Dias dúbios
De Haron Gamal
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Dias dúbios - Haron Gamal
CATALOGAÇÃO
Copyright by © 2023
Haron Gamal
Coordenação editorial:
Wilbett Oliveira
Projeto editorial/capa:
Equipe Cajuína
1a edição
Abril de 2023
Preparação de originais/revisão:
Lygia Caselato
Contato com o autor:
hjgamal@gmail.com
Texto publicado conforme o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990 (Decreto Legislativo de no 54, de 1995).
Proibida a reprodução total ou parcial desta obra, por qualquer meio e para qualquer fim, sem a autorização prévia, por escrito, do autor. Obra protegida pela Lei de Direitos Autorais 9.610/98.
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
[CIP]
Dados Internacionais da Catalogação na Publicação
G186d Gamal, Haron
Dias dúbios. Haron Gamal. Cotia, 1. ed. São Paulo, Editora Cajuína, 2023.
266 p.
ISBN: 978-65-85121-24-8 (impresso)
ISBN: 978-65-85121-26-2 (epub)
1. Literatura Brasileira. 2. Romance
II. Título. II. Haron Gamal
CDD: B869.3
CATALOGebooktransparenteSUMÁRIO
CAPA
DIAS DÚBIOS
CATALOGAÇÃO
PRIMEIRA PARTE
SEGUNDA PARTE
TERCEIRA PARTE
EPÍLOGO
PRIMEIRA PARTE
Os domingos são dias dúbios. Durante a manhã, há certo frescor, podemos passear sob o sol ou sob as sombras das árvores. Caso estejamos à beira-mar ou em um parque florestal, a sensação é muito agradável. Durante as horas que antecedem ao almoço, convidamo-nos a uma bebida. O dia, então, mergulha numa certa magia, a alma se expande, lembranças e sentimentos vêm à superfície e por pouco não se eternizam. À medida que a tarde avança, no entanto, começamos a sentir a outra face do dia, o enfado e o cansaço apresentam-se pesados, o desânimo nos acerca. É o sinal de um tipo de fim, que marcha sorrateiro, corroendo as poucas horas de prazer que ainda nos resta. Já não vivemos o presente, mas antecipamos o término do dia, uma espécie de morte por etapas, e não há amigos que nos salvem.
Era um desses domingos parecidos com outro qualquer, eu estava em casa – ainda não passava das onze da manhã –, olhava a tela do computador, uma possível aula para o dia seguinte. Hesitava entre um poema de Manuel Bandeira ou um texto de um obscuro escritor dos anos 1970. Tinha a intenção de, depois, descer à rua, ir a um bar, beber uma cerveja, conversar com alguém, quando recebi um telefonema de minha irmã. No momento em que ouvi a sua voz, imaginei que não vinham boas notícias. Ela não tinha o costume de telefonar aos domingos, sobretudo, pela manhã. Dizia estar no hospital com nossa mãe. Esta não estava nada bem.
Anotei o nome e o endereço do local. Vesti uma roupa adequada e saí imediatamente. Segui à estação General Osório, do metrô. Como o hospital ficava na Tijuca, era a melhor opção de transporte. O dia quente de verão atraía as pessoas à praia, muitas chegavam no metrô. Havia muitos jovens, moças e rapazes, mulheres com crianças pequenas, homens com isopor guardando cervejas ou outras bebidas. A caminho da plataforma, a algazarra era intensa, jovens gritavam e cantavam. Sinal de alegria. Os seguranças da estação mantinham-se alertas, pois não queriam problemas. As pessoas que transitam por ali nos dias de praia mostram-se mais agitadas do que os torcedores dos times de futebol em dias de clássicos.
Quando a composição entrou na estação, trazia poucas pessoas, pois eu embarcava no sentido contrário ao da multidão que chegava. Sentei-me num dos lugares do banco comprido, que acompanha todo o vagão, e só então me lembrei de que poderia ter trazido um livro para me distrair durante a viagem.
O trem teria de percorrer quinze ou dezesseis estações, trinta e cinco ou quarenta minutos até chegar à estação onde eu desceria. Depois, eu caminharia até o tal hospital, por mais uns quinze minutos.
Dentro do vagão, vivi o acaso de sentar- me ao lado de uma mulher de seus quarenta e poucos anos. Ela me perguntou sobre a transferência para a linha 2. Informei-lhe onde deveria descer. Acabamos conversando um pouco. Ela ia a um bairro de subúrbio, porque visitaria uma pessoa doente. Nada falei sobre minha mãe, o que fiz foi escutar a história que ela tinha para contar. Um mal maior seria lhe narrar algo semelhante, minha mãe doente no hospital, talvez na mesma situação da pessoa a quem ela visitaria. Sua tia havia adoecido gravemente. Ela não a visitava havia tempo. Não trazia o aspecto triste, estava bem-vestida. O que chamava a atenção era o seu corpo esbelto, um pouco acima do peso. Imaginei-a mais velha, seria talvez mais redonda do que agora. A vida é injusta, cheguei a pensar. Ela saltou na estação Estácio. Na seguinte, Afonso Pena, foi a minha vez de deixar o metrô.
Ao chegar à superfície, deparei-me com uma praça muito arborizada, construída em dois níveis, um para a caminhada e outro para uma boa conversa com os amigos ou para as crianças brincarem. Todo o seu perímetro era bordeado por um gramado que a separava do calçamento. Segui na direção norte; à primeira rua, dobrei à direita. Depois de caminhar cerca de quinhentos metros até à Mariz e Barros, rua principal da região, entrei à esquerda, atravessei e alcancei a Professor Gabizo. Aos domingos, por volta das doze horas, o local é quase deserto. Pela calçada do lado oposto, segui ao Hospital Israelita.
Todo hospital tem suas peculiaridades. O que me surpreendeu logo na chegada foi a entrada da emergência. Era acanhada, as pessoas estavam sujeitas a entrar por engano pela porta principal, que se abria para a recepção, onde uma funcionária deveria apontar o caminho correto. Casas de Saúde não são locais agradáveis, tanto mais em dias de domingo. Após a porta de entrada da emergência, voltando-se para a direita, percebiam-se várias filas de cadeiras onde algumas pessoas aguardavam a chamada para o atendimento médico. Quem chegava em estado grave, era encaminhado no mesmo momento para os médicos de plantão, mas aqueles que não demonstravam gravidade tinham de esperar a sua vez. Reparando-se na fisionomia das pessoas, percebia-se certa insatisfação.
Descobri minha irmã à entrada de uma sala de atendimento, já longe das pessoas e da recepcionista. Tinha um ar de preocupação. Cumprimentou-me logo que entrei. No local, havia quatro ou cinco pessoas dispostas em poltronas hospitalares, onde repousavam ou tomavam soro. Caminhei até a poltrona onde minha mãe repousava, cumprimentei-a com poucas palavras, perguntei como se sentia, mas logo reparei que não demonstrava nenhuma reação ante à minha presença. Voltei ao corredor e comuniquei à minha irmã.
– Não é possível, agora mesmo ela estava conversando comigo.
Entrou na sala para constatar o que eu presenciara. Saiu de lá e foi diretamente à pequena saleta da plantonista. Uma médica muito jovem, de no máximo trinta anos, veio com ela constatar o problema. Após chamar minha mãe várias vezes pelo nome e não obter resposta, declarou que o quadro deveria ter-se agravado e que ela precisaria ficar internada para exames mais detalhados. Eu e minha irmã nos entreolhamos, procurávamos um sentido para o que estava acontecendo. Durante alguns minutos, ficamos perdidos em conjecturas.
Saí da sala e fui até a máquina de café. Apertei o botão do expresso curto e esperei encher o pequeno copo de plástico. Olhei de novo para a sala de espera diante da recepcionista, e achei que as pessoas eram as mesmas do momento em que eu havia chegado. Senti um pouco de cansaço, ou de enfado, não sei definir bem. Não estava muito preocupado com minha mãe, mas comigo. Perdia o domingo, encontrava-me num hospital distante de casa, não sabia ainda durante quanto tempo permaneceria. Quando despertei de meus pensamentos, senti um grande mal-estar, fui tomado pelo sentimento de culpa. Ao mesmo tempo, não achei que estava errado, tinha direito ao domingo, a um dia de descanso, era normal pensar assim. Minha mãe fora passar mal logo naquele dia. Outras pessoas pensariam e agiriam do mesmo modo. Enquanto tomava o café, imaginei o dia em que aconteceria comigo algum tipo de mal súbito. Meu filho receberia um telefonema e viria correndo ao hospital em busca de notícias. Naqueles poucos momentos em que terminava o copinho de café, tive dúvidas se ele teria o mesmo sentimento que o meu. Quis esquecer o futuro sinistro, certo para todos nós. Percebi, numa súbita intuição, que mamãe não duraria muito tempo.
Ainda ficamos no hospital até as 19h00, quando acabamos de tratar dos trâmites burocráticos relativos à internação. Ao deixarmos o local, já era noite. Minha irmã estava triste, levava uma sacola com a roupa que nossa mãe usava até há poucos instantes.
Pensei em andar até a estação do metrô, e voltar pelo mesmo caminho pelo qual viera horas antes, mas a rua estava deserta, o começo de noite não portava ares de alegria e o bairro onde eu me encontrava tinha a fama de ser perigoso a partir daquele horário.
Um táxi parou diante do prédio do hospital. Perguntei ao motorista se estava livre. Sim, respondeu. Entrei e disse aonde ia. Usávamos máscaras. O Covid 19 ainda contaminava. Conversamos um pouco, ora sobre o itinerário, ora sobre a noite de domingo. A pandemia entrou na conversa por causa das pessoas que já não conseguiam ficar em casa. O motorista era favorável que elas passeassem, mas que usassem máscaras e mantivessem a distância de precaução. Não podia ser diferente. Caso todos ficassem num constante confinamento, ele não teria passageiros.
– Sempre tem alguém que precisa sair, como o senhor agora, que vem de um hospital. É lógico que, se a situação estiver normal, a gente ganha mais dinheiro.
Ele tinha razão, precisava das pessoas para ganhar o seu dinheiro. A vida de um motorista não era fácil. Lembrei-me do começo da pandemia, há quase dois anos, quando muitos taxistas ficaram em dificuldades e a prefeitura chegou a lhes distribuir cestas básicas. Naquele momento, no entanto, a situação melhorara, as pessoas se acostumaram a conviver com o Covid 19 e, pouco a pouco, voltavam à vida anterior.
O carro saiu do túnel Rebouças, as luzes da Lagoa Rodrigo de Freitas apareceram de repente iluminando o que faltava à noite de domingo. Trafegávamos com os demais veículos que levavam outras pessoas, outras preocupações, outras esperanças, outros desejos. Esqueci, por alguns segundos, o que me levara a sair de casa na tarde que se acabara, o que me levava adiante dentro daquele táxi, e experimentei a beleza que o final de domingo ainda era capaz de proporcionar.
* * *
Ao entrar em casa, recebi um telefonema do meu irmão. Como morava em outra cidade, não podia vir para se inteirar do problema que passaríamos a viver com a doença de nossa mãe.
– Escute – ele logo foi falando, – mamãe tem conta em banco, deve ter uns cem mil. A gente tem que arranjar um jeito de retirar esse dinheiro para pagar as contas e as despesas dela a partir de agora.
Durante aquele momento, apenas ouvi, não tive vontade de responder. Confesso que ainda não havia pensado na nova situação. Nossa mãe tinha 84 anos, estava com suspeita de AVC, ficara num hospital onde era beneficiária.
Ele continuou:
– A partir de agora, a gente vai precisar de cuidadora. Caso ela tenha alta e fique com sequelas, o custo vai ser elevado. Como vamos manter essas despesas?
Eu ainda não tinha o que responder. Estava preocupado com a minha vida, com o trabalho no dia seguinte, por isso continuei em silêncio. No final, afirmei:
– Vamos pensar sobre isso a partir de amanhã.
* * *
Na segunda-feira pela manhã, saí para escola onde sou professor. Nada comentei sobre a véspera, tentei dar as aulas como se nada tivesse acontecido. Voltei para casa após o almoço. Pensava sobre o meu livro enviado à editora, que estava em fase de revisão e seria publicado em breve. O editor me enviava e reenviava trechos revisados para que eu desse o aval. Na verdade, não havia muitas mudanças, às vezes um artigo fora de lugar ou um pronome repetido apareciam marcados em vermelho. A intenção era que eu decidisse o que seria melhor. O maior incômodo, para mim, no novo romance, eram alguns personagens inspirados em professores existentes em uma das escolas onde trabalhava. Tinha certeza de que, caso lessem meu livro, talvez se sentissem contrariados. Em primeiro lugar, poderiam dizer que eu deveria ter lhes pedido autorização para figurarem num romance; em segundo, poderiam achar que não estavam representados como acreditavam realmente ser, e que a minha visão sobre eles era equivocada. Eu refletia sobre os argumentos a serem utilizados em minha defesa.
A literatura é fruto da imaginação do autor, não tem compromisso com as pessoas reais; outro argumento: as pessoas e o local representados não eram verdadeiros, eles estavam criando falsas deduções. O problema, no entanto, era o nome da escola, que eu mantivera. Então, mesmo com nomes trocados, eles se reconheceriam.
Em literatura, não conseguimos escrever a partir do nada, é preciso ter uma base, e a partir desse ponto, vai-se em frente. A maior parte dos autores vive em busca de pessoas que seriam dignas de habitar a sua obra, e é verdade que há gente que nasceu com tal destino. Agora, vá falar isso para tais pessoas.
* * *
Nos dias que se seguiram, minha irmã me telefonou todas as noites. Informava sobre o estado de nossa mãe e enumerava uma porção de reclamações e de problemas que teríamos dali para frente. Eu tentava dizer que seria melhor esperar as coisas acontecerem, não adiantava tanta preocupação.
Dedicava-me ao trabalho de escritor e de professor. Quanto ao segundo, o final do ano estava próximo, os alunos teriam de ser avaliados. Como a pandemia tornara o ensino mais fácil a todos eles (pelo menos em teoria), qualquer trabalho serviria de medida para a nota final. Isso facilitava as coisas.
Na quinta-feira da mesma semana, fui ao CTI do hospital. Ao entrar, a enfermeira avisou que minha mãe estava de alta do local e que seria transportada à enfermaria. Era preciso alguém da família para tratar da transferência. Como era idosa, a partir de então necessitaria de um acompanhante. Durante o dia, o regulamento do hospital permitia que ela ficasse sob os cuidados do pessoal da enfermagem, mas à noite teríamos de contratar alguém para ficar ao lado dela. O problema era o preço deste profissional. A diária nos levaria todas as economias, caso a internação se prolongasse.
* * *
Quando cheguei ao meu apartamento, percebi uma mensagem do editor de meu livro. Perguntava se eu poderia me apressar na leitura da revisão do texto.
Amaldiçoei a minha vontade de escrever. De que valiam tantas histórias, palavras combinadas, metáforas, se na hora da publicação era todo aquele inferno? Talvez fosse melhor suspender a publicação, aguardar a solução da doença de minha mãe. No entanto, nada lhe comuniquei, preferi aguardar alguns dias até dar a resposta. Ganhava tempo.
Quem lia os autores brasileiros? O que eles, ou nós, temos a dizer? Era verdade. Será que eu tinha alguma coisa de importante a dizer? Será que as minhas histórias valiam o trabalho e a preocupação? Tais dúvidas sempre frequentaram a mente de muitos escritores. Às vezes, ouvia alguém dizer que podemos achar sem interesse o que escrevemos, mas há leitores que encontram algo importante. Na verdade, não sabemos o que é importante para cada um, por isso, nossas histórias fazem sentido. Caso queiramos ser um Dante Alighieri ou um James Joyce, não vamos escrever nada. Além de outras implicações, seríamos muito pretensiosos.
Também não sei se Dante ao escrever a Divina Comédia tinha compreensão sobre a grandiosidade da obra que produzia. Já li em algum lugar que a narrativa lhe permitiu colocar no inferno a maior parte de seus inimigos. Caso o objetivo tenha sido esse, ele fracassou. Hoje ninguém mais sabe quem eram os inimigos de Dante.
O editor me indicou alguém para fazer uma revisão mais apurada, porque era esse o meu desejo. Ele me achava muito perfeccionista. Entrei em contato, ouvi o preço e quase de imediato depositei a quantia. Enviei o texto, pedi que não demorasse.
Enquanto o romance estava em revisão, decidi ler e consertar outro texto, escrito por mim após uma viagem a Madri. Tratava-se de uma novela, sessenta páginas, espaço dois, fonte 12. Achei que poderia lançar dois livros ao mesmo tempo, cheguei mesmo a enviar uma mensagem ao editor. Ele disse que eu poderia enviar o texto, leria durante o mês de janeiro. Achei, porém, melhor pensar no livro que já enviara e naquele momento encontrava-se em revisão. Leria com atenção o texto de Madri, e o rescreveria.
* * *
No sábado seguinte, dei aulas pela manhã, depois fui direto ao hospital ficar ao lado de minha mãe. O primeiro problema foi o transporte depois que a aula terminou. Não sabia que ônibus tomar. Quando entrei num, descobri que era o de percurso mais demorado. Foram necessárias quase duas horas de viagem. Eram 14 horas, tive de escutar muitas reclamações de minha irmã. Ela estava de plantão desde o dia anterior.
O sábado à tarde sempre convida a um passeio, mas eu estava numa enfermaria de hospital, onde minha mãe, inerte, jazia sobre a cama, após um AVC que lhe deixava paralisada em um dos lados, além de privá-la da possibilidade de fala. Na enfermaria, havia outros pacientes; no teto, um trilho permitia fechar a cortina e isolar o enfermo do que acontecia nos outros leitos. A maior parte dos pacientes, no entanto, permanecia à vista, cada um com seu acompanhante.
Sentei-me num estofado próximo à parte inferior da cama, minha intenção era descansar. Eram quase três horas da tarde e eu não almoçara. Bem que minha irmã poderia ter aceitado o almoço e o guardado para mim, mas ela não era pessoa de pensar nos outros. Levantei-me e fui até a cabeceira da cama, onde minha mãe, de olhos abertos, parecia absorta ao que acontecia à sua volta. Olhei para ela e falei algo. Ela não entendeu, como não entenderia a maior parte das minhas tentativas de comunicação nos dias que se seguiram.
Como é estranha a vida, de repente somos abatidos por uma doença e passamos a uma vida vegetativa. Olhei mais uma vez para o seu rosto. Ela mexeu a cabeça, em sinal de reprovação, e depois bateu na cama com uma das pernas. Entendi que, caso ficasse paralisada dali para frente, preferia morrer.
Nos países onde a eutanásia é permitida, as pessoas podem escolher uma morte assistida em vez de ficarem paralíticas e sem poder falar para o resto da vida. Tentei me lembrar de alguma fase da vida de minha mãe, se ela alguma vez mencionara o desejo de morrer, caso abatida por uma doença como a daquele momento.
Meia hora depois, como sentia fome, perguntei à acompanhante do paciente ao lado se poderia vigiar a minha paciente enquanto eu me ausentasse. Ela aquiesceu. Saí da enfermaria, em alguns passos cheguei ao elevador. No andar térreo, dobrei à esquerda, passei por trás da recepção, da porta de entrada, e de três largos conjuntos de estofados; à direita, avistei os guichês de atendimento, mais adiante, sempre em frente, ficava a porta de acesso à cantina.
Coloquei o celular sobre a mesa e pedi à garçonete um sanduíche. Ela sorriu, como se a minha presença melhorasse a sua tarde de trabalho. Não se dava conta de que trabalhava num hospital onde muitas pessoas não se curavam, morriam e deixavam transtornados os que ficavam.
– Um café também, por favor, acrescentei.
– Comum ou expresso?
– Expresso.
Não havia ninguém nas outras mesas. Apenas eu e as duas funcionárias preenchíamos o vazio daquela tarde de sábado. Talvez ainda fosse cedo para a hora do lanche.
Num hospital, somos seres sozinhos. Cada um com a sua doença, ou com o seu doente; com esperanças e angústias. O momento do café é o intervalo, um pequeno descanso, uma espécie de intercâmbio com o mundo exterior, o mundo dos sãos.
A moça, vinda da parte interna da cantina, trouxe um prato com o meu sanduíche, pousou-o sobre a mesa e foi pegar o copinho de café.
– Obrigado – eu disse, e olhei-a durante alguns segundos.
Ela voltou para dentro do balcão, sua fisionomia agora era séria, mas emanava alguma simpatia.
O que eu estaria fazendo naquele momento se não estivesse acompanhando a paralisia de minha mãe, consequência do tal AVC? Talvez em casa ouvindo música, ou lendo um romance, quem sabe me preparando para ir ao cinema e depois a um restaurante.
A enumeração de eventos que desfilavam dentro da minha cabeça produziu-me outra vez alguma culpa. Durante muito