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Eça de Queiroz: Agitador no Brasil
Eça de Queiroz: Agitador no Brasil
Eça de Queiroz: Agitador no Brasil
E-book446 páginas8 horas

Eça de Queiroz: Agitador no Brasil

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Sobre este e-book

Resgata o sentimento libertário do final do século 19, ao abordar a última rebelião em Goiana, província de Pernambuco. Paulo Cavalcanti examina a maneira como os pernambucanos reagiram contra o arbítrio e o domínio português, e seu relato aborda o momento crucial de 1871, marcado por crises políticas e pela grande insatisfação com o monopólio português do comércio, que se manteve inalterado, mesmo depois de vários movimentos revoltosos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de jun. de 2015
ISBN9788578582852
Eça de Queiroz: Agitador no Brasil

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    Eça de Queiroz - Paulo Cavalcanti

    Relato da Rebelião

    Aconcepção da obra, a força da escrita, amplia a visão da última rebelião em Goiana, Província de Pernambuco, e a dimensão e compreensão das revoluções e insurreições liberais no Estado no século XIX, resulta num relato inovador na forma, numa ruptura com o linear e a rigidez dos critérios de cronologia; e um avanço no conteúdo, no enfoque das causas políticas, econômicas e sociais que marcaram as reações ao arbítrio e ao domínio português no império.

    Nesse sentido, esta obra de Paulo Cavalcanti – Eça de Queiroz, agitador no Brasil –, publicada em 1945, reflete a sua coerência como escritor, a sua crença de que a história é sempre contemporânea, atual. Daí a missão de contar a história do movimento nativista, das lutas políticas de Pernambuco e do Brasil como um instante de civismo, mas também com uma página saborosa de irreverência e humor.

    Além disso, questionar o gênero das classes dominantes, seus escribas, que objetivam sacralizar sua ideologia, vestindo-a de roupagens espetaculosas, na calhorda atitude de reservar para si tudo que aconteceu no passado – das campanhas libertárias à consolidação da nacionalidade, passando pela Abolição e pela República. Ou como diriam Rubim de Aquino e Fernando Vieira, em Sociedade Brasileira – Uma história (Record, 1999), um esforço de reconstrução do passado, com o estudo das múltiplas revoluções populares, de resistência à opressão, inseridas no contexto dos interesses políticos e econômicos e no plano da história econômica e cultural.

    Assim, o relato começa com a abordagem da situação política em 1871, da crise no império, da reação aos gabinetes, e da omissão do governo diante dos anseios de abolição da escravatura, das reformas eleitoral e judiciária. Mais: da insatisfação com a dominação portuguesa, o monopólio do comércio, que não se alterou depois das revoluções de 1817, 1824 – Confederação do Equador –, 1848 (Revolução Praieira), as rebeliões de 1821 e 1823 e as agitações de 1831 e 1832.

    Naquela fase, a situação política e econômica favorecia a inquietação em Goiana, na época uma cidade próspera, e tinha reflexos também no Recife. Então surge o periódico As Farpas, de Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, com críticas ironizando Dom Pedro II. O imperador estava na Europa, mantendo contatos com escritores, autoridades, e os editores de As Farpas transformaram a sua excursão num grotesco espetáculo de circo, caricaturando tudo que o monarca fizera, ou dissera, como primeiro viajante de sua pátria. Os jornais de Goiana e Recife reproduziam os textos de Eça e Ortigão e, nessa marcha, cresceu a polêmica, a discórdia, com os pernambucanos usando a publicação como arma política.

    A velha Província, que contribuiu para avanços visando à soberania do país, voltou a ser o foco das agitações, predominando sobre o resto do país. E novamente o maldito vapor pernambucano passou a liderar as reações ao monopólio do comércio, ao domínio econômico dos lusos, mobilizando segmentos da intelectualidade, das lideranças populares, desencantadas com a concentração da propriedade, a situação da maioria, sobretudo no campo, onde o pobre era rendeiro, agregado, camarada, ou que quer que seja, e então a sua sorte é quase a de um antigo servo da gleba conforme constata em 1871 o presidente da Província, Diogo Velho Cavalcanti de Albuquerque.

    As críticas e sátiras de Eça de Queiroz, reproduzidas em Goiana e Recife, animavam os pernambucanos, os amarelos de Goiana, e irritavam os galegos. Até aí tudo bem, mas Eça de Queiroz e Ramalho Ortigão, irritados com o uso indevido de seus textos, passam também a ironizar os brasileiros, monarquistas ou republicanos, com sátiras e alusões insultuosas. A polêmica se amplia, aumenta a animosidade entre galegos e amarelos, surge o jornal A Crise, editado por José Soares Pinto Correia Junior.

    O periodista ironiza Eça e Ortigão, e também o rei dom Luís I, de Portugal. Na mesma fase surge As Frechas, numa linha de combate aos portugueses, que só ensinaram aos brasileiros a prostituição, o adultério, a poligamia, ou coisa pior o fabrico de moeda falsa, certas maneiras de escrituração dos livros comerciais para quebrar-se dolosa e falsamente".

    Nesse clima, a polêmica em Goiana descambou para ataques e insultos: Marinheiro/ pé chumbo/ Calcanhar de frigideira/ Quem te deu a ousadia de casar com brasileira. Os galegos reagiam: Pra que secretos misteres/ Patriota brasileiro/ Dais a filha pra mulher/ Ao burro do marinheiro. E vinha a resposta: Sempre viva a Independência/ E perpétua a luta seja/ Que o domínio português/ Nesta terra não se veja. E o contra-ataque: Se não tememos brejeiros/ Do país grandes guerreiros/ Temos balas, armas pólvora/ Cagamos nos brasileiros.

    Era julho de 1872 e crescia a exaltação de ânimos. Em jornais, panfletos, praças públicas, comícios, portugueses e pernambucanos, galegos e amarelos trocam acusações, enquanto surge um complicador, A Questão Religiosa, que iria gerar agitações e desordens no Recife. Nos debates, a participação de Aprígio Guimarães, Franklin Távora, José Mariano, Joaquim Nabuco, Tobias Barreto, que discorda das reações de Goiana contra os portugueses, e os jornalistas Pinto Correia e Romualdo de Oliveira, fundador do Comércio a Retalho.

    Nesse clima de agitação, na noite de 31 de julho de 1872, os amarelos de Goiana tentaram surrar um comerciante português. A agressão foi impedida, mas no dia seguinte começou a rebelião, o mata-mata marinheiro, com os portugueses sendo surrados com cacetes feitos de quiri e cipó-pau.

    A cidade ficou em desordem, o comércio paralisado – era quase totalmente controlado pelos lusos –, situação que perdurou até seis de agosto daquele ano. Após o controle da situação, os participantes do movimento foram processados, mas a reação dos pernambucanos impediu que fossem punidos em 1875. No período, Eça de Queiroz foi acusado de influenciar a discórdia, a agitação, mas reagiu com indignação:

    Portanto, além da influência das Farpas, há outra coisa. Há... que entre portugueses e pernambucanos sempre tem havido desordens regulares e esporádicas; há que o comércio de Pernambuco está nas mãos e nos cofres dos portugueses que, mais ativos ou mais inteligentes, arrancaram dos cofres e das mãos dos pernambucanos; há que Pernambuco não suporta esta colônia que se apossa, pela superioridade da riqueza do país, enquanto os naturais caem em subserviência.

    No curso da narrativa, Paulo Cavalcanti elogia e faz reparos ao estilo de Eça de Queiroz, também criticado por Machado de Assis, mas destaca a influência que exerceu sobre os escritores brasileiros. E vai além ao enfocar o papel da imprensa, dos jornais que circulavam em Recife e Goiana, e da efervescência política e cultural marcante na cidade, que passou a ser punida economicamente no final daquele século.

    Num estilo leve, agradável, os capítulos deste Eça de Queiroz, agitador no Brasil, podem ser lidos como relatos que se interligam, sem a mesmice da linearidade, da técnica de sequência rígida. No final, Paulo Cavalcanti destaca um desabafo de Eça de Queiroz ao saber da herança deixada por um brasileiro para intelectuais: Os únicos escritores que receberam anonimamente alguma coisa por meio de correio, fomos nós, Ramalho Ortigão e eu, quando redigíamos ambos As Farpas: recebíamos muito regularmente do Brasil – promessa de bordoadas.

    Nagib Jorge Neto

    Paulo Cavalcanti

    entre a literatura e a história social

    Se, para o jurista e – na assertiva do poeta Mauro Mota – bom crítico literário pernambucano Luiz Pandolfi tenho sido, na Sociedade Eça de Queiroz, do Recife, o mais fiel dos discípulos ecianos do presidente-fundador Paulo Cavalcanti; não estranha que, em parte por isso, me encontre no pórtico desta edição de Eça de Queiroz – agitador no Brasil. Conhecemo-nos ainda no meu tempo de estudante, nas tertúlias literárias dos sábados, na casa de Olímpio Vaz da Costa Júnior, o famoso Costinha da Biblioteca, na Rua Teles Júnior, no Rosarinho. Como Gláucio Veiga e Pedro Camelo, Paulo Cavalcanti – do alto de sua experiência política e sábia maturidade – era frequentador desses encontros. Ali, entre outras estórias do Recife, soube da tentativa de editar-se em Pernambuco, em 1958 – e sob esse ângulo de resgate histórico, a atual edição, com a marca vitoriosa do governo Eduardo Campos, não deixa de ser uma reparação intelectual do Estado –, o livro que, no ano anterior, recebera o Prêmio Joaquim Nabuco, da Academia Pernambucana de Letras, a vista de parecer de Nilo Pereira (relator), Costa Porto e Mário Melo. Insuspeita comissão de notáveis. A frustrada tentativa da edição pernambucana ter-se-ia dado nos serões da casa de Jordão Emerenciano – que funcionava como prolongamento de seu gabinete de secretário do Palácio do Campo das Princesas – em presença de ninguém menos que Gilberto Freyre que já tratara de Eça de Queiroz em Casa-Grande & Senzala. Escrevera, também, um substancioso prefácio para uma seleção de As Farpas, de Eça e Ramalho Ortigão, que organizou em 1942.

    Em 1959 o livro saiu pela Companhia Editora Nacional, de São Paulo, integrando a monumental coleção Brasiliana, volume 311 – guardo o exemplar nº 372 –, iniciando a bela trajetória editorial da qual a presente tem tudo para ser definitiva. Quer o caráter internacionalizante que lhe empresta – na incomum edição bilíngue – a boa tradução de Sílvio Rolim; quer a qualidade gráfica dos trabalhos da Cepe. De 1966, pela mesma Companhia Editora Nacional, Brasiliana (novo formato e mesmo número), é a segunda edição que comprova e consagra a obra maior – porque de crítica literária e história social – de Paulo Cavalcanti. Mas Portugal – como depuseram Ernesto Guerra da Cal, especialista responsável pelo mais extraordinário levantamento biobibliográfico de Eça; João Gaspar Simões, cujo nome dispensa apresentação aos ecianos dos dois lados do Atlântico, e o romancista Ferreira de Castro que, de sua Oliveira de Azeméis (pano de fundo do eciano A Capital), se abrasileirou pela A Selva – quis o livro em seu português nativo e castiço e deu-nos, pela LBL, o Agitador já, então, relacionado entre os clássicos do tema. Em 1983, pela Editora Guararapes, Pernambuco redimiu-se do pecado original, mesmo não tendo conseguido distribuir comercialmente os mil exemplares contratados. O zelo da família compensou, no entanto, o novo deslize democratizando o acesso ao livro em encontros da Sociedade Eça de Queiroz e de estudantes universitários de literatura.

    Vêm de longe os amores de Paulo por Eça e sua circunstância. Assim é que, por ocasião do centenário de nascimento do grande escritor, participou de concurso organizado pela Diretoria de Comunicação e Cultura da Prefeitura do Recife, com o ensaio Eça de Queiroz, o revolucionário, classificando-se em quarto lugar, e impondo-se como cultor maior do criador de João da Ega e tantos outros personagens inigualáveis do romance de matriz lusíada. Este e os demais trabalhos classificados foram publicados no livro Eça de Queiroz – Documentário de uma Comemoração, Prefeitura Municipal do Recife, 1947.

    O livro que, outra vez, se apresenta ao público – agora, também, da expressão universal de Shakespeare – e à crítica literária que lhe tem sido pródiga, no Brasil como em Portugal e, até, na antiga Tchecoslováquia, resgata documentos históricos únicos para a bibliografia de Eça de Queiroz, sobretudo pela perspectiva da abordagem: o impacto da recepção literária de um jovem escritor português no Brasil do terceiro quartel do século XIX, através de uma cidade interiorana de Pernambuco. Quando chega o romancista de O Crime do Padre Amaro e O Primo Basílio, Eça já não era desconhecido de nossa gente. Muitos se lembravam da agitação que suAs Farpas de 1872 provocaram em Goiana.

    Paulo Cavalcanti esgotou o tema e a pesquisa até então inéditos e projetou, internacionalmente, para a difícil biografia do pobre (grande) homem da Póvoa de Varzim, nova luz sobre a infância vilacondense do menino da Rua da Costa, como àquele se referia o saudoso jornalista Celso Pontes; embaixador de Pernambuco em Vila do Conde, grande amigo de Paulo Cavalcanti e deste cronista, quantas vezes recebidos em sua hospitaleira casa. Em seu Ramalhete da Avenida João Canavarro, onde pontificava com a largueza do velho Afonso da Maia. Sob o ângulo estudado por Cavalcanti, o grande resgate é o da madrinha e ama-de-leite de Eça, a pernambucana Ana Joaquina Leal de Barros, cujas lembranças embalaram-lhe o remoto sonho brasileiro do consulado na Bahia, e cuja fala lhe adoçou o sotaque de simpáticos personagens da vasta e inesquecível galeria.

    Por outro lado, o livro representa a mais completa pesquisa de história social da velha e indômita cidade de Goiana, segunda maior da Província de Pernambuco à época dos acontecimentos que conflagraram nativos e lusitanos, responsáveis – os dois – pelo extraordinário desenvolvimento da terra e, por razões mais políticas que literárias, pelas lutas de 1872. Para situar Eça no contexto histórico-social goianense o autor logrou realizar ampla pesquisa de documentos inéditos, para cuja interpretação empregou recursos de sua dialética marxista da história, escrita com as tintas leves que caracterizaram – na observação de José Quidute Neto, procurador-geral da Sociedade Eça de Queiroz – a obra socioantropológica do mestre de Apipucos. Para o confrade eciano, Gilberto Freyre é o único sociólogo que se pode ler na rede. O mesmo pode-se dizer do sério e gostoso livro de Paulo Cavalcanti. Goiana palpita em suas páginas.

    Fui secretário-geral da Sociedade durante parte da presidência vitalícia de Paulo Cavalcanti. As reuniões, a que nunca faltava o chanceler Gladstone Vieira Belo, eram em sua acolhedora casa da Avenida Beberibe. As festivas – já aí, literogastronômicas – nos restaurantes Recanto Lusitano e Adega, do Clube Português. Dois fatos ainda a lembrar nestas páginas que são, também, de homenagem e saudade. Foi dele o generoso prefácio do meu livro de estreia na literatura temática. Quando de seu desaparecimento, em data que passou a integrar o calendário eciano do Recife, intermediei – a pedido da família – a doação de parte de sua rica biblioteca especializada à Fundação Eça de Queiroz, de Tormes, Portugal; instituição que, decerto, terá, agora, renovado, seu interesse pela edição bilíngue de Eça de Queiroz – agitador no Brasil.

    Dagoberto Carvalho Jr.

    Presidente da Sociedade Eça de Queiroz

    Recife, julho de 2008

    INTRODUÇÃO

    Nenhum romancista estrangeiro exerceu, até hoje, maior influência no Brasil do que Eça de Queiroz. Durante sua vida, no fastígio da carreira literária, a consagração de seu nome, como escritor, atingiu proporções invulgares. Não foram poucos os intelectuais que correram a imitar-lhe o estilo, adotando seus padrões de linguagem, o barbarismo de sua prosa, os matizes de uma arte que, tornando mais vivo e mais dúctil o idioma, imprimiram à literatura luso-brasileira, na época de superação do romantismo, um sentido de verdadeiro remoçamento.

    As descobertas científicas, o progresso da tecnologia, as transformações nos sistemas econômicos e sociais, tudo aquilo que o século XIX desacorrentou do passado, abrindo ao mundo as extensas perspectivas que a Revolução Industrial estimulava, na reavaliação da vida e dos conceitos estéticos, encontrou em Eça de Queiroz o instrumento que iria moldar a arte à imagem das agitações do tempo.

    Insurgindo-se contra o liberalismo burguês, não tratou de receitar panaceias, nem se aferrou à impertinência de dogmas.

    Como romancista social, fez o que lhe parecia mais lícito: denunciou a verdade, fustigando o arcabouço de um mundo que se retesara pelo acúmulo de erros e de vícios; inquietou-se diante das injustiças, disfarçando suas armas de inconformado no colorido da verve.

    Artista para quem a arte devia ser a história do homem, não do homem subjugado pelos preconceitos, entorpecido pelos costumes, deformado pelas instituições, mas – como ele próprio dizia, insubmisso – do homem livre, colocado na livre natureza, entre as livres paixões,1 soube exercer seu papel de escritor, carreando para os romances um vasto documentário de realidade e ironia, em face de cujas evidências se poderão recompor, no futuro, os elos mais sensíveis de uma fase da história humana, sem o esquematismo das concepções dos fatos e dos fenômenos da vida, mas como expressão do que existiu de mais essencial e típico numa sociedade em desenvolvimento.

    O que queremos nós com o realismo? – perguntou-se, já cônsul, em New Castle. "Fazer o quadro do mundo moderno, nas feições em que ele é mau, por persistir em se educar segundo o passado; queremos fazer a fotografia, ia quase dizer a caricatura, do velho mundo burguês, sentimental, devoto, católico, explorador, aristocrático, etc; e apontando-o ao escárnio, à gargalhada, ao desprezo do mundo moderno e democrático – preparar a sua ruína. Uma arte que tem esse fim – enfatizou – não é uma arte à Feuillet ou à Sandeau. É um auxiliar poderoso da ciência revolucionária."2

    Dentro desse plano de visão, que ultrapassava os clássicos limites do realismo crítico, a obra de Eça de Queiroz representa uma das melhores tradições progressistas do século XIX, na veemência de suas denúncias, na profunda individualização de seus personagens, através dos quais revelou o artista as próprias ideias e sentimentos.

    Desenvolvendo-se sob a influência da vida social, sua arte não hesitou, um instante, em perseguir os desígnios a que se propusera, de soerguer, pelo contraste das reações, os velhos hábitos da terra lusitana, fazendo ressurgir dos escombros da piolheira o merecido renome, por que a nação e o povo ansiavam.

    E a renovação que imprimiu aos cânones da língua portuguesa, em sua expressão literária, foi, antes de tudo, uma exigência mesma de sua arte – como ressaltou Álvaro Lins.3

    Da A Comédia Humana, de Balzac, costumava dizer Engels que valera mais como subsídio da vida francesa dos anos de 1816 a 1848, do que todos os compêndios dos historiadores, economistas e estatísticos profissionais da época.

    Os romances de Eça têm o mesmo cunho de repositório da vida portuguesa dos fins do século. E o senso de realismo, com que soube forjar sua obra, pressupunha no homem um sério conhecimento dos valores sociais.

    Tomando da arte os objetivos mais restauradores, fez de seus livros um instrumento de experimentação social contra os produtos transitórios que se perpetuam além do momento que os justificou, e que – na sua opinião – de forças sociais, passaram a ser empecilhos públicos.4

    As letras portuguesas, antes de Eça, não se haviam ajustado às mudanças do tempo, contrafazendo-se, diante dos homens e das coisas, na adoção de rígidos princípios de uma falsa legalidade, quase subserviente a tudo quanto se relacionasse à chamada ordem estabelecida. É muito bonito – proclamava ele, com sarcasmo – falar na ordem, no respeito à propriedade, no sentimento de obediência à lei, etc., mas quando milhares de homens veem as suas famílias sem lume na lareira, sem um pedaço de pão, os filhos a morrer de miséria, e ao mesmo tempo os patrões prósperos e fartos, comprando propriedades, quadros, apostando nas corridas e dando bailes que custam centos de libras, bom Deus, é difícil ir falar aos desgraçados de regras de economia política, e convencê-los de que, em virtude dos melhores autores da ciência econômica, eles devem continuar por alguns meses mais a comer vento e aquecer-se à cal das paredes.5

    Como intérprete dessa realidade, distanciando de sua arte os métodos anacrônicos de expressão, Eça de Queiroz influiu poderosamente na literatura brasileira, nos dias em que o romantismo começava a assumir as feições de empecilho público.

    As palavras do escritor português Alberto de Oliveira, traduziram muito bem o impacto dos romances de Eça sobre a cultura luso-brasileira, naquela fase de buscas e esforços em favor de uma literatura autônoma e característica: As nossas Letras moravam e mofavam num velho casarão mal arejado; e, apesar de já iluminadas pelo gênio rebelde de Camilo, estavam sem direção. Eça de Queiroz abriu-lhes janelas para o sol e o ar livre, varrendo delas, como bolor, todo o contato ou vestígio de antiguidade. Esta foi a sua obra demolidora e de reação, filha das circunstâncias, filha também da moda.6

    Antes de Eça, o domínio do liberalismo na arte, como definiu Vítor Hugo o romantismo, condicionara as letras brasileiras à repetição de chavões artísticos importados, de escolas, de tendências, em que, muitas vezes, o escritor se excedia na afetação das ideias, tentando superar a falta de sentimentos pela presença de uma linguagem empolada. Verdade é que, a par de valiosas manifestações de autonomia cultural, em obras de conteúdo e forma nacionais, o romantismo no Brasil possuíra quase exclusivamente os chorões reais, a que se referira Sílvio Romero.

    No período de sua decadência, porém, o transbordamento, sem rumos, da criação artística dera lugar a absurdas conceituações de valores. Era a época dos exibicionistas da genialidade, dos demolidores, dos que, preocupados com a avalancha do novo, se distanciavam, extravagantes e arbitrários, das bases sociais do pensamento.

    O maior argumento desses maganos, para Sílvio Romero, era a mocidade: Em vez de ideias, de doutrinas, de sistemas, de teorias... enrolavam-se na certidão de idade e investiam contra a gente descuidada.7

    Nesse momento, supreendeu-nos Eça de Queiroz, o escritor de seu tempo, desprendido de todas as superstições técnicas, exercendo livremente sobre a palpitante realidade do mundo vivo as suas pessoais faculdades de analisar e de sentir.8

    Para abrir-lhe caminho às expansões e influência, encontraria ele, de pouco, uma geração enfronhada nos debates científicos, na crítica social, nas discussões de ordem filosófica – com Tobias Barreto, José Veríssimo, Sílvio, Aluízio e Artur Azevedo, Paula Ney, Celso de Magalhães, Araripe Júnior, Olavo Bilac, Raimundo Correia, Emílio de Meneses, Raul Pompéia, Capistrano de Abreu, Machado de Assis, Eduardo Prado, Joaquim Nabuco, Lafaiete Rodrigues Pereira, Gaspar Silveira Martins, Domício da Gama, Oliveira Lima, João Ribeiro, Ferreira Viana, José de Alencar, Goulart de Andrade –, polemistas, historiadores, poetas, romancistas teatrólogos, parlamentares, com alguns dos quais travaria Eça, depois, amizade pessoal.

    Por muitos deles sua obra se fez notada, como elemento de renovação da linguagem e do estilo, abrandando as asperezas do idioma, dando plasticidade ao raciocínio, amaneirando os sentimentos para extrair novos efeitos de expressão. Aí estão, evidentes e contínuas, desde aquela época, as marcas de Eça de Queiroz na literatura brasileira, a sua força extraordinária de arrancar da língua, pomposa e enrijecida, os artifícios mais engenhosos; aí estão os segredos iniludíveis do seu modo peculiar de escrever, nos melhores romancistas brasileiros de hoje, no jornalismo de crítica, no teatro, na conferência, no discurso parlamentar, na poesia, nos arrazoados forenses, na sutileza do humor, no traço da anedota, no comportamento diante do ridículo, em toda essa múltipla e variada gama de ecianismo, que o tempo só faz aprimorar.

    Ninguém demarcou, ainda, no estudo de suas influências, a exercida sobre a grande massa de leitores, sobre as camadas intermediárias da sociedade brasileira dos fins do século, que o tomava como modelo de renovação estética, seguindo-lhe os gostos e as preferências, retendo de memória as situações dos romances, o nome dos personagens, adaptando aos tipos humanos do momento – o político, a figura do ministro de Estado, o sacerdote, o comendador, a dama dos salões de concerto – as características que Eça de Queiroz animou no povoamento de sua obra. Havia quem recitasse de cor páginas inteiras desses livros. As passagens de Os Maias, as suas graças mais fulgurantes, as suas figuras mais típicas, eram repetidas, comentadas, glosadas tão excitadamente pela mocidade do Rio de Janeiro, de São Paulo ou do Recife, como também a de Lisboa, do Porto ou de Coimbra.9

    A bomba literária e moral que explodiu na terra lusa à aparição de O Primo Basílio, ou o escândalo branco que envolveu o surgimento de O Crime do Padre Amaro, anunciaram, de igual modo, no Brasil, os livros de Eça. É de imaginar-se a reação contrastante do leitor, afeito às suaves narrações do romantismo – os personagens, como as emoções, colocados em seus devidos lugares, o romance a deslizar, comprimido, entre a pureza da forma e os indulgentes conflitos da alma – e o aguçamento instantâneo da vida, em Eça, a susceptibilidade encrespada, o ridículo estuante das situações, a gargalhada, o escárnio, as paixões incontidas, o tumulto, numa arte capaz de traduzir em todos os matizes as novas realidades que ele intimamente se sentia chamado a exprimir.10

    Com o seu estilo, na alegre irreverência de sua crítica, Eça de Queiroz conquistou o Brasil. O riso, a princípio; depois, a grave compreensão dos objetivos de sua arte, acutilando os homens na pieguice e no convencionalismo.

    Nas rodas boêmias dos fins do século, no Rio de Janeiro, em São Paulo, no Recife, os intelectuais adotavam-no como padrão literário. O ecianismo era moda, a embriaguez dos espíritos sequiosos dos últimos modelos da Europa.

    No Maranhão – relembra Clóvis Ramalhete11 – um grupo de escritores deu-se ao luxo de fundar a Padaria Espiritual Eça de Queiroz, à leitura de seus primeiros romances. E da longínqua e modesta Cuiabá daqueles tempos, na bruteza da mata, entre índios e padres catequistas,12 um leitor brasileiro – fanático admirador vosso – escrevia-lhe, em 1898, para adverti-lo de que incorrera em erro quando, na Relíquia, à página 339, da 2ª edição, colocara sobre os montes negros de Gilead, por onde andava Teodorico, uma lua cheia, depois de ter dito, páginas atrás, que a Lua aparecia fina e recurvada, numa alusão à sua fase minguante...

    Não foram somente Eduardo e Paulo Prado, Domício da Gama, Olavo Bilac, o barão do Rio Branco e mais uns tantos brasileiros, os que se ligaram ao romancista português pelo pensamento e pela inteligência. Martins Fontes, que jamais o conheceu, disse de seu afeto, numa hora de reminiscência: Durante a vida toda, Eça de Queiroz andou conosco, iluminando a nossa roda literária.13

    Alberto de Oliveira, ainda jovem, ao vê-lo, certa vez, em plena cidade do Porto, na Rua das Carmelitas, teve a impressão de estar contemplando um pequeno deus. Era ele! Alto, esguio, vestido de luto pesado, com um chapéu alto de grande copa que ainda lhe prolongava a estatura, umas lunetas fumadas (em vez do esperado monóculo) velando-lhe os olhos, no rosto uma palidez de marfim velho, uma harmonia acabada no seu vestuário como nas linhas e movimentos do seu corpo, e um porte ao mesmo tempo olímpico e vencido, desdenhoso e resignado, irônico e melancólico, que na ocasião me fez pensar na frieza e altiva tristeza dos ciprestes.14

    O interesse pelo escritor ultrapassava os limites da mera curiosidade artística. Aos que visitavam Portugal, indagava-se, de pronto, ao regresso, se vira Eça, em pessoa, ou a Casa Havanesa, ou o Café Martinho...

    Se eu disser que Eça de Queiroz, desde os anos de adolescência, foi um dos meus autores prediletos, não direi tudo – confessava, em pura evocação, Ribeiro Couto, para sublinhar: Não direi mesmo nada. Para mim e para os rapazes do meu tempo... ele foi uma grande janela aberta para o mundo vivo (Livro do Centenário de Eça de Queiroz, pág. 694).

    Depois de sua morte, os lugares de Lisboa referidos nos seus livros associavam-se-lhe ao nome e à própria memória, recordando cenas de romance, vivificando diálogos e personagens, nas cores novas que ele emprestara ao lusitanismo.

    José Veríssimo, duas décadas após tê-lo visto num sarau do Teatro Trindade, ao lado de Ramalho, não podia esquecer o seu tipo – alto, esguio, menos magro do que ficaria depois, apuradamente vestido à inglesa, o seu monóculo fixo entre o nariz de águia e o olho bem aberto, penetrante, impondo-se à minha juvenil admiração matuta, de provinciano brasileiro recém-chegado.15

    Durante anos a fio, o culto a Eça de Queiroz far-se-ia sentir, no alento das reedições de sua obra. O pernambucano José Maria Belo, em 1945, confessava, enternecido: Lembro com saudade, a saudade com que um dia repeti em Rouen o itinerário de Ema Bovary, das vezes que perambulei, há vinte anos, pelo Chiado, por Belém, pelas Janelas Verdes, e refiz o caminho de Sintra, a reviver para mim as imagens com que Eça enchera minha adolescência....16

    Agora mesmo, a cento e catorze anos do seu nascimento, fundam-se no Rio, em São Paulo, em Porto Alegre e no Recife círculos de admiradores, com o objetivo de estudar-lhe a vida e a obra, como tentáramos fazer, com Silvino Lopes, em 1948, com o Clube dos Amigos de Eça de Queiroz, que assustadiços ecianos, por falsos temores políticos, deixaram malograr.

    De todas as cidades do Brasil, no entanto, aquela em que mais se afigura enraizado e permanente o culto a Eça de Queiroz, é o Recife. Muito cedo, decoraram os pernambucanos o seu nome; como ele mesmo, desde criança, aprendera o nome de Pernambuco, de mistura com as primeiras expressões que balbuciou na vida. Nascido a 25 de novembro de 1845, na Póvoa de Varzim, filho de pais solteiros – José Maria de Almeida Teixeira de Queiroz, brasileiro de naturalidade, e Carolina Augusta Pereira de Eça –, foi entregue, para criar, à costureira Ana Joaquina Leal de Barros, pernambucana de nascimento, amiga dos avós paternos da criança e residente em Vila do Conde.17

    É possível que a amizade entre a pobre costureira de Vila do Conde e a família Teixeira de Queiroz venha da época em que o avô de Eça, Joa­quim José de Queiroz e Almeida, esteve exilado no Brasil, onde nasceu seu filho José Maria de Almeida Teixeira de Queiroz, pai de Eça.

    Ana Joaquina Leal de Barros, filha de Ana Maria da Conceição e de pai incógnito,18 devia ter relações de parentesco com a família Leal de Barros, de Pernambuco, cujo varão foi o comerciante português Joaquim Leal de Barros, chegado ao Recife nos primeiros anos do século XIX. Desse Leal de Barros, que enriqueceu vendendo carne de porco aos vapores que atracavam no porto da capital de Pernambuco, descendeu Antônio Leal de Barros, pai de Joaquim Cavalcanti Leal de Barros, professor do velho Ginásio Pernambucano, no Recife, de cujo consórcio com Maria Carmelita Lins veio à luz o ministro João Alberto Lins de Barros.

    Não se pode excluir a hipótese de Ana Joaquina ter sido filha da escrava Ana Maria da Conceição, com o português Joaquim Leal de Barros, adotando de ambos os respectivos prenomes.

    Na primeira fase da sua vida no Brasil, muitos portugueses se juntavam maritalmente a negras ou mulatas, que os ajudavam a enriquecer, desempenhando os mais duros labores do dia. Depois, endinheirados, contraíam casamento com mulheres brancas, a quem lhes transmitiam o nome de família. Joaquim Leal de Barros poderia ter mandado para Portugal o produto espúrio de seus amores no Recife – Ana Joaquina Leal de Barros – a que seria, no futuro, madrinha e mãe de criação de Eça de Queiroz.19

    Quaisquer que sejam, porém, as especulações a respeito das origens familiares da costureira de Vila do Conde, o certo é que Eça aprendeu a falar português ouvindo sotaque brasileiro nos quatro anos da sua convivência com Ana Joaquina, nas canções de ninar e nas histórias infantis do Nordeste brasileiro. Ninguém pode subestimar a influência exercida pela pernambucana Leal de Barros, na formação da linguagem e do estilo de Eça de Queiroz, cujos processos de expressão literária representam para Portugal uma verdadeira revolução nos cânones do idioma. Algumas das características da prosa eciana

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