y
ahí es cuando imaginé que este artículo debía tener no sólo una propuesta queer sino un
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
formato también un tanto queer. Una entrevista, un formato dialógico, podría mostrar
de una forma dinámica los debates actuales y desafíos presentes sobre el papel de la Psi-
cología y otras ciencias de la salud sobre una cuestión concreta y polémica, como es la
adopción en el marco del derecho del Estado español. Y así comenzamos este proyecto
que tiene dos interlocuciones: Rosa Borge Bravo, (socióloga y politóloga, profesora de la
UniversitatOberta de Catalunya) y con Raquel (Lucas) Platero, activista LGTBQ3, inves-
tigador en la Universidad Complutense de Madrid y docente en educación secundaria.
NOTA: Se trata de una conversación que tiene lugar el verano de 2011, en una
serie de correos electrónicos que nos cruzamos entre julio y agosto, en el que sucede un
intenso debate que aquí recogemos de forma resumida.
Diálogo
Platero: En el Estado español se han aprobado toda una serie de leyes que conce-
den nuevos derechos a personas que anteriormente eran tratadas como delincuentes y
peligrosos sociales, entre ellas las lesbianas, gays y transexuales. Es especialmente cono-
cida la ley que permite el matrimonio entre personas del mismo sexo, ley aprobado en
junio de 2005; sin embargo se conocen menos los detalles de esta ley, por ejemplo, con
respecto a la adopción. Para explicarlo a un público que puede no estar familiarizado,
te preguntaré, ¿las lesbianas y gays tienen derecho a adoptar y acoger a menores, tal y
como tienen las personas heterosexuales, o las personas solas?
Borge: Sí, tanto gracias a la Ley 13/2005 que modificaba el Código Civil español
en materia de derecho a contraer matrimonio4, como gracias a otras leyes de las Comu-
nidades Autónomas que permiten la adopción y acogida de menores a las parejas del
mismo sexo, y que incluyen también a las parejas de hecho, del mismo y diferente sexo.
Platero: Uno de los términos novedosos de la ley es que no se trata de una “ley
especial”, sino que establece los mismos derechos para todos los ciudadanos, de una
orientación sexual u otra. No se trata de “una ley de matrimonio gay”, sino de un
cambio del Código Civil, que se aplica a todos los ciudadanos y ciudadanas. Así, si la
ley trata de incluir la igualdad entre personas heterosexuales y homosexuales, ¿en qué
términos lo hace?
Borge: Resulta ser un añadido muy breve en Código Civil, en artículo 44, en el que
a continuación de la afirmación de que: “El hombre y la mujer tienen derecho a contraer
matrimonio conforme a las disposiciones de este Código”, se añade que: “El matrimonio
tendrá los mismos requisitos y efectos cuando ambos contrayentes sean del mismo o
de diferente sexo”.De esta manera, los derechos matrimoniales, que son muy diversos y
numerosos (derechos sucesorios y de filiación, tributación fiscal, multitud de derechos
económicos, derechos judiciales, etc..) se aplican también a las parejas del mismo sexo
unidas en matrimonio.
Platero: Uno de los derechos que regula esta ley es la adopción. Éste es un tema
bastante controvertido, que ha generado bastante reacciones de los sectores más conser-
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Diálogos sobre la adopción en España por parejas del mismo sexo:
el problema de las prácticas psicológicas discriminatorias
5 Ver: http://www.gencat.cat/benestar/icaa/
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Diálogos sobre la adopción en España por parejas del mismo sexo:
el problema de las prácticas psicológicas discriminatorias
6 Ley 3/2007, de 15 de marzo, reguladora de la rectificación registral de la mención relativa al sexo de las personas. BOE
65, 16 de Marzo de 2007 p. 11251.
7 Haraway, Donna (1995). Ciencia, cyborgs y mujeres: la reinvención de la naturaleza. Madrid: Cátedra.
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La dignidad gay
Marina Castañeda1
1 Este ensaio é o capítulo final do livro da mesma autora chamado La Nueva Homosexualidad (Mexico, D.F.: Editorial
Paidós, 2006).
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La dignidad gay
La dignidad gay
Estoy convencida de que el siguiente paso es que los mismos homosexuales asu-
man plenamente la “normalización” de la homosexualidad. Esto significa rebasar la
fase histórica de la lamentación, que consistió en provocar lástima para luego pedir
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
comprensión y aceptación. En efecto, en los últimos treinta años y hasta la fecha en los
países homofóbicos, hemos visto a muchos homosexuales dedicarse a describir en los
foros públicos (sobre todo en los medios masivos) todo lo que han padecido a causa
de la discriminación. Este sufrimiento ha sido indudablemente real, y ha tenido con-
secuencias muy lastimosas y duraderas para incontables homosexuales. Pero creo que
el exponerlo públicamente ya no sirve a la causa. Al contrario, ratifica todos los estere-
otipos homofóbicos, sin hablar del morbo, que tan gustosamente cultivan los medios
masivos respecto de la homosexualidad. Confirman, una vez más, que los homosexuales
son personas “sensibles”, básicamente infelices, solitarias y fracasadas, que merecen la
compasión de la sociedad.
Habiendo asumido una identidad gay y logrado una comunidad gay, así como muchos
avances reales, el siguiente paso es lograr la dignidad gay. Esto significa presentarse ante la
sociedad, ya no como menores de edad que piden comprensión, sino como adultos que
exigen respeto. La verdadera igualdad no vendrá de la compasión. Tampoco es necesaria
la comprensión. Para tomar algunas analogías: no es necesario conocer a fondo la historia
de la esclavitud para saber que los negros merecen el mismo trato que los blancos. No
es necesario empaparse de la cultura judía para tomar una posición decidida contra el
antisemitismo. No es necesario ser mujer ni entender lo que han sufrido las mujeres en las
sociedades machistas para estar a favor de la equidad de género. Lo único que se requiere
es aceptar la igualdad de derechos para todos, sencillamente porque todos formamos
parte de la misma sociedad y estamos ligados por el mismo contrato social. Como tan
bien lo dijo Rodríguez Zapatero al legalizar el matrimonio gay en España: “Una sociedad
que ahorra sufrimiento inútil a sus miembros es una sociedad mejor.” La compasión no
tiene nada que ver en el asunto.
Por ello, para lograr la dignidad gay es urgente dejar atrás la victimización. La
realidad ha rebasado esa fase histórica, que quizá fue necesaria en un principio para
despertar en los heterosexuales cierta conciencia de la homofobia. Pero hoy día, y aun
en un país como México, los homosexuales ya no requieren ni merecen la lástima de
la sociedad, sino la plena aceptación. Existen ya demasiados homosexuales plenamente
integrados, aceptados e incluso admirados, para seguir tocando la misma nota, habiendo
tantas otras como el trabajo, el mérito y la integridad personales, y sencillamente vivir
una vida sana y plena.
muy conocido que trabaja tanto en la radio y televisión como en la prensa. Su título en
español es, “La sociedad ya acepta a los hombres gay como iguales. Entonces, ¿por qué
demonios siguen tantos de ellos comportándose como adolescentes?”2 El autor, Simon
Fanshawe, acababa de realizar un documental transmitido en la BBC llamado “¿Qué
les pasa a los hombres gay?”, y reconoce en el artículo que al hacerlo probablemente ha
cortado amarras con “las facciones más radicales del mundo gay” y los “hedonistas” que
siguen buscando “el clímax de su vida en el alcohol, las drogas y la “putería”.”
Escribe: “Los dos grupos siguen creyendo que basta con ser gay para ser buenas
personas. Yo ya no lo creo. Y en este programa me di a la tarea de exponer el hecho de que
los hombres gay seguimos viviendo como adolescentes, obsesionados con la sexualidad,
el cuerpo, las drogas, la juventud, y el ser “gay”.” “Pasamos—insiste—demasiado tiempo
en el ligue, los saunas, el web gay.” Fanshawe confiesa que él ha hecho exactamente lo
mismo, y se describe como un hombre gay en sus cuarenta que se pregunta cuándo
“vamos a aprovechar la oportunidad de ser adultos en una sociedad que, al menos
legalmente, ya nos considera como iguales.”
Reconoce que durante mucho tiempo, en la primera época de la liberación gay, fue
importante vivir la libertad sexual y exigir el derecho a hacerlo. Pero ahora, dice, ciertas
cosas ya no promueven la causa gay sino, al contrario, no hacen más que chocarle a la
gente. Por ejemplo, el pasearse por las calles en tanga simplemente porque es la marcha
del orgullo gay ya no transmite más que inmadurez; lo mismo sucede con el hecho de
tener relaciones sexuales en lugares públicos, cosa que no hacen ni toleran los hetero-
sexuales. Fanshawe critica asimismo las publicaciones gay, con sus páginas y páginas de
anuncios sexuales: “Hemos normalizado la prostitución.”
Prosigue: cuando se trata de sexo, ya no hacemos distinciones, “ya no pensamos en
los efectos que [nuestra conducta] pudiera tener sobre nuestra salud emocional o mental,
ni sobre nuestra capacidad para hacer juicios morales en el mundo.” Claro, reconoce,
existen juicios en el mundo gay; pero están basados casi enteramente en las apariencias,
en el cuerpo. Y declara: “El mundo ha cambiado para los hombres gay. He de añadir la
objeción ritual de que sigue habiendo homofobia, por supuesto; pero el hecho es que,
según la ley, hemos logrado una igualdad casi total. Sin embargo, seguimos compor-
tándonos como si fuéramos todavía una minoría marginada, excluida del mundo de la
responsabilidad. Los hombres gay tenemos mucho trabajo por delante. Seguimos siendo
adictos a las drogas, la sexualidad y las apariencias, y a todo ello le damos el nombre de
cultura gay.” Menciona los costos: el uso alarmante de cristal meth, las tasas crecientes
de infecciones por VIH y sífilis, la cual se ha sextuplicado, en los últimos cinco años,
entre los hombres gay británicos.
Concluye con un llamado a la madurez, “porque los hombres gay hemos lucha-
do por la libertad y ahora tenemos a nuestro alcance un nuevo mundo. Algunos de
nosotros estamos listos para asumirlo: uniones civiles, la posibilidad de adoptar hijos,
nuestra visibilidad real en nuestras comunidades, a las cuales contribuimos de tantas
maneras, desde liderear la lucha contra el sida hasta promover campañas que mejoren
2 Simon Fanshawe, “Society Now Accepts Gay Men as Equals. So Why on Earth Do So Many Continue to Behave like
Teenagers?” The Guardian, 21 de abril, 2006.
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la salud pública para todos: eso es vivir como ciudadanos. Pero para asumirlo tenemos
que dejar atrás nuestros años adolescentes de sexo, de drogas y de burla hacia la gente
mayor, y comprometernos con un futuro de fidelidad y responsabilidad. Ya no se trata
de construir castillos en el aire. Hemos llegado, por fin, al mundo real.”
Palabras de una singular resonancia, viniendo de un hombre gay que se dedica a pen-
sar y a describir la vida gay, desde una óptica gay. Pero igualmente impactantes resultan
las reacciones de sus lectores, publicadas a continuación de la versión online del artículo.
Se pueden leer un centenar de comentarios3, que ilustran muy bien el debate acerca de
hacia dónde va la homosexualidad en un país en el que ha habido avances importantes
en los derechos gay, incluyendo la legalización de la unión civil, cuando la generación
que hizo y vivió plenamente la liberación gay se está acercando ya a los cincuenta años.
Veinte lectores felicitan a Fanshawe por su artículo y expresan su total acuerdo con él;
una mayoría comparte sus críticas al estilo de vida que describe, pero objeta que no
todos los gays participan en él. Finalmente, una minoría defiende el “hedonismo gay”:
algunos preguntan cuál es el problema, otros argumentan que los heterosexuales hacen
exactamente lo mismo, otros más sostienen que los homosexuales no tienen por qué
adoptar los valores heterosexuales como la fidelidad; y finalmente algunos se erigen
contra cualquier tipo de “moralismo”, equiparándolo con la homofobia.
He escogido presentar aquí la perspectiva de un grupo de hombres gay lo su-
ficientemente informados y politizados como para leer el Guardian y escribir sus
reflexiones, para que mi cuestionamiento no parezca meramente el de una dama bien
pensante y moralizadora. Creo que este debate es importante y urgente para todos los
homosexuales, porque plantea una pregunta esencial: ¿cuál debe ser el siguiente paso,
después de la liberación gay, después de la creación de comunidades gay, después de las
conquistas legislativas, después de cierta aceptación social? Estas interrogantes pueden
parecer prematuras en un país como México, donde todavía hay tanto por hacer; pero
yo he escuchado a muchos hombres gay mexicanos quejarse del “medio” y expresar su
repudio hacia una vida social centrada en los antros. Y si estas preguntas son en efecto
prematuras, ya no lo serán en unos cuantos años.
Porque, a fin de cuentas, la “normalización” de la homosexualidad tiene que ver no
sólo con su aceptación por parte de la sociedad, sino también con una integración social
por parte de los homosexuales, en términos de responsabilidad personal y cívica. Éstas
parecen ser, por ahora en todo caso, las condiciones para ganar no sólo la aceptación,
sino el respeto.
3 Véase http://www.guardian.co.uk/commentisfree/story/0,,1758083,00.html.
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Las diferencias desigualadas:
multiplicidades, invenciones
políticas y transdisciplina
Ana María Fernández1
La pregunta por “la diferencia” abre una serie de cuestiones conceptuales. Se distinguen tres
dimensiones problemáticas: una dimensión política en tanto hoy está puesto en crisis el modo
moderno de construcción de la igualdad. Una dimensión epistemológica, al ponerse en discusión
las formas unidisciplinarias de construcción de los conocimientos. Y por último, una dimensión
filosófica, en relación con el ser de la diferencia, que a su vez, interroga el desfondamiento de la
configuración de las identidades modernas. Se proponen abordajes desde multiplicidades filosó-
ficas, invenciones colectivas y epistemologías transdisciplinarias.
Palabras clave: identidad, diferencia, multiplicidad, invención política, estudios transdiscipli-
narios, subjetividad.
La vida se extingue allí donde existe el empeño de borrar las diferencias…
Vasili Grossman
Multiculturalismo y diferencia
¿Cómo podemos pensar hoy la cuestión del multiculturalismo? Hacia finales de los
años ochenta aparecen una serie de espacios políticoacadémicos que interesa poner aquí
en consideración. Si bien el artículo no se detendrá en cada uno de ellos, en diversas
manifestaciones abundan hoy términos que hacen referencia a lo “multi”, lo “post” que,
desde mi criterio, abren una serie de cuestiones conceptuales que, sin duda, es intere-
sante pensar. Sólo se los mencionará rápidamente para poder focalizarse en algunas de
las tensiones que despliegan.
Podría decirse que el propio concepto de multiculturalismo aparece a finales del
siglo XX. Pone el eje en la cuestión de la diversidad cultural. Se despliega en la tensión
entre la búsqueda de una sociedad pluralista y la necesidad de pertenencias identitarias,
en el mundo globalizado actual. Apunta a la necesidad de una nueva cultura cívica
mundial. Ha dado lugar, en el mundo académico anglosajón –más específicamente en
los EE.UU.– a los estudios multiculturales.
A su vez, estos se encuentran emparentados con los llamados estudios poscoloniales,
desarrollados en lo que fueron las colonias del Imperio Británico. Son estudios que analizan
las nuevas relaciones metrópolis-colonias, una vez obtenidas sus independencias políticas.
Aquí es importante diferenciar los estudios poscoloniales de los estudios decoloniales,
desarrollados en algunos centros académicos de América Latina y, fundamentalmente,
por profesores latinoamericanos establecidos en universidades de EE.UU. y Europa.
Trabajan básicamente sobre la colonialidad del poder. Desde allí, se propone la impor-
tancia de visibilizar los rasgos eurocéntricos de la producción de conocimientos y de
las categorías políticas que habitualmente usamos (Castro-Gómez y Grosfoguel, 2007).
También pueden incluirse en esta sucinta enumeración, los estudios Queer o teoría
Queer. Surgen a posteriori de los estudios de la mujer y los estudios de género, por lo
1 Doctora en Psicología. Profesora e investigadora de la Universidad de Buenos Aires (Argentina). E-mail: anafer@psi.uba.ar
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que suelen denominarse también estudios posfeministas, y han considerado que tanto
los unos como los otros se circunscribían a relaciones de género heterosexuales de
personas blancas de clase media “europea”. Intentan, en consecuencia, desnaturalizar
los posicionamientos de género, clase, etnia y opción sexual de las corrientes que los
antecedieron. Comprenden estudios y políticas de transexuales, transgeneristas, travestis,
etc., hoy también llamadas neo sexualidades. Uno de sus postulados más revulsivos es
que consideran que es necesario desnaturalizar la heterosexualidad. Esta sería una nor-
ma, la norma heterosexual, con lo cual intentan poner en cuestión la categoría misma
de diferencia sexual.
Otros grupos que interesa mencionar, son los movimientos políticos llamados
post-socialistas. Rechazan las formas de construcción política –como también la idea de
vanguardia– que iluminaron los movimientos revolucionarios de los siglos XIX y XX.
Plantean construcciones políticas horizontales, anti jerárquicas y en redes mundiales. Ya
no se trataría de cambiar este mundo por otro más justo –esto implicaría instalar una
nueva hegemonía– sino un mundo donde quepan muchos mundos (Zuleta, Cubides
y Escobar, 2007). Desde ya, tienden a desdibujar los ejes clasistas y/o nacionales en la
composición de sus acciones y en sus modalidades de construcción política.
Si bien todos estos grupos parecerían una Babel, podemos preguntarnos qué pueden
presentar en común. No sólo comparten una época, ya que aparecen en los últimos
veinte o treinta años, sino que presentan otra característica que me interesa subrayar:
suelen ser movimientos políticos y académicos a la vez.
En lo político, intentan reformular los ejes clásicos de las ideas de democracia,
ciudadanía, nación, pueblo. En lo académico, desbordan la forma de construcción
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Las diferencias desigualadas: multiplicidades, invenciones políticas y transdisciplina
En relación con qué hacer como diferentes, allí también pueden encontrarse una serie
de problemas por pensar. A partir del genocidio nazi se produce un punto de inflexión,
o más bien de agotamiento, de lo que habían sido las políticas de la asimilación. Que-
dan brutalmente manifiestas incompletudes, fracasos e inviabilidades de estas políticas
de la asimilación. A finales de los cincuenta, las luchas de otros grupos discriminados,
particularmente en EE.UU., mujeres y negros en un principio, evidencian nuevas posi-
ciones de estos grupos “minoritarios”1. Al mismo tiempo que comienzan a desplegarse
las políticas multiculturales, van poniendo de manifiesto un rasgo de antiasimilación
que abre nuevas dificultades. Ahora no serán encerrados en guetos, como los judíos
de la Segunda Guerra, sino que formarán autoguetos. Posiblemente, quien mejor ha
mostrado los impasses de estas políticas de la diferencia, es Spike Lee y su filmografía.
En esa línea es interesante el aporte del premio Nobel Amartya Sen, cuando ha-
bla de “las políticas del sapo de pozo” (Sen, 2004), es decir, cada sapo en su pozo. Es
muy interesante su planteamiento. Podemos observar que en el movimiento hacia la
metrópolis (la inmigración llamada ilegal siempre es unidireccional), los inmigrantes
encuentran barreras de todo tipo. Una vez instalados en ella, en el camino legítimo de
mantener sus culturas, las propias colectividades levantan, ellas mismas, los muros del
pozo. De su pozo, donde logran conservar sus hábitos culturales, pero generalmente
también sostienen sólo reivindicaciones de “su” diferencia sin articularlas con las de
otros diferentes.
El problema es que las políticas de la tolerancia con las que el liberalismo cultural
intenta resolver estos problemas, hasta ahora no resuelven la desigualdad de los dife-
rentes. Sin desmerecer la importancia de avanzar en los márgenes de tolerancia que
una sociedad puede construir, se abren dilemas éticos no sólo difíciles de resolver, sino
aun de pensar. Por ejemplo, la clitoridectomía de las niñas musulmanas que viven en
Francia o que ya son francesas, ¿es una costumbre cultural por respetar o un delito sobre
el que el Estado debe actuar?
En síntesis, pareciera ser que el nuevo orden mundial, eufemísticamente llamado
“globalizado”, pareciera desplegarse en este tema con una particular tensión entre un
multiculturalismo liberal y un fundamentalismo étnico -religioso. Creo, en realidad, que
no sería muy aventurado pensar que ambos se van constituyendo uno como síntoma
del otro. De ser así, habrá que pensar en estas posiciones extremas, qué impensados de
cada una de estas posiciones, qué impasses o encerronas de sus supuestos se “ resuelven”
como síntomas especulares, uno del otro.
Si estas son las sin salidas del mundo liberal, no menores son las dificultades de los
universos emancipatorios. La caída del muro de Berlín fue mucho más que la implosi-
ón de un régimen. Ha implicado en el mundo occidental el agotamiento de la utopía
socialista. El desfondamiento de este imaginario libertario ha dejado, por el momento,
sin fundamento anhelos y prácticas emancipatorios que en los dos últimos siglos ca-
racterizaron las resistencias a las implacables lógicas capitalistas. No sólo eso, también
se han deslegitimado sus modos de construcción política.
En un mundo donde el neoliberalismo ha sido triunfante, desde mediados de los
noventa, empiezan a registrarse movimientos contestatarios y/o insurgentes que pre-
sentan en muchos casos modalidades muy diferentes de pensar y accionar sus prácticas
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Ahora bien, la fusión histórica del subjectum –lo que permanece con el Hombre,
no sólo inauguró los humanismos y las ciencias humanas, sino que dio lugar, en la
construcción de la verdad moderna, a una idea de sujeto universal, idéntico a sí mismo,
desde donde se ha instituido todo lo que no es “yo”, como “otro”, es decir, alteridad,
extranjería, diferencia. En tanto el hombre se constituyó como sujeto y el mundo como
imagen, dirá Heidegger, en su producción representadora, él será medida de todo ente
y pondrá todas las normas (Heidegger, 2002).
La dimensión política de esta problemática filosófica es inmensa. El “otro”, siempre
extranjería, diferencia, complemento, suplemento, es decir, mujeres, homosexuales,
clases, etnias, religiones, culturas y países no hegemónicos han sido considerados, a lo
largo de los siglos, como anomalía.
Desde esta perspectiva, donde la diferencia es pensada como negativo de la identidad,
en el mismo movimiento en que se distingue la diferencia, se instituye la desigualdad.
No se trata de la mera diferencia, sino de diferencias desigualadas. Se sostienen así mu-
chos siglos de dispositivos de discriminación, exclusión, estigmatización o exterminio.
Hablar de diferencias desigualadas supone pensar que la construcción de una
diferencia se produce dentro de dispositivos de poder: de género, de clase, de etnia,
geopolíticos, etc. Esto implica dos cuestiones:
• No se constituye primero una diferencia y luego una sociedad injusta la desiguala.
• No se trata de describir diferencias o desigualdades, sino de realizar el trabajo de
elucidación; se trata de la construcción de categorías hermenéuticas que puedan
visibilizar y enunciar la producción-reproducción de los dispositivos biopolíticos
que configuran en un mismo movimiento esa diferencia y esa desigualdad.
Ya no es cuestión de contar a los pobres y hablar de la pobreza, describir las caracte-
rísticas culturales de una comunidad subalterna o relevar especificidades de las mujeres,
sino de elucidar los dispositivos biopolíticos (Foucault, 2007) que construyen esas
identidades de esa manera y no de otra. Hacer visibles las múltiples redes de dominios
y sujeciones, y de resistencias e invenciones de los subalternos y de los dominantes en
las construcciones de sus identidades como diferencias desigualadas.
¿Cómo pensar categorías conceptuales que no operen como fundamento de desi-
gualdades políticas? ¿Cómo operar con una lógica de la diferencia que no se sostenga
en el a priori epistémico de la diferencia como anomalía de la identidad? En síntesis,
¿cómo pensar lo que no es idéntico ni diferente? (Fernández, 2007a).
Una interesante herramienta para pensar alguna de estas cuestiones puede ser la idea
deleuziana de diferencia de diferencias (Deleuze, 1988). Se trata de diferencias que no
remiten a ningún idéntico, a ningún centro, y de repeticiones que no remiten a ningún
origen. Se trata de hacer diferencias, más que de ser diferente. Es un poder ser abierto.
Estas diferencias de diferencias, en su accionar, más que fijar alteridades, generan inten-
sidades diferenciales. Diferencias de intensidades. En este poder ser, activo, abierto, se
trata de pensar y actuar devenires más que reproducciones o copias imposibles, siempre
necesariamente faltantes, del modelo o esencia.
Desde esta noción de multiplicidad, en tanto don de lo diverso, no se trata de negar
identidades ni totalizaciones, sino de pensar totalizaciones que no subsuman las partes.
El todo al lado de partes (Deleuze y Guattari, 1994).
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lógica de lo Uno, donde la singularidad del objeto teórico no debe verse afectada, dado
su aislamiento territorial metodológico por las condiciones de posibles aproximaciones
con otros campos disciplinarios.
Ya Foucault había señalado la encerrona metodológica que suponía aplicar estas
metodologías “positivas” para investigar una esencia: el hombre (Foucault, 1969).
Sin duda, la lógica del objeto discreto (Fernández, 1989) ha demostrado ocasionar
problemas para comprender las transferencias mutuas entre los distintos niveles, ya
que desde ella no puede pensarse la articulación de las formaciones de lo singular y lo
colectivo que supera el pensamiento binario antinómico (individuo/sociedad, alma/
cuerpo, naturaleza/cultura, etc.).
Un criterio transdisciplinario supone replantear varias cuestiones. En primer lugar,
un trabajo de elucidación crítica sobre los cuerpos teóricos involucrados, que desdibuje
una intención legitimante de lo que ya se sabe para poder desplegar la interrogación
de hasta dónde sería posible pensar de otro modo. Implica, como se señalaba líneas
arriba, el abandono de cuerpos nocionales hegemónicos de disciplinas reinas, a cuyos
postulados, códigos y orden de determinaciones se subordinan disciplinas satelizadas;
sobre estos presupuestos se crean las condiciones para la articulación de contactos locales
y no globales entre diferentes territorios disciplinarios, así como también que aquellos
saberes que las disciplinas hegemónicas habían satelizado, recobren su potencialidad de
articulaciones multivalentes con otros saberes afines.
De esta forma, los cuerpos conceptuales funcionan como cajas de herramientas
(Foucault, 1980), es decir, aportan instrumentos y no sistemas conceptuales; instru-
mentos que incluyen en su reflexión una dimensión histórica de las situaciones que
analizan; herramientas que junto con otras se producen para ser probadas en el criterio
de su universo, en conexiones múltiples, locales y plurales con otros quehaceres teóricos.
Se hace clara entonces, la diferencia con teorías que en realidad operan como
concepciones del mundo, que se auto-legitiman en el interior de su universo teórico-
-institucional, y que por lo mismo exigen que toda conexión con ellas implique instancias
de subordinación a la globalidad de su cuerpo teórico.
Por lo antedicho, junto con esta forma de utilización de las producciones con-
ceptuales como cajas de herramientas, un enfoque transdisciplinario presupone un
desdisciplinar las disciplinas de objeto discreto, y en el plano del actuar, cierto desdi-
bujamiento de los perfiles de profesionalización, por lo menos aquellos más rigidizados
(Fernández, 2007a).
Los criterios transdisciplinarios se sustentan, justamente, a partir de una elucidación
crítica de este tipo de totalizaciones, buscando nuevas formas de articular lo uno y lo
múltiple. En su propuesta de contactos locales y no globales, focalizan un thema en su
singularidad problemática, y éste es atravesado por diferentes saberes disciplinarios. Sin
embargo, no pretenden unificarlos en una unidad globalizante. Por lo tanto, más que
una búsqueda de universales, indaga matrices generativas, problemas en relación con
los cuales los entrecruces disciplinarios puedan dar cuenta de las múltiples implicacio-
nes del tema en cuestión. Esto hace posible elucidar tanto las convergencias como las
divergencias disciplinarias en relación con el mismo.
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A modo de inconclusiones
Desde esta caja de herramientas, lo multi no referirá meramente a lo diverso, lo post
sólo a lo que viene después de la gubernamentalidad colonial, o de los Estados-nación,
o de los socialismos reales, menos a justificaciones de individualismos consumistas,
sino a las necesarias reorganizaciones estratégicas (político-conceptuales) que el nuevo
orden mundial impone a quienes siguen resistiendo e inventando nuevos y más libres
modos de vivir.
Elucidar las múltiples institucionalizaciones de diferencias desigualadas –geopolí-
ticas, culturales, étnicas, de clase, de género, de opción sexual– y sus modos de resistir,
para situarse en la invención de emancipaciones, en la producción de múltiples, diver-
sas, libertades. Porque de eso se trata, de la multi plicidad de estrategias de invención
colectiva y anónima de libertades.
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Las diferencias desigualadas: multiplicidades, invenciones políticas y transdisciplina
En esto hemos tenido el privilegio de ver cómo las fábricas sin patrón (Fernández,
2008) en Argentina, han forzado los límites de lo posible en condiciones de borde,
absolutamente en el margen. Allí ha podido comprobarse con toda contundencia que
este forzar los límites de lo posible es no sólo resistir, sino también inventar colectiva-
mente, en actualizaciones de deseo, en invenciones deseantes, unas formas cada vez más
libres de trabajar, de pensar, de estar… El don de la gratuidad de estar, entre algunos,
entre muchos, a contramano de esa feroz insistencia de las lógicas capitalistas en la
producción de soledades.
Ya el joven Marx había explicado en los primeros tiempos del modo de producción
capitalista, que la alienación que separa al productor de su producto constituía una es-
trategia central de las lógicas capitalistas para su reproducción. Así como el Imperio hoy
“globaliza” la producción y concentra capitales, los dispositivos biopolíticos actuales de
aislamiento y vulnerabilización también son esenciales para su reproducción. La fábrica
de soledades separa, aísla a cada quien de sus potencias. Cada vez estoy más separado
de otros. Cada vez pienso que puedo menos, cada vez hago menos, cada vez anhelo
menos. De allí la importancia de indagar no sólo los modos de producción y los diversos
modos históricos de subjetivación imprescindibles para la reproducción de las lógicas del
capital, sino también las lógicas colectivas de la multiplicidad (Fernández, 2007a) desde
donde los/as desigualados configuran sus formas colectivas de inventar otros devenires.
A la hora de dar relevancia a la configuración de modos de subje tivación no he-
gemónicos, habíamos dicho que nada de lo social es homogéneo (Fernández, 1993).
Ahora podemos agregar que siempre existe la posibilidad de líneas de fuga frente a los
poderes de dominio. Spinoza planteaba que ante las pasiones tristes, esas que el tirano
impone para someter a sus súbditos, hay que configurar pasiones alegres. Y allí es cen-
tral el registro de las propias potencias. Este registro no se realiza nunca en soledad, se
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compone con otros, entre otros, entre -muchos, entre-algunos. Las fábricas sin patrón
son un ejemplo de ello.
Si las relaciones de dominio constituyen un paquete enredado de relaciones de
poder (Grosfoguel, 2005) donde operan en multiplicidad diversas diferencias desigua-
ladas –geopolíticas, culturales, de clase, étnicas, religiosas, de opción sexual, de género–,
se tratará de articular multiplicidad de estrategias de invención colectiva y anónima de
emancipaciones y libertades.
Muchas veces pueden pensarse como estrategias sin tiempo: por fuera de calendarios.
No es que no haya apuro, sino que son estrategias permanentes (Fernández, 2007c). No
se trata del futuro, sino siguiendo a Derrida, de lo por venir, de las libertades por venir.
Lo por venir, ya no como un futuro utópico, sino como existenciarios com-posibles hoy.
Lo com-posible lejos está de significar acomodarse a lo posible. Se trata, más bien, de
forzar los límites de lo posible. No sólo resistir sino también inventar, en actualizaciones
de deseo, desde potencias deseantes, formas cada vez más libres de amar, de trabajar, de
estar, de pensar… entre-algunos, entre-muchos.
Se busca entonces enfocar nuestras preocupaciones académicas hacia la construcción
de un campo de problemas de la subjetividad, que desde los criterios que he expuesto,
necesita hacerse a partir de abordajes transdisciplinarios. Habilitar en nuestros espacios
académico -políticos áreas de estudios transdisciplinarios de la subjetividad donde segu-
ramente ocuparán un lugar estratégico las frecuentemente impensadas relaciones entre
las formas político-sociales y las producciones de subjetividades: aquellas que potencian
las invenciones colectivas, aquellas que reproducen una y otra vez posicionamientos
subalternos, aun en los movimientos sociales “alternativos”, etc. Áreas que trabajen en
red con modalidades organizativas lo más dúctiles y horizontales posibles, guiadas por
–otra vez Derrida– políticas de la amistad (Derrida, 1998) Áreas que puedan construir
sus propios criterios epistemológicos, imprescindibles para hacer posibles los atravesa-
mientos disciplinarios necesarios, articulados pero siempre con el mayor rigor epistémico.
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“Quem se importa com experimentos?”
Ontologias variáveis, inquietações queer
Dolores Galindo1
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“Quem se importa com experimentos?” Ontologias variáveis, inquietações queer
Hacking, 2009a; 2009b), o mesmo se observa nas relações entre arte e pensamento
(Badiou, 2002).
Na Psicologia Social contemporânea, o experimento empregado para redução
de escala da complexidade da confusa vida cotidiana e principal balizador de critérios
de verdade e fiabilidade tem sido objeto de intensos debates e este uso se tornou,
acertadamente, controverso (Gergen, 2007). Os experimentos se encontram ainda,
inevitavelmente, ligados à discussão sobre o aparato Psi como tecnologia de governo
que participa da produção “de verdades que encarnam aquilo que deve ser governado,
que o tornam pensável, calculável e praticável (Rose, 1988).”.
Evocar o cotidiano tecnocientífico e o emprego dos experimentos em psicologia é
importante para realçar a inflexão provocada por Foucault/Deleuze. Nestes autores, a
mudança de escala e os deslocamentos que o laboratório pressupõe (Latour, 1994) são
revertidos, pois os experimentos filosóficos de multiplicidades se dão na vida, movimentando
sensações e devires. Talvez por isso Haraway (2004), leitora e crítica de Foucault, fale de
estilos de vida experimental e não de estilos de pensamento experimental, o que a vincularia
ao trabalho de Fleck. Com o efeito Foucault/Deleuze sobre o termo experimento não
há redução de escalas, nem utilização de critérios de verificação característicos do labo-
ratório – são experimentos sem verdade que têm como matéria a vida (Agamben, 2008).
Depois de falarmos sobre o nosso primeiro termo - experimento -, passemos à
discussão do termo ontologia. Classicamente, ontologia diz respeito ao estudo do ser, às
condições de existência de um determinado ente; às condições de fazer-se real (Abramo,
1998). Todavia, este termo passou por uma grande reviravolta depois da leitura foucaul-
tiana que o ancora na problematização do presente. Na acepção foucauldiana, ontologias
referem-se aos modos de viver que adquirem condições de existência; diz respeito àquilo
que fazemos de nós mesmos.
O uso do termo ontologia adjetivada como histórica ou ontologia do presente trata do
trabalho sobre nós mesmos como seres livres (Foucault, 1984). De acordo com Cardoso
(1995), apesar desta dimensão se localizar na obra como um todo do autor, adquire
maior visibilidade nos seus últimos trabalhos, onde ele “explicitamente se inscreve no
que considera a tradição crítica herdeira de Kant, a de uma ontologia da atualidade”
(Cardoso, 1995; p. 55).
Vale matizar que o agora/presente foucauldiano é diferente do hoje que requer ser
problematizado à luz do primeiro. Conforme elucida Cardoso (1995), a problematização
“desatualiza o presente, desatualiza o hoje, no movimento de uma interpelação. Nesse
sentido o presente não é dado, nem enquadrado numa linearidade entre o passado e
o futuro” (Cardoso, 1995; p. 52). Seguindo esta pista, podemos localizar as figurações
como um recurso de desatualização do presente que interpela sobre o modo como nos
constituímos, modo este cada vez mais transgendrado. As criaturas fabulosas são formas
de interpelar o que chamamos de “nós mesmos” (Haraway, 2011). Quando dizemos
“nós mesmos”, o que/quem incluímos? O que/quem excluímos? A que/quem delegamos
a posição de não/humanos ou mesmo de in/humanos?
Tendo a ruptura foucauldiana como ponto de inflexão para pensar sobre ontologias,
Mol (2007) destaca que esta tem uma caracterização política, pois supõe um processo
ativo e contingente por meio do qual alguns seres (actantes, categorias etc.) adquirem
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existência e outros não, devendo ser abordada sempre no plural como ontologias. Na
mesma perspectiva, Hacking (2002), que vê a si mesmo como um nominalista, sublinha
que ontologias quando adjetivadas como históricas dizem dos modos como vivemos,
valendo a pena insistir no uso deste termo.
A definição do que/quem é ou não considerado um ser com o qual nos relacionamos
é variável (Latour, 1994). Na esteira das reflexões de Mol (2008), usamos ontologias
no plural para destacar a sua vinculação com a proposição de multiplicidades. Para ela,
“a palavra tem agora que vir no plural, porque se trata de um passo fundamental; se a
realidade é feita, se é localizada histórica, cultural e materialmente, também é múltipla.
As realidades tornaram-se múltiplas”.
Experimentar mundos fictícios e ontologias, esta é uma contribuição da arte que
merece ser ressaltada. Donna Haraway (2002; 2004) argumenta ferozmente pela defesa
desta potência da arte na criação de mundos e pela responsabilidade inerente em fazê-
-los. Esta autora escolhe para si as zonas fictícias e potentes da fabulação, trabalhando,
sobretudo, com os domínios da literatura, cinema (ambos relativos à ficção científica)
e visualidades (artes plásticas).
Um exemplo da consideração da arte como experimento ontológico pode ser encon-
trado nos comentários de Haraway (2007) sobre o trabalho da artista plástica Piccinini.
Para ela, as esculturas e telas da artista não são apenas ilustrações de argumentos, são
maneiras de experimentar ontologias que dizem de relacionalidades com os seres trans-
genéricos do nosso século. Nas obras de Piccinini, somos interpelados por relações de
afeto: crianças e criaturas monstruosas, como em The Long Awaited, descansam uma
sobre a outra (figura 1):
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“Quem se importa com experimentos?” Ontologias variáveis, inquietações queer
prova, é uma boa forma de romper o que podemos nomear como humanormatividade,
isto é, a primazia do gênero humano como baliza para qualquer imaginação ontológica.
Optamos pela expressão “não/humanos” ao invés da nomeação “não-humanos” para
enfatizar o caráter contingente dos actantes singulares, sem que para isso sejam definidas
fronteiras fixas entre ambos (Haraway, 1999; Giffney & Hird, 2008). O uso do sinal
de barra “/” (não/humanos) traça uma continuidade entre os termos não e humana, ao
invés de uma separação que poderia advir do emprego do sinal “-“ (não - humanos) ou
da simples sequência dos termos não e humano (“não humanos”).
Desde a década de 1960 a arte contemporânea é pródiga de experimentos que
colocam o corpo e o self unificados em questionamento, uma arte contra os corpos,
contra os selves referidos a pessoalidades (Galindo, 2009). Nem todo corpo deriva
em pessoa como já o advertiram Deleuze e Guattari (1997) com as noções de devires
animais. Na esteira das experimentações com o corpo da arte contemporânea, ao invés
de “ter um corpo” ou “ser um corpo”, experimentamos produzir corporalidades na
relacionalidades com actantes que foram, ao longo do tempo, individuados em relação
aos humanos: papéis e grãos.
Ao contrário de movimentos que estão no “próprio” corpo, preferimos falar em
múltiplas corporalidades que são produzidas, dissolvendo a unidade “corpo próprio” em
multiplicidades. As multiplicidades corporais são paragens no plano da imanência que
tem no plano das formas um dos seus platôs, mas não o único (Escossia; Tedesco, 2010).
Linha de fuga do pensamento interpretativo “que torna visíveis as forças enceradas nas
formas, que apresenta as forças que se encontram em ação nos corpos e são as causas
mais profundas de suas deformações” (Machado, 2009, p. 238).
No exercício fabulativo que nos interessa, ao invés de “ter um corpo” ou “ser um
corpo”, o pesquisador ou pesquisadora produz (e é produzido por) multiplicidades que
não se esgotam numa pessoalidade que as precede. É um exercício fabulativo, pois na
vida cotidiana temos a sensação de unidade corporal vinculada a um self também visto
como unificado (Gergen, 1992), ainda que este seja produzido por constantes arranjos
(Mol, 2002), por meio dos quais adquire potência de afetação àquilo de que é feito o
mundo (Latour, 1999).
A quais multiplicidades aludimos? Deleuze (1999) nos diz de “uma multiplicidade
não numérica na qual a cada estágio da divisão, pode-se falar de ‘indivisíveis’” (Deleuze,
2004, p. 31). Ou seja, as multiplicidades corporais são outras sem necessariamente
serem várias. É a produção da diferença, ou melhor, dos acontecimentos, e não da
quantidade do que está em foco. Nesta acepção, as sensações possuem componentes
materiais e virtuais de modo que se inscrevem em um plano que não se reduz a estas,
pois as multiplicidades se fazem nos devires que se dão entre elas (Cardoso JR, 2010).
Na perspectiva das multiplicidades não preexiste um corpo sobre o qual cons-
truímos diferentes movimentos ontológicos. O próprio corpo adquire existência nas
performances que o articulam, sendo apenas uma delas, pois, em vários momentos, os
arranjos não necessariamente resultam em qualquer unidade, nem advêm do humano
como figura-origem ou a ele se dirigem enquanto figura-destino. Como sintetiza Car-
doso JR (2010, p. 53):
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
A escolha da soja não foi aleatória: ela é pregnante em Mato Grosso onde se deu o
processo de criação, movimentando o agronegócio, mobilizando memórias familiares,
provocando o tráfego de imensas carretas que cortam as estradas durante as safras. Nos
campos, a soja transgênica demarca o solo com a exibição dos tipos de sementes plantadas,
uma forma de controle do produto comprado pelos agricultores. Dessa forma, dançar
com a soja é fazê-lo com as práticas nela incorporadas. É um experimento ontológico
radicalmente localizado.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
as forças que se encontram em ação nos corpos e são as causas mais profundas de suas
deformações” (Machado, 2009, p. 238).
Não seremos mais humanos porque apenas organismos, naturezas; nem menos
humanos porque radicalmente artificiais. Sem substituir a humanormatividade por outro
ideal, igualmente normativo, correspondente ao pós-humano (Prins e Meijer, 2002) ou
ao pós-gênero (Haraway; Gane, 2007), restam-nos experimentos ontológicos munda-
nos, localizados, parciais. Retornando à pergunta que dá título ao ensaio, afirmemos
que experimentos importam à ontologia do presente orientada pelas inquietações queer.
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Psicologia e Políticas Queer1
1 Este texto esta sendo publicado concomitantemente em lingua espanhola com o título La Psicologia, lo queer
y la vida em Fernández, Ana Maria e Peres, Wiliam Siqueira (Orgs) - La diferencia desquiciada: géneros y
diversidades sexuais, Buenos Aires, Biblos Editorial, 2013.
2 Professor Assistente Doutor junto ao Departamento de Psicologia Clínica e Programa de Pós-Graduação da
UNESP, Câmpus de Assis, SP.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
A esse sistema regulatório e normatizador Judith Butler (2003) chamou sistema sexo/
gênero/desejo/práticas sexuais, instituídos, mantidos e relacionados a partir de relações de
coerência e continuidade, dando inteligibilidade e reconhecimento para que uma pessoa
ao nascer com sexo de macho, tenha necessariamente gênero masculino, seu desejo seja
heterossexual e sua prática sexual ativa, enquanto que, se nascer sexo fêmea, seu gênero
necessariamente será feminino, seu desejo heterossexual e sua prática sexual passiva.
Esse sistema se orienta basicamente pelas premissas regulatórias do biopoder em con-
sonância com dispositivos da heteronormatividade e do falocentrismo, determinando a
heterossexualidade e padrões rígidos de identidades sexuais e de gênero como obrigatória.
Esses referentes estão presentes nos processos de subjetivação normatizadores, de
modo a produzir indivíduos dóceis, contidos e disciplinados, reprodutores dos modelos e
ordens previamente dadas, fixando-se em identidades cristalizadas, conceituações binárias
e crenças universais. Trata-se da emergência de indivíduos viciados em identidades e
dependentes dos modos de normatização.
Na via paralela encontramos outros modos de subjetivação que se efetuam através do
direito fundamental à singularidade, do livre arbítrio necessário para poder fazer de sua
vida uma obra de arte (DELEUZE; PARNET, 1998), uma autopoiese (MATURANA;
VARELA, 2001), uma estilística da existência (FOUCAULT, 2004).
Diante dessa pequena cartografia do trans-contemporaneo queremos problematizar
a respeito das conexões possíveis entre Psicologia e a insurgência Queer, da efetivação
prática e política que toma como disparador os processos emancipatórios psicossociais em
oposição às praticas de manutenção aos pensamentos binários, universais e a – históricos,
que se expressam através dos excessos diagnósticos, classificatórios e reducionistas. Trata-se
de posicionamentos de práticas psis que ainda estão aprisionadas no século XIX, usando
e reificando valores e metodologias que foram construídas naquele tempo sócio-histórico,
quando da emergência da noção de individuo – aquele que não se divide, que está tota-
lizado – e da atribuição de significação social e de valor moral aos corpos e seus prazeres.
Se passarmos uma olhadela sobre as teorias e metodologias utilizadas pelas práticas
em Psicologia na atualidade do século XXI, podemos como ponto de evidencia, perceber
que a maioria dessas teorias se encontra comprometidas com a manutenção, reificação
e defesa do sistema sexo/gênero/desejo/práticas sexuais, e diante desse compromisso,
observar, classificar, esquadrinhar, enquadrar, diagnosticar, trancafiar, tratar, curar, e até
produzir morte civil das pessoas que de alguma maneira tornaram-se dissidentes das
ordens e modelos impostos como únicos, corretos e normais.
Em concomitância com as categorias de sexo, gênero, desejo e práticas sexuais nos
deparamos com outros marcadores psicossociais, tais como, classe social, raça/cor, etnias,
orientação sexual, estética corporal, geração, habitação de periferia, que são mantidos em fre-
quentes interações, denunciando a presença de machismos, racismos, misoginias, lesbofobias,
transfobias e homofobias, em muitas das práticas e atuações dos operadores da Psicologia.
As escutas e observações realizadas por esses operadores - policiais do psiquismo,
que militam em defesa da crença de um único corpo, um único sexo, um único gênero,
um único desejo, um único psiquismo, uma raça e etnia tomada como superiores às
outras contribui para a emergência de uma Psicologia do terror e do aniquilamento de
todas aquelas pessoas que não se adéquam aos manuais, aos modelos metodológicos
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Psicologia e Políticas Queer
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com o tratamento estatal. De acordo com Javier Sáez (2005, p. 68), (tradução nossa)
há duas razões principais que apontam para a importância do ACT UP:
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Psicologia e Políticas Queer
Em paralelo ao ativismo Queer Susana López Penedo (2008) aponta como sendo
em 1990 o ano que pela primeira vez a palavra Queer foi usada em contexto acadêmico,
quando da publicação da obra Epistemología del Armario de Eve Kosofsky Sedgwick
(1998). De modo complementar Judith Butler (2003) publicava seu famoso Gender
Trouble (Problemas de Gênero) que viria a se tornar o livro referencia para acadêmicos
interessados pelos Estudos Queer no mundo todo. Seguindo as orientações históricas de
Penedo (2008), em 1981, Teresa de Lauretis faz uso do termo Queer na introdução de
numero especial da revista Differences.
A palavra Queer, destaca David Córdoba (2005), tem sua origem na cultura inglesa
e era usada como um modo de ofensa a gays e lésbicas, porém, como modo de sua rever-
são passa a ser apropriada inicialmente pelos ativistas homossexuais para falar em nome
próprio, de modo que a única pessoa que pode se apropriar e assumir-se como Queer é
quem se situa neste lugar, subvertendo a ideia de estigma que inferiorizava e excluía as
pessoas da comunidade LGBT e resignificando suas existências de modo a expressá-las
em sua positividade e orgulho.
Em suas clarificações Penedo (2008, p. 18), (tradução nossa) aponta como campo
de estudos Queer a emergência de três diferentes pontos de problematização:
(1) mapeamento das desigualdades existentes entre diversos setores da
sociedade e que afetam categorizações advindas da classe social, raça/
cor, etnias, sexualidades, gênero, entre outros marcadores sociais da di-
ferença; (2) analises dos discursos produzidos pela cultura que não se
aproximam da emancipação psicossocial e política de gays e lésbicas;
(3) estratégias de legitimação das dissidências sexuais e de gênero, de
modo a teorizar a insurgência de desejos e subjetividade Queer.
De modo geral, a teoria Queer propõe a hibridização como a única forma de romper
com os processos homogeneizantes. Esta ideia de hibridização tem sido apropriado dos
estudos realizados por Donna Haraway, e, seguindo essa perspectiva, Penedo (2008, p.
19, tradução nossa) dirá que: “a hibridização é um processo manipulável desde o ponto
de vista Queer porque pode ser abordado desde um ponto de vista individual” ou seja,
a nomeação do Queer só pode ser feita em nome próprio.
Seguindo os passos de Penedo (2008) podemos constatar que o carro chefe de pro-
blematizações feitas pelos teóricos Queer dizem respeito aos usos e abusos da categoria
identidade, pois entendem a mesma como excludente ao situar-se como marca individual
em oposição a outros marcadores sociais da identidade, tornando-a restrita a um lugar
no mundo que por si mesmo se mostra como opositor e fascista.
Nesta direção, David Córdoba (2005) aponta para a urgência de uma critica a noção
de identidade, de modo a definir uma posição anti - essencialista que nega qualquer
tentativa de naturalização, fixidez e totalização.
Ao lado da critica a identidade somamos problematizações que colocam em
suspeita a própria noção de interioridade, apropriando-se do rechaço feito por Judith
Butler (2003) quando de seus estudos a respeito da identidade de gênero, ao questionar
o sistema sexo/gênero/desejo em suas determinações de complementaridade que se
orientam somente pelo viés do essencialismo, o que por sua vez colocaria em dúvida a
heterossexualidade até então tratada como universal e obrigatória.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
Em suas analises Butler (2003) propõe uma mudança na direção causal e cartesiana
estabelecida entre sexo e gênero, distanciando-se da naturalização que recai sobre o
gênero, confundindo-o muitas vezes com a noção de sexo que se funda no biológico
e na fisiologia reprodutiva, o que por sua vez se mostra carregado de influência moral.
Para essa autora, a naturalização do sexo e do gênero se mostra como efeito político de
reprodução do modelo heteronormativo, demarcando o poder exercido por tecnologias
políticas-morais-cristãs de prescrição da heterossexualidade.
A identidade sexual e de gênero neste sentido não pode ser tomada como expres-
são de um interior natural e/ou essencial, pois a ideia dessa existência de uma essência
interior nada mais é que o efeito regulatório provindo da própria identidade, que por
sua vez é uma manifestação da exterioridade.
Aqui fica patente que o sujeito é construído através de processualidades complexas
que não antecede a ele mesmo, o que por sua vez nos remete ao espaço político em que
as negociações de ocupação de certos lugares no mundo se fundam, promovendo assim
a subversão de valores, sentidos e discursos normativos que se pretendem universais e
imutáveis.
De acordo com Córdoba (2005) e Penedo (2008) a identidade apresenta em seu bojo
uma dimensão de exclusão e de extermínio de toda e qualquer outra marcação identitária,
reificando o sistema sexo/gênero/desejo e suas determinações binárias e universalizantes.
Demarcando essa dimensão de exclusão que habita a identidade, Córdoba (2005)
parte da ideia de que o espaço discursivo que emerge a identidade não a determina de
antemão, logo, sua afirmação se constrói diante da possibilidade de sua re-significação
em espaço aberto e de sua interabilidade, o que por sua vez denota que suas determi-
nações de significados e de conteúdos se dão através da exclusão e repressão de outras
formas identitárias possíveis.
Nesta perspectiva toda identidade é construída através dos efeitos de uma relação
de saber-poder-prazer pelas quais determinadas possibilidades de fixação identitária
reprimem, excluem, negam, interditam outras possibilidades de posição de sujeito.
Para David Córdoba (2005) há que se ater aos processos identitários em sua pro-
dução, de modo a clarificar que para uma identidade se fixar ela precisa excluir diversas
outras formas identitárias, porém, ao fazê-lo ela encobre esse processo de modo a dar a
ideia de que a identidade seria uma essência, algo que as pessoas já nasceriam com ela,
e, portanto, não permite sua problematização, pois aquilo que se mostra natural não
pode se transformada ou conectada com outros campos de possíveis.
Seguindo os passos de Córdoba (2005, p. 53, tradução nossa) pensar sobre a
identidade somente será possível se considerá-la “[...] como espaço político em que se
possa intervir (e de fato se intervém) para modificar seus termos, para redesenhar seus
limites, para incluir posições antes excluídas, para re-significar as posições existentes.”.
Esses determinantes identitários abrem precedentes para que se possa problematizar
a respeito dos processos de subjetivação que individualiza e aprisiona o sujeito em uma
única dimensão identitária, e neste sentido, Beatriz Preciado (2008) propõe que todo
esse engendramento dos discursos normativos determinantes das identidades sexuais e
de gênero que se materializa nos corpos se daria através de tecnologias e programações
de sexo e de gênero, sendo entendida como:
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Psicologia e Políticas Queer
A perspectiva de uma leitura “psi” que escape dos binarismos e universais em dire-
ção a uma posição nômade de análise remete a um distanciamento das referencias que
tomam o ser humano como uno, como estrutura fechada, como totalidade e reconhecer
no humano a sua diversidade múltipla de expressão e de conexão com a diferença da
diferença (DELEUZE; PARNET, 1998); toma a variação e descontinuidade do humano
em sua positividade e potência, dando voz para que a insurgência de novas expressões
sexuais e de gênero sejam ouvidas e contempladas em suas reivindicações sociais, políticas
e emancipatórias de cidadania, direito de ir, vir, ser, transitar e viver.
Nestas configurações nômades novas políticas emancipatórias se mostram urgentes, e
nesta rota, a política Queer se apresenta marcada por um viés emancipatório psicossocial
supondo questionamentos das tendências integracionistas e totalizantes de todas as agre-
miações de reivindicação de direitos, assinalando os limites dessa integração e propondo
estratégias de enfrentamento aos regimes normativos, heteronormativos e falocêntricos.
Coloca sob suspeita as referências dadas de identidades acabadas, denunciando o caráter
excludente desses marcadores identitarios que se mostram absolutos e imutáveis.
Se pensarmos em um modo simples para definir essa política Queer podemos
apontar como suas características a visão de identidade aberta e flexível, assim como,
a utilização de estratégias e instrumentos de lutas advindas das estruturas culturais da
heteronormatividade. A política Queer, nos fala David Córdoba (2005) será sempre
assimilacionista e renunciante da integração a uma sociedade heterossexual, se colocando
decididamente em lugares marginais.
Nesta perspectiva, o Queer se caracteriza pela figura de um guarda chuvas que com-
porta as mais variadas formas de dissidências às normas sexuais e de gênero, mas também
a todas as formas de existências que se distanciam do normativo e do hegemônico, tais
como classe social, raça/cor, etnias, geração, entre outros, anunciando que nem todo gay/
lésbica é queer, e nem todo queer é gay/lésbica, evidenciando a presença do heteroqueer.
Em uma analise complementar, Susana López Penedo (2008, p. 134, tradução
nossa) afirma:
No mundo Queer, onde são as práticas sexuais e não quem as praticam que
importam, ser homo ou heterossexual não é tão importante como ter e
praticar atitudes Queer diante da vida [...] com certa imprecisão se poderia
assinalar como Queers aqueles heterossexuais que fazem criticas voluntárias
à heterossexualidade, já que elegem determinadas práticas sexuais (bissexu-
alidade, sado-masoquismo) ou simpatizam com outras expressões Queer.
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Psicologia e Políticas Queer
Referências
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La sexualidad, aún un desafío
para la Psicología
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
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La sexualidad, aún un desafío para la Psicología
la propuesta original, los estudios sobre la minorías sexuales han pasado de los estudios
lésbico gays, a los estudios queer –como una forma de reivindicar su uso peyorativo-, y
a los de la diversidad sexual, en la búsqueda de abrir un espacio para la reflexión sobre
las amplias manifestaciones de la sexualidad. Basta observar un poco y mirar cómo se
presentan formas de expresión en movimiento constante, cada una con sus expresiones
específicas, constituyendo un desafío constante para su análisis.
Podríamos considerar que los debates sobre la constitución de la identidad se dan a
través de la negociación entre posiciones esencialistas y construccionistas. Estas distintas
posiciones se han utilizado indistintamente también como herramienta política para
justificar o explicar distintas expresiones sexuales. No obstante, si bien podríamos decir
que fácilmente podríamos categorizar a los sujetos a partir de sus definiciones sexuales,
un sinnúmero de circunstancias ambiguas pondrían en duda los límites precisos de la
descripción de esa categoría.
Afortunadamente y no, la noción de que la sexualidad proporciona una identidad
común estable y auténtica ha sido profundamente desafiada por la llegada de la denomi-
nada teoría queer. La teoría de la sexualidad trasgresora, que parte de la denominación
de una identidad que se marcaba como negativa, por no acomodarse a la norma. Una
perspectiva que sigue haciendo referencia a lo raro, a lo exquisito (Ceballos, 2005), que
trasciende las clasificaciones y recupera también el sentido de la interseccionalidad para
colocarse transversalmente en las categorías tradicionales, tergiversando el sentido común
dominante y la idea misma de normalidad. El cambio de paradigma de las señales del
término queer, son un cambio a un modelo en las que identidades son más autocon-
cientemente historizadas. Las identidades desde lo queer, son vistas como productos
contingentes de genealogías particulares, más que del tipo duradero o esencialmente
naturales (Phelan 1989, 1994; Blasius 2001).
A poco más de veinte años de creación de la “teoría queer” (1990), como un proyecto
crítico dirigido a resistir la homogeneización cultural y sexual de los “estudios lésbicos
y gay” en el ámbito académico; De Lauretis pretendió también destacar las distintas
vivencias que los hombres gay y las lesbianas tienen, derivando en historias diferentes.
Diferentes maneras de relacionarse entre sí, y diferentes prácticas sexuales; donde las
lesbianas no son, los principales objetivos de las estrategias de comercialización de un
“ estilo de vida “ gay. Incluso, le interesó profundizar sobre la fuerte, aunque a veces
conflictiva, relación que las lesbianas tienen con el movimiento feminista. En este sen-
tido, consideró que las cuestiones de las diferencias raciales y étnicas, planteadas por
los colectivos de lesbianas negras, chicanas y latinas en su crítica del feminismo blanco,
en realidad moldearían el feminismo de la década de los ochenta, definiendo así una
nueva ruta para el feminismo contemporáneo. El proyecto de “teoría queer” (De Lauretis,
2010) buscó realmente iniciar un diálogo crítico entre las lesbianas y los hombres gay
sobre la sexualidad y sus respectivas historias sexuales; para juntos romper los silencios
que se habían construido en los estudios lésbicos y gays en torno a la sexualidad y su
interrelación con el sexo y la raza, y de alguna manera retomar lo planteado por Gloria
Anzaldúa (1987), y resignificar el sentido de lo racial y lo étnico.
Mirando la evolución actual de la teoría queer, pareciera haberse torcido. Surgieron
nuevas prioridades y la importancia de la prevención del VIH en todos los sectores de la
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La sexualidad, aún un desafío para la Psicología
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La sexualidad, aún un desafío para la Psicología
Estos nuevos aportes exigirían tal vez de recuperar el sentido original de la propuesta
de la crítica queer, dicha crítica y el análisis de las prácticas posibilitan la historización
de las categorías que definen los sujetos y evidencian su maleabilidad y creatividad po-
lítica. Lo queer funcionaría entonces como una forma de ubicarse en los debates sobre
sexualidades y género y observar sus márgenes, normas y hegemonías. Especialmente
en nuestra región colonizada, al impulsar la intersección con lo racial, lo étnico y la
clase. Lo queer aludiría así a las fronteras geopolíticas, raciales y sexuales, materiales y
simbólicas que conforman la región.
Esta propuesta simboliza también proyectos de resistencia geopolítica contra la im-
posición unilateral de estudios del Norte hacia el Sur que invalidan trabajos de campo,
propuestas y creación de conocimiento surgido, debatido y en circulación en el Sur. La
producción queer en la región, como lo señalan Viteri, Serrano y Vidal-Ortiz (2011) está
más en función de desplazamientos contestatarios frente al Estado, a las instituciones
religiosas o a las nociones de ciudadanía por parte de sujetos abyectos.
Enmarcar una discusión alrededor del sexo, el género y la sexualidad entonces,
implica al mismo tiempo un tipo de traducción cultural. Es decir, donde el género y
la sexualidad están en tránsito y en constante diálogo con los contextos a partir de los
cuales se producen y re-producen. Sin un duda un gran desafío, pero un aporte necesario
para nuestra región.
Referencias
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Phelan, Shane. 1994. Getting Specific: Postmodern Lesbian Politics. Minneapolis: University
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Stoller, Robert, (1975) Perversion: The Erotic Form of Hatred, Pantheon, New York.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
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Viteri María Amelia, Serrano José Fernando, Vidal-Ortiz Salvador (2011) ¿Cómo se piensa lo
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Weeks, Jeffrey (1998) Sexualidad. Paidós, Programa Universitario de Estudios de Género,
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Tópicos e desafios para uma
psicanálise queer
Patricia Porchat
Posso afirmar que no meio psicanalítico, pouca gente sabe o que significa o
termo “queer”. E no entanto, nos últimos vinte anos, “queer” se fez presente no
movimento gay e lésbico, na literatura, nas ciências humanas e em movimentos
sociais. Assim como “gênero”, “queer” fez sua entrada também no campo da
psicologia e da psicanálise. Talvez por desconhecimento do termo por parte de
muitos psicanalistas, ou talvez por uma recusa desses mesmos psicanalistas em
querer ver o avanço de certos segmentos da sociedade, não se garantiu ainda
um número suficiente de reflexões rigorosas e de debates teóricos sobre a real
possibilidade desse encontro e sobre suas possíveis consequências. Poucos psica-
nalistas se propuseram a pensar sobre a teoria queer (embora haja uma tendência
a aumentar esse número) e, por outro lado, os teóricos queer que discutiram a
psicanálise o fizeram, inicialmente, de modo fragmentado, analisando apenas
alguns conceitos psicanalíticos e revelaram não ter uma visão geral e mais
aprofundada da obra dos autores em questão. Correram assim o risco de não
serem levados tão a sério pelos estudiosos e praticantes da psicanálise, embora
seguramente tenham contribuído para colocar em xeque alguns dos pressupostos
psicanalíticos. Recentemente essa perspectiva vem se alterando, o interesse dos
teóricos queer pela psicanálise vem aumentando e o debate se aprimora. Não há
como negar que o trabalho de fazer dialogar a psicanálise com a teoria queer já foi
iniciado. Da parte dos psicanalistas podemos citar Sáez (2004), Allouch (1999),
Castel (2003), Barbero (2005), Costa (1995), Porchat (2007), Arán (2006) e,
pela teoria queer, citarei apenas os nomes de Butler (1990, 1993, 1994, 2002,
2004), Sedgwick (1993) e De Lauretis (2008), embora outros autores possam
ser identificados.
Em seu artigo Queer and Now, Sedgwick (1993) discorre sobre os usos
do termo queer e mostra seu vasto alcance. Se na acepção mais conhecida
encontramos referências a um campo indefinido e sem fronteiras de gêneros e
sexualidades, aí podendo ser incluídas práticas corporais não convencionais e
não-normativas, Sedgwick aponta igualmente para o uso de “queer” para raça,
etnia, nacionalidades pós-colonialistas e para vítimas de variadas formas de ex-
clusão e de violência. O termo queer é usado para investigar, analisar, questionar
e intervir sobre as normas e as margens que elas produzem.
Dois outros usos do termo queer chamam a atenção pela sua aproximação
com a psicanálise. Queer pode se referir a lacunas, lapsos, excessos e dissonân-
cias, funcionando como uma matriz aberta a possibilidades na constituição de
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
1 David-Ménard, M., A histeria entre Freud e Lacan. São Paulo: Escuta, 2000.
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Tópicos e desafios para uma psicanálise queer
2 Butler, J., Undoing gender. New York qnd London: Routledge, 2004.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
3 Outra autora que vem recorrendo à noção de pulsão para fazer dialogar a teoria queer e a psicanálise é Teresa de Lauretis.
Para ela, as teorias de Foucault e de Freud são necessárias para articular o fenômeno psicossocial da sexualidade em sua
complexidade. Segundo a autora, somente juntas essas teorias podem esboçar uma teoria materiaista do sujeito sexual.
(Lauretis, 2010).
4 Por exemplo, no momento em que Freud abandona a teoria da sedução em 1897, por não ser possível distinguir entre
verdade ou fantasia nas cenas sexuais “lembradas” pelas histéricas.
5 Cf. Freud, S., Capítulo VII de A nterpretação dos sonhos, ESB, v. V.
6 Cf. Freud, S., “O Homem dos Lobos” ou História de uma neurose infantil, ESB, v. XVII.
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Tópicos e desafios para uma psicanálise queer
realidade, que existe um teste de realidade e que este permite discriminar entre os es-
tímulos que vêm do mundo externo e os que se originam no mundo interno.7 Como
podemos então avaliar a prevalência da fantasia ou da realidade na questão da respon-
sabilidade e do compromisso dos indivíduos com a transformação social?
7 Porchat, P., Freud e o teste de realidade. São Paulo: Casa do Psicólogo/Fapesp, 2005.
8 1993 é a data da tradução do texto de Rubin para o português pela ONG SOS Corpo, de Recife.
9 Butler, 2003b.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
de Lévi-Strauss, por este definir uma organização social da atividade humana pautada
pelo gênero e pela heterossexualidade compulsória. Os sistemas de parentesco criariam
socialmente dois gêneros a partir do sexo anatômico, uma divisão social do trabalho
que enlaça homens e mulheres numa relação de dependência recíproca e a regulação
social da sexualidade, impulsionando para relações heterossexuais que garantam a
reprodução biológica e social, além de reprimir arranjos diferentes destes. Não cabe o
componente homossexual da sexualidade humana na teoria de Lévi-Strauss. A divisão
de trabalho criaria homens e mulheres heterossexuais, devendo ter seu desejo sexual
dirigido ao outro sexo.
Segundo Rubin ainda, a noção de parentesco de Lévi-Strauss deveria ser empre-
gada apenas numa análise histórica. A organização de sexo e de gênero, promovida
pelos sistemas de parentesco, tinha como função organizar a sociedade. Mas, uma vez
organizada a sociedade, essa forma de parentesco foi com o passar do tempo esvaziada
de suas funções políticas, econômicas, educacionais e organizacionais. O parentesco
ficou reduzido apenas ao núcleo sexo/gênero, aprisionando “gênero” numa dicotomia.
Como o gênero operaria se fossem levadas em conta as relações entre parentesco e
homossexualidade? Rubin e Butler10 se dedicam a essa discussão. Butler comenta a
ideia de Rubin, em Tráfico, de que as identidades de gênero derivam das relações de
parentesco. A forma tradicional de se conceber o parentesco está intimamente vinculada
à heterossexualidade e, na medida em que o Édipo está igualmente vinculado aos dois
anteriores, a homossexualidade parece “cair fora” da cultura.(Butler, 2003 b).
Parece-me que tanto Rubin quanto Butler não estão se referindo a práticas ho-
mossexuais ou a atividades sexuais de modo geral. Tampouco se referem à existência
de identidades homossexuais. Empiricamente se constata a existência de identidades e
práticas sexuais diferentes das práticas heterossexuais, assim como se constatam novos
arranjos de parentesco. Certamente Lévi-Strauss encontrou práticas sexuais diferentes
das práticas heterossexuais. Quando, então, Butler e Rubin dizem que as identidades
de gênero derivam das relações de parentesco, referem-se às identidades de gênero que
podem ser consideradas legítimas ou “pertencentes à cultura”. Da mesma forma, quando
discutem a superação do parentesco tal como está concebido, referem-se à possibilidade
de legitimar outras formas de parentesco e, inclusive, de poder nomeá-las como “pa-
rentesco”. 11 Não se trata de conceder licença para diferentes formas de sexualidade,
mas, sim, de conceder licença para diferentes formas de parentesco, ou seja, de novos
laços sociais. Trata-se de legitimar relações e indivíduos inseridos nessas relações que,
por efeito de um sistema de alianças concebido a partir de uma Lei inalterável, não são
considerados “humanos”. Se a Lei, como diz Lévi-Strauss, cria a cultura, essa concepção
de cultura não incluiria alguns indivíduos como “humanos”.
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Tópicos e desafios para uma psicanálise queer
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Tópicos e desafios para uma psicanálise queer
A ética psicanalítica, trabalhada por Lacan, coloca em causa o agir de acordo com
o desejo que nos habita. O desejo, por sua vez, não é da ordem do coletivo, não é da
ordem do universal, não pode ser abarcado por ideais identitários ou pela subversão
destes a partir, igualmente, de reivindicações identitárias sejam elas quais forem. A ética
da psicanálise não visa levar o paciente à busca da realização de si, à busca pelo prazer
e à busca pela eliminação do sofrimento. Ao menos não no sentido do que o senso
comum considera como felicidade. A psicanálise o leva a se separar das demandas do
discurso dominante e a descobrir aquilo que vale exclusivamente para si, que não pode
ser coletivo, que não tem valor para mais niguém, que causa seu desejo e que o move.
A singularidade na psicanálise não tem a ver com a identidade, ainda que esta
identidade seja uma não-identidadade, um arranjo pessoal, um dizer “queer” na primeira
pessoa. Para se alcançar uma singularidade na psicanálise, não basta ter condições para
persistir em seu próprio ser, contando com o reconhecimento social. É preciso separar
desejo e gozo, este último entendido como experiências de satisfação e de terror, quase
indistintas, atos que levam o sujeito a se confrontar com uma espécie de dissolução de
si. O gozo igualmente proporciona movimento, mas na direção de uma morte simbólica
daquilo que estrutura o sujeito. Mas de que adianta operar essa separação se o sujeito não
tem condições adequadas para persistir em seu desejo de viver? De que adianta salvá-lo de
si mesmo se ele não pode aceder à categoria de humano, tal como as normas a definem?
Conclusão
Como disse no início desse artigo, não pretendia esgotar o debate entre a teoria
queer e a psicanálise. Mas acredito ter apontado alguns temas que mostram a complexi-
dade existente para se fazer uma ponte entre ambas as teorias. A psicanálise segue sendo
uma referência para autores que desejam compreender as relações entre corpo e psique,
entre indivíduo e sociedade, entre intenção e ação, e entre subordinação e dominação.
A teoria queer, por sua vez, não abre mão da análise e do questionamento daquilo que
as normas, tidas como quase naturais, produzem, ou seja, as margens. A psicanálise só
tem a se beneficiar com essa injeção de realidade.
Referências Bibliográficas
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Este documento es proporcionado al estudiante con fines educativos, para la crítica y la investigación respetando la reglamentación en materia de derechos de autor.
Este documento no tiene costo alguno, por lo que queda prohibida su reproducción total o parcial.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
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Biopolítica, Subjetivação e Saúde 1
Aqui está uma discussão possível (dentre tantas) sobre “biopolítica, subje-
tivação e saúde” e algumas de suas interfaces. A reflexão sobre estas temáticas e
as relações entre elas, parece calhar bem quando desencadeada por determinadas
palavras, carregadas de suas respectivas histórias. As palavras - “corpo, sexualidade,
reprodução, discurso biomédico, discurso jurídico, moralidades religiosas, escolhas
pessoais, disciplina” - parecem assumir a função “problematizadora” e também
por serem carregadas de muitos e diversos sentidos, foram escolhidas para
constituírem o processo didático a ser compartilhado na Oficina. A utilização
de imagens e discutir a partir das interpretações possíveis acerca de sua estética
e de seu conteúdo constituem-se instrumentos didáticos importantes3 para o
campo das Ciências Sociais, da Psicologia e da Saúde Coletiva.
A problematização dos temas e das palavras disparadoras da reflexão é
parte de discussão e está implicada no processo coletivo de construção do que
se compreende por Oficina. Pretendemos, ao escolher este caminho, investir na
valorização dos repertórios conceituais para a qualificação da prática cotidiana
dos serviços de saúde. Interessa, sobretudo, qualificar o campo prático e político
da saúde coletiva e dos sujeitos políticos que o constituem. Neste sentindo, “bio-
política”, “subjetivação” e “saúde” adquirem uma característica instrumental para
transformação do campo das práticas, do campo da produção do conhecimento
e da formulação de políticas públicas de saúde.
Esta reflexão exige que situemos nosso posicionamento no campo. A intenção
é agregar esta iniciativa e o acúmulo de reflexão que a compõe à outras iniciativas
que investem nas pessoas como sujeitos detentores de direitos. Portanto, esta
reflexão parte da compreensão de que os sujeitos estão inseridos em diversos
contextos que se orientam por distintos discursos, com seus específicos poderes
e códigos morais. Valorizar o sujeito de direitos é distanciar-se da perspectiva que
1 O conteúdo deste texto foi trabalhado e finalizado em Oficina do III Seminário Internacional Pensando
Gênero – a psicologia para além do espelho, realizada no dia 18/out/2011, UNESP/Assis/São Paulo.
2 Professora Adjunta da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), campus Baixada Santista, Departa-
mento “políticas públicas e saúde coletiva”. Co-cordenadora do Núcleo de Estudos Heleieth Saffioti: relações
de gênero, movimentos sociais e sexualidades da UNIFESP Baixada Santista. Pesquisadora associada do Nú-
cleo de Estudos para Prevenção da Aids (NEPAIDS)/USP.
3 No caso dos temas aqui discutidos – biopolítica, subjetivação e saúde – o potencial didático da imagem ainda é
maior. Os vídeos exibidos e debatidos durante a Oficina foram: a) “Uma História Severina”, curta-metragem de
2005, com direção de Débora Diniz e Eliane Brum. Foi escolhido para pensar a política dos corpos, a reprodução e
a vida e os discursos que incidem sobre; b) Dois Episódios de uma Série produzida pela Rede Globo “O Sagrado”,
sendo 49o. episódio “Liberdade Sexual e Catolicismo” (http://www.youtube.com/watch?v=O2SayQPCHpM) e o
51o episódio “Liberdade Sexual e Candomblé” (http://www.youtube.com/watch?v=dyuu0KINhb0). Foram utili-
zados para mostrar a moralidade religiosa enquanto disciplina e o sujeito religioso; c) Dois vídeos produzidos por
instituições francesas com objetivo de veicular mensagem sobre prevenção da infecção pelo HIV: SIDACTION
(http://www.youtube.com/watch?v=d8MBvO_Xk68) e Associação francesa AIDES (http://www.youtube.com/
watch?v=RAHywmhxBw4&feature=related). Foram utilizados para pensar nos discursos da saúde enquanto dis-
positivos disciplinares sobre os corpos e como campo político.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
assume que o sujeito é aquele que se assujeita aos discursos disciplinares dos contextos
onde se inserem.
Entretanto, lembramos que o campo de ação da biopolítica inclui a delimitação e
controle exercido sobre algumas dimensões íntimas da vida das pessoas e está presente
em parte importante do modo de atuação em saúde. A biopolítica é, portanto, elemento
fundamental na constituição da subjetivação, processo onde também se destaca o papel
da sexualidade assim como os saberes que se constroem e torno e a partir dela.
Para esta reflexão, é necessário resgatar alguns aspectos do conceito de biopolítica
circunscrito pelas teorias foulcaultianas, assim como aspectos sobre a invenção histó-
rica da sexualidade. Para Foucault, a noção de sexualidade foi uma das noções centrais
para a biopolítica enquanto estratégia que procurou efetivar a qualificação biológica
das populações. (FOUCAULT, 2007a). Conforme Ortega (2007) coloca, a biopolítica
vinculou-se historicamente ao fortalecimento dos Estados nacionais, à afirmação da
burguesia como classe dominante e à formação de um dispositivo médico-jurídico que
vislumbrou a disciplinarização e medicalização da sociedade.
É preciso também tratar de compreender o significado de “moral” e que este signifi-
cado constitui-se em etapa importante dos discursos que objetivam disciplinar. Foucault
define moral como um conjunto de valores e regras proposto aos indivíduos e grupos,
por intermédio de aparelhos prescritivos diversos. A família, as instituições educativas,
a igreja, as instituições de saúde e muitos outros estão a frente de regras e valores que
podem estar explicitamente formuladas ou podem estar sendo transmitidas de maneira
difusa. Código moral seria, portanto, um conjunto prescritivo, mas o comportamento
real dos indivíduos e a maneira como se submetem ou não aos princípios de conduta
é que seria a moral propriamente. (FOUCAULT, 2007b)
A moralidade sobre a sexualidade apresenta-se por meio de distintos discursos e
condutas. Faz-se presente em várias dimensões da vida social e atua sobre os contextos
da vida dos sujeitos. Condutas morais religiosas acerca da sexualidade constituem farta-
mente as doutrinas cristãs e concorrem com outros discursos que, enquanto dispositivos,
também normalizam os corpos sexuais e as relações estabelecidas entre as pessoas. A
moral, portanto, está presente também no discurso da saúde acerca da sexualidade,
especialmente quando se pensa nas condutas higienistas sobre prática sexual.
Tal como colocado pro Foucault (2007a), trata-se de entender a sexualidade como
discurso e que em torno dela ocorreu, a partir do século XIX, uma “verdadeira explosão dis-
cursiva”. A palavra sexualidade remete a um dispositivo histórico, a uma “rede discursiva”4:
a estimulação dos corpos, a intensificação dos prazeres, a incitação ao discurso, a formação
dos conhecimentos, o reforço dos controles e das resistências. Estes discursos encadeiam-se
uns aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e poder.
A noção de sujeito que trazemos para esta reflexão difere daquela que o entende
como indivíduo sujeito à produção de um corpo dócil, submisso e disciplinado. Desta
forma, não estamos falando de assujeitamento, mas do sujeito protagonista e, nesta
condição, este sujeito pode apresentar-se como resistência ao dispositivo biopolítico.
4 Compreendemos aqui que a constituição de redes discursivas se dá a partir do encadeamento de saberes oriundos de
distintas posições, papéis e instituições que se relacionam a partir de um interesse comum – a sexualidade. Por vezes este
saberes encontram-se e produzem os nós e as próprias tramas (da rede).
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Biopolítica, Subjetivação e Saúde
5 Relacionaremos aqui apenas alguns autores e autoras que descrevem a forma como a sexualidade é entendida a partir do
fenômeno da aids: FACHINNI, R., Movimento homossexual e construção de identidades coletivas em tempos de AIDS,
In: UZIEL, A.P., RIOS, L.F., PARKER, R.G. (org.), Construções de Sexualidade: gênero, identidade e comportamento
em tempos de aids, Rio de Janeiro: Pallas, 2004; SIMÕES, J & FACHINNI, R., Na trilha do arco-íris: do movimento
homossexual ao LGBT. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009; PARKER, R., Diversidade Sexual, análise cultural
e a prevenção da Aids, In: PARKER, R. A construção da solidariedade – aids, sexualidade e política no Brasil, Rio de
Janeiro: Relume-Dumará / ABIA, 1994.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
Estamos considerando que nosso sistema de saúde pública – o Sistema Único de Saúde
(SUS) – tem papel de destaque no fortalecimento do sujeito, entendido na sua pluralidade
constitutiva. A construção do SUS contou e conta com a participação social e democrática
dos diversos setores da sociedade e com a participação dos usuários do sistema de saúde. O
SUS nasce como contraposição a um sistema de saúde ineficiente, caracterizado por uma
prática excludente e de acesso desigual. Ao reconhecer a força política de sua trajetória his-
tórica, ao mesmo tempo em que não se perde de vista as inúmeras deficiências que o sistema
apresenta, é preciso compreender como o SUS vêm se constituindo, enquanto sistema, na
busca pelo cumprimento de seus princípios de universalidade, equidade e integralidade.
Algumas políticas públicas de saúde desenvolvidas no âmbito do SUS, incluem
uma abordagem baseada nos direitos humanos. O sistema de saúde implicado com
os direitos humanos deve ser constituído por instâncias que garantam o direito a não
discriminação e o direito à dignidade e reconheça que sua violação é determinante para
a exclusão social (GRUNSKI e TARANTOLA, 2009).
A perspectiva aqui apresentada tenta também sustentar que o processo de constitui-
ção da subjetividade pode ocorrer a partir do sujeito protagonista e em busca de reafirmar
sua autonomia com a capacidade de agenciamento das moralidades. A subjetividade
se constituí em contextos socioculturais específicos, a partir da herança histórica e dos
vínculos sociais estabelecidos. Não se pode perder de vista que o contexto está no sujeito
assim como o sujeito está vivendo o contexto, dando origem a um movimento que se
materializa nas cenas concretas, nas intersubjetividades personificadas no cotidiano e,
portanto, na vivência da sexualidade, na vivência dos afetos, no comportamento moral,
nas decisões sobre reprodução.
Quando o que está em jogo é a vivência das sexualidades, deve-se focar o sujeito
sexual, deve-se pensar a pessoa como condutora de suas escolhas ao longo de sua traje-
tória sexual e não como objeto de instintos, impulsos ou assujeitado a discursos sobre
sexualidade. O sujeito sexual está permanentemente interpelado por diferentes discursos
sobre a sexualidade e por cada contexto intersubjetivo. Quando se é um agente com
autonomia, o sujeito pode ser sujeito de muitos discursos sobre o sexo, por vezes até
contraditórios. Ao longo da vida, o sujeito é confrontado com o pluralismo de discursos
disponíveis na sociedade.
O sujeito-sexual-cidadão é um agente da negociação consciente entre os vários
discursos disponíveis sobre sexualidade e sobre reprodução. Ao mesmo tempo, ele é
portador de direitos – à informação, à não discriminação, à saúde integral. De acordo
com Paiva (1999), sujeitos-sexuais fazem colagens de tradições culturais, de realidades
rituais e normativas, especialmente na esfera da sexualidade. Ser sujeito é lidar com a
complexidade e os múltiplos fatores que competem pela sua atenção consciente em cada
experimentação e é ser agente ativo da sua sexualidade. Nesta mesma sintonia, queremos
distanciamento de um sujeito que, prioritariamente, vive para auto-controlar-se, auto-
-vigiar-se, auto-governar-se. (ORTEGA, 2003)
Entendemos que o sujeito plural constrói sua trajetória inserido em diferentes con-
textos e que, ao mesmo tempo, só pode ser compreendido na sua totalidade complexa
quando sua singularidade for focada. Nos termos de Costa (2001), o sujeito é como
uma “pluralidade identificatória” que resulta do conjunto de vários sujeitos que se
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Biopolítica, Subjetivação e Saúde
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
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Em defesa do posicionamento
na pesquisa em Psicologia
Sandra Azerêdo1
1 Profª Drª da Universidade Federal de Minas Gerais. A autora aproveita para agredecer aos alunos e alunas da
turma de 2011 do curso de mestrado em Psicologia da UFMG, que contribuíram para o desenvolvimento
das ideias discutidas neste trabalho.
2 A ementa da disciplina era ampla: “Natureza da pesquisa quantitativa e qualitativa. Amostragem e seleção de
sujeitos. Principais estratégias e métodos de coleta de dados: survey, observação, testes psicológicos, análise de
conteúdo, uso de dados secundários, etnografia e observação participante, entrevista, grupos focais, análise con-
versacional e análise de discurso, análise de documentos. Triangulação de pesquisa qualitativa e quantitativa”.
3 Nos primeiros anos do Currículo Novo do Curso de Psicologia da UFMG há duas disciplinas obrigatórias—
“Métodos Quantitativos” e “Métodos Qualitativos”—reforçando essa divisão entre as duas abordagens.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
Metodologia Tradicional
Minayo considera a observação e a entrevista como sendo “os instrumentos princi-
pais” do trabalho de campo, a primeira se baseando no que pode ser visto (com atenção
e persistência) e no que “não é dito”, e a segunda no que é dito (2010: 63). Para ela, “na
pesquisa qualitativa a interação entre o pesquisador e os sujeitos pesquisados é essencial”
(grifos de Minayo). O “trabalho interacional” se torna um instrumento privilegiado de coleta
de informações pela “magia” que tem a fala de revelar o pensamento do grupo. Como ela
escreve, a fala tem a possibilidade:
4 Donna Haraway, “Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial”.
Trad. Mariza Corrêa. cadernos pagu (5), 1995, 7-41.
5 Marília Novais da Mata Machado, Entrevista de Pesquisa: A Interação Pesquisador / Entrevistado. Belo Horizonte: C/ Arte
Editora, 2002, e Maria Cecília de Souza Minayo (organizadora), Pesquisa Social: Teoria, método e criatividade. 29ª. Ed.,
Petrópolis: Editora Vozes, 2010.
6 Sandra Azerêdo, “Encrenca de Gênero nas Teorizações em Psicologia”. Revista Estudos Feministas, Vol. 18, No. 1/2010,
175-188 e “Deslocamentos da identidade: teorizando a violência na Delegacia de Mulheres”. IN Rial, Carmen e Toneli,
Maria Juracy (orgs.), Genealogias do Silêncio: feminismo e gênero. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 2004, Clifford
Geertz, “Uma descrição Densa: Por uma Teoria Interpretativa da Cultura” IN A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro:
Ed. Guanabara Koogan, 1989 (1973), e Max Horkheimer, “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”. Trad. Edgard Afonso
Malagodi e Ronaldo Pereira Cunha. São Paulo: Abril S/A, Vitor Civita Editor, Coleção Pensadores, 1975 (1937).
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Em defesa do posicionamento na pesquisa em Psicologia
O último aspecto da especificidade do objeto das Ciências Sociais trazido por Mi-
nayo é que ele é “essencialmente qualitativo”. Ou seja, de acordo com a autora, ele faz
parte de “um nível de realidade que não pode ou não deveria ser quantificado” (21). Trata-
-se de uma “realidade que é mais rica que qualquer discurso construído sobre ela” (25).
7 Ao longo de seu texto, Minayo usa uma série de categorias psicológicas: “a construção da identidade do pesquisador
pelo grupo vai se forjando nas várias instâncias de convivência, desde o início” (2010: 67); “A simplicidade por parte do
pesquisador é fundamental para o êxito de sua observação, pois ele é menos olhado pela base lógica de seus estudos e mais
pela sua personalidade e seu comportamento” (2010: 73); “mesmo partindo de posições sociais diferentes e assimétricas,
ambos buscamos a compreensão mútua que nos permita transcender ao senso comum. No entanto, o pesquisador nunca
deve buscar ser reconhecido como um igual. O próprio entrevistado espera dele uma diferenciação, uma delimitação do
próprio espaço, embora sem pedantismos, segredos e mistérios” (2010: 75).
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
Para Minayo, existe “o objeto real”, que “diz respeito à totalidade das relações da
existência social. Suas fronteiras e complexidade, porque dinâmicas e constantemente
reinventadas, excedem a apreensão do conhecimento científico” (2010: 33). Ou ainda,
“as ideias ou explicações que fazemos da realidade estudada são sempre mais imprecisas do
que a própria realidade”, sendo, portanto, preciso que o investigador tenha uma atitude
de humildade diante dessa realidade (2010: 37). Em suma, a pesquisa qualitativa seria
definida por essa aproximação “incompleta, imperfeita e insatisfatória”, de uma realidade
social “suntuosa” que sempre a excede (2010: 14). Minayo sugere que o que torna essa
realidade inatingível pela ciência é o fato de ela se referir a “fenômenos humanos”—sig-
nificados, motivos, aspirações, crenças, valores, e atitudes, que, segundo ela, distinguem
o ser humano das outras espécies. Minayo considera que:
Esse conjunto de fenômenos humanos é entendido aqui como parte da
realidade social, pois o ser humano se distingue não só por agir, mas por
pensar sobre o que faz e por interpretar suas ações dentro e a partir da rea-
lidade vivida e partilhada com seus semelhantes. O universo da produção
humana que pode ser resumido no mundo das relações, das representa-
ções e da intencionalidade e é objeto da pesquisa qualitativa dificilmente
pode ser traduzido em números e indicadores quantitativos (2010: 21).
Essa concepção de pesquisa trazida por Minayo apresenta uma série de aspectos bas-
tante problemáticos: em primeiro lugar, a ênfase na identidade do/a pesquisador/a, que,
além de apresentar características “positivas” de personalidade (simpatia, simplicidade,
etc.), supostamente contribuem para a objetividade da pesquisa, sendo que objetivida-
de não é nunca definida, dando a entender que seja alguma coisa dada e reconhecida
universalmente. Em segundo lugar, numa visão extremamente simplista da linguagem,
o “dito” e o “não dito” são separados sem maiores problemas, e considera-se que a fala
seja transparente, revelando magicamente as condições do grupo estudado. Outro pro-
blema é a listagem das especificidades do objeto das ciências sociais que as distinguem
das demais ciências, colocando estas últimas como se não fossem também históricas e
ideológicas. A questão da “consciência histórica” do objeto e do “substrato comum de
identidade com o investigador”—dois itens que fazem parte dessa listagem—assenta-se
em outra dicotomia, que é a que se estabelece entre sujeito e objeto, a qual vem sendo
questionada pelos estudos da ciência, área em que Haraway tem publicado importantes
trabalhos.8 Finalmente, no trabalho de Minayo aparece uma realidade totalizada feita
de “fenômenos humanos”, que ultrapassa sujeitos e objetos.
Diferentemente de Minayo, Mata Machado não estabelece separações rígidas entre
abordagens quantitativas e qualitativas, tratando-as como alternativas possíveis nas
pesquisas em ciências.
Em relação à análise, Mata Machado distingue as análises qualitativas e de conteúdo
da análise do discurso. Segundo ela, esta última “pertence à outra linhagem, tem objeto e
8 Ver seu “Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”, IN Tomas Tadeu (org.),
Antropologia do Ciborgue: as vertigens do pós-humano (Belo Horizonte: Autêntica, Mimo, 2009 (1985), 2ª. Edição, trad.
Tomaz Tadeu). Ver também Bruno Latour, A Esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos da ciência (Bauru,
SP: EDUSC, 2001, trad. Gilson César Cardoso de Sousa). No subtítulo desse livro a expressão “science studies” foi tra-
duzida como “estudos científicos”, o que é inadequado, pois os estudos da ciência problematizam justamente o processo
de definição das fronteiras que definem o que é “científico”. Trata-se de estudar as ciências e não de estudos científicos.
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Em defesa do posicionamento na pesquisa em Psicologia
Para Mata Machado, a entrevista aberta de pesquisa “está longe de ser uma simples
conversa”, é “um modo de interação particularmente frustrante para o entrevistador, a
quem é proibido agir como um interlocutor normal, exprimir seus próprios pontos de
vista, ... sair da escuta benevolente” (45). Essa interação “é mediatizada pela intersub-
jetividade” (51). Em sua análise dessa interação, Mata Machado conclui que:
9 Como veremos, ao considerar que a realidade seja “deformada” pela subjetividade do/a observador/a, Mata Machado se
aproxima da problemática da concepção de Minayo de uma realidade totalizada e inatingível.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
O posicionamento na pesquisa
Considero que o que falta nas abordagens de Minayo e Mata Machado é a explicitação
da categoria do político. Vejamos como ele aparece explicitamente no texto de Haraway:
Como muitas outras feministas, quero argumentar a favor de uma dou-
trina e de uma prática da objetividade que privilegiem a contestação, a
desconstrução, a construção apaixonada, as conexões em rede e a espe-
rança na transformação dos sistemas de conhecimento e nas maneiras
de ver. Mas não é qualquer perspectiva parcial que serve; devemos ser
hostis aos relativismos e holismos fáceis feitos de adição e subsunção
das partes. (...) Precisamos também buscar a perspectiva daqueles pon-
tos de vista que nunca podem ser conhecidos de antemão, que prome-
tam alguma coisa extraordinária, isto é, conhecimento potente para a
construção de mundos menos organizados por eixos de dominação. De
tal ponto de vista, a categoria não marcada realmente desapareceria”
(1995: 24).
10 Enrique Pichón-Rivière, O Processo Grupal (São Paulo: Martins Fontes, 1994. Trad. Marco Aurélio Velloso).
11 Michel Foucault, A Arqueologia do Saber (Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. 4ª. Edição. Trad. Luiz Felipe
Baeta Neves).
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Em defesa do posicionamento na pesquisa em Psicologia
Tal categoria não marcada se refere às “posições de Homem e Branco ... na barriga
do monstro, nos Estados Unidos, no final dos anos 80” (1995: 18). Em seu texto, Ha-
raway propõe “uma doutrina de objetividade corporificada”, que pode ser aplicada “às
ciências exatas, naturais, sociais e humanas”, ou seja, “quer estejamos falando a respeito
de genes, classes sociais, partículas elementares, gêneros, raças, ou textos” (1995: 17).
Para Haraway, a objetividade “diz respeito à corporificação” (1995: 21). Ela insiste
“metaforicamente na particularidade e corporificação de toda visão (ainda que não
necessariamente corporificação orgânica e incluindo a mediação tecnológica)” (1995:
20). Como ela se expressa,
Haraway considera que a palavra chave para a objetividade na ciência seja o posicio-
namento. Para ela, é o posicionamento crítico que produz a ciência. E o posicionamento
Para Haraway, é a divisão, e não o ser que se constitui na “imagem privilegiada das
epistemologias feministas do conhecimento científico”. A divisão se refere a “multipli-
cidades heterogêneas, simultaneamente necessárias e não passíveis de serem espremidas
em fendas isomórficas ou listas cumulativas” (1995: 26). Trata-se de uma geometria que
diz respeito ao interior dos sujeitos e entre eles.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
A corporificação feminista não se refere a uma posição fixa num corpo reificado,
mas a “nódulos em campos, inflexões em orientações e responsabilidade pela diferença
nos campos de significado material-semiótico. Corporificação é prótese significante”
(1995: 29). A teoria magistral (master theory) é substituída pelas explicações em rede,
que podem servir de base para uma “conversa” sensível ao poder, não pluralista. Para
Haraway:
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Em defesa do posicionamento na pesquisa em Psicologia
A essa visão de teoria, Horkheimer propõe o que ele chama de “atividade crítica”,
afirmando:
Que tem a própria sociedade como seu objeto. Ela não tem apenas
a intenção de remediar quaisquer inconvenientes; ao contrário, estes
lhe parecem ligados necessariamente a toda organização estrutural da
sociedade. Mesmo que esta atividade provenha da estrutura social, não
é nem a sua intenção consciente, nem a sua importância objetiva que
faz com que alguma coisa funcione melhor nessa estrutura. As catego-
rias: melhor, útil, conveniente, produtivo, valioso, tais como são aceitas
nesta ordem [social] são para ela suspeitas e não são de forma alguma
premissas extra-científicas que dispensem a sua atenção crítica. Em
regra geral o indivíduo aceita naturalmente como preestabelecidas as
determinações básicas de sua existência e se esforça para preenchê-la.
(...) ao contrário, o pensamento crítico não confia de forma alguma
nesta diretriz, tal como é posta à mão de cada um pela vida social. A
separação entre indivíduo e sociedade, em virtude da qual os indivíduos
aceitam como naturais as barreiras que são impostas à sua atividade, é
eliminada na teoria crítica, na medida em que ela considera ser o con-
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
Geertz, por sua vez, propõe a necessidade de uma antropologia baseada na inter-
pretação dos significados das ações humanas, a qual se torna possível através do uso da
descrição densa, uma prática de escrita que possibilita diferenciar uma contração da
pálpebra como sendo uma piscadela de cumplicidade ou simplesmente uma irritação
no olho, por exemplo. Talvez sua contribuição mais importante seja nos alertar contra
a necessidade de totalização e de fechamento da realidade. Como ele diz, “a análise
cultural é intrinsecamente incompleta e, o que é pior, quanto mais profunda, menos
completa” (1989: 39). Geertz se refere a uma história indiana em que um inglês per-
gunta a um indiano onde se apoiava a tartaruga sobre cujas costas se apoiava o elefante
que carregava o mundo e que recebeu a seguinte resposta: “Em outra tartaruga. E essa
tartaruga? ‘Ah, Sahib, depois dessa são só tartarugas até o fim’” (1989: 39). Para ele, ao
invés de buscarmos nos aproximar de uma realidade “complexa demais”, será melhor
não perder de vista as duras realidades cotidianas em que nós vivemos. Como ele escreve:
12 Joan Scott, “Experiência”. IN IN Silva, Lago e Ramos, Falas de Gênero. Ilha de Santa Catarina: Editora Mulheres, 1999,
pp. 21-55.
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Em defesa do posicionamento na pesquisa em Psicologia
Unidos dos anos 80 e mostrei algumas passagens onde isso aparecia. Não se tratava
simplesmente de uma “briga”, mas de um texto que propunha uma metodologia séria
de pesquisa que considerasse a objetividade como sendo possível apenas em termos de
posicionamento. É certo que ela estava usando a ironia e estava falando claramente
do feminismo, de uma metodologia feminista. O comentário de um segundo aluno
(da área de Psicologia Social) mostrou que talvez o que estivesse incomodando fosse
justamente isso. Como pensar uma metodologia de pesquisa objetiva quando se fala
do lugar da militância política? Este aluno da Social começou sua crítica ao texto de
Haraway dizendo que ele parecia “uma ode ao feminismo”. Em resposta, o aluno da
Psicanálise disse que o problema para ele é que o texto tinha sido escrito antes de ele
nascer, em 1989, e, portanto, ele não entedia nada daquilo.
Sem dúvida, tratava-se de uma brincadeira, porém eu já estava irritada com todos
aqueles comentários e respondi ao aluno da psicanálise que considerava o que ele havia
dito como sendo uma provocação. Quer dizer, então, que eu podia dizer também que
não entendia nada da segunda guerra mundial porque tinha nascido em 1946, logo
depois que a guerra tinha acabado? Perdi realmente a paciência com esse aluno e só aos
poucos fui me acalmando, com a ajuda de outro aluno, mais velho, que apontou para
trechos do texto de Haraway onde ela parecia mesmo estar brigando com Reagan e a
ciência tradicional, masculinista, dos Estados Unidos. Um desses trechos diz que ela se
sentia paranoica em relação a essas produções. Um terceiro aluno, tentando acalmar a
discussão, alegou que aquele era um texto publicado em 1988. Desde então, muita coisa
tinha mudado e hoje o que está escrito ali talvez não tivesse a mesma importância. Em
resposta a essa impertinência, li uma parte de nossa entrevista13 em que Haraway afirma:
Enfim, fui me acalmando, e, na aula que se seguiu àquela, desculpei-me por ter
perdido a paciência, impedindo, assim, uma discussão mais amena, que possibilitasse
mostrar a questão política envolvida com o feminismo e a importância do posiciona-
mento. Confirmei que Haraway era, sim, apaixonada pelo feminismo e ela achava que
aquele texto podia ser, sim, uma “ode ao feminismo”.
Avaliando agora toda a situação, tendo já se passado alguns meses das aulas de
Metodologia, acho que, embora minha reação intempestiva e apaixonada tenha, sim,
13 “Companhias Multiespécies nas Naturezaculturas: uma conversa entre Donna Haraway e Sandra Azerêdo”, IN Maria
Esther Maciel, pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica (Florianópolis: Editora da UFSC, 2011, 389-
417).
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
criado uma atmosfera tensa em que perdemos a oportunidade de ter uma discussão
mais promissora sobre a introdução do político nas práticas de pesquisa em psicologia,
a experiência foi positiva, especialmente em relação aos trabalhos que recebi. Ainda que
cerca de ¾ da turma da psicologia social tenha escolhido o texto de Minayo para tomar
como base para o trabalho, produzindo trabalhos pouco interessantes, houve estudantes
que escolheram os textos de Haraway, Geertz e Horkheimer, escrevendo trabalhos muito
bons sobre a questão do posicionamento e da transformação da sociedade. Entre esses/
as estudantes havia alguns homens, não apenas mulheres. Isso serviu de alento ao difícil
embate que tive com os homens da turma, na discussão sobre o texto de Haraway.
Logo no início de seu texto, Minayo escreve que “[p]ara problemas essenciais, como
a pobreza, a miséria, a fome, a violência, a ciência continua sem resposta e sem propostas”
(2010: 9-10). Essa não é a ciência que queremos construir na psicologia. Queremos uma
ciência que através do posicionamento tenha propostas para enfrentar esses problemas.
É preciso uma ciência visionária, como diz Haraway, e não uma ciência sem propostas.
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Gênero e suas expressões em um
contexto educacional e de atendimento
à infância e à adolescência em uma
cidade do interior paulista 1
Introdução
Este trabalho, fruto de projeto de iniciação científica financiado pela FAPESP
(05/03663-4 e 05/03662-8), buscou averiguar como representações de gênero
se expressam no cotidiano das práticas de cuidados e educação desenvolvidos
por monitoras, funcionárias e coordenação de uma instituição filantrópica
junto a crianças e adolescentes em um município do interior do Estado de
São Paulo. Para tal, fizemos uma relação entre os dados colhidos por meio de
entrevistas e observações de campo. A intenção aqui é problematizar o sentido
destas representações, demonstrando que estas são produzidas a partir de deter-
minada configuração de poderes de um espaço e tempo. Desta maneira, como
faremos ver, será possível denunciarmos os essencialismos que as compõem, o
modo como funcionam na produção e manutenção das mais variadas formas
de exclusão e violência.
O disparador das reflexões desta pesquisa deu-se a partir de nossa partici-
pação em um projeto de estágio5, o qual tem como premissa que os sujeitos se
constituem no interior de práticas e discursos, sendo compostos e construídos
em processos, em linhas de subjetivação e a partir de dispositivos estratégicos, tais
como os da sexualidade tal qual problematizado pelo filósofo Michel Foucault
ao longo de sua obra. Assim, tal estágio foi desenvolvido em um estabelecimento
de cunho assistencial-filantrópico de atendimento à infância e adolescência,
localizado em um bairro de baixa renda de um município do interior do Esta-
do de São Paulo. Neste local, desenvolvíamos um trabalho institucional com
1 Este artigo é derivado do Projeto de Iniciação Científica, denominado “Gênero e suas expressões nas práticas
institucionais”, financiado pela FAPESP em 2006, processos: 05/03663-4 e 05/03662-8
2 Prof. Assistente Doutor junto ao Departamento de Psicologia Clínica e ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Universidade Estadual Paulista – UNESP, Campus de Assis
3 Psicóloga formada pela UNESP, Campus de Assis. Bolsista FAPESP – Processo: 05/03662-8
4 Psicóloga formada pela UNESP, Campus de Assis. Bolsista FAPESP – Processo: 05/03663-4
5 Trata-se do projeto de estágio/extensão denominado Corpo-afecto e sexualidade no trabalho com Educação
Sexual, desenvolvido junto ao Departamento de Psicologia Clínica da UNESP, Campus de Assis, SP
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
6 Para os autores, a subjetividade se compõe a partir de dois planos: o molar, que é da ordem do visível, ou seja, dos
modelos, das identidades, das estruturas, das normas, dos gêneros; e o plano invisível, que é o plano dos fluxos de desejo
que engendram diferentes formas. Deste modo, o plano molar é o plano formal, da consciência, das representações e do
imaginário. Neste plano, as fronteiras são definidas e reificadas cronológica e espacialmente.
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Gênero e suas expressões em um contexto educacional e de atendimento à infância e
à adolescência em uma cidade do interior paulista
Para nós, psicólogos/as, trabalhar com a categoria gênero permite, desta maneira,
mapear processos de constituição de representações que regulam modos de classificação
e hierarquização de corpos a partir de sua anatomia e traços.
Construindo o lugar
Trata-se de uma casa grande, com amplo espaço ao ar livre, fundada por senhoras
católicas há 50 anos, que atualmente trabalham com cerca de 200 crianças com idade
entre 2 e 12 anos em regime de contra-turno. Tem na coordenação freiras de uma
Ordem católica.
Contrariando as expectativas, temos que as freiras se mostraram bastantes dispo-
níveis à nossa atuação junto às crianças. O principal ponto de resistência encontrado
foi com o grupo das educadoras.
A intervenção
Para os objetivos deste trabalho realizamos, em um primeiro momento, observa-
ções etnográficas que nos permitiram maior intimidade com as rotinas, os trâmites e as
práticas cotidianas daquele estabelecimento.
A partir dos dados oriundos das observações, elaboramos entrevistas semi-estrutura-
das divididas em três blocos de perguntas. Os participantes foram divididos em grupos
de três a quatro pessoas, mediados por duas pesquisadoras. Conversamos com todas as
pessoas que trabalhavam no estabelecimento, sendo que, das dezoito pessoas entrevis-
tadas, apenas uma era do sexo masculino. Os grupos foram organizados de acordo com
a disponibilidade de horários e o cargo ocupado pelos participantes.
Todas as entrevistas foram gravadas em áudio após assinatura do Termo de Con-
sentimento Livre e Esclarecido dos depoentes.
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
[...] mulher não é mulher? Homem não é homem? Eu não posso ser
mulher, eu posso ser mulher? Não posso ser mulher. A vida diferencia
isto. [Hóracio7 - Auxiliar de serviços gerais] (sic)
[...] Desde pequeno a gente nota na criança a diferença entre meninos
e meninas. [Tamires - Diretora] (sic)
[...] Ah! Porque os homens fazem isto, a mulher também vai. Nada
disso! Mulher tem que fazer papel de mulher e o homem papel dele, de
homem. Cada um tem o seu papel. [Tamires - Diretora] (sic)
Como se pode perceber pelos exertos acima, há uma clara demarcação (imaginária)
das fronteiras de gênero, isto é, através dos discursos dos entrevistados percebemos
identidades de gênero nitidamente demarcadas, funcionando como estruturantes de
posições de sujeito no mundo. Há uma tendência por parte dos entrevistados a se pautar
em uma visão essencialista, geralmente embasada pela Biologia dos corpos, que concebe
o masculino e o feminino como opostos:
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Gênero e suas expressões em um contexto educacional e de atendimento à infância e
à adolescência em uma cidade do interior paulista
Ah, sei lá. Mulher é mais delicada né? Geralmente homem é mais gros-
seiro. Mas queira ou não, o mundo deixa esta imagem pra gente: que
mulher é mais delicada e o homem mais grosseiro. A menina que gosta
de falar, né? Menina que fala muito palavrão? Pelo amor de Deus! Isto
é coisa de moleque!. [ Renata - Educadora ] (sic)
Os meninos são um pouco mais agressivos, eu acho, nas brincadeiras.
[Fábia -Educadora] (sic)
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SEÇÃO I – (Des)Continuidades e Rupturas com e na Psicologia Contemporânea
A ideia da mulher como sendo mais forte emocionalmente, talvez se vincule ao ideal
de maternidade proposto para a mulher. É o que desenvolveremos no próximo item.
Mãe do pai, mãe do marido, mãe do filho
Tomar a mulher por suas características biológicas fornece elementos para asso-
ciações que, em geral, remetem à ideia da maternidade e adjetivos a ela relacionados.
Encarnada nesta ideia de maternidade, novamente encontramos como características
do ser mulher a primazia dos afetos sobre a racionalidade (BIRMAN, 2001). Não é
surpresa, portanto, nos depararmos com afirmações como estas:
Já nasce, é uma obra de Deus, desde que foi a vez de Maria e tudo
(referindo-se ao instinto materno). E é aqui... é mesmo ter instinto ma-
terno”. [Silvana - Educadora] (sic)
Tanto que uma boneca elas cuidam como se fosse uma criança. Menina
com a boneca já põe o peito. É umas brincadeiras bem assim mesmo.
Eu concordo com essa afirmação. A mulher já nasce com o instinto
materno. [Fábia - Educadora] (sic)
Por que se a mulher não nasceu com este instinto materno, vai virar o
quê? Não vou nem falar que é bicho, porque bicho tem mais instintos
ainda que o ser humano. [Joana - Educadora] (sic)
Ah, eu acho que tem [refere-se ao instinto materno]. A mulher... porque
eu vejo as meninas ali, de quatro anos, às vezes elas pegam as bonecas
delas e colocam no peito como se estivesse dando de mamar pra uma
criança. Então, a gente vê que ali, ela é muito pequenininha sabe? O
menino fica assim... às vezes até olham a criança, mas não é da mesma
forma que a mulher, sabe? Eu acho que já tem ali, desde pequenininho,
já tem assim aquela vocação pra ser mãe, sabe? É a impressão que eu
tenho. [Amanda - Educadora] (sic)
[...] Então, é isso daí mesmo, eles depende muito da gente pra tudo e a
gente acaba né, sendo aquela mãezona né, mãe do pai, mãe do marido,
mãe do filho até, às vezes, mãe da mãe da gente, né? Eles cobram muito
da gente. [Sabrina - Faxineira] (sic)
Acho que assim; tipo, num casamento: a mulher, ela pode optar entre
querer trabalhar ou não. [Renata - Educadora]. (sic)
Não, mas lá em casa é eu que... eu que sou a forte. Lá em casa é eu que
falo alto, o (marido) não. Lá em casa eu sou estourada. O que eu falar
tá certo. Se eu falar que não, não, não. Se eu falar que sim, sim é sim. E
não dianta não porque aí o pau quebra mesmo, né? Então, é... em casa
sou eu que dou as ordens... [Laura - Auxiliar de cozinha]. (sic)
E a mulher, né? Sai um boato de que ela fez alguma coisa... Casada,
então? Uma mulher casada trai o marido? Cabou. Não arranja marido
mais.Vixi. E ele, quanto mais melhor, né? Se ele tem duas, três, quatro,
cinco, já é o bambambam e quer mais ainda. Não sei se é desvantagem
ou vantagem, mas que ele leva a fama boa e pode fazer o que quer. Pra
salário, geralmente homem ganha mais que mulher. Mulher entrando
na política. Por quê? Igual, motorista. Deu maior bafafá na cidade por-
que tava só contratando mulheres pra trabalhar. [Renata - Educadora]
(sic)
Apesar disso, percebemos que mesmo gerando conflitos, lugares específicos para
homens e mulheres continuam sendo reproduzidos.
O que a maioria dos relatos permite evidenciar é como determinados modos de
subjetivação se colocam como verdades universais, gerando intensas ressonâncias e
naturalizando modos de experienciar e estar no mundo.
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Ah, eu falo porque quando os meninos têm uma tendência, pelo menos
os meus né? Até hoje todos os que eu tive, tem umas sementes que são
um pouco... Umas brincadeiras mais agressivas e aí eu falo: ‘Manera nas
brincadeiras’. Pra que eles não machuquem a menina que, geralmente,
são mais delicadas em relação a força né? E é a única coisa, recomenda-
ção que eu dou. [Renata – Educadora] (sic)
Eu acho que os meninos, ainda mais lá na minha classe, eles são mais
violentos que as meninas. Então eu tenho medo, de um acertar... de um
acabar machucando o outro[...] Porque as meninas são assim mais de-
licadinhas, no jeito de brincar. [...]. Tem menina que parece moleque.
Claro, tem menina que gosta de subir mais do que moleque, mas é raro,
é mais difícil. [...] Outro dia veio uma menininha aí, ela ficou um dia
só, mas ela se deu tão bem com um menininho, e o menino era triste,
sabe? Ele não pára. E ela se deu tão bem com ele: parecia que os dois já
se conheciam há muito tempo; fizeram a maior amizade e brincaram
o tempo todo junto os dois. Eu achei bonitinho.Tá vendo? Não é uma
regra. Você falar: “não, o menino não vai se dar bem com a menina de
jeito nenhum”. Não é assim! Mas também a gente tem que tomar cui-
dado, de repente numa dessas eles brigam ali e machucam. A menina lá
pequeninha. As menininhas vivem sendo machucadas pelos moleques
porque eles são estúpidos. [...]. Dá medo! Então tem que separar um
pouco. [Amanda - Educadora] (sic)
Peço pra que não faça mais isso. Eu falo que o menino pode machucar
a menina, que elas são menores ou que são mais quietinhas, pra que eles
não façam isso, que brinquem entre eles e que deixem elas brincarem
do jeito delas. Meio que dou um jeito de dar uma separada nos dois.
[Amanda – Educadora] (sic)
Às vezes, dependendo da brincadeira, se a gente vê que não é uma brin-
cadeira agressiva a gente pode falar que as meninas também podem
brincar. Mas eles mesmos direcionam, virou um clube, né? [Fábia -
Educadora] (sic)
Jogar futebol com os meninos. Então, isso parece uma coisa, sei lá. O
mundo coloca isso pra gente, que isso é coisa de homem. Então... Ela
faz coisa de menino? Não sei. [Renata - Educadora] (sic)
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As crianças fazem uma fila mista. A educadora pega três meninas que estavam no
começo da fila e as coloca do lado e diz: “Aqui que é de menina”, colocando-as
numa fila de meninas, e todos vão para o parque.
No parque, educadora fala para uma menina: “Chame outra menina para brincar
com você de mamãe e filhinho”.
“Que força, você está ficando forte, né J?”, a educadora fala para um menino
que estava no balanço.
A partir destas observações, demonstra-se o quanto as virtualidades do brincar
acabam por serem envoltas em regras e sanções culturalmente demarcadas por gênero.
Assim, explica-se, incentiva-se, ou não, uma brincadeira em função do sexo da criança,
restringindo e empobrecendo suas possibilidades de criação e atuação.
É o que acontece quando a educadora oferece carrinho para o menino e sugere que
menina brinque de “mamãe e filhinho”. Nesse sentido, Moreno (1999, p. 32) diz que
“em suas brincadeiras, as meninas têm a liberdade para serem cozinhei-
ras, cabeleireiras, fadas madrinhas, mães que limpam seus filhos, enfer-
meiras, etc., e os meninos são livres para serem índios, ladrões de gado,
bandidos, policiais, ‘super-homens’, tigres ferozes ou qualquer outro
elemento da fauna agressiva”.
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à adolescência em uma cidade do interior paulista
Assim, temos que esta instituição, foco de nosso estudo, não apenas reproduz iden-
tidades de gênero instituídas no social, como também as produz através de suas omissões
e incentivos. Como já colocado por Moreno (1999, p. 68), a escola [contextos educativos]
representa uma importante instituição para o desenvolvimento de padrões de organização
das condutas e das atividades de gênero.
Sendo esta instituição um lócus espaço-temporal e sociocultural onde as crianças
vivenciam situações de interação, podemos situá-la como produtora e (re)produtora das
identidades de gênero que circulam no social.
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Pensar a partir do gênero como categoria útil de análise (SCOTT, 1995) implica
em questionar o falocêntrismo de nossa cultura, percebendo que os modelos identitários
oferecidos para meninas e meninos são autoritários e castradores das potencialidades
humanas. Rago (2003, p. 485) assim questiona: “Trata-se de problematizar as pró-
prias práticas cotidianas de normatização, produzidas no contexto de uma pedagogia
autoritária pautada pelo medo e pelo ressentimento”. Neste sentido, é tarefa da escola
[contextos educativos] abrir “espaço para a manifestação livre da subjetividade e para cria-
ção de práticas de liberdade, liberando, pois, anarquicamente a ação e a expressão”[...].
(RAGO, 2003, p. 488).
Assim, esperamos que este trabalho sirva, ainda que minimamente, para proble-
matizar os binarismos normativos e fomentar práticas de transformação da realidade
junto aos educadores, suscitando-lhes reflexões e problematizações sobre a necessidade
de criação de novos e diferentes modos de habitar o mundo.
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à adolescência em uma cidade do interior paulista
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SEÇÃO II
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Problematização de gênero, violência
e políticas públicas nos casos de abuso
sexual intrafamiliar vivenciado por
crianças e adolescentes
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
1 “O androcentrismo consiste em considerar o ser humano do sexo masculino como o centro do universo, como a medida
de todas as coisas, como o único observador válido de tudo que ocorre em nosso mundo, como o único capaz de ditar
leis, de impor a justiça, de governar o mundo” (MORENO, Montserrat. Como se ensina a ser menina: o sexismo na
escola. Trad. Ana Venite Fuzatto. São Paulo: Moderna, 1999, p. 23).
2 As relações adultocêntricas são assimétricas pela imaturidade biológica da criança e sua dependência em relação ao adul-
to, que a vê como objeto de sua propriedade (RANGEL, Patrícia Calmon. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Curitiba:
Jiruá, 2002).
3 O conceito de biopoder foi apresentado por Michel Foucault, no primeiro volume de História da Sexualidade (1988).
A ideia de biopoder veio se juntar às suas reflexões sobre as práticas disciplinares, considerada pelo autor como técnicas
de exercício de poder, nas quais as disciplinas se voltavam para o indivíduo, e para o seu corpo, para a sua normalização
e adestramento através das diversas instituições modernas que esse indivíduo atravessava durante a sua vida – a partir
do século XVIII e XIX (a escola, a caserna, a fábrica, o hospital, a prisão, etc.). Para Foucault o biopoder cuidava de
processos como nascimentos e mortalidades, da saúde da população (doenças e epidemias, por exemplo), da longevidade,
e etc. O biopoder é a gestão da vida como um todo, técnicas de poder sobre o biológico, que se torna referência central
nas discussões políticas.
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Problematização de gênero, violência e políticas públicas nos casos de abuso sexual
intrafamiliar vivenciado por crianças e adolescentes
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
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Problematização de gênero, violência e políticas públicas nos casos de abuso sexual
intrafamiliar vivenciado por crianças e adolescentes
Deleuze (2001), a partir das análises dos três momentos de Michel Foucault4,
visualizou o dispositivo como um conjunto de linhas que atravessam o sujeito5, linhas
que formam “um emaranhado”, que são múltiplas, que podem ser paralelas ou se rom-
perem entre si, linhas que se encontram, se fazem bifurcar ao se encontrarem, às vezes
se aproximam, às vezes se afastam umas das outras.
De acordo com Deleuze (2001), quando o sujeito é atravessado por novas linhas,
novos pensamentos de “outros”, muitas vezes estes se instalam e passam a fazer parte do
sujeito, não sendo mais o mesmo sujeito; já se é outro e o que era atual já será parte do
arquivo diante deste novo vir a ser. Este novo muitas vezes leva o sujeito a um estado
de perplexidade, sensação de loucura, medo, mas também pode causar alívio e sensação
de liberdade diante de novos olhares e possibilidades.
Nos pontos de encontro dessas linhas são instalados nós de fixação, que irão “moldar”
os comportamentos, trazendo ao indivíduo a necessidade de responder às cobranças
externas, como se a realização do desejo estivesse no social, “no fora”, a partir da sobre-
posição do poder (um obstáculo), no qual se dá uma dobra que constitui um novo “eu”.
Dependendo da força que este poder impõe, a dobra se fecha e a interioridade passa a
ser o que é o fora e o fora é o que tem dentro, até que ocorra um novo encontro, uma
nova informação. Entre esses nós existem espaços onde se formam os territórios, os
quais serão como vãos que poderão ainda ser atravessados por linhas de subjetivação;
estas poderão ser linhas duras, linhas flexíveis ou de fuga. As linhas duras remetem ao
lógico e controlável, são linhas circulares que levam à repetição do mesmo, ao binário,
isto é, certo-errado, assim como impedem a percepção da diferença e o indivíduo de-
seja apenas aquilo que é esperado que ele deseje. As linhas flexíveis poderão produzir
rupturas nestes nós, “movimentando e operando pequenas transformações” (BARROS,
1994 apud FONSECA & KIRST, 2003, p. 263). De acordo com Deleuze (2001, p.
03), as linhas de fuga proporcionam um processo de individuação que “age nos grupos
ou nas pessoas e se subtrai tanto nas relações de força estabelecida quanto aos saberes
constituídos [...] para se reinvestirem nos poderes e saberes de um novo dispositivo, sob
outras formas ainda por nascer”, é o que possibilita subjetividades singulares.
De acordo com Foucault (1988), o Dispositivo da Sexualidade surge na cultura oci-
dental a partir do século XVII. A censura e a interdição do sexo se tornam um imperativo
que passa a produzir crenças, mitos e tabus em torno deste tema. Este mecanismo de
censura refere-se a um conjunto de instâncias sociais, políticas, religiosas, médicas, jurí-
dicas, entre outras, que inseriu o sexo num lugar de invisibilidade, discrição e contenção.
Porém, o silenciamento que se produz em torno do sexo, o fim dos “risos estre-
pitosos que, durante tanto tempo, tinham acompanhado a sexualidade das crianças”
(FOUCAULT, 1988, p. 33), não significa que se fala menos do sexo, mas que se fala de
outra maneira e que é estabelecida progressivamente uma nova forma de tratá-lo, com
4 Três são os momentos frequentemente identificados por estudiosos nos escritos de Foucault e por ele mesmo: Arqueolo-
gia do saber, Genealogia do Poder e uma Genealogia da Ética.
5 Neste estudo, o sujeito será considerado a partir do conceito proposto por Foucault, no qual ele não é dado, mas sim
constituído (FONSECA, 2011, p. 14).
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Problematização de gênero, violência e políticas públicas nos casos de abuso sexual
intrafamiliar vivenciado por crianças e adolescentes
Questão de gênero
Nessa breve introdução sobre o conceito do termo “gênero”, primeiro abandona-
-se a ideia da abordagem das diferenças entre homens e mulheres entrelaçada ao termo
sexo, que remete o pensamento à condição biológica de macho/fêmea naturalizada ao
longo dos tempos.
O conceito de gênero aparece nos anos 60 e 70 nos escritos feministas. Neste
período, o uso do termo gênero serviu para ressaltar as diferenças sexuais, ou seja, a
diferença entre a mulher e o homem, entre o feminino e o masculino. A demarcação
das diferenças a partir do sexo biológico produziu espaços sociais que se dividiram pelas
especificidades referidas a cada gênero, o que acabou por formar guetos feministas.
Assim, a produção de estudos sobre as mulheres, de espaços de circulação somente
de mulheres, reifica uma dicotomia, uma prática binarizante na qual as mulheres, de
acordo com Lauretis (1994, p. 209), “acabavam falando delas para elas mesmas”, o que
produziu a limitação de se universalizar os homens e as mulheres, impossibilitando a
articulação das diferenças entre as mulheres “ou, talvez mais exatamente, as diferenças
nas mulheres” (GUEDES, 1995, p. 04; LAURETIS, 1994, p. 209).
Estas práticas binarizantes tornam-se reducionistas e propõem uma leitura na qual
ainda estaria relacionada a diferença em relação a, diferença entre, ou seja, diferença da
mulher em relação ao homem e desta forma a mulher ainda presa à representação do
masculino para afirmar sua existência (LAURETIS, 1994: 206-207), pois o homem é
mantido como referência que modela e posiciona os olhares e discursos.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
Scott (1995) mostrou que esta questão deixou de ser exclusiva e privativa de
mulheres tendo se ampliado política e socialmente quando incluiu os homens,
também, como vítimas da normatividade machista, falocêntrica e heterossexual.
O desafio de romper esse esquema binário não é, na verdade, nada banal, mas um desafio
que vem sendo proposto por alguns/as estudiosos/as feministas.
Butler (2003, p. 19), menciona que a capacidade de singularização do sujeito
dependerá:
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intrafamiliar vivenciado por crianças e adolescentes
Violência tolerada
O conceito de violência que nos apoiamos se apresenta de forma clara na definição
do fenômeno proposta por Chauí (1985, p. 35):
Cohen (1997, p. 212) afirma que é segundo o parentesco cultural que a proibição
do incesto possui um efeito estruturante, e quando alguém da família por algum motivo
não puder reprimir seus impulsos incestuosos, o Estado, como se fosse um pai, deve
cumprir esta função. Tem a responsabilidade, em suas diversas estruturas, pelo desen-
volvimento das condições de vida e garantia dos direitos destas crianças e adolescentes
(NETO; MOREIRA, 1999).
Quanto às determinações legais que visam proteger a criança, de acordo com o
que é estabelecido no Estatuto da criança e adolescente (ECA) em leitura concomitante
com seu código de ética, nos casos de VSIVCA os/as profissionais da Psicologia têm a
obrigação de realizar a denúncia nos casos em que a família se negue a realizá-la, o que
é muito comum na dinâmica da Violência sexual intrafamiliar.
Em minha experiência de três anos no atendimento de casos de VSIVCA, e há trê
anos na coordenação do projeto que acolhe estes casos, através do CREAS do município
de Ourinhos/SP, foi possível constatar inúmeras “falhas” do Estado relativas à efetivação
da assistência e/ou proteção dessas crianças e/ou adolescentes após a identificação das
situações de VSIVCA e efetivação da denúncia.
Entre essas “falhas” notamos que muitas vezes o agente agressor permanece em
contato com a criança/adolescente por um longo período, até que seja instaurado in-
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
quérito. Esta morosidade possibilita que ocorram novas situações de abuso sexual com
a mesma ou com novas vítimas, possibilitando ainda que se produza um novo ciclo de
violência, através de retaliações e/ou ameaças à criança ou ao adolescente mediante o
conhecimento do agressor sobre a revelação realizada pela vítima.
Maior ainda a invisibilidade que se instaura nos casos de suspeita de VSIVC. Ao ser
efetivada a denúncia, geralmente muito pouco é realizado quanto a uma investigação
policial para se buscar provas.
Deverá então o/a profissional sentir ter cumprido seu dever após realizar a notifica-
ção de um caso quando existe um “clima” incestuoso, sem uma verdadeira passagem ao
ato, e que não ofereça prova legal/material para a constatação da denúncia? Será papel
do/a profissional da Psicologia ir atrás das provas? Como alcançar a proteção da criança
sem provas? Que proteção se oferece? Que alternativa têm as crianças e/ou adolescentes
que vivenciam abuso sexual intrafamiliar e precisam aguardar junto ao agressor o seu
julgamento que pode demorar anos?
É curioso que a denúncia seja considerada como ferramenta polivalente para pro-
teção das crianças/adolescentes e que a efetiva prevenção nos casos de maior risco não
pareça constar das preocupações do Estado, visto que a atenção aos casos de VSIVCA
é deslocada para os atendimentos às vitimas que já vivenciaram a violência, relegando à
Psicologia a função de denúncia de algo que ele, o Estado, não soube como impedir que
acontecesse e arrisca-se a dizer, favorece.
Diante das considerações apresentadas, pode-se afirmar que os/as profissionais da
Psicologia estão numa posição muito delicada diante do imperativo de denúncia com-
pulsória perante a falta de políticas públicas que garantam efetivas ações de proteção
às crianças e adolescentes.
O imperativo da quebra de sigilo, a partir da denúncia, revela também o fato de
que a violência poderia ter sido evitada caso as relações entre adultos e crianças fossem
submetidas a leis que não privilegiassem, respectivamente, a autonomia de um em
relação ao outro. Tal situação subverte a função do/a psicólogo/a, deslocando-o/a para
a posição de denunciante de uma violência supostamente localizada na figura de um
indivíduo, quando na verdade este indivíduo não é o agente isolado desta violência e
sim o efeito de uma sociedade adultocêntrica e adoecida.
Podemos considerar, portanto, que a criança vítima de violência sexual intrafamiliar
é o resultado último de uma sociedade que estabelece como modelo relacional a primazia
da vontade e diligência do adulto em relação àqueles que a ele são subordinados. Trata-se
então de observarmos que no campo social o adulto tem autonomia sobre a criança e
isso é corroborado pelo Estado.
Estas ideias devem remeter nossa categoria profissional a questionar os procedimen-
tos generalizados que ocorrem diante de situações de VSIVCA, pois aqueles que estão
no atendimento direto destes casos conhecem as particularidades de cada situação e o
apontamento genérico e reticente das instituições responsáveis por proteger estas crianças
e adolescentes tem sido pouco assertivos. Portanto, ainda falta maior (re) ação social
em todos os espaços públicos (escolas, postos de saúde, delegacias, ministério público,
conselhos tutelares, entre outros) que têm conhecimento destes casos, além da sociedade
civil, pois ao que nos parece há uma tolerância diante de tais situações, considerando-se
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Problematização de gênero, violência e políticas públicas nos casos de abuso sexual
intrafamiliar vivenciado por crianças e adolescentes
que não há ações estratégicas de proteção para que se evitem reincidências de abusos ou
mesmo a ocorrência de novas vítimas.
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Corporalidades fora dos eixos:
a insurgência dos prazeres
e modificações corporais na
transcontemporaneidade1
1 O presente artigo se refere a um recorte da pesquisa de doutorado, em andamento, intitulada Corpos (Con)
Sentidos: cartografando processos de subjetivação de produto(re)s de corpos singulares, orientada pelo
Profº Dr. Wiliam Siqueira Peres.
2 Psicólogo; Mestre e Doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual
Paulista (UNESP), campus de Assis-SP. Membro do GEPS – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre Sexualida-
des, registrado no Diretório de Pesquisas CNPq. E-mail: marcioneman@gmail.com
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
Desse modo, a autora analisa que o caos sempre foi visto como negativo e aterrador,
uma vez que durante séculos foi inventado um constructo psicológico idealizado, com uma
suposta completude que depõe contra tudo que não seja naturalizante, essencialista,
transcendental, universal, linear e identificável.
Entretanto, no contexto da transcontemporaneidade (embora ainda se veja engen-
drado o ciclo da modernidade nos modos de subjetivação dados desde o século XVI) se
observa diversas concepções difundidas, principalmente nas áreas das ciências humanas,
que anunciam a dissolução desse sujeito moderno, entre elas citarei: a Teoria Queer
(Queer Theory), a Esquizoanálise e o Método Cartográfico de Deleuze e Guattari e mui-
tos outros estudiosos sobre modos e processos de subjetivação, sexualidades, gêneros e
corporalidades que entendem o sujeito como múltiplo, contextual, produto/produtor de
subjetividades e atravessados por diversos marcadores sociais e suas interseccionalidades.
Nesse contexto, as corporalidades emergem como articuladores insurgentes e
políticos de práticas discursivas. Toda forma de interpelar o corpo nos conduz para
as produções de subjetividades normativas ou em sujeitos que buscam singularidades,
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Corporalidades fora dos eixos: a insurgência dos prazeres e modificações corporais na transcontemporaneidade
que por sua vez indicam processos contínuos e/ou rupturas com conceitos e práticas
corporais dadas através dos séculos.
Desse modo, torna-se impossível contextualizar corporalidades sem o aprofunda-
mento dos estudos genealógicos sobre os modos disciplinares, de controle, e produtores
de corporalidades, ou melhor, sem nos atentarmos às estratégias provenientes e emer-
gentes de tecnologias produtivas/produtoras de biopolíticas, de cuidados de si e estilos
de existir dadas no campo social, evidenciadas por Michel Foucault (1987).
Enquanto objeto de estudos acadêmicos, o corpo problematiza diversas manifesta-
ções sociais que evocam a politização da vida cotidiana, experiências singulares, tabus e
crenças, expressões de desejos, tanto quanto proporciona debates interdisciplinares de
diversas áreas de saber (logo, do poder).
As transformações corporais apresentadas nas estéticas e nas fisiologias humanas po-
dem ser compreendidas como as linhas subjetivas de visibilidades recorrentes no cotidiano.
No entanto, são necessários olhares e deslocamentos mais atentos para notar que as linhas
de enunciação potencializam análises que conectam as extensões das experiências estéticas
e dos prazeres (Deleuze, 2001), no caso desta pesquisa - as modificações corporais.
Ainda, na análise deleuziana, no fluxo da feitura dos sujeitos (e subsequentemente, das
corporalidades), existem linhas de forças que englobam visibilidades e enunciados por
meio de relações de poderes projetadas em tramas múltiplas de discursos, sendo essas,
práticas discursivas engendradas por verdades instituídas ao longo dos séculos, como
nos dirá Félix Guattari e Suely Rolnik (1986, p. 27):
[...] tudo o que nos chega pela linguagem, pela família e pelos equipa-
mentos que nos rodeiam – não é apenas uma questão de ideia, não é
apenas uma transmissão de significações por meio de enunciados signi-
ficantes. Tampouco se reduz a modelos de identidade, ou a identifica-
ções com polos maternos, paternos, etc. Trata-se de sistemas de conexão
direta entre as grandes máquinas produtivas, as grandes máquinas de
controle social e as instâncias psíquicas que definem a maneira de per-
ceber o mundo.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
Esses dispositivos são disseminados pelas práticas discursivas e nas relações de poder
presentes nas instituições, regulamentos e enunciados, enfim, em todos os contextos
nos quais os sujeitos são constituintes e constituídos (Foucault, 2003). Assim, as
instâncias Poder, Saber e Subjetividade não possuem contornos fixos, sendo fluxos va-
riáveis em suas intensas lutas de forças, portanto, passíveis de criarem linhas de fuga e
resistência ao modelo normatizador/instituído (possibilitando novas conexões, planos
e dimensões de existências).
Mediante ao exposto, para este artigo investi em análises iniciais sobre a insurgên-
cia das modificações corporais na (trans)contemporaneidade – período marcado por
transformações críticas e aceleradas e em contraposição aos processos paradigmáticos
baseados no essencialismo, nas ciências modernas, na classificação e patologização do
humano, na causalidade e binarização do mundo. O objetivo para o estudo dessas novas
configurações de corporalidades modificadas e visibilizadas se intensificou a partir do
meu interesse em conhecer novas propostas de estilos de vida, práticas de cuidado de
si e de prazer, em suma, busquei problematizar possíveis posicionamentos políticos e
estratégicos que poderiam produzir resistência e enfrentamento aos modelos matrizes
ou à cessão ao mercantilismo e/ou fetichismo do corpo enquanto mercadoria.
O proceder metodológico escolhido para pesquisar modificações corporais e práticas
de prazer foi o método cartográfico. Tomando como disparador para análise os pressu-
postos de Deleuze e Guattari (1995) e Rolnik (1989), compreendi a Cartografia como
um modo de pensar e fazer pesquisa que problematiza as produções de subjetividades, a
feitura dos sujeitos e os acontecimentos a partir de um prisma flexível (dinâmico) e em
constante movimentação. Este método visa o acompanhamento processual e múltiplo
do objeto de pesquisa de modo que não haja uma divisão entre sujeito/pesquisador e
objeto pesquisado. Assim, Virgínia Kastrup (2009, p. 32) indica que:
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Corporalidades fora dos eixos: a insurgência dos prazeres e modificações corporais na transcontemporaneidade
Embora a lista de condições acerca das modificações corporais seja extensa, de-
limitamos para esta pesquisa apenas o recorte do body modification enquanto técnica
e procedimento de manipulação do corpo. Desse modo, é importante diferenciar
condições descritivas e contextuais entre o que se considera body modification (como
qualquer forma de transformação corporal) e body modification (realizada enquanto
técnica por body modifiers, performers, body piercings, tatuadores, ou os ditos urban
primitives ou modern primitives3). O body modification enquanto conjunto de técnicas e
procedimentos específicos inclui o uso de materiais tais como piercings, tatuagens, im-
plantes subcutâneos (por exemplo, os beadings), uso de ganchos para suspensão corporal
3 Movimento criado em meados da década de 1960 pelo xamã e performer Fakir Musafar (Roland Loomis) – considerado
o Pai do Movimento Moderno Primitivo. Esse movimento é seguido por pessoas que habitam países desenvolvidos e oci-
dentais e que praticam rituais de modificação corporal (e de prazer) em referência e/ou homenagem aos ritos de passagem
de culturas ditas como “primitivas”, como por exemplo, algumas etnias e povos indígenas e/ou orientais. Fakir é diretor
e professor da Fakir Body Piercing & Branding Intensives, organização que oferece cursos sobre modificações corporais,
além de ser proprietário da revista Body Play <http://www.bodyplay.com/>, editada entre 1992-1999. Experienciou,
em seu próprio corpo, técnicas e procedimentos tais como, suspensão corporal, perfurações, branding e escarificação, se
tornando não apenas um ícone do body modification, mas também de comunidades undergrounds ligadas às práticas de
sadomasoquismo (BDSM). Ver: Vale, V.; Juno, A.. Modern primitives: an investigation of contemporary adornment
& ritual. San Francisco: Re/search (1989/2010). Ver: http://www.fakir.org/classes/index.html.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
4 O body play ou play piercing pode ser compreendido como expressões corporais (jogos e brincadeiras) que utilizam,
temporariamente, técnicas de perfuração para produzir sensações através da elevação de corpos por auxílio de ganchos
e cordas (suspensão), produzir tração de forças contrárias entre corpos (pulling), costurar partes dos corpos (sewing),
aplicações uniformes e geométricas de piercings (corset) e agulhas, entre outros.
5 O body art refere-se à utilização do corpo como um dispositivo político e reivindicatório, ativado pela contextualização
da arte performática. Nela, a multiplicidade e plasticidade estética e de sensações/sentimentos são experienciadas no e pelo
instrumento da ação artística – o corpo. As corporalidades na body art são (res)significadas a partir do uso de técnicas de
tatuagem, perfurações, amarrações, marcas na pele, utilização de acessórios e idumentárias que produzem performances
sui generis, bizarras, híbridas, surreais e plurais que, de modo político, visam romper com o instituído, com o comum, o
naturalizado e o padrão. As conexões entre processos subjetivos do(s) ator(res) e a linguagem da arte (técnica e filosófica)
insurgem em performances que evocam o não-convencional, o grotesco, o esdrúxulo, o absurdo, o sem nexo e o abjeto (por
exemplo, os freakshows), envolvendo posições corporais e contextuais deslocadas no tempo e espaço, produzindo deste
modo, discursos, estéticas e narrativas midiáticas implicadas em cenas e discussões sobre a política da vida em sociedade.
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Corporalidades fora dos eixos: a insurgência dos prazeres e modificações corporais na transcontemporaneidade
6 Steve indica em entrevista ao documentário “Modify” que a busca de uma estética diferenciada não se configura na única
função das práticas de body modification. Para ele, as técnicas e procedimentos de modificações corporais são praticados há
séculos por uma grande variedade de razões e por diferentes culturas, sendo elencados 4 aspectos motivacionais para que as
pessoas passem pelo processo de modificação corporal: 1- valores estéticos; 2- reforço/potência na condição sexual; 3- chocar
ou confrontar valores sociais e; 4- espiritualidade. Ver: Documentário Modify. JACOBSON, Greg; GARY, Jakson. Modify.
Comunmited Films, LLC. 85 minutos. DVD. Ver ficha técnica no site: <http://www.imdb.com/title/tt0455980/d>
7 A captura mercadológica da estetização - por meio dos processos midiáticos e da moda - obtida por modificações
corporais é demonstrada pela crescente visibilidade de locais de atuação de body piercers e tatuadores, que saíram da
clandestinidade dos porões e passaram a atuar em estúdios equipados, assim como também observamos a minimização
do estigma de marginal para integrantes de tribos urbanas de grandes centros. No caso da tatuagem, era recorrente o uso
entre criminosos (presídio), marinheiros (zonas portuárias), prostitutas e cafetões nos recantos de prostíbulos (Costa,
2004). Em relação às tribos urbanas podemos citar os punks, os rockabillies, hippies, clubbers, pitboys, entre outros.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
As reflexões trazidas por Michel Foucault e Judith Butler, além de muitos outros
autores, têm contribuído para que possamos situar sócio-historicamente os modos pelos
quais os processos de subjetivação produzem práticas discursivas e, subsequentemente,
a feitura dos sujeitos. A ordem de discursos impõe referências que se materializam nos
corpos, assujeitando-os às regras normativas, às instituições disciplinares e à matriz
heterossexual (heterossexualidade compulsória). Recorrentemente, de modo geral, os
sujeitos buscam recursos da estetização por meio também de técnicas do body modification
para reificar o binário sexual e de gênero. Essa condição pode ser analisada no período
histórico atual devido à utilização das tecnologias de corporalidades e tecnológicas de
gênero para (re)produzir diferenciação e relações de poder entre homens e mulheres,
feminino(s) e masculino(s), sexualidade(s) normativa(s) e dissidências sexuais, entre
outros (De Lauretis, 1994; Butler, 2004).
Nas pesquisas sobre o uso de tatuagem e prática do bodybuilding (uso exacerbado
de exercícios com finalidade de hipertrofia muscular), César Sabino e Madel Luz (2006)
indicam, no recorte populacional do Rio de Janeiro, que muitos homens recorrem a essas
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Corporalidades fora dos eixos: a insurgência dos prazeres e modificações corporais na transcontemporaneidade
técnicas para construir uma corporalidade mais ostensiva da virilidade e da força. Nessa
mesma perspectiva, Beatriz Pires (2005) analisa que a experiência da dor nas práticas
corporais também corrobora com a análise que o processo de práticas doloridas também
pode ser condicionado à ideia de macho e virilidade. Já as mulheres,
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
8 Aqui “minoria” não será relacionada à ordem numérica, quantidade ou porcentagem de pessoas, mas às pessoas que
enfatizam a dissidência fugindo das redes normativas que engessam a insurgência de estilísticas de existências singulares.
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Corporalidades fora dos eixos: a insurgência dos prazeres e modificações corporais na transcontemporaneidade
9 Encontrei pessoas que relataram a frequência em cultos evangélicos por não suportar a culpabilização feita por familiares
em relação, principalmente, ao baixo grau de empregabilidade.
10 Sigla referente ao movimento social e político de pessoas que se autodenominam Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais
e Travestis.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
caminho ético e político, tendo ele uma potência de práticas corporais criadoras de
intensa existência e prazer.
Ao analisar as corporalidades, adentramos ao mundo do campo discursivo e da
produção ora normatizada, ora singular, ora flexível (passível de mudanças) de planos
e (re)invenções de experiências, expressões de desejos, transmutações de realidades e
fluxos, assim como também estabelecemos inúmeras conexões e articulações dotadas
de sentidos e significados socioculturais.
A presença de corpos insurgentes e revoltados na cena cotidiana produz desordem
nas bordas identitárias dos signos entre os marcadores sociais e suas interseccionalidades
quando utiliza técnicas de modificação corporal que traduz signos contrários, mistos e
criativos relacionados ao gênero, à questão geracional, raça/etnia, identidade cultural
e territorial, valores estéticos entre outros. Nestas discussões, o corpo representa uma
multiplicidade de propostas, processos e projetos de experiências inacabadas, transitórias,
performáticas, coletivas e políticas.
De maneira conclusiva, observamos que a sociedade ocidental engendrou dispo-
sitivos disciplinares e de controle que produziram modos de subjetivar e modos de
fazer gêneros e sexualidades, subsequentemente, modos de produzir prazer e estéticas
corporais. Enfrentar o binarismo sexual não parece tarefa fácil, pois se trata de realizar
enfrentamentos contra políticas históricas de subordinação dos sujeitos. No entanto,
também é notável que ao longo da história muitas mudanças no campo social ocorreram,
sendo causadas por acontecimentos de resistência de ditas populações minoritárias. A
maneira de como combater os pilares do machismo, da homofobia, da misoginia não
caminham progressivamente de maneira unilateral, uma vez que os acontecimentos so-
ciais possuem uma multiplicidade de conexões que produzem continuidades e rupturas.
O que podemos problematizar a partir da proposta de Foucault (2005, p. 91) seria: “[...]
lá onde há poder, há resistência [...].”, ou seja, se tornar importante criar mecanismos e
estratégicas de combate à normatização das estilísticas das existências, possibilitando
a expansão dos fluxos de desejos e da ética dos gêneros, sexualidades e corporalidades.
Referências
BARROS, Laura Pozzana de; KASTRUP, Virgínia. Cartografar é acompanhar processos. In:
PASSOS, Eduardo; KASTRUP, Virgínia; Escóssia, Liliana da (Org.). Pistas do método da car-
tografia: pesquisa-intervenção e produção de subjetividade. Porto Alegre: Sulina, p. 52-75, 2009.
Braidotti, Rosi. Transposiciones: sobre la ética nómada. Barcelona: Editorial Gedisa, 2006.
Braz, Camilo Albuquerque de. Além da pele: um olhar antropológico sobre a body modification
em São Paulo. Dissertação de Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Campinas:
Unicamp, 2006.
Butler, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira
Lopes (org.). O Corpo Educado: pedagogias da sexualidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva.
Belo Horizonte: Autêntica, p. 153-172, 1999.
______. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. Tradução de Renato Aguiar.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
______. Deshacer el genero. Barcelona: Paidos, 2004.
Costa, Zeila. Do Porão ao Estúdio: Trajetórias e práticas de tatuadores e transformações no
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Estudios de Género y LGBTI
na Psicología Latinoamericana
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Estudios de Género y LGBTI na Psicología Latinoamericana
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Estudios de Género y LGBTI na Psicología Latinoamericana
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
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Dentre o anômalo e o mais-do-mesmo,
para onde caminharia o
Movimento LGBT?
Tânia Pinafi1
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
E-JOVEM3, Grupo Mulheres de Kêto4, que se dispõem a não dissociar a discussão das
identidades dissidentes pela heteronorma de outros marcadores sociais da diferença que
lhes são caros. Muito embora se possa pressupor que aqueles/as que escolheram abrigar-
-se sob uma mesma designação identitária percebam-se da mesma forma, nada garante
que, de fato, assim o seja, pois como Didier Eribon (2008, p. 97) diz:
3 Na página deste grupo encontra-se a informação de que: “o Grupo E-JOVEM é uma rede de adolescentes e jovens gays
que funciona com o esforço de voluntários em todo o país.”. (GRUPO E-JOVEM. Página da web. Disponível em:
<http://www.e-jovem.com/>. Acesso em: 27 abr. 2011).
4 O Grupo Mulheres de Kêto nasceu “[...] tendo em vista a necessidade de organização de Lésbicas negras e de periferia da cidade
de São Paulo [...]”. (COMUNILES – Comunicação Lésbica. Página da web. Disponível em: <http://www.comuniles.org.br//
index.php?option=com_content&task=view&id=14&Itemid=32>. Acesso em: 27 abr. 2011). Para mais informações acerca
do Grupo Mulheres de Kêto, ver: MEDEIROS, Camila Pinheiro. Mulheres de Kêto: etnografia de uma sociedade lésbica na
periferia de São Paulo. 2006. 179 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Museu Nacional, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2006.
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Dentre o anômalo e o mais-do-mesmo, para onde caminharia o Movimento LGBT?
Estudos e Pesquisas em Gênero e Sexualidade), revela que: “[...] até o momento, não existe
no país qualquer legislação federal específica de criminalização e combate à TGBLfobia
e que, ademais, assegure proteção, direitos civis e sociais a estes segmentos.” (AVELAR;
BRITO; MELLO, 2011, p. 320). É claro que a homofobia presente em nosso Congresso
Nacional, sobretudo, a calcada no fundamentalismo religioso, tem dificultado a aprovação
e implementação de medidas que afiancem os direitos civis e sociais da população LGBT
no Brasil, além de comprometer a laicidade do Estado.
Além disso, ainda que ao longo dos anos 2000 tenham sido formulados planos
e programas, pelo Governo Federal, voltados à população LGBT, como: o Brasil Sem
Homofobia (BSH) – Programa de Combate à Violência e à Discriminação contra GLBT
e de Promoção da Cidadania Homossexual (2004); o Plano Nacional de Promoção da
Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais –
PNDCDH-LGBT (2009)5; ou o Programa Nacional de Direitos Humanos 3 – PNDH 3
(2009), que são importantes e positivos em muitos aspectos, seus efeitos, todavia, são
limitados, dado que são políticas públicas que ainda não se transformaram em efetivas
políticas de Estado, ou seja, não têm sua existência assegurada, estando “[...] à mercê da
boa vontade de governantes e das incertezas decorrentes da inexistência de marco legal
de combate à LGBTfobia e de promoção da cidadania TBGL.” (MELLO; MAROJA;
AVELAR, 2011, p. 62).
Na atual conjuntura, o acento posto pela militância LGBT nas reformas legislativas
e na ação governamental tornou o Movimento altamente dependente das vissicitudes da
política de governo. Assim, de modo estratégico, o Estado segue atendendo a algumas
das reivindicações LGBTs, mas vai limitando o avanço das pautas mais reformistas desta
militância, como, por exemplo, a alteração do registro civil após cirurgia de transge-
nitalização, a qual se encontra regulamentada pelo SUS6, ou a garantia do direito de
adoção por casais homoafetivos.
Por sua vez, a Academia, ou melhor, pesquisadores/as acadêmicos que produzem
discursos e difundem conhecimentos sobre os sujeitos do Movimento LGBT podem
contribuir, ou não, para gerar conhecimentos que representem avanços para a transforma-
ção da sociedade em relação à aceitação das pessoas que sofrem por não se enquadrarem
à grade de inteligibilidade de gênero, a qual diz que a um corpo devém um sexo, um
gênero, um desejo e uma prática sexual heterossexual (BUTLER, 2003).
De fato, aqueles que não se enquadram às normativas de gênero e sexualidade
da heterossexualidade, inevitavelmente, em algum momento de suas vidas, sofrerão
retaliações (zombarias, insultos, perseguição, violência, etc.) e poderão ser relegados ao
ostracismo. Desse modo, pessoas que não se conformam aos ideais da heteronormativi-
dade convivem com a experiência social da abjeção, que tende a marcar profundamente
suas subjetividades, principalmente no que se refere à percepção de si. Daí não ser
surpreendente que algumas pessoas LGBTs possam ser homofóbicas.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
Ultimamente muito tem sido dito e escrito acerca das manifestações homofóbicas
dirigidas aos LGBTs por parte daqueles(as) que não se enquadram neste grupo, enquanto
raramente se discute os atos homofóbicos perpetrados por sujeitos LGBTs a seus pares.
Muitas vezes, ainda que sem perceber, pessoas não-heterossexuais podem participar do
processo de inferiorização de si e de outros que lhe são semelhantes, contribuindo para
a perpetuação da homofobia. Para citar apenas alguns exemplos, temos o caso dos gays
que não veem com bons olhos as travestis, as lésbicas masculinizadas e os gays efemina-
dos ou o caso da segregação das transexuais que foram impedidas de participar do VI
Seminário Nacional de Lésbicas – SENALE7.
Mas, basicamente, o que existe é uma segregação em função das questões de sexo/
gênero, apesar de pouco difundida no discurso corrente da militância LGBT. Muitos
gays e lésbicas buscam estabelecer uma “representação positiva” de si mediante a adoção
dos constructos dos gêneros instituídos pela lógica heterossexual. Desse modo, o gay
masculinizado e a lésbica feminina são mais bem vistos e quistos do que os gays efemi-
nados, as lésbicas masculinas, as travestis e as transexuais, que transgridem as normativas
de sexo/gênero mais radicalmente.
Na minha pesquisa do mestrado (PINAFI, 2011, p. 129), um dos entrevistados,
comenta:
Tem a divisão em função dessas questões de gênero mesmo, eu acho. O
gay afeminado tem toda essa questão de que como você tem uma... Um
doutrinamento de que macho é melhor que fêmea, masculino é melhor que
feminino. Então, o gay afeminado é aquele que é pior, né? A travesti, né?
É pior. [...] Com os travestis então é pior do que com lésbicas. O gay tem
muito preconceito contra travesti ou contra gay afeminado, né? É uma coisa
muito forte. E aquilo que eu tava falando de jogar o desprezo que você tem
por si mesmo no outro acontece muito com o gay afeminado ou a travesti.
É como dizer: “- Aquilo é o que eu não quero ser, né?”. “- Aquilo é a bicha
escancarada”. (Alceste)
Quando os gays agem com preconceito contra aqueles/as que adotam uma expressão
de gênero oposta ao seu sexo biológico acabam por normatizar as relações afetivo-sexuais
não-heterossexuais, ainda que inconscientemente. E, desta forma, salvaguardam as
fronteiras binárias e hierárquicas dos gêneros do regime heterossexual.
Comprendo que desenvolver um trabalho voltado à criação de um mundo menos
homofóbico é uma responsabilidade que cabe às três instituições aqui mencionadas: o
Estado, o ativismo LGBT e à Academia. Cada uma delas, a seu modo, pode contribuir
para a construção de um mundo mais humano e menos excludente. Mas, para isso,
é importante que questionemos o pensamento antitético (normal x abjeto), o qual é
ordenador de uma tecnologia política de produção de indivíduos homofóbicos.
Os critérios de atribuição de gênero, estruturados binariamente em nossas sociedades
ocidentais, tomam o corpo como o filtro da percepção por meio do qual se estabelecem
as condições de inteligibilidade, impondo sanções àqueles/as que se extraviam do gênero
que lhes foi designado. Judith Butler (2006, p. 87, tradução nossa) adverte que:
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8 No original: Los castigos sociales que siguen a las transgresiones de género incluyen la corrección quirúrgica de las
personas intersexuales, la patologización psiquiátrica y la criminalización en diversos países – Estados Unidos entre ellos
– de las personas con “disforia de género”, el acoso a personas que problematizan el género en la calle o en el trabajo, la
discriminación en el empleo y la violencia.
9 No original: ¿Qué motiva a aquellos que se sienten impulsados a matar a alguien porque es gay, o a amenazar con matar
a alguien por ser intersexuado, o a aquellos que serían capaces de matar a alguien que ha reconocido públicamente su
condición transgénero? […] La persona que amenaza con la violencia procede desde una creencia ansiosa y rígida que
mantiene que un sentido del mundo y del yo será radicalmente socavado si se permite a tal persona no categorizable vivir
en el mundo social. La negación a través de la violencia de tal cuerpo es un vano y violento esfuerzo de restaurar el orden,
de renovar el mundo social sobre la base de un género inteligible y de rehusar el reto de repensar el mundo como algo
distinto de lo natural o lo necesario. Esto no está alejado de la amenaza de muerte o del asesinato mismo de transexuales
en diversos países, y de hombres gay que se identifican como “femeninos” o de mujeres gay que se identifican como
“masculinas”. […] Esta violencia emerge de un profundo deseo de mantener el orden del género binario natural o nece-
sario, de convertirlo en una estructura, ya sea natural, cultural o ambas, contra la cual ningún humano pueda oponerse
y seguir siendo humano.
10 No original: “[...] la vida misma requiere una serie de normas bajo las que ampararse, y que estar fuera de ellas, o vivir
fuera de ellas, equivale a cortejar a la muerte.”.
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11 No original: “Este poder que tiene la ciencia o la teoría de actuar material y realmente sobre nuestros cuerpos y mentes
no tiene nada de abstracto, aunque el discurso que produzcan sí lo sea.”.
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Dentre o anômalo e o mais-do-mesmo, para onde caminharia o Movimento LGBT?
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‘Pesquisa-aquendação’
Derivas de uma epistemologia libertina
Fernando Pocahy1
Aquenda!
Aquendar é expressão usual que se pode oferecer às significações de pegar,
fazer e dar atenção, no sentido mais erótico em que se possa conjugar o verbo e/
ou oferecer-se à fruição dos prazeres sexuais. É, ainda, significado para falar, ver,
tomar uma atitude, conhecer e experimentar – performando alguma curiosidade,
não necessariamente erótica. Essa ‘invenção’ (ou reapropriação) linguística pode
indicar uma dentre as formas de resistência presentes no que podemos denominar
como sendo o campo das minorias sexuais, especialmente ao usar e abusar da
linguagem, torcendo a língua com hibridizações etno-sexo-gênero combativas
das formas de hierarquização, violência e injúria.
Aquendar2 como expressão de uma linguagem plástica para um embate duro.
Ato performativo como confronto, disputa e reinvenção linguístico-discursiva
para reagir diante das interpelações injuriosas da heterossexualidade compulsória,
sexismo e racismo.
Sabemos que as palavras portam muito mais do que significados fixos, pois
elas produzem sentidos e (re)inventam o mundo/ mundos, agitando e sendo
agitadas pelas experiências (micro)políticas e culturais. No entanto, é preciso
perceber também a linguagem como arena da agonística que produz, define e
torna inteligível a vida e o que se denomina como humano, tanto em suas objeti-
vações quanto em suas possibilidades de (re)construir um referente para condutas
éticas – no sentido de uma margem de liberdade possível, de uma posição que
o sujeito toma diante de determinados jogos de verdade (FOUCAULT, 2001
[1984e]), diante de moralidades. A linguagem é forma de conhecer o mundo em
suas interpelações etno-sexo-generificantes e ela corporifica discursos, na mesma
potência em que se oferece como materialidade a contestações.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
Minha proposta com este texto é aquela de uma ‘aquendação’ no sentido de uma
experimentação linguística que aceita ser lambida por duas forças de significado: inven-
ção e re/posicionamento político-epistemólogica (desculpem a redundância, uma vez
que toda epistemologia é política). Proponho, neste sentindo, um pequeno escândalo
acadêmico: a ‘pesquisa-aquendação’ como posição investigativa e modo de problemati-
zação sobre as representações de corpo, gênero e sexualidade, no plano das experiências
de sociabilidade – meu interesse sobre os arquivos vivos nas/das Cidades.
Este é um ensaio discursivo-desconstrucionista. Não deseja muito. Apenas pro-
voca e desafia a implicação de pesquisadoras e pesquisadores no trabalho que envolve
práticas eróticas e sexuais. Isto é, a pesquisa em sexualidade também como processo
de subjetivação.
Cabe sublinhar, antes de prosseguir, que esta perspectiva não seria um desdobra-
mento tácito da pesquisa-ação, da pesquisa-participativa ou da pesquisa-intervenção,
mas, talvez, e por consequência e graças a esta, posição que considera o pesquisar como
instante em que algo se modifica e no qual o/a pesquisador/a produz interferências, (re)
conhecendo-se enquanto sujeito que investiga (em já sendo um agente performativo) na
posição de quem compreende a sexualidade como uma forma de conhecer o mundo,
em seus riscos discursivos e vertigens da ‘perdição de si’ – fissurando seu corpo (também
teórico) como abertura epistemológica.
Dessas derivações, ouso fazer aqui um convite: cruzar a cidade, revirá-la, escavá-la,
abraçá-la, deitar-se com ela em um jogo de homo/erotiCidade. O próprio corpo em cena
(o corpo pesquisador) é superfície de intensidades e de encontros ‘problematizadores’
– o (a) pesquisador(a) posiciona-se como um corpo-problematizador na experiência
sexo-étnico-classe-generificadas.
Com isto, rascunho meus objetivos para este texto: encontrar possibilidades de
pensar, perguntar e problematizar desde o avesso das hetero e homonormas (LOURO,
2009) e da heterossexualidade compulsória (RICH, 2001 [1980]), rastreando-resistindo
no campo minado-normatizado de algumas disciplinas que se ocupam da sexualidade,
especialmente, em nosso caso, certas Psicologias, ainda em muito obstinadas a patologizar
condutas, práticas e experiências socioculturais.
Este texto evidentemente tem um (leve) tom confrontativo. Afinal, é preciso com-
bater os fascismos cotidianos das objetificações discursivas que estabelecem as vidas
que valem a pena ser vividas e as vidas que não valem (BUTLER, 2005). Logo, trata-se
de pesquisar-combater-resistir, agenciando uma profusão de estranhamentos sobre as
formas de conhecer e, ainda, daquilo que é possível que se possa saber ou descobrir:
conhecimento entre os lençóis discursivos dos prazeres envolvendo a sexualidade e
performances de gênero, sem jamais desconsiderar interseccionalidades com outros
marcadores de identidade e diferença que operam na produção de modos de experi-
mentação e também de desigualdades sociais.
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‘Pesquisa-aquendação’
Derivas de uma epistemologia libertina
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
algumas pesquisas3 e intervenções4, que têm me servido para alguns ensaios episte-
mológicos. São movimentos (e procuro momentos críticos) por onde se ensaia des/
dizer como alguém, marcado como abjeto, desde o ponto de vista da sexualidade, da
idade e da aparência física, se move diante das tramas (de poder) que ficcionam certa
inteligibilidade generificada. Não é, portanto, nada mais que produção investigativa
em um campo de/generado.
Nada evidente, mas contundente anúncio: os princípios que definem esse modo
de operar em pesquisa seguem no rastro da perspectiva genealógica de Michel Foucault
(1995; 2004) como ferramenta conceitual importante para o trabalho de problema-
tização das condições de possibilidade e de emergência dos discursos – que se opõem
e/ou se associam nos jogos de verdade que dão contornos à relação dos sujeitos con-
sigo mesmos, no processo de sua (auto)constituição. Sigo a proposta (foucaultiana)
3 Em estudo de doutorado desenvolvi, sob a orientação da Profa. Dra. Guacira Lopes Louro, a tese “Entre vapores
e pornô-tapes: dissidências homo/eróticas nas tramas do envelhecimento” (UFRGS/2007-2011). Esta pesquisa de
doutorado em Educação analisou formas de regulação do gênero e da sexualidade em interseccionalidade com a ‘ida-
de’, onde busquei problematizar os discursos de objetificação dirigidos a homens idosos que exercem práticas homo/
eróticas. Tratei de compreender de que maneira se produzem estratégias de contestação às significações desquali-
ficantes sobre a (homo)sexualidade e o envelhecimento. A análise possibilitou compreender algumas das relações
de poder em torno das formas de regulação da vida que se interseccionam às ‘marcas’ e ‘habilidades’ do corpo, aos
discursos de racialização humana, às relações sociais abertamente tarifadas, à classe social, às representações de mas-
culinidade e à ‘orientação sexual’. Este trabalho cartográfico sinaliza que mesmo que os sujeitos implicados nestes
jogos de poder não tenham a intenção de produzir uma crítica à norma em questão, as cenas performativizadas nesses
espaços de sociabilidade nos pareceram produtivas para compreender a hetero e a homonormatividade como regimes
discursivos que trabalham na produção de uma cultura hetero/sexista e antienvelhecimento. O estudo se produziu a
partir de duas entradas de campo: a) uma sauna e videolocadora pornô frequentada por homens idosos e b) um bar
onde as relações se organizam em torno do protagonismo de homens idosos e de garotos de programa. Estes dois
contrapontos nos permitiram uma ampliação das formas de compreender as distintas e variadas formas de viver a
(homo)sexualidade nas tramas discursivas da homonormatividade, considerada neste estudo como importante dis-
positivo na reificação da velhice como uma forma de abjeção. Outra possibilidade de experimentação em pesquisa: o
trabalho de dissertação de mestrado que realizei junto ao PPG em Psicologia Social e Institucional da UFRGS, sob
a orientação do Prof. Dr. Henrique Caetano Nardi. “A pesquisa fora do armário: ensaio de uma heterotopia queer”
problematiza as experimentações da sexualidade de jovens que se autoidentificam como lésbicas, gays, travestis,
heterossexuais, bissexuais e transexuais e que aderiram a uma ação de saúde, no campo das doenças sexualmente
transmissíveis/hiv e aids. Além de seu caráter de enfrentamento à epidemia, a intervenção permitiu-nos analisar os
modos como os jovens produzem experimentações na sexualidade face à homofobia presente na sociedade brasileira.
O estudo foi orientado metodologicamente pela perspectiva da pesquisa-intervenção e os seus resultados apontam
para alguns dos limites e das possibilidades das ações de saúde junto ao público juvenil. No que se refere ao acesso
e à produção da cultura da diversidade sexual e consolidação dos direitos humanos, este estudo indicou que as ati-
vidades do grupo de jovens possibilitaram a construção de um lócus de reflexividade ética e de ocupação agonística
da Cidade, uma vez que estes jovens vivem no avesso de dois dispositivos de normalização, ou seja, da hetero e da
homonormatividade, evidenciadas na íntima relação da normalização sexual com a desigualdade econômica. Assim,
a ação buscou transformar as condições de vulnerabilidade explorando as possibilidades de deslocamento de uma
posição abjeta para a de cidadão de direitos pela via da reflexão e da ampliação das redes de sociabilidade. Este efeito
foi buscado principalmente na formulação de estratégias coletivas de enfrentamento das capturas identitárias ligadas
à estigmatização da pobreza na sua associação com as sexualidades ditas marginais. O Projeto Gurizada, Saindo do
Armário e Entrando em Cena foi realizado pela ONG nuances – grupo pela livre expressão sexual, atuante em Porto
Alegre; em cooperação com a UNESCO, o Programa Nacional de DST/AIDS e a Coordenação Estadual de DST/
AIDS da Secretaria da Saúde do RS.
4 Junto ao nuances – grupo pela livre expressão sexual, tive a oportunidade de experimentar ainda outros bons desafios
e práticas de ‘rebelião’ militante-epistemológica ou de movimentos de heterotopia: Projeto Prazer também tem preço;
Educando para a Diversidade; Centro de Referência em Direitos Humanos no combate à Homofobia; Projeto Gurizada;
Jornal do nuances, entre outras inúmeras ações políticas e em produção de saberes-transtornados (usando a ideia de
Berenice Bento sobre as práticas transtornadas). Por fim, a pesquisa de serviço, realizada com a colaboração de Manoela
Carpenedo Rodrigues (à época estagiária de pesquisa em psicologia no Centro de Referência, atualmente Mestre em
Psicologia Social) desenvolvemos a pesquisa Práticas Sexuais, Sociabilidades e Violência, entre 2008-2009, com finan-
ciamento da Seção de DST/AIDS da Secretaria Estadual da Saúde (relatório de pesquisa depositado junto à SES/RS e
publicação no prelo, revista DeSignis).
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
uma nova relação de poder. Mas é nesta disposição de uma nudez que não quer ser
castigada, por onde ela ou ele (pesquisador/a) tem a chance de pensar com o/a outro/a
os problemas de seu tempo, a partir da experiência ‘desmoralizada’ de seu próprio corpo
e da sua própria subjetividade em devir.
Cabe recuperar, antes de prosseguir, que essa perspectiva em pesquisar sobre o que
se faz/vive ou sobre o seu ethos, especialmente no campo dos estudos sobre sexualidade
(em uma perspectiva cultual), insere-se em um plano rizomático de tensões e disputas
epistemológicas que foram produzidas e se tornaram legitimamente possíveis na acade-
mia somente a partir da experiência da epidemia da AIDS. Algo que surgiu por entre
as nossas múltiplas possibilidades nos termos de fazermos uma história contemporânea
da sexualidade, definida através dos desafios político-culturais que colocaram em ques-
tionamento certas bases paradigmáticas sobre corpo, saúde e direitos humanos. Estas
circunstâncias de pesquisar algo que toca diretamente a sexualidade, exigiram, segundo
Rommel Mendes-Leite (1994) “grau de intimidade e implicação” como condições
decisivas para a análise e a intervenção.
De mesma forma, deriva das reflexões de Néstor Perlongher (1987) sobre o grau
de intimidade e intensidade do envolvimento em relação ao trabalho no terreno das
sociabilidades envolvendo a sexualidade, a ideia de que o trabalho de campo não
pode deixar de ser concebido sem a sua dimensão política. O que, de meu ponto de
vista, inclui o corpo-subjetividade do pesquisador como experiência viva-interferente-
-impertinente – pois é com seu corpo que se aproxima de alguém (de outrem), com
suas marcas corporais distancia-se, mas também aloja em uma relação, estranhando-se
– ‘queerinzando-se’. Isto possibilita uma aproximação e relação ética com outras cenas
da sexualidade e desde as relações de gênero e suas performances, que nos conduzem a
problematizações seguramente mais “realísticas” sobre as materialidades discursivas em
torno do corpo e do fazer ciência com o corpo.
Associo-me, da mesma forma, também ao pensamento de Marie-Hélène Bourcieur,
quando considera que “as disciplinas repousam na maior parte do tempo sobre con-
cepções ontológicas de homem e de mulher e elas se articulam sobre a diferença sexual
e são o produto de um regime epistêmico heterossexual” (BOURCIER, 2005, p. 29).
Assim, considerando-se as brechas epistemológicas produzidas pelos estudos e
ativismos queer, pouco a pouco se modificam as paisagens ‘científicas’ e pode-se ousar
um pouco mais na pesquisa. E desde este ‘entrevero’ político da pós-modernidade
novos modos de viver a pesquisa acadêmica vão se ‘firmando’, onde noções de ética
e implicações na pesquisa passam a ser compreendidas para além dos procedimentos
protocolares e assépticos.
Paul Rabinow (1999) expressa de forma contundente a ideia foucaultiana da ética
reflexiva da liberdade através de sua aposta em uma posição que denomina “cosmopo-
litismo crítico”:
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‘Pesquisa-aquendação’
Derivas de uma epistemologia libertina
Nesse momento se apresenta a ardida dimensão da ética como uma prática, como
a maneira como cada um deve (talvez nosso único dever) refletir sobre a forma como se
constitui a si mesmo como sujeito moral inserido em um determinado código (FOU-
CAULT, 2001 [1984b]).
O que posso dizer dessa experiência é que meus passos nesse caminho se quiseram
acertados, mas meu andar, muitas vezes, balançou na vertigem da experiência que não
pude deixar de viver com meu próprio corpo. E na tentativa de deixar o rastro indi-
cativo de uma margem mínima de liberdade, creio que posso dizer que desse trabalho
saí, em algum sentido, transformado. Procurei não deslizar na arrogância de imaginar
que poderia ter modificado ou moldado a vontade política de meus companheiros –
simplesmente porque um encontro entre um ‘universitário’ e um ‘marginal’ se produziu.
Adentrei a escuridão de labirintos de perdição e prazeres. E neles reencontrei-me
outro e com outros. Apenas a umidade do rastro líquido/vaporoso do pensamento
foucaultiano dava-me alguma certeza de onde eu estava e o que estava fazendo (de mim
e da pesquisa). Tentei, do modo mais respeitoso possível, seguir fazendo o que nos pro-
pôs Foucault: a história dos problemas de nosso tempo, pesando sempre nos riscos do
presente. E veio desse rastro molhado a coragem para enfrentar de frente, e não poucas
vezes nu, as armadilhas do dispositivo da sexualidade na pesquisa.
Aqui está um movimento que imagino tenha me possibilitado compreender minima-
mente como um conjunto de práticas discursivas faz algo entrar no jogo do verdadeiro e
do falso e, ao mesmo tempo, como se constitui este algo como objeto para o pensamento
moral ou para a reflexão ética (FOUCAULT, 2001 [1984d]). Creio que essa perspectiva
ofereceu-me condições de pensar/viver uma pesquisa marcada pela intencionalidade de
compreender como os sujeitos situados em determinados jogos de verdades, tais quais
aqueles que instituem a trama normativa entre envelhecimento e (homo)sexualidades, se
movem e contestam os significados e as identidades a si atribuídos e/ou corporificados;
movimento de pensar e viver junto – sem operar na distinção “eles”/ “nós”.
Busquei o que poderia indicar alguma tensão nas representações alinhadas à ficção
das hetero e homonormas, especialmente na sua interseccionalidade (inter)geracional
(no caso de minha pesquisa sobre homo/erotiCidade e envelhecimento) e diante das
performatividades que definem um conjunto de inteligibilidade através de normas
físicas e morais (condutas). Assim, os movimentos que se articulam no confronto entre
as práticas de reiteração das representações de masculinidade e as práticas do prazer
permitiram-me pensar que não há uma hegemonia, seja ela durável ou efêmera, que
apreenda o gênero de forma inexaurível.
Neste sentido, retomo a importância do corpo do pesquisador como experiência
não ‘turística’ nesta cena – é que estas formas generificadas de ‘fazer’ o humano en-
contram possibilidades para sua desestabilização nos jogos do prazer (mesmo que seja
quase que somente momentaneamente, na maioria das vezes). O que insinuo é que
talvez seja possível pensar em movimentos de desgenerificação do corpo – desfazer o
gênero, considerando-se a ideia de que “o gênero é o mecanismo pelo qual as noções de
masculino e de feminino são produzidas, mas ele poderia muito bem ser o dispositivo
pelo qual estes termos são desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2006, p. 59).
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
A aposta do olhar sobre o campo e desde o campo sempre foi pensar que as esca-
padas no exercício da sexualidade me permitiriam imaginar certa desestabilização das
representações de gênero. E a partir dos estudos de gênero e dos estudos queer (BUTLER,
2004, 2005a [1990],b,c, 2010; LAURETIS, 2006; LOURO, 2000, 2004; RUBIN,
1998 [1975]; SEGDWECK, 2008 [1990]; SCOTT, 2009 [1989]; BOURCIER, 2005;
PRECIADO, 2004, 2009) segui procurando possibilidades para uma implosão dos
binarismos com base nas práticas de sociabilidade e culturas eróticas.
No entanto, na busca de encontro com aquilo que poderia insinuar modos de
desestabilização das formas institucionalizadas do gênero e com as possibilidades de
experimentação da sexualidade (uso dos prazeres) não encontrei mais do que pequenas
alianças dispersas em um contexto ‘estigmatizado’. Mas, ali e acolá, pude ouvir evoca-
ções e experimentar, também desde meu corpo, alguma forma de desestabilização. O
encontro de corpos ‘ininteligíveis’, mas insistentes, vestidos com as marcas do tempo,
ou produzidos na ‘deformidade’, estiveram sempre prontos a desnudar-se, sem muitas
objeções às negociações que teriam de fazer para viver um instante de prazer.
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Derivas de uma epistemologia libertina
apontam, revelam desde o avesso das normas, o que nossas sociedades são: hierarquizantes
e totalitárias, fascistas, moralizantes. Nossos problemas não devem ser o que as pessoas
são, mas o que as impede de devir.
A destreza, a delicadeza e o cuidado são preocupações constantes no percurso desse
tipo de trabalho. Neste árduo terreno do prazer, que é ainda “deliciosamente perigoso”,
o contexto e as suas possíveis contestações do campo oferecem-se como pontos de aná-
lise na perspectiva de pensar quais seriam/foram as condições de possibilidade nestes
espaços e que tipo de perguntas puderam ser feitas desde os encontros, marcados pela
aproximação e vivência de abjeção. O que é possível ser problematizado (e perguntado)
e em que medida se dá esta autorização, dizem em muito sobre o lugar que ocupamos
nestas cenas. É necessário que pesquisemos com “simpatia”, com o sentimento de ter
estado lá e de ter escrito em companhia das vozes polifônicas. Como indica Janice
Caiafa (2007, p. 152-153):
(...)o afeto que nos permite entrar em ligação com os heterogêneos que
nos cercam, agir com eles, escrever com eles. O co-funcionamento ou
simpatia difere tanto da identificação quanto da distância, que Deleuze
(1977:67) menciona como ´duas armadilhas´. Porque a distância nos
indica ´o olhar do entendimento´, ´um olhar científico asseptizado´,
enquanto a identificação nos leva ao contágio, à confusão com o outro.
Nos dois casos perdemos a força da alteridade, a oportunidade de entrar
em composição com os heterogêneo. Perdemos o que a simpatia nos
proporciona: esse ‘corpo-a-corpo’. Deleuze observa que não há nenhum
julgamento na simpatia. Aqui não é questão de distanciar-se para com-
preender o outro, nem tampouco de tomar-se por esse outro, mas de ter
algo a ver com ele, ‘alguma coisa a agenciar com ele’.
Minha provocação final é de que façamos da pesquisa (em nosso caso nas Psicologias)
um modo problematização que escarnifique os regimes discursivos que se organizam
através da gestão da vida, controle, deciframento, incitação para o corpo dócil e útil,
da ordem e organização espacial e institucional das subjetividades - considerando que
gênero e sexualidade se articulam aqui como dispositivos nos jogos de prescrição e de
controle evidenciando pedagogias para ‘ser/parecer humano’.
Aquendando as/nas rachaduras, diante e com o que e quem escapa, ousemos pensar
outramente a sexualidade, perturbando-a e colocando-a fora do lugar central de decifra-
mento. Não há nada a ser revelado – uma vez que a materialidade é efeito dissimulado
de poder, como diria Judith Butler.
No rastro das provocações de Teresa de Lauretis (2007), em relação aos arranjos
teóricos queer, a questão se dirige então à elaboração de “outro horizonte discursivo”,
acompanhando movimentos que nos permitem viver/pensar a sexualidade do ponto de
vista de uma erótica, não de uma ciência sexual ou sobre as profundezas do ser. Seria o
caso de provocarmos em nossos estudos e pesquisas a indução política diante de efeitos
de verdades – onde se fabrica qualquer coisa que ainda não existe, como diria Foucault
(2001 [1977], p. 236): “(...) ‘ficciona(r)mos’ uma política que ainda não existe a partir
de uma verdade histórica”. A sexualidade como política de subjetivação e a ´liberação´
e profusão dos prazeres, do devir.
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5 Para usar o reverso da expressão aquendar: banir, sair, ir embora, eliminar, deixar, esquecer.
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Educação Sexual nas escolas:
um desafio ao educador e à
educação brasileira
1 Doutora em Engenharia Elétrica. Professora Assistente Doutora junto ao Departamento de Psicologia Ex-
perimental e do Trabalho da Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Campus de Assis-SP.
E-mail: carina@assis.unesp.br e/ou carondini@yahoo.com.br
2 Doutor em Psicologia Clínica, Psicólogo. Professor Doutor junto ao Departamento de Psicologia Clínica da
Universidade Estadual Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Campus de Assis-SP. E-mail: fteixeira@assis.unesp.br
3 Psicóloga e Mestre e Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Estadual
Paulista – Júlio de Mesquita Filho, Campus de Assis-SP. E-mail: liviagtoledo@gmail.com
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
Foi dentro desse contexto que, em 1974, o Conselho Federal de Educação imple-
mentou a Educação Sexual nas escolas de segundo grau, com uma abordagem centrada
em questões biológicas e médicas, sem abarcar a discussão sobre comportamentos e
valores sexuais. Dois anos depois, a Educação Sexual voltou a ser uma responsabilidade
exclusiva da família, isto é, em 1976, o governo não mais se responsabilizou pela Edu-
cação Sexual dando maior atenção a temas sociais e econômicos.
Na década de 80, entretanto, alguns fatores forçaram a mudança de uma política
de saúde pública baseada em um modelo de atenção centralizado e seletivo para um
modelo descentralizado e universal (sem que isto implicasse em uma modificação ime-
diata no ethos conservador das políticas). Dentre estes fatores, quatro merecem destaque:
1) o envelhecimento da população; 2) a “onda jovem”, isto é, aumento do volume das
faixas etárias de 10 a 24 anos em decorrência da queda da mortalidade infantil e das
taxas de fecundidade; 3) aumento das taxas de gravidez na adolescência; e 4) o avanço
da AIDS no país. Somando-se ao fim da ditadura militar, tais fatores elencados levam
novamente ao espaço escolar a temática da Educação Sexual, porém não mais de cunho
assistencialista, mas agora partindo de uma abordagem que Arilha, Unbehaum, Medrado
(1998, p. 23) denominaram de “preventivista”.
A ideia de a sexualidade ser uma questão de saúde começou a tomar consistência
jurídica e de Direitos Humanos, primeiro, em 1988, com a promulgação de uma
nova constituição no Brasil que, em seu Artigo 227, determina que cabe ao Estado, à
família e à sociedade o dever de proteger integralmente a criança e o adolescente. E,
segundo, na década de 90, com a criação e promulgação do Estatuto da Criança e do
Adolescente (E.C.A.) por força da Lei 8.069/90, que legisla com fins de assegurar à
criança e ao adolescente os direitos à sobrevivência, ao desenvolvimento, à proteção e
à participação social.
Até 1996 a formalização da Educação Sexual nas escolas era “garantida” por meio do
tópico de Educação para a Saúde exclusivamente nas áreas de Ciências e Biologia. Neste
mesmo ano, entretanto, foram elaborados e homologados os Parâmetros Curriculares
Nacionais (PCN) voltados para os ciclos básico, fundamental e médio, contendo um
tópico denominado orientação sexual4.
A partir dos PCNs, muitos projetos foram criados em níveis regionais e estaduais
para atender à exigência da inclusão de discussões sobre Educação Sexual nas escolas.
A grande inovação deste período foi a inserção do conceito e discussões sobre gênero5
como fator de vulnerabilidade à saúde sexual e física dos jovens, bem como a inserção
4 Nos PCNs, a palavra orientação sexual é utilizada como correlata de Educação Sexual para explicitar as ações desenvolvi-
das pela escola, família e/ou serviços de saúde visando a preparação de crianças e jovens para uma vida sexual prazerosa,
sadia, segura e responsável. Porém, o termo é também utilizado para designar o direcionamento (a orientação) do desejo
sexual: se voltado para o sexo oposto é chamado heterossexual; se voltado para o mesmo sexo é chamado homossexual;
e, se voltado para ambos os sexos, chamado bissexual (BRASIL, 1998).
5 O conceito de gênero está sendo empregado aqui como “um elemento constitutivo de relações sociais baseadas nas
diferenças que distinguem os sexos, e como uma forma primária de dar significado às relações de poder” (Scott, 1986
[2003], p. 289). Assim, falará dos chamados papéis ou expressões sexuais (o que se espera socialmente daqueles nascidos
biologicamente machos e fêmeas), das identidades de gênero (a atribuição de categorias relativas à masculinidade e à
feminilidade dos corpos, naturalizados, respectivamente, aos conceitos homem e mulher) e das identidades sexuais (a as-
sunção política de uma identidade social para nomear a orientação do desejo dentro do repertório disponível no contexto
no qual o indivíduo está inserido).
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Educação Sexual nas escolas: um desafio ao educador e à educação brasileira
do tema do uso indevido de drogas (ECOS, 1999). Todos estes temas passaram a ser
abordados transversalmente, isto é, recortando e abrangendo todas as disciplinas ensi-
nadas na Escola.
Tendo como eixo norteador a ética, a cidadania e os Direitos Humanos, os PCNs
situam a Educação Sexual em um novo significado: ela passa a ser um processo volta-
do a educar os envolvidos para a democracia, a partir da discussão da necessidade de
transformação das relações sociais nas suas dimensões culturais, políticas e econômicas
visando a dignidade da pessoa humana, a igualdade de direitos para todos os gêneros
sexuais, a participação e a (co)responsabilidade pela vida social. Neste sentido, a Educação
Sexual visa agora não apenas informar os envolvidos sobre os processos de Reprodução
Humana ou simples diferenças sexuais entre homens e mulheres, mas também propor
reflexões que transformem as hierarquias sociais, de gênero e de sexualidades, formadoras
de estigmas e, consequentemente, desigualdades, violências e desrespeito aos Direitos
Universais dos Seres Humanos.
6 Trata-se de projeto de pesquisa aprovado em Edital lançado em 2007 dentro do Acordo de Cooperação PN-DST/
AIDS – SVS/Ministério da Saúde/Bird/Unodc (projeto ad/bra/03/h34 - acordo de empréstimo Bird 4713-BR), o qual
o financiou. O mesmo foi desenvolvido em parceria com as seguintes instituições: ONG NEPS (Núcleo de Estudos e
Pesquisas sobre as Sexualidades), na qualidade de mantenedora, e Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades
(GEPS) vinculado ao Departamento de Psicologia Clínica da UNESP de Assis, na qualidade de executor.
7 Quatorze alunos não declararam sua sexualidade e/ou seu sexo biológico.
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Educação Sexual nas escolas: um desafio ao educador e à educação brasileira
rida8. Mas, avançando nestes estudos, observa-se que os fatores que levam um estigma
a ter um valor social positivo ou negativo não residem apenas em elementos culturais.
Em pesquisa realizada por Teixeira Filho (2000), onde se trabalhou com pessoas
nascidas com extrofia vesical9 – que em Medicina é concebida como “malformação
congênita” –, evidenciou-se que a relação que determina o valor deste estigma neste
corpo com esta condição física é justamente uma relação de poder, de dominação, de
controle e saber sobre os corpos humanos, não dependendo apenas do contexto de
uma cultura particular, de eventos históricos ou econômicos, políticos ou de situações
sociais. Outrossim, estes fatores são determinados por processos de naturalização destas
marcas que consistem em atribuir a estas valores inatos, retirando das mesmas toda a
sua potência de singularização, de individuação (TEIXEIRA-FILHO, 2000, p. 75).
Neste sentido, o estigma é uma estratégia de fabricação da desigualdade social (PA-
RKER & AGGLETON, 2001, p. 16) que só pode ser compreendida plenamente na
intersecção entre poder, cultura e diferença, que são elementos tipicamente encontrados
em sociedades normatizadas e hierarquizadas como a nossa.
A partir desta compreensão de que o estigma tem a sua força de (re)produção de
desigualdades sociais no poder e na cultura que determinam os modos como se irá lidar
com as diferenças (físicas, biológicas, genéticas, sexuais etc.) é que a Educação Sexual irá
se basear em paradigmas, isto é, em um conjunto de ideias que pautam as propostas de
trabalho, (Kuhn, 1990), que chamamos de sócio-históricas e desconstrucionistas. Tais
propostas terão como princípio a desnaturalização das relações sociais, dos conceitos e
dos mitos visando esclarecer que tudo o que existe tem uma história produzida a partir
das relações humanas.
A vantagem de se basear a Educação Sexual nesta proposta é a possibilidade de di-
minuir a exclusão de minorias sociais na medida em que se tem uma compreensão dos
fatores que produziram as desigualdades a elas impostas. Assim é que se pode dizer que
a Educação Sexual hoje trabalha a partir da ética da inclusão, da cidadania e de respeito
e cumprimento aos Direitos Humanos. A Educação Sexual na era da AIDS tornou-se
um híbrido, já que mistura elementos higienistas, pois visa informar “corretamente” as
pessoas sobre sexo, sexualidade e prevenção às DST/HIV-AIDS; elementos de heresia,
pois, para atingir seus objetivos preventivistas necessita desmistificar mitos e preconceitos
tradicionalmente veiculados pelas religiões, dogmas e políticas institucionais, bem como
elementos de militância, pois se espera, por intermédio dela, resgatar direitos fundamentais
de todo e qualquer cidadão, especialmente o direito ao prazer e ao desejo de desejar, de
singularizar-se sem que isto se torne um “caso de polícia”.
8 O conceito de contexto está sendo empregado aqui tanto como o local onde esta marca está inserida, quanto o sistema
e instituições. Assim, o contexto pode ser a cultura, a família, a comunidade de bairro, a cidade, os sistemas de saúde, as
escolas, a educação, etc.
9 O termo extrofia é derivado do grego ekstriphein, que significa “sair de dentro para fora”, ou seja, revirar-se de dentro
para fora; com o sufixo – ia, diz-se ekstriphein. A medicina classifica esta condição física como tal por conta de que, nestes
casos, a bexiga está exposta na barriga. Tal condição física tem graus, variando de malformações penianas (epispadias) até
as mais severas, que é a extrofia cloacal.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
[...] tentar entender o risco de contaminação pelo HIV entre jovens nos
remete a um composto sincretismo complexo, ou seja, nos força a entender
a sinergia e contradições inerentes ao processo de se lidar com as repre-
sentações dos riscos e perigos vividos pelos jovens, bem como aqueles aos
quais mais se sujeitam, isto é, àqueles aos quais estão mais vulneráveis.
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Educação Sexual nas escolas: um desafio ao educador e à educação brasileira
O plano individual diz respeito aos determinantes sociais que, ao longo das experiências
pessoais, fazem mudar o comportamento de uma pessoa. O plano social remete ao contexto
de existência dos indivíduos, isto é, suas condições socioeconômicas, cotidiano, aspectos
culturais que influenciam na construção de sua sexualidade (tabus, mitos, representações
sobre sexo e sexo seguro, relações de gênero). O plano institucional ou programático, por
fim, diz respeito aos investimentos políticos e públicos para garantir os direitos dos cidadãos
ao acesso às informações, à educação, aos programas de prevenção, materiais informativos,
insumos, criação de programas de assistência e prevenção (AYRES et al., 2003).
Deste modo, informar os alunos sobre as formas de risco à infecção pelo HIV, o
funcionamento das doenças e do corpo é apenas um primeiro processo. Mas o segundo
processo de problematizar o estigma, a discriminação e as relações de poder que envolvem
o HIV lançando as pessoas em graus diferenciados de vulnerabilidade é um processo
ainda complicado e difícil para a maioria dos profissionais.
brincadeira junto a meninas onde estas estejam brincando com tintas, ao interagir com
elas, pintar suas próprias unhas. Sabemos que esse modo de satisfação, em sociedades
como a nossa, geralmente não lhe é permitido por conta das regras de gênero.
O gênero é a expressão sócio-histórico-cultural de regras de comportamento que
se projetam sobre o sexo biológico. Deste modo, mesmo antes de uma criança nascer,
os pais, a sociedade, enfim, já constroem expectativas a respeito do sexo do bebê e do
que é ou não apropriado para ele: a cor das roupas, os brinquedos e a sua história de
identificação, que começa, por exemplo, com o nome a ser escolhido para esta crian-
ça. Assim, a nossa criança do exemplo acima teria, a depender da história que lhe foi
atribuída pela sua família, pela escola, etc., um pouco de dificuldade em obter prazer
pintando suas unhas junto com aquele grupo de meninas, pois dele a sociedade espera
um comportamento masculino, ou seja, um papel sexual específico na sociedade e dentro
do seio daquela família. Ser masculino ou feminino, portanto, é um atributo cultural,
variando de sociedade para sociedade, de geração a geração.
A orientação sexual nos diz do desejo e atração sexual de uma pessoa em relação
a pessoas de sexo distinto ou semelhante ao seu, consideradas todas as suas variações
corporais, etárias, étnicas, etc. Portanto, se o desejo sexual se orienta para o sexo oposto
fala-se de heterossexualidade; se para o mesmo sexo fala-se de homossexualidade; e se
para ambos os sexos fala-se de bissexualidade. A orientação sexual, portanto, atravessa a
identidade de uma pessoa, sem, contudo, se resumir a esta. Assim é que, por exemplo,
se explica o fato de uma pessoa ter experiências de práticas sexuais heterossexuais, mas
em um determinado período de sua vida decidir-se por compartilhar sua história com
alguém de mesmo sexo biológico que o seu e vice-versa. O desejo se dirige, portanto,
a um objeto e não apenas a uma prática, onde esta passa a ser apenas a via pela qual se
chega ao objeto. Por exemplo, imaginemos uma mulher que busque confiança, carinho,
amorosidade e compreensão numa relação amorosa. Pode ocorrer que ela encontre isto
em um homem ou em uma mulher. São justamente estes objetos que a atraem e não
necessariamente os órgãos e atributos sexuais de uma pessoa. Neste caso, imaginemos
que esta mulher encontre estes objetos de satisfação de seus desejos em um homem.
Assim, ela será classificada socialmente de heterossexual, já que seu encontro carnal se
efetua com alguém de sexo genital diferente do seu. Mas isto não nos dará garantia de
que seu desejo por estes objetos de satisfação só possam ser encontrados nas relações
com homens ou ainda com aquele homem em específico.
Resumindo, nossos desejos se dirigem mais às sensações, emoções, imaterialidades
e sutilezas das relações humanas e menos aos genitais das pessoas. É fundamentalmente
por isto que o ato sexual não dá garantia de gozo e prazer sexual. Há que se encontrar
no ato sexual aquilo que motiva o erotismo: os objetos invisíveis da paixão, dos sen-
timentos, dos afetos. Cada um de nós tem os seus guardados em fantasias sexuais e
projetos de vida e felicidade.
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Educação Sexual nas escolas: um desafio ao educador e à educação brasileira
tato com a diversidade da cultura humana, por exemplo, percebendo que cada criança é
diferente uma da outra, que a “mãe de fulano é diferente da do ciclano”, que o “pai do
José é diferente do pai do Mário”, que o corpo dele é diferente do corpo do amigo e/ou
da amiga, enfim, na escola é que se aprende desde pequeno a ser gente, a ser humano, a
ser “civilizado”, a entender que o mundo é vasto, muito vasto, como diria Drummond.
Trabalhar com Educação Sexual nas escolas faz com que os alunos aumentem o
seu rendimento escolar, justamente porque muitas dúvidas são sanadas e porque os
alunos passam a ter mais confiança em si mesmos, pois compreendem melhor o seu
corpo, as suas histórias de opressões e desigualdades. Vão entendendo que muitas vezes
são estigmatizados não porque “nascerem maus ou bons”, mas porque há uma história
social, há processos de estigmatização que os precedem e marcam suas condutas, suas
emoções e suas atitudes de forma desigual.
Assim, espera-se que a escola deixe de ser um espaço de confinamento e discipli-
narização autoritária para se abrir ao conhecimento que o próprio aluno traz, visando a
construção de um conhecimento coletivo e consensual que seja mais rico em experiências
para todos. Deste modo, o aluno passa a ver a escola como mais lúdica e interessante.
E tão importante quanto isto é ensinar ao aluno que a saúde não é um assunto
exclusivo da Medicina, uma “coisa” que eu tenho e delego a alguém para outrem cuidar
quando algo vai mal. A saúde não é uma mercadoria, um produto, um objeto que eu
entrego nas mãos de alguém. Ela é um aprendizado, uma construção social, cultural e
histórica e que, portanto, cada sociedade constrói suas políticas de saúde, de corpo, de
regimes desejantes e, inclusive, de adoecimentos.
A esperança, a partir deste novo paradigma, é que as escolas consigam ensinar às
crianças e adolescentes que os(as) médicos(as) devem ser nossos aliados(as), pessoas que
sabem um pouco mais do que nós sobre o corpo humano não porque a Medicina é um
“saber divino” onde os médicos seriam, por dedução lógica, “semi-deuses”, mas porque
a Medicina é o saber que se interessa por se aprofundar pela saúde um pouco mais além
daquilo que nos é necessário saber para viver de bem conosco mesmo.
Por exemplo, sabemos que existe certa resistência por parte da maioria dos homens
para irem ao médico. E não são apenas dos homens que ultrapassam a idade de 40 anos
aos quais se é recomendado o exame de próstata. Primeiro, isto ocorre porque homem
não é bicho, é animal (biologicamente falando). Segundo, porque, parafraseando Si-
mone De Beauvoir, nós nos tornamos homens e/ou mulheres e nascemos masculinos
ou femininos. Isto é, a nossa condição biológica (M/F) é apropriada pela cultura, pelo
social de modo a nos moldar dentro das concepções e crenças (geralmente baseadas em
mitos e fantasias) sobre o que é ser homem e o que é ser mulher.
Logo, os homens vão menos ao médico do que as mulheres, pois sobre eles pesa a
violenta expectativa de seu gênero que faz com que esperemos deles que sejam sempre
fortes, “guerreiros” e instransponíveis. Assim, não podem compreender, por exemplo,
como um “bichinho minúsculo e invisível” como é o vírus da AIDS, possa matá-lo,
ou literalmente, “derrubar o seu corpo que, por força do imaginário social, ele sente
como sendo um corpão”. E mais, na relação com as mulheres, o homem é educado a ser
aquele que garante a força e a segurança da mulher. Deste modo, não passa pela cabeça
de muitos homens que uma mulher, mesmo que esta possa estar contaminada com o
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
vírus da AIDS, venha a lhe “derrubar”. Assim, estes homens, aos quais pesa o “dever”
de serem mais fortes que as mulheres, não usam o preservativo na hora do prazer sexual.
Vejamos alguns dados de nossa pesquisa relativos a este tema. Quando indagamos
os/as adolescentes sobre a negociação do uso do preservativo, temos que para aqueles/
as que disseram já terem desejado usar camisinha com uma pessoa que não queria usar
(n = 316), 146 (46.2%) disseram ter usado o preservativo após entrar em entendimento
com o/a parceiro/a, sendo a maior proporção entre os heterossexuais, 135 (47.2%); 64
(20.3%) decidiram não fazer sexo – maior proporção entre os não-heterossexuais, 10
(33.3%); e 63 (19.9%) fizeram sexo com penetração e sem camisinha – maior proporção
também entre os não-heterossexuais, 7 (23.3%). O mesmo padrão foi verificado para o
recorte de sexo, sendo a primeira alternativa proporcionalmente maior entre os rapazes, 65
(48.5%), e as demais proporcionalmente maior entre as moças, 40 (22.0%) para ambas.
Na situação oposta, ou seja, entre aqueles que disseram já terem recusado usar cami-
sinha com alguém que o quisesse, 49 (49.5%) alegaram terem feito sexo com penetração e
sem camisinha (em 99 respondentes tendo uma proporção semelhante de respondentes
hetero e não-heterossexuais, 50.0%). Do restante, 28 (28.3%) foram convencido/as a
usá-la. Contexto semelhante apurou-se para o recorte de sexo, sendo as moças as que,
proporcionalmente, mais fizeram sexo com penetração e sem camisinha.
Como se pode perceber, a mulher tende a estar em desvantagem na utilização do
uso do preservativo, já que são as que mais fazem sexo com penetração sem preservativo.
Isto ocorre porque vivemos numa sociedade hierarquizada que subjuga a mulher ao
desejo dos homens, no caso, a não usar o preservativo.
Assim, em resumo, podemos dizer que os objetivos mínimos da Educação Sexual
nas escolas são: contribuir para a construção de uma autoestima positiva dos envolvidos;
informar as crianças e adolescentes de aspectos do funcionamento do corpo que possam
auxiliá-los para o desempenho de uma vida sexual cidadã; fornecer noções de autocuida-
do; desmistificar preconceitos sobre os prazeres sexuais; discutir semelhanças e diferenças
sexuais, isto é relações de gênero, visando a diminuição das desigualdades entre homens
e mulheres; marcar a originalidade e diversidade dos sexos e das orientações sexuais; e
desenvolver capacidades físicas visando o prazer que se pode ter com o próprio corpo.
Considerações Finais
No trabalho da Educação Sexual na escola, primeiro, é fundamental que a escola
como um todo (funcionários, professores, alunos e pais) discuta e reflita sobre a im-
portância deste assunto para a vida de todos, sobre a partir de qual paradigma irá se
trabalhar e quais temas deverão ser abordados (MILTON, 2001). Porém, trata-se, antes
de tudo, de decidir-se por quais temas, bem como sugerir novos, a partir da realidade
de cada escola.
A escola realizará melhor sua função de formar cidadãos para a cultura e para a
humanidade se puder entender quais são as resistências que as pessoas envolvidas no
projeto têm para lidar com este tema e puderem discutir isto abertamente.
Nenhum trabalho em Educação Sexual pode ser considerado potencialmente eficaz
se ocorrer enquanto um evento pontual, isolado ou de responsabilidade de uma única
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Educação Sexual nas escolas: um desafio ao educador e à educação brasileira
pessoa. É importante lembrar que saúde sexual é um direito do aluno e dever da escola,
portanto, necessita da participação coletiva na construção destes princípios, pontos de
vista e paradigmas.
Os melhores métodos para se trabalhar com Educação Sexual são aqueles que
priorizam a participação-reflexiva de forma interdisciplinar e transversal, que pode ser
alcançada por intermédio de estratégias como oficinas contextualizadas, isto é, que levem
em conta as demandas dos participantes. Também sugerimos que a escola desenvolva
parcerias com Organizações Governamentais (Ogs) e Não Governamentais (Ongs) e
Institutos Especializados na área de reconhecimento social, para terem consultoria nos
trabalhos e estratégias de ação. Assim, como saúde é uma conquista construída em
todos os dias de nossas vidas, este trabalho apenas poderá ser bem otimizado se ocorrer
enquanto um processo de Educação Continuada.
E, finalizando, qualquer um pode, a princípio, trabalhar com Educação Sexual,
mas é preciso estar aberto para o conhecimento do outro e de si próprio. É preciso ser
tolerante consigo mesmo, gostar de estudar e aprender coisas novas, não ter uma relação
“autoritária com o saber”, pois sexualidade é um aprendizado mutante; é preciso estar
disposto(a) a rever preconceitos, atitudes e crenças infundadas e, porque não, uma certa
dose de militância dirigida à Educação.
Os trabalhos com Educação Sexual têm produzido em nós, educadores, o resgate
de uma militância na potência da finalidade da Educação enquanto um poderoso dis-
positivo de transformação social. Um elemento que fragiliza as desigualdades sociais.
Uma militância que não tem como paradigma a lógica do mercado ou de qualquer
outro regime econômico. Trata-se de uma militância que crê que não se educa e não
se aprende apenas para se ter um emprego ou por conta de uma vocação profissional,
mas que se educa para a vida, para a cultura, para a cidadania, para a autonomia. Não
se trata, tampouco, de uma militância que segura em armas. Outrossim, trata-se de
uma militância que passeia nas sutilezas das palavras, nas delicadezas intempestivas dos
gestos, nas malícias e indiscernibilidades dos olhares, enfim, nos sentidos, nas sensações,
nas emoções e no “jogo de corpo”.
Assim, a ação do educador se faz com o cuidado com as palavras, com a precisão
cirúrgica dos gestos, da entonação da voz, das intenções dos olhares, enfim, com o
corpo, matrix da sexualidade, expressão da cultura, história de práticas e costumes,
pulsação de desejo.
Referências
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Rio de Janeiro: ABIA. Fonte: http://www.abiaids.org.br/_img/media/colecao%20cidadania%20
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lescência. Rio de Janeiro, Associação Saúde da Família/ Women’s Studies Project/ Family Health
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
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Estudos queer e práticas
singularizadoras: potencialidades
da psicologia em execução penal
1 Unesp - Assis
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
Da Prisão
Durante a Idade Média temos a sociedade organizada e caracterizada em torno de
uma lógica de produção feudal, pautada também sob uma visão de mundo teológica. A
Idade Moderna, séc. XVIII e XIX, inicia-se a partir do ideário da Revolução Francesa de
1779, empreendendo o discurso de luta por igualdade, fraternidade e liberdade, o que
culminou no surgimento da revolução industrial. Neste contexto, almeja-se o aumento
da produção para maior obtenção de lucro, visando, em torno da lógica da propriedade
privada, a acumulação de capital. Temos na Modernidade a ênfase sobre a “razão” e no
conhecimento científico, configurando uma nova visão de mundo, conhecido como
Iluminismo, período das luzes, se opondo à Idade Média, agora chamada, idade das
trevas. Com a nova organização social em torno do trabalho industrial, um panorama
social diferente começa a se configurar, com nova organização política, social e subjetiva
(OUTEIRAL, 2003).
A urgência do estado moderno, na lógica capitalista, faz com que se invistam forças
para que haja o desaparecimento das diferenças individuais no intuito de produzir indi-
víduos iguais e normatizados. É a época marcada pela construção da ideia de indivíduo,
onde o mesmo torna-se alvo e efeito privilegiado das intervenções e investimentos da
sociedade burguesa. Benevides (1994, apud Barros e Josephson, 2007, p. 441) vem nos
conceituar este momento dizendo que:
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Estudos queer e práticas singularizadoras: potencialidades da psicologia em execução penal
Para obter controle maior da população é preciso produzir indivíduos iguais, com
desejos, aspirações e temores similares, se tornando um corpo disciplinado, “útil” e
“dócil”. (FOUCAULT, 1999). Para tanto, faz-se necessária a regulamentação de práticas
disciplinares, que a todo o momento vão constituir um modo de vigilância permanente
da sociedade, visando examinar, classificar, regular e distribuir os indivíduos no espaço
social. Como diz Foucault (1999, p. 118): “É dócil um corpo que pode ser submetido,
que pode ser utilizado, que pode ser transformado e aperfeiçoado”.
Foucault (1999, p. 195) analisa que esta lógica:
(...) elabora por todo corpo social, os processos para repartir os indi-
víduos, fixá-los e distribuí-los espacialmente, classificá-los, tirar deles
o máximo de tempo, e o máximo de forças, treinar seus corpos, codi-
ficar seu comportamento contínuo, mantê-los numa visibilidade sem
lacuna, formar em torno deles um aparelho completo de observação,
registro e notações, constituir sobre eles um saber que se acumula e se
centraliza.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
Deleuze (1990) pontua que estas instituições fechadas ou instituições totais são
meios de confinamento nos quais os indivíduos não cessam de passar de um espaço
fechado a outro, numa rede de vigilância e correção.
A partir desta lógica, temos a Instituição Prisão, no qual Deleuze (1990, p. 219)
nos diz, retomando Foucault, “ser o meio de confinamento por excelência” que surge
na Europa no final do século XVIII, e princípio do século XIX, instituída no lugar da
condenação por suplícios, como um novo mecanismo para corrigir os homens.
Foucault (1999, p. 31) descreve como era este tipo de condenação regida até ser
instituída a prisão:
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Estudos queer e práticas singularizadoras: potencialidades da psicologia em execução penal
Até esta época, a história foi marcada por punições dirigidas ao corpo do condena-
do. O corpo supliciado, amputado, esquartejado, marcado simbolicamente no rosto ou
no ombro, exposto vivo ou morto, era dado como um espetáculo através de punições
físicas que serviam de exemplo e como objeto repressor. (FOUCAULT, 1999). Como
ressalta o autor:
Aos poucos, o espetáculo da punição física vai saindo de cena, partindo da nova
conjuntura do estado e do novo contexto social. O suplício passou a ser visto e colocado
no mesmo nível do crime cometido, no qual comparavam o carrasco ao criminoso:
(...) ficou a suspeita de que tal rito que dava um “fecho” ao crime man-
tinha com ele afinidades espúrias: igualando-o, ou mesmo ultrapassan-
do em selvageria, acostumando os espectadores a uma ferocidade de
que todos queriam vê-los afastados, mostrando-lhes a frequência dos
crimes, fazendo o carrasco se parecer com criminoso, os juízes aos as-
sassinos (FOUCAULT, 1999, p. 13).
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
A equipe dirigente
A partir deste contexto, temos as pessoas que irão custodiar esta população carcerária.
A equipe dirigente, um pessoal especializado, indispensável e constantemente presente
para garantir o funcionamento e a execução da pena.
As instituições totais possuem características que interferem tanto no aspecto físico
da própria instituição, quanto nos aspectos subjetivos, relacionados aos indivíduos,
institucionalizados, encarcerados ou não. Segundo Goffman (1961, p. 11):
(...) uma instituição total pode ser definida como um local de residência
e trabalho onde um grande número de indivíduos com situação seme-
lhante, separados da sociedade mais ampla por considerável período de
tempo, levam uma vida fechada e formalmente administrada.
Este espaço institucional é muito bem dividido, ocupado por dois estratos sociais
grosseiramente limitados e imobilizados, um grande grupo controlado e uma pequena
equipe de supervisores. Estes dois grupos assumem estereótipos distintos, pois enquanto
os internos tendem a sentir-se inferiores, fracos, censuráveis e culpados, a equipe dirigente
tende a sentir-se superior e correta.
As instituições totais tendem a suprimir os indivíduos que lá vivem, seja na con-
dição de encarcerados ou na condição de funcionários, ainda que de formas diferentes.
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Estudos queer e práticas singularizadoras: potencialidades da psicologia em execução penal
Entre o fazer e o dever fazer, afirma Goffman (1961, p. 69) que “esta contradição
entre o que a instituição realmente faz e aquilo que oficialmente deve dizer que faz,
constitui o contexto básico da atividade diária da equipe dirigente”. Encarregados de
manter a segurança e a disciplina nas prisões, o contexto destes funcionários é demar-
cado por um distanciamento importante entre a organização do trabalho prescrito e a
organização do trabalho real, feito.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
O primeiro encontro foi com o trabalho de Foucault, que foi matriz epistemológica
para que eu trabalhasse uma genealogia da prática psicológica da prisão como pesquisa
de mestrado. Considero-o uma marca, porque minha prática e minha vida se tornaram
outras depois dele. Para dimensionar essas modificações é preciso historiar o processo
subjetivo de construir uma “identidade” de psicóloga na prisão para se apreender a
forma como ela foi desconstruída no encontro.
Tendo iniciado as atividades como psicóloga da Penitenciária com uma formação
eminentemente clínica de orientação psicanalítica, logo no início já me encontrei com
um real para além do que os estudos e trabalhos psicanalíticos puderam me alicerçar.
Com dois meses de trabalho uma pessoa presa me disse, durante um atendimento psi-
cológico, que estavam cavando um buraco na cela onde ele estava. Perguntado sobre
o porquê estava me dizendo aquilo, respondeu que era para que alguém, além dele
mesmo, soubesse que ele não estava envolvido. Se o buraco fosse descoberto, ele teria
que assumir junto com os outros e se não, teria que assumir sozinho porque não fugiria
e então responderia pelo que os outros tinham feito. Ele não me pediu nada. O que
eu poderia fazer? Melhor, minha questão era: o que pode a Psicologia neste contexto?
Quanto de real, desconexo, violento e irracional a Psicologia aguenta?
Mesmo no desassossego momentâneo destas questões, busquei supervisão e ferra-
mentas na Psicanálise. Caminhava em uma zona de relativo conforto quando, ao ser
aceita no mestrado, o orientador me indica a obra de Michel Foucault como matriz
epistemológica e me pede para retirar todos os conceitos e ferramentas psicanalíticos
que constavam do projeto. Após o misto de raiva e susto, pude, dolorida, mas produ-
tivamente, encontrar-me com o modo como as práticas psicológicas operam na prisão;
como as práticas/dispositivos de segurança, de disciplina e de controle engendram a
produção de corpos dóceis e úteis, de subjetividades submissas, moldadas para ratificar
a hegemonia de uns em detrimento de outros. Além disso, colaboram na produção de
saberes que sutilizam o poder para dificultar as resistências. Confesso que me senti uma
“tonfa” (espécie de cassetete usado nas penitenciárias) de algodão.
Quanto ao segundo encontro, ao apresentar o Projeto durante a seleção para o
doutorado, uma pergunta iniciaria o desassossego: Poderíamos incluir as sexualidades
e gênero neste projeto? Ainda sem a menor dimensão do que seria, mas dada a desa-
fios, disse que sim. Os desdobramentos do percurso me mostraram o tamanho desta
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Estudos queer e práticas singularizadoras: potencialidades da psicologia em execução penal
Bibliografia
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Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1992.
BARROS, R. B.; JOSEPHSON, S. Lares Abrigados: dispositivo clínico-político no impasse
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GOFFMAN, I. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Ed Perspectiva, 1961.
MAMELUQUE, M. G. C. A. Subjetividade do encarcerado: um desafio para a psicologia.
Artigo: Psicologia Ciência e Profissão. 2006.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
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SOUZA, L.A.F; SABATINE, T.T.; MAGALHÃES, B.R. (org) Michel Foucault: sexualidade,
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OUTEIRAL, J. Adolescência, modernidade e pós-modernidade. In: Adolescer- Estudo revisado.
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sexo. In: SCHPUN, M.R. (org). Masculinidades. São Paulo: Boitempo Editorial; Santa Cruz
do Sul, Edunisc, 2004.
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Matéria monstra: digressões
esquizoanalíticas da Figura
Paola Zordan
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
2 Aspecto determinado que reterritorializa os códigos, num processo transcodificador que é uma espécie relativa de dester-
ritorialização, sobre as desterritorializações absolutas.
3 Ao desconstruírem as figurações que revestem o inconsciente psicanalítico (escuro, recalcado, etc), Deleuze e Guattari,
em O Anti Édipo: capitalismo e esquizofrenia, obra propulsora do que hoje se configura como a esquizoanálise, fazem
alusão a Rousseau para mostrar o não antropomorfismo da natureza e dos horrores engendrados por um inconsciente
imanente à infraestrutura dos corpos. Revertem o dito da gravura de Goya, aqui ilustrada, explicando que os monstros
não são engendrados pelo sono da razão e sim pela “racionalidade vigilante e cheia de insônias” (1996, p. 117). Cf.
Francisco de Goya, gravura em metal n.º 43 da série Los Caprichos, 1799.
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Matéria monstra: digressões esquizoanalíticas da Figura
extrair do abismo, dentro dele nada sai, do inconsciente nada se tira, mesmo que tudo
caiba dentro do buraco.
A esquizoanálise surge nesse furo, ânus solar que brilha sobre o Anti-Édipo, para
mostrar que a aporia em que a psicanálise se mete é o próprio modelo de inconsciente
que esta estruturou. Deleuze e Guattari juntam suas forças para mostrar que não há
um modelo de inconsciente, assim como não existem “conteúdos” inconscientes, muito
menos suas identificações (olho de górgona que petrifica o sujeito no “eu”). O desejo,
fluxo que move a máquina abstrata inconsciente, não tem nada a ver com a falta e com
os códigos estabelecidos pela linguagem e por isso não cabe dentro de subjetivação ne-
nhuma, a ponto de jamais ser representando. O desejo, potência ativa que não possui
nenhuma determinação, apenas passa e impele as forças em jogo, de acordo com as
voluptuosidades que lhe são próprias. Pode-se dizer que a única lei do inconsciente é a
volutiva, axioma ontológico da desterritorialização (regra da alegria, devir-imperceptível).
O desejo tem sua razão de ser no movimento, é sempre uma linha de fuga (regra nômade,
devir-impessoal) que ultrapassa a razão para brincar com a loucura, desemaranhar os
fios das ontogenias animais, vegetais, a organização molecular das pedras e dos cristais,
dos sistemas orgânicos, para seguir linhas de crianças e palhaços e criar seres de sensação
(regra da leveza, devir-indiscernível). A perspectiva esquizoanalítica pensa o inconsciente
como produção de agenciamentos desejantes que são modos de funcionamento e não
fantasmas, uma máquina criadora de dispositivos de vontade e não depósito de projeções.
Ao invés de ser a efígie impossível do “insondável”, o monstro é efeito de uma língua
“cujos traços significantes são indexados nos traços de rostidade específicos” (Deleuze;
Guattari, 2004, p. 32). Sob o rosto não visto de Deus, o monstro revoluto é o movimento
que gera conflito no espalhar das forças. Funciona como máquina produtora de tensões,
de afectos que passam a compor arranjos de força específicos, diferenciados entre si. O
monstro é sempre uma multiplicidade cheia de paradoxos. No cristianismo, a Figura
dos monstros faz gritar o apelo panteísta, enquanto a teleologia mítica atesta que, por
maior que seja a dimensão fabulosa do monstro, sua figuração é sempre a menor. É a
Figura que tem menos potência, não brilha, não goza, não tem poder. Na iconografia
e nos mitos, o monstro é sempre o elemento coadjuvante, apesar de seu enfrentamento
ser sempre o motivo principal. Animal insurrecto, a besta ou fera que dá corpo para o
monstro não ama e não é amada. Tudo isso carimbado com a crença no castigo, paga-
mento de uma dívida devida por falta de amor. Não é ídolo e só aparece na iconografia
tradicional na posição de subjugado (cobra sob os pés da Virgem, dragão na ponta da
lança de São Jorge, demônio fustigado por São Miguel).
Criação heteróclita, o monstro constitui-se a partir de elementos da natureza, os
quais inverte, paralisa, exaure ou destrói. Ao cortar o suposto curso natural de uma
matéria que se presume ordenada, o monstro tanto aprisiona quanto libera as forças da
vida e da morte. É sobre esta relação, entre diferentes naturezas ou da própria natureza
com algo diferente, artificial e antinatural, que a monstruosidade se define. Não pela
ideia de algo que está além, “sobre” a natureza, mas sim daquilo que, junto à natureza,
cria alguma coisa outra, diferente. Uma diferença sentida no estado das coisas, de modo
que o monstro sempre ocupa um corpo, mesmo que etéreo, invisível, microscópico,
fluídico, paradoxalmente incorporal. O que é incorpóreo no monstro é a discrepância
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
das grandezas e o potencial de aparição para as mais absurdas distorções que não saem do
corpo: deformação, mutilação, degenerescência. Vulnerabilidade das carnes, o monstro
é “uma forma- suspensa entre formas- que ameaça explodir toda e qualquer distinção”
(Cohen, 2000, p. 30). Como aberração da natureza ou espetáculo de violência, o
monstruoso se presta a produzir imagens da corrupção da carne e de todos os perigos
e delícias que rondam os corpos. O perigo do monstro não é a queda abissal da morte,
mas os equívocos e as incoerências do corpo e suas constantes dissoluções.
Algo acontece com os corpos divididos, multiplicados, que somam uma parte à
outra e subtraem seus pedaços. Várias cabeças, dezenas de olhos, órgãos que se repetem,
exageros de números e de partes. Corpos que se dividem e se esfacelam, degradam-se, se
decompõem. Prolífero, o corpo-monstro aparece nas coletividades incontroláveis e no
agigantamento: é sempre marcado pelo excesso. Não apenas em termos de abundância
como também de ausência, pela supressão de partes ou pela inexistência de membros:
“quem não tem braços nem pernas, como uma cobra, é um monstro”, explica Foucault
em uma de suas aulas do seminário Os anormais (2001, p. 79). A definição do mons-
tro híbrido, mistura de reinos e categorias evocada por Foucault vem de Michaux,
considerado “grande mestre do monstruoso”, na extensa pesquisa de Gilbert Lascault
sobre os monstros na arte ocidental (1973). Para os enciclopedistas do século XVIII, o
monstro é o “animal com conformação contrária à ordem da natureza ou com alguma
parte diferente daquelas que caracterizam a espécie da qual faz parte” (Lascault, 1973,
p. 56). Produção maquínica dos corpos, positividade esquizo dos fluxos desejantes, o
monstro surge na troca e no excesso de elementos, nos contágios e nas misturas, no
indiscernível do devir. Cultuado nas encruzilhadas, o monstro exprime um lugar de
encontros, de linhas que se cortam, se unem ou se bifurcam. Personagem que desenrola
um plano meio inconsistente, o monstro trata do encontro com o inesperado, com o
ato desestabilizador, violência do fora, essa experiência de um morrer que não é o fim.
Embora apareça com certa discrição nos monumentos da arte, difuso no meio dos
elementos da decoração, o monstro figura uma regra ontológica do seu funcionamento
artista: enfrentar a ameaça, o outro, o esquisito, neutralizar seu potencial destrutivo,
dominar a matéria. Não é feita a arte, tal qual o monstro, de loucas combinações entre
corpos cujos aspectos e ações desorganizam as organizações? Como a arte, o monstro
é matéria, substância infinita desterritorializante e desterritorializada, afirmação de
uma força que ignora as leis da razão, mesmo quando cria regras para modular suas
sensações. Independente da finalidade para a qual um monstro é criado, sua Figura
funciona sempre como dispositivo doutrinário. A função pedagógica do monstro não
é apenas ensinar a moral dicotômica pregada pela Igreja, mas principalmente fornecer
amostragens da arte mesma que delira sobre os aportes que a lenda lhe dá. Exercícios
das virtudes divinas bem ao gosto do povo, os monstros animam as criações grotescas
da arte “sem educação”, dos bárbaros construtores de catedrais. Isto não apenas no
gótico, mas em todos os estilos de monumentos, sob os quais o paganismo geme e se
faz exumar. Qualquer arte que crie seres de sensação com devires-animalescos, Figuras
infernais e fabulosas que arrancam suas faces superficiais para fazer gritar a mistura de
concavidades e calombos em jogo nos volumes dos corpos. Mesmo gigante um monstro
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Matéria monstra: digressões esquizoanalíticas da Figura
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
nos organismos em que ela pressupõe estar. Há algo horrível nesse tipo de morte. Uma
alma que subvive sobre o pretexto de glórias e feitos que também envolvem lástimas e
culpas por uma falta pecaminosa original. O problema volta para o buraco, no encer-
ramento do desejo num “eu” idiota, que “pensa” que pensa, conservando suas feições
num pretenso monumento. A piada é que o processo sublimatório, capaz de erguer os
verdadeiros monumentos de uma arte e de uma vida, só se dá no descarte desse “eu”.
Perder o nome, provar o caos, sair do ser e entrar em devir, processo desterritorializador
de própria vida que se faz arte, que ergue monumentos para conservar as potências in-
corporais da matéria e nunca para perpetuar as afecções e percepções de um indivíduo.
O perigo não é se deixar engolfar pelo dragão, acordar dentro da cova, ser esquecido,
afinal o desejo só consegue mesmo se atualizar quando corre para a boca do inferno. O
risco é ser paralisado pela rostidade, “anjo da morte, santo sudário” (Deleuze; Guattari,
2004, p. 33), que prende as sensações nas sombras e espectros da limitada percepção
ótica do real. Não há figura ou paisagem que não corra o risco de sepultar a perspectiva
em um efeito que impede o pensamento de fugir dos termos bidimensionais com a
qual costuma operar: figura/fundo, eu/isso, sujeito/objeto, negativo/positivo, falso/
verdadeiro. Sempre em fuga, a sensação é o afecto do espaço háptico, tridimensional,
onde a complexidade do corpo não se reduz à visão de um rosto e as paisagens jamais
podem ser encerradas numa feição.
Acabar no buraco não é o perigo, mas antes uma maneira de se proteger e se
conservar, que é um dos modos de funcionamento do inconsciente. Cavar um buraco
é a maneira mais simples de experimentar os afectos da realidade tridimensional. O
buraco é a toca, o lugar privilegiado para a semente, o germe ou o ovo, zeroidade cuja
potência se abre ao infinito. O problema não é o buraco, mas a estratificação do sistema
de superfície onde ele aparece. “As organizações de formas, as formações de sujeito” que
seguram o desejo dentro do buraco, “tornam o desejo ‘impotente’(...) o submetem à lei,
(...) introduzem nele a falta” (Deleuze;Parnet, 1998, p. 112), drama que já cansamos de
conhecer. A única espécie de falta possível com a qual o desejo se depara é a ausência
de pontos de fugas que funcionem para alargar seus horizontes. De qualquer modo,
mesmo dentro do oco da tumba escura o desejo foge e desterritorializa. O desejo não
precisa contrapor-se a nenhuma ordem para se afirmar, bastam os devires do corpo
para que dê seguimento a seu curso. Esquecer a cara apavorante do desejo, enregelado
na palavra de ordem ou clichê representacional, implica desmontar o rosto, estrato de
significação e subjetividade, para experimentar o devir.
Os devires são os afectos do corpo. O corpo existe como ponto de vista que define
a paisagem, imagem que o corpo faz sobre si mesmo, paisagem das forças junto às quais
o corpo se dobra. Os olhares recaem no corpo “ imagem-invólucro que encerra a rude
presença da carne”, mantos que o cobrem com uma outra pele (Tuchermann, 1999, p.
151). Superfície das sensações, pele virtual com a qual todo o corpo se reveste. Pele da
paisagem. Pele da arte, essa operação “horrível e esplêndida” de abrir o corpo na pai-
sagem e fazer do corpo a paisagem. A paisagem é a figura de um devir, ser de sensação
que envolve multiplicidades, séries, repetições filogenéticas, variedades expressas na
matéria, profusão de tipos, relações de vizinhança e multidões. Superfície contraída, a
figura nem bem se forma para ir se desenvolver e estirar. Cobertos com o sentido que
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Matéria monstra: digressões esquizoanalíticas da Figura
rola na superfície, os corpos atravessam “envelopes de Pele” (Doel; Rose, 2001, p. 84-
185), a “envoltura de pele” (Domènech; Tirado; Gómez, 2001, p. 122) as superfícies da
linguagem e as sedimentações do organismo para experimentar os devires mais loucos e
inumanos da matéria. O problema começa quando um corpo começa a se estratificar,
obsedado numa paisagem clichê ou endurecido na estátua de uma persona. O corpo perde
suas múltiplas dimensões para se sobrecodificar nas máquinas binárias das identidades:
homem/mulher, docente/discente, heterossexual/homossexual. O corpo perde-se no
rosto. É a cara no muro, a codificação do corpo em números e dados, datas combinadas
num continuum espaço-temporal: vida de indivíduo expressa em coordenadas, relações
entre termos variáveis, medidas extensas, conquista de graus. Mas há alguma coisa em
uma vida que as expressões do indivíduo formado jamais conseguem precisar. São os
devires que faz passar, os povos que a animam, as composições entre os corpos, a criação
de afectos desterritorializadores. Todas essas forças que, quando se exprimem num só
corpo, compõem também uma vida individual. Uma vida, sempre imensurável.
Sob as feições de um povo urgem agenciamentos tribais que funcionam polifonica-
mente num corpo coletivo de múltiplos devires, que são sua vida. São fluxos animalescos
e inumanos que deixam passar os devires menores e processam desterritorilizações no
possível rosto molar pelo qual um povo se permite representar. Para desmanchar o rosto,
é preciso fazer passar o corpo, suas cavidades e volumes, pelos buracos da superfície.
Como as Figuras das telas de Bacon, o corpo funciona como ponta de escape, linha de
fuga expressa por um buraco, por gritos, seringas, um órgão que funciona como prótese,
sombra, cortinas, traços animais. O corpo se compõe como figura, massa de cor inde-
terminada, volumosa, incorporada ao fundo com o qual também contrasta. Corpo em
ato. Não um corpo causado, ordenador, formal, formado, órgão ou organismo, mas peça
móbil no jogo de forças das artes e de outros devires da matéria não-natural, pedaços de
carne, destroços. A natureza do corpo é desterritorializar o organismo, estranhar a matéria,
infringir possibilidades, alterar movimentos e atirar o caos na carne. Deleuze explica que
o “corpo não é questão de objetos parciais, mas de velocidades diferenciais” (Deleuze;
Guattari, 2004, p. 37), forças moleculares, não imagens molares fantasmagóricas. Mesmo
que os corpos definam na matéria uma multiplicidade de Figuras, produções de espaços
interiores e exterioridades, o interior do corpo é indeterminado no espaço (Bergson, 1999,
p. 63). O corpo é o estado atual do devir, o ponto de encontro onde se experimenta as
sensações e a máquina sensório-motora executa os movimentos (idem, p. 162). Exposto
à ação “das causas exteriores que ameaçam desagregá-lo”(Bergson, 1999, p. 57), o corpo
desterritorializa sua própria natureza sobrecodificado nos territórios. Não pertence mais
à natureza de uma terra, mas à emblemática de uma pátria. O emblema é sempre o rosto,
a efígie posta como cara de um sistema de representação. Um território representado se
fecha numa cara, careta apavorante do bicho-papão estatal. Mesmo os territórios mais
sobrecodificados, aparelhos de Estado e complexos imperiais, têm suas feições desman-
chadas e distorcidas, mudam de cara, perdem seus rostos. Para Deleuze, a sociedade se
caracteriza exatamente por esse escape, essa facilidade de cair no buraco. A lei é sempre
a do corpo e até mesmo os estratos binários da rostidade acabam se desestratificando, as
faces se avolumam em cabeças, as cabeças de desenvolvem nos troncos; toda a estrutura
dos corpos se subsume a partes menores que se desterritorializam nos mais estranhos
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
elementos: alimento, paus, pedras, armas, instrumentos, enfeites, jóias, dinheiro. O corpo
localizável, codificado em coordenadas, representado por números, nomes, emblemas e
bandeiras não tem devires, apenas extensão (apesar de algumas marcas que o localizam
pertencerem ao virtual). Esse tipo de corpo maquínico extensivo surge com a ocupação
territorial e as projeturas daquilo que da Terra emana e dela pode se aproveitar. O corpo
estatal se desenvolve para guardar os tesouros, controlar as minas, tampar os buracos,
fechar os túmulos, formar a carne e acondicionar os corpos no cumprimento de suas
funções. Toda política funciona como agenciamento de corpos nos espaços. A política
dos aparelhos de Estado é sobrecodificar o corpo no rosto e reduzir o rosto no buraco,
boca faminta ou grito de cobrança, desterritorializar o desejo em Lei, instituir deveres,
tributos para o Tesouro engolidor, do qual todos os corpos são depositários. Corpo/buraco
são dois termos de desterritorialização, artifícios maquínicos “pelos quais um elemento,
ele mesmo desterritorializado, serve de territorialidade nova a outro que também perdeu
a sua” (Deleuze; Guattari, 2004, p. 41).
Alheios ao buraco, os corpos se embatem nas conquistas da superfície, povos se
chocam, bandos e exércitos destroem-se uns aos outros e definem seus territórios com
máquinas potencialmente destrutivas. O monstro é a razão irracional da luta, uma
medição de forças violenta, potencialmente fatal, do domínio de terra extensa compu-
tada por riquezas. Do exército romano, estrategicamente armado para formar um só
corpo de destruição, até as ogivas nucleares, a ameaça bélica se atualiza na Figura de um
monstro: corpo explosivo, corpo de morte, corpo de misérias. O monstro é, ao mesmo
tempo, o olho de Deus, o rosto dos tiranos, a cara dos invasores e o corpo do Juízo
Final. Fedendo a enxofre, feito de ferro e chumbo, os devires do monstro são marciais
e saturninos. Marte, deus sanguinário e violento da guerra, e o exilado Saturno, titã
devorador culpado da castração, planetas cujas influências se acreditavam maléficas.
Para os gnósticos, cuja doutrina propagou o pensamento platônico que fundamenta as
linhas do cristianismo, Saturno era “o deus ‘maldito’que criou o tempo e o espaço”, e
que em nada se difere da “serpente que guarda o paraíso”(Roob, 1997, p. 38). Antideus
sinistro que nos aprisiona na carne desprezível e martiriza os corpos na encruzilhada do
tempo no espaço do mundo terreno. O corpo vira, então, uma superfície penitente, sem
virtudes, sem potências, inferior, degradante e perigosa. Matéria destinada ao abismo,
atirada no buraco, exílio de Titãs.
Uma perspectiva agnóstica pega a lenda e todo seu potencial didático para mostrar
outros tipos de lição. Saturno é o marcador da Terra, o criador do horizonte feito na
separação de Urano e Géia, cujos corpos em ebulição existiam num único abraço. O
corte não pode ser só a barreira da castração, mas a linha abstrata, crivo no caos que é
a condição para toda a arte e para todo pensamento. A força de Saturno é o manejo da
foice e a marcação do cultivo. O jogo titânico que instaura são as experiências primiti-
vas da metalurgia e da agricultura, técnicas que desenvolveram a civilização. Enroscada
numa árvore, a serpente ensina o segredo do vinho a Dioniso, que realiza sua mágica
junto com Réia, a consorte de Saturno. Assim como a foice corta a árvore para fazer
com ela utensílios e ferramentas, a Serpente é a figura que dá a possibilidade dos frutos
desembocarem noutros devires. Videira, uvas, sumo, vinho, transe: infinitas potências
em aberto. Devir-cultivo, devir-colheita, devir-folguedo, devir-embriaguez. A serpente,
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
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Moraes Varela e Manuel Maria Carvalho. Lisboa: Assírio e Alvim, 1996.
DELEUZE; GUATTARI, O que é a filosofia? São Paulo: Ed. 34,1992.
DELEUZE;GUATTARI. Mil Platôs, v. 3. São Paulo: Ed. 34, 2004.
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humanos: nos rastros do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
DOMÈNECH, TIRADO e GÓMEZ. A dobra: psicologia e subjetivação. _In: TADEU da
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Matéria monstra: digressões esquizoanalíticas da Figura
ROSE, Nikolas. Inventando nossos eus. In: TADEU da Silva. Nunca fomos humanos: nos rastros
do sujeito. Belo Horizonte: Autêntica, 2001.
TUCHERMAN. Breve história do corpo e seus monstros. Lisboa: Passagens, 1999.
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Vapores etnografados:
dos desejos de clientes,
michês e pesquisador
Resumo: Kulick e Willson (1995) apontam uma questão importante para os pesqui-
sadores dos estudos LGBTT e Queer. Os autores trazem à tona a subjetividade dos que
pesquisam práticas e sexualidades resistentes, das margens. Em seu questionamento, os
autores fazem algumas perguntas: como adotar ou não práticas homoeróticas em suas
vidas pessoais teria interferência direta no resultado obtido? Braz (2009; 2010), em sua
pesquisa com clubes de sexo e Diaz-Benítez (2009), com sua pesquisa sobre a produção
pornográfica no Brasil, fazem esta discussão. Ambos nos dizem que é ainda bastante
incipiente dentro do campo de pesquisas LGBTT e Queer trabalhos que tragam discus-
sões mais amplas sobre este ponto. Pocahy (2011), como Braz e Diaz-Benítez, aponta
para o corpo do pesquisador como local de resistência e produção de subjetividades
quando estamos frente a frente com práticas sexuais tidas como transgressoras. Em
outras palavras, é o próprio pesquisador que surge como mais um ponto a ser discu-
tido e pesquisado e não, como sugerem cânones de pesquisas positivistas, um “objeto
neutro” e “isento” que detém algum poder sobre o pesquisado. Presenciar a gravação
de cenas de sexo explícito para a produção pornográfica (Diaz- Benítez, 2009), ou ter
que comparecer apenas de meias e, algumas vezes, apenas de cuecas em clubes de sexo
(Braz, 2010), expõe e denuncia o corpo, a presença e a subjetividade do pesquisador,
mas não como uma pessoa detentora de uma suposta verdade que irá surgir a partir
de uma análise supostamente “fria” e “distante” colhida por este, mas como alguém
que, efetivamente, participa da cena. Em minha pesquisa para o doutorado, apesar de
inicialmente estar distante do objetivo da pesquisa presenciar cenas de sexo entre os
frequentadores das saunas de michês, deparei-me com espaços em que ocorre a prática
sexual e que não poderiam, simplesmente, serem deixados de lado. Espaços como as
saunas propriamente ditas, a seca e a vapor, as salas que passam filmes pornográficos
gays e heteros, e os banheiros eram locais fortemente frequentados por clientes e mi-
chês e também onde muitas relações afetivas e/ou sexuais se desenvolviam e que foram
importantes para esta pesquisa. Com exceção dos banheiros, mesmo ao pesquisador foi
vedada a entrada de roupas, pois se eu quisesse ir a estes locais teria de ir de cuecas ou
de toalha. Bem distante de uma “epistemologia do ver”, como pode parecer a alguns,
este texto trata de uma etnografia, a mais completa possível, ou uma “descrição densa”,
nos termos de Geertz (1989), das saunas de michês em São Paulo. Seu ponto central é
a discussão da subjetividade do pesquisador e as relações de poder que se estabelecem
entre este e seus pesquisados durante o andamento da pesquisa.
Palavras-Chave: Homoerotismo, Subjetividade, Desejo, Michê, Poder
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
2 Michês, boys, garotos de programa se equivalem e serão utilizados neste artigo como equivalentes. No Brasil, estes ra-
pazes trocam sexo por dinheiro com homens, sendo raros os que também se prostituem com mulheres. Durante toda a
minha estada no campo, nenhum deles declarou se prostituir com mulheres. Para uma definição ampla do termo michê:
ver Perlongher (2008).
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Vapores etnografados: dos desejos de clientes, michês e pesquisador
um tecido repleto de significados a ser interpretado e isto exige uma “etnografia densa”,
ou seja, apontar o que significa o que para grupos culturais distantes; é Rabinow (2009)
quem traz para a cena a subjetividade do pesquisador. Para este autor, o próprio pesqui-
sador também merece ser interpretado. Em outras palavras, temos de nos questionar
constantemente sobre os significados do campo e de sua influência sobre nós e nossas
pesquisas. Com Rabinow (2007, p. 5), digo que:
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
O desejo do pesquisador
Voltando às roupas que usava durante a pesquisa, passados três meses em campo,
descobri através de Marcelo, um de meus colaboradores principais, que os garotos difi-
cilmente falariam, e por diversas razões. Alguns me viam como “uma penosa6”, outros
eram casados e tinham filhos, tinham medo de que fossem identificados por suas esposas,
enfim, as razões eram várias. Ao longo da pesquisa de campo, amigos de outros tempos
também se afastavam de mim pelas mesmas razões dos rapazes, ou seja, pensavam que
minha posição como pesquisador evitaria o pagamento pelo programa. Em uma frase:
as roupas me afastavam de meus colaboradores.
No entanto, surgiu outro ponto importante durante a pesquisa: nas saunas o acesso
aos banheiros, salas de vídeo e dark-room é terminantemente proibido de roupas. Muitas
4 A Apolo também possuía um dark- room, quarto escuro utilizado para a prática sexual com parceiros desconhecidos,
quando iniciei a pesquisa, mas resolveu fechar porque, segundo seu gerente: “os garotos iam lá pra puxar fumo e isso não
pode”.
5 “Brincadeirinha” ou “brincadeira” são termos utilizados pelo michê para indicar práticas sexuais que vão desde a mastur-
bação mútua, passando pelo sexo oral. Dificilmente se refere à prática sexual com penetração por um dos parceiros, mas
ocasionalmente pode remeter a este tipo de prática.
6 “Penosa” é um termo utilizado pelos michês para designar clientes com pouco poder aquisitivo e que tentam ter um
programa de graça. Assim, minha posição de pesquisador era encarada por eles como falsa, como uma artimanha para
conseguir um programa gratuito. É bom lembrar aqui que a posição de pesquisador, posta em dúvida por eles, servia
mais como uma barreira do que como uma aproximação.
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Vapores etnografados: dos desejos de clientes, michês e pesquisador
relações entre clientes e boys, boys e boys, clientes e clientes se passavam nestes espaços. Os
espaços de uso comum serviam para a sociabilidade e para acertos de programas entre
garotos e clientes, tendo pouco a dizer em termos destas relações. Assim, me perguntei:
De roupas ou de toalha? Uma etnografia difícil.
Acabei optando por fazer a pesquisa etnográfica alternando algumas vezes de toa-
lhas, usando uma sunga e uma toalha que cobria esta sunga e outras tantas com jeans,
camiseta e tênis. É importante destacar que tal mudança junto com uma espera minha
para me situar como pesquisador acabou por favorecer a pesquisa. Os boys, vendo-me
de toalha, passaram a me encarar como um cliente qualquer da sauna. Sentavam-se à
mesa onde eu estava e começavam a entabular uma conversa. Eu deixava a conversa
fluir, até que vinha a tradicional cantada do garoto. Neste ponto eu interrompia a fala e
me posicionava como pesquisador e perguntava ao boy se ele não gostaria de participar
da pesquisa. Assim obtive 24 entrevistas gravadas, vários depoimentos dados na mesa,
isto porque alguns garotos optaram por não gravarem entrevistas. Os clientes passaram
a me ver de outro modo e também colaboraram prontamente com a pesquisa.
Nas palavras de Braz (2010) eu “estava vestido de antropólogo”. E mais, era o meu
corpo exposto e posto à prova. Sim, posto à prova como algo que pudesse ou deveria
resistir ao desejo. Enfrentei talvez o pior inimigo do etnógrafo: ele próprio. Quem sou
eu: pesquisador ou cliente? Muitas vezes estas perguntas trespassaram minha mente.
Meu corpo estava inteiro na pesquisa e, parafraseando Pocahy (2009), à deriva, corpo
e mente à deriva. A este respeito, falo junto com Pocahy (2009,1):
7 A palavra Queer, segundo Miskolci (2009), é antiga nos Estados Unidos e é utilizada para denominar de maneira pejo-
rativa e ofensiva. É um xingamento que significa “anormal”, “perverso”, “viado”, “bicha”, etc.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
Teoria Queer, fortemente influenciada por Derrida, mostra que o que está aparentemente
“fora”, “nas margens” de um sistema, é também o que constitui este sistema como tal.
Em outras palavras, e seguindo Butler (2003,2005), são, por exemplo, os corpos con-
siderados abjetos, estranhos que acabam por confirmar os corpos do centro, que, por
assim dizer, os legitimam. Para Miskolci (2009,152)
Mas, para mim, a roupa tampouco, pois era apenas um invólucro de algodão e
lycra que cobria o meu corpo, sendo um padrão em termos de se fazer pesquisa, mas
também o que me distanciava de meu colaborador. De maneira simbólica a roupa me
“confirmava” como pesquisador. Mas ela se tornava um impedimento para uma pesquisa
mais complexa. Estabelecia-se um paradoxo.
Perlongher (2008[1993],2), em um texto que discute a “autoridade” do antropólogo
e o “outro” “exótico”, aponta para um dos pontos centrais da etnografia: o conhecimento
do outro. Sempre diferente de nós, este outro muitas vezes surge como algo “exótico”,
algo a ser descoberto. E, claro, a autoridade do etnógrafo é quem vai “desvendar” este
outro. Partimos de nossas concepções, conceitos e preconceitos para descobrir o exótico,
o que é diferente de nós. Mas, afinal, quem é este outro? O que pode ser chamado de
“autoridade do etnógrafo”? Quem confere tal “autoridade” ao pesquisador? No meu
caso, o “outro”, “estranho”, ao ambiente era eu. O autor nos fala:
O meu “outro” não era um nativo polinésio, mas amigos e garotos de programa,
todos ansiosos para colocar em prática seus desejos, fosse pelo dinheiro ou pelo corpo do
cliente, ou pelo corpo do garoto. Neste momento em que escrevo, não penso em outros
mesmo para parafrasear Perlongher, mas penso no papel do etnógrafo, do pesquisador de
campo, diante de seus colaboradores em pesquisas que envolvem práticas sexuais e sua
observação direta. Mais especialmente ainda, quando a pesquisa é feita em ambientes
supostamente conhecidos, que de alguma maneira nos rodeiam e, por que não dizê-lo,
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Vapores etnografados: dos desejos de clientes, michês e pesquisador
fazem parte de nossas fantasias? No que penso? Penso nas relações intersubjetivas entre
pesquisador e pesquisados.
Crapanzano (2005) discute um importante elemento quando estamos em campo:
a “sombra”, algo que “quebra” a “objetividade” que tentamos ter quando estamos em
nossa pesquisa. Algo que “sombreia nossa visão”, “algo que procuramos afastar” de nós
como algo que estaria fora do contexto da pesquisa, tida como “objetiva”. Neste ponto,
Crapanzano nos fala sobre a subjetividade e a intersubjetividade quando estamos em
campo. O subjetivo, algo que não devia estar ali, mas está. Sobre a subjetividade e seu
elemento essencial para o campo e pesquisa Crapanzano (2005,359) afirma:
Devo acrescentar, apesar de não poder aqui prosseguir com minha ar-
gumentação, que a subjetividade, de quanto possa parecer minha, é
essencialmente intersubjetiva, tanto em um modo mediado pela lin-
guagem, por exemplo, quanto imediatamente, por meio de encontros
reais e imaginados com figuras significativas cercadas de sombras. Para
mim, ao menos, a cena é aquela aparência, a forma ou refração da situa-
ção “objetiva” em que nos encontramos, colorindo-a ou nuançando-a e,
com isso, tornando-a diferente daquilo que sabemos que ela é quando
nos damos ao trabalho de sobre ela pensar objetivamente.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
8 É bastante difícil, segundo meus colaboradores, encontrarmos michês que sejam apenas “ativos” ou “passivos”. Como
disse Marcelo, boy, 20 anos: “A gente começa só fazendo ‘ativo’, mas vai se tornando conhecido, a grana acaba e então
tem que se fazer ‘passivo’ também”. Eu diria que não é apenas o mercado que os leva para diferentes posições no ato
sexual, mas também a preferência do michê em ser “ativo” ou “passivo”, como é o caso Lucas, que opta por ser “passivo”
porque gosta.
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Vapores etnografados: dos desejos de clientes, michês e pesquisador
A palavra sair nestes espaços assume vários significados, que vão desde efetivamente
sair para um programa como teatro ou cinema até ir apenas ao privê da sauna com
o cliente. Conforme declarou Lucas, boy, 20 anos, quando um cliente “seu” sai com
outro michê sem lhe avisar ou “perguntar se pode”, ele fica bastante bravo e é capaz de
“terminar com o cliente, pois isso é traição”. Esta situação traz a figura do namorado
do michê. Muitos garotos me apresentaram para clientes dizendo se tratar de seus “na-
morados”. Deste modo, a circulação nas saunas de algumas palavras como “ter”, “ser”,
“fixo” e “namorar” tornam-se atos performativos da linguagem, ou seja, eles fazem o ato.
Nos termos de Austin (1975):
Deste modo, “namorar” com um cliente é “possuir e controlar” a vida deste clien-
te, ou “namorar” com um michê é também, para o cliente, “possuir e controlar” este
michê.cliente. Em se tratando dos clientes, a situação pode se tornar explosiva, pois o
combustível que alimenta estas relações, que as media de maneira forte, é o dinheiro.
O cliente fixo deste michê irá, ou tentará lhe dar,roupas, celulares, pagará seu aluguel e,
em algumas vezes, um carro é o presente. Deste modo, o cliente “compra” o boy com os
presentes e não deixa faltar nada para este garoto. O sentimento de traição pode incen-
diar esta situação. Regras de espaços altamente hierarquizados e regulados pelo poder.
Concluindo...
Respondendo as perguntas feitas acima, manter relações sexuais com os boys ou com
clientes em nada melhoraria meu texto, minha pesquisa. Ao contrário, os dados seriam
bem provavelmente enviesados. Outro ponto são as relações de poder mencionadas
acima. Estaria usando uma posição de destaque e de claro poder para obter os dados
necessários. A posição do pesquisador que, teoricamente, sabe mais que os “nativos”,
pois é ele que, com sua “autoridade” etnográfica, está lá para descrevê-los.
Outro ponto é o poder do boy. Para o garoto, o que importa é seduzir o cliente,
torná-lo fixo. Quais garantias eu teria de que eles estavam falando o que sentiam e o
que era importante para eles? Nenhuma. Todas as falas poderiam ter o sentido de me
seduzir como cliente. Neste momento, lembro-me de uma frase de Marcos em suas
várias falas: “Elcio, o que o garoto quer é o dinheiro, se tiver que mentir, que minta”.
Não concordo com Bolton (1995) de que o fato de ser homossexual me aproxima
mais de meus informantes, de que tal aproximação leva a uma maior confidencialidade
e intimidade. Este raciocínio é, sugiro, essencialista. Ou seja, “ser” homossexual ou he-
terossexual contém algum substrato comum que nos liga em uma espécie de irmandade.
Assim, para Bolton (1995), a identificação seria a base da pesquisa. Não devemos nos
esquecer de que nos primeiros momentos da segunda onda do feminismo as mulheres
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
fizeram várias e, digam-se, justas críticas sobre o campo antropológico ser androcêntrico.
Naquele momento, apenas mulheres saberiam falar de mulheres. Logo descobriram que
a categoria mulher não é algo fechado e acabado. Nesse movimento do feminismo, logo
ficou claro que as mulheres que falavam por todas as mulheres eram brancas, de classe
média e heterossexuais. Descobriu-se que mulheres lésbicas e negras com condição
socioeconômica inferior não tinham voz. (Lewin e Leap, 1996).
Para este autor, o sujeito está sempre em composição, nunca é completo, sempre
falta algo, é fluido, contingente, nos termos de Butler (1998). Sua identidade não se
completa. Supor que identificações podem facilitar o campo de pesquisa é, de antemão,
partirmos com um a priori, inclusive político.
A toalha serviu para me incluir no grupo, tornar-me parte dos que frequentam as
saunas. Porém, não para me aproximar e praticar sexo com qualquer uma das partes.
Serviu para poder entender as relações que se estabelecem entre michês, por exemplo.
Explico: muitos rapazes namoram entre si, mas quando seus clientes “namorados” estão
na sauna, os rapazes se mantêm afastados uns dos outros. Seu encontro se dará nas saunas,
algumas vezes porque o cliente- namorado irá levar um dos rapazes para um programa
mais longo, como uma viagem, ou ainda porque este cliente é ciumento e não gostaria
de saber que divide um boy com outro boy. Aliás, ouvi inúmeras vezes que os michês
ficavam mais entre eles do que com clientes, o que é uma constante preocupação das
gerências das casas. Quando subimos às salas de vídeo, notamos que, de fato, os michês
têm prolongados beijos e, às vezes, relações sexuais completas.
Enfim, para concluir, diria que usar ou não uma toalha pode ser uma estratégia de
pesquisa, mas é também um ato reflexivo e que nos remete à ética dentro do campo.
Em outras palavras, o que queremos com nossas pesquisas? Buscarmos novos parceiros
ou aprofundarmos o nosso conhecimento sobre as sexualidades divergentes? A resposta
é de cada um.
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Quando a violência se torna vergonha:
a expressão da homofobia interiorizada
em narrativas sobre o homoerotismo
entre mulheres
Lívia Gonsalves Toledo1
Orientador: Prof. Dr. Fernando Silva Teixeira Filho2
Homofobia
Em sua conceituação inicial, o termo homofobia podia ser entendido como
um medo (fobia), uma repulsa irracional, inclusive o ódio, por gays e lésbicas
(BORRILLO, 2001). Porém, a homofobia, mais que um traço individual, mais
que uma emoção, possui uma dimensão cultural (a recusa da homossexualidade
enquanto fenômeno psicológico e social) (BORRILLO, 2001). Por isso, Borrillo
1 Doutoranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista – UNESP/
Assis-SP. Membro do GEPS – Grupo de Estudos e Pesquisas sobre as Sexualidades (Unesp, Assis-SP), cadas-
trado junto ao Diretório de Grupos de Pesquisa do CNPq
2 Professor Assistente Doutor junto ao Departamento de Psicologia Clínica, Unesp de Assis e ao Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Unesp, Assis.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
(2001, p. 22) propôs que, na conceituação deste termo, fosse levado em conta, sobretudo,
todo o “conjunto de atos, sentimentos e pensamentos negativos sobre a homossexua-
lidade a nível social, moral, jurídico e/ou antropológico.”. Assim, a homofobia é um
princípio ideológico, um sistema de crenças e valores, formado por discursos e práticas
discursivas inteligíveis para o sistema heteronormativo que legitimam, inferiorizam,
discriminam, violentam e criam vulnerabilidades no plano individual, social e insti-
tucional às pessoas que configuram suas existências de modos não compatíveis com o
referencial da “sexualidade regular” (FOUCAULT, 1988), ou seja, heteronormativo.
Aí, incluem-se lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, transgêneros, intersexos,
e qualquer pessoa dissidente das normativas de gênero determinadas para cada um dos
sexos macho e fêmea, hegemônicas centradas na heterossexualidade.
Segundo Borrillo (2001) e Junqueira (2007), a homofobia tem sua construção
não apenas na compulsoriedade heterossexual do desejo, mas também na desigualdade
entre os sexos e gêneros. Ou seja, não se restringe às pessoas ditas homossexuais, mas a
todas as pessoas que não se encaixam rigidamente nas normas socialmente estabelecidas
para o sistema de organização heterossexual da sociedade. Assim, a homofobia pode
significar formas específicas de exclusão e violência contra as pessoas que assumem ou
são suspeitas de assumir uma orientação sexual diferente da heterossexual, assim como
identidades e performances de gênero e sexuais diferentes da norma “macho, então
masculino, então homem” e “fêmea, então feminina, então mulher”. Borrillo (2001,
p. 16) complementa que:
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Quando a violência se torna vergonha: a expressão da homofobia interiorizada
em narrativas sobre o homoerotismo entre mulheres
Homofobia “interiorizada”
A partir da instituição da heterossexualidade compulsória, todas as pessoas, salvo
raríssimas exceções, nascem, crescem, são educadas e aprendem a ser heterossexuais e re-
jeitar a homossexualidade e a dissidência de gênero heteronormativo. De acordo com Rich
(1980/1986), heterossexualidade compulsória é uma organização social-sexual, mantida pela
dominação masculina, que pressiona, força e obriga, de forma violenta ou subliminar, todas
as pessoas a tornarem-se heterossexuais. Esta instituição se concentra nos muitos tipos de
intensa pressão que a sociedade exerce sobre as pessoas para garantir que a heterossexualidade
se torne destino. E uma das formas de controlar e impor a heterossexualidade é rebater com
todas as forças a homossexualidade, estigmatizando, invisibilizando, excluindo, agredindo e
produzindo modos de subjetivação homofóbicos pautados em sentimentos como aversão,
nojo, medo e ódio sobre tudo o que foge à normativa heterossexual.
No processo de produção da identidade sexual e de gênero, a obrigatoriedade de
ser heterossexual e de corresponder aos padrões de gênero determinados para seu sexo
começa a gestar fortes implicações subjetivas no sujeito. Segundo o psicólogo López
[2000?], para um bem-estar psicológico e emocional é preciso que a pessoa possa estar
consciente de sua orientação sexual (seja esta homo, bi ou heterossexual), aceitá-la e
integrá-la à identidade pessoal integral e poder manifestá-la ao seu entorno.
Assim, aquelas pessoas que começam a perceber-se com desejos, atrações e senti-
mentos diferentes daqueles programados, e que são delas esperados, passam por um
difícil processo normatizador de captura pelos processos homogeneizantes homofóbicos,
pois já cristalizam em seus modos de subjetivação qualidades (em sua grande maioria
negativas) que escutam e veem sobre aquilo que estão começando a sentir e perceber
em si mesmas. López [2000?] descreve esse processo:
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
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Quando a violência se torna vergonha: a expressão da homofobia interiorizada
em narrativas sobre o homoerotismo entre mulheres
3 De acordo com o CID 10 - F66.1 , a chamada “Orientação sexual egodistônica” diz respeito aos aspectos do pensamento,
dos impulsos, atitudes, comportamentos e sentimentos que contrariam e perturbam a própria pessoa. Assim, caracteriza-
se quando a pessoa tem uma orientação sexual ou atração que está em desacordo com a própria imagem idealizada de si
mesmo, causando ansiedade e um desejo de mudar de orientação ou tornar-se mais confortável em relação a sua orientação
sexual. A crítica que não se faz disso é que a ansiedade e desejo de mudança não é relacionada ao sujeito homossexual, mas
ao social homofóbico que o envolve.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
Não é à toa que muitas procuram terapia psicológica, ou outros modelos terapêuticos,
sentindo-se inadequadas em relação à sua orientação sexual. Importante sobre isto é
lembrar que tais sentimentos não provém da homossexualidade, mas da homofobia
expressa a seu redor.
Além destes sentimentos, e sem querer colocá-los como de menor importância,
é em especial o sentimento de vergonha que levaremos aqui em conta, pois é um dos
elementos principais que faz com que gays e lésbicas se sujeitem às violências perpetradas
pela homofobia, não reivindiquem seus direitos e se sobrepujem às regras sociais devido
à ação da homofobia “interiorizada”.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
4 Os autores deixam claro que, embora seu estudo sugira que a internalização da homofobia seja um fonte significante de
problemas de relação entre indivíduos não-heterossexuais, eles levam em conta que existe ainda um espectro cheio de
fatores que pode afetar a qualidade de suas relações (como níveis de compromisso discrepantes, desaprovação da família
e amigos, e outros estressores), os quais eles não puderam avaliar naquele estudo.
5 Mohr, J. J., & Fassinger, R. E. (2006). Sexual orientation identity and romantic relationship quality in
same-sex couples. Personality and Social Psychology Bulletin, 32(8), 1085-1099.
6 Minha tradução do inglês.
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Quando a violência se torna vergonha: a expressão da homofobia interiorizada
em narrativas sobre o homoerotismo entre mulheres
sexo com vários/as parceiros/as. É preciso ser um tanto cínico para achar que heteros-
sexuais não têm as mesmas ações e desejos, não se tratando de uma característica da
homossexualidade. Contudo, nestes modos de vivência das relações entre homossexuais,
parcela disto pode estar na ação da homofobia “interiorizada”.
Finalmente, há também outros processos especialmente inconscientes de prejuízo
que homossexuais causam a si mesmos, movidos pela “interiorização” da homofobia.
Alguns autores (FORST & MEYER, 2009; LOPEZ [2000?] e WILLIAMSON, 2000)
chamam de “estresse de minoria” um sentimento que afeta os que sofrem de homofobia
“interiorizada” de modo a comprometer algumas dimensões de sua saúde física e mental,
o que aumenta a probabilidade de desenvolvimento de alguns transtornos psicológicos
e emocionais. Forst e Meyer (2009) dizem que o estresse de minoria exige das pessoas
que compõem a minoria mudanças na forma de se comportar e requer adaptação em
um ambiente social inóspito – onde é preciso constantemente avaliar se o ambiente
é ameaçador, trabalhar expectativas de rejeição, encobrimento da orientação sexual e
esforços para se contrapor ao estigma. Segundo os autores, o estresse de minoria, por-
tanto, produz diferenças essenciais na vida de pessoas homossexuais comparativamente
com as pessoas heterossexuais. E os autores reafirmam que:
López ([2000?], p. 4) diz que “parece ser que os transtornos de ansiedade, de estado
de ânimo e o abuso de drogas se relacionam em muitos casos com fatores sociais [...]” e
que “pesquisas têm demonstrado o aumento da vulnerabilidade para desenvolver trans-
tornos de estado de ânimo e de ansiedade e talvez maiores proporções de transtornos
psicológicos [...]” entre homossexuais. Não é que os homossexuais tenham, por sua
orientação sexual, a predisposição a transtornos mentais, mas que os estressores sociais
causados pela homofobia produzem mais chances de traços de distúrbios surgirem nos
sujeitos homossexuais que vivem sob pressão social, familiar, institucional, etc. da ho-
mofobia, pois os homossexuais sofrem altos níveis de imprevisibilidade e níveis elevados
de estresse na vida cotidiana. López ([2000?], p. 5) diz que, “também por isso, as lésbicas
têm maiores riscos de desenvolver dependência a álcool que outras mulheres, enquanto
os homens gays têm mais prevalência de transtornos de ansiedade que os heterossexuais.”.
Castañeda (2007) fala que uma emoção disparada pela violência que é frequente-
mente reprimida pelas pessoas que se relacionam com outras do mesmo sexo é a cólera,
pois elas são objeto de agressões contínuas muitas vezes já em idades bem prematuras.
As gozações, piadas, etiquetas e humilhações relativamente constantes e conscientes às
quais são expostas no cotidiano por conta da homofobia obviamente que as afeta, sem
7 Russell, G. M., & Bohan, J. S. (2006). The case of internalized homophobia: Theory and/as practice. Theory & Psycho-
logy, 16, 343–366.
8 Minha tradução do inglês.
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levar em conta as violências verbais, psicológicas ou mesmo físicas de que são vítimas.
“A pergunta a ser feita não é a de saber se tudo isso as afeta ou não – pois é evidente
que sim –, mas a de saber o que fazem com a cólera que normalmente deveriam sentir”
(CASTAÑEDA, 2007, p. 149), e com todos os outros sentimentos despertados pela
ação da homofobia, como a tristeza, a revolta, a indignação, a ansiedade, a insegurança
e o desamparo. Segundo pesquisas, a implementação desses sentimentos pode produzir
atitudes autodestrutivas. Temos com exemplo mais crítico a tentativa de suicídio, que
é extremamente alta entre adolescentes e jovens homossexuais. Hersch, (19919 apud
SANDERS, 1994) diz que jovens gays e lésbicas estão três vezes mais propensos a tentar
o suicídio que os jovens heterossexuais, e até 30% de todos os suicídios que ocorrem
na adolescência podem estar relacionados com questões de identidade sexual – ou
seja, a homofobia sobre as identidades dissidentes da heteronormatividade. Entre as
participantes, uma delas achava que “devia morrer” quando tomou ciência de sua ho-
mossexualidade, achando-se uma aberração; outras duas tiveram o claro pensamento de
suicídio devido às dificuldades encontradas nas relações com a família quando reveladas
suas dissidências da heterossexualidade.
No Brasil, em estudo empreendido com mais de 2 mil adolescentes de escolas pú-
blicas da região do Oeste Paulista em 2009 pelo Dr. Fernando Teixeira Filho e a Dra.
Carina Marretto, do Departamento de Psicologia da Unesp de Assis-SP, “encontrou-
-se que os não-heteros têm ‘aproximadamente’ 2 vezes mais chances de pensarem em
suicídio e 3 vezes mais chances de tentarem se matar comparativamente aos heteros.”10.
Para Cooklin e Barnes (1994), os comportamentos autodestrutivos desempenhados
por homossexuais poderiam advir de uma tentativa de implementação de vida. Também
vemos exemplos desses comportamentos autodestrutivos entre duas participantes pela
forte opressão que sentiram especialmente dos pais assim que eles souberam de sua
homossexualidade. Baixa autoestima afetada, isolamento dos amigos e da família, fuga
de casa passando necessidades, consumo de muita bebida alcoólica e tabaco, desejo de
morte e pensamentos suicidas foram alguns dos modos como elas enfrentaram a rejeição,
discriminação e violências de suas famílias. Todas essas formas de lidar com a homofobia
acarretavam em prejuízos à sua saúde física, emocional e mental.
Segundo os autores, esses comportamentos irresponsáveis com a vida podem
demonstrar “uma tentativa, embora incompetente e distorcida, de criar maior flexibi-
lidade ou causalidade em um sistema rígido, sem um desafio direto à ordem social.”
(COOKLIN & BARNES, 1994, p. 293). Esses sistemas rígidos, nos quais os sujeitos
estão inseridos, podem estar na família, nas relações no trabalho, na igreja, em um
contexto baseado em fundamentalismos morais e religiosos homofóbicos; ou mesmo
na vivência da homossexualidade pautada em rígidas normativas heterossexuais.
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Conclusão
Como sabemos, López [2000?] fala que não é a homossexualidade em si mesma que
causa sofrimento à pessoa homossexual nem aos demais, mas os pensamentos, os estigmas
e a violência interiorizados sobre a homossexualidade. “Seguindo este argumento, é fácil
compreender que se o significado que tem para uma pessoa o fato de ser lésbica, gay,
bissexual ou transexual é negativo, aumentará seu sofrimento.” (López [2000?], p. 1).
López ([2000?], p. 8) sugere que a luta contra a homofobia e as mudanças sociais
comecem pelos próprios homossexuais, “para que se ouça a voz do oprimido, evitando
a vitimização como única ferramenta de pressão, e sim utilizando os direitos humanos
como objetivo desejável por todas as sociedades democráticas.”. Nascimento (2007)
propõe a ressignificação da experiência da homossexualidade, sugerindo que ao invés de
vergonha gay, significar o orgulho gay, que visa “antes de mais nada uma (re)apropriação
da identidade homossexual que reverteria o estigma em orgulho, tanto privado quanto
público, reivindicando sua identidade de maneira a desbancar o discurso heterossexista.”
(NASCIMENTO, 2007, p. 68-69). Assim, “a construção do processo identificatório
de gays e lésbicas, tanto no plano pessoal quanto coletivo (política), atua de maneira a
resistir ao abuso dos mecanismos de controle mencionados e pensar em novos estilos
de vida.” (NASCIMENTO, 2007, p. 68).
Além de toda a ação da homofobia que vivenciam em diversos âmbitos da vida
(família, escola, grupos religiosos, no trabalho, etc.), a homofobia “interiorizada” aparece
como outro elemento que potencializa as vulnerabilidades da população LGBT a partir
de todos os sentimentos que proporciona aos dissidentes da heteronormatividade e as
ações negativas movidas por eles com base nesses sentimentos. Uma análise propriamente
política da homofobia converge, deste modo, para a crítica dessa ordem social heteronor-
mativa de modo a produzir saúde psicológica, mental e física a todos os atingidos por ela.
Sabemos que ninguém escapa à “interiorização” da homofobia. Do mesmo modo
como a orientação sexual não se escolhe, ser homofóbico também não é uma escolha, mas
um efeito discursivo. E, seja em pessoas homossexuais, bissexuais ou em heterossexuais,
é com a informação e com a experiência em relação à homossexualidade (por exemplo,
conhecendo homossexuais ou vivenciando a homossexualidade, com as experiências
de vida, com novos encontros, com o atravessamento e despertar de novos desejos)
sob diversos aspectos é que é possível retirar a homossexualidade da invisibilidade e
desconstruir estigmas e processos de exclusão, visualizando-a como uma possibilidade
plural da sexualidade humana, tal como é a heterossexualidade. Contudo, se mesmo
com informação não há mudança, há uma escolha.
Schulman [2009 ou 2010] levanta uma problematização muito interessante em
uma entrevista sobre seu livro sobre homofobia familiar “Ties That Bind: Familial
homophobia and its consequences”11, no qual ela discute o conceito de homofobia. Ela
diz que, longe de ser uma fobia, a homofobia é um sistema de prazer. Segundo ela, as
pessoas profundamente homofóbicas não transparecem o medo em suas faces quando
estão exercendo a homofobia, mas estão desfrutando de seu poder. A palavra fobia
11 Schulman, Sara.Ties That Bind: Familial homophobia and its consequences, New Press, New York, 2009.
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SEÇÃO II – Queering e as Práticas “Psis”
constrói a ideia que o homofóbico está ameaçado, porém é o oposto que ocorre. Ele
está em pleno gozo de sua suposta superioridade.
A “fobia” que podemos considerar aqui não é a “fobia” da pessoa homossexual, mas a
“fobia” de ser homossexual, a fobia do homossexual em nós, de pertencer a um modo de
existência que sofre discriminação e violências constantes e a perda do status de manter
privilégios e se pretender superior.
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