Carvão animal
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Sobre este e-book
Seus heróis são trabalhadores sempre à margem da sociedade, presos na ambigüidade das próprias funções, condicionados pelas próprias escolhas. Marginalizados por elas. Ernesto Wesley, Ronivon, Edgar Wilson. Eles estão por toda parte. O que os torna únicos é a abordagem da autora. A capacidade de filtrar cada realidade e exibir, nua e crua, a motivação de personagens amorais, mas quase líricos.
Com muito sangue, violência e estilo, Ana Paula Maia lança o olhar ao outro, e extrai, de cada um, sua qualidade mais humana. E assim subverte qualquer atitude condenável em feito redentor. Mas não há luz nesse heroísmo. Também não há trevas. É um momento repleto de cinzas, de um tom intermediário, suspenso no tempo. Uma atmosfera claustrofóbica, que envolve e hipnotiza o leitor.
Como um soco no estômago, Carvão Animal nos rouba o ar. Penetra na carne, ossos e tendões. E nos coloca frente a frente com uma realidade muitas vezes despida de dignidade. Uma realidade não calma ou sonolenta. Mas que despedaça e desfigura. Como a morte que ronda esses personagens. É impossível desviar o olhar.
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Carvão animal - Ana Paula Maia
Tu és pó e ao pó tornarás.
Gênesis 3:19
Apresentação
Este livro encerra a trilogia A saga dos brutos, formada pelas novelas Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos e O trabalho sujo dos outros, ambas contidas no livro que dá título à primeira novela.
Carvão animal é um romance que se passa dez anos antes das duas primeiras histórias, e assim encerra uma saga que teve por fundamento expor como o caráter do ser humano pode ser moldado pelo trabalho que executa, como o meio intervém na construção das identidades e como essas identidades modificam o meio. Evidente que, se olharmos para os lados, muito ainda deve ser contado. Ainda há muitos brutos para admirarmos.
Capítulo 1
No fim tudo o que resta são os dentes. Eles permitem identificar quem você é. O melhor conselho é que o indivíduo preserve os dentes mais que a própria dignidade, pois a dignidade não dirá quem você é, ou melhor, era. Sua profissão, dinheiro, documentos, memória, amores não servirão para nada. Quando o corpo carboniza, os dentes preservam o indivíduo, sua verdadeira história. Aqueles que não possuem dentes se tornam menos que miseráveis. Tornam-se apenas cinzas e pedaços de carvão. Nada mais.
Ernesto Wesley arrisca-se todo o tempo. Lança-se contra o fogo, atravessa a fumaça preta e densa, engole saliva com gosto de fuligem e conhece o tipo de material dos móveis de cada ambiente pelo crepitar das chamas.
Acostumou-se aos gritos de desespero, ao sangue e à morte. Quando começou a trabalhar, descobriu que nesta profissão há uma espécie de loucura e determinação em salvar o outro. Seus atos de bravura não o fazem julgar-se herói. No fim do dia, ainda sente os seus impactos. É na tentativa de preservar alguma esperança de vida em algum lugar que todos os dias ele se levanta e vai para o trabalho.
Seus fracassos são maiores do que os sucessos. Entendeu que o fogo é traiçoeiro. Surge silencioso, arrasta-se sobre toda a superfície, apaga os vestígios e deixa apenas cinzas. Tudo o que uma pessoa constrói e tudo o que ostenta, ele devora numa lambida. Todos estão ao alcance do fogo.
Ernesto Wesley não gosta de atender a ocorrências de acidentes automobilísticos ou aéreos. Não gosta do ferro retorcido e muito menos de ter de serrá-lo. A motosserra lhe causa mal-estar. Enquanto separa as ferragens, o tremor do corpo o faz perder por breves instantes a sensibilidade dos movimentos. Sente-se rígido e automático. Um erro é fatal. Se alguém erra numa profissão como esta, torna-se maldito, um condenado. É preciso arriscar-se o tempo todo. É para isso que é pago. É para isso que serve. Foi treinado para salvar, e, quando falha, os olhares de decepção dos outros fazem a sua honra arrastar-se em pó.
A única coisa que gosta de enfrentar é o fogo. Desviar das labaredas e correr das chamas violentas quando encontram abundante oxigênio. Arrastar-se no chão que range sob seu ventre, sentir o calor atravessar seu uniforme, a queda de um reboco, o desabamento de um andar sobre o outro, a fiação pendurada e as paredes partidas. O crepitar das chamas que cronometram seu tempo de resistência, o iminente instante da morte e, por fim, suportar um peso maior que o seu sobre as costas e resgatar alguém que nunca mais esquecerá seu rosto embaçado pela fuligem preta.
Ernesto Wesley é o melhor no que faz, mas pouca gente sabe disso.
Sorri para o espelho do banheiro e em seguida passa fio dental nos dentes. Limpa cuidadosamente todos os vãos e conclui a limpeza com um enxágue bucal sabor menta. Seus dentes são limpos. Poucas obturações. Um molar possui uma jaqueta de ouro. Derreteu a aliança de casamento da mãe morta e revestiu o dente. Isto é para identificação, caso morra trabalhando ou em outras circunstâncias. Ter um dente de ouro é peculiar, e isto fará com que o reconheçam com maior facilidade.
— Como está o Oliveira? — pergunta um homem usando o mictório.
— Disseram que bem — responde Ernesto Wesley. — Mas tiveram de amputar a mão.
— Diabo!
O homem termina de usar o mictório e aproxima-se da pia para lavar as mãos. Olha para elas e suspira. A água sai num fio de cor bege.
— Essa torneira vive com defeito — diz o homem.
— Não é a torneira. Tem pouca água aqui.
— Essa água está imunda.
— É o encanamento velho. Está tudo velho.
— Isso me faz sentir ainda mais velho. Acharam a dentadura do Guimarães?
— Eu procurei nos escombros, mas não encontrei.
— Como identificaram o corpo?
— Uma marca de nascença nos pés. Aquele pé ficou praticamente intacto justamente pra identificá-lo.
— Sem os dentes, só mesmo um lance de sorte como este.
— O Guimarães teve muita sorte mesmo. Seis corpos estão destruídos e ainda sem identificação. Tem outro colega sumido.
— Sei... o Pereira.
— Agora, só quando a perícia liberar.
— O Pereira tinha dentes pequenos e pontudos.
— Eram horríveis e estavam cariados.
Os dois homens entreolham-se pelo espelho e permanecem escutando por alguns segundos o arrulhar inquietante da lâmpada fluorescente que crepita vez ou outra insinuando queimar a qualquer instante.
— São aqueles dentinhos feiosos que vão salvá-lo agora — comenta Ernesto Wesley.
— Se vão. Eu mesmo encontraria o Pereira só em olhar para aqueles dentes.
— Dentes de tubarão.
A porta do banheiro é aberta por um homem baixo e de olhar perscrutador. Ele segura uma prancheta.
— Vocês dois precisam atender um sinistro.
Ernesto Wesley termina de usar o mictório e fecha a braguilha.
— Batida de dois carros e um caminhão. Tem gente presa nas ferragens.
— O Frederico é bom em serrar.
— Ele está de folga hoje. Só tem vocês dois.
— Quantas vítimas?
— Seis.
— Bêbados?
— Dois deles.
— Me sinto mais a porcaria de um catador de lixo — murmura Ernesto Wesley, que estava calado até o momento.
— Não deixa de ser — diz o homem.
Os dois homens seguem o terceiro e vão para o caminhão. A ocorrência fica a cinco quilômetros, numa autoestrada.
— Vontade de fumar — diz Ernesto Wesley.
— Eu também. Não sei como você consegue ter dentes tão brancos.
— Uso bicarbonato de sódio pra clarear.
— Você tem os melhores dentes do grupamento, Ernesto.
— E você tem os melhores incisivos que já vi em alguém. Um retângulo perfeito que deixa uma mordida inconfundível nos seus sanduíches.
— Você já percebeu isso?
— Eu e todo o grupamento. Sei quando um resto é seu pela mordida.
O homem, admirado, ajeita a fivela do cinto de segurança até ouvir o clic.
— Não gosto de serrar. Fico apreensivo — murmura Ernesto.
— Talvez não será preciso.
Ernesto Wesley olha para o céu. Está estrelado e a lua ainda não apareceu. Ele estica os olhos e revira a cabeça, mas não a encontra.
— Acho difícil. Alguma coisa me dizia que hoje eu ia usar a motosserra — comenta Ernesto Wesley.
— Odeio bêbados — murmura o homem.
— Eu também — concorda Ernesto Wesley.
— É como se fosse ontem minha irmã morta na estrada das Colinas.
— Eu me lembro. Tive de arrancar o sujeito das ferragens. Um careca desgraçado.
— Ele partiu ela ao meio.
— Me lembro disso também.
— Queria matar o desgraçado na ocasião. Cheguei a isso aqui, ó, de matar o sujeito.
— Somos pagos pra salvar até mesmo os desgraçados, carecas e bêbados filhos da puta.
— Eu tô cansado de tanta merda de gente irresponsável.
— Vamos ter de conviver com o cheiro dessa merda. Afinal, nos pagam pra isso — conclui Ernesto.
Ernesto Wesley abaixa a cabeça, resignado. Os olhos ardem, lacrimejam, mas ele não chora faz três anos. Não consegue desde então. Suas lágrimas evaporaram.
O silêncio