Litania dos Transgressores: desígnios da provocação em Lúcio Cardoso
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Sobre este e-book
Lúcio Cardoso foi absolutamente um grande provocador. Em novelas como Mãos vazias (1938), O desconhecido (1940), Inácio (1944), A professora Hilda (1946), O anfiteatro (1946) e O enfeitiçado (1954), podemos perscrutar como a tessitura literária ontológica explorada por Lúcio atende fundamentalmente ao ideário do escritor mineiro. Devassar até a possibilidade de intensificar em níveis extremos o mal-estar do leitor foi parte de um projeto pessoal e profissional de vida. Em Litania dos transgressores: desígnios da provocação em Lúcio Cardoso, Odirlei Costa busca enfatizar como o autor explorou diversos estratagemas literários nas novelas supracitadas para adensar a escrita de mal-estar e perturbação, a tornar a provocação o mote primordial de seu virtuosismo literário transgressor.
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Litania dos Transgressores - Odirlei Costa dos Santos
167).
CAPÍTULO 1. CONSIDERAÇÕES SOBRE DIÁRIO DE TERROR: A PROVOCAÇÃO NA METAESCRITA CARDOSIANA
Em um pequeno caderno escolar de cinquenta e seis páginas, perdido no limbo das criações renegadas, encontramos fragmentos de um pensamento seminal para o presente estudo de tese sobre o escritor mineiro Lúcio Cardoso. Diário de terror
⁴, misto de escrita pessoal com endogênese de sua prosa de ficção, poderá nos desvelar de modo mais acurado o pensamento de Lúcio a respeito da fabulação de sua escrita. O manuscrito havia sido publicado inicialmente na revista Caravelle de Toulouse em 1985, até ser novamente reeditada na segunda edição crítica de Crônica da casa assassinada, organizada por Mario Carelli e publicada em 1997. Encontramos, neste pequeno esboço de tessitura íntima, possibilidades de ampliar o deslinde de suas concepções provocadoras da narrativa, intensificadas pelos seus interesses pessoais de solidificar a imagem de persona non grata, por seus embates com escritores e críticos que lhe foram contemporâneos, pela famigerada polêmica que seus romances e novelas instigavam e também por sua própria imagem de bon vivant homossexual e de vida assumidamente boêmia.
O manuscrito de Diário de terror
foi um trabalho concomitante à construção de Crônica, como aponta Carelli ao afirmar que tais anotações revelam a proposta íntima do artista, dando várias chaves de leitura do romance e, em segundo lugar, constituem o lugar genético de fragmentos reintegrados com novo estatuto na obra ficcional
, provando que as personagens do romance expressam convicções fundamentais da mensagem pessoal do autor
(CARELLI, 1997: 743). Não obstante, acreditamos que o deslinde vai mais além, no que tange à possibilidade de uma leitura imanente do manuscrito sem submetê-lo a uma mera comparação com personagens do livro citado. A metaescrita de Lúcio desnuda de modo clarividente a plena relação que expõe entre escrever e provocar, algo que podemos inferir pela leitura de Diário de terror
que, apesar da alcunha de diário, funcionaria mais como um texto em que o autor desfilaria livremente suas ideias sem se preocupar excessivamente com a organização por datas ou tópicos de leitura. Acreditamos que, pelas linhas de um trabalho menos notório, Lúcio definiria bem suas intenções provocadoras em fomentar uma escrita direcionada para causar um profundo mal-estar no leitor:
Gostaria que meus leitores se transportassem a um estado de tão alta emoção passional que isto lhes destruísse o equilíbrio e eles se sentissem fisicamente doentes. As grandes emoções interiores sacodem até o âmago a estrutura física do ser – e como não há maior ambição para um escritor do que a de causar a emoção mais violenta e mais perigosa, gostaria que aqueles que me acompanham se sentissem dominados, violentados até a saturação, e me rejeitassem com violência, o que seria uma demonstração da minha força, ou me aceitassem como um mal irremediável, o que seria um sinal da minha profundeza. (DT, 744)
Octávio de Faria, grande amigo e conhecedor profundo dos textos cardosianos, seria um dos grandes defensores da valoração existencial – defendendo a ideia do romance ontológico
(FARIA, 1997: 662) – de seus escritos, o que confere inegável densidade ao escritor que talvez mais bem tenha explorado o caráter de introspecção do romance brasileiro moderno. Não obstante, o que procuramos com o presente trabalho é enfatizar que todo o seu mundo eminentemente desesperado
(FARIA, 1997: 665) pertence efetivamente a um projeto deliberado de escrita e que mesmo suas sondagens existências – contando ainda, mais do que a própria devassa ontológica, o desconforto que se abate sobre o leitor a partir dela – compõem um jogo de escrita muito bem articulado pelo autor, com plena consciência do transtorno moral que instigaria diante de um público reacionário: Não há conhecimento que não seja pessoal, e tudo o que plantei em mim, as sementes do bem e do mal, a terra que revolvi e adubei, que cumpra o seu destino e produza, ainda que a flor azul aos meus olhos, não seja aos olhos alheios senão um fungo demente e monstruoso, uma rosa de fel e pestilência
(DT, 746).
Podemos inferir como Lúcio procura aliar a perspectiva ontologicamente trágica do homem à função estética da arte pela qual construiu seu projeto literário. Tal proposição nos remete à distinção barthesiana entre texto de prazer
, construído face à satisfação das expectativas do leitor, dando-lhe a sensação de contentamento, conforto e segurança, e texto de fruição
, aquele que fornece um estado de perda, aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas, culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem
(BARTHES, 1996: 22). A fruição do texto pela perscrutação ontológica que realiza junto às suas personagens é absolutamente deliberada como artifício de escrita. A virulência da arte que incomoda o homem a ponto de perturbá-lo até fisicamente compõe o mote literário cardosiano de diários, novelas e demais produções do autor, como percebemos também pelo trecho de Confissões de um homem fora do tempo
, outro pequeno ensaio do autor, presente na mesma edição crítica de Crônica da casa assassinada:
Mas tendo afirmado que acredito no romance, quero acrescentar que acredito apenas naquele que é feito com sangue, e não com o cérebro unicamente, ou o caderninho de notas, no que foi criado com as vísceras, os ossos, o corpo inteiro, o desespero e a alma doente do seu autor, do que foi feito como se escarra sangue, contra a vontade e como quem lança à face dos homens uma blasfêmia. (CARDOSO, 1997: 763)
Lúcio sustenta o seu projeto com uma obra de forte apelo expressionista, graças ao olhar transfigurador que lança sobre personagens e ambientes. Pelo transfiguramento constante das dimensões do mundo pelo sujeito pensante, a prosa de ficção cardosiana é representada pelo expressionismo, segundo aponta Mario Carelli, ao enfatizar o modo peculiar com que Lúcio Cardoso transcende a mera representação do real. No artigo A música do sangue
, Carelli aponta que expressionista é a obra na qual o autor desordenou as linhas e as estruturas naturais, acadêmicas, da composição para obter efeitos duma emotividade carregada, exasperada, subtraindo a perspectiva de suas leis objetivas, dobrando-a ao ritmo interno da própria visão
⁵. Lúcio escreve em seu Diário completo que, ao artista, não restaria retirar algo do completo nada, já que suas pretensões poderiam ser encaradas por outro prisma de criação: Todo criador tira sua criação (...) do seu fermento interior, de suas contradições, de sua ânsia de entender e captar, impondo assim ao mundo um conjunto de valores que representem exatamente a estatura de sua força interior
(CARDOSO, 1970: 276). A escrita expressionista teria como leitmotiv o anseio pela transfiguração, através de um estranhamento do habitual e da busca do sentido oculto dos elementos ao redor. Ao esclarecer sua capacidade peculiar de ver
o mundo que o circunda, Lúcio Cardoso apresenta sua própria definição de expressionismo, ainda em seu Diário completo:
Leio em Montherlant que um escritor, para saber descrever, tem necessidade de ver
– que Balzac, Tolstói, viam
bem. Não sei a que quer ele se referir com isto, mas investigando o que para mim significa ver
, chego à conclusão de que não vejo bem
, no sentido de que ver é olhar intensamente para uma coisa ou uma paisagem. Olhar, olho muitas, mas tenho certeza de que não consigo vê-las. As coisas, para serem vistas por mim, têm necessidade de preexistirem, latentes, no meu íntimo – que tal árvore ou tal lago relembre coisas já vistas ou sentidas – ou que despertem outras não vistas nem sentidas ainda, mas que estendam suas raízes no meu espírito – que pactuem um pouco, enfim, desse mundo inorgânico que me forma, e onde se mistura às sensações e aos sentimentos, a ponta de uma verdade que do lado de fora vem encontrar o seu eco – próximo ou remoto, que importa – mas ainda assim eco de uma verdade existente ou existida. (DC, 263-264)
A deformação de cenários e personagens, sem se submeter aos limites que uma leitura realista poderia impor, chegou a suscitar críticas pouco favoráveis aos seus textos – Octávio de Faria apontaria que, segundo os críticos, suas personagens seriam heróis pouco reais, pouco verossímeis, esses que não conheciam senão os limites extremos de seus sentimentos – essas regiões onde só se verificam ‘acontecimentos extraordinários’, porque nelas só sopram os ventos da loucura e da morte, da destruição e do crime
(FARIA, 1997: 667), completando que, ainda para eles, seriam exagerados os tons do paisagista e até monótono o ‘de profundis’ que entoa
(FARIA, 1997: 667). As críticas acirradas surgiram principalmente após a ruptura com os escritores regionalistas, a partir da publicação de A luz no subsolo em 1936. Em pleno período de grande engajamento político-social dos artistas brasileiros, Lúcio lança um texto demarcado pela literatura de introspecção, em que o absurdo e o nonsense já configuravam seus matizes – como ressonância temos a carta que Mário de Andrade escreveu para Lúcio em 20 de agosto de 1936, relatando o quanto havia ficado incomodado com a leitura do livro (SANTOS, 2001: 31). A celeuma prosseguiu entre nomes como Brito Broca, Jorge Amado, Alceu Amoroso Lima, Álvaro Lins e a famigerada contenda com José Lins do Rego, com quem teria saído às vias de fato na loja da livraria José Olympio (fato desmentido posteriormente). Em entrevista a Brito Broca em 1938, Lúcio Cardoso já definiria os contornos de sua escrita expressionista, como que se preparando de antemão para os petardos que receberia pelas características de seu trabalho⁶ (consideramos não só a crítica aos romances e novelas, mas também em relação ao teatro, onde recebeu as reprovações mais impiedosas), a partir do qual construiu sua trajetória literária dos próximos 20 anos:
Já em várias ocasiões me referi a essa crença dominante na maioria dos nossos romancistas de que a fidelidade à vida
– oh! Deus! – consistia na observação direta dos fatos e das coisas – espécie de espionagem em torno de características puramente sociais ou aparentes em prejuízo dos fatores profundos que as determinam. E isto tinha levado a maioria dos romancistas brasileiros a uma pura paisagem, quase sempre levantada com talento de narrados, mas, sem raízes na vida. A origem era quase exclusivamente nascida no desprezo em que mantinham uma das faculdades básicas em qualquer obra de arte – a imaginação. Todos pareciam de comum acordo em ignorar que é neste ponto que se manifesta a força do dom que um artista recebe no berço. Entretanto o real que era tão vigorosamente apregoado, é tão diferente, tão mais profundo e misterioso do que parece, que será ingenuidade concordar em que um simples golpe de vista documentário
o apreenda; que de energia e de paixão, de angústia e de entusiasmo foge da mão do romancista que tenta indolentemente fixá-lo. Quase sempre nada consegue senão a imagem que rege o mecanismo da vida, mas a vida em si está ausente. Porque, para humilhação nossa, é preciso dizer mais uma vez que a vida não é a constatação do ambiente exterior, a escada de um pardieiro, a rua, as fachadas das casas, os barcos, os risos, os tetos e os jardins – a vida é ao contrário o que o homem o sofre, a história das suas reações, os sentimentos que os habitam, as paixões que o conduzem. A vida não é o que os olhos veem, mas o que a alma guarda. E fora disto não existe arte e sim fabricação. (CARDOSO apud SANTOS, 2001: 58-59)
A imaginação que Lúcio Cardoso destaca em 1938 ganharia tamanha proporção nos próximos trabalhos que se transformaria em estado febril de delírio, como o que encontraremos nas novelas Inácio e O enfeitiçado, abordadas em nosso estudo. Suas personagens transcendiam o real utilizando vários elementos possíveis: álcool, tóxicos, homicídios, violência sexual ou pela própria loucura imanente. Como veremos com mais precisão nos próximos capítulos, o mundo das coisas concretas está impregnado de tédio, remorso e frustração por uma vida esvaziada de sentido, e disto as personagens pareciam fugir desesperadamente: Só as pessoas realmente fortes podem viver na realidade definitiva das coisas; quase todo mundo vaga numa atmosfera morna de fantasia
(DT, 748).
Ao utilizar os excessos da imaginação desregrada para construir sua própria realidade transgressora, Lúcio demonstrou ser menos preocupado com a coerência lógica de algumas de suas histórias do que com o escrutínio emocional do coração humano devastado, sem submeter a organização de sua escrita a uma descrição extremamente fidedigna do real em seus limites de espaço e tempo, o que permitiu que muitos acusassem de incongruente o entrecho de suas narrativas. Por certo, notamos como não são realmente raros certos lapsos de escrita com os quais muitos de seus detratores literários se regozijaram, e que após anos de leitura cardosiana não seja difícil detectar. É comum encontrarmos em algumas histórias certo despropósito cronológico, o que permite inferir uma insubordinação de Lúcio aos limites temporais, já que alguns dos acontecimentos são alinhavados em um período de tempo por vezes improvável, face à força incontrolável que arrasta suas personagens, verdadeiras marionetes à mercê da gana obsessivamente trágica de Lúcio. O mais curioso talvez seja o que observamos no inacabado O viajante: todo o torvelinho de situações é concomitante aos preparativos da festa religiosa da cidade e todas as paixões eclodem no recorde de tempo de três dias. Após alguns poucos encontros com o viajante Rafael, Donana de Lara decide atirar o filho deficiente no precipício. Em novelas como O desconhecido, toda a relação trágica entre as personagens suscita a ligeira impressão de que tudo ocorre após meses da estada de José Roberto na fazenda Cata-Ventos; não obstante, todas as situações se desenrolam em questão de algumas semanas, da paixão do homem