Guarani e Kaiowá: Modos de Existir e Produzir
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Guarani e Kaiowá - Antônio Augusto Rossotto Ioris
Sumário
INTRODUÇÃO
Por uma Universidade Guarani-Kaiowá do Brasil: pesquisando, vivendo e transformando uma realidade em disputa
Antônio Augusto Rossotto Ioris
ORGANON
retomando o mundo roubado dos Guarani-Kaiowá
Papito Vilhalba
Aldeia Guyraroká (Caarapó)
CAPÍTULO 1
Ensinar e Aprender com o Movimento de Professores Indígenas Guarani-Kaiowá e o Curso Ára Verá
Flaviano Franco
Maria Adriana Torqueti Rodrigues
Racquel Valério Martins
CAPÍTULO 2
Educação Escolar Indígena à Luz das Epistemologias Decoloniais e da Sobreculturalidade
Daniel Valério Martins
Ruan Rocha Mesquita
Simone Aparecida Fonseca Alves
Racquel Valério Martins
CAPÍTULO 3
O Contexto com o Ensino da Turma do 3.° Ano da Escola Municipal Indígena Ñandejara Polo
Jazanea Benites
Geni Roque Sobrinho Candado
CAPÍTULO 4
A Violência Linguística Associada à Migração de Alunos Indígenas para Escolas Urbanas
Joice Mara de Freitas
Racquel Valério Martins
CAPÍTULO 5
Uma Atividade para Formação de Professores de Matemática Guarani e Kaiowá: o filtro dos sonhos como estratégia no ensino acerca da etnomatemática
Rhuan Guilherme Tardo Ribeiro
Renato Souza da Cruz
Bruna Marques Duarte
Vania de Fatima Tluszcz Lippert
CAPÍTULO 6
Transformações de Comportamentos de Crianças e Jovens Guarani Ñandeva na Aldeia Potrero Guasu, Município de Paranhos/MS
Davi Benites
CAPÍTULO 7
Avanços e Desafios na Assistência aos Povos Indígenas no Hospital Universitário da Universidade Federal da Grande Dourados
Fabiana Casagranda
Catia Paranhos Martins
Verônica Gronau Luz
CAPÍTULO 8
Mulheres Guarani, Kaiowá e Terena em Movimento: preservando seus saberes e práticas, transformando o futuro
Lauanda Liz Ribeiro Ramires
Catia Paranhos Martins
CAPÍTULO 9
Práticas e Saberes das Kokue em Cinco Retomadas Guarani e Kaiowá: (in)segurança alimentar e nutricional e modos de lutar pela recuperação da vida e do território
Verônica Gronau Luz
Lucas Luis de Faria
Felipe Mattos Johnson
Indianara Ramires Machado
Rosani Moreira Leitão
CAPÍTULO 10
Laranjeira Nhanderu: plantio de rama de mandioca (mandi’o)
Geniniana Barbosa Almeida Pedro
Geni Roque Sobrinho Candado
CAPÍTULO 11
O Despertar da Semente
Anastácio Peralta
CAPÍTULO 12
Caracterização Multidimensional do Território Indígena Aldeia Jaguari: mudanças nas práticas de produção e consumo de alimentos pelos Guarani e Kaiowá
Cleonicio Ximenes
Rodrigo Simão Camacho
William James Vendramini
CAPÍTULO 13
A Importância da Festa do Milho Branco para os Kaiowá de Takuapiry
Gildo Martins
Rosa Sebastiana Colman
CAPÍTULO 14
A Pesquisa Acadêmica sobre Turismo Indígena em Mato Grosso do Sul: desafios e possibilidades
Dionatan Miranda da Silva
Edvaldo Cesar Moretti
CAPÍTULO 15
Terras Indígenas e Unidades de Conservação: interfaces e sinergias na faixa de fronteira de Mato Grosso do Sul/Brasil e Paraguai
Patricia Silva Ferreira
Charlei Aparecido da Silva
CAPÍTULO 16
Os Terena no Estradão: marcadores da territorialidade e temporalidade na lida com o gado
Sandra Ventura Domingo
Levi Marques Pereira
SOBRE OS AUTORES
Pontos de referência
Sumário
Capa
Guarani e Kaiowá
Modos de Existir e Produzir Territórios
Volume V
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2024 dos autores
Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.
Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nos 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Antônio Augusto Rossotto Ioris
Elaine da Silva Ladeia
(org.)
Guarani e Kaiowá
Modos de Existir e Produzir Territórios
Volume V
Às novas gerações Guarani e Kaiowá, que mantêm viva a semente de um novo mundo de justiça e a esperança de retomar terras que são inalienáveis e imprescindíveis. Semente essa inoculada pelos cantos e rezas dos caciques e cacicas, que resistem e insistem em manter as relações com seres não humanos — teko jára, habitantes dos patamares superiores — como condição para produção de seus tekohá.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todas as comunidades, aos indivíduos e às famílias Guarani e Kaiowá mencionadas neste livro e que contribuíram de forma generosa para que estas páginas contivessem uma mensagem universal de humanidade, sabedoria e encorajamento.
* * *
O livro foi possível com o apoio financeiro proporcionado pelo UKRI GCRF and Newton Fund Consolidation Accounts (GNCAs), administrado pela Universidade de Cardiff, Reino Unido.
Por uma Universidade Guarani-Kaiowá do Brasil: pesquisando, vivendo e transformando uma realidade em disputa
Antônio Augusto Rossotto Ioris
Donde hay poca justicia es un peligro tener razón.
(Francisco Gómez de Quevedo y Santibáñez Villegas n. Madri, 1580 – m. Villanueva de los Infantes, 1645)
O Precipício do Não Brasil
Não se pode ignorar que os últimos anos da política e economia no Brasil foram um período de grandes desafios e muitos sobressaltos. Ainda estamos tentando compreender o que realmente se passou e o legado dessa fase de tanto obscurantismo e patrocínio da estupidez. A já difícil situação dos povos indígenas, particularmente em Mato Grosso do Sul, sofreu uma profunda deterioração com a tomada do poder, entre 2016 e 2022, por uma coalização de forças reacionárias, violentas e comprometidas com o que há de pior na sociedade nacional. Apesar do uso indiscriminado da bandeira verde-amarela e de referências sanhudas a um patriotismo estéril, foram anos de miseráveis ações antipovo, antinatureza, antivida e contra a unidade nacional e o futuro do Brasil. Viveu-se um não Brasil, quis-se a vergonha virulenta e o vírus varonil. Novas leis e políticas governamentais foram gestadas a fim de reafirmar uma agenda excludente e alienante, acelerar processos de concentração de renda, degradação socioecológica e entrega do patrimônio público. Ao povo nada, mas grande banquete servido a bancos, corporações, mineradores, milicianos e latifundiários. Nunca foi tão difícil sobreviver sem esforços ainda maiores de resistência e determinação. Os detalhes históricos ainda serão estudados e debatidos por muitos anos, ao mesmo tempo que a necessidade de organizar e resistir persistirá por muito tempo, mas é possível constatar que algo muito profundo aconteceu: a questão indígena hoje ocupa o centro do debate político, econômico e ambiental no país. Em vez de problemas secundários ou que parecem afetar populações distantes e dispersas na Amazônia, agora existe um ministério dedicado aos povos indígenas e, mais importante, gerido por e para as nações indígenas. Em outubro de 2023, pela primeira vez um intelectual e escritor indígena, Aílton Krenak, foi eleito para a centenária Academia Brasileira de Letras (ABL), e afirmou que centenas de línguas entram na ABL com sua eleição (finalmente a casa de Machado de Assis começa a ter contato com a riqueza linguística do país).
A rejeição da tese estapafúrdia do marco temporal
(na verdade, um veneno genocida) pelo Supremo Tribunal Federal em setembro de 2023 representou o claro reconhecimento da imensa e impagável dívida com os primeiros habitantes desta terra. Porém, a reação das trevas e das catacumbas do agro foi imediata: projetos de lei que tentam negar a inegável obrigação constitucional de demarcar e proteger as áreas ancestrais. Apesar de avanços institucionais significativos (o novo ministério e uma ministra indígena com seus assessores indígenas), de uma Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) comandada por outra importante líder e parlamentar indígena, do afastamento momentâneo da maldição do marco temporal
e da forte mobilização por todo o território nacional, os problemas fundiários e as parcas condições de vida das comunidades e aldeias demonstram que a qualidade e o futuro da democracia brasileira têm como o teste mais crucial de todos a resolução satisfatória das muitas e urgentes demandas dos povos indígenas. O atual parlamento federal, no sombrio mandato 2023-2026 (talvez o mais disfuncional e corrupto da história), tem uma maioria de fajutas excelências
que não perdem nenhuma oportunidade para vociferar argumentos absurdos contra os indígenas, assim como contra outras minorias e maiorias exploradas e oprimidas. Mas não haverá Brasil unificado e democrático sem que os irmãos e irmãs indígenas sejam devidamente respeitados e efetivamente incluídos na sociedade nacional e da forma como queiram fazer parte desta sociedade.
Há muitas décadas que os membros do bolorento setor do agronegócio repetem, de modo jocoso e sarcástico, que os índios têm muita terra
. Na verdade, quem têm terra demais, obtida de forma ilegal e que nela não sabe trabalhar são justamente os latifundiários, os garimpeiros e as madeireiras que insistem em extrair tudo que podem da terra e dos ecossistemas, sem nenhum compromisso com o ambiente e as gentes que ali vivem. A lógica desses setores parece ser vamos acabar com tudo antes que tudo acabe
, ainda que sejam eles mesmos os responsáveis pela degradação socioecológica e pelas inúmeras injustiças ambientais. Porém, não haverá Brasil nenhum sem os indígenas vivendo de forma digna e plena. O Brasil, sua democracia e sociedade dependem de reconhecer os milhões de hectares de Terra Indígena (TI), o que está no texto constitucional desde 1988. É preciso parar com a tergiversação, tomar medidas efetivas contra a violência genocida e pela participação concreta dos indígenas em todas as decisões importantes em todo o país (não somente aquelas que lhes dizem respeito mais diretamente).
Nesse contexto difícil e complexo, a condição dos Guarani-Kaiowá continua sendo uma das mais abjetas e segue demandando respostas eficazes por parte dos governos, parlamentos, juízes e forças de segurança. É absurdo que, apesar de tudo que já se denunciou e de muitos protestos nacionais e internacionais, o nível de criminalidade e as tendências genocidas (kaiowcidas
) persistam. Apenas um pequeno, mas perturbador exemplo: na manhã do dia 24 de janeiro de 2023, quando íamos de táxi para um encontro com alunos Guarani-Kaiowá na Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), o locutor da Rádio Boa Nova FM 87,9 vociferava contra a população indígena de forma racista e discriminatória, perguntando com deboche: "Quem trouxe os índios para a beira da estrada em Dourados? Eles têm as áreas originais, mas preferem ir para a beira da estrada. Ou isso é gente que foi expulsa da sua terra por mau comportamento" (informação verbal). Mais uma vez, como em tantas outras, as vítimas eram assim tratadas como culpadas pela violência a que eram sujeitas. E a imprensa local insistia no erro e posicionava-se do lado equivocado da história. Pelo menos essa infeliz situação continua a ser bravamente resistida e denunciada, até mesmo com o apoio importante da Igreja verdadeiramente cristã e do próprio Papa Francisco:
"Nota do Cimi em Solidariedade aos Guarani e Kaiowá: Quantos Corpos Ainda Serão Necessários para que o Estado Cumpra seu Dever?
Cimi manifesta solidariedade aos Kaiowá e Guarani e exige do Estado medidas emergenciais de proteção e a efetivação de direitos historicamente sonegados
Quero exprimir a minha proximidade nestes momentos de sofrimento, assegurando-lhes de meus sufrágios por todos os membros do Povo Kaiowá e Guarani já falecidos e de minhas preces ao Altíssimo para que se encontrem caminhos que possam garantir-lhes uma vida tranquila e pacífica na terra em que vivem" – escreveu o Papa Francisco, em carta aos Kaiowá e Guarani
Profundamente consternados com a morte brutal da Ñandesy Sebastiana Galton, 92 anos, e de seu companheiro Rufino Velasquez, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) faz-se próximo aos familiares das vítimas e de todo povo Kaiowá e Guarani, neste momento de dor e indignação. E exige não apenas rigor nas investigações dos fatos, mas principalmente, avanços concretos e soluções efetivas para a crise humanitária a que são submetidos estes povos.
Os corpos da liderança religiosa e seu companheiro foram encontrados carbonizados na casa onde viviam, nesta segunda-feira (18), na Terra Indígena Guasuti, localizada no município de Aral Moreira, no Mato Grosso do Sul.
Familiares relataram a nossa equipe - que foi até à Comunidade Guarani e Kaiowá ao tomar conhecimento do ocorrido -, que o casal vinha sofrendo ameaças nos dias que antecederam sua morte, e que esta situação, inclusive, exigiu medidas de prevenção em suas rotinas, como se recolher ainda durante o dia e manter as portas bem trancadas durante à noite. Disseram também que as divergências circunvizinhas, envolvendo pessoas próximas, intensificaram-se durante os últimos meses, por motivos relacionados à falta de terra, ao arrendamento e à intolerância às práticas religiosas tradicionais que permeiam todas estas realidades. Membros da comunidade acreditam que eles possam ter sido violentados e mortos antes do incêndio que destruiu sua casa e seus corpos.
Além disso, demonstraram grande preocupação com a queima do Xiru da Ñandesy Sebastiana, reconhecida por guardar incontáveis rezas tradicionais (mborahé, ñembo’e) Kaiowá. Os Xirus são uma espécie de oratório, que porta seres e poderes sobrenaturais e que quando queimados espalham doenças e males comunitários.
Os fatos narrados pelos familiares de Dona Sebastiana revelam, por um lado, uma complexa situação de intolerância religiosa que têm escarnecido, vilipendiado e matado – espiritual e fisicamente – Ñanderu’s e Ñandesy’s por toda a territorialidade Kaiowá e Guarani; e por outro, a situação trágica de desestruturação social de uma sociedade, cuja causa continua sendo resultado de deslocamentos forçados, do processo de confinamento e do não acesso efetivo desta população aos seus territórios tradicionais. Agora, tal realidade é agravada fortemente por arrendamentos ilegais de áreas por não indígenas, que foram incentivados pelo governo Bolsonaro e que catalisam conflitos internos pelos poucos espaços existentes.
O fenômeno religioso em todas as sociedades humanas consiste em mobilizar as forças espirituais, sejam elas consideradas boas ou não (bênção e maldição), conforme as necessidades, os anseios e as esperanças de um povo, como estratégia de conquistas sobre desafios, perigos e crises. Na prática, elas ritualizam o otimismo humano em tempos de perseguição, estresses sociais, dificuldades existenciais, das relações com o meio ambiente, dos desejos, das vontades e da própria morte que permeiam todas as sociedades.
Assim, observa-se no caso das práticas religiosas tradicionais dos Kaiowá e Guarani um ato de resistência frente aos múltiplos processos de extermínios perpetrados contras suas comunidades. Também é possível observar a existência de uma fronteira tênue e nociva entre suas mobilizações espirituais tradicionais, dada desde tempos imemoriais entre parentelas, e a invasão violenta das práticas exterminadoras e fundamentalistas de igrejas neopentecostais.
CIMI, Brasília (DF), 19 de setembro de 2023.
Felizmente, a realidade vivida dos Guarani-Kaiowá não é apenas marcada pela brutalidade dos fazendeiros e pela estupidez dos órgãos de segurança pública, mas também por conquistas importantes. A Universidade Federal da Grande Dourados, agora sob a liderança de um reitor competente, legitimamente escolhido pela comunidade universitária e com compromisso efetivo com a descolonização da academia, é cada vez mais percebida como a verdadeira e legítima Universidade Guarani-Kaiowá do Brasil! Reconhece-se, cada vez mais, que o terreno da universidade foi e continua sendo Guarani-Kaiowá, que a melhor e mais criativa unidade universitária é sua Faculdade Intercultural Indígena (Faind) e que o que há de melhor e mais representativo é exatamente o trabalho de alunos e professores indígenas, com a colaboração criativa dos não indígenas. Como excelente notícia a relatar, em 2 de junho de 2023 foi inaugurada a esperada casa tradicional no campus da universidade. Denominada Espaço de Práticas Pedagógicas Interculturais Óga Pysy, essa era uma demanda dos estudantes indígenas e será local de atividades voltadas à transmissão de conhecimentos ancestrais às gerações mais jovens. Na presença de centenas de estudantes e seus familiares, professores, técnicos administrativos e convidados externos (incluindo representantes do Ministério da Educação e dos governos estadual e municipal), o Óga Pysy foi entregue à comunidade acadêmica como símbolo da resistência do povo Guarani-Kaiowá. Foi um feito inédito, uma vez que é a primeira casa de reza indígena erguida dentro de uma universidade no Brasil. A cerimônia foi conduzida pelo reitor professor Jones Dari Goettert, tendo sido devidamente iniciada com rituais ancestrais realizados em conjunto por rezadores de diversas comunidades da região. Com cânticos e danças, as lideranças abençoaram a entrada principal da casa, seu entorno e seu interior. O reitor, em nome da UFGD, afirmou: "Este Óga Pysy é um espaço construído na relação ancestral de gerações e gerações, que cada ñandesy, que cada ñanderu, que cada aluna e aluno Guarani e Kaiowá fez para a gente. É um presente" (informação verbal), agradeceu o professor, em nome de toda a gestão da universidade.
Em 130 metros quadrados de chão batido, estrutura de madeira e cobertura de sapé, o Óga Pysy da UFGD é uma construção tradicional que envolveu o trabalho de mestres indígenas de aldeias e de áreas de retomada, o que foi acompanhado por estudantes indígenas dos cursos da Faind, sob a coordenação de docentes da faculdade. Representando o Ministério dos Povos Indígenas, o professor da Faind Eliel Benites, temporariamente licenciado para ocupar a chefia do Departamento de Línguas e Memórias da pasta federal, afirmou que o Óga Pysy é onde se encontra a pessoa Guarani-Kaiowá com sua ancestralidade:
Essa relação com a ancestralidade conduz à cura da terra, que vai dando sentido ao lugar. Esse sentido é a reconstrução constante, permanente do território. E a Faind é um território. A palavra território
não traduz na totalidade o que é tekohá, pois o tekohá é uma continuidade da existência, desde a ancestralidade até agora. (informação verbal).
Com aproximadamente 570 estudantes indígenas em seus cursos de graduação e de pós-graduação, a UFGD configura-se como um espaço de saber e de representatividade desses povos. Somente na Faind, 400 alunos vão ao campus todos os anos, seguindo a pedagogia da alternância, em que suas formações são estruturadas, e a essas temporadas de estudos na universidade são integradas práticas rituais tradicionais com a presença de mestres e rezadores. A construção do Óga Pysy, portanto, tem o sentido de resistência para as novas gerações indígenas que frequentam a UFGD, pois, conforme o professor Eliel, busca-se, no passado e na ancestralidade, a vivacidade para o presente. Aprendendo com os mais antigos o modo de ser Guarani, eles podem "curar a terra e as mentes dos destruidores e decompositores dos mundos" (informação verbal).
Devemos celebrar e aprender com tudo isso. O reconhecimento da universidade pública, crítica e democrática como um espaço ancestral e prioritário para as populações originárias é certamente uma grande conquista da ciência nacional e da sociedade brasileira. Esse importante feito da UFGD leva-nos a pensar sobre como as práticas acadêmicas e o fazer científico necessitam ser cada vez mais descolonizados e enriquecidos com as práticas e os conhecimentos indígenas. O Brasil é certamente maior cada vez que uma terra indígena é demarcada e seus verdadeiros donos podem ali viver e lhe dar vida. Isso significa fazer ciência com e para os Guarani-Kaiowá, o que é examinado a seguir.
Pesquisa sobre, para e com os Guarani-Kaiowá
Tendo em conta as tendências, as contradições e os desafios mencionados anteriormente, este capítulo tem também por propósito tratar, ainda que brevemente, de importantes questões éticas, metodológicas e interpretativas que assumem grande importância ao se fazer pesquisa participativa e engajada envolvendo grupos sociais subalternos e marginalizados. Nesse sentido, a condição e a experiência dos povos indígenas ao redor do planeta têm consequências significativas para a preparação e implementação de projetos de pesquisa. A maioria das nações indígenas está envolvida em confrontos, violência e mobilização devido à sua inserção subordinada nos processos de modernização socioeconômica e, em particular, durante o avanço de fronteiras agrícolas ou extrativistas (IORIS, 2020). O discurso de soberania territorial, desenvolvimento e legitimidade, geralmente empregado por líderes políticos e setores hegemônicos, tem servido para justificar o desejo do colonialismo de desenraizar e destruir as autonomias locais dos povos indígenas na aquisição incansável de cada vez mais terras e recursos
(LARSEN; JOHNSON, 2017, p. 4). Particularmente na América Latina, as realidades nacionais sempre seguiram um poder racializado e hierárquico, exercido tanto pelas potências europeias como, desde o século XIX, pelos governos regionais independentes (QUIJANO, 2008). Constitui-se em um verdadeiro fenômeno de apropriação do mundo indígena e uma tentativa generalizada de reduzir vidas e paisagens à linguagem da mercadoria e da acumulação de capital (IORIS, 2018). Para abordar esta complexa complexidade socioespacial, o nosso ponto de partida é reconhecer, de forma crítica, a longa tradição positivista e os fundamentos coloniais do conhecimento científico e acadêmico (MacDONALD, 2017). Esse reconhecimento é parte do esforço, cada vez mais necessário, para descolonizar as ciências sociais e respeitar a sabedoria indígena e sua ética baseada na reciprocidade (BLASER, 2010)¹. Como apontado por Coombes, Johnson e Howitt (2014, p. 845, tradução nossa),
[...] trabalhar com povos indígenas ampliou muito […] o entendimento sobre os modos mais apropriados de envolvimento e representação […] esse desafio serve para questionar o próprio propósito da nossa investigação.
Pode-se ver, então, a grande relevância teórica, analítica e política da noção de indigeneidade. Sendo um conceito interdisciplinar com implicações acadêmicas e mais que acadêmicas, indigeneidade refere-se às condições da existência indígena e às diversas formas de interação com outros grupos sociais. É uma construção de processos socioespaciais por meio dos quais os lugares e as pessoas podem ser determinados como distintos ontológica, epistemológica e culturalmente (RADCLIFFE, 2017). Mais do que isso, para os povos indígenas, indigeneidade é prova e demonstração conta a discriminação que se alimenta de imaginários sociopolíticos excludentes (IORIS, 2023a, 2023b). Indigeneidade é, portanto, uma categoria relacional e dinâmica com significados históricos e espaciais profundos. O próprio sentido de indigeneidade está em constante evolução em função da experiência mesmo de ser indígena (BURMAN, 2014). Indigeneidade, como um conceito amplo e rico, tenta dar conta da pluralidade que a existência indígena
representa. Portanto, a reconceptualização de indigeneidade, por uma perspectiva criativa, deve informar investigações críticas sobre os legados coloniais e estruturas contemporâneas de poder (RADCLIFFE, 2017). Entre outras consequências, isso significa realizar pesquisa por meio de um envolvimento genuíno e de uma reflexividade partilhada, traduzida em tarefas com e em benefício das comunidades indígenas, as quais são ao mesmo tempo objeto e sujeito do estudo. Deve permitir a expressão do pensamento dos participantes indígenas e o seu envolvimento desde a formulação de perguntas até a interpretação dos resultados, ou seja, de forma totalmente diferente da investigação convencional e extrativista para benefício de acadêmicos não indígenas e/ou agências governamentais.
Semelhante ao estudo de movimentos feministas, étnicos e queer, a pesquisa indígena deve abrir a perspectiva de descolonizar e reimaginar horizontes e funções mais amplos para/da geografia e outras ciências sociais (PANELLI, 2008). A atenção deve se voltar para a coprodução de conhecimento e o reconhecimento de responsabilidades por problemas socioecológicos locais e globais, mas também as maneiras pelas quais as comunidades indígenas demonstraram adaptabilidade e resiliência para prosperar em meio a grandes incertezas no contexto contemporâneo (GREEN; RAYGORODETSKY, 2010). Até mesmo a apresentação de pedidos de bolsa de pesquisa e a redação de publicações científicas devem permitir aos participantes se autorrepresentarem e afirmarem suas ideias (WATSON; TILL, 2010). Para além de posições essencialistas, românticas e reducionistas, os investigadores, em uma pesquisa participativa e crítica, devem estar sempre preocupados com políticas da etnicidade, bem como com as questões de representação e a construção ideológica de vários outros
grupos racializados, sempre em favor de conceptualizações que sejam específicas ao tempo e ao lugar (JACKSON; PENROSE, 1993). Nessa linha de ação engajada, os capítulos deste livro baseiam-se no compromisso político e humanista com a população Guarani-Kaiowá (e com comunidades do mesmo povo indígena que vivem no Paraguai, designadas Paĩ-Tavyterã). Os Guarani-Kaiowá são a segunda maior nação indígena brasileira e, especialmente nas últimas cinco décadas, foram brutalmente desalojados, explorados e oprimidos devido ao avanço de grandes propriedades privadas e da produção pelo agronegócio (IORIS, 2019). A grande maioria do território Guarani-Kaiowá — que designamos como Kaiowlândia
em outros textos nossos (ver IORIS, 2021) — foi tomada pela imposição de um desenvolvimento excludente. Ao mesmo tempo, essas perdas estão sendo reivindicadas e disputadas pelas famílias e comunidades indígenas junto aos proprietários de terras e às autoridades responsáveis pela violência sistemática (IORIS; BENITES; GOETTERT, 2019).
Tendo em conta essa geografia de alta tensão e injustiças estruturais e estruturantes em Mato Grosso do Sul, a compreensão da persona e da sociedade indígena exige do pesquisador uma profunda valorização de características socioespaciais legadas do passado e que são ativamente renovadas na resistência e coexistência com o agronegócio. Como observado por Burgin (1996, p. 181), a busca pela essência (ou seja, ontologia) tende para a autoctonia, uma busca pela origem – no traçado de uma história: pessoal, racial, étnica ou nacional
. Especificamente para lidar com a longa trajetória e as estratégias de resistência e cooperação dos Guarani-Kaiowá, sugerimos que pode e deve ser empregada uma estratégia etnográfica contingente e combinada, descrita a seguir.
Pesquisando e Perguntando sobre o Mundo Guarani-Kaiowá
O envolvimento dos povos indígenas em pesquisas científicas, embora amplamente estudado em todo o mundo, ainda exige um maior escrutínio conceitual e uma profunda reflexão sobre as práticas e pressuposições. Deve ser também objeto de um rico debate sobre os requisitos éticos, metodológicos e interpretativos, bem como sobre as responsabilidades de pesquisadores indígenas e não indígenas. A abordagem mais comum ainda na academia é aceitar, mesmo que subliminarmente, a ordem socioespacial hegemônica, sem ter em conta a agência e a consciência daqueles afetados pelo colonialismo e marginalização, como no caso dos indígenas. Odora Hoppers (2021) alerta que sistemas dominantes de conhecimento geralmente levam a sérios mal-entendidos pela falta de uma crítica de posicionalidade dos pesquisadores. Grande parte dos analistas frequentemente ignora a inventividade, as reações ativas e a complexa ontologia dos povos indígenas. Foi apenas a partir da década de 1970 que sua subjetividade política começou a atrair um reconhecimento mais efetivo e além de formulações simplistas. As nações indígenas são certamente os principais alvos do colonialismo e da expropriação, mas sua história e sua agência não terminam com a perda das suas terras ou a eliminação trágica de membros da sua sociedade (PARSON; RAY, 2018). Pelo contrário, continuam a reivindicar identidade e autonomia, mesmo nas atividades quotidianas mais corriqueiras. Lidar com a indigeneidade exige, portanto, sensibilidades pós-coloniais e a compreensão cuidadosa do significado político da cultura no espaço.
Tudo isso tem consequências importantes, especialmente para a realização de pesquisas com e para as comunidades Guarani-Kaiowá, que desde a década de 1950 perderam quase todas as suas terras ancestrais (mais de 95% do seu território original devido à colonização fomentada pelo Estado, à aceleração do desmatamento e à grilagem de terras). Como já mencionado anteriormente, a situação dos Guarani-Kaiowá reverbera e amplifica as contradições da modernização conservadora brasileira e da associada manutenção de privilégios político-econômicos (IORIS, 2017). Por outro lado, apesar das assimetrias de poder e elevados níveis de racismo, os Guarani-Kaiowá têm escrito uma das histórias mais bem-sucedidas de mobilização popular e continuam a desafiar as tendências político-econômicas e ideológicas. Resistem bravamente a uma racionalidade antagônica e que forçou a fragmentação e privatização do espaço, promovida e coordenada pelo Estado nacional (BARBOSA; MURA, 2011). O simples fato de os Guarani-Kaiowá se manterem como uma nação unificada e altiva (com mais de 55 mil indivíduos), com continuado apego a lugares e tradições ancestrais, revela sua capacidade de proteger seu patrimônio imaterial e de mobilizar grandes redes familiares de apoio. As pequenas concessões estatais nas últimas décadas (por exemplo, oportunidades de frequentar escolas secundárias, educação universitária e programas de pós-graduação) são, na verdade, manifestações de sua agência e criatividade, ou seja, uma clara capacidade de não apenas participar, mas influenciar e provocar mudanças socioespaciais significativas (IORIS et al., 2022). Em vez de capitularem e aceitarem uma derrota anunciada por muitos como inevitável, os Guarani-Kaiowá estão lutando e mantendo sua determinação de recuperar seu mundo ancestral.
Nesse contexto, uma abordagem metodológica mais adequada, produtiva e ética para conduzir pesquisas com os povos indígenas deve ser capaz de acumular informações, fomentar um aprendizado conjunto e dar sentido a processos profundamente politizados que produzem espaços vividos e contestados. Deve configurar-se em uma estratégia de investigação quali-quantitativa que visa conhecer o mundo de um ponto de vista dos próprios indígenas e das suas conjunturas socioespaciais. Baseia-se, assim, em um processo de descolonização e na procura de restauração e justiça efetivas. Deve criar um espaço intelectual para reunir as percepções emocionais de narrativas pessoais e exemplos de exclusão e privação que sustentam o genocídio em curso (i.e., Kaiowcídio
, cf. IORIS, 2021). Sendo um procedimento iterativo e não linear, a realidade passa a ser registrada à medida que são observados relações, materialidades e eventos durante o envolvimento com as comunidades, levando a uma aprendizagem cumulativa e a revisitar e repensar o que está a ser documentado e interpretado. Concordando com Spivak (1994), podemos afirmar que autores como Foucault, Deleuze e outros erraram de forma grotesca ao apenas
valorizarem a experiência dos oprimidos, mas serem acríticos sobre o papel histórico do investigador.
No caso da nossa investigação, foram realizadas entrevistas (em guarani ou português e posteriormente traduzidas para o inglês), visitas a comunidades, reuniões e participação em cerimônias religiosas e eventos públicos durante viagens de campo entre 2017 e 2023². Essas ações serviram para reunir percepções, emoções, narrativas pessoais e exemplos de tensões socioespaciais. Mais do que fatos e acontecimentos isolados, buscou-se tratar a interpretação como um processo de tradução das experiências mais imediatas e associação com a totalidade do espaço, do tempo e da política. Assim, procurou-se chegar a compreensões mais profundas das causas e consequências dos problemas que evoluem em diferentes escalas de interação. Nesse sentido, a pesquisa requereu sempre uma sensibilidade e uma reflexão constante, que tornassem explícitas as relações de poder e a agência individual e coletiva. Em vez de uma tentativa ingênua de dar voz aos indígenas
, que normalmente produz um simulacro de suas opiniões e perspectivas, o propósito foi de interagir com indivíduos reais
e tentar capturar a complexidade de seu espaço vivido, em vez de repetir trechos de entrevistas como um gramofone. Deveu-se ainda considerar fenômenos subjacentes, implícitos ou silenciosos, mas que refletem conjuntamente a evolução da ordem social.
Deve-se ter o claro intento de fortalecer o envolvimento de todos os membros da comunidade na investigação em andamento como aliados que criam em conjunto conhecimento que é ao mesmo tempo relevante e útil (conforme indicado por BALL; JANYST, 2008). Isso implica um diálogo amplo e equitativo, o que exige, antes de tudo, um compromisso ético e político para evitar estereótipos condescendentes e simplificações utilitárias (SMITH, 2022). Como expressão da autoconsciência, a investigação exige a própria descolonização do termo genérico indígena
ou nativo
em favor da distinção local e da pluralidade de experiências, ideias e demandas. A pesquisa também deve ser uma oportunidade para questionar e problematizar muitas formas de solidariedade e compreender como os povos indígenas percebem e reagem a outros grupos sociais (LAND, 2022). A trajetória político-econômica dos Guarani-Kaiowá, em particular, revela imensa riqueza socioecológica e sociopolítica que não pode ser compreendida sem grande engajamento e reflexão conjunta. Devido ao conhecimento acumulado e à capacidade de se engajar criativamente nos processos de mudança (apesar do balanço de poder assimétrico), eles conseguiram manter elementos importantes de suas práticas ancestrais que são hoje mobilizadas na retomada das terras e na luta pelos direitos humanos mais básicos.
Nossa pesquisa — sobre, para e com os Guarani-Kaiowá — incluiu ainda a participação em atividades específicas para melhor observar suas práticas e registrar narrativas. Foi possível organizar encontros com representantes de diferentes comunidades Guarani do Brasil, do Paraguai e da Bolívia, que puderam conversar sobre a situação das suas respectivas famílias e comunidades, rezar juntos e discutindo suas estratégias socioespaciais (Figura 1).
Figura 1 – Encontro entre membros de comunidades Guarani de Bolívia, Brasil e Paraguai no Tekohá Laranjeira Nhanderu, Mato Grosso do Sul (janeiro 2023)
A group of people sitting in a roomDescription automatically generatedFonte: foto de Antônio A. R. Ioris
Caminhar e conversar pelas residências, pelos campos de cultivo e pomares, estradas e cemitérios foi também oportunidade preciosa para conhecer memórias, sentimentos, expectativas e vínculos familiares (incluindo um cemitério com vítimas da luta pela retomada das terras ancestrais, Figura 2). Longas conversas com os informantes muitas vezes eram complementadas com desenhos no chão usados para explicar as mudanças na área e os conflitos com o agronegócio (Figura 3).
Figura 2 – Cemitério com mártires da luta pela terra ancestral, assassinados em confronto com pistoleiros e fazendeiros, Caarapó (janeiro 2019)
A wooden cross in a fieldDescription automatically generatedFonte: foto de Antônio A. R. Ioris
Figura 3 – Descrição e desenho da situação socioespacial e dos conflitos, Terra Indígena Caarapó (agosto 2019)
A person cleaning a hammockDescription automatically generated