Viagem ao coração do mundo: A apreensão da imaterialidade
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Sobre este e-book
Frequentemente relegado a ser um "vale de lágrimas", ele poderá, contudo, readquirir o status de realidade mais profunda, caso o ser humano ultrapasse as dificuldades e os obstáculos interpostos pela própria mente, mediante o conhecimento da fragilidade, da sensorialidade e do distanciamento de contato com o ser interior.
Nesse caso, tende a acorrer uma aproximação à "realidade mais real", que se mostra como experiência de imaterialidade. Trata-se de apreensão distinta da comum: as semelhanças com os sonhos, a forte presença de vida, a radiância da natureza, as imagens mentais espontâneas como sínteses, a memória espiritual da humanidade, as feições primordiais da realidade, a harmonia nos processos naturais, a dimensão cósmica, entre outros aspectos.
Este livro chama a atenção não para o desencantamento do mundo, e sim para o seu reencantamento. É um convite experiencial e uma reflexão a respeito da natureza do mundo, cuja abordagem é feita por mobilidade psíquica, incluindo-se nesta a abertura à experiência.
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Viagem ao coração do mundo - Walter Trinca
Introdução
Nos livros anteriores dedicados à descrição da experiência de imaterialidade, ocupei-me especialmente das precondições e das condições mentais pelas quais se torna possível a existência dessa experiência, ao examinar o que ocorre na mente em face dos processos de expansão de consciência. Detive-me particularmente na importância de uma atitude mental que procurei descrever de várias maneiras. Trata-se de uma atitude que implica mobilidade psíquica e se expressa por abertura, liberdade, espontaneidade, fluidez, leveza, versatilidade, mas também por alargamento, profundidade e harmonia, entre outros aspectos. Esses aspectos se relacionam à sensibilidade e à intuição, sem dispensar, naturalmente, o uso da razão. De início, em A arte interior do psicanalista (Vetor, 2012), indiquei essa atitude em referência à própria atividade clínica do psicanalista, mas a seguir, em Psicanálise e transfiguração: a etérea leveza da experiência (Vetor, 2006), procurei estender o assunto ao âmbito das mais variadas manifestações sensíveis dos seres humanos em geral. Em O espaço mental do homem novo (Vetor, 2008), considerei essa atitude em contraste com o mundo humano criado e mantido pela mente sensorializada, isto é, pela mente predominantemente coisificada, que se encontra presente nas modernas sociedades urbano-industriais. Em outra ocasião, escrevi um romance, denominado O filósofo ou a procura do encanto da vida (Lemos, 1997), em que o personagem principal realiza uma viagem interior, que se torna emblemática do processo de evolução psíquica rumo à experiência de imaterialidade.
No presente livro, o enfoque principal diz respeito a essa mesma atitude mental, voltada agora para a abordagem, a incursão e a experiência de encontro do mundo, ou seja, para o relacionamento em bases imateriais com o mundo em que vivemos. As indagações a que este livro se propõe centralizam-se nas formas e condições de se realizar descobertas dos significados imateriais das coisas proximais e distais existentes no plano da realidade dita imanente. Esse relacionamento não prescinde, obviamente, do relacionamento do indivíduo consigo próprio, de modo a tornar o espaço interno propício à experiência. Mas se trata, aqui, de priorizar a apreensão do mundo pelo ato de se debruçar sobre ele, a velha esfinge, a fim de conquistar-lhe os segredos. Isso se realiza por meio de mobilidade psíquica, condizente com o próprio objeto de investigação, que é aprofundável e inesgotável. O livro pretende ser a descrição de um tipo de aproximação que se justifica por ser menos particular e especializado do que geral e universal. Poderá abrir incentivos e horizontes ao encontro do mundo, se sua leitura proporcionar um olhar detido e um convite à vivência amorosa em relação à sementeira de criação e de fertilização da vida, na qual nos encontramos. Seu objetivo consiste em apontar a existência de uma perspectiva de observação e em estimular a construção de um relacionamento que impulsionem a consciência da imaterialidade no mundo. É defensável pensar que, uma vez obtido algum desenvolvimento de nossa capacidade para essa consciência, o mundo vem oferecer suas manifestações imateriais mais interessantes e surpreendentes. Dependendo de nossa sintonia, a imaterialidade constitui-se num dado que pode se encontrar presente na realidade a nosso derredor.
Ao me referir à experiência de imaterialidade, gostaria de explicitá-la, num primeiro momento, como uma atitude e uma atividade de contato com a realidade interna e externa, ocorrendo sob a influência da mobilidade psíquica e em estado de expansão de consciência, que determinam o surgimento de disposições e modalidades de sintonia, captação e compreensão dos fatos, os quais se tornam relativamente livres de interferências, obstáculos e distorções do relacionamento, sendo que, em consequência, tendem a aparecer, em graus, estados de limpidez, leveza, profundidade e abrangência no contato, que se expressam por imagens mentais, percepções, sentimentos e pensamentos. A consciência da imaterialidade vem permitir uma atenção às características distintivas dos fenômenos, de forma a possibilitar sua apreensão diferenciada da apreensão comum. Sendo inúmeras essas características, não posso oferecer, senão, alguns exemplos: as semelhanças dos fenômenos objetivos com o universo onírico, a percepção de forte presença de vida na natureza, a captação da radiância, da majestade e da sublimidade existentes no mundo, a ampliação estética dos limites espaço-temporais em direção ao infinito, as imagens mentais espontâneas como sínteses perceptivas e cognitivas, a espiritualidade fenomênica, a memória espiritual da humanidade, a dimensão cósmica, a primordialidade, a harmonia e a existência singular e silenciosa de fenômenos que são experienciados como fora do tempo. Sem dúvida, trata-se de chamar a atenção não mais para o desencantamento do mundo, e sim para o seu reencantamento. Um movimento necessário, uma vez que a arte, a ciência e a filosofia do Século XX estiveram por demais interessadas, saturadas e entediadas pelo desencantamento. De uma perspectiva geral, elas rumam, agora, para uma superação. As várias modalidades de experiência de imaterialidade descritas neste livro não são senão ensaios iniciais de um assunto cujos horizontes não são inteiramente visíveis, estando plenamente abertos à investigação.
Desde que, em cada ser humano, o conhecimento da mente se aprofunde e se expanda, o fenômeno sutil e rarefeito, que sobressai do contato com a realidade interna e externa, tende a aparecer. Ou seja, haverá o encontro de duas profundidades: a da mente com a do mundo. Isso indicaria atenção e interesse em aprender cada vez mais e melhor sobre a imaterialidade existente na dimensão imanente dos fenômenos. Para seu estudo, porém, nada mais apropriado do que o método psicanalítico que, por atenção flutuante e por liberdade associativa, estabelece sintonia com o invisível e desconhecido, que se escondem sob as aparências visíveis e conhecidas. Talvez os abismos profundos da realidade possam ressoar em nós, ao nos livrarmos de concepções objetivistas, racionalistas e deterministas, assim como de entendimentos demasiadamente estreitos sobre a realidade. Penso que a construção do conhecimento no Século XXI irá se pautar pela abertura à experiência e pela atitude investigativa desprovida de padrões dogmáticos e de paradigmas inamovíveis.
Nessa linha de pensamentos, enfatizo, sobretudo, a qualidade do espaço mental que se relaciona com a realidade. Para a apreensão da imaterialidade, é essencial o depuramento das condições mentais e a abertura móvel e espontânea à aproximação e ao recebimento dos fatos. Isso significa que necessita ser considerado e analisado o instrumento
de captação e de conhecimento, isto é, a mente. Lidar com esta torna-se uma questão fundamental. É desejável que haja suficiente limpidez ou, ao menos, que ela não esteja turva perante o fatos e que as interferências sobre o conhecimento sejam as menores possíveis. Para tanto, nada mais recomendável do que examinar, em cada indivíduo, o que ocorre no self. Este é uma instância central composta de várias partes e inumeráveis constituintes, que abriga e movimenta processos variáveis e, frequentemente, contraditórios, onde se dão os conflitos e as sínteses, as organizações e as desorganizações, os sistemas de equilíbrio e de desequilíbrio, as perturbações e as integrações psíquicas. Trata-se de um campo de forças em permanente movimento, as quais nele se alojam, disputam e conflituam, tentando obter a primazia, na dependência dos elementos, fatores e processos que concorrem entre si. Além disso, o self é uma forma de suporte e de organização globalizante, sendo responsável pela adaptação, pela sobrevivência e pela consecução da existência. Também, é uma instância intermediária de repercussão e de relacionamento com as demais instâncias e com os processos psíquicos originários de todas as partes da mente. Por isso, entre suas funções, está o relacionamento com o ser interior.
O ser interior é uma instância completamente diferente do self, com o qual não se confunde conceitualmente. Ele é a realidade existencial primária, o foco nuclear de vida e a raiz da existência pessoal. Sendo uma referência primeira, constitui-se como forma original e prototípica, que fundamenta para a pessoa a realidade e a verdade interior mais profunda. Entre suas características, encontra-se que ele é unitário, singular e específico. Também, é inteiro, indivisível, irreplicável e intransferível. Apesar das mudanças pelas quais pode passar, é relativamente constante e não sofre solução de continuidade, sendo experienciado como o mesmo durante a existência da pessoa. Expressa-se como fonte de vida, núcleo de coesão, centro estabilizador e organizador da vida mental. Ele exerce influências em graus sobre o self e, quanto maiores forem estas, mais o self tenderá à estabilização, à organização e à harmonização; e, inversamente, quanto menores forem as influências, mais o self tenderá à desestabilização, à desorganização e à desarmonização.
As relações entre o ser interior e o self são permeadas pelo contato, em graus, com o ser interior. Quanto maiores forem os graus de contato, maiores serão as influências deste exercidas sobre o self e, inversamente, quanto maiores forem os graus de distanciamento de contato, menores serão as influências exercidas sobre o self. Ao ocorrer o distanciamento de contato com o ser interior, quaisquer que sejam os graus, outras forças estarão presentes e atuantes no self. Essas forças são originárias de várias fontes (as diferentes partes da mente, o mundo externo e o organismo), sendo considerada como a mais importante a constelação do inimigo interno, que é derivada diretamente da pulsão de morte. A questão do contato com o ser interior torna-se das mais relevantes, uma vez que a suficiência de contato é fonte de vida e alegria, pelo fato de a pessoa poder se ancorar, se realizar e se integrar, enquanto o distanciamento de contato implica a ação de componentes no self que não são comandados pelo ser profundo. Nesse caso, em função do distanciamento de contato, o self estará impregnado por fragilidade ou saturado por sensorialidade, de que podem resultar diferentes espécies e modalidades de comprometimentos psíquicos.
A fragilidade tem por consequência, em graus, o enfraquecimento e o esvaziamento do self. Daqui resultam várias formas de angústias, entre as quais a angústia de dissipação do self, que ocorre pela presença do terror de passagem à inexistência. A sensorialidade, por sua vez, aparece para dar conta da fragilidade e da angústia, visando evitá-las ou suprimi-las, e insere-se no self como tentativa de compensar ou substituir as dificuldades de contato com o ser interior. A sensorialidade diz respeito a elementos que são saturados de concretitude ou que têm as propriedades, qualidades ou características desta, os quais preexistem ou vêm se instalar no aparelho psíquico, determinado o aparecimento de manifestações emocionais, cognitivas, imagéticas e outras, tanto de forma consciente quanto inconsciente. No relacionamento com a realidade externa, a sensorialidade tende a criar um mundo humano coisificado.
Não sendo o self afetado por excessivo distanciamento de contato, há melhores condições para a limpidez de espírito e para as experiências com a realidade interna e externa depuradas das interferências e obstruções que fazem obscurecer a abordagem, a percepção e a compreensão dos fatos. Nesse contexto, predominam as condições não sensoriais, dado que há presença e influência do ser interior, cuja natureza é intrinsecamente não sensorial, sobre o self. Não só ficam diminuídas as angústias oriundas da fragilidade, como cessam em grande parte a saturação sensorial e as interferências de todo tipo sobre a apreensão e o conhecimento da realidade. Tornando-se a mente mais livre, ela se dispõe à intuição, à percepção, ao encontro e ao conhecimento dos fatos como eles existem. Sem dúvida, há predisposição ao alargamento e ao aprofundamento, quando a mente é mais bem adaptada ao contato, sendo menos afetada por desejos, medos, conflitos, condicionamentos, perturbações psíquicas e outras espécies de sofrimentos. O ponto de partida está na análise e no conhecimento do que se passa, pois se trata de observar e compreender a mente em seus meandros e em suas formas de funcionamento.
Assim, o contato com o ser interior não sensorial torna a experiência mais livre e genuína, por assomar à consciência um vínculo com a verdade existencial mais profunda, ao mesmo tempo em que introduz mobilidade psíquica. Esta não é, senão, uma expressão marcante desse ser sobre o self, que se verifica por estados não sensoriais de leveza, frescor, liberdade, espontaneidade, flexibilidade e abrangência, entre outros. Em tais condições, a mente disponibiliza-se ao encontro, à apreensão e à compreensão do que é não sensorial no plano da realidade externa. Um dos principais aspectos que pode emergir dessa situação é a experiência de imaterialidade. Ela aparece ao se atingir tal nível de relacionamento com o mundo que este se sutiliza e se transfigura. Contudo, as qualidades imateriais que surgem desse relacionamento são somente aquelas que realmente estão presentes, fazendo parte da realidade. Nesse caso, pode estar contido um processo de expansão de consciência para níveis mais elaborados de apreensão da imaterialidade.
1. A experiência da imaterialidade
A experiência de imaterialidade corresponde à expressão de determinados estados mentais, alguns dos quais descrevo no presente livro. Ela tem por denominador comum o contato com situações e objetos que se tornam mentalmente libertos, em graus, do que se pode chamar de saturação sensorial e de impregnação por fragilidade. Geralmente, nela, a interioridade apresenta-se com tendência