Reconhecimento de ofício das questões de ordem pública em sede de apelação: restrição ao capítulo impugnado
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Sobre este e-book
Observa-se em sede recursal interessante repercussão que constitui o objeto específico do presente livro, é o caso de reconhecimento de questão de ordem pública em capítulo que não foi objeto de impugnação, situação que necessita ser analisada à luz da teoria dos capítulos de sentença, dos efeitos decorrentes da interposição do recurso, de sua teoria geral e dos princípios norteadores do processo civil.
Tal exame se mostra relevante quando se verifica, na jurisprudência e doutrina, que o tema é bastante controvertido e escasso, situação que estimula a necessidade do presente estudo para auxiliar na compreensão do tema e fomentar o debate nas searas jurídica e social.
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- Nota: 5 de 5 estrelas5/5Excelente abordagem pra um assunto tão carente de visão prática.
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Reconhecimento de ofício das questões de ordem pública em sede de apelação - Débora Gonzaga Pontes
1. DAS QUESTÕES DE ORDEM PÚBLICA: RECONHECIMENTO DE OFÍCIO
Inicia-se o presente trabalho com o estudo do elemento estruturante desta pesquisa, a chamada ordem pública
.
Em diversos ramos do direito, é possível verificar normas jurídicas identificadas pelo legislador como de ordem pública. Um exemplo é o disposto no art. 1º do Código de Defesa do Consumidor, que proclama serem suas disposições de ordem pública e interesse social
, bem como o disposto no art. 377 da Consolidação das Leis do Trabalho, que aduz serem as medidas de proteção ao trabalho das mulheres considerada de ordem pública
.
Disposições como essas podem ser verificadas em quase todos os diplomas normativos, além de menções de sua identificação no trabalho da doutrina e na jurisprudência. Mas o que vem a ser norma de ordem pública?
Para sua correta caracterização, a primeira tarefa a se realizar é compreender o que se entende por ordem pública
, tarefa esta de grande dificuldade, dada a complexidade do tema, pois a ordem pública é um axios, ou seja, um valor, que reflete a cultura e a história de um país. Por essa razão, ela está em constante mutação
¹.
Logo, a ordem pública tem a característica de modificar-se no tempo e no espaço, compreensão essa que justifica a dificuldade de se conceituar o instituto, devido à fluidez de seu conteúdo. O melhor caminho para entender o que é ordem pública e, consequentemente, o que é abarcado nas normas de ordem pública
, é identificar e destrinçar todos os seus elementos.
Inicialmente, vale a compreensão de Maria Coeli, ao citar as palavras de Miguel Seabra Fagundes, de que a ordem pública pode assumir dupla conotação:
Ora aparece como designativa de parâmetros basilares de comportamento social (no mais amplo sentido, isto é, com relação aos costumes morais, à estrutura e vida de família, à economia geral, etc.), ora diz com o clima de equilíbrio e paz indispensável à convivência coletiva do dia-a-dia².
É, pois, em seu sentido mais amplo que se busca compreender esse instituto, a partir da ideia de que a ordem pública é indissociável das exigências sociais, servindo como elemento garantidor de suas necessidades em dado contexto histórico e cultural, sendo certo que diz respeito a tudo quanto se considera como indispensável à manutenção da ordem social
³.
As normas de ordem pública são aquelas cuja observância se torna necessária ao interesse geral; são as que interessam mais à coletividade que aos particulares
⁴. Logo, são normas que amparam exigências sociais indispensáveis ao convívio e bem comum, e revelam preponderantemente uma finalidade pública, coletiva
⁵.
Verifica-se, assim, estreita relação entre ordem pública e interesse da coletividade. Pode-se afirmar, portanto, que é o interesse público o núcleo essencial das normas de ordem pública e seu elemento indissociável. Definindo-se o interesse público, a compreensão da matéria de ordem pública facilmente é obtida.
No que concerne à caracterização do interesse público, verifica-se que este tem um compromisso com o bem-estar geral, visando atender os anseios da sociedade e resguardar aqueles direitos e necessidades erigidos como essenciais e compatíveis com o Estado Democrático de Direito, é o interesse resultante do conjunto de interesses que os indivíduos pessoalmente têm quando considerados em sua qualidade de membro da sociedade e pelo simples fato de o serem
⁶.
Celso Antônio Bandeira de Mello, ao conceituar o interesse público, alerta sobre comum erro em sua definição:
Interesse público é o interesse do todo, do próprio corpo social, para precatar-se contra o erro de atribuir-lhe o status de algo que existe por si mesmo, dotado de consistência autônoma, ou seja, como realidade independente e estranha a qualquer interesse das partes. O indispensável, em suma, é prevenir-se contra o erro de, consciente ou inconscientemente, promover uma separação absoluta entre ambos, ao invés de acentuar, como se deveria, que o interesse público, ou seja, o interesse do todo, é função
qualificada dos interesses das partes, um aspecto, uma forma específica, de sua manifestação.⁷
O interesse público, portanto, pode ser entendido como um desdobramento dos interesses individuais, desde que de acordo com a vontade coletiva. Essa avaliação deve levar em consideração se determinado interesse individual é tão relevante a ponto de ser essencial para toda a sociedade e se promove valores benéficos para o convívio social e o bem-estar coletivo. Logo, é equivocada a percepção de que o interesse público é o oposto do interesse individual ou que são conceitos contraditórios.
A seleção dos valores de interesse público essenciais ao convívio em sociedade tem como base diversos fatores, sejam eles sociais, jurídicos, morais e políticos da sociedade em que se inserem, porém devem sempre compreender uma ordem jurídica democrática e justa.
No que concerne à extração do interesse da coletividade de acordo com uma ordem jurídica justa e democrática, vale esclarecer que o princípio da dignidade humana é fundamento central do conceito de interesse público. Nos dizeres de Justen Filho:
Apenas pode-se atribuir relevância ao interesse público quando imediatamente submisso ao princípio da dignidade da pessoa humana. Em nenhum momento, pode sacrificar-se a dignidade de um único particular a pretexto de realizá-lo, pois não há interesse público que autorize o desmerecimento da dignidade de um sujeito privado⁸.
Desse modo, o interesse público representa os anseios da sociedade, tendo como âmago a dignidade da pessoa humana, jamais podendo cercear esse valor fundamental. Como explica Maria Coeli Simões Pires:
Qualquer demanda social que importe em sacrifício ou afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana não pode ser abraçada pelo interesse público e pelo direito, já que a dignidade, de si, conteúdo ético, supera tal plano e se insere no Direito como fundamento normativo, síntese da liberdade e da igualdade.⁹
Assim, a proteção à dignidade humana é ponto intrínseco que deve estar presente na escolha dos interesses fundamentais da comunidade, na categoria de interesse público. Apenas partindo dessa noção é que se justifica o instituto.
No mais, considerando as bases apresentadas, verifica-se nas normas de ordem pública íntima ligação com o interesse público, são aquelas que respeitam a toda a sociedade, mais do que a cidadãos individualmente considerados, aquelas que se inspiram no bem comum, mais do que nos interesses de alguns
¹⁰.
Trata-se de norma que ultrapassa o interesse privado e condiz com o interesse social, interesse esse verificado na pluralidade de necessidades dos diversos grupos sociais, e não no interesse do Estado, dissociado dos interesses dos diferentes grupos que o compõem.
Acerca do tema, vale transcrever a definição de Ricardo de Carvalho Aprigliano:
As leis ou normas de ordem pública resumem e retratam aspectos considerados pelo sistema jurídico brasileiro como integrantes de seu núcleo essencial, compondo o universo mais ou menos amplo dos valores éticos, sociais, culturais, econômicos e até religiosos, que a sociedade brasileira elegeu e procura preservar. Tendo em vista a conformação do Estado de Direito brasileiro, tais valores decorrem direta ou indiretamente de princípios constitucionais e, tratando-se de sistema de direito codificado, também da lei, na medida em que torna concretos os preceitos constitucionais.¹¹
Assim, as matérias de ordem pública consagradas pelo ordenamento jurídico têm por objeto regras de relevância para a realização do interesse da coletividade que pressupõem "a identificação da ratio que a informa, dos fundamentos que a estruturam e da finalidade a que se dirige – que há de ser imediatamente a realização do bem comum"¹², sendo sempre pautadas pelos princípios norteadores da ordem jurídica posta.
Aduz, ainda, o referido autor que se podem extrair as normas de ordem pública dos princípios constitucionais e da lei positiva. Ora, certo é que se um elemento é importante para o interesse da coletividade, a ponto de ser essencial aos valores que esta elegeu, tal conteúdo estará protegido por uma lei, um princípio, sendo óbvio que a concreta individualização dos diversos interesses qualificáveis como públicos só pode ser encontrada no próprio Direito Positivo
¹³.
Logo, o ordenamento vigente é o núcleo irradiador de matérias essenciais aos valores da sociedade que a elegeu e, como tal, serve como ponto de partida para a identificação de um conteúdo como de ordem pública.
Sobre a identificação das normas de ordem pública, discorre Cândido Rangel Dinamarco:
São de ordem pública todas as normas (processuais ou substanciais) referentes a relações que transcendam a esfera de interesses dos sujeitos privados, disciplinando relações que os envolvam mas fazendo-o com atenção ao interesse da sociedade como um todo, ou ao interesse público.¹⁴
Neste desiderato:
As normas de ordem pública relacionam-se à organização da vida social em seus