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A Baiana do Cais do Porto
A Baiana do Cais do Porto
A Baiana do Cais do Porto
E-book145 páginas1 hora

A Baiana do Cais do Porto

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Sobre este e-book

Uma colcha de retalhos da vida baiana. Talvez seja esta a melhor síntese deste romance. Zulmira é o retrato-símbolo da baianidade. Baianidade de uma gente que transcende o simplesmente viver por viver; que passa pelas pedras e espinhos da vida sem se arranhar; que irradia calor humano e encanto, apesar das vicissitudes, das armadilhas do cotidiano. Zulmira é o encanto e a magia, a sabedoria e a alegria, o amor transbordando, superando, transformando.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de abr. de 2020
ISBN9786586539080
A Baiana do Cais do Porto

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    Pré-visualização do livro

    A Baiana do Cais do Porto - João Bosco Quirelli

    Manhã cálida abre as cortinas de mais um dia ensolarado de praias e luzes. Ao longe, vislumbra-se o perfil balouçante de uma aurora abrindo-se em cores de um anil mágico nas águas puras do mar matinal.

    No cais, um movimento tímido anuncia o início de mais um dia de tumultos, movimentos, obras e homens trabalhando, gritando. Acomoda-se em sua cadeira, com suas anáguas, seus colares brilhantes e panelas enormes, a baiana do acarajé.

    É sexta-feira em Salvador.

    – Bom dia, baiana! Que temos para o café?

    – Bom dia, Comandante! Bolinhos de milho, mingau de tapioca, caldo forte de sururu e de feijão para renovar as forças.

    – Pois acho que vou pedir esse caldo de feijão e um café com leite. Estou precisando mesmo reciclar minhas forças. Onde está o guri?

    – Correndo por aí. O Carlinhos não para o dia todo. Já começa o dia se danando.

    – Vou acabar levando esse moleque comigo para conhecer o mundo. Deixa-o completar sete anos.

    – Conhecer o mundo, Comandante? Acha mesmo que pode? – pergunta Zulmira, enquanto lhe serve um copo de pingado.

    – Claro, irá como meu convidado especial. Isso se eu não resolver levar também a mãe. Afinal, quem manda nesta geringonça sou eu! Quem vai me dizer que não posso levar comigo a baiana mais bela desta terra?

    Zulmira sorri. Já conhece o Comandante de outras vindas a Salvador.

    – Mas eu também, Comandante? Por que deveria conhecer o mundo? Aqui está muito bom. Tenho meu trabalho, a companhia de pessoas maravilhosas como o senhor, além de só saber fazer na vida essas comidas e esses bolinhos que vocês comem e dizem que gostam. Não sei se os gringos também iriam gostar.

    – Mas você não vai vender bolinhos a ninguém, minha querida. Você vai como minha convidada. Vai ficar no meu camarote.

    – No seu camarote? – repete Zulmira admirada, atendendo outros fregueses que acabam de chegar.

    – Claro! Queria que eu a deixasse junto com os marinheiros?

    – Até que não seria mal, Comandante. São tão simpáticos...

    Risos.

    – Simpáticos e ousados, minha baiana...

    Mais risos.

    – Quer mais um prato de mingau?

    – Não. Só quero uma xícara de café e um cigarro.

    O dia foi clareando rapidamente. Não tardou, estava a baiana cercada.

    – Eu quero de milho.

    – Eu quero mingau de tapioca.

    – Hei baiana! Um acarajé!

    O Comandante beijou-lhe a testa e afastou-se em direção ao navio. Em seu coração levaria mais uma vez a lembrança daquela baiana simpática, com sorrisos largos e rosto lindo, oferecendo-lhe o café. Não, não era uma baiana qualquer. Era especial. Possuía algo de cativante em seus vinte e sete anos que mexia com seu ego machista acostumado a lidar com os mais diversos tipos de mulheres de todo o mundo. Conhecia desde a delicadeza da japonesa até o charme esfuziante da mulher francesa e a beleza agressiva das inglesas e americanas balançando ao vento seus louros cabelos. Mas aquela baiana, de quem nem o nome todo sabia, sempre que aportava na Bahia, mexia mais fundo o seu experiente coração. Por vários dias de viagem, não pensava em outra coisa senão nela. Com o passar do tempo, no entanto, no decorrer de suas longas viagens, cruzando oceanos, ligando as nações, aportando aqui e acolá, conhecendo ou revendo suas velhas amizades, aos poucos, ia esquecendo-a até a próxima vinda à Bahia, quando começava tudo de novo.

    E já era dia de partir. Três meses de viagem pela frente.

    Como das outras vezes, sentia o coração bater apertado. Uma nuvem de nostalgia cobria a face de Nelson, tornando-o pensativo. Instintivamente, parou. Encostou-se à balaustrada do cais e virou-se tentando enxergá-la. Lá estava ela em seu trabalho, rodeada de gente, desdobrando-se para atender a todos ao mesmo tempo. Mulher de fibra, pensava, e bela, esfuziantemente bela na meiga cor morena de sua pele contrastando com o brilho do azul de seus olhos. Não fossem os preconceitos que dividem e infelicitam os homens, não fosse esse orgulho em aceitar uma união permanente, não fossem as más línguas que por certo teriam o que falar, não fosse isso tudo, por certo ela não ficaria ali. Ela iria comigo. Ficaria em meu camarote, moraria comigo no navio, teríamos muitos filhos que cresceriam aprendendo, desde crianças, os segredos do mar. E eu, por certo, seria feliz. Realmente feliz na mais pura essência da palavra. Não o feliz manipulado, criado e pago a que estava acostumado. Mas um feliz autêntico, real, com vida, com amor...

    O tempo foi passando, enquanto o Comandante perdia-se em pensamentos, queimando a pele clara no sol que já ia a pino. Tempo, impiedoso tempo... Era hora de partir. Olhou mais uma vez na direção da baiana que continuava trabalhando, respirou fundo sua covardia, voltou-se para o navio. Entrou.

    Eram sete horas quando soou o apito no navio anunciando a partida.

    Já o sol escondia-se por trás da abóbada imensa e azulada do mar, anunciando a chegada da noite, quando Zulmira começou a recolher seus apetrechos para ir embora.

    Guardou primeiro as panelas vazias de mingau de tapioca que servira de manhã. Não sobrara nada. Em seguida, as panelas de vatapá e acarajé, também vazias. Havia ainda dois ou três bolinhos de estudante, mas Zulmira sentia-se cansada. Melhor ir embora. Fechou a sombrinha, dobrou o tabuleiro, chamou Carlinhos e Buiu para ajudar e saiu.

    No Cais do Porto, reinava quase o mesmo silêncio do início do dia, rasgado apenas pelo som estridente do radinho de pilha que o vigia levava debaixo do braço. Zulmira sentiu-se, de repente, tomada de súbita nostalgia. E, à medida que se ia retirando, observando o filho carregado de sacos e panelas, tentava descobrir qual a origem desta nostalgia, desta tristeza que pesava sobre seu rosto sempre acostumado a sorrir. Lembrou-se de seus pais. Não eram eles. Estavam bem. Pelo menos de saúde. De dinheiro, eram iguais a ela, enfrentando as mesmas dificuldades na luta pela sobrevivência que o pobre enfrenta no decorrer de toda a sua existência. Batalha incansável e interminável desde o nascimento até quando expira a última esperança de dias melhores. Não, não eram seus pais. Seria o Comandante? Não, de maneira alguma. E o convite para viajarem? Seria verdade? Com certeza estava brincando. Um homem como o Comandante, tão poderoso e elegante jamais levaria consigo, mundo afora, uma simples vendedora de lanches. Ele até parecia sincero ao falar, mas daí a acreditar em tudo que dizia era muita pretensão. Só uma coisa intrigava: por que sempre aquele ar sombrio recostado à balaustrada do porto, olhando-a de longe até o momento da partida? Nunca era o mesmo cavalheiro elegante e alegre a ser o primeiro a tomar o café. Havia um pouco de tristeza no olhar evasivo e longínquo que percebia ao observá-lo por entre os clientes da banca. Depois o derradeiro olhar e era sempre o último a entrar no navio e partir.

    Passos lentos, cabeça baixa, percorreu todo o corredor que dava para a porta de saída sem perceber que andara tanto. O porteiro despertou-a de seu êxtase:

    – Zulmira, que é que você tem mulher?

    Zulmira olhou assustada para José Bento:

    – Nem tinha visto o senhor aí.

    – Também pudera, você veio o tempo todo de cabeça baixa. Está com algum problema em casa?

    – Não, não. Eu só estava distraída.

    – Não quer me contar, não é? Está ficando orgulhosa. Você sabe que a tenho como minha filha. Vi você nascer e crescer aqui neste porto. Ajudei muito sua mãe a te carregar no colo, a cuidar de você enquanto trabalhava. Você foi crescendo, virou moça, enroscou-se com o tal do Léo. Teve esse menino, mas ele te abandonou e olha você aí cheia de tristeza. Pois saiba que eu também estou triste. Triste e com vontade de dar o troco para aquele idiota.

    – Mas, Seu Zé Bento, não se trata do Léo. Eu já não penso mais nele. Morreu pra mim – disfarça Zulmira, recompondo-se.

    – E o que é então? Está doente? Cansada?

    – Não sei Seu Zé Bento, não sei. Fiquei assim depois que o povo se retirou e comecei a arrumar as coisas pra ir embora. De repente, me deu uma tristeza enorme, uma vontade de chorar, um nó na garganta que nem sei bem explicar. Deve ser por causa do silêncio que ficou no porto. O dia todo com tanto barulho e agora esse silêncio faz com que a cabeça da gente não funcione bem.

    – É, vou aceitar essa desculpinha sua só para não te aborrecer mais com outras perguntas. Você está cansada e precisa ir pra casa descansar. Vem amanhã?

    – Como posso deixar de vir?

    – Dá um abraço em seu pai e sua mãe, Zulmira. E cuida bem desse moleque que já está ficando um frangote.

    – Vou cuidar, Seu Zé Bento. Até amanhã.

    – Até amanhã, Zulmira.

    José Bento acompanhou Zulmira com seu olhar atento, até perdê-la de vista. Realmente, havia algo de errado com ela. Se for mesmo verdade que não sabia por que estava assim, poderia ser prenúncio de alguma doença, ou estava se apaixonando, ou então algo de ruim estava lhe acontecendo. De qualquer maneira era um procedimento que o preocupava. Resolveu procurar o velho Manoel no sábado. Ele estaria na feira de Água de Meninos com sua barraca de sempre, vendendo suas verduras. Uma boa oportunidade para tomar uma cachaça com o velho amigo e saber o que estava havendo com ela. Afinal, tinha que ajudá-la. Se ela não queria contar, descobriria. Só não poderia continuar a vê-la desta maneira, cabisbaixa, sem aquele conhecido sorriso no rosto. Um sorriso que todos, e muito mais ele, estavam tão acostumados a admirar.

    Zé Bento, de repente, franziu a testa. Fechou a cara. Deu oportunidade a que todas as suas rugas aparecessem: estaria ela grávida? E de quem? Seria do Léo? Ah, aquele

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