A razão indignada
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A razão indignada - Américo Freire
1ª edição
Rio de Janeiro
2016
Copyright © dos organizadores: Américo Freire e Jorge Ferreira, 2016
Capa: COPA (Steffania Paola e Rodrigo Moreira)
Diagramação: Babilonia Cultura Editorial
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
Freire, Américo
F935r
A razão indignada [recurso eletrônico]: Leonel Brizola em dois tempos (1961-1964 e 1979-2004) / Américo Freire, Jorge Ferreira; organização Américo Freire, Jorge Ferreira. - 1. ed. - Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2016.
recurso digital
Formato: ePub
Requisitos do sistema: adobe digital editions
Modo de acesso: world wide web
Sumário, prefácio, anexo
ISBN 978-85-200-1305-2 (recurso eletrônico)
1. Brizola, Leonel, 1922-2004. 2. Políticos - Brasil - Biografia. 3. Brasil - Política e governo. 4. Livros eletrônicos. I. Freire, Américo. II. Ferreira, Jorge. III. Título.
16-33130
CDD: 923.2
CDU: 929:32(81)
Todos os direitos reservados. É proibido reproduzir, armazenar ou transmitir partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.
Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.
Direitos desta edição adquiridos pela
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA
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Produzido no Brasil
2016
Sumário
Prefácio
Brizola e a história por um fio
João Trajano Sento-Sé*
Pode-se dizer, em linhas gerais, que a política nas democracias modernas opera em duas dimensões autônomas, ainda que potencialmente conectadas entre si. A primeira, predominante, diz respeito ao mundo das instituições, da adequação e aplicação das regras formais e impessoais, da rotina dos procedimentos e dos mecanismos de regulação focados na produção de regularidade e previsibilidade dos processos decisórios. Esse é o mundo preferido dos politólogos e dos engenheiros institucionais, empenhados em aperfeiçoar os sistemas e azeitar suas engrenagens, tendo em vista sua eficiência e estabilidade. Não é exagero apontar que o moderno mundo da política foi quase totalmente reduzido aos mecanismos e desafios impostos por tal dimensão.
Há, no entanto, outra face da política. Ela é mais obscura, menos recorrente e, em certo aspecto, diametralmente oposta à primeira. Trata-se de uma dimensão da política associada não à estabilidade, mas à agitação; não interessada na regularidade, mas na exceção; as forças nela atuantes são pouco afeitas aos mecanismos de produção de regras e mais inclinadas a subverter aquelas existentes. Uma dimensão da política, enfim, em que homens e seus sentimentos, fantasias, projetos de futuro e versões do passado prevalecem sobre procedimentos e regras, colocando em xeque toda e qualquer ambição de previsibilidade e mesmo o desejo de obtê-la. Tal dimensão não esteve sempre dissociada dos interesses de quem se dedica a pensar a política, mas seus encantos despertaram mais atenção entre livres-pensadores, etnólogos, historiadores.
Essas duas dimensões da política moderna de que tratamos não são propriamente excludentes, mas estão longe de ser complementares. De certo modo, quando coexistem, uma procura aniquilar a outra. Instituídas como tipos ideais, elas foram recortadas como modos diferenciados de adesão à dominação que Weber batizou, inspirado nas seitas do século XVI, de carisma; e, com base na ascensão da racionalidade instrumental, de burocracia. Erigidas como modelos, a dominação racional-legal (burocrática) e a carismática não se manifestam empiricamente em sua totalidade. Em seus movimentos de anulação recíproca, instituem campos de tensão, e convencionou-se associá-las ao ordenamento e à agitação.
Deve-se ter em mente, contudo, que a definição weberiana é apenas a diferenciação mais célebre e conhecida produzida pela literatura sociológica para um fenômeno que a desafia e intriga desde, no mínimo, o advento das massas e sua entrada no mundo da política. Está patente na letra de seus principais intérpretes (pensamos aqui em Gustave Le Bon, Gabriel Tarde e José Ortega y Gasset, por exemplo) que as massas trazem consigo, a partir de seu début na política moderna, a vertigem da desordem e da entropia. Apresentam, também, a celebração de seus líderes.
Cada uma dessas dimensões da política traz consigo suas simbologias, seus avatares e também suas personas. Os aspectos relevantes de cada uma delas, para o bem e para o mal, são personificados por atores concretos, sejam eles coletivos ou individuais. Tais atores atualizam e presentificam algo que os ultrapassa, ultrapassando, eles próprios, suas circunstâncias históricas e conjunturais. Há poucos casos em que ambas as dimensões habitam o mesmo personagem, entendido ele mesmo como campo de tensionamento e agonismo. Na história republicana brasileira, Leonel Brizola está entre os mais emblemáticos.
Certamente haverá outros casos de que se possa lançar mão. Para a experiência republicana brasileira, contudo, o líder trabalhista terá poucas figuras capazes de lhe ombrear como uma espécie de encarnação de um tensionamento que o ultrapassa. Passados alguns anos de seu falecimento, podemos dizer que Brizola transitou nas duas esferas da política com desenvoltura rara. Interpelou, pondo em questão, instituições, etiquetas e marcos institucionais com a verve dos grandes oradores. Conclamou as massas a desafiar o statu quo da dominação. Ao mesmo tempo, o fez inscrevendo-se numa tradição que vinha de longe
, postulando a liderança de um partido político organizado e focado na chegada ao poder pela via das disputas eleitorais. Mais do que isso, galgou ele próprio as esferas do poder cumprindo de forma competente as exigências próprias às liturgias das democracias representativas.
A Brizola muitos adjetivos couberam. Alguns deles exaltaram seus feitos, sua performance e sua sabedoria prática. Outros tantos foram esgrimidos para desmoralizá-lo ou desqualificar aquelas mesmas virtudes por que era exaltado. Para o primeiro conjunto, foi tratado como um herói carismático, um ator elevado a cargos e posições graças ao poder de mobilizar paixões com uma retórica inflamada e pungente. O adjetivo-síntese do segundo caso foi a marca de populista, qualidade pejorativa com pretensões sociológicas, através da qual não só ele, mas muitas outras lideranças foram desqualificadas (e mal compreendidas) na curta história das democracias latino-americanas.
Note-se que muitos dos qualificativos referidos a Brizola sugeririam uma sobrevida breve no campo da vida pública. Basta lembrarmos as definições clássicas sobre a figura do líder popular no contexto das políticas de massa. Não foi assim no seu caso. Traindo todas as previsões sociológicas, diagnósticos clínicos e vaticínios antropológicos, Brizola atuou com destaque não somente pelo curto período em que dura uma sublevação, mas pelo inacreditável período de meio século. Curto tempo para a história, estes cinquenta anos (na verdade, quase sessenta) são especiais para a América Latina, em geral, e para o Brasil, em particular. Ele atravessa, por exemplo, todo o período da Guerra Fria, que, experimentada de um satélite tão próximo a uma das partes, teve contornos dramáticos muito específicos.
Brizola entra para a política exatamente no momento em que o Brasil começava a passar por sua primeira e dificílima experiência de democracia de massas. Sua iniciação se dá exatamente no seio daquele que deveria vir a ser reconhecido como primeiro partido político de massas na história republicana brasileira, o PTB. Mais importante: na seção mais combativa e importante do primeiro partido de massas brasileiro. Atuando no Rio Grande do Sul, seu estado natal e reduto de alguns dos mais relevantes e encarniçados conflitos regionais de nossa história, Brizola teve uma ascensão meteórica. Do ponto de vista da carreira de um político profissional, fez um percurso de manual: começou no legislativo distrital, daí à Câmara Federal, até chegar aos cargos executivos mais importantes da região, como prefeito de Porto Alegre e governador do estado. Não é o caso de reconstituir aqui essa trajetória. O leitor poderá constatar por si próprio que os historiadores sabem contar bem essa história. Eles deixam evidente, inclusive, a capacidade original de Brizola transitar no interior do partido político que mais produziu lideranças populares em sua curta existência.
É importante enfatizar que em seus passos iniciais temos um operador dos meandros da política representativa e partidária ascendendo passo a passo como um tribuno afeito a falar a grandes públicos. Mais importante: um orador capaz de despertar o interesse e a atenção dos grandes públicos, em geral tão agitados e ruidosos.
Incorporando-se à política local gaúcha nos anos 1950, Brizola adotou um discurso anti-imperialista afinado à lógica terceiro-mundista e de não alinhamento, muito difundida em diversos centros, ainda que bastante marginalizada tanto por forças conservadoras quanto de esquerda. Seja de forma intuitiva ou sistematicamente informada (o que ainda não nos parece claro), o fato é que o discurso brizolista, em seus primeiros passos políticos, nada deve àqueles veiculados pelos principais líderes das lutas de libertação colonial e de afirmação da soberania na África, na Ásia, no Oriente Médio e na própria América Latina. Categorias como autodeterminação, libertação nacional e anti-imperialismo fazem parte do léxico das esquerdas com que Brizola se identificava, enfatizando seu componente popular ao mesmo tempo que se afastava da linhagem marxista-leninista, orientadora da maior parte dos partidos comunistas de então.
Esse aspecto da trajetória de Brizola é muito importante. A seu modo e com os maneirismos próprios de um homem da fronteira sul, ele veiculou um discurso de libertação popular e de afirmação nacional em patamares semelhantes àqueles que foram divulgados em outros cantos do mundo colonial. Esse foi seu passaporte para ser, a um só tempo, regional, nacional (e nacionalista) e cosmopolita como poucas lideranças na história lograram ser. Não é à toa que, a despeito das rusgas políticas da época e das conhecidas distâncias políticas, há muito na trajetória inicial de Brizola que se reacende ao voltarmos às páginas de Guerreiro Ramos, Celso Furtado ou Vieira Pinto, do mesmo período.
Jovem, Brizola transita do regionalismo gaúcho para o soi dissant cosmopolitismo do Rio de Janeiro (então estado da Guanabara) com uma facilidade surpreendente. Fosse dos trópicos nos anos 1960, talvez Hegel registrasse ter visto o espírito do Terceiro Mundo flanando pelas areias de Copacabana. Não estaria sendo menos preciso do que o foi em sua versão prussiana. O inesperado encontro entre a tradição guerreira do sul com a insubordinação de rua dos espaços urbanos, traço histórico da antiga capital federal, é encarnado não somente na retórica de resistência ao golpe, na conclamação às reformas de base a qualquer custo ou na animação que leva à criação dos Grupos dos Onze. O homem do Partido Trabalhista Brasileiro se torna, simultaneamente, o agitador das ruas, o líder das multidões.
Havia tudo para que as chamadas forças populares
interferissem nos rumos convencionais da história, tomassem as rédeas a sua vida e imprimissem uma nova direção a seu destino. Elas o fariam nas votações tanto quanto nas manifestações e mobilizações populares. Não importa o quão precisa era tal descrição do ponto de vista sociológico. Realização humana, caberia de qualquer modo aos homens imprimirem sua marca à história, e tal possibilidade acaba interrompida artificial e abruptamente. A história fora violada.
Essa percepção construída dolorosamente nos quinze anos de exílio é o suporte para a experiência urdida nos dez anos seguintes, que cobrem o período que vai do momento da anistia, em 1979, à primeira eleição presidencial, em 1989. Nesses dez anos, a oratória nacionalista visa a se atualizar, antigas bandeiras são repaginadas e novas questões são incorporadas ao ideário trabalhista de Brizola. O foco parece o mesmo: enfrentar as forças de dominação que obstruem a consagração democrática e a autodeterminação dos povos. Por tal abordagem, a política é um meio, jamais um fim em si mesma.
Há muito de tradicional na política de Brizola desde suas origens. Ele parece recuperar a dimensão da fantasmagoria privada do personagem para o qual representar significava fazer presente, tornar visível o aspecto simbólico que justifica o exercício de seu poder. A rigor, ele moderniza a figura do rei antigo em suas aparições públicas, uma vez que elas prescindem de sua presença física. Em resumo, há algo em Brizola e na recepção de sua figura que nos faz lembrar os personagens descritos por Marc Bloch e Ernst Kantorowicz, entre tantos outros. Basta-lhe a voz, transmitida em ondas curtas pelo rádio, para impor sua autoridade. Foi assim, em 1961. Sua ausência em abril de 1964 foi trágica, alegam depoimentos de contemporâneos. Líder carismático, ele, ao mesmo tempo, insiste na filiação ao trabalhismo, entendido como uma tradição política que remonta a Bento Gonçalves e às lutas de fronteira, no século XIX. Sem prejuízo de tais perfis, jamais abriu mão de liderar o partido que criou (PDT), assim como muito cedo disputou a liderança do antigo PTB.
Em 1990, meses depois do indefectível Fukuyama declarar, performaticamente, o fim da história, e ele próprio ver seu projeto de retomá-la logrado graças à ascensão prematura daquele que deveria sucedê-lo, Brizola obtinha seu último grande feito na política eleitoral. Após a estrondosa vitória nas eleições para o governo do Rio de Janeiro, ele iniciou seu lento declínio na política eleitoral. Permaneceu, contudo, de forma intransigente, atuante marcando posições e atraindo atenções. Entrou para a história sem ter que deixar a vida pública e assim ficará. Teve voz ativa, ainda que destoante, na maior prova de fogo por que passou a Nova República, durante a crise que resultou no impeachment de Fernando Collor. Viveu o suficiente para testemunhar, e celebrar discretamente, a primeira real alternância de poder na política republicana brasileira, quando Lula (aquele que deveria sucedê-lo) é alçado à Presidência da República. Quando falece, no emblemático ano de 2004, cinquentenário do documento que tanto reverenciou, completara não um, mas vários ciclos.
É possível afirmar que vigora no Brasil atual uma sólida e estabelecida democracia representativa de corte liberal, objeto de desejo de amplos setores políticos brasileiros desde a segunda metade do século XX. Indiscutível o protagonismo, por vezes heroico, outras vezes desastrado, de Leonel Brizola ao longo de todo esse percurso. Ele aparece em quase todas as fotos. Lá está ele na resistência ao golpe de 1961; no comício da Central do Brasil, em 1964; na coletânea de exilados ilustres (figuras quase míticas para os jovens que começaram a se interessar por política no pós-golpe) desembarcando em solo nacional, em 1979; no comício das Diretas Já, em 1984; nas eleições presidenciais de 1989, 1994, 1998 e 2002. Para alguns de seus contemporâneos, a impressão é de que está presente também nas fotos em que não aparece, tamanha sua disposição de ocupar lugar nos debates públicos mais relevantes nessa longa metade de século XX. Reconstituir sua trajetória equivale, em grande parte, a estudar a recente história política brasileira que vai da primeira experiência de democracia de massas, seu fracasso, até sua aparentemente mais bem-sucedida versão.
É divertido imaginar como Brizola se posicionaria nos episódios mais relevantes após sua morte. Como encararia a transformação do PT de guardião da lisura política em objeto de denúncias e investigação policial? Quais seriam suas impressões sobre a Era Lula, da qual acompanhou apenas uma pequena parte? Como se posicionaria no contexto das jornadas de junho de 2013 ou diante do declínio petista sob os governos Dilma Rousseff? Imaginá-lo nesses cenários, contudo, é puro exercício de ficção. Já não há tantos debates em torno dos problemas que o mobilizaram. Mesmo sua verve parece, hoje, não ser cultivável nos campos do confronto político. Talvez tenha se tornado moeda de segundo valor.
Do ponto de vista historiográfico, contudo, são variadas as perguntas e as linhas de investigação. Há campo para ser explorado e, com certeza, eles abrirão novas frentes de análise sobre a história da política e da democracia no Brasil. O presente livro é prova concreta disso. A julgar pelas páginas que se seguem, um plano de trabalho já está lançado e, boa notícia, tudo indica que está em ótimas mãos. Na primeira parte do livro, somos iniciados nos dilemas implicados desde a filiação de Brizola ao PTB, em 1945, até o golpe de 1964. O plano geral do discurso brizolista apresentado por Jorge Ferreira é seguido pela experiência de um líder nacionalista que milita nas ruas, via Frente de Mobilização Popular, dando vida aos Comandos Nacionalistas, ou Grupos de Onze Companheiros, apresentada por Carla Brandalise e Marluza Harres. Para aqueles que talvez se sintam tentados a persistir no caráter circunscrito do Grupo dos Onze [também grafado como Grupo de Onze, Grupo dos 11, Grupo de 11 e G11], cai bem a leitura dos capítulos de autoria de Tânia Tavares e de Soanne dos Santos. Neles evidencia-se o parentesco entre o historiador e o detetive que vai encontrar os resquícios do brizolismo em Duque de Caxias ou na longínqua Una, na Bahia. A primeira parte do livro, e da trajetória de Brizola, é concluída pelo tensionamento entre o trabalhismo ilustrado, personificado em San Tiago Dantas e o irredentismo brizolista, duas faces de um mesmo e desastroso desenlace.
Na segunda parte deste livro, o novo trabalhismo emerge. Ele traz os negros, as populações indígenas, as mulheres e os favelados com a mesma pujança com que abordara o povo e os explorados da terra. Atualização da retórica do combate, um novo brizolismo aparece para afirmar o resgate de seu antecessor. Síntese sem negação. As disputas intermináveis com as outras esquerdas são recuperadas nos artigos de Américo Freire e Michelle Macedo, enquanto dois dos maiores programas que inscrevem os governos Brizola na história social do Rio de Janeiro são resgatados por Bruno Marques, no que se refere à segurança pública, e por Libânia Xavier, tratando do programa dos Cieps. Nesses dois casos, cabe destacar que tais programas, marcados em grande medida pelo seu fracasso, seguem pairando nos debates travados em suas respectivas áreas.
Finalmente, o funeral de Brizola parece reiterar, seguindo a interpretação de Angela de Castro Gomes, a analogia de Brizola com os dois corpos do rei, de que trata Ernst Kantorowicz, feita anteriormente. Sua leitura talvez seja o melhor indicativo de que provavelmente Brizola foi daquelas lideranças que não podem batizar uma era. Ele foi protagonista da história da invenção da democracia de massas no Brasil, mas foi, simultaneamente, um homem de muitas eras. Talvez por isso em tantos momentos sua oratória tenha soado anacrônica, ultrapassada ou datada, o que lhe valeu não poucos adjetivos sarcásticos. Flertando com rupturas, sublevações e revoluções, cuidou de lembrar que era ele quem trazia o fio da história. Guardou um segredo: a história de cujo fio era portador só se revela no plural das diferentes temporalidades. Elas se cruzam, reaparecem quando pareciam sepultadas, conferem significados às coisas do mesmo modo que desfazem antigas conexões de sentido. Assim, como afirmado linhas atrás, talvez o estilo e a verve de Brizola tenham se tornado, hoje, moeda de segundo valor. Mas, por outro lado, talvez não. O desencantamento da política pode não passar de uma falsa impressão conjuntural.
Líderes políticos costumam imprimir sua marca na história por meio de realizações. É curioso pensar que Brizola pode ter sido um tipo singular de figura pública para quem a entrada na história está fortemente associada também a alguns grandes fracassos. Com isso não se nega que ele tenha acumulado realizações e feitos dignos de nota. Longe disso. Acontece, porém, que Brizola pode ser pensado como um estranho caso de liderança capaz de resgatar o caráter glorioso das tentativas frustradas, dos planos abortados, das batalhas perdidas, das histórias por um fio. Há pujança, já nos sugeriam os poetas trágicos, na explicitação da fragilidade das coisas implicadas na vida humana, e só os fracassos dão sentido heroico às derrotas. E Brizola foi protagonista de diversos deles. Mais importante: também deles extraiu grandeza. Não sei se os autores concordariam com tal vaticínio, mas isso também nos é ensinado pelas páginas a seguir. Bom sinal.
Nota
*Professor do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da UERJ.
Apresentação
Américo Freire e Jorge Ferreira
Leonel Brizola, gostemos ou não, foi uma figura extraordinária da história política brasileira contemporânea. Basta passarmos os olhos pela sua longa trajetória de homem público, que cobriu quase sessenta anos, para verificarmos o quão distante esteve daquilo que a literatura costuma identificar como ordinário na política: os acordos de corredor ao sabor das circunstâncias; o trabalho diuturno de conquista, cooptação e convencimento de adeptos; o tratamento de temas regulares do cotidiano; os deslocamentos silenciosos e calculados de posição em uma situação política já estabelecida de antemão.
Em sinal inverso, Brizola operava, ou melhor, aprazia-se em operar em um plano mais amplo com o intuito de afastar-se dos constrangimentos de ocasião. Em geral, cultivou especial predileção pela chamada grande política
, qual seja a que, nos termos de Antonio Gramsci, compreende as questões ligadas à luta pela destruição, pela defesa, pela conservação de determinadas estruturas orgânicas econômico-sociais
. Prosseguindo nesse mesmo sentido, só que agora mobilizando outras definições, como a de Pierre Rosanvallon, por exemplo, poder-se-ia dizer que Brizola pautou sua atuação como homem público em constante diálogo e interpelação com os aspectos constitutivos da política – com o chamado político –, visto pelo historiador francês como o lugar onde se entrelaçam os múltiplos fios da vida dos homens e mulheres; aquilo que confere um quadro geral a seus discursos e ações; [o político] remete à existência de uma sociedade que, aos olhos de seus partícipes, aparece como um todo dotado de sentido
. Mas, afinal, na prática o que isso quer dizer?
Em primeiro lugar, cabe alertar o leitor de que não estamos referendando análises que tendem a ver nosso personagem como um vulto republicano
ou como um homem superior aos demais ou coisa que o valha. Deixemos isso para os apologistas de plantão. Tampouco convalidamos teses que tendem a estabelecer dicotomias e julgamentos entre a grande política
, em geral vista como positiva e ideológica, e a pequena ou baixa política
, costumeiramente entendida como mesquinha e clientelística. Há tempos a literatura vem questionando essa hierarquia e tem demonstrado que essas práticas coexistem e se interpenetram.
Também cabe ressaltar o fato de que Brizola não deve ser visto pelo prisma da excepcionalidade
ou mesmo como um fenômeno
ou um corpo estranho
no conjunto da política brasileira, parafraseando o historiador Thomas Skidmore quando, em vão, buscou explicar a sinuosa trajetória de Jânio Quadros – figura em nada semelhante a Brizola. Ao mencionarmos a predileção de Brizola pelos temas e questões de largo escopo, deve-se levar em consideração o ambiente político em que ele e sua geração foram formados, ou seja, no mundo do pós-guerra e no Brasil das décadas de 1950 e 1960 em que estiveram em disputa diferentes projetos ideológicos e de Nação. Outro vetor importante para sua formação foi a convivência diuturna com o acirrado clima de disputa entre facções e partidos que há muito marcavam a política rio-grandense. Nos pampas, a política era – e ainda é – vista como algo viril, a ser enfrentada a ferro e fogo, a polarizar interesses e paixões.
Mais do que atributos individuais ou excepcionais, o que aqui merece ser registrado, no nosso modo de entender, é o caráter original da intervenção política de Brizola no espaço público brasileiro, seja como dirigente político, seja como administrador, seja como intelectual e pregador cívico em defesa de um trabalhismo de forte apelo popular. Dois momentos foram fundamentais para ajudar a constituir e modelar sua persona política. O primeiro deles foi quando assumiu cargos executivos em seu estado natal, primeiro como prefeito da capital e em seguida como governador de estado. Nessas ocasiões, entrou em cena o engenheiro
Brizola, o tocador de obras, o administrador interessado em implementar políticas públicas voltadas para o conjunto da população. O símbolo-mor dessas políticas foram as Brizoletas. O segundo foi em 1961, quando liderou a Campanha da Legalidade com o propósito de assegurar a posse de João Goulart na Presidência da República. Vitorioso, rompeu definitivamente o círculo regional e partiu célere para o centro do palco nacional. Na esteira do seu batismo de fogo
, Brizola passaria a ocupar um espaço singular na história das esquerdas e da política brasileira até sua morte, em 2004.
Neste livro, reunimos textos de colegas de diversas instituições universitárias brasileiras que, nos últimos anos, têm tido como objeto de pesquisa determinadas questões e temas diretamente relacionados à presença de Leonel Brizola na história política contemporânea brasileira. Optou-se por organizar as diversas contribuições em duas partes, correspondendo, de certa forma, a duas etapas marcantes na carreira política do líder trabalhista gaúcho.
Na primeira parte estão reunidos textos que abrem o leque de análise a respeito do nosso personagem nos marcos temporais compreendidos entre a Campanha da Legalidade e a vitória do golpe civil-militar de 1964. São cinco capítulos distribuídos em torno de três eixos: as proposições político-ideológicas de Leonel Brizola; as disputas no campo trabalhista; a criação dos Comandos Nacionalistas ou Grupos de Onze Companheiros e seu significado para os embates políticos que antecederam o golpe civil-militar de 1964. A respeito desse último eixo, nossa opção foi trazer à luz estudos que analisam a origem e a atuação dos Grupos de Onze em distintas realidades político-territoriais – no Rio Grande do Sul, no Rio de Janeiro e na Bahia.
Os capítulos 6, 7, 8 e 9 da segunda parte apresentam reflexões acerca da trajetória de Brizola nas décadas que se seguiram ao seu retorno definitivo ao Brasil em decorrência da promulgação da lei de anistia, em agosto de 1979. Os eixos de análise são os seguintes: a reconstrução e renovação do trabalhismo sob a égide da liderança de Brizola; as disputas no campo das esquerdas; e estudos de políticas públicas que podem ser vistas como paradigmáticas no universo brizolista-trabalhista: educação e segurança pública. No capítulo final, a historiadora Angela de Castro Gomes ultrapassa esses limites temporais e abre as lentes de análise com vistas a melhor situar a trajetória do líder gaúcho na tradição trabalhista.
Os organizadores agradecem, em primeiro lugar, aos autores dos capítulos que se prontificaram a participar de um projeto que, há alguns anos, vinha sendo acalentado e debatido em eventos acadêmicos, possibilitando que o livro venha a público. Também tivemos a oportunidade e a sorte de contar com o prefácio de João Trajano de Sento-Sé – caro amigo e autor de reconhecida obra de referência a respeito dos estudos sobre Brizola e o trabalhismo. Por fim, mas não menos importante, registramos o apoio e a competência de Andreia Amaral, da Civilização Brasileira, para viabilizar a publicação do livro.
Jorge Ferreira
Na história do PTB, ainda cabem merecidos estudos sobre intelectuais que formularam corpo teórico e doutrinário para o trabalhismo. Intelectual, aqui, é compreendido na definição de Jean-François Sirinelli: produtor de bens simbólicos e envolvido, direta ou indiretamente, com a vida política do país. Marcondes Filho, Alberto Pasqualini, Fernando Ferrari e San Tiago Dantas são os nomes mais citados. No entanto, embora tenham formulado ideias originais sobre trabalhismo, determinados personagens são mais lembrados pela atuação na política partidária e menos como intelectuais. É o caso de Leonel Brizola. Durante o governo João Goulart (1961-1964), Brizola liderou a extrema esquerda do PTB. Nesse período, interpretou o trabalhismo à luz das ideias que empolgavam as esquerdas na América Latina desde meados dos anos 1950, influenciado pelos movimentos anti-imperialistas latino-americanos na conjuntura da Guerra Fria e pelas repercussões da revolução cubana. Nesse sentido, Brizola atuou, também, como intelectual. Quero, neste capítulo, analisar as ideias e os projetos políticos defendidos por Leonel Brizola durante o governo de João Goulart. As fontes privilegiadas serão discursos proferidos por ele em 1961, o manifesto do Grupo de Onze Companheiros e editoriais publicados em Panfleto. O jornal do homem da rua.
Homem de origem social humilde, Leonel Brizola entrou para o PTB em 1945. Na época, era estudante de engenharia e fundou, dentro do partido, a ala estudantil. Em 1947, foi eleito deputado estadual pelo seu estado, o Rio Grande do Sul. Em 1950, venceu o pleito para o mesmo cargo. Em 1951 concorreu à Prefeitura da capital, Porto Alegre, mas perdeu por cerca de 1% dos votos. No ano seguinte, assumiu a Secretaria de Estado de Obras do RS e, dois anos depois, foi eleito deputado federal. Nas eleições de 1955, tornou-se prefeito de Porto Alegre. Na Prefeitura, realizou investimentos sociais nos bairros populares, sobretudo no saneamento básico, na melhoria dos transportes e na criação de dezenas de escolas. Em 1958, foi eleito governador do estado.
No governo do Rio Grande do Sul, Brizola adotou política econômica desenvolvimentista. Recorrendo à tradição nacionalista e estatista inaugurada por Getúlio Vargas, ele fundou a Caixa Econômica Estadual, o Banco Regional de Desenvolvimento Econômico e empresas estatais em atividades estratégicas, como a Aços Finos Piratini e a Companhia Rio-Grandense de Telecomunicações. Construiu estradas, permitindo o escoamento da produção agropecuária das diversas regiões do estado para os portos.
A educação foi sua prioridade. Construiu 5.902 escolas primárias (atual ensino fundamental I), 278 escolas técnicas e 131 ginásios (atual ensino fundamental II) e escolas normais (atual ensino médio voltado para a formação de professores do ensino fundamental I). Foram abertas 688.209 matrículas e contratados 42.153 professores.
Brizola apoiou movimentos camponeses, como o Movimento dos Agricultores Sem Terra (Master). Sua medida de maior impacto foi a nacionalização de duas empresas norte-americanas: uma de energia elétrica e outra de comunicações. Ambas se recusavam a investir em infraestrutura e a ampliar os serviços. Com a intransigência das empresas em negociar novos investimentos, Brizola as encampou, tornando-as patrimônio estatal. A indenização foi simbólica, de um cruzeiro para cada uma delas.
Leonel Brizola se destacava do conjunto de governadores do país pela política desenvolvimentista associada a consistentes investimentos em educação. Mas foi a estatização de empresas norte-americanas que provocou forte impacto entre as esquerdas. Afinal, nacionalizar multinacionais era um dos programas políticos das esquerdas latino-americanas.
Entretanto, foi em agosto de 1961, no episódio da renúncia do então presidente Jânio Quadros, que Leonel Brizola veio a se destacar no campo das esquerdas e da democracia. Após a renúncia, apresentada no dia 25 de agosto daquele mês, os três ministros militares vetaram a posse do vice João Goulart. Brizola, com apoio popular no estado, desafiou abertamente os golpistas, dando início ao movimento conhecido como Campanha da Legalidade. O objetivo era garantir a posse de Jango.
Para romper a censura imposta pela Junta