Publicidade digital e proteção de dados pessoais: O direito ao sossego
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Sobre este e-book
O autor desenha a metáfora do habeas mente, como garantia contra as publicidades virtuais que utilizam dados pessoais da pessoa conectada em rede, assediando ao consumo e, consequentemente, perturbando o sossego dos consumidores. O reconhecimento da dignidade humana pressupõe a efetiva tutela das potencialidades e liberdades físicas (- corpo) e psíquicas(mente).
O autor igualmente menciona a teoria do desvio produtivo do consumidor como uma das possíveis respostas à ingerência na esfera existencial dos usuários da Internet, envolvendo valores como o trabalho, o lazer, o descanso e o convívio pessoal. O tempo do consumidor compõe o dano ressarcível, assim como os demais danos existenciais da sociedade da informação.
A responsabilidade do fornecedor não pode ser eliminada sob a alegação de que o ambiente da Internet é de difícil regulação, sendo, por excelência, um espaço de liberdade. Isso seria defender uma imunidade aos valores fundamentais do ordenamento, em especial no tocante ao livre desenvolvimento da pessoa humana, face às publicidades importunadoras, que se valem de dados pessoais, inclusive sensíveis.
Os aspectos ligados à segurança da informação e, em especial, da governança corporativa (compliance) para a proteção de dados pessoais, contemplados nos artigos 46 a 51 da Lei Geral de Proteção de Dados, servem de reforço à proteção do sossego do consumidor, prevenindo situações de tratamento inadequado ou irregular".
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Publicidade digital e proteção de dados pessoais - Arthur Pinheiro Basan
Federal
1
INTRODUÇÃO
A sociedade contemporânea, notadamente designada de diversas formas, seja como sociedade pós-moderna, pós-industrial, globalizada, em rede, ou de consumo, apesar das diferentes denominações carrega consigo a mesma causa subjacente: vive-se a Sociedade da Informação¹. Desse modo, o desenvolvimento da computação e, sobretudo, a ampliação do uso da Internet proporcionou novo ambiente para as interações humanas, com nítidos reflexos nos diversos subsistemas sociais (econômico, jurídico, familiar, político etc.).²
Em verdade, a era da informação revela-se espaço ótimo para a promoção da pessoa e da democracia, e, ao mesmo tempo, território para abusos por parte do mercado, ávido por lucro³, impulsionando a efetivação de uma sociedade cada vez mais consumista.⁴ Com efeito, tais fenômenos exigem maior atenção e cuidado pelo sistema jurídico, em especial, visando a concretização dos direitos fundamentais que se tornaram mais frágeis ao serem expostos à sociedade informatizada.⁵
Assim, nesse ritmo de crescimento e de potencialização da informação cresce também o costume de as pessoas possuírem duas espécies de vida, isto é, uma vida real, de contato físico e material com pessoas e bens; e outra virtual, composta por redes sociais, emails, blogs⁶, canais de vídeo, páginas pessoais etc., em interativa relação com outras pessoas e bens virtuais.⁷
Neste sentido, Stefano Rodotà descreve a formação de um corpo elettronico, um novo aspecto da pessoa natural que não ostenta apenas a massa física, ou um corpus, mas também uma dimensão digital.⁸ Outra expressão cunhada para definir essa situação é a de Roger Clarke: persona digital.⁹ Segundo o autor, uma persona digital é um modelo de um indivíduo diante de representações baseadas em conjuntos de dados privados colhidos da pessoa, formando verdadeiros avatares digitais.¹⁰
Diante disso, é importante ressaltar que a concepção virtual começa a tomar maiores proporções, a ponto de demonstrar que também carece de cuidado e proteção, uma vez que faz parte do patrimônio jurídico da pessoa, decorrência do direito ao livre desenvolvimento da personalidade, valor fundamental no ordenamento.¹¹ Afinal, no atual contexto, a existência real pode ser até menorizada se não tiver lugar na Internet, revelando, portanto, a sua relevância.
Em paralelo a isso, no âmbito mercadológico, a publicidade se destaca como mola-mestra da economia informatizada, matéria-prima de uma milionária indústria mundial. Em verdade, neste contexto de Sociedade da Informação, com desenvolvimento constante do mundo virtual, impulsionado pela expansão do ambiente da Internet, a publicidade se destaca, revelando também tarefa importante na sociedade contemporânea. Isso porque a prática publicitária se enquadra como instrumento capaz de disseminar valores culturais e éticos, implementar condutas e comportamentos, e oferecer o acesso rápido e fácil a bens e serviços, auxiliando a satisfação das mais diversas necessidades humanas que, conforme se nota, ampliam-se conforme a sociedade aumenta também a sua complexidade. Vale ressaltar, também, que a publicidade confere incremento à atividade empresarial, gerando, consequentemente, desenvolvimento à sociedade de um modo geral, como circulação de riquezas e promoção de empregos.
Mesmo assim, diversas pessoas não notam a influência que essas publicidades promovem na atual sociedade, ou seja, mesmo diante da quantidade crescente de anúncios publicitários espalhados no cotidiano social, muitas pessoas ignoram, conscientemente, as mensagens veiculadas no mercado de consumo. Todavia, inconscientemente, são impossibilitadas de fugir completamente de seus efeitos¹², fatos estes revelados pela ampliação do uso, pelo mercado virtual principalmente, de técnicas subliminares¹³, do neuromarketing¹⁴ e de ofertas com princípios hipnóticos¹⁵.
Assim, apesar de muitas vezes imperceptível, a oferta de consumo é ao tempo todo visível¹⁶, seja nos outdoors espalhados pelas cidades, na televisão, no rádio, em revistas e jornais e, de modo cada vez mais ascendente, no mundo virtual, especialmente por meio de mensagens eletrônicas não solicitadas, espalhadas por toda a Internet, dos computadores aos smartphones, inclusive nas redes sociais. Afinal, não há como negar que a publicidade é o mais evidente meio de comunicação de massa do presente contexto.
Diante disso, o problema surge a partir do momento em que a publicidade, notadamente a virtual, promovida no ambiente da Internet, passa a agir de modo patológico, ao buscar o resultado financeiro lucrativo a qualquer custo, mesmo que para isso seja necessário violar direitos fundamentais das pessoas, como a privacidade, em seu aspecto de dados pessoais¹⁷. E tal situação fica ainda mais evidente ao constatar que, para a implementação das publicidades direcionadas¹⁸ e importunadoras, e muitas vezes não solicitadas, faz-se o uso de banco de dados, com informações sensíveis¹⁹ das pessoas, para que, assim, adquiram maior potencial de induzimento, posto que individualmente produzidas com base na personalidade construída virtualmente, que inclui interesses, condição social, preferências, localização geográfica, hábitos de consumo, convicções etc.
Dito de outra maneira, a publicidade, aproveitando-se dos instrumentos de marketing permitidos pelas novas tecnologias de informação e comunicação (TIC), além de utilizar técnicas de cruzamento de dados pessoais, ampliou a sua interferência na sociedade como, por exemplo, por meio de mensagens eletrônicas não solicitadas, tradicionalmente denominadas spams
²⁰-21, sem contar as inúmeras possibilidades que advém do desenvolvimento da Internet das coisas.22
²¹-²²
Conforme se nota, diante de informações pessoais e, as vezes de maneira mais reprováveis, diante de dados sensíveis, as mensagens publicitárias ganham força e, acima de tudo, tornam-se ilícitas, tendo em vista que na maioria das vezes não são solicitadas e muito menos autorizadas pelas pessoas.²³ Em verdade, o excesso de informação e as práticas intrusivas, naturais no recorrente marketing digital, são capazes de interferir no livre desenvolvimento da pessoa e, em última análise, impossibilitar a liberdade daquele que acessa o mundo virtual, lesando, consequentemente, a dignidade da pessoa humana.²⁴
Assim, considerando-se o contexto da contemporaneidade, e diante deste conflito entre livre mercado agenciado pelas publicidades, no âmbito virtual, e direitos fundamentais das pessoas conectadas à Internet, notadamente o direito de proteção de dados pessoais, surge o seguinte problema: como promover, com base na cláusula geral de tutela da personalidade humana, um elevado nível de proteção às pessoas no mundo virtual, de modo a garantir que estas não sejam molestada e perturbadas pelas publicidades virtuais de consumo?
Nesta perspectiva, surge o imperativo atual e de forte impacto social de desenvolver o direito fundamental ao sossego²⁵, como notável faceta negativa do direito à proteção de dados, a partir do prejuízo de cunho moral decorrente da importunação pelas publicidades virtuais de consumo, que acabam promovendo o indesejado assédio de consumo. Com base nisso, é oportuno destacar desde já que, do mesmo modo que a privacidade, a garantia do sossego pressupõe uma negação, isto é, a interdição da ação dos outros, tratando-se, pois, da imposição de limites, visando promover a efetiva liberdade das pessoas.
Desse modo, consagrando o direito ao sossego, exibe-se a preocupação em tutelar um amplíssimo direito à saúde, compreendido como completo bem-estar psicofísico e social, expandindo o direito de liberdade garantido costumeiramente tão somente ao corpo, por meio do remédio constitucional do habeas corpus, à tutela da liberdade mental, por meio da garantia metafórica denominada habeas mente.²⁶ Para tanto, reconhecendo o assédio de consumo como um dano, utiliza-se uma proposta de modelo operativo, qual seja, a responsabilidade civil pela perturbação de sossego.
É importante ressaltar que além de promover a construção do direito ao sossego, que visa garantir maior segurança jurídica pela especificidade contra as práticas de assédio de consumo, o trabalho também pretende demonstrar que o sistema jurídico brasileiro já permite o reconhecimento da tutela da pessoa humana às situações de importunação de sossego promovidas pelas publicidades virtuais. Isso porque a responsabilidade civil, ao trabalhar com um conceito aberto e flexível de dano, permite que se promova uma hermenêutica expansiva, no sentido de impedir que as pessoas sejam perturbadas pelas práticas indevidas de assédio ao consumo, seja partindo da figura do abuso de direito, seja baseando-se nas práticas abusivas de consumo.
Com efeito, o trabalho se justifica em razão de a temática das novas tecnologias, no contexto de uma sociedade complexa, em seus diversos subsistemas, clamar por uma ressignificação da teoria dos direitos fundamentais. Desse modo, é importante abandonar a dogmática jurídica e a estrutura hierarquizada e vertical de suas fontes, para uma estrutura sob a perspectiva horizontalizada, mediante o diálogo entre as fontes do Direito que surgem tutelando novas perspectivas necessárias para a concretização do respeito à dignidade humana. É com base nisso que se demonstra também a vedação, como dever fundamental autônomo²⁷, às empresas de se aproveitarem de informações extremamente privadas e íntimas das pessoas inseridas no mundo virtual para o exercício de atividades publicitárias.
Daí porque discutir limitações às publicidades virtuais de consumo trata de questão relevante, uma vez que a utilização da Internet e, consequentemente, a exposição dos dados das pessoas, está presente no dia a dia dos brasileiros, além da tendência indiscutível de se tornar cada vez mais abrangente.
Dessa maneira, para o desenvolvimento do texto, destaca-se a importância de se estabelecerem cenários regulatórios na temática das publicidades virtuais inseridas na era tecnológica, mediante o respeito dos direitos fundamentais já consagrados, no contexto de um pluralismo jurídico, além do reconhecimento de novos direitos, carentes de tutela mais específica.²⁸ Evidentemente, o assunto possui impacto social, representado, por exemplo, pela iniciativa da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) e do Ministério de Justiça, em 2019, de criar um cadastro de não me perturbe, visando impedir a prática de telemarketing importunador pelas prestadoras de serviços de telecomunicações, posteriormente alargando essa proibição aos bancos consignados através do mesmo sistema pelo site supracitado.²⁹
Neste ponto, destaca-se que, se de um lado o direito ao sossego busca tutelar as pessoas e concretizar direitos fundamentais, como a proteção de dados, pessoais, em sua faceta negativa, evitando o assédio de consumo, em contrapartida, a publicidade virtual, enquanto desdobramento da livre iniciativa, não se insere no plano dos direitos fundamentais. Em verdade, o objetivo principal da publicidade não é informar ou comunicar, mas sim auferir lucro, promovendo a venda, induzindo ao consumo ou criando necessidades, visando atender os interesses ligados ao lucro mercantil.
Com esses apontamentos, nota-se que a reflexão trabalha com a ideia de que as publicidades revelam uma forma contextualizada de vulnerabilidade das pessoas, indicando que não só o Estado possui o dever de proteção dos direitos fundamentais³⁰, mas também os particulares o têm, demonstrando a eficácia horizontal das normas fundamentais³¹, especialmente quando se trata de fornecedores multinacionais, de grande poderio social e econômico, descritos como impérios da comunicação
por Tim Wu.³²
Diante disso, é inegável que ao se discutir a colisão entre os direitos fundamentais de privacidade, de proteção de dados pessoais ou mesmo o direito ao sossego, como faceta negativa desta proteção, e os direitos de livre iniciativa mercadológica, notadamente pelas práticas publicitárias virtuais, não há que se perder de vista que estes devem ceder espaço àqueles, como cumprimento do fundamento central do sistema jurídico brasileiro, qual seja, a efetivação da dignidade da pessoa humana, em seu mais amplo desdobramento, seja físico ou virtual, seja quanto a integridade física ou psíquica.
Isso porque a prática publicitária pode ser causa também para produção de danos às pessoas, como os relacionados ao doentio consumismo (oniomania)³³, posto que toda e qualquer publicidade só tem uma finalidade: lucrar! Não obstante, nota-se que a insistência em mensagens publicitárias, muitas vezes inseridas de maneira clandestina, subliminar ou camuflada, geram repaginadas os problemas de ansiedade, frustração e depressão³⁴, sem deixar de mencionar o reconhecido problema do superendividamento.³⁵
Consequentemente, é necessário que o Direito esteja amparado por instrumentos jurídicos capazes de evitar qualquer comportamento anômalo, gerador de riscos ou de danos emergentes. Inegavelmente, o trato jurídico da publicidade, em especial nas formas virtuais, deve ser responsável por evitar que direitos fundamentais às duras conquistados, garantidores da autonomia privada e necessários ao efetivo desenvolvimento da personalidade da pessoa humana, sejam violados. Desta importante reflexão vale destacar: "em qualquer meio de relacionamento humano, a regra básica deve ser a de não causar dano."³⁶
Nesta ótica de análise, à guisa de objetivo geral, busca-se analisar, por meio da releitura dos instrumentos jurídicos, como a regulação normativa e a responsabilidade civil, a necessidade de o sistema do Direito auxiliar na resolução de problemas para a tutela da pessoa humana, em um novo aspecto da personalidade na sociedade virtual. Assim, considerando-se o contexto da contemporaneidade, busca-se destacar como os direitos fundamentais das pessoas conectadas à Internet podem ser protegidos em elevado nível, de modo a garantir que os consumidores não sejam molestados pelas publicidades virtuais.
Como objetivos mais específicos, pretende-se defender, dentro do sistema jurídico brasileiro, o reconhecimento da faceta negativa da proteção de dados pessoais, visando a concretização do direito ao sossego dos consumidores. Ademais, busca-se analisar quais as consequências da aplicação dessa tutela às relações de consumo, ao considerar que as publicidades atuais podem impedir as pessoas que possuem uma vida virtual de promoverem o seu dia a dia de maneira livre e desembaraçada, sem a perturbação promovida pelo indevido assédio de consumo.
Como se não bastasse, é também um dos objetivos do trabalho demonstrar o dever de respeito das publicidades no que se refere aos dados pessoais. Afinal, essas informações, uma vez compreendidas em preferências, situações e opções da vida da pessoa, não podem ser utilizadas como forma de instigar o consumo desmedido, sob pena de se enquadrar como prática empresarial abusiva e desmensurada, violadora de direitos fundamentais, necessários a autonomia privada da pessoa humana. Inclusive essa é uma das preocupações que surge a partir do assédio de consumo, combatido nos Projetos de Lei 3.514/15 e 3.515/15, que visam atualizar o Código de Defesa do Consumidor (CDC).
Diante disso, para o enfrentamento do problema de pesquisa, desenharam-se três hipóteses desenvolvidas nos três capítulos. A primeira envolve a afirmação de que ocorreram diversas alterações nos paradigmas sociais, na denominada Sociedade da Informação, gerando vários reflexos nos vários subsistemas sociais, como o econômico, o jurídico, o político etc. Neste ponto, o trabalho se delimitará no aprofundamento das mudanças jurídicas notadas com a evolução dos modos de produção e dos meios de comunicação, em especial com o crescimento do ambiente da Internet, demonstrando a necessidade de estabelecer uma nova hermenêutica crítica. Assim, esse primeiro capítulo demonstrará como o direito ao sossego enquadra-se como uma necessidade atual diante da mutação dos direitos fundamentais, em razão dos novos riscos implementados pelas inovações tecnológicas, com destaque para o direito de proteção de dados pessoais. Para tanto, evidenciará a relação entre a Sociedade da Informação e o auge de um mercado predominantemente de consumo.
Em seguida, no segundo capítulo, importante será apresentar as relações existentes entre as publicidades e os direitos fundamentais, ressaltando a aproximação destes com os direitos da personalidade e com os direitos básicos do consumidor. Tudo isso dentro da nova concepção da pessoa no contexto virtual, na figura do corpo eletrônico
, exposta aos novos riscos implementados pelas inovações tecnológicas na publicidade. Como forma de apresentar essa situação, será evidenciado como o uso de dados pessoais se tornou fonte de renda no mercado de consumo, possibilitando que as publicidades, em especial as virtuais, se tornassem mais efetivas. Neste ponto, ficará evidenciado que embora os riscos aos dados pessoais estejam nos mais diversos setores da sociedade, é na relação de consumo que saltam aos olhos os maiores desafios.
É seguindo essa abordagem que se desenvolve o terceiro capítulo, e como desfecho, traz o contributo da concretização do direito ao sossego. Para tanto, aponta como as publicidades virtuais importunadoras, que se utilizam de técnicas de neuromarketing, sujeitam as pessoas expostas às práticas do mercado virtual a novos riscos. Diante desse panorama, serão estudadas de maneira mais aprofundadas as normas de proteção do uso de dados pessoais, em especial a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (Lei 13.709/18)³⁷, relacionando-as com as leis que regulam as publicidades, com destaque para o CDC. Isso tudo para destacar como essas legislações evidenciam a necessária garantia do sossego do consumidor e, consequentemente, a abusividade das publicidades importunadoras, que promovem o assédio de consumo a partir do uso de dados pessoais.
A partir dessas premissas sugerir-se-á uma nova hermenêutica que visa a implementação dos direitos humanos, centrado na promoção da pessoa humana, que abranja mais do que a liberdade física (habeas corpus), isto é, incluindo também a liberdade psíquica (habeas mente), como reflexo do amplo direito à integridade e à saúde. Nota-se assim que o texto, em alguns momentos, utiliza da metáfora habeas mente que já foi designada outrora como garantia contra spams
. ³⁸-³⁹
Assim, estudar uma hermenêutica que visa à implementação dos direitos humanos, por meio do reconhecimento do direito ao sossego, como faceta negativa do direito de proteção de dados, permite refletir a respeito da necessidade atual de se buscar soluções jurídicas para os problemas e repercussões geradas pelas novas tecnologias, tendo sempre em mente que a virtualização do mundo é um fato cotidiano, necessário ao desenvolvimento humano, irreversível, mas que, em última análise, não pode ser mantida à revelia da regulação e responsabilização⁴⁰, sob pena de se permitir que os abusos, tão conhecidos na prática do livre mercado⁴¹, gerem retrocesso aos direitos fundamentais conquistados às duras penas.⁴²
Com base nisso, diante desta importante faceta negativa da proteção de dados pessoais, isto é, a partir do reconhecimento do necessário direito ao sossego das pessoas, o assédio de consumo se concretiza como um dano e daí porque essa hermenêutica se instrumentaliza também fundamentada nos direitos básicos do consumidor, garantindo a integridade psíquica das pessoas conectadas a Internet através de instrumento jurídico já historicamente consagrado, a saber, a responsabilidade civil.
Desse modo, para a elaboração do trabalho, partindo do problema central exposto, busca-se suporte teórico nos pensamentos de Norberto Bobbio, a justificar o estudo na perspectiva positivista, tendo o Direito como método, a partir do momento em que se busca construir um novo direito capaz de impedir a perturbação de sossego dos consumidores.⁴³ Assim, o texto pretende, ao final, desenvolver uma proposta legislativa, a fim de positivar expressamente o direito construído na presente tese e garantir maior segurança jurídica. Não obstante, é preciso deixar claro desde já que é possível identificar no sistema jurídico brasileiro sustentação para promover a hermenêutica necessária para fundamentar a responsabilidade civil pela perturbação de sossego⁴⁴, com destaque para as disposições do CDC e as da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD).
Além disso, o trabalho se sustenta nas reflexões de Pérez Luño a respeito da concepção de direitos humanos na sociedade tecnológica, buscando também amparo nas ideias de Stefano Rodotà no que se refere à nova faceta dos direitos da personalidade contextualizados ao mundo virtual. Dessa maneira, o trabalho pauta-se em uma epistemologia humanista, que busca ressaltar como os impactos tecnológicos, que possibilitam novas formas de poder e controle, promovem alterações nas liberdades e nos direitos fundamentais.
Quanto ao método de procedimento, a pesquisa efetuada visa aproximar o estudo ao desenvolvimento das publicidades virtuais no cenário tecnológico, acoplando-a ao sistema do Direito, propondo uma comunicação entre a tecnologia, o mercado publicitário e o Direito. Com efeito, busca evidenciar a correlação entre sistema jurídico e a pessoa humana em sua condição de autêntico sujeito de direitos. Para tanto, utiliza-se a pesquisa bibliográfica, que inicia pelas investigações escritas sobre o problema de pesquisa.
Outro método de procedimento utilizado é a pesquisa documental, pois o tema em investigação, por constituir-se essencialmente de matiz tecnológico, de crescimento e evolução exponencial, encontra subsídios quase que diários em fontes diversificadas, principalmente na Internet e em revistas especializadas. Ademais, realizar-se-á, também, análise jurisprudencial pertinente, em razão da atualidade dos problemas jurídicos relacionados ao tema.
1. A Sociedade da Informação é identificada a partir do contexto histórico em que há a preponderância da informação sobre os meios de produção e distribuição dos bens na sociedade, decorrente principalmente da introdução dos computadores conectados em rede nas relações jurídicas. Nessa linha, desde a segunda metade do século XX, observou-se a maturação do pensamento sociológico, propiciando projeções de uma sociedade de base informacional, posteriormente designada de sociedade em rede, com base nos pensamentos de autores como Yoneji Masuda e Fritz Machlup – já na década de 1960 – e, mais recentemente, Jan van Dijk e Manuel Castells. Estes últimos, no curso da década de 1990, foram pioneiros nas proposições sobre como os modais inter-relacionais que configuram a base fundamental de sustentação das atividades humanas seriam afetados pela alavancagem tecnológica, em especial pela Internet. DUFF, Alistair A. Information society studies. Londres: Routledge: 2000; MASUDA, Yoneji. The information society as post-industrial society. Tóquio: Institute for the Information Society, 1980; MACHLUP, Fritz. The production and distribution of knowledge in the United States. Nova Jersey: Princeton University Press, 1962; DIJK, Jan van. The network society. 3. rd. Londres: Sage Publications, 2012; CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.↩
2. LOSANO, Mario G. Sistema e estrutura no direito. Trad. Carlos Alberto Dastoli. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. v. 3: Do século XX à pós-modernidade.↩
3. Michael Sandel, analisando os limites morais do mercado, afirma que "Os valores de mercado passavam a desempenhar um papel cada vez maior na vida social. A economia tornava-se um domínio imperial. Hoje, a lógica da compra e venda não se aplica mais apenas a bens materiais: governa crescentemente a vida como um todo. Está na hora de perguntarmos se queremos viver assim". SANDEL, Michael. O que o dinheiro não compra. Os limites morais do mercado. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p. 11.↩
4. BAUMAN, Zygmunt. Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadoria. Tradução: Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.↩
5. MARQUES, Claudia Lima. Confiança no comércio eletrônico e a proteção do consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2004. p. 94.↩
6. Trata-se de uma espécie de diário pessoal eletrônico.↩
7. LACERDA, Bruno Torquato Zampier. Bens digitais. Indaiatuba: Foco Jurídico, 2017.↩
8. RODOTÀ, Stefano. Intervista su privacy e libertà. Bari: Laterza, 2005. p. 120-121. ↩
9. CLARKE, Roger. Profiling: a hidden challenge to the regulation of data surveillance. Journal of Law, Information and Science, Hobart, v. 4, n. 2, p. 403, dez. 1993.↩
10. O avatar pode ser conceituado como o ícone gráfico escolhido pela pessoa para representá-la em jogos ou em comunidades virtuais.↩
11. PERLINGIERI, Pietro. O direito civil na legalidade constitucional. Trad. Maria Cristina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2008.↩
12. PASQUALOTTO, Adalberto. Os efeitos obrigacionais da publicidade no código de defesa do consumidor. São Paulo: Ed. RT, 1997. p. 15.↩
13. MALTEZ, Rafael Tocantins. Direito do consumidor e publicidade: análise jurídica e extrajurídica da publicidade subliminar. Curitiba: Juruá, 2011.↩
14. BRIDGER, Darren. Neuromarketing: como a neurociência aliada ao design pode aumentar o engajamento e a influência sobre os consumidores. São Paulo: Autêntica Business, 2018.↩
15. CIALDINI, Robert B. As armas da persuasão. Rio de Janeiro: Sextante, 2012.↩
16. Destaque-se, por exemplo, as publicidades que são veiculadas em aplicativos de navegação, como no famoso Waze
, vinculando o motorista às publicidades dos empresários que possuem estabelecimentos no trajeto percorrido pelo consumidor, sem que este muitas vezes nem perceba. WAZE. [S. l.], 2019. Disponível em: https://www.waze.com/intl/pt-BR/business/index.html. Acesso em: 20 jun. 2019.↩
17. LIMBERGER, Têmis. O direito à intimidade na era da informática: a necessidade de proteção dos dados pessoais. Porto Alegre: Livraria do advogado, 2007.↩
18. BIONI, Bruno Ricardo. Proteção de dados pessoais: a função e os limites do consentimento. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 15.↩
19. Consoante o art. 5º, II, da Lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), são dados sensíveis aqueles sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural. BRASIL. Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. Dispõe sobre a proteção de dados pessoais e altera a Lei 12.965, de 23 de abril de 2014 (Marco Civil da Internet). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/L13709.htm. Acesso em: 20 jun. 2019.↩
20. Embora esse conceito não possua contornos unânimes para o direito digital, é comumente associado ao envio de conteúdos indesejados, muitas vezes em massa. Neste sentido, para o presente estudo, deve ser considerado spam qualquer tipo de publicidade não solicitada e importunadora enviada por meio de tecnologias de informação e comunicação. Isso porque, conforme aponta, Finn Brunton, apesar de o conceito de spam ser flexível e elástico, a depender do contexto, é possível resumir a prática a uma ideia fundamental, qual seja, o spam é o projeto de alavancar a tecnologia da informação para coletar atenções existentes. BRUNTON, Finn. Spam: a shadow history of the Internet. Cambridge: The MIT Press, 2013, p. XVI.↩
21. O termo, por ser altamente mutável, apresenta novas conotações atualmente, inclusive migrando para as problemáticas eleitorais. Neste sentido, a doutrina destaca o uso de redes sociais ou meios de comunicação, como o whtasapp, para o envio de mensagens eleitorais indesejadas, isto é, "no Brasil, aliás, o tema veio à tona com enorme repercussão após as eleições de 2018, quando acusações emergiram sinalizando o uso indevido da ferramenta (whatsapp) pelos principais concorrentes da corrida eleitoral para a propagação de mensagens em massa com conteúdo que se convencionou chamar de spam político
(memes, correntes, santinhos de candidatos
etc.)" MARTINS, Guilherme Magalhães; LONGHI, João Victor Rozatti; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. Desinformação e o envio massivo de mensagens no WhatsApp. Migalhas de peso, 30 jun. 2020. Disponível em: https://s.migalhas.com.br/S/E9B7E Acesso em 01 jul. 2020. ↩
22. MAGRANI, Eduardo. A internet das coisas. Rio de Janeiro: FGV Editora, 2018.↩
23. MORATO, Antônio Carlos. Mensagens eletrônicas não solicitadas como prática abusiva no mercado de consumo. In: MIRAGEM, Bruno; MARQUES, Claudia Lima (Org.). Doutrinas essenciais do direito do consumidor. São Paulo: Ed. RT, 2011. v. 3.↩
24. LIMBERGER, Têmis. Direito e informática: o desafio de proteger os direitos do cidadão. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.) Direitos fundamentais, Informática e comunicação: algumas aproximações. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007. p. 195.↩
25. Não se desconhece a existência do direito ao sossego
, em âmbito criminal, vide art. 42 da Lei das Contravenções Penais (decreto-lei 3.688/41), nem tampouco em âmbito civil, conforme art. 1.277 do Código Civil, como correlato do direito de vizinhança. Todavia, o direito aqui proposto vai além, abarcando a tutela da pessoa humana frente a toda e qualquer importunação praticada no mercado, por publicidades virtuais, com o intuito de promover o assédio de consumo, conforme será melhor exposto no trabalho. ↩
26. O termo habeas mente é do professor Fernando Rodrigues Martins, o qual expressamente afirmou que "pode-se até buscar a metáfora do habeas mente como garantia contra spams que abordem os dados sensíveis do usuário da rede". No presente texto, busca-se ampliar o conceito dessa nova garantia, conforme será exposto adiante. MARTINS, Fernando Rodrigues. Sociedade da Informação e proteção da pessoa. Revista da Associação Nacional do Ministério Público do Consumidor, Juiz de Fora, v. 2, n. 2, p. 20, 2016.↩
27. MARTINS, Fernando Rodrigues. Os deveres fundamentais como causa subjacente-valorativa da tutela da pessoa consumidora: contributo transverso e suplementar à hermenêutica consumerista da afirmação. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 23, n. 94, p. 215-257, jul./ago. 2014.↩
28. Neste aspecto, importante destacar que a sociedade brasileira é demasiadamente complexa para aceitar que os direitos fundamentais devem ser limitados àqueles expressamente previstos como tais na Constituição Federal. Dessa forma, com base no art. 5, §2º da Constituição Federal de 1988, têm-se pistas de que o sistema jurídico brasileiro possui uma cláusula de abertura a novos direitos fundamentais, possibilitando a defesa de direitos fundamentais atípicos dela emergentes. SANTOS, Eduardo Rodrigues dos. Direitos fundamentais atípicos: análise da cláusula de abertura – art. 5º, § 2º, da CF/88. Salvador: Juspodivm, 2017. p. 280.↩
29. Conforme consta no endereço eletrônico, "após a implantação do Não me Perturbe, os bancos que trabalham com o produto consignado solicitaram a participação no website, para permitir que os usuários solicitem também o bloqueio de ligações indesejadas relacionadas à oferta de Empréstimo Consignado e Cartão de Crédito Consignado. Cada vez mais, as Instituições Financeiras que operam com o consignado preocupam-se em buscar a constante evolução da estrutura que o envolve, elevando o nível de qualidade dos serviços prestados. Nesse sentido, para aperfeiçoar o atendimento aos clientes na oferta do consignado, a FEBRABAN (Federação Brasileira de Bancos) em conjunto com a ABBC (Associação Brasileira de Bancos), instituíram a Autorregulação para o Consignado, com medidas de boas práticas a serem seguidas pelas instituições financeiras. Dentre as medidas previstas, está a de manter à disposição do consumidor um serviço centralizado de bloqueio do recebimento de ligações para oferta de operações de consignado. Tendo em vista a solução já disponibilizada para o setor de telecomunicações, FEBRABAN e ABBC, em parceria com a ABR Telecom, uniram esforços para viabilizar de forma unificada (dentro do mesmo website) a construção do serviço de Não me Perturbe
para o consignado dos Bancos. Através deste website, uma vez cadastrado um telefone fixo ou móvel pelo consumidor na plataforma Não me Perturbe
, os Bancos (e/ou seus respectivos Correspondentes (Consignados) selecionados) e as Prestadoras de Serviços de Telecomunicações participantes do serviço, não poderão realizar qualquer oferta de operações de Empréstimo Consignado e Cartão de Crédito Consignado (Bancos) ou oferta de Telefone móvel, telefone fixo, TV e Internet (Prestadoras) para esse telefone." AGÊNCIA NACIONAL DE TELECOMUNICAÇÕES (ANATEL). Não me perturbe telemarketing telecomunicações e bancos consignado. Brasília, DF, 2020. Disponível em: https://www.naomeperturbe.com.br/. Acesso em: 03 jan. 2020.↩
30. CANARIS, Claus-Wilhelm. Direitos fundamentais e direito privado. Trad. de Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto. Coimba, Almedina, 2003.↩
31. DUQUE, Marcelo Schenk. Direito privado e constituição: drittwirkung dos direitos fundamentais, construção de um modelo de convergência à luz dos contratos de consumo. São Paulo: Ed. RT, 2013.↩
32. Em resumo, aduz o autor que a indústria da informação cria monopólios por cinco razoes, i) efeitos de rede, ou seja, os produtos, como os celulares, se tornam mais úteis quanto maior forem os usos; ii) produção econômica em escala, de modo que os lucros operam de maneira global; iii) poder de integração entre as tecnologias, iv) a busca por poder, capaz de influenciar a mente das pessoas; e, por fim, V) gosto pelo monopólio, tendo em vista que a conveniência limita as escolhas. Assim, segundo o autor: Close scrutinity suggests the answer has less to do with some dark subliminal attraction to size and power than an impulse far more banal; an incontrovertible preference for convenience over almost anything when it comes to our information tools. With beer or cars your choice may be a matter of personal taste; with networks, the only taste is convenience, and that comes with size. By choosing the most convenient options we collectively cede control to big firms based on a series of tiny choices whose consequences in sum we scarcely consider. Habits shape markets far more powerfully than laws
. WU, Tim. The master switch: the rise and fall of information empires. Nova York: Vintage, 2010. p. 320-321.↩
33. SILVA, Ana Beatriz Barbosa. Mentes consumistas: do consumismo à compulsão por compras. São Paulo: Globo, 2014. p.10.↩
34. TURKLE, Sherry. Alone together: why we expect more from technology and less from each other. New York: Basic Books, 2011. p. 19.↩
35. BERTONCELLO, Karen. Rick Danilevicz. Superendividamento do consumidor: mínimo existencial. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2015. E-book.↩
36. MENDES, Laura Schertel. Privacidade, proteção de dados e defesa do consumidor: linhas gerais de um novo direito fundamental. São Paulo: Saraiva, 2014. p.15.↩
37. Não se desconhece que no final de outubro de 2019 foi apresentado o Projeto de Lei 5.762/19, propondo a alteração da LGPD, para prorrogar sua vacatio legis até 15 de agosto de 2022. Se o projeto for aprovado, o Brasil continuará por um grande período sem legislação específica vigente tratando sobre a proteção de dados.↩
38. MARTINS, Fernando Rodrigues. Sociedade da informação e proteção da pessoa. Revista da Associação Nacional do Ministério Público do Consumidor, Brasília, DF, v. 2, n. 2, p. 20, 2016.↩
39. Desde já é importante mencionar que se pretende ir além, uma vez que a tese visa defender que é preciso proteger as pessoas de qualquer tipo de publicidade virtual que se aproveita de modo indevido de dados pessoais da pessoa conectada em rede, enquanto esta promove a sua vida virtual, para impor publicidades direcionadas e não solicitadas. Defende-se, assim, um conceito amplo de spam
. Visa-se, portanto, proteger a liberdade daqueles que acessam a Internet, tutelando, consequentemente, o livre desenvolvimento da personalidade da pessoa, dado que o reconhecimento da dignidade humana necessita da efetiva tutela das potencialidades e liberdades físicas (corpo) e psíquicas (mente). BASAN, Arthur Pinheiro. Habeas Mente: garantia fundamental de não ser molestado pelas publicidades virtuais de consumo. Revista de Direito do Consumidor. São Paulo. v.131, set./out. 2020.↩
40. Antônio Benjamin, apontando a importância de promover a regulação das publicidades, aduz que: Num plano mais elevado, busca-se, com seu controle, a superação do individualismo anárquico, que caracterizou nossos ordenamentos jurídicos até bem recentemente.
BENJAMIN, Antônio Herman Vasconcellos. O controle jurídico da publicidade. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, n. 9, p. 25-57, jan./mar. 1994.↩
41. SANDEL, Michael. Justiça: o que é fazer a coisa certa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2012. p.12.↩
42. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Tradução Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elservier, 1992. p. 23.↩
43. Afirma Norberto Bobbio que "se a ciência consiste na descrição avaliatória da realidade, o método positivista é pura e simplesmente o método científico e, portanto, é necessário adotá-lo se se quer fazer ciência jurídica ou teoria do direito. Se não for adotado, não se fará ciência, mas filosofia ou ideologia do direito. BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico. Lições de filosofia do direito. São Paulo: Ícone, 1995. p. 238.↩
44. MARTINS, Guilherme Magalhães; BASAN, Arthur Pinheiro; FALEIROS JÚNIOR, José Luiz de Moura. A responsabilidade civil pela perturbação de sossego na internet. Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, v. 128, p. 227-253, mar./abr. 2020. ↩
2
O DIREITO AO SOSSEGO FRENTE AS MUDANÇAS DE PARADIGMAS NOS DIREITOS FUNDAMENTAIS
Inicialmente é importante destacar que o Direito encontra-se inserido na área de ciências humanas, sendo naturalmente influenciado pelas transformações políticas, sociais e culturais ocorridas em determinado contexto histórico analisado. Dessa maneira, é evidente a importância de analisar a mudança de paradigmas nos direitos fundamentais, contextualizando o tema e demonstrando a sua relação com a atual Sociedade da Informação.
Neste ponto, o termo paradigma
dá indícios de ter seu apogeu nos estudos de Thomas Kuhn, o qual, em resumo, analisando o comportamento dos estudiosos, bem como a existência das denominadas revoluções científicas, descreveu paradigma
como sendo padrões desenvolvidos e reconhecidos por uma comunidade científica e que servem de modelos ou bases para outros estudos, como um referencial de conceitos e ideias basilares já metodologicamente reconhecidas.¹
Diante disso, é relevante notar que, quanto aos direitos fundamentais, especialmente a partir do século XIX, passou-se do positivismo normativista clássico para o estudo jurídico alinhado ao pensamento contemporâneo, diante de uma nova compreensão de posicionamento do Direito na sociedade. Dessa maneira, é possível afirmar que houve uma transformação da visão sistemática à visão sistêmica², de modo que o estudo jurídico não se limita mais apenas ao sistema do Direito, e sim, ao Direito incluído no sistema social. Em outras palavras, o Direito deve ser compreendido não como um todo composto de partes individuais, isto é, composto somente de normas, mas como um todo em relação com outro todo mais extenso, a saber, a sociedade.
Dessa, forma, o Direito apresenta-se como um subsistema do sistema social, por este, obviamente, influenciado³, de acordo também com o pensamento de Norberto Bobbio, ao descrever a ideia do direito como subsistema do sistema global da sociedade, isto é, um ramo da ciência geral da sociedade não mais puro e autônomo mas sim interrelacionado com os sistemas político e econômico, em aliança com as ciências sociais.⁴
Com efeito, pode-se qualificar o Direito como fechado do ponto de vista normativo porém aberto do ponto de vista epistemológico, isto é, o Direito é fechado em seu subsistema normativo, mas necessariamente é aberto em seu funcionamento ao interagir com os outros subsistemas, como o político e o econômico, por exemplo. Sendo assim, o Direito necessariamente reage às transformações sociais ocorridas em outros subsistemas, em razão da mudança de valores sociais.⁵
Tais apontamentos se fazem necessários pois é preciso deixar claro que não há como efetuar um estudo jurídico coerente desatrelado das mutações sociais por que passa a sociedade no determinado momento em que se visa o debate científico. Na perspectiva positivista, Norberto Bobbio defende que o ordenamento, para sua inteireza científica necessária, deve se pautar pelas características de unidade, coerência e completude, isto é, são estas três características que fazem com que o Direito, no seu conjunto, seja um ordenamento e, portanto, uma entidade nova, distinta das normas singulares que o constituem
.⁶
Conforme se nota, em especial quando se propõe ao reconhecimento de um novo direito, como pretende o presente trabalho, demonstrar a devida contextualização jurídica é crucial. Não obstante, é importante levar em consideração que o direito ao sossego será evidenciado da hermenêutica do ordenamento jurídico brasileiro, isto é, das normas jurídicas já existentes, especialmente a partir do direito de proteção de dados pessoais, mas, ainda assim, será sugerida, no final do trabalho, a proposta legislativa necessária para a devida previsão no CDC do direito em estudo. Tudo isso para promover a máxima concretização da tese desenvolvida.
Assim, visando o acerto metodológico, é preciso destacar brevemente quais foram os paradigmas que circundaram a sociedade, em especial no que se refere à noção dos direitos fundamentais, para, assim, situar o estudo jurídico ao paradigma tecnológico⁷, contextualizado à atual Sociedade da Informação.
Oportuno evidenciar, portanto, que Direito, considerado como subsistema, supera a ideia estruturalista de mero relacionamento hierárquico de normas, conforme o pensamento positivista normativista clássico⁸, para se concretizar de maneira analítica, concedendo ordenação também valorativa. Neste sentido, Claus-Wilhelm Canaris descreve a necessidade de se colocar em sintonia a globalidade das normas, em um isolamento científico do Direito, entretanto, sem se fechar ao seu entorno, composto por valores que os circunda, numa forma historicamente justificada⁹, conforme supracitado.
Tal preocupação se justifica a partir da compreensão de que o Direito, sem o seu devido contexto, pode se tornar mero texto normativo, ilhado no mar de normas, sem qualquer tipo de efetividade social ou mesmo concretização fática. É preciso, portanto, que o jurista vá além do complexo de normas e dos conceitos gerais e abstratos positivados, para contextualizar as leis estudadas ao contexto social vigente.
Conforme se percebe, o ordenamento, de uma maneira geral, transmudou-se da estrutura à função, ao positivar também algumas sanções premiais, isto é, nos dizeres de Norberto Bobbio, da passagem do Estado que se limita a proteger algumas atividades produtivas para si, quando intervém, ao Estado que também se propõe a dirigir a atividade econômica em seu todo, em direção a uma ou mais funções, ou seja, a passagem do Estado apenas protecionista para o Estado programático.¹⁰
Com isso, longe de se considerar o Direito, como por muito tempo foi, uma ciência autônoma e pura, procura-se cada vez mais relação interdisciplinar com as ciências sociais¹¹, principalmente ao se tratar das reflexões necessárias ao mundo jurídico, como novas possibilidades de riscos, trazidas pelo avanço da tecnologia.¹² Neste ponto, Danilo Doneda destaca a importância de se buscar novas ferramentas para a reafirmação da proteção da pessoa, na medida em que a tecnologia impõe novas questões e problemas que exigem dos juristas novas respostas.¹³
Diante de tudo isso, o que se almeja é demonstrar que, sendo o Direito uma ciência inserida dentro das ciências sociais, visando o acerto metodológico da defesa contra importunações publicitárias, é preciso se atentar para o atual momento contextual de crescimento das tecnologias de comunicação e informação. É, afinal, o que se pretende com a contextualização do presente trabalho à Sociedade da Informação.
Em razão disso, torna-se conveniente examinar, de forma breve, a contextualização do direito ao sossego, como faceta negativa da proteção de dados pessoais, à luz da alteração dos paradigmas dos direitos fundamentais, demonstrando a evolução dos modos de produção, hoje fortemente influenciados pelo uso de dados pessoais no mercado digital, substrato para o exercício do marketing direcionado.¹⁴ Aqui ganha destaque a defesa de que o direito de proteção de dados é um direito fundamental.
Dessa maneira, é possível perceber que a alteração dos paradigmas dos direitos fundamentais dá pistas de indicar maior ou menor extensão do âmbito de proteção de determinados direitos, tais como a liberdade e a privacidade, bem como os mecanismos jurídicos elaborados para a concretização dessas prerrogativas. Assim, é preciso destacar, de maneira breve, como a alteração paradigmática se relaciona com o desenvolvimento da sociedade de consumo na era da informação e quais são os novos riscos a esta realidade inerentes.
Aliás, em decorrência do crescimento do consumismo na sociedade e do surgimento de novos poderes, eminentemente privados, é imperioso ter em mente que tal situação demonstra a necessária aplicação e defesa dos direitos fundamentais às relações privadas, em especial no âmbito de consumo¹⁵, que desponta a incidência de vulnerabilidades, agravadas pelo ambiente virtual.
Indo neste mesmo sentido, o pensamento Norberto Bobbio revela que, no contexto atual, a ciência e, além disso, os conhecimentos desta decorrentes, podem ser caracterizados também como formas de expressão de poder e dominação, inclusive dos homens sobre outros homens.¹⁶ Por tais razões, destaca-se que o desenvolvimento de novos poderes coloca em risco direitos fundamentais, demonstrando a necessidade de estudar também o anverso dos