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Tempo comprado: A crise adiada do capitalismo democrático
Tempo comprado: A crise adiada do capitalismo democrático
Tempo comprado: A crise adiada do capitalismo democrático
E-book434 páginas5 horas

Tempo comprado: A crise adiada do capitalismo democrático

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Sobre este e-book

O sucesso de Tempo comprado, dentro e fora dos meios acadêmicos, surpreendeu o próprio autor, o sociólogo alemão Wolfgang Streeck. O livro traz uma interpretação original da crise econômica que irrompeu em 2008 e seus efeitos, entre os quais uma crise política de governança democrática de proporções globais. Para Streeck, sintomas como o Brexit e a recessão continuada da União Europeia são as manifestações mais recentes da crescente incompatibilidade entre capitalismo e democracia, situada na longa transformação neoliberal do capitalismo pós-guerra a partir dos anos 1970. Diante da escassez de análises que expliquem as dinâmicas econômicas atuais, Streeck empenha-se em atualizar as teorias da crise da Escola de Frankfurt e entrega uma narrativa fascinante sobre os desdobramentos da tensão entre democracia e capitalismo ao longo de mais de quatro décadas e como ela rebate nos conflitos entre os Estados, os governos, os eleitores e os interesses do capital. Embasada em ampla pesquisa de dados econômicos (representada por dezenas de gráficos), a séria investigação que se apresenta ao leitor não tem nada da frieza que se espera nessa seara; ao contrário, trata-se de um texto direto e com tiradas irônicas. O resultado é uma combinação rara e impactante da análise de tendências estruturais do capitalismo e a correlação de forças sociais, políticas e culturais.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de dez. de 2019
ISBN9788575596616
Tempo comprado: A crise adiada do capitalismo democrático

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    Tempo comprado - Wolfgang Streeck

    Sobre Tempo comprado

    Pedro Paulo Zahluth Bastos

    Wolfgang Streeck é um grande sociólogo marxista que combina como poucos a análise das tendências estruturais do capitalismo e a avaliação da correlação de forças sociais, políticas e culturais. Para ele, tais forças não podem ser reduzidas a epifenômenos do movimento do capital. Ao contrário, elas se constituem de acordo com lógicas intrínsecas e exercem influência autônoma sobre o conjunto da sociedade e sobre a própria dinâmica do capitalismo. No entanto, o capitalismo tem, sim, tendências inerentes, como a busca frenética de mercantilização de todas as relações sociais; a introdução de progresso técnico que economiza trabalho vivo e desemprega em larga escala; e a concentração e centralização do capital e, portanto, da renda e da riqueza.

    As pressões estruturais da concorrência e a legitimação cultural do enriquecimento induzem os capitalistas a contornar rotinas e tradições em busca de lucros extraordinários. Em particular, o capital tende a se desvencilhar dos custos das instituições que protegem a sociedade e a natureza. O faz através de inovações técnicas e organizacionais, de refúgio na valorização financeira e de fugas para praças financeiras e paraísos fiscais, ou via deslocalização produtiva para territórios com menores custos trabalhistas, ambientais, tributários e regulatórios.

    Streeck argumenta que capitalismo e democracia sempre foram contraditórios. As tendências socialmente destrutivas do sistema econômico são um problema para a democracia, que precisa correr atrás e tentar conter a anarquia capitalista. A hipótese de Karl Polanyi (1944) de que a sociedade democrática controlaria o capitalismo depois das tragédias entre as duas guerras mundiais foi desmentida pela revolta capitalista desde meados da década de 1970, manifesta como neoliberalismo.

    Desde então, a nova expansão puxada pela financeirização apenas comprou tempo para adiar o embate entre capitalismo e democracia. A crise financeira de 2008 explicitou radicalmente a contradição. A partir daí, é o capitalismo que esvazia e controla a democracia através de regras fiscais e monetárias rígidas administradas por tecnocracias a serviço dos credores da dívida pública. Dos Estados, exige-se controlar a população para preservar a confiança perante os mercados, sacrificando direitos sociais e os últimos vestígios de legitimação democrática da dominação. Resta saber se novas coalizões de perdedores serão capazes de reagir à altura das tragédias sociais e ambientais do capitalismo pós-democrático.

    Sobre Tempo comprado

    Se não surgir outro milagre de crescimento, o capitalismo do futuro se verá obrigado a viver sem a fórmula de paz de um consumismo financiado a crédito. A utopia da gestão atual da crise também consiste na conclusão – por meios políticos – da já muito avançada despolitização da economia política, cimentada em Estados nacionais reorganizados sob o controle de uma diplomacia governamental e financeira internacional isolada da participação democrática, com uma população que, nos longos anos de uma reeducação hegemônica, teve de aprender a considerar justos ou sem alternativa os resultados de distribuição dos mercados entregues a si mesmos.

    Aditya Chakrabortty, The Guardian

    Uma obra esplendidamente provocadora de economia política.

    Matthew Lawrence, Prospect Magazine

    Para qualquer pessoa interessada em compreender o impasse no qual as democracias se encontram, eis um livro vital, ainda que profundamente consternador, cuja conclusão é perturbadora, embora seja mais do que convincente.

    Jürgen Habermas

    Em suas melhores partes – quando paixão política se une a exposição crítica dos fatos e argumentação incisiva –, a investigação ampla e empiricamente embasada de Streeck faz lembrar a de Karl Marx em O 18 de brumário de Luís Bonaparte.

    Sumário

    Prefácio à segunda edição (2015)

    Introdução: Teoria da crise – no passado e no presente

    I. Da crise de legitimidade à crise fiscal

    Um novo tipo de crise

    Duas surpresas para a teoria da crise

    A outra crise de legitimação e o fim da paz do pós-guerra

    A longa transição: do capitalismo do pós-guerra ao neoliberalismo

    Tempo comprado

    II. Reforma neoliberal: transformação do Estado fiscal em Estado endividado

    Crise financeira devido ao fracasso da democracia?

    Capitalismo e democracia na revolução neoliberal

    Excurso: capitalismo e democracia

    Matar o monstro de fome!

    A crise do Estado fiscal

    Do Estado fiscal ao Estado endividado

    Estado endividado e distribuição

    A política do Estado endividado

    Política de endividamento como diplomacia financeira internacional

    III. A política do Estado de consolidação: neoliberalismo na Europa

    Integração e liberalização

    A União Europeia como máquina de liberalização

    Transição institucional: de Keynes a Hayek

    O Estado de consolidação enquanto regime europeu de vários níveis

    Consolidação fiscal como reforma do Estado

    Crescimento: Back to the Future

    Excurso: programas de crescimento regionais

    Capacidade estratégica do Estado de consolidação europeu

    Resistência no Estado de consolidação internacional

    Conclusão: O que vem a seguir?

    E agora?

    Capitalismo ou democracia

    O euro como experiência frívola

    Democracia na Eurolândia?

    Elogio da desvalorização

    Por um Bretton Woods europeu

    Ganhar tempo

    Bibliografia

    Sobre o autor

    Prefácio à segunda edição (2015)

    Quase três anos se passaram desde a finalização do manuscrito de Tempo comprado[1]. Mesmo quando a crise tratada no livro já havia algum tempo não se desenvolvia de modo tão explosivo como no verão de 2012, eu não encontrava no texto, após inúmeras releituras, o que retomar ou reescrever. Complementos, sofisticações pontuais e oportunas explicações são, todavia, sempre bem-vindos; graças às inúmeras resenhas, construtivas ou críticas, o livro pôde, em tão pouco tempo, trafegar tanto pela Alemanha quanto pelo exterior – para a surpresa de seu autor, cujas publicações prévias estavam preponderantemente atreladas, até então, a revistas científicas especializadas. Capitalismo como uma sequência de crises, economia como a política da luta do mercado (Weber), empiricamente reconstruído em seu tempo histórico como produto da ação estratégica e dos conflitos distributivos coletivos nos mercados expandidos, impulsionado por uma dinâmica relação de troca entre espaços de classes e de interesses, de um lado, e de grupos organizados e instituições políticas, de outro, com particular consideração do problema da reprodução financeira do Estado: esta é minha tentativa, a de uma economia política contemporânea seletiva e, muitas vezes, eclética, ainda aberta a maior desenvolvimento, seguindo as teorias clássicas do capitalismo (do marxismo à escola histórica alemã), que surpreendentemente encontrou um vasto e engajado público, muito além de qualquer expectativa.

    Nem todos os temas, entre os inúmeros que os leitores e as leitoras do livro atenta e valiosamente encontraram (e comentaram), devem e podem aqui ser abordados. Assim, ficam abertas possibilidades de desenvolvimento de visões para a relação de troca entre história da teoria e desenvolvimento social, de como elas supostamente foram beneficiadas pela ligação com as teorias das crises nos anos 1970. A seguir, eu me restrinjo, em primeiro lugar, à retomada, conceitual e nos termos da estratégia da pesquisa, dos princípios basilares da construção dos argumentos desenvolvidos neste livro, os quais são trabalhados com afinco, de modo que se possa apreender algo de uma macrossociologia orientada pela política e pela economia. Em segundo lugar, eu gostaria de adentrar em dois temas, que no livro estão entre si entrelaçados e sobre os quais a base dos debates de leitores e críticos está preponderantemente alicerçada: primeiro, como lidar constantemente com a crise financeira e fiscal e a relação entre capitalismo e democracia; segundo, o que se poderia dizer sobre a perspectiva para a Europa e sua união sob o signo de uma moeda comum em relação ao panorama atual da União Monetária Europeia.

    A história do capitalismo como sequência de crises

    Em Tempo comprado, trato a crise global financeira e fiscal de 2008 não como acontecimento isolado, mas como parte e, possivelmente também, como etapa de uma sequência histórica. Eu a diferencio em três fases: a inflação dos anos 1970, o embrionário endividamento estatal no decênio seguinte e o crescente endividamento dos orçamentos privados (bem como das empresas e dos setores industrial e financeiro) desde meados dos anos 1990. Às três fases foi comum o término em uma crise, cuja solução foi o imediato desfecho em uma nova crise. No início dos anos 1980, quando o Federal Reserve derrubou mundialmente, por meio de uma brutal elevação dos juros, a inflação, o endividamento do Estado cresceu de forma vertiginosa como contrapartida; e, como esse movimento foi retomado com ainda mais força em uma primeira onda de consolidação em meados dos anos 1990, impulsionou em vários países o endividamento dos orçamentos privados, como em um sistema integrado, e expandiu a economia financeira, em uma dinâmica inédita, até que ela precisou ser salva pelos Estados em 2008 à custa de seus cidadãos[2].

    Que em todos esses acontecimentos reside um conflito distributivo subjacente, que resultou, com o fim do crescimento do pós-guerra, na crescente incapacidade do sistema econômico capitalista, ou seja, na má vontade ou na relutância (Unwilligkeit) de suas elites em concretizar demandas das democráticas sociedades do pós-guerra, isso não foi descoberta minha: as análises contemporâneas político-econômicas de inflação, endividamento estatal e financeirização levam mais ou menos a esse caminho. Minha contribuição neste livro, e nos artigos anteriores, envolve abordar as semelhanças e o denominador comum – e, com isso, propor uma gama de análise da teoria das crises, que fundamentalmente também deve ser aplicável à atual fase de desenvolvimento do capitalismo global.

    Tempo comprado mostra como, na esteira de inflação, endividamento estatal e inchaço do mercado financeiro privado, o crescimento nos países capitalistas centrais, desde os anos 1970, retrocedeu, a desigualdade da distribuição de renda aumentou e o endividamento geral elevou-se. Concomitantemente, a participação política nas votações diminuiu ao longo do tempo, sindicatos (e partidos políticos)[3] perderam membros e poder, e as greves arrefeceram quase por completo[4]. No livro, desenvolvo como, em paralelo a isso, a arena dos conflitos políticos distributivos paulatinamente se deslocou do mercado de trabalho na fase da inflação, passando pela política social no período de endividamento estatal, para chegar ao mercado financeiro privado na era da financeirização e à diplomacia financeira internacional após a crise de 2008 – isso em um espaço de ação cada vez mais abstrato, que desconsidera progressivamente as condições humanas de vida e o acesso democrático à política. Aqui se encontra uma das interligações que tentei traçar: entre o desenvolvimento do capitalismo e da transformação neoliberal da democracia. Uma segunda interligação aparece de uma cadeia histórica, uma terceira etapa, a qual vai de Estado fiscal (Steuerstaat) para Estado endividado (Schuldenstaat) e depois para Estado de consolidação (Konsolidierungsstaat). Nessa mirada, minha análise anela-se à tradição da sociologia da finança e à crise financeira do Estado[5], a qual na década de 1970 já se pressagiava iminente. Ademais, trato especialmente, quase indutivamente e norteado empiricamente, dos desdobramentos observados sobre as últimas quatro décadas nos países capitalistas ricos[6].

    O capitalismo como unidade

    Não pode fugir aos leitores que meu livro trata do capitalismo dos países ricos como unidade multifacetada, constituída tanto pela interdependência, em meio à dependência coletiva dos Estados Unidos, quanto pelas peculiaridades dos conflitos internos e dos problemas de integração sistêmica. Alguns leitores questionaram: como alguém que no passado pesquisava a diferença entre os sistemas econômicos capitalistas nacionais agora, de uma vez, ressalta sua totalidade? A resposta é que a diferença e a unidade não são excludentes e, a depender do que se quer saber, tanto uma quanto outra podem e devem vir à baila[7]. No caso concreto, a perspectiva um tanto holística da pesquisa foi, novamente e fundamentalmente, indutiva: ela resultou da situação empírica de que muitos dos fenômenos relacionados com a crise de 2008, e as crises, sequências de eventos e processos de mudança observáveis desde os críticos anos 1970, eram comuns aos países capitalistas ricos e, de fato, em um nível surpreendente – frequentemente deslocados no tempo, por vezes assumindo formas nacionais específicas, mas inconfundivelmente marcados pela mesma lógica e impulsionados pelos mesmos conflitos e problemas, como podem provar os numerosos gráficos presentes neste livro.

    Eu não estava, contudo, despreparado para isso. Ao preparar um livro sobre as transformações graduais de longo prazo na política econômica alemã[8], tive a oportunidade de analisar um complexo processo global de mudança que se colocava para mim como processo multissetorial de liberalização, ainda que, então, eu compreendesse apenas aproximadamente o significado fundamental disso para a financeirização do capitalismo, inclusive do alemão (o manuscrito foi enviado à editora no verão de 2008). Isso fez toda a diferença para minha avaliação da abordagem comparativa do capitalismo, uma vez que, nessa seara, a Alemanha (assim como o Japão) figurou como a mais importante não liberal oposição ao capitalismo liberal anglo-americano[9]. Já no citado livro de 2009, havia, assim, uma firme crítica do dogma da não convergência, como desenvolvido, em especial por Hall e Soskice[10], a partir dos anos 1990. Algum tempo depois ampliei essa posição e expressei minha nova convicção em uma série de artigos que precederam a publicação de Tempo comprado[11].

    História e pré-história: a exceção e a regra

    A sequência de crises, cujo contexto interno eu acredito ter trabalhado, começou entre 1968 e 1975. Como cada história tem uma pré-história, seu início é sempre tão aberto quanto seu fim. Assim, quem quiser recapitulá-la precisa escolher um ponto de partida; de algum lugar se inicia. Em geral, a opção pelo ponto de partida devia ter bons motivos e, provavelmente, eu deveria ter feito minhas próprias escolhas com mais clareza. Os anos 1970 são o marco temporal no qual a curva de desenvolvimento começa a declinar: inflação, endividamento estatal, endividamento do mercado, desemprego estrutural, crescimento negativo, crescente desigualdade, com os respectivos desvios nacionais, mas sempre na mesma direção – por vezes com interrupções, também em níveis distintos, mas sempre identificado como tendências gerais. O marco temporal ancorado nos anos 1970 é hoje não somente na economia política[12] quase um lugar-comum, mas também na historiografia[13].

    Naturalmente, como dito, eu poderia ter começado mais cedo[14] – teria boas razões para isso da mesma forma. Os anos 1930 também seriam apropriados, dado que a crise econômica mundial dessa década esteve constantemente presente como um pesadelo nos quartéis-generais do capitalismo do pós-guerra desde a chamada crise do petróleo. Ademais, o que se poderia aprender da pré-história na história constituída em Tempo comprado é certamente o fato de que a instabilidade das sociedades de economia capitalista lhe é inerente e pode afetar de modo profundo a maioria de seus membros, como um reator nuclear e suas possibilidades de acidentes normais em qualquer tempo[15]. A história da primeira metade do século XX ensina mais que a da segunda metade, uma vez que esta contém o período de exceção, da era de ouro ou do milagre econômico (Trente Glorieuses, Golden Age ou Wirtschaftswunder), que do ponto de vista do senso comum é ainda sempre defendido, sobretudo na Alemanha, mesmo quando o que aconteceu desde os anos 1970 (e que se intensificou até culminar na crise de 2008) somente significa que esse período foi único e dificilmente se repetirá.

    Em síntese, os anos entre o fim da guerra e a era da fratura (age of fracture)[16], que serviram de pano de fundo para a minha reconstrução da história após a ruptura, foram um período em que, no tocante ao tempo histórico, sobretudo na sequência da guerra, as relações de poder entre as classes estiveram contrabalanceadas como nunca outrora no capitalismo[17] (e, como agora sabemos, como também nunca mais voltou a acontecer). Isso significa que, entre outras coisas, naquele período havia opiniões divididas sobre como o capitalismo poderia ser dado: se como ordem econômica e social pactuada; se em forma de progresso social, que também beneficie o homem médio; se ele deve entregar pleno emprego, seguridade social, mais autonomia no trabalho e mais tempo livre, o fim da pobreza material, assim como o ocaso das crises econômicas cíclicas. Evidentemente, nem todas as benesses foram realizadas naquele momento – longe disso, aliás. É preciso pontuar que, mesmo no campo conservador, a ideia do progresso social era incontestável, uma obrigação das elites políticas e econômicas não necessariamente pagável de uma vez, mas, ao menos, pouco a pouco, ano a ano, de maneira a, se necessário, contar com o auxílio de sindicatos fortes e efetivas mobilizações políticas no âmbito das instituições democráticas e por meio de uma política econômica, que buscava alcançar o crescimento por meio da distribuição de cima para baixo (de quem tem mais para quem tem menos), não o contrário[18], como não poderia deixar de ser, levando em consideração as circunstâncias políticas.

    Isso é tudo o que se pode dizer das três décadas entre o fim da guerra e o fim do pós-guerra? Obviamente, não: meu tema não trata, contudo, dos trinta anos gloriosos (Trente Glorieuses), mas das crises que os sucedem. Em Tempo comprado, tomei a liberdade de descrever sua sequência que, de acordo com minha opinião geral, era uma perda e uma derrota histórica daqueles que estavam engajados no Estado de bem-estar social intervencionista e em seu ativismo político – e não consigo identificar nenhum fator positivo no secular aumento do desemprego, da precariedade, do tempo de trabalho e da pressão concorrencial em oposição à configuração do pós-guerra (postwar settlement) em um capitalismo supostamente mais avançado pelo desacoplamento da renda no nível da produtividade e à rápida e crescente desigualdade, assim como à transição para uma economia política, que faz o exato oposto do pós-guerra em relação à distribuição, ou seja, o motor do crescimento é de baixo para cima (retirando de quem tem menos para quem tem mais)[19].

    Estou, porém, em consonância com meus críticos sobre o caráter excepcional da era de ouro (Golden Age) em comparação tanto com o século XIX quanto com a primeira metade do século XX. O que consola nisso tudo é que hoje nós avançamos rumo ao caminho da normalidade capitalista, o que poderia parecer com o mundo do entreguerras, algo que não me apetece muito. Sou da opinião de que os três decênios do pós-guerra foram uma época em que a economia de mercado capitalista não mais se apresenta como fenômeno natural, como no liberalismo clássico, mas como uma construção política cuja existência foi reconhecida após muito tempo, assegurada por uma elite tecnocrática, desiludida politicamente pelos anos 1930 e fundada em uma economia de guerra (da Segunda Guerra Mundial) centrada no Estado, que tinha uma coisa em comum com todas as linhas partidárias: profunda e experimentada dúvida sobre a viabilidade e a sustentabilidade do livre mercado capitalista (como também sobre qualquer ordem econômica), no qual nós, em nossos dias, com o neoliberalismo global, estamos prestes a entrar novamente.

    Crises e classes

    Como já dito, identifico o momento de ruptura na história da economia política das democracias capitalistas nos anos 1970. O que começou então descrevo como revolução neoliberal, mas também se pode chamar de restauração da economia como força coercitiva social, reconhecidamente não para todos, mas para a esmagadora maioria, junto com uma liberalização suave do controle político. Em vez de objetivar (coisificar) esse processo como uma expressão de eternas leis econômicas padronizadas, eu o trato como o resultado do conflito distributivo entre classes. Assim, permito-me simplificar a estrutura de classes, senão de maneira sofisticada, e, de acordo com os predominantes padrões de receita, dividir os membros da sociedade capitalista fundamentalmente em dois tipos: dependentes de salário e dependentes de lucro – não sem antes considerar as circunstâncias de que hoje há uma quantidade expressiva da classe média que pode pertencer a qualquer um dos dois polos, ainda que esteja inevitavelmente mais próxima da primeira que da segunda categoria. Que em algum momento ainda terei de lidar com isso, é algo claro para mim; todavia, eu não queria nem deveria escrever um livro sobre teoria das classes sociais. Minha saída foi lidar cuidadosamente com os conceitos relevantes. Assim, eu queria explicar aos conhecedores da matéria, por meio da visão teórica de conjuntura política de Kalecki, que o que tenho em mente é uma concepção da economia como política (em oposição às teorias econômicas institucionalistas tradicionais, ou seja, a política retratada como economia). Em outras palavras, uma representação das leis econômicas como projeção das relações sociais de poder, e das crises, certamente como aquelas discutidas no livro, como conflitos distributivos ou como suas consequências.

    O objetivo desse exercício foi contrapor à teoria da escolha pública (public-choice), em que as infames demandas das massas irracionais por mais e mais perturbam o equilíbrio normal da economia, uma reconstrução realista dos eventos, na qual não foram os dependentes de salário, mas os dependentes de lucro, que traíram e venderam o capitalismo social-democrático do pós-guerra, pois este estava se tornando caro demais[20]. Aqui contrasto à onda de greves entre 1968 e 1969 uma kaleckiana greve de investimentos nos anos 1970, que reputo ter sido muito mais efetiva que qualquer outra arma que os sindicatos e os dependentes de salário já tiveram em seu arsenal. Nesse contexto, vem a pergunta de como uma ação estrategicamente coordenada de empresas e de empresários sob as condicionantes da concorrência deve se apresentar (como os dependentes de lucro constituem-se ou constroem-se socialmente de uma classe em si a uma classe para si); tudo o mais é ilegítimo. Trabalhei em grupos empresariais e sei qual é o ponto (o que as empresas precisam fazer para colocar seus membros na linha e construir capacidades coletivas de ação, sem estarem ligadas a obrigações corporativas ou para prevenir que elas não atrapalhem). Elas conseguem, todavia, organizar a ação coletiva, majoritariamente como ação individual coordenada, via think tanks, esclarecimentos públicos, conferências, prognósticos de institutos de pesquisa, resoluções de organizações internacionais, de agências de avaliação de risco (rating agencies), de escritórios de advocacia e de consultorias privadas, tanto nacional quanto internacionalmente, com o objetivo de neutralizar a concorrência entre empresas e de fomentar a competição clássica na empresa (entre indivíduos). O fim do pós-guerra foram também os anos em que as críticas da economia em relação a excesso de emprego, rigidez dos mercados de trabalho, altos custos com baixos lucros (profit ­squeeze), regulação excessiva etc. emergiram e uma intensa e frequente atividade ­lobística, tanto explícita quanto sigilosa, tornou imperiosas algumas demandas específicas na política para que fizesse algo na economia em nome da retomada do crescimento[21].

    Para mim, claramente, a forma mais importante de exercício de poder do capital e de seus gestores consiste em torná-lo seguro e em alocar de modo temporário os recursos sociais ociosos a ele como propriedade da sociedade ou mandá-los diretamente para fora – ação do mercado como ação política, saída (exit) em vez de voz (voice). Como sabemos, há nos governos uma ação forte e enérgica, de efeito potencializador, em favor dos capitais. A tremenda insegurança, alardeada por associações empresariais e pelos mais afáveis institutos de pesquisa e setores da imprensa, já é suficiente: o capital fala por meio de reclamações sobre o desconforto geral, sobre expectativa (Attentismus), migração e queda da taxa de investimento etc. – em outras palavras, sobre reações individuais direcionadas às prometidas condições de mercado, que oferecem menos que a reserva do lucro e que se comprimem aos habituais indicadores socioeconômicos. No fim, o que importa é que as decisões econômicas diárias dos detentores de capital no mercado se condensam a uma clara e poderosa opinião pública (Gesamtaussage), a qual ninguém que tenha um mínimo de responsabilidade pode ignorar.

    Fundamental, para mim, como cientista social, é que o processo a que me referi não pode nem deve necessariamente ser atribuído à liderança estratégica documentada nos arquivos históricos. Muito se fala que a lógica, ou até o direcionamento, do desenvolvimento que descrevo – por exemplo, a mudança do Estado fiscal para o Estado endividado e, por fim, para o Estado de consolidação – foi e continua sendo emergente: não precisa ser planejado nem desejado pelos atores que o realizam, porque, se necessário, também poderia se dar pelas suas costas, ou seja, além de sua vontade. O que se pode cuidadosamente dizer (cuidadosamente para não cair em um indefensável voluntarismo ou, mesmo, determinismo) é que a estrutura problemática em cada uma das crises sucessivas, incluindo a posição dos outros envolvidos com os recursos variáveis de poder, limita o repertório de ação dos atores em consonância com a pré-história e as circunstâncias contingenciais, cuja efetividade se manifesta em um tempo específico. Como tais padrões florescem, quanto ou qual nível de internacionalização eles requerem, como estrutura, agência e contingência interagem – essas são perguntas que os cientistas sociais hoje frequentemente tratam sob a rubrica da investigação sobre a mudança institucional, com a utilização de conceitos como dependência do caminho (Pfadabhängigkeit), critical juncture e afins, sem desenvolvê-los plenamente.

    A crise financeira do Estado

    Se dediquei muito espaço em Tempo comprado para traçar o emaranhado da crise fiscal do Estado com a crise financeira do capitalismo, foi para iluminar o caminho, retomando a perspectiva, que no início do século XX já era exigida, da sociologia fiscal de Schumpeter e Goldscheid, aquela que enfatiza o papel transformador do Estado e da política no cambiante capitalismo do presente. O propósito aqui foi contestar a amplamente aceita explicação da escolha pública (public choice) a fim de embasar o fenômeno do crescente endividamento do Estado, que é muito caro e adorado, em especial, pela economia tradicional. Mais detalhes podem ser encontrados no livro e em artigo posterior, no qual refino ainda mais minha posição[22]. Aqui eu gostaria de resumir brevemente três reflexões gerais que embasam meu argumento, quiçá mais claramente do que está exposto no livro, também para submetê-las a um exame crítico – na esperança de que sua inevitável apresentação simplificada não se volte contra mim.

    1. Tempo comprado trata do endividamento do Estado como um fenômeno político-econômico, como um aspecto não exatamente da democracia, mas, sim, do capitalismo. O capitalismo envolve o espraiamento do capital essencialmente expansivo na forma de propriedade privada; isso carrega o perigo do distanciamento no processo produtivo daqueles que serão requeridos para a acumulação, mas a eles não pertence o mais-produto. Uma vez que o capitalismo não é um estado natural, ele só pode existir à base de reciprocidade em alguma forma; se ela não se perfaz, a questão inevitável que emerge é: por que alguém deve trabalhar quarenta ou mais horas semanais para o enriquecimento? O que implica que problemas de justiça e equidade no capitalismo não são a descoberta dos políticos irresponsáveis e corruptos, residem no próprio seio da ordem social capitalista. Eles são em alguma medida contornados, a depender do crescimento elevado dos proprietários de capital, que pode viabilizar a concessão de parte do que é produzido coletivamente aos não proprietários. Em momentos de baixo crescimento, como após o fim da fase de reconstrução, nos anos 1970, acentua-se, de fato, o conflito distributivo – e, assim, torna-se mais difícil para a política garantir a respectiva paz social. O equilíbrio sociopolítico somente é atingido à custa de um desequilíbrio econômico: como dito, desde o fim dos anos 1960, primeiro na forma de alta inflação, depois na forma de um célere, crescente, não keynesiano (cumulativo) endividamento do Estado e, em seguida, por meio da explosão, impulsionada pelo excesso, de possibilidades de crédito privado. Como apresentado em Tempo comprado, é possível até adiar esses problemas, mas apenas de maneira provisória; o que funciona somente até que o desequilíbrio econômico criado ou tolerado em nome da paz social se torna insustentável, ou seja, começa a manifestar-se contraprodutivo e por si torna-se a causa do desequilíbrio social – vejamos a inflação do fim dos anos 1970, os incontroláveis déficits públicos dos anos 1990 e o ocaso dos alargados mercados financeiros de 2008. Assim, um novo paliativo precisa ser encontrado, mais uma vez presumidamente temporário, como a ilimitada produção atual de dinheiro pelos bancos centrais (out of thin air): politicamente responsável, no sentido de assegurar a coesão social e a estabilização do regime de acumulação, e, ao mesmo tempo, economicamente irresponsável, nomeadamente por ser ela a causa de uma previsível nova crise no longo prazo[23].

    2. No que tange ao endividamento do Estado, sou favorável ao argumento de que temos aqui outra conexão causal, independentemente do uso da finança estatal como último recurso para a integração social. O assunto é, novamente, a organização capitalista do progresso econômico na forma de acumulação do capital em mãos privadas. O ponto de partida é a hipótese compartilhada por diferentes teóricos, como Wagner, Goldscheid e o jovem Schumpeter, de que, com o avançado desenvolvimento econômico e social, o gasto coletivo necessário para promover e assegurar esse desenvolvimento tem de aumentar – por exemplo, para reparar os efeitos colaterais (vejam o ano 2008 e seus desdobramentos), para a instalação e manutenção de uma sofisticada infraestrutura, para a criação de um capital humano necessário, para a garantia do trabalho e da motivação necessários etc. Talvez hoje já tenhamos atingido o marco temporal no qual o Estado fiscal (Schumpeter) encontra seus limites, quando, de acordo com Marx, o crescente caráter social da produção, no sentido mais amplo, começa a entrar em conflito direto com as relações de propriedade. Não fosse assim, o que o persistente aumento do endividamento do Estado quer nos dizer, que a necessidade de investimento coletivo e de consumo coletivo cresceu além do que um democrático Estado fiscal pode gerenciar, mesmo se, na melhor das hipóteses, confiscasse de seus cidadãos proprietários e das empresas; e que a previdência social de sociedades capitalistas desenvolvidas poderia tornar-se crescentemente incompatível com o individualismo possessivo, pelo qual tais sociedades são impulsionadas e dominadas? Por essa perspectiva, neoliberalismo e privatização podem ser entendidos como uma tentativa (final?) sob as relações de produção capitalistas de aprender o que

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