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A Flecha de Fogo
A Flecha de Fogo
A Flecha de Fogo
E-book1.034 páginas16 horas

A Flecha de Fogo

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Sobre este e-book

Uma antiga profecia esconde a última esperança de um povo... E a ruína de outro.
Ele está chegando.

A profecia nos avisou que, com o eclipse, viria o Arauto da Destruição, tingindo os campos de vermelho. Ele já destruiu o Reino dos Elfos com seu exército de monstros. Só existe uma coisa que pode detê-lo, mas ninguém sabe o que é.

Passei minha vida toda estudando a profecia. Todos nós dedicamos cada minuto a tentar decifrá-la, em busca de uma arma, de uma esperança. Mas a última barreira caiu e ele está chegando.

A sombra da morte cobrirá nossos reinos, a menos que alguém responda a pergunta que nos atormenta desde o início.

O que é a Flecha de Fogo?

Leonel Caldela (A Lenda de Ruff Ghanor, Ozob, O Código Élfico) volta ao cenário de Tormenta para desvendar um mistério de décadas. A Flecha de Fogo narra o embate épico entre a civilização humana e a monstruosa Aliança Negra, num romance de volume único que conquistará tanto veteranos quanto recém-chegados ao maior universo de fantasia do Brasil.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento1 de dez. de 2018
ISBN9788583650935
A Flecha de Fogo

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    Pré-visualização do livro

    A Flecha de Fogo - Leonel Caldela

    Profecia

    Quando a sombra passar pelo globo de luz

    Trazendo a vida que trará a morte

    Terá surgido o emissário da dor

    O arauto da destruição

    Seu nome será cantado por uns

    E amaldiçoado por outros

    O sangue tingirá os campos de vermelho

    Um rei partirá sua coroa em DUAS

    E a guerra tomará a tudo e a todos

    Até que a sombra da morte complete seu ciclo

    E a flecha de fogo seja disparada

    Rompendo o coração das trevas

    Prefácio

    Thwor Ironfist surgiu num impulso. Ou é como eu me lembro, pelo menos.

    Eu precisava escrever uma matéria para a revista Dragão Brasil, nos idos de 1997, e não sabia bem sobre o que escrever. Alguma coisa me fez lembrar de Genghis Khan, o conquistador mongol que formou um império unindo as tribos nômades do nordeste da Ásia e usando táticas de guerra inovadoras (não o grupo brega dos anos 80 que se apresentava nos programas dominicais), e a ideia veio.

    E se a gente aplicasse isso a um reino de fantasia? E se surgisse um líder de inteligência anormal entre monstros, previsto em uma profecia sagrada, capaz de unir cada agrupamento num exército — surpresa — monstruoso? Por fim, e se um continente inteiro já tivesse sido conquistado, incluindo a nação élfica, normalmente tão poderosa em outros mundos? Assim surgiu Thwor, o bugbear predestinado que, liderando a Aliança Negra dos goblinoides, esmagou o continente de Lamnor e ameaçava destruir o restante dos reinos civilizados. Aventureiros poderiam apenas atrasar seus planos, pois seu avanço só poderia ser detido pela Flecha de Fogo, um mistério incluso na mesma profecia de seu nascimento.

    Era um gancho de aventura, uma semente de trama elaborada para que jogadores de RPG continuassem a história e a resolvessem como bem lhes coubesse. Ou pelo menos era assim que eu imaginava. Nos 21 anos que se seguiram à publicação, Thwor e seu exército se tornaram ao mesmo tempo queridos e odiados pelos fãs de Tormenta. Uns clamando pelo sucesso do general, outros ansiosos para ver seus crimes punidos. Um dia a trama teria que ser resolvida.

    O dia finalmente chegou.

    Eu poderia dizer que deixamos esta função nas mãos de Leonel Caldela, mas seria mentira. Leonel tomou para si a tarefa como se, vejam só, estivesse predestinado a isso. Tudo que já foi discutido um dia sobre Thwor, sobre a Aliança, tudo que alguma vez foi comentado entre nós como possibilidade ou ideia brilhante (ou não), passou a fazer parte do quebra-cabeças que viraria A Flecha de Fogo. Meu autor preferido de fantasia tem o dom não só de criar coisas fantásticas, mas também de incorporar, melhorar e fazer crescer cada fagulha surgida de outras mentes. Nada é supérfluo se servir para engrandecer a história.

    Editar A Flecha de Fogo foi um presente para mim em uma porção de níveis. Pude ver, antes de todo mundo, personagens conhecidos mas tão pouco aprofundados tomando vida e ganhando voz. Assisti a novos personagens incríveis (oi Maryx, oi Gradda) surgirem e tomarem meu coração. Tive o privilégio de voltar a trabalhar com um grande, querido e talentosíssimo amigo em um romance de Tormenta depois de exatos 10 anos.

    Mas o mais importante de tudo: puder ler o desfecho da trama criada quando eu era um escritor iniciante, com o mesmo maravilhamento, surpresa e satisfação que vocês leitores terão.

    Foi um longo tempo até que a profecia fosse concluída, mas a espera termina aqui. A flecha de fogo foi disparada. E eu não podia estar mais satisfeito.

    J.M. Trevisan

    Outubro de 2018

    Monstros de infância

    — Eles estão por toda parte — disse meu pai.

    Ele me segurou forte pela mão. Senti um pouco de dor. Eu estava apavorado porque conhecia aquele jeito. Aqueles olhos arregalados, as veias saltadas no pescoço, a respiração rápida e os dentes rilhados.

    Os inimigos sempre estavam por perto, segundo ele, mas às vezes meu pai tinha a certeza de que estavam logo do outro lado das paredes. Ele apenas sabia que a qualquer momento eles derrubariam a porta, entrariam pelas janelas, brotariam do chão por túneis subterrâneos. Naquelas horas de maior certeza, de maior medo e fúria, ele pegava a espada e brandia contra as sombras. Gritava e fazia acusações a coisas que eu e minha irmã não enxergávamos. Mas, acima de tudo, certificava-se de que tudo estava trancado. Metia a mão por trás da barricada de móveis, testava a fechadura e a barra de madeira que atravessava a porta. Vasculhava o chão de terra em busca de passagens secretas. Conferia os pregos das tábuas que mantinham as janelas fechadas.

    E, mais importante, deixava a casa no escuro. No escuro e em silêncio. Por alguma razão, só ele podia falar.

    Mas, num dia de certeza, num dia de fúria e de medo, meu pai quis abrir a porta.

    Ele arrastou a estante, revelando a entrada. Pegou um martelo, removeu uma por uma as tábuas pregadas. Ergueu a barra pesada dos suportes de ferro. Então enfiou a mão na camisa e puxou a chave pendurada no pescoço.

    — Pai, o que está acontecendo? — perguntei.

    — Eles estão muito perto hoje, Corben — ele disse. — Se não se cuidar, vão pegá-lo.

    — Então por que...

    Enfiou a chave no buraco da fechadura e girou. O barulho me encheu de pânico. Aquele era um dia de medo, um dia de escuro. Abrir a porta já era assustador normalmente. Meu coração pequeno disparou, enquanto eu tentava entender a razão daquilo tudo.

    Ele abriu a porta, para meu terror.

    Protegi os olhos da claridade do sol.

    — Pai, o que está fazendo?

    — Venha comigo.

    Ele me puxou pela mão. Tentei resistir, mas minhas pernas finas de menino que nunca saía de casa eram fracas. Ele não teve dificuldade de me arrastar.

    Eu não estava acostumado à luz. Não lembrava da última vez em que saíra de casa, muito menos que o sol tocara em minha pele. O calor era gostoso, mas logo foi forte demais e me senti ardendo. Era difícil discernir o que havia em volta, a claridade feria meus olhos. Vi as plantações deixadas aos corvos e às pragas. As árvores ao longe.

    A pequena cova solitária.

    O mundo exterior era grande demais, muito cheio de cores e luz. A casa era sempre escura e barricada, porque eles estavam por toda parte, podiam chegar a qualquer momento e queriam nos matar de formas horríveis. Nossa fazenda não era grande, mas me parecia uma terra exótica, cheia de monstros e perigos.

    Aos 10 anos, eu tinha certeza que a Aliança Negra estava sempre à espreita.

    — Pai, aonde está me levando?

    — Eles estão perto, Corben. Muito perto. Você precisa obedecer. Os goblinoides estão perto, posso sentir o cheiro deles.

    — Então por que estamos saindo?

    — Porque precisamos fazer algo, apesar dos goblinoides. Algo importante. Tem que ser hoje, tem que ser agora.

    Ele não olhava para mim, mantinha os olhos arregalados à frente. Acariciou o cabo da espada que levava na cintura. Meu pai não era um guerreiro, mas dizia que, no reino de Tyrondir, até mesmo um fazendeiro precisava saber lutar. Tinha uma espada enferrujada, que sempre deixava ao alcance da mão. Com aquela espada ele atacava as sombras, estocava o chão, ameaçava coisas que ninguém mais via, mas que, segundo ele, estavam do outro lado da porta.

    Procurei os monstros, os guerreiros da Aliança Negra. Eles não estavam escondidos atrás do espantalho ou no meio do mato que havia tomado nossa lavoura de trigo. Não estavam no chiqueiro vazio ou no curral que só continha o esqueleto de uma vaca.

    Meu pai era um fazendeiro, mas dava mais atenção a sua espada enferrujada do que a sua plantação arruinada, porque morávamos em Tyrondir. O reino de Tyrondir ficava ao extremo sul do Reinado, no continente norte. Logo abaixo vinha o Istmo de Hangpharstyth e então Lamnor, o Continente Bestial. Uma terra tomada pela Aliança Negra.

    Aos 10 anos, eu sabia tudo que havia para saber sobre a Aliança Negra e os goblinoides. Ou pelo menos tudo que meu pai me dizia. Era um exército imenso, uma horda de carniceiros formada por raças monstruosas que saqueavam, destruíam e massacravam tudo que encontravam pela frente. Eram monstros bípedes, coisas selvagens cujo único talento era matar.

    Os goblinoides conquistaram todo o continente de Lamnor e estavam subindo ao norte. Para Tyrondir.

    Para nossa fazenda.

    Passei minha infância acreditando nisso.

    — Hoje eles estão perto! — meu pai gritou. — Estão muito perto! Sinta seu fedor!

    — Pai, aquela é a tumba de...

    — Eles estão perto, Corben! Estão chegando!

    Lágrimas escorreram de meus olhos. Ele me arrastou para a floresta.

    Eu nunca vira um goblinoide. Imaginava criaturas horrendas, com cabeças deformadas, bocas cheias de dentes pontiagudos, garras afiadas, olhos esbugalhados. Sempre cobertas do sangue de suas vítimas. Imaginava-as me observando dormir, porque meu pai dizia que um dia estariam lá. E, se eu não acordasse, morreria na cama, sem nem perceber.

    Goblinoides eram meu maior pesadelo e o pior de todos eles era Thwor Ironfist.

    Thwor Ironfist era o Grande General da Aliança Negra. O monstro que unira uma horda de monstros, o assassino que devastara um continente inteiro e estava chegando para nos pegar. Thwor Ironfist estava sempre por perto. Podia chegar de repente por um túnel e puxar meu pé. Podia ouvir nossas vozes se não ficássemos em silêncio total. Podia enxergar nossas silhuetas se alguém acendesse uma vela.

    Olhei ao redor, aterrorizado, procurando Thwor Ironfist em meio aos arbustos, atrás da cerca desabada.

    Entre as árvores.

    — Eles vão pegá-lo — disse meu pai. — Se você não se cuidar, vão pegá-lo.

    — Pai, a floresta não! — implorei. — Por favor, a floresta não!

    Eu nunca estivera na floresta. Senti meu coração na garganta, supliquei para que ele não me levasse para lá. Eles podiam estar na floresta, porque lá havia sombras e sons, lá tudo era desconhecido. Eu queria minha cama, queria a porta fechada e as janelas tapadas de nossa casa. Queria fechar os olhos e ter medo de longe.

    Mas meu pai me arrastou para a floresta.

    — Eles estão por toda parte, Corben.

    O sol passava por entre as folhas. O vento assobiou pelos troncos. Ouvi um barulho estranho. Meu estômago deu um nó. Eram eles, eu tinha certeza. Como meu pai sempre dissera, eram eles. Eles estavam aqui, eles vinham me pegar. Quis correr de volta para casa, mas talvez isso fosse ainda mais perigoso.

    Ele soltou minha mão.

    — Ande — ordenou.

    — Pai, vamos para casa.

    — Em frente. Você precisa achá-los antes que eles o encontrem.

    Andei um pouco. Contornei uma árvore. Alguns pássaros voaram, dei um grito de susto. Olhei em volta e soube que estava perdido.

    Sozinho.

    Ouvi um som.

    Pai, não me deixe aqui!

    Então não lembro de mais nada.

    Profecia

    1. A cidade que olhava as estrelas

    A coisa mais fácil que fiz na vida foi achar um motivo para odiar alguém.

    Aquele era um dia agitado, um dia de preparações. O lorde visitava a cidade e, nos templos, nas oficinas e nas bibliotecas, todos estavam ocupados. Mas meu corpo estava cheio de preguiça e minha cabeça estava cheia de ódio, então eu era indolente. Ódio e preguiça andavam juntos, eram sentimentos leves e descomplicados para um jovem. Eu odiava sem esforço, porque era preguiçoso.

    Todos nós éramos sacerdotes. Vivíamos todos nas colinas altas da cidade de Sternachten, cultuávamos o mesmo deus, vestíamos as mesmas roupas, tínhamos os mesmos sonhos. Nas torres sobre as colinas, observávamos o céu à noite e políamos as lentes dos telescópios de dia. Para qualquer um que nos visse de fora, éramos iguais, irmãos numa enorme família. Seguíamos o dogma de nunca tirar uma vida humana, o que deveria garantir um cotidiano pacato, livre do medo que assolava a maior parte dos aldeões e até mesmo dos nobres no mundo todo.

    Mas era muito fácil achar um motivo para odiar. Eu odiava profundamente os clérigos do Observatório da Segunda Flama, que despontava orgulhoso na Colina Norte. Odiava-os porque achava que eram mais ricos, mais ilustres. Porque em minha mente eles recebiam muito mais visitas de nobres do reino e até mesmo de lugares distantes, sem ter feito nada para merecer esta reputação. Mas, sendo realmente honesto, eu os odiava apenas porque eles pertenciam àquele observatório e não ao meu. Tinham uma mínima diferença em relação a mim mesmo e às pessoas mais próximas a mim; isso era suficiente. O que observei em meus anos em Sternachten, muito mais que os padrões das estrelas e o movimento dos céus, foi como somos capazes de inventar distinções entre quem é igual, para poder nos dividir em pequenas tribos e entrar em guerras mesquinhas.

    Minha cabeça estava muito longe dessas reflexões na tarde em que começou minha participação nos eventos que levaram à Flecha de Fogo. O sol já estava caindo de seu ápice, o que significava que há pouco eu comera o desjejum. A cidade começava a se encher dos cheiros de carne assada e especiarias, enquanto as tavernas e as cozinhas dos observatórios se preparavam para dali a algumas horas servir o almoço aos clérigos que, como eu, passavam a noite acordados e dormiam até o meio-dia. Eu andava pelas estreitas ruas de paralelepípedos, desviando de pessoas envolvidas nas preparações para receber o lorde. A maioria vestia mantos vermelhos iguais aos meus e sandálias de couro idênticas às minhas. Havia algumas distinções: uma garota tinha uma fênix negra bordada no ombro direito do manto, sinal de que ajudava com os ritos funerários; um homem pouco mais velho que eu usava um capuz que cobria metade do rosto, marcando-o como um confessor. E, é claro, ostentavam seus medalhões.

    Todos os clérigos em Sternachten vestiam os mesmos mantos vermelhos, mas cada observatório tinha seu próprio brasão. Todo sacerdote na cidade usava um medalhão com o brasão de seu observatório, identificando-se com uma torre, uma colina, uma subdivisão do clero. O medalhão era motivo de orgulho, uma marca de nossa lealdade. O brasão do Observatório da Pena em Chamas era uma pena cercada de fogo e de estrelas, sobre as asas flamejantes de uma fênix. Eu amava aquele símbolo, amava aquele medalhão, assim como odiava o Observatório da Segunda Flama e seu brasão feio e sem graça.

    Exceto por meu medalhão, eu me vestia de forma simples, sem adornos, pois era um adepto sem responsabilidades ou honrarias especiais. Completara meu treinamento há pouco mais de dois anos e agora era um clérigo pleno, mas ainda assim, durante o dia, fazia trabalho braçal: carregava uma sacola cheia de pesadas peças metálicas de uma das ferrarias até meu observatório.

    A vida não era ruim em Sternachten. Na verdade, era ótima. Nunca faltava comida e, sendo uma cidade que crescera em volta do clero, doenças eram quase desconhecidas. Nós seguíamos um código de conduta estrito, trabalhávamos e estudávamos muito, precisávamos obedecer aos bispos-videntes sem questionar, mas eu tinha tempo de pousar a sacola cheia de peças metálicas no chão e sentar encostado à lateral de uma casa, numa ruela movimentada, para descansar um pouco.

    Aquela era uma área secular da cidade, território de burgueses comuns, com suas oficinas, tendas de comércio e habitações. Não havia muito espaço, pois as regiões seculares se acomodavam como podiam entre as colinas. Eu vivia numa colina, assim como todos os clérigos. Lá o espaço era amplo, desimpedido e dominado por um observatório. Havia cinco colinas em Sternachten, cada uma com sua própria torre, de onde à noite se erguiam os telescópios.

    Nós, os clérigos, praticávamos uma ciência sagrada moderna e inovadora: observávamos as estrelas através dos telescópios em busca de augúrios, registrávamos seus padrões e adivinhávamos o futuro.

    Éramos astrólogos.

    Os observatórios eram um misto de templos, universidades, laboratórios e tendas de adivinhos. Todos os clérigos de Sternachten eram devotos de Thyatis, o Deus da Ressurreição e da Profecia. A cidade encampava o lado profético da divindade, por métodos desenvolvidos apenas nas últimas décadas, com uma precisão quase desconhecida no resto do mundo. Éramos estudiosos e não havia lugar para superstição em nossas vidas.

    No meio do emaranhado de casas e ruelas, de roupas estendidas entre janelas do segundo andar e tabuletas anunciando negócios, sempre era possível entrever alguma colina alta, com uma torre de onde brotavam os enormes telescópios. Entregue à preguiça na viela estreita, sentado no chão enquanto burgueses e clérigos passavam por cima de mim ou desviavam, eu vislumbrei meu lar, o Observatório da Pena em Chamas, e sorri. Ao mesmo tempo em que odiava o Observatório da Segunda Flama, eu amava meu querido Observatório da Pena em Chamas. Via a Colina Norte como um covil de falsários pomposos e egoístas, enquanto enxergava meu lar como uma congregação de sacerdotes brilhantes e abnegados. O nome de nosso observatório era motivo de chacota: pouco grandioso, levara ao apelido de Observatório da Galinha Assada, mas eu não me importava. Era o nome de meu lar.

    Ergui a sobrancelha quando enxerguei um acólito passar pela rua, tão longe de mim quanto era possível. Ele tentou esconder o medalhão pendurado em seu pescoço, mas notei que era o símbolo de meus rivais, o Observatório da Segunda Flama. Meu sorriso adquiriu um tom zombeteiro.

    — Ei, moleque! — gritei para ele.

    O garoto virou o rosto para o outro lado e fingiu não me escutar. Eu conhecia aquela expressão, aquele jeito, aquele comportamento. Eu fora exatamente assim oito anos antes. Ele era ainda um acólito, devia ter uns 12 anos. Era só um noviço, um aprendiz, mas já podia sair do observatório e cumprir pequenos deveres pela cidade. Tinha deixado a segurança das paredes de sua torre para ganhar as assustadoras ruas de Sternachten, cheias de clérigos rivais. Era engraçado pensar que, para uma criança, a pacata Sternachten podia ser assustadora só porque havia sacerdotes irritantes, dispostos a infligir um pouco de tortura bem-humorada a alguém mais jovem.

    Como eu estava prestes a fazer.

    — Acólito! — insisti. — Estou falando com você!

    O garoto parou e se encolheu involuntariamente. Então se virou devagar, olhando para baixo, tapando o medalhão com uma das mãos. Com a outra, carregava uma sacola grande, cheia de alguma coisa. Eu era magro e tinha bochechas rosadas, o oposto de uma figura ameaçadora. Mas, simplesmente por ser mais velho e acima dele na hierarquia eclesiástica, eu intimidava aquele menino.

    — Não cumprimenta seus superiores? — provoquei. — Será que vou ter que denunciá-lo a um bispo-vidente?

    — Que a Fênix veja seu futuro, adepto — o garoto gaguejou.

    — Que você sempre tenha uma segunda chance — devolvi. — O que está carregando aí, acólito?

    O garoto estremeceu. Mesmo pertencendo a observatórios rivais, seguíamos a mesma hierarquia, assim como todos os clérigos em Sternachten. Eu era um adepto, um clérigo novato já ordenado e abençoado, e ele era um acólito, um mero aprendiz sem nenhum poder milagroso. Ele devia obedecer a mim, pois a igreja acreditava que um sacerdote mais velho e mais sábio sempre teria os melhores interesses dos mais jovens em mente. Prova de que nosso deus patrono podia ver o futuro, mas não entendia a juventude.

    — Nada — ele respondeu, mal conseguindo pronunciar a palavra simples.

    — Então está carregando um monte de nada nessa sacola. Não sabia que nada fazia tanto volume. Traga aqui.

    — Adepto...

    — Vamos, obedeça a seu superior — eu mal consegui conter o riso, mas o garoto estava apavorado.

    Ele arrastou os pés até mim. Eu também olhava para os lados. Embora nunca fosse usar de violência, principalmente contra uma criança, nem soubesse desferir um mero soco, eu estava fazendo algo errado. Algo que acontecia todos os dias em Sternachten, mas errado mesmo assim. Caso um adivinho-mestre de qualquer observatório me visse abusando de minha suposta autoridade sobre um acólito, eu iria lavar latrinas por uma semana. Talvez até mesmo as latrinas de um observatório rival. Mas parei de pensar nisso quando peguei a sacola e a abri. Pensei que iria encontrar rolos de estopa, pedaços de couro ou outros materiais cotidianos que, em geral, eram confiados a aprendizes. Mas fui surpreendido por um cheiro maravilhoso, mistura de mel e especiarias, e enxerguei pequenos fardos enrolados em panos bordados.

    — Isto por acaso é para receber Lorde Niebling?

    O garoto já tremia tanto que não conseguia falar.

    Meti a mão na sacola e retirei um embrulho. Desenrolei, era uma espécie de tortinha. Mordi sem hesitar.

    — Muito bom! — falei de boca cheia. — Acho que nunca provei algo assim. De onde vocês tiraram essa iguaria?

    — Por favor, adepto... — implorou o pobre rapaz.

    Mas, se antes meu objetivo era só me divertir um pouco às custas de um acólito do maldito Observatório da Segunda Flama, agora eu sabia que tinha descoberto algo valioso. Sim, no mundinho minúsculo que eu habitava antes de tudo acontecer, uma tortinha agridoce era um tesouro e uma criança que rezava para o mesmo deus que eu era um inimigo. Os mortais são capazes de transformar qualquer coisa num grande drama épico.

    Terminei de devorar o primeiro petisco. Então passei a colocar os outros em minha própria sacola.

    — Vocês do Observatório da Segunda Flama não têm vergonha! — falei, erguendo-me. — Já que não podem apresentar nenhuma profecia de valor, tentam bajular o Lorde com culinária. É assim que encantam os nobres? Enchendo seus ouvidos de palpites infundados e sua pança de pratos típicos?

    — Não sei — disse o acólito, com sinceridade.

    — A não ser que desta vez tenham mesmo descoberto algo importante — fiquei sério de repente. — Diga, acólito. Vocês por acaso encontraram a Flecha de Fogo?

    Ele me olhou como se eu fosse um louco perigoso.

    Era algo impossível. Todos nós procurávamos a Flecha de Fogo dia e noite. Os sacerdotes mais velhos contavam histórias sobre como começaram a busca, décadas atrás, enquanto os mais jovens, como eu e aquele garoto, sonhavam em um dia fazer a descoberta. Sternachten era uma cidade de clérigos de Thyatis, o Deus da Ressurreição e da Profecia, e nenhuma profecia era mais importante que a Flecha de Fogo. Em especial no sul de Tyrondir, praticamente no quintal do território dos goblinoides.

    A Flecha de Fogo ocupava nossos pensamentos a cada hora de cada dia. A profecia que anunciara sua chegada fora proferida há séculos. Contava sobre o surgimento de um líder guerreiro, um assassino que traria morte e destruição ao mundo. Então falava sobre a derrocada do monstro, quando a Flecha de Fogo fosse disparada.

    A primeira parte da profecia se cumprira décadas atrás, com o surgimento de Thwor Ironfist e da Aliança Negra.

    Mas ninguém sabia quem ou o que cumpriria a última parte. Ninguém sabia o que poderia ser a Flecha de Fogo.

    O maior feito que qualquer sacerdote astrólogo poderia alcançar era decifrar o que, afinal, era a Flecha de Fogo. Teoricamente seria uma vitória de todos, um marco para o mundo inteiro. Mas na verdade nenhum de nós queria que os clérigos de um observatório rival fizessem a descoberta. Era impossível que o Observatório da Segunda Flama tivesse enfim decifrado a profecia e achado a Flecha.

    Mas Lorde Niebling estava visitando a cidade por alguma razão. E se houvesse um segredo?

    — Sou só um acólito — o garoto balbuciou. — Não sei nada sobre a Flecha...

    Ele podia ser discípulo dos tratantes de nariz empinado da Colina Norte, mas era só uma criança. Fiquei com pena. Mesmo assim, mantive a pose.

    — Volte a seu observatório e diga que perdeu a comida de Lorde Niebling. Melhor, diga que comeu tudo! Assim vão deixá-lo sem almoço.

    — Mas, adepto...

    — Não discuta! Sou seu superior. E nada de revelar o que aconteceu aqui! Thyatis amaldiçoa os alcaguetes.

    O garoto seguiu seu caminho, desolado. Fiquei com remorso, mas logo esqueci. Naquela época eu não pensava muito nos outros, porque achava que a pior coisa que podia acontecer na vida real era um acólito ficar sem almoço e um lorde gnomo ficar sem bajulações. Eu não queria pensar no que já conhecera de maldade verdadeira, na fazenda, e também não quero agora. A Aliança Negra estava por perto, mas meu pai estivera errado: ataques de monstros eram algo que só acontecia com os outros. Nós vivíamos em Sternachten, onde as coisas mais emocionantes eram estrelas piscando à noite.

    Mordi outra tortinha enquanto segui pelas ruelas. O gosto era mesmo diferente de tudo que eu já provara. Algum padeiro devia ter estudado as refeições preferidas de Lorde Niebling no Palácio Imperial e preparado aquilo para surpreendê-lo. Não devia ter sido fácil; as tortinhas com certeza eram culinária dos gnomos. E não havia gnomos em nosso mundo — exceto um.

    Lorde Niebling era conhecido como o Único Gnomo de Arton. Talvez houvesse outros, mas ele era o único que importava. Nem mesmo a palavra gnomo era comum antes da chegada do Lorde, que a introduziu ao vocabulário artoniano quando precisou descrever a raça a que pertencia. Niebling afirmava ser natural de outro mundo, onde gnomos eram numerosos e criavam máquinas de sofisticação insana. A maior parte de Arton o conhecia por ser parte da corte da Rainha-Imperatriz, por viver no Palácio Imperial, ao lado de heróis e arquimagos.

    Nós o conhecíamos por ser o fundador de Sternachten.

    A cidade já existia antes da chegada de Lorde Niebling, mas era só uma sombra do que viria a ser. Não passava de um ajuntamento de clérigos de Thyatis sobre cinco colinas, tentando olhar os céus com lunetas toscas. Ninguém prestava atenção às profecias de Sternachten, porque nunca se realizavam. Observar as estrelas com aqueles equipamentos precários era o mesmo que tentar ler as palavras dos deuses num quarto escuro com lampiões apagados. A astrologia não passava de crendices vagas e suposições de que elas contivessem um fundo de verdade. Então, setenta anos atrás, Lorde Niebling chegou ao mundo e por acaso se deparou com a cidade. Passou algum tempo desenhando diagramas e anotando ideias loucas. Deu início à construção do primeiro observatório e deixou os planos para que outros fossem erguidos.

    Em poucos anos, com o conhecimento do homenzinho que falava rápido e tinha curiosidade sobre tudo, Sternachten começou a ver os céus com clareza. Os clérigos daquela época apontaram os telescópios projetados por Lorde Niebling para as estrelas e foi como se tivessem acendido os lampiões no quarto escuro. De repente, as palavras dos deuses eram claras e o destino surgiu escrito em letra elegante. As profecias vieram numa torrente contínua e se provaram corretas.

    Os padrões das estrelas mostraram uma combinação de perigo, animais, viagem e nobreza, ao mesmo tempo em que o conjunto de estrelas conhecido como Corujas Gêmeas adquiriu brilho maior que o normal. Isso foi interpretado como um possível acidente de cavalgada num baronato próximo, cujo brasão exibia duas corujas. Na próxima vez em que a baronesa viajou a cavalo, sofreu uma queda feia. Mas ela escolhera levar clérigos curandeiros consigo. Sua vida foi salva graças aos astrólogos. A presença do sol na Constelação de Medusa, numa época em que os padrões falavam de revelação, sinalizou uma época propícia para o descobrimento dos Olhos da Serpente, um artefato perdido há séculos. Aventureiros recuperaram o objeto mágico e celebraram os sacerdotes de Thyatis que tinham feito a profecia. Um alinhamento planetário nefasto avisou sobre a possibilidade de uma praga nas plantações e as preparações resultantes pouparam um ducado de uma grande fome. O duque agradeceu aos clérigos astrólogos em um pronunciamento oficial. E assim o reino de Tyrondir passou a conhecer a pequena Sternachten.

    Nobres, heróis e mercadores começaram a visitar a cidade, pagando grandes somas em troca de um vislumbre do futuro. Plebeus construíram suas casas entre as colinas, para atender às necessidades da população crescente de clérigos e aproveitar o fluxo de ouro que vinha de fora. Os observatórios formaram suas tradições, cunharam seus símbolos e a cidade criou seu próprio pequeno clero de Thyatis.

    Foi assim que Lorde Niebling, o Único Gnomo de Arton, deu início à ciência da astrologia.

    O Lorde voltava à cidade, de tempos em tempos, para ver como a disciplina progredia e como a cidade estava se desenvolvendo. Sua última visita ocorrera quando eu tinha acabado de chegar a Sternachten e ainda não podia deixar o observatório. Só lembro do alvoroço dos clérigos e da vontade de agradá-lo a todo custo. Lembro de ser colocado em fila, ao lado dos outros acólitos, para que o estranho sujeito baixinho de nariz enorme me olhasse com um sorriso. E lembro de estar apavorado, pensando que, se um homem esquisito como aquele podia entrar no observatório e me encontrar, talvez meu pai também pudesse. Enfim, fazia dez anos desde a última visita de Lorde Niebling. É claro que todos os observatórios queriam impressioná-lo. Eu havia cumprido meu dever sacerdotal ao roubar as tortinhas e cortar pela raiz a bajulação da Colina Norte.

    Todos nós desejávamos o favor de Lorde Niebling. Ouvíamos dos bispos-videntes que era simples questão de prestígio e sobrevivência. Os observatórios que mais agradassem ao Lorde virariam assunto na corte imperial, então seriam visitados por nobres importantes, talvez algum dia até mesmo pela Rainha-Imperatriz. Receberiam mais doações, poderiam avançar a pesquisa. Enquanto isso, observatórios que não impressionassem Niebling ficariam para trás, rejeitados e esquecidos.

    Isso era o que se falava em Sternachten, mas era uma mentira coletiva. A verdade é que, como uma comunidade insular, a cidade se preocupava com fofocas e competições particulares que não importavam a ninguém de fora. Víamos Lorde Niebling como um pai, uma figura de autoridade, e queríamos ser os favoritos. Só isso.

    Convencido de que meu roubo de tortinhas era decisivo para algo crucial no grande plano de Thyatis, saí da ruela para ganhar a pequena praça central de Sternachten, dominada pela estátua de uma fênix de asas abertas e uma fonte com a efígie do próprio Niebling. O povo circulava por ali com ainda mais pressa. Alguns videntes de rua tentavam enganar os crédulos, oferecendo augúrios pré-prontos em pergaminhos enrolados. Um arauto relatava as últimas notícias com voz límpida, fazendo floreios com um chapéu bufante que ostentava uma enorme pena. Algumas crianças brincavam.

    Laessalya estava examinando um graveto.

    — O que você tem aí? — perguntei, em tom bem-humorado.

    Ela se virou assustada, mas, quando viu que era apenas eu, abriu um sorriso.

    — Eu sou a Flecha de Fogo! — anunciou Laessalya, orgulhosa.

    — Eu sei. E o que é isso?

    — Minha arma para matar Thwor Ironfist!

    Ela brandiu o graveto com imponência.

    Laessalya era uma figura trágica, mas querida, em Sternachten. Uma elfa jovem — tinha mais ou menos o equivalente a minha idade. Seus cabelos eram vermelhos vivos e seus olhos eram lindos e prateados. Infelizmente, era louca. Ninguém sabia toda a história de Laessalya. Ela aparecera na cidade muito antes de mim, trazida por um halfling, ainda criança. Ninguém sabia como uma elfa podia atingir a idade adulta em tão pouco tempo. Elfos viviam séculos, sua infância deveria durar décadas. Mas eu também já lera que seu amadurecimento podia ser afetado pelas circunstâncias. Se isso fosse verdade, faria sentido que Laessalya tivesse crescido rápido. Eu nem podia imaginar ter passado pelo que ela passou, tão jovem. O que vivi na fazenda nem se compara.

    — Eu sou a Flecha de Fogo! — ela repetiu.

    — Então precisa se manter forte, para enfrentar o Grande General. Quer uma tortinha?

    Tirei um dos embrulhos da sacola e ofereci à elfa. Laessalya pousou seu graveto-arma com cuidado na mureta da fonte, então pegou o farnel com as duas mãos. Desembrulhou-o, cheirou-o, deu uma mordida. Seu rosto se iluminou.

    — É parecido com o que comíamos em Lenórienn — ela falou, de boca cheia, cuspindo migalhas. — Tem gosto mais forte, mas lembra muito!

    — É mesmo? Fale mais sobre o que você comia em Lenórienn.

    Eu estava tentando descobrir mais sobre ela, talvez até ajudá-la a lembrar, recuperar um pouco de quem ela fora. Talvez fosse verdade e Laessalya realmente tivesse memórias do Reino dos Elfos antes de ser destruído. Talvez a tortinha fosse parecida com algo que ela comera quando criança. Mas, ao longo dos anos, ela já dissera para mim e para muitos outros que a cantiga de um bêbado era uma música tradicional de Lenórienn, que um sapato velho achado no lixo fazia parte do uniforme dos guardas de Lenórienn, que uma colher de pau numa taverna suja era feita de madeira encantada de Lenórienn. Quase todos os habitantes de Sternachten queriam o bem da elfa, gostariam de vê-la fazer sentido da própria vida. Mas acreditar em suas memórias era tão difícil quanto acreditar que ela era a Flecha de Fogo.

    Laessalya não respondeu. Meteu a mão na sacola e pegou outra tortinha. Devorou-a e quis mais, então lhe dei todas que restavam.

    — Acha que existe alguma razão para a visita de Lorde Niebling, Laessalya? — perguntei.

    Eu não esperava resposta, só estava preenchendo o ar com palavras e dando alguma atenção a ela. Mas Laessalya respondeu:

    — Ele veio por causa da Flecha de Fogo.

    Algo em sua seriedade me fez franzir o cenho. Será que podia haver alguma verdade nos devaneios da elfa?

    — A Flecha...?

    — Sim! — ela exclamou, derramando tortinha mastigada no chão. Deixou a comida cair e apanhou seu graveto. — A Flecha de Fogo!

    Laessalya agitou o graveto como uma espada e ele pegou fogo instantaneamente. Dei um pulo para trás. Todos se voltaram a ela, a maioria se afastando. O arauto ficou calado, os videntes de rua saíram correndo, os pais e as mães puxaram seus filhos que brincavam. Era algum tipo de magia ou milagre e não era a primeira vez que acontecia. A elfa possuía um poder fraco, mas indecifrável. Já fora estudada pelos clérigos muitas vezes, mas ninguém conseguia determinar o que eram aquelas capacidades. Fogo era um elemento ligado a Thyatis, e isso valia ainda mais o favor de Sternachten. Ela já dera início a pequenos incêndios, mas não era perigosa. Todos nós cuidávamos da elfa louca, dando-lhe pequenos trabalhos e formando uma comunidade a seu redor, já que ela não tinha ninguém.

    — Deixe eu ver sua arma — peguei o graveto em chamas e joguei-o na fonte, onde o fogo se apagou com um chiado.

    Eu sou a Flecha...

    — Eu sei.

    Ela me abraçou.

    Laessalya vivia à sombra da Aliança Negra, o exército monstruoso que destruíra o Reino dos Elfos. Achava que era a Flecha de Fogo. Nós, clérigos, vivíamos à sombra da Aliança Negra, que agora ameaçava nosso reino. Procurávamos a Flecha de Fogo. Não éramos tão diferentes de Laessalya, afinal.

    — Corben! — ouvi uma voz conhecida chamar meu nome.

    Desvencilhei-me de Laessalya com delicadeza. Virei-me e enxerguei o Adepto Clement, correndo esbaforido.

    — Por que ainda não voltou? — meu amigo exigiu. — Os adivinhos-mestres vão apagar seu futuro! Estamos esperando as peças!

    — Mas não havia pressa nenhuma... — argumentei.

    — Agora há. Volte ao observatório, Corben, tivemos um problema.

    Em qualquer outro lugar de Tyrondir, uma pessoa correndo e dizendo que havia um problema seria sinal de um ataque da Aliança Negra.

    Por séculos, a civilização julgou que goblinoides eram apenas bestas desorganizadas, selvagens estúpidos incapazes de representar ameaça verdadeira aos reinos dos humanos, dos elfos, dos anões. Goblinoides eram capangas de feiticeiros malignos, eram monstros que guerreiros matavam como treinamento para oponentes de verdade.

    Então surgiu Thwor Ironfist.

    O Grande General nasceu durante um eclipse, como previsto pela profecia. Uniu goblins, hobgoblins, bugbears, orcs, ogros, gnolls, kobolds, todas as criaturas que quase ninguém sabia diferenciar, chamadas pela civilização apenas de monstros ou coisas. Provou que goblinoides podiam ser inteligentes, organizados e principalmente eficientes. Conquistou os reinos humanos do continente sul um a um. Destruiu o reino élfico de Lenórienn, talvez o primeiro lar da infeliz elfa Laessalya. Então avançou pelo Istmo de Hangpharstyth, derrubou a cidade-fortaleza de Khalifor e se postou como uma nuvem negra às portas do continente norte.

    Nada era capaz de deter Thwor Ironfist. Ele era o escolhido de Ragnar, o Deus da Morte. Eu passara minha vida toda em Tyrondir, o Reino da Fronteira, o próximo passo natural no avanço de Thwor e sua Aliança Negra. Vivendo em Tyrondir, especialmente no sul, eu devia estar condicionado a pensar que qualquer situação grave era um ataque goblinoide.

    Mas eu não estava em qualquer lugar de Tyrondir. Estava em Sternachten. Meu primeiro pensamento não foi que estávamos sob ataque, mas que poderia haver algo errado com nosso sumo-telescópio, o maior dos três telescópios no observatório, o centro e âmago de todo o complexo.

    Eu estava certo.

    — É um desastre! — disse Clement, sem fôlego, correndo a meu lado colina acima, seu medalhão balançando. — Os bispos-videntes estão cuidando disso em pessoa! Achamos que alguém tinha roubado suas peças! Ysolt está rezando sem parar há horas!

    — Respire, Clement — também ofeguei. — Não adianta nada chegar ao observatório e cair morto.

    — Acho que prefiro morrer aqui a encarar o Bispo Dagobert.

    A última parte da subida era sempre a pior. A Colina Oeste, onde ficava o Observatório da Pena em Chamas, começava suave e coberta de grama, depois ficava cada vez mais íngreme e pedregosa. Havia algumas estradinhas calçadas e duas escadarias estreitas e serpenteantes que levavam ao observatório, mas sabíamos que encontraríamos muita gente nestes caminhos, gente que poderia fazer perguntas. Então, quando emergimos dos becos e das vias apertadas da Zona Secular, logo nos embrenhamos entre as árvores. A Colina Oeste tinha mais árvores do que as outras quatro. Isso era muito útil para acólitos e adeptos, que sempre tinham algo a fazer escondidos. Eu não podia imaginar como seria viver na Colina Leste, baixa e árida, um mero pedregulho gigante onde todos podiam ver o que cada um estava fazendo. Evitamos um grupo de acólitos que estava sendo instruído por uma adivinha-mestra especialmente rígida, desviamos de um bispo-vidente que meditava sob uma árvore e passamos ao largo de um casal de adeptos que fazia o que jovens casais de adeptos faziam. Precisamos escalar o último trecho, as peças metálicas tilintando dentro de minha sacola. Acompanhando o tilintar, ouvi o ronco do estômago de Clement.

    — Não tem nada de comer aí? — ele perguntou.

    — Tinha. Dei para Laessalya.

    — Tudo bem, ela precisa mais do que eu — ele tentou esconder a decepção na voz, mas o estômago falou a verdade de novo.

    Já passava da hora do almoço. Eu realmente tinha me demorado demais passeando nas ruelas, atormentando o pobre acólito e conversando com Laessalya. Também ficara admirando um alquimista, mas não iria revelar isso a Clement, pois não queria ouvir zombarias sobre minha paixonite mais recente. Sternachten não era grande, mas atravessar a cidade era sempre demorado. As ruas eram apertadas, havia muita gente, os caminhos nunca eram retos.

    Evitamos a entrada principal do Observatório da Pena em Chamas. Em vez disso, contornamos a torre e achamos uma parede rachada, velha conhecida de acólitos e adeptos que precisavam fazer saídas e entradas ocultas. A rachadura era perfeita para escalar e dava acesso a uma janela. Como sempre, escalei primeiro. Eu era desajeitado, mas também era leve. Clement me entregou a sacola e eu o ajudei a subir. Nós dois saltamos para dentro do observatório, batemos o pó dos mantos e esperamos nossa respiração ficar mais relaxada, nossos corações pararem de bater tão rápido, o suor parar de brotar em nossas testas.

    Segurei meu medalhão para me certificar que não o havia perdido.

    Quando já não estávamos mais ofegantes e achamos que não dávamos tantos sinais de nossa volta às pressas, Clement e eu andamos pelo corredor em direção ao salão principal.

    Na primeira esquina, encontramos a Bispa-Vidente Salerne.

    — Corben, até que enfim! — ela me fulminou com seus olhos azuis.

    — Que a Fênix veja seu futuro, Vossa Excelência Reverendíssima — comecei, fazendo uma mesura.

    — Não há tempo para isso! Que você tenha sempre uma segunda chance de correr, adepto! Vamos lá!

    Passei por ela, a sacola tilintando em minhas costas, deixei Clement para trás. Saindo dos corredores, alcancei o salão principal do observatório. Não era hora para admiração contemplativa, mas eu nunca deixava de me impressionar com aquela visão.

    O Observatório da Pena em Chamas, assim como os outros quatro, era uma torre cilíndrica. As áreas exteriores eram ocupadas por planetários, alojamentos, escritórios, capelas, cozinhas, oficinas, bibliotecas, confessionários, sacristias e todos os outros cômodos que compunham um prédio sagrado. A área interior era oca e ampla, aberta para cima sem divisão de andares, e abrigava os telescópios.

    O piso do salão principal era todo coberto por um mosaico magnífico, representando Thyatis em forma de fênix, cercado de chamas, com uma procissão de esqueletos do lado esquerdo e outra de homens e mulheres vivos do lado direito. Era uma inversão do ciclo natural da vida: Thyatis como Deus da Ressurreição, dando aos mortos uma segunda chance. O mosaico também apresentava o sol, a lua, os Mundos dos Deuses e várias constelações conhecidas, num diagrama astral complexo. O maquinário que controlava os telescópios, milhares de engrenagens, cabos, polias e barras de metal reluzente, ocupava a maior parte do espaço do piso térreo até o quarto e último andar. Os imensos tubos cheios de lentes de diferentes tamanhos se estendiam como colossos em direção à abertura no teto abobadado. Havia várias alavancas e círculos de metal semelhantes a timões que direcionavam cada um dos três telescópios, movendo as engrenagens num padrão complexo. Elevadores mecânicos e escadas em espiral se erguiam no espaço aberto, dando acesso aos postos de observação no último andar. O interior do observatório era uma maravilha da ciência e da fé. Eu sabia que tinha muita sorte de viver ali.

    Mas agora parecia um formigueiro, cheio de clérigos de todos os níveis hierárquicos que mexiam nas engrenagens, subiam e desciam pelas escadas e pelos elevadores, gritavam uns com os outros e davam instruções conflitantes.

    — Corben! — trovejou o Bispo-Vidente Dagobert. — Por acaso morreu e ressuscitou no caminho? Que demora foi essa?

    Dagobert era um homem baixo e magro, mas parecia um gigante. Embora cada observatório fosse regido por um conselho de bispos-videntes iguais entre si, Dagobert era o líder não oficial do Observatório da Pena em Chamas, apenas por sua personalidade dominante.

    — Perdão, Vossa Excelência...

    — Não sabe mais cumprimentar um bispo, não sabe nem mesmo ir até uma maldita oficina de ferreiro e apanhar peças sem se perder! Thyatis errou quando disse que todos merecem uma segunda chance, você é a exceção!

    Confuso, fiz menção de lhe entregar a sacola.

    — E agora ainda quer que um bispo carregue tudo isso escada acima? Não deseja que eu também lhe faça uma massagem, adepto?

    Fiquei de boca aberta, sem saber o que dizer.

    — Venha comigo! — nesse meio tempo, Clement chegou esbaforido. Dagobert se virou para ele. — E você, pare de respirar tão alto!

    Fui atrás do bispo-vidente, carregando a sacola. Todos abriram caminho ante sua passagem. Mas todos, todos estavam muito ocupados. Vi adeptos chegando tão perplexos quanto eu, carregando desde minúsculos parafusos até braseiros cheios de incenso sagrado. Um grupo de adivinhos-mestres entoava uma reza em forma de cântico ao redor de uma lente. Três sacristãos-ourives se penduravam entre as engrenagens para consertar alguma coisa. A Adepta Ysolt, minha grande amiga e uma das pessoas mais inteligentes no observatório, conjurava um pequeno milagre de vidência para tentar enxergar dentro de um dos telescópios. Dagobert não quis tomar um elevador, preferiu uma escada. Subiu dois degraus de cada vez, sem perder o fôlego. As escadas eram apertadas demais para que duas pessoas as ocupassem ao mesmo tempo, então um adepto que descia preferiu pular e se agarrar ao corrimão do lado de fora a barrar o caminho do bispo em fúria.

    Enfim chegamos a um posto de observação no topo.

    — Abram o domo! — berrou Dagobert. — Não consigo enxergar nada!

    Alguns adeptos giraram alavancas e o domo se abriu, deixando entrar luz do sol. Os três telescópios reluziram. Subimos numa pequena plataforma, um pouco acima do último andar, onde podíamos observar o céu através de visores no sumo-telescópio. Dali eu também conseguia ver Sternachten inteira.

    As outras quatro colinas se erguiam, limpas, com seus observatórios, em meio ao emaranhado de ruelas e casinhas. A Colina Central, lugar do Observatório da Visão do Fogo, o primeiro da cidade, parecia governar tudo como uma rainha. O observatório central era o menor dos cinco, construído com técnicas e ambições de setenta anos atrás, mas tinha uma majestade que impunha respeito. A árida Colina Leste abrigava o Observatório da Ave Profeta, lar de clérigos que trabalhavam sem descanso, concentrando-se em previsões para fazendeiros da região e pequenos comerciantes da própria cidade. Eu os respeitava. Tinha pena do Observatório da Flecha de Fogo, o mais recente, construído na Colina Sul por clérigos dos outros observatórios que haviam se julgado capazes de decifrar a maior das profecias e descobrir o que iria derrotar Thwor Ironfist. Nenhuma profecia nunca havia saído daquele observatório, que contava com poucos clérigos e ainda menos acólitos. Por fim, o Observatório da Segunda Flama era o mais alto, rico e bem decorado de todos. Do alto da Colina Norte, parecia zombar de nós, com suas alas doadas por nobres e histórico de profecias para regentes.

    — Isso é ruim, isso é muito ruim — disse o Bispo-Vidente Dagobert, quase para si mesmo. Ele estava com a cara enfiada nos mecanismos do sumo-telescópio. Olhou por um instante pelo visor, balançou a cabeça, então voltou a examinar o maquinário.

    — O que houve, Reverendíssimo?

    Ele se virou para mim e sua expressão não era intensa ou furiosa. Só derrotada.

    — As lentes estão desalinhadas — falou. — Alguém retirou uma peça, ou talvez algumas peças, de algum lugar no sumo-telescópio. Ainda não sabemos o que está errado.

    Os telescópios recebiam manutenção obsessiva. Os sacristãos-ourives fabricavam cada peça delicada à mão — apenas as mais comuns e grosseiras, como as que eu carregava, eram feitas por ferreiros. Cada clérigo registrava com cuidado qualquer uso que fazia dos telescópios. E mesmo um bispo-vidente podia ser repreendido por um mero acólito se fosse visto relaxando nesse dever. Qualquer conserto ou troca de peça era supervisionado por uma junta e anotado em manuais sagrados. A operação dos telescópios era um dever santo, uma liturgia tão séria quanto um funeral ou um batismo.

    Se havia algo errado, só podia significar que alguém de fora estivera ali e estragara o telescópio deliberadamente.

    Lorde Niebling estava prestes a chegar e corríamos para consertar uma sabotagem. Iríamos decepcionar nosso patrono, mostrar que o observatório não sabia lidar com sua dádiva científica. Isso era um golpe duro para a Colina Oeste, algo que só podia vir de nossos inimigos.

    Por instinto, segurei meu medalhão e olhei para o Observatório da Segunda Flama, cheio de ódio e indignação.

    Meus problemas eram realmente minúsculos.

    2. Notório saber profético

    Era noite quando Lorde Niebling chegou ao Observatório da Pena em Chamas. Isso era injusto e foi percebido como uma grande desvantagem por mim, pelos outros adeptos, pelos adivinhos-mestres e pelos bispos-videntes. Até mesmo os acólitos sabiam o tamanho daquele azar. Os outros observatórios tinham sido visitados de dia, quando era impossível olhar estrelas. Mas, ao chegar em nossa torre, o gnomo quis usar o sumo-telescópio.

    — Nossos sacristãos-ourives são os mais capacitados de Sternachten! — garantiu o Bispo-Vidente Ancel, esforçando-se para acompanhar as pernas curtas e rápidas de Niebling. — E temos vários acólitos promissores sendo treinados. Tenho certeza de que a próxima geração de clérigos...

    — Mostre-me as engrenagens do mecanismo de controle do telescópio — interrompeu o gnomo.

    Eu ouvia de longe. Estava enfileirado com os outros adeptos na plataforma do topo, fazendo pose ao lado do sumo-telescópio. Os bispos-videntes fingiam se ocupar de alguma coisa e tentavam parecer dignos. Os adivinhos-mestres estavam espalhados pelo observatório, coordenando equipes de acólitos para que tudo estivesse limpo e arrumado se por acaso o Lorde decidisse inspecionar cozinhas ou latrinas, num frenesi de aparências e desespero de última hora. O telescópio não estava consertado, não podia ser usado para realmente observar estrelas. Mas o cobre do maquinário estava muito bem polido, os medalhões estavam brilhando e nenhum de nós vestia mantos amarrotados.

    O Bispo-Vidente Ancel acompanhou Niebling até o meio do maquinário, tagarelando bajulações enquanto o Lorde se enfiava entre o metal e parecia projetar mentalmente alguma inovação ou ajuste. Ancel era o responsável por receber nobres, dignitários e pessoas importantes no observatório. Seu talento para etiqueta e hospitalidade quase ofuscava sua incapacidade de compreender os princípios mais básicos da astrologia científica. Apesar de nunca ter realizado um milagre maior do que acender uma vela num dia sem vento, Ancel subira ao posto de bispo-vidente por sua disposição a lidar com a pompa que podia valer doações e prestígio.

    — Nunca pensaram em substituir esta seção de cabos de cobre por crina de unicórnio tratada magicamente? — perguntou Niebling. — Seria preciso trançar a crina e conseguir um acordo com os unicórnios, mas acho que eles não precisam dos pelos que caem de suas crinas. Também seria preciso calcular o custo de renovar as magias de enrijecimento periodicamente. Mas talvez seja mais barato que treinar ourives para forjar cabos tão resistentes. As crinas trançadas também serão mais flexíveis, terão menos desgaste, o que pode poupar recursos em longo prazo. Além disso, possibilitarão maior amplitude de ângulos para o telescópio. O que acha?

    Ancel gaguejou alguma coisa e disse que, se o Lorde quisesse, os acólitos podiam trazer um cálice de licor anão. O cálice era de cristal de Cosamhir, extremamente refinado.

    — Licor anão sempre cai bem, mas estou pensando que podemos substituir todos estes cabos e estas hastes por crina de unicórnio! O que acha? Conhece algum unicórnio? Lembre-me; eles têm reis e líderes ou podem ser encontrados no estábulo de qualquer fazendeiro empreendedor? Vamos, diga para seu acólito nos acompanhar com o tal cálice, precisamos examinar o maquinário!

    O Bispo-Vidente Ancel não entendia que Niebling não se importava com a pompa. O gnomo subiu alguns degraus de uma escadaria em espiral, então saltou para o meio das engrenagens, pendurou-se num cabo e passou a examinar as hastes, falando em alternativas para a crina de unicórnio — talvez juba de mantícora? O pobre acólito se esticou para entregar o cálice a Niebling. O gnomo bebeu o licor de um gole só e largou o cálice, para que caísse vários andares até o chão, onde o refinado cristal de Cosamhir se espatifou.

    Na verdade, eu também não entendia Lorde Niebling. Estava preocupado com ser passado em revista, como ocorrera na última visita do gnomo, quando eu tinha 10 anos. É estranho pensar nisso agora: éramos estudiosos e devotos, mas passávamos a maior parte do tempo ocupados com trivialidades. Podíamos ver o futuro, mas usávamos isso para competir com outros clérigos. Acho que os mortais têm a capacidade de banalizar qualquer coisa.

    Niebling continuou falando para Ancel sobre as diferentes propriedades dos pelos e cabelos de variados seres mágicos. Era parte de sua pesquisa atual, em paralelo com o cálculo do peso de fantasmas, espectros e assombrações diversas e a possibilidade de ensinar a língua comum a elementais do fogo.

    — É claro que, para essa pesquisa, o primeiro passo é desenvolver armaduras resistentes a fogo! — explicou Niebling, para um bispo-vidente cada vez mais confuso. — Como você cumprimenta um elemental do fogo se não sabe falar sua língua? O jeito mais simples é um aperto de mão, mas nenhum de meus assistentes se voluntariou para fazer o primeiro contato. Jovens sem ousadia, não estão dispostos a um pequeno sacrifício em nome da ciência.

    De repente, Lorde Niebling parou tudo que estava fazendo, ficou calado e olhou para cima, através da floresta de hastes e engrenagens, direto para nós, enfileirados, esperando no andar superior.

    — O que todos aqueles clérigos estão fazendo ali parados? — quis saber o gnomo. — É noite, hora de trabalhar!

    — Bem, estão todos esperando que o senhor os passe em revista, meu lorde — disse Ancel.

    — Ah, sim, a revista. Vocês adoram a tal revista, foi a mesma coisa nos outros observatórios. Vamos lá.

    Meu coração disparou. A meu lado, Clement estava suando frio. Ele era pouco mais velho que eu. Na última visita de Niebling, fora responsável por anotar o que o Lorde dizia, mas ficara tão nervoso que seu suor borrou a tinta, deixando tudo ilegível. Meu amigo lembrava disso naquele momento, o que só o fazia suar de novo.

    — Respire, Clement — sussurrei. — Ele não vai prestar atenção em nós. Só pensa na pesquisa.

    — Por que você está quase quebrando os próprios dedos então? — Clement devolveu.

    Notei que fechava os punhos com tanta força que ameaçava mesmo quebrar os ossos da mão. Forcei-me a relaxar e vi que minhas unhas tinham deixado marcas fundas nas palmas. Eu estava meio tonto. Não importava o que eu mesmo tivesse dito, o que soubesse racionalmente. Ali estava o fundador de Sternachten, o pioneiro da ciência sagrada da astrologia. Além disso, independentemente do que se passava na cabeça do gnomo, se nossos superiores achassem que fizemos o observatório passar vergonha, seríamos punidos.

    — Corben — sussurrou a Adepta Ysolt, que estava a minha esquerda. — Rápido, qual é o tratamento para um lorde? Como falo com ele?

    Minha mente ficou vazia.

    — Por quê? — perguntei.

    — Acho... — ela hesitou um pouco, depois continuou: — Acho que vou falar a ele sobre minha pesquisa. Sobre o trabalho que quero desenvolver com a Flecha de Fogo.

    Além de minha melhor amiga, Ysolt era uma adepta realmente especial no Observatório da Pena em Chamas. Não apenas tinha mente afiada a ponto de eu mal conseguir acompanhar seu raciocínio, era ambiciosa e organizada enquanto eu era indolente. Ysolt era risonha e desastrada, às vezes um pouco inadequada, mas sempre divertida. Sua inteligência quase parecia fora de lugar no meio daquela personalidade. Estava claro para todos que a conheciam que ela alcançaria altos postos no clero de Thyatis. O mínimo que aconteceria com Ysolt seria chegar a bispa-vidente. Uma posição de conselheira na corte imperial ou mesmo ascensão a sumo-sacerdotisa não seriam sonhos impossíveis.

    Ela era uma mera iniciante com exatamente minha idade, mas já tinha uma teoria sobre como descobrir a Flecha de Fogo. Eu era o único a quem ela tinha confidenciado a ideia, pois não se achava pronta para divulgar seus planos a mais ninguém. Nem mesmo Clement sabia. Mas agora estava pensando em usar a visita de Lorde Niebling para contar tudo ao fundador da cidade, aos bispos-videntes, a todos os colegas. Era uma decisão ousada. Mas, vinda de Ysolt, eu tinha certeza de que daria certo.

    — Como me dirijo a um lorde? — ela repetiu, tirando-me do devaneio.

    — Não sei — gaguejei. — Como pude esquecer? Alteza?

    — Isso é para duques.

    Majestade?

    — Isso é para reis, seu idiota!

    — Você também não sabe!

    Fomos silenciados por um olhar fulminante do Bispo-Vidente Dagobert. O homem pequeno e magro estava todo vermelho, as veias em sua testa pulsando. Ele parecia prestes a falar algo, mas então Niebling surgiu no mezanino do último andar, após escalar todo o maquinário. O Bispo-Vidente Ancel surgiu logo depois, esbaforido, tendo subido as escadas na tentativa de acompanhar a velocidade do Lorde. O infeliz acólito vinha logo atrás.

    — Meu lorde — Dagobert fez uma mesura.

    Eu e Ysolt trocamos um olhar, lembrando do tratamento, surpresos com nossa própria estupidez.

    — Boa noite, Dagobert, como vai? — disse Niebling, agarrando a mão do bispo e chacoalhando-a com força amigável. — Estes são os adeptos, não? Muito bem, muito bem, vamos fazer logo a revista. Todos parecem muito inteligentes e devotos, que ótimo, todos excelentes. Agora sobre o sumo-telescópio...

    Observei aquele homenzinho zunir de um lado para o outro sobre suas pernas curtas que nunca paravam de se mexer, como uma espécie de abelha matraqueante. Niebling tinha cabelos grisalhos penteados de forma excêntrica — impossível saber se era um estilo de sua raça, mantido daquela forma com cera, ou apenas a aparência de alguém que dormia sobre máquinas, tubos de ensaio e livros e nunca tinha tempo para olhar em um espelho. Suas roupas provocavam a mesma pergunta. Uma casaca verde ao avesso cobria uma túnica laranja e uma camisa azul. Era impossível determinar como as duas peças estavam abotoadas, tamanho era o desencontro. Suas calças listradas terminavam num par desigual de botas de trabalho resistentes e remendadas. Ele usava alguns adornos: anéis, colares, penduricalhos. Mas pareciam coisas que haviam ficado presas em seu corpo ao longo dos anos e que ele nunca notara. Também carregava alguns relógios, partes mecânicas que se mexiam o tempo todo sem função aparente, rolos de pergaminhos amarrados pela roupa. Deixava um rastro de pequenas engrenagens por onde passava.

    Dagobert e Ancel trocaram um olhar apavorado quando o Lorde falou sobre o telescópio.

    — Antes disso! — o Bispo-Vidente Ancel quase gritou. Então pigarreou e prosseguiu, mais contido: — Antes disso, gostaríamos que conhecesse a pesquisa de nossos adeptos.

    Não faço ideia do plano dos bispos naquele momento. De que adiantaria apenas postergar a vistoria do telescópio? Será que eles imaginavam que o objeto seria consertado por algum milagre de Thyatis? Ou que o gnomo iria se distrair e esquecer do gigantesco tubo metálico bem a sua frente? De qualquer forma, não importava, pois Ancel me puxou pelo manto e me apresentou a Lorde Niebling.

    — Este é o Adepto Corben, meu lorde — disse o bispo. — Chegou a nossa cidade há cerca de dez anos, depois de ter se perdido na floresta. Realmente um garoto que foi guiado por Thyatis. Vamos, Corben, conte a Lorde Niebling sobre sua pesquisa.

    Senti uma onda gelada tomar meu corpo. Subitamente, o observatório inteiro estava em silêncio, olhando para mim. Ancel não conhecia minha pesquisa, não conhecia nada que não fossem notícias da moda e da etiqueta que vinham da capital.

    Além disso, eu não tinha pesquisa.

    Era fácil só acompanhar pequenos projetos e cumprir ordens, deixando o trabalho verdadeiro para um futuro cada vez mais nebuloso. Eu era um clérigo devotado, embora um pouco dado à preguiça e excessivamente preocupado com a rivalidade entre os observatórios. Mas não era excepcional de nenhuma forma, não tinha ideias inovadoras. Não tinha nada a oferecer.

    Niebling fixou os olhinhos curiosos em mim, apontando seu imenso nariz como uma arma.

    — Vossa Santidade — cumprimentei-o. Ouvi Ysolt controlar um riso em algum lugar a mil quilômetros de distância. Achei que Ancel fosse desmaiar nos braços do pobre acólito.

    — Adepto Corben, não é? — disse o Lorde. — Então, rapaz, o que está pesquisando?

    Sem nada para dizer, falei a primeira coisa que me veio à mente:

    — A Flecha de Fogo.

    Niebling ergueu as sobrancelhas, intrigado. Ouvi a voz do Bispo-Vidente Dagobert falar O quê?, mas mal lembrava que ele existia.

    Não era surpreendente que se pesquisasse a Flecha de Fogo em Sternachten. O surpreendente era que um adepto, um mero iniciante, tivesse uma pesquisa independente sobre a maior das profecias. Era como um soldado recém-treinado tentar enfrentar um dragão. Era algo que só uma pessoa naquele observatório faria, e não era eu.

    — E quais avanços já fez na pesquisa, adepto?

    — Eu... — quando comecei a falar, não sabia o que sairia de minha boca. Acho que pessoas possuídas por demônios devem se sentir assim.

    E talvez, se estivesse possuído por um demônio, eu tivesse alguma desculpa para o que falei em seguida. Mas não tinha. Foi minha escolha roubar a ideia de

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