Justiça Constitucional
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Justiça Constitucional - Jorge Miranda
Justiça Constitucional
2018
COORDENAÇÃO GERAL
Jorge Miranda
Fernando Antônio Dias Menezes
João José Custódio da Silveira
COORDENAÇÃO CIENTÍFICA
Dulcilene Aparecida Mapelli Rodrigues
Moacir Camargo Baggio
logoAlmedinaJUSTIÇA CONSTITUCIONAL
© Almedina, 2018
COORDENAÇÃO GERAL: Jorge Miranda, Fernando Antônio Dias Menezes, João José Custódio da Silveira.
COORDENAÇÃO CIENTÍFICA: Dulcilene Aparecida Mapelli Rodrigues, Moacir Camargo Baggio.
DIAGRAMAÇÃO: Almedina
DESIGN DE CAPA: FBA
ISBN: 9788584934713
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Justiça constitucional / coordenação geral Jorge
Miranda, Fernando Antônio Dias Menezes, João
José Custódio da Silveira ; coordenação científica Dulcilene Aparecida Mapelli Rodrigues,
Moacir Baggio. -- São Paulo : Almedina, 2018.
Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-85-8493-471-3
1. Constitucionalismo 2. Constituições - História 3. Democracia 4. O Estado I. Miranda, Jorge.
II. Menezes, Fernando Antônio Dias. III. Silveira,
João José Custódio da. IV. Rodrigues, Dulcilene Aparecida Mapelli. V. Baggio, Moacir.
18-21429 CDU-342.4
Índices para catálogo sistemático:
1. Constituição e democracia : Direito constitucional 342
.4 Maria Paula C. Riyuzo - Bibliotecária - CRB-8/7639
Este livro segue as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (1990).
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte deste livro, protegido por copyright, pode ser reproduzida, armazenada ou transmitida de alguma forma ou por algum meio, seja eletrônico ou mecânico, inclusive fotocópia, gravação ou qualquer sistema de armazenagem de informações, sem a permissão expressa e por escrito da editora.
Novembro, 2018
EDITORA: Almedina Brasil
Rua José Maria Lisboa, 860, Conj.131 e 132, Jardim Paulista | 01423-001 São Paulo | Brasil
editora@almedina.com.br
www.almedina.com.br
APRESENTAÇÃO DO GRUPO DE PESQUISAS EM JUSTIÇA CONSTITUCIONAL (FDUL/FDUSP) E NOTAS EXPLICATIVAS DOS ORGANIZADORES DA COLETÂNEA
Durante o ano letivo de 2013-2014 do Doutoramento em Ciências Jurídico-Políticas, na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL), começou a tomar forma a ideia de estruturar um grupo de estudos em Justiça Constitucional a partir dos interesses acadêmicos comuns dos ora organizadores desta coletânea.
Os estudos evoluíram a partir destas bases fáticas e foram se aprofundando gradativamente ao longo dos últimos anos, de acordo com os progressos investigativos do grupo, até receberem o apoio expresso do Professor Doutor Jorge Miranda. Com isso, foi possível começar a se pensar na materialização de um projeto de pesquisa propriamente dito, que acabou por ser efetivamente elaborado e levado à ciência do Conselho Científico da FDUL (cf. Ata nº10/2014 daquele Conselho).
Nesta altura, para dar o impulso final à transformação daquele grupo de estudos em um grupo de pesquisas, surgiu o também fundamental interesse e apoio do Professor Doutor Fernando Dias Menezes, da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – FDUSP, cujo respaldo foi decisivo à ideia de internacionalização do projeto para que ele passasse a estar, a partir daí, também ligado a uma instituição de ensino brasileira, mais precisamente à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Foi assim que no ano de 2016 foi formalizada a criação do Grupo de Pesquisas sobre Justiça Constitucional, integrado por pesquisadores ligados à Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) e por pesquisadores da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP), sob a liderança do Professor Doutor Fernando Menezes e com a participação do Professor Doutor Jorge Miranda.
É neste contexto, pois, que se insere a produção desta coletânea.
Ela é o resultado concreto de todos os esforços de aprofundamento e pesquisa acadêmica de seus organizadores ao longo dos últimos anos, sob orientação dos já mencionados professores participantes do Grupo de Pes- quisas em Justiça Constitucional.
Feita esta apresentação, que permite a contextualização do ambiente de produção e de organização desta coletânea e que proporciona um esclarecimento mínimo acerca de suas razões de ser e de seus propósitos, cabe ainda elucidar alguns pontos relativos ao procedimento adotado para a sua formatação e apresentação final.
Como se sabe, a organização e a efetiva materialização de uma obra coletiva, mormente da natureza e da amplitude da presente, por si só, já não é um empreendimento de fácil consecução.
A pretensão de busca pela maior participação possível dos mais variados juristas da ampla área de estudos em consideração, filiados às mais diversas correntes doutrinárias e radicados nos mais distintos países incrementa ainda mais esta dificuldade.
Por consequência, isto exige que a coletânea seja organizada de modo aberto e flexível no que tange à sua final formatação. Do contrário, pode restar inviabilizada a concretização do projeto nos termos em que originalmente concebido. Ou, ao menos, pode restar prejudicado o principal objetivo da obra, que é justamente o de permitir a livre manifestação dos pensadores da Justiça Constitucional sobre os temas desta área que entendam, eles próprios, constituírem-se naqueles de mais relevo na contemporaneidade.
Por conta disso é que se optou por uma relativa flexibilidade quanto à forma de apresentação dos textos, dando-se prioridade à divulgação dos importantes conteúdos relativos à Justiça Constitucional na atualidade, escolhidos desembaraçadamente pelos próprios autores.
Por sua vez, o modo de organização e divisão da obra em partes ou seções, concebidas a partir da reunião temática dos diversos artigos que formam esta coletânea, visou apenas transformar aquele conjunto de escritos encaminhados livremente ao Grupo de Pesquisas em um livro propriamente dito, dotado de um mínimo de coerência interna, garantindo-se, assim, a preservação da liberdade de produção de conteúdos pelos próprios autores dos textos.
De resto, optou-se pela exposição dos temas na ordem daqueles mais gerais para os mais específicos.
Quanto à titulação dos autores, presente ao início de cada artigo, obviamente não espelha a completude de seus currículos. Optou-se por dar relevo à atuação acadêmica do autor e à sua formação final, além da atividade profissional da área do Direito quando ultrapassasse os limites da academia. De qualquer forma, apenas sugeriu-se aos autores esta diretriz, sendo eles os definidores últimos da síntese de suas credenciais e, eventualmente, os responsáveis pela dispensa de sua apresentação.
Quanto às citações e bibliografia, a orientação foi no sentido de que a uniformidade fosse obtida através do método de citação autor-data, bem como da apresentação de referências bibliográficas finais. A uniformidade de apresentação dos artigos foi buscada, e em grande parte, atingida, através da observância destes critérios.
Entretanto, novamente fazendo prevalecer a relevância do conteúdo sobre a forma, foram respeitadas as diferentes escolhas de alguns autores nesta questão, mormente dos estrangeiros não afeitos às regras nacionais, quando, por um motivo ou outro, preferiram apresentar as referências bibliográficas e as citações de outra maneira.
Acredita-se firmemente que, com tudo isso, o ganho em termos de difusão do conhecimento na comunidade de juristas foi muito maior do que o eventual prejuízo à forma final da obra que a flexibilidade dos organizadores na formatação desta coletânea tenha causado.
Feitos estes breves esclarecimentos, resta formalizar publicamente o agradecimento a todos os autores que puderam aceitar o convite de participação neste esforço de pesquisa e difusão de conhecimento para o aprimoramento do estudo da Justiça Constitucional, bem como àqueles que, pelas mais variadas e justificadas razões, não puderam fazê-lo. A cortesia e a receptividade à iniciativa foram sempre a marca deixada por todos eles para o Grupo de Pesquisas em Justiça Constitucional em todos os contatos feitos, sem exceção.
Por último, deixa-se feito o registro de que esta obra, resultado dos primeiros esforços do GPJC, intenta ser apenas o marco inicial de um trabalho mais duradouro que venha a resultar noutras publicações aptas à contribuição com as investigações nesta área do conhecimento jurídico. O tempo dirá se esta intenção se mostrará de cumprimento viável, mas, como dito, nada apagará a materialização de todos estes esforços nesta obra primeira que se acredita apta a contribuir de modo efetivo com o progresso das investigações no campo de estudos da Justiça Constitucional.
Encerradas estas notas explicativas, os organizadores desta coletânea desejam a todos os leitores um bom proveito na leitura dos artigos que seguem.
Dulcilene Aparecida Mappelli
João José Custódio da Silveira
Moacir Camargo Baggio
Lisboa/ São Paulo, agosto de 2018.
CONSTITUIÇÃO E DEMOCRACIA
Jorge Miranda
Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Direito
da Universidade de Lisboa, Professor Catedrático da Faculdade de Direito da
Universidade Católica Portuguesa e Instituto de Ciências Jurídico-Políticas (ICJP).
Investigador do Centro de Investigação de Direito Público (CIDP)
Constituição
1. O constitucionalismo moderno
I - As Leis Fundamentais
das monarquias anteriores aos séculos XVIII e XIX não regulavam senão muito esparsamente a atividades dos governantes e não traçavam com rigor as suas relações com os governados; eram difusas e vagas; vindas de longe, assentavam no costume e não estavam ou poucas estavam documentadas por escrito; apareciam como uma ordem suscetível de ser moldada à medida da evolução das sociedades. Não admira, por isso, que se revelassem inadaptadas ou insuportáveis ao iluminismo, ou que este as desejasse reconverter, e que as queixas acerca do seu desconhecimento e do seu desprezo – formuladas na Declaração de 1789 ou no preâmbulo da Constituição portuguesa de 1822 – servissem apenas para sossegar espíritos inquietos perante as revoluções liberais e para criticar os excessos do absolutismo.
Diferentemente, o constitucionalismo moderno – produto da rutura histórica ocorrida no século XVIII nas ideias e nos factos, ou apenas nas ideias – tende a disciplinar toda a atividade dos governantes e todas as suas relações com os governados; declara uma vontade autónoma de refundação da ordem jurídica; e declarando-a, pretende abarcar todo o âmbito do Estado, através de normas adequadas aos fins assumidos por governantes e governados em cada época histórica.
Como sintetiza Georges Burdeau, a Constituição aparece não já como um resultado, mas como um ponto de partida; já não é descritiva, mas criadora; a sua razão de ser não se encontra na sua vetustez, mas no seu significado jurídico; a sua força obrigatória decorre não do fatalismo histórico, mas da regra de direito que exprime¹.
II – O constitucionalismo moderno adota uma atitude voluntarista perante o Direito em geral e perante a Constituição em especial.
Vontade, porém, implica poder. Vontade de fazer ou refazer a Constituição implica poder constituinte. A Constituição, como ato de vontade, é também ato de poder. E, tomada ou não como um novo contrato social, torna-se incindível da coletividade.
Todavia, a Constituição moderna aspira a ser também produto da razão e serviço da razão. Coeva, no seu início, do jus-racionalismo e do iluminismo, a Constituição vai procurar, mais do que a institucionalização, a racionalização das relações políticas. Esta marca vai atravessar todos ou quase todos os regimes políticos e tipos constitucionais – liberais, do Estado social de Direito, marxistas-leninistas, fascistas – até aos nossos dias. Só os critérios variam consoante as ideologias e as estruturas do país de que se trate.
Decretada em certo momento, voltada para o futuro, esta Constituição teria sempre de revestir a forma de lei, de lei constitucional. E regista-se, com não menor evidência, como coincidem o triunfo da lei como fonte de Direito e o aparecimento da Constituição – e Constituição escrita. Lei significa emanação do Direito por obra da autoridade, lei constitucional emanação do Direito por obra da autoridade constituinte.
Eis então como elementos caraterizadores do constitucionalismo, independentemente das conceções de sucessivos e, por vezes, contrastantes regimes políticos:
a) A Constituição como fundação ou refundação do ordenamento estatal;
b) A Constituição como sistematização racionalizadora das normas estatutárias do poder e da comunidade;
c) A Constituição como lei, como conjunto de normas de fonte legal, e não consuetudinária ou jurisprudencial (mesmo se, depois, acompanhadas de normas destas origens).
III – A estes elementos importa acrescentar a supremacia que a Constituição obtém em face de todos os atos e de todas as normas que surjam nesse ordenamento. Disso tem-se logo consciência aquando das Revoluções americana e francesa, por meio de contraposição entre poder constituinte e poderes constituídos. Vale a pena recordar Hamilton e Sieyès.
Escreve Hamilton: Nenhum ato legislativo contrário à Constituição pode ser válido. Negar isto seria como que sustentar que o procurador é maior que o mandante, que os representantes do povo são superiores a esse mesmo povo, que aqueles que agem em virtude de poderes concedidos podem fazer não só o que o que eles autorizam mas também aquilo que proíbem. O corpo legislativo não é o juiz constitucional das suas atribuições. Torna-se mais razoável admitir os tribunais como elementos colocados entre o povo e o corpo legislativo, a fim de manterem este dentro dos limites do seu poder. Portanto, a verificar-se uma inconciliável divergência entre a Constituição e uma lei deliberada pelo órgão legislativo, entre uma lei superior e uma lei inferior, tem de prevalecer a Constituição
².
Por seu lado, Sieyès referindo-se às leis constitucionais, diz que elas são fundamentais, não porque possam tornar-se independentes da vontade nacional, mas porque os corpos que existem e atuam com base nelas não as podem afetar. A Constituição não é obra do poder constituído, mas sim do poder constituinte. Nenhum poder delegado pode alterar as condições da sua delegação
³.
Levadas às últimas consequências, estas afirmações equivaleriam a considerar a Constituição não apenas como fundação mas também como fundamentação do poder público e de toda a ordem jurídica. Porque é a Constituição que estabelece os poderes do Estado e que regula a formação das normas jurídicas estatais, todos os atos e normas do Estado têm de estar em relação positiva com as normas constitucionais, para participarem também eles da sua legitimidade; têm de ser conformes com estas normas para serem válidos.
No entanto, a ideia de Constituição como fonte originária, em termos lógico-jurídicos, do ordenamento estatal, como fundamento de validade das demais normas jurídicas e como repositório de normas diretamente invocáveis pelos cidadãos, não surgiu logo ou da mesma maneira em ambas as margens do Atlântico. Uma coisa é a verificação a posteriori que a doutrina possa fazer, outra coisa o processo histórico de formação dos imperativos normativos e dos correspondentes instrumentos conceituais.
Nos Estados Unidos, até porque a Constituição de 1787 foi o ato constitutivo da União, muito cedo se apercebeu que ela era também, por isso mesmo, a norma fundamentadora de todo o sistema jurídico. Daí o passo acabado de citar de Hamilton (assim como, de certo modo, o art. vi, n.º 2, qualificando-a de Direito supremo do País
); e daí o corolário retirado, a partir de 1803, pelo Supremo Tribunal de uma faculdade de apreciação da constitucionalidade das leis.
Já na Europa e na América Latina (onde as vicissitudes políticas e constitucionais viriam a ser muito menos lineares e mais complexas que nos Estados Unidos) o caminho para o reconhecimento de um verdadeiro e pleno primado da Constituição foi mais longo, por três razões principais: porque, tendo em conta o absolutismo precedente, toda a preocupação se reportava à reestruturação do poder político (em especial, do poder do Rei); porque prevalecia o entendimento da lei (ordinária) como expressão ou da razão ou da vontade geral; e porque não se quis ou não se pôde instituir senão no século XX formas de fiscalização jurisdicional da constitucionalidade.
2. Da Constituição liberal às Constituições atuais
I – O constitucionalismo moderno desponta, como se sabe, estreitamente ligado a certa ideia de Direito – a ideia de Direito liberal, de liberdade política e de limitação do poder.
O Estado só é Estado constitucional, só é Estado racionalmente constituído, para os doutrinários e políticos do constitucionalismo liberal, desde que os indivíduos usufruam de liberdade, segurança e propriedade e desde que o poder esteja distribuído por diversos órgãos. Ou, relendo o art. 16.º da Declaração de 1789, Qualquer sociedade em que não esteja assegurada a garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição
.
Em vez de os indivíduos estarem à mercê do soberano, eles agora possuem direitos contra ele, imprescritíveis e invioláveis. Em vez de um órgão único, o Rei, passa a haver outros órgãos, tais como Assembleia ou Parlamento, Ministros e Tribunais independentes – para que, como preconiza Montesquieu, o poder trave o poder. Daí a necessidade duma Constituição desenvolvida e complexa: pois quando o poder é mero atributo do Rei e os indivíduos não são cidadãos, mas sim súbditos, não há grande necessidade de estabelecer em pormenor regras do poder; mas, quando o poder é decomposto em várias funções apelidadas de poderes do Estado, então é mister estabelecer certas regras para dizer quais são os órgãos a que competem essas funções, quais são as relações entre esses órgãos, qual o regime dos titulares dos órgãos, etc.
A ideia de Constituição é de uma garantia e, ainda mais, de uma direção da garantia. Para o constitucionalismo, o fim está na proteção que se conquista em favor dos indivíduos, dos homens e cidadãos, e a Constituição não passa de um meio para o atingir. O Estado constitucional é o que entrega à Constituição o prosseguir a salvaguarda da liberdade e dos direitos dos cidadãos, depositando as virtualidades de melhoramento na observância dos seus preceitos, por ela ser a primeira garantia desses direitos.
Mas o constitucionalismo liberal tem ainda de buscar uma legitimidade que se contraponha à antiga legitimidade monárquica; e ela só pode ser democrática, mesmo quando na prática e nas próprias leis constitucionais daí se não deduzam todos os corolários. A Constituição é então a auto-organização de um povo (de uma nação, na aceção revolucionária da palavra), o ato pelo qual um povo se obriga e obriga os seus representantes, o ato mais elevado de exercício da soberania (nacional ou popular, consoante o entendimento que se perfilhe).
II – No século XX o fenómeno constitucional iria sofrer duas vicissitudes decisivas: generalizar-se-ia, universalizar-se-ia; e, simultaneamente, perderia a sua referência (ou referência necessária) a um conteúdo liberal.
Por um lado, todos os regimes adotam uma Constituição (no sentido moderno), desde aqueles que, de uma maneira ou de outra, mantêm Constituições vindas de época anterior e os que consagram evolutivamente exigências sociais (o Estado social de Direito) até aos que pretendem instaurar-se de novo (o Estado marxista-leninista, o fascista e fascizante, o de fundamentalismo islâmico). E, do mesmo modo, todos os Estados que vão acedendo à comunidade internacional se dotam de Constituições como verdadeiros símbolos de soberania.
Deixa de se considerar como padrões fundamentais da vida coletiva as liberdades individuais e a separação de poderes para, ou acrescentar-lhes direitos económicos, sociais e culturais (o Estado social de Direito), ou para acolher diferentes sentidos da pessoa humana e do povo e diferentes tarefas do poder político (o Estado marxista-leninista, o fascista e fascizante e o de fundamentalismo islâmico). Mas, por toda a parte, persiste ou triunfa o desígnio de uma estruturação racionalizada e exaustiva do estatuto do Estado, a vontade de fazer da Constituição uma representação de como devem ser o poder e a comunidade política.
III – O contraste de projetos e de conteúdos, sobretudo ideológicos, das Constituições permite, e recomenda mesmo, algumas classificações.
Uma das mais representativas é a alvitrada por Karl Loewenstein e toma por critério a análise ontológica da concordância das normas constitucionais com a realidade do processo do poder
e por ponto de apoio a tese de que uma Constituição é o que os detentores do poder dela fazem na prática – o que, por seu turno, depende, em larga medida, do meio social e político em que a Constituição deve ser aplicada.
Seguindo este critério, há Constituições normativas, nominais e semânticas. As primeiras são aquelas cujas normas dominam o processo político, aquelas em que o processo do poder se adapta às normas constitucionais e se lhes submete. As segundas são aquelas que não conseguem adaptar as suas normas à dinâmica do processo político, pelo que ficam sem realidade existencial. As terceiras são aquelas cuja realidade ontológica não é senão a formalização da situação do poder político existente em benefício exclusivo dos detentores de facto desse poder. Ao passo que as Constituições normativas limitam efetivamente o poder político e as Constituições nominais, embora o não limitem, ainda têm essa finalidade, as Constituições semânticas apenas servem para estabilizar e eternizar a intervenção dos dominadores de facto na comunidade⁴.
Poderá, não sem razão, observar-se que a taxonomia constitucional de Loewenstein é elaborada em face de uma Constituição ideal, e não da imbricação dialética Constituição-realidade constitucional, pelo que acaba por ser uma classificação axiológica ligada à concordância entre Constituição normativa e democracia constitucional ocidental. Mas, não sem menos razão, poderá igualmente observar-se que ela vem pôr em relevo as diferentes funções da Constituição por referência àquilo que foi o modelo inicial da Constituição moderna – a Constituição limitativa e garantista liberal; assim como vem, por outro lado, ajudar a captar os diversos graus de efetividade de normas e institutos pertencentes a determinada Constituição.
Independentemente dos juízos de valor a formular sobre a realidade política e independentemente das funções que se reconheça exercerem, duma maneira ou doutra, todas as Constituições, é irrecusável que Constituições existem que se revelam fundamento (em concreto) da autoridade dos governantes e que outras se revelam, sobretudo, instrumento de que eles se munem para a sua ação; Constituições que consignam direitos e liberdades fundamentais perante ou contra o poder e Constituições que os funcionalizam aos objetivos do poder; Constituições que valem ou se impõem por si só e Constituições meramente simbólicas, na expressão de Marcelo Neves⁵.
3. A pluralidade de Constituições materiais
I – De tudo quanto acaba de se aduzir resulta que o conteúdo da Constituição se relativiza e acusa variações consoante os regimes políticos. E a cada regime – ou seja, a cada conceção básica acerca da comunidade e do poder, dos fins que este prossegue e dos meios de que se serve – vai corresponder um determinado entendimento da Constituição em sentido material.
Consequentemente, a Constituição de qualquer Estado distingue-se da Constituição de outro Estado em razão do regime político que adota; assim como a mudança de regime político que nele ocorra determina uma mudança de Constituição – do desígnio que se lhe atribui, dos termos como enquadra a vida coletiva, dos direitos que garante ou deixa de garantir, da correspondente ordem económico-social.
II – Não é, de resto, só a respeito do regime político que esta pluralidade, simultânea ou sucessiva, de Constituições se apresenta. É também, desde logo, no tocante à forma de Estado e, depois, no tocante à forma de governo, ao sistema de governo e à forma institucional:
– forma de Estado ou modo de o Estado dispor o seu poder em face de outros poderes de igual natureza (com coordenação ou com subordinação) e quanto ao povo e ao território;
– forma de governo ou forma de a comunidade política organizar o seu poder e estabelecer a diferenciação entre governantes e governados;
– regime político ou resposta aos problemas de legitimidade, de liberdade, de participação e de unidade ou divisão de poderes;
– sistema de governo ou sistema de órgãos da função política e estatuto dos governantes;
– forma institucional ou expressão institucional e simbólica da representação ou da chefia do Estado.
São, obviamente, diversas, por exemplo, a Constituição de um Estado unitário e a de um Estado federal; a Constituição de um governo representativo e a de um governo jacobino; a de um regime liberal democrático e a de um regime autoritário ou totalitário; a de um sistema parlamentar e a de um sistema presidencial, a de uma monarquia e a de uma república.
Assim como, evidentemente, é diversa a Constituição de um Estado como Estado soberano da Constituição desse mesmo Estado enquanto reduzido a Estado membro de uma federação ou de união real; e vice-versa.
Eis escolhas básicas que se decidem em cada momento histórico
III – À Constituição em sentido material, estatuto jurídico ou ordenação racionalizante e sistemática do Estado, pode corresponder historicamente um só conteúdo (como acontecia, na ótica do regime político, na era liberal) ou pode corresponder uma pluralidade de conteúdos (como vem sucedendo depois). E esse conteúdo em cada Estado e em cada tempo plasma-se em princípios jurídicos específicos, explícita ou implicitamente – os princípios que, abrangendo também a forma de Estado, a forma de governo, o sistema de governo e a forma institucional, no seu conjunto dão corpo a uma Constituição material.
Uma Constituição não se reduz, por certo, a esses princípios, a esses princípios fundamentais. Ela surge, aparentemente, como um somatório de preceitos. Porém, são esses princípios e outros com eles conexos que lhe conferem unidade, identidade e durabilidade, de acordo com um postulado elementar de coerência. Voltaremos a este tema adiante.
IV – Constituição material é, pois, o acervo de princípios fundamentais estruturantes e caraterizantes de cada Constituição em sentido material positivo; aquilo que lhe confere substância e identidade; a manifestação direta e imediata de uma ideia de Direito que prevalece em certo tempo e lugar (seja pelo consentimento, seja pela adesão passiva); a resultante primária do exercício do poder constituinte material; e, em democracia, a expressão máxima da vontade popular livremente formada.
Sem se fechar no seu instante inicial ou numa conformação estrita, a Constituição material vem a ser aquilo que permanece enquanto mudam os preceitos ou as regras através de sucessivas revisões ou por outras formas ou vicissitudes. Em dialética constante com as situações e os factos da vida política, económica, social e cultural – com aquilo a que se vai chamando realidade constitucional – a necessidade da sua permanência torna-se requisito de segurança jurídica.
Os preceitos ou as regras mudam; os princípios – mesmo se não imunes à evolução e a variações de sentido dentro do seu âmbito imanente – não podem ser afetados. Passar de uns princípios a outros (dos princípios respeitantes à forma de Estado, ou ao regime, ou à forma de governo, ou ao sistema de governo, ou à forma institucional) significaria passar de uma Constituição a outra.
Por isso, tem sido frequente as próprias Constituições, logo no início dos seus textos ou, quando existem, em cláusulas pétreas de limites materiais de revisão, sintetizarem os princípios que dão o seu cerne material. É o que se verifica na atual Constituição portuguesa nos seus arts. 1.º e 2.º e no art. 288.º ou na Constituição brasileira, no art. 1º e no art. 60º, 4º.
Democracia
4. Democracia e soberania do povo
I – Por democracia entende-se a forma de governo em que o poder é atribuído ao povo, à totalidade dos cidadãos (quer dizer dos membros da comunidade política) e em que é exercido de harmonia com a vontade expressa pelo povo, nos termos constitucionalmente prescritos.
Não é simples titularidade do poder no povo ou reconhecimento ao povo da origem ou da base da soberania. Não basta declarar que o poder em abstrato pertence ao povo, ou que já lhe pertenceu num momento pretérito e que ele o exerceu de uma vez para sempre – donde uma legitimidade de tipo democrático. Nem que o poder constituinte, a aprovação da Constituição positiva, compete ao povo, ficando os poderes constituídos para os governantes.
Democracia exige exercício do poder pelo povo, pelos cidadãos, em conjunto com os governantes; e esse exercício deve ser atual, e não potencial, deve traduzir a capacidade dos cidadãos de formarem uma vontade política autónoma. Mais: democracia significa que a vontade do povo, quando manifestada nas formas constitucionais, deve ser o critério de ação dos governantes⁶.
II – Numa análise puramente normativa, sem dúvida o poder, a soberania não pode ser senão um poder do Estado, tal como (mas por maioria de razão) o povo e o território só são povo e território dentro do Estado. O poder não se identifica com o Estado, mas somente o Estado tem poder ou soberania (soberania pessoal e soberania territorial).
A doutrina clássica alemã da soberania do Estado continua válida, desde que assim entendida: a soberania é do Estado como entidade jurídica global e complexa, e não dos órgãos do Estado, nem dos titulares dos órgãos, nem do povo, porque ligá-la aos órgãos – meros centros institucionalizados de formação da vontade – ou aos governantes ou aos governados – indivíduos atomisticamente considerados – significaria fracioná-la em visão unilateral.
Se se conceber o Estado como sujeito de direito, como pessoa coletiva de Direito interno e de Direito internacional, melhor se apreenderá ainda esta inserção da soberania na sua estrutura.
Olhando ao Direito interno, a soberania surge como um feixe de faculdades ou direitos que o Estado exerce relativamente a todos os indivíduos e a todas as pessoas coletivas de Direito público e privado existentes dentro do seu ordenamento jurídico. A definição das condições dessas pessoas, a atribuição da capacidade de direitos, a imposição de deveres e de sujeições, eis então algumas das manifestações do poder político.
O povo não é, porém, objeto da soberania. Configurado o Estado como pessoa coletiva, o povo ou coletividade de cidadãos tem de ser, antes, o substrato de tal pessoa jurídica. Apenas cada indivíduo ou cada uma das instituições em que os indivíduos se incorporam podem ser objeto de direitos compreendidos na soberania ou, mais rigorosamente, sujeitos de relações jurídicas com o Estado.
Algo de análogo se passa na ordem externa. Soberania aqui equivale ou à própria subjetividade ou personalidade de Direito internacional do Estado ou à capacidade plena de gozo e de exercícios dos direitos conferidos pelas normas internacionais. Um Estado diz-se soberano, como se sabe, quando pode manter relações jurídico-internacionais ou, em sentido mais restrito, quando tem a totalidade daqueles direitos e, assim, participa em igualdade com os demais Estados na comunidade internacional.
III – O que acaba de ser recordado não esgota o exame do poder no Estado, porquanto logo se vê que é imprescindível definir as posições relativas dos governantes e do povo perante ele.
O ponto de clivagem fundamental de todas as formas de governo está nisto. Ou os governantes (certo ou certos indivíduos) governam em nome próprio, por virtude de um direito que a Constituição lhes reserva, sem nenhuma interferência dos restantes cidadãos na sua escolha ou nos seus atos de governantes. Ou os governantes governam em nome do povo, por virtude de uma investidura que a Constituição estabelece a partir do povo, e o povo tem a possibilidade de manifestar uma vontade jurídica e politicamente eficaz sobre eles e sobre a atividade que conduzem.
No primeiro caso, estamos diante de autocracia (com diferentes concretizações históricas, a que correspondem também diversas formas de governo). No segundo caso, diante da democracia.
Poderá talvez atalhar-se que esta distinção não deixa de ser excessivamente formal. A objeção, porém, não procede, pois para qualificar qualquer regime político não basta ler as proclamações constitucionais, importa confrontá-las com as consequências que o Direito, decretado e vivido, extrai das mesmas; e, se se recorrer a uma investigação interdisciplinar para se procurar o suporte real do poder (Chefe do Estado, Parlamento, Executivo, órgãos formais ou partidos, governantes ou classes dominantes, etc.), haverá sempre aí que concluir pela coincidência ou não do efetivo exercício do poder com o título jurídico da sua atribuição ou não ao povo.
IV – Para designar o princípio democrático, a Revolução Francesa cunhou as locuções soberania do povo
e soberania nacional
, as quais persistem ainda em numerosas Constituições, na linguagem doutrinal e no contraditório político.
Trata-se de uma réplica ou de uma importação do conceito de soberania do príncipe ostentado pelas monarquias absolutas. À ideia de que os reis eram soberanos nos seus Estados, de que não deviam obediência a ninguém, de que eram até superiores a todas as leis, substituiu-se a ideia de que o povo era o único soberano, de que toda a autoridade dele dimanava e que a lei devia ser a expressão da sua vontade. Ao direito divino dos reis sucederia o direito divino dos povos.
Com efeito, se a certa altura, no moderno Estado europeu, se pôde afirmar que os reis eram soberanos foi apenas porque eram os órgãos únicos ou supremos de Estados, que já não dependiam do Papa ou do Sacro Império, nem se compadeciam com autoridades feudais. É sabido que, aproveitando a identificação entre poder central e poder real, os teóricos do absolutismo dos séculos xvi a xviii quiseram ir mais além e afirmar uma soberania sem limites jurídicos. Mas isso mais não era que um desvio, de que nem sempre se aperceberam os políticos e juristas quando supuseram transferir a soberania dos governantes para o povo.
Por isso, não pode entender-se, apesar da apontada transposição, que a soberania do povo deva ser ilimitada, sob pena de se abrir a porta à democracia absoluta. Pois esta, nas suas principais concretizações conhecidas (jacobina, cesarista e soviética), encontra-se nos antípodas dos princípios enformadores da democracia representativa, por ser tão negadora como a monarquia absoluta das liberdades individuais e institucionais e tão contrária como ela aos processos jurídicos de limitação do poder político que o constitucionalismo se esforçou por instituir.
Por outro lado, tomar a soberania do povo no sentido de supremacia do povo no Estado tem de ser entendido em termos hábeis. Se tal supremacia significa a necessidade de os governantes serem da confiança política do povo que os elege, e se significa mesmo que ao povo incumbe (ou deve incumbir) o poder de tomar certas decisões através de eleição ou referendo, nenhuma objeção há a fazer. Se soberania ou supremacia do povo significa, porém, superintendência sobre os governantes e continua subordinação destes às injunções dos eleitores, então ela é desmentida pelas instituições e pela prática da democracia representativa que, rejeitando o mandato imperativo e procurando assegurar um mínimo de estabilidade governativa, impede os cidadãos de determinar (salvo em caso de referendo) atos em concreto dos governantes.
5. O princípio representativo
I – Não há representação política, quando (para empregar uma expressão de Carl Schmitt)⁷ se verifica identidade – seja em monarquia (pura), seja em democracia direta – entre os titulares do poder e os governantes, quando os governados tendem a ser, simultaneamente, governantes ou quando a divisão entre governantes e governados se põe ao nível da distinção dos destinatários de normas jurídicas e não ao nível de uma distinção funcional.
Pelo contrário, representação postula inidentidade e, depois, relação. Ela redunda num fenómeno de relação e de comunicação: para que os governantes apareçam como representantes dos governados tem de haver essa distinção e essa relação.
Para se analisar o seu conceito há que distinguir entre representação do Estado e representação do povo; entre representação de grupos existentes por si e representação de toda a coletividade; entre representação gerada por um ato de vontade e representação decorrente de um facto jurídico ou ope legis. Só é representação política em sentido restrito e próprio a representação do povo, e do povo todo, fundada num ato de vontade (a eleição) e destinada a institucionalizar, com variável amplitude, a sua participação no poder.
II – Em primeiro lugar, na representação política não se cuida da representação do Estado:
a) Nem como expressão ou símbolo da unidade do Estado – pois nesse sentido todo o governante representa o Estado e haveria tanto mais representação quanto menor fosse a participação do povo e maior a concentração de poderes num único governante;
b) Nem como essência dos seus órgãos – pois o órgão não representa o Estado, é um elemento do Estado, e os atos que pratica são-lhe diretamente imputados sem distinção de esferas jurídicas;
c) Nem como função ou competência cometida pelo Direito positivo a certos órgãos em relações jurídicas em que o Estado intervenha (como o jus raepresentationis omnimodae conferido pelo Direito internacional comum) aos Reis e aos Presidentes da República.
Cuida-se, sim, da representação do povo enquanto modo de tornar o povo (ou o conjunto dos governados) presente no exercício do poder através de quem ele escolha ou de quem tenha a sua confiança. A representação política é o modo de o povo, titular do poder, agir ou reagir relativamente aos governantes.
III – Em segundo lugar, representação política implica consideração unitária do povo e realização de fins e interesses públicos (com relevância ou não de outros interesses que realmente existam na sociedade, muitas vezes em conflito). As pessoas nela investidas representam toda a coletividade e não apenas quem as tenha designado (é o princípio explicitado, em Portugal, no art. 152.º, n.º 2, da Constituição).
Mais ainda: não é só cada parlamentar que representa todo o povo, nem são todos os parlamentares que representam cada cidadão; são todos os parlamentares que representam todo o povo (e daí o art. 147.º, ainda da Constituição portuguesa, ao definir a Assembleia da República como a assembleia representativa de todos os cidadãos portugueses). Se assim não fosse, eles não poderiam deliberar sobre os assuntos do Estado.
Compreende-se, deste jeito, que tenha de se excluir do seu âmbito a representação estamental ou de estados
, vestígio da desagregação medieval da sociedade política; que a doutrina da soberania popular ou fracionada de Rousseau não se compadeça com o sistema representativo; que seja proibido o mandato imperativo; e que a mera representação de interesses, à imagem de uma noção orgânica ou corporativa de povo, só possa aproveitar-se para a constituição de órgãos consultivos, e não para a de órgãos deliberativos do Estado.
Ora, não serão contraditórios com esta ideia de unidade a divisão do território eleitoral em círculos ou distritos, as eleições parciais a meio da legislatura em sistemas de círculos uninominais (previstos em alguns países) e os sistemas de representação proporcional? Não: os círculos ou distritos eleitorais, para lá de expedientes de ordem técnica, servem para personalizar as escolhas dos eleitores e neles existe (ou deve existir, por imperativo da igualdade) uma proporção entre o número de eleitores inscritos e o número de representantes a eleger; as eleições parciais destinam-se a completar a composição efetiva dos Parlamentos em caso de vagas; e a representação proporcional, se espelha a divisão de posições partidárias, assume, do mesmo passo, um papel integrador dentro do contraditório político.
IV – Em terceiro lugar, não há representação política sem eleição, ato jurídico ou feixe de atos jurídicos. Contudo, a inversa não é verdadeira: v. g., além das monarquias eletivas, a eleição de juízes de Tribunais Constitucionais ou de titulares de outros órgãos independentes pelo Parlamento [arts. 163.º, alíneas h) e i), e 222.º, n.º 1, da Constituição portuguesa].
O elemento volitivo patente na eleição habilita então a falar num mandato, na medida em que são os eleitores que, escolhendo este e não aquele candidato, aderindo a este e não àquele programa, constituindo esta e não aquela maioria de governo, dinamizam a competência constitucional dos órgãos e dão sentido à atividade dos seus titulares (apesar de não lhes poderem definir o objeto).
Um mandato, porém, de Direito público, inassimilável ao mandato de Direito privado. Pois a representação política é uma espécie de representação necessária imposta por lei, ao passo que o mandato representativo civil pressupõe representação voluntária. Nem há transferência de poderes: os representantes eleitos são simples titulares de órgão com competências constitucionalmente prescritas (se bem que uma Constituição democrática seja, direta ou indiretamente, obra do povo e, assim, os poderes dos representantes provenham do povo).
Como escreve Giovanni Sartori, é verdade que na representação política não há contemplatio domini, mas há uma contemplatio electionis que faz as suas vezes. É verdade que o mandato de deputado não é revogável à vontade pelos seus representados, mas a sua irrevogabilidade não é inamovibilidade e deve considerar-se que, para efeito prático, eleições periódicas correspondem (na expressão de Carré de Malberg) a uma faculdade intermitente de revogação
. É verdade que não há modo de obrigar o representante a ajustar-se ao cargo recebido, mas seria mais exato dizer que a diferença vale pro tempore e que a ausência de obrigação direta e formal consegue tão somente impedir a instauração de uma submissão indireta e substancial⁸.
Diferente da representação política é a representação institucional, em que a investidura nos cargos políticos se faria mediante índices reveladores da capacidade de captar a vontade e os interesses da coletividade; por inerência, por cooptação ou por sucessão hereditária (assim, o art. 11º da Constituição imperial brasileira der 1824, o art. 12.º da Carta Constitucional portuguesa de 1826 ao declararem o Imperador e o Rei representante da Nação
).
Mas a representação institucional, se pode ser adequado meio de expressão de determinadas instituições (v. g., a família, as confissões religiosas, certas instituições culturais, as Forças Armadas) e se pode bem articular-se com a representação de interesses, nunca cobre toda a riqueza da vida política, nem sequer a das instituições sociais; e revela-se completamente inidónea para a formação de tendências e aspirações gerais e para a tomada de qualquer decisão obrigatória para toda a coletividade. Um Estado corporativo – como pretendeu ser, sem nunca conseguir – o da Constituição portuguesa de 1933 – seria antagónico de um Estado democrático representativo.
6. O princípio representativo e os partidos políticos
I – O peso dos partidos na vida pública reflete-se necessariamente sobre os mecanismos representativos.
Uma tese radical tenderia a afirmar que a representação política se converteu em representação partidária, que o mandato verdadeiramente é conferido aos partidos e não aos parlamentares e que os sujeitos da ação parlamentar acabam por ser não os parlamentares, mas os partidos ou quem aja em nome destes. Por conseguinte, deveriam ser os órgãos dos partidos a estabelecer as posições a adotar pelos deputados, sujeitos estes a uma obrigação de fidelidade.
Esta conceção levada às últimas consequências – com os diretórios, as comissões políticas ou os secretariados exteriores ao Parlamento a impor aos deputados e aos senadores o sentido do voto ou, no limite, a impor a suspensão ou a cessação do seu mandato – transformaria a assembleia política em câmara corporativa de partidos e retirar-lhe-ia a própria qualidade de órgão de soberania, por afinal deixar de ter capacidade de livre decisão. Se a democracia assenta na liberdade política e na participação, como admitir que nos órgãos dela mais expressivos, os Parlamentos, os deputados e senadores ficassem privados de uma e outra coisa?
Estaria ainda bem patente a preterição da igualdade política dos cidadãos. Pois só os que fossem filiados em partidos poderiam (admitindo democraticidade interna) interferir, através dos respetivos órgãos, na condução das atividades parlamentares. Os outros cidadãos teriam o sufrágio reduzido a uma espécie de contrato de adesão.
O entendimento mais correto, dentro do espírito do sistema, parece dever ser outro. A representação política hoje não pode deixar de estar ligada aos partidos, mas não converte os deputados e senadores em meros porta-vozes dos seus aparelhos. Pode dizer-se que o mandato parlamentar é (salvo em situações marginais) conferido tanto aos deputados e como aos senadores como aos partidos; não é aceitável substituir a representação dos eleitores através dos eleitos pela representação através dos dirigentes partidários, seja qual for o modo por que estes sejam escolhidos.
Dando como certo o carácter bivalente da representação política, importa procurar o enlace, o ponto de encontro específico de partidos e parlamentares. E esse enlace não pode ser senão o que oferecem os grupos parlamentares como conjuntos dos deputados e senadores eleitos pelos diversos partidos. São os grupos parlamentares ou bancadas que exercem as faculdades de que depende a atuação dos partidos nas assembleias políticas e só eles têm legitimidade democrática para deliberar sobre o sentido do seu exercício, não quaisquer outras instâncias ou centros de decisão extraparlamentares. E por aqui se afastam quer uma pura conceção individualista, vendo o deputado ou o senador isolado ou desinserido de uma estrutura coletiva, quer uma pura conceção partitocrática em que os aparelhos ou as bases
se sobrepusessem aos parlamentares e aos seus eleitores.
Nem se excluem, assim, os corolários mais importantes do regime de eleição mediatizada pelos partidos, designadamente quanto à disciplina de voto ou à perda de mandato do deputado ou senador que mudar de partido. Pelo contrário, eles ficam vistos à sua verdadeira luz, a qual, em sistema democrático, só pode ser a da liberdade e da responsabilidade políticas. Pois, se os grupos parlamentares ou as bancadas implicam uma avançada institucionalização dos partidos, são, ao mesmo tempo um anteparo ou um reduto da autonomia individual e coletiva dos deputados e senadores – dos deputados e senadores que, por serem eles a deliberar, mais obrigados ficam a votar, pelo menos nas questões políticas principais (subsistência do Governo, orçamento, leis e tratados mais importantes) conforme a maioria se pronunciou; e a objeção de consciência só se justifica no limite.
Daí também a mais que duvidosa validade jurídica do voto de deputados e senadores seguindo o seu partido e fazendo, ao mesmo tempo, declarações de voto, oral ou escrita, a justificar a posição diferente que prefeririam ter assumido.
7. O princípio da responsabilidade política
I – A representação política implica a responsabilidade política, ou seja, o dever de prestar contas por parte dos governantes, a sujeição a um juízo de mérito sobre os seus atos e atividades por parte dos governados e a possibilidade da sua substituição por ato destes.
Na democracia direta não existe este mecanismo. Por outro lado, a diferença entre a eleição em sistema representativo e a eleição à sua margem está em que, nesta, os eleitos são independentes dos eleitores, e até lhes podem ser considerados ou ficar superiores (como sucedia nas antigas monarquias eletivas e sucede com o Papa em relação ao colégio dos cardeais).
II – Trata-se, antes de mais, de uma responsabilidade difusa. O Presidente da República, os senadores e os deputados representam todo o povo; logo, respondem perante todo o povo, e não apenas perante quem neles votou ou perante quem os elegeu, nos diferentes círculos ou distritos.
Nisto se distingue da outra forma de responsabilidade política, a responsabilidade inter-orgânica ou responsabilidade-fiscalização, que é aquela que se verifica do Governo perante o Parlamento ou perante o Presidente da República, conforme os diferentes sistemas políticos, e que tem como consequência, se efetivada, a demissão ou a cessação de funções.
Responsabilidade difusa, aliás, porque realizada:
a) Através da crítica dos cidadãos no exercício das liberdades fundamentais (em especial, de expressão e de manifestação), o que pressupõe o direito de eles serem esclarecidos objetivamente sobre os atos do Estado e demais entidades públicas e de serem informados pelo Governo e outras autoridades acerca da gestão dos assuntos públicos (art. 48.º, n.º 2, da Constituição portuguesa);
b) Através das eleições no final dos mandatos, maxime através de não reeleição ou não recondução ou da não eleição de candidatos que apareçam identificados com os titulares cessantes;
c) Através de eleições para outros órgãos (v. g., de municípios) com significado político relevante.
E, como sublinha Antonio d’Atena, o intervalo entre os atos eleitorais introduz um elemento de racionalização. Limitar a decisão do povo às escolhas periódicas dos representantes significa criar condições para a apreciação dos seus atos menos emotivamente e para que o juízo popular tenha por objeto não tanto cada uma das decisões quanto a complexa atividade por eles desenvolvida ao longo do tempo⁹.
Por isso, a revogação popular do mandato adotada em alguns Estados e municípios dos Estados Unidos (recall), em alguns cantões suíços ou nas Constituições de Weimar, da Áustria e da Venezuela deve ter-se por excecional; só o não era, porventura, em Constituições marxistas-leninistas estranhas ao princípio representativo (como no art. 65.º da atual Constituição cubana).
III – A responsabilidade política dos titulares de cargos políticos, especialmente dos titulares de cargos políticos executivos, pode assumir contornos de responsabilidade objetiva, na medida em que eles devem igualmente ser considerados solidariamente responsáveis por ações ou omissões graves dos seus subordinados imediatos que afetem o interesse público.
Então, por um princípio de ética, pode vir a impor-se a sua demissão, a sua destituição ou a sua renúncia, consoante os casos.
IV – Mas a responsabilidade política é também uma responsabilidade institucional, quando manifestada através dos poderes e direitos da Oposição, decorrente do exercício coletivo ou em comum daquelas liberdades fundamentais e exigida pela necessidade de se formularem alternativas e alternâncias.
A livre atividade da Oposição individualiza os sistemas políticos pluralistas: aqui, a maioria deve governar e a minoria deve estar na oposição (entendida como fiscalização pública dos atos dos governantes); e, portanto, a Oposição não é de cidadãos individualmente considerados, mas sim a de aglutinados em partidos políticos.
V – Em última análise, responsabilidade política não se destina apenas a corrigir ou sancionar, em nome de princípios e fins prévia e imutavelmente aceites, a atividade governativa desenvolvida até certo momento. Todos os meios de efetivar a responsabilidade, maxime as eleições gerais, servem tanto para o povo avaliar o exercício do mandato dos governantes cessantes como para traçar um novo rumo para o futuro.
Também o povo é livre na responsabilização dos governantes.
8. O princípio da separação de poderes
I – O governo representativo está, por natureza, vinculado ao princípio da separação de poderes. Em primeiro lugar, pela separação entre o exercício do poder pelo povo através das eleições e o exercício do poder pelos governantes (disso tiveram consciência logo os autores liberais, preocupados com a garantia das liberdades). Depois, pela necessidade de equilíbrio entre os órgãos eletivos.
Justifica-se recordar as implicações básicas do princípio:
a) Pluralidade de órgãos de