Um guia seguro para a vida bem-sucedida: Exemplaridade e arte retórica no pensamento histórico moderno
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Um guia seguro para a vida bem-sucedida - Marcos Antônio Lopes
UM GUIA SEGURO PARA A VIDA BEM-SUCEDIDA
FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
Presidente do Conselho Curador
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Diretor-Presidente
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Superintendente Administrativo e Financeiro
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Conselho Editorial Acadêmico
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Pedro Angelo Pagni
Renata Junqueira de Souza
Sandra Aparecida Ferreira
Valéria dos Santos Guimarães
Editores-Adjuntos
Anderson Nobara
Leandro Rodrigues
MARCOS ANTÔNIO LOPES
UM GUIA SEGURO PARA A VIDA BEM-SUCEDIDA
EXEMPLARIDADE E ARTE RETÓRICA NO PENSAMENTO HISTÓRICO MODERNO
FEU-Digital© 2021 Editora UNESP
Direito de publicação reservados à:
Fundação Editora da Unesp (FEU)
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISBD
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410
Índice para catálogo sistemático:
1. História 900
2. História 94
Editora Afiliada:
2LogosAgradecimentos
Entre a concepção, a composição e a efetiva entrega aos leitores, faltou pouco para que este livro completasse uma década de atividades. Das primeiras notas tomadas em fins de 2011 aos últimos alinhavos feitos já ao término de 2019, as recomposições do texto foram a perder de vista, mesmo quando o autor tenha considerado (por algumas vezes!) que o seu cerco já estava feito
. Ocorre, porém, que o inesgotável volume de registros sobre a temática dominante impôs a incorporação de referências encontradas apenas mais para o final da trilha, títulos que acentuaram carências muito salientes no texto, motivando preenchimentos, nivelamentos e escovações. A técnica de pentear parágrafos foi utilizada à saciedade, sempre com o propósito de se corrigir estrabismos recorrentes, esforço que minimizou as análises enviesadas e os juízos deformantes na narrativa. A referida técnica requer paciência bíblica e tempo elástico para produzir efeito saudável em textos longos e com tantas referências.
Sou grato à Editora da Unesp, pela compreensão em conceder-me licença para aperfeiçoar o livro, mesmo já à beira do processo inicial de edição. Fica, portanto, em registro, que o compromisso de ambos foi o de realizar esforços que melhor compensem ao público. Ao longo dos últimos anos esta pesquisa contou com o apoio do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), na forma de bolsa de produtividade em pesquisa. O referido apoio foi retirado em março de 2019 seguindo os protocolos regulares da agência de fomento. Fica, pois, meu reconhecimento ao citado órgão, pelo auxílio prestado à realização deste e de outros títulos em mais de uma década de parceria. Na Universidade Estadual de Londrina (UEL) encontrei as melhores condições de trabalho para a realização deste livro. Se não fiz mais e melhor, foi por limitações próprias.
Meu agradecimento especial a Renato Moscateli e a Luiza Maria Lentz Baldo, leitores pacientes e aplicados, pelo auxílio precioso na forma de crítica aguda e sem rodeios. Algumas hipóteses de trabalho aqui desenvolvidas foram testadas nos últimos anos com meus alunos do curso de História da UEL, na disciplina Ciência Política e História. A todos eles sou grato pelo interesse e pela participação demonstrados nas discussões desenvolvidas em classe sobre temas como retórica e moralidades presentes nas narrativas dos clássicos.
Sumário
Prefácio – O oráculo, o farol e a bússola, Estevão de Rezende Martins
Conceito da obra
PARTE I
O MAGISTÉRIO MORAL DA HISTÓRIA
1. Conselheira prática da existência
Bússola de moralidades
Tradições cristalizadas, inovações bloqueadas
2. Escola de experiências
Presença dos antigos
Impregnações ciceronianas
3. Doutrina dos homens ilustres
Peças de reposição do tempo
Modeladores da história
4. A gestão da glória
Admissão na memória
Outro conceito de heroísmo
5. Crise e ruína de uma tradição
PARTE II
QUANDO A HISTÓRIA ERA ESTILO E ELOQUÊNCIA
6. Expansões humanistas, retrações absolutistas
Avanços eruditos
Bloqueios seiscentistas
7. Discurso ornamental em prosa
Pintar com palavras
História e retórica
8. O jardim da eloquência
Pedra de amolar
Túnica de púrpura
9. A ideia da simpatia respeitosa
Emergência do senso histórico
Nova natureza do tempo
10. Tradição clássica e cultura moderna
Adendo – As lições de um demonólogo
Modernidade e arcaísmo
Racionalismo e misticismo
Autores e obras
PREFÁCIO
O oráculo, o farol e a bússola
ESTEVÃO DE REZENDE MARTINS
UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA
Historiadores de todas as épocas parecem convencidos de ser pitonisa, referência e orientação. Com efeito, enunciar a vida e os feitos dos homens, descobrir-lhes ou atribuir-lhes sentido, de modo mais ou menos críptico, ao sabor das interpretações possíveis, prováveis ou seguras; pôr-se como roca firme, sobre a qual se planta o farol cujo perfil se vê de longe e ao longe, e cuja luz vence as trevas; definir o sentido e o mérito do bem pensar e do bem fazer: três papeis desempenhados na commedia dell’arte ou da commedia della vita pela História desde há séculos. Talvez seja mais pertinente dizer: pelos historiadores – autodenominados ou assim definidos por outros. A História, de que é musa Clio, não é uma velha senhora
, à maneira de Friedrich Dürrenmatt, matrona que arbitra o certo no mundo errático do interesse venal. Seus praticantes, contudo, entendem-se revestidos de missão transcendental, de intérpretes finais, fontes do esclarecimento, fornecedores de rumos, sancionadores da virtude e fustigadores do vício. Em todos os formatos historiográficos, há fios condutores que marcam a identidade do mosaico – descritivo, analítico, memorial – montado na narrativa histórica. A historiografia ecoa tradições, estipula paradigmas, exalta exemplos, critica legados e crenças – e sempre o faz no momento e no movimento de seu tempo. No mister de dizer o certo e aconselhar o devido, historiadores dividem ou disputam o protagonismo, no proscênio do sentido antropológico, com filósofos e com cientistas sociais de todos os horizontes. A trama dos fios do ser e do fazer humanos põe a cada um, historiador ou não, um desafio: o de ser por si e o de agir por si. As tramas de cada tempo, herdadas e repensadas, reformam-se a cada época, em que indivíduos se apropriam da memória de ontem para poder ser e fazer no presente, com o olhar voltado para o amanhã. Algo entre o suplício de Tântalo (a cada época impõe-se recomeçar) e o bordado de Penélope (fazer, desfazer e refazer é próprio a toda pessoa). A diversidade dos feitos humanos constitui a miríade de componentes do mosaico da história narrada. A possibilidade de rearranjar esses componentes, a cada era, faz pensar em um caleidoscópio: os elementos seriam sempre os mesmos, seu arranjo poderia variar infinitamente.
Marcos Antonio Lopes oferece ao leitor um desafiador arranjo de multicoloridos componentes da história clássica e moderna, em que reconhece com clareza e pertinência o quanto somos todos tributários do que fazem ou fizeram outros historiadores, em um contínuo de referências encadeadas de uns aos outros. A erudição como fundamento e a retórica como estratégia são armas poderosas no bico da pena dos pensadores, ao manusear os volteios e as estocadas das interpretações que expõem e defendem os autores. A lucidez com que Lopes remete ao labor historiográfico antológico, em que determinado autor mais parece um compilador do que já disseram outros, permite entrever algo da acribia de Anthony Grafton ao dissecar o abracadabra da historiografia moderna: a nota de rodapé, aval de erudição e pedestal do rigor empírico, e não mero registro de marginália.
Dos clássicos (sobretudo latinos) aos modernos (em especial dos séculos XVII e XVIII) e contemporâneos (com destaque para teóricos literários), Lopes atravessa o tempo sob o ângulo de duas lentes que afirma haver encontrado nos próprios autores tratados: a pretensão de a História ser mesmo a mestra moral da vida e o refúgio da escrita nos floreios do estilo e da arte de convencer ou seduzir.
Em linguagem direta e acurada, com a sóbria elegância que o caracteriza, Lopes apresenta, em duas partes de cinco capítulos, o resultado de seu percurso perscrutador pelos autores que cultivaram alto conceito da História, para ela almejaram grandes desígnios e nela vislumbraram um norte arrebatador. O próprio título do livro exprime com perspicácia o modo de narrar – enunciar mesmo – história(s) na longa tradição escrutinada e arranjada no mosaico do autor: um guia – ou seja, uma bússola; um guia seguro – vale dizer: para além de toda dúvida razoável, metódica ou não, uma âncora ou um farol; para uma vida – o que corresponde ao ser e ao fazer do agente humano; uma vida bem-sucedida – isto é: efetivada de acordo com a moral e os bons costumes, em que o êxito é (ou seria) sinônimo de persecução da felicidade, de plena e absoluta realização do ser humano enquanto tal, à maneira como o entende Bernard Lonergan. É certo que a busca de um porto seguro permeia a turbulenta vida humana, batida pelos ventos das contingências e das adversidades. Lopes lembra como Jacques Amyot viu nos livros de história uma espécie de cartografia de como suplantar as procelas na efetivação do bem viver.
A cientificização da História entre os séculos XIX e XX introduziu nas práticas historiográficas uma considerável dose de prudência metódica, mas não parece haver inibido muito os historiadores, cujos papéis sociais entre sua especialidade e sua condição humana não raro se embaralham. A crítica, como forma de distanciar-se do peso do cotidiano atual para alçar-se à altura da independência intelectual – um desempenho metódico, pois –, angariou à História sua carta-patente científica, mas reforçou em muitos historiadores a antiga pretensão de serem mestres da vida alheia. Todos os autores trabalhados por Lopes em seu livro são prolíficos em prodigar conselhos, proferir orientações, placitar normas. A leitura vale, assim, como uma suma ética dos preceitos históricos que o agente deveria observar para bem viver.
Em 1974, Jürgen Kocka chamava a atenção para a curiosa situação do século XX, subjugado pelo êxito avassalador das ciências naturais e das tecnologias sofisticadas – cenário em que as ciências sociais, a História obviamente incluída, pareciam fadadas a desaparecer, pois aparentemente percebidas como inúteis. Kocka bem como Golo Mann ou Reinhart Koselleck e mais recentemente Jörn Rüsen veem nessa situação um paradoxo interessante e um repto a responder. Pois a História, a historiografia, o historiador continuam a ser uma angra em que o agente racional humano pode deitar âncora ao abrigo das intempéries. Ao menos o agente estaria instrumentado intelectualmente para haver-se com elas. A história da História ganha assim valor e relevo, ao fornecer ao navegante no tempo – ou seja: a cada sujeito agente – mapa e bússola, luz e projeto, consciência da dependência do passado acumulado e independência crítica para agir por si. Há nisso algo de otimismo epistemológico, como lembra Fernando Catroga. Há igualmente a pugnacidade dos combates da História e por ela, como inscreveu Lucien Febvre no território do historiador em 1953, e como ecoou em 2010 Maria Manuela Tavares Ribeiro.
Marcos Antonio Lopes comenta acerca da prática legítima de rapinar livros
como pano de fundo de sua obra. Parece, entretanto, mais adequado falar de uma minuciosa operação de tamisar a areia das ampulhetas históricas para nelas encontrar as preciosidades morais e retóricas que os autores espargiram. Um mérito digno de nota e, sobretudo, um livro a ser lido com o espírito enciclopédico e comparativo que o inspira.
François Hartog enfatiza que houve uma crença na História, grande potência dos Tempos Modernos. Organizadora do mundo, ela lhe atribuiu sentido. Juíza suprema dos comportamentos e dos acontecimentos, ela entusiasmou e horripilou. Nem todo-poderosa nem frágil ou débil, a História tem sim uma palavra a dizer, pois é com ela, por ela e nela que o sentido mesmo de ser dos homens se realiza, apreende e interpreta. O livro de Marcos Antonio Lopes coloca para o leitor o itinerário da navegação histórica na dinâmica dos interesses do tempo presente. Deixemo-nos guiar por esse fio da trama.
Conceito da obra
A este meu tratado, eu pensava juntar alguma outra prosa minha, para que o volume, que tem defeito em sua qualidade, obtivesse alguma consideração por mérito da sua quantidade. Por muitos impedimentos não foi possível, mas espero fazê-lo em pouco tempo [...].
Torquato Accetto, Da dissimulação honesta, 1641
Os especialistas se comprazem em demonstrar que, como historiador, Voltaire permaneceu em certo estágio primitivo, já que nem mesmo o seu moderno repertório filosófico-temático-metodológico de trabalho conseguiu livrá-lo de manusear apenas documentos escritos (Pomeau, 1990, p.21). Para complicar o quadro, ele foi acusado por seu próprio secretário particular de escrever a história universal com meia dúzia de livros, títulos que carregava em seu embornal nas andanças entre França, Alemanha e Suíça. E alguém já havia se encarregado de lembrar, acerca do Ensaio sobre os costumes, que este trabalho panorâmico apresentava ao leitor quase mil anos de história de todos os povos da Terra, dos tempos de Carlos Magno aos dias do próprio autor. Como esse Ensaio sobre a História Geral (que ele compôs para Mme. du Châtelet, em Cirey) não fora escrito sobre fontes, sendo mera compilação de livros, atraíra para si os rigores da crítica de uma posteridade fundada em outros critérios de exigência (Lanson, 1960, p.123). Uma criatura alada e coletora do mel do espírito esse Voltaire historiador, pilhando a seu bel prazer as colmeias de conhecimentos consolidados, pelo simples propósito de levar algo para casa.¹
Ora, já na Antiguidade, Políbio ressaltara que a história escrita a partir de livros era um gênero menor, bastando para produzi-la que o historiador se estabelecesse em uma cidade na qual existissem boas bibliotecas. Na confortável segurança de um gabinete, apenas se reescreveriam narrativas anteriormente compostas por outros, razão pela qual Políbio preferia a história fundada na experiência a quente dos acontecimentos militares, jactando ser esta arriscada reportagem ao vivo o enredo original que tencionava servir a seus leitores (Políbio, 1986, p.417). De índole bem diversa foi o historiador das ideias Diógenes Laércio (2010), em seu desordenado tricô da antiga sabedoria filosófica. Seu tratado se estende de Tales a Epicuro, enfileirando entre ambos um exército considerável de grandes e pequenos heróis filosóficos. Pelo mal acabado compêndio de história da filosofia, o autor do século III d.C. há muito recebe os louvores dos serviços prestados por seus numerosos fragmentos de textos e retalhos de ideias desviados das confabulações desagregadoras do tempo. O nada criativo autor das Vidas dos grandes pensadores livrara o mundo da ignorância, o que, ao menos nesse caso isolado, reserva uma faceta inesperadamente virtuosa acerca do valor relativo de textos desprovidos do gênio original pretendido por Políbio e por tantos outros críticos também intensamente originais, de ontem e de hoje.
O fenômeno da escassez de originalidade nas artes históricas e em outros gêneros literários seria acentuado por Michel de Montaigne, nos inícios dos Tempos Modernos, ao reclamar que os autores de livros de sua época eram meros intérpretes de interpretações, pois escreviam mais livros sobre livros do que acerca dos temas de eleição. Havia um excesso de comentários e citações de obras, e ele sabia que tomava parte nisso reconhecendo sua terra pobre demais para produzir as ricas flores
com que a adornara. Ora, o livro que escrevera fora tecido longa e premeditadamente como um conjunto muito para lá de desconexo, uma guirlanda esgarçada feita dos ramos e das flores que ia arrancando a esmo, a partir de suas deambulações intermináveis pelos jardins da cultura clássica. O fato é que sua obra multitemática fora planejada
para não ter fim. Após vinte anos de composição dedicados a emendas e a incorporações de trechos inéditos, seu livro não havia chegado ao término, e nem chegaria em vida do autor. Enquanto houvesse tinta e papel neste mundo, declarou, ele iria sempre adiante. Apenas suas complicações urinárias aplicaram-lhe um freio na escrita, porque tomara por roteiro justamente uma deliberada ausência de direção. Mas nem com sua morte o livro deixou de conhecer uma exuberante continuidade. Os editores pósteros deitaram e rolaram em cima de seu texto, a começar por Marie de Gournay e, na sequência, os admiradores ingleses dos Ensaios dos séculos XVII e XVIII, além dos eruditos mais atuais. Cônscio, no entanto, de ser um reprodutor de ideias feitas, Montaigne não dava garantias da originalidade de seus escritos, e sequer o crédito das citações que fazia, com o fito de frear as ousadias dos críticos apressados, levando-os ilusoriamente a dar petelecos nas ventas de Plutarco e a insultar Sêneca, pensando que agrediam a ele próprio (Montaigne, 1972, p.192). Maníaco por livros, preenchera o teto de sua famosa torre com agudas citações de Horácio, Lucrécio, Cícero, Juvenal, Marcial, Plínio, Ovídio, e as preciosidades rutilantes de mais uma carreira interminável de outros sábios escribas da antiga repubblica litteraria.
Assim como Montaigne, o escritor seiscentista Robert Burton não deixou passar em branco a relação abusiva dos modernos com os livros. Em A anatomia da melancolia – provavelmente o livro mais enfartado de citações de toda a história da literatura universal –, o bibliotecário da Universidade de Oxford apontou os autores de sua época como verdadeiras aves de rapina, não sem incluir-se na própria crítica como alguém que escrevia movido unicamente pelo prazer de não dar descanso aos tipógrafos. Para ele, os autores de seu tempo filtravam o melhor da inteligência dos predecessores, colhendo as flores de jardins bem cultivados, para semeá-las na própria terra estéril (Burton, 2011, p.62ss, v.I). Em certo trecho, Burton compara sua incapacidade de deter-se na escrita de sua obra com a empolgação natural de um cão de caça, sempre correndo e ladrando faceiramente a cada pássaro que encontre no caminho.
Creio ser esses depoimentos de Montaigne e de Burton bastante apropriados para retratar a natureza deste livro sobre ideias remotas de história, todo ele traçado e composto com as lascas literárias que arranquei de antigos, modernos e autores da atualidade, para subsídio da memória dos que ainda encontram algo de satisfatório nestas formas desenxabidas de erudição. Em um livro de história sobre outros livros de história, decerto que não faltarão remissões a autoridades estrangeiras, pois, como já dizia um escritor setecentista, o que é estrangeiro sempre chama a atenção
(Smith, 2008, p.123). E isso para também não descuidar das honras devidas a nosso bacharelismo genético que, ao ditar as boas regras da ciência, impõe a lei soberana: sem obras de ostentação não há vida inteligente (Carvalho, 2000, p.127). Aqui, as autoridades antigas reluzirão como ouro, pois o conceito que anima a presente narrativa extrai seus filões mais preciosos justamente das lavras de grandes escritores do passado. Isso é como recordar as palavras de Montaigne acerca das referências que frequentemente tomava de Plutarco, pois a cada vez que aqui se esbarra nos clássicos, alguma coisa também lhes é surrupiada. Aliás, escrever história sempre foi uma atividade dialogada em que tomam parte vivos e mortos e, nessas conferências, somente os espíritos mais duros não se importam de pactuar com o demônio da ingratidão.²
A título de apresentação enxuta da obra, e a propósito de ilustrar (e justificar!) a longevidade da prática legítima de rapinar livros, reforço os argumentos mais recuados de Montaigne e de Burton anteriormente referidos, autorizando-me em palavras de maior atualidade: Timeu era um pedante, [...] e criava livros de livros. Em uma palavra, era um de nós
(Momigliano, 2004, p.143). No esforço de tornar-me um bom ladrão das palavras, minha expectativa é que a obra constitua volume útil para leitores interessados por formas inatuais de conceber e de escrever história, até porque o domínio de antigas expressões do pensamento histórico permite-nos compreender, por contraste, as formas dominantes de hoje em dia. Nesse sentido, a recorrente presença de feitos magistrais nas narrativas do passado – e a possibilidade de transformá-los em lições exemplares para prover a economia moral dos varões insignes à busca de reputação pelos séculos – definem a harmonia dos ensaios aqui reunidos. Com efeito, a pretendida sintonia consiste em retratar a tradição da história como magistério moral numa toada que objetiva ressaltar a importância das lições do passado para exemplo e proveito dos homens ilustres e, por acréscimo, as razões prováveis do declínio das máximas prudenciais como guia certeiro para uma existência coroada de êxitos.
Um antigo professor de retórica afirmou que a sombra vale menos do que o corpo que a produziu. Ainda que bem proporcionadas, reproduções estarão sempre alguns graus abaixo dos originais. Muito difícil contrastar com bons argumentos essas considerações de Quintiliano (1916, Livro X do Segundo Tomo). Se é verdade que a imitação se aproxima apenas com dificuldade daquele valor naturalmente agregado que dignifica tudo o que é autêntico, artefatos originais deveriam ser o objeto de superação de todos os processos que requerem engenho e arte. Porém, não sempre. Uma busca desatinada por originalidade, alertaram os antigos, tenderia a produzir resultados frequentemente próximos da banalidade e até da estupidez. Ora, montanhas muito elevadas podem parir ratos, segundo uma lição de Esopo (Mogenet, 2013). Mais sensato às incansáveis vozes da vanguarda seria então reproduzir motivos da Ilíada, em vez de mover mundos e fundos para exibir estranhezas a partir de intensos esforços de criatividade irrelevante (Horácio, 1993). Lições de conservadora prudência essas de Horácio, o que transmite maior confiança para intrometer-me em velhas conversas alheias e replicar assuntos surrados desde tempos homéricos.
Ainda que em alguns momentos da elaboração deste livro se tenha pretendido oferecer um pouco de vinho novo aos convivas, ao término do trabalho não tenho dúvida de que o serviço prestado foi o de simplesmente engarrafar a velha seiva dos clássicos, o que nem por isso me pareceu mau resultado. Arando em velhos campos, e servindo mais do mesmo acerca da longeva vocação pedagógica da história, me contentei em sujeitar-me às regras de talentosos escribas, que a este propósito me pareceram excelentes. Nas marchas entre antigos autores hei de acender minha lamparina com querosene desviado. Mas mesmo que as citações de textos representativos sobre a exemplaridade da história como instruções pedagógicas de insignes varões exerçam aqui o seu burocrático reinado, e que as paráfrases campeiem de esporas e trabuco, que o leitor crítico também possa distinguir, vez ou outra, algumas contribuições extraídas de lavras particulares. Quanto a essas, coloco-as todas sob a guarda das cautelosas considerações de Thomas Hobbes acerca dos deslocamentos de significação dos textos do passado, quando assevera em Os elementos da lei que ressignificar os sentidos primevos dos livros antigos por meio de atualizações universalizadas pode ser uma tarefa relativamente simples para leitores pósteros, morando toda a dificuldade em apanhar as circunstâncias em que tais textos foram produzidos, e em alcançar as intenções que moveram seus autores (Hobbes, 2010, p.66). Essa é a dialética do que diz os textos, e daquele que por meio deles se comunica. A inteligibilidade histórica das ideias é precisamente dessa ordem, quando se objetiva compreender as conexões das obras de pensamento com outros agentes em interações captadas numa situação circunscrita a espaço-tempo que se possa delinear, apesar das limitações que se interpõem a este gênero de abordagem. Parafraseando Gadamer (1997, p.36), o paradigma foi definido nessa direção, ainda que se tenha consciência das oscilações deformantes na