O Tratamento da Dependência Química: Um Guia de Boas Práticas
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O Tratamento da Dependência Química - Rogério Adriano Bosso
COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO MULTIDISCIPLINARIDADES EM SAÚDE E HUMANIDADES
A todos os profissionais que dedicam seu valioso tempo
para prestar cuidados aos usuários de substâncias.
AGRADECIMENTOS
Primeiramente, gostaríamos de agradecer a Deus pelo dom da vida.
Da mesma forma, agradecemos aos nossos familiares, pai, mãe, irmãos, esposa, filhos e sobrinhos, que foram nossa base e nos auxiliaram dentro de suas possibilidades para que pudéssemos nos tornar profissionais éticos e estar hoje organizando esta obra. Não menos importantes são nossos amigos pessoais, que torcem, incentivam e acompanham vibrando juntos em cada conquista. A você, meu amigo, gratidão!
Agradecemos também à Editora Appris e a toda sua equipe de editoração, pelo profissionalismo e respeito para conosco durante todo o processo de elaboração deste livro.
Um agradecimento especial a todos os colaboradores desta obra, amigos da trajetória de trabalho com usuários de substâncias. Pessoas éticas e dedicadas, que acreditam no ser humano e na possibilidade de uma recuperação eficaz e que não hesitaram em atender nosso pedido contribuindo com um capítulo que pudesse trazer ao leitor conhecimento prático, dividindo sem receios o know-how adquirido ao longo de suas experiências. Em especial ao colaborador Marcelo Ribeiro, que além da contribuição com um capítulo, prefaciou esta obra, acolhendo com prontidão nosso convite.
Gratidão também a todos os profissionais que dividiram a mesma equipe nos serviços para dependência química em que passamos e igualmente a todos os pacientes que passaram por nossos atendimentos. O que somos hoje é uma junção de partes de cada um de vocês, que nos trouxeram possibilidade de troca de experiência e, no caso dos pacientes, confiaram a vida em nossas mãos.
A qualidade do tratamento depende da qualidade das pessoas que o implementam.
(Padre Gabriel Mejia)
PREFÁCIO
O tratamento dos transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas é um trabalho que demanda dedicação e esforço permanentes por parte dos profissionais envolvidos. O usuário de substâncias psicoativas possui todo tipo de necessidade. Geralmente, além dos problemas diretamente relacionados às características farmacológicas da substância, o usuário traz consigo um histórico de questões psicossociais que antecedem ou são decorrentes da dependência. São essas questões que particularizam e influenciam diretamente na gravidade do quadro. Esse sistema patológico altamente complexo e multifacetado – com repercussões e complicações biológicas, psicológicas e sociais – tem como uma de suas características essenciais o funcionamento autônomo, ou seja, uma vez estruturada na circuitaria cerebral, passa a ter vida própria
, independentemente da vontade do usuário – o desejo se transforma em necessidade.
Eis o motivo pelo qual a dedicação e o esforço de tratamento devem ser permanentes: o indivíduo acometido pela dependência química se transforma em um refém das oportunidades de uso. Até ele voltar a ser capaz de dizer não
a elas, será necessário a estruturação de um trabalho de equipe – incluindo a família e todos os profissionais envolvidos. O presente manual, O tratamento da dependência química: um guia de boas práticas, tem como objetivo precípuo auxiliar a construção dessa rede delicada – e igualmente complexa – de ações de cuidado, composta por profissionais e técnicas de abordagem e de manejo, ambientadas em diferentes ambientes de tratamento, sempre em concordâncias com as necessidades do paciente.
Os autores responsáveis pela elaboração deste manual possuem vasta experiência clínica no campo da dependência. De maneira geral, são oriundos da assistência, atuando primeiramente como gestores de serviços ou profissionais da saúde, aproximando-se e se envolvendo com a formação acadêmica ao longo desse processo – e, mais uma vez, sempre em prol do atendimento clínico e do paciente.
Nesse sentido – sempre com o propósito de produzir conhecimento científico sem tirar a mão da massa –, os autores desta publicação buscam uma interlocução direta com o leitor, quase sempre se dirigindo a ele na primeira pessoa e trazendo sua prática clínica como matéria-prima, lapidada pela formação acadêmico-científica – igualmente consistente – de cada um.
Os temas dos primeiros cinco capítulos estão relacionados a diferentes aspectos e facetas da avaliação do usuário de substâncias psicoativas que procura um programa de cuidado e tratamento: a avaliação inicial – de caráter multidisciplinar – e a avaliação psiquiátrica, com as comorbidades mais usuais. Há um capítulo que apresenta um modelo de avaliação do usuário de substâncias psicoativas para o profissional da área de enfermagem, preenchendo uma importante lacuna nessa área de conhecimento. Um capítulo sobre sexualidade e uso de drogas oferece embasamento não só para a avaliação, como igualmente para nortear a prática clínica de todos os profissionais da saúde envolvidos nesse campo. Mais uma vez, a estruturação de avaliações capazes de subsidiar manejos pragmáticos e clinicamente eficazes é o objetivo-maior dos autores.
Os quatro capítulos seguintes enfocam abordagens psicossociais consideradas efetivas na recuperação dos usuários de substâncias psicoativas, com ênfase na psicoterapia cognitivo-comportamental e treinamento de habilidades sociais e o gerenciamento de casos graves. Por fim, os últimos três capítulos, dentro do melhor espírito interdisciplinar, as políticas públicas e modelos de gestão, são apresentados e discutidos, mais uma vez, com o intuito de embasar práticas clínicas mais consistentes e interessantes.
De modo que O tratamento da dependência química: um guia de boas práticas pode ser considerado, sem receio e de forma despretensiosa, uma contribuição inédita para o campo dos transtornos relacionados ao uso de substâncias psicoativas, não apenas pela qualidade e peculiaridade desse grupo de autores – visceralmente envolvidos no cuidado a essas pessoas, seja no campo da clínica da dependência, seja no campo jurídico –, como também pela escolha de temas estruturantes, apresentados de forma clara e acessível, tendo a própria prática profissional dos autores como referência.
O presente manual é acima de tudo uma carta de intenções e princípios que norteiam um processo humano de mudança cheio de entreveros, fracassos e reformulações de planos, com o intuito de transformar positivamente o relacionamento do usuário consigo e com mundo onde vive e no qual deseja se reinserir na condição de cidadão efetivo. Uma utopia que pertence a todos nós.
Dr. Marcelo Ribeiro de Araújo
Psiquiatra; especialista em Dependência Química – UNIFESP; mestre e doutor em Ciências pelo Departamento de Psiquiatria da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP; membro do Programa de Pós-Graduação do Departamento de Psiquiatra da Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP; docente do curso de Medicina da Universidade Nove de Julho – UNINOVE; diretor do Centro de Referência de Álcool, Tabaco e outras Drogas (CRATOD) da Secretaria do Estado da Saúde de São Paulo; presidente do Conselho Estadual de Políticas sobre Drogas de São Paulo – CONED.
Sumário
INTRODUÇÃO 17
CAPÍTULO 1
AVALIAÇÃO PSIQUIÁTRICA DO USUÁRIO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS 19
Marcelo Ribeiro
CAPÍTULO 2
AVALIAÇÃO INICIAL E PROCESSO DE TRIAGEM PARA PESSOAS COM TRANSTORNOS POR USO DE SUBSTÂNCIAS 33
Josiane Heloisa de Campos Lourenço
Angela Cristina de Oliveira
Rogério Adriano Bosso
Gustavo Daud Amadera
CAPÍTULO 3
CUIDADOS INICIAIS DE ENFERMAGEM PARA PESSOAS COM TRANSTORNOS POR USO DE SUBSTÂNCIAS 57
Nadiana dos Santos Rodrigues
CAPÍTULO 4
DEPENDÊNCIA QUÍMICA E SUAS PRINCIPAIS COMORBIDADES 75
Alessandra Diehl
CAPÍTULO 5
A SEXUALIDADE E O USO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS 95
Ariadne Ribeiro
CAPÍTULO 6
REABILITAÇÃO COGNITIVA FUNCIONAL NA PRÁTICA CLÍNICA DA TERAPIA OCUPACIONAL COM PESSOAS COM TRANSTORNOS POR USO DE SUBSTÂNCIAS 111
Aline Coraça Trevelin
CAPÍTULO 7
TREINAMENTO DE HABILIDADES SOCIAIS PARA PESSOAS COM TRANSTORNOS POR USO DE SUBSTÂNCIAS 129
Vanessa dos Santos
Juliano Pereira dos Santos
Rogério Adriano Bosso
CAPÍTULO 8
A ATUAÇÃO DO ASSISTENTE SOCIAL NA REINSERÇÃO DA PESSOA COM TRANSTORNOS POR USO DE SUBSTÂNCIA 143
Dhione Almeida do Carmo
CAPÍTULO 9
ESTRUTURAÇÃO DE PROGRAMAS DE REINSERÇÃO SOCIAL PARA PESSOAS COM TRANsTORNOS POR USO DE SUBSTÂNCIAS 151
Rogério Adriano Bosso
CAPÍTULO 10
GESTÃO PÚBLICA DE SERVIÇOS PARA ATENÇÃO À PESSOA COM TRANSTORNO POR USO DE SUBSTÂNCIAS 169
Maristela da Costa Sousa
CAPÍTULO 11
O MINISTÉRIO PÚBLICO E AS CIDADES SAUDÁVEIS: IMPLEMENTAÇÃO DE MEDIDAS DE REDUÇÃO DE OFERTA DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVA LÍCITAS 185
Guilherme Athayde Ribeiro Franco
Carlos Macayochi de Oliveira Otuski
CAPÍTULO 12
O MODELO DE COMUNIDADE TERAPÊUTICA NO SISTEMA PRISIONAL COMO POSSIBILIDADE DE UM AMBIENTE DE TRATAMENTO PARA A PESSOA COM TRANSTORNOS POR USO DE SUBSTÂNCIAS 213
Luiz Carlos Hauer
SOBRE OS AUTORES 223
ÍNDICE REMISSIVO 229
INTRODUÇÃO
O uso de drogas tem variado significativamente ao longo da história, adquirindo características próprias conforme a época e o local. Nesse sentido, elas podem se apresentar com características religiosas ou profanas, de proximidade ou distanciamento e de comunhão ou exclusão.
Esse é um fenômeno mundial e pode ser generalizado, comum a países desenvolvidos e para aqueles que estão em desenvolvimento, ocorrendo em centros urbanos e na zona rural, nas classes sociais altas e baixas, em diversas faixas etárias, afetando a saúde de diversas formas. É considerado atualmente como um dos maiores fatores de desagregação social, familiar e pessoal.
No que tange à vida do usuário e dos familiares, os desafios são múltiplos, desde a identificação do problema da dependência química até a procura por ajuda adequada para o início de uma jornada para a resolução do problema. As políticas públicas se mostram ineficazes diante da demanda, que por inúmeras questões não param de crescer.
A ideia de publicar esta obra se baseia nesses fatos e também, principalmente, para que o maior número de profissionais possa se apoiar em estratégias e intervenções, baseadas em evidências cientificas, que possam nortear as melhores práticas no dia a dia do consultório, instituições e diversos grupos que trabalham com usuários e familiares que sofrem com os transtornos por uso de substâncias.
Os organizadores e colaboradores deste livro basearam-se em seus muitos anos de prática em serviços de atendimento das mais diversas modalidades como: Comunidades Terapêuticas, CAPS AD, Ambulatório, Hospital Psiquiátrico, Enfermarias para Desintoxicação, grupos de mútua ajuda, aliando todas essas práticas a conceituação teórica necessária para a realização de um trabalho com dedicação e qualidade para usuários de substâncias.
Sem dúvidas os desafios são muitos, por se tratar de uma temática de alta complexidade, por isso os capítulos trazem detalhadamente contribuições sistemáticas sobre avaliação, principais comorbidades, cuidados de enfermagem, sexualidade, reabilitação cognitiva, o trabalho do serviço social, treinamento de habilidades sociais, estruturação e gestão de serviços para que o leitor se conecte verdadeiramente ao que está escrito e sinta-se pronto para realizar seu trabalho apoiado no que existe de mais recente e assertivo no tratamento para pessoas com Transtornos por Uso de Substâncias.
Aos amigos leitores, profissionais, usuários, familiares e pessoas em recuperação, desejamos uma excelente leitura, mas também uma lembrança de que o trabalho com a dependência química, antes de qualquer ciência ou qualquer técnica, é um trabalho de se conectar às pessoas, de se conectar ao sofrimento das pessoas, e vamos mais além, é um trabalho de ofertar escuta, acolhimento e esperança.
CAPÍTULO 1
AVALIAÇÃO PSIQUIÁTRICA DO USUÁRIO DE SUBSTÂNCIAS PSICOATIVAS
Marcelo Ribeiro
O usuário de substâncias psicoativas (SPA) possui múltiplas necessidades de cuidado (Samsha, 2006; DH, 2017), quando chega para atenção de um programa de tratamento. Idealmente, preconiza-se, na rede pública de saúde, que as primeiras avaliações aconteçam em ambientes compostos por equipes multidisciplinares. No entanto há ambientes e modelos de cuidado escolhidos pelos usuários ou seus familiares para iniciar o tratamento de algum transtorno relacionado ao uso de SPA – desde um consultório individual de qualquer profissional da saúde, passando por grupos comunitários, até comunidades terapêuticas – onde esse tipo de abordagem não está previsto. Desse modo, cabe a cada responsável por um determinado serviço posicioná-lo de maneira adequada na rede, considerando as normas que regem os modelos e as práticas profissionais de cada um, para que o usuário, ao acessá-los, tenham a oportunidade de receber as avaliações necessárias, bem como as complementares, durante a disponibilização do cuidado.
De um modo objetivo e didático, a Psiquiatria considera que parte dessas múltiplas necessidades
estejam relacionadas, de alguma maneira, à existência de transtornos mentais que o usuário já possuía anteriormente, muitas vezes decorrentes de traumas e da exposição a situações ao estresse, os quais, além de dificultarem sua adaptação social ao longo da vida, funcionaram como fator de risco para o início do consumo de SPA, havendo, ainda, a possibilidade de terem intensificado o transtorno com SPA, em curso (Ribeiro & Laranjeira, 2012).
Mas existem também as consequências decorrentes do consumo de SPA, acerca das quais a Psiquiatria também tem contribuições a oferecer, sempre, de preferência, pela óptica multidisciplinar: a primeira delas são as complicações agudas relacionadas à intoxicação ou à interrupção abrupta do consumo – entre aqueles que já desenvolveram síndrome de dependência pronunciadas –, levando ao aparecimento das síndromes de abstinência (Marchetti et al., 2017).
A segunda se refere às bases neurobiológicas da dependência química, que se traduzem clinicamente em aumento da impulsividade, perda do controle sobre o consumo, irritabilidade e dificuldade em tomar decisões e negociar com os parâmetros de realidade de outrora com a mesma flexibilidade (Turton & Lingford-Hughes, 2016). Algumas das propostas medicamentosas que procuram diminuir a impulsividade ou reduzir a vontade ou a fissura, com o intuito de potencializar o trabalho psicossocial, atuam de alguma maneira, direta ou indiretamente, nesse sistema (Solinas et al., 2019).
A terceira se refere à neurotoxicidade das SPA sobre o cérebro, seja por ação direta, desencadeando reações inflamatórias ou indiretas, sensibilizando vias neuronais a partir do aumento da atividade dos neurotransmissores – especialmente a dopamina e a serotonina, além daquelas relacionadas às reações de resposta ao estresse, intrinsicamente relacionada a esses usuários, como o cortisol e a noradrenalina – ou provocando sofrimento tecidual, secundários a eventos hemodinâmicos (Harricharan et al., 2017; Belda et al., 2015). Todos esses eventos podem se traduzir em sintomas e quadros psiquiátricos graves, com sintomas cognitivos pronunciados, muitas vezes de durabilidade arrastada, tornando o usuário mais susceptível a recaídas e muito menos disponível para as abordagens de terapêuticas e de cuidado (Booij et al., 2016; Morris et al., 2019).
Desse modo, a função da Psiquiatria – e por conseguinte da avaliação psiquiátrica, se fosse possível comparar o processo de recuperação com a da reestruturação de um canteiro de jardim – naquele momento tomado por mato e ervas daninhas, que retiram do solo cerebral
nutrientes essenciais para que o processo de recuperação tenha lugar e continuidade –, a função do psiquiatra se assemelharia à do pedreiro – que veda o canteiro de vazamentos indevidos, ou ao contrário, cria mecanismos de drenagens que impeçam alagamentos
–, para apoiar o trabalho de cuidado e revitalização do solo – agronômico e multidisciplinar –, para que finalmente, o paciente possa fazer suas escolhas de semeadura e cuidados de manutenção em jardinagem, sempre com apoio e supervisão de todos os citados.
Os transtornos psiquiátricos
A presença de transtornos psiquiátricos é recorrente entre os pacientes que consomem SPA (SAMHSA, 2006; DH, 2017), aumentando de modo significativo entre aqueles que procuram tratamento (Ribeiro & Laranjeira, 2012). Os transtornos de personalidade são a comorbidade mais comum (50-90%), seguidos pelos transtornos afetivos (depressão, transtorno bipolar e distimia) (20-60%) e pelos transtornos psicóticos (esquizofrenia, transtorno delirante e transtornos esquizofreniformes) (20%) (EMCDDA, 2004). Entre 10% a 50% dos pacientes apresentam mais de um transtorno mental simultâneo, além da dependência ou do uso nocivo de substâncias psicoativas (EMCDDA, 2004; Wüsthoff et al., 2011).
Esse fenômeno é denominado comorbidade. Tais comorbidades aumentam a gravidade dos sintomas, a refratariedade às propostas terapeutas e, por conseguinte, à adesão ao tratamento. Além disso, pacientes nessas situações têm maior risco de permanecer em situação de rua, de infecção pelo HIV, bem como de contato com o sistema criminal (Ribeiro & Laranjeira, 2012) – fica claro, desse modo, se tratar de uma condição que aumenta em muito vulnerabilidade do usuário de SPA e piora os seus indicadores sociais, incluindo carreira profissional e vida em família.
O capítulo 4, Dependência química e suas principais comorbidades
, apresenta um descritivo epidemiológico com os transtornos mentais mais observados na prática clínica do psiquiatra que atua no campo da dependência química.
O desenvolvimento neurobiológico da dependência química inclui inúmeros processos – alguns sobrepostos –, capazes de originar quadros psicopatológicos, os quais, apesar de não fugirem das descrições habituais, trazem peculiaridades vinculadas aos processos mencionados inicialmente. Isso pode ser constato, por exemplo, em quadros psicóticos ou maniformes que aparecem tardiamente, síndromes dotadas de maior instabilidade e oscilação dos sintomas, diferenças na resposta à farmacoterapia instituída, além de outras (Phillips et al., 2011; Morris et al., 2019; Solinas et al., 2019).
A sobreposição sintomatológica também traz dificuldade para o diagnóstico, muitas vezes até para o psiquiatra mais experiente, apesar de que a falta de capacitação e treinamento diagnóstico entre os profissionais que atuam nessa área acentua ainda o problema (Chambers et al., 2010).
A chegada do usuário para avaliação
Em geral, os usuários de SPA têm dificuldade em avaliar e identificar os sintomas que o acometem, quanto mais mensurar a gravidade deles (Orford, 2009). Muitas vezes, em nome dos apelos do consumo, a discrepância entre as normas estabelecidas pelo ambiente sociocultural onde vive e o conjunto de condutas adotadas por ele – com o intuito de garantir o padrão de consumo necessário para aliviar o desconforto dos sintomas da falta, apesar de enormes e graves –, passa despercebida e são desvalorizada ou sequer mencionada durante a avaliação – há uma minimização dos problemas com SPA por mecanismos defensivos, prejuízos neuropsicológicos ou falta de insight acerca da gravidade do uso (Orford, 2009). Por outro lado, entre aqueles pacientes seriamente impactados pelos problemas psicossociais relacionados ao consumo – tais como situação de rua e perda de peso pronunciada, acabam se sobrepondo a avaliação dos sintomas psiquiátricos, mimetizando o quadro. Por fim, dificuldades relacionadas ao timing da entrevista, ou seja, entrevistas iniciais tendem a coletar dados mais imprecisos do que as seguintes, pelos motivos acima (Carey & Correia, 1998).
Eixos da avaliação psiquiátrica
A fim de operacionalizar e melhor integrar a avaliação psiquiátrica à avaliação multidisciplinar, sem perder a psicopatologia e a neurobiologia como parâmetros, são propostos quatro eixos de investigação:
O impacto do consumo das substâncias propriamente dito. Consiste na avaliação das características psicofarmacológicas peculiares de cada droga – por exemplo, a ação sedativo-gabaérgica do álcool e os calmantes, sedativo-opioide da heroína, estimulante-monoamonérgica da cocaína e dos derivados anfetamínicos ou das ações ditas-alucinógenas
dos canabinóides, das triptaminas-serotoninérgicas como o LSD e análogos – ao lado da capacidade de todas elas de atuarem sobre o sistema de recompensa cerebral – e, portanto, de possuírem efeito euforizante, extático
: da combinação de ambos resulta o sabor da receita
psicoativa que caracteriza cada uma delas.
É o que se leva em consideração ao se avaliar as intoxicações agudas relacionadas ao consumo dessas substâncias, especialmente quando chegam à atenção de serviços de emergência (Marchetti et al., 2017). Entende-se por intoxicação aguda
qualquer "condição transitória após a administração de álcool