Inteligência artificial & redes sociais
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Sobre este e-book
De fato, os recursos próprios da IA espraiam-se hoje por uma diversidade de atividades humanas. Os assistentes pessoais inteligentes organizam rotinas, os "automatizadores" de documentos auxiliam em uma variedade de tarefas, softwares analisam comportamentos online, algoritmos são capazes de prever o sucesso de narrativas audiovisuais, softwares avançados voltam-se para o reconhecimento perceptivo, a aprendizagem profunda (deep learning) é capaz de realizar diagnóstico médico e a aprendizagem de máquina (machine learning) pode auxiliar nos tratamentos de saúde; há ainda software para sistemas aéreos autônomos, robôs com cara de gente, que conversam com simpatia. E os avanços não param aí.
Nesse contexto, este livro está dedicado ao exame do papel que a IA vem desempenhando, de modo invisível, mas incisivo, nas redes sociais. Os capítulos procuram estudar o tema sob uma diversidade de facetas, todas elas de grande relevância, pois compreender os efeitos que a IA está produzindo na sociedade está se tornando preocupação crucial para todos que se interessam pelos destinos da vida humana daqui para o futuro.
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Inteligência artificial & redes sociais - EDUC – Editora da PUC-SP
capítulo 1
A onipresença invisível da inteligência artificial
Lucia Santaella
Não pode e não deve haver mais dúvida acerca do fato de que entramos em uma nova era: a era da inteligência artificial (IA) e das tecnologias simbióticas. A definição mais geral de simbiótica
é vida comum, seres distintos que se misturam e se complementam. É o que está acontecendo com as tecnologias, mormente porque são tecnologias da inteligência: computadores de todos os tamanhos e tipos, uma profusão de aplicativos, conectividade planetária e até mesmo cósmica, sensores, internet das coisas, nuvens e oceanos de dados, geolocalização e sorrateiramente invisível, a IA que vem se desenvolvendo exponencialmente e assim deverá continuar. De fato, estamos mergulhados nela não apenas em cada simples toque nas interfaces sempre à mão, quanto também na saturação de informações, artigos, livros, séries de TV, notícias e opiniões sobre IA que nos chegam mesmo quando não as procuramos.
Infelizmente, esse constante fluxo de informações e o desserviço que os filmes – fantasiosamente distópicos sobre o futuro das tecnologias – têm nos prestado sobre o tema, definir com precisão o que é IA vem se tornando cada vez mais difícil. Para alguns, ela não passaria de um sinônimo para robótica que traz consigo a visão terrificante de um mundo dominado e manipulado por robôs de que o humano seria escravo, ou ainda, algo pior: com eles, viria a derrocada final da nossa espécie.
Não se pode negar que o mundo está se transformando em ritmo alarmante de modo que pensar criticamente sobre as mudanças se tornou crucial se não quisermos nos perder nas brumas da desinformação. Diante disso, embora com a modéstia que me cabe, o objetivo deste capítulo, que abre este volume sobre o papel que a IA vem desempenhando nas redes sociais, é buscar compreender o estágio atual da IA com alguns insights sobre suas perspectivas daqui para o futuro. Por isso mesmo, o capítulo tem deliberadamente um caráter didático, pois a intenção é apresentar o tema ao leitor. O que se esconde por trás dessa expressão, IA, que vem produzindo tanto burburinho? Tirar o véu que recobre equivocadamente o conceito, neste caso, é, no mínimo, uma maneira de evitar temores infundados.
A onipresença da IA à semelhança da eletricidade
Dizem que a IA é tão onipresente quanto a eletricidade. Por quê? Para responder, retorno a McLuhan, profeta da comunicação, que lançou um pensamento notavelmente original sobre a eletricidade e a luz elétrica que dá muita munição para pensarmos sobre a IA. Os comentários mclunianos sobre a luz aparecem no seu livro Os meios de comunicação como extensões do homem ([1964] 1969), especificamente na discussão sobre seu axioma o meio é a mensagem
que despertou muita polêmica, há algumas décadas. Essa afirmação de McLuhan não é tão simples como pode parecer. Poucos perceberam isso tão bem e tão imediatamente quanto Maurício Tragtenberg (1969, p. 130).
Chegamos ao paradoxo mais interessante da obra: o veículo é a mensagem. Fórmulas como esta possuem uma virtude reducionista não negligenciável. Através de sua tese sobre a fase literária, McLuhan entende que o veículo livro, e também os atuais meios de comunicação de massa, transformaram nossa civilização, não pelo conteúdo, mas pela coerção fundamental da sistematização exercida pela sua essência técnica. O livro, é, antes de mais nada, um objeto técnico mais persuasivo do que qualquer símbolo ou informação que veicule. (...) trata-se de mudança estrutural de escalas, modelos e hábitos, operada em profundidade nas relações humanas pelo próprio veículo. Podemos dizer simplesmente que a mensagem da estrada de ferro não é o carvão nem os viajantes que ela transporta; é, sim, uma visão de mundo, um novo status das concentrações demográficas. A mensagem da TV não são as imagens que transmite; são os modos novos de relação e de percepção que a TV impõe.
Portanto, em sua conotação mais radical, o meio é a mensagem
significa a mudança de escala, cadência ou padrão que [um] meio ou tecnologia introduz nas coisas humanas
(MCLUHAN, 1969, p. 22). Aqui se localiza o primeiro nível de relevância da comparação entre a eletricidade e as tecnologias de IA. Da mesma maneira que a eletricidade metamorfoseou a mecanização, a especialização, a causalidade linear, a racionalização da era que a precedeu, hoje, a IA está mudando os quadros de referência de todas as atividades humanas e a própria noção de humano. Tanto quanto a eletricidade, a IA está se espraiando por todas as atividades da vida humana, da indústria e os negócios até a criação artística. Ela vai tomando conta de tudo até se tornar imperceptível. Onipresente e invisível.
Há, além disso, um outro sentido para a expressão o meio é a mensagem
. Esse sentido está contido no título do livro mcluniano, na tradução que recebeu no Brasil: os meios como extensão do homem
. Enquanto os meios próprios da cultura da era de Gutenberg funcionavam como extensão mecânica da visualidade e do corpo humano, a eletricidade e os meios eletrônicos passaram a funcionar como extensões do nosso sistema nervoso central. De fato, as tecnologias eletrônicas, em especial a televisão, introduziram um universo de configuração instantânea e háptica. Do mesmo modo, a era do computador, hoje intensificada com a IA, está progressivamente passando a funcionar como extensão de operações mentais humanas, aumentando e acelerando nossas capacidades cognitivas.
Pode-se encontrar ainda um sentido sobressalente em que a comparação da eletricidade com a IA revela-se pertinente. Qual é a mensagem da eletricidade? Na indústria, essa mensagem é radical, descentralizada e onipresente. Assim também, a luz elétrica, no mundo cotidiano, ao romper a sequência da noite e do dia, introduziu um universo polissensorial ininterrupto. Mais que isso: a luz é um meio sem mensagem, ou seja, funciona como um meio que, diferente de outros, não contém uma mensagem dentro dele. Assim, o conteúdo da luz é tudo aquilo que ela ilumina. Sua mensagem encontra-se nas coisas por ela iluminadas. Disso McLuhan concluiu que o conteúdo de um meio é o meio precedente. O conteúdo da escrita é a fala, o conteúdo da imprensa é a escrita, o conteúdo da internet são as mídias massiva, e assim por diante. O lance conotativo que se pode intuir a partir de tal jogo é que o conteúdo da IA é a inteligência humana, uma forma de inteligência precedente que a IA está provavelmente expandindo. Neste ponto, encontramos o segundo tópico: a diferença entre inteligência humana e artificial. Aqui a questão se torna bem mais complexa, especialmente porque as definições de inteligência são muitas e nem sempre concordantes.
O que é inteligência
No seu livro sobre Life 3.0, Tegmark (2017) apresenta um longo capítulo bastante elucidativo, dedicado especificamente ao tema da inteligência. As palavras-chave que costumam estar associadas à inteligência são: capacidade para a lógica, compreensão, planejamento, conhecimento emocional, consciência, autoconsciência, criatividade, resolução de problemas, aprendizagem, previsibilidade, capacidade de decisão etc.
Os especialistas em IA têm buscado definições amplas e inclusivas, alguns deles reivindicando que a emergência da IA está trazendo consigo a necessidade de se repensar os conceitos tradicionais de inteligência, fortemente exclusivos da inteligência humana. Essa reivindicação vem recebendo coadjuvantes nos especialistas em animal studies
e nos filósofos voltados para o nonhuman turn
. Este engloba estudos interdisciplinares das mais diversas ordens, todos eles endereçados para o descentramento do humano no seio da biosfera. Entendendo o não-humano em termos do mundo animal, da afetividade, dos corpos, dos sistemas orgânicos e geofísicos, das materialidades e das tecnologias, esses estudos buscam caminhos de enfrentamento, nas artes, nas humanidades e nas ciências sociais, aos desafios que o século 21 está apresentado. Ou seja, enfrentar os modos como este século implica, mais do que isso, exige o nosso engajamento com o que não é humano, tais como mudanças climáticas, secas, fome, biotecnologia, genocídio, terrorismo, guerra e até mesmo o Antropoceno, o novo período geológico do planeta, fruto do peso e feridas que as ações humanas, muitas vezes insanas, imprimiram sobre a biosfera (GRUSIN, 2015, p. vii, ver também SANTAELLA, 2017).
Entre os desafios, defrontamo-nos também com os avanços da IA cuja compreensão implica esclarecer o que, nesse contexto, tem se entendido por inteligência em geral. Nilsson (2010), autor de uma espécie de Bíblia sobre o desenvolvimento da IA década a década, de meados do século 20 até a data da publicação da obra, apresenta uma noção bem ampla da mente e da inteligência. Para ele, a inteligência é uma qualidade ou atributo que habilita uma entidade a funcionar apropriadamente e com alguma previsão no seu ambiente. A partir disso, são muitas as entidades que podem possuir a qualidade da inteligência: humanos, animais e algumas máquinas. Não é por acaso, portanto, que nossos celulares são chamados de telefones inteligentes, o que, de fato, são. Difícil negar.
Outra ideia bastante interessante do autor é que a inteligência se atualiza nessas variadas entidades em um continuum de gradações que vão das mais rudimentares às mais complexas. No extremo da complexidade, por enquanto, encontra-se o ser humano capaz de raciocinar, atingir seus objetivos, compreender e gerar linguagens, processar interpretativamente a chuva ininterrupta de perceptos que recebe, provar teoremas matemáticos, jogar games desafiantes, decodificar e sintetizar informações, criar arte e música e inventar histórias geradas na imaginação, tudo isso adaptado ao contexto ou ambiente em que age, inclusive capaz de prever dedutivamente algumas das consequências de suas ações, sem deixar de saber contornar a situação quando, por um motivo ou outro, a dedução falha. Diante dessa diversidade, não é difícil perceber que, caso a meta da IA fosse a de alcançar ou ultrapassar as múltiplas facetas da inteligência humana, sua agenda estaria muitíssimo recheada de desafios.
Válida para qualquer tipo de inteligência, humana ou maquínica, é a observação de Hoel (2019), quando explicita que, assim como a evolução, nenhuma inteligência poderia ser boa para resolver todos os tipos de problemas. A adaptação e a especialização são necessárias
e é esse fato que garante que a evolução seja um jogo sem fim, tornando-a, fundamentalmente
, não confundível com progresso. Os organismos se adaptam ao ambiente, mas o ambiente muda, talvez devido à própria adaptação do organismo, e assim por diante, enquanto houver vida
. De um ponto de vista que não se confunde com progresso, a inteligência, de uma perspectiva global, é muito semelhante à habilidade
. Tornar-se mais inteligente em alguma habilidade torna alguém menos inteligente em outro tipo de habilidade. Isso garante que a inteligência, como a vida, não tenha um ponto final. As mentes humanas se debatem com essa ideia porque, sem um ponto final, parece não haver ponto algum
.
Para abrigar a IA como uma forma de inteligência presente e futura, a definição a que Tegmark (ibid., p. 50) chegou é tão ampla quanto a de Nilsson (ibid.), a saber: a inteligência é a habilidade de realizar metas complexas
. Dada a existência de muitas metas possíveis e distintas, o autor, conclui que devem existir muitos tipos de inteligência, o que não implica quantificar as diferenças entre inteligência animal, humana ou de máquinas, pois o que importa é ser uma inteligência boa para a finalidade a que se presta. Na mesma medida em que há finalidades incomparáveis, também há tipos de inteligência incomparáveis. A escolha do adjetivo complexas
, na definição, foi uma estratégia do autor para evitar uma linha fixa de divisão entre inteligência e não-inteligência, pois o que vale é o grau de habilidade para realizar metas.
Falar em meta não significa que esta não possa ser subdividida em uma série de submetas. Outra questão importante é que existe uma tendência para se conotar positivamente a palavra inteligência
. Para evitar esse viés, Tegmark utiliza o termo de modo valorativamente neutro. Habilidade para atingir metas não implica que as metas sejam necessariamente boas. Isso abre caminho para se pensar efeitos e consequências da inteligência, que podem ser inclusive nefastas. No que diz respeito ao humano, não prosseguirei nessas ponderações, pois caminhos de resposta para elas estariam muito mais na psicanálise, o que nos levaria para outras questões que fugiriam, aliás, à meta estipulada para este capítulo que, neste momento exige que possamos, de forma resumida, dar conta do estado da arte da IA, um passo importante para se evitar suposições mal informadas e equívocas sobre a questão.
O estado da arte da IA
A inteligência artificial começou a ocupar as preocupações dos pesquisadores desde meados do século passado, quando se deu a emergência dos estudos sob o nome de ciência cognitiva, um pool de ciências que tomaram as habilidades cognitivas humanas sob seu escrutínio. Isso também coincidiu com o início da escalada progressiva do uso dos computadores nas pesquisas.
Em um primeiro momento, a ciência cognitiva ficou sob o domínio de uma visão funcionalista e representacionalista da mente humana, cujo funcionamento foi tomado à imagem e semelhança dos processamentos computacionais. Portanto, o computador era considerado como modelo do funcionamento da mente. Esse modelo entrou em descrédito com o surgimento das redes neurais que inverteram a concepção anterior, quer dizer, o processamento computacional passou a querer imitar as redes neuronais do cérebro humano. Apesar de cientificamente ousadas, as pesquisas não tiveram o impulso pretendido devido ao poder computacional, na época, ser ainda limitado e o volume de dados ser irrisório se comparado aos milhares de sinapses do cérebro humano (SANTAELLA, 2004).
De qualquer maneira, é bom lembrar que, quando se fala em redes neurais, elas não se apresentam de modo similar ao funcionamento cerebral. Segundo Tegmark (ibid., p. 72), nosso cérebro contém tantos neurônios quanto há estrelas na galáxia, provavelmente uma centena de bilhões. Na média, cada neurônio está conectado e influencia milhares de outros, via junções que são chamadas de sinapses. São elas que codificam as informações em nosso cérebro. As redes neurais, por seu lado, são uma coleção de pontos que representam neurônios conectados por linhas representando sinapses. No cérebro humano, os neurônios são dispositivos eletroquímicos. Eles envolvem partes distintas chamados de axônios e dendritos. Há diferentes tipos de neurônios que operam em uma grande variedade de maneiras que são objeto de pesquisa das neurociências. Isso não significa que o desempenho das redes neurais artificiais deixe de surpreender os especialistas em computação pelas tarefas inteligentes que conseguem realizar.
Isso começou a se dar de poucos anos para cá, devido também ao big data, o aumento gigantesco da velocidade, volume e variedade de dados amealhados nas redes que, aliado ao incremento funcional das redes neurais conduziu à explosão da IA, a qual, se continuarmos levando McLuhan em conta, está transmutando e deverá continuar transmutando, cada vez mais, essa explosão em implosão das prévias configurações produtivas e cognitivas humanas.
Para começarmos a palmilhar o campo da IA, especialmente no ponto em que hoje se encontra, o primeiro passo consiste em encontrar uma definição