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Avaliação Psicológica: Práticas profissionais nos diversos campos de atuação
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E-book727 páginas8 horas

Avaliação Psicológica: Práticas profissionais nos diversos campos de atuação

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Sobre este e-book

Escrito por profissionais com ampla experiência prática nos diversos campos de atuação, o eixo temático central deste livro é compartilhar suas experiências com psicólogos e futuros profissionais de psicologia sobre os processos teóricos e principalmente práticos da avaliação psicológica, assim como difundir o fazer "real" em uma linguagem didática, acessível a todos os profissionais da área da psicologia.

Nesta obra, os autores apresentam os fundamentos e as bases, com indicações práticas para realizar a avaliação psicológica, assim como os métodos e técnicas e os instrumentos utilizados, tendo como propósito disseminar a prática profissional em avaliação psicológica de qualidade, ética e alinhada a ciência. Logo, constitui um norteamento do processo da avaliação psicológica como um todo. Sendo assim, essencial para os profissionais que trabalham ou desejam se ocupar deste campo de atuação.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de jul. de 2024
ISBN9786553742284
Avaliação Psicológica: Práticas profissionais nos diversos campos de atuação

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    Pré-visualização do livro

    Avaliação Psicológica - Catalina Naomi Kaneta

    PREFÁCIO

    Neste livro, estamos diante de uma concepção original, que consiste em abarcar o campo da avaliação psicológica como um todo, colocando as características específicas de cada área sob um olhar de conjunto, sem deixar de considerar suas particularidades. A avaliação psicológica é compreendida em sentido muito amplo, que vai, em sua multipolaridade, desde a avaliação clínica de crianças e adolescentes, por exemplo, até a avaliação psicológica por porte de armas ou por criminalidade. Seguindo tais diretrizes, o plano do livro abrange as formas mais convencionais ou as mais heterodoxas de avaliação, incluindo, sem dúvida, a avaliação psicossocial, a avaliação psicoterapêutica, os contextos fundamentais da hospitalização, da escolaridade, do judiciário, do trabalho e das organizações, assim como as habilidades exigidas para o desempenho de determinada profissão, entre muitas outras. Isso não significa que o livro se limita aos termos gerais das avaliações, porque os detalhes são profundamente considerados, como é possível notar nas perícias do campo jurídico, nas avaliações por álcool e drogas, nas reabilitações, nas judicializações e mediações de conflitos, nos programas socioeducativos, nas inclusões e vulnerabilidades sociais, e assim por diante. O objetivo consiste não apenas em compreender as pessoas, mas, também, os grupos e as instituições. Para isso, colocam-se em primeiro plano as necessidades de descrever não só os cenários e os campos de conhecimentos, senão especialmente os instrumentos, as técnicas, os processos, os protocolos, as escalas e todos os elementos com os quais o profissional deve se familiarizar, sendo indispensáveis às tomadas de decisões em cada avaliação. Nesta, estão envolvidas questões éticas, estruturais e relacionais atinentes a cada campo, como também aquelas relativas à formação, à especialização e ao desenvolvimento do profissional. Subsidiariamente a cada campo, o livro oferece informações adicionais e contextuais sobre um grande número de questões relacionadas à avaliação psicológica, com excelente bibliografia atualizada no final de cada capítulo.

    Os organizadores conseguiram a proeza de reunir, num sincretismo único, pensadores e pensamentos distantes ou diferenciados entre si, como aqueles da psicologia objetiva, da corrente sócio-histórica, da psicanálise, da neuropsicologia, da terapia fenomenológico-existencial, entre outros. Apesar da diversidade, o livro comporta uma unidade estrutural, na qual o leitor inteirado a respeito de uma área se enriquece pela leitura de outras. Diferentes discussões são oferecidas, sejam teóricas, práticas ou epistemológicas, mas a organização dos processos de avaliação persiste sistematicamente sob o denominador comum da significação desses processos no contexto emblemático da estrutura geral. Isso se faz sem perder de vista que a avaliação psicológica é um domínio reconhecido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP).

    Com relação à própria Psicologia, é o caso de se perguntar se, de maneira geral, nessa multidimensionalidade, não é possível o alargamento de horizontes para que se conheçam outras modalidades de trabalho e outras formas de apreensão da realidade psicológica. Também, se a criatividade que serve a determinadas áreas não se aplica mutatis mutandis a outras áreas, seguindo os mesmos procedimentos livres e criativos que foram apontados no livro. A avaliação psicológica, como um sistema de referências múltiplas, pode servir não só a um trabalho multiprofissional, como também à exploração da multiplicidade destinada à ampliação de cada parte pertencente ao todo e, consequentemente, do todo constituído pelas partes. Chega-se, assim, a conceituações igualmente ampliadas de avaliação psicológica, em função de seus multideterminantes (intrapsíquicos, interpessoais, socioculturais, inter-humanos, históricos, econômicos, etc.), e também da inclusão de interconexões, interfaces e inter-relações entre diferentes teorias, práticas e formas de conceber, acolher e operar a realidade interna e externa do ser humano. A psicologia, como ciência, alça-se a um processo de ajuda ao desenvolvimento humano em todos os sentidos e possibilidades.

    Isso nos remete diretamente ao aspecto principal, que consiste no estabelecimento de uma atitude mental de acolhimento, sob um olhar humanístico, a fim de que o profissional não caia no estrito sistema operacional que pode conduzir à impessoalidade. Não se trata apenas da evitação de fórmulas, rótulos e padrões engessados, mas de estar aberto, livre e flexível para a descoberta e o emprego de diretrizes apropriadas às intervenções, sob a prevalência de métodos e técnicas fundamentados na liberdade associativa e na liberdade de expressão. Em muitos casos, podem-se aliar instrumentos sensíveis e estruturados com conhecimentos a respeito da subjetividade, por meio da própria sensibilidade e da intuição do profissional. Quando o relacionamento entre este e a pessoa atendida é o foco, a subjetividade constitui ponto prioritário, requerendo uma visão holística, que compreende os indivíduos, o ambiente institucional, social, comunitário e familiar, entre outros, como constituintes básicos da avaliação. Esse termo implica um setting elaborativo e, por se configurar em um contexto humano, solicita um maximum de criatividade por parte do profissional.

    Daqui se descortina um panorama para a avaliação psicológica. Se esta não se restringe à descrição de fatos isolados e separados uns dos outros e privilegia as considerações de conjunto para as observações e as instrumentações, ela é norteadora e reveladora das faces e dos aspectos centrais, buscando sínteses significativas. A compreensão psicológica globalizada está muito além do conhecimento – se bem que necessário – das disfunções, deficiências e enfermidades; ela alcança a condição humana em seu corpo total. Mesmo que se refira a determinado aspecto, é sempre a identificação dos macroprocessos que está em jogo. Isso está em conformidade com a Resolução n. 06/2019 do Conselho Federal de Psicologia, que preconiza uma atitude avaliativa compreensiva, integradora e contínua.

    Significa, outrossim, a verificação dos aspectos mais profundos das pessoas e das situações envolvidas nas avaliações, de que não se excluem as dinâmicas emocionais inconscientes e inexplícitas, que se estendem e impregnam grande parte das instituições humanas. Elucidar os significados mais profundos dos fenômenos implica, por sua vez, a subordinação de todo instrumental psicológico ao pensamento, que não é só racionalidade, é também afetividade.

    Nessa trajetória, chegamos à consideração do simples fato de que uma avaliação globalista leva em conta tanto o contato com o ser do examinando quanto com o ser do examinador. Todo processo criador humano parte desse contato, por meio do qual se promove a autonomia. Os instrumentos de investigação fazem eco e subordinam-se a esse princípio fundamental de reconhecimento e de contato com o ser do ser humano. Na avaliação psicológica, torna-se indispensável o conhecimento do estado do contato com esse ser, de modo que as funções e condições examinadas estejam em sintonia com o que há de mais profundo e significativo na pessoa, constituindo seu núcleo central. Daqui se podem verificar as relações com o mundo externo e com o mundo interno. Nesse posicionamento epistemológico, o profissional descobre a individualidade como matriz existencial, em sua totalidade estrutural única e indecomponível, que opera em vista da organização e da harmonização do todo somatopsíquico.

    Desse ponto de vista, a avaliação psicológica não deixa de ser polêmica, ao afirmar sua coerência com as expressões livres e criativas do próprio ser daqueles que nela estão envolvidos. Uma sociedade extremamente competitiva pode distorcer o contato com a individualidade fundamental da pessoa, em qualquer fase de seu desenvolvimento, ao estimular ou impor padrões em desacordo com as reais necessidades humanas. Frequentemente, esses padrões não se originam apenas do universo corporativo ou estatal, senão também dos condicionamentos psicológicos a que os próprios indivíduos estão submetidos. É o caso, por exemplo, da atitude mental voltada à adaptação ideológica ou ao sucesso ilimitado, como finalidades absolutas, sem considerar as realidades mais profundas. Torna-se bastante complicado ao psicólogo operar profissionalmente em sistemas nos quais ele se defronta com constantes da sociedade (que afeta o ser humano de modo geral), da política e dos grandes interesses corporativos, que dele esperam ou condicionam alinhamentos incompatíveis com as verdadeiras exigências do ser do ser humano. É óbvio que a saída dessa situação não está no emprego indiscriminado da chamada objetividade dos instrumentos, que resulta em frieza objetiva do trabalho profissional, mas, sim, na evolução mental de todos os participantes em direção à humanização.

    Assim, chegamos à conclusão de que a palavra avaliação pode assumir sentidos ambíguos, que se referem tanto à visão ampla do ser e da condição da pessoa humana quanto à visão estreita, rígida ou meramente processual. Todavia, o psicólogo tem em mente que o saber psicológico não se restringe às prescrições adredemente estabelecidas por um meio cujo funcionamento se assemelha àquele das máquinas (em que se inclui a inteligência artificial), mas compreende, sobretudo, uma abertura à fonte viva da humanidade e ao acolhimento do ser de cada indivíduo humano. Aquilo que é experimentado como proveniente do fundo do universo, como a música sublime, é por si mesmo alargado e sagrado, devendo ser recebido com afeição.

    Walter Trinca

    Professor Titular da Universidade de São Paulo e Psicanalista

    (Membro Efetivo da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo).

    PARTE 1 – BASES GERAIS DA AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA

    CAPÍTULO 1

    Contextualização histórica sobre a avaliação psicológica

    Helena Rinaldi Rosa

    Jorge Luís Ferreira Abrão

    Hilda Rosa Capelão Avoglia

    Ao contextualizar historicamente a avaliação psicológica, parece necessário adotar um percurso que se ocupe, ainda que brevemente, da diferenciação entre os testes psicológicos e o processo de avaliação. Comumente eram entendidos como se referindo a um mesmo tipo de procedimento, mas, na realidade é relevante traçar alguns aspectos que os diferenciem, embora, de início, essas estratégias estejam implicadas uma na outra. A história inicial dos testes pode ser encontrada em diversas publicações científicas (Anastasi & Urbina, 2007), sendo que o interesse pela avaliação psicológica é reconhecido desde a Antiguidade (Anastasi, 1997; Cunha, 2000; Ambiel et al., 2019).

    Assim, apresenta-se a avaliação psicológica enquanto um procedimento científico que busca, por meio de vários instrumentos e técnicas, promover a descrição e a classificação do comportamento humano com a finalidade de inseri-lo em uma tipologia, permitindo comparar o indivíduo avaliado aos comportamentos usualmente encontrados em determinado grupo (Pasquali, 2001). A partir dessa definição, observa-se que os testes psicológicos se caracterizam como instrumentos que integram o processo de avaliação, sendo que, neste caso, cabe destacar que outros recursos podem ser inseridos, como entrevistas, observações, procedimentos clínicos, entre outros.

    Resgatando a etimologia da palavra testes, identifica-se que sua origem provém do latim testis, que significa testemunho; passando posteriormente para a língua inglesa, na qual se encontra o vocábulo test, cujo sentido é prova, evidência. Portanto, em geral a palavra teste caracteriza-se como uma prova que dá testemunho, ou seja, que fornece indicações sobre determinados aspectos do comportamento ou da personalidade do indivíduo.

    No que se refere aos testes psicológicos, temos, de um lado, os psicometristas, preocupados em avaliar e conhecer aspectos de grandes grupos, como os humanos, e com as diferenças individuais (Silva, 2010), e que foram aprimorando cada vez mais as ferramentas estatísticas que permitiram grandes avanços científicos nessa área. De outro lado, há o foco dos clínicos que se voltava à avaliação individual (Anastasi & Urbina, 2007), buscando contribuir para melhorar o ajustamento daqueles que apresentavam dificuldades cognitivas, motoras e/ou emocionais.

    Com as duas guerras mundiais, a psicologia contribuiu muito para a seleção de pessoal, a avaliação de desempenho e a reabilitação daqueles que voltavam das lutas com lesões físicas e psicológicas, muitas vezes irreparáveis. O crescimento dessa ciência – como, aliás, de todas as diferentes ciências – foi vertiginoso. Muitas técnicas de exame ou avaliação psicológica foram, então, desenvolvidas: as escalas Wechsler, os testes coletivos de inteligência e de outras habilidades humanas necessárias, o estudo dos desenhos, inicialmente como diagnóstico do desenvolvimento infantil e, então, como métodos projetivos (p. ex., Desenho da Figura Humana, HTP – House-Tree-Person). Incluem-se nesse grupo o Tematic Apercepcion Test (TAT) e o teste dos borrões de tinta de Rorschach (Silva, 2010).

    O século XX marca um crescimento exponencial dos instrumentos psicológicos, pautado pelo modelo de ciência positivista de Comte e, no caso do Brasil, inspirado pelas correntes liberais do modelo republicano brasileiro, considerados valiosos na modernização do sistema educacional do Brasil e sendo vistos como elementos importantes para assegurar à psicologia o status de ciência em nosso país (Silva, 2010).

    Nesse contexto, sustentadas sobretudo pelos fundamentos filosóficos da escola nova, surgem no Brasil as chamadas clínicas de orientação infantil, destinadas ao atendimento do escolar deficitário. Com essa proposta, foi criada em 1933, no Rio de Janeiro, a Clínica de Orientação Infantil da Seção de Ortofrenia e Higiene Mental sob a liderança de Arthur Ramos e, em São Paulo, no ano de 1938, a Clínica de Orientação Infantil da Seção de Higiene Mental Escolar, capitaneada por Durval Marcondes.

    Essas instituições tinham como finalidade oferecer atendimento multiprofissional a crianças que fracassavam em seu desempenho escolar. Assim, os chamados alunos anormais eram submetidos a um processo de avaliação que contemplava exame físico por pediatra, exame psiquiátrico, avaliação da inteligência e investigação social. Foi nesse contexto que os testes psicológicos, sobretudo aqueles destinados a aferir a inteligência, começaram a ser utilizado com maior regularidade no Brasil.

    Considerando que na década de 1930 não havia profissionais habilitados em psicologia, visto que a profissão ainda não era reconhecida no Brasil, os profissionais responsáveis pela aplicação dos testes psicológicos eram recrutados entre professoras normalistas que haviam concluído Escola Normal. Esses profissionais recebiam, na ocasião a alcunha de psicologista. Nesse contexto, os testes psicológicos eram entendidos como uma prova destinada a caracterizar o indivíduo, de um ponto de vista determinado (Cunha, 1946, p. 69).

    O emprego de testes de inteligência, particularmente a escala Stanford-Binet, empregada com regularidade nesse período, inserida em uma proposta de avaliação multiprofissional, possibilitou a Arthur Ramos introduzir uma distinção ainda inédita no Brasil, diferenciando as chamadas crianças anormais em dois grupos distintos: (1) as crianças problemas, entendidas atualmente como aquelas que manifestavam alguma dificuldade emocional ou problema de aprendizagem; e (2) as que apresentam retardo mental, atualmente denominadas deficientes intelectuais.

    A nossa experiência no exame dos escolares difíceis mostrou que havia necessidade de inverter os dados clássicos da criança chamada anormal. Esta denominação – imprópria em todos os sentidos – englobava o grosso das crianças que por várias razões não podiam desempenhar os seus deveres de escolaridade, em paralelo com os outros companheiros, os normais (…) A grande maioria, porém, podemos dizer os 90% das crianças tidas como anormais, verificamos na realidade serem crianças difíceis, problemas, vítimas de uma série de circunstâncias adversas (Ramos, 1939, p. 13).

    A partir desses movimentos iniciais, em que os testes psicológicos foram gradualmente introduzidos na seara da avaliação e, de modo mais abrangente, na avaliação multiprofissional, evidenciou-se uma popularização de sua utilização em décadas posteriores. Contudo, esse progresso desencadeou o uso indiscriminado dos testes, com a supervalorização de seus resultados e consequentes questionamentos. Entre os posicionamentos mais críticos, identifica-se o caráter eugenista e segregador desses instrumentos que pontuam os melhores em detrimento da maioria das pessoas (isolar as subnormais, débeis mentais, os imigrantes, entre outros). Nesse percurso, a ênfase nas humanidades e na filosofia aponta outro modelo de ciência. Para aprofundar essa discussão, ver Silva (2010) ou Patto (1997).

    Tais posições críticas se mostraram bem fundamentadas e arrefeceram os ânimos dos psicólogos. Destaca-se, no entanto, que a avaliação psicológica subsidiou a construção da identidade dos profissionais da área, o que nos permite afirmar que, sem esse desenvolvimento inicial, em especial no Brasil, a profissão estaria em grande defasagem.

    Em outros tempos, era corriqueiro aplicar um teste em alguém e, com base nesse resultado, fazer o encaminhamento; inclusive, muitas vezes, a indicação de outros profissionais chegava aos então psicologistas (como neurologistas, pediatras, psiquiatras, entre outros), definindo qual teste deveria ser aplicado. Cabia ao psicólogo enviar ao remetente um relatório descrevendo os resultados obtidos nos testes, prestando contas de seu trabalho ao profissional solicitante, adotando um modelo similar ao modelo médico, desprovido de uma identidade profissional sólida. Nessa perspectiva, os testes constituíam um fim em si próprios, ou seja, como se fossem a própria avaliação psicológica e a pseudoidentidade do psicólogo como testólogo (Ocampo et al., 1990).

    No entanto, a necessidade de fortalecimento da imagem profissional do psicólogo instigou novas proposições, que marcaram diferenças entre aplicar um teste e realizar um processo de avaliação psicológica. Destaca-se um período no qual a dinâmica psicanalítica foi imposta ao modelo de diagnóstico e, com isso, uma supervalorização das entrevistas, ao mesmo tempo que se desmerecia o valor do teste, gerando uma nova crise de identidade que apontou outros tipos de avaliação (Ocampo et al., 1990).

    O termo avaliação psicológica (psychological assessment) surgiu em 1948, nos Estados Unidos, voltado à tarefa de selecionar o pessoal qualificado para ações de alto risco, destacando potencialidades, capacidades e recursos nos participantes, e não apenas identificando patologias ou deficiências (Casullo, 1996). Entretanto, segundo Avoglia (2012), ainda nos dias atuais é possível lidar com questionamentos sobre a contundência com que a avaliação psicológica se dedica às enfermidades e deficiências.

    A compreensão do sentido da avaliação psicológica tem sido discutida e ampliada, buscando avaliar fenômenos reais ou simbólicos, valendo-se de dados obtidos por instrumentos quantitativos e qualitativos, fazendo uso de entrevistas, testes, procedimentos clínicos e técnicas diversas, articuladas ao contexto social com o qual o indivíduo convive e se transforma (Avoglia, 2006) e, por fim, considerando determinado enfoque teórico, em conformidade com a busca de uma visão mais integradora desse fazer psicológico (Ocampo et al., 1990; Trinca, 1984; Arzeno, 1995; Grassano, 1996; Casullo, 1996), de tal maneira que temos no Brasil, e fora dele, uma preocupação maior em oferecer uma avaliação psicológica mais consistente, que questiona os próprios resultados confrontando-os com a realidade em que vive a pessoa avaliada, que integra os dados obtidos a partir de diferentes instrumentos e que não abre mão da subjetividade do avaliador.

    Diante da consolidação da psicologia, e com a criação da lei que regulamenta a profissão em 1962 e do sistema Conselhos em 1964 (Conselho Federal de Psicologia e Conselho Regional de Psicologia), que fiscaliza o exercício da profissão no Brasil, esse quadro vem se modificando, somando-se ao crescimento do mercado de trabalho para os psicólogos, além de seu reconhecimento perante a sociedade. Possivelmente como auge desse movimento, registra-se que o ano de 2011 foi estabelecido pelo sistema Conselhos como Ano da Avaliação Psicológica, envolvendo toda a categoria e refletindo sobre a complexidade do processo de avaliação psicológica, no qual os Direitos Humanos deveriam ser garantidos, bem como os princípios éticos e técnicos da profissão, sendo o objetivo final das atividades a qualificação dessa prática no Brasil (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2011, p. 1). O documento Ano da avaliação psicológica – textos geradores foi publicado reunindo textos geradores organizados em três eixos temáticos de grande importância para o amadurecimento da área, a saber: (a) qualificação – critérios de reconhecimento e validação a partir dos direitos humanos; (b) qualificação – processo de avaliação; e (c) relação com o contexto de formação.

    Nesse cenário, muitos profissionais utilizavam testes psicológicos eventualmente importados de outros países ou muito antigos, com amostras e normas distantes das especificidades da população brasileira, comprometendo critérios de cientificidade. Essas condutas geraram implicações judiciais, pois atingiam diretamente processos seletivos para cargos em organizações, preocupados com a contratação de executivos, por exemplo. Outro aspecto a ser considerado se refere à inserção de crianças em classes especiais, como eram chamadas, com laudos baseados em tabelas americanas e antigas – tema que ainda preocupa os psicólogos (Patto, 1997).

    Em função do uso inadequado e abusivo dos testes, em 2003 foi criado o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (Satepsi), vinculado ao Conselho Federal de Psicologia (CFP) (Resolução n. 002/2003 e seguintes) e resultante de eloquentes discussões da categoria, procurando responder às críticas diante das inconsistências no uso dos testes nos processos de avaliação psicológica. Trata-se de uma plataforma informatizada, gerenciada por uma Comissão Consultiva em Avaliação Psicológica, constituída por especialistas e pesquisadores com reconhecida produção na área, cuja finalidade é determinar a qualidade de quais testes podem ou não ser utilizados no Brasil, aprovando-os ou não[1].

    Há 19 anos os psicólogos brasileiros se reportam ao Satepsi para esclarecimento de dúvidas e consultas sobre quais testes podem ser aplicados nas atividades da prática profissional. No entanto, ainda há muitos aspectos a serem pautados no que se refere às atividades do Satepsi, por exemplo, certa imposição do modelo psicométrico como critério de verdade científica a todo e qualquer teste psicológico, inclusive àqueles de natureza projetiva, por vezes gerando impasses para receber aprovação, como explica Silva (2010). A autora ressalta a necessidade de acolher a multiplicidade de enfoques da psicologia, desenvolvendo a crítica histórica e epistemológica da ciência psicológica e conclui sobre a importância de se considerarem divergências e conflitos existentes, explicitando-os e conservando-os, sem excluí-los, promovendo a construção do conhecimento e a diversidade da psicologia, que transita entre conhecimentos objetivos e subjetivos, como descreve Ancona-Lopez (2002).

    Essa discussão traz à tona questionamentos relativos à inadequação do próprio uso do termo testes psicológicos quando se trata de instrumentos psicológicos que compõem o método clínico e, portanto, utilizados em processos de avaliação psicológica característicos da prática clínica diagnóstica, como psicodiagnóstico ou diagnóstico psicológico, com implicações para a formação do psicólogo, como afirma Silva (2010). Nesse sentido, a própria formação em psicologia vem redimensionando suas perspectivas de ensinar avaliação psicológica, pois, se no passado predominava o ensino da técnica pela técnica, circunscrita a como aplicar e avaliar um teste, na atualidade se observa uma preocupação de que o estudante compreenda o que é avaliar, atribuindo um sentido mais global à tarefa de aplicar e avaliar um teste. A avaliação, segundo Arzeno (1995), existe para explicar o que ocorre com o paciente, além daquilo que ele mesmo pode conscientemente comunicar ao psicólogo, mas a autora adverte que explicar o que ocorre é diferente de colocar rótulos (p. 6), podendo também ser um modo de se avaliar a evolução do tratamento, apreciando os avanços terapêuticos.

    Importante ressaltar que, entre os procedimentos que integram o processo de avaliação psicológica no contexto clínico, é possível diferenciar testes psicométricos e métodos projetivos quanto à natureza dos instrumentos e à fundamentação teórica que os sustenta: características, precisão, critérios de validação, entre outros. Sendo um processo científico, é realizado com base em hipóteses prévias e objetivas que poderão ser confirmadas ou refutadas por meio de etapas predeterminadas. Tais etapas incluem a aplicação de testes e técnicas psicológicas (Cunha, 2000). Nessa perspectiva, alguns aspectos podem ser considerados: a visão global do indivíduo; a integração de dados obtidos nos testes, entrevistas e nos procedimentos clínicos; os contextos social e cultural nos quais o indivíduo se insere; a identificação de aspectos saudáveis, e não apenas psicopatológicos; a compreensão do funcionamento psíquico do sujeito; e o compromisso do profissional psicólogo diante da apresentação dos resultados (Donatelli, 2005).

    Essa visão integradora do processo diagnóstico é diferenciada, sendo denominada por Trinca (1984) diagnóstico psicológico compreensivo, buscando abraçar o conjunto e encontrando um sentido para o agrupamento das informações obtidas pelos mais diversos recursos técnicos. Nesse caso, é importante destacar o predomínio do julgamento clínico em detrimento das predições estatísticas – colocar o uso de testes psicológicos objetivos a serviço do julgamento clínico.

    Do mesmo modo, destaca-se que as condições do indivíduo obtidas pelos testes objetivos e psicométricos carecem de uma articulação com as variantes da trama vincular a ele relacionada. Uma avaliação isolada da história e do contexto será sempre limitada e, muito possivelmente, marcada por distorções, comprometendo, portanto, a qualidade do serviço oferecido.

    Entende-se a finalidade dos testes psicológicos quando inseridos na prática diagnóstica, atribuindo um caráter evolutivo no contexto da avaliação, pois, ao mesmo tempo que são relevantes para fornecer dados objetivos acerca do funcionamento psíquico do indivíduo (desenvolvimento cognitivo, psicomotor, nível de estresse, de ansiedade, indicadores de depressão, entre outros), podem ser articulados a outros dados advindos das entrevistas clínicas, de anamnese, entrevista ludodiagnóstica com crianças, além da própria observação e da escuta psicológica do psicólogo; viabilizando, inclusive, hipóteses diagnósticas e prognósticas.

    A elaboração da avaliação psicológica requer que o profissional leve em conta a complexidade que esse processo envolve, como argumenta Avoglia (2012), pois os resultados obtidos e devolvidos ao usuário certamente causarão interferência em sua trajetória de vida, uma vez que conhecer os resultados por meio de uma entrevista devolutiva pode transformar o indivíduo, impossibilitando ou potencializando seu futuro.

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    CAPÍTULO 2

    AVALIAÇÃO PSICOLÓGICA: DEMANDAS, DIFICULDADES E CRÍTICAS

    Rodrigo Toledo

    Um estranho no ninho

    Começo este texto ressaltando que minha atuação profissional não está explicitamente vinculada ao campo da avaliação psicológica. Ao longo de minha trajetória como psicólogo, pesquisador e professor, venho atuando no campo da psicologia escolar e, desde a graduação, direcionei minha prática ao enfrentamento dos diagnósticos precoces e, muitas vezes, equivocados, atribuídos aos estudantes com dificuldades no processo de escolarização.

    No início de minha trajetória profissional, flertei com a psicanálise, mas, com o passar do tempo, encontrei suporte teórico para minhas indagações nos aportes da psicologia sócio-histórica. Ao aprofundar-me em Vygotsky e em outros autores que sustentam a psicologia sócio-histórica, venho fazendo imersões teórico-metodológicas na psicologia escolar crítica e na psicologia social e, nessa caminhada, a avaliação psicológica atravessa regularmente meus caminhos.

    Entendo e defendo a afirmação clássica de Lane (2006, p. 76), que dizia que toda psicologia é social. Penso que essa definição é a base para as construções práticas e teóricas que apresento ao longo deste capítulo. Tenho procurado impregnar essa concepção em minha atuação cotidiana, bem como na leitura que faço de meu trabalho como psicólogo. Parto do princípio de que o compromisso com a transformação da realidade é o que sustenta o rompimento com os interesses das elites brasileiras.

    Esse cenário, de aliança da psicologia com as elites brasileiras, dificultou a atuação de profissionais da psicologia, em especial daqueles que buscam se comprometer com a transformação da realidade a partir do diálogo entre a formação e a profissão. Entendo, assim como Martínez (2010), que as possibilidades de atuação dos psicólogos devem constituir um tema de reflexão entre aqueles interessados em contribuir para o melhoramento da qualidade de nosso trabalho. É com esse compromisso que tenho atuado como psicólogo escolar e como docente na formação de psicólogos ao longo dos últimos 15 anos.

    Nos espaços de militância pela psicologia, tenho acompanhado os esforços de profissionais que buscam promover uma releitura da atuação profissional, que implica um reposicionamento teórico-metodológico para enfrentar os desafios políticos e práticos que se colocam aos profissionais que atuam nos mais diversos campos de trabalho.

    É desse lugar que compartilho minhas ideias, expressas neste capítulo, ao lado de colegas de profissão tão importantes e competentes na área de avaliação psicológica. Mesmo não sendo propriamente do campo, sinto-me honrado em relatar minhas experiências, pois há algo que nos une: partilhamos o entendimento de que é possível construir uma prática psicológica que assume como característica uma perspectiva crítica, inventiva e que esteja voltada à construção de práticas que eliminem todas as violências, sofrimentos e exclusão da vida em sociedade.

    Por isso, reafirmo que devemos entender que a atuação em psicologia deve estar comprometida com a transformação da realidade brasileira antes de compartilhar minhas reflexões e posicionamentos sobre avaliação psicológica.

    A construção de uma experiência crítica em avaliação psicológica

    Como docente, sou responsável pela disciplina Fundamentos do Diagnóstico e da Intervenção Psicológica no curso de Psicologia em uma instituição na qual trabalho. Essa disciplina, em linhas gerais, tem como foco apresentar aos estudantes a importância da instrumentalização técnica, ética e metodológica para o diagnóstico psicológico, com objetivo de construir intervenções adequadas e eficientes para as queixas, problemáticas e demandas nas mais variadas áreas de atuação profissional do psicólogo.

    Comumente tenho como ponto de partida uma discussão que procura fundamentar uma análise crítica sobre objetivos e métodos para a elaboração de um diagnóstico psicológico e, consequentemente, da avaliação psicológica. Talvez aqui esteja um dos elementos iniciais sobre o qual precisamos pensar: o que vem a ser fazer uma leitura crítica da realidade?

    Entendo, assim como Gonçalves e Bock (2003), que, ao longo de nossa trajetória como sociedade, a produção de conhecimento esteve alicerçada em uma perspectiva de neutralidade e objetividade, que pretendia nos formar para que nos tornássemos capazes de afastar qualquer contaminação ou viés em nosso fazer psicológico e em nossa atividade de pesquisa. Para as autoras, produzir conhecimento científico era manter-se, como sujeito, externo ao objeto a ser investigado, fosse qual fosse esse objeto (Gonçalves &

    Bock, 2003, p. 42).

    Essa definição nos permite fazer uma leitura cuidadosa sobre a necessidade de realizarmos uma leitura atenta da realidade, que possa auxiliar em uma melhor compreensão sobre os fenômenos psicológicos, pois, se nossa perspectiva teórica e técnica tiver como ponto de partida a ideia de que os humanos podem ser compreendidos de uma maneira a-histórica e que nosso papel como profissionais da psicologia é mantermo-nos distantes e neutros dos fenômenos que constituem uma pessoa, afirmo, categoricamente, que estamos completamente equivocados.

    Defendo, assim como Martín-Baró (1997), que é preciso discutirmos exaustivamente as práticas profissionais em psicologia, as quais, a partir da ideologia da neutralidade e da objetividade, podem se configurar como um instrumento útil para a reprodução das estruturas injustas de nosso sistema social, econômico e político, servindo, assim, como suporte científico para as ideologias dominantes que reforçam hierarquias de poder, dominação, submissão e, muitas vezes, patologizam e medicalizam os fenômenos psicológicos.

    Por isso, entendo que defender uma perspectiva crítica é questionar as perspectivas metodológicas calcadas no mito da objetividade e da neutralidade que são proeminentes em algumas práticas psicológicas. Além disso, precisamos entender que qualquer leitura dos fenômenos psicológicos exige de nós uma compreensão de que são diversos os elementos que constituem a realidade e que nós, humanos, somos a síntese de múltiplas determinações. A partir dessa chave de leitura, entendo que podemos superar as explicações a-históricas e dicotômicas ou, ainda, superar explicações que separam e naturalizam o que entendemos por subjetividade e objetividade, que não enxergo como dimensões estanques, mas que se constituem mutuamente, de maneira dialética.

    Depois de fazer essa discussão com meus alunos, a segunda parte da disciplina que ministro consiste em discutir o que são diagnóstico psicológico e avaliação psicológica. Iniciamos essa discussão retomando a Lei n. 4.119/1962, que dispõe sobre os cursos de formação em psicologia § 1º, da mencionada lei, ao definir a função privativa: Constitui função privativa do Psicólogo a utilização de métodos e técnicas psicológicas com os seguintes objetivos: diagnóstico psicológico; orientação e seleção profissional; orientação psicopedagógica; solução de problemas de ajustamento (Brasil, 1962).

    Definir o diagnóstico psicológico exige de nós uma análise sobre o momento histórico de regulamentação da profissão e das próprias práticas que são destacadas como privativas para nossa atuação, fazendo-se necessário pensarmos sobre nosso fazer e com quem e com o quê gostaríamos de estar comprometidos. Penso que, na formação em psicologia, essa discussão é um ponto nevrálgico, pois contempla um dos aspectos de nossa atuação profissional, que é exclusiva, além de ser função transversal para a atuação em qualquer área da psicologia.

    O próximo passo para compreender o diagnóstico psicológico, em nossa disciplina, é retornar aos clássicos do campo da avaliação psicológica. Por isso, estudamos Trinca (1984), que nos lembra da etimologia da palavra diagnóstico e de seus significados: discernir, conhecer, ver através de. Com isso, o autor permite entender que um diagnóstico nos possibilita compreender um fenômeno ou, ainda, a característica e as relações de partes que compõem um todo.

    Estudamos, também, Cunha (1996 citado por Baroni, et al., 2010, p. 73), que explica que

    a palavra diagnóstico se origina de diagnose, no grego diagnôsis, e remete a ações de reconhecer, discernir, distinguir, separar, o que coaduna com a proposta de se guiar em investidas teóricas e também clínicas pelos imperativos científicos – olhar, constatar, diferenciar, reduzir para melhor investigar, determinar e olhar repetidas vezes para comprovar.

    A partir dessa compreensão, seguimos, durante os percursos de estudo em nossa disciplina, entendendo que, para atuar em psicologia e, mais especificamente, para realizar um diagnóstico psicológico, é necessário buscar sustentação no conhecimento científico produzido pela psicologia, ou melhor, é necessário responder às demandas de compreensão sobre pessoas, grupos e instituições por meio de uma leitura criteriosa, científica e que não seja excludente. Com essa ideia, chegamos ao que defende Cruz (2011, pp. 15-24): uma das características básicas do conhecimento científico é o esforço em não se restringir à descrição de fatos separados e isolados, mas tentar apresentá-los sob o estatuto do contexto e do estado da arte das pesquisas relacionadas.

    Cruz (2011) também defende que os estudos sobre avaliação dos fenômenos psicológicos se sustentaram, por muito tempo, em um formalismo científico que se preocupava – exclusivamente – com a medida das diferenças individuais e as aptidões humanas, sem considerar as múltiplas determinações que nos constituem como pessoa e ressoa nos grupos e instituições das quais participamos.

    Com essa compreensão, sigo na defesa com os estudantes de que qualquer trabalho psicológico, terapêutico ou não, individual ou coletivo, nos mais diversos modelos teóricos e abordagens, com foco na conclusão ou compreensão do fenômeno psicológico, demanda a realização de um levantamento inicial de informações, ou seja, é realizado a partir de um trabalho investigativo. Esta é a premissa da realização de um diagnóstico psicológico: a investigação.

    Tenho investido na discussão de que realizar um diagnóstico psicológico é compreender as determinações que caracterizam, de maneira momentânea ou duradoura, uma pessoa, grupo ou instituição. Mesmo com essa compreensão, é necessário lembrar que, dependendo do objetivo da prática psicológica, esse entendimento pode ser compreensivo ou conclusivo, sempre abarcando a busca de sentido para o conjunto de informações obtidas, com uma visão integradora dos aspectos que constituem as pessoas, grupos ou instituições avaliadas.

    Esse entendimento sustenta-se na definição apresentada na Resolução n. 006/2019 do Conselho Federal de Psicologia (CFP), que institui regras para a elaboração de documentos escritos produzidos pela(o) psicóloga(o) no exercício profissional: toda a ação da/o psicóloga/o demanda um raciocínio psicológico, caracterizado por uma atitude avaliativa, compreensiva, integradora e contínua, que deve orientar a atuação nos diferentes campos da Psicologia e estar relacionado ao contexto que origina a demanda (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2019).

    A mesma resolução também apresenta uma definição para avaliação psicológica que, em meu entendimento, complementa a discussão. O CFP afirma que avaliação psicológica

    se caracteriza por uma ação sistemática e delimitada no tempo, com a finalidade de diagnóstico ou não, que utiliza de fontes de informações fundamentais e complementares com o propósito de uma investigação realizada a partir de uma coleta de dados, estudo e interpretação de fenômenos e processos psicológicos (CFP, 2019).

    A partir dessas definições, procuramos (meus alunos e eu) pactuar o entendimento de que os resultados das avaliações devem considerar e analisar os condicionantes históricos, econômicos, políticos, culturais e sociais e seus efeitos na subjetividade, para servirem como instrumentos para compreender a constituição das pessoas, grupos e instituições, mas também para que seja possível pensar nas modificação desses determinantes que operam desde a constituição das queixas até a conclusão dos processos avaliativos. Como afirmam Barroso et al. (2015, p. 47), não existe prática profissional que não tenha função social.

    A resolução CFP n. 31/2022, que estabelece diretrizes para a realização de avaliação psicológica no exercício profissional da psicóloga e do psicólogo, regulamenta o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos (Satepsi) e revoga a Resolução CFP n. 09/2018, apresenta, em seu art. 1º, § 1º, outra definição importante, que corrobora o percurso construído na disciplina:

    A Avaliação Psicológica é um processo estruturado de investigação de fenômenos psicológicos, composto de métodos, técnicas e instrumentos, com o objetivo de prover informações à tomada de decisão [ênfase nossa], no âmbito individual, grupal ou institucional, com base em demandas, condições e finalidades específicas (CFP, 2022).

    Quero destacar o trecho em itálico, pois, em meu entendimento, ele reforça a característica de investigação que os processos avaliativos devem ter. Com isso, desenhamos na disciplina um método de trabalho investigativo, com fins diagnósticos ou não, e que devem:

    Descrever e compreender o funcionamento psicológico da pessoa, grupo ou instituição atendida;

    Responder às questões formuladas a partir do encaminhamento, da necessidade ou das demandas;

    Elucidar o significado das queixas ou problemáticas apresentadas e buscar uma compreensão psicológica globalizada da pessoa, grupo ou instituição atendida e contribuir para as mudanças ou revisões dos determinantes que possam produzir sofrimento.

    Amalgamados esses saberes, partimos para a terceira etapa de nossas discussões que se centram nos debate sobre a análise cuidadosa dos aspectos éticos, técnicos e teóricos que fundamentam o exercício profissional. O ponto de partida dessa conversa funda-se no entendimento de que o diagnóstico psicológico não envolve somente o nome, o título, o rótulo ou a conclusão que temos sobre algum fenômeno psicológico. Ao contrário, entendemos que o diagnóstico psicológico é um processo de conhecer, que pode nos levar a uma conclusão – mesmo que parcial de um fenômeno – ou, ainda, ajudar na compreensão sobre o que constitui ou sobre as características do fenômeno estudado para tomada de decisões futuras.

    Para pensar os aspectos éticos, técnicos e teóricos, é importante recordar alguns elementos de nossa realidade para que seja possível distanciar-se de uma compreensão equivocada, preconceituosa e elitista sobre os fenômenos psicológicos.

    Por falar nisso, entendo que a mídia tem um papel – em alguns momentos – que precisa de atenção em nosso trabalho quando se trata de saúde mental. Isso porque as mídias, atualmente, vêm difundindo socialmente o conceito de doença, o que, em minha leitura, tem o objetivo de fazer com que a própria pessoa possa fazer seu diagnóstico e sugerir o tratamento ao profissional que a atende. Cria-se uma lógica de mera identificação de sintomas, não exigindo nenhum procedimento investigativo ou avaliação qualificada e, com isso, é muito possível que a própria pessoa estabeleça sua condição de adoecimento e crie, ela própria, o melhor encaminhamento para seus cuidados.

    Não estou questionando a necessidade de a pessoa, grupo ou instituição participar ativamente de seu processo de cuidado; entendo a necessidade de se tornar protagonista de sua história ser algo fundamental para o tratamento de qualquer pessoa. A problemática aqui apontada reside no fato de que muitas pessoas simplesmente não acreditam naquilo que a ciência psicológica vem amplamente comprovando e estudando.

    Como afirmam Baroni et al. (2010), é urgente refletir sobre novas possibilidades de produção de outras formas de subjetividade. Para as autoras, uma atuação profissional cuidadosa requer a busca de pontos em que resistências se apresentem como linhas de fuga, onde novas práticas e leituras da realidade nos direcionem à produção de novos estilos de vida, novos nomes para a saúde, novos nomes para as pessoas.

    Quando partimos em busca de novos nomes, isso nos permite construir uma prática profissional que enfrente a lógica medicalizante presente em nossa sociedade. Dessa maneira, distanciamo-nos de uma lógica, como afirmam Angelucci e Souza (2010, p. 9), que confere uma aparência de problema de saúde a questões de outra natureza, geralmente de natureza social.

    Nessa direção, é fundamental exercermos uma prática profissional cada vez mais distante da padronização que busca homogeneidade. Como destaca Souza (2014), uma das características dos seres humanos é a heterogeneidade – que favorece a vida, pois possibilita à humanidade ter recursos para situações e ambientes diferentes, para sobreviver a mudanças e para operacionalizá-las. A autora conclui que "na busca da padronização (…) sofrem todos, pois somos sempre singulares (Souza, 2014, p. 312).

    Todo esse debate se articula com compreensão de que é necessário produzir a crítica ao fazer psicológico que implica um comprometimento ético e técnico com a profissão. Dessa maneira, entendemos que, para realizar um processo investigativo é imperativo, é preciso valer-se de no mínimo dois aspectos: (1) fundamentos éticos, isto é, as diretrizes que organizam, regulamentam e normatizam o exercício profissional; e (2) fundamentos teóricos e técnicos, que envolvem as diretrizes teóricas com suas compreensões sobre os fenômenos humanos, métodos, técnicas e instrumentos psicológicos reconhecidos cientificamente que estão disponíveis para realizar um trabalho fundamentado e científico.

    Ao término dessas três etapas, sistematizamos, na disciplina, o caminho percorrido, que consiste em entender que: o diagnóstico psicológico não é realizado exclusivamente para identificar patologias; todos os psicólogos realizam um trabalho investigativo, ou seja, realizam avaliação psicológica; seguir as normativas éticas da profissão garante um trabalho responsável e cuidadoso com as pessoas, grupos ou instituições

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