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Filósofas: O legado das mulheres na história do pensamento mundial
Filósofas: O legado das mulheres na história do pensamento mundial
Filósofas: O legado das mulheres na história do pensamento mundial
E-book337 páginas7 horas

Filósofas: O legado das mulheres na história do pensamento mundial

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Sobre este e-book

"Nós não podemos viver em um mundo que seja para nós interpretado por outros. Um mundo assim concebido não representa esperança. Não devemos ter medo de recuperarmos a nossa própria audição, de usarmos a nossa própria voz e de vermos a nossa própria luz."

HILDEGARDA DE BINGEN

A filosofia sempre teve o rosto de um homem velho e reflexivo, com uma barba longa e uma túnica grega. Mas essa figura acaba excluindo a imagem (e, por consequência, o trabalho) de outros filósofos dentro do nosso imaginário. Onde estão as filósofas mulheres?

Diotima de Mantinea, Ban Zhao, Mary Wollstonecraft, Angela Davis, Lélia González são apenas alguns nomes de grandes pensadoras que contribuíram não só para as discussões acerca das questões femininas, como também para a história do pensamento geral. Contudo, poucas são mencionadas nos livros de história. Filósofas: o legado das mulheres na história do pensamento mundial vem para fazer justiça a essas grandes intelectuais, dando a visibilidade que suas ideias e ações merecem. Com uma linguagem clara e didática, a obra nos ajuda a ampliar as reflexões filosóficas e nos prova que a filosofia sempre foi, e continua sendo, coisa de mulher.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento21 de set. de 2022
ISBN9786588370742
Filósofas: O legado das mulheres na história do pensamento mundial

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    Pré-visualização do livro

    Filósofas - Natasha Hennemann

    capa_filosofas4.jpegimagem

    Copyright © 2022 por Natasha Hennemann e Fabiana Lessa

    Todos os direitos desta publicação reservados à Maquinaria Sankto Editora e Distribuidora LTDA. Este livro segue o Novo Acordo Ortográfico de 1990.

    É vedada a reprodução total ou parcial desta obra sem a prévia autorização, salvo como referência de pesquisa ou citação acompanhada da respectiva indicação. A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na Lei n.9.610/98 e punido pelo artigo 194 do Código Penal.

    Este texto é de responsabilidade das autoras e não reflete necessariamente a opinião da Maquinaria Sankto Editora e Distribuidora LTDA.

    editora

    dados internacionais de catalogação na publicação (CIP)

    angélica ilacqua — crb-8/7057

    Hennemann, Natasha

    Filósofas : o legado das mulheres na história do pensamento mundial/ Natasha Hennemann, Fabiana Lessa. São Paulo: Maquinaria Sankto Editora e Distribuidora LTDA, 2022.

    EPUB - Bibliografia

    ISBN 978-65-88370-74-2

    1. Filosofia 2. Filósofas 3. Feminismo 4. Pensamento I. Título II. Lessa, Fabiana

    índice para catálogo sistemático:

    1. Filosofia

    CDD 100

    logo-editora

    Endereço

    Rua Leonardo Nunes, 194, Vila da Saúde - São Paulo/SP, CEP: 04039-010

    www.mqnr.com.br

    imagem

    Sumário

    Prefácio

    O que esperar deste livro e de quem o escreveu

    Helenas

    Matemática e harmonia: as pitagóricas

    A mestra do mestre: Diotima de Mantineia

    A arte da palavra e o auge de Atenas: Aspásia de Mileto

    Platônicas, cínicas, estoicas

    Astrônoma, matemática e filósofa: Hipátia de Alexandria

    As virtudes femininas: Ban Zhao

    Olhando para as filósofas da Antiguidade

    Evas e Marias

    Afinal de contas, o que foi a Idade Média?

    A força do cristianismo: a filosofia medieval cristã é importante?

    As mulheres na Idade Média

    Amor e castigo: Heloísa de Argenteuil

    Teologia, botânica, medicina e música: Hildegarda de Bingen

    Outros contextos medievais: filósofas árabes, muçulmanas e indianas

    Poder e o(s) lugar(es) das mulheres: Christine de Pizan

    Olhando para as filósofas da Idade Média

    Sibyllas e Dandaras

    Idade Moderna

    Filosofia, teologia e o lugar da mulher no Novo Mundo: Juana Inés de la Cruz

    Liberdade, igualdade, fraternidade: Olympe de Gouges

    A igualdade e o direito ao acesso à educação: as três Marias

    Filosofia natural e ciência: Émilie du Châtelet

    Olhando para as filósofas da Idade Moderna

    Berthas e Fridas

    Idade Contemporânea

    Ética e Política

    Sobre direito e liberdade: Harriet Taylor Mill

    As faces do indivíduo, da sociedade e da política: Hannah Arendt

    A força e o protagonismo das latino-americanas: Graciela Hierro

    A ética aplicada À vida na resolução de dilemas: Philippa Foot

    Ética e política feita por mulheres, mas para todos

    Carolinas e Emmas

    Interseccionalidade

    Ninguém nasce mulher: Simone de Beauvoir

    Amefricanidade e pretuguês: Lélia Gonzalez

    Sabedoria ancestral: Sophie Oluwole

    Interseccionalidade e antirracismo: Angela Davis

    Um olhar sobre as filósofas de gênero, raça e classe

    Malalas e Ninas

    A jornada até aqui e como ela continua

    Mary Midgley

    bell hooks

    Marilena Chaui

    Silvia Federici

    Martha Nussbaum

    Nancy Fraser

    Sueli Carneiro

    Seyla Benhabib

    Judith Butler

    Vandana Shiva

    Katiúscia Ribeiro

    Djamila Ribeiro

    Amia Srinivasan

    Michelle Belatto

    Filosofia feita por indígenas mulheres em Abya Yala

    O futuro será com mais filósofas

    Agradecimentos

    Filósofas

    Referências

    INTRODUÇÃO

    Capítulo 1: Helenas

    Capítulo 2: Evas e Marias

    Capítulo 3 : Sibyllas e Dandaras

    Capítulo 4: Berthas e Fridas

    Capítulo 5: Carolinas e Emmas

    capítulo 6: Malalas e Ninas

    Para as mulheres da nossa vida: mães, irmã, avós, amigas, colegas e professoras que, cada uma com seu caminho, tanto nos inspiram.

    E para todas as estudantes que têm o ímpeto de desbravar o mundo por meio do pensamento e de fazer ecoar sua própria voz.

    Prefácio

    A filósofa Djamila Ribeiro deu publicidade significativa à expressão conceitual lugar de fala, uma categoria analítica tanto na linguística quanto na área de humanidades. Lugar de fala engloba fatores de gênero, étnico-racial, social, histórico, geracional, territorial, entre outros. Ora, o lugar de fala não impede que alguém trate de um assunto. Pelo contrário, o seu reconhecimento contribui para que o diálogo seja ainda mais potente. Não é preciso neutralidade ou uma espécie de imparcialidade. Afinal, os discursos que se declaram neutros e imparciais escondem algo. Portanto, ninguém precisa pedir autorização para discorrer sobre um assunto — desde que reconheça o seu lugar de fala. Por exemplo, gente branca pode e deve falar de relações étnico-raciais, assim como homens não podem se esquivar de debater sobre gênero (nem que seja para declarar que se trata de uma performance). É importante frisar que o fazer filosófico não parte de um sujeito neutro. O pensamento filosófico é, antes de tudo, um posicionamento, isto é, o estabelecimento de um lugar (ou ainda, muitos lugares) no mundo.

    O livro Filósofas: o legado das mulheres na história do pensamento mundial começa problematizando o berço grego da filosofia. Em uma área onde não achamos lugar para respostas consensuais, durante um longo período o mainstream filosófico esteve blindado e defendeu sem autocrítica que a filosofia era uma invenção grega. Do mesmo modo, durante milênios, lia-se o termo homem como sinônimo de seres humanos. A obra cobre uma lacuna a respeito de personagens femininas da história da filosofia que são pouco conhecidas. Nos manuais escolares, não é frequente lermos os nomes destas filósofas: Diotima de Mantineia, Aspásia de Mileto, Axioteia de Filos, Lastênia de Mantineia, Hipárquia de Maroneia, Pórcia Catão, Hipátia de Alexandria, Ban Zhao, Heloísa de Argenteuil, Hildegarda de Bingen, Shams de Marchena, Fátima de Córdoba, Rábia de Baçorá, Lubna de Córdoba, Lal Ded, Christine de Pizan, Mary Wollstonecraft, Harriet Taylor Mill, Hannah Arendt, Graciela Hierro, Philippa Foot, Lélia Gonzalez, Sophie Oluwole, bell hooks, Judith Butler, Angela Davis.

    O que essas mulheres e tantas outras filósofas nos convidam a pensar? O que podemos pensar a partir delas? E, sobretudo, o que podemos pensar lado a lado com elas? Ou ainda, existe algo que as filósofas são capazes de dizer que os filósofos não têm como enunciar? Não cabe aqui exatamente encontrar um elemento comum em filosofias tão diversas, tampouco sugerir que o gênero impõe uma espécie de gradil específico para pensar. Mas, ao mesmo tempo, não podemos nos esquivar de compreender como patriarcado, machismo, sexismo, misoginia e masculinismo interferem na circulação das vozes das mulheres. Só não podemos deixar de notar que na filosofia, assim como em outras áreas, existe um sistema estrutural de desvalorização feminina, e a popularidade dos filósofos é significativamente maior do que das filósofas. Não podemos deixar de identificar como os mecanismos do privilégio masculino impuseram o silenciamento das vozes das mulheres na filosofia. Nessas circunstâncias, o que essas filósofas tem a nos dizer?

    Pois bem, elas ressaltam uma peculiaridade nem sempre observada do fazer filosófico. A filosofia não é universal, ela vai além da universalidade. O fazer filosófico é pluriversal! Na história da filosofia, filósofas não abrem mão de redesenhar o mapa-múndi do pensamento, porque o papel da filosofia é justamente sugerir novos desenhos, contornos pouco frequentados, para enfrentarmos tanto as questões mais densas quanto os problemas mais movediços. A filosofia nos lança a um certo mistério cheio de encantos. As autoras Natasha Hennemann e Fabiana Lessa ressaltam os elementos mais decisivos no pensamento de cada filósofa. Essa é uma das maiores virtudes de fazer filosofia: conversar com modos de pensar, reconhecer as suas fronteiras e a sua potência em deslocar o nosso pensamento. As autoras traçam trilhas preciosas para um percurso em que as arquiteturas conceituais são marcadas por uma espécie de novo brutalismo. Na arquitetura, o novo brutalismo¹ é reconhecido como, ao mesmo tempo, slogan e rótulo. O Brutalismo² é um estilo arquitetônico em que elementos como ferragens e tijolos ficam expostos. De modo paradoxal, a coragem das autoras em elaborar um desfile de filósofas em um ritmo aparente de novo brutalismo escapa aos signos do slogan e do rótulo. Ora, o paradoxo é uma instância que nos ajuda a pensar filosoficamente. O gênero como categoria analítica tem sido problematizado por diversas pensadoras, ressignificando a noção que lhe atribuía uma espécie de natureza ontológica. Hennemann e Lessa expõem um ponto cego da história do pensamento filosófico mundial sem propor um texto no gênero manifesto.

    Existem algumas armadilhas que um livro intitulado Filósofas: o legado das mulheres na história do pensamento mundial suscita em leituras apressadas. Não há tempo para discorrer sobre cada uma delas, mas podemos insistir em não sucumbir às arapucas das camisas de força da identidade de gênero. Não se trata de encontrar uma natureza própria das mulheres, nem recusar que há papel político da categoria gênero, tampouco de negar como as estruturas de opressão e domínio sobre elas interferem nos circuitos da intelectualidade. Patriarcado, sexismo, machismo, misoginia e masculinismo dificultam que o circuito de produção e difusão do pensamento filosófico registre mulheres com a mesma confiança que os homens. Eu recordo que, em maio de 2022, durante um evento literário no Rio de Janeiro, a escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie disse que mulheres leem textos de mulheres e de homens; mas, os homens leem, em sua maioria, autores.

    O livro Filósofas: o legado das mulheres na história do pensamento mundial de Natasha Hennemann e Fabiana Lessa é um exercício intelectual enfático! É um convite para amplificar o repertório sobre o pensamento filosófico mundial, lançando luzes sobre pensadoras que muitas vezes não possuem o devido reconhecimento. Na atmosfera de circunstâncias adversas impostas pelo patriarcado estrutural, muitas pensadoras teceram enunciados filosoficamente insubmissos, o desassossego intelectual que nos incita a buscar contornos inéditos para antigas questões e combinação de velhos elementos para novos problemas. Um livro relevante tanto para quem está começando a tirar passaporte para viajar pelos itinerários filosóficos quanto para as pessoas que já desfilam há muitos carnavais pelos mundos possíveis da filosofia.

    Pois bem, este livro traz o debate em torno do legado das mulheres e se endereça para todas as pessoas interessadas em perceber como os sotaques e a atmosfera territorial de quem filosofa agrega algo indispensável na arte de pensar. Existe algo em comum em todas as filósofas citadas neste livro, algo que é bastante característico das filosofias. A medida justa do pensamento está na sua potência de nos fazer pensar por caminhos inesperados.

    Renato Noguera

    Professor de filosofia do Departamento de Educação e Sociedade e do programa de pós-graduação em filosofia da UFRRJ, pesquisador e doutor em Ensino de Filosofia, História e Cultura Afro-Brasileira, Africana e Indígena e autor de Por que amamos e Mulheres e deusas.


    1. O novo brutalismo é debatido pelo crítico Reyner Banham em The New Brutalism: Ethic or Aesthetic? (1966).

    2. Título de livro do filósofo Achille Mbembe baseado no estilo arquitetônico que deixa os elementos da construção visíveis.

    INTRODUÇÃO

    O que esperar

    deste livro e de quem o escreveu

    Certa vez, um mercador se apaixonou perdidamente por uma jovem dama. Tão perdidamente que resolveu — sem perguntar se os sentimentos eram recíprocos, diga-se de passagem — raptá-la, enquanto a moça, de maneira inocente, catava conchas na praia. Colocou-a dentro de uma embarcação e navegaram oceano afora, até que a fúria dos deuses se manifestou sem piedade: tempestades intermináveis e ventos violentos varreram os mares e se abateram sobre o barco, de modo que a nau foi arrastada para o extremo Norte. O frio que fazia ali era tão intenso que o mercador e toda a tripulação morreram; apenas a jovem permaneceu viva. O frio glacial tinha um motivo: o Polo Norte guardava uma conexão com o polo de outra dimensão, de modo que a temperatura era duplamente congelante. E foi esse vínculo que permitiu que a embarcação adentrasse outro mundo.

    Já tendo ultrapassado a fronteira entre os mundos, exausta e desconsolada, a moça viu uma planície coberta de neve e ali se deparou com ursos que se portavam como seres humanos, inclusive se comunicando em uma língua desconhecida. A donzela sentiu medo de que eles a machucassem, mas trataram-na com respeito e gentileza: ajudaram-na a desembarcar, afundaram o navio com os cadáveres e carregaram-na para sua cidade. Então, a dama entrou em contato com outras criaturas que ali habitavam: raposas, gansos, sátiros… todos bípedes e com postura semelhante à humana. Os nativos dessa nova realidade, chamada Mundo Resplandecente, se admiraram com a moça que havia vindo de outro lugar: acharam-na bela e digna de se tornar um presente para o imperador. Durante a viagem até o governante, a dama passou a confiar em seus acompanhantes, de modo que deixou de sentir-se ameaçada. Aprendeu aos poucos a se comunicar com eles e ficou confortável em sua presença.

    Chegando à cidade principal do Mundo Resplandecente, a moça se deslumbrou com a beleza das paisagens e das construções (feitas de ouro, alabastro, mármore), a vastidão das terras, a abundância, a riqueza e a paz que por ali reinavam, pois era uma nação que não conhecia guerras ou insurreições. O palácio do imperador também impressionava: a arquitetura era bela, imponente, espaçosa e iluminada, incrustada em todos os cômodos por pedras preciosas que só havia naquele mundo. Ao ser apresentada ao imperador, a dama causou uma magnífica impressão: ele a tomou por deusa e quis cultuá-la. Humilde, ela não permitiu, já que era simplesmente uma mortal vinda de outro mundo. Mas não foi possível convencer os súditos de que ela não merecia veneração, e eles passaram a idolatrá-la. O imperador, encantado, casou-se com a dama, e ela tornou-se imperatriz; tinha a liberdade para governar como achasse melhor aquele povo de homens-urso, homens-pássaro, homens-raposa, e tantos outros.

    Cada um desses seres tinha uma função na sociedade, uma profissão que melhor se encaixava em sua natureza, e se destacavam as atividades ligadas às artes e às ciências, nas quais aquele povo era extremamente hábil. A imperatriz não perdeu tempo em aproveitar tais talentos e fundou escolas e sociedades científicas e filosóficas. Cercou-se de astrônomos, médicos, políticos, alquimistas, filósofos naturais, matemáticos, lógicos, arquitetos e sacerdotes; a estes, a rainha pediu que explicassem o funcionamento político e religioso do Mundo Resplandecente. Aos arquitetos, perguntou sobre as construções do império. Com os astrônomos-pássaro, aprendeu e questionou sobre o Sol, a Lua, as estrelas, o ar, a neve, o fogo e os relâmpagos. A partir das observações e experimentações, a monarca e os filósofos naturais (que eram homens-urso) debateram sobre os insetos, a reflexão da luz e os vegetais. Foram construídos lentes, telescópios e microscópios para ampliar o conhecimento do reino. Com os homens-peixe e os homens-verme, conversou sobre o mar, a terra e as criaturas marítimas e terrestres; com os homens-símio, que eram alquimistas, falou sobre substâncias químicas e suas propriedades. Chamou os médicos, os herbalistas e os anatomistas e perguntou-lhes sobre dissecções, doenças, drogas e remédios e seus efeitos no corpo humano. Finalmente, convocou os matemáticos (homens-aranha), os geômetras (homens-piolho), os oradores e lógicos (homens-gralha, homens-papagaio e homens-corvo) e, com eles, tentou resolver desafios matemáticos; mediram e pesaram diversos objetos, e a dama ouviu e criticou discursos e argumentações. Preocupada com as almas do Mundo Resplandecente, a governante conversou com os espíritos imateriais sobre fé, teologia, alma, filosofia platônica e a origem das coisas. Esses debates diversos foram feitos em pé de igualdade entre a imperatriz e os especialistas, e todos os envolvidos dialogaram racionalmente e admitiram com honestidade sua ignorância acerca de alguns pontos.

    Esta história excêntrica, que poderia ser o resumo de qualquer obra atual de fantasia, foi publicada pela primeira vez em 1666, por Margaret Cavendish, duquesa de Newcastle. O livro, chamado O Mundo Resplandecente, é considerado por alguns literatos como o pioneiro do gênero ficção científica, antes mesmo do famoso Frankenstein ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley, publicado em 1818.

    O Mundo Resplandecente é um texto surpreendente e detalhado, que mistura elementos de ficção, filosofia, fantasia, utopia, ciência e relato de viagem. Ele nos abre uma janela para compreender um pouco da Inglaterra da época de Cavendish; afinal de contas, mesmo descrevendo uma sociedade perfeita — um mundo belo, justo, organizado e sem guerras, no qual a pobreza não era problema —, ainda há limites que são óbvios para um leitor dos dias de hoje. Mesmo no mundo perfeito, as mulheres eram proibidas de participar de determinadas atividades; existia diferença social baseada na riqueza; a protagonista promove um etnocentrismo religioso quando se vê com o poder nas mãos, defende um governo monárquico autoritário em detrimento da liberdade de debate e argumenta sobre ideias científicas que, atualmente, sabemos que estão incorretas ou imprecisas. Mas, muitas dessas visões que hoje em dia estranhamos ou rejeitamos, para o período eram elementos considerados naturais em uma sociedade. A crítica à Inglaterra de Cavendish em comparação ao Mundo Resplandecente é evidente na obra; afinal, nosso mundo é repleto de guerras, divisões, excessos e vícios.

    Mais do que a realidade da Inglaterra do século XVII, O Mundo Resplandecente provoca uma série de reflexões sobre nossos dias. Em primeiro lugar, sobre a defesa do conhecimento: quando o texto foi escrito, ele veio como um apêndice à obra filosófica Observações sobre a filosofia experimental (ou seja, um complemento a um trabalho científico). Ao mostrar a imperatriz como incentivadora de cientistas e filósofos, Cavendish fez uma defesa da ciência enquanto recurso estratégico para uma nação que deveria ser apoiado pelo Estado. Embora atualmente isso possa parecer óbvio, na época, quando a ciência moderna ainda estava nascendo, não era. Aliás, usando o Brasil do início do século XXI como exemplo, a ciência vem sendo relegada a segundo plano, como um mero acessório descartável. Apesar dos avanços atuais, muitas vezes nem em países democráticos o trabalho científico é colocado como prioridade; ou seja, pode ser visto com indiferença e como desperdício de dinheiro, o que é incoerente para uma sociedade moderna que almeja progressos. Este é, portanto, uma das principais teses do livro de Cavendish (e do livro que você tem em mãos): o conhecimento é essencial, valioso e deve ser incentivado.

    Mas o caminho para o conhecimento não é fácil. É um percurso cheio de obstáculos, tempestades, percalços e mau tempo — como é a própria viagem da dama até o Mundo Resplandecente —, mas pode também ser divertido e imaginativo. O livro de Cavendish pretendia ser uma obra de divulgação científica para os leitores da época: os debates que estão no livro (entre a imperatriz e os homens-pássaro sobre astronomia, por exemplo) são embates de ideias que de fato existiam na época. Ela pretendia tornar de fácil acesso esses conhecimentos para uma parte da população que não era necessariamente cientista ou filósofa, aspecto que compartilhamos no nosso livro: o conhecimento de qualidade deve ser acessível.

    Vivemos uma época em que a informação é abundante, mas seu excesso sem consciência crítica pode ser desesperador. Informação é diferente de conhecimento; afinal, a informação é algo rápido que satisfaz uma dúvida momentânea, enquanto o conhecimento se propõe a ser buscado e realizado com consistência, referência e rigor. E para trazer o conhecimento sobre algumas das mulheres mais importantes na história do pensamento e da filosofia, sem causar confusão ou desespero, construímos Filósofas: O legado das mulheres na história do pensamento mundial, prezando por um bom texto, confiável e agradável. Além de apresentar conceitos elaborados e desenvolvidos por essas intelectuais, trazemos informações a respeito de suas épocas, vidas e obras.

    Todas as informações foram retiradas de livros, artigos e teses, alguns deles disponíveis gratuitamente na Internet. Ao final do livro, há uma lista com as referências utilizadas. Optamos por não deixar notas de rodapé ao longo do texto, a fim de torná-lo mais fluido.

    Nossa preocupação com a qualidade da divulgação científica — ou, neste caso, a divulgação histórica e filosófica — vem da nossa própria profissão. Além de autoras, somos professoras no ensino básico: Fundamental e Médio. Muito do livro se originou de nossas próprias produções de aulas e materiais didáticos; afinal, nossa experiência docente nos faz diariamente pesquisadoras de nossa própria área.

    A estrutura escolar pouco mudou desde o século XIX, o que se traduz, de modo geral (com exceções, claro), em um modelo de escola pouco atrativo, voltado à valorização de assuntos técnicos e que diminui a importância de práticas mais contemplativas e reflexivas como a filosofia. Para muitos estudantes, é um tipo de escola que pouco faz sentido, não dialoga inteiramente com sua realidade. Soma-se a isso o surgimento de gerações com habilidades e demandas inéditas: são jovens questionadores, mas, a depender de suas vivências, podem se tornar apáticos e desesperançosos. Aprendem rápido sobre o funcionamento de tecnologias como smartphones e tablets, mas muitas vezes não são ensinados a lidar com redes sociais, com a confiabilidade das informações, com a exposição e o anonimato na Internet. Costumam ficar interessados por diversos assuntos, mas podem ter dificuldade de concentração e aprofundamento no estudo.

    Você se identifica com esse perfil? Ou conhece crianças e adolescentes que se encaixam aí? Porque nós conhecemos vários. Esses são alguns dos desafios atuais nas escolas, e nossa vontade é a de abrir as portas do mundo, mostrar que a vida é complexa e muito bela, que o conhecimento é rico e vale a pena, por mais trabalhoso que seja. Queremos que todos tenham as ferramentas para lidar com a liberdade e a responsabilidade que esse mundo exige. Junto a tudo isso, a curiosidade — característica humana ancestral — permanece mais viva do que nunca. É lindo ver em sala de aula os olhos dos estudantes brilhando quando descobrem um jeito diferente de pensar sobre algum tema, quando percebem e compreendem melhor a si mesmos, os outros e a realidade, e quando lançam perguntas difíceis ou impossíveis de serem respondidas diretamente por nós. Afinal de contas, assim como a imperatriz do Mundo Resplandecente e seus especialistas, temos que saber reconhecer os limites de nossas certezas. Tão essencial quanto saber as soluções é fazer as perguntas e empreender a própria busca por respostas. A filosofia é um dos melhores meios para atingir tudo isso, além de ser uma atividade deliciosa e instigante.

    Uma pergunta que os alunos — e, principalmente, as alunas — fazem é: Professora, existem mulheres filósofas?. Essa questão aparece porque, quando estudamos a história da filosofia na escola (e mesmo na universidade), a imensa maioria dos pensadores apresentados é formada por homens. Uma ou outra filósofa aparece e geralmente apenas na Idade Contemporânea, no século XX, Hannah Arendt ou Simone de Beauvoir. O questionamento feito pelas alunas é fundamental e altamente filosófico: onde estão as mulheres na história da filosofia? (E a pergunta pode ser expandida: onde estão os filósofos negros? E o pensamento asiático, africano, latino-americano?) Muitas

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