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O outono dos ipês-rosas
O outono dos ipês-rosas
O outono dos ipês-rosas
E-book479 páginas6 horas

O outono dos ipês-rosas

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Sobre este e-book

Martin Stieglitz é um herdeiro — tem uma vida confortável, sem exuberâncias, e mora em um bairro nobre de São Paulo. Mas é herdeiro, antes de tudo, de certos hábitos e valores da sua família, que emigrou para o Brasil na geração dos seus avós. Suas heranças são partilhadas por outros descendentes de imigrantes de mesma origem, que compõem o círculo de suas referências existenciais, pessoas que se imaginavam integradas à burguesia europeia, mas que se viram obrigadas a se estabelecer no Brasil. A chegada a São Paulo de uma figura importante para essa constelação de descendentes põe em marcha uma narrativa em dois tempos: um passado cuja fulguração parece tanto mais forte quanto maior a sua distância, e um presente indecifrável e ameaçador. Em O outono dos ipês-rosas, Luis S. Krausz tece uma narrativa sobre memória, identidade e a complexidade de se encontrar em um mundo que oscila entre a riqueza do legado e a inconstância do agora.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento31 de jul. de 2024
ISBN9786554392099
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    O outono dos ipês-rosas - Luis S. Krausz

    p3.jpg

    I

    Naquele ano tinha havido só uns retalhos de verão, em meio a dias chuvosos, cheios de vento que parecia vir da Patagônia, dias avulsos, desgarrados das estações do ano. Numa daquelas noites Martin Stieglitz saiu para a caminhada até a esquina da Alameda Gabriel Monteiro da Silva. Antes, ele fazia a caminhada acompanhado do fox terrier Júpiter, ou acompanhando o fox terrier Júpiter, pois o cão, e não Martin Stieglitz, exigia o passeio. Desde a morte do cão, cego e cardíaco, uns anos antes, ele continuava a fazer sozinho o passeio noturno pelas calçadas arborizadas, e se lembrava de Júpiter, com alegria e com tristeza. Ao se preparar para sair, numa noite de fevereiro, Martin Stieglitz colocou o braço para fora da janela de sua casa na Rua Suíça. Sentiu uma lufada de ar frio. Apanhou no guarda-roupa um pulôver de cashmere azul-marinho.

    Um pulôver de cashmere numa noite de fevereiro, em São Paulo.

    Alguém já ouviu falar de algo assim?

    Ele se orgulha de sua coleção de pulôveres. São mais de vinte peças. Em sua maioria, azuis, cinzas ou beges. Alguns têm cores mais exóticas. Ele só os usa raramente.

    Há pulôveres que foram herdados do seu pai e até do seu avô, morto há meio século. Lã escocesa. Não se pode comparar com o que hoje se vende por ai, made in China.

    Esses pulôveres herdados só saem do armário para figurarem, debaixo de um bonito blazer de tweed, na plateia de algum grande concerto no Teatro Municipal ou na Sala São Paulo. Têm uma espessura sedosa, que pode ser percebida imediatamente. Foram feitos para durar a vida inteira. E até mais. Vinham acompanhados de uma pequena quantidade de lã, para que pudessem ser restaurados. E esta lã vinha num envelope onde se lia, por exemplo, "With Compliments, Lyle and Scott. E dentro do envelope, num cartão impresso, lia-se: Since 1874, Lyle & Scott have been making high quality knitwear in the town of Hawick situated in the beautiful Borders region of Scotland famed for its fast flowing rivers and fine sweaters".

    Se alguém souber onde se encontram hoje pulôveres assim, será merecedor de um prêmio de valor inestimável.

    E no final lia-se, ainda: "Care for it and it will reward you with lasting good looks".

    É como comparar um quadro do século de ouro da pintura holandesa com uma reprodução fotográfica.

    Nem todas as peças da coleção de Martin Stieglitz, porém, são assim.

    As pessoas que Martin Stieglitz encontra dando passos perdidos no foyer do Teatro Municipal acham que estão bem-vestidas quando ostentam gravatas Hermès.

    Ter um segredo assim é como ter uma conta bancária secreta em moeda forte: não se fala disso. E nada será dito, aqui, sobre o cashmere argentino da Calle Florida, feito com pelo de coelho.

    Seja como for, um pulôver de cashmere numa noite de fevereiro?

    Aquele verão tinha sido assim.

    E agora já se vê a luz dourada e inquietante que se derrama sobre São Paulo no outono. E março ainda nem chegou. No outono, um bichinho adormecido sobre o diafragma volta a despertar, como um calafrio. É como quando a pessoa recebe uma notícia urgente e inesperada: se é boa ou ruim, os dias já não serão mais os mesmos. A água encanada gela. A ducha fria, no fim do banho, arrepia a pele. Eriça os pelos. E março ainda não chegou.

    Na Rússia, no inverno, cavava-se um buraco no gelo, sobre os lagos, para mergulhar na água. Dizia-se que era bom para a saúde. Isso foi esquecido pela gente criada com água quente e com antibióticos.

    Não faltam pessoas que dizem de Martin Stieglitz, com a certeza de quem sabe que determinada chave abre determinada fechadura: Ele é um pedante. A pessoa diz uma palavra assim e pensa que um enigma foi resolvido. Mas nada foi feito. Tampouco diremos de Martin Stieglitz que ele não seja pedante.

    Pedante, no teatro barroco italiano, é um pedagogo exigente e meticuloso — e não um insulto da boca dos desleixados.

    Martin Stieglitz foi educado pelos pais, pelos avós e também por uma governanta alemã. O pedantismo é considerado por Heinrich Heine como um aspecto essencial da cultura alemã. Em Deutschland: ein Wintermärchen, ele descreve o pedantismo e a rigidez dos gestos angulosos dos alemães, que faziam tremer seu coração.

    A paixão de Heinrich Heine pela língua alemã é algo que Martin Stieglitz é capaz de compreender. A cada ano, chega o outono e o ar fresco e a luz dourada trazem de longe alguma coisa desbotada. Como os sinais de um navio perdido na neblina. Como uma tapeçaria que já é uma sombra de si mesma. Chega um dia e ela já se tornou um trapo.

    Chegam os dias assim e Martin Stieglitz busca velhos livros alemães numa estante envidraçada, numa salinha contígua ao seu escritório, na casa da Rua Suíça, no Jardim Europa.

    É uma salinha cujas venezianas quase nunca são abertas. Há ali muitos tesouros de papel e a sombra os protege: livros com letras góticas em grossas encadernações de papelão e de couro e de linho, em cujas folhas os fungos crescem e se multiplicam; mapas antigos de países que já foram esquecidos; gravuras holandesas do século XVII; fólios de pergaminhos medievais iluminados, embalsamados em grossas molduras de vidro. E uma coleção de minerais, herdada do seu pai, que tinha sido químico, com pepitas de ouro e lingotes de nióbio.

    Não há como: de si para si, Martin Stieglitz chama aquele quartinho de das Stübchen. Fragmentos de um planeta se concentram ali. Outros fragmentos parecem se encontrar nas grandes noites de música do Teatro Municipal e da Sala São Paulo.

    E então Martin Stieglitz se lembra de uma palavra como trombadinha. Será que ainda existem os trombadinhas, que davam encontrões nos passantes para arrancar carteiras, bolsas e relógios? Com uma rapidez que não parece humana? Nos calçadões da Rua Barão de Itapetininga e de outras ruas que, de tanto não vê-las, Martin Stieglitz já se esqueceu até dos seus nomes?

    Os jornais, na época, falavam também dos trombadões, grandalhões, adultos, que continuavam a praticar a modalidade.

    À noite, nas ruas entre a Praça Ramos de Azevedo e a Praça da República, mendigos, crianças abandonadas, retirantes do Sertão nordestino, se enrolam em trapos para dormir debaixo dos beirais dos prédios e das galerias.

    Há décadas que Martin Stieglitz não anda por ali. O que perdeu no esplendor extinto do centro novo de São Paulo, inspirado por Paris e por Nova York, hoje desgraçado?

    Mais uma lembrança afunda.

    Mais um sonho se desfaz.

    É como o vento que passou.

    O Teatro Municipal continua ali. Como os livros nas prateleiras do Stübchen de Martin Stieglitz, projeta as sombras de um mundo que não foi. Seus candelabros de cristal brilham.

    Ao meio-dia, nas calçadas da Praça Ramos de Azevedo, instituições de caridade distribuem comida em embalagens descartáveis de alumínio, que refletem a luz do sol e ofuscam os passantes. As marmitas descartáveis aparecem também no imenso dormitório da Rua Amaral Gurgel, debaixo do Elevado Costa e Silva, que vai do Largo do Arouche até o acesso à Rua da Consolação. Um colosso de dormitório.

    A Rua da Consolação conserva o nome do tempo em que era um caminho de terra batida, que partia da igrejinha da Consolação e levava ao Cemitério da Consolação, separado da cidade por um pedaço de floresta. Era o caminho dos mortos. No feriado de Finados, a terra batida da Rua da Consolação se enchia de flores e de velas.

    Às vezes, os jornais falam de cemitérios para indigentes em lugares com nomes românticos. Por exemplo: São Miguel Paulista, nunca visitado por Martin Stieglitz, que evoca as flores de São Miguel junto ao orquidário, no fundo do jardim da casa da Rua Suíça. São umas flores roxas. Lizzy Stieglitz, a avó paterna de Martin Stieglitz, adorava seu perfume.

    Martin Stieglitz aprendeu a amar as plantas, os animais domésticos e a boa música.

    Seus avós eram terrivelmente românticos.

    Os indigentes fazem parte da paisagem do centro de São Paulo. Sobrevivem graças às assistências públicas e privadas, mas há quem prefira não vê-los. Quanto ao comércio ambulante, que oferece todo tipo de mercadoria imaginável, e muitos tipos de mercadorias que quase ninguém imagina, vai, cada vez mais, para as mãos de recém-chegados de países africanos ou sul-americanos que se encontram muito abaixo do Brasil nas estatísticas dos organismos internacionais. Para eles, a viagem até o Aeroporto Internacional de Guarulhos é a passagem para uma espécie de Terra Prometida.

    Nas noites de grandes concertos, os pedintes aparecem nas calçadas da Rua Xavier de Toledo, ao longo da fachada eclética à moda inglesa do prédio da Light, e em frente ao prédio art déco do Mappin.

    Há quem atire a eles um trocado.

    II

    Um morto-vivo é uma coisa abominável: alguém que, tendo morrido, volta a viver ou alguém que, estando vivo, porta-se como morto.

    Todos sabem de Martin Stieglitz: ele tem apego ao passado. Hoje guarda objetos que pertenceram a seus avós e a bisavós. E os usa. Isso lhe dá a sensação de continuar alguma coisa que começou muito longe. Muito, muito longe.

    Seus avós eram pessoas bem estabelecidas na vida, algo que, é preciso dizer, não lhes caiu do céu.

    Ou talvez tenha lhes caído do céu?

    A pessoa, se sabe ajudar a si mesma, também é ajudada. Nem sempre é fácil de se dizer o que vem primeiro — se a ajuda que a pessoa dá a si mesma, ou se a ajuda que a pessoa recebe por ajudar-se.

    Seja como for, eles eram imigrantes. Chegaram ao Brasil com suas juventudes e, do nada que tinham, fizeram algo. Fizeram muito porque, ajudando a si mesmas, também ajudavam os outros: eram diligentes e honestos; confiáveis e capazes.

    Se alguém quisesse, poderia pôr-se a bisbilhotar as vidas e as intimidades dos avós de Martin Stieglitz, tudo o que fizeram e tudo o que deixaram de fazer, e aí encontraria imperfeições.

    Mas quem quer fazer isso e para quê? Há então alguém que é ou foi perfeito?

    Não se fica apontando as imperfeições das pessoas de quem se gosta. Busca-se o que essas pessoas fizeram de certo em suas vidas.

    E Martin Stieglitz, enquanto seus avós viveram, gostava deles, como se gosta dos vivos. E agora que eles estão mortos, ele continua gostando deles, como se gosta dos mortos: a cada tanto, visita seus túmulos, que estão no cemitério e são mantidos rigorosamente em ordem, sempre limpos, sempre bem conservados, e com bonitas plantas à sua volta. São túmulos muito simples e sóbrios, inteiramente livres de qualquer pretensão majestática. Duas lajes de granito preto sobre o chão. Em suas superfícies, estão escritas algumas palavras.

    Martin Stieglitz, como se sabe, é um homem meticuloso.

    Os avós de Martin Stieglitz, por sua vez — ou melhor, a avó de Martin Stieglitz, porque, o avô tendo morrido primeiro, foi a avó quem o enterrou — escolheu este modelo de túmulo tomando por base outro modelo de túmulo.

    Esse modelo ela levava na memória já havia mais de quinze anos quanto seu marido, isto é, o avô de Martin Stieglitz, morreu.

    Os avós de Martin Stieglitz eram imigrantes. Tendo saído jovens da Áustria, voltaram a pisar na Áustria só 35 anos depois do ano em que de lá saíram.

    Muitas coisas aconteceram na Áustria em 35 anos. Dentre essas coisas, há muitas que levam uma pessoa que se lembra delas a se entristecer.

    Uma das coisas que entristeciam a avó de Martin Stieglitz quando ela, tendo chegado ao Brasil, pensava na Áustria era a morte de sua madrasta. Bem antes do início da guerra que destruiu a Europa, sua madrasta morreu.

    As madrastas raramente têm boa reputação, especialmente no que diz respeito ao seu trato com enteados e, ainda mais, com enteadas. No entanto, a madrasta da avó de Martin Stieglitz era diferente. Não havia mimo, agrado ou carinho que ela, podendo, não prodigasse à enteada. Dizia-se: ela chegou a banhar essa menina em leite!

    Já se ouviu algo assim?

    Lizzy, a avó de Martin Stieglitz, era, como ele, ligada ao passado e àqueles que, no passado, tinham feito parte de sua vida. Quem se lembra das boas impressões, lembra-se, também, das impressões menos boas. Então o que é melhor? Lembrar ou esquecer? O melhor é lembrar o que deve ser lembrado e esquecer o que deve ser esquecido. Mas isto nem sempre é assim. A pessoa, muitas vezes, se lembra do que se lembra: tanto das coisas boas quanto das coisas ruins.

    Seja como for, tendo voltado a Viena 34 ou 35 anos depois de sua partida de Viena, como seria possível que a avó de Martin Stieglitz deixasse de ir ao cemitério em busca do túmulo de sua madrasta? Não seria possível.

    Há pessoas que são assim: elas não vão, simplesmente, ao cemitério e ficam olhando para um túmulo. Elas conversam. Elas conversam com algo que, se está ali, ou se não está, que diferença faz? Importa que conversam. Falam sobre a vida, os problemas, as alegrias. Fazem perguntas. Conversam! Derramam o que está nos seus corações. Falam do bom que há no mundo e falam do mal que há no mundo. Choram. Acendem velas. Há quem se prostre diante dos túmulos. Isso já foi visto. É quase um espetáculo.

    Não é preciso dizer de Lizzy Stieglitz que ela não fazia nada disso. Ou melhor, fazia isso tudo, mas ninguém percebia porque, se alguém a olhasse numa hora como aquela, diria: ela está impassível.

    Era uma pessoa educada.

    A madrasta da avó de Martin Stieglitz chamava-se Johanna e seu túmulo tinha sido feito em Viena pelo pai da avó de Martin Stieglitz, que se chamava Louis. Esse túmulo, não é preciso dizer, serviu de modelo para aquele que, quinze anos depois dessa visita ao cemitério, em Viena, foi colocado sobre a sepultura do avô de Martin Stieglitz, em São Paulo.

    Ou dezesseis anos depois. É uma laje de granito preta, muito simples.

    Sem pretensões majestáticas.

    A avó de Martin Stieglitz prezava a memória e a simplicidade. Martin Stieglitz herdou dela muitas coisas que se pode pegar com as mãos e também coisas que não se pode pegar com as mãos, como o apreço pela simplicidade e o apreço pela memória. E uma certa aversão por tudo o que é monumental.

    Porque na Viena da infância da avó de Martin Stieglitz havia tantos e tão esplêndidos monumentos que ninguém precisava de mais outros.

    Sigmund Freud disse da Ringstrasse vienense, pela qual fazia diariamente seu Spaziergang, que era a avenida mais linda do mundo.

    Todos os dias, o pai de Lizzy Stieglitz saía no fim da tarde para um Spaziergang pela Ringstrasse vienense. Um Spaziergang é uma espécie de passeio, durante o qual a pessoa se detém aqui e ali. Ou para mordiscar uma coisinha, ou porque encontra esse ou aquele, ou porque quer observar esse ou aquele desconhecido, ou porque quer observar aquela vitrine tão bem-arranjada. Todos sabem da Ringstrasse que ela era a avenida mais linda do mundo!¹

    Todos sabem que nunca houve, na Europa, no mundo inteiro, exército mais elegante e mais bem vestido do que o exército do Kaiser austríaco.

    As fardas dos jovens oficiais! Suas botas! Seus sabres! Suas adagas! Seus quepes!

    Quanto às mulheres, seus rostos às vezes ficavam semiencobertos por véus com rendas. A pessoa tinha que olhar fixamente e, ainda assim, só o que encontrava era mistério incompreensível.

    De tanto tropeçar em seduções, o lindo império e o lindo exército do império se acabaram. E o que veio depois, e as seduções que vieram depois, a pessoa se lembra disso e se entristece.

    Já se sabe: Martin Stieglitz aprecia muito a memória e detesta o esquecimento como a morte.

    E, por apreciar muito a memória, Martin Stieglitz se lembra de tudo o que sabe, viu e aprendeu sobre a Áustria, o país de seus pais e de seus avós².


    1 É preciso dizer da Viena do século XIX que o exibicionismo era uma de suas grandes paixões. Um grande teatro era encenado diariamente ao longo da Ringstrasse. Que poses se faziam, ali! Que roupas eram vestidas pelas pessoas! Quem era o mais distinto? O mais nobre? O mais elegante? Quem era aristocrata e quem simplesmente se dava ares de aristocrata? Quem sabia, fazia, e quem não sabia, imitava e quantas vezes as imitações eram melhores e mais bonitas do que o original?

    2 Martin Stieglitz é muito austríaco. Assim, por exemplo, ele considera que a verdade é uma coisa grande demais para um pobre ser humano, falível, frágil, destinado à morte, que ela simplesmente não se destina ao ser humano. Assim como acontece com os insetos que se aproximam demais de uma lâmpada e queimam suas asas, caem e morrem, quem chega perto demais da verdade não é capaz de suportá-la e ela os destrói. Portanto, o homem não pode existir sem a mentira. Cada um tem de escolher as mentiras com as quais quer viver.

    III

    Martin Stieglitz fica sempre surpreso com o número crescente de refugiados da África, da Ásia e de outros países da América do Sul que chegam a São Paulo.

    Chega o outono e recomeçam as idas de Martin Stieglitz ao centro da cidade, para assistir aos grandes concertos.

    Ele volta de um concerto e segue em seu automóvel pela Avenida 9 de Julho.

    Tendo cruzado o túnel que passa sob a Avenida Paulista, avista as ruas arborizadas e os prédios dos Jardins, isto é, o lado de cá, onde, porém, ainda não há jardins. Só depois do entroncamento da Avenida São Gabriel ele avista os jardins e os casarões sombreados do Jardim Europa. Sente, então, que voltou à sua cidade.

    Martin Stieglitz é uma pessoa de muita sorte porque no bairro em que vive a pessoa pode sair da sua casa para o seu jardim, e pode sair do seu jardim para a rua, que passa ao longo de muitos jardins, e pode respirar, como se diz, a plenos pulmões: enche os pulmões completamente e os esvazia e os enche novamente, ao contrário do que acontece nas avenidas e nas ruas movimentadas, ladeadas por paredões de concreto e vidro, onde ressoa o estrondo dos veículos que circulam sobre o asfalto e empesteiam o ar.

    No Jardim Europa há silêncio e, se não há ar puro, porque ar puro já quase não existe numa cidade como São Paulo, há um ar que, pelo menos, parece puro.

    Lá onde Martin Stieglitz mora ainda se podem ouvir bem os trovões e até mesmo o barulho da chuva caindo: a chuva cai sobre as árvores e produz um sussurro delicioso. Não há nada que se possa comparar a isso.

    A oportunidade nunca vem sem um belo topete pelo qual seja possível agarrá-la antes que desapareça para sempre.

    E ser oportuno é uma grande virtude.

    Ainda que ser acusado de oportunista seja uma grande vergonha.

    E assim, quando chove, Martin Stieglitz larga o que estiver fazendo, para e contempla a chuva. É como contemplar o mar. E os trovões que se ouvem ao fundo é como se fossem os estrondos das ondas que quebram no fundo do mar nas noites de tempestade.

    E que ar delicioso trazem essas chuvas! O mundo se renova. É como as lágrimas que vêm para lavar e levar as tristezas. Não há nada como uma bela chuva.

    Dizem que, nas cidades, a chuva já se tornou ácida, como se fosse uma espécie de chuva de enxofre.

    Seja como for, chega o dia seguinte e, no ar fresco da manhã, paira uma névoa que acaricia as narinas e parece ter sido trazida, de madrugada, de um lugar longe dali, como os pãezinhos frescos e o jornal do dia. A luz da manhã beija a cidade.

    Chega o outono e as sombras se prolongam e o céu permanece azul e cristalino. A pessoa olha para o alto e tem a impressão de que o que está longe, lá no alto, está bem perto.

    A pessoa ergue a voz e acredita que o que diz está sendo ouvido.

    É o esplendor do outono.

    A pessoa sai pela manhã e caminha por ruas que se chamam Suécia e Noruega; Bélgica e Dinamarca; Luxemburgo e Inglaterra.

    O canto dos sabiás e o canto dos bem-te-vis e os pios um pouco aflitos dos pardais, que parecem estar sempre se queixando de suas vidinhas meio difíceis, se tornam mais penetrantes numa hora assim.

    As aves sentem que a luta pela vida fica mais difícil.

    Bem protegido do frio da manhã por algum dos seus pulôveres, Martin Stieglitz sente os raios de sol como uma carícia. Volta da caminhada no melhor dos humores. Junto à janela, a mesa do café da manhã já está preparada. O mel no pote de vidro em forma de colmeia reflete os raios de sol que entram pela vidraça e parece âmbar.

    Não fosse a trepidação distante dos motores dos automóveis que, àquela hora, já tomaram conta da Avenida Europa, seria possível acreditar que estivesse num lugar longe, bem longe.

    Houve um tempo em que o Jardim Europa era um bairro distante, ao qual se chegava depois de cruzar o túnel da Avenida 9 de Julho e os bairros residenciais que desciam pela encosta do lado de lá da Avenida Paulista, perto da várzea do Rio Pinheiros, com seus alagamentos, com seus mosquitos.

    Isso era no tempo em que o centro da cidade era chamado, simplesmente, de a cidade.

    Muitas vezes, na infância, Martin Stieglitz acompanhava seu pai, René Stieglitz, em suas incursões à cidade. Como tudo, aquilo tinha também seu ritual próprio.

    Na cidade havia grandes maravilhas: as escadas rolantes da Galeria Prestes Maia; o Correio Central; o Mappin.

    Para acompanhar o pai à cidade era preciso vestir-se adequadamente e, principalmente, deixar que o pai penteasse seu cabelo, fazendo uma risca como deveria ser. E não um caminho de rato.

    Uma visita à casa de parentes, um cinema, uma ida à cidade significavam, também, o pente paterno.

    Parecia-lhe que o pai fazia aquilo com indiferença. Ou com má vontade.

    De qualquer maneira, os dentes do pente arranhavam o couro cabeludo, que não era couro, era pele: uma pele sensível, habituada a ficar protegida pelos seus cabelos castanhos e ondeados.

    Ainda assim, uma ida à cidade era uma ida à cidade.

    Do outro lado do túnel da Avenida 9 de Julho, na Praça 14 Bis, ficava exposto um caça norte-americano da Segunda Guerra Mundial, que tinha sido usado pela Força Expedicionária Brasileira. Depois, havia a Garagem Automática, na Rua Araújo, onde o carro era automaticamente tragado por um grande elevador e desaparecia, levado a uma das 322 vagas que havia nos 25 andares da Garagem Automática.

    E logo estava-se na Praça da República. E lá avistavam-se os prédios da Avenida São Luís, em cujos andares térreos ficavam os escritórios das companhias aéreas estrangeiras: Pan-American; British Caledonian; SAS; Braniff; Lufthansa!

    Todas famosas pela beleza das suas aeromoças tanto quanto pelo luxo dos seus aviões.

    Havia, também, as incursões ao outro lado, pois houve um tempo no qual de fato se vivia no Jardim Europa, como que à beira de uma floresta: um pouco mais abaixo na direção do Rio Pinheiros já começava o matagal.

    Segundo René Stieglitz, era uma delícia nadar ali: ia-se contra a corrente, voltava-se a favor da corrente. Descia-se pelas ruas calçadas do Jardim Europa, descia-se ainda mais por umas ruas de terra batida e no fim da trilha estava o rio. Aqui parava-se para olhar esta planta e ali para olhar aquela planta. E as árvores eram cheias de filodendros de folhas escuras, que ficavam abanando o ar. E as samambaias desenrolavam uma folhagem fosforescente. E as florestas em miniatura dos musgos. E as orquídeas que davam umas florezinhas amarelas. E os líquenes vermelhos e brancos que pareciam lepras das árvores.

    Em seu tempo, Martin Stieglitz estudou num colégio público em Zurique, na Suíça. Importava a seus pais que ele tivesse uma educação em língua alemã. Ainda hoje, ele gosta de pensar na neve dos Alpes, ainda que ela já tenha se desgastado de tanto ser fotografada e divulgada em cartões-postais, embalagens de chocolate e comerciais de hotéis.

    Há ainda quem pense nos Alpes como ligação entre o céu e a terra, por onde passam os anjos? Acreditava-se que os anjos subiam pelo caminho dos Alpes até o céu, e também que, descendo de onde desciam, se encaminhavam, para a terra através dos Alpes.

    Como é linda a Suíça! Ali há lagos e montanhas. E, para quem tem dúvidas sobre a beleza da Suíça³, Martin Stieglitz tem um livrinho a recomendar, cujo título é muito simples: Souvenir. Martin Stieglitz tem um livro assim, que lhe foi dado pela governanta da pensão em Erlenbach onde ele vivia quando, tendo terminado seus estudos, se preparava para voltar ao Brasil, esse país distante, na América do Sul, cheio de epidemias, para não falar das cobras, dos peixes venenosos e dos insetos.

    Martin Stieglitz guarda esse livro com um carinho especial porque ele o lembra de uma mulher calorosa, muito correta e muito simples.

    Essa governanta tinha uma espécie de pureza semelhante à do leite alpino.

    Martin Stieglitz gostava de quase tudo em Zurique.

    Havia apenas uma coisa que ele não suportava ali.

    E o nome dessa coisa é: Sachselääut, uma festa popular de Zurique, na qual um boneco do tamanho de um ser humano é incinerado no alto de uma enorme pilha de gravetos secos. E o nome desse boneco é: Bööggs.

    É uma espécie de pupa gigante esse Bööggs, da qual sabe-se lá que borboletas ainda haveriam de sair, se ela não tivesse sido queimada.

    Mas a pupa foi queimada.

    A cada ano, uma.

    E isso assustava Martin Stieglitz.

    Até certa altura da vida, Martin Stieglitz acreditava que poderia ser visto como alemão ou suíço ou austríaco.

    Mas isso não durou muito tempo: era no tempo da festa de Chanukah, que é perto do Natal, e Martin Stieglitz estava diante de um guichê da Schweizerische Volksbank, o Banco do Povo Suíço, cuja clientela era formada por suíços — por trabalhadores, e não por estrangeiros que escondiam suas fortunas na Suíça. Um banco de gente trabalhadora e correta.

    Martin Stieglitz estava ali para tratar de uma remessa de dinheiro feita por sua avó. O caixa do banco olhou para Martin Stieglitz, interrogou-o sobre a festa de Chanukah e o deixou muito surpreso: como ele sabia que ele era judeu? E por que fazia questão de deixar bem claro que sabia? Quem é surpreendido por uma pergunta assim sente um calafrio. Logo entende algo que é muito simples. E também nada simples.

    Um dia a Áustria tinha sido uma grande fronteira entre o Norte e o Sul, o Ocidente e o Oriente, o catolicismo e o paganismo, o Leste e a civilização

    Martin Stieglitz conhece muitas palavras. Este não é um assunto do qual ele gosta de falar. Quando lhe perguntam que línguas ele fala, ele responde: português, alemão, inglês e espanhol.

    Sobre o hebraico: nem uma palavra.

    Sobre o francês? Não diz nada.

    Então sobre o italiano.

    Italiano?

    É verdade que Martin Stieglitz sabe falar italiano?

    Ele?

    Fazendo-se passar por um italiano?

    Nas calçadas em torno do Duomo di Milano?

    É verdade que ele já fez isso?

    Esse Martin Stieglitz...

    Estudou grego arcaico e latim.

    Fala ídiche. 

    Ídiche? 

    Como assim?

    Com quem aprendeu?

    Onde?

    Quando?

    Como?

    Por quê?

    E para quê?

    Todas essas palavras proporcionam a Martin Stieglitz uma sensação de liberdade: ele pensa que elas podem levá-lo a qualquer lugar. Seus avós e seus pais eram fascinados por tudo o que fosse internacional.

    A cada vez que vai a Zurique, ele reza, em segredo, para que não lhe aconteça alguma coisa desagradável, que o leve a se sentir como alguém que os outros gostariam de ver pelas costas ou prefeririam não ver.

    Martin Stieglitz é cidadão brasileiro, filho de imigrantes.

    Os colegas sul-americanos que ele conheceu enquanto estudava na Suíça eram, quase todos, filhos de famílias muito bem estabelecidas, proprietários de grandes fazendas, de indústrias, de bancos. Despreocupados, aguardavam sem pressa pelo dia em que receberiam as heranças que lhes eram destinadas desde seus nascimentos.

    Para Martin Stieglitz era diferente: o propósito da sua estada na Europa era tornar-se um europeu. Ao menos aos próprios olhos, e aos olhos dos seus pais e dos seus avós.

    Martin Stieglitz às vezes pensa em si mesmo como um hóspede. Ele fala perfeitamente alemão, francês e inglês. É capaz de comunicar-se em italiano. Fala correntemente espanhol. E, como se sabe, gosta de se vestir como um europeu.

    Todos sabem que Martin Stieglitz tem um fraco por roupas.

    Quando estudava num colégio público em Erlenbach, em Zurique, às vezes ele saía do pensionato, e tomava o bonde número 2 em Tiefenbrunnen até o Paradeplatz. Descia do bonde e seguia a pé pela Bahnhofstrasse. Nas calçadas da Bahnhofstrasse, os turistas ricos de todos os países do mundo carregam sacolas de compras com os nomes e os emblemas das lojas caras.

    Quanto a Martin Stieglitz, ele seguia até a grande loja de departamentos Jelmoli. Numa loja assim, as mercadorias falam por si mesmas. Saltam aos olhos dos clientes. Isso nem sempre foi assim. Houve um tempo em que vendedores permaneciam ali, à disposição da clientela. Seja como for, quem sabe o que lhe falta entra numa loja assim e, no setor adequado, encontra camisas e gravatas; cachecóis e cuecas; meias e, é claro, pulôveres de cashmere. E quem não sabe o que lhe falta olha para um lado e se deslumbra com os perfumes da marca Christian Dior. Então, aproxima-se do balcão e borrifa-se com a nova fragrância Eau Sauvage. No interior da loja de departamentos, as luzes vêm de todos os lados, em fachos, de tal maneira que a pessoa não consegue encontrar a própria sombra, porque muitas sombras se projetam em todas as direções. E a pessoa, vendo que perdeu sua sombra, fica meio tonta.

    Tendo-se borrifado de perfume, a pessoa entrou na loja de departamentos e não sabe o que lhe falta — porque na loja de departamentos há tudo e lá cada um pode encontrar o que lhe falta. Encanta-se, por exemplo, com os foulards de seda expostos sobre um aparador de rádica.

    Não se pode dizer de Martin Stieglitz que ele fosse uma pessoa assim. Tendo atravessado a pracinha diante da Jelmoli, ele subia pela escada rolante até o andar onde ficavam as roupas masculinas e comprava um pulôver, uma camisa, um par de meias. Com o passar dos anos, não havia mais, entre as roupas de Martin Stieglitz, nada que o ligasse ao Brasil.

    Só roupas europeias, que lhe davam ares europeus.

    Isso lhe agradava.


    3 Und wer daran zweifle, ob die Schweiz schön sei oder unschön, dem sei ein kleines Büchlein, dessen Titel Souvenir lautet, empfohlen. So ein Büchlein besitzt Martin Stieglitz. Das Buch wurde ihn von der Hauswirtin der Pension in Erlenbach, in der er gewohnt hatte, geschenkt, als er, nach dem Abschluss seiner Lehre, nach Brasilien zurückkehren sollte. Brasilien, dieses ferne und nicht ungefährliche Land in Südamerika, in dem Seuchen aller Art herumtreiben, um gar kein Wort über Schlangen, Giftfische und Insekten zu sagen. Martin Stieglitz bewährt dieses Buch, weil es ihn an diese warmherzige, hochanständige, und gleichzeitig sehr, sehr einfachen Frau erinnert. Sie strahlte eine Art von Reinheit aus, die der Alpenmilch verwandt zu sein schien. Martin Stieglitz liebte fast alles in Zürich. Es gab aber etwas, was er nicht leiden mochte: das Sachselääut. Es ist ein Volksfest, das damit endet, dass man auf einem riesenden Fegefeuer eine Puppe in Menschengröße

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