Location via proxy:   [ UP ]  
[Report a bug]   [Manage cookies]                

Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Lacan e a democracia: Clínica e crítica em tempos sombrios
Lacan e a democracia: Clínica e crítica em tempos sombrios
Lacan e a democracia: Clínica e crítica em tempos sombrios
E-book569 páginas7 horas

Lacan e a democracia: Clínica e crítica em tempos sombrios

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

É possível a associação entre psicanálise e democracia? De que maneira os conceitos de Jacques Lacan se relacionam com a política em geral? Nesta obra, o professor e psicanalista Christian Dunker apresenta aos leitores afinidades entre psicanálise e democracia no atual contexto de ascensão de fenômenos como a antipolítica não apenas conservadora, mas fascista em termos discursivos.

Com o objetivo de mostrar como a psicanálise contribui para a tradição crítica, para a reflexão histórica sobre a democracia e também para a revalorização da palavra em sua ação direta pelos sujeitos, este livro dialoga com o Mal-estar, sofrimento e sintoma, lançado em 2015 pelo autor. Em Lacan e a democracia, Dunker mostra como, em 2013, a lógica dos condomínios passou por um desequilíbrio com o aumento do desejo de acesso ao espaço público, de circulação pela cidade, de cidadania e participação política – processo que, naturalmente, também fez a reação contrária crescer, por parte daqueles que gostariam de regressar aos anos 1970 e reerguer os muros da exclusão e do silenciamento.

Fundamentado na convergência de diferentes esforços para pensar o que seria uma política que tem a psicanálise como alicerce, o autor joga luz ao empenho de Jacques Lacan em inscrever a psicanálise na tradição das luzes, no debate da ciência e no crivo da razão: "A democracia seria impossível sem essa confiança na palavra como pacto e revelação, como partilha e reconhecimento do caráter humano das leis", diz na introdução da obra.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento19 de jan. de 2022
ISBN9786557171257
Lacan e a democracia: Clínica e crítica em tempos sombrios

Leia mais títulos de Christian Ingo Lenz Dunker

Relacionado a Lacan e a democracia

Ebooks relacionados

Psicologia para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Categorias relacionadas

Avaliações de Lacan e a democracia

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Lacan e a democracia - Christian Ingo Lenz Dunker

    1

    Lacan e a democracia

    [a]

    Pensemos as relações entre a psicanálise de Lacan e a política a partir de uma definição fregeana. Vamos assumir que a psicanálise é a função e a política é o argumento. A extensão do argumento – ou seja, as acepções de política, os objetos que caem sob esse significante – envolve o conjunto de instituições e o sistema organizado de representação de interesses de classes, comunidades e grupos. O sistema eleitoral, o ordenamento jurídico, os partidos e os sistemas de governo formam, assim, nossa representação intuitiva de política. Nesse sentido, os psicanalistas, como qualquer outro agrupamento da sociedade civil, fazem política ao se inscrever no espaço público como atores, com suas escolas e suas políticas associativas, mas também pela forma particular de ocupar a esfera pública nas universidades, na imprensa, nas artes ou no debate intelectual. Por combinações, associações e parasitagens, a psicanálise participa das políticas públicas, ainda que com uma exceção notável: o repúdio a ser reconhecida pelo Estado.

    Esse entendimento mais ou menos convencional de política exclui e define um contracampo contável daquilo que não são atividades políticas: a vida privada das pessoas, a ciência, a arte e a religião, bem como a cultura de maneira geral. Mas essa noção começa a mudar substancialmente a partir dos anos 1970. Digo isso de forma aproximada, pois me parece que é a partir desse momento que dois fatores vão alterar de modo substancial o sentido de política:

    1) uma consciência cada vez mais clara de que esse conceito representacional de política é insuficiente para representar o desejo das pessoas. Note-se que usei, intencionalmente, duas vezes a palavra representação. Isso porque acredito que a crise do conceito convencional de política advém da descoberta da importância do representante, que não é uma representação, como nos acostumamos a ler na crítica lacaniana do representante da representação (Vorstellungsrepräsentanz) freudiano. Ou seja, o que representa um significante para outro significante pode ser um sujeito. A teoria do lugar vazio ocupado por um representante, que é sua representação simbólica incorporal e neutra, começa a ruir. Refiro-me aqui à teoria de Claude Lefort[1], que entendia que a democracia depende de lugares simbolicamente vazios que são ocupados por sujeitos reduzidos a sua função de representação, do mesmo modo como a função do psicanalista não deve se confundir com a pessoa que a ocupa;

    2) a experiência efetiva de que a dinâmica de conflitos e sua regulação segundo participações periódicas e regradas não consegue acompanhar a velocidade nem a intensidade da produção de novas formas de desejo. A ideia de que o voto como ato que se pratica a intervalos longos e decide instâncias de representação institucional seria a essência da democracia começa a se contrapor à de que a política deve ser uma prática cotidiana, infiltrada nas relações ordinárias. Ou seja, não somos apenas sujeitos que fazem exceção à representação paratodos[2]; somos também sujeitos expressivos e singulares (Einzeln), para usar uma categoria hegeliana que encontra vários correlatos insuspeitos em Lacan.

    Estou sugerindo que a psicanálise – Lacan, em particular – ocupou um lugar muito importante nessa mutação contemporânea do conceito de política. Voltemos a Gottlob Frege[3] e consideremos agora psicanálise não apenas como função, mas também como argumento. Veremos, então, que seria possível aplicar o quantificador universal (toda psicanálise) e o quantificador existencial (esta psicanálise) tanto à função política da psicanálise quanto a seus argumentos particulares. Com isso, o resultado passa a ser: psicanálise e psicanálise como política. O sintagma pode ser lido em uma série cujo sentido é:

    a) psicanálise e feminismo como política;

    b) psicanálise e marxismo como política;

    c) psicanálise e decolonialismo como política;

    d) psicanálise e psicanálise como política.

    Meu argumento para justificar essa partição vem da distinção que vários teóricos da política fazem entre A política (com A maiúsculo) como campo de circulação livre da palavra em espaço público, atribuindo a ela uma potência de deliberação e transformação, e a política (com a minúsculo) como sistema particular de interesses, mais ou menos orientados por comunidades específicas.

    Mais que em qualquer outro lugar, vale aqui a fórmula do significante que representa um sujeito para outro significante. Isso quer dizer que é possível tornar político tudo aquilo para que há um sujeito representante: os gêneros, os hábitos linguísticos, as escolhas estéticas e todas as formas de vida nas quais a dominação e a segregação se manifestam. O político é aquilo que decidimos politicamente tratar como político.

    Dessa maneira, Lacan e a política são um caso particular de psicanálise e política, e da tese de que o inconsciente é a política[4] não se deduz que esta seja uma política democrática. Para tentar mostrar isso, dividimos o problema entre o sentido maiúsculo e o sentido ordinário de democracia. O resultado nos faz perguntar qual Lacan e qual psicanálise queremos para responder ao estatuto político do inconsciente. A política se relaciona psicanaliticamente com as políticas, assim como o universal se relaciona com o particular – isto é, nem apenas a inclusão dos particulares em um universal pré-constituído nem a expansão indefinida dos particulares, mas de acordo com a estrutura da significação (Bedeutung), ou seja, de que não há universal que não contenha uma existência que o negue[5]. Uma política que tenha o Real em seu horizonte deve reconhecer, a cada vez e em seu próprio tempo, essa existência que nega o universal. Deve reconhecer e nomear essa exceção que constitui e desfaz o Real, a que também chamamos de verdade. A política é o horizonte, mas as políticas são as estratégias pelas quais dele nos aproximamos.

    Aqui Lacan comportou-se como visionário político ao realizar dois movimentos fundamentais:

    1) Se observarmos os textos de Lacan focados diretamente na prática clínica, veremos que são todos, sem exceção, textos que introduzem o problema do poder no interior da situação analítica. O caso mais óbvio é Direção da cura e os princípios de seu poder[6], mas isso pode ser verificado também em Variantes do tratamento padrão[7], Para além do ‘Princípio de realidade’[8] e, de modo mais agudo, em O aturdido. Portanto, Lacan antecipou a tendência ao perceber o problema do poder fora do escopo óbvio da política. Quero crer que isso veio do surrealismo e de como, em seu interior, se desenvolve o modelo do ato poético como ato transformativo por excelência. De Arthur Rimbaud a Raymond Queneau (Le dimanche de la vie)[b], era essa a questão, afinal.

    2) Mas a segunda antecipação lacaniana é certamente a mais radical. Ele propõe a existência de uma comunidade de exceção, capaz de representar, por si só, a incompletude e a inconsistência de todas as comunidades. Ele ousa criar um modelo empírico para o que seria uma comunidade de destino pós-edipiana, pós-identificatória e pós-segregatória; ou seja, a Escola de Psicanálise. Que não tenha se realizado, que ele a tenha dissolvido, que seu passe não funcione, tudo isso são apenas evidências do tamanho da comunidade experimental que ele propunha. E esse é um modelo de política (com p minúsculo) que faz exceção a se incluir na função genérica e abstrata, para todos, chamada A Política.

    A Escola de Psicanálise é uma comunidade por vir, e esse é o compromisso legado por Lacan. Obviamente essa seria uma política para além da biopolítica e da necropolítica que formam, hoje, a alternativa obscena que governa nossas escolhas representativas. Ela se opõe ao capitalismo e ao higienismo não porque se alinhe a seu contrário, mas porque se compõe como uma política do desejo e do despertar. Ela critica a economia política do escabelo não porque queira voltar para o tempo das substâncias desencarnadas, evadidas do espaço público, mas porque critica a topologia desse espaço: ele não é uma esfera como queria Habermas, e sim uma garrafa de Klein.

    A palavra e o conflito

    Gostaria de lembrar a afinidade de origem de psicanálise e democracia. Para os gregos, só é possível democracia se tivermos também isegoria, ou seja, uso livre da palavra em situação pública. E é pelo uso livre da palavra que o destino político pode ser definido pelos homens e não apenas pelos deuses. É pelo livre uso da palavra e diante dela que nós nos fazemos iguais, mas também tratamos nossa diferença. Não é acaso o método psicanalítico ter nascido com a associação livre. Não é indiferente que presuma um mundo de livres associações entre desejos e suas sobredeterminações. Portanto, psicanálise e democracia, no sentido político, dependem dessa possibilidade inédita de tratar pela palavra os conflitos que passam a ter, desde então, textura de palavra. Por isso a democracia se coloca antes do direito, antes da política, antes da moral e antes da economia. Ela é a condição pela qual tais domínios podem e devem se submeter.

    A psicanálise possui uma segunda afinidade de origem com a democracia. Diz respeito ao fato de que o inconsciente é sem fronteiras. O inconsciente, assim como o desejo, assim como o princípio da livre palavra, não é um defeito nem uma virtude particular, mas uma experiência universal. Ainda que dividido, ainda que faltante, ainda que negativo, esse universal nos afasta por origem da guerra entre os particulares. É porque a psicanálise adota a lei da palavra e faz da palavra sua lei que ela se mostra profundamente consoante com o segundo princípio da democracia, a saber, a isonomia, a igualdade diante da lei.

    Se a psicanálise é filha da modernidade, é porque poucas coisas ela herdou da Antiguidade. Por isso estas são tão importantes. A democracia é uma delas. E outros valores poderiam ser evocados aqui: a liberdade ou a justiça, a solidariedade ou o medo, a coragem ou a indignação, talvez a ética. Todos presentes diretamente na experiência da psicanálise. A democracia não apenas agrega todos eles, como emerge enquanto prática e discurso que nos faz ultrapassar o domínio dos indivíduos e passar ao das relações coletivas que permitem a existência de tais indivíduos. A palavra de cada um, colocada entre diferentes.

    A terceira afinidade entre psicanálise e democracia está no princípio da isocracia, pelo qual, diante dos bens públicos e suas instituições, não haverá prerrogativa de família, origem ou destino privilegiado que suspenda o pacto instituído pela palavra.

    A democracia se perde quando, em vez da fala de cada um, um por um, emerge o funcionamento de massa, onde a fala de cada um apaga-se no líder ou no ideal único, sem isegoria. A massa não é o coletivo, assim como o grupo não é a classe. Na massa, transferimos a autoridade regressiva para um estado de minoridade da razão. A democracia se anula quando suspendemos a isonomia criada pelo diálogo, substituindo a lei da palavra pela política da força e do rito jurídico, da guerra e da militância. A democracia é suspensa quando reduzimos a experiência coletiva da isocracia aos interesses privadosde juízos e juízes de circunstância, quando restringimos ou pervertemos o acesso à palavra no espaço público ou digital. A palavra e a democracia se veem ameaçadas neste momento no Brasil.

    Palavra que se diz no voto ou Wunsch e que faz a lei do desejo. Palavra que cria laços, compromissos e promessas no espaço público e privado. Palavra que se diz livremente, a cada vez e a cada um. Se são três as condições da democracia – isegoria (livre palavra em espaço público), isonomia (igualdade diante da lei pública) e isocracia (livre acesso às instituições públicas) –, seriam três também as modalidades do fracasso da democracia. E pressupõe-se, ainda, uma quarta condição, indireta: a existência de certo nível de igualdade social e econômica, ou seja, as condições reais de cidadania. Curiosa é a posição da psicanálise quando confrontada com tais condições. Ela não se quer regulada pelo Estado nem se enquadra como uma de suas instituições, apresentando-se, no mais das vezes, como parasitária ou perpendicular aos modos de reconhecimento. Ela se abstém de se pronunciar em matéria normativa e não advoga valores específicos para além de certas condições republicanas de base. Finalmente, sua ênfase na palavra livre não se inscreve no espaço público, mas é resguardada pelo sigilo. Desse ponto de vista, a psicanálise é uma ética e não requer nem implica uma política. Ao mesmo tempo, não seria exatamente por essa exterioridade ao campo da política (the political) e sua neutralidade diante das políticas (politics) que lhe facultaria uma posição de extimidade produtiva em relação à democracia? Ou seja, sua posição não lhe permitiria postular valores que nos ofereçam uma resposta positiva ao que se deve entender por democracia, mas reconhecer com presteza e criticidade quando não estamos na democracia?

    O problema que nos reúne não é a afinidade entre a psicanálise e a democracia, mas os fins da democracia. Fins aqui contém uma ambiguidade significante: o télos, a finalidade ou o horizonte da democracia como ideia futura, ideia reguladora, mas também encerramento, fim e suspensão da democracia. Essa inversão entre amor e ódio pela democracia, essa ambivalência histórica da democracia como governo e essa crença na representatividade democrática das instituições parecem encontrar, hoje, seu momento de inflexão mais baixo depois da Segunda Guerra Mundial.

    Negações da democracia

    Há duas perguntas que nos concernem, enquanto psicanalistas, sobre este momento:

    1) é possível pensar uma crítica psicanalítica da economia de gozo envolvida nesta espécie de hiato democrático?

    2) como descrever, se é que é possível, as modalidades de negação da democracia – se a força de uma ideia se mede pela repetição de seu fracasso, ou seja, pela forma como esse fracasso torna-se parte da história que o realiza, quais seriam as razões desse fracasso?

    Seria um tanto inusual recorrer a Lacan para examinar essas duas perguntas, se pensarmos em seu desinteresse patente pela questão da política; contudo, não podemos desconhecer que, apesar disso, as consequências de seu pensamento para a reflexão política de nossa época são inegáveis. De Žižek a Badiou, de Laclau a Butler, dos pós-lacanianos de esquerda aos experimentos institucionais que Lacan levou a cabo em sua escola, há uma espécie de disseminação de seu ensino na filosofia política contemporânea. Contrariando a tendência a extrair um pensamento político indireto de sua teoria dos discursos, de sua concepção de tratamento ou de suas considerações sobre a ética e a metapsicologia, vou partir da primeira menção de Lacan à noção de democracia, presente em seu estudo sobre a criminologia. Depois de mencionar uma paixão crescente pela posse e pelo prestígio nos ideais sociais[9], ou seja, de caracterizar certo estado da individualização moderna, ele afirma que a teoria psicanalítica poderia oferecer coordenadas para que o estatístico introduzisse melhor suas mensurações.

    Assim, o próprio político e o filósofo se beneficiarão disso, conotando, numa dada sociedade democrática cujos costumes estendem sua dominação sobre o mundo, o surgimento de uma criminalidade recheando o corpo social, a ponto de assumir nele formas legalizadas, a inserção do tipo psicológico do criminoso entre os do recordista, do filantropo ou da estrela famosa, ou então sua redução ao tipo geral da servidão ao trabalho, com a significação social do crime reduzida a seu uso publicitário.[10]

    Aqui se enumeram as patologias típicas da democracia quando ela avança como ideal de dominação sobre o mundo. Ressoa a ideia tão atual daqueles que querem impor a democracia como uma espécie de saneamento básico político a regiões refratárias aos modos de subjetivação que a tornam própria.

    Paradoxos do individualismo

    O primeiro efeito da negação da democracia como um descompasso entre seu processo e seus fins, ou seja, como adiantamento ou atraso em relação a seu próprio tempo, é a emergência do que já chamei de corrupção dentro da lei. As formas legalizadas dessa criminalidade instituída são o recordista, o filantropo, a estrela e o trabalhador em servidão. Em outro momento Lacan afirmará que o proletariado é o único verdadeiro sintoma social. Causa estranheza a heterogeneidade desses quatro tipos sociais. Os três primeiros estão marcados pelo signo da excepcionalidade: o recordista, empresário ou esportista fora de série; o filantropo, que representa a excepcionalidade moral; e a estrela, que indica o caso ímpar na experiência estética. Esse grupo de três pontos fora da curva destoa da servidão no trabalho, a figura sem qualidades, o indivíduo definido por sua função, a pessoa sem distinção. De um lado, a atitude comum; de outro, os protótipos do heroísmo. O crime, dentro ou fora da lei, torna-se a regra de composição dessa heterogeneidade.

    Graças à publicidade, ou seja, graças a certa conformação do espaço público, a experiência de excepcionalidade do criminoso, daquele que viola a lei, torna-se integrada à lei. Ora, essas três figuras são também representantes do que se pode chamar de gozo excessivo, gozo do Outro, gozo a mais, na gramática do reconhecimento democrático. Ocorre que, dentro da experiência democrática, alguns têm (e outros não) a internalização de estruturas democráticas.

    Essas estruturas, nas quais uma assimilação social do indivíduo, levada ao extremo, mostra sua correlação com uma tensão agressiva cuja relativa impunidade no Estado é muito perceptível para um sujeito de uma cultura diferente (como era, por exemplo, o jovem Sun Yat-sen), aparecem invertidas quando, segundo um processo formal já descrito por Platão, a tirania sucede à democracia e efetua com os indivíduos, reduzidos a seu número ordinal, o ato cardinal da adição, prontamente seguido pelas outras três operações fundamentais da aritmética.[11]

    Ou seja, a realização social do ideal democrático, como ordem social de igualdade, aumenta a tensão agressiva entre os indivíduos, o que os impulsiona para a luta de prestígio e distinção, para tomar parte da elite, o que parece constituir uma primeira negação da democracia. Uma observação que faz lembrar a observação de Tocqueville[12] de que, com o progresso da democracia, deixamos a comunidade e as tradições que a tornaram possível para trás, produzindo um efeito de individualismo, de egoísmo e indiferença aos outros, ao mesmo tempo que esses outros se tornam cada vez mais estranhos. Assim, a distância entre o povo e o Estado tende a aumentar, bem como o autoritarismo em estado de solidão do coração e o sentimento de nada dever a ninguém. Cedo ou tarde, aquele que representa a individuação do próprio princípio da individualização aparecerá como tentação e forma de governo.

    Para Lacan, o Estado pode aparecer aqui como excessivamente tolerante a tal processo, pois ele interpreta a concorrência e a desigualdade como prova de um ideal democrático de diversidade e antagonismo. Essa inanidade do Estado diante do antagonismo social é uma segunda forma de negação da democracia.

    O governo dos mestres

    O estrangeiro notará mais facilmente a iniquidade que nos aparece como terceira forma de negação interna e externa da democracia; ou seja, uma espécie de aplicação seletiva da lei. Nesse caso, as estruturas se mostram invertidas no processo de sucessão formal entre democracia e tirania. No processo descrito por Platão, a distinção produzida pela democracia, com a criação de suas oligarquias, torna a tirania uma tentação constante. Afinal, por que não escolher o governo dos melhores?

    Herdeiro da leitura de Alexandre Kojève sobre Hegel, Lacan percebe em momentos mais avançados de sua obra como o princípio da individualização, cernido pela gramática da luta pelo reconhecimento, leva à emergência de uma raça de mestres. A dialética do senhor e do escravo nada mais é que um mito sobre a formação do individualismo moderno na figura do cidadão. Se a teoria freudiana da individualização estava marcada pela passagem evolutiva do estágio mítico-animista ao momento religioso, e deste ao científico, a teoria lacaniana dos discursos nos leva da estrutura do discurso do mestre ao discurso da histeria, e deste ao discurso (ou contradiscurso) do psicanalista.

    É aqui que tem lugar a incidência política. Trata-se em ato desta pergunta – de que saber se faz a lei? Quando se descobre isso, pode ser que mude. O saber cai na categoria de sintoma, visto com outro olhar. E ali vem a verdade.

    Luta-se pela verdade, o que de todo modo só se produz por sua relação com o real.[13]

    Dito dessa maneira, o discurso do psicanalista aparece como antídoto ao discurso do mestre, seja ele expresso pela fórmula althusseriana das instituições, seja ele expresso na forma gramsciana das comunidades, mas também pelo que habitualmente se lhe contrapõe como individualismo. Lacan propõe um laço entre analistas de uma comunidade, tomados um a um, sem identidade coletiva, mas também se aventura na construção de uma instituição, na qual certo saber coletivo, gerado pelos cartéis e pelo passe, faz a lei.

    Na filosofia política clássica, questionar os fundamentos autocráticos do poder sempre significou questionar a intrusão dos interesses pessoais e particulares do exercício da autoridade e do poder sobre o modo político. Retomemos, então, pelo comentário de Bernard Nominé[14], o estatuto do amo, do senhor ou do mestre em Lacan para nos aproximarmos de como este incorpora a teoria do poder à sua concepção de linguagem.

    Essa reconstrução é muito importante e original. Contribui para o melhor entendimento da crítica da ideologia, porque trabalha com dois aspectos que costumam estar separados, uma vez que são provenientes de problemas distintos. Vejamos como Nominé compõe esses dois aspectos.

    Ideologia é submeter o laço social aos ideais que se compartilha ou que se quer impor.[15] No entanto, entre impor e compartilhar há uma diferença substantiva. O que se compartilha é o falo, o que se impõe é o gozo. O mínimo que se compartilha são os valores contingentes geridos pela função Ideal do S1. O que não se compartilha é o que está fora do valor, o grau zero do valor, o impossível para determinado sujeito, o objeto a, gerido pela função superegoica do S1. Nesse segundo caso, o significante mestre pretende, principalmente, dominar o real, daí que ele se apresente como a marca de um gozo dominado[16]. Por meio dela, destacam-se dois aspectos diferentes envolvidos na noção de significante mestre: a representação e o reconhecimento. Pelo texto de Nominé, entender o amo na cultura é compreender como se produzem e se mantêm relações de autoridade (sob a verdade) e de domínio (do real).

    O discurso do mestre é, portanto, um discurso de civilização do gozo. Ele privilegia o gozo do sentido.[17]

    A noção de significante mestre permitiria explicar por que alguns renunciam a seus interesses individuais em favor dos interesses de grupo. Ou seja, o significante mestre em Lacan herda a função do supereu em Freud, que é exigir renúncia, adiar a satisfação, observar, julgar e punir. Alguns quiseram ver no significante mestre a figura discursiva do pai real. Aquele que representa, no interior do sujeito, sua vocação mais cruel ao gozo. O âmago da servidão e o núcleo insensato da coletivização forçada da fantasia, ao modo das ordenações stalinistas. Isso pode ocorrer tanto por degeneração[18] do significante mestre em signo do gozo do Um quanto pelo gozo aviltante do Um submetido ao sacrifício.

    Não é que um significante represente um sujeito para outro significante. Na coletivização forçada de uma fantasia, poderíamos dizer que um significante representa todos os outros sujeitos para um mesmo objeto. Poderíamos falar, então, de uma primeira patologia do amo na cultura de hoje, que aparece na forma do amo fetichista. Não porque ele mesmo o seja, mas porque ele conduz o S1 ao modo de um fetiche – isso pensando o fetiche como significante sem par, significante que elide tanto a afânise quanto a divisão do sujeito.

    O capitalismo é, antes de tudo, um sistema econômico, um discurso, embora pervertido, segundo Lacan. Mas o capitalismo é também, bem simplesmente, um significante mestre. Mas um significante mestre, eu lhes demonstrarei logo, se define, antes de tudo, por se impor a um outro significante, com o qual ele faz par.[19]

    Ao mesmo tempo, a noção de significante mestre, no argumento de Nominé, funciona como hipótese plausível para um segundo problema. Por que os interesses de um indivíduo podem aparecer como contrários aos do grupo no qual ele se reconhece? Ou seja, o significante mestre é também função do Ideal do eu e, nesse caso, depreende-se uma patologia do reconhecimento cuja figura foi bem descrita: aquele que se acredita alguém sem conseguir fazer-se reconhecer pelos outros.

    A suspensão ou o bloqueio da dialética do reconhecimento envolvem tanto a alienação ao significante mestre quanto a fetichização do objeto. Fetiche e alienação, assim como divisão do sujeito e mais-de-gozar, trabalham em gramáticas distintas concorrendo para o mesmo funcionamento ideológico.

    O grupo e a massa formada por mestres desarticulados de S1 correspondem a uma patologia do reconhecimento cuja expressão é alienação. Nominé vai buscar no estádio do espelho e no caso de Funes, o Memorioso, de Jorge Luis Borges[c], que não consegue pôr em perspectiva dois ângulos de um mesmo objeto, os exemplos desse sintoma social. Talvez possamos definir o populismo não apenas pela existência de um líder ou uma autoridade real, tomada como significante mestre (S1), mas também, como caso mais grave, pela identificação deste significante com o fetiche, por meio de um traço unário.

    Retomando a partição conceitual da noção de significante trazida por Nominé: o significante se define pela oposição e o significante representa o sujeito para outro significante[20]. A oposição é a dimensão representacional ou sistêmica do significante, e o significante mestre tem uma função de representação; ele é reconhecido pelos outros significantes, os S2. Reconhecimento do desejo e representação do sujeito.

    Enquanto isso, a representação (de um sujeito) é a dimensão de reconhecimento do sujeito ou intersubjetiva do significante, no que ele incorpora o potencial de reconhecimento. De um lado, é o simbólico que morde o real; de outro, o simbólico que morde o imaginário. Representação do sujeito e reconhecimento do sujeito.

    Há duas expressões muito felizes no texto de Nominé para falar dessas patologias do S1, que são também patologias do amo na cultura de hoje. Quando se fala de desarticulação do S1, de perda de sua função de oposição, ele usa duas ou três vezes a expressão pôr em perspectiva. O eu se constrói em torno de uma imagem, mas, para que essa imagem ganhe sentido, é preciso que seja posta em perspectiva com a imagem ideal que o Outro espera.

    Quando se trata da função de subordinação (fetichista) de gozo e de dominação do real, ele emprega o termo-chave apropria-se: O significante do qual um sujeito pode se apropriar para ser representado para outros significantes. Concordo com a observação clínica nesse ponto, porque a perda dessa apropriação é nociva à possibilidade de se constituírem transferências, pois tudo é reduzido a identificações, ainda que seja uma identificação com o Real.

    Elevar às alturas o fora de sentido, tornar o real o melhor do melhor, francamente, parecer-me-ia suspeito. Fazer a promoção do fora de sentido, torná-lo um ideal, seria atribuir-lhe uma significação. […] "como não considerar que a contingência, ou o que cessa de não se escrever, não seja o lugar por onde se demonstra a impossibilidade, ou o que não cessa de não se escrever"?[21]

    O ódio à democracia

    A quarta e última figura da negação da democracia em Lacan parece descrever o que se passa naquilo que Jacques Rancière chamou de ódio à democracia, ou seja, o sentimento derivado da interpretação de que a democracia é injusta, que legitima as diferenças que deveria eliminar. Aqui surgem duas operações. Primeiro, os indivíduos são reduzidos a sua forma ordinal e, depois, constrangidos ao ato cardinal de adição. Ou seja, os indivíduos são hierarquizados em cidadãos de primeira ou segunda classe, entre visíveis ou invisíveis, discerníveis e indiscerníveis. Depois desse ordenamento, e só depois dele, são objeto de um ato cardinal que os torna iguais diante da lei. Isso faz da luta contra a dominação herdeira da luta contra a escravidão. Ora, o ato cardinal é aquele que cifra os indivíduos de tal maneira que eles se tornam objeto de repasses, distribuições, cálculos atuariais ou políticas públicas que somam, subtraem, multiplicam ou dividem os recursos. Eles se tornam essa matéria-prima impensante chamada povo, de cuja voz todos tentam se apossar, como fonte e origem do poder, mas poucos tentam escutar, como fim e objetivo do poder. É assim que se forma, segundo Lacan, essa injustiça da pólis: "Abre-se o campo de concentração, para cuja alimentação as qualificações intencionais da rebelião são menos decisivas do que uma certa relação quantitativa entre a massa social e a massa excluída"[22].

    Essa mesma ideia será repetida, sinteticamente, dezessete anos mais tarde, na conhecida afirmação: Nosso futuro de mercados comuns encontrará seu equilíbrio numa ampliação cada vez mais dura dos processos de segregação[23]. Portanto, é a exclusão interna, causada pelo ato cardinal, cuja condição é o pré-ordenamento dos indivíduos e a divisão entre massa social e massa excluída que está na raiz dos processos de reversão e inversão da democracia em tirania.

    Recapitulemos. Primeiro, a tensão agressiva produzida pela assimilação de indivíduos é generalizada como expansão do processo democrático. Aqui o signo de angústia não aparece apenas como discurso sobre a diferença, mas também como presença encarnada e experiência real do estrangeiro. Segundo, surgem os quatro tipos de excepcionalidade e distinção, organizados ao modo de uma luta por prestígio e reconhecimento. Terceiro, a redução dos indivíduos a números ordinais, seguida do ato cardinal pelo qual ingressamos na contabilidade obscena por meio da qual adicionamos, subtraímos, multiplicamos ou dividimos os indivíduos.

    Esse terceiro estágio, que é o que se considera a democracia em estado normal, ou seja, sua forma parlamentar representativa, pode desdobrar-se em uma variação potencial, que é a correlata da institucionalização e da universalização de seu sintoma. Esse quarto tempo de negação da democracia equivale à formação de espaços de segregação instituída e normalizada: os campos de concentração, os condomínios[24], os espaços reservados sobre os quais se justifica a tirania como o governo dos poucos para os poucos. Temos, então, quatro figuras de negação da democracia:

    1) a confusão entre distinção e diferença: os paradoxos da individualização;

    2) a emergência da excepcionalidade excessiva: o antagonismo e a exceção;

    3) a inversão da democracia em tirania: a injustiça e a anomia generalizada;

    4) a lógica da segregação: os campos de concentração.

    Poderíamos deduzir disso diferentes políticas, no sentido do sistema de interesses em conflito que definem o espaço público em estado democrático. A política do ao menos um (a excepcionalidade do mestre e da purificação moral), a política do para todos (enquanto alguns não são mais iguais que outros), a política da reação-resignação (não há ninguém que não) e a política totalitária (a negação segregatória do não todo).

    Retenhamos que o ato cardinal se refere à tomada de um número no interior de uma série ordenada; por exemplo, o trigésimo dia do mês, por seu valor de face, ou seja, trinta. Quando falamos de séries fechadas, a operação é simples; no entanto, quando pensamos em dois tipos de infinito, a operação corresponde à redução de uma ordem aberta, como se espera da democracia como ideal por vir, e de uma ordem fechada, ou seja, sua presentificação no horizonte de nossa enumeração possível. Essa é a diferença entre universalização e totalização.

    Universalização

    As duas outras menções de Lacan à democracia retomam a série formada por assimilação, excepcionalidade, inversão e universalização. Por exemplo, na carta a Rudolph Lowenstein (1953), ele se mostra interessado nos processos de Praga porque vê aparecerem na lógica do laço social entre os psicanalistas um estilo e uma forma de relação típica das democracias populares[25]. Em O lugar da psicanálise na medicina (1966), ele diz que não se trata apenas de democratizar o ensino da psicanálise, mas de perguntar qual democracia queremos[26]. Lembremos que os processos de Praga são o sintoma da inversão da democracia em tirania, com a consequente segregação de traidores, estrangeiros e demais figuras excessivas. Confirma-se, assim, a tese de que depois da assimilação democrática de novas formas de vida sobrevém a tirania, processo que parece valer também para nossa pequena comunidade de psicanalistas, colocando em seu horizonte suas condições de generalização e universalização.

    Podemos localizar esse processo de assimilação e inversão na situação atual do Brasil e da França, mas também na eleição de Trump, nos Estados Unidos. O Brasil viveu um período de vinte anos marcado por progressos substanciais na inclusão de novos sujeitos políticos. A formação de uma nova classe trabalhadora (entre os anos 2002 e 2012) e a diminuição da fome e da miséria são uma face desse processo, mas poderíamos indicar também o desenvolvimento do terceiro setor ou, ainda, a expansão de políticas públicas de inclusão escolar, redução da opressão de gênero, raça e classe. Algo análogo parece ter se dado em terreno francês com a chegada de novos grupos de imigrantes e os efeitos demográficos e econômicos da implantação da União Europeia.

    Portanto, confirmamos o fenômeno da assimilação com sua consequente agressivização das relações. Mas isso não é condição necessária e suficiente para a fetichização da excepcionalidade e a inversão da democracia em tirania, o que também se anuncia com força nos dois contextos. Faltaria localizar o fenômeno da redução dos indivíduos a números ordinais[27] e o ato cardinal. Nas democracias modernas, a ordinalidade pode ser traduzida pelo reconhecimento das diferenças individuais; a cardinalidade, por sua vez, é expressa pelo ato do voto e demais formas de participação direta no poder. E o que seria o ato cardinal nos equivalentes modernos da tirania?

    Retenho aqui a observação lateral de que a diferença tirânica, interna aos estados de democracia, antes de sua inversão em tirania, é mais bem percebida pelo estrangeiro. Ora, uma maneira de pensar o sistema de classificação ordinal próprio de nossa época é imaginá-lo com a institucionalização do totemismo, com sua lógica incorporativa, com sua política de colonização, com sua dominação predatória da natureza, com sua sexuação em gêneros inteligíveis. Recorro aqui ao filósofo e psicanalista Guillaume Sibertin-Blanc, que tem pesquisado novas antropologias para a psicanálise a partir dos achados de Marilyn Stratton, e à contra-antropologia melanésia e de Eduardo Viveiros de Castro, que nos trouxe uma crítica pertinente e produtiva do totemismo e, consequentemente, do totemismo psicanalítico.

    O pensamento psicanalítico não pode ter uma eficácia crítica, a não ser sob a condição de se deixar afetar por antropologias outras; ou, para formular ainda de outro modo, sob a condição de que o pensamento psicanalítico leve a cabo isso que faz com que ele seja incisivo – extrair todas as consequências do heteronomia do pensamento –, se deixando ensinar por pensamentos não menos estrangeiros que aqueles do desejo inconsciente.[28]

    Essa democracia estrangeira e universalista talvez permita uma tradução da lógica do não todo e dos efeitos políticos de uma democracia não toda. Isto é, não uma democracia incompleta por exceções, muros e dispositivos de segregação, mas uma que possa criar outro futuro e, com isso, outro tipo de infinito. A escolha cultural entre o retorno ao pai ou o avanço rumo ao feminino indeterminado traduz a tese lacaniana de que não haverá saída do capitalismo se o progresso for apenas para alguns e se não tivermos mais risos e mais santos[29].

    A democracia e os muros

    Retomo aqui a hipótese que desenvolvi de que um sucedâneo atual e embrionário das tiranias é a forma de vida em estrutura de condomínio[30]. Seus elementos fundamentais são os muros, o síndico e as patologias da identidade. O muro é uma função de segregação que suspende a demanda e a lógica de reconhecimento do outro, tornando sua face invisível, instituindo a paranoia sistêmica como gramática de reconhecimento. O síndico é a figura de autoridade representada pelo gestor das leis, o administrador das regras, que cria a exceção para produzir a regra. As patologias do condomínio são deduzidas desse espaço de simulação da democracia no qual um traço de identidade expande o narcisismo das pequenas diferenças em narcisismo das grandes diferenças.

    Nesse tipo de laço social, poder e autoridade se fundem em uma espécie de palavra que fala por si mesma, de palavra de ordem que não pede justificativa nem razão, mas que legifera. A essa forma de palavra, Lacan chama de significante mestre. Temos, então, uma montagem discursiva na qual o muro funciona como significante mestre no lugar de agente, tal como o discurso do mestre. O síndico corresponde ao significante mestre no lugar da verdade, como no discurso universitário. O sofrimento segregativo, dentro e fora dos muros, mostra o significante mestre no lugar do Outro, tal como vemos no discurso da histeria. Lembremos que os discursos se definem por um ordenamento fechado: significante mestre, significante do saber, sujeito e objeto a. Temos, então, a condição ordinal da democracia. O ato de cardinalidade, ou seja, o ato que reduz indivíduos a amontoados definidos por traços, no qual a ordem não conta, é o ato que institui o espaço público como um condomínio.

    No Brasil, é o que chamamos de golpe parlamentar, em que, em nome do combate à corrupção, legitima-se a corrupção dentro da lei. Nos Estados Unidos, exemplo declarado, o muro é elevado à condição de política de Estado. Na França, os muros ainda estão em discussão na complexa rede de problemas que envolve refugiados e apátridas. Em Gaza, os muros já são política há mais de vinte anos.

    Isso por si só representa um problema político que convida a repensar a lógica de reconhecimento que comandou as democracias ocidentais até o momento. Requer um novo conceito de representação, bem como a reconstrução da noção política da experiência de universalidade, que é um traço imanente ao conceito de democracia. A hipótese da vida em forma de condomínio nos permite ler alguns fenômenos sociais concernentes à democracia no espaço das cidades e suas atuais condições de circulação, em particular a partir dos anos 1970. O condomínio é uma formação topologicamente regressiva, ou seja, um objeto em forma de cosmos, ou de asfera (esfera + a). Como costumam pensar as excepcionalidades e as elites, o macrocosmo é apenas um reflexo simétrico do microcosmo. Contudo, nossa situação não comporta mais essa separação concêntrica, nossas relações entre espaço público e espaço privado têm a estrutura de uma garrafa de Klein, na qual exterior e interior se comunicam (conforme a hipótese de Lacan sobre modernidade, desenvolvida no terceiro capítulo do seminário Problemas cruciais para a psicanálise)[31].

    O condomínio e suas estruturas análogas, como prisões, shopping centers e favelas, são exemplos de uma forma de vida particular que, por si mesma, corresponde a uma organização ordinal entre outras. Convém perguntar, então, o que teria acontecido para esse modo de subjetivação e esse tipo de relação particular com a lei se erigirem em máxima política e negação da democracia. Como esta veio a se tornar o modelo da tirania contemporânea?

    Recorro aqui à leitura que Nancy Fraser[32] fez da ascensão de Trump ao governo dos Estados Unidos. No entender dela, Trump e seus muros tornaram-se possíveis em função do esgotamento de certa aliança entre o neoliberalismo econômico e as tendências progressistas que galgaram ganhos em termos de empoderamento de minorias, meritocracia e redução da opressão de raça e gênero. Nos

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1