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História Da Filosofia 1

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História da Filosofia

Primeiro volume
Nicola A bbagnano

~DIGITALIZAÇÃO E ARRANJO:
ÂNGELO MIGUEL ABRANTES

HISTÓRIA DA FILOSOFIA

2.a Edição

VOLUME I

TRADUÇÃO DE:
ANTÓNIO BORGES COELHO
FRANCO DE SOUSA
MANUEL PATRÍCIO

EDITORIAL PRESENÇA

Título original
STORIA DELLA FILOSOFIA

PREFÁCIO DA PRIMEIRA EDIÇÃO

Esta História da Filosofia pretende mostrar a essencial humanidade dos


filósofos. Ainda hoje perdura o preconceito de que a filosofia se
afadiga com problemas que não têm a mínima relação com a existência
humana e continua encerrada em uma esfera longínqua e inacessível aonde
não chegam as aspirações e necessidades dos homens. E junto a este
preconceito vem o outro, que é ser a história da filosofia o panorama
desconcertante de opiniões que se sobrepõem -e contrapõem, privada de
um fio condutor que sirva de orientação para os problemas da vida.
Estes preconceitos são sem dúvida reforçados por aquelas orientações
filosóficas que, por amor de um mal entendido tecnicismo, pretenderam
reduzir a filosofia a uma disciplina particular acessível a poucos e
assim lhe menosprezaram o valor essencialmente humano. Trata-se,
todavia, de preconceitos injustos, fundados em falsas aparências e na
ignorância do que condenam. Demomstrá-lo é a pretensão desta obra.

Parte ela da convicção de que nada do que é humano é alheio à filosofia


e de que, ao contrário, esta é o próprio homem, que em si mesmo se faz
problema e busca as razões e o fundamento do ser

que é o seu. A essencial conexão entre a filosofia e o homem é a


primeira base da investigação historiográfica empreendida neste livro.
Sobre tal base, esta investigação inclina-se a considerar a pesquisa
que há 26 séculos os homens do ocidente conduzem acerca do próprio ser
e do próprio destino. Através de lutas e conquistas, dispersões e
retornos, esta pesquisa acumulou um tesouro de experiências vitais, que
urge redescobrir e fazer reviver para além da indumentária doutrinal
que muito frequentemente o oculta, ao invés de revelá-lo. E isto porque
a história da filosofia é profundamente diferente da da ciência. As
doutrinas passadas e abandonadas já não têm para a ciência significado
vital; e as ainda válidas fazem parte do seu corpo vivo e não há
necessidade de nos voltarmos para a história para apreendê-las e torná-
las nossas. Em filosofia a consideração histórica é, ao invés,
fundamental; uma filosofia do passado, se foi verdadeiramente uma
filosofia, não é um erro abandonado e morto, mas uma fonte perene de
ensinamento e de vida. Nela se encarnou e exprimiu a pessoa do
filósofo, não apenas em o*, que tinha de mais, seu, na singularidade da
sua experiência de pensamento e de vida, mas ainda nas suas relações
com os outros e com o mundo em que viveu. E à pessoa devemos volver se
queremos redescobrir o sentido vital de toda doutrina. Em cada uma de
elas devemos estabelecer o centro em torno do qual gravitaram os
interesses fundamentais do filósofo, e que é ao mesmo tempo o centro da
sua personalidade de homem e de pensador. 'Devemos fazer reviver
perante nós o filósofo na sua realidade de pessoa histórica se queremos
compreender claramente, através da obscuridade dos séculos
desmemorizados ou das tradições deformadoras, a sua palavra autêntica
que pode ainda servir-nos de orientação e de guia.

Por isso não serão apresentados, em esta obra, sistemas ou problemas,


quase substantivados e considerados como realidades autónomas, mas
figuras ou pessoas vivas, serão feitas emergir da lógica da pesquisa em
que quiseram exprimir-se e consideradas nas suas relações com outras
figuras e pessoas. A história da filosofia não é o domínio de doutrinas
impessoais que se sucedem desordenadamente ou se concatenam
dialecticamente, nem a esfera de acção de problemas eternos, de que
cada doutrina é manifestação contingente. É um tecido de relações
humanas, que se movem no plano de uma comum disciplina de pesquisa, e
que transcendem por isso os aspectos contingentes ou insignificantes,
para se fundar nos essenciais e constitutivos. Revela a solidariedade
fundamental dos esforços que procuram tornar clara, tanto quanto é
possível, a condição e o destino do homem; solidariedade que se exprime
na afinidade das doutrinas tanto como na sua oposição, na sua
concordância tanto como na sua polémica. A história da filosofia
reproduz na táctica das investigações rigorosamente disciplinadas a
mesma tentativa que é a base e o móbil de todas as relações humanas:
compreender-se e compreender. E reprodu-lo quando colhe êxitos como
quando colhe desenganos, nas vicissitudes de ilusões renascidas como
nas de clarificações orientadas, e nas de esperanças sempre renascentes.

A disparidade e a oposição das doutrinas perdem assim o seu carácter


desconcertante. O homem tem ensaiado e ensaia todas as vias para
compreender-se a si mesmo, aos outros e ao mundo. Obtém nisso mais ou
menos sucesso. Mas deve e deverá renovar a tentativa, da qual depende a
sua dignidade de homem. E não pode renová-la senão voltando-se para o
passado e extraindo da história a ajuda que os outros podem dar-lhe
para o futuro.

Eis por que não se encontrarão nesta obra críticas extrínsecas, que
pretendem pÔr a claro os erros dos filósofos. A pretensão de atribuir
aos filósofos lições de filosofia é ridícula, como a de fazer de uma
determinada filosofia o critério e a norma de julgamento das outras.
Todo o verdadeiro filósofo é um mestre ou companheiro de pesquisa, cuja
voz nos chega enfraquecida através do tempo, mas pode ter para nós,
para os problemas que ora nos ocupam, uma importância decisiva.
Necessário é que nos disponhamos à pesquisa com sinceridade e
humildade. Nós não podemos alcançar, sem a ajuda que nos vem dos
filósofos do passado, a solução dos problemas de que depende a nossa
existência individual e em sociedade. Devemos, por isso, propor
historicamente esses problemas, e na tentativa para compreender a
palavra genuína de Platão ou de Aristóteles, de Agostinho ou de Kant e
de todos os outros, pequenos ou grandes, que hajam sabido exprimir uma
experiência humana fundamental, devemos ver a própria tentativa de
formular e solucionar os nossos problemas. O problema de o que nós
somos e devemos ser é fundamentalmente idêntico ao problema de o que
foram e quiseram ser, na sua substância humana, os filósofos do
passado. A separação dos dois problemas tira ao filosofar o seu
alimento e à história da filosofia a sua importância vital. A unidade
dos dois problemas garante a eficácia e a força do filosofar e
fundamenta o valor da historiografia filosófica. A história da
filosofia liga simultaneamente o passado e o futuro da filosofia. Esta
ligação é a essencial historicidade da filosofia.

Mas justamente Por isso a preocupação da objectividade, a cautela


crítica, a investigação paciente dos textos, o apego às intenções
expressas dos filóSOfos, não são na historiografia filosófica outros
tantos sintomas de renúncia ao Weresse teorético,

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mas as provas mais seguras da seriedade do empenho teorético. Visto que


a quem espera da investigação histórica uma ajuda efectiva, a quem vê
nos fIlósofos do passado mestres e companheiros de pesquisa, não
interessa falsear-lhes o aspecto, camuflar-lhes a doutrina, mergulhar-
lhes na sombra traços fundamentais. Todo o interesse tem, ao invés, em
reconhecer-lhes o verdadeiro rosto, assim como quem empreende uma
viagem difícil tem interesse em conhecer a verdadeira índole de quem
lhe serve de guia. Toda a ilusão ou engano é, neste caso, funesta. A
seriedade da investigação condiciona e manifesta o empenho teorético.

É evidente, deste ponto de vista, que não se pode esperar encontrar na


história da filosofia um progresso contínuo, a formação gradual de um
único e universal corpo de verdade. Este progresso, tal como se
verifica nas ciências, uma por uma, que uma vez implantadas nas suas
bases se acrescentam gradualmente pela soma dos contributos
individuais, -não pode encontrar-se em filosofia, uma vez que não há
aqui verdades objectivas e impessoais que possam tornar-se e integrar-
se em um corpo único, mas pessoas que dialogam acerca do seu destino; e
as doutrinas não são mais que expressões deste dialogar ininterrupto,
perguntas e respostas que às vezes se respondem e se correspondem
através dos séculos. A mais alta personalidade filosófica de todos os
tempos, Platão, exprimiu na própria forma literária da sua obra-o
diálogo-a verdadeira natureza do filosofar. Por outro lado, na história
da filosofia não há, no emtanto, uma mera sucessão desordenada de
opiniões que alternadamente se amontoam e destroem. Os problemas em que
se verte o dialogar incessante dos filósofos têm uma lógica sua, que é
a própria disciplina a que os filósofos livremente sujeitam a sua
pesquisa: pelo que certas directivas persistem em dominar um

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período ou uma época histórica, porque lançam uma luz mais viva sobre
um problema fundamental. Adquirem, então, uma impessoalidade aparente,
que faz delas o património comum de gerações inteiras de filósofos
(pense-se no agostinismo ou no aristotelismo durante a escolástica);
mas em seguida declinam e apagam-se, e todavia a verdadeira pessoa do
filósofo não mais se apaga, e Todos podem e devem interrogá-lo para
dele tirar luz.
A história da filosofia apresenta deste modo um estranho paradoxo. Não
há, pode dizer-se, doutrina filosófica que não tenha sido criticada,
negada, impugnada e destruída pela crítica filosófica. Mas quem
quereria sustentar que a obliteração definitiva de um só dos grandes
filósofos antigos ou modernos não seria um empobrecimento irremediável
para todos os homens? É que o valor de uma filosofia não se mede pelo
quantum de verdade objectiva que ela contém, mas tão só pela sua
capacidade de servir de ponto de referência (porventura somente
polémico) a toda a tentativa de compreender-se a si e ao mundo. Quando
Kant reconhece a Hume o mérito de o ter despertado do "sono dogmático"
e de o ter encaminhado para o criticismo, formula de maneira mais
imediata e evidente a relação de livre interdependência que enlaça
conjuntamente todos os filósofos na história. Uma filosofia não tem
valor enquanto suscita o acordo formal de UM Certo número de pessoas
sob determinada doutrina, mas somente enquanto suscita e inspira nos
outros aquela pesquisa que os conduz a encontrar cada qual o próprio
caminho, assim como o autor nela encontrou o seu. O grande exemplo é
aqui ainda o de Platão e de Sócrates: durante toda a sua vida procurou
Platão realizar o significado da figura e do ensinamento de Sócrates,
prosseguindo, quando era necessário, além do invólucro doutrinal em que
estavam encerrados,- e

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desta maneira a mais alta e bela filosofia nasceu de um reiterado acto


de fidelidade histórica.

Tudo isto exclui que na história da filosofia se possa ver somente


desordem e sobreposição de opiniões; mas exclui, não obstante, que se
possa ver nela uma ordem necessária dialecticamente concatenada, em que
a sucessão cronológica das doutrinas equivalha ao desenvolvimento
racional de momentos ideais constituindo uma verdade única que se
mostre em sua plenitude no fim do processo. A concepção hegeliana faz
da história da filosofia o processo infalível de formação de uma
determinada filosofia. E assim suprime a liberdade da pesquisa
filosófica, que é condicionada pela realidade histórica da pessoa que
indaga; nega a problematicidade da própria história e faz dela um
círculo concluso, sem porvir. Os elementos que constituem a vitalidade
da filosofia perdem-se deste modo todos.

A verdade é que a história da filosofia é história no tempo, logo


problemática; e é feita, não de doutrinas, ou de momentos ideais, mas
de homens solidamente encadeados pela pesquisa comum. Nem toda a
doutrina sucessiva no tempo é, só por isto, mais verdadeira que as
precedentes. Há o perigo de se perderem ou esquecerem ensinamentos
vitais, como frequentemente aconteceu e acontece; de onde decorre o
dever de inquirir incessantemente do seu significado genuíno.

Obedece a este dever, dentro dos limites que me são concedidos, a


presente obra. Que o leitor queira compreendê-la e julgá-la dentro
deste espírito.

N. A.

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PREFÁCIO DA SEGUNDA EDIÇÃO

A segunda edição desta obra constitui uma actualização da primeira com


base em textos ou documentos ultimamente publicados, em novas
investigações historiográficas e em novos caminhos da crítica histórica
ou metodológica. As partes que sofreram maiores revisões ou
ampliamentos são as que concernem ' à lógica e à metodologia das
ciências, à ética e à política. As investigações historiográficas
contemporâneas voltam-se, de facto, preponderantemente para estes
campos, obedecendo aos mesmos interesses que solicitam hoje a pesquisa
filosófica. Aqui como ali a exigência de ter em conta os novos dados
historiográficos e de apresentar todo o conjunto numa forma ordenada e
clara tornou oportunas alterações de extensão ou de colocação dos
autores tratados, em conformidade com certas constantes conceptuais que
demonstraram ser mais activas, ou verdadeiramente decisivas, na
determinação do desenvolvimento ou da eficácia histórica das
filosofias. óbviamente, as maiores modificações teve que sofrê-las o
desenvolvimento da filosofia contemporânea, no intuito de oferecer um
sintético quadro de conjunto da riqueza e da variedade dos caminhos que
hoje dis-

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putam o campo, e dos problemas em volta dos quais se concentram as


discussões polémicas adentro de cada caminho.

Mas a estrutura da obra, os seus requisitos essenciais, as inscrições e


os critérios interpretativos fundamentais não sofreram modificações
substanciais, porque conservaram a sua validade. Às notas
bibliográficas, embora acttualizadas, foi conservado o carácter
puramente funcional de selecção orientadora para a pesquisa
bibliográfica.

Agradeço a todos os que fizeram chegar até mim sugestões e conselhos e


sobretudo aos amigos com quem discuti alguns pontos fundamentais do
trabalho. A três deles, a quem mais frequentemente recorri, Pietro
Rossi, Pietro Chiodi e Carlo A. Viano, tenho gosto em exprimir
públicamente a minha gratidão.

Turim, Setembro de 1963.

N. A.

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PRIMEIRA PARTE

FILOSOFIA ANTIGA

ORIGENS E CARÁCTER DA FILOSOFIA GREGA

§ 1. PRETENSA ORIGEM ORIENTAL

Uma tradição que remonta aos filósofos judaicos de alexandria (século I


a.C.) afirma que a filosofia derivou do Oriente. Os vrincivais
filósofos da Grécia teriam extraído da doutrina hebraica, egípcia,
babilónica e indiana não somente as descobertas científicas mas também
as concepções filosóficas mais pessoais. Esta opinião divulgou-se
progressivamente nos séculos seguintes; culminou na opinião do neo-
pitagórico Numénio, que chegou a chamar a Platão um "Moisés
ateicizante"; e passou dele aos escritores cristãos.

Contudo, não encontra ela qualquer fundamento nos testemunhos mais


antigos. Fala-se, é verdade, de viagens de vários filósofos ao Oriente,
especialmente pela Pérsia teria viajado Pitágoras; Demócrito, pelo
Oriente; pelo Egipto, segundo testemunhos mais verosímeis, Platão. Mas
o próprio Platão (Rep., IV, 435 e) contrapõe o espírito científico dos
Gregos ao amor da utilidade, carac-

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terístico dos Egípcios e dos Fenicios; e assim exclui da mesma maneira


clara a possibilidade de que se tenha podido e se possa trazer
inspiração para a filosofia das concepções daqueles povos. Por outro
lado, as indicações cronológicas que se têm sobre as doutrinas
filosóficas e religiosas do Oriente são tão vagas, que estabelecer a
prioridade cronológica de tais doutrinas sobre as correspondentes
doutrinas gregas deve ter-se por impossível.

Mais verosímil se apresenta, à primeira vista, a derivação da ciência


grega do Oriente. Segundo algumas opiniões, a geometria teria nascido
no Egipto da necessidade de medir a terra e distribui-la pelos seus
proprietários depois das periódicas inundações do Nilo. Segundo outras
tradições, a astronomia teria nascido com os Babilónios e a aritmética
no próprio Egipto, Mas os Babilónios cultivaram a astronomia com vista
às suas crenças astrológicas, e a geometria e a aritmética conservaram
entre os Egípcios um carácter prático, perfeitamente distinto do
carácter especulativo e científico que estas doutrinas revestiram entre
os gregos.

Na realidade, aquela tradição, nascida tão tarde na história da


filosofia grega, foi sugerida, numa época dominada pelo interesse
religioso, pela crença que os povos orientais estivessem em poder de
uma sabedoria originária e pelo desejo de ligar a tal sabedoria às
principais manifestações do pensamento grego. Também entre os
historiadores modernos a origem oriental da filosofia grega é defendida
com cores que tendem a acentuar o seu carácter religioso e, de aqui, a
sua continuidade com as grandes religiões do Oriente.

A observação decisiva que cumpre fazer a propósito é que, embora se


presuma (pois que provas decisivas não existem) a derivação oriental de
esta ou aquela doutrina da Grécia antiga, isto não implica ainda a
origem oriental da filosofia grega.

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----A -sabedoria oriental é essencialmente religiosa: é ela o


património de uma casta sacerdotal cuja única preocupação é a de
defendê-la e transmiti-la na sua pureza. O único fundamento da
sabedoria oriental é a tradição. A filosofia grega, ao invés, é
pesquisa. Esta nasce de um acto fundamental de liberdade frente à
tradição, ao costume e a toda a crença aceite como tal. O seu
fundamento é que o homem não possui a sabedoria mas deve procurá-la:
não é sofia mas filosofia, amor da sabedoria, perseguição directa no
encalço da verdade para lá dos costumes, das tradições e das
aparências. Com isto, o próprio problema da relação entre filosofia
greco-cristã-oriental perde muito da sua importância.

Pode admitir-se como possível ou pelo menos verosímil que o povo grego
tenha inferido, dos povos orientais, com os quais mantinha desde
séculos relações e trocas comerciais, noções e haja encontrado o que
esses povos conservaram na sua tradição religiosa ou haviam descoberto
por via das necessidades da vida. Mas isto não impede que a filosofia,
e em geral a investigação científica, se manifeste nos gregos com
características originais, que fazem dela um fenómeno único no mundo
antigo e o antecedente histórico da civilização (cultura?) ocidental,
de que constitui ainda uma das componentes fundamentais. Em primeiro
lugar, a filosofia não é de facto na Grécia o património ou o
privilégio de uma casta privilegiada. Todo o homem, segundo os gregos,
pode filosofar, porque o homem é "animal racional" e a sua
racionalidade significa a possibilidade de procurar, de maneira
autónoma, a verdade. As palavras com que inicia a Metafísica de
Aristóteles: "Todos os homens tendem, por natureza, para o saber"
exprimem bem este conceito, uma vez que "tendem" quer dizer que não só
o desejam, mas

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que podem consegui-lo.


Em segundo lugar, e como consequência disto, a filosofia grega é
investigação racional, isto é, autónoma, que não assenta numa verdade
já manifestada ou revelada, mas somente na força da razão e nesta
reconhece o seu guia. O seu limite polémico é habitualmente a opinião
corrente, a tradição, o mito, para além dos quais intenta prosseguir; e
até quando termina por uma confirmação da tradição, o valor desta
confirmação deriva unicamente da força racional do discurso filosófico.

§ 2. FIlOSOFIA: NOME E CONCEITO

Estas características são próprias de todas as manifestações da


filosofia grega e estão inscritas na própria etimologia da palavra, que
significa "amor da sabedoria". A própria palavra aparece relativamente
tarde. Segundo uma tradição muito conhecida, referida em as Tusculanas
de Cícero (V, 9), Pitágoras teria sido o primeiro a usar a palavra
filosofia em um significado específico. Comparava ele a vida às grandes
festas de Olímpia, aonde uns convergiam por motivo de negócios, outros
para participar nas corridas, outros ainda para divertir-se e, por fim,
uns somente para ver o que acontece: estes últimos são os filósofos.
Aqui está sublinhada a distinção entre a contemplação desinteressada
própria dos filósofos e a azáfama interesseira dos outros homens. Mas a
narrativa de Cícero provém de um escrito de Heraclides do Ponto (Dióg.
L, Proemimm, 12) e pretende simplesmente acentuar o carácter
contemplativo que foi considerado pelo próprio Aristóteles essencial à
filosofia. Mas, na Grécia, a filosofia teve ainda o valor de uma sageza
que deve guiar todas as acções da vida. Em tal sageza se haviam
inspirado os Sete

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Sábios que, no entanto, eram também chamados "sofistas" como "sofista"


era chamado Pitágoras. Não no sentido de contemplação, mas no sentido
mais genérico de pesquisa desinteressada, usa Heródoto a palavra quando
fez o Rei Creso dizer a Sólon. (Heródoto, J, 20); "Tenho ouvido falar
das viagens que, filosofando, empreendeste para ver muitos países"; e
da mesma forma Tucidides, quando (11, 40) fez dizer a Péricles de si e
dos Atenienses: "Nós amamos o belo com simplicidade e filosofamos sem
receio". O filosofar sem receio exprime a autonomia da pesquisa
racional em que consiste a filosofia.
como veremos no tema posterior a palavra filosofia implica dois
significados. O primeiro e mais geral é o de pesquisa autónoma ou
racional, seja qual for o campo em que se desenvolva; neste sentido,
todas as ciências fazem parte da filosofia. o Segundo significado,
mais específico, indica uma pesquisa particular que de algum modo é
fundamental para as outras mas não as contém. Os dois significados
estão ligados nas sentenças de Heraclito (fr., 35 Díels): "É necessário
que os homens filósofos sejam bons indagadores (historas) de muitas
coisas". Este duplo significado encontra-se claramente em Platão onde o
termo vem usado para indicar a geometria, a música e as outras
disciplinas do mesmo género, sobretudo na sua função educativa (Teet.,
143 d; Tím., 88 c); e por outro lado a filosofia vem contraposta à
sofia, à sabedoria que é própria da divindade. e à doxa, à opinião, na
qual se detém quem não se preocupa com indagar o verdadeiro ser (Fedr.,
278 d; Rep.,
480 a). A mesma bivalência se acha em Aristóteles para quem a filosofia
é, como filosofia prima, a ciência do ser enquanto ser; mas abrange,
também em seguida, as outras ciências teoréticas, a matemática e a
física, e até a ética (Ét. Nic., 1, 4,

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1906 b, ^31). Esta bivalencia de significado revela melhor do que


qualquer outra coisa o significado originário e autêntico que os gregos
atribuíam à palavra. Este significado está já incluído na etimologia, e
é o de pesquisa. Toda a ciência ou disciplina humana, enquanto pesquisa
autónoma, é filosofia. Mas é, logo a seguir, filosofia em sentido
eminente e próprio a pesquisa que é consciente de si, a pesquisa que
põe o próprio problema da pesquisa e esclarece por isso o seu próprio
valor nas confrontações feitas pelo homem. Se toda a disciplina é
pesquisa e como tal filosofia, em sentido próprio e técnico a filosofia
é sómente o problema da pesquisa e do seu valor para o homem. É neste
sentido que Platão diz que a filosofia é a ciência pela qual não
sómente se sabe, mas se sabe ainda fazer um uso vantajoso do que se
sabe (Eutid., 288 c-290 d). Aristóteles, por seu turno, acentua a
supremacia da filosofia prima que é a metafisica nas confrontações com
a filosofia segunda e terceira que são a física e a matemática. E num
sentido análogo a filosofia é, para os Estóicos, o esforço
(cpitedeusis) para a sabedoria (Sexto E. Adv. Math., IX, 13); para os
Epicuristas é a actividade (enorgheia) que torna feliz a vida (lb., X1,
1 69). Em qualquer caso, a filosofia é um saber indispensável para o
encaminhamento e a felicidade da vida humana.

§ 3. PRIMóRDIOS DA FILOSOFIA GREGA:


OS MITóLOGOS, OS MISTÉRIOS OS SETE SáBIOS, OS POETAS

Os primórdios da filosofia grega devem procurar-se na própria


Grécia:(nos primeiros sinais, em que a filosofia como tal i, é, como
pesquisa), começa a aparecer nas cosmologias míticas dos
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poetas, nas doutrinas dos mistérios, nos apotDgrnas dos Sete Sábios e
sobretudo na reflexão ético-política dos poetas.

Odocumento da cosmologia mítica mais antigo entre os gregos é a


Teogonia de Hesíodo, na qual decerto confluíram antigas tradições. O
próprio Aristóteles (Met., 1, 4; 984 b, 29) diz que Hesíodo foi,
provàvelmente, o primeiro a procurar um princípio das coisas quando
disse: "primeiro que tudo foi o caos, depois a terra de amplo seio... e
o amor, que sobressai entre os deuses imortais" (Teog.,
116 sgs.). De natureza filosófica se apresenta aqui o problema do
estado originário de que as coisas saíram e da força que as produziu,
Mas se o problema é filosófico, a resposta é mítica. O caos ou abismo
bocejante, a terra, o amor, etc. são personificados em entidades
míticas.

Depois de Hesíodo, o primeiro poeta de quem conhecemos a cosmologia é


Ferecides de Siros, contemporâneo de Anaximandro, nascido provàvelmente
por alturas de 600-596 a.C.. Diz ele que primeiro que todas as coisas e
desde sempre havia Zeus, Cronos e Ctonos. Ctonos era a terra, Cronos o
tempo, Zeus o céu. Zeus transformado em Eros, ou seja no amor, procede
à construção do Mundo. Há neste mito a primeira distinção entre a
matéria e a força organizadora do mundo.

Observa-se uma ulterior afirmação da exigência filosófica na religião


dos mistérios espalhados pela Grécia no dealbar do século VI a.C.. A
esta religião pertenciam o culto de Dioniso, que vinha da Trácia, o
culto de Deméter, cujos mistérios se celebraram em Elêusis, e sobretudo
o orfismo.
O orfismo era também dedicado ao culto de Dioniso, mas punha em uma
revelação a origem da autoridade religiosa e estava organizado em
comunidades. A revelação era atribuída ao trácio ORFEu, que descera ao
Hades; e a finalidade dos

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ritos que a comunidade celebrava era a de purificar a alma do Homem,


iniciada para subtraí-la à "roda dos nascimentos", isto é, à
transmigração para o corpo de outros seres viventes. O ensinamento
fundamental que o orfismo contém- é o conceito da ciência e em geral da
actividade do pensamento como um caminho de vida, ou seja como uma
pesquisa que conduz à verdadeira vida do homem. Do mesmo modo devia
depois conceber a filosofia Platão, que no Fédon se filia
explicitamente nas crenças órficas.

Ao lado dos primeiros lampejos da filosofia na cosmologia do mito e nos


mistérios está a primeira apresentação da reflexão moral na lenda dos
Sete Sábios. São estes diversamente enumerados pelos escritores
antigos, mas quatro deles, Tales, Bias, Pítaco e Sólon estão incluídos
em todas as listas. Platão, que pela primeira vez os enumerou,
acrescenta a estes quatro Cleóbulo, Míson e Chilon (Prot., 343 a).

A eles se atribuem breves sentenças morais (de aí terem ainda sido


chamados Gnomas), algumas das quais se tornaram famosas. A Tales se
atribui a frase "Conhece-te a ti mesmo" (Dióg. L., 1, 40). A Bias a
frase "a maioria é perversa" (1b., 1, 88) e esta outra "O cargo revela
o homem" (Alist., Ét. Nic., V, 1,1029 b, 1). A Pítaco a frase "Sabe
aproveitar a oportunidade" (Dióg. L.,
1, 79). A Sólon as frases "Toma a peito as coisas importantes" e "Nada
em excesso" (1b., 1, 60,63). A Cleóbulo a frase "A medida é coisa
óptima" (1b., 1, 93). A Míson a frase "Indaga as palavras a partir das
coisas, não as coisas a partir das palavras" (1b., 1, 108). A Chílon as
frases "Cuida de ti mesmo" e "Não desejes o impossível" (1b., I,
70). Como se vê, estas frases são todas de natureza prática ou moral e
demonstram que a primeira reflexão filosófica na Grécia foi direita à
sageza da vida mais do que à pura contemplação

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(ao contrário do que preferiu um Aristóteles). Estas frases preludiam


uma verdadeira e peculiar investigação sobre a conduta do homem no
mundo. E não é por acaso que o primeiro dos Sete Sábios, Tales, é ainda
considerado o primeiro autêntico representante da filosofia grega.

Mas o clima em que pôde nascer e florescer a poesia e a reflexão


filosófica grega foi preparado pela reflexão moral dos poetas que
elaborou, na Grécia, conceitos fundamentais que deveriam servir aos
filósofos

L para a ceito de uma

interpretação do mundo con

ão un lei que dá unidade ao mundo umano encontra-se pela primeira vez


em Homero: Toda a Odisseia é dominada pela crença em úha lei de
justiça, de que os deuses são guardiões e garantes, lei que determina
uma ordem providencial nas vicissitudes humanas, pela qual o justo
triunfo e o injusto é punido. Em Hesíodo esta lei vem personificada na
Dikê, filha de Zeus, que tem assento junto do pai e vigia para que
sejam unidos os homens que praticam a injustiça. A infracção a esta lei
aparece no mesmo Hesíodo como arrogância (hybris) devida ao
desenfreamento das paixões e em geral às forças irracionais: assim o
qualifica o próprio Hesíodo (Os trabalhos e os dias, 252, segs., 267
segs.) e ainda o Arquíloco (fr. 36, 84), Mimnermo (fr. 9, ló) e Teógnis
(v. 1. 40, 44, 291, 543, 1103). Sólon afirma com grande energia a
infalibilidade da punição que fere aquele que infringe a norma de
justiça, sobre que se funda a vida em sociedade: ainda quando o culpado
se subtrai à punição, esta atinge infalivelmente os seus descendentes.
A aparente desordem das vicissitudes humanas, pela qual a Moira ou
fortuna parece ferir os inocentes, justifica-se, segundo Sólon (fr.
34), pela necessidade de conter dentro dos justos limites os desejos
humanos descomedidos e de afastar o homem de qualquer excesso. De
maneira que a lei de justiça é

27

também norma de medida; e Sólon exprime num fragmento famoso (fr. 16) a
convicção moral mais enraizada nos gregos: "A coisa mais difícil de
todas é captar a invisível medida da sageza, a única que traz em si os
limites de todas as coisas". Ésquilo é enfim o profeta religioso desta
lei universal de justiça de que a sua tragédia quer exprimir o triunfo.
Portanto, antes que a filosofia descobrisse e justificasse a unidade da
lei por sob a multiplicidade dispersa dos fenómenos naturais, a poesia
grega descobriu e justificou a unidade da lei por sob as vicissitudes
aparentemente desordenadas e mutáveis da vida humana em sociedade.
Veremos que a especulação dos primeiros físicos não fez mais do que
procurar no mundo da natureza esta mesma unidade normativa, que os
poetas haviam perseguido no mundo dos homens

§ 4. AS ESCOLAS FILOSóFICAS

Desde o início a pesquisa filosófica foi na Grécia uma pesquisa


associada. Uma escola não reunia os seus adeptos somente pelas
exigências de um ensino regular: não é provável que tal ensino tenha
existido nas escolas filosóficas da Grécia antiga senão com
Aristóteles. Os alunos de uma escola eram chamados "companheiros
(etairoi). Juntavam-se para viver uma "vida comum" e estabeleciam entre
si não só uma solidariedade de pensamento mas também de costumes e de
vida, numa troca contínua de dúvidas, de dificuldades e de
investigações. O caso da escola pitagórica, que foi ao mesmo tempo uma
escola filosófica e uma associação religiosa e política, é certamente
único; e por outro lado este traço do pitagorismo foi por isso mesmo
mais uma fraqueza que uma força. Contudo, todas as grandes
personalidades da filosofia grega são os funda-

28

dores de uma escola que é um centro de investigação; a obra das


personalidades menores vem juntar-se à doutrina fundamental e contribui
para formar o património comum da escola.

Duvidou-se que tivessem formado uma escola os filósofos de Mileto; mas


há para eles o testemunho explícito de Teofrasto que fala de
Anaximandro como "concidadão e companheiro (etairos)" de Tales. O
próprio Platão nos fala dos heraclitianos (Teet., 1792) e dos
anaxagóricos (Crát.,
409 b); e em o Sofista <242d) o estrangeiro eleata fala da sua escola
como ainda existente em Eleia. A Academia platónica teve portanto uma
história de nove séculos.

Esta característica da filosofia grega não é acidental Já que a


pesquisa filosófica não encerrava, segundo os gregos, o indivíduo em si
próprio; exigia, bem ao contrário, uma concordância de esforços, uma
comunicação incessante entre os homens que dela faziam o objectivo
fundamental da vida e determinava por isso uma solidariedade constante
e efectiva entre os que a ela se dedicavam,.'

De aqui provém o interesse constante dos filósofos gregos pela


política, isto é pela vida em sociedade. A tradição conservou-nos,
notícia deste interesse mesmo na referência àqueles de cuja vida não
nos dá mais que essas informações. Tales, Anaximandro e Pitágoras foram
homens políticos. De Parménides se conta que deu as leis à sua cidade e
de Zenão que pereceu vítima da tentativa para libertar os seus
concidadãos de um tirano. Empédocles restaurou a democracia em
Agrigento; Arquitos foi um chefe de estado e Melissos um almirante. O
interesse político exercitou portanto, como veremos, uma função
dominante na especulação de Platão.
29

§ 5. PERÍODOS DA FILOSOFIA GREGA

O seu próprio carácter de pesquisa autónoma na qual cada um está


igualmente empenhado e da qual pode e deve cada um esperar o
cumprimento da sua personalidade, torna difícil dividir em períódos o
curso da filosofia grega. Todavia, a organização da pesquisa nas
escolas e as relações necessariamente existentes entre escolas
contemporâneas, que, mesmo quando são polémicas, se batem em terreno
comum, permitem distinguir, no curso da filosofia grega, um certo
número de períodos, cada um dos quais determinado pela escolha de
POSIÇãO no problema fundamental da pesquisa. Se considerarmos o
problema em torno do qual virá sucessivamente gravitar a pesquisa,
podem distinguir-se cinco períodos: cosmológico, antropológico,
ontológico, ético, religioso.

1. Período cosmolÓgico que compreende a escolas pré-socráticas, com


excepção dos sofistas,_ dominado pelo problema de perseguir a unidade
que garante a ordem do mundo e a possibilidade do conhecimento humano

2. período antropológico que compreende os sofistas e Sócrates, é


dominado pelo problema de perseguir a unidade do homem em si mesmo e
com os outros homens, como fundamento e possibilidade da -formação do
indivíduo e da harmonia da vida em sociedade

3. período lógico, que compreende Platão


e Aristóteles, é dominado pelo problema de perseguir na relação entre o
homem e o ser a condição e a possibilidade do valor do homem como tal e
da validade do ser como t.Este período, que é o da plena maturidade do
pensamento grego, torna a propor na sua síntese os problemas dos dois
períodos precedentes.

30

4. O período ético, que compreende o estoicismo, o epicurismo, o


cepticismo--C o eclectismo, é dominado pelo problema da conduta do
homem e é caracterizado pela diminuta consciência do valor teorético da
pesquisa.

5. O período religioso, que compreende as escolas neoplatónicas e suas


afins, é dominado pelo problema de encontrar para o homem a via da
reunião com Deus, considerada como a única via de salvação.

Estes períodos não representam rígidas divisões cronológicas: não


servem para outra coisa que não seja para dar um quadro geral e
resumido do nascimento, do desenvolvimento e da decadência da pesquisa
filosófica na Grécia antiga.

§ 6. FONTES DA FILOSOFIA GREGA

As fontes da filosofia grega são constituídas: I. Pelas obras e


fragmentos dos filósofos. Platão é o primeiro de quem -nos ficaram as
obras inteiras. Temos muitas obras de Aristóteles. De todos os outros
não nos ficaram mais que fragmentos mais ou menos extensos. 111. Pelos
testemunhos dos escritores posteriores.
As obras fundamentais de que se extraem tais testemunhos são as
seguintes:

a) No que respeita à filosofia pré-socrática são


precisas alusões conservadas nas obras de Platão e de Aristóteles.

Particularmente Aristóteles deu-nos no primeiro livro da Metafísica o


primeiro ensaio de historiografia filosófica. Além disso, referências
às outras doutrinas são muito frequentes em todos os seus escritos.

31

b) Os doxógrafos, quer dizer, Os escritores pertencentes ao período


tardio da filosofia grega, que referiram as opiniões dos vários
filósofos. O primeiro destes doxógrafos, que é ainda fonte de quase
todos os outros, é Teofrasto, autor das opiniões físicas de que nos
resta um capítulo e outros fragmentos em o Comentário de Simplício
(séc. VI d.C.) à Física de Aristóteles.

São ainda doxografias muito importantes: os Placita Philosophownena


atribuídos a Plutarco e as Éclogas físicas de João Estobeu (séc. V
d.C.). Provavelmente (como o demonstrou Diels) ambos bebiam na mesma
fonte: os Placita de Aécio, que procediam por via indirecta, isto é, em
segunda mão, das Opiniões de Teofrasto.

Outro doxógrafo é Cícero, que nas suas obras expõe doutrinas de


numerosos filósofos gregos, porém todas conhecidas em segunda e
terceira mão.

Para a biografia dos filósofos a mais importante doxografia é o


primeiro livro da Refutação de todas as heresias de Hipólito (séc. III
d.C.), que fora em primeiro lugar falsamente atribuída a Diógenes com o
título de Philosophonmena. A obra de Diógenes Laércio (séc. III d.C.).
Vidas e Doutrinas dos Filósofos, em 10 livros, que chegou inteira até
nós, é de importância fundamental para a história do pensamento grego.
Trata-se de uma história de cada uma das escolas filosóficas, segundo o
método das chamadas Sucessões (Diadochai) que já tinha sido praticado
por Socião de Alexandria (séc. II a.C.) e por outros cujas obras têm
andado perdidas. A obra de Diógenes Laércio contém duas doxografias
distintas: uma biográfica e anedótica, a outra expositiva. A parte
biográfica é um amontoado de anedotas e de notícias acumuladas ao
acaso; apesar disso contém informações preciosas.

32

No que respeita à cronologia foi fundador desta Eratóstenes de Cirene


(séc. III a.C.); mas as suas Cronografias foram suplantadas pela versão
em trímetros jâmbicos que delas fez Apolodoro de Atenas (por volta de
140 a.C.) com o título de Crónica. A época de cada filósofo é indicada
pela sua acmé ou florescimento que se faz coincidir com 40 anos de
idade; e as outras datas são calculadas com referência a esta última.

Finalmente, outras indicações se colhem nas obras dos escritores que


discutiram criticamente as doutrinas dos filósofos gregos. Assim
Plutarco na sua polémica contra o estoicismo e o epicurismo, nos dá uma
exposição destas doutrinas. Sexto Empírico assenta o seu cepticismo na
critica e na exposição dos sistemas dogmáticos. E os escritores
cristãos dos primeiros séculos, combatendo a filosofia pagã, fornecem-
nos outras indicações em virtude das quais chegaram às nossas mãos
fragmentos e testemunhos preciosos de obras que continuam perdidas.
Outras colhem-se nos comentários de Proclo e de Simplício a Platão e a
Aristóteles, nas Noites Á ticas. de Affio Gélio (por volta de 150
a.C.), em Ateneu (por volta de 200 a.C.) e em Eliano (ao redor de 200
a.C.).

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 1. Sobre a pretensa origem oriental da filosofia grega: ZELLER,


Philosophie der Griochen, cap. 2; GompERz, Griechische Denker, I, cap.
1-3, trad. frane., p. 103 segs.; BuRNET Earty Greek Philosophy, Intr.
X-XII, trad. frane. com o título Aurore de Ia Phil. grecque, p. 17
segs. (Neste volume, ZELLER virá citado a 6.1 edição ao cuidado de
Nestle; e de GomPERZ e BURNET as traduções francesas acima Indicadas).
Para mais Indicações bibliográficas veja-se a longa nota acrescentada
por Mondolfo à sua tradução

33

Italiana da cit. ob. de ZELLER, Florença, 132, vol. 1, pág. 63-99.

§ 3. Os fragmentos dos mitólogos, dos Órficos e dos Sete Sábios ~o


reunidos em DIEU, Fragmente der Vor8okratiker, 5.4 edição 1934, vol, I;
SNELL, Leben und Meinungen der Sieber Wei8en. MiInchen, 1943. -KERN,
Orphicorum fragmenta, Berlim, 1922: OuVHMI, La~lae auroae orphicae,
Bona, 1915; ED., Civiltá greca nell'Italia meridionale, Nápoles, 1931;
Orphei Hymni, edit. Gullermo Quandt, Berlim, 1941.

§ 4. Sobre o contributo da poesia para a elaboração dos Conceitos


morais fundamentais: MAX WUNT, Gesch. der gricch. Ethik, Leipzig, 1908,
vol. I, cap. 1-2; JAEGER, Pa~, tradução Italiana, Florença, 1936, livro
I; SNELL, Die Entdeckung des Geistee, trad. ital, La cultura greca e te
origini del pe~ro europeo, Turim, 1951.

§ 5. Sobre a periodização da filosofia grega, vejam-se indicações


bibliográficas na nota de Mondolfo a ZELLER, vol. I, pág. 375-384.

§ 6. Fragmentos: MULLACH, Fragmenta philosophorum graecorum, 3 vol.,


Paris, 1860, 1867, 1881; DIELS, Poêtarum philosophorum fragmenta,
Berlim,
1901. Os fragmentos dos pré-socráticoa: DIELS. Die Fragmente der
V<>r8okratiker, 5.1 edição, ao cuidado de KrsÈn , Berlim, 1R34. - DAL
PRA, La atoriografia filosofica antica, Milão, 19W.

Os doxógrafos foram recolhidos e comentados por DIELS, Doxographi


Gracci, Berlim, 1879, que contém as obras, ou os fragmentos de obras,
de Aécio (Plutarco-"tobeu) Ario Didimo, Teofrasto, Cícero (livro I do
De %atura deorum), FIlodemo, Mpólito, Plutarco, Epifâneo, Galeno,
Hermias.

Sobre as fontes da fil. grega: UEBERWEG-PRAECHTER, PhiJ. der Altertums,


Berlim, 1926, 5 4.; Mondolfo em 7--- , vol. I, p. 25-33.

34
III

A ESCOLA JÓNICA

1. CARÁCTER DA FILOSOFIA PRÉ-SOCRÁTICA

A filosofia pré-socrática até aos sofistas é dominada pelo problema


cosmológico, mas não exclui o homem da sua consideração; mas no homem
vê somente uma parte ou um elemento da natureza, não ainda o centro de
um problema específico. Para os pré-socráticos, os mesmos princípios
que explicam a constituição do mundo físico, explicam a construção do
homem. O reconhecimento do carácter especifico da existência humana é-
lhes alheio e alheio é, por Isso, o problema do que o homem é na sua
subjectividade como princípio autónomo da pesquisa. O escopo da
filosofia pré-socrática é o de pedir e reconhecer, para lá das
aparências múltiplas e continuamente mutáveis da natureza, a unidade
que faz da própria natureza um mundo: a única substância que constitui
o seu ser, a única lei que regula o seu devir. A substância é para os
pré-socráticos a matéria de que todas as

35

coisas se compõem; mas é, também a força que explica a sua


composição, do seu nascimento, a sua morte, e a sua perpétua mudança.
'Ela é princípio não só no sentido de explicar a sua origem mas ainda e
sobretudo no sentido que torna inteligível e reconduz à unidade aquela
sua multiplicidade e mutabilidade que aparece à primeira observação tão
rebelde a toda a consideração unitária. Do que deriva o carácter activo
e dinâmico que a natureza, a physis, tem para os pré-socráticos: ela
não é a substância na sua imobilidade, mas a substância como princípio
de acção e de inteligibilidade de tudo o que é múltiplo e em devir. Do
que deriva ainda o chamado hilozoísmo dos pré-socráticos: a convicção
implícita de que a substância primordial corpórea tinha em si uma força
que a fazia mover e viver.

A filosofia pré-socrática, não obstante a simplicidade do seu tema


especulativo e o primitivismo materialista de muitas das suas
concepções, adquiriu pela primeira vez para a especulação a
possibilidade de conceber a natureza como um mundo e pôs como
fundamento desta possibilidade a substância, concebida como princípio
do ser e do devir. Ora- que estas conquistas respeitem exclusivamente
ao mundo físico é um facto indubitável; mas é igualmente indubitável
que elas arrastam consigo, pelo menos implicitamente, outras tantas
conquistas que concernem ao mundo próprio do homem e à sua vida
interior. O homem não pode voltar-se para a investigação do mundo
como objectividade, sem tornar-se consciente da sua subjectividade; o
reconhecimento do mundo como outro em relação a si é condicionado pelo
reconhecimento de si como eu; e reciprocamente. O homem não pode
dirigir-se à investigação da unidade dos fenómenos externos, se não
sentir o valor da unidade na sua vida e nas suas relações com os outros
homens.

36

O homem não pode reconhecer uma substância que constitua o ser e o


princípio das coisas externas senão enquanto reconhecer semelhantemente
o ser e a substância da sua existência individual ou em sociedade. A
investigação dirigida para o mundo objectivo está sempre unida à
investigação dirigida para o mundo próprio do homem. Esta conexão
torna-se clara em Heraclito. O problema do mundo físico é por ele posto
em unidade essencial com o problema do eu; e toda a conquista naquele
campo se lhe apresenta condicionada pela investigação dirigida para si
mesmo. "Estudei-me a mim mesmo" diz ele (fr. 101, Diels). À excepção de
Heraclito, todavia, o problema para que intencionalmente se dirige a
pesquisa dos pré-socráticos é o problema cosmológico: tudo o que a
pesquisa dirigida para este problema implica no homem e para o homem
continua inexprimido e caberá ao período seguinte da filosofia grega
trazê-lo à luz. O carácter de uma filosofia é determinado pela natureza
do seu problema; e não há dúvida que o problema dominante na filosofia
pré-socrática seja o cosmológico.

A tese apresentada pelos críticos modernos (em contraposição polémica


com a de Zeller, do puro carácter naturalista da filosofia pré-
socrática) de uma inspiração mística de tal filosofia, inspiração de
que ela teria trazido a sua tendência para considerar
antropomorficamente o universo físico, funda-se em aproximações
arbitrárias que não têm base histórica. Esta tese encontra por outro
lado as suas origens na última fase da filosofia grega, que, para a sua
inspiração religiosa, quer fundar-se numa sabedoria revelada e
garantida pela tradição, e precisamente daquela fase recolhe os
testemunhos sobre que se funda a pouca, verosimilhança que possui. Mas
é sabido que neopitagóricos, neoplatónicos, etc., fabricavam os
testemunhos que deviam servir para demonstrar o carácter religioso,
tradi-

37

cional das suas doutrinas. E é impossível basear todo o desenvolvimento


da filosofia grega nos seus próprios pressupostos: especialmente quando
o mérito mais alto dos primeiros filósofos da Grécia foi o de terem
isolado um problema específico e determinado o problema do mundo,
saindo da confusão caótica de problemas e de exigências que se
entrelaçavam nas primeiras manifestações filosóficas dos poetas e dos
profetas mais antigos.

---Os filósofos pré-socráticos realizaram pela primeira vez aquela


redução da natureza à objectividade, que é a primeira condição de toda
consideração científica da natureza;! e esta redução é exactamente o
oposto da confusão entre a natureza e o homem, que é própria do
misticismo antigo. Que a pesquisa naturalista implique o sentido da
objectividade espiritual ou contribua para o formar, é pois (como se
disse) um facto indubitável; mas este facto não é devido a um influxo
religioso sobre a filosofia; bem ao contrário é urna conexão que os
problemas realizam na própria vida dos filósofos que os debatem.

§ 8. TALES

O fundador da escola jónica é Tales de Mileto, contemporâneo de Sólon e


de Creso. A sua acmè, quer dizer o seu nascimento deve remontar a 624-
23; a sua morte faz-se cair em 546-45. ,.Tales foi homem político,
astrónomo, matemático e físico, além de filósofo-Como homem político,
incitou os gregos da Jónia, como narra Heródoto (1, 170), a unirem-se
num estado federal com capital em Teo. Como astrónomo, predisse um
eclipse solar (provavelmente o de 28 de Maio de
585 a.C.). Como matemático, inventou vários teoremas de geometria. Como
físico, descobriu as

38

propriedades do iman. A sua fama de sábio continuamente absorto na


especulação é testemunhada pela anedota referida por Platão (Teet., 174
e), que, observando o céu, caiu a um poço, suscitando as risadas de uma
criadita trácia. Uma outra anedota referida por Aristóteles (Pol., 1,
11, 1259a) tende, ao invés, a evidenciar a sua habilidade de homem de
negócios: prevendo uma belíssima colheita de azeitonas, alugou todos os
lagares da região e subalugou-os depois a um preço mais elevado aos
próprios donos. Trata-se, provavelmente, de anedotas falsas referidas a
Tales mais como a um símbolo e incarnação do sábio que como a uma
pessoa. Assim a última (como o próprio Aristóteles observa) procura
demonstrar que a ciência não é inútil, mas que em regra os sábios não
se servem dela (como poderiam fazê-lo) para enriquecer.

Não parece que tenha deixado escritos filosóficos. Devemos a


Aristóteles o conhecimento da sua doutrina fundamental (Met., 1, 3,
983b, 20): "Tales diz que o princípio é a água, pelo que --sustentava
ainda que a terra está sobre a água; considerava, talvez, prova disso
ver que o alimento de todas as coisas é húmido e que até o quente se
gera e vive no húmido; ora aquilo de que tudo se gera é o principio de
tudo, Pelo que se ateve a tal conjectura, e ainda por terem os gérmens
de todas as coisas uma natureza húmida e ser a água nas coisas húmidas
o princípio da sua natureza". Observa Aristóteles que esta crença é
antiquíssima. Homero contou que Oceano e Tétis são os princípios da
geração. Um só argumento, pois, apresenta Aristóteles como próprio de
Tales: que, a terra está sobre a água: e água é aqui substância no seu
significado mais simples, como aquilo que está sob (subiectum) e
sustém. Um outro argu-

39

mento (a geração pelo húmido) é adoptado tão só como provável; é talvez


conjectura de Aristóteles. Tales imaginava unida à água uma força
activa, vivificadora e transformadora: neste sentido, possivelmente, é
que ele dizia que "tudo está pleno de Deus" e que o íman tem uma alma
porque atrai o ferro.

§ 9. ANAXIMANDRO

Concidadão e contemporâneo de Tales, Anaximandro nasceu em 610-609


(tinha 64 anos quando em 547-46 descobriu a obliquidade do Zodíaco).
Foi ainda homem político e astrónomo. É o primeiro autor de escritos
filosóficos na Grécia;` a sua obra em prosa Acerca da natureza marca
uma etapa notável na especulação cosmológica dos jónicos..Foi ele o
primeiro a designar a substância única com o nome de principio (arché
e reconhecia este principio não na água ou no ar ou em qualquer outro
elemento particular, mas no infinito (ápeiron), isto é, na quantidade
infinita da matéria, de que todas as coisas tiram a sua origem e em que
todas as coisas se dissolvem quando termina o ciclo que lhe foi
estabelecido- por uma lei necessária.' Este princípio infinito engloba,
e governa tudo; é por si próprio imortal e indestrutível, divino por
conseguinte.' Não o concebe ele como uma amálgama (migma) dos vários
elementos corpóreos em que estes estejam compreendidos cada um com as
suas qualidades peculiares; mas preferentemente como uma matéria em que
os elementos não estão ainda distintos e que por isso, além de
infinita, é ainda indefinida (a<)riston) (Diels, Ma).

Estas determinações representam já um desenvolvimento e um


enriquecimento da cosmologia de Tales. Em primeiro lugar, o carácter
indeterminado

40

da substância primordial, que não se identifica com nenhum dos


elementos corpóreos, na medida em que permite conceber melhor a
derivação destes elementos como outras tantas especificações e
determinações dela, imprime na substância todas as características de
verdadeira e própria corporeidade, e faz dela uma simples massa
quantitativa ou extensa. Sendo a corporeidade de facto ligada à
determinação dos elementos particulares, o ápeiron não pode distinguir-
se destes senão nos seres privados das determinações que constituem a
sua corporeidade sensível e por isso na redução ao infinito espacial.
Embora não possa encontrar-se em Anaximandro o conceito de um espaço
incorpóreo, a indeterminação do ápeiron, reduzindo-o à espacialidade,
faz dele necessariamente um corpo determinado somente pela sua
extensão. Ora esta extensão é infinita e como tal englobante e governo
do todo (Diels, A15). Estas determinações e sobretudo a primeira fazem
da ápeiron uma realidade distinta do mundo e transcendente: aquilo que
abraça está sempre fora e para além do que é abraçado, ainda que em
relação com ele. " O princípio que Anaximandro estabelece como
substância originária -merece pois o nome de "divino". A própria
exigência da explicação naturalista Conduz Anaximandro a uma primeira
elaboração filosófica do transcendente e do divino, pela primeira vez
subtraído à superstição e ao mito, mas o infinito é ainda aquilo que
governa o mundo: é por conseguinte, não só a substância como também a
lei do mundo.

Primeiro que todos, Anaximandro propôs-se o problema do processo por


meio do qual as coisas derivam da substância primordial. Esse processo
é a separação. (A substância infinita é animada por um eterno
movimento, em virtude do qual se separam dela os contrários: quente e
frio, seco e húmido, etc,1 Por meio desta separação geram-se

41

os mundos infinitos, que se sucedem segundo um _,_Ciclo eterno. em todo


o mundo, o tempo do nascimento, da duração e da morte está marcado.
"Todos os seres têm de pagar uns aos outros o castigo da sua injustiça,
segundo a ordem do tempo"] (fr. 1,
Diels). Aqui a lei de justiça que Sólon -considerava dominadora do
mundo humano, lei que prova a prevaricação e a prepotência, torna-se
lei cósmica, lei que regula o nascimento e a morte dos mundos. Mas que
injustiça é essa que todos os seres cometem e que todos têm que
exprimir? Evidentemente, ela é devida à própria constituição e portanto
ao nascimento dos seres, uma vez que nenhum deles pode evitá-la não
podendo assim subtrair-se ao castigo. Ora o nascimento é, como se viu,
a separação dos seres da substância infinita. Evidentemente, esta
separação é a ruptura da unidade, que é própria do infinito; é o
suceder da diversidade, e portanto do contraste, lá onde existiam a
homogeneidade e a harmonia. É na separação que se determina, pois, a
condição própria dos seres finitos: múltiplos diversos e contrastantes
entre si, pois que inevitavelmente destinados a pagar com a morte o seu
próprio nascimento e a regressar à unidade.

Mau grado a distância dos séculos e a escassez das informações


remanescentes podemos ainda dar-nos conta, por estes indícios, da
grandeza da personalidade filosófica de Anaximandro. Ele fundou a
unidade do mundo, não só na unidade da substância, como ainda na
unidade da lei que o governa. E viu nesta lei não uma necessidade cega,
mas uma forma, de justiça. A unidade do problema cosmológico com o
problema humano aflora aqui: Heraclito irá iluminá-la plenamente.

Todavia, a própria natureza da substância priinordial conduz


Anaximandro a admitir a infinidade dos mundos. Viu-se que infinitos
mundos se

42

sucedem segundo um ciclo eterno; mas os mundos são também infinitos


contemporaneamente no espaço ou tão só sucessivamente no tempo? Um
testemunho de Aécio inclui Anaximandro entre os que admitem mundos
inumeráveis que circundam de todos os lados aquele que habitamos; e um
testemunho análogo nos dá Simplício, que coloca, ao lado de
Anaximandro, Leucipo, Demócrito e Epicuro (Diels, A 17). Cícero (De
nat. deor., ]L 10.25), copiando Filodemo, autor de um tratado sobre a
religião que se encontrou em Herculano, diz: "A opinião de Anaximandro
era que aqueles são divindades que nascem, crescem e morrem a longos
intervalos e que estas divindades são mundos inumeráveis". Na realidade
é difícil negar que Anaximandro tenha admitido uma infinidade espacial
dos mundos pois que se o infinito engloba todos os mundos, deve então
ser pensado para além não de um só mundo, mas de outro e ainda de
outro.] Só nos confrontos de infinitos mundos pode compreender-se a
infinidade da substância primordial, que tudo abraça e transcende.
Anaximandro considera de maneira original a forma da terra: esta é um
cilindro que paira no meio do mundo sem ser sustentada por coisa
alguma, visto que, encontrando-se a igual distância de todas as partes,
não é solicitada por nenhuma destas a mover-se. Quanto aos homens, não
são eles os seres originários da natureza. Efectivamente não sabem
alimentar-se por si, e não teriam, por isso, podido sobreviver se
houvessem nascido da primeira vez como nascem agora. É forçoso que
hajam tido origem de outros animais. Nasceram dentro dos peixes e
depois de terem sido alimentados, tornados capazes de se protegerem a
si mesmos, foram lançados fora e encaminharam-se para terra. Teorias
estranhas e primitivas, mas que mostram da

43

maneira mais firme a exigência de procurar uma explicação puramente


naturalista do mundo e de se ater aos dados da experiência.

§ 10. ANAXÍMENES

Anaxímenes de Mileto, mais jovem do que Anaximandro e talvez seu


discípulo, floresceu por volta de 546-45 e morreu entre 528-25 (63.a
Olimpíada).como Tales, reconhece como princípio uma
matéria determinada, que é o ar; mas atribui a esta matéria as
características do princípio de Anaximandro.
Via ainda no ar a origem de todas as coisas: "Assim como a nossa alma,
que é ar, nos sustém, assim o sopro e o ar circundam o mundo inteiro"
(fr. 2, Diels).

O mundo é como um animal gigantesco que respira: e a respiração é a sua


vida e a sua alma. Do ar nascem todas as coisas que são, que
foram e que Serão, e até os deuses e as coisas divinas. O ar é o
princípio do movimento de todas as coisas.

Anaxímenes diz-nos ainda o modo como o ar determina a transformação das


coisas: este modo é o duplo processo de rarefacção e da
condensação: Rarefazendo-se o ar torna-se fogo; condensando-se torna-se
vento, depois nuvem e, condensando-se mais, água, terra e em seguida
pedra. Até o calor e o frio se devem a esse processo: a condensação
produz o frio, a rarefacção o calor.

Como Anaximandro, Anaximenes admite o devir "Cíclico do mundo; de onde


a sua disolução periódica no princípio originário e a sua periódica
regeneração a partir dele.

Mais tarde a doutrina de Anaxímenes foi defendida por Diógenes de


Apolónia, contemporâneo de Anaxágoras. A acção que Anaxágoras atribuía
à inteligência, atribuía-a Diógenes ao ar, que tudo

44

invade e, que, com alma e sopro (pneuma) cria nos animais a vida, o
movimento e o pensamento. Por conseguinte, o ar é, segundo Diógenes,
incriado, iluminado, inteligente e regula e domina tudo.

§ 11. HERACLITO

A especulação dos jónios culmina na doutrina de Heraclito, que pela


primeira vez acomete o próprio problema da pesquisa e do homem que a
institui. Heraclito de Éfeso pertence à nobreza da sua cidade; foi
contemporâneo de Parménides e floresceu como ele por alturas de 504-01
a.C. É autor de uma obra em prosa que foi depois designada com o título
habitual Acerca da natureza, constituída por aforismos e sentenças
breves e lapidares, nem sempre claras, donde o apelido de "obscuro".
O ponto de partida de Heraclito é a constatação do incessante devir das
coisas. O mundo é um fluxo perpétuo: "Não é possível descer duas vezes
no mesmo rio nem tocar duas vezes numa substância mortal no mesmo
estado, pois que, pela velocidade do movimento, tudo se dissipa e se
recompõe de novo, tudo vem e vai" (fr. 91, Diels). A substância, que é
o princípio do mundo, deve explicar o devir incessante justamente por
meio da extrema mobilidade; Heraclito reconhece-a no fogo. mas pode
dizer-se que o fogo perde, na sua doutrina, todo o carácter corpóreo: é
um princípio activo, inteligente e criado "Este mundo, que é o mesmo
para todos, não foi criado por qualquer dos deuses ou dos homens, mas
foi sempre, é e será fogo eternamente vivo que com ordem regular se
acende e com ordem regular se extingue" (fr. 30, Diels). A mudança é,
por isso, uma saída do fogo ou um
regresso ao fogo. "Todas as coisas se trocam pelo

45
fogo e o fogo troca-se por todas, como o ouro se troca pelas
mercadorias e as mercadorias pelo ouroi" (fr. 90, Diels).

As afirmações de que "este mundo" é eterno e de que a mudança é uma


incessante troca pelo fogo excluem evidentemente o conceito. que os
Estóicos atribuíram a Heraclito, de uma conflagração universal, em
virtude da qual todas as coisas regressariam ao fogo primitivo. De
facto, a troca incessante entre as coisas e o fogo não implica que
todas se convertam em fogo, tal como a troca entre as mercadorias e o
ouro não implica que todas se convertam em ouro.

Mas estes fundamentos de uma teoria da natureza são apresentados por


Heraclito como o resultado de uma sabedoria difícil de alcançar-se e
oculta à maior parte dos homens. Nas palavras que abriam o seu livro,
Heraclito, lamentava que os homens não obstante terem escutado o logos,
a voz da razão, se esqueçam dele nas palavras e nas acções, pelo que
não sabem o que fazem no estado de vigília, como não sabem o que fazem
no estado ",de sono (fr. 1, Diels). E ao, longo de toda a obra corria a
polémica contra a sageza aparente dos que sabem muitas coisas, mas não
têm inteligência de nenhuma: sageza a que se opõe a pesquisa dos
filósofos, que essa sim incide sobre objectos múltiplos (fr. 35,
Diels), mas recolhe-os todos em unidade (fr. 41, Diels).

Héraclito é verdadeiramente o filósofo da pesquisa. Nele, pela primeira


vez, a pesquisa filosófica alcança a clareza da sua natureza e dos seus
pressupostos. Por alguma razão a própria palavra filosofia é usada
eclassificada no seu justo sentido.

segundo Heraclito, a própria natureza impõe a pEsquisa: com efeito


ela "gosta de ocultar-se." (fr. 123, Diels). Ele vê abrir-se à pesquisa
o mais vasto horizonte: "Se não esperares,

46
não acharás o inesperado, porque não se Pode achar e é inacessível"
(fr. 18, Diels). Mas não se esconde a dificuldade e o risco da
pesquisa: "Os que procuram ouro escavam muita terra, mas encontram
pouco metal" (fr. 22, Diels)._detémse especialmente nas condições que a
tornam possível primeira delas é que o homem examina-se a si
mesmo."Procurei-me a mim mesmo", diz ele (fr. 101, Diels). A pesquisa
dirigida ao mundo
natural é condicionada pela clareza que o homem pode alcançar a
respeito do ser que lhe é próprio. A pesquisa interior revela
profundidades infinitas: "Tu não encontrarás os confins da alma,
caminhes o que caminhares, tão profunda é a sua razão" (fr. 45, Tiels).
A pesquisa interior abre ao homem zonas sucessivas de profundidade, que
jamais se esgotam: a razão, a lei última do eu, aparece continuamente
mais além, em uma profundidade sempre mais longínqua e ao mesmo tempo
sempre mais íntima.

Mas esta razão, que é a lei da alma, é ao mesmo tempo lei universal. A
segunda e fundamental condição é a comunicação entre os homens: O
pensamento é comum a todos segundo Heraclito, (fr. 113, Diels). "É
necessário seguir o que é comum a todos porque o que é comum é geral"
(fr. 2, Diels). "Quem quiser falar com inteligência deve fortalecer-se
com o que é comum a todos, como a cidade se fortalece com a lei, e
muito mais. Porque todas as leis humanas se alimentam da única lei
divina e esta doutrina tudo o que quer, basta a tudo e tudo supera"
(fr. 114 Diels).[O homem deve pois
dirigir a pesquisa não só para si mesmo, mas também, e com o mesmo
movimento, para aquilo que o liga aos outros, o logos que constitui a
mais profunda essência _(;homem individual é ainda o que liga os homens
entre si numa comunidade de natureza., Este logos é como a lei para a
cidade, mas

47

é ele próprio a lei, lei suprema que tudo rege: o homem individual, a
comunidade dos homens e a natureza externa. Ele é, portanto, não só a
racionalidade mas o próprio ser do mundo: tal se revela em todos os
aspectos da pesquisa.

"Heraclito põe constantemente defronte do homem -a alternativa entre o


estar acordado e o dormir:!
entre o abrir-se, mediante a pesquisa, à comunicação inter-humana, que
revela a realidade autêntica do mundo objectivo: e o fechar-se no
próprio pensamento isolado, num mundo fictício que não tem comunicação
com os outros (fr. 2, 34, 73; 89).
O sono é o isolamento do indivíduo, a sua incapacidade de compreender a
si mesmo, os outros e o mundo. A vigília é a pesquisa vigilante que não
se detém nas aparências, que alcança a realidade da consciência, a
comunicação com os outros, e a substância do mundo na única lei (logos)
que rege o todo. Esta alternativa estabelece o valor decisivo que a
pesquisa possui para o homem. Ela não é só pensamento (noesis) mas
também sabedoria da vida (fronesis); ela determina a índole do homem, o
ethos, que é o seu próprio destino (fr. 119).

Mas Heraclito determinou ainda esta lei de que a pesquisa deve


clarificar e aprofundar o significado. Ela é já para os antigos a
grande descoberta de Heraclito; isso nos atesta Ffion (Rer. Div. Her.,
43): "0 que resulta dos dois contrários é uno, e se o uno se divide, os
contrários aparecem. Não é este o princípio que, conforme afirmam os
gregos justamente, o seu grande e celebérrimo Heraclito colocava à
cabeça da sua filosofia, o princípio que a resume toda e de que ele se
gabava como sendo uma nova descoberta?" . A grande descoberta de
Heraclito é, pois, que a unidade do princípio criador não é uma unidade
idêntica e não exclui a luta, a discórdia, a oposição. Para compreender
a lei suprema do ser, o logos que o constitui e

48

governa, é necessário unir o completo e o incompleto, o concorde e o


discorde, o harmónico e o dissonante (fr. 10), e dar-se conta de que de
todos os opostos brote a unidade e da unidade saem os opostos. "É a
mesma coisa o vivo e o morto. o acordado e o dormente, o jovem e o
velho: pois que cada um destes opostos transformando-se, é o primeiro"
(fr. 88). Como na circunferência todo o ponto é ao mesmo tempo
princípio e fim, como o mesmo caminho pode ser percorrido para cima e
para baixo (fr. 103, 60), assim todo o contraste supõe uma unidade que
constitui o significado vital e racional do próprio contraste. 00
e é oposto une--se e o que diverge conjuga-se". A luta é a regra do
mundo e a guerra é comum geradora e senhora de todas as coisas".

Nestas afirmações está contido o ensinamento fundamental de Heraclito,


de cujo ensinamento ele deduz que os homens não podem elevar-se senão
Por meio de uma longa pesquisa "Os homens não sabem como o que é
discorde está em acordo consigo mesmo: harmonia de tensões opostas,
como as do arco e da lira" (fr. 51). Como as cordas do arco e as da
lira se retesam para reunir e estreitar ao mesmo tempo as extremidades
opostas, assim a unidade da substância primordial liga pelo logos os
opostos sem os identificar, bem ao contrário opondo-os. A harmonia não
é para Heraclito a síntese dos opostos a conciliação e o anulamento das
suas oposições; é antes a unidade que submete precisamente as oposições
e a torna possível. A Homero, que dissera: "Possa a discórdia
desaparecer de entre os deuses e de entre os homens", Heraclito
replica: "Homero não se apercebe que pede a destruição do universo; se
a sua prece fosse atendida, todas as coisas pereceriam" (Diels, A22): A
tensão é uma unidade (isto é, uma relação) que pode

49

encontrar-se somente entre coisas opostas enquanto opostas. A


conciliação, a síntese anulá-la-iam.

unidade própria do mundo é, segundo Heraclito, uma tensão deste género:


não anula nem concilia nem supera o contraste, mas fá-lo existir, e fá-
lo compreender, como contraste.

Hegel viu em Heraclito o fundador da dialéctica e afirmou que não havia


proposição de Heraclito que ele não tivesse acolhido na sua lógica
(Geschichte der Phil., ed. Gockler, I. p. 343). Mas Hegel interpretava
a doutrina heraclitiana da tensão entre os opostos como conciliação ou
harmonia dos próprios opostos. Segundo Heraclito, os opostos estão
unidos, é certo, mas nunca conciliados: o seu estado permanente é a
guerra. Segundo Hegel, os opostos estão continuamente conciliados e a
sua conciliação é também a sua "verdade". Heraclito não é um filósofo
optimista que considera (como Hegel) a realidade em paz consigo mesma.
É um filósofo por tendência pessimista e amargo (por alguma razão a
tradição o representava como "chorão": Hipólito, Refut., 1, 4; Séneca,
De Ira, 11, 10, 5, etc.) que considera um sonho ou uma ilusão ignorar a
luta e a discórdia de que todas as coisas são constituídas e vivem.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 7. ~re toda a filosofia pré-socrática: RITTER e PRELLER, Historia


critica philosophiae gracae, g., edição, 1913, DEvOGEL, Greek
philosophy, Leiden,
1950; KAFKA, Die Vorsokratik", Mónaco, 1921; SCHUM, Essai sur ta
formation de Ia pensée grecque, Paris;
19a4; CHERNISS, Aristot&s Criticim of Pr"ocratic Philosophy, Baltimore,
1935; REY, La jeunesse de Ia science grecque, Paris, 1933; GOVOTri, I
pre-aocratici, Nápoles, IgU; MADDALENA, Sulla cosmoZogia ionica

50

da Tauto ad Bracuto, pdd", 1%0. A &kterp~O ~ca da filosofia, pré~rãUca


foi sustentada por C.~ JOEL, Der Ure~g der Naturph~10 gw dom ~to der
My&ttk, lena, lgW; M., Ge~cht# der asfikes Phi~Me, J Tubinga, IM. Mo
particularmente importantes: STzNzEL, Die M~phyaik doe Altertuino,
M6naco, 1931; JAEGER, Pa~, 3 VOL, trad. ltal., Florença; 1936-59, ID.,
The Theology of the Barly &reek Ph~hera, Oxford, 1947; GIGON, Der
Uroprung der G~hiochen Phfk8~e. Von H~ bis Porme~, Basilela, 1945; G.
S. ~-J. E. RAvEN, The Pnesocratic Ph~hem. A Crit~ H~V with a Setec~ of
Texts, Cambridge, 1957.

§ S. Os fragmentos de Talco in Dm^ cap. li. -

Sobre Talco além das obras citado : D. R. Dims in "Classical


Quarterly>, 1950.

9. Oa fragmentos de Anaximandro in DMU,


12.- W-1 -NES=, 1, 270 sego.; GOMPERZ, I,
55 sega.: BURNET, 52 aep.; Dmi, lu "New Ja~ chen, 1923, 6&76; HEIDEL,
in "~Ical Philosophy>,
1912; C. ~N, A. and the 011~ of Greek Co~ Jogy, Nova Iorque, 1960.

§ 10. Os fragmentos de Anaxímenes in DM CaP- 13.-ZELLEP-MSTLE, 1, 315


~.; Gom~ I,
62 sega.; BuRNET, 76 sega.

Os fragmentos de Diõgenes in D=, cap. 64. -zP-T.T -NEMx, 1, 338 segs.;


Gom~, 1, 390 seg.; BuRNET, 406 segs.

§ li. Os fragmentos de Heraclito in DiEu, cap. 22-72ri-Ta -NMix, 1, 783


sego.; -GomPERz, 1,
6 segs.; BuRNzT, 145 sega.; STENzEL, artig:o na Encicl~a Pauly-Wissowa-
Kro11; WALzER; Braclito (frag. e trad. ltal.), Florença, 1939. Uma
Interpretação em sentido exístencialista-heidegge~o é a de BRECHT,
H~it, Heidelber^ 1936. Um Heraclito criatianizante é apresentado por
M~NTINI, Braclito,

51

Turim. 1944; KIRK, Irire in the Cos~g" Spoculat" of Heraclitu&,


Mlanneapolls, 1940; HeracUtu8: The Coismic Fragments, 1954;
RAus=NBERGzR, Parmen~ und Heraklit, Heidelberg, 1941; DnZER, Weltbild
und Sprwhe in Reraklitismus, In "Neue lMld der Antike>, 1942; A.
JEANNnM, La pensée d'HdracUte d'Ephè6e, Paris, 1959; H. QUIRING, H.,
Berlim, 1959; P. H. WHEELWRIGHT, H., Princeton, 1959.

52

lu

A ESCOLA PITAGÓRICA

§ 12. PITÁGORAS

A tradição complicou com tantos elementos lendários a figura de


Pitágoras que se torna difícil delineá-la na sua realidade histórica.
Os apontamentos de Aristóteles limitam-se a poucas e simples doutrinas,
referidas as mais das vezes não a Pitágoras mas em geral aos
pitagóricos; e se a tradição se enriquece à medida que se afasta no
tempo do Pitágoras histórico, isto é sinal evidente que se enriquece
com elementos lendários e fictícios, que pouco ou nada têm de histórico.

Filho de Mnesarco, Pitágoras nasceu em Samos, provavelmente em 571-70,


veio para a Itália em
532-31 e morreu em 497-96 a.C.. Diz-se que fora discípulo de Ferecides
de Siros e de Anaximandro e que viajou pelo Egipto e pelos países do
Oriente. 56 é certo que emigrou de Samos para a Grande Grécia e
arranjou casa em Crotona onde fundou uma escola que foi também uma
associação religiosa e política. A lenda representa Pitágoras

53

como profeta e operador de milagres, a sua doutrina ter-lhe-ia sido


transmitida directamente do seu deus protector. Apolo, pela boca da
sacerdotisa de Delfos Temistocleia Aristósseno in Dióg. L.. VM, 21).

É muito provável que Pitágoras não tenha escrito nada. Aristóteles não
conhece, com efeito, nenhum escrito seu; e a afirmação de Jâmblico
(Vida de Pít., 199) de que os escritos dos primeiros Pitagóricos até
Filolau teriam sido conservados como segredo da escola, vale só como
uma prova do facto de que ainda mais tarde não se possuíam escritos
autênticos de Pitágoras anteriores a Filolau. Pelo que é muito difícil
reconhecer no pitagorismo a parte que pertence ao seu fundador. Uma
única doutrina pode com toda a certeza ser-lhe atribuída - (a da
sobrevivência da alma depois da morte e à sua transmigração para outros
corpos) -----"Segundo esta doutrina, de que se apoderou Platão '(Górg.,
493a), o corpo é uma prisão para a alma,
que aqui foi encerrada pela divindade para seu castigo. Enquanto a alma
estiver no corpo, tem necessidade dele porque só por seu intermédio
pode sentir; mas quando estiver fora dele vive num mundo superior uma
vida incorpórea nu __e se
purificou durante a vida corpórea, a alma regressa a esta vida; no caso
contrário, retoma depois da morte a cadeia das transmigrações.

§ 13. A ESCOlA DE PITÁGORAS -- A Escola de Pitágoras foi uma associação


religiosa é política além de filosófica; Parece que a admissão na
sociedade estava subordinada a provas rigorosas e à observância de um
sigilo de vários anos. Era necessário absterem-se de certos alimentos
(carne, favas) e observar o celibato. Além disso,

54

nos graus mais elevados os Pitagóricos viviam em plena comunhão de


bens. Mas o fundamento histórico de todas estas notícias é bastante
inseguro. Muito provavelmente, o pitagorismo foi uma das muitas seitas
que celebravam mistérios a cujos iniciados era imposta uma certa
disciplina e certas regras de abstinência, que não deviam ser pesadas.
O carácter político da seita determinou uma revolução Contra
o governo aristocrático, tradicional nas cidades gregas da Itália
meridional, a que davam o seu apoio os Pitagóricos, levantou-se um
movimento democrático que provocou revoluções e tumultos. Os
Pitagóricos transformaram-se em objecto de perseguições: a sede da sua
escola foi incendiada, eles mesmos foram massacrados ou fugiram; e só
tempos depois os exilados puderam regressar à pátria. É provável que
Pitágoras tenha sido forçado a trocar Crotona pelo Metaponto justamente
devido a tais movimentos inssurreccionais.

Após a dispersão das comunidades itálicas temos conhecimento de


filósofos pitagóricos fora da Grande Grécia. O primeiro deles é
Filólau. que era contemporâneo de Sócrates e de Demócrito e viveu em
Tebas nos últimos decénios do século V. No mesmo período coloca Platão
Timeu de Locres, do qual nem sabemos com segurança se se trata de uma
personagem histórica. Na segunda metade do século IV o pitagorismo
assumiu nova importância política através da obra de Arquitas, senhor
de Tarento, de quem foi hóspede Platão durante a sua viagem à Grande
Grécia. Depois de Arquitas a filosofia pitagórica parece ter-se
extinguido até na Itália. Junta-se ao pitagorismo, embora não tenha
sido (como há quem diga) discípulo de Pitágoras, o médico de Crotona
Aleméon, que repete algumas das doutrinas típicas do pitagorismo; mas é
sobretudo notável por ter considerado o cérebro o órgão da vida
espiritual do homem.

55

A doutrina dos pitagóricos tinha essencialmente carácter religioso.


Pitágoras apresenta-se como o depositário de uma sabedoria que lhe foi
transmitida pela divindade; a esta sabedoria não podiam os seus
discípulos trazer nenhuma modificação, mas deviam permanecer fiéis à
palavra do mestre (ipse dixit). Além disso, eram obrigados a conservar
o segredo e por esta razão a escola se cobria de mistérios e de
símbolos que ocultam o significado da doutrina aos profanos.

§ 14. A METAFÍSICA DO NÚMERO

A doutrina fundamental dos Pitagóricos é que a Substância das coisas é


o número. Segundo Aristóteles (Met., I, 5)os Pitagóricos, que haviam
sido os primeiros a fazer progredir a matemática, acreditariam que os
princípios da matemática eram os -princípios de todas as coisas; e uma
vez que os
princípios da matemática são, os números, parece-lhes ver nos números,
mais do que no fogo, na terra ou no ar, muitas semelhanças com as
coisas que são ou que devem. Aristóteles considera, por isso, que os
Pitagóricos atribuíram ao número a função de causa material que os
jónios atribuíam a um elemento corpóreo: o que é sem dúvida nenhuma uma
indicação precisa para compreender o significado do pitagorismo, mas
não é ainda suficiente para torná-lo claro.

Na realidade, se os jónios recorriam a uma substância corpórea para


explicar a ordem do mundo, os Pitagóricos fazem dessa própria ordem a
substância do mundo---O número como substância do mundo é a hipótese da
ordem mensurável e A grande descoberta dos Pitagóricos, dos fenómenoS a
descoberta que lhes determina a importância na história da ciência
ocidental, consiste precisamente

56

na função fundamental que eles reconheceram à medida matemática para


compreender a ordem e a unidade do mundo. Veremos que a última fase do
pensamento platónico é dominada pela mesma preocupação: encontrar a
ciência da medida que é simultaneamente o fundamento do ser em si e da
existência humana. Primeiro que todos, os Pitagóricos deram expressão
técnica à aspiração fundamental do espírito grego para a medida,
aspiração que Sólon exprimia dizendo: "A coisa mais difícil de todas é
captar a invisível medida da sageza, a única que traz em si os limites
de todas as coisas". Como substância do mundo, o número é o modelo
originário das coisas (lb., 1, 6, 987 b, 10) pois que constitui, na sua
perfeição ideal, a ordem nelas implícita.
O conceito de número como ordem mensurável permite eliminar a
ambiguidade entre significado aritmético e significado espacial no
número pitagórico, ambiguidade que dominou as interpretações antigas e
recentes do pitagorismo. Aristóteles diz que os Pitagóricos trataram os
números como grandezas espaciais (1b., XIII, 6, 1080b. 18) e alega
ainda a opinião de que as figuras geométricas são os elementos
substanciais de que consistem os corpos _,Ib., VII, 2, 1028b, 15). "s
seus comentadores vão ainda mais longe, sustentando que os Pitagóricos
consideraram as figuras geométricas como princípios da realidade
corpórea e reduziram estas figuras a um conjunto de pontos,
considerando os pontos como unidades extremas (Alexandre, -20r sua vez,
co

In met., 1, 6, 687b, 33, ed. Bonitz, p. 41). E alguns intérpretes


recentes insistem em conservar o significado geométrico como o único
que permite compreender o princípio pitagórico de que, no fim de
contas, tudo é composto de números.

Na verdade, se por número se entende a ordem mensurável do mundo, o


significado aritmético e o

57

significado geométrico aparecem fundidos, uma vez que a medida supõe


sempre uma grandeza espacial ordenada, logo geométrica, e ao mesmo
tempo um número que a exprime" Pode dizer-se que o verdadeiro
significado do número pitagórico está expresso naquela figura sacra, a
tetraktys, por que os Pitagóricos tinham o hábito de jurar e que era a
seguinte:

A tetraktys representa o número 10 como o triângulo que tem o 4 como


lado. A figura constitui, portanto, uma disposição geométrica que
exprime um número ou um número expresso numa disposição geométrica: o
conceito que ela pressupõe é o da ordem mensurável.
- Se o número é a substância das coisas, todas as disposições das
coisas se reduzem a oposições --,)entre números.' Ora a oposição
fundamental das coisas com respeito à ordem mensurável que constitui a
sua substância é a de limite e de ilimitado: o limite, que torna
possível a medida, e o ilimitado que a exclui. A esta oposição
corresponde a oposição fundamental dos números, par e ímpar: o ímpar
corresponde ao limite, o par ao ilimitado. E, com efeito, no número
ímpar a unidade díspar constitui o limite do processo de numeração,
enquanto no número par este limite falta e o processo fica, por
conseguinte, inconcluso. A unidade é, pois, o par/ímpar visto que o
acrescentamento dela torna par o ímpar e o ímpar o par. À oposição do
ímpar e do par, correspondem nove outras oposições fundamentais e
resulta daí a lista seguinte: 1.o Limite, ilimitado; 2.<' ímpar, par;
3.O Unidade, multiplicidade, 4.O Direita, esquerda, 5.1> Macho, fêmea;

58

6.o Quietude. movimento; 7.o Recta, curva; 8.o Luz, trevas; 9.o Bem,
mal; 10.- Quadrado, rectângulo.
O limite, isto é, a ordem, é a perfeição; por isso, tudo o que se
encontra do mesmo lado na série dos opostos é bom, o que se encontra
do outro lado é mau. Os Pitagóricos pensam, todavia, que a luta
entre os opostos se concilia por meio de um princípio de harmonia; e a
harmonia, como vínculo dos mesmos opostos, constitui para eles o
significado último das coisas

Filolau define a harmonia como "a unidade do múltiplo e a concórdia do


discorde" (fr. 10, Diels). Como por toda a parte existe a oposição dos
elementos, por toda a parte existe a harmonia; e pode dizer-se outro
tanto que tudo é número ou que tudo é harmonia porque todo o número é
uma harmonia do ímpar e do par. A natureza da harmonia é em seguida
revelada pela música: as relações musicais exprimem do modo mais
evidente a natureza da harmonia universal; e são por isso assumidas
pelos Pitagóricos como modelo de todas as harmonias do universo
(Filo]., fr. 6, Diels).

§ 15. DOUTRINAS COSMOLóGICAS

ANTROPOLóGICAS

Mais ou menos em conformidade com a doutrina metafísica do número, os


Pitagóricos desenvolveram uma doutrina cosmológica e antropológica de
que somente conhecemos uns escassos elementos. Filolau defendeu o
princípio de que a diversidade dos elementos corpóreos (água, ar, fogo,
terra e éter) dependia da diversidade da forma geométrica das
partículas mais pequeninas que os compunham. Esta doutrina que nele se
acha apenas referida, foi precisada no Timeu de Platão que atribui a
todos os elementos a constituição de um determinado

59

sólido geométrico; mas esta precisão, tornada possível pelo


desenvolvimento dado à geometria sólida pelo matemático Teeteto (ao
qual é dedicado o diálogo homónimo de Platão) não era possível a
Filolau. [Sobre a formação do mundo, os Pitagóricos pensam que no
coração do Universo existe um fogo central, a que chamam a mãe dos
deuses, porque dele provém a formação dos corpos celesteS. ou ainda
Héstia, lar ou altar do universo, . a cidadela ou o trono de Zeus.
porque é o centro ,,de onde emana a força que conserva o mundo Por este
fogo central são atraídas as partes màIs próximas do ilimitado que o
circunda (espaço ou matéria infinita), partes que são limitadas por
esta atracção, e a seguir plasmadas na ordem. Este processo repetido
mais vezes conduz à formação do -universo inteiro, no qual por
conseguinte, como refere Aristóteles (Met., XII, 7, 1072 b, 28), a
perfeição não está no princípio, mas no fim.

É notável que, em conformidade com esta cosmogonia, os Pitagóricos


cheguem a uma doutrina cosmológIca, que os faz contar entre os
primeiros predecessores de Copérnico., O. mundo é por eles concebido
como uma esfera, no centro da qual está o fogo originário, e em torno
desta movem-se, de ocidente para oriente, dez corpos celestes: o céu
das estrelas fixas, que é o mais afastado centro, e em seguida, a
distâncias sempre menores, os cinco planetas, o sol, que como uma
grande lente recebe os raios do fogo central e reflecte-os em redor, a
lua, a terra e a antiterra, um planeta hipotético que os Pitagóricos
admitem para completar o sagrado número de dez. O limite extremo do
universo seria formado por uma esfera envolvente de fogo correspondente
ao fogo celeste. As estrelas estão fixas a esferas transparentes em
cuja rotação são arrastadas (Aristóteles, De coelo, H, 13). Uma vez que
todos os corpos movidos velozmente produzem um som
60

musical, o mesmo acontece com os corpos celestes: o movimento das


esferas produz uma série de sons musicais que formam no seu conjunto
uma oitava. Os homens não se apercebem destes sons, porque os sentem
ininterruptamente desde o nascimento ou ainda porque os seus ouvidos
não são adequados para percebê-los. \Como todas as outras coisas, a
alma humana é harmonia: a harmonia entre os elementos contrários -)que
compõem o corpo. A em doutrina, que é exposta por Simias, discípulo de
Filolau, em o Fédon platónico, o próprio Platão objecta que, como
harmonia, a alma não poderia ser imortal porque dependeria dos
elementos corpóreos, que se desagregam com a morte. E esta objecção
pareceu tão séria, que se negou que a doutrina da alma-harmonia fosse
concebida pelos Pitagóricos no sentido explicado por Platão e ela foi
reportada, ao invés, à interpretação de Claudiano Mamerto (De statu
animae, H, 7; V. § 170) de que a harmonia é antes a convergência, quer
dizer o vínculo que une a alma e o corpo. Na verdade, se se sustenta o
princípio pitagórico de que a harmonia é número e o número é
substância, a objecção platónica perde ,-valor- é a harmonia que
determina e condiciona a
mescla dos elementos corpóreos, e não esta que é ,-,Condição daque!Ü

À doutrina da harmonia se liga a ética pitagórica com a sua definição


da justiça. A justiça é um número quadrado; consiste no número plano
multiplicado pelo número plano, porque dá o plano pelo plano. Por isto
os Pitagóricos designam-se com o quatro, que é o primeiro número
quadrado, ou com o nove, que é o primeiro número quadrado ímpar. No
resto, a ética pitagórica é de carácter religioso, sendo o seu preceito
fundamental o de seguir a divindade e tornar-se semelhante a ela. As
máximas e prescrições de carácter prático que cons-

61

tituem o património ético da Escola não têm um significado filosófico


especial senão talvez na medida em que se começa a entrever nelas a
subordinação da acção à contemplação, da moral prática à sabedoria, que
conseguirá a vitória com o aristotelismo. O pitagorismo colocou a
purificação da alma, que as outras seitas viam nos ritos e práticas
propiciatórias. na actividade teorética, a única capaz de subtrair a
alma à cadeia dos nascimentos e de a reconduzir à divindade.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 12. Os testemunhos sobre Pitágoras em Dw^ cap. 14. As VU" de


Pitágorw, de Porfirio e de Jâmblico são úteis para o conhecimento da
lenda de Pitágoras e das doutrinas neopitagóricas e neoplatónicas, mas
não para a reconstrução do Pitágoras histórico. Sobre Pitágoras: GomPm,
108 sega.; BuRNET, 93 segs.; ROSTAGNI, Il verbo <U Pitagora, Turim,
1924.

§13. Sobre as vicissitudes da escola pitagórIca: ROSTAGNI, Pita~ e i


Pitag~ in Timeo, In. "AtU dell'Acc. delle Scienze di Torino>, 1914. Os
fragmentos de Filolau In DiELs, cap. 44; de Arquitas In DIELS, cap. 47;
de Alcméon In DIMs, cap. 24. Sobre estes Pitagõricos: OLivmu, Civi;tâ
greca negIt~ ~dionale, Nápoles, 1931; VON MTZ, Pythagorcan Politics in
Southem Itaiy, Nova-Iorque, 1940.
§ 14. Sobre a doutrina pitagórica: ZELLM, 1,
361 segs.; GompERz, 1, 180 segs.; BURNET, 317 segs.FRANK, Plato und die
Soge~nten Pythag~, Halle,
1923; RAVEN, Pythagoreiam and Ekatím, Cambridge,
1948; STRAINGE UNG, A Study of the Doctrine of Metempsychosis in Greoce
from Pythagora8 to Plato, Princeton, 1948.

62

IV

A ESCOLA ELEÁTICA

§ 16. CARÁCTER DO ELEATISMO

1 a escola jónica não aceitara o devir do mundo.' que se manifesta no


nascer, perecer e transformar das coisas, como um facto último e
definitivo, porque intentara descobrir, para 4 disso, a unidade e a
permanência dá substância. Não negara, todavia, a realidade do devir;
Tal negação é obra da escola eleática, que reduz o próprio devir a
simples aparência e afirma que só a substância é verdadeiramente Pela
primeira vez, com a escola eleática, a substância se torna por si mesma
princípio -metafísico: pela primeira vez, é ela dkÍ 1da_'_n_àõ como
elemento corpóreo ou como número, mas tão só como substância, como
permanência e necessidade do ser enquanto ser. O carácter normativo que
a substância revestia na especulação de Anaximandro, que via nela uma
lei cósmica de justiça, carácter que fora expresso pelos Pitagóricos no
princípio que o número é o modelo das coisas, surge assumido como a
própria definição da subs-

63

tância por Parménides e pelos seus seguidores. Para eles a substância é


o ser que é e deve ser: é o ser na sua unidade e imutabilidade, que faz
dele o único objecto do pensamento, o único termo da pesquisa
filosófica. O princípio_M eleatismo marca uma etapa decisiva na
história da filosofia, Ele pressupõe indubitavelmente a pesquisa
cosmológica dos jónicos e dos Pitagóricos, mas subtrai-a ao seu
pressuposto naturalista e trá-la pela primeira vez ao plano ontológico
em que deveriam enraizar-se os sistemas de Platão e de Aristóteles.

§ 17. XENÓFANES

Segundo os testemunhos de Platão (Sof., 242d) e de Aristóteles (Met.,


1, 5, 986 b. 2l) a direcção peculiar da escola eleática fora iniciada
por XENóFANEs de Colófon, que foi o primeiro a afirmar a unidade do
ser. Estes testemunhos têm sido interpretados no sentido de que
Xenófanes tinha fundado a escola eleática; mas esta interpretação vai
muito além do significado dos testemunhos e é bastante improvável. O
próprio Xenófanes nos diz (fr. 8, Diels), numa poesia composta aos 92
anos, que há 67 anos percorria de ponta a ponta os países da Grécia, e
esta vida errante concilia-se mal com uma regular estadia em Eleia,
onde teria fundado a escola. A única prova da sua permanência em Eleia
é uma anedota contada por Aristóteles (Ret., 11, 26, 1400 b, 5): aos
Eleatas que lhe perguntavam se deveriam oferecer sacrifícios e lágrimas
a Leucoteia, teria ele retorquido: "Se a julgais uma deusa, -não deveis
chorá-la, Se a não julgais tal, não deveis oferecer-lhe sacrifícios".
Tem-se, no entanto, conhecimento de um longo poema em hexâmetros que
Xenófanes teria escrito acerca da fundação da sua cidade; mas tudo isto
não é bas-

64

tante para provar a sua regular residência e a instituição de uma


escola em Eleia. Não é também certo que tenha exercido a profissão de
rapsodo. De seguro, sabemos que escreveu em hexâmetros e compôs elegias
e jambos (Silloz) contra Homero e Hesíodo. É improvável, finalmente,
que Xenófanes tenha escrito um poema filosófico, de que, com efeito,
não se tem conhecimento preciso. Os fragmentos teológicos e filosóficos
que se costumam considerar como resíduos desse poema podem muito bem
fazer parte das suas sátiras, a cujo conteúdo se referem.

O ponto de partida de Xenófanes, é uma crítica decidida ao


antropomorfismo religioso tal como se apresenta nas crenças comuns dos
gregos e ainda como se acha em Homero e em Hesíodo. "Os homens, diz
ele, crêem que os deuses tiveram nascimento e possuem uma voz e um
corpo semelhantes aos seus" (fr. 14, Diels). Pelo que os Etíopes
representam os seus negros e de narizes achatados, os Trácios dizem que
têm olhos azuis e cabelos vermelhos, e até os bois, os cavalos e os
leões imaginariam. se pudessem, os seus deuses à sua semelhança (fr.
16, 15). Os poetas encorajaram esta crença. Homero e Hesíodo atribuíram
aos deuses até aquilo que é objecto de vergonha e de censura entre os
homens: roubos, adultérios e enganos recíprocos. Na realidade, há uma
só divindade "que não se assemelha aos homens nem pelo corpo nem pelo
pensamento" (fr. 23). Esta única divindade identifica-se com o
universo, é um deus-tudo, e tem o atributo da eternidade: não nasce e
não morre e é sempre a mesma. Com efeito, se nascesse isso significaria
que antes não era, ora o que não é, não pode nascer nem fazer nascer
coisa alguma. Xenófanes afirma sob forma teológica a unidade e a
imutabilidade do universo. Mas

65

medida parece-lhe difícil de compreender e, assim, pode ser entendida


depois de longa pesquisa,,, "Os deuses não revelaram tudo aos homens
desde o princípio, mas só procurando encontram, passado tempo, o
melhor" (fr. 18). É o reconhecimento explícito da filosofia como
pesquisa.

Em Xenófanes encontram-se ainda assomos de investigações físicas: ele


julga que todas as coisas e até o homem são formadas de terra e água
(fr. 29, 33); que tudo vem da terra e tudo à terra regressa; mas estes
elementos de um tosco materialismo pouca ligação têm com o seu
princípio fundamental. Há um aspecto notável na sua obra de poeta: a
sua crítica da virtude agonística dos vencedores de jogos, que era tão
altamente estimada pelos gregos, e a afirmação da superioridade da
sageza. "Não é justo antepor à sabedoria a mera força corpórea" diz ele
(fr. 1). Aqui, à virtude fundada na robustez física aparece contraposta
a virtude espiritual do sábio.

§ 18. PARMÉNIDES

O fundador do eleatismo é Parménides. A grandeza de Parménides é desde


logo evidente pela admiração que suscitou em Platão: este fez dele a
personagem principal do diálogo que marca o ponto crítico do seu
pensamento e que é dedicado a ele; aponta-o, em outra parte (Teet., 183
e), como "venerando e terrível a um tempo".

Parménides era cidadão de Eleia ou Vélia, colónia focense situada na


costa da Campânia ao sul de Paestum. Segundo as indicações de
Apolodoro, que coloca o seu florescimento na 69.a Olimpíadas, teria
nascido em 540-39; mas esta indicação opõe-se ao testemunho de Platão
segundo o qual Parménides tinha 65 anos quando, acompanhado por

66

Zenão, veio a Atenas e se encontrou com Sócrates, então muito jovem


(Parm., 127b; Teet., 183e; Sot., 217 c). Dada a grande elasticidade das
indicações cronológicas de Apolodoro, não há motivo para pôr em dúvida
o rebatido testemunho de Platão: daí deduzia-se como provável que
Parménides tenha nascido por volta de 516-11. Aristóteles cita
dubitativamente a indicação que Parménides tenha sido discípulo de
Xenófanes; mas uma vez que é de excluir, como se viu, que Xenófanes
tenha fundado uma escola em Eleia, a indicação aristotélica não
significa provavelmente outra coisa senão queParménides retomou a
direcção de pensamento iniciada com Xenófanes.' Segundo outras
tradições (DioG. L., DC, 21; Diels, AI) Parménides foi educado na
filosofia do pitagórico Amenias e seguiu "vida pitagórica". É o
primeiro a expor a sua filosofia num poema em hexâmetros. Xenófanes
também expusera em versos as suas ideias filosóficas mas de forma
ocasional, entremeando-as nas suas poesias satíricas. Anaximandro,
Anaxímenes e Heraclito haviam escrito em prosa. O exemplo de Parménides
será seguido somente por Empédocles. Do poema de Parménides que,
provavelmente, só em data posterior foi designado com o título Acerca
da natureza, restam-nos 154 versos.

O poema dividia-se em duas partes: a doutrina da verdade (alétheia) e a


doutrina da opinião (doxa). Nesta última parte, Parménides expunha as
crenças do homem comum, propondo-se, porém, realizar sobre elas um
trabalho de avaliação e normativo"Também isto aprenderás: como são
verosimilmente as coisas aparentes, para quem as examina em tudo e para
tudo" (fr. 1, v. 31). Por conseguinte, Parménides apresenta um conjunto
de teorias físicas provavelmente de inspiração pitagórica. Ao dualismo
do limite e do ilimitado, faz corresponder o da luz e das trevas que
porventura não era des-

67

conhecido dos mesmos pitagóricos; e considera a realidade física como


um produto da mescla e ao mesmo tempo da luta destes dois elementos
(fr. 9, Diels). A oposição entre estes dois elementos foi interpretada,
a partir de Aristóteles, como oposição entre o quente e o frio.
"Parménides, diz Aristóteles, (Fís., 1, S. 188 a 20), toma como
principio o quente e o frio que ele chama, por isso, fogo e terra". Sob
esta forma, o dualismo parmenídeo foi retomado no Renascimento por
Telésio. Mas esta parte do poema de Parménides em que ele se limita a
expor " as opiniões dos mortais" limitando-se a corrigi-las
conformemente a uma maior verosimilhança, parece ter simplesmente como
objectivo uma rectificação das opiniões correntes que, todavia, ficam
afastadas da verdade, visto que presistem no domínio das aparências.
a sua filosofia é o contraste entre a verdade e a aparência. "Só
duas vias de pesquisa se podem conceber. Uma é que o ser é e não pode
não ser; e esta é a via de persuasão porque é acompanhada da verdade. A
outra, que o ser não é e é necessário que não seja; e isto, digo-
te, é um caminho em que ninguém pode persuadir-se de nada" (fr. 4,
Diels).: Pois que "um só caminho resta ao discurso: que o ser é" (fr.
8). Mas este caminho não pode ser seguido senão pela razão: uma vez que
os sentidos, ao contrário, se detêm na aparência e pretendem
testemunhar-nos o nascer, o perecer, o mudar das coisas, ou seja ao
mesmo tempo o seu ser e o seu não-ser. - Na via da aparência é como se
os homens tivessem duas cabeças, uma que vê o ser, outra que vê o não-
ser, e erram por aqui e por ali como estultos e insensatos sem poderem
ver claro em coisa nenhuma. Parménides quer afastar o homem do
conhecimento sensível, quer desabituá-lo de se deixar dominar pelos
olhos, pelos ouvidos e pelas palavras. homem

68

deve julgar com a razão e considerar com ela as coisas distantes como
se estivessem diante dele.

Ora a razão demonstra facilmente que não se pode nem pensar nem
exprimir o não-ser. Não se pode pensar sem pensar alguma coisa; o
pensar coisa nenhuma é um não-pensar, o dizer coisa nenhuma é um não-
dizer. O pensamento e a expressão devem em todo caso ter um objecto e
este objecto é o ser. Parménides determina com toda a clareza o
critério fundamental da validade do conhecimento que deveria dominar
toda a filosofia grega: o valor de verdade do conhecimento depende da
realidade do objecto, o conhecimento verdadeiro não pode ser outra
coisa senão o conhecimento do ser.

É este o significado das afirmações famosas de Parménides: "A mesma


coisa é o pensamento e o ser". (fr. 3, Diels). "A mesma coisa é o
pensar e o objecto do pensamento: sem o ser em que o pensamento é
expresso não poderás encontrar o pensamento, visto que nada há ou
haverá fora do ser". (fr. 8, v. 34-37).

Ao ser que é objecto do pensamento, Parménides atribui os mesmos


caracteres que Xenófanes reconhecera no deus-tudo. Mas estes caracteres
são por ele reconduzidos à modalidade fundamental, que é a da
necessidade: O ser é e não pode não ser. (fr. 4, Diels) é a fiLosofia
principal de Parménides: tese que exprime o que é para ele o sentido
fundamental do ser em geral e constitui o princípio director da
investigação racional. A necessidade a respeito do tempo é eternidade,
isto é, contemporaneidade, totum simul; a respeito do múltiplo é
unidade, a respeito do devir (ou seja do nascer e perecer) é
imutabilidade (fr. 8, 2-4, Diels). Parficularmente a éternidade não é
concebida por Parménides como duração temporal infinita mas como
negação do tempo. "O ser nunca foi nem

69

nunca será porque é agora todo de uma vez, uno e contínuo".

Parménides foi o primeiro que elaborou o conceito da eternidade como


presença total. o ser não pode nascer nem perecer, visto que deveria
derivar do não-ser ou dissolver-se nele, o que é impossível porque o
não-ser não é. O ser é indivisível porque é todo igual e não pode ser
em um lugar mais ou menos que em outro; é imóvel porque reside nos
limites próprios; é finito porque o infinito é incompleto e ao ser nada
falta. O ser é completude e perfeição; e neste sentido é justamente
finitude. Como tal é assimilado por Parménides a uma esfera homogénea,
imóvel, perfeitamente igual em todos os pontos. "Por conseguinte, visto
que não tem um limite extremo, o ser é perfeito em todas as partes.
semelhante à massa arredondada de esfera igual do centro para todas as
suas partes" (fr. 8). Pelo que o ser é pleno, enquanto é todo presente
a si mesmo e em ponto nenhum falta a ou é deficiente de si; ele é auto-
suficiência.

Algumas destas determinações, por exemplo a da plenitude, e a da


assimilação à esfera, fizeram pensar numa corporeidade do ser
parmenídeo. De Zeller em diante tem-se afirmado que nem Parménides nem
os outros filósofos pré-socráticos se elevaram à distinção entre
corpóreo e incorpóreo: como se fosse verosímil que os homens que
atingiram tal altura de abstracção especulativa, pudessem não ter
realizado a primeira e mais pobre de tais abstracções, a distinção
entre o corpóreo e o incorpóreo. Na realidade a plenitude do ser
significa a sua auto-suficiência perfeita, pela qual o ser não falta ou
não se basta a si em alguma das suas partes; e a esfera não é, como o
texto demonstra, senão um termo de comparação de que Parménides se
serve para ilustrar a finitude do ser, cujos limites não são
negatividade, mas perfeição. No

70

entanto adoptou-se, para provar a corporeidade do ser parmenídeo, uma


frase de Aristóteles a qual diz que Parménides e Melissos "não
admitiram nada mais que substâncias sensíveis" (De coei., IH, 1,
298b, 21). Mas Aristóteles, que em certo ponto dissera primeiro que
estes filósofos não falam das coisas físicas", isto é, não se ocupam
das substâncias corpóreas, quer simplesmente dizer, com aquela frase,
que eles não admitiram as substâncias intelectuais (as inteligências
celestes) a que, ainda segundo ele, se podem referir a ingenerabilidade
e a incompatibilidade que os Eleatas afirmam do ser.,Na realidade,
Parménides formulou pela primeira vez com absoluto rigor lógico os
princípios fundamentais da ciência filosófica que muito mais tarde
haverá de chamar-se ontologia.)

Com efeito, eles revelaram em ti a a sua-força lógica aquela


necessidade intrínseca do ser que já os filósofos jónicos e
especialmente Anaximandro haviam expresso no conceito de substância.
Repetem-se nele, no entanto, empregados para exprimirem a necessidade
do ser, os mesmos termos de que se servira Anaximandro: a lei férrea da
justiça (dike) ou do destino (moira). "A justiça não desaperta os seus
grilhões e não permite que alguma coisa nasça ou seja destruída, antes
mantém com firmeza tudo o que é" (fr. 8, v. 6). Nada há ou haverá fora
do ser, uma vez que o destino o agrilhoou de maneira a que ele
permaneça inteiro e imóvel" (fr. 8, v. 36). A justiça e o destino não
são, aqui, forças míticas: são termos que servem para exprimir com
evidência intuitiva e poética a modalidade do ser, que não pode não ser.

Pela vez primeira o problema do ser foi posto por Parménides; como
problema metafísico-ontológico, quer isto dizer na sua generalidade
máxima e não já tão só como problema físico. A pergunta eque coisa é o
ser?" a que Parménides quis for-

71

mular a resposta, não é equivalente à pergunta "que coisa é a


natureza?" para que tinham procurado a resposta os filósofos
precedentes e o próprio Heraclito. O ser de que fala Parménides não é,
em Primeiro lugar, somente o da natureza, mas também o homem, as acções
humanas, ou o de qualquer coisa pensável, seja ela qual for; em segundo
lugar, não tem relação directa com as aparências naturais ou empíricas
porque fica para além de tais aparências e não constituí a estrutura,
necessária, somente reconhecível pelo pensamento, A caracterização
desta estrutura é dada por Parménides recorrendo àquilo a que hoje
chamamos urna categoria de modalidade: a necessidade. O ser verdadeiro
ou autêntico, o ser de que não se pode duvidar e a que só o pensamento
pode convir é o ser necessário. "O ser é e não pode não ser". (fr. 4).
É esta uma resposta que a pesquisa ontológica haveria de dar à mesma
pergunta durante muitos e muitos séculos e que, de um certo ponto de
vista, é ainda a única resposta que ela pode dar. Uma sua consequência
imediata é a negação do possível: visto que o possível é o que pode não
ser e, segundo Parménides, o que podo não ser, não é. Com efeito, "não
há nada, diz Parménides, que impeça o ser de se alcançar a si mesmo"
(fr. 8,
45): quer dizer, que o impeça de realizar-se na sua plenitude e
perfeição. Os Megáricos (§ 37) exprimiram a mesma coisa com o teorema
"o que é possível realiza-se, o que não se realiza não é possível".

A forma poética não é, no pensamento de Parménides, tão inflexível na


sua lógica rigorosa, uma vestimenta ocasional. É imposta pelo
entusiasmo do filósofo que na pesquisa puramente racional, que nada
concede à opinião e à aparência, reconheceu a via da redenção humana.
Parménides é verdadeiramente pitagórico-no sentido em que

72

o será Platão -pela sua convicção inabalável que só com a pesquisa


rigorosamente conduzida o homem pode chegar a salvo, em companhia da
verdade. A imagem, com que abre o poema de Parménides, do sábio que
é transportado por cavalos fogosos "intacto (asine) através de todas
as coisas, sobre a famosa via da divindade" (fr. 1), manifesta toda a
força de uma convicção iniciática, que acredita, não nos ritos ou
mistérios mas unicamente no poder da razão indicadora. E assim, pela
primeira vez na história da filosofia, se solvem na personalidade de
Parménides ao mesmo tempo o rigor lógico da pesquisa e o seu
significado existencial. A "terribilidade" de Parménides consiste
justamente no extraordinário poder que a pesquisa racional adquire com
ele, enraizada como está na fé no seu fundamental valor humano. Vezes
houve em que se viu em Parménides o fundador da lógica: mas, é isto
demasiado pouco para ele. Se por lógica se entende uma ciência em si,
que sirva de instrumento à pesquisa filosófica, nada é mais estranho a
Parménides que uma lógica assim entendida. Mas se por lógica se entende
a disciplina intrínseca à pesquisa, enquanto se torna independente da
opinião e assenta sobre um princípio autónomo próprio, então
verdadeiramente Parménides é o fundador da lógica. Por outro lado, a
pura técnica da pesquisa poderá tornar-se, com Aristóteles, objecto de
-uma ciência particular somente depois que Parménides e Platão
mostraram em acto todo o seu valor.

§ 19. ZENÃO

Discípulo e amigo de Parménides, Zenão de Eleia era (segundo Platão,


Parm., 127a) mais novo do que ele 25 anos: o seu nascimento, por conse-

73

guinte, deve ter ocorrido cerca de 489. Como a maior parte dos
primeiros filósofos, Zenão participou na política da sua cidade natal;
parece que contribuiu para o bom governo de Eleia e que sucumbiu
corajosamente, à tortura por ter conspirado contra um tirano (Diels, A
1). O próprio Platão (Parm., 128 b), nos expõe o carácter e o intento
de um escrito, que devia ser a obra mais importante de Zenão. 10
escrito era uma forma de reforço" da argumentação de Parménides,
dirigido contra os que procuravam apoucá-la aduzindo que, se a
realidade é uma. vemo-los enredados em muitas e ridículas contradições.
O escrito pagava-lhes na mesma moeda pois que tendia a demonstrar que a
sua hipótese da multiplicidade emaranhava-se, desenvolvida a fundo, em
dificuldades ainda maiores. O método de Zenão consistia, por
conseguinte, em reduzir ao absurdo a tese dos negadores da unidade do
ser, conseguindo deste modo confirmar a tese de Parménides.--4-

Precisamente em atenção a este método reconheceria Aristóteles em Zenão


o inventor da dialéctica (Dióg. L., VIII, 57). E, com efeito, a
dialéctica é para Aristóteles o raciocínio que parte não de premissas
verdadeiras mas de premissas prováveis ou que parecem prováveis. (Tóp.,
1, 1, 100 b,
21 segs.); e as teses de que parte Zenão para as refutar parecem
exactamente prováveis em extremo. Hegel, ao invés, opina que a
dialéctica de Zenão é uma dialéctica imperfeita porque metafísica, e
aproximou-a da dialéctica kantiana das antinomias. Zenão ter-se-ia
servido das antinomias para demonstrar a falsidade das aparências
sensíveis,'Kant para afirmar a verdade delas; pelo que Zenão seria
superior a Kant (Geschichte der Phil., ed. Glockner, I, p. 343 segs.).
Os historiadores modernos preocuparam-se com determinar contra quem
foram dirigidas as refutações de Zenão; e a maioria vê

74

no pitagorismo o objecto destas refutações, na medida em que ele


afirmava a realidade do número, ou seja do múltiplo. Mas é difícil,
como se viu 14), supor que o número de que fala o pitagorismo seja um
simples múltiplo: ele é antes uma ordem e uma ordem mensurável. Nem é
indispensável supor que Zenão teve presentes as teses deste ou daquele
filósofo: parece provável que ele tenha esquematizado e fixado os
fundamentos típicos de todo o pluralismo de maneira a que a sua
refutação valesse tanto contra o modo comum de pensar (a doxa de
Parménides), como contra os filósofos que estão de acordo com ele na
admissão do pluralismo.

Os argumentos de Zenão podem separar-se em


dois grupos. O primeiro grupo dirige-se contra a multiplicidade e a
divisibilidade das coisas. O segundo grupo dirige-se contra o movimento
Se as coisas são inscritas, diz Zenão, o seu número é ao mesmo tempo
finito e infinito: finito, porque elas não podem ser mais ou menos do
que são; infinito, porque entre duas coisas haverá sempre uma terceira
e entre esta e as outras duas haverá ainda outras e assim por diante
(fr. 3, Diels). Contra a unidade concebida como elemento real das
coisas, Zenão observa que, se a unidade tem uma grandeza, ainda que
mínima, visto que em toda a coisa se acham infinitas unidades. toda a
coisa será infinitamente grande; ao passo que, se a unidade não tem
grandeza, as coisas que resultam dela serão privadas de grandeza e
portanto nada (fr. 1 e 2). O argumento vale ainda, evidentemente,
contra, a realidade da grandeza. No entanto, o espaço é real. Se tudo
está no espaço, o espaço, por sua vez, deverá estar em um outro espaço
e assim até ao infinito: isto é impossível e obriga a deduzir que nada
está no espaço (Diels, A 24). Contra a multiplicidade se dirige ainda o
outro

75

argumento que se um moio de trigo causar rumor quando cai, todo o grão
e toda partícula de um grão deveriam causar um som: o que não acontece
(Diels, A 29). A dificuldade está aqui em compreender como é que
diversas coisas reunidas juntamente podem produzir um efeito que cada
uma delas separadamente não produz.

Mas os argumentos mais famosos de Zenão são os dirigidos contra o


movimento que nos foram conservados por: Aristóteles (Fís., VI, 9). O
primeiro é o argumento chamado da dicotomia: para ir de A a B, um móvel
deve primeiro efectuar metade do trajecto A-B, e, primeiro, metade
desta metade; e assim por diante até ao infinito; pelo que nunca mais
chegará a B. O segundo argumento é o de Aquiles: Aquiles (ou seja o
mais veloz) nunca alcançará a tartaruga (ou seja o mais lento),
considerando que a tartaruga tem um passo de vantagem. Com efeito,
antes de alcançá-la, Aquiles deverá atingir o ponto de que partiu a
tartaruga, pelo que a tartaruga estará sempre em vantagem. O terceiro
argumento é o da seta. A seta, que parece estar em movimento, na
realidade está imóvel; com efeito, em cada instante a seta não pode
ocupar senão um espaço vazio igual ao seu comprimento e está imóvel com
referência a este espaço; e dado que o tempo é feito de instantes,
durante todo o tempo a seta estará imóvel. O quarto argumento é o do
estádio. Duas multidões iguais, dotadas de velocidades iguais, deveriam
percorrer espaços iguais em tempos iguais. Mas se duas multidões se
movem ao encontro uma da outra desde extremidades opostas do estádio,
cada uma delas gasta, para percorrer o comprimento da outra, metade do
tempo que gastaria se uma delas estivesse parada: do que Zenão extraía
a conclusão que a metade do tempo é igual ao dobro.

76

A intenção destes subtis argumentos, que amiúde têm sido chamados


sofismas ou cavilações até pelos filósofos que não têm mostrado muita
habilidade a refutá-los, é bastante clara. O espaço e o tempo são a
condição da pluralidade e da mudança das coisas: pelo que, se eles se
revelam contraditórios, revelam que a multiplicidade e a mudança são
contraditórias e por isso irreais. Mas eles só são contraditórios se se
admitir (como Zenão considera inevitável) a sua infinita
divisibilidade: por isso esta infinita divisibilidade é assumida por
Zenão como pressuposto tácito dos seus argumentos. Aristóteles
procurou, portanto, refutá-lo negando sobretudo a infinita
divisibilidade do tempo e afirmando que as partes do tempo nunca são
instantes, privados de duração, mas têm sempre uma certa duração, ainda
que mínima: assim já não seria impossível, percorrer partes infinitas
de espaço em um tempo finito. Esta refutação não vale muito. Os
matemáticos modernos, a partir de Russell (Principles of Mathematics,
1903), tendem antes a exaltar Zenão precisamente por ter admitido a
possibilidade da divisão até ao infinito, que está na base do cálculo
infinitesimal. E pode admitir-se que os argumentos de Zenão, pelas
discussões que sempre suscitaram, hajam servido também para isto. Mas
Zenão não foi, decerto, um matemático, e aquilo com que se
preocupava era muito simplesmente a negação da realidade do espaço, do
tempo e da multiplicidade.

§ 20. MELISSOS

Melissos de Samos, porventura discípulo de Parménides, foi o general


que destroçou a frota ateniense em 441-40 a.C.. É esta a única notícia
que temos da sua vida. (Plutarco, Per., 26), cuja

- 77

acmé é exactamente situada naquela data. Em um escrito em prosa Sobre a


natureza ou sobre o ser, Melissos defendia polemicamente a doutrina de
Parménides, especialmente contra Empédocles. e Leucipo. A prova da
fundamental falsidade do conhecimento sensível é, segundo Melissos, que
este nos testemunha ao mesmo tempo a realidade das coisas e a sua
mudança. Mas se as coisas fossem reais, não mudariam; e se mudam, não
são reais. Não existem, por conseguinte, coisas múltiplas, mas tão -só
a unidade (fr. 8, Diels). Como Zenão polemizava de preferência contra o
movimento, assim Melissos polemiza de preferência contra a mudança. "
Se o ser mudasse ainda só o equivalente a um cabelo em dez mil anos,
seria inteiramente destruido na totalidade do tempo" (fr. 7).

Em dois pontos todavia, Melissos modifica a doutrina de Parménides.


Parménides concebia o ser como uma totalidade finita e intemporal; o
ser vive, segundo Parménides, somente no agora, como uma totalidade
simultânea, e é finito na sua completude. Melissos concebe a vida do
ser como uma duração ilimitada; e afirma por isso a infinidade do ser
no espaço e no tempo. Ele compreende a eternidade do ser com infinidade
de duração, como "o que sempre foi e sempre será" e não tem, por
conseguinte, nem princípio nem fim. Consequentemente, admite a
infinidade de grandeza do ser: "Visto que o ser é sempre, deve ser
sempre de infinita grandeza" (fr. 3). Esta modificação de uma das teses
fundamentais de Parménides e talvez a outra afirmação de Melissos, que
o ser é pleno e que o vazio não existe (fr. 7), sugeriram a Aristóteles
a observação que " Parménides tratou do uno segundo o conceito,
Melissos segundo a matéria" (Met., 1, 5, 986 b, 18). Tanto mais relevo
adquire, por isso, a afirmação decidida, feita por Melissos da
incorporeidade do ser. "Se é, necessi-

78

ta-se absolutamente que seja uno; mas se é uno não pode ter corpo,
porque se tivesse um corpo teria partes e já não seria uno" (fr. 9). Os
críticus modernos, que afirmaram a corporeidade do ser parmenídeo (que
é excluída pela própria formulação que os Eleatas dão ao problema),
atribuem a negação de Melissos a algum particular elemento, cuja
realidade, ao que supõem, Melissos discutisse. Mas mesmo no caso de
Melissos ter em mente uma hipótese particular, o significado da sua
afirmação não muda: o que é corpo tem partes, portanto não é uno:
portanto não é. A negação da realidade corpórea está implícita para
Melissos, como para Parménides e para Zenão, na negação da
multiplicidade e da mudança e no repúdio da experiência sensível como
via de acesso à verdade.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 16. Sobre o carácter do eleatismo: ZELLER-NESTLE, 1 167 segs., que


todavia está dominada pela preocupação de atribuir aos Eleatas a
doutrina da corporeidade do ser, preocupação que não dá a perceber o
valor especulativo do eleatismo e o seu significado histórico como
antecedente necessário da ontologia platónica e aristotélica. Os
fragmentos e os testemunhos foram traduz. para o ltal. por PILo
ALBERTELLI, Os Eleatas, Bari, 1939; ZÁFIROPULO, L' école Mate:
Parménide, Zénon, Melissos, Paris, 1950; G. CALOGERO, StUdi
sWI'eleatismo, Roma, 1932; La logica del secondo eleatismo, in "Atene e
Roma>, 1936, p. 141 segs. Conf. também A. CApizzi, recenti studi
sull'eleatismo, in "lrtwsegna di filosofia", 1955, p. 205 segs.

§ 17. Os fragmentos de Xenófanes em DrELS, cap. 21.-ZELLER-NEsTLE 1,


640 segs.; GompERz, 1,
667 segs.; BORNET, 126 seg.; HEIDEL, Hecataeus and Xenophanes, In
"American Journal of Philology", 1943.

§ 18. Os fragmentos de Parménides in DIELS, cap. 28. Sobre Parménides é


fundamental: REINHARDT, Parménides, Bonn, 1916. Vejam-se ainda as belas
pági-

79

nas dedicadas a Parménides por JAEGm, Paidéia, trad, ltal., 276 segs..
E além disso M. UNTERSTEINER, Parménide. Te8timonta=e e framm-entí,
Florença, 1958, com uma larga introdução que refunde e rectifica os
precedentes estudos do autor. Os pontos típicos da Interpretação de
Understeiner são os seguintes: 1) o ser de Parinénides seria uma
totalidade, não uma unidade, uma vez que a unidade (como a
continuidade) constituiria uma referência ao plano empírico ou temporal
e estaria, por conseguinte, em oposição com a eternidade do ser; 2)
Parménides; não diria (fr. 6. Diela). c0 ser, o nko-ser não é"; mas
diria"Existe o dizer e o Intuir o ser, e ao Invés não existe o dizer e
o intuir o nada": no sentido que o próprio método da pesquisa acabaria
por criar o ser. Sobre as dificuldades filo16gicas desta subtil e
porventura demaqiado moderna Interpretação efri J. BRUNSCHWIG, in
"Revue Philosophique>, 1962, p. 120 sega. Do ponto de vista filosófico
tem o inconveniente de descurar completamente o carácter fundamental do
ser parmenideo, a necessidade.

§ 19. Os fragmentos de Zenão In DmU, cap. 29. A discussão de


Aristótelos está In Fís., VI, 2-9; ZELLER-NEsTLE, 1, 742 sega.;
GoMPERz, 1, 205 segs.; BURNET,
356 segs. Sobre os argumentos contra o movimento: BROCHARD. Études de
philos. anc. et de Philos. moderne, Paris, 1912.

§ 20. Os fragmentos de Melíssos, In cap. 30.-ZELLER-NEsTLE, 1, 775


seg.; Gomp=, I,
198 segs.; BURNET, 368 segs.; ZELLER e BURNET, defensores do carácter
materialista do ser parmenídeo, são os autores da interpretação do
fragmento 9 de Meilisaos discutida no texto.

80

OS FISICOS POSTERIORES

§ 21. EMPÉDOCLES

O eleatismo, declarando aparente o mundo do devir e ilusório o


conhecimento sensível que lhe concerne, não afastou a filosofia grega
da investigação naturalista. Esta continua de acordo com a tradição
iniciada pelos Jónicos, mas não pode deixar de ter em conta as
conclusões do eleatismo. A afirmação de que a substância do mundo é uma
só e que ela é o ser, não permite salvar a realidade dos fenómenos e
explicá-los.Se quiser reconhecer-se que o mundo do devir existe em
certos limites reais, deve admitir-se que o princípio da realidade não
é único mas múltiplo. Nesta via se põem os físicos do século V.
buscando a aplicação do devir na acção de uma multiplicidade de
elementos, qualitativamente ou quantitativamente diversos.

Empédocles, de Agrigento nasceu ao redor de


492 e morreu mais ou menos aos sessenta anos. Filho de Metão, que tinha
um lugar importante no governo democrático da cidade, participou na vida

81

política e foi ao mesmo tempo médico, dramaturgo e homem de ciência.


Ele próprio apresenta a sua doutrina como um instrumento eficaz para
dominar as forças naturais e até para chamar do Hades a alma dos
defuntos (fr. 111, Diels). A sua figura de mago (ou de charlatão) é
realçada pelas lendas que se formaram acerca da sua morte. Os seus
partidários disseram que tinha subido ao céu durante a noite; os seus
adversários, que se precipitara na cratera do Etna para ser julgado um
deus (Diels, A 16). Empédocles foi, depois de Parménides, o único
filósofo grego que expôs em verso as suas doutrinas filosóficas. O seu
exemplo não foi seguido na antiguidade senão por Lucrécio, o qual lhe
dedicou um magnífico elogio (De nat. rer., 1,
716 segs.). Restaram dele fragmentos mais abundantes que de qualquer
outro filósofo pré-socrático, pertencentes a dois poemas. Sobre a
natureza e Purificações: o primeiro é de carácter cosmológico, o
segundo é de carácter teológico e inspira-se no orfismo e no
pitagorismo.

Empédocles é conhecedor dos limites do conhecimento humano. Os poderes


cognoscitivos do homem são limitados; o homem vê só uma pequena parte
de uma "vida que não é vida" (porque passa de fulgida) e conhece só
aquilo com que por acaso topa. Mas justamente por isto não pode
renunciar a nenhum dos seus poderes cognoscitivos: é necessário que se
sirva de todos os sentidos e ainda do intelecto, para ver todas as
coisas na sua evidência. Como Parménides, Empédocles considera que o
ser não pode nascer nem perecer; mas à diferença de Parménides quer
explicar a aparência do nascimento e da morte e explica-a recorrendo ao
combinar-se e separar-se dos elementos que compõem a coisa.A união dos
elementos é o nascimento das coisas, a sua desunião a morte.1 Os
elementos são quatro: fogo, água, terra e ar. O nome "elemento"

82

só mais tarde, com Platão, aparece na terminologia filosófica:


Empédocles, fala de "quatro raízes de todas as coisas". Estas quatro
raízes são animadas por duas forças opostas: o Amor (Philia) que tende
a uni-las; a Desavença ou ódio (Neikos) que tende a desuni-las.',O Amor
e a Desavença são duas forças cósmicas de natureza divina, cuja acção
se alterna no universo, determinando, com tal alternância, as fases do
ciclo cósmico.

Há uma fase em que o Amor domina completamente e é o Sfero no qual


todos os elementos são unificados e enlaçados na mais perfeita
harmonia. Mas nesta fase não há nem o sol nem a terra nem o mar, porque
não há mais que um todo uniforme, uma divindade que goza da sua
soledade (fr. 27, Diels). A acção da Desavença rompe esta unidade e
começa a introduzir a separação dos elementos. Mas nesta fase a
separação não é destrutiva: até certo ponto, ele determina a formação
das coisas que existem no nosso mundo, o qual é produto da acção
combinada das duas forças e fica a meio caminho do reino do Amor e do
reino do ódio. Continuando o ódio a agir, as próprias coisas se
dissolvem e tem-se o reino do caos: o puro domínio do ódio. -Mas então
cabe de novo ao Amor recomeçar a reunificação dos elementos: a meio
caminho ter-se-á novamente o mundo actual, mesclado de ódio e de amor e
finalmente regressar-se-á ao Sfero: no qual recomeçará um novo ciclo.
Aristóteles observou (Met., 1. 4, 985 a, 25) Que Empédocles não é
coerente porque admite ao mesmo tempo que o Amor crie o mundo numa
volta e o destrua na outra; e assim o (dioJ Mas Aristóteles faz esta
observação porque identifica o Amor e o ódio respectivamente com o Bem
e o Mal (1b., 985 a, 3). Em Empédocles, tal identificação não existe.
Empédocles está bem longe de admitir que o Amor, e só o Amor, é o
princípio

83

do Cosmos: como Heraclito está convencido que a divisão dos elementos,


o ódio, a luta, têm uma parte importante na constituição do mundo.
"Estas duas coisas, escreveu ele, são iguais e igualmente originárias e
tem cada uma o seu valor e o seu carácter e predominam alternadamente
no volver do tempo" (fr. 17, v. 26, Diels).

Os quatro elementos e as duas forças que os movem são ainda as


condições do conhecimento humano. O princípio fundamental do
conhecimento é que o semelhante se conhece com o semelhante. "Nós
conhecemos a terra com a terra, a água com a água, o éter divino com o
éter, o fogo destruidor com o fogo, o amor com o amor e o ódio funesto
com o ódio" (fr. 109).' O conhecimento realiza-se por meio do encontro
entre o elemento que existe no homem e o mesmo elemento que existe no
exterior do homem. Os eflúvios que provêm das coisas produzem a
sensação quando se aplicam aos poros dos órgãos dos sentidos pela sua
grandeza;'de outro modo passam despercebidos (Diels, A 86). Empédocles
não faz qualquer distinção entre o conhecimento dos sentidos e o do
intelecto; também este último se realiza da mesma maneira por um
encontro dos elementos externos e internos.
Em as Purificações Empédocles retoma a doutrina órfico-pitagórica da
metempsicose. Há uma lei necessária de justiça, que faz expiar aos
homens, através de uma série sucessiva de nascimentos e de mortes, os
pecados de que se mancharam (fr. 115). Empédocles apresenta esta
doutrina como o seu destino pessoal: "Fui em dada época menino e
menina, arbusto e pássaro e silencioso peixe do mar" (fr. 117). E
lembro saudosamente a felicidade da antiga morada: "De que honras, de
que alturas de felicidade eu caí para errar aqui, sobre a terra, entre
os mortais" (fr. 119).

84

§ 22. ANAXÁGORAS

Anaxágoras de Clazómenes, nascido em 499-98 a.C. e falecido em 428-27,


é apresentado pela tradição como um homem de ciência absorto nas suas
especulações e alheio a toda actividade prática. Para poder ocupar-se
das suas investigações cedeu todos os seus haveres aos parentes.
Interrogado acerca da finalidade da sua vida respondeu orgulhosamente
que era viver "para contemplar o sol, a lua e o céu". Aos que o
exprobravam por nada lhe importar a sua pátria respondeu: "A minha
pátria importa-me muitíssimo", indicando o céu com a mão (Diels, A 1).
Foi o primeiro a introduzir a filosofia em Atenas, que era então
governada por Péricles, 1 de quem foi amigo e mestre; mas,
acusado de impiedade pelos inimigos de Péricles e forçado a regressar à
Jónia, fixou residência em Lampsaco. Restam-nos alguns fragmentos do
primeiro livro da sua obra Sobre a natureZa.
- > 1 Também Anaxágoras aceita o principio de Parménides da
substancial imutabilidade do ser.'!"A respeito do nascer e do perecer,
diz ele (fr. 17), os gregos não têm uma opinião exacta.)Nenhuma coisa
nasce e nenhuma perece, mas todas se compõem de coisas já existentes ou
se decompõem nelas. A E assim se deveria antes chamar reunir-se ao
nascer e separar-se ao perecer". Como Empédocles, admite que os
elementos são qualitativamente distintos uns dos outros, mas à
diferença de Empédocles, considera que esses elementos são partículas
invisíveis que denomina sementes.1 Uma consideração filosófica está na
base da sua doutrina. Nós utilizamos um alimento simples e de uma só
espécie, o pão e a água, e deste alimento formam-se o sangue, a carne,
as peles, os ossos, etc. É preciso, portanto, que no alimento se
encontrem as partículas geradoras de todas as partes do nosso

85

corpo, partículas visíveis à mente., Anaxágoras substituiu assim como


fundamento da física a consideração cosmológica pela consideração
biológica. As partículas elementares, na medida em que são semelhantes
ao todo que constituem, foram chamadas por Aristóteles homeomerias, -- -
- - A primeira característica das sementes ou homeomerias é a sua
infinita divisibilidade, a segunda característica é a sua infinita
agregabilidade. Por outras palavras não se pode, segundo Anaxágôras,
chegar a elementos indivisíveis com a divisão das sementes, como não se
pode chegar a um todo máximo com a agregação das sementes, todo tal que
não seja possível haver maior. Eis o fragmento famoso em que Anaxágoras
exprime este conceito: "Não há um grau mínimo do pequeno mas há sempre
um grau menor, sendo impossível que o que é deixe de ser por divisão.
Mas também do grande há sempre um maior. E o grande é igual ao pequeno
em composição. Considerada em si mesma, toda a coisa é a um tempo
pequena e grande" (fr. 3, Diels).'Como se vê, a infinita
divisibilidade, que Zenão assumia para negar a realidade . das coisas,
é assumida por Anaxágoras como a própria essência da realidade. 1 A
importância matemática deste conceito é evidente. Por um lado, a noção
que se possa obter sempre por divisão, uma quantidade mais pequena do
que toda a quantidade dada, é o conceito fundamental do cálculo
infinitesimal. Por outro lado, que toda a coisa possa ser. chamada
grande ou pequena conformemente ao processo de divisão ou de composição
por que está envolvida, é uma afirmação que implica a relatividade dos
conceitos de grande e pequeno.

Uma vez que nunca se chega a um elemento último e indivisível, também


jamais se alcança, segundo Anaxágoras, um elemento simples, isto é, um
elemento qualitativamente homogéneo que seja,

86

por exemplo, somente água ou somente ar. "Em toda a coisa diz
ele, há sementes de todas as coisas" (fr. 11). A natureza de uma coisa
é deterninada pelas sementes que nela prevalecem: parece ouro aquela em
que prevalecem as partículas de ouro, embora haja nela partículas de
todas as outras substâncias.

No princípio as sementes estavam mescladas entre si desordenadamente e


constituíam uma multidão infinita, quer no sentido da grandeza do
conjunto, quer no sentido da pequenez de qualquer parte sua. NEsta
mistura caótica em imóvel; para nela introduzir o movimento e a ordem
interveio o Intelecto (fr. 12). Para Anaxágoras o Intelecto está
totalmente separado da matéria constituída pelas sementes. Ele é
simples, infinito e dotado de força própria; e serve-se desta força
para operar a separação dos elementos. Mas porque as sementes são
divisíveis até ao infinito, a separação de partes operada pelo
Intelecto não elimina a mescla: e assim agora como no principio "todas
as coisas estão juntas" (fr. 6). Pode perguntar-se, a ser assim, em que
coisa consiste a ordem que o Intelecto dá ao universo. A resposta de
Anaxágoras é que esta ordem consiste na relativa prevalência, que as
coisas do mundo mostram, de uma certa espécie de sementes: por exemplo,
a água é assim porque contém uma prevalência de sementes de água,
embora contenha ainda sementes de todas as outras coisas. Por esta
prevalência, que é o efeito da acção ordenadora do Intelecto, se
determina ainda a separação e a oposição das qualidades, por exemplo do
raro e do denso, do frio e do quente, do escuro e do lunÍnoso, do
húmido e do seco (fr. 12, Diels). ,: 1 Empédocles explicara o
conhecimento por meio do princípio da semelhança: Anaxágoras explica-o
por meio dos contrários. Nós sentimos o frio pelo quente, o doce pelo
amargo e toda a qualidade pela

87

qualidade oposta. Visto que toda a dissenção acarreta dor, toda a


sensação é dolorosa e a dor acaba por se sentir com a longa duração ou
com o excesso da sensação (Diels, A 29).

A própria constituição das coisas introduz um limite no nosso


conhecimento; não podemos perceber a multiplicidade das sementes que
constituem cada uma delas: pois que Anaxágoras diz que "a fraqueza dos
nossos sentidos impede-nos de alcançar a verdade" (fr. 21 a); e, com
efeito, os sentidos mostram-nos as sementes que predominam na coisa que
está ante nós e fazem-nos perceber a sua constituição interna.

A importância de Anaxágoras reside em ter ele afirmado um princípio


inteligente como causa da ordem do mundo. Platão (Féd. 97 b) elogia-o
por isto e Aristóteles diz dele pelo mesmo motivo: "Aquele que disse:
"Também na natureza, como nos seres viventes, há um Intelecto causa da
beleza e da ordem do universo", fez figura de homem sensato e os
predecessores, em comparação com ele, parecem gente que fala à toa"
(Met., 1, 3,
984 b). Mas Platão confessa a sua desilusão ao constatar que Anaxágoras
não se serve do intelecto para explicitar a ordem das coisas e recorre
aos elementos naturais, e Aristóteles diz de maneira análoga (lb., 1,
4, 985 a, 18) que Anaxágoras utiliza a inteligência como se se tratasse
de um deus ex machina todas as vezes que se vê embaraçado para explicar
qualquer coisa por meio das causas naturais, ao passo que nos outros
casos recorre a tudo, excepto ao Intelecto. Platão e Aristóteles
indicaram assim, com toda a justiça, a importância e os limites da
concepção de Anaxágoras. Contudo, permanecendo embora preso ao método
naturalista da filosofia jónica, Anaxágoras inovou radicalmente a
concepção do mundo próprio daquela filosofia,

88

admitindo uma inteligência divina separada do mundo e causa da ordem


deste.

§ 23. OS ATOMISTAS

A escola de Mileto não findou com Anaxímenes; de Mileto provém ainda


Leucipo (se bem que alguns escrapres antigos afirmem, ser de Eleia ou
de Abdera o fundador do atomismo, que pode considerar-se o último e
mais maduro fruto da pesquisa naturalista iniciada com a escola de
Mileto. Sabe-se tão pouco de Leucipo que até foi possível duvidar da
sua existência. Epicuro (Diels, 67, A 2) diz que nunca houve um
filósofo com este nome; e esta opinião foi também retomada por
historiadores recentes. Segundo testemunhos antigos, foi contemporâneo
de Empédocles e de Anaxágoras e discípulo de Parménides. Os seus
escritos devem ter-se confundido com os de Demócrito a quem se unira
para indicar os dois fundadores do atomismo antigo.

Demócrito de Abdera foi o maior naturalista do seu tempo. contemporâneo


de Platão, pelo qual, todavia, nunca foi nomeado. Ele próprio nos diz
(fr. S. Dieis) que era ainda jovem, quando Anaxágoras era velho; o seu
nascimento situa-se em 460-59 a.C.. Das muitas obras que têm o seu
nome, e de que temos numerosos fragmentos, O grande ordenamento, O
pequeno ordenamento, Sobre a inteligência, Sobre as formas, Sobre a
bondade da alma, etc., nem todas são, muito provavelmente, devidas a
ele; algumas expõem a doutrina geral da escola. A fama de Demócrito
como homem de ciência fez com que a sua figura fosse estilizada na de
um sábio completamente distraído da prática da vida. Horácio (Ep., 1,
12, 12) conta que rebanhos de gado devastavam, pastando, os campos de

89
Demócrito, enquanto a mente do sábio errava por sítios remotos. Na
partilha da rica herança paterna quis que a sua parte fosse em dinheiro
e assim recebeu menos, tendo gasto tudo nas suas viagens ao Egipto e
junto dos Caldeus. Quando o pai ainda era vivo, costumava recolher-se a
um casinhoto campestre que servia também de estábulo, e aqui ficou uma
vez sem reparar num boi que o pai lá prendera à espera de ele o levar
ao sacrifício (Diels, 68, A 1). O espírito levemente zombeteiro desta
anedota desenha-o como o tipo do sábio distraído.

Parece que Leucipo lançou os fundamentos da doutrina e que Demócrito,


desenvolveu depois estes fundamentos quer na pesquisa física quer na
pesquisa moral. Os atomistas concordam com o princípio fundamental do
eleatismo de que só o ser é mas decidem reportar este principio à
experiência sensível e servir-se dela para explicar os fenómenos. Assim
é que conceberam o ser como o pleno, o não-ser como o vazio e
consideram que o pleno e o vazio são os princípios constitutivos de
todas as coisas.! Todavia, o pleno não é um todo compacto: é formado
por um número infinito de elementos que são invisíveis pela pequenez da
sua massa. Se estes elementos fossem divisíveis até ao infinito,
dissolver-se-iam no vazio; devem, por conseguinte, ser indivisíveis, e
por isso são chamados átomos., Só os átomos
são eternamente contínuos, os outros corpos não são contínuos porque
resultam do simples contacto dos átomos e podem, por isso, ser
divididos. A diferença entre os átomos não é qualitativa como a das
sementes de Anaxágoras, mas quantitativa. Os átomos não diferem entre
si por natureza mas tão somente por forma e grandeza. Eles determinam o
nascimento e a morte das coisas pela união e pela desagregação;
determinam a diversidade e a mudança delas pela sua ordem

90

e pela sua posição. 1 Segundo a comparação de Aristóteles (Met., 1, 4,


985 b), são semelhantes às letras do alfabeto; que diferem entre si
pela forma e dão origem a palavras e a discursos diversos dispondo-se e
combinando-se diversamente. Todas as qualidades dos corpos, dependem,
portanto, ou da figura dos átomos ou da ordem e da combinação deles,
Pelo que nem, todas as qualidades sensíveis são objectivas, quer dizer
não pertencem verdadeiramente às coisas que se provocam em nós. São
objectivas as qualidades próprias dos átomos: a forma, a dureza, o
número, o movimento; ao contrário o frio, o calor, os sabores, os
odores, as cores são simplesmente aparências sensíveis, provocadas, é
certo, por especiais figuras ou combinações de átomos, mas não
pertencentes aos próprios átomos (fr. 5).

Todos os átomos são animados de um movimento espontâneo, pelo qual se


chocam e ricocheteiam dando ou em ao nascer, ao perecer e ao mudar de
coisas Mas o movimento é determinado por leis imutáveis. "Nenhuma
coisa, diz Leucipo (fr. 2), acontece sem razão, antes tudo acontece por
uma razão e necessariamente". O movimento originário dos átomos,
fazendo-os girar e chocar-se em todas as direcções, produz um vértice,
do qual as partes mais pesadas são arrastadas para o centro e as outras
são, ao contrário, repelidas para a periferia. O seu peso, que as
faz tender para o centro, é portanto um efeito do movimento vertical em
que são arrastadas. Desta maneira se formaram infinitos mundos que
incessantemente se geram e se dissolvem.

O movimento dos átomos explica também o conhecimento humano. A sensação


nasce da imagem (idõla) que as coisas produzem na alma por meio de
fluxos ou correntes de átomos que emanam delas. Toda a sensibilidade se
reduz por isso ao tacto;

91

porque todas as sensações são produzidas pelo contacto, com o corpo do


homem, dos átomos que provêm das coisas. Mas o próprio Demócrito não se
satisfaz com este conhecimento, ao qual está necessariamente
limitado. "Em verdade, diz ele, nada sabemos de nada, pois
a opinião vem de fora para cada qual" (fr. 7). "É preciso conhecer o
homem com estes critérios: que a verdade fica longe dele" (fr. 6). E,
com efeito, as sensações de que deriva todo o conhecimento humano mudam
de homem para homem, mudam até no mesmo homem conforme as
circunstâncias, pelo que não fornecem um critério absoluto do
verdadeiro e do falso (Diels,
68 A 112). Estas limitações não respeitam, contudo, ao conhecimento
intelectual. Ainda que sujeito às condições físicas que se observam no
organismo (Diels, 68 A 135), este conhecimento é, todavia, superior à
sensibilidade, porque permite captar, para lá das aparências, o ser do
mundo: o vazio, os átomos e o seu movimento. Aí onde termina o
conhecimento sensível que, quando a realidade se subtiliza e tende a
resolver-se nos seus últimos elementos, se torna ineficaz, começa o
conhecimento racional, que é um órgão mais subtil e alcança a própria
realidade (Demócr., fr. 11). A antítese entre conhecimento sensível e
conhecimento intelectual é assim talhada como a que existe entre o
carácter aparente e convencional das qualidades sensíveis e a realidade
dos átomos e do vazio. "Por convenção fala-se, diz Demócrito (fr. 125),
de cor, de doce, de amargo; na realidade, há só átomos e vazio". Desta
maneira, correspondentemente ao contraste entre aparência e realidade,
se mantém no atomismo o contraste entre conhecimento sensível e
conhecimento intelectual, não obstante a sua comum redução a factores
mecânicos; e ambos estes contrastes são inferidos do eleatismo.

92

O atomismo representa a redução naturalista do eleatismo. Fez sua a


proposição fundamental do eleatismo: o ser é necessidade; mas
compreendeu esta proposição no sentido da determinação causal.
Parménides exprimia praticamente o sentido da necessidade às noções de
justiça ou de destino.
O atomismo identifica a necessidade com a acção das causas naturais. Do
eleatismo, o atomismo infere ainda a antítese entre realidade e
aparência; mas esta própria antítese é conduzida ao plano da natureza e
a realidade de que se fala é a dos elementos indivisíveis da própria
natureza. O resultado destas transformações, que vai além das intenções
dos próprios atomistas, é o começo da constituição da pesquisa
naturalista como disciplina em si; e da distinção da pesquisa
filosófica como tal. A constituição de uma ciência da natureza como
disciplina particular, tal como aparece em Aristóteles, é preparada
pela obra dos atomistas, que reduziram a natureza a pura objectividade
mecânica, com a exclusão de qualquer elemento mítico ou antropomórfico.
A prova desta inicial separação da ciência da natureza da ciência do
homem temo-la no facto de Demócrito não estabelecer qualquer relação
intrínseca entre uma e a outra.

A ética de Demócrito não tem, de facto, relação alguma com a sua


doutrina física. O mais elevado bem para o homem é a felicidade; e esta
não reside nas riquezas, mas somente na alma (fr. 171). Não são os
corpos e a riqueza que nos tornam felizes, mas sim a justiça e a razão,
e aí onde falta a razão, não se sabe fruir a vida nem superar o terror
da morte. Para os homens a alegria nasce da medida do prazer e da
proporção da vida: os defeitos e os excessos tendem a perturbar a alma
e a gerar nela movimentos intensos. E as almas que se movimentam de um
extremo ao outro, não são constantes nem contentes (fr. 191).

93

A alegria espiritual, a ataymia, não tem por conseguinte nada que ver
com o prazer (edoné): "o bem e o verdadeiro-diz Demócrito-são idênticos
para todos os homens, o prazer é diferente para cada um deles (fr. 69).
Pelo que o prazer não é bem em si mesmo: necessário é que sejha somente
o que procede do belo (fr. 207). A ética de Demócrito está, assim, a
grande distância da do hedonismo que poderíamos aguardar Como corolário
do seu naturalismo teorético. Pelo contrário, ao decidido objectivismo
que é a directriz de Demócrito no domínio da pesquisa naturalista
corresponde, na ética, um igualmente decidido subjectivismo moral. O
guia da acção moral é, segundo Demócrito, o respeito (aidos) para
consigo mesmo. "Não deves ter respeito pelos outros homens mais que por
ti próprio, nem proceder mal quando ninguém o saiba mais que quando o
saibam; mas deves ter por ti mesmo o máximo respeito e impor à tua alma
esta lei: não fazer aquilo que não se deve fazer" (fr. 264). Aqui a lei
moral está colocada na pura interioridade da pessoa humana, que ao
invés se faz lei a si própria mediante o conceito de respeito para
consigo mesmo. Este conceito, fundamental para compreender o valor e a
dignidade humana, substitui o velho conceito grego do respeito para com
a lei da polis, e mostra como a pesquisa moral de Demócrito se move em
direcção antitética da sua pesquisa física e como, por isso, se iniciou
a diferenciação da ciência natural da filosofia.

Um outro traço é notável na ética de Demócrito: o cosmopolitismo. "Para


o homem sábio diz ele-toda a terra é utilizável, porque a pátria da
alma excelente é todo o mundo" (fr. 247). Reconhece, todavia, o valor
do estado e diz que nada é preferível a um bom governo, uma vez que o
governo abrange tudo: se ele se mantém, tudo

94

se mantém; se ele cai tudo perece (fr. 252). E declara que é necessário
preferir viver pobre e livre numa democracia a viver rico e escravo
numa oligarquia (fr. 251). A superioridade que ele atribui à vida
exclusivamente dedicada à pesquisa científica torna-se evidente pelas
suas ideias sobre o matrimónio. Este é condenado por ele, na medida em
que se funda sobre as relações sexuais que diminuem o domínio do homem
sobre si mesmo, e na medida em que a educação dos filhos impede a
dedicação aos trabalhos mais necessários, enquanto o sucesso da sua
educação continua duvidoso. Aqui a preocupação de Demócrito é
evidentemente a de salvaguardar a disponibilidade do homem para consigo
mesmo que torna possível o empenho na pesquisa científica.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 21. Os fragmentos de Empédocles, in Diels, cap. 31. - ZELLER-NESTLE,


1, 939 segs.; GoMPERZ, I,
241 segs.; BURNET, 229 segs.; BIGNONE, Empédocle ,(estudo, crítico,
trad. e comentário dos testemunhos e dos fragmentos), Turim, 1916; G.
COLLI, E.; Diza,
1949; W. KRANZ, E.; Zurique, 1949; J. ZAFIRO PAULO, E. de Agrigento.
Paris, 1953; G. NÉLOD, E. de Agrigento, Bruxelas, 1959.

§ 22. Os fragmentos de Anaxágoras, in D=, cap. 59-ZELLER-NESTLE, 1,


1195, segs.; GomPERZ, I,
222 segs.; BURNET 287 segs.; CLEVE, The Philosophy of Anaxagoras. An
Attempt at Reconstruction, Nova-lorque, 1949.

§ 23. Os fragmentos dos atomistas, in DIELS, cap. 67 (Lepcipo) e cap.


68 (Demócrito), trad. para o italiano por V. E. ALFIERI, Bafi, 1936.
Negou a existência de Leucipo: R.HODE, Meine Schriften, 1, 205, em
1881. Contra ele: DIELS, in "Rhein. Mus." 1887,
1 segs.. Sobre outros desenvolvimentos do problema: HOWALD, Festchrift
f. Joel, 1934; A. G. M. V. MELSEN, From Atonws to Atom, Pittsburgh,
1952; V. E. ALI=RI, Atomos idea, Florença, 1953.

95

vi

A SOFíSTICA

§ 24. CAráCTER DA SOfíSTICA

Dos meados do século V até aos fins do século IV, Atenas é o centro da
cultura grega. A vitória contra os Persas abre o período áureo do poder
ateniense. A ordem democrática tornava possível a participação dos
cidadãos na vida política e tornava preciosos os dotes oratórios que
permitem obter o êxito. Os sofistas vêm ao encontro da necessidade de
uma cultura adaptada à educação política das classes.

A palavra sofista não tem nenhum valor filosófico determinado e não


indica uma escola. Originariamente significou apenas sábio e empregava-
se para indicar os Sete Sábios, Pitágoras e quantos se assinalaram por
qualquer actividade teorética ou prática. No período e nas condições
que indicamos, o termo assume um significado especifico: sofistas eram
aqueles que faziam profissão da sabedoria e a ensinavam mediante
remuneração. O lugar da sofística na história da filosofia não
apresenta por isso

97

analogia com o das escolas filosóficas anteriores ou contemporâneas. Os


sofistas influenciaram poderosamente, é certo, o curso da investigação
filosófica, mas isto aconteceu por modo inteiramente independente do
seu intento, que não era teorético, mas apenas prático-educativo. Os
sofistas não podem relacionar-se com as investigações especulativas dos
filósofos jónios, mas com a tradição educativa dos poetas, a qual se
desenvolvera ininterruptamente de Homero a Hesíodo, a Sólon e a
Píndaro, Todos eles orientaram a sua reflexão para o homem, para a
virtude e para o seu destino e retiraram, de tais reflexões, conselhos
e ensinamentos. Os Sofistas não ignoram esta sua origem ideal porque
são os primeiros exegetas das obras dos poetas e vinculam a eles o seu
ensinamento. Assim Protágoras, no diálogo homónimo de Platão, expõe a
sua doutrina da virtude mediante o comentário a uns versos de Simonides.
"Os sofistas foram os primeiros que reconheceram -o valor formativo do
saber e elaboraram o conceito de cultura (paideia), que não é soma de
noções, nem tão-pouco apenas o processo da sua aquisição, mas formação
do homem no seu ser concreto, como membro de um povo ou de um ambiente
social.)Os sofistas foram, pois, mestres de cultura. Mas a cultura,
objecto da sua ensinança, era a que era útil à classe dirigente da
cidade em que tinha lugar o seu ensino: por isso era pago. 'Para que o
seu ensino fosse não só permitido, mas ainda requerido e recompensado,
os sofistas tinham de inspirá-lo nos valores próprios da comunidade
onde o ministravam, sem tentar críticas ou indagações que os colocassem
em choque com tais valores.Por outro lado, precisamente por esta
situação, estavam em condições de se darem conta da diversidade ou
heterogeneidade de tais valores; tal quer dizer, também, das suas
limitações. Eles podiam ver

98

que duma cidade a outra, de um povo a outro, muitos dos valores em que
assenta a vida do homem sofrem variações radicais e tornam-se
incomensuráveis entre si. A natureza relativista das suas teses
teóricas não é mais que a expressão duma rendição fundamental da sua
ensinança. Por outro lado, consideram-se "sábios" precisamente no
sentido antigo e tradicional do termo, isto é, no sentido de tornar os
homens hábeis nas suas tarefas, aptos para viver em conjunto, capazes
de levar a melhor nas competições civis. Certamente, sob este
aspecto, nem todos os sofistas manifestam, na sua personalidade, as
mesmas características, Protágoras reivindicava para os sábios e para
bons oradores a tarefa de guiar e aconselhar para o melhor a própria
comunidade humana (Teet., 167 c). Outros sofistas colocavam
explicitamente a sua obra ao serviço dos mais poderosos e dos mais
sagazes. Em qualquer dos casos o interesse dos sofistas limitava-se à
esfera das ocupações humanas e a própria filosofia considerada por eles
como um instrumento para se moverem habilmente nesta esfera.

No górgias platónico, Càlicles afirma que se estuda a filosofia


unicamente "para a educação própria" e que por isso é conveniente na
idade juvenil, mas torna-se inútil e danosa quando cultivada para lá
desse limite, pois impede o homem de tornar-se experiente nos negócios
públicos e privados e em geral em tudo o que concerne à natureza humana
(484 e-485 d). -"-")Por motivo idêntico, O Objecto do ensino sofístico
limitava-se a disciplinas formais, como a retórica ou a gramática, ou a
noções várias e brilhantes mas desprovidas de solidez científica, como
as que podiam revelar-se úteis na carreira de um advogado ou de um
homem políticO.
a sua criação fundamental foi a retórica, isto é, a arte de persuadir,

99

independentemente da validade das razões adoptadas. com a retórica


afirmavam a independência e a omnipotência: a independência de todo o
valor absoluto, cognoscitivo ou moral; a omnipotência a respeito de
todo o fim a alcançar, Mas pela própria exigência desta arte, o homem
guinda-se ao primeiro lugar na atenção dos sofistas. O homem é
considerado não já como um fragmento da natureza ou do ser, mas nos
seus caracteres específicos: assim, se a primeira fase da filosofia
grega fora, prevalentemente, cosmológica ou ontológica, com os sofistas
inicia-se uma fase antropológica.

PROTÁGORAS

Protágoras de Abdera foi o primeiro que se intitulou sofista e mestre


de virtude. Segundo Platão, que nos apresenta a sua figura no diálogo
que leva o seu nome, era muito mais velho do que Sócrates: o seu apogeu
situa-se em 444-40. Ensinou durante 40 anos em todas as cidades da
Grécia, deslocando-se de uma para outra. Esteve repetidas vezes em
Atenas, mas por fim foi acusado de ateísmo e obrigado a abandonar a
cidade. Morreu afogado com 70 anos quando se dirigia para a Sicilia.
Platão deixou-nos, no diálogo intitulado com o seu nome, um retrato
vivo, ainda que irónico, do sofista. Representa-o como homem do mundo,
cheio de anos e de experiências, grandiloquente, vaidoso, mais
preocupado, nas discussões, em obter a todo o custo um êxito pessoal do
que a alcançar a verdade. A obra principal de Protágoras, RacioCínios
demolidores, também citada com o título Sobre a verdade ou sobre o ser.
Atribui-se a Protágoras uma obra Sobre os deuses. Dos escritos de
Protágoras poucos fragmentos restam.

100

expressou o postulado fundamental do ensino sofistico no famoso


princípio com que iniciava a obra Sobre a verdade: "O homem é a medida
de todas as coisas (chrémata), das coisas que são enquanto são, das
coisas que não são enquanto não são" (fr. 1, Dielsy. '

O significado desta tese famosa foi aclarado pela primeira vez por
Platão, cuja interpretação continuou e continua a ter o favor. Segundo
Platão, Protágoras pretendia dizer que "tais como as coisas singulares
me aparecem, tais são para mim, e quais te aparecem, tais são para ti:
dado que homem tu és e homem sou" (Teet., 152 a); e que portanto
identificava aparência e sensação, afirmando que aparência e sensação
são sempre verdadeiras porque "a sensação é sempre da coisa que é"
(1b., 152 c); é, entende-se, para este ou para aquele homem.
Aristóteles (Met., IV, 1, 1053 a, 31 segs.) e com ele todas as fontes
antigas confirmam substancialmente a interpretação platónica. Esta é
aprovada também pela crítica que, segundo um testemunho de Aristóteles
(lb., LII, 2, 997 b, 32 segs.). Protágoras dirigia à matemática,
observando que nenhuma coisa sensível tem a qualidade que a geometria
atribui aos entes geométricos e que, por exemplo, não existe uma
tangente que toque a, circunferência num só ponto, como quer a
geometria (fr. 7. Diels). Nesta crítica, como é óbvio, Protágoras
valia-se das aparências sensíveis para julgar da validade das
proposições geométricas.

Segundo o mesmo Platão, também aqui seguido quase unanimente pela


tradição posterior, o pressuposto da doutrina de Protágoras era o de
Heraclito: o incessante fluir das coisas. O Teeteto platónico contém
também uma teoria da sensação elaborada segundo este pressuposto: a
sensação seria o encontro de dois movimentos, o do agente, isto é do
objecto, e o do paciente, isto é do sujeito.

101

Dado que os dois movimentos continuam depois do encontro, nunca serão


duas sensações iguais quer para homens diferentes quer para o mesmo
homem (Teet., 182 a). Não sabemos se esta doutrina pode referir-se a
Protágoras: todavia também ela é uma confirmação da identidade que
Protágoras estabelecia entre aparência e sensação. É por isso bastante
claro que mundo da doxa (isto é, da opinião),
que para o caso compreende as aparências sensíveis e todas as crenças
que nelas se fundam, é aceite por Protágoras tal como se apresenta; e
que ele, como os outros sofistas se recusa a proceder para lá dele e
instituir uma pesquisa que de qualquer modo o transcenda: Esse é o
mundo das ocupações humanas em que Protágoras e todos os sofistas
entendem mover-se e permanecer. O agnosticismo religioso de Protágoras
é uma consequência imediata desta limitação do seu interesse à esfera
da experiência humana. Dos deuses -dizia Protágoras -não estou em
posição de saber nem se existem nem se não existem nem quais são:
efectivamente muitas coisas impedem sabê-lo: não só a obscuridade do
problema mas a brevidade da vida humana" (fr. 4, Diels). A
"obscuridade" de que fala Protágoras consiste provavelmente no próprio
facto de que o divino transcende a esfera daquela experiência humana à
qual, segundo Protágoras, é limitado o saber.

Todavia, estes esclarecimentos não são suficientes ainda para


compreender o alcance do principio protagórico. O interesse de
Protágoras, como o de todos os sofistas, não é puramente gnoseológico-
teorético. Os problemas que Protágoras toma a peito são os dos
tribunais, da vida política e da educação: isto é, os problemas da vida
social que surgem no interior dos grupos humanos ou nas relações entre
os grupos. O homem que toma em consideração é certamente o indivíduo (e
não,

102

como queria Gomperz, o homem em geral ou a natureza humana); mas não o


indivíduo isolado, fechado em si como uma mónada, antes o indivíduo que
vive juntamente com os outros; por isso deve ser capaz ou tornar-se
capaz de afrontar os problemas desta convivência. Seria por isso
arbitrário restringir o princípio de Protágoras à relação entre o homem
e as coisas naturais: é muito mais correcto entendê-lo no seu alcance
mais vasto, como compreendendo todo e qualquer tipo de objecto sobre
que recaí uma relação inter-humana, compreendidos os objectos que se
chamam bons e valorosos. No mesmo significado literal da palavra
chrémata usada por Protágoras, os bens e os valores são compreendidos
no mesmo título dos corpos ou das qualidades dos corpos. "O homem não é
apenas, desse ponto de vista, a 'medida das coisas que se percebem, mas
também a do bem, do justo e do belo. Não há dúvida, Protágoras
considerava também que tais valores são diferentes de indivíduo para
indivíduo porque tais aparecem; e que também neste campo todas as
opiniões são igualmente verdadeiras. Na enérgica defesa que o próprio
Sócrates faz de Protágoras a meio do Teeteto, diz-se claramente que "as
coisas que a cada cidade parecem justas e belas, são também tais para
ela, pois que as considera tais" (Teet., 167 e); e esta é uma tese que
já pode ser compreendida no princípio de que o homem é a medida de
tudo. Os sofistas insistiam de bom grado (como veremos) sobre a
diversidade e a heterogeneidade dos valores que regem a convivência
humana. Um escrito anónimo, Raciocínios duplos (composto provavelmente
na primeira metade do século IV), que se propõe demonstrar que as
mesmas coisas podem ser boas e más, belas e feias, justas e injustas, é
apresentado pelo seu autor como uma suma do ensino sofístico:
"raciocínios duplos (assim se indica no escrito)
103

em torno do bem e do mal são defendidos na Grécia por aqueles que se


ocupam da filosofia" (Diels, 90, 1 (1). Pode ser que o autor deste
escrito seguisse mais de perto as pisadas de um determinado sofista
(por exemplo de Górgias, como alguns estudiosos defendem). mas é
difícil imaginar que não se reportasse também a Protágoras que sabemos
ter escrito um livro intitulado Antilógia (Diels. 80. fr. 5). A segunda
parte do escrito é particularmente interessante pois contém a exposição
daquilo que hoje se chama o "relativismo cultural", isto é o
reconhecimento da disparidade dos valores que presidem às diferentes
civilizações humanas. Eis alguns exemplos: Os Macedónios acham bem que
as raparigas sejam amadas e se acasalem com um homem antes de se
esposarem, mas censurável depois de casadas; para os Gregos é má tanto
uma coisa como a outra... Os Massagetos fazem em pedaços os (cadáveres)
dos genitores e comem-nos; e acreditam que é um túmulo belíssimo ser
sepultado nos próprios filhos; se ao invés alguém na Grécia fizesse
isto, seria expulso e morreria coberto de vergonha por ter cometido uma
acção feia e terrível. Os Persas consideram belo que também os homens
se adornem como as mulheres e que se juntem com a filha, a mãe e a
irmã; ao contrário os Gregos consideram estas acções feias e imorais;
etc." (Diels, 90, 2 (12); (14); (15". O autor do escrito conclui a sua
exemplificação dizendo que "se alguém ordenasse a todos os homens que
agrupassem num só lugar todas as leis (nomoi) que se consideram más e
escolhessem depois aquelas que cada um considera boas, nem uma ficaria,
mas todos repartiriam tudo" (Diels,
2, 18). Considerações deste género não aparecem isoladas no mundo grego
e acorrem frequentemente no ambiente sofístico. Segundo um testemunho
de Xenofonte (Mem. IV, 20). Hípias negava que a

104

proibição do incesto fosse lei natural dado que é transgredida por


alguns povos vizinhos. oposição entre natureza e lei. característica de
Hípias e de outros sofistas (§ 27), não era mais que uma consequência
da concepção relativística que tais sofistas tinham dos valores que
presidiam às diferentes civilizações humanas. É-de recordar final,--
mente a este propósito que Heródoto -certamente teve ligações com o
ambiente sofistico e compartilhou a seu modo a sua direcção
iluminística-, depois de ter relatado o costume, referindo-o aos
Indianos Callati, de algumas populações darem sepultura no seu estômago
aos parentes mortos e depois de ter posto em confronto a repugnância
dos Gregos por este costume com a repugnância daqueles Indianos pelo
costume dos Gregos de queimar os mortos, concluía com uma afirmação
típica do relativismo dos valores: "Se propusessem a todos os homens
escolher entre as várias leis e os convidassem a eleger a melhor, cada
um, depois de ter reflectido, escolheria (lei) do seu país: tanto a
cada um parecem muito melhores as próprias leis". E concluía a sua
narrativa comentando: "Assim são estas leis dos antepassados e eu creio
que Píndaro tinha razão nos seus versos: "a lei é rainha de todas as
coisas" (Hist., IH, 38).

Por isso se se tem presente, na interpretação do princípio de


Protágoras, a totalidade do ambiente sofístico (que por outro lado o
mesmo Protágoras contribui poderosamente para formar), parece óbvio que
o princípio se refere a todas as opiniões humanas compreendidas as que
se referem às qualidades sensíveis ou às próprias coisas. Mas a
heterogeneidade e a equivalência das opiniões não significa a sua
imutabilidade: as opiniões humanas são, segundo Protágoras,
modificáveis e na realidade modificam-se; e todo o sistema político-
educativo que constitui uma comunidade humana (polis) é

105

dirigido precisamente para obter na altura própria modificações nas


opiniões dos homens. Em que sentido se tomam estas modificações?
Certamente não no sentido da verdade, porque do ponto de vista da
verdade todas as opiniões são equivalentes. Tomam-se ao contrário e
devem tomar-se no sentido da utilidade privada ou pública. Esta é de
facto a tese que vem exposta na defesa que o próprio Sócrates faz de
Protágoras no Teeteto (166 a, 168 c). E no Protágoras. diz-se: "Corno
os mestres se comportam com os alunos que ainda não sabem escrever,
traçando eles mesmos as letras sobre as tabuinhas e obrigando-os a
recalcar os traços, assim a comunidade (polis), fazendo valer as leis
inventadas pelos grandes legisladores antigos, obriga os cidadãos a
segui-las seja no mandar seja no obedecer e pune quem se afasta delas"
(Prot., 326 d). Sobre esta mesma possibilidade de rectificação das
opiniões humanas no sentido da utilidade privada e pública, se insere,
segundo a " defesa" do Teeteto, a obra do sábio que se faz mestre dos
indivíduos e da cidade "fazendo parecer justas as coisas boas em lugar
das más". Neste sentido, a obra do sábio (ou sofista) é perfeitamente
semelhante à do médico ou do agricultor: transforma em boa uma
disposição má, faz passar os homens de uma opinião danosa aos
indivíduos e à comunidade para uma opinião útil, prescindindo
completamente da verdade ou falsidade das opiniões que, a este
respeito, são todas iguais para ele (Teet., 167 c-d). $Por isso
Protágoras apresentava-se como mestre, não de ciência, mas de
"sagacidade nos negócios privados e nos negócios públicos" (Prot., 318
c); e por isso professava a ensinabilidade da virtude, isto é a
modificabilidade das opiniões no sentido do útil; e por isso se
afirmava (e era considerado) digno de ser recompensado com dinheiro
pela sua obra educativa

106

Depois nada há em tudo aquilo que sabemos da doutrina de Protágoras que


deixe supor que ele atribuía carácter absoluto às formas que a
utilidade reveste na vida pública ou privada do homem. Certamente,
segundo Protágoras, "toda a vida do homem tem necessidade de ordem e de
adaptação" (Prot., 326 b). Zeus teve de enviar aos homens a arte
política, fundada no respeito e na justiça, a fim de que os homens
deixassem de destruir-se reciprocamente e pudessem viver em comunidade
(lb., 322 c). Mas nem a arte política é uma ciência nem o respeito e a
justiça são objecto da ciência, segundo Protágoras. "Respeito e
justiça" são no mito a mesma coisa que '"a ordem e a adaptação" fora do
mito: podem assumir inumeráveis formas. Na própria República de Platão
o conceito de justiça é introduzido e defendido como condição de
qualquer convivência humana, de qualquer actividade que os homens devam
desenvolver em comum, compreendida a dum bando de salteadores e de
ladrões (Rep., 351 c); e não é por acaso que um testemunho antigo faz
depender a República de Platão da Analogia de Protágoras (fr. 5,
Diels). Platão não se deteve, é certo, neste conceito formal de
justiça: todo o corpo da República é dirigido a delimitá-lo e defini-lo
tornando-o objecto de ciência e assim absolutizando-o. Mas para
Protágoras ele conservava indubitavelmente o seu carácter formal e
assim a sua fluidez; o que significa que, para Protágoras, a própria
justiça, isto é, a ordem e o acomodamento recíproco dos homens,
alcançáveis através da rectificação que as leis e a educação impõem às
suas diferentes opiniões, pode assumir formas diversas, que a
sagacidade ou a engenhosidade humana podem descobrir ou fazer valer nas
diferentes comunidades humanas.

107

§ 26. GóRGIAS

Contemporâneo de Protágoras foi Górgias de LentinI, nascido por volta


de 484-83; ensinou primeiramente na Sicília e, depois de 427, em Atenas
e outras cidades da Grécia. Nos últimos tempos da sua vida estabeleceu-
se em Larissa, na Tessália, onde morreu com 109 anos. Foi acima de tudo
um retórico, mas escreveu também uma obra filosófica Sobre o não ser ou
sobre a natureza, de que Sexto Empírico nos conservou um longo
fragmento (Adv. math., VII, 65 sgs.). Temos também fragmentos de alguns
dos seus discursos, um Encómío de Helena e uma Defesa de Palamedes.

As teses fundamentais de Górgias eram três, concatenadas entre si: I.&


Nada existe; 2.a Se algo existe não é cognoscível pelo homem; Ia Ainda
que seja cognoscível, é incomunicável aos outros.
1) Sustentava o primeiro ponto demonstrando que não existe nem o ser
nem o não-ser. Efectivamente o não-ser não existe porque se existisse
seria ao mesmo tempo não-ser e ser, o que é contraditório. E o ser se
existisse tinha de ser ou eterno ou gerado ou eterno e gerado ao mesmo
tempo. Mas se fosse eterno seria infinito e se infinito não estaria em
nenhum lugar, isto é, não existiria de facto. Se é gerado deve ter
nascido ou do ser ou do não-ser, mas do não-ser não nasce nada; e se
nasceu do ser já existia antes, portanto não é gerado. O ser não pode
ser pois nem eterno nem gerado; não pode ser tão-pouco eterno e gerado
ao mesmo tempo porque as duas coisas se excluem. Portanto nem o ser nem
o não-ser existem. 2) Mas se o ser existe, não pode ser pensado.
Efectivamente as coisas pensadas não existem: de outro modo existiriam
todas as coisas inverosímeis e absurdas que ao homem ocorra pensar. Mas
se é verdade que aquilo que é pensado não existe, será também

108

verdade que aquilo que existe não é pensado e que portanto, o ser. se
existe, é incognoscível.
3) Finalmente., ainda que fosse cognoscível, não seria comunicável.
Efectivamente, nós expressamo-nos pela palavra. mas a palavra não é o
ser; portanto. comunicando palavras, não comunicamos o ser.

Górgias, chega assim a um nielismo filosófico total. utilizando as


teses eleáticas sobre o ser e reduzindo-as ao absurdo. Tem-se posto em
dúvida se este níilismo representa verdadeiramente uma convicção
filosófica de Górgias ou não será antes um simples exercício retórico,
uma prova de habilidade oratória. Mas não possuímos elementos para
negar o interesse filosófico de Górgias e portanto a seriedade das suas
conclusões. Tal conclusão é em certo sentido oposta à da doutrina de
Protágoras. Para Protágoras tudo é verdadeiro, para Górgias tudo é
falso. Mas na realidade o significado das duas teses é um só: a negação
da objectividade do pensamento, portanto da validade que daí deriva na
sua referência ao ser.

Para o afastamento de tal objectividade, a palavra. particularmente


quando é dirigida pela retórica, tem uma força necessitante a que
ninguém pode resistir. Na Defesa de Helena, Górgias sustenta que
"Helena-seja porque tenha feito o que fez por amor, ou porque
persuadida pela palavra. ou porque raptada pela violência, ou porque
forçada da constrição divina - em qualquer caso escapa à acusação" (fr.
11, 20). Aqui a força da palavra é posta ao lado da constrição divina
ou do poder do amor ou da violência como condição necessitante que
elimina a liberdade, portanto a imputabilidade de uma acção. cA força
da persuasão diz ainda Górgias-que origina a decisão de Helena,
efectivamente enquanto origina por necessidade, não é passível de
censura mas possui um

109

poder que se identifica com o desta necessidade" (fr. 12). É claro que,
segundo Górgias, a palavra tem força necessitante porque não encontra
limites ao seu poder em nenhum critério ou valor objectivo, nalguma
ideia no sentido platónico do termo: o homem não pode resistir a ela
aferrando-se à verdade ou ao bem e está completamente desprovido de
defesa nos seus confrontos.
O relativismo teorético e prático da sofística encontra aqui um
corolário importante: a omnipotência da palavra e a força necessitante
da retórica que a guia com o seu engenho infalível. Quando Platão opõe
a Górgias, no diálogo que dele se intitula, que a retórica não pode
persuadir se não daquilo que é verdadeiro e justo, parte de um
pressuposto que Górgias não partilha: isto é, que existem critérios
infalíveis e universais para reconhecer o verdadeiro e o justo
(Górgias, 455 a). Aquilo que distingue a retórica de Górgias como arte
omnipotente da persuasão, da retórica de Platão como educação da alma
para o verdadeiro e o justo, é o pressuposto fundamental do platonismo:
a existência de ideias como critérios ou valores absolutos.

§ 27. OUTROS SOFISTAS

Mais jovens que Protágoras e Górgias são os dois contemporâneos de


Sócrates, Pródico e Hípias.

Pródico de Ceos, conhecido principalmente como autor de um Ensaio de


Sinonímica (ridícula-mente consagrado à procura de sinónimos o
representa Platão no Protágoras 337 a-c), é também autor de um escrito
intitulado Horas, no qual representa o encontro de Hércules com a
Virtude e a Depravação. Tanto uma como a outra exortavam o herói a
seguir o seu sistema de vida, mas Hércules decidia-se pela Virtude e
preferia os suores desta aos prazeres precários da Depravação (fr.
1,Diels). Sabemos também que Pródico afirmava o valor do esforço
dirigido para a virtude e considerava a própria virtude como uma
condição imposta por um mandado divino para a obtenção dos bens da
vida. As Horas deviam conter também partes dedicadas à filosofia da
natureza e à antropologia. Em particular. sobre este último tema.
sabemos que Pródico aventura sobre a origem da religião 1111na teoria
que o fez contar entre os ateus. "Os antigos-dizia ele -consideravam
deuses. em virtude da uW~e que deles derivava, o sol. a lua. os raios,
as fontes e em geral todas as coisas que servem para a nossa vida,
como, por exemplo, para os Egípcios. o Nilo. E por isto o pão em
considerado como Demeter, o vinho como Dionísio, a água como Poseidon.
o fogo como Ef~ e a i
cada um dos bens que nos é útil" (Sesto E., Adv. math., IX, 18; cir.
Cicer, De nw. d~um, ] 37.
118).

Hípias de Élide era ao contrário famoso pela sua cultura enciclopédica


e pelo vigor da sua memória. N, diálogo platónico Hípias Maior ele
próprio declara ser frequentemente enviado pela sua pátria como legado
para tratar de negócios com outra cidade; e gaba-se de ter ganho
grandes somas com o seu ensino. Compôs elegias e discursos de temas
vários, de que possuímos fragmentos escassamente importantes do ponto
de vista filosófico. Por um testemunho de Xenofonte (Mem., IV. 4.

5 segs.) que relata uma longa discussão entre ele e Sócrates. sabemos
que um dos seus temas preferidos era a oposição entre a natureza
(physis) e a lei (nownos). As leis não são uma coisa séria porque não
têm uniformidade e estabilidade e aqueles mesmos que as fizeram muitas
vezes as revogam. As verdadeiras leis são as que a própria natureza
prescreve e que, ainda que não sejam escritas "são válidas em cada país
e no mesmo modo".

111
Esta antítese entre as leis e a natureza torna-se o tema favorito da
geração mais jovem dos sofistas que muitas vezes se vale dela para
defender uma ética aristocrática ou directamente para tecer um elogio
da injustiça- Certo é que os sofistas, mostrando (como se disse já no §
25) a relatividade dos valores que regem a convivência humana e
recusando-se a proceder à investigação dos valores universais ou
absolutos eram levados a ver nas leis nada mais que convenções humanas,
mais ou menos úteis mas indignas de um reconhecimento obrigatório.
Antifonte, sofista, assegurava que todas as leis são puramente
convencionais, por isso contrárias à natureza e que o melhor modo de
viver é o de seguir a natureza, isto é de pensar no próprio útil.
reservando uma reverência puramente aparente ou formal às leis dos
homens (Diels, 87, fr. 44 A, col. 4). Polo e Calicles no Górgias,
Trasímaco na República sustentam que a lei da natureza é a lei do mais
forte e que as leis que os homens fazem valer na sua convivência são
convenções dirigidas a impedir os mais fortes de se valerem do seu
direito natural. Segundo a natureza, é justiça que o forte domine o
mais fraco e siga em todas as circunstâncias sem freio o talento
próprio. e isto acontece de facto quando um homem dotado de natureza
capaz rompe as cadeias da convenção e de servo se converte em senhor
(Górgias, 484 a; República, 1, 338 b segs.). Outra actividade dos
sofistas era a erística, isto é a arte de vencer nas discussões
impugnando as afirmações do adversário sem olhar à sua verdade ou
falsidade. No Eutidemo platónico, duas figuras menores dos sofistas,
Eutidemo e Dionisorodo, são mostrados em acção nalgumas atitudes
típicas do seu repertório. Um dos lugares comuns da eurística era o que
Platão recorda também no Ménon (80 d) e ao qual opõe a doutrina da
anamnesis: isto é, que

112

não se pode indagar nem aquilo que se sabe nem aquilo que não se sabe:
porque é inútil indagar sobre aquilo que se sabe e é impossível indagar
se não se sabe que coisa indagar. A erística foi certamente a
actividade inferior dos sofistas, aquela que mais contribuiu para os
desacreditar. Todavia, também essa fazia parte da sua bagagem: quando
se nega todo o critério objectivo de indagação e se reconhece a
omnipotência da palavra, abre-se o caminho também à possibilidade de
usar a própria palavra como puro instrumento de batalha verbal ou como
simples exercício de bravura polémica.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 24. Sobre o nome e conceito de Sofista, os testemunhos antigos em


Dieis, cap. 79, e a nota introdutória de M. UNTERSTEINER, Sofisti.
Testemunhos e fragmentos, texto grego, trad. -italiana e netag, I-III,
1949-54 (falta ainda o vol. IV).

Para a bibliografia ver as notas antepostas aos volumes de Untersteiner


ou ainda a obra do mesmo autor, Os Sofistas, Turim, 1949. Sobre o valor
da sofística na história da cultura grega. JAEGER, Paideía, 1, livre
II, cap. III. Sobre a lógica sofistica: PRANTL, Geschic7ite der Logik,
1, p. 11 segs.

§ 25. Os fragmentos de Protágoras em DiELs, cap. 80; UNTERSTEINER, cap.


2. Os discursos duplos, em DIELS, cap. 90; UNTERSTEINER, ca-p.
10. Bibliografia sobre Protágoras, em A. CAPUZI, Protágoras, Florença,
1955; S. ZEPPI, Protágoras e a Filosofia do seu tempo, Florença,
1961.

§ 26. Os fragmentos de G6rgias, em DIELS, cap. 82, e em UNTERSTEINER,


cap. 4. Para a bibliografia ver as obras já citadas.

§ 27. Os fragmentos de Pródico, em DIELS, cap. 84;


UNTERSTEINER, cap. 6; de Hipias, em DIELS, cap. 86; UNTERSTEINER, cap.
8; de Antifonte, in DIELS, cap. 87; de Trasímaco, em DiELs, cap. 85;
UNTM,SMNER, cap. 7.

Sobre todos ver a bibliografia nas obra.s já citadas.

113

ViI

SÓCRATES

§ 28. O PROBLEMA

A data do nascimento de Sócrates é determinada pela idade que tinha à


data do processo e da condenação. Nessa data (399) tinha setenta anos
(Plat., Ap., 175; Crit., 52 e); devia ter nascido portanto em 470 ou
nos primeiros meses de 469 a.C..
O pai, Sofronisco, era escultor; a mãe, Fenarete, parteira: ele próprio
comparou depois a sua obra de mestre à arte da mãe (Teet., 149 a).
Completou em Atenas a sua educação juvenil, estudou provavelmente
geometria e astronomia; e se não foi aluno de Anaxágoras (como queria
um testemunho antigo), conheceu certamente o escrito deste filósofo,
como se depreende do Fédon platónico (97 c). Só se ausentou de Atenas
por três vezes para cumprir os seus deveres de soldado e participou nas
batalhas de Potideia. Délios e Anfípolis. No Banquete de Platão,
Alcibíades fala de Sócrates na guerra como de um homem insensível à
fadiga e ao frio, corajoso, modesto e senhor de si mesmo no próprio
momento em que o exército era derrotado.

115

Sócrates manteve-se afastado da vida política. A sua vocação, a tarefa


a que se dedicou e a que se manteve fiel até ao final, declarando ao
próprio tribunal que se preparava para o condenar, que não a
abandonaria em caso algum, foi a filosofia; Mas ele entende a
investigação filosófica como um exame incessante de si próprio e dos
outros; a este exame dedicou todo o seu tempo, sem nenhum ensinamento
regular. Por esta tarefa, descurou toda a actividade prática e viveu
pobremente com sua mulher Xantipa e os filhos. Todavia, a sua
figura não tem nenhum dos traços convencionais de que a tradição se
serviu para delinear o carácter de outros sábios, por exemplo, de
Anaxágoras ou de Demócrito. A sua personalidade tinha qualquer coisa de
estranho (àtopon) e de inquietante que não escapava àqueles que dele se
aproximaram e o descreveram. A sua própria aparência física chocava o
ideal helénico da alma sábia num corpo belo e harmonioso (kaUagatos):
parecia um Sileno e isto estava em estridente contraste com o seu
carácter moral e o domínio de si mesmo que conservava em todas as
circunstâncias (Banq., 215,
221). Pelo aspecto inquietante da sua personalidade, foi comparado por
Platão à tremelga do mar que entorpece quem 'a toca: do mesmo modo
provocava a dúvida e a inquietação no ânimo daqueles que dele se
aproximavam (Mén., 80).1
Todavia, este homem que dedicou à filosofia a existência inteira e
morreu por ela, nada escreveu, É indubitavelmente o maior paradoxo da
filosofia grega. Não pode tratar-se dum facto casual. Se Sócrates nada
escreveu, foi porque defende que a pesquisa filosófica, tal como ele a
entendia e praticava, não podia ser levada por diante ou continuada
depois dele, por um escrito. O motivo autêntico da falta de actividade
do Sócrates escritor pode ver-se aflorado no Fedro (275 e) plató-

116

nico, nas palavras que o rei egípcio Thamus dirige a Theut, inventor da
escrita: "Tu ofereces aos alunos a aparência, não a verdade da
sabedoria; porque quando eles, graças a ti, tiverem lido tantas coisas
sem nenhum ensinamento, julgar-se-ão na posse de muitos conhecimentos,
apesar de permanecerem fundamentalmente ignorantes e serão
insuportáveis para os demais, porque terão não a sabedoria, mas a
presunção, da sabedoria". Para Sócrates que entende o filosofar como o
exame incessante de si e dos outros, nenhum escrito pode suscitar e
dirigir o filosofar. O escrito pode comunicar uma doutrina, não
estimular a pesquisa. Se Sócrates renunciou a escrever, isto foi devido
ainda à sua própria atitude filosófica e faz parte essencial de tal
atitude.

§ 29. AS FONTES

Esta renúncia porém coloca-nos perante o difícil problema de


caracterizar a personalidade de Sócrates através de testemunhos
indirectos. Possuímos três testemunhos principais: o de Xenofonte nos
Ditos memoráveis, de Sócrates, o de Platão que o faz falar como
personagem principal na maior parte dos seus diálogos, e o de
Aristóteles que lhe dedica breves e precisas alusões. A caricatura que
Aristófanes deu de Sócrates nas Nuvems como de um filósofo da natureza
que dá dos factos mais simples a explicação mais complicada e como um
sofista que converte os discursos mais fracos nos mais fortes e faz
triunfar os injustos sobre os justos, quis evidentemente representar no
personagem ateniense mais popular o tipo do intelectual inovador,
concentrando nele características contraditórias que pertenciam a
personagens reais diferentes (Diógenes de Apolónia e Protágoras). Essa
caricatura não tem portanto valor histórico.

117

Xenofonte, que era escassamente dotado de espírito filosófico, deu-nos


uma imagem extremamente pobre e mesquinha da personalidade de Sócrates;
nada no seu retrato justifica a enorme influência que Sócrates exerceu
sobre todo o desenvolvimento do pensamento humano. Por outro lado, a
personalidade de Sócrates vive poderosamente nos diálogos de Platão;
mas aqui nasce legitimamente a dúvida de que Platão pense e fale ele
próprio na figura de Sócrates e que portanto não possa encontrar-se nos
seus diálogos o Sócrates, histórico. Finalmente os testemunhos de
Aristóteles nada acrescentam a quanto já se encontra em Xenofonte e
Platão.

Durante um certo tempo, o próprio carácter insuficientemente filosófico


da apresentação de Xenofonte e o título da sua obra pareceram uma
garantia de fidelidade histórica, frente à evidência da transfiguração
a que Platão submeteu a figura do mestre, sobretudo nalguns diálogos.
Mas a brevidade das relações de Xenofonte com Sócrates, a ineficácia
evidente do ensino socrático sobre o seu carácter e sobre o seu modo de
viver (foi substancialmente um aventureiro) e o longo período de tempo,
decorrido entre o seu discípulo e a composição do seu escrito, fizeram
surgir a suspeita de que este escrito, mais que recolha fiel de
recordações socráticas, será uma composição literária, não isenta de
intuitos polémicos (sobretudo contra Antístenes, e fundado em boa parte
sobre escritos alheios, sem excluir os platónicos. Por outro lado,
também os testemunhos de Aristóteles parecem dependentes em boa parte
de Platão e talvez mesmo do próprio Xenofonte. De modo que a fonte
fundamental para a reconstrução do Sócrates histórico é ainda e sempre
Platão. O testemunho de Aristóteles e a representação de Xenofonte
(esta última na medida em que é corroborada pela primeira) fornecem
antes um critério para discernir e limitar aquilo que na com-

118

plexa figura que domina a obra de Platão pode efectivamente atribuir-se


ao Sócrates histórico. Assim não pode certamente atribuir-se a este
último a doutrina das ideias da qual não há indício em Xenofonte e, em
Aristóteles; e deve portanto excluir-se a interpretação de um certo
estudioso moderno que viu em Platão o historiador de Sócrates e
atribuiu, a este último o corpo central do sistema platónico e a Platão
apenas a crítica e a correcção de tal sistema, que se iniciam com o
Parménides.

§ 30. O "CONHECE-TE A TI MESMO E A IRONIA


"Sócrates chamou a filosofia do céu à terra," Estas palavras de Cícero
(Tusc., V, 4, 10) exprimem exactamente o carácter da investigação
socrática. Ela tem por objecto exclusivamente o homem e o seu mundo;
isto é, a comunidade em que vive. Xenofonte testemunha claramente a
atitude negativa de Sócrates frente a toda a pesquisa naturalística e o
seu propósito de manter-se no domínio da realidade humana. A sua missão
é a de promover no homem a investigação em torno do homem. Esta
investigação deve tender a colocar o homem, cada homem individual, a
claro consigo mesmo, a levá-lo ao reconhecimento dos seus limites e a
torná-lo justo, isto é solidário com os outros; Por isso Sócrates fez
sua a divisa délfica "conhece-te a ti mesmo" e fez do filosofar um
exame incessante de si próprio e dos outros: de si próprio em relação
aos outros, dos outros em relação a si próprio.

A primeira condição deste exame é o reconhecimento da própria


ignorância. Quando Sócrates conheceu a resposta do oráculo que o
proclamava o homem mais sábio de todos, surpreendido andou

119

a interrogar os que pareciam sábios e deu-se conta de que a sabedoria


deles era nula. Compreendeu então o significado do oráculo: nenhum dos
homens
sabe verdadeiramente nada, mas sábio apenas quem sabe que não sabe, não
quem se ilude com saber e ignora assim até a sua própria ignorância.

Na realidade só quem sabe que não sabe procurará saber, enquanto os que
crêem estar na posse dum saber fictício não são capazes da
investigação. não se preocupam consigo mesmos e permanecem
irremediàvelmente afastados da verdade e da virtude. Este princípio
socrático representa a antítese nítida da sofística. 1 Contra os
sofistas que faziam profissão de sabedoria e pretendiam ensiná-la aos
outros, Sócrates fez profissão de ignorância: o saber dos sofistas é um
não-saber, um saber fictício privado de verdade que dá apenas presunção
e jactância e impede de assumir a atitude submissa da investigação, a

digna dos homens meio de promoz nos outros essè reconhecimento da


própria ignorância, que é a condição da pesquisa, é a ironia. ironia é
a interrogação dirigida a descobrir no homem a sua ignorância, a
abandoná-lo à dúvida e à inquietação para obrigá-lo à pesquisa.A ironia
é o meio de descobrir a nulidade do ar fictício, de pôr a nu a
ignorância fundamental que o homem oculta até a si próprio com os
ouropéis de um saber feito de palavras e de vazio. A ironia é a arma de
Sócrates contra a vaidade do ignorante que não sabe que é tal e por
isso se recusa a examinar-se a si mesmo e a reconhecer os limites
próprios. Esta é a sacudidela que o torpedo tremelga marinho comunica a
quem a toca e sacode pois o homem do torpor e lhe comunica a dúvida que
o encaminha para a busca de si mesmo. Mas precisamente por isso é
também uma libertação.

120

Sob este aspecto da ironia como libertação do saber fictício, isto é,


daquilo que oficialmente ou comummente passa por saber ou por ciência,
insistiu justamente Kierkegaard no Conceito da ironia. Trata-se
certamente duma função negativa, do aspecto limitante e destrutivo da
filosofia socrática, mas precisamente por isso de um aspecto que é
indissolúvel da filosofia como investigação e que portanto contribui
para fazer de Sócrates o símbolo da filosofia ocidental.

31. A MAIÊUTICA

SóCrates não se propõe portanto comunicar uma doutrina ou complexo de


doutrinas. Ele não ensina nada: comunica apenas o estímulo e o
interesse pela pesquisa] Em tal sentido compara, no Teeteto platónico,
a sua arte à da mãe, a parteira Fenarete. A sua arte consiste
essencialmente em averiguar por todos os meios se o seu interlocutor
tem de parir algo fantástico e falso ou genuíno e verdadeiro. Ele
declara-se estéril de sabedoria. Aceita como verdadeira a censura que
muitos lhe fazem de saber -interrogar os outros, mas de nada
saber responder ele próprio. A divindade que o obriga a fazer de
parteiro proíbe-o de dar à luz: E ele não tem nenhuma descoberta a
ensinar aos outros e não pode fazer outra coisa senão ajudá-los
no seu parto intelectual. E os outros, aqueles que dele se aproximam, a
princípio parecem completamente ignorantes, mas depois a sua pesquisa
torna-se fecunda, sem que todavia aprendam nada dele.

Esta arte maiêutica não é na realidade senão a arte da pesquisa em


comum. O homem não pode por si só ver claro em si próprio. A pesquisa
que o concerne não pode começar e acabar no recinto

121

fechado da sua individualidade: pelo contrário só pode ser o fruto de


um dialogar continuo com os outros, como consigo mesmo. Aqui está
verdadeiramente a sua antítese polémica com a sofística. A sofística é
um individualismo radical. O sofista não se preocupa com os outros
senão para extorquir, a todo o custo e sem preocupar-se com a verdade,
o consenso que lhe assegura o sucesso; mas nunca chega à sinceridade
consigo próprio e com os outros. No Górgias platónico, Sócrates compara
a sofística à arte da cozinha que procura satisfazer o paladar mas não
se preocupa se os alimentos são benéficos para o corpo! A maiêutica, é,
pelo contrário, semelhante à medicina que não se preocupa se causa
dores ao paciente contanto que conserve ou restabeleça a saúde.

Ao individualismo sofístico, Sócrates contrapõe, não o conceito de um


homem universal, um homem-razão que não tenha já nenhum dos caracteres
precisos e diferenciados do indivíduo, mas o vínculo de solidariedade e
de justiça entre os homens, pelo qual nenhum deles pode libertar-se ou
alcançar qualquer coisa de bom por si só, mas ca um está vinculado aos
outros e só pode progredir com a sua ajuda e ajudando-os por sua vez. O
universalismo socrático não é a negação do valor dos indivíduos: é o
reconhecimento de que o valor do indivíduo não se pode compreender ;nem
realizar senão nas relações entre os indivíduos/ Mas a relação entre
os indivíduos, se é tal que-garanta a cada um a liberdade da pesquisa
de si, é uma relação fundada na virtude e na justiça. E é aqui,
portanto, que o interesse de Sócrates, enquanto entende promover em
cada homem a investigação de si, se
dirige naturalmente ao problema da virtude e da justiça.

122

§ 32. Sócrates: CIÊNCIA E VIRTUDE


A busca de si é ao mesmo tempo busca de verdade. Por outras palavras :
saber e verdade é simultaneamente investigação do saber e da
virtude. Saber e virtude identificam-se, segundo Sócrates o homem não
pode tender senão para',,-saber aquilo que deve fazer ou aquilo que
deve ser: e tal saber é a própria virtude. Este é o princípio
fundamental da ética socrática, princípio que vem expresso, na forma
mais extrema, no Protágoras de Platão. A maior parte dos homens crêem
que sabedoria e virtude são duas coisas diferentes, que o saber não
possui nenhum poder directivo sobre o homem, e que o homem, ainda
quando sabe o que é o bem, pode -ser vencido pelo prazer e afastar-se
da virtude. Mas para Sócrates uma ciência que seja incapaz de dominar o
homem e que o abandone à mercê dos impulsos sensíveis, não é tão-pouco
uma ciência. Se o homem se entrega a estes impulsos, isto significa que
ele sabe ou crê saber que tal seja a coisa mais útil ou mais
conveniente para ele. Um erro de juízo, a ignorância portanto, é a base
de toda a culpa e de todo o vício. É um mau cálculo o que faz o homem
preferir o prazer do momento, não obstante as consequências más
ou dolorosas que daí possam derivar; e um cálculo errado é fruto de
ignorância. Quem sabe verdadeiramente, faz -bem os seus
cálculos, escolhe em cada caso o prazer melhor, aquele que não pode
ocasionar-lhe nem dor nem mal; e esse só o prazer da virtude.

Portanto, para ser virtuoso, não é necessário que o homem renuncie ao


prazer. A virtude não é a negação da vida humana, mas a vida humana
perfeita; compreende o prazer e é antes o prazer máximo. A diferença
entre o homem virtuoso e o homem que o não é, está em que o primeiro
sabe
123

fazer o cálculo dos prazeres e escolher o maior; o segundo não sabe


fazer este cálculo e entrega-se ao prazer do momento. O utilitarismo
socrático é assim um outro aspecto da polémica contra os sofistas. A
ética dos sofistas oscilava entre um franco hedonismo como o
encontramos defendido por Antifonte, por exemplo, e por alguns
interlocutores dos diálogos platónicos, e aquela espécie de activismo
da virtude que foi a tese de Pródico. Para Sócrates, uma e outra destas
duas tendências são insustentáveis. A virtude não é puro prazer nem
puro esforço, mas cálculo inteligente. Neste cálculo, a profissão ou a
defesa da justiça não pode encontrar lugar porque a injustiça não é
mais que um cálculo errado.

Contra a identificação socrática de ciência e virtude, já Aristóteles


observava que, dessa maneira, Sócrates reconduz a virtude à razão,
enquanto que se a virtude não é tal senão com a razão, ela não se
identifica, com a própria razão (Et. Nic., 13, 1144 J

b). Aceite por Hegel (Geschichte der Phil., I, cap. II, B, 2 a), esta
critica tornou-se muito comum na historiografia filosófica e está,
entre outras coisas, no fundamento da desvalorização que Nietzsche
intentou da figura de Sócrates quando quer entrever nele a tentativa de
reduzir o instinto à razão e portanto de empobrecer a vida (Ecee Homo).
Mas na verdade tudo aquilo que se pode censurar a Sócrates é o não ter
feito as distinções entre as actividades ou faculdades humanas que
Platão e Aristóteles introduziram na filosofia.
Para Sócrates, o homem é ainda uma unidade indivisa. O seu saber não é
apenas a actividade do seu intelecto ou da sua razão, mas um total modo
de ser e de comportar-se, o empenhar-se numa investigação que não
reconhece limites ou pressupostos fora de si, mas encontra por si a sua
disciplina, Segundo Sócrates, a virtude é ciência, em primeiro lugar
124

porque não se pode ser virtuoso conformando-se simplesmente com as


opiniões correntes e com as regras de vida já conhecidas. É ciência
porque é investigação, investigação autónoma dos valores sobre que deve
fundar-se a vida.

§ 33. A RELIGIÃO DE SóCRATES

Para Sócrates o filosofar é uma missão divina, uma -tarefa confiada por
um mandato divino (Ap.,
29-30). Fala de um demónio, de uma inspiração divina que o aconselha em
todos os momentos decisivos da vida. Interpreta-se comummente este
demónio como a voz da consciência; na realidade é o sentimento de uma
investidura recebida do alto, própria de quem abraçou uma missão com
todas as suas forças. Por isso o sentimento da divindade está sempre
presente na investigação socrática, como sentimento do transcendente,
daquilo que está para lá do homem e é superior ao homem, e do alto o
guia e lhe oferece uma garantia providencial.

Certamente a divindade de que fala Sócrates não é a da religião popular


dos Gregos. Ele considera que o culto religioso tradicional faz parte
dos deveres do cidadão e por isso aconselha cada qual a ater-se ao
costume da própria cidade e ele próprio se atém a ele. Mas admite os
deuses só porque admite a divindade: neles não vê mais que encarnações
e expressões do único princípio divino, ao qual se podem pedir não já
bens materiais, mas o bem, aquele que só é tal para o homem, a virtude.
E na realidade a sua fé religiosa não é outra coisa senão a sua
filosofia.

Esta religiosidade socrática não tem, óbviamente, nada a ver com o


cristianismo de que Sócrates, na velha historiografia, tem sido
frequentemente considerado o precursor Não se pode falar
125
de cristianismo se se Prescinde da revelação; e nada é mais estranho ao
espírito de Sócrates do que um saber que seja ou pretenda ser de
revelação divina. Aquilo que a divindade ordena, segundo Sócrates é o
empenho na investigação e o esforço para a justiça; í' aquilo que ela
garante é que "para o homem honesto não existe mal nem na vida nem na
morte" (Ap., 41 c). Mas, quanto à verdade e à virtude, o homem deve
procurá-la e realizá-la por si.

§ 34. A INDUÇÃO E O CONCEITO

Aristóteles caracterizou a investigação de Sócrates do ponto de vista


lógico. "Duas coisas-disse ele - (Met., XIII 4, 1078 b) se podem com
boas razões atribuir a Sócrates: os raciocínios indutivos e a definição
do universal (katholon), e ambas se referem ao princípio da ciência." O
raciocínio indutivo é aquele que, do exame de um certo número de casos
ou afirmações particulares, conduz a uma afirmação geral que um
conceito exprime. Por exemplo, no Górgias, das afirmações de que quem
aprendeu arquitectura é arquitecto, quem aprendeu música é músico, quem
aprendeu medicina é médico, Sócrates chega à afirmação geral de que
quem aprendeu uma ciência é tal qual foi tornado pela' mesma ciência. O
raciocínio indutivo dirige-se, portanto, para a definição do conceito;
e o conceito exprime a essência ou a natureza de uma coisa, aquilo que
verdadeiramente a coisa é (SEN., Mem., IV, 6, 1).

Este procedimento, nota ainda Aristóteles, foi aplicado por Sócrates


apenas nos argumentos morais. Efectivamente ele não se ocupa da
natureza: nos argumentos morais procurou o universal e assim levou a
sua investigação para o terreno da ciência
126

(Met., 1, 6, 987 b 1). Portanto, a Sócrates cabe o mérito de ter sido o


primeiro a organizar a investigação segundo um método propriamente
cientifico.
O saber, de que quer despertar a necessidade e o interesse nos homens,
deve ser uma ciência, alcançada segundo um método rigoroso. E
efectivamente só uma ciência deste género, com a sua perfeita
objectividade, permite aos homens entenderem-se e associarem-se na
investigação comum. Só como ciência, a virtude é ensinável (Prot., 361
b).

Foi posto em dúvida o valor do testemunho aristotélico sobre o


significado lógico da investigação socrática. As afirmações de
Aristóteles derivariam das de Xenofonte (Mem., IV, 6) e estas por sua
vez das platónicas (Fedro., 262 a-b). Por outro lado, ainda que se
atribua todo o valor aos testemunhos de Aristóteles e de Xenofonte, não
se seguiria daí que caiba a Sócrates o título de inventor do conceito,
pois que investigou apenas conceitos ético-práticos e estes exprimem
não aquilo que realmente é, mas aquilo que deve ser: a sua obra
científica não apontava para o conhecimento, mas era reflexão crítico-
normativa em torno do fazer e do viver do homem. Ora precisamente
aquilo que estas considerações têm de verdadeiro revela o mérito
indubitável de Sócrates como iniciador da investigação científica e
confirma o testemunho de Aristóteles. E, em primeiro lugar, ainda que
Xenofonte e Aristóteles tivessem repetido substancialmente os
testemunhos de Platão, este próprio facto equivaleria à confirmação dos
mesmos por parte de homens que tinham maneira de comprovar a sua
exactidão, Xenofonte fora aluno de Sócrates e ainda que os anos
decorridos e a sua escassa capacidade filosófica o tornassem pouco apto
para compreender a personalidade do mestre, não se pode crer que o
tornassem incapaz até de compreender o método da sua investigação.
Quanto a Aristóteles
127

é difícil supor que se teria limitado a reproduzir o testemunho de


Xenofonte se este estivesse em contradição com uma tradição que, dentro
e fora do ambiente platónico, era viva e operante.

Mas a questão fundamental é a do significado que o conceito tem para


Sócrates. Indubitavelmente os conceitos que Sócrates elaborou são todos
de carácter ético-prático e referem-se ao dever ser e não à realidade
de facto. Mas qualquer conceito, teorético ou prático, tem por objecto
a essência das coisas, o seu ser permanente ou a sua substância. Que
coisa seja a substância ou a essência é depois o problema que Sócrates
deixaria em herança aos seus sucessores e que constitui o tema
fundamental da investigação de Platão e de Aristóteles.
§ 35. A MORTE DE SÓCRATES

A influência de Sócrates exercera-se já em Atenas sobre toda uma


geração, quando três cidadãos, Meleto, Anito e Licone o acusaram de
corromper a juventude ensinando crenças contrárias à religião -do
estado. A acusação tinha escassa consistência e
teria ficado em nada, se Sócrates tivesse feito qualquer concessão aos
juízes. Não quis fazer nenhuma. Pelo contrário, a sua defesa foi uma
exaltação da tarefa educativa que havia empreendido relativamente aos
atenienses. Declarou que em caso algum abandonaria esta tarefa, à qual
era chamado por uma ordem divina. Por uma pequena maioria, Sócrates foi
reconhecido culpado. Podia ainda partir para o exílio ou propor uma
pena que fosse adequada ao veredicto. Em vez disso, ainda que
manifestando-se disposto a pagar uma multa de três mil dracmas,
declarou orgulhosamente que se sentia merecedor de ser alimentado a
expensas públicas no Pritaneu como se fazia aos beneméritos

da cidade. Seguiu-se então. com mais forte maioria, a condenação à


morte que fora pedida pelos seus acusadores.

Entre a condenação e a execução decorreram trinta dias porque uma


solenidade sagrada impedia naquele período as execuções capitais.
Durante este tempo os amigos organizaram a sua fuga e procuraram
convencê-lo; mas recusou. Os motivos desta recusa são expostos no
Críton platónico: Sócrates quer dar com a sua morte um
testemunho decisivo a favor do seu ensinamento. Vivera até então
ensinando a justiça e o respeito pela lei; não podia com a fuga ser
injusto para com as leis da sua cidade e desmentir assim, no momento
decisivo, toda a sua obra de mestre. Por outro lado, não temia a morte.
Ainda que não tivesse uma absoluta certeza da imortalidade da alma.
nutria a esperança de uma vida depois da morte que fosse para os homens
justos melhor do que para os maus. Tinha setenta anos; sentia que
completara a sua missão, que lhe permanecera fiel toda a sua vida e que
devia dar-lhe ainda, com a morte, a última prova de fidelidade. As suas
últimas palavras aos discípulos foram ainda um incitamento à
investigação: "Se tiverdes cuidado com vós próprios, qualquer coisa que
façais será grata a mim, aos meus e a vós mesmos, ainda que agora não
vos compremetais em nada. Mas se pelo contrário não vos preocupardes
com vós próprios e não quiserdes viver de maneira conforme àquilo que
agora e no passado vos tenho dito, fazer-me agora muitas e solenes
promessas não servirá de nada" (Fed., 115 b).

Se a Grécia antiga foi o berço da filosofia porque pela primeira vez


realizou a investigação autónoma, Sócrates encarnou na sua pessoa o
espírito genuíno da filosofia grega porque realizou no mais alto
grau a exigência daquela investigação. No empenho de uma investigação
conduzida com
129
método rigoroso e incessantemente continuado, pôs o mais alto valor da
personalidade humana: a virtude e o bem. Tal é de facto o significado
daquela identificação entre a virtude e a ciência, que foi conhecida
tantas vezes por intelectualismo. A ciência

é para Sócrates a investigação racional ente conduzida e a virtude é a


forma de vida propriamente humana. a sua identidade é a significado não
só da problemas, da própria personalidade de Sócrates.
NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 28. os restos de uma Vida de Sócrates, escrita por Aristoxerio,


discípulo de Aristóteles, encontram-se em MuLhER, Fragm. hist. graec.,
11, p. 280 se98Encontram-se outras noticias nos Memoráveis e na
Apologia de Xenofonte e nos diálogos de Platão, citados no texto.
Existe, além disso, a Vida de DIOGENES LAIÉRCIO, 11, 18 segs.. Para a
edição dos escritos de Xenofonte e de Platão, relativos a Sócrates, ver
notas bibliográficas dos capitulos 8 e 9.

§ 29. Atribuiram valor histórico à caricatura de Aristófanes:


ClITAPELLI, O naturalismo de Sócrate,9 e as primeiras nuvens de
Aristóla~, in "Rend. Ace. Lincei, CI. Seienze morali", 1886, p. 284
segs.; Novas investigações sobre o naturalismo de 3ócrate8,
In "Archv. für Gesch. der Phil.", IV, p. 369 sgs.; T-AyLoR, Varia
socratíca, Oxford, 1911, p. 129 s,-s..

Seguiu preferentemente Aristóteles para a interPretaçço de


Sócrates: K. JOFJ,, Der echte und der xe-nc-fonteus Sokrates,
Berlim, 1893-1901, ao passo que seguiu Xenofonte A. DORING, Die Lehre
des Sokrates ais soziales Reformsystem, Mónaco, 1895.-J. BURNET, Greek
Philosophy, 1, cap. 11, e A. E. TAYLOR, VariO s~atica, Oxford, 1911;
ID., Socrates, Londres, 1935, trad. itali., Florença, 1951; ID., Plato,
Londres, 1926 (4.* edição, 1937) consideram que Platão foi apena-, *
historiador de Sócrates. Seguiram preferenternenU * representação de
Xenofonte, servindo-se para valerizÁ-la dos testemunhos de Aristóteles:
ZELLER, V01. 11,
2; GompERz, vol. III, p. 46 sgs.; WILLAMOWITZ, Platon, I, p. 94 sgs. e
outros historiadores dependentes destes. ENRICO MAIER, Sokrates, sein
Werk und seine

130

geachichtUche SteUung, Tubinga, 1913 (,trad. ital., Florença, 1944),


nega qualquer valor histórico ao testemunho de Aristóteles que
considera dependente em tudo de Pistão e de Xenofonte, reduz a obra
deste último a uma pura composição Uter&ria (pelos motivos repetidos no
texto) e funda-se sobretudo em Platão pela sua feliz reconstrução da
figura de Sócrates. -Sobre as diversas interpretações que têm sido
dadaa ao significado filosófico da figura de Sócratea e para a
bibliografia relativa: PAOLO ROSSI, Per una storia della 8toríografia
&ocratica, in Probemi di atoriografia filo"fioa, ao cuidado de A.
BANFI, Milão, 1951. Con~ frontar entre outros: O. GIGON, S., Berna,
1947; V. DE MAGAIMÃES-VILHENA, Le problèm-- de S.; Le S. historiqi&e et
le S. de Platon, Paris, 1952; A. H. CHROUST, S. Man and Myth, Londres,
1956; J. BRUN, S., Paris,
1960.

§ 30. Para a missão de Sócrates, ver a Apologia de Platão,


especialmente cap. 17. Para o "conhece-te a ti mesmo", o Alcib~ 1, 129
sgs. Para a ironia, Mémm, SO. Para o poder de libertação da ironia,
Sofísta, 230.

§ 31. Sobre a malêutica, especialmente Teeteto,


148, 151, 210.
§ 32. Sobre a Identidade da ciência e virtude e sobre o utilitarísmo de
Sócrates, cfr. o Protágor", sobre que é fundada a exposição deste
parágrafo. % 33. Sobre o demónio socrático, confr. especialmente
Apologia, 29, 30. Mas as alusões de Sócrates ao seu demónio são
frequentes em todos os diálogos socráticos de Platão. Mais
frequentemente, o demónio age negativamente, dissuadindo Sócrates de
realizar uma acção qualquer. Mas o demónio principalmente chama-o para
a sua tarefa de examinar os outros e a si próprio. Sobre as Ideias
religiosas de Sócrates: Xenoffonte, Men~abili, 1, 4; IV, 3. O demónio é
compreendido como a voz da consciência por ZELLER e GOMPM, loc. cit..
Ver sobre a insuficiência desta interpretação- MAiER, parte UI, cap. 4.

§ 34. A critica do valor do testemunho de Aristóteles está in MAiER,


op. cit., vol. I, parte I, cap. 3; parte 11, cap. IV. A conclusão que
nega a Sócrates o mérito de descobridor do conceito com os argu-

131

mentos discutidos no texto, estã a p. 283 da traduÇAO Itallana.

§ 35. As vIciasitudes do processo de Sócrates encontram-se na Apologia


de Platão e na de Xenofonte. O Críton expõe a atitude de Sócrates
frente ao projecto de fuga preparado pelos amigos. O final do Pé~ narra
as últimas horas de S6crates e a sua morte.

132

VIII

AS ESCOLAS SOCRÁTICAS

§ 36. XENOFONTE

Nascido em 440-39, e morto com 80-90 anos, Xenofonte não foi um


filósofo, mas antes um homem de acção, especialmente competente em
assuntos militares e em questões económicas. Conhecido principalmente
por ter dirigido a retirada dos dez mil gregos que participavam na
expedição de Ciro contra o irmão Artaxerxcs para a conquista do trono
da Pérsia, retirada que ele narrou no An~s, Xenofonte pertence à
história da filosofia por Os Ditos Memoráveis de Sócrates e por outros
escritos menores nos quais se faz sentir a influência do ensinamento de
Sócrates. Vimos que os Memoráveis não oferecem um quadro exaustivo da
personalidade de Sócrates. A Apologia de Sócrates é a continuação dos
Memoráveis e pretende ser a defesa pronunciada por Sócrates ante os
juízes. Outros escritos que provam o diletantismo filosófico de
Xenofonte são A Ciropedia. uma espécie de romance histórico que tende a
desenhar em
133

Ciro o tipo ideal do tirano iluminado; o diálogo intitulado Gerone que


tem um intento análogo; e o Banquete, escrito provavelmente à imitação
do platónico no qual aparece também a figura de Sócrates. Nenhum
enriquecimento ou desenvolvimento original deu Xenofonte à doutrina de
Sócrates.

Entre os demais discípulos de Sócrates parece que Ésquines escreveu


sete diálogos de carácter socrático que não chegaram até nós. Também a
Simias e, a Cebes os dois interlocutores do Fédon platónico, se
atribuem escritos de que nada se sabe.

Quatro discípulos de Sócrates, além de Platão, são fundadores de


escolas filosóficas: Euclides da escola de Megara; Fédon da de Elida;
Antístenes da Cínica; Aristípo da Cirenaica. Mas da escola de Fédon, a
qual foi devida a Menedemo de Eretria, que sucedeu a Fédon, se chamou
Eretríaca, nada sabemos.

Cada uma das três outras escolas socráticas acentua um aspecto do


ensinamento de Sócrates, descurando ou negando os outros. A escola
cínica coloca o bem na virtude e repudia o prazer. A cirenaica situa o
bem no prazer e proclama-o como o único fim da vida. A megárica acentua
a universalidade do bem até o subtrair à esfera do -homem e a
identificá-lo com o ser de Parménides.

§ 37. A ESCOLA MEGÁRICA

Euclides de Megara (não confundir com o matemático Euclides que viveu e


ensinou em Alexandria cerca de um século mais tarde), depois da morte
de Sócrates, voltou à sua cidade natal e aqui procurou continuar com o
seu ensino a obra do mestre. Parece que pertenceu à primeira geração
dos discípulos de Sócrates e que não viveu mais de um decénio depois da
sua morte. Outros represen-

134

tantes da escola são Eubulídes, de Mileto, o adversário de Aristóteles;


Diodoro Crono (morto em
307 a.C.) e Estilpon que ensinou em Atenas por volta de 320.

A característica da escola megárica é a de unir o ensino de Sócrates


com a doutrina eleática. Euclides considerava que um só é o Bem e é a
virtude que é sempre idêntica a si própria apesar de ser chamada com
muitos nomes: Sabedoria, Deus, Intelecto, etc. Ao mesmo tempo negava a
realidade de tudo aquilo que é contrário ao bem. E como o conhecimento
do bem é a virtude, admitia que não há mais que uma virtude e que as
várias virtudes não são mais que diversos nomes da mesma.

Para afirmarem a unidade, os Megáricos, seguindo as pisadas dos


Eleatas, repudiavam completamente a sensibilidade como meio de
conhecimento e prestavam fé exclusivamente à razão. Consequentemente,
como os Eleatas, negavam a realidade do múltiplo. do devir e do
movimento; e desenvolveram uma dialéctica, semelhante à de Zenão de
Eleia, destinada a reduzir ao absurdo toda a afirmação que implicasse a
realidade do múltiplo, do devir e do movimento.

Contra a multiplicidade, usaram argumentos, desenvolvidos


sofisticamente, que se tornaram famosos. Eubulides, usou entre outros o
argumento do sorites (ou montão): tirando um grão de um montão, o
montão não diminui; nem sequer tirando-os todos um a um (DioG. L., VII,
82). O mesmo argumento se repetia para os cabelos ou para a cauda de um
cavalo (argumento do cavalo: Cicer., Acad., 11, 49: Horácio, Ep. II,
I). À mesma negação de qualquer multiplicidade se encaminha a crítica
dos megáricos sobre a possibilidade do juízo. Segundo Estilpon, é
impossível atribuir um predicado ao sujeito e dizer, por exemplo, que
"o cavalo corre". Efectivamente o ser do cavalo e o
135

ser do que corre são diferentes e definimo-los diferentemente: não se


pode portanto identificá-los como se faz na proposição. Por outro lado,
se fossem idênticos. isto é, se o correr fosse idêntico ao cavalo, como
se poderia atribuir o mesmo predicado de correr também ao leão e ao
cão? Admitida uma multiplicidade qualquer ou como composição de partes
(como no argumento do sorites) ou como diversidade de predicados,
segue-se daí o absurdo; e assim fica demonstrada a falsidade de tal
admissão.

Os Megáricos admitiram também argumentos que não têm em mim a redução


ao absurdo do múltiplo mas pertencem ao género daqueles que hoje se
chamam antinomias ou paradoxos, isto é argumentos indecidíveis, no
sentido de que não se pode decidir sobre a sua verdade ou falsidade.
O mais famoso de tais argumentos é o de mentiroso que vem referido
assim por Cícero: "Se tu dizes que mentiste, ou dizes a verdade e então
mentiste ou dizes o falso e então dizes a verdade" (Acad., IV, 29, 96).
Se alguém diz "menti" (sem nenhuma limitação) faz uma asserção que
concerne todas as suas asserções compreendida a que enuncia neste
momento; mas se mentiu ao dizer "menti" isto significa que diz a
verdade; e se diz a verdade quer dizer que mentiu e assim por diante. A
base do argumento consiste portanto em fazer asserções desprovidas de
limitações que concernem todos os casos, compreendido aquele
constituído pela própria asserção: noutros termos, consiste no uso
autoreflexivo da noção "todos" considerada inclusiva da própria
asserção. Argumentos do género são discutidos também na lógica
contemporânea. Na antiguidade, discutiram-nos, além dos Megáricos, os
Estóicos: e na Idade Média a discussão deles fez parte integrante da
lógica terminística que os chamava insolúveis (Insolubilia).

136

Contra o devir e o movimento, os Megáricos por obra de Diodoro, Crono,


negaram que houvesse potência quando não há acto; por exemplo, quem não
constrói não tem o poder de construir. Este princípio suprime o
movimento e o devir porque (como nota Aristóteles) quem está em pé
estará sempre em pé e quem está sentado estará sempre sentado, sendo
impossível levantar-se a quem não tem o poder de levantar-se. O
argumento de Diodoro Crono (dito o argumento vitorioso) afirma que só
aquilo que se verificou era possível, pois que se fosse possível aquilo
que nunca se verifica, do possível resultaria o impossível. O argumento
leva a admitir que tudo aquilo que acontece deve necessariamente
acontecer, e que a própria imutabilidade que existe para os factos
passados existe também para os futuros. anda que não pareça. Brincando
com este argumento, Cícero escrevia a Varrão: "Saberão que se me fazes
uma visita, essa visita é uma necessidade, pois, se não o fosse,
contar-se-ia entre as coisas impossíveis." Diodoro retomava pois,
reelaborando-os, os argumentos de Zenão contra o movimento.

Estilpon colocava o ideal do sábio na impassibilidade (apatheia) e


considerava que o sábio se basta a si próprio e por isso não tem
necessidade de amigos.

§ 38. A ESCOLA CINICA. ANTISTENES

O fundador da escola cínica é Antístenes de Atenas que foi primeiro


discípulo de Górgias, depois de Sócrates e após a morte deste ensinou
no Ginásio Cinosargos. O nome da escola deriva do género de vida dos
seus sequazes: o epíteto de cães indicava o seu ideal de vida conforme
à simplicidade (e à desfaçatez) da vida animal.
137
Antístenes escreveu ao que parece (mas não nos chegou quase nada), um
livro Sobre a natureza dos animais, no qual provavelmente tirava dos
animais modelos ou exemplos para a vida humana; e compôs escritos sobre
personagens homéricos (Ajax, Ulisses) ou mitos (Defesa de Orestes). Mas
a figura que Antístenes e os outros cínicos principalmente exaltavam
era a de Hércules que é precisamente o título de um outro escrito de
Antístenes. Hércules, superando fadigas desmedidas e vencedor de
monstros, é o símbolo do sábio cínico que vence prazeres e dores e
sobre uns e outros afirma a sua força de ânimo.

Antístenes concordava com os Megáricos ao considerar impossível todo o


juízo que não fosse a pura e simples afirmação de uma' identidade.
Platão que alude a Antístenes no Sofista (215 b-c), incluindo-o com
certo desprezo entre "os, velhos que começaram tarde a aprender",
testemunha-nos que ele considerava impossível afirmar, por exemplo, que
"o homem é bom" porque isso equivaleria a dizer que o homem é ao mesmo
tempo um (homem) e múltiplo (homem e bom); e queria portanto que se
dissesse apenas "o homem homem" e "o bom bom". Aristóteles confirma o
testemunho de Platão: "Antístenes professava a estulta opinião de que
de nenhuma coisa se possa dizer mais que o seu nome próprio e que por
isso não pode dizer-se mais que um só nome de cada coisa individual."
(Met., V, 29, 1024 b, 32). Disto derivaria -nota Aristóteles-que é
impossível contradizer e é impossível até dizer o faise,-,
efectivamente ou se fala da própria coisa e não nos podemos servir
senão do seu próprio nome e não há contradição ou se fala de duas
coisas diferentes e tão-pouco neste caso é possível a contradição.
Segundo este ponto de vista, a doutrina platónica das ideias como
realidade universal devia parecer inconcebível, dado
138

que para Antístenes a realidade é sempre individual. e até, como


veremos de seguida, corpórea; e além dela não há mais que o nome
próprio que a indica: não subsiste nenhum universal. De facto teria
observado a Platão: "Ó Platão, vejo o cavalo mas não a cavalidade". Ao
que Platão teria respondido: "Porque não tens olhos para vê-la"
(Simpl., Cat, 66 b, 45).

Antístenes foi o primeiro que considerou a definição flogos) como a


expressão da essência de uma coisa: "a definição é aquilo que exprime
aquilo que é ou era." Mas a definição só é possível das coisas
compostas, não dos elementos de que resultam. Cada um destes elementos
pode ser unicamente nomeado, mas não caracterizado de outro modo, os
compostos, pelo contrário, ao constarem de vários elementos, podem ser
definidos entrelaçando entre si os nomes destes elementos (Arist.,
Met., VIII, 3, 1043 b, 25).

A Antístenes parece que se referem também as alusões do Sofista e do


Teeteto aos homens "que não acreditam que haja outra coisa senão aquilo
que se pode apertar com as mãos todas" isto é, aos materialistas que
não admitem que não haja mais realidade que a corpórea.
O único fim do homem é a felicidade e a felicidade está no viver
segundo a virtude. A virtude é concebida pelos cínicos como
inteiramente suficiente por si mesma. Não existe outro bem fora dela. O
que os homens chamam bens e em primeiro lugar o prazer, são males
porque distraem ou afastam da virtude. "Quisera antes ser louco do que
gozar", dizia Antístenes. Por isso o homem deve procurar libertar-se
das necessidades que o escravizam. Deve também libertar-se de todo o
vínculo ou relação social e bastar-se absolutamente a si próprio.
Contra a religião tradicional, Antístenes afirmou que "segundo as leis,
os deuses são muitos,
139

mas orientando a natureza há um só deus" (Cícero, De nat. deor., 1. 13,


32); afirmação que provavelmente não tinha o significado monoteístico
que seríamos tentados a dar-lhe, mas exprimia apenas a exigência
universal e panteística de que a divindade está presente em toda a
parte.

§ 39. DIÓGENES

Diógenes de Sinope, que foi discípulo de Antístenes em Atenas e dali


passou a Corinto onde morreu muito velho em 323 a.C., foi chamado
(talvez por Platão) o Sócrates louco. Este apelativo revela o carácter
do personagem. Ele levou ao extremo o desprezo característico da escola
cínica por todo o costume, hábito ou convenção humana e quis realizar
integralmente aquele retorno à natureza que é o ideal da escola cínica.
Não nos chegou quase nada dos seus sete dramas e dos seus escritos em
prosa (entre os quais uma República).

A lenda apoderou-se dele, atribuindo-lhe um grande número de anedotas e


de características que provavelmente nada têm de histórico. Certamente
não habitou sempre num tonel, nem sempre viveu como mendicante. Mas a
sua oposição a todos os usos e às convenções humanas era radical. Diz-
se que foi o primeiro a usar a capa de tecido grosseiro que servia
também de coberta, a sacola onde trazia o alimento e o bordão, que
depois se tornaram os distintivos dos Cínicos na sua vida de
mendicantes (Diog. L., VI, 22). Diógenes defendia a comunidade das
mulheres e até a dos filhos; declarava-se cidadão do mundo e
manifestava em todas as circunstâncias da vida aquela desvergonha que
se tornou proverbial entre os Cínicos. Aqueles que para afirmar a força
de ânimo do homem entendiam reconduzi-lo à naturalidade primitiva da
140

vida animal. pouca conta podiam fazer do saber e da ciência; e


verdadeiramente neste ponto, a escola cínica foi gravemente infiel ao
ensinamento socrático que na investigação científica reconhecia a
verdadeira vida do homem.

No numeroso bando dos Cínicos - mostram todos monotonamente os mesmos


traços e agitam furiosamente capas e sacolas para exibir uma força de
ânimo que Sócrates ensinara dever alcançar-se com a serena e paciente
investigação científica -, distingue-se Cratete, um tebano de nobre
família que foi seguido na vida de mendicante pela mulher Hiparquias.
Compôs poesias satíricas e trágicass onde celebrava o cosmopolitismo e
a nobreza.

§ 40. A ESCOLA CIRENAICA. ARISTIPO


O fundador da Escola Cirenaica é Aristipo de Cirena. Nascido por volta
de 435, foi para Atenas depois de 416 e aqui conheceu e frequentou
Sócrates. Depois da morte dele ensinou em várias cidades da Grécia e
foi também a Siracusa junto da corte do primeiro ou segundo Dionísio.
São-lhe atribuídas numerosas obras, entre as quais uma História da
Líbia, mas a atribuição é insegura e de tais obras nada -ficou. Como
para os outros fundadores das escolas socráticas torna-se difícil
discernir, no conjunto de doutrinas que foram transmitidas como
património dos Cirenaicos, as que pertencem genuinamente ao fundador da
Escola. Ademais porque Aristipo teve uma filha Arete que continuou o
seu ensinamento e iniciou na doutrina do pai o filho Aristipo, e um
escritor antigo atribuiu ao mais jovem Aristipo o desenvolvimento
sistemático das ideias da escola. Mas os testemunhos de Platão, de
Aristóteles e de Speusipo (autor de um
141
diálogo intitulado Aristípo que andou perdido) convêm em atribuir ao
primeiro Aristipo as doutrinas fundamentais da escola.

Também para os Cirenaicos, como para os Cínicos e os Megáricos, a


investigação teorética passa para segundo plano e é cultivada apenas
como um contributo para resolver o problema da felicidade e da conduta
moral. Porém, a sua ética compreendia também uma física e uma teoria do
conhecimento, pois que (segundo os testemunhos de Sexto Empírico e de
Séneca) estava dividida em cinco partes: a primeira em torno das coisas
que são de desejar ou de evitar, isto é, em torno do bem e do mal; a
segunda em torno das paixões; a terceira em torno das acções; a quarta
em torno das causas, isto é, dos fenómenos naturais; e a quinta em
torno da verdade (Sexto E., Adv. math., VH. 11). Evidentemente a quarta
e a quinta partes são a física e a lógica.

Na teoria do conhecimento, Aristipo inspira-se prevalentemente em


Protágoras. Considera que o critério da verdade é a sensação e que esta
é sempre verdadeira, mas não diz nada sobre a natureza do objecto que a
produz. Podemos afirmar com certeza que vemos o branco ou sentimos o
doce; mas que não é possível demonstrar que o objecto que produz a
sensação seja branco ou doce. Aquilo que nos aparece, o fenómeno, é
apenas a sensação; pois bem, esta é certa, mas para lá dela é
impossível afirmar seja o que for (Sesto E., Ad. math., VII, 193,
segs.). A doutrina da sensação que o Teeteto (156-7) platónico
desenvolve, deduzindo-a do princípio de Protágoras de que o homem é a
medida das coisas, parece ser característica de Aristipo, a que Platão
alude com a frase: "outros mais requintados". Segundo esta doutrina, há
duas formas de movimento, cada uma das quais é depois
142

infinita em número: uma tem potência activa (o objecto), a outra tem


potência passiva (o sujeito). Do encontro destes dois movimentos se
gera por um lado a sensação, pelo outro o objecto sensível. As
sensações têm os seus nomes habituais: vista, ouvido, ete., ou então
prazer, dor, desejo, temor, etc.-, os sensíveis têm nomes correlativos
às sensações: cores, sons, etc.. Mas nem o objecto sensível, nem a
sensação subsistem antes nem depois do encontro dos dois movimentos que
lhes dão lugar; e em tal sentido nada é, mas tudo se gera.

A sensação é também o fundamento dos estados emotivos do homem. Estes


são três: um para quem sente dor, semelhante às tempestades no mar; o
outro para quem sente prazer, semelhante às ondas ligeiras, porque o
prazer é um movimento leve comparável a uma brisa favorável; o terceiro
é o estado intermédio, pelo qual não se sente nem prazer, nem dor,
semelhante à calma do mar (Eusébio, Prap. ev., XIV, 18). Segundo
Aristipo, o bem consiste apenas nas sensações agradáveis; e a sensação
agradável é sempre actual. O fim do homem é portanto o prazer, não a
felicidade. A felicidade é o sistema dos prazeres particulares, na qual
se somam também os prazeres passados e futuros; mas ela não é desejada
por si própria, antes pelos prazeres particulares de que é tecida
(Diog. L., 11,
88). O prazer-e o bem portanto-era, por conseguinte, para Aristipo uma
coisa precisa que vive só no instante presente. Não dava nenhum valor à
recordação dos prazeres passados e à esperança dos futuros, mas apenas
ao prazer do instante. Aconselhava pensar no presente, melhor no dia de
hoje, no instante em que cada um opera ou pensa, porque, dizia ele, "só
o presente é nosso, não o momento passado nem aquele que aguardamos,
porque um está destruído e do outro não, sabemos se existirá" (Eliano,
Var. hist., XIV, 6).
143
Todavia, precisamente neste viver para o instante e no instante,
Aristipo realizava aquela liberdade espiritual que lhe permitia afirmar
orgulhosamente: "Possuo, não sou possuído" (Diog. L., H.
75). E efectivamente viver no instante significa para ele não deplorar
o passado, nem atormentar-me na espera do futuro, não desejar um prazer
maior do que aquele, mesmo modesto, que o instante presente pode
oferecer; significava também não se deixar dominar pelos desejos
desmedidos, contentar-se mesmo com o pouco. não se preocupar com um
futuro que provavelmente não virá. Aceitar o prazer do instante era
portanto para ele a vida da virtude. E a tradição apresenta-o de humor
constantemente igual e sereno, corajoso frente à dor, indiferente à
riqueza (que todavia não desprezava), frio e humano. Aristóteles narra-
nos que, a uma observação um pouco alterada de Platão, respondeu
apenas: "O nosso companheiro (Sócrates) falava de outra maneira" (Rei.,
11, 1398 ib).

§ 41. OUTROS CIRENAICOS

Nos sucessores de Aristipo, o princípio do prazer actual entra em


contradição com a investigação do prazer guiada pelo intelecto.

Teodoro o Ateu afirmou que o fim do homem não é o prazer mas a


felicidade, e a felcidade consiste na sabedoria. A sabedoria e a
justiça são bens; são males a estultícia e a injustiça. O prazer e a
dor nem são bens nem -males. mas são por si indiferentes do todo.
Considerava a amizade inútil quer para os tolos quer para os sábios;
uns não a sabem usar, os outros não têm necessidade dela porque se
bastam a si próprios (Diog. L., 11, 98). Teodoro afirmava que a pátria
do sábio é o mundo
144

e negava não só a existência dos deuses populares, mas também da


divindade em geral; daqui o seu cognome de Ateu (Cicer., De nat. deor.,
1, 2,
63, 117). '
Egesia traz do hedonismo uma conclusão pessimista. Os males da vida são
tantos que a felicidade é impossível. A alma sofre e perturba-se
juntamente com o corpo e a fortuna impede de alcançar aquilo que se
espera. O sábio não deve por isso afadigar-se na vã tentativa de
procurar a felicidade, mas deve antes evitar os males, tentar viver
isento de dores, dado que isto pode ser conseguido também por quem fica
indiferente ao prazer (Diog. L.,
11, 94-95). Sustentava que a vida, que é um bem para o tolo, é
indiferente para o sábio. Um escrito intitulado O suicida valeu-lhe o
epíteto de "advogado da morte" (Peisithanatos); e levou as autoridades
de Alexandria a proibir o seu ensino (Diog. L., 11, 86).

Em oposição a Egesias, o seu contemporâneo Anícerídes fundava a moral


na simpatia para com os outros homens. Perante a impossibilidade de
obter da vida a felicidade, Anicerides era de opinião que o homem devia
encontrar a sua satisfação na amizade e no altruísmo (Diog. L., 11,
96). Reabilitava, portanto, os laços familiares e o amor da pátria e
rompia deste modo o frio individualismo em que se haviam fechado
Teodoro e Egesias.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 36. Sobre a vida de Xenortonte: DIMENES LA£Rcio, 11, 48-59. Edições


completas das obras socráticas de Xenofonte: DINDORF, SAUPPE, Letpzig,
1867-70; SCHENKL, Berlim, 1869-1876. Sobre Xenofonte v. oa escritos
sobre Sócrates e: J. LuccioHi, Les Wes politiques et soci~ de X.,
Paris, 1947.

145

§ 37. Sobre a vida, a doutrina e os escritos dos Megãricos: DIõGENEs


LAÉRCIO, 11, 106-120. Outras fontes em ZL=, 11, 1, 245, 1 segs. Os
escritos não chegaram até nós, os títulos vêm em DIOGENEs LAMCIO.-
GOMMM, II, p. 176 segs. Para a doutrina dos Megáricos as fontes sã o
constituídas pela exposição de DIóGENES LAÉRCIO. Alguns dos argumentos
mais conhecidos contra o movimento foram conservados por S=To-EmpiRico,
Contra os matemãticos, VII, 216; X,
85-86. O argumento vitorioso é referido por EPiCTETO, Diss, H, 19, 1.
ARISTóTELES combate a negação da ~ncia na Metafisica, IX, 3, 1047;
PLATÃO faz referências aos Megáricos no Solista, em vários passos (248,
251 b-c). A frase referida por CICERO está numa carta Ad fam., 9,4.
Para uma colecção de fragrientos: W. NESTLE, Die Sokrati7zer in
Answahi, 1922. Discutiu a lógica dos Megáricos e citou as suas fontes:
PRANTI, ~chichte der Logik, I, Leipzig, 1855, p. 33 segs -C. MALLET,
Histoire de 1'école de M. et des écoles d'Êlis et dSretrie, Paris,
1843, P. M. SCHUM, Le Domi- nateur et les possibles, Paris, 1960,

§ 38. Sobre a vida, a doutrina e os escritos dos Cínicos: DIóGENES


LAÉRCIO, VI. Outras fontes em ZELI,ER, 11, 1, 281, 1 segs. Fragmentos
em MuLLAc, Frag. philos. graec., 11, 259-395. PLATÃO alude a Antistenes
no Sofista, 251, e ARISTóTELES na Metafí&ica, V, 29. Sobre o
materialismo de Antístenes, V, PLATÃO, Tecteto, 201-2z2. DUI)LEV, A
History of Cynicism, Londres, 1937; HOISTADT, Cynic Hero and Cynic
King. Studies in the Cynic Conceptiwt of Man, Upsala, 1949.

§ 39. Sobre estes Cínicos v. GwiPERz, II, p. 160 segs.; SAYRE, Diogenes
of Sinope, Baltimore, 1938.
§ 40. Sobre a vida, a doutrina e os escritos de Aristi,po e da sua
escola: DIõGENEs LAÉRCIO, 11, 65-104; DIELS, Doxogr. Graec., sob
"Aristipo". Outras fontes em ZEIXER, 11, 1, 336, 2 segs. A mais
completa colecção de fragmentos e testemunhos é: G. GIANNANTONI, I
Cirenaici, Florença, 1958, com trad. ital. e bibliografia.

§ 41. Não chegaram até nós quaisquer escritos. As sentenças foram


recolhidas em MULLACII, Fragmenta philos. graec., 11, 405 segs. -
ZELLER, loe. cit.; GomPERZ, II, p. 216 segs.; JOEL, Geschichte der ant.
Philos.,
1, 925 segs.; STENZEL, artigo na Enciclop. PaulyWissows,-Kro11; ZELLER,
loe. cit.; GOMPERZ, II, p. 227.

se.gs,

146

Ix

PLATÃO

§ 42. A VIDA E O IDEAL POLÍTICO


DE PLATÃO

Platão nasceu em Atenas em 428 a.C., proveniente de uma família da


antiga nobreza; descendia de Sólon por parte da mãe e do rei Codro por
parte do pai. Pouco se sabe da sua educação. Segundo Aristóteles, era
ainda jovem quando se familiarizou com Crátilo, discípulo de Heraclito
e, por isso, com a doutrina heraclitiana. Segundo Diógenes Laércio,
teria escrito composições épicas, líricas e trágicas, que mais tarde
queimara; mas esta notícia, embora não seja inverosímil, nada tem de
seguro. Aos vinte anos começou a frequentar Sócrates e, até 399, ano da
sua morte, contou-se entre os seus discípulos. Este ano, todavia, marca
também uma data decisiva na vida de Platão.

A Carta VII, depois que lhe foi reconhecida a autenticidade, tornou-se


o documento fundamental, não só para a reconstrução da biografia, mas
ainda da própria personalidade de Platão. Ela vai per-
147

mitir-nos deitar uma vista de olhos pelos interesses espirituais que


dominaram esta primeira parte da sua vida. Desde jovem que pensava
dedicar-se à vida política. O senhorio dos Trinta Tiranos, entre os
quais tinha parentes e amigos, convidou-o a participar no governo. Mas
as esperanças que Platão pusera na sua acção frustraram-se: os Trinta
fizeram, recordar vivamente, com as suas violências, o velho estado de
coisas. Entre outras coisas, ordenaram, a Sócrates que fosse com outros
a casa de um cidadão para matarem este, e isto para envolverem
Sócrates, quisesse ele ou não, na sua política (Carta VII, 325 a; Ap.
32 c). Após a queda dos Trinta, a restauração da democracia envolveu
Platão na vida política; mas acontece então o facto decisivo que para
sempre o enojou da política do tempo: o processo e a condenação de
Sócrates. Desde esse momento, Platão não deixou de meditar em como se
poderia melhorar a condição da vida política e toda a constituição do
estado, mas adiou a sua intervenção activa para um momento oportuno.
Deu-se conta então que a melhoria somente poderia ser efectuada pela
filosofia. "Vi que o género humano não mais seria libertado do mal se
antes não fossem ligados ao poder os verdadeiros filósofos, ou os
regedores do estado não fossem tornados, por divina sorte,
verdadeiramente filósofos" (Carta VII, 325 c).

Das experiências políticas da sua juventude, experiências de


espectador, não de actor, Platão trouxe, pois, o pensamento que havia
de inspirar toda a sua obra: só a filosofia pode realizar uma
comunidade humana fundada na justiça.

Após a morte de Sócrates, vai junto de Euclides em Mégara, e depois, ao


que dizem os seus biógrafos, vai ao Egipto e a Cirene. Nada sabemos
destas viagens, de que a Carta VII nada diz; não são, contudo,
inverosímeis, e a viagem ao Egipto
148

pode considerar-se provável pelas referências frequentes, que se


encontram nos diálogos, à cultura egípcia. A sua primeira viagem de que
temos conhecimento seguro e que é também o primeiro acontecimento
importante da sua vida exterior, é a que o levou à Itália meridional.
Conheceu nesta ocasião as comunidades pitagóricas, sobretudo por
intermédio do seu amigo Arquitas, senhor de Tarento; e em Siracusa
ligou-se pela amizade a Dião, tio de Dionísio o Jovem. Diz-se que
Dionísio o Velho, tirano de Siracusa, suspeitando dos projectos de
reforma política ventilados por Platão, o fizera vender como escravo no
mercado de Egina. Não sabemos se a responsabilidade do facto se deve
atribuir a Dionísio; havia guerra entre Atenas e Egina (durou até 387)
e um incidente semelhante podia verificar-se facilmente. É certa,
porém, a venda de Platão como escravo e o seu resgate por Anicerides de
Cirene.

A tradição filia em tal acontecimento a fundação da Academia, para o


que teria servido o dinheiro do resgate, que foi recusado quando se
soube de quem se tratava. Nada se sabe de certo a este respeito, mas
pode dizer-se que, quando do regresso de Platão a Atenas, a "comunidade
da educação livre" que Platão tinha em mente recebeu forma jurídica; e,
à semelhança das comunidades pitagóricas foi uma associação religiosa,
um tiaso. Esta era, por outro lado, a única forma que uma sociedade
cultural podia legalmente revestir na Grécia; e em uma forma que não
excluía nenhum género de actividade, nem que fosse profana ou
recreativa. Quando Dionísio o Jovem sucedeu ao pai no trono de Siracusa
(367 a.C.), Platão foi chamado por Dião para dar o seu conselho e a sua
ajuda à realizaÇão da reforma política que sempre fora o seu ideal.
Após alguma hesitação, Platão decide-se: não queria apresentar-se a si
mesmo como "homem de
149

pura teoria". nem queria abandonar ao perigo eventual o amigo e


companheiro Dião. Partiu, pois, para Siracusa. Mas aqui a posição de
Dião era débil; este incompatibilizou-se com Dionisio e foi por ele
exilado. Platão ficou por algum tempo hóspede de Dionisio e procurou
iniciá-lo e empenhá-lo na pesquisa filosófica, tal como a concebia. Mas
Dionisio era o tipo do diletante presunçoso e estava, além disso,
afastado dos cuidados políticos. Platão voltou a Atenas desiludido com
ele.

Alguns anos depois, no entanto, Dionisio chamou-o insistentemente à sua


corte. Impelido pelo próprio Dião, que estava em Atenas e esperava
obter do tirano, pela intercessão de Platão, a revogação do exílio,
Platão decide-se a esta terceira viagem e em 361 partiu. Porém, o
resultado foi desastroso: não conseguiu exercer influência alguma sobre
Dionísio, que não resistiu à prova do seu ensino e acabou por fazê-lo
quase prisioneiro, primeiro com pressões morais (ameaçando confiscar os
bens de Dião) e depois fazendo cercar o seu palácio por mercenários.
Quis, todavia, salvar as aparências, mostrando continuar as suas
relações com Platão; e deixou-o partir quando Arquitas de Tarento
mandou uma galera com uma embaixada. Platão foi assim libertado.

Em seguida, Dião conseguiu expulsar Dionísio, mas caiu no desfavor do


povo e foi morto na conjura promovida pelo ateniense Calipo. Este
enviou uma carta oficial a Atenas; e Platão respondeu com a Carta VII,
dirigida aos "amigos de Dião", em que expõe e justifica os interesses
fundamentais pelos quais viveu. Desde então Platão haveria de viver em
Atenas exclusivamente dedicado ao ensino.

Sabemos, pela Carta VII, que as suas ideias políticas teriam obtido em
outra ocasião mais feliz sucesso. Hermias, tirano de Atarneu, na Ntisia,
150

pediu a dois eminentes cidadãos de S~ Erasto e Corisco, discípulos de


Platão, para elaborarem uma constituição que desse uma forma mais-
branda ao seu governo. Esta constituição foi de -facto realizada e de
tal modo granjeou para Hermias as simpatias das populações da costa
cólica, que alguns territórios se lhe submeteram espontaneamente.
Hermias honrou os seus amigos dando-lhes a cidade de Asso (Didimo, In
Demóst., col. 5, 52) e constituiu com os dois platónicos -uma pequena
comunidade filosófica, de que Platão era o longínquo nume tutelar.
Compreende-se, por isso, que, depois da morte de Platão, Aristóteles se
tenha precisamente dirigido a Asso.

Platão morreu em 347, aos 81 anos. Um papiro de Herculano descoberto


recentemente dá-nos a descrição das últimas horas do filósofo. A última
visita que recebeu foi a de um caldeu. Uma mulher trácia tocava e errou
o compasso: Platão, que já tinha febre, fez ao hóspede um sinal com o
dedo.
O caldeu observou cortesmente que não havia como os Gregos para
perceber de medicina e de ritmo. Na noite seguinte a febre agravou-se
e, talvez nessa mesma noite, Platão morreu.

§ 43. O PROBLEMA DA AUTENTICIDADE


DOS ESCRITOS

A tradição conservou-nos de Platão uma Apologia de Sócrates, 34


diálogos e 13 cartas. O gramático Trasilo, que viveu no tempo do
imperador Tibério, adoptou e difundiu (parece que já -era conhecida por
uma referência de Terêncio Varrão)
a ordenação destas obras em 9 tetralogias, nas quais
a Apologia e as Cartas ocupam o lugar de dois diálogos. Eis a
tetralogia de Trasilo: 1., Eutífron, Apologia, Críton, Fédon; 2.a
Crátilo, Teeteto,
151

Sofista, Político; 3 a Parménides, Filebo, Banquete, Fedro, 4.1


Alcibíades 1, Alcibíades 11, Hiparco, Os Amantes; 5.a Teages, Cármides,
Laches, Lísis; 6 a
Eutidemo, Protágoras, Górgias, Ménon; 7.4 Hípias maior, Hípias -menor,
Ion, Menexeno; 8.a Clitofonte, República, Timeu, Crítias; 9.a Mínos,
Leis, Epinómias, Cartas.

Alguns outros diálogos e uma colecção de Definições ficaram fora das


tetralogias de Trasilo, porque já pelos antigos eram considerados
apócrifos. Mas mesmo entre as obras compreendidas nas tetralogias
algumas há que são, indubitavelmente, apócrifas: individualizá-las e
demonstrar a sua inautenticidade é um aspecto essencial do problema
platónico. Já os escritores da antiguidade se propuseram resolver este
problema; e da antiguidade até hoje pouquíssimos têm sido os diálogos
sobre que não tem caído a suspeita. Especialmente a crítica alemã de
800 lançou-se deliberadamente na via da "atétese" (como se costuma
chamar à negação da autenticidade duma obra), até limitar a nove o
número dos diálogos autênticos. Uma salutar reacção contra esta
tendência, que acabava por atribuir a compiladores anónimos obras que
são manifestações altíssimas de pensamento e de arte, afirmou-se na
crítica moderna, que só pronuncia a atétese para as obras cujo carácter
apócrifo é evidente por elementos materiais ou formais.

Os critérios para julgar da autenticidade das obras platónicas são os


seguintes:

1.o - A tradição. Que os escritores antigos tenham julgado autêntico um


escrito é sempre uma razão fortíssima a favor deste, a menos que haja
elementos positivos em contrário. Este critério, porém, não é por si só
decisivo.

2.o - Os testemunhos antigos, devido aos escritores que comentaram ou


criticaram as obras de
152

Platão. Particular valor probatório têm as citações de Aristóteles,


assumidas por todo o historiador moderno (por ex., por Zeller) com
valor de prova. Todavia, tão-pouco este critério é decisivo, pois que
diálogos, indubitavelmente platónicos, como por exemplo o Protágoras,
não são citados por Aristóteles. Por outro lado, tais testemunhos
obedecem por vezes a critérios de escola, como é o caso de Proclo, que
declarou apócrifas a República, as Leis e as Cartas.

3.o - O conteúdo doutrinal. Este critério é muito duvidoso: uma vez que
conhecemos a doutrina de Platão pelas suas obras, julgar da
autenticidade das obras baseando-nos na doutrina é um círculo vicioso.
Pode, no entanto, ser decisivo, quando se encontram nos escritos
platónicos elementos de doutrina que pertencem a escolas posteriores.
Tal é o caso do Alcibíades 11 (139 c), onde se diz que todos os que não
alcançam a sabedoria são loucos, o que é doutrina própria dos Estóicos.
Prova de inautenticidade pode ainda ser uma contradição grosseira: como
no caso do Teages (128 d), em que se afirma que o sinal demoníaco é
sempre negativo, para dizer na página seguinte (129 e) que ele incita
positivamente alguns a andarem com Sócrates.

4.o - o valor artístico. Platão é um artista extraordinário, e qualquer


diálogo seu é ao mesmo tempo obra de pensamento e de poesia. Mas,
naturalmente, não se pode pretender que todos os diálogos estejam ao
mesmo nível artístico. Este critério só é válido no caso de se
encontrar uma deficiência gravíssima, como no Teages e nos Amantes.

5.o - A forma linguística. O uso de expressões particulares, palavras,


etc. pode fornecer indícios sobre a autenticidade ou inautenticidade
dos diálogos: por exemplo, há no Alcibíades II particularidades da
linguagem que parecem pertencer a uma
153

época mais tardia do que aquela em que foram compostos os diálogos


platónicos.

Todos estes critérios oferecem uma certa segurança apenas se forem


controlados uns pelos outros e se se confirmarem reciprocamente. Da sua
aplicação resulta que podemos com segurança considerar apócrifos os
seguintes diálogos: Alcibíades II, Hiparco, AmaWes,, Teages, Minos;
podem subsistir dúvidas sobre o Alcibíades I, o Hípias maior, o lon, o
Clitolonte e o Epinómis,- tais dúvidas, contudo, não impedem que alguns
deles possam ser utilizados como fontes da doutrina platónica, a qual
em nada contradizem. A autenticidade do Menexeno, que é um elogio
fúnebre aos mortos na guerra (epitáfio, um género muito em voga na
retórica do tempo), parece não poder negar-se devido ao testemunho
explícito de Aristóteles (Ret., 1415 b, 30), mas o sarcasmo da
apresentação, as incongruências, os anacronismos são de tal ordem, que
nos obrigam a considerá-lo como simples paródia de um género literário
em voga.

Quanto às Cartas, depois de quase unanimemente as haver banido do


corpus platónico, a crítica moderna prepara-se para reconstruir a mesma
unanimidade em aceitá-las como genuínas. E elas são, de facto, com
excepção da primeira, documentos importantíssimos para a vida e o
pensamento de Platão. A Carta VII acrescenta-se de ora em diante aos
diálogos fundamentais, para a interpretação do platonismo.

§ 44. O PROBLEMA DA CRONOLOGIA


DOS ESCRITOS

Outro aspecto fundamental do problema dos escritos platónicos é o que


respeita à sua ordem cronológica. Este problema é essencial para a
154

compreensão do platonismo. Platão, por motivos que são inerentes à sua


filosofia (e que veremos em breve), nunca quis escrever, nem mesmo na
mais avançada idade, uma exposição completa do seu sistema. Os seus
diálogos não são mais que fases ou etapas diversas, pontos de chegada
provisórios e, por isso, sobretudo pontos de partida, de uma pesquisa
que julga não poder fixar-se em nenhum resultado. A ordem cronológica
dos seus escritos é a própria ordem desta pesquisa: é a ordem em que
ele atingiu os sucessivos aprofundamentos da sua filosofia. Não se
pode, pois, compreender o desenvolvimento desta filosofia sem se dar
conta da ordem cronológica dos escritos.

Infelizmente, as notícias seguras faltam completamente sobre este


ponto. Temos uma única indicação indubitável que nos é dada por
Aristóteles (Pol., 1264 e, 26): as Leis são posteriores à República.
Por outra fonte sabemos que as Leis foram deixadas "sobre cera", tendo
sido copiadas após a morte de Platão.
É necessário, portanto, recorrer a outros critérios. O primeiro é o
confronto dos diálogos entre si. Dele resulta que a República antecede
o Timeu, que lhe recapitula o argumento; o Político apresenta-se como a
continuação do Sofista, e este, por sua vez, como a continuação do
Teeteto. Alusões menos claras, mas suficientemente transparentes
permitem ver que o Ménon é anterior ao Fédon e ambos estes diálogos
anteriores à República.
O Teeteto e o Sofista referem-se depois a um encontro entre o jovem
Sócrates e o velho Parménides, que é talvez o que se narra no
Parménides.

O segundo critério para a ordenação cronológica é o do estilo. Entre a


República e as Leis, ou seja entre: os dois diálogos de que conhecemos
com plena certeza a ordem da composição, há notáveis
155

diferenças de estilo que têm sido minuciosamente estudadas. Trata-se de


partículas conjuntivas, de fórmulas de afirmação ou negação, do uso dos
superlativos, giros de frases e de palavras que ocorrem nas Leis e ao
invés não se encontram na República. Estas particularidades
estilísticas, chamadas estilemas, caracterizam a última fase da obra do
Platão escritor. É evidente que os outros diálogos em que ocorrem devem
pertencer ao mesmo período; e alguns críticos são unânimes em
estabelecer uma ordem dos diálogos segundo a frequência de tais
estilemas, atribuindo ao período mais tardio da vida de Platão os
diálogos em que eles ocorrem com mais frequência, e aos períodos
anteriores os diálogos em que são menos frequentes. Embora uma ordem
rigorosa assim fundada seja fictícia, uma vez que outros motivos podem
ter influído no estilo do escritor, não há dúvida, no entanto, que este
critério serviu para delinear um grupo de diálogos que, pela semelhança
do seu estilo com o das Leis, se atribui ao último período da
actividade de Platão. Tais são o Parménides, o Teeteto, o Sofista, o
Político, o Timeu e o Filebo. Quanto à ordem de composição destes
diálogos, decerto nos não podemos fundar, para estabelecê-la, apenas na
estilometria, mas devemos servir-nos ainda dos outros critérios.

Um terceiro critério pode colher-se da forma narrativa ou dramática dos


diálogos. Em alguns deles o diálogo é directamente introduzido; em
outros, pelo contrário, é narrado, de maneira que a sua exposição
é entremeada com as frases: "Sócrates disse", "o outro respondeu",
"concordou com ele", etc.. Mas no prólogo do Teeteto (143 c), Euclides,
que narra o diálogo, adverte que suprimiu estas frases com vista a uma
maior fluência, expondo o diálogo directamente, tal como se teria
passado entre Sócrates e os seus interlocutores. Por isso, é
156

natural que não esperemos encontrar o método da narração nos diálogos


que se seguem ao Teeteto; e de facto assim acontece para todos os
diálogos do último período, excepto para o Parménides, que é, por isso,
provavelmente anterior ao Teeteto. Por outro lado, os diálogos mais
altamente dramáticos, como o Protágoras, o Banquete, o Fédon, a
República, são todos narrados, ao passo que um grupo de diálogos que
têm estrutura mais simples e menor valor artístico são em forma
directa. Pode supor-se que Platão tenha adoptado a forma directa numa
primeira fase, tenha depois recorrido à forma narrativa para dar ao
diálogo o maior relevo dramático, e tenha finalmente regressado, por
motivos de comodidade e de fluência de estilo, à forma directa. Mas a
ordenação que resulta deste critério, se é válida para decidir a
situação de um diálogo neste ou naquele período da actividade de
Platão, não é suficiente para estabelecer a ordem dos próprios diálogos
no âmbito de cada um dos períodos.

Aos resultados que possam conseguir-se pelo uso combinado destes três
critérios acrescentam-se os que resultam da consideração, de
importância fundamental, de que os primeiros diálogos devem ser aqueles
em que a doutrina das ideias não está ainda presente, e que se mantêm,
por isso, estritamente fiéis à letra do socratismo. Finalmente, é muito
difícil imaginar que Platão tenha começado a exaltação da figura de
Sócrates ainda em vida do mestre: toda a sua actividade literária deve
ser, portanto, posterior a 399. Sobre estes fundamentos afigura-se
provável a seguinte ordenação cronológica dos diálogos; porém, se a
atribuição de um diálogo a um determinado período é bastante segura
nesta ordenação, a ordem de sucessão dos
157

diálogos em cada um dos períodos é problemática e sujeita a caução:

1.º período: escritos de juventude ou socráticos: Apologia, Criton,


Ion, Laches, Lísis, Cármides, Eutífron;

2.o período, de transição: Eutidemo, Hípias menor, Crátilo, Hípias


maior, Menexeno, Górgias, República 1, Protágoras, Ménon;

3.o período: escritos de maturidade: Fédón, Banquete, República 11-X,


Fedro;

4.º período: escritos da senelitude: Parménides, Teeteto, Sofista,


Político, Filebo, Timeu, Crítias Leis.

Pode pensar-se, com uma certa verosimilhança, que os escritos do 3.o


período são posteriores à primeira viagem à Sicília, de que Platão
regressou antes de 387, que os escritos do 4.o período são posteriores
à segunda viagem à Sicília (366-65) e alguns, como o Crítias e as Leis,
posteriores mesmo à terceira (361-360). As Cartas VII e VIII
apresentam-se, pelo seu conteúdo, como posteriores à morte de Dião, e
portanto ao ano de 353.

§ 45. CARÁCTER DO PLATONISMO

Por que razão a produção literária de Platão se manteve fiel à forma do


diálogo? Citámos, falando de Sócrates (§ 24), a passagem do Fedro em
que, a propósito da invenção da escrita, atribuída ao deus egípcio
Theut, Platão diz que o discurso escrito comunica, não a sabedoria, mas
a presunção da sabedoria. Como as figuras pintadas, os escritos têm a
aparência de seres vivos, mas não respondem a quem os interroga.
Circulam por toda a parte do mesmo modo, tanto pelas mãos dos
158

que os compreendem como pelas mãos dos que se não interessam de facto
por eles; e não sabem defender-se nem sustentar-se por si próprios
quando são maltratados ou vilipendiados injustamente (Fedro, 275 d).

Platão não via no discurso escrito mais que uma ajuda para a memória; e
ele mesmo nos testemunha que do ensino da Academia faziam parte também
"doutrinas não escritas" (Carta VII, 341 c). Ora, de entre os discursos
escritos, o diálogo é o único que reproduz a forma e a eficácia do
discurso falado. Ele é a expressão fiel da pesquisa que, segundo o
conceito socrático, é um exame incessante de si mesmo e dos outros,
logo um perguntar e responder; Platão considera que o próprio
pensamento é tão só um discurso que a alma faz consigo mesma, um
dialogar interior, em que a alma pergunta e responde a si mesma (Teet.,
189 e, 190 a; Sof., 263 e; Fil., 38 c-d). A expressão verbal ou escrita
limita-se, pois, a reproduzir a forma da pesquisa, o diálogo. A mesma
convicção que impediu Sócrates de escrever, impediu Platão a adoptar é
a manter a forma dialógica nos seus escritos. O que revelou a Platão a
incapacidade do jovem Dionisio de se empenhar a sério na pesquisa
filosófica, foi a sua pretensão de escrever e difundir como obra
própria um "sumário do platonismo". Platão declarou energicamente nesta
ocasião: "Meu não há, nem nunca haverá, tratado algum sobre este
assunto. Não pode ele ser reduzido a fórmulas, como se faz nas outras
ciências; só depois de longamente se haver travado conhecimento com
estes problemas e depois do os haver vivido e discutido em comum, o seu
verdadeiro significado se acende subitamente na alma, como a luz nasce
de uma centelha e cresce depois por si só" (Carta VII, 341 c-d).

O diálogo era, pois, para Platão o único meio de exprimir e comunicar


aos outros a vida da pes-
159

quisa filosófica. Ele reproduz o próprio andamento da pesquisa, que


avança lenta e dificilmente de etapa em etapa; e sobretudo reproduz-lhe
o carácter de sociabilidade e de comunhão, pelo qual torna solidários
os esforços dos indivíduos que a cultivam. Assim a forma da actividade
literária de Platão é um acto de fidelidade ao silêncio literário de
Sócrates; um e outro têm o mesmo fundamento: a convicção de que a
filosofia não é um sistema de doutrinas, mas pesquisa que repropõe
incessantemente os problemas, para deles tirar o significado e a
realidade da vida humana. Conta-se que uma mulher, Axioteia. após a
leitura dos escritos platónicos, se apresentou em trajes masculinos a
Platão, e que um camponês coríntio, depois da leitura do Górgias,
deixou o arado e foi ter com o filósofo (Arist., fr. 69, Rose). Estas
anedotas demonstram que os contemporâneos de Platão tinham compreendido
o valor humano da sua filosofia.

§ 46. SÓCRATES E PLATÃO

A fidelidade ao magistério e à pessoa de Sócrates é o carácter


dominante de toda a actividade filosófica de Platão.
Nem todas as doutrinas filosóficas de Platão podem, decerto, ser
atribuídas a Sócrates; bem ao contrário, as doutrinas típicas e
fundamentais do platonismo não têm nada que ver com a letra do ensino
socrático. Todavia, o esforço constante de Platão é o de captar o
significado vital da obra e da pessoa de Sócrates; e para captá -lo e
exprimi-lo não hesita em ir além do modesto património doutrinal do
ensino socrático, formulando princípios e doutrinas que Sócrates, em
verdade, nunca ensinam, mas que exprimem o que a sua própria pessoa
incarnava.
160

Frente a esta fidelidade, que nada tem a ver com uma concordância de
fórmulas doutrinais, mas que se manifesta na tentativa sempre
renovadora de aprofundar uma figura de homem que, aos olhos de Platão,
personifica a filosofia como pesquisa, parece muito estreito o esquema
em que se tornou habitual resumir a relação entre Sócrates e Platão.
Inicialmente fiel a Sócrates nos diálogos da sua juventude, Platão ter-
se-ia depois afastado progressivamente do mestre para formular a sua
doutrina fundamental, a doutrina das ideias; e, por fim, até a si
mesmo teria sido infiel, criticando e negando esta doutrina. Em breve
veremos que Platão jamais foi infiel a si mesmo ou à sua doutrina das
ideias; e que, nesta doutrina como em todo o seu pensamento, foi, ao
mesmo tempo, fiel a Sócrates. Nada mais quis fazer senão captar os
pressupostos remotos do magistério socrático, os princípios últimos que
explicam a força da personalidade do mestre e podem, por isso, iluminar
a via na qual ele consegue possuir-se e realizar-se a si mesmo. Platão,
escrupulosamente, não faz intervir Sócrates como interlocutor principal
nos diálogos que se afastam demasiado do esquema doutrinal socrático ou
que debatem problemas que não haviam suscitado o interesse do mestre
(Parménides, Sofista, Político, Timeu). Não obstante, toda a pesquisa
platónica se pode definir como a interpretação da personalidade
filosófica de Sócrates.

§ 47. ILUSTRAÇÃO E DEFESA DO ENSINO DE SóCRATES

Na primeira fase, a pesquisa platónica mantém-se no âmbito do ensino


socrático e, se não visa ilustrar o significado desta ou daquela
atitude fundamental do Sócrates histórico (Apologia, Críton), visa
captar
161

e esclarecer os conceitos fundamentais que estavam na base do seu


ensino (Alcibíades, Ion, Hípias menor, Laches, Cármides, Eutífron,
Hipiw maior, Lísis).

O conteúdo da Apologia e do Críton foi utilizado a propósito de


Sócrates (§ 26, 31). A Apologia é, em substância, uma exaltação do
dever que Sócrates assumiu ante si próprio e ante os outros e é, por
isso, a exaltação da vida consagrada à pesquisa filosófica. Pode dizer-
se que o significado integral do escrito está contido na frase: "Uma
vida sem pesquisa não é digna de ser vivida pelo homem" (Apolog., 38).
Sócrates declara aos juízes que jamais deixará de cumprir a obrigação
que lhe foi confiada pela divindade: o exame de si mesmo e dos outros
para alcançar a via do saber e da virtude. Já na apresentação que
Platão faz de Sócrates na Apologia se mostra claramente que ele vê
incarnada na figura do mestre aquela filosofia como pesquisa a que ele
próprio iria dedicar toda a existência.

O Críton apresenta-nos Sócrates frente ao dilema: ou aceitar a morte


pelo respeito que o homem justo deve às leis do seu país, ou fugir do
cárcere, conforme proposta dos amigos, e desmentir assim a substância
do seu ensino. A maneira serena como Sócrates aceita o destino a que é
condenado é a última prova da seriedade do seu ensino. Ela mostra-nos
que a pesquisa é uma missão de uma tal natureza, que o homem que se
haja empenhado nela não a deve trair, aceitando compromissos e fugas
que a esvaziem de significado.

Com estes dois escritos, Platão fixou para sempre as atitudes que fazem
de Sócrates o filósofo por excelência, "o homem de todos o mais sábio e
o mais justo". Os outros escritos de Platão pertencentes a este mesmo
período visam, ao invés, esclarecer os conceitos que estavam na base do
162

ensino socrático. Nestes escritos Platão aparece-nos (assim o disse


Gomperz), como o moralista dos conceitos: delineia o procedimento
socrático enquanto pesquisa do fundamento da vida moral do homem. E. em
primeiro lugar, aclara o pressuposto necessário de toda a pesquisa,
ponto em que Sócrates tanto insistira: o reconhecimento da própria
ignorância. Sobre o tema da ignorância desenvolve-se um grupo de
diálogos: Alcibíades 1, Ion, Hípias menor.

O Alcibíades 1 é, não obstante as dúvidas que se aventaram sobre a sua


autenticidade, uma espécie de introdução geral à filosofia socrática. A
Alcibíades que, dotado e ambicioso, se prepara para participar na vida
política, com a pretensão de dirigir e aconselhar o povo ateniense,
pergunta Sócrates onde aprendeu a sabedoria necessária a este fim, ele
que nunca se reconheceu ignorante e que, por conseguinte, nunca se
preocupou com procurá-la. Alcibíades está ainda na ignorância, na pior
das ignorâncias, a ignorância de que não sabe que é ignorante; e só
pode sair dela aprendendo a conhecer-se a si mesmo. Só por esta via
poderá alcançar o conhecimento da justiça, que é necessária para
governar um Estado e sem a qual se não é homem político, mas
politiqueiro vulgar que se engana a si próprio e ao povo.

Este tema da ignorância não consciente de si é também o do Ion. Ion é


um rapsodo que se gaba de saber expor muitos pensamentos belos sobre
Homero e de ser, portanto, competente no que respeita a todos os
argumentos sobre que versa a poesia homérica.

Platão representa nele, provavelmente, um tipo de falso sábio que devia


ser frequente no seu tempo: o tipo dos que, recordando Homero de
memória e tendo sempre à mão os ditos do poeta, o citavam
163

em todas as circunstâncias com o ar de quem apela para a mais antiga e


autêntica sabedoria grega. Platão demonstra que verdadeiramente nem o
poeta nem muito menos o rapsodo sabem coisa alguma. Um e outro falam de
tantas coisas, não em virtude da sabedoria, mas em virtude de uma
inspiração divina que se transmite da divindade ao poeta, do poeta ao
rapsodo, do rapsodo ao ouvinte, como a força de atracção do íman passa
de uma argola de ferro a outra e forma uma longuíssima cadeia. Se o
saber do poeta ou do rapsodo fosse verdadeiro, aqueles que cantam a
guerra podiam comandar os exércitos e ocupar-se assim seriamente de
todas as coisas que se limitam a cantar.

Uma variação paradoxal do tema da ignorância é apresentada no Hípias


menor; este diálogo procura demonstrar que só o homem de bem pode pecar
voluntariamente. Efectivamente, pecar voluntariamente significa pecar
conscientemente; pecar sabendo qual é o bem e qual é o mal, e
escolhendo deliberadamente o mal. Mas quem sabe qual é o bem? O homem
de bem; e só ele por conseguinte, pode pecar voluntariamente. O absurdo
desta conclusão sugere que é impossível pecar voluntariamente e que
somente peca quem não sabe o que é o bem, ou seja o ignorante. O
diálogo é uma redução ao absurdo da tese contrária à de Sócrates e é,
por isso, uma confirmação indirecta da tese de que a virtude é saber.

A demonstração desta tese é o objectivo de um outro grupo de diálogos,


mais importantes do que os primeiros. Esta demonstração tem por
pressuposto que a virtude é só uma. Portanto, estes diálogos têm em
mira reduzir ao absurdo a afirmação de que há diversas virtudes,
demonstrando que nenhuma delas, tomada isoladamente, pode ser
compreendida e definida.
164

No Laches chega-se a esta conclusão mediante a análise da coragem


(andréia). Considerada a coragem como virtude particular, há que
defini-la como a ciência do que se deve ou se não deve temer, ou seja,
dos bens ou dos males futuros. Mas o bem e o mal são o que são não só
com referência ao futuro, mas também ao presente e ao passado; a
ciência do bem e do mal não pode por conseguinte, limitar-se ao futuro,
mas diz respeito a todo o bem e a todo o mal; esta ciência já não é a
coragem como virtude particular, mas a virtude na sua integralidade. A
pesquisa que nos impele a determinar a natureza de cada virtude tomada
isoladamente consegue assim determinar realmente a natureza de toda a
virtude: de tal modo é impossível distinguir nela partes diversas. No
Cármides faz-se a mesma investigação a propósito da prudência
(sofrosyne) e chega-se à mesma conclusão. A prudência é definida por
Crítias, principal interlocutor do diálogo, como conhecimento de si
mesmo, quer dizer, do saber e do não saber próprios de cada um e, por
isso, como ciência da ciência. Porém, Sócrates opõe a esta definição
que uma ciência assim exige um objecto que seja especificamente seu.
Como não há um ver que seja um ver coisa nenhuma, mas o ver tem sempre
por objecto uma coisa determinada, assim a ciência não pode ter por
objecto a própria ciência, antes deve possuir um objecto determinado
sem o qual como ciência da ciência falha, definir a prudência como
ciência da ciência falha, pois, pela impossibilidade de a ciência se
fazer objecto de si mesma. A pesquisa procura sugerir que a prudência,
se é ciência, deve ter por objecto o bem; ora se é ciência do bem já
não é somente prudência (sofrosyne), mas ao mesmo tempo sabedoria e
coragem: virtude na sua integralidade.

No Eutífron examina-se a primeira e fundamental virtude do cidadão


grego, que é a piedade reli-
165

giosa ou devoção (osiótes). Parte-se da definição puramente formal


dessa virtude, que seria a arte que regula a troca de benefícios entre
o homem e a divindade, troca pela qual o homem oferece à divindade
culto e sacrifícios para dela obter ajuda e vantagens. Segundo esta
definição, as acções piedosas são as que agradam a alguns deuses. não a
todos os deuses, uma vez que frequentemente se acham estes em desacordo.

Põe-se então o problema: aquele que é santo é-o porque agrada aos
deuses, ou acontece, ao contrário. que agrada aos deuses porque é
santo? Frente a esta pergunta. a definição formal da piedade religiosa
cai e vemo-nos obrigados a perguntar de novo que coisa é
verdadeiramente a devoção. Pode então dizer-se que a devoção é uma
parte da justiça, precisamente aquela que se refere ao culto da
divindade e que consiste em praticar acções que à divindade agradam,
mas eis-nos deste modo regressados à definição que abandonámos. A
conclusão negativa do diálogo não só exprime a não aceitação do
conceito formal da piedade religiosa, como ainda a impossibilidade de a
definir como uma virtude em si, independente das outras, e assim
prepara indirectamente o reconhecimento da unidade da virtude.
Correlativamente à indagação sobre a virtude, procede Platão à
indagação sobre o objecto ou o fim da virtude, sobre os valores que são
seu fundamento, Uma acção bela, um belo discurso têm o belo por
objecto; mas o que é o belo? É este o problema do Hípias maior. A
conclusão é que o belo não pode ser distinto do bem, não podendo
considerar-se nem como o que é conveniente nem como o que é útil;
dado que o conveniente é a aparência do belo, não o próprio belo,
e o útil não é senão o vantajoso, aquilo que produz o bem e é,
portanto, causa do próprio bem. Como todas
166

as virtudes tendem, uma vez examinadas, a unificar-se no saber, assim


os vários objectos ou fins das acções humanas, o belo, o conveniente, o
útil tendem a unificar-se no conceito do bem.

O bem é ainda o termo último e o fundamento de todas as relações


humanas. Segundo o Lísis, a amizade (filia) não se funda na semelhança
nem na dissemelhança entre as pessoas: o semelhante não pode encontrar
no semelhante nada que não tenha já e o dissemelhante não pode amar o
que é dissemelhante dele (o bom não pode amar o mau nem o mau pode amar
o bom). O homem não ama e não deseja senão o bem; e ama e deseja um bem
inferior em vista de um bem superior, de maneira que o último e supremo
bem é também o primeiro fundamento da amizade. Verdadeiramente só ele é
o verdadeiro e único amigo. as outras coisas que desejamos e amamos são
simplesmente suas imagens. A amizade dos homens funda-se, portanto, na
sua comum relação com o bem.

Os resultados das investigações levadas a cabo em todos estes diálogos


podem resumir-se como segue:
1.o Não há virtudes particulares, mas a virtude é só uma;

2.O Não há fins ou valores particulares, definíveis cada um de per si,


mas o fim ou o valor é só um; o bem.

Estas duas conclusões rasgam as perspectivas da investigação platónica


ulterior e preparam os problemas que ela viria a debater.

48. A POLÉMICA CONTRA OS SOFISTAS

A tese que o precedente grupo de diálogos sugere indirectamente, a


unidade da virtude e a sua relação com o saber, põe-se e demonstra-se
positivamente no Protágoras em oposição polémica à atitude dos
sofistas. A Protágoras, que se intitula mestre de virtude, objecta
Sócrates que a virtude
167

de que fala Protágoras não é ciência mas um simples conjunto de


habilidades adquiridas acidentalmente por experiência; e é, portanto,
um património privado, que não pode transmitir-se aos outros.
Protágoras, para quem as virtudes são muitas e a ciência apenas uma
delas, não pode afirmar que a virtude é ensinável; pois que somente a
ciência se pode ensinar. Do que decorre que a virtude pode transmitir-
se e comunicar-se na medida em que é ciência. Viu-se, a propósito de
Sócrates (§ 28), que a ciência é aqui entendida como cálculo dos
prazeres e o seu conceito continua, portanto, preso à letra do ensino
socrático. Porém, já este diálogo mostra que Platão não se limita de
ora em diante à frustração dos conceitos que Sócrates colocou na base
da vida moral; mas, contrapondo a doutrina de Sócrates à dos
sofistas, projecta sobre a figura do mestre a mais viva luz que brota
da polémica.

O Protágoras recusou ver no ensino sofístico qualquer valor educativo,


e formativo e na própria sofística qualquer conteúdo humano. Ante a
ruína da sofística.. a doutrina de Sócrates apareceu em todo o seu
valor. Mas mantinham-se outros aspectos da sofística; e contra eles
dirige Platão três diálogos que formam com o Protágoras um grupo unido.
Estes aspectos são a erística, contra a qual se dirige o Eutidemo; o
verbalismo, contra o qual se dirige o Crátilo; e a retórica, contra a
qual se dirige o Górgias.

O Eutidemo é, acima de tudo, uma representação vivíssima e caricatural


do método erístico dos sofistas. A eristica é a arte de lutar com
palavras e de "refutar tudo o que se vai dizendo, seja falso ou
verdadeiro". Os interlocutores do diálogo, os dois irmãos Eutidemo e
Dionis'odoro, divertem-se a demonstrar, por exemplo, que só o ignorante
pode aprender e, logo a seguir, que contrariamente só o sábio aprende;
que só se aprende o que se
168

não sabe e a seguir que só se aprende o que sabe, etc. O fundamento de


semelhante exercício é a doutrina (defendida pelos Sofistas, e além
destes pelos Megáricos e pelos Cínicos) de que não é possível o erro e
que, seja qual for a coisa que se disser, se diz coisa que é, logo
verdadeira. Ao que Sócrates objecta que, nesse caso, não haveria nada
que ensinar e nada que aprender, pelo que a própria erística seria
inútil. Na verdade, nada há que se possa ensinar a não ser a sabedoria;
e a sabedoria só pode ensinar-se e aprender-se amando-a, isto é
filosofando. E neste ponto o diálogo deixa de ser crítica do
procedimento sofístico para se transformar em exortação à filosofia
(propreptikon); e, como discurso introdutório ou propréptico tornou-se
famoso na antiguidade, tendo sido muitas vezes imitado. Porém, esta
parte é importante sobretudo porque contém a ilustração do objecto
próprio da filosofia: objecto que Platão define como o uso do saber
para utilidade do homem. A filosofia é a única ciência em que o fazer
coincide com o saber servir-se do que se faz (Eut., 289 b): ou seja, a
única ciência que produz conhecimento ao mesmo tempo que ensina a
utilizar o próprio conhecimento para utilidade e felicidade do homem
(lb., 288-289).

À erística liga-se o verbalismo, contra o qual se dirige o Crátilo. O


problema deste diálogo é o de ver se a linguagem é verdadeiramente um
meio para ensinar a natureza das coisas, como pensavam Crátilo, os
Sofistas e Antístenes. Platão não considera, decerto, que a linguagem
seja produto de convenção e que os nomes se implantem arbitrariamente.
Como todo o instrumento deve ser adequado ao desígnio para que foi
construído, assim a linguagem deve ser adequada a fazer-nos discernir a
natureza das coisas. Não há dúvida, pois, que todo o nome deve ter uma
certa justeza, isto
169

é, deve imitar e exprimir, na medida do possível, por meio de letras e


de sílabas, a natureza da coisa significada. Mas nem todos os nomes têm
este carácter natural; alguns, como por exemplo os nomes dos números,
sã o puramente convencionais. De qualquer maneira, não se pode
sustentar, como faz Crátilo, que a ciência dos nomes seja também
ciência das coisas: que não haja outra via para indagar e descobrir a
realidade que não seja a de descobrir-lhes os nomes, e que não se possa
ensinar senão os próprios nomes. Dado que os nomes pressupõem o
conhecimento das coisas, os primeiros homens que os descobriram deviam
conhecer as coisas por outra via, uma vez que não dispunham ainda dos
nomes; e nós próprios não podemos apelar para outros nomes para julgar
da correcção dos nomes, mas devemos recorrer à realidade de que o nome
é a imagem. De modo que o critério para compreender e julgar do valor
das palavras leva-nos a procurar, para além das palavras, a própria
natureza das coisas. O diálogo contém assim a enunciação das três
alternativas fundamentais que posteriormente se iriam apresentar
constantemente na história da teoria da linguagem, a saber:

1.º - a tese sustentada pelos Eleatas, pelos Megáricos, pelos Sofistas


e por DemócrIto (fr. 26, Diels), de que a linguagem é pura convenção,
quer dizer, devida exclusivamente à livre
iniciativa dos homens;

2.O a tese sustentada por Crátilo e que pertencia a Heraclito (fr. 23


e, 114, Diels) e aos Cínicos de que a linguagem é naturalmente produto
da acção causal das coisas;

3.o a tese, defendida por Platão, de que a linguagem é a escolha


inteligente do instrumento que serve para aproximar o homem do
conhecimento das coisas. Na ilustração desta última tese Platão refere-
se explicitamente às ideias (440 b), a que chama mais frequentemente
"substâncias" (338 b, 423 d): por
170

cujo nome compreende: "o que o objecto é" (428 d). Todavia, Platão não
atribui a produção da linguagem à própria natureza das coisas:
considera-a, com os convencionalistas, uma produção do homem. Mas
admite ao mesmo tempo que esta produção não é arbitrária, antes é
dirigida, até onde é possível, para o conhecimento das essências, isto
é, da natureza das coisas. O teorema fundamental que Platão se propõe
defender é que a linguagem pode ser mais ou menos exacta ou mesmo
errada ou, por outras palavras, que "se pode dizer o falso": teorema
que não cabe nas outras duas concepções da linguagem, ou porque
consideram que a linguagem é sempre exacta, ou porque uma convenção
vale tanto como outra, ou porque é a natureza das coisas a impô-lo. A
defesa deste teorema abre o caminho à ontologia do Sofista.

Por fim, Platão ataca no Górgias a arte que constituía a principal


criação dos Sofistas e que era a base do seu ensino: a retórica. A
retórica pretendia ser uma técnica da persuasão, à qual parecia
completamente indiferente a tese a defender ou o assunto tratado.
Platão objecta ao conceito desta arte que toda a arte ou ciência só
consegue ser verdadeiramente persuasiva a respeito do objecto que lhe é
próprio. A retórica não tem um objecto próprio: permite falar de tudo,
mas não consegue persuadir senão aqueles que têm um conhecimento
inadequado e sumário das coisas de que trata, ou seja os ignorantes.
Não é, pois, uma arte, mas tão só uma prática adulatória que oferece a
aparência da justiça e está para a política, que é arte da justiça,
como a culinária está para a medicina: retórica e culinária excitam o
gosto, aquela o da alma, esta o do corpo; política e medicina curam
verdadeiramente respectivamente a alma e o corpo. A retórica pode ser
útil para defender com discursos a própria injustiça e para evitar
sofrer a
171

pena da injustiça cometida. Ora isto não é uma vantagem. O mal, para o
homem, não é sofrer a injustiça, mas cometê-la, porque isso é mancha e
corrompe a alma; e subtrair-se à pena da injustiça cometida é um mal
ainda pior, porque tira à alma a possibilidade de libertar-se da culpa,
expiando-a. Pela sua indiferença para com a justiça da tese a defender,
a retórica implica, na realidade, a convicção (exposta no diálogo por
Cálicles) de que a justiça é somente uma convenção humana, que é tolice
respeitar e de que a lei da natureza é a lei do mais forte. O mais
forte segue só o próprio prazer e não cuida da justiça; tende à
proeminência sobre os outros e tem como única regra o próprio talento.
Contra este imoralismo observa, no entanto, Platão que o intemperante
não é o homem melhor do mesmo modo que não é o mais feliz, uma vez que
passa de um prazer ao outro insaciavelmente, assemelhando-se a uma pipa
rota que nunca mais se enche. O prazer é a satisfação de uma
necessidade; e a necessidade é sempre deficiência, isto é, dor: prazer
e dor condicionam-se reciprocamente e não há um sem o outro, Ora o bem
e o mal não são conjuntos mas separados, não podendo assim identificar-
se senão pela virtude; e a virtude é a ordem e a regularidade da vida
humana. A alma boa é a alma ordenada; que é a um tempo sábia,
temperante e justa.

A polémica contra os sofistas, conduzida pelo grupo de Sócrates, faz


emergir os problemas que aquele ensino apresentava. A virtude é
ciência; pode, portanto, ensinar-se e aprender-se. Mas o que é
aprender? Eis o primeiro problema. Cria ele, indubitavelmente, um
vínculo entre um homem e outro homem e entre o homem e a ciência:
de que natureza é este vínculo? Eis um outro problema. E o que é
exactamente a ciência em que consiste a virtude? Qual é o objecto desta
ciência, o mundo ou a subs172

tância sobre que ela versa? Eis o último e mais grave problema que
brota do ensino socrático. A pesquisa platónica iria debater, no seu
desenvolvimento ulterior, estes problemas; quer na sua singularidade,
quer nas suas relações recíprocas.

§ 49. O APRENDER E OS SEUS OBJECTOS (AS IDEIAS)

Ao problema do aprender é dedicado o Ménon. Segundo o princípio


erístico, não se pode aprender o que se sabe nem o que se não sabe:
visto que ninguém busca saber o que sabe, nem pode buscar saber se não
sabe que coisa buscar.
a este princípio opõe Platão o mito da anamnese.
a alma é imortal e nasceu muitas vezes, e viu já todas as coisas, quer
neste mundo, quer no Hades: não é, pois, de espantar que possa recordar
o que antes sabia. A natureza em si é toda igual: uma vez que a alma
aprendeu tudo, nada impede que, quando ela se recorda de uma só coisa -
no que consiste precisamente o aprender-, encontre por si tudo o resto,
se tiver ânimo e não se cansar da pesquisa; dado que pesquisar e
aprender são o mesmo que recordar-se. A doutrina dos sofistas torna-nos
preguiçosos, porque nos dissuade da pesquisa; o mito da alma imortal e
do aprender como reminiscência torna-nos activos e incita-nos à
pesquisa. Platão confirma esta doutrina pelo exemplo famoso do escravo
que, habilmente interrogado, consegue compreender por si, ou seja
aprender e recordar, o teorema de Pitágoras. O mito da reminiscência
exprime aqui o princípio da unidade da natureza: a natureza do mundo é
uma só, e é ainda una com a natureza da alma. Pelo que, partindo de uma
coisa singular, aprendida num acto singular, o homem pode procurar
aprender as outras coisas,
173

que àquela estão unidas, mediante sucessivos actos de aprendizagem


ligados ao primeiro no curso da pesquisa (Mén., 81 c). O mito tem aqui,
como algures em Platão, um significado precioso: a anamnese exprime,
nos termos da crença órfica e pitagórica, da cadeia dos nascimentos,
aquela unidade da natureza das coisas e aquela unidade entre a natureza
e a alma que torna possível a pesquisa e a aprendizagem. Porém, quer o
mito da anamnese, quer a doutrina da unidade da natureza, são
explicitamente apresentadas por Platão como hipóteses semelhantes às de
que se servem os geómetras. A hipótese põe-se quando não se conhece
ainda a solução de um problema e se antecipa esta solução deduzindo-lhe
as consequências que podem depois confirmá-la ou refutá-la (Mén., 8/
a). Como veremos, o uso da hipótese faz parte integrante do que Platão
entendia por procedimento dialéctico.

Se, pois, se põe a hipótese que a virtude é ciência, deve admitir-se


que pode ela ser aprendida e ensinada. Como pode então acontecer que
não haja mestres nem discípulos de virtude? Mestres de virtude não o
são decerto os sofistas, nem o foram os homens mais eminentes
(Aristides, Temístocles, etc.) que a Grécia teve, os quais não souberam
transmitir a sua virtude aos filhos. Ora isto aconteceu e acontece
porque, para aqueles homens, a virtude não era verdadeiramente sageza
(frónesis), mas uma espécie de inspiração divina, como a dos profetas e
a dos poetas. A sageza no seu grau mais elevado é ciência, no seu grau
mais baixo é opinião verdadeira. A opinião verdadeira distingue-se da
ciência por lhe faltar uma garantia de verdade. Platão compara-a às
estátuas de Dédalo, que parecem sempre prestes a sumir-se. As opiniões
tendem a escapar-se "enquanto não forem ligadas em um discurso causal"
(Mén., 98 a). Quando estão ligadas entre si em um discurso causal
consolidam-se e
174

tornam-se ciência. A ciência é, por isso, mais preciosa que as opiniões


verdadeiras, e distingue-se destas pelo encadeamento racional que
estabelece entre os seus objectos.

O Ménon esboça as primeiras linhas de uma teoria do aprender que,


todavia, deixa em aberto numerosos problemas. Se o aprender é um
recordar-se, que valor tem, no que a ele concerne, o conhecimento
sensível? E qual é o objecto do aprender? Por outro lado, toda a teoria
da anamnese se funda no pressuposto da imortalidade da alma. é possível
demonstrar este pressuposto? Tais são os problemas debatidos no Fédon.
Mas a própria implantação destes problemas conduz Platão
definitivamente além do ponto que Sócrates havia alcançado. A
determinação de um objecto da ciência, de um objecto que nada tem que
ver com as coisas sensíveis, como a ciência nada tem que ver com o
conhecimento sensível, induz Platão à formulação da teoria das ideias.

Esta teoria não vem organicamente formulada em o Fédon: é somente


pressuposta como algo de já conhecido e aceite pelos interlocutores
como hipótese fundamental da investigação. Talvez justamente por ser
ela o centro para que convergem as directivas da sua filosofia, se
negou Platão, conformemente ao princípio do seu ensino (§ 42), a tratá-
la sistematicamente. Era talvez objecto das "doutrinas não escritas" de
que fala o próprio Platão em a Carta VI/ (341 c), e que Aristóteles
também assinala em várias passagens; doutrinas que constituíam,
possivelmente, o património da Academia. Evidenciam-se, todavia, em o
Fédon, algumas determinações fundamentais que Platão atribui às ideias.
Essas determinações são três:
1.o as ideias são os objectos específicos do conhecimento racional;
2.o as ideias são critérios ou princípios de julgamento
175

das coisas naturais;


3.o as ideias são causas das coisas naturais.

1.º - Como objectos do conhecimento racionaL as ideias são chamadas por


Platão entes ou substâncias, e são nitidamente distintas das coisas
sensíveis. Pela primeira vez se faz em o Fédon o balanço das críticas
que Platão dirigiu contra os sofistas nos diálogos precedentes. O
defeito fundamental dos sofistas é que eles se recusam a ir além das
aparências: pelo que ficam seus prisioneiros e, falando com
propriedade, não são filósofos. A filosofia consiste no prosseguir para
além das aparências e, em primeiro lugar, das aparências sensíveis. A
função da filosofia, declara-se em o Fédon, é a de afastar a alma da
investigação "feita com os olhos, com os ouvidos e com os outros
sentidos", o de recolhê-la e concentrá-la em si mesma de maneira a que
ela enxergue "o ser em si"-, e caminha assim da consideração do que é
sensível e visível até à consideração do que é inteligível e invisível.
Aqui se vem enxertar no tronco da filosofia socrática a oposição,
característica do Eleatismo, entre a via da opinião e a via da verdade;
e se põe, como objecto próprio da razão, o ser em si, a ideia. Ã
antítese eleática vem adjunto, por outro lado, o mito órfico-
pita,,órfico, se a sensibilidade está ligada ao corpo e é um
impedimento, mais do que um auxílio, para a pesquisa, a pesquisa exige
que a alma se separe, tanto quanto possível, do corpo, e viva, por
conseguinte, na expectativa e na preparação da morte, com a qual a
separação se torna completa. Todavia, as outras determinações das
ideias que Platão apresenta, fundadas como são nas conexões entre
ideias e coisas, excluem a rigidez eleática da oposição entre a razão e
os sentidos.
2.o -As ideias constituem, com efeito, os critérios para julgar as
coisas sensíveis. Por exemplo: para
176

julgar se as duas coisas são iguais, servimo-nos da ideia de igual, que


é a igualdade perfeita a que só imperfeitamente se adequam os iguais
sensíveis. Para julgar do que é bom, justo, santo, belo, o critério é
fornecido pelas ideias correspondentes, isto é, pelas entidades a que
estes conceitos correspondem. As ideias são, por conseguinte, em o
Fédon (75 c-d), critérios de avaliação; são mesmo os próprios valores.
3.o - As ideias são as causas das coisas naturais. Platão apresenta
esta doutrina como uma consequência imediata da teoria de Anaxágoras de
que o Intelecto é a causa ordenadora de todas as coisas. "Se assim é,
se o Intelecto ordena todas as coisas e dispõe cada uma do modo melhor,
encontrar a causa por que cada coisa se gera, se destrói ou existe
significa encontrar qual é para ela o melhor modo de existir, de
modificar-se ou de agir" (Féd., 97 c). Deste ponto de vista, "o óptimo
e o excelente" são a única causa possível das coisas e o ú nico objecto
da ciência: uma vez que quem sabe reconhecer o melhor pode também
reconhecer o pior. Anaxágoras foi, certamente, infiel a este princípio,
mas Platão declara que deseja, bem ao contrário, permanecer-lhe fiel, e
que não admitirá portanto outras causas das coisas que não sejam as
razões (logoi) das próprias coisas: a perfeição ou o fim a que elas se
destinam (Ib., 99 e). As ideias são, -por isso, ao mesmo tempo
critérios de avaliação e causas das coisas naturais: num caso como no
outro as suas funções são de logoi, de razões das coisas.

A imortalidade da alma, necessária para justificar a função da


filosofia, é demonstrável precisamente fundando-se na doutrina das
ideias. Como as ideias, a alma é, com efeito, invisível, e por isso é
ainda, presumivelmente, indestrutível. Por outro lado, a reminiscência
é uma outra prova da sua imortalidade, na medida em que demonstra a sua
177

pré-existência. Finalmente, se se quiser compreender a natureza da


alma, preciso é que busquemos a ideia de que ela participa; e essa
ideia é a vida. Porém, dado que participa necessariamente da vida, a
alma não pode morrer: e ao avizinhar-se a morte, não fica vítima dela,
mas afasta-se sem sofrer qualquer dano e conservando a inteligência.

É desta forma que o desenvolvimento da teoria do aprender estabelecida


em o Ménon conduz, em o Fédon, a determinar o objecto do aprender como
ideia ou valor objectivo, e recebe neste diálogo a demonstração do seu
pressuposto fundamental, a imortalidade.

§ 50. O EROS

O aprender estabelece entre o homem e o ser em si entre os homens


associados na pesquisa comum uma relação que não é puramente
intelectual, uma vez que compromete a totalidade do homem, e por isso,
também a sua vontade. Esta relação é definida por Platão como amor
(eros). À teoria do amor são dedicados dois dos diálogos mais
perfeitos, de um ponto de vista artístico, o Banquete e o Fedro.
O segundo é, decerto, posterior ao primeiro. O Banquete considera
predominantemente o objecto do amor, quer dizer a beleza, e procura
determinar os graus hierárquicos dela. O Fedro considera, ao contrário,
o amor predominantemente na sua subjectividade, como aspiração para a
beleza e elevação progressiva da alma ao mundo do ser, a que a beleza
pertence.

Os discursos que os interlocutores do Banquete pronunciam um após outro


em louvores de eros exprimem as características subordinadas e
acessórias do amor, características que a doutrina exposta por Sócrates
unifica e justifica. Pausânias distingue do eros vulgar, que se volve
para os corpos, o eros
178

celeste, que se volve para as almas. O médico Erixímaco vê no amor uma


força cósmica que determina as proporções e a harmonia de todos os
fenómenos, assim no homem como na natureza. Aristófanes exprime, com o
mito dos seres primitivos compostos de homem e de mulher (andrógenos),
divididos pelos deuses em duas metades, para seu castigo, uma das quais
caminha no encalço da outra para se unir a ela e reconstituir assim o
ser primitivo, exprime, dizíamos, um dos traços fundamentais que o amor
manifesta no homem: a insuficiência. É precisamente por este carácter
que Sócrates começa: o amor deseja qualquer coisa que não tem, mas de
que precisa, e é, portanto, imperfeição.
O mito di-lo, com efeito, filho de Pobreza (Penia) e de Conquista
(Poros); não é, pois, um deus mas um demónio; pois que não tem a beleza
mas a deseja, não tem a sabedoria, mas aspira a possuí-la e é,
portanto, filósofo. Os deuses, ao invés, são sapientes. O amor é, por
conseguinte, desejo de beleza; e a beleza deseja-se porque é o bem que
torna feliz. O homem que é mortal tende a gerar em beleza e daí a
perpetuar-se através da geração, deixando após si um ser que se lhe
assemelha. A beleza é o fim (telos), o objecto do amor. Mas a beleza
tem graus diversos a que o homem somente pode elevar-se por
aproximações sucessivas, ao longo de uma lenta caminhada. Em primeiro
lugar, é a beleza de um corpo a que atrai e prende o homem. Este
apercebe-se em seguida que a beleza é igual em todos os corpos e começa
assim a desejar e a amar toda a beleza corpórea. Mas acima dessa há a
beleza da alma; ainda mais acima, a beleza das instituições e das leis,
além desta a beleza das ciências e, finalmente, acima de tudo, a
beleza em si, que é eterna, superior ao devir e à morte,
perfeita, sempre igual a si mesma e fonte de toda a outra beleza (210 a
-211 a).
179

Como pode a alma humana percorrer os graus desta hierarquia, até


alcançar a beleza suprema? Eis o problema do Fedro, que parte,
portanto, da consideração da alma e da sua natureza. A alma é imortal
enquanto é incriada; efectivamente, move-se por si, pelo que tem em si
mesma o princípio da sua vida. Pode exprimir-se a sua natureza "de
maneira humana e mais breve" por meio de um mito. É semelhante a uma
parelha de cavalos alados, conduzidos por um auriga. Um dos cavalos é
excelente, o outro é péssimo; de modo que o trabalho do auriga é
difícil e penoso. O auriga procura conduzir ao céu os cavalos, levando-
os até à corte dos deuses, lá onde fica a região supra-celeste
(hiperurânio) que é a sede do ser. Nesta região está a "verdadeira
substância (ousía), sem cor e sem forma, impalpável, que só pode ser
contemplada pelo guia da alma, que é a razão, a substância que é o
objecto da verdadeira ciência (Fedr., 247 c). Esta substância é a
totalidade das ideias justiça em si, temperança em si, etc.). e só pode
ser contemplada pela alma; mesmo assim mal, pois que o cavalo ruim a
puxa para baixo. Todas as almas contemplam, por conseguinte, em maior
ou menor parte a substância do ser, e quando, por esquecimento ou por
culpa, o pesadume a acomete, perde as asas e encarna-se, indo vivificar
o corpo de um homem que será exactamente aquilo em que ela o
transformar. A alma que viu mais entra para o corpo de um homem que se
irá consagrar ao culto da sabedoria ou do amor; as almas que viram
menos encarnam-se em homens que cada vez se afastarão mais da pesquisa
da verdade e da beleza. Ora a recordação das substâncias ideais é
precisamente despertada pela beleza, na alma que caiu e se encarnou.
Efectivamente, mal vê a beleza o homem reconhece-a de chofre, pela sua
luminosidade. A vista, que é o mais
180

agudo dos sentidos corpóreos, não vê nenhuma das outras substâncias,


pode ver, no entanto, a beleza. "Só à beleza coube o privilégio de ser
a substância. mais evidente e mais amável". Ela faz de medianeira entre
o homem caído e o mundo das ideias; e o homem responde com amor ao seu
apelo. É verdade que o amor pode também ficar preso à beleza corpórea e
pretender gozar desta somente; mas quando é sentido e realizado na sua
verdadeira natureza, o amor torna-se o guia da alma para o mundo do
ser. Neste caso já não é tão só desejo, impulso, delírio; os seus
caracteres passionais não deixam de existir e manifestar-se, mas
subordinam-se e fundem-se na pesquisa rigorosa e lúcida do ser em si,
da ideia.
O eros torna-se então procedimento racional, dialéctica (156). A
dialéctica é a um tempo pesquisa do ser em si e união amorosa da alma
no aprender e no ensinar. É, por conseguinte, psicagogia, guia da alma,
pela mediação da beleza, em direcção ao verdadeiro destino. É, ainda, a
verdadeira arte da persuasão, a verdadeira retórica. Esta não é, como
sustentam os sofistas, uma técnica a que seja indiferente a verdade do
seu objecto e a natureza da alma que se quer persuadir, mas ciência do
ser em si e, ao mesmo tempo, ciência da alma. Nessa qualidade distingue
as espécies da alma e acha para cada uma o caminho apropriado para a
persuadir e conduzir ao ser.

Este conceito da dialéctica, que é o ponto culminante do Fedro e a


cúpula da teoria platónica do amor, viria a constituir o centro da
especulação platónica nos últimos diálogos.

§ 51. A JUSTIÇA

Todos os temas especulativos e todos os resultados fundamentais dos


diálogos precedentes se acham resumidos na obra máxima de Platão, a
República,
181

que os ordena e os unes ao redor do motivo central de uma comunidade


perfeita, em que o indivíduo encontra a sua perfeita formação. O
projecto de uma comunidade tal funda-se no princípio que constitui a
directriz de toda a filosofia platónica. "Se os filósofos não
governarem a cidade ou se os que agora achamos reis ou governantes, não
cultivarem verdadeira e seriamente a filosofia, se o poder político e a
filosofia não coincidirem nas mesmas pessoas e a multidão dos que agora
se ocupara exclusivamente de uma ou da outra não for rigorosamente
impedida de fazê-lo, é impossível que cessem os males da cidade e até
os do género humano" (Rep., V., 473 d). Mas neste ponto do
desenvolvimento da investigação, a constituição de uma comunidade
política governada por filósofos oferece a Platão dois problemas
fundamentais: qual é o escopo e o fundamento de uma tal comunidade?
Quem são propriamente os filósofos?

À primeira pergunta responde Platão: a justiça. E, com efeito, a


República dirige-se explicitamente à determinação da natureza da
justiça. Nenhuma comunidade humana pode subsistir sem a justiça. À
opinião sofística que queria reduzi-la ao direito do mais forte,
objecta Platão que nenhum bando de salteadores ou de ladrões poderia
realizar qualquer roubo, se os seus componentes violassem as normas da
justiça uns em prejuízo dos outros. A justiça é condição fundamental do
nascimento e da vida do estado. Este deve ser constituído por três
classes: a dos governantes, a dos guardiões ou guerreiros e a dos
cidadãos, que exercem qualquer outra actividade (agricultores,
artesãos, comerciantes, etc.). A sageza pertence à primeira destas
classes, porque basta que os governantes sejam sábios para que todo o
estado seja sábio. A coragem pertence à classe dos guerreiros. A
temperança, como acordo entre
182

governantes e governados sobre quem deve comandar o estado, é virtude


comum a todas as classes. Mas a justiça compreende em si estas três
virtudes: realiza-se ela quando cada cidadão se dedica à tarefa que lhe
é própria e tem o que lhe pertence. Com efeito, as tarefas em um estado
são muitas e todas necessárias à vida da comunidade: cada qual deve
escolher aquela a que se adapta e dedicar-se-lhe. Só assim cada homem
será uno e não já múltiplo; e o próprio estado será uno (423 d).

A justiça garante a unidade e, consigo, a força do estado. Mas garante


igualmente a unidade e a eficiência do indivíduo. Na alma individual
Platão distingue, como no estado, três partes: a parte racional, que é
aquela pela qual a alma raciocina e domina os impulsos; a parte
concupiscível, que é o princípio de todos os impulsos corporais; e a
parte irascível, que é o auxiliar do princípio racional e se enfurece e
luta por aquilo que a razão considera justo. Ao princípio racional
pertencerá a sageza, ao princípio irascível a coragem; ao passo que o
acordo de todas as três partes em deixar o comando à alma racional será
a temperança. Também no homem individual a justiça se terá quando cada
parte da alma exercer somente a função que lhe é própria.

Evidentemente que a realização da justiça não pode prosseguir


paralelamente no indivíduo e no estado. O estado é justo quando cada
indivíduo atende somente à tarefa que lhe é própria; mas o indivíduo
que atende só mente à própria tarefa é ele
próprio justo. A justiça não é só a unidade do estado em si mesmo e do
indivíduo em si mesmo, é, ao mesmo tempo, a unidade do indivíduo e do
estado e, por isso, o acordo do indivíduo com a comunidade.

Duas condições são necessárias para a realização da justiça no estado.


Em primeiro lugar, a eliminação da riqueza e da pobreza; ambas tornam
impossí-
183

vel ao homem atender à sua tarefa. Mas esta eliminação não implica uma
organização comunista. Segundo Platão, as duas classes superiores dos
governantes e dos guerreiros não devem possuir nada nem ter qualquer
retribuição, além dos meios para viver. Mas a classe dos artesãos não é
excluída da propriedade; e os meios de produção e de distribuição
deixam-se nas mãos dos indivíduos. A segunda condição é a abolição da
vida familiar, abolição que deriva da participação das mulheres na vida
do estado com base na mais perfeita igualdade com os homens, pondo como
única condição a sua capacidade. As uniões entre homens e mulheres são
estabelecidas pelo estado com vista à procriação de filhos sãos. E os
filhos são criados e educados pelo estado que a todos torna uma única
grande família. Estas duas condições tornam impossível um estado
segundo a injustiça, todas as vezes, é claro, que se verificar esta
outra: que o governo seja entregue aos filósofos.

A natureza da justiça esclarece-se indirectamente pela determinação da


injustiça. O estado de que fala Platão é o estado aristocrático, em que
o governo pertence aos melhores. Mas esse estado não corresponde a
nenhuma das formas de governo existentes. Todas estas são degenerações,
do estado perfeito; e os topos de homem correspondentes são
degenerações do homem justo, que é uno em si e com a comunidade, pois
que é fiel à sua tarefa. São três as degenerações do estado e três as
correspondentes degenerações do indivíduo. A primeira é a timocracia,
governo fundado na honra, que nasce quando os governantes se apropriam
de terras e de casas; corresponde-lhe o homem timocrático, ambicioso e
amante do mandato e das honras, mas desconfiado em relação aos sábios.
A segunda forma é a oligarquia, governo fundado no património, em que
são os ricos quem comanda, corresponde-lhe o
184

homem hávido de riquezas, parco e laborioso. A terceira forma é a


democracia, na qual os cidadãos são livres e a cada um é permitido
fazer o que quiser; corresponde-lhe o homem democrático, que não é
parco como o oligárquico, antes tende a abandonar-se a desejos
descomedidos. Finalmente, a mais baixa de todas as formas de governo é
a tirania, que nasce frequentemente da excessiva liberdade da
democracia. É a forma mais desprezível, porque o tirano, para se
proteger do ódio dos cidadãos, é obrigado a rodear-se dos piores
indivíduos. O homem tirânico é escravo das suas paixões, às quais se
abandona desordenadamente, e é o mais infeliz dos homens.

§ 52. O FILÓSOFO

A parte central da República dedica-se ao delineamento da tarefa


própria do filósofo. Filósofo é aquele que ama o conhecimento na sua
totalidade e não somente em alguma sua parte singular. Mas que coisa é
o conhecimento? Pela vez primeira Platão põe aqui explicitamente o
critério fundamental da validade do conhecer: "Aquilo que absolutamente
é, é absolutamente cognoscível, aquilo que de nenhum modo é, de nenhum
modo é cognoscível" (477 a). Pelo que ao ser corresponde a ciência, que
é o conhecimento verdadeiro; ao não-ser, a ignorância; e ao devir, que
fica a meio do ser e do não-ser, corresponde a opinião (doxa), que está
a meio do conhecimento e da ignorância. Opinião e ciência constituem
todo o campo do conhecimento humano. A opinião tem como domínio seu o
conhecimento sensível, a ciência o conhecimento racional. Quer o
conhecimento sensível quer o conhecimento racional se dividem em duas
partes, que se
185

correspondem simetricamente; têm-se, assim, os seguintes graus do


conhecer (Rep., VI, 510-11).

1O - A suposição ou conjectura (eikasfa), que tem por objecto sombras e


imagem.

2.o - A opinião acreditada, mas não verificada (pistis), que tem por
objecto as coisas naturais, os seres vivos, os objectos da arte, etc..

3.o - A razão científica (diànoia), que procede por meio de hipótese


partindo do mundo sensível. Esta tem por objecto os entes matemáticos.

4.o - A inteligência filosófica (nóesis), que procede dialecticamente e


tem por objecto o mundo do ser.

Como as sombras, as imagens reflectidas, etc., são cópias das coisas


naturais, também as coisas naturais são cópias dos entes matemáticos e
estes, por sua vez, cópias das substâncias eternas que constituem o
mundo do ser. E, com efeito, o mundo do ser é o mundo da unidade e da
ordem absoluta. Os entes da matemática (números, figuras geométricas)
reproduzem a ordem e a proporção do mundo do ser. Por sua vez, as
coisas naturais reproduzem as relações matemáticas e, assim, quando
queremos julgar da realidade das coisas recorremos à medida. Todo o
conhecimento tem pois, no seu cume o conhecimento do ser: todo o grau
dele recebe o seu valor do grau superior e todos do primeiro.

O homem deve caminhar desde a opinião até à ciência educando-se


gradualmente; e este processo é descrito por Platão por meio do mito da
caverna. No mundo sensível, os homens são como escravos
agrilhoados numa caverna e obrigados a ver no fundo dela as sombras dos
seres e dos objectos projectadas por um fogo que arde fora.
Tomam estas sombras pela realidade, porque não conhecem a realidade
verdadeira. Se um escravo se libertasse
186

e conseguisse sair da caverna, não poderia a principio suportar a luz


do sol; teria que se habituar a olhar as sombras, depois as imagens dos
homens e das coisas reflectidas na água, em seguida as próprias coisas
e só no fim de tudo poderia alçar-se à contemplação dos astros e do
sol. Só então ele se aperceberia que é justamente o sol que nos dá as
estações e os anos e que governa tudo o que existe no mundo visível, e
que do sol dependem ainda as coisas que ele e os seus companheiros viam
na caverna. Ora a caverna é precisamente o mundo sensível; as sombras
projectadas no fundo são os seres naturais; o fogo é o sol. O nosso
conhecimento das coisas naturais é como o dos escravos. Se o escravo
que primeiro se libertou voltar à caverna, os seus olhos serão
ofuscados pela obscuridade e não saberá discernir as sombras; pelo que
será escarnecido e desprezado pelos companheiros, que concederão as
honras máximas aos que sabem mais agudamente ver as sombras. Mas ele
sabe que a verdadeira realidade está fora da caverna, que o verdadeiro
conhecimento não é o das sombras e, por isso, não experimentará senão
compaixão para com aqueles que se contentam com tal conhecimento e o
julgam verdadeiro.

A educação consistirá, pois, em volver o homem da consideração do mundo


sensível à consideração do mundo do ser; e em conduzi-lo gradualmente a
avistar o ponto mais alto do ser, que é o bem. Para preparar o homem
para a visão do bem podem servir as ciências que têm por objecto
aqueles aspectos do ser que mais se aproximam do bem: a aritmética como
arte do cálculo que permite corrigir as aparências dos sentidos; a
geometria como ciência dos entes imutáveis; a astronomia como ciência
do movimento mais ordenado e perfeito, o dos céus; a música como
ciência da harmonia. O bem corresponde no mundo do ser ao
187
que o sol é no mundo sensível. Como o sol não só torna visível as
coisas com a sua luz mas as faz nascer, crescer e alimentar-se, assim o
bem não só torna cognoscívéis as substâncias que constituem o mundo
inteligível, mas lhos dá ainda o ser de que são dotadas. -Por esta sua
preeminência o bem não é uma ideia entre as outras, mas a causa das
ideias: não é substância, no sentido em que as ideias são substâncias,
mas é "superior à substância". Diz Platão: "As coisas cognoscívéis não
derivam, do bem somente a sua cognoscibilidade, mas também o ser e a
substância, enquanto o bem não seja substância mas, em querer e poder,
se situe ainda acima da substância" (Rep., 509 b). O bem é a própria
perfeição, ao passo que as ideias são perfeições, isto é, bens; e não é
o ser, porque é a causa do ser. Este texto platónico está na base de
todas as interpretações religiosas do platonismo que foram iniciadas
pelas correntes neoplatónicas da antiguidade (§§ 114 ss.). Estas
correntes, insistindo na causalidade do bem, identificam-no como Deus:
mas esta identificação não encontra justificação nos textos platónicos.
A tese que Platão defende na passagem citada é a mesma que havia
defendido no Fédon: a identificação do poder causal com a perfeição,
visto que uma coisa possui tanto mais causalidade quanto mais perfeita
é. O neoplatonismo apropriou-se desta tese; mas as implicações
teológicas que o neoplatonismo lhe atribui são estranhas ao pensamento
platónico.

A inspiração fundamental deste pensamento é, como já se disse, a


finalidade política da filosofia. Em vista desta finalidade, o ponto
mais alto da filosofia não é a contemplação do bem como causa suprema:
é a utilização de todos os conhecimentos que o filósofo pôde adquirir
para a fundação de uma comunidade justa e feliz. Segundo Platão, com
efeito, faz parte da educação do filósofo o regresso
188

à caverna, que consiste na reconsideração e na reavaliação do mundo


humano à luz do que se viu fora deste mundo. Regressar à caverna
significa, para o homem, pôr o que viu à disposição da comunidade, dar-
se conta ele próprio deste mundo que, apesar de inferior, é o mundo
humano, portanto o seu mundo, e obedecer ao vinculo de justiça que o
liga à humanidade na sua própria pessoa e na dos outros. Deverá, pois,
reabituar-se à obscuridade da caverna, e então verá melhor do que os
companheiros que ali permaneceram e reconhecerá a natureza e os
caracteres de cada imagem, por ter visto o seu verdadeiro exemplar: a
beleza, a justiça e o bem. Assim poderá o estado ser constituído e
governado por gente desperta e não já, como acontece agora, por gente
que sonha e combate entre si por sombras, e disputa o poder como se
este fosse um grande bem (VII, 520 c). Só com o regresso à caverna, só
comprometendo-se no mundo humano, o homem terá completado a sua
educação e será verdadeiramente filósofo.

53. CONDENAÇÃO DA ARTE IMITATIVA

A filosofia é uma vida "em vigília", exige o abandono de toda a ilusão


sobre a realidade das sombras que nos jungem ao mundo sensível. A arte
imitativa, ao invés, está presa a esta ilusão; daqui a condenação que
Platão pronuncia sobre ela no livro X da República. Com efeito, a
imitação, por exemplo a da pintura, apoia-se na aparência dos objectos;
representa-os diversos nas diversas perspectivas enquanto são os
mesmos, e não reproduz senão uma pequena parte da própria aparência,
pelo que não consegue enganar senão as crianças e os tolos. Isto
acontece por prescindir completamente do cálculo e da medida de que nos
servimos
189

para corrigir as ilusões dos sentidos. Estes fazem-nos parecer os


mesmos objectos ora quebrados, ora direitos, conforme sejam vistos
dentro ou fora da água, e côncavos ou convexos, grandes ou pequenos,
pesados ou leves, por meio de outras ilusões. Nós superamos estas
ilusões recorrendo à parte superior da alma, que intervém para medir,
para calcular, para pesar. Mas a imitação, que renuncia a estas
operações, volve-se exclusivamente para a parte inferior da alma, que é
a mais afastada da sageza. O mesmo faz a poesia. Esta excita a parte
emotiva da alma, a que se abandona aos impulsos e ignora a ordem e a
medida em que consiste a virtude; e assim vIra as costas à razão. O
erro da poesia trágica ou cómica é ainda mais grave; faz-nos comover
com as desgraças fictícias que se vêem na cena, leva-nos a rir
imoderadamente de atitudes chocarreiras que todos devem na realidade
condenar, e deste modo encoraja e fortalece a parte pior do homem. A
isto acrescenta-se a observação (já feita no Ion) de que o poeta não
sabe verdadeiramente nada, pois de outro modo preferiria realizar os
efeitos que canta ou praticar as artes que descreve; e teremos o quadro
completo da condenação que Platão pronuncia sobre a arte imitativa.

Nenhum valor pode, por isso, ter a criação em que ela consiste. Se a
divindade cria a forma natural das coisas, se o artesão reproduz esta
forma nos móveis e nos objectos que cria, o artista não faz mais que
reproduzir os móveis ou os objectos criados pelo artesão e ficará, por
conseguinte, ainda mais afastado da realidade das coisas naturais.
Estas não têm realidade senão enquanto participam das determinações
matemáticas (medida, número, peso) que lhes eliminam a desordem e os
contrastes; ora a imitação prescinde precisamente destas determinações
matemáticas e contraditórias: não pode, pois,
190

aspirar a nenhum grau de validade objectiva, e tende a encerrar o homem


naquela ilusão de realidade de que a filosofia deve despertá-lo.

§ 54. O MITO DO DESTINO

Um estado como o delineado por Platão não é historicamente real. Platão


diz explicitamente que não importa a sua realidade, mas tão só que o
homem aja e viva em conformidade com ele (IX,
592 b). Sócrates foi o cidadão ideal desta ideal comunidade; por ela e
nela viveu e morreu. Certamente por isto chama-o Platão "o homem mais
justo e melhor". E. a exemplo de Sócrates, quem quiser ser justo deve
ter os olhos postos numa tal comunidade.

A justiça, como felicidade do homem à tarefa que lhe é própria, dá


lugar ao problema do destino. É o problema debatido no mito final da
República, e já referido no Fedro (249 b). Platão projecta miticamente
a escolha do próprio destino, que cada um faz no mundo do além: mas o
significado do mito, como de todos os mitos platónicos, é fundamental.
Er, morto em batalha e ressuscitado ao fim de 12 dias, pôde narrar aos
homens a sorte que os espera depois da morte. A parte central da
narração de Er diz respeito à escolha da vida que as almas são
convidadas a fazer no momento da sua reencarnação. A Parca Làchesi, que
notifica da escolha, afirma a liberdade desta. "Não é o demónio que
escolherá a vossa sorte, sois vós que escolheis o vosso demónio. O
primeiro que a sorte designar será o primeiro a escolher o teor de vida
a que ficará necessariamente ligado. A virtude é livre em todos, cada
um participará dela mais ou menos consoante a estima ou a despreza.
Cada um é responsável pelo próprio destino, a divindade não
191

é responsável" (Rep., x, 617 e). As almas escolhem, por conseguinte,


segundo a ordem designada pela sorte, um dos modelos de vida que têm
ante si em grande número. A sua escolha depende em parte do acaso, uma
vez que os primeiros têm maior possibilidade de escolha; mas também os
que escolhem no fim, se escolherem judiciosamente, podem obter uma vida
feliz. Todo o significado do mito está nos motivos que sugerem à alma a
escolha decisiva. Até os que vêm do céu às vezes escolhem mal, "porque
não foram experimentados pelos sofrimentos" e deixam-se assim
deslumbrar por modelos de vida aparentemente brilhantes, pela riqueza
ou pelo poder que encobrem a infelicidade e o mal. Mas as mais das
vezes a alma escolhe com base na experiência da vida precedente; e,
assim, a alma de Ulisses, lembrada dos antigos trabalhos e despida já
de ambição, escolhe a vida mais modesta e obscura, que fora descurada
por todos. De maneira que o mito, que parecia negar a liberdade do
homem na vida terrena e fazer depender todo o desenvolvimento desta
vida da decisão acontecida num momento antecedente, confirma ao
contrário a liberdade, porque faz depender a decisão da conduta que a
alma teve no mundo: daquilo que o homem quis ser e foi nesta vida.
Sócrates pode então pôr o homem em guarda e adverti-lo a preparar-se
para a escolha. "É este o momento mais perigoso do homem e isto porque
cada um de nós, descuidando todas as outras ocupações, deve procurar
atender somente a isto: descobrir e reconhecer o homem que o porá capaz
de discernir o melhor género de vida e de sabê-lo escolher. (618 c).
Para isto é necessário calcular que efeitos têm sobre a virtude as
condições de vida, que resultados bons ou maus produz a beleza quando
se une à pobreza, ou à riqueza, ou às diversas capacidades da alma, ou
a quaisquer outras
192

condições da vida; e só considerando tudo isto em relação com a


natureza da alma se pode escolher a vida melhor, que é a mais justa.
"Em vida ou na morte, esta escolha é a melhor para o homem".

Este mito do destino, que afirma a liberdade do homem no decidir da


própria vida, fecha dignamente a República, o diálogo sobre a justiça,
que é a virtude pela qual todo o homem deve assumir e levar a cabo a
tarefa que lhe incumbe.

§ 55. FASE CRITICA DO PLATONISMO: "PARMéNIDES" E O "TEETETO"

Pela primeira vez Sócrates não é, no Parménides, a personagem principal


do diálogo. A investigação platónica sobre o verdadeiro significado da
personalidade de Sócrates rasgou enfim o invólucro doutrinal, de que
estava historicamente revestida. Os resultados que ela alcançou
levantam outros problemas, requerem outras determinações, problemas e
determinações que não encontram apoio na letra do ensino socrático, mas
que são no entanto necessários para compreender plenamente tal ensino e
para lhe conferir a sua justificação definitiva. A pesquisa de Platão
torna-se cada vez mais técnica, o campo de investigação delimita-se e
aprofunda-se. Depois da grande síntese da República, a pesquisa procura
atingir outros níveis de profundidade, para o que se devem admitir à
partida os ensinamentos de outros mestres e, em primeiro lugar, de
PARMéNIDES.

O Parménides marca o ponto crítico no desenvolvimento da teoria das


ideias. As ideias aparecem neste diálogo definidas (ou redefinidas) e
classificadas e são formulados claramente os problemas a que elas dão
lugar, quer nas suas relações recíprocas, quer nas suas relações com as
coisas, quer ainda nas suas relações com a mente humana.
193
Podem tomar-se as respostas que Sócrates dá a Parménides, na introdução
do diálogo, como constituindo, no seu conjunto, uma olhadela critica
que o próprio Platão lançou, em dado momento, sobre a doutrina
fundamental da sua filosofia. Tais respostas encontram, de facto,
confirmações literais nas referências às ideias, que se podem observar
nos outros Diálogos de Platão.

Em primeiro lugar: o que é a ideia? "Penso eu que -tu julgas-diz


Parménides (132 a)-que há uma forma individual em cada caso, por este
motivo: quando observas muitas coisas grandes, julgas que há uma única
ideia que é a mesma quando se olham todas essas coisas e que, por
conseguinte, a grandeza é uma unidade". Por outras palavras, a ideia é
a forma única de um múltiplo que aparece como tal a quem abrange este
múltiplo com um só golpe de vista intelectual: é esta a definição que
melhor se presta para exprimir a noção da ideia, tal como é utilizada
em toda a obra de Platão.

Em segundo lugar: de que objectos há ideias? A resposta do Parménides


(130 b-d) é que: há seguramente ideias de objectos como a semelhança e
a dissemelhança, a pluralidade e a unidade, o repouso e o movimento, o
um e os muitos, etc.; b) há seguramente ideias do justo, do bem, do
belo, e de todas as outras determinações deste género; c) é duvidoso
que haja ideias de objectos como homem, fogo, água, etc.; d) não há,
com certeza, ideias de objectos desprezíveis ou ridículos como cabelo,
lodo, porcaria, etc.. Estas respostas encontram plena confirmação na
obra de Platão. Que haja ideias dos objectos da espécie a), ou seja de
objectos matemáticos, é doutrina platónica fundamental. São estas as
ideias que, na República, Platão considera objecto da razão científica,
por conseguinte das ciências matemáticas (Rep., 510 c). É também
doutrina fundamental do platonismo que haja as ideias-
194

-valores, que são o objecto específico da filosofia em sentido estricto


(dialéctica), ou seja da inteligência ou pensamento (noesis) (Rep., 534
a). A dúvida acerca da existência de ideias de coisas sensíveis
corresponde a uma conhecida oscilação do pensamento platónico sobre
este assunto. As mais das vezes Platão nem sequer fala de ideias do
género, limitando a sua exemplificação aos entes matemáticos e aos
valores; outras vezes, porém, fala também de ideias de coisas: por
exemplo do frio e do calor (Fed., 103 d); de camas e de mesas (Rep.,
596 a-b); do homem ou do boi (Fil., 15 a); do fogo e da água (Tim., 51
a-b). Esta oscilação da doutrina platónica pode exprimir-se bastante
bem dizendo que Platão se manteve "em dúvida" no que respeita às ideias
de objectos sensíveis. Quanto aos objectos da classe d), Platão nunca
mais falou de ideias relativamente a eles: de maneira que a exclusão do
Parménides corresponde também aqui a uma situação de facto. Todavia, a
dúvida a respeito das ideias de objectos sensíveis e a negação das
ideias de objectos desprezíveis são abaladas pela observação de
Parménides de que Sócrates, neste caso, se deixou influenciar pelas
opiniões dos homens e que, quando a filosofia o prender completamente,
ele não desprezará coisa alguma por insignificante e miserável que ela
seja (Par., 130 e). Esta observação anuncia óbviamente uma noção de
ideia de tipo lógico-ontológico mais do que matemático-ético: isto é,
uma noção que se firme nos caracteres puramente formais de um múltiplo
para ir reconhecer neste unia forma ontológica única, e que se não
deixe embaraçar neste procedimento por considerações éticas. Com
efeito, é esta a posição que podemos encontrar nos diálogos platónicos
posteriores ao Parménides e mais precisamente no Sofista, no Filebo, no
Timeu.
195

Em terceiro lugar: qual é a relação entre as ideias e a mente do homem?


O Parménides acrescenta dois pontos a este propósito: 1) as ideias não
existem somente como pensamentos na mente dos homens: com efeito,
seriam neste caso pensamentos de nada (132 b); 2) as ideias não existem
fora de toda a relação com o homem: com efeito, seriam neste caso
incognoscíveis para o homem, visto que objecto de uma "ciência em si"
que não teria nada que ver com a do homem e poderia pertencer somente à
divindade (134 a-e). Estas duas determinações são fundamentais: ambas
correspondem a pontos de vista constantemente sustentados por Platão em
toda a sua obra.

Em quarto lugar: quais são as relações das ideias entre si e das ideias
com os objectos de que constituem a unidade? Este é o problema
fundamental que se discute em todo o resto do diálogo como problema das
relações entre o um e os muitos.
O um é a ideia: os muitos são os objectos de que a ideia é a unidade.
No que respeita a esta relação, a dificuldade consiste em compreender
como poderá a ideia ser participada por muitos objectos ou derramada
neles sem que resulte com isso multiplicada e, portanto, destruída na
sua unidade. Por outro lado, da mesma noção de ideia parece emanar a
multiplicação das próprias ideias até ao infinito: uma vez que se tem
uma ideia todas as vezes que se considera na sua unidade uma
multiplicidade de objectos, ter-se-á também uma ideia quando se
considerar a totalidade destes objectos mais a sua ideia. Esta será uma
terceira ideia que, se considerada por sua vez conjuntamente com os
objectos e a precedente ideia, dará lugar a uma quarta ideia, e assim
por diante até ao infinito. É este o chamado argumento do "terceiro
homem", cuja invenção se atribuía ao megárico Polixeno e que
Aristóteles refere várias vezes (Met., 990 b, 15; 1038 b, 30;
196

1059 b, 2). Não se escapa a esta dificuldade definindo como


"semelhança" a relação entre a ideia e os objectos, e considerando a
ideia como arquétipo e os objectos como imagens ou cópias dela: pois
que a própria semelhança se torna neste caso uma ideia que se
acrescenta como terceiro termo aos objectos e à ideia, dando lugar a
uma nova semelhança, etc..

Estas dificuldades são de tal monta que Parménides dirige a Sócrates


uma pergunta crucial: "Que farás agora da filosofia?" Com efeito, não
se pode abandonar facilmente a noção de ideia, pois que sem ela, quer
dizer, sem um ponto fixo no meio da multiplicidade e variabilidade das
coisas, não se pode pensar e ainda menos se pode filosofar: sem a
ideia, a própria possibilidade de dialogar ficaria destruída (135 c). O
único caminho de salvação é o que o próprio Parménides traça: discutir,
como hipótese, todos os possíveis modos de relação entre o um e os
muitos e levar até ao fundo as consequências que derivam de cada uma
das hipóteses. E as hipóteses fundamentais são duas: que o uno seja uno
no sentido de ser absolutamente uno; e que o uno seja na sentido de
existir. A primeira hipótese refuta-se por si, visto que, excluindo a
existência de qualquer multiplicidade, não só se exclui todo o devir
mas também o ser do uno e a própria possibilidade de conhecer ou
enunciar o uno: pois que o próprio conhecê-lo ou enunciá-lo o
multiplica (142 a). Se, ao invés, o uno é , no sentido de que existe, o
seu existir, distinguindo-se da sua unidade, introduz prontamente no
próprio uno uma dualidade que pode ser multiplicada e incluir a
multiplicidade, o devir e, assim, a cognoscibilidade e enunciabilidade
do uno (155 d-c).

Há, no entanto, um sentido em que o uno não é (e em que, por isso, tão-
pouco o múltiplo é): o uno não é no sentido de que não é absolutamente
197

uno, de que não subsiste -fora da sua relação com o múltiplo, de que
não exclui o próprio multiplicar-se e articular-se em um múltiplo que,
apesar do sujeito ao devir e ao tempo, constitui sempre uma ordem
numérica, ou seja uma unidade. E os muitos não são no sentido de que
não são pura e absolutamente muitos, ou seja, privados de qualquer
unidade, pois que em tal caso se dispersariam e pulverizariam no nada,
não podendo constituir um múltiplo. O uno, por conseguinte, é (existe),
mas ao mesmo tempo não é absolutamente uno: os muitos são (existem),
mas ao mesmo tempo não são absolutamente muitos.

O diálogo traça, sob a forma de uma solução puramente lógica, uma


conexão vital entre o uno e os muitos, por conseguinte entre o mundo do
ser e o mundo do homem. Pela boca de Parménides, que na sua filosofia
negara resolutamente o não-ser (§ 14), prepara-se o reconhecimento da
realidade do não-ser (do mundo sensível e do homem), mediante a
afirmação da estreita relação dos muitos com o uno. Esta reivindicação
será feita explicitamente no Sofista; mas ela pressupõe a investigação
sobre o processo subjectivo do conhecer, que se realiza no Teeteto.

Pode parecer estranho que nesta fase de desenvolvimento da investigação


platónica apareça um diálogo abertamente socrático em que a personagem
de Sócrates é introduzida para fazer valer em toda a sua força negativa
e destruidora a arte maiêutica (§ 27). Mas o Teeteto debate um problema
que reentra no âmbito do ensino socrático, o da ciência, e tem um
escopo predominantemente crítico, querendo demonstrar como é impossível
alcançar qualquer definição da ciência permanecendo no domínio da pura
subjectividade cognoscente. A finalidade do Teeteto é complementar e
convergente com a do Parménides. O Parménides pretendeu
198

demonstrar que é impossível considerar o ser no seu isolamento, como


unidade absoluta sem relação com o homem e com o seu mundo (com os
"muitos"). O Teeteto pretende demonstrar que é impossível considerar o
conhecimento verdadeiro, a ciência, como pura subjectividade, sem
relação com o mundo do ser (com o " uno"). Nas definições que se dão da
ciência e que são refutadas por Sócrates uma por uma, não aparece de
facto qualquer referência ao mundo das ideias ou do ser em si; e o
diálogo termina negativamente. Parménides, o filósofo do ser, é
introduzido no diálogo que tem o seu nome para demonstrar a
insuficiência do ser na sua objectividade. Sócrates, o filósofo da
subjectividade humana, é introduzido no Teeteto para demonstrar a
insuficiência do conhecimento como subjectividade isolada do ser.

A tese que no Teeteto primeiro e mais longamente se discute é a tese da


extrema subjectividade do conhecer, a de Protágoras: a ciência é a
opinião, é o que aparece, logo é sensação. Mas a sensação não fornece
qualquer critério de juízo por que a sensação do ignorante equivale à
do sábio, a do são à do doente, a do homem à do animal; enquanto a
ciência deve possuir um critério, uma medida que permita julgar do
valor das coisas inclusivamente para o futuro (de que não há sensação).
Pode então dizer-se que a ciência é opinião verdadeira, entendendo por
opinião o pensamento. "Pensar é um discurso que a alma faz por si
consigo mesma, acerca dos objectos que examina. Parece-me a mim que
quando a alma pensa não faz mais que dialogar consigo mesma,
interrogando-se e respondendo-se, afirmando e negando" (189 e 190-a).
Mas esta nova definição, se reduz a metade a relatividade e a
mutabilidade que a primeira punha na ciência, continua encerrada no
âmbito da subjectividade. Se a ciência é opinião verdadeira, deve
distinguir-se
199

da opinião falsa; ora é impossível determinar em que consiste a


falsidade de uma opinião. No entanto, a opinião deve ter sempre, como
se viu já (§ 49), um objecto real; e se iem um objecto real, é
verdadeira. Acrescentar que a ciência consiste na opinião verdadeira
acompanhada de razão, não ajuda nada; uma vez que, seja como for que se
entenda a razão que deve justificar e apoiar a opinião verdadeira,
fica-se no âmbito do pensamento subjectivo e não se garante de nenhum
modo a validade objectiva do conhecimento.

A conclusão negativa do Teeteto é fecunda em resultados. A tentativa de


reduzir a ciência ao pensamento subjectivo, ao colóquio interior da
alma consigo mesma, não tem sucesso: como não tem sucesso a tentativa
de reduzir o ser à pura objectividade, às ideias, sem nenhuma relação
com a inteligência do homem. As indicações do Parménides e do Teeteto
são, pois, claras. Se se quer justificar a realidade do ser e a verdade
do conhecimento, necessário é que se alcance um ser que não seja
puramente objectivo, mas que compreenda em si o conhecimento, ou um
conhecimento que não seja puramente subjectivo, mas que compreenda em
si o ser.

§ 56. O SER E AS SUAS FORMAS

A esta conclusão se chega explicitamente no Sofista. Contra os "amigos


das ideias", quer dizer contra a interpretação objectivista da teoria
das ideias, afirma-se resolutamente a impossibilidade de que "o ser
perfeito seja privado de movimento, de vida, de alma, de inteligência,
e que não viva nem pense". É necessário admitir que o ser compreende em
si a inteligência (ou o sujeito) que o conhece; esta, como se viu desde
o Parménides, não
200

pode ficar fora do ser, de outro modo o ser permaneceria desconhecido.


Mas a inclusão da inteligência no ser modifica radicalmente a natureza
do ser. Este não é imóvel, porque a inteligência é vida e por isso
movimento: o movimento é pois uma determinação fundamental, uma forma
(eidos) do ser. Isto não quer dizer que o ser se mova em todos os
sentidos, como sustentam os Heracliteanos; é necessário admitir que o
ser é, ao mesmo tempo, movimento e repouso. Mas na medida em que os
compreende a ambos não é uma coisa nem a outra, ainda que possa ser
ambas: por conseguinte ser. O ser é comum ao movimento e ao repouso;
mas nem o movimento nem o repouso são todo o ser. Cada uma destas
determinações ou formas é idêntica a si mesma, e diferente da outra: o
idêntico e o diferente serão pois outras duas determinações do ser, que
assim se elevam a cinco: ser, repouso, movimento, identidade,
diversidade. Mas a diversidade de cada uma destas formas da outra
significa que cada uma delas não é a outra (o movimento não é o
repouso, etc.); pelo que a diversidade é um não-ser e o não-ser de
qualquer modo é, porque, como diversidade, é uma das formas
fundamentais do ser. Desta maneira completou o estrangeiro eleata, o
discípulo de Parménides que é o protagonista do Sofista, o necessário
"parricídio" contra Parménides: utilizando a pesquisa eleática, Platão
foi além dela, unindo ao ser parmenídeo a subjectividade socrática e
fazendo consequentemente viver e mover o ser.

Esta determinação das cinco formas (ou géneros) do ser funda (ou funda-
se em) uma nova concepção do ser: nova porque diferente da que Platão
já via aceite na filosofia sua contemporânea. Em primeiro lugar, ela
exclui que o ser se reduza à existência corpórea como sustentam os
201

materialistas: dado que se diz que "são" não só tais coisas corpóreas
mas também as incorpóreas, como por exemplo a virtude (247 d). Em
segundo lugar, ela exclui que o ser se reduza às formas ideais como
sustentam " os amigos das formas", pois que neste caso se excluiria do
ser o conhecimento do ser e daí a inteligência e a vida (248 c-249 a).
Em terceiro lugar, ela exclui que o ser seja necessariamente imóvel
(isto é que "tudo seja imóvel") ou que o ser seja necessariamente em
movimento (isto é que "tudo seja em movimento") (249 d). Em quarto
lugar, exclui que todas as determinações do ser possam combinar-se
entre si ou que todas se excluam reciprocamente (252 a-d). Por outro
lado, como se viu, o ser deverá no entanto compreender o não-ser como
alteridade. Sobre estas bases, o ser não pode definir-se de outro modo
que não seja como possibilidade (dynamis); e deve dizer-se que "é toda
a coisa que se ache na posse de uma qualquer possibilidade, seja de
agir seja de sofrer, da parte de qualquer outra coisa, ainda que
insignificante, uma acção ainda que mínima e ainda que de uma só vez"
(247 e). A possibilidade, de que fala Platão, não tem nada a ver com a
potência de Aristóteles. Efectivamente a potência é tal, só nas
comparações com um acto que, unicamente ele, é o sentido fundamental do
ser. Para Platão, porém, o sentido fundamental do ser é precisamente a
possibilidade. E é o ser assim concebido que torna possível, segundo
Platão, a ciência filosófica por excelência, a dialéctica.

§ 57. A DIALÉCTICA

A dialéctica é a arte do diálogo; mas diálogo


é para Platão toda a operação cognoscitiva visto que o próprio
pensamento (como se viu, § 45) é
202

um diálogo da alma consigo mesma. A dialéctica é, em geral, o processo


próprio da investigação racional, portanto também a técnica que dá
rigor e precisão a esta investigação. Ela é uma técnica de invenção ou
de descoberta, não (como a silogística de Aristóteles) de simples
demonstração. São dois os momentos que a constituem:

1) O primeiro momento consiste em reduzir a uma única ideia as coisas


dispersas e em definir essa a ideia de modo a torná-la comunicável a
todos (Fedro, 265 c). Na República Platão diz que, no remontar às
ideias, a dialéctica se situa para além das ciências matemáticas porque
considera as hipóteses (que as ciências não estão em condições de
justificar) como simples hipóteses, quer dizer como pontos de partida
para chegar aos princípios de que se pode depois descer até às
conclusões últimas (Rep., VI, 511 b-c). Mas nos diálogos posteriores
este segundo processo é melhor explicitado como técnica da divisão.

2) O momento da divisão, que consiste "em poder dividir novamente a


ideia nas suas espécies segundo as suas articulações naturais e
evitando despedaçar-lhe as partes como faria um trinchante inábil"
(Fedro, 265 d). Nesta segunda fase, é função da dialéctica "dividir
segundo géneros e não tomar por diferente a mesma forma ou por idêntica
uma forma diferente" (Sof., 253 d). O resultado deste segundo
procedimento não é seguro em todos os casos. Em um passo famoso do
Sofista Platão enumera as três alternativas com que pode topar o
processo, a saber: 1) que uma única ideia penetre e abranja muitas
outras ideias, que no entanto continuam separadas dela e exteriores uma
à outra;
2) que uma única ideia reduza à unidade muitas outras ideias na sua
totalidade; 3) que muitas ideias fiquem inteiramente distintas entre si
203

(253 d). Estas três alternativas apresentam dois casos extremos: o da


unidade de muitas ideias-em uma delas e o da sua heterogeneidade
radical; e, por outro lado, uma caso intermédio, que é o de uma ideia
que abrange outras ideias sem todavia as fundir em unidade. Qual destes
três casos possa verificar-se numa investigação particular, é coisa que
só a própria investigação pode decidir.

Platão pôs em acção a investigação dialéctica no Fedro, no Sofista e no


Político. Nestes diálogos ele procedeu primeiro à definição da ideia,
em seguida à divisão da própria ideia em duas partes, chamadas
respectivamente a parte esquerda e a parte direita e distintas pela
presença ou pela ausência de uma certa propriedade, e assim por diante
(Fedro, 266 a-b). O processo pode fechar-se em um certo ponto ou
retomar-se, começando por uma outra ideia. Por fim, poderão reunir-se
ou recapitular-se as determinações assim obtidas em todo o processo
(Sof., 268 c). A natureza da dialéctica neste sentido é, por
conseguinte, a possibilidade da escolha, permitida em todos os passos,
da característica adequada para determinar a divisão da ideia em
direita e esquerda de maneira oportuna, ou seja tal que siga a
articulação da ideia e não "rompa" a própria ideia. A escolha constitui
a hipótese do procedimento dialéctico; a hipótese que a dialéctica
assume como tal, para a pôr à prova e para a justificar, e que por isso
se distingue das hipóteses das disciplinas matemáticas que são
assumidas como princípios primeiros, em que se não ousa tocar (Rep.,
VII, 533 c). O mundo em que se move a dialéctica é, portanto, um mundo
de formas, quer dizer de géneros ou espécies do ser que podem conectar-
se ou não e serem mais ou menos conexos: é um mundo de conexões
possíveis, competindo precisamente à dialéctica determinar-lhes a
possibilidade.
204

Neste ponto, Platão afastou-se muito da noção das ideias-valores de que


tratava a sua primeira especulação. As ideias como géneros e formas do
ser são neutras nos confrontos do valor. Platão fez sua a advertência
de Parménides de considerar todas as formas do ser sem tomar em
consideração o valor que os homens lhes atribuem. Se na República,
punha no cume do ser o Rem e considerava as ideias fundadas neste valor
supremo, no Sofistas quis definir somente o ser, na sua estrutura
formal, nas suas possibilidades constitutivas.

§ 58. O BEM

Portanto, quando Platão voltar a ocupar-se do bem nesta fase do seu


pensamento, como acontece no Filebo, o conceito que terá presente não
será o mesmo. O bem já não é a super-substância, mas a forma da vida
própria do homem; e a pesquisa do bem é a pesquisa sobre a qual é esta
forma de vida.

Ora, segundo Platão, a vida do homem não pode ser uma vida fundada no
prazer. Uma vida assim, que acabaria por excluir a consciência do
prazer, é própria do animal, que não do homem. Por outro lado, não pode
ser tão-pouco uma vida de pura inteligência, que seria divina, e não
humana. Deve ser, pois, uma vida mista de prazer e de inteligência. O
importante é determinar a justa proporção em que o prazer e a
inteligência devem mesclar-se conjuntamente para constituir a forma
perfeita do bem.
O problema do bem torna-se aqui um problema de medida, de proporção, de
conveniência: a investigação moral transforma-se numa investigação
metafísica de natureza matemática. Platão apoia-se em Pitágoras: e
recorre aos conceitos pitagóricos de limite e de ilimitado.
205

Toda a mesclança bem proporcionada é constituída por dois elementos. Um


é o ilimitado, como por exemplo o calor o frio, o prazer ou a dor, e em
geral tudo o que é susceptível de ser aumentado ou diminuído até ao
infinito. O outro é o limite, ou seja a ordem, a medida, o número, que
intervêm para determinar e definir o ilimitado. A função do limite é a
de reunir e unificar o que está disperso, concentrar o que se espalha,
ordenar o que está desordenado, dar número e medida ao que está privado
de um e do outro. O limite como número suprime a oposição entre o um e
os muitos, porque determinar o número significa reduzi-los à unidade.
dado que o número é sempre um conjunto ordenado. Por exemplo, no
ilimitado número dos sons a música distingue os três sons fundamentais,
o agudo, o médio e o grave, e desta maneira reduz o ilimitado à ordem
numérica. Ora a união do ilimitado e do limite é o género misto, a que
pertencem todas as coisas que têm proporção e beleza, e a causa do
género misto é a inteligência, que vem a ser, portanto, com o
ilimitado, o limite e o género misto, o quarto elemento constitutivo do
bem. A vida propriamente humana, como mesclança proporcionada de prazer
e de inteligência, é um género misto que tem como causa a inteligência.
A ela devem pertencer todas as ordens e espécies de conhecimento da
mais elevada ordem e espécie, que é a dialéctica, desde as ciências
puras, como a matemática, passando pelas ciências aplicadas como a
música, a medicina, etc., até à opinião, que tão-pouco pode ser
excluída, na medida em que é necessária à conduta prática da vida. No
que respeita aos prazeres, só os puros, ao contrário, deverão fazer
parte da vida mista, quer dizer os prazeres não ligados à dor da
necessidade, como
206

são os prazeres do conhecimento e os estéticos. provenientes da


contemplação das belas formas, das belas cores, etc.. Resulta daí que a
coisa melhor e mais alta para o homem, o bem supremo, é a ordem, a
medida, o justo meio. A este primeiro valor segue-se tudo o que é
proporcionado, belo e completo. Na terceira posição fica depois a
inteligência como causa da proporção e da beleza; na quarta, as
ciências e a opinião; na quinta, os prazeres puros.

O Filebo oferece assim ao homem a escala dos valores que resultam da


estrutura do ser dilucidada no Sofista. Esta escala coloca no cume o
conceito matemático da ordem e da medida. Platão, chegado ao termo dos
aprofundamentos sucessivos da sua pesquisa, considera que a ciência do
justo, de que Sócrates afirmam a estrita necessidade como único guia
-para a conduta do homem, deve ser substancialmente uma ciência da
medida. Um discípulo de Aristóteles, Aristoxeno (Harm., 30) conta que a
notícia de uma lição de Platão sobre o bem atraia numerosos ouvintes,
mas que aqueles que esperavam que Platão falasse dos bens humanos, como
a riqueza, a saúde, a felicidade, ficavam desiludidos mal ele começava
a falar de número e de limites e da suprema unidade que para ele era o
bem. Para Platão, na verdade, a redução da ciência da conduta humana a
ciência de número e de medida, representava a realização rigorosa do
projecto socrático de reduzir a virtude a ciência. Estava agora muito
afastado dos conceitos que haviam dominado o ensino de Sócrates; no
entanto, continuava a seguir de perto a directriz do mestre de reduzir
a virtude a uma disciplina rigorosa, que pudesse constituir a base do
ensino e da educação colectiva.
207

§ 59. A NATUREZA E A HISTÓRIA

Precisamente neste ponto perdia a sua razão de ser a recusa de Sócrates


em considerar o mundo natural. Pois que tudo o que este mundo possuir
de realidade e de valor deve ser explicado; e não pode sê-lo senão
integrando-o no mundo do ser. Por outro lado, como se viu, o mundo do
ser não subsiste separadamente do mundo da natureza, visto que o uno
não subsiste sem o múltiplo, nem a realidade sem a aparência. Se se
radicar no mundo do ser o homem com a sua vida e a sua inteligência,
deve também radicar-se no ser a natureza que é o mundo do homem. Um
estudo do mundo da natureza é, pois, possível: mas isso não significa
que ele constitua ciência. Platão reforça aqui o seu conceito de
ciência. A ciência incide somente sobre o que é estável e constante, e
concebível pela inteligência; sobre a natureza, que não tem constância
nem estabilidade, só pode haver conhecimentos prováveis (Tim., 29 c-d).
Uma "narração provável" é tudo o que Platão se propõe oferecer como
contributo pessoal à investigação natural. O probabilismo da Nova
Academia encontrava nestas afirmações de Platão o seu começo ou a sua
justificação. Seja como for, a pesquisa platónica assume
deliberadamente, neste ponto, a forma do mito.

A causa do mundo é um deus artesão ou demiurgo que o produziu pela


bondade sem mácula que quer difundir e multiplicar o bem. Ele criou a
natureza à semelhança do mundo do ser. E dado que este tem em si alma,
inteligência e vida, a natureza foi criada como um todo animado, um
gigantesco animal. Mas, uma vez que foi gerada, não podia ser, como o
modelo, incorpórea; devia, pois, ser corpórea, logo visível e tangível.
Para a tornar mais semelhante ao modelo, que é eterno, o demiurgo criou
o tempo, "uma imagem móvel da
208

eternidade": por ele o devir e o movimento da natureza seguem um ritmo


ordenado e constante, ritmo que se mostra com evidência nos movimentos
periódicos do céu.

O demiurgo é, pois, a causa de tudo o que no mundo é ordem, razão e


beleza; mas o mundo tem ainda uma outra causa que já não é
inteligência, mas necessidade. Com efeito, a inteligência operou no
mundo dominando a necessidade, persuadindo-a a conduzir para o bem a
maior parte das coisas que se criavam. A necessidade (ananche) é
representada como uma terceira natureza, algo assim como a mãe do
mundo, do mesmo modo que a ordem racional do mundo inteligível é o pai
do mundo. Este elemento primitivo é diferente de todos os elementos
visíveis (água, ar, terra e fogo), precisamente porque deve ser o
receptáculo e a origem comum deles. Trata-se de uma "espécie invisível
e amorfa, capaz de tudo acolher, participe do inteligível e difícil de
ser concebida". Evidentemente que este receptáculo informe, esta matriz
originária das coisas, é o princípio que limita a acção inteligente do
demiurgo e impede que o mundo natural, que dele resulta, tenha a mesma
ordem perfeita do mundo inteligível que é seu modelo. Além deste
princípio há depois o espaço (chora), que não admite destruição e é a
sede de tudo o que se gera; pelo que os princípios anteriores ao
nascimento do inundo natural são três: o ser, o espaço e a mãe de toda
a geração.

Destes três princípios, por obra do demiurgo ou dos deuses a quem ele
confiou a tarefa de continuar a criação, originaram-se todos os seres e
todas as coisas naturais: por isso, à acção da inteligência, que é a
causa primeira fundamental, se juntam as causas secundárias, nas quais
agem, com uma lei de necessidade. os outros
209

princípios da geração, o receptáculo informe e o espaço-

Como se vê, não há qualquer apoio, nesta cosmologia platónica, para a


identificação da divindade com o bem sobre que se centra a
interpretação neoplatónica (quer dizer religiosa) do platonismo.
Recordar-se-á 52) que para Platão o bem é causa das ideias (ou
substâncias), no das coisas naturais. A divindade, por seu turno, é o
artífice das coisas naturais, não já do bem e das ideias. O bem e as
ideias entram na criação do mundo natural como critérios directivos ou
limites da acção da divindade, juntos às outras condições ou limites
que são a necessidade e o espaço. O bem e as ideias constituem,
portanto, as estruturas axiológicas que o demiurgo realizou no mundo
natural; mas tais estruturas são, segundo Platão, tão independentes da
divindade como o são, segundo Aristóteles, as estruturas substanciais
ou ontológicas de que o mundo é constituído. Há que sublinhar, por
conseguinte, o carácter politeísta do conceito de divindade que Platão
nos apresenta no Timeu: a divindade é participada por vários deuses,
cada um dos quais tem uma função e domínio próprios, sendo o demiurgo
tão só o seu chefe hierárquico.

Platão apresenta-nos a cosmologia do Timeu como a continuação e o


complemento da República. Ele diz que após ter delineado o estado ideal
se tem a mesma impressão que se experimenta ao ver animais belos, mas
imóveis: sente "o desejo de vê-los mover-se". Por isso quer dar
movimento ao estado que delineou; quer ver como se comportaria ele nas
lutas e circunstâncias que deve afrontar. Por isso começa no Timeu a
descrever a génese do mundo natural que é teatro da sua história. Em um
diálogo posterior, o Crítias, deveria delinear a história hipotética do
seu estado ideal; o diálogo interrompe-se bruscamente após os primeiros
capí-
210

tulos, mas nestes já se entrevê como seria a concepção platónica da


história. Trata-se de uma concepção que vê na história uma sucessão de
idades, em que a seguinte é menos perfeita que a precedente. Hesíodo
falara de cinco idades: a do ouro, a da prata, a do bronze, a dos
heróis e a dos homens (Trab., 109-79), Platão redu-las a três: 1) a
idade dos deuses, que colonizaram a terra criando os homens como os
pastores criam hoje os rebanhos; 2) a idade dos heróis, que nasceram na
Ática, a região da terra colonizada por Efesto e Atena: 3) a
idade dos homens que, por largo tempo dominados pelo aguilhão das
necessidades, quase esqueceram a tradição heróica (Crítias, 109 b
segs.). Reproduzida por outros escritores da antiguidade, esta divisão
foi depois retomada no século XVIII por Vico, que no entanto lhe
alterou o significado, considerando como final e perfeita a idade dos
homens e dando, por conseguinte, um significado progressivo à sucessão
das idades.

§ 60. O PROBLEMA POLITICO COMO PROBLEMA DAS LEIS

A última actividade de Platão é ainda dedicada ao problema político. No


Político, Platão indaga qual deve ser a arte própria do governante dos
povos. E a conclusão é que esta arte deve ser a da medida:
efectivamente, em tudo é preciso evitar o excesso ou o defeito e
encontrar o justo meio. Toda a ciência do homem político consistirá
essencialmente em procurar o justo meio, aquilo que é em qualquer caso
oportuno ou obrigatório nas acções humanas. A acção política deve
"combinar intimamente", no interesse do estado, as duas índoles opostas
dos homens corajosos e dos homens prudentes, de modo a que, no estado,
se temperem na medida exacta
211

a rapidez de acção e a cordura de juízo. O melhor seria que o homem


político não fizesse leis, visto que a lei, sendo geral, não pode
prescrever com precisão o que é bom para cada qual. Todavia, as leis
são necessárias pela impossibilidade de dar prescrições precisas a cada
indivíduo; e elas limitam-se, por isso, a indicar o que genérica e
grosseiramente é o melhor para todos. No entanto, uma vez que se
estabeleçam da maneira melhor, devem ser conservadas e respeitadas, e a
sua ruína implica a ruína do estado. Das três formas de governo
historicamente existentes, monarquia, aristocracia e democracia, cada
uma distingue-se da correspondente forma degenerada precisamente pela
observância das leis. Assim é que o governo de um só é monarquia se é
regido pelas leis; é tirania se é governo sem leis. O governo de poucos
é aristocrata quando é governado pelas leis, oligarquia quando é
governo sem leis. E a democracia pode ser regida por leis ou governada
contra as leis. O melhor governo, prescindindo do governo perfeito
delineado na República, é o monárquico, e o pior é o tirânico. De entre
os governos desordenados (isto é, privados de leis) o melhor é a
democracia.

Desta maneira o problema político, que na República fora considerado o


problema de uma comunidade humana perfeita, por conseguinte no seu
aspecto moral, adquire um carácter mais determinado e específico na ú
ltima fase da especulação platónica; ei-lo tomado o problema das leis
que devem governar os homens e encaminhá-los gradualmente a tornarem-se
cidadãos da comunidade ideal. Ao problema das leis é efectivamente
dedicada a última obra platónica, que é também a mais extensa de todas,
o diálogo em 12 livros intitulado As Leis, publicado por Filipe de
Opunto após a morte do mestre. Platão é agora mais vivamente conhecedor
da " fragilidade da natureza humana" e considera
212

por isso indispensável haver, até num estado bem ordenado, leis e
sanções penais (854 a). Mas a lei deve conservar a sua função
educativa; não deve somente comandar, mas também convencer e persuadir
pela própria bondade e necessidade: toda a lei deve, portanto, ter um
prelúdio educativo, semelhante ao que se antepõe à música e ao canto.
Quanto à punição, uma vez que ninguém acolhe de boa vontade na sua alma
a injustiça, que é o pior de todos os males, não deve ela ser uma
vingança, mas tão só corrigir o culpado, ajudando-o a libertar-se da
injustiça e a amar a justiça.

Resulta daqui que o fim das leis é o de promover nos cidadãos a


virtude, a qual, como já Sócrates ensinava, se identifica com a
felicidade. E não devem promover uma só virtude, como, por exemplo, a
coragem guerreira, mas todas, porque todas são necessárias à vida do
estado; e por isso devem tender à educação dos cidadãos, entendendo por
educação "o encaminhamento do homem, desde os seus tenros anos, para a
virtude, tornando-o amante e desejoso de se tornar um cidadão perfeito
que sabe comandar e obedecer segundo a justiça" (643 e). Mas esta
educação tem como seu fundamento a religião, uma religião que deve
prescindir da indiferença e da superstição.

Contra os que explicam o universo pela acção de forças puramente


físicas, Platão afirma a necessidade de admitir um princípio divino do
mundo. Na verdade, se toda a coisa produz transformação em outra,
necessário é, remontando de coisa em coisa, que se alcance uma coisa
que se move por si. Uma coisa que é movida por outra não pode ser a
primeira a mover-se. O primeiro movimento é, pois, aquele que move a
-si mesmo, e é o da alma. Há, pois, uma alma, uma inteligência suprema
que move e ordena todas as coisas do mundo (896 e). Mas não basta
admitir um princípio divino do
213

mundo, é preciso vencer ainda a indiferença dos que pensam que a


divindade não se ocupa das coisas humanas, que seriam insignificantes
para ela. Ora esta crença equivale a admitir que a divindade é
preguiçosa e indolente e a considerá-la inferior ao mais comum dos
mortais, que quer sempre tornar perfeita a sua obra, quer esta seja
grande ou pequena. Mas, enfim, a pior aberração é a superstição dos que
crêem que a divindade possa ser propiciada com dons e ofertas: esses
põem a divindade a par dos cães que, amansados com presentes, deixam
depredar os rebanhos, e abaixo dos homens comuns, que não atraiçoam a
justiça aceitando presentes oferecidos com intenção delituosa.

Como se vê, a última especulação platónica tende a delinear uma forma


de religião filosófica, que Platão liga explicitamente às crenças
religiosas tradicionais. Não há aqui, por conseguinte, qualquer sinal
de monoteísmo: na crença da divindade está a crença nos deuses: a
divindade é participada igualmente por um número indefinido de entes
divinos, dos quais os mais elevados têm nos astros os seus corpos
visíveis (Leis, 899 a-b).

O caminho que Platão percorreu desde os primeiros Diálogos, que se


detinham a ilustrar atitudes e conceitos socráticos, até à tardia
especulação das Leis, foi bem longo. No curso deles foram-se acumulando
as desilusões que o homem encontrou nas tentativas de realização do seu
ideal político, os problemas que nasceram uns dos outros numa pesquisa
que jamais quis reconhecer jornadas ou pausas definitivas. Quem
confrontar a ú ltima desembocadura desta pesquisa (o cálculo matemático
da virtude e o código legislativo) com o seu ponto de partida, pode
facilmente descobrir um abismo entre os dois pontos extremos dela. Mas
quem considerar que até a estes últimos desenvolvimentos Platão foi
conduzido pela exigência de formular como
214

ciência rigorosa (e a matemática é o tipo acabado do rigor científico)


a aspiração a uma vida propriamente humana, quer dizer, a um tempo
virtuosa e feliz, não pode deixar de reconhecer que Platão se manteve
fiel ao espírito da ensinança de Sócrates e nada mais fez, em toda a
sua vida, que realizar-lhe o significado.

§ 61. O FILOSOFAR

Fazendo o balanço da sua vida, na Carta VII, Platão volta uma vez mais
ao problema que para ,si, como para Sócrates, englobava todos os
problemas: o do filosofar. Não se trata do problema da natureza e dos
caracteres de uma ciência objectiva, mas do problema que a própria
ciência é para o homem. Platão examina-o a propósito da sua tentativa,
tão tristemente sucedida, da educação filosófica, as suas dificuldades
e o esforço que ela exige.
O resultado foi que, ao fim de uma única lição, Dioniso julgou saber
dela o bastante e preferiu compor um escrito em que expunha como obra
sua aquilo que tinha ouvido a Platão. Outros haviam feito já, com menor
impudência, tentativas semelhantes; mas Platão não hesita em condená-
los em bloco. "O mesmo posso dizer de todos os que escreveram ou vierem
a escrever na pretensão de expor o significado da minha pesquisa, quer
a tenham ouvido a mim ou a outros, ou eles próprios o tenham
descoberto: pelo menos, em meu entender, nada compreenderam do assunto
como ele verdadeiramente é. De minha autoria não há nem jamais haverá
um escrito resumido sobre estes problemas. Dado que eles não podem ser
resumidos a fórmulas, como os outros; pois que só depois de nos
havermos familiarizado com estes problemas durante muito tempo, e
depois de se ter vivido e discutido em comum,
215

o seu verdadeiro significado se acende inesperadamente na alma, como a


luz nasce de uma fagulha e cresce depois por si só" (Carta VII, 341 b-
d). Platão regressa assim, no fim da vida, ao problema de Sócrates: o
problema de encontrar para o homem a via de acesso à ciência e, através
da ciência, ao ser em si.

A exposição que se segue é a recapitulação do que Platão já disse nos


diálogos e especialmente na República. Mas esta recapitulação põe em
evidência os motivos fundamentais da pesquisa platónica e demonstra que
a inclusão dela se resolve no seu princípio, e como a sua integral
totalidade se resolve na ensinança socrática. Por três meios se pode
alcançar a ciência: a palavra, a definição e a imagem. Em quarto lugar
está o saber, que fica para além dos meios que servem para o
conquistar. Para além do próprio saber, em quinto lugar, está o objecto
cognoscível, o ser que é verdadeiramente ser (Carta VII, 342 b). Platão
esclarece tudo isto por meio do exemplo do círculo. Círculo é, em
primeiro lugar, a palavra pronunciada por nós. Em segundo lugar, damos
a definição de círculo, definição que é formada por outras palavras,
como por exemplo: círculo é o que tem as partes extremas equidistantes
do centro. Em terceiro lugar, traçamos a figura do círculo, que é a
imagem dele. Mas estes três elementos, por muito que se refiram todos
ao círculo em si, não têm nada que ver com ele. Conduzem, no entanto,
ao quarto elemento, o qual compreende todas as actividades subjectivas
do conhecer: a opinião verdadeira, a ciência e a inteligência. Estes
elementos não residem nos sons pronunciados nem nas figuras corpóreas,
mas nas almas. Naturalmente que também as actividades subjectivas do
conhecer se não identificam com o ser, que é o objecto do próprio
conhecer; mas estão sem dúvida mais próximas do ser, e entre elas a
inteli-
216

gência é a mais próxima de todas. O ser em si é o termo último a que os


meios e as condições do conhecer tendem a referir-se: ele é indicado
pelo primeiro, definido pelo segundo, figurado pelo terceiro, pensado
ou compreendido pelo quarto. Porém, dada a insuficiência e a
instabilidade de tais elementos, a relação que eles estabelecem com o
ser é ainda problemática. Com efeito, o nome é convencional e variável;
a definição, que é feita de nomes, não tem maior estabilidade; a imagem
(o círculo desenhado, por exemplo, aproxima-se sempre da linha recta
quando deveria excluí-la). O próprio saber, condicionado como é por
estes elementos, não tem qualquer garantia de certeza. Não resta,
portanto, outro remédio senão controlar continuamente estes elementos
uns pelos outros percorrendo e repercorrendo a sua cadeia de uns para
os outros, e fazendo valer o resultado do seu trabalho de conjunto
(Carta VII, 343 e). Mas isto é precisamente o dialogar da alma consigo
mesma e com as outras almas, a pesquisa que, desde a palavra, a
definição e a imagem se eleva à ciência, para voltar depois a conferir
à palavra um novo significado, a corrigir a definição, a julgar o valor
da imagem. É a pesquisa colectiva cujo processo os diálogos
representaram ao vivo. "Só depois de se haverem arranhado penosamente
uns aos outros, nomes e definições, percepções visuais e sensações, só
depois de tudo se haver discutido em discussões benévolas, em que a má
vontade não dita a pergunta nem a resposta, a sageza e a inteligência
salpicam todas as coisas, tão intensamente quanto a força humana o
permite" (Carta VII, 344 b). Salpicam todas as coisas a sageza
(frónesis) e a inteligência (nous): o mais alto valor da conduta moral
e a mais alta validade do conhecimento estão intimamente ligados. E,
com efeito, condicionam-se mutuamente: sem a inteligência o homem não
pode alçar-se à virtude que se revela na acção,
217

como sem esta virtude o homem não pode alçar-se à inteligência. Este
condicionalismo recíproco da sageza e da inteligência é expresso por
Platão por meio de dois conceitos: o parentesco do homem que pesquisa
com o ser que é objecto da pesquisa; e a comunidade da livre educação.
Em primeiro lugar, o homem não alcança aquela relação com o ser em que
consiste o grau mais elevado da ciência, a inteligência, senão em
virtude de um seu íntimo e profundo parentesco com o ser. "Nem a
facilidade em aprender, nem a memória poderão jamais produzir o
parentesco com o objecto, visto que tal parentesco não pode encontrar
raízes em disposições heterogéneas. As que são disformes e estranhas
ao justo e ao belo, ainda que dotadas de facilidade em aprender e de
boa memória, e as que propendem por natureza para o justo e para o
belo, mas são avessas a aprender e fracas de memória, nunca poderão
alcançar, no que respeita à virtude e à perversidade, toda a verdade
que é possível aprender" (344 a). A relação originária com o ser no seu
mais alto valor (a justiça e o bem) condiciona e estimula a eficácia e
o sucesso da pesquisa. Mas, por outro lado, a pesquisa não pode
realizar-se no mundo fechado da individualidade. Ela é produto de
homens que "vivem, juntos" e "discutem com benevolência" e sem deixarem
que a má vontade influencie as perguntas e as respostas. Quer isto
dizer que ela supõe a solidariedade do indivíduo com os outros, o
abandono da pretensão de nos julgarmos na posse da verdade e não
queremos aprender nada dos outros, a sinceridade consigo mesmo e com os
outros e o esforço solidário. O filosofar não é uma actividade que
encerre o indivíduo em si mesmo, é antes a vida que abre aos outros e
com os outros o harmoniza, Por isso, não é ele somente inteligência,
mas também frónesis, sageza de vida. Nem esta solidariedade humana da
pesquisa
218

é fruto de uma afinidade de almas e de corpos, é antes o produto da


comunidade da livre educação (344 h), na qual a malevolência e a má
vontade se reduziram ao mínimo, porque aqueles que dela participam se
uniram na comum aspiração ao ser.
O ser, o objecto último da pesquisa, fazendo convergir em si como a um
único centro os esforços individuais, promove a solidariedade dos
indivíduos.

O conceito platónico do filosofar é assim o mais alto e o mais amplo


que alguma vez foi afirmado na história da filosofia. Nenhuma
actividade humana cai fora dele. Platão quer que a pesquisa se estenda
"às figuras rectas ou circulares e às cores, ao bem, ao belo e ao
justo, a todo o corpo artificial ou natural, ao fogo, à água e a todas
as coisas do mesmo género, a toda a espécie de seres vivos, à conduta
da alma, às acções e às paixões de toda a sorte" (342 b). E de tudo
será preciso conhecer o verdadeiro e o falso porque só pelo seu
confronto se pode reconhecer a verdade do ser (344 b). A pesquisa em
que o filosofar se realiza não consiste na formulação de uma doutrina:
qualquer tarefa humana oferece ao homem a possibilidade de alcançar a
verdade e de entrar em relação com o ser.

NOTA BIBLIOGRáFICA

§ 42. Dos numerosíssimos escritos biográficos antigos sobre Platão, de


que chegou notícia até nós, temos hoje os seguintes: FILODEMO, Indice
dos filósofos acadêmicos, encontrado nos papiros de Herculano;
AIPULEIO, Sobre Platdo e a mffl doutrina; DIOGENES LAÊRCIO, Vida, que
ocupa os primeiros 45 capítulos do III livro da obra, livro
inteiramente dedicado a Platão; PORFIRIO, um fragmento da sua História;
OLIMPIODORO, Vida de Platão; urna Vida de Platão anónima encontrada num
códice vienense; um artigo do Léxico de SUIDAS; uma Vida em árabe
encontrada num manuscrito espanhol. Encontram-se outras informações na
219
Vida de Dido de PLUTARCO e nos escritos de CICERO, HELIANo e ATENEU.
Fundamentais para a biografia são também as Cartas de Platão,
especialmente a Carta VII. A. MADDALENA, no Exame analítico apenso à
sua tradução Italiana das Cartas (Bari, 1948) voltou a propor a tese da
inautenticidade, reforçando os argumentos já antes formulados pela
critica alemã de 800 e sobretudo insistindo na diversidade e
incongruência da atitude de Platão, como resulta das Cartas, em relação
à atitude que o próprio Platão atribuiu a Sócrates na Apologia e nos
Diálogos. Porém, estes argumentos não têm na devida conta o facto de
que precisamente a prudência de qualquer preocupa" ção ldealizante faz
das Cartas um documento autênticamente humano que tem todos os
requisitos da veracidade; e que tal ausência elimina mesmo a
possibilidade de encontrar os motivos da pretensa falsificação. Já que
esta, quando se trata de obras de filosofia, t,m sempre o objectivo de
exaltar o fundador de uma escola, como provam as numerosas
falsificações da época alexandrina, e de lhe atribuir, anacrónicamente,
as doutrinas da própria escola para lhes conferir aquela venerabilidade
tradicional que a época alexandrina apreciava como sinal do carácter
religioso e divino das suas crenças. Nada de semelhante nas Cartas, que
nos mostram Platão nas suas incertezas, nas suas ilusões e nos seus
erros; mas também sempre firme e constante nos interesses fundamentais
que dominam toda a sua obra de filósofo, e que nas Cartas ganham
colorido e vivacidade biográfica.

Entre as reconstruções modernas da vida de Platão, ver ZELLER, 11, 1,


p. 389 segs.; GomPERZ, II, p. 259 segs.; TAYLOR, Plato, cap. 1; ROBIN,
Plat", p. 1 segs.; STEFANINI, Platane, vol. I; WILLAMOWITZ, Platon,
Berlim, 1920; STENZEL, Platone educatore, Leipzig, 1928 (trad. ital.,
Bari 1936), cap. 1.

§ 43- A edição fundamental das obras de Platão é a de ENRICO STEFANO, 3


vols., Paris, 1578. A paginação desta edição é reproduzida em todas as
edições modernas e adoptada para as citações. Entre as edições mais
recentes, além de várias edições de Leipzig, é notável a de BURNET,
Oxford, 1899-1906, que é a melhor edição crítica, e a publicada na
"Colecção da Universidade de França" que traz à cabeça a tradução
francesa.
220

Entre as traduções italianas de Platão as de MRAi, AcRi, BONGH1,


MARTINI e numerosas traduções parciais.

Para uma resenha das obras mais recentes sobre Platão (a partir de
cerca de 1930) efr. os fascículos que lhe são dedicados pela
"Philosophische Rundschau>, Tubingen, 1961-62. Nestes fascículos se
remete para a bibliografia mais recente. Ofr. também P. M. SCHUHL,
Études Platoniciennes, Paris, 1960, p. 23 segs..

§ 44. Sobre a cronologia dos escritos platónicos: as obras supra-


indicadas e, além dessas, as seguintes: RAEDER, Patons philosophische
Entwick1ung, Uipzig,
1905; LUTOSLAWSKI, Origin and Growth of Plato's Logic, 1897; PARMENTMR,
La chronologie des dialogues de Platon, Bruxelas, 1913; RITTER, Ncue
Untersuchungen ueber Platon, M6naco, 1910; BROMMER, Eidos et ~. Étude
s~ntique et chronologique des oeuvres de Platon, Assen, 1940.

§ 45. As duas anedotas referidas no fim do parágrafo foram conservadas


por DIÔGENEs LAÉRcio, a primeira, e a segunda por ARisTôTELES no
diálogo Merinto (fr. 69, Rose).

§ 46. Entre oe que pensam que na fase do seu pensamento que se inicia
com o Parménides Platão formula críticas à sua própria doutrina está
GOM- =, II, p. 573. Segundo BURNET, Platonism, Berkeley,
1928, p. 58, Sõcrates é pouco mais que um "fantasma" nos diálogos
anteriores às Leis.

§ 47. ZELLER deu-nos numa reconstrução sistemático-escolástica do


pensamento de Platão prescindindo da ordem e do desenvolvimento dos
diálogos.
O resultado por ele obtido é encorajante para qualquer tentativa do
mesmo gênero. As melhores exposições da doutrina platónica são as que
lhe sugerem o desenvolvimento diálogo por diálogo. Remeto por Isso
sobretudo para estes últimos: GompERz II, p. 306 segs.; UEBERWEG-
PRAECHTER, p. 222 segs. e as monografias de TAYLOR e STEFANINI (já
citadas) e de RITTER. A referência a estas obras está subentendido nos
parágrafos seguintes, em que me limito a assinalar algum estudo mais
Importante sobre cada diálogo Isolado. No exame do processo dialéctico
se funda V. GoLDSCHMIDT, Les dialogues de Platon, Paris, 1947. Cfr.
também JAMER, Paideia, II e HI, New-York, 1943.
221

§ 48. O Protágoras é habitualmente situado no primeiro grupo de


diálogos socráticos juntamente com a Apologia, Críton, Laches, etc.,
TAYLOR observou justamente que a perfeiçáo artística do diálogo prova o
erro desta colocação, e por Isso situa-o com Pédon, o Banqu-ete e a
República no período em que Platão atinge a sua máxima excelência como
escritor (Plato, p. 20). Na realidade o seu conteúdo demonstra que é
anterior a estes diálogos, embora pertença certamente a um segundo
período da actividade de Platão. A preocupação polémica anti-sofistica
que o domina coloca-o, com Górgi<w e Eutidemo, no grupo dos diálogos
que combatem e abalam a sofística nos seus aspectos fundamentais: o
ensino, a crítica e a retórica. Ver a introdução, à minha tradução do
Prot., Nápoles, 1941.

§ 49. Sobre o Ménon, efr. a bela investigação de STENZF.L em Platone


educatore, p. 90 segs.; JAMER, Paideia, II, p. 182-262. Uma tentativa
de relacionar o Ménon com o criticismo moderno encontra-se em NATORP,
Platos Idee-nlehre, 2.1 edição, Leipzig, 1921, p. 36 segs..

Sobre o Fédon ver NATORP, op. cit., p. 126 segs. sobre as principais
interpretações da teoria platónica das Ideias: LEVI, Le interpretazioni
immanentistiche della filosofia di Platone, Milano, sem data; e
especialmente O. ROSS, Pktos Theory of Ideas, Oxford,
1951.

§ 50. Sobre o Banquete e sobre o Fedro: STENZEL, ap. Cit., p. 141 segs..

§ 51. Sobre a República: NATORP, op. Cit., p. 175 segs.; SiiOREY,


Plata's Republic, Londres, 2 vols.,
1930-35; MURMY, The Interpretation of Plato's Republic, Oxford, 1951.
Sobre os mitos da República e de Platão em geral: STENVART, Myth8 of
PlatO, 1904.

§ 54. Sobre o mito final da República: STENZEL, Platone Educatore, p.


128 segs..

§ 55. Sobre o Parménides: WAHL., Êtude sur le Parmeníde de Platon,


Paris, 1926; DIÈs, Maton Parmentde, Paris, 1923; PACI, Il significato
dei Parmenid nella filosofia di Platone, Milano, 1938. F. M. CORNFORD,
Plato and Parmenides, Londres, 1939; J. WILD, Plato's Theory of Man,
Cambridge (Mass.), 1948.

Sobre o Teeteto: NATORP, Op. Cit., P. 88 SegS.; DiÊS, Autour de Platon,


Paris, 1927, p. 450 segs..
222

§ 56. Sobre o Sofista: RiTTER, Platon, II, p. 120 .sega., 185 segs.,
642 segs.-, NATORP, op. cit., p. 271 segs.,
331 segs.; DIÊS, La définition de I'Être et Ja Nature des Idêes dans le
Sophiste de Platon, Paris, 1909; STENZEL, ZahI und Gestalt bei Platon
und Aristoteles, Leipzig, 1924, p. 10 segs., 126 se-S.; REIDEMEISTER,
Mathematik und Logik bei PZaton, Leipzig, 1942.

§ 57. Sobre a Dialéctica: STENZEL, StUdien ZUr Entu,ick1ung der Plat.


Dialektik, Leipzig, 1931. Nesta última obra é demoradamente discutido o
conceito da dialéctica platónica como método da divisão, e este método
vem reconhecido como a conquista última da filosofia platónica.

§ 58. Sobre o Filebo: RiTTER, Platon, II, p. 165 segs., 497 segs,
NATORP, p. 296 segs.; ROBIN, Platon, cap. 4: e a minha Introdução à
tradução de ~ITINI, Turim, 1942.

A anedota de Aristóxeno encontra-se em Harmonia, ed. Marquard, p. 44,


5; R. S. BRuMBAUGH, P.'3 Mathematical Imagination, Bloomington, 1954.

§ 59- Sobre o Timeu: RiTTER, Platon, II, p. 258 segs.; TAYLOR, A


Commentary on PZatoIs Timacus, Oxford, 1928; NATORP, p. 338 segs.;
ROBIN, Mudes sur Ia signification et Ia place de Ia physique dans Ia
philosophie de Platon, Paris, 1919; ID., Platon, cap. 5; LEVI, Il
concetto del tempo nella filosofia di Platone, Turim, s. d: CORNFORD,
Platols Cosmology, Londres,
1937; PERLS, Platon. Sa conception du Kosmos, New York, 1945.

§ 60. Sobre o Político: RITTER, Platon, II, p. 242 segs..


Sobre as Leis: RITTER, op. cit., II, p. 657 segs.; NATORP, p. 358
segs.; ver das Leis, a tradução ltal. de CASSARÁ, 2 vol., Bari, 1931.

§ 61. Sobre as digressões filosóficas da Carta VII, sobretudo no seu


significado educativo: STENZEL, Platone Eduratore, cap. 6.
223

A ANTIGA ACADEMIA

§ 62. ESPEUSIPO

A escola de Platão tirou o seu nome do "ginásio suburbano muito


arborizado dedicado ao herói Academo" (Dióg. L., IV, 7). Segundo a
tradição, foi fundada após a primeira viagem de Platão à Sicília com o
dinheiro que fora recolhido para o resgate do mesmo Platão (387 a.C.,
mais ou menos). Poucas notícias temos sobre a organização da própria
escola, mas é bastante duvidoso que ela tivesse cursos ou ensinos
regulares. Durante a vida de Platão, a história da Academia coincide
provavelmente com o próprio desenvolvimento do pensamento platónico,
isto é, com a gradual evolução dos seus interesses e dos seus temas
especulativos, que foi delineada no capítulo precedente.

Mas a vida da Academia continuou, após a morte de Platão, por muitos


séculos. O próprio Platão confiara a direcção da Academia ao seu
sobrinho Espeusipo, que a conservou durante oito anos (347-339).
Espeusipo afastou-se da oposição
225

platónica entre conhecImento sensível e conhecimento racional,


admitindo uma "sensação científica" como fundamento do conhecimento dos
objectos. Em lugar das ideias platónicas ele admitia, como modelos das
coisas, os números matemáticos, que distinguia dos sensíveis. Parece
que formulou contra a doutrina das ideias muitas objecções que foram
depois expostas por Aristóteles. Negava-se a reconhecer o bem como
princípio do processo cósmico, argumentando que os seres individuais,
animais e vegetais manifestam na sua existência uma tendência para
passarem do imperfeito ao perfeito e que, por conseguinte, o bem está
no termo e não no início do devir. Identificou a razão com a divindade
e, na sequência do Timeu e das Leis, concebeu a divindade como sendo a
alma governadora do mundo.

No seu escrito Semelhanças, em dez livros, de que nos restam alguns


fragmentos, Espeusipo estudava o reino animal e vegetal, procurando
sobretudo classificar-lhes as espécies. A mesma tendência
classificatória revela o título de uma outra obra por ora perdida:
Acerca dos tipos dos géneros e das espécies.

§ 63. XENÓCRATES

Por morte de Espeusipo os membros da Academia elegeram por leve maioria


Xenócrates para a dirigir, ocupando este o seu lugar de director por um
período de 25 anos (339-314). De modesta capacidade especulativa, muito
estimado pelo seu patriotismo e pelo carácter independente (recusou uma
soma considerável oferecida pelo rei Alexandre à Academia, tendo
aceitado somente uma pequena parte dela), Xenócrates teve uma certa
influência sobre o desenvolvimento da escola. Distinguia entre o saber,
a opinião e a sensação: o
226

saber é plenamente verdadeiro, a opinião tem uma verdade inferior e a


sensação tem misturadas a um tempo verdade e falsidade. Estas três
espécies de conhecimento correspondem a três espécies de objectos: o
saber corresponde à substância inteligível, a opinião à substância
sensível, a sensação a uma substância mista. A mesma preferência pelo
número três mostra a sua divisão da filosofia em dialéctica, física e
ética. Com Xenócrates, acentua-se a tendência para o pitagorismo que já
caracterizava a derradeira especulação de Platão e a de Espeusipo. Mas
Xenócrates interpretou em sentido antropomórfico a teoria dos números
como princípios das coisas, dizendo que a unidade é a divindade
primordial masculina, a dualidade a divindade primordial feminina.
Deificou, portanto, os elementos e imaginou uma imensidade de demónios
como intermediários entre a divindade e os homens.
É notável a sua definição da alma como "um número que se move por si";
nessa definição, evidentemente, ele entendia por número a ordem ou a
proporção que já Platão indicara com a mesma palavra. Segundo parece,
deve atribuir-se a Xenócrates a doutrina das ideias-números, referida
por Aristóteles como característica dos "platónicos". Segundo essa
doutrina, o número constituía a essência do mundo. Distinguiam-se os
números ideais daqueles com que se calcula, os números ideais,
considerados como os elementos primordiais das coisas, eram dez.
Destes, a unidade e a dualidade eram os princípios respectivamente da
divisibilidade e da indivisibilidade, da união de que brotava o número
propriamente dito. Ao paralelismo pitagórico entre conceitos
aritméticos e conceitos geométricos, acrescentava-se um paralelismo
semelhante no domínio do conhecimento; a razão era identificada com a
unidade-ponto, o conhecimento com a dualidade-linha, a opinião com a
tríada-superfície, a percep-
227

ção sensível com a tétrada-corpo. Não é fácil qual possa ser o


significado destas e de idênticas analogias que Aristóteles expõe e
discute em vários passos da Metafísica.

Na ética, Xenócrates seguia Platão: colocou a felicidade na "posse da


virtude e dos meios para a conseguir. Conta-se a seu respeito um dito
de espírito cristão: "o simples desejo equivale já à prática da má
acção".

§ 64. POLÉMON. CRANTOR

O sucessor de Xenócrates na direcção da Academia foi Polémon de Atenas


(314-270). Depois de uma juventude desordenada, foi radicalmente
transformado pelas suas relações com Xenócrates e procurou pôr o seu
ideal de vida na calma e na imutabilidade dohumor. A sua ensinança,
predominantemente moral, consistia em afirmar a exigência de uma vida
conforme à natureza, exigência que o aproximava dos Cínicos.

Um seu discípulo, Crantor, conhecido sobretudo como intérprete do


Timeu, iniciou a série dos comentadores de Platão. Crantor fundou ainda
um género literário que mais tarde haveria de ter fortuna, o das
"consolações", com o seu livro Sobre a dor. Um fragmento desta obra
trata do papel que a dor física se destina a cumprir como defensora da
saúde e a dor moral como libertadora da animalidade. De acordo com um
testemunho devido a Sexto Empírico, Cantor imaginava que os Gregos,
reunidos numa festa, veriam desfilar ante si os diversos bens que
aspiravam ao primeiro prémio e o disputavam; e este cabia à virtude,
atrás da qual surgiam a saúde e a riqueza.

Cratetes foi quem sucedeu a Polémon, de quem era amicíssimo, na


direcção da Academia (270-
228

-268164). Sucedeu-lhe Arcesilau; mas com este a Academia muda de


orientação e termina, por isso, a história da antiga Academia.

§ 65. HERACLIDES PòNTICO

Ao grupo dos discípulos imediatos de Platão pertenceu Heraclides


Pôntico que, segundo uma tradição, substituiu Platão na direcção da
escola durante a sua última viagem à Sicília. Depois da morte de
Espeusipo e da eleição de Xenócrates para a direcção da escola, à qual
ele próprio aspirara, fundou por alturas de 399 a.C. uma escola na sua
pátria, Heracleia, no Ponto. Não deixava de ser um pouco charlatão e
diz-se que corrompeu a Pítia, contra a qual os seus concidadãos se
tinham revoltado pelo mau andamento das colheitas, com o desígnio de
que a sua cidade lhe conferisse honras divinas. Mas, enquanto os
mensageiros anunciavam no teatro o oráculo da Pítia, segundo o qual a
cidade devia oferecer uma coroa de ouro a Heraclides se queria melhorar
as suas condições, Heraclides morreu de emoção; no que se viu uma
sentença divina.

Os diálogos de Heraclides estavam cheios de mitos e de fantasias


maravilhosas. Num deles fazia descer à terra um homem da lua. Um outro,
intitulado Sobre o Hades, narrava uma viagem ao inferno.

Heraclides seguiu, modificando-a, a doutrina de Demócrito. No lugar dos


átomos pôs os "corpúsculos não coligados", isto é, corpos simples com
os quais a inteligência divina teria construído o mundo. Na astronomia
admitiu o movimento diurno da terra e opinou que Mercúrio e Vénus giram
à volta do Sol. Concebeu a alma como sendo for-
229

mada de matéria subtilíssima, o éter. E num escrito: Sobre os


simulacros contra Demócrito, combateu, como se depreende do título, a
doutrina democritiana do conhecimento como procedendo dos fluxos dos
átomos.

§ 66. EUDOXO. O "EPINóMIDES"

Pertenceu ainda à escola platónica o famoso astrónomo Eudoxo de Cnidos.


Segundo Aristóteles (Met., 1. 991 a, 14), considerou as ideias como
estando mescladas com as coisas de que são a causa, "do mesmo modo que
a cor branca numa mescla é causa da brancura de um objecto". Parece,
desta maneira, que as aproximava das homeomerias de Anaxágoras, que
estão todas misturadas umas com as outras. No campo da ética Eudoxo
considerava o prazer como o bem-doutrina que se discutiu no Filebo de
Platão.

A Filipo de Opunto, o discípulo de Platão que transcreveu e publicou as


Leis, a última obra do mestre, costuma atribuir-se desde a antiguidade
o diálogo pseudo-platónico Epinémides. O escopo deste diálogo é
determinar quais os estudos que conduzem à sabedoria. Excluídas as
artes e as ciências, que contribuem apenas para o bem-estar material e
o divertimento (como a arte da guerra, da medicina, da navegação, da
música, etc.), fica a ciência do número, que traz consigo todos os
bens. Sem o conhecimento do número, o homem seria imoral e privado de
razão, porque onde não há número não há ordem, mas somente confusão e
desordem. Ora a ordem mais rigorosa é a dos corpos celestes; e o
movimento perfeito desses corpos só pode explicar-se admitindo que eles
são vivos e que a divindade lhes deu uma alma. Eles próprios são deuses
ou imagens de deuses e como tal devem ser adorados. Até o ar e o éter
devem ser divindades, com
230

corpos transparentes e por isso invisíveis; podemos supor que


constituem uma hierarquia de demónios intermediários entre os deuses e
os homens. O estudo da astronomia é o mais importante de todos para
conduzir à piedade religiosa, que é a maior de entre as virtudes.
Acompanham-no os estudos auxiliares da aritmética e da geometria plana
e do espaço. Somente através destes estudos o homem pode alcançar a
sabedoria, por isso, tais estudos devem constituir a preocupação dos
governantes.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

§ 60. Sobre a vida, doutrina e escritos dos antigos académicos:


DIóGENEs LA£Rcio, IV, cap. VI1] pág. 88 ss. Outras fontes em ULLFR, II,
pãg. 982 w. Os testemunhos em DIELS, Doxogr. Grae., e os fragmentos em
MULLACH, Fragmenta Phil. Graecor., III, p. 51 ss. Sobre Espeusipo:
GoMPERZ, M, pãg. 3 ss.

§ 61. A polémica da Metafísica de Aristóteles contra as ideias-números


(especialmente XIII, cap. 3.* ss e XIV, cap. 3.* ss) parece que vai
precisamente contra Xenócrates; GompERz, III, pág. 7 ss.

§ 62. Sobre Polétnon, e Crantor: GoMPERZ, III, pág. 14 ss.

§ 65. Sobre Heraclides Pôntico: GOMPERz, III, Pág. 16 SS.; JAEGER,


Aristóteles.

§ 64. Sobre Eudoxo: JAEGER, Op. Cit. Sobre Epinómides e Filipo de


Opunto: JAMER, Op. cit. Epinómide,9 considerado diálogo autêntico de
Piatão por TAYLOR, Plato, pág. 497 ss.
231

XI

ARISTÓTELES

§ 67. A VIDA

Quando Aristóteles (que nasce em Estagira em 384-83 a. C.) entrou na


escola de Platão, contava apenas 17 anos. Nesta escola permaneceu 20
anos, ou seja, até à morte do mestre (348-47). Esta longa permanência,
tanto mais notável tratando-se de um homem que possuía excepcionais
capacidade especulativa e independência de pensamento, torna impossível
dar crédito às anedotas que nos chegaram sobre a ingratidão de
Aristóteles relativamente ao mestre. Segundo Diógenes Laércio (V, 2).
Platão teria dito: "Aristóteles calcou-me com as patas como os potros
calcam a mãe quando os dá à luz." Na realidade, porém, a existência,
hoje demonstrada, de um período platónico na especulaÇão aristotélica,
a elegia no altar de Platão (§ 71) e o próprio tom que Aristóteles
emprega quando O critica, demonstram que a atitude de Aristóteles Para
com o mestre foi a da felicidade e do respeito, ainda que dentro da
mais resoluta independência de crítica filosófica.
233

Apresentando-se na Ética a Nicómaco (1, 4,


1096 a, 11-16) para criticar a doutrina platónica das ideias,
Aristóteles declara quão penosa é para ele a tarefa, dada a amizade que
o liga aos homens que a defendem; e acrescenta: "Mas talvez seja
melhor, será mesmo um dever, para salvar a verdade, sacrificar os
nossos assuntos pessoais, principalmente quando se é filósofo: a
amizade e a verdade são ambas estimáveis, mas é coisa santa amar mais a
verdade."

À morte de Platão, Aristóteles deixou a Academia e não voltou mais


à escola que o criara. Para suceder a Platão fora designado, pelo
próprio Platão ou pelos condiscípulos Espeusipo; e esta escolha devia
imprimir à Academia uma orientação que Aristóteles não podia
aprovar. O espírito de Platão abandonava a escola e Aristóteles já
não tinha razões para se lhe manter fiel. Acompanhado por Xenócrates
transferiu-se então para Asso na Tróade, onde os dois discípulos de
Platão, Erasto e Corisco, haviam constituído com Hermias uma comunidade
filosófico-política (§ 42), de que temos notícias pela Carta VI de
Platão e por outros testemunhos (Didimo, In Demost., col. 5). Aqui
provàvelmente exerceu Aristóteles o seu primeiro ensino autónomo. O
filho de Corisco, Neleo, converteu-se num dos mais fervorosos sequazes
do filósofo; e foi precisamente na casa dos descendentes de Neleo que
se encontraram, segundo conta Estrabão (XIII, 54), os manuscritos das
obras acromáticas de Aristóteles.

Depois de três anos de permanência em Asso, Aristóteles transferiu-se


para Mitilene. Segundo Estrabão, Aristóteles teria fugido de Asso
depois da morte de Hermias, juntamente com a filha do tirano, Pitia,
que depois se torna sua esposa. Mas parece que Aristóteles abandonou
Asso antes da morte de Herinias e que o seu matrimónio remonta
234

ao período da permanência em Asso. Seja como for, ao saber-se a notícia


do assassinato de Hermias por acção dos persas, Aristóteles compõe uma
elegia que exalta a virtude heróica do amigo perdido.

Neste primeiro período da sua actividade didáctica em Asso e em


Mitilene, deve ter ocorrido o afastamento de Aristóteles da doutrina do
mestre. Deve ter composto então o diálogo Sobre a Filosofia, no qual
aparece (como sabemos por alguns fragmentos) a crítica das ideias-
números.

No ano de 342 Aristóteles foi chamado por Filipe, rei da Macedónia, a


Pella, para se encarregar da educação de Alexandre. O pai de
Aristóteles, Nicómaco, fora médico na arte da Macedónia uns quarenta
anos antes; mas talvez a escolha de Filipe fosse determinada pela
amizade de Aristóteles com Hermias que mantinha relações com Filipe. Na
obra de conquista e de unificação de todo o mundo grego, para a qual a
educação de Aristóteles preparou Alexandre, agiu seguramente a
convicção por parte de Aristóteles da superioridade da cultura grega e
da sua capacidade de dominar o mundo, se se unisse a ela uma forte
unidade política. O afastamento entre o rei e Aristóteles só se
produziu quando Alexandre, alargando os seus desígnios de conquista,
pensou na unificação dos povos orientais e adoptou as formas orientais
de soberania.

Quando Alexandre subiu ao trono, Aristóteles regressou a Atenas (335-


334). Regressou ali depois de 13 anos de ausência, célebre como mestre
de vida espiritual e como filósofo; e a amizade do poderosíssimo rei
devia colocar à sua disposição meios de investigação e de estudo
excepcionais para aquele tempo. Fundou então a sua escola, o Liceu, que
compreendia além dum edifício e do jardim, o passeio Ou Peripato de que
tomou o nome. Tal como a Academia, o Liceu praticava a vida em comuni-
235

dade; mas aqui a ordem das lições estava firmemente estabelecida.


Aristóteles dedicava as manhãs aos cursos mais difíceis de argumento
filosófico, à tarde dava lições de retórica e de dialéctica a um
público mais vasto. Ao lado do mestre, realizavam cursos os escolares
mais antigos, como Teofrasto e Eudemo.

Quando Alexandre morreu em 323, a insurreição do partido nacionalista


contra os partidários do rei pôs em perigo Aristóteles. Para evitar que
"os atenienses cometessem um segundo crime contra a filosofia",
Aristóteles abandonou Atenas e fugiu para Caleis em Eubeia, pátria de
sua mãe, onde possuía uma propriedade que dela herdara. Aqui se manteve
durante os meses seguintes até ao dia da morte. Uma doença de estômago,
de que padecia, pôs fim à sua vida com 63 anos, em
322-21. Temos o testamento que escreveu em Calcis: fala-se lá em Pitia,
sua filha menor, numa mulher Herpilis que tomara em casa depois da
morte da esposa e no filho Nicómaco que tivera de Herpilis. Estabelece
que os seus restos mortais não sejam separados dos de Pitia, sua
mulher, conforme ela também desejara.

§ 68. O PROBLEMA DOS ESCRITOS

As obras que chegaram até nós compreendem somente os escritos que


Aristóteles compôs para as necessidades do seu ensino. Além destes
escritos que se chamaram acroamáticos por serem destinados a
ouvintes, ou esotéricos, isto é que continham uma doutrina secreta, mas
que na realidade são apenas os apontamentos de que se servia para o
ensino, Aristóteles compôs outros escritos segundo a tradição
platónica, em forma dialogada, a que ele mesmo chamou exotéricos, isto
é destinados ao
236

público, nos quais empregava mitos e outros ornamentos vivazes e se


mostrava tão eloquente quanto enxuto e severo se mostra nos escritos
escolares. Mas destes escritos exotéricos não restam mais que poucos
fragmentos de cujo valor para compreender a personalidade de
Aristóteles a crítica só se deu conta recentemente.

Os escritos acroamáticos só vêm a ser conhecidos quando foram


publicados, nos tempos de Sila, por Andrónico de Rodes. Segundo o
relato de Estrabão, estes escritos foram encontrados na adega da casa
que possuíam os descendentes de Neleo, o filho de Corisco. É um facto
que, durante muito tempo, Aristóteles só foi conhecido através dos
diálogos e que somente após a publicação dos escritos acroamáticos, é
que os diálogos foram pouco a pouco relegados para o olvido pelos
tratados escritos para a escola. Assim nasce o problema de saber em que
relação se encontram os diálogos com os escritos escolásticos e até que
ponto contribuem para a compreensão da personalidade de Aristóteles.

Nos tratados escolásticos, o pensamento de Aristóteles aparece


inteiramente sistemático e acabado: parece excluir-se, ao menos à
primeira vista, que Aristóteles tivesse experimentado oscilações ou
dúvidas, que haja sofrido crises ou mudanças. A consideração dos
diálogos permite, pelo contrário, dar-se conta de que a doutrina de
Aristóteles não nasceu Completa e lograda, que o seu pensamento sofreu
crises e mudanças. Os fragmentos que possuímos de tais diálogos
mostram-nos, com efeito, um Aristóteles que adere primeiramente ao
pensamento platónico para depois se afastar dele e o modificar
substancialmente; um Aristóteles que transforma a própria natureza dos
seus interesses espirituais, os quais, orientados primeiramente para os
problemas filosóficos, se vão depois concentrando em proble-
237

mas científicos particulares. Pelo estudo da formação do sistema


aristotélico foi possível deitar um olhar sobre a formação e o
desenvolvimento do homem Aristóteles.

§ 69. OS ESCRITOS EXOTÉRICOS

Nos seus diálogos Aristóteles não só adoptou a forma literária do


mestre mas também os temas e algumas vezes os títulos das suas obras.
Escreveu com efeito um Banquete, um Político, um Sofista, um Menexeno;
e depois o Grillo ou Da Retórica. que correspondia ao Górgias, o
Protréptico que correspondia ao Eutidemo, o Eudemo ou Da Alma que
correspondia ao Fédon.

Este último diálogo parece de franca inspiração platónica. O seu tema


chegou até nós graças a um relato de Cícero. (De Div., 1, 25, 35; fr.
37, Rose): Eudemo, doente, tem um sonho profético que lhe anuncia a sua
cura, a morte dum tirano e o seu regresso à pátria. Os dois primeiros
factos realizam-se; mas enquanto espera o terceiro, Eudemo morre na
batalha. Anunciando-lhe o regresso à pátria, a divindade quisera
indicar que a verdadeira pátria do homem é a eterna, não a terrena.
Aristóteles partia deste relato para demonstrar a imortalidade e
combater as concepções que se opunham a ela. Entre estas criticava,
como Platão no Fédon, o conceito da alma como harmonia: a harmonia tem
alguma coisa que se lhe contrapõe -a desarmonia; pelo contrário, a alma
como substância não tem nada que se lhe contraponha; logo a alma não é
harmonia (fr. 45, Rose). O diálogo admitia também a doutrina platónica
da anamnesis: a alma que desce ao corpo esquece as impressões recebidas
no período da sua existência; pelo contrário, a alma que com a morte
regressa ao além, recorda o que
238

experimentou cá. Pois que "a vida sem corpo é a condição natural para a
alma, a vida no corpo é contra a natureza como uma doença" (fr. 41,
Rose). Aristóteles permanece aqui ligado ainda ao pessimismo órfico-
pitagórico aceite antes por Platão. "Dado que é impossível para o homem
participar da natureza do que é verdadeiramente excelente, seria melhor
para ele não ter nascido; e dado que nasceu, o melhor é morrer quanto
antes." (fr. 44, Rose).

O Protréptico (ou discurso exortatório) era uma exortação à filosofia,


dirigida a um príncipe de Chipre, Temisó n. A exortação tomava a forma
de um dilema: "Ou se deve filosofar ou não se deve: mas para decidir
não filosofar é ainda e sempre necessário filosofar; assim pois em
qualquer caso filosofar é necessário" (fr. 51, Rose). O filosofar é
concebido ainda platonicamente como exercício de morte; é a condenação
de tudo o que é humano, enquanto aparência enganosa, e até da beleza
(fr. 59, Rose). O filósofo como o político deve olhar não à s imitações
sensíveis, mas aos modelos eternos. Consequentemente no Protréptico, o
conhecimento aparece a Aristóteles como sabedoria moral (frónesis)
enquanto mais tarde distinguirá nitidamente o conhecimento, da vida
moral. O Protréptico terminava provavelmente com a exaltação da figura
e da vida do sage, considerado com um deus mortal, superior ao trágico
destino dos homens (fr. 61, Rose); livro que esteve entre os mais lidos
e admirados por variadíssimos espíritos: desde o cínico Crates que o
leu na oficina de um sapateiro (fr. 50, Rose) a S. Agostinho que,
graças à imitação que dele fez Cicero no Hortensio, veio à filosofia e
portanto a Deus (§ 157).

O afastamento por parte de Aristóteles do platonismo deve iniciar-se


durante a permanência de
239

Aristóteles em Asso e o seu primeiro documento é o diálogo Sobre a


Filosofia, que foi durante muito tempo, isto é, até à edição da
Metafísica por intervenção de Andrónico de Rodes, a fonte principal
para o conhecimento da sua filosofia. O diálogo constava de três
livros. No primeiro, Aristóteles tratava do desenvolvimento histórico
da filosofia, de maneira análoga ao que fez no primeiro livro da
Metafísica. Mas aqui não começava em Tales, mas na sabedoria oriental e
nos sete sábios. Platão era colocado no cume de toda a evolução
filosófica. No segundo livro, criticava-se a doutrina das ideias de
Platão. Num fragmento que chegou até nós (fr. 9, Rose), toma-se
particularmente em atenção a teoria das ideias-números: "Se as ideias
fossem uma outra espécie de números, diferentes dos da matemática, não
poderíamos ter delas nenhum entendimento. Com efeito, quem, pelo menos
a maior parte de nós, pode entender que coisa seja um número de espécie
diferente?" Mas, por um testemunho de Plutarco e de Proelo (fr .8,
Rose), sabemos que ele impugnava toda a teoria das ideias, declarando
que não podia segui-la mesmo à custa de parecer a alguém demasiado
amante da disputa. No terceiro livro do diálogo, Aristóteles
apresentava a sua construção cosmológica. Concebia a divindade como o
motor imóvel que dirige o mundo enquanto causa final, inspirando às
coisas o desejo da sua perfeição. O éter era concebido como o corpo
mais nobre e mais próximo da divindade; por baixo do motor imóvel
estavam as divindades dos céus e dos astros. A existência de
Deus era demonstrada mediante a prova que a Escolástica chamou
argumento dos graus. Em qualquer domínio em que haja uma
hierarquia de graus e portanto uma maior ou menor perfeição, subsiste
necessariamente algo absolutamente perfeito. Ora dado que em tudo o que
existe se manifesta uma
240

gradação de coisas mais ou menos perfeitas, subsiste também um ente de


absoluta superioridade e perfeição, e este poderia ser Deus (fr. 16,
Rose). Adaptando o famoso mito platónico da caverna, Aristóteles tirava
dele um argumento para afirmar a existência de Deus. Se existissem
homens que tivessem habitado sempre debaixo da terra em esplêndidas
moradas adornadas com tudo o que a arte humana pode fazer; se nunca
tivessem subido à superfície e só tivessem ouvido falar da divindade,
haveriam de estar, apesar disso, imediatamente seguros da sua
existência, se, saindo à superfície, pudessem contemplar o espectáculo
do mundo natural (fr. 12, Rose). Enquanto o mito da caverna servia a
Platão para demonstrar o carácter aparente e ilusório do mundo
sensível, serve a Aristóteles para exaltar a perfeição do mesmo mundo
sensível e para tirar dessa perfeição um argumento de prova da sua
origem divina. A separação entre Platão e Aristóteles não poderia ser
melhor simbolizada do que mediante este mito.

§ 70. AS OBRAS ACROAMÁTICAS

As obras acroamáticas de Aristóteles, levadas a Roma por Sila, foram


ordenadas e publicadas por Andrónico de Rodes pelos meados do século 1
a.C.. Estas obras compreendem:

1.o -Escritos de LóGICA, conhecidos globalmente sob o nome de õrganon


(ou instrumentos de investigação): Categorias (um livro): sobre os
termos ou sobre os predicados. Sobre a Interpretação (um livro): sobre
as proposições. Primeiros Analíticos (dois livros): sobre o raciocínio.
Segundos Analíticos (dois livros): sobre a prova, a definição, a
divisão e o conhecimento dos princípios. Tópicos (oito
241

livros): sobre o discurso dialéctico e sobre a arte da refutação


fundada em premissas prováveis. Elencos Sofísticos: refutação dos
argumentos sofistas. Esta é a ordem sistemática em que a tradição
recolheu os escritos lógicos de Aristóteles. Não é a ordem cronológica
da sua composição acerca da qual somente se podem adiantar conjecturas.
Admite-se geralmente que as Categorias ou a sua primeira redacção (que
compreende os cap. I-VIII) e os livros 11-VII dos Tópicos são os
escritos mais antigos, alguns dos quais compostos provavelmente quando
Platão era vivo. Os Elencos sofísticos são um apêndice dos Tópicos e
pertencem ao mesmo período. Contemporâneo ou pouco posterior deve ser
também o livro Sobre a Interpretação. Os Primeiros Analíticos e os
Segundos Analíticos pertencem à fase madura do pensamento de
Aristóteles. Deve-se recordar também que o uso do vocábulo "lógica"
para este género de investigações foi iniciado pelos estóicos e que
Aristóteles, ao contrário, as compreendia sob o nome de "ciência
analítica" (Ret., I, IV,
359 b, 10).

2.o - A METAFÍSICA, em 14 livros. Livro I: Natureza da ciência. Os


quatro princípios metafísicos. Visão crítica das doutrinas dos seus
predecessores (cap. IX: Sobre a doutrina platónica das ideias). Livro
II: Dificuldade da investigação da verdade. Contra uma infinita série
de causas. As diversas espécies de investigação; deve-se partir do
conceito de natureza. Livro III - Quinze dúvidas em torno dos
princípios e da ciência que se fundamenta neles. Livro IV: Solução de
algumas dúvidas. Princípio da contradição. Livro V: Sobre os termos que
é costume usar em diferentes significados, como Princípio, causa,
elemento, natureza, etc. Livro VI: Determinação do domínio da
metafísica em relação ao domínio das outras ciências. Livro VII e VIII:
242
Doutrina da substância. Livro IX: Doutrina da potência e do acto. Livro
X: O uno e o múltiplo. Livro XI, cap. I-VIII: análogos aos livros III,
IV e VI; caps. 9-12: sobre o movimento, sobre o infinito. Livro XII: As
diversas espécies de substância, a sensível-mutável, a sensível-
imutável, a supra-sensível; esta última como objecto da metafísica.
Livro XIII e XIV: As matemáticas, a teoria das ideias e a teoria dos
números (XIII, cap. IV: Contra a doutrina platónica das ideias).

Como se vê por este sumário, a Metafísica não é uma obra orgânica mas
um conjunto de escritos diferentes, compostos em épocas diferentes. O
livro II é o resto de um conjunto de apontamentos tirados por um aluno
de Aristóteles. O livro VI, na época alexandrina, subsistia ainda como
obra independente.

O Livro XII é uma exposição autónoma que oferece um quadro sintético de


todo o sistema aristotélico e é em si mesmo completo. Os dois últimos
livros não têm nenhuma relação com o que os precede. Estudos recentes
permitem traçar para esta série de escritos uma ordem cronológica e
delinear também a direcção da formação do pensamento de Aristóteles. Os
livros I e III constituem a redacção mais antiga da obra: com efeito,
Aristóteles expõe aí a doutrina das ideias como se fosse sua e inclui-
se a si próprio entre os platónicos. Os livros XIII e XIV pertencem ao
mesmo período e constituem uma reelaboração dos dois precedentes. O
livro XIII devia substituir provavelmente o livro XIV porque oferece
uma elaboração mais acabada e sistemática dos mesmos argumentos.

O livro XII contém a formulação teológica da metafísica aristotélica,


segundo a qual esta constitui urna ciência particular que tem por
objecto o ser divino, o primeiro motor. Esta formulação, que está mais
próxima do platonismo, é indubitavelmente anterior àquela que faz da
filosofia a
243

ciência do ser enquanto tal. Pelo contrário, os livros sobre a


substância (VII, VIII e IX), na medida em que consideram a substância
em geral e portanto também a substância sensível, realizam o projecto
de uma filosofia como ciência do ser enquanto ser (isto é do ser em
geral) e portanto apta a servir de fundamento a todas as ciências
particulares. Esses livros constituem a formulação mais madura do
pensamento aristotélico.

3.o - Escritos de FÍSICA, de HISTóRIA NATURAL, de


MATEMÁTICA e de PSICOLOGIA.

Lições de física em 8 livros. Sobre o céu, em


4 livros. Sobre a geração e a corrupção, em 2 livros. Sobre os
meteoros, em 4 livros.

História dos animais: anatomia e fisiologia dos animais. À mesma série


pertencem os escritos: Sobre as partes dos animais,- Sobre a geração
dos animais; Sobre as transmigrações dos animais; Sobre o movimento dos
animais. Os escritos: Sobre as linhas indivisíveis e Sobre os
mecanismos são apócrifos.

A doutrina aristotélica da alma é exposta nos três livros Sobre a Alma


e na recolha de escritos intitulada Parva naturalia.

O escrito sobre a Fisionómica é apócrifo. A recolha dos Problemas


compreende a compilação de um conjunto de problemas, alguns dos quais
são certamente aristotélicos.

4.O -Escritos de ÉTICA, POLITICA, ECONOMIA, POÉTICA e RETóRICA.

Com o nome de Aristóteles chegaram-nos três tratados de ética: a Ética


Nicomaqueia, a Ética Eudemia e a Grande Ética, assim chamada não porque
seja a mais vasta (pelo contrário, é a mais breve), mas porque se ocupa
de mais assuntos. Mas
244
a Grande Ética, certamente compilação de um aristotélico, não escapa a
influências estranhas ao aristotelismo, e provavelmente aos estóicos. A
Ética Eudeinia é atribuída por alguns a Eudemo de Rodes, discípulo de
Aristóteles; por outros, considerada como obra original de Aristóteles,
editada por Eudemo, como foi editada por Nicómaco a Ética Nicomaqueia.
Os estudos mais recentes levam a ver na Ética Eudemia a primeira
formulação da Ética de Aristóteles que também neste domínio se vai
afastando cada vez mais das directrizes do mestre.

A Política em 8 livros. Livro I: A natureza da família. Livro II:


Consideração crítica das teorias anteriores do estado. Livro III:
Conceitos fundamentais da Política. Natureza dos estados e dos
cidadãos. As várias formas de constituição. A monarquia. Livro IV:
Ulterior determinação dos caracteres das diversas constituições. Livro
V: Mudanças, sedições e revoluções nos estados. Livro VI: A democracia
e as suas instituições. Livro VII: a constituiição ideal. Livro VIII: A
educação. Aristóteles recolhem 158 constituições estatais que se
perderam. Voltoti à luz, nos princípios do século passado, a
Constituição dos Atenienses, escrita pessoalmente por Aristóteles como
primeiro livro do conjunto da obra.

Da Economia, provavelmente o primeiro livro não é aristotélico, o


segundo é decididamente apócrifo e pertence ao fim do III século.

À Retórica, em 3 livros, trata no I da natureza da retórica, que tem


por objecto o verosímil e os problemas que lhe são próprios; no II do
modo de suscitar com a palavra afectos e paixões, no III, da expressão
e da ordem em que devem ser expostas as partes do discurso.

A chama-da Retórica a Alexandre é apócrifa, como o demonstra o próprio


facto da dedicatória,
245

costume desconhecido no tempo de Aristóteles; é atribuída ao retórico


Anaxímenes de Lampsaco.

A Poética chegou-nos incompleta. A parte que nos resta trata apenas da


origem e da natureza da tragédia.

Perderam-se as obras históricas de Aristóteles sobre os Pitagóricos,


Arquitas, Demócrito e outros.
O escrito sobre Melisso, Xenófanes e Górgias não é aristotélico.

§ 71. - DO "FILOSOFAR" PLATÓNICO À "FELOSOFIA" ARISTOTÉLICA

Num fragmento da elegia, endereçada a Eudemo, colocada no altar de


Platão, Aristóteles exalta assim o mestre:

* h&~ que o& maus 4ndo têm sequer permitido para [louvar que sozinho ou
o primeiro entre os mortais demonstrou [claramente com o exemplo de ~
vida e com o rigor de seus [argumentos que o homem se torna bom e feliz
ao mesmo tempo. A ninguém até agora foi permitido tanto alcançar.

O ensinamento fundamental de Platão é, pois, segundo Aristóteles, a


relação estreita que existe entre a virtude e a felicidade; e o valor
deste ensinamento está no facto de que Platão não se limitou a
demonstrá-lo com argumentos lógicos, mas o incorporou na sua vida e
para isso viveu. Mas para Platão o homem só pode alcançar o bem que é a
própria felicidade, mediante uma pesquisa rigorosamente conduzida e que
se dirija para a ciência do ser em si. Platão não estabelecia apenas a
identi-
246

dade entre virtude e felicidade mas também entre virtude e ciência. O


que é que pensa Aristóteles desta segunda identidade, para cuja
demonstração tende toda a obra de Platão?

Encontra-se precisamente aqui a separação entre Platão e Aristóteles.


Para Platão a filosofia é procura do ser e ao mesmo tempo realização da
verdadeira vida do homem nesta procura: é ciência e, enquanto ciência,
virtude e felicidade. Mas para Aristóteles, o saber não é já a própria
vida do homem que procura o ser e o bem, mas uma ciência objectiva que
se divide e se articula em numerosas ciências particulares, cada uma
das quais alcança a sua autonomia. Por um lado, para Aristóteles, a
filosofia tornou-se o sistema total das ciências singulares. Por outro
lado, é ela própria uma ciência singular, certamente a "rainha" das
outras, mas que não as absorve nem dissolve por si mesma. Por isso,
enquanto para Platão a indagação filosófica dá lugar a sucessivos
aprofundamentos, ao exame de problemas sempre novos que procuram
aprender por todas as partes o mundo do ser e do valor, para
Aristóteles ela encaminha-se para a constituição de lima enciclopédia
das ciências na qual nenhum aspecto da realidade fica de fora. A
própria vida moral do homem torna-se o objecto de uma ciência
particular-a ética, que é autónoma, como qualquer outra ciência, frente
à filosofia.

O conceito da filosofia apresenta-se, pois, em Aristóteles


profundamente alterado. Por um lado a filosofia deve constituir-se como
ciência em si e reivindicar portanto para si aquela mesma autonomia que
as outras ciências reivindicam frente a ela. Por outro lado,
diferentemente das outras ciências, deve encontrar razões para o seu
fundamento comum e justificar a sua prioridade relativamente a elas.
Nestes termos, o problema é propriamente
247

aristotélico e não se encontra nada semelhante na obra de Platão. Para


Platão a filosofia não é mais que o filosofar e o filosofar é o homem
que procura realizar a sua verdadeira mesmidade, unindo-se ao ser e ao
bem que é o princípio do ser. Não há em Platão um problema do que é que
seja a filosofia, mas só o problema do que é o filósofo, o homem na sua
autêntica e completa realização. Tal é a pesquisa que domina todos os
diálogos platónicos, principalmente, a República e o Sofista. Mas para
Aristóteles a filosofia, enquanto ciência objectiva, deve constituir-se
por analogia com as outras ciências. E como cada ciência é definida e
se especifica pelo seu objecto, do mesmo modo a filosofia deve ter um
objecto próprio que a caracteriza frente às outras ciências e ao mesmo
tempo lhe dê, frente a elas, a superioridade que lhe corresponde. Qual
é este objecto?

Dois pontos de vista se entrelaçam a este respeito na Metafísica


aristotélica, pontos de vista que assinalam duas etapas fundamentais da
evolução filosófica de Aristóteles. De acordo com o primeiro, a
filosofia é a ciência que tem por objecto o ser imóvel e transcendente,
o motor ou os motores dos céus; e é, portanto, propriamente falando,
teologia. Como tal, esta é a ciência mais alta porque estuda a
realidade mais alta, a divina (Met., VI, 1, 1026 a, 19). Mas assim
entendida, falta à filosofia universalidade (e o próprio Aristóteles o
advertia: 1026 a, 23) porque se reduz a uma ciência particular com um
objecto que, ainda que seja mais alto e mais nobre do que o das outras
ciências, não tem nada a ver com elas. Nesta fase, apesar de se ter
apartado do conceito platónico do filosofar, Aristóteles permanece fiel
ao princípio platónico de que a indagação humana deve exclusiva ou
preferentement dirigir-se para 'os objectos mais elevados que
constituem os valores supremos. Mas uma filosofia assim com-
248

premdida não consegue constituir o fundamento da enciclopédia das


ciências e fornecer a justificação de qualquer investigação, a respeito
de qualquer objecto. Esta exigência leva Aristóteles ao segundo ponto
de vista, que é o definitivo, e cuja realização constitui a sua tarefa
histórica. De acordo com este segundo ponto de vista, a filosofia tem
por objecto, não uma realidade particular (seja embora a mais elevada
de todas), mas o aspecto fundamental e próprio de toda a realidade.
Todo o domínio do ser -é dividido pelas ciências singulares, cada uma
das quais considera um aspecto particular do mesmo; só a filosofia
considera o ser enquanto tal, prescindindo das determinações que
constituem o objecto das ciências particulares. Este conceito da
filosofia como "ciência do ser enquanto ser, é verdadeiramente a grande
descoberta de Aristóteles. Ela permite não só justificar o trabalho das
ciências particulares, como dá à filosofia a sua plena autonomia e a
sua máxima universalidade, constituindo-a como o pressuposto
indispensável de toda a investigação. Neste sentido, a filosofia já não
é somente teologia: certamente a teologia é uma das suas partes, mas
não a primeira nem a fundamental, pois que a primeira e fundamental é
aquela que conduz à busca do princípio em virtude do qual o ser, todo o
ser -Deus como a mais ínfima realidade natural é verdadeira e
necessariamente tal.

§ 72. A FILOSOFIA PRIMEIRA: SUA POSSIBILIDADE E SEU PRINCIPIO

O primeiro grupo de investigações empreendidas por Aristóteles na


Metafísica versa precisamente sobre a possibilidade e sobre o principio
de uma ciência do ser. Aristóteles preocupa-se antes de mais em definir
o lugar desta ciência no sistema do saber
249

e as suas relações com as outras ciências. Acima de tudo, cada ciência


pode ter por objecto ou o possível ou o necessário: o possível é o que
pode ser indiferentemente de um modo ou de outro; o necessário é aquilo
que não pode ser de modo diferente do que é. O domínio do possível
compreende a acção (praxis) que tem o seu fim em si mesma, e a produção
(poiesis) que tem o seu fim no objecto produzido. As ciências que têm
por objecto o possível, enquanto são normativas ou técnicas, podem
também ser consideradas como artes; mas não há arte que concerne aquilo
que é necessário (Et. Nic., VI, 3-4). Entre as ciências do possível, a
política e a ética têm por objecto as acções e por isso chamam-se
práticas; as artes têm por finalidade a produção de coisas e chamam-se
poéticas. Destas últimas, há uma que leva no próprio nome o selo do seu
carácter produtivo-é a poesia.
O domínio do necessário pertence pelo contrário às ciências
especulativas ou teóricas. Estas são três: a matemática, a física e a
filosofia primeira, que depois de Aristóteles se chamará metafísica. A
matemática tem por objecto a quantidade no seu duplo aspecto de
quantidade descontínua ou numérica (aritmética) e de quantidade
contínua de uma, duas ou três dimensões (geometria) (Met., XI, 3,
1061 a, 28). A física tem por objecto o ser em movimento e, por
consequência, aquelas determinações do ser que estão ligadas à matéria
que é condição do movimento (1b., VI 1, 1026 a, 3). A filosofia deve
constituir-se por analogia com as outras ciências teóricas se quer
assumir como objecto de sua consideração o ser enquanto ser. Como a
matemática e a física, deve proceder por abstracção. O matemático
despoja as coisas de todas as qualidades sensíveis (peso, leveza,
dureza, etc.) e redu-las à quantidade descontínua ou contínua; o físico
prescinde de todas as determinações do ser que não se
250

reduzem ao movimento. De modo análogo, o filósofo deve despojar o ser


de todas as determinações particulares (quantidade, movimento, etc.) e
considerá-lo só enquanto ser. Além disso, como a matemática parte de
certos princípios fundamentais que concernem o objecto que lhe é
próprio, a quantidade em geral (como é por exemplo o axioma: tirando
quantidades iguais a quantidades iguais os restos são iguais), assim a
filosofia deve partir de um princípio que lhe é próprio e que concerne
o objecto que lhe é próprio, o ser enquanto tal.

O problema consiste em saber se uma tal ciência é possível.


Evidentemente, a primeira condição para a sua possibilidade é que seja
possível reduzir os diversos significados do ser a um único significado
fundamental. De facto o ser diz-se de muitas maneiras: nós dizemos que
são a quantidade, a qualidade, a privação, a corrupção, os acidentes; e
até do não ser dizemos que é não ser. Todos estes modos devem ser
reduzidos à unidade, se hão-de ser o objecto de uma única ciência. O
ser e o uno devem de algum modo identificar-se, já que é necessário
descobrir aquele sentido do ser, pelo qual o ser é uno e é também a
unidade mesma do ser (1b., IV, 2, 10003 b). E esta unidade não deve ser
acidental. mas intrínseca e necessária a todos os diferentes
significados que o ser assume. O que é acidental não pode ser objecto
de ciência porque não tem estabilidade ou uniformidade; e a ciência é-o
somente do que é sempre, ou quase sempre, de um modo (lb., VI, 2, 1027,
a). Se se quer pois determinar o único significado fundamental do ser é
necessário reconhecer um princípio que garanta a estabilidade e a
necessidade do próprio ser. Tal é o princípio da contradição.

Este princípio é considerado por Aristóteles, em primeiro lugar como


princípio constitutivo do ser enquanto tal; em segundo lugar, como
condição de
251

toda a reflexão sobre o ser. isto é, de todo o pensamento verdadeiro. É


portanto simultaneamente um principio ontológico e ló gico; e
Aristóteles expressa-o em duas fórmulas que correspondem a duas
significações fundamentais: "Ê impossível que uma mesma coisa convenha
e ao mesmo tempo não convenha a uma mesma coisa, precisamente enquanto
é a mesma"; "É impossível que a mesma coisa seja e simultaneamente não
seja"; tais são as duas fórmulas principais em que o princípio ocorre
em Aristóteles (por exemplo, Met, IV, 3, 1005 h, 18; 4,
1006 a, 3); e destas fórmulas, evidentemente a primeira refere-se à
impossibilidade lógica de predicar o ser e o não ser de um mesmo
sujeito; a segunda à impossibilidade ontológica de que o ser seja e não
seja. Aristóteles defende polemicamente este princípio contra aqueles
que o negam: Megáricos, Cínicos e Sofistas, os quais admitem a
possibilidade de afirmar todas as coisas de todas as coisas;
Heracliteanos, que admitem a possibilidade de que o ser, no devir, se
identifique com o não ser. Na realidade, o princípio só se pode
defender e esclarecer polemicamente porque, como fundamento de toda a
demonstração, não pode por sua vez ser demonstrado. Certamente pode-se
demonstrar que quem o nega nada diz ou suprime a possibilidade de
qualquer ciência; e é este, com efeito, o argumento polémico adoptado
por Aristóteles contra os que o negam. Mas com isto ainda não resulta
evidente o seu valor como axioma fundamental da filosofia primeira,
como principio constitutivo da metafísica como ciência do ser enquanto
tal. Este valor provém, ao invés, das considerações que Aristóteles
desenvolve a propósito do ser determinado (tóde li). Se. por exemplo, o
ser do homem se determinou como o de "animal bípede", "necessariamente
todo o ser que se reconheça como homem deverá ser reconhecido, como
animal bípede". Se a
252

verdade - afirma Aristóteles -tem um significado, necessariamente quem


diz homem diz animal bípede: pois que isto significa homem. Mas se isto
é necessário, não é possível que o homem não seja animal bípede: de
facto a necessidade significa isto mesmo, que é impossível que o ser
não seja" (Met., IV, 4,
1006 b, 30). Aqui se descobre claramente o significado do princípio da
contradição como fundamento da metafísica: o princípio leva a
determinar o fundamento pelo qual o ser é necessariamente. E de facto a
fórmula negativa do princípio da contradição: "Ê impossível que o ser
não seja" traduz-se positivamente por estoutra: o ser, enquanto tal, é
necessariamente. Nesta fórmula, o princípio revela claramente a sua
capacidade para fundamentar a metafísica. O ser que é objecto desta
ciência, é o ser que não pode não ser, o ser necessário.

A necessidade constitui portanto para Aristóteles o sentido primário ou


fundamental do ser, aquele a partir do qual todos os outros (embora não
existam), podem ser compreendidos e distinguidos. Era esta a própria
tese de Parménides ("o ser é e não pode não ser": fr. 4, Diels) que
fora adoptada pelos Megáricos. Todavia Aristóteles não entende esta
tese no sentido que só o necessário existe e que o não necessário é
nada. Porquanto (como se viu) ele afirma que só o necessário é o
objecto da ciência e que portanto a própria ciência é necessidade
(apodítica, isto é, demonstrativa); o possível é admitido por ele como
objecto de artes ou de disciplinas que têm só imperfeita ou
aproximadamente carácter científico. Portanto, aquilo que ele entende
afirmar é que o ser necessário é o único objecto da ciência e mais que
do que não é necessário somente se pode ter conhecimento na medida em
que de qualquer modo se avizinha da necessidade, no sentido de que
manifesta uma certa uni-
253

formidade ou persistência. "Algumas coisas - diz ele - são sempre


necessariamente o que são, não no sentido de serem constrangidas, mas
no sentido de não poderem ser de outra maneira; pelo contrário, outras
são o que são, não por necessidade mas "mais uma vez"; e este é o
princípio pelo qual podemos distinguir o acidental, que é tal
precisamente porque não é nem sempre, nem o mais das vezes (1026 b,
27). Como se vê, Aristóteles admite ao lado do necessário e do uniforme
(o "mais das vezes") também o acidental; mas do acidental não há
ciência mas, em todo o caso, tal como com o uniforme não-necessário
pode ser distinguido e reconhecido sobre fundamento do necessário.

Qual é portanto o ser necessário? A esta pergunta Aristóteles responde


com a doutrina fundamental da sua filosofia. O ser necessário é o ser
substancial. O ser que o princípio da contradição permite reconhecer e
isolar na sua necessidade é a substância. "Esses-diz ele (referindo-se
aos que negam o princípio da contradição) -destroem completamente a
substância e a essência necessária, pois que se vêm obrigados a dizer
que tudo é acidental e não existe nada como o ser-homem ou o ser-
animal. Efectivamente se há alguma coisa como o ser-homem, esta não
será o ser-não-homem ou o não-ser-homem, mas estes serão negações
daquele. De facto, é um só o significado do ser e este é a sua
substância. Indicar a substância de uma coisa não é mais que indicar o
seu ser próprio" (Met., IV,
4, 1007 a, 21-27). O princípio da contradição, tomado no seu alcance
ontológico-lógico, conduz directamente a determinar o ser enquanto tal
que é o objecto da metafísica. Este ser é a substância. A substância é
o ser por excelência, o ser que é impossível que não seja e portanto é
necessariamente, o ser que é primeiro em todos os sentidos. "A
substância é primeira-diz Aristóteles (lb., VII,
254

1, 1028 a, 3 1) -por definição, para o conhecimento e para o tempo. Ela


é a única, entre todas as categorias, que pode subsistir separadamente.
É primeira por definição, pois que a definição da substância está
implícita necessariamente na definição de qualquer outra coisa. É
primeira para o conhecimento porque acreditamos conhecer uma coisa, por
exemplo o homem ou o fogo, quando sabemos que coisa ela é, mais do que
quando conhecemos o seu qual, o quanto, o durante; e também só
conhece~s cada uma destas determinações quando sabemos que coisa são
elas mesmas". O que coisa é a substância.

O problema do ser transforma-se portanto no problema da substância e


neste último se concretiza e determina o objectivo da metafísica.
"Aquilo que desde há tempo e ainda agora e sempre temos buscado, aquilo
que será sempre um problema para nós. O que é o ser? significa : O que
é a substância?" (Met., VII, 1, 1028 b, 2).

§ 73. A SUBSTÂNCIA

O que é a substância? Tal é o tema do principal grupo de investigações


na Metafísica. Aristóteles enfrenta-o com o seu característico processo
analítico e dubitativo, formulando todas as soluções possíveis,
desenvolvendo e discutindo cada uma delas e fazendo assim brotar um
problema de outro. No emaranhado das investigações que nos vários
escritos que compõem a Metafísica se entrelaçam por acaso, voltando
amiude ao princípio da discussão ou interrompendo-a antes da conclusão,
o livro VII oferece-nos o desenvolvimento mais maduro e concludente
deste problema fundamental.
O último capítulo do livro, o XVII, apresenta como, conclusão o
verdadeiro princípio lógico e especula-
255
tivo de todo o trabalho. A substância é aqui considerada como o
princípio (arché) e a causa (aitia): em consequência, como o que
explica e justifica o ser de cada coisa. A substância é a causa
primeira e, o ser próprio de toda a realidade determinada. É o que faz
de um composto algo que não se resolve na soma dos seus elementos
componentes. Como a sílababa não é igual à soma de b e a, mas tem uma
natureza que desaparece quando se dissolve nas letras que a acompanham;
assim qualquer realidade tem uma natureza que não resulta da adição dos
seus elementos componentes e é diferente de cada um e de todos estes
elementos. Tal natureza é a substância daquela realidade: o princípio
constitutivo do seu ser. A substância é sempre princípio, nunca
elemento componente (1041 b, 31). Só ela, portanto, permite responder à
pergunta a respeito do porquê de uma coisa. Se se pergunta, por
exemplo, o porquê de uma casa ou de um leito, pergunta-se evidentemente
qual a finalidade para que a casa ou o leito foram construídos. Se se
pergunta o porquê do nascer, do morrer ou em geral da mudança,
pergunta-se evidentemente a causa eficiente, o princípio pelo qual o
movimento se origina. Mas finalidade e causa eficiente não são outra
coisa senão a própria substância da realidade de que se pergunta o
porquê (1041 a, 29).

Estas observações são a chave para compreender toda a doutrina


aristotélica da substância e consequentemente para penetrar no próprio
coração da metafísica aristotélica. A expressão de que Aristóteles se
serve para definir a substância é: aquilo que o ser era (to ti en
einal, quod quid erat esse). Nesta fórmula, a repetição do verbo ser
exprime que a substância é o princípio constitutivo do ser como tal; e
o imperfeito (era) indica a persistência e a estabilidade do ser, a sua
necessidade, A substância é o ser do ser: o princípio pelo qual
256

o ser é tal necessariamente. Mas como ser do ser, a substância tem uma
dupla função a que corresponde uma dupla consideração da mesma: é por
um lado o ser em quem se determina e limita a necessidade do ser, por
outro lado o ser que é necessidade determinante e limitadora. Podemos
exprimir a dupla funcionalidade da substância, à qual corresponde dois
significados distintos mas necessariamente conjuntos, dizendo que a
substância é, por um lado, a essência do ser, pelo outro o ser da
essência. Como essência do ser a substância é o ser determinado, a
natureza própria do ser necessário: o homem como "animal bípede".
Como ser da essência, a substância é o ser determinante, o ser
necessário da realidade existente: o animal bípede como este homem
individual. Os dois significados podem ser compreendidos sob a
expressão essência necessária, a qual dá, o mais exactamente possível,
o sentido da fórmula aristótélica.

Evidentemente, a essência necessária não é a simples; essência de uma


coisa. Nem sempre a essência é a essência necessária: quem diz de um
homem que é músico, não diz a sua essência necessária, porque ele -pode
ser homem sem ser músico. A essência necessária é aquela que constitui
o ser próprio de uma realidade qualquer, aquele ser pelo qual a
realidade é necessariamente tal. A substância é portanto não a
essência, mas a essência necessária, não o ser tomado genericamente mas
o ser autêntico: é a essência do ser e o ser da essência.

Entendida assim, ela revela o aspecto mais íntimo do pensamento


aristotélico e ao mesmo tempo a sua relação mais secreta com o
pensamento de Platão. Platão explicara a validade intrínseca do ser
como tal, a normatividade que o ser apresenta em si próprio e ao homem,
referindo o ser aos outros valores e fazendo do bem o princípio do ser.
Para Platão, se o ser vale, se possui um valor graças ao
257

qual se põe como norma, isso acontece, não porque é ser, mais porque é
bem; aquilo que o constitui enquanto ser é o bem, o próprio valor. A
normatividade do ser é, para Platão, estranha ao próprio ser: o ser
está no valor, não o valor no ser. Ao contrário, Aristóteles descobriu
o valor intrínseco do ser. A validade que o ser possui não lhe vem de
um principio extrínseco, do bem, da perfeição ou da ordem, mas do seu
principio -intrínseco, da substância. O ser não está no valor, mas. "o
valor no ser". Tudo aquilo que é. enquanto é, realiza o valor
primordial e único, o ser enquanto tal. A substância, como ser do ser,
dá às mais insignificantes e pobres manifestações do ser uma validade
necessária, uma absoluta normatividade. Efectivamente, não é privilégio
das realidades mais elevadas, mas encontra-se tanto na base como no
cimo da hierarquia dos seres e representa o verdadeiro valor metafísico.

Com a descoberta da validade do ser enquanto tal, Aristóteles está con


condições de adoptar ante o mundo uma atitude completamente distinta da
de Platão. -Para ele, tudo aquilo que é, enquanto é, tem um valor
intrínseco, é digno de consideração e de estudo e pode ser objecto de
ciência. Ao contrário, para Platão só aquilo que encarna um valor
diferente do ser pode e deve ser objecto de ciência: o ser enquanto tal
não basta, porque não tem em si o seu valor. Com a teoria da
substância, Aristóteles elaborou o princípio que justifica a sua
atitude frente à natureza, a sua obra de investigador infatigável, o
seu interesse científico que não se apaga nem diminui nem sequer ante
as mais insignificantes manifestações do ser. A teoria da substância é
ao mesmo tempo o centro da metafísica de Aristóteles e o centro da sua
personalidade. Ela revela o íntimo valor existencial da sua metafísica.
258

§ 74. AS DETERMINAÇÕES DA SUBSTÂNCIA

A dupla função da substância aparece continuamente na investigação


aristotélica e comunica-lhe uma ambiguidade aparente que só se pode
eliminar reconhecendo a distinção e a unidade das duas funções da
substância. Quando Aristóteles diz que a substância é expressa pela
definição e que só da substância há definição verdadeira (VII, 4,
1030 b, a), entende a substância como essência do ser, como aquilo que
a razão pode entender e demonstrar do ser. Quando, ao contrário,
declara que a substância se identifica com a realidade determinada
(tode ti) e que, por exemplo, a beleza não existe senão naquilo que é
belo (VII, 6, 1031 b,
10), entende a substância como ser da essência, como o princípio que dá
à natureza própria de uma coisa a sua existência necessária. Como
essência do ser, a substância é a forma das coisas compostas, e dá
unidade aos elementos que compõem a todo e ao lodo uma natureza
própria, diferente daquela dos elementos componentes (VIII, 6 b, 2). A
forma das coisas materiais, que Aristóteles chama espécie (VII, 8, 1033
b, 5), é portanto a sua substância. Como ser da essência, a substância
é o sujeito (ypokeimenon, subjectum): aquilo de que qualquer outra
coisa se predica, mas que não pode ser predicado de nenhuma. E como
sujeito é matéria, isto é, realidade privada de qualquer determinação e
que só possui essa determinação em potência (VIII, 1, 1042 a, 26). Como
essência do ser, a substância é o conceito ou logos ou razão de ser, de
que não há geração nem corrupção (pois que o que devém não é a essência
necessária da coisa, mas esta ou aquela coisa). Como ser da essência, a
substância é o composto ou sinolo, isto é, a união do conceito (ou
forma) com a matéria, a coisa exis-
259

tente; e em tal sentido a substância nasce e morre (VIII, 15, 1039 b,


20). Como essência do ser, a substância é o princípio de
inteligibilidade do próprio ser. É o que a razão pode tomar da
realidade enquanto tal; e constitui o elemento estável e necessário,
sobre o qual se fundamenta a ciência. De facto não há ciência senão do
que é necessário, enquanto que o conhecimento do que pode ser e não
ser, é mais opinião que ciência. Precisamente por isto não existe
definição ou demonstração das substâncias sensíveis particulares que
são dotadas de matéria e não são por consequência necessárias mas
corruptíveis: o seu conhecimento obscurece-se apenas deixam de ser
percebidas. Todavia permanece íntegro, no sujeito que as conhece, o seu
conceito que expressa precisamente a sua natureza substancial, ainda
que não na forma rigorosa da definição (Met., VII, 15,
1039 b, 27). A substância é portanto objectivamente e subjectivamente o
princípio da necessidade: objectivamente, como ser da essência,
enquanto realidade necessária; subjectivamente, como essência do ser,
enquanto razão de ser necessitante.

Ao considerar a diversidade e disparidade dos significados que a


substância toma para Aristóteles, dir-se-ia que Aristóteles se havia
limitado a formular dialecticamente todos os significados possíveis da
palavra, sem escolher entre eles nem determinar o único significado
autêntico e fundamental. Por um lado, como forma ou espécie, a
substância é iningendrável e incorruptível, pelo outro, como composto e
realidade particular existente, é engendrável e corruptível; por um
lado, como sujeito é existência real que não se reduz nunca ao
predicado, isto é, à pura determinação lógica; por outro lado, como
definição e conceito, é pura entidade lógica. Na realidade, concebida a
substância como ser do ser, na sua dupla funcionalidade de ser da
260

essência e essência do ser, Aristóteles podia reconhecer igualmente a


substância em todas aquelas diversas determinações e reduzir portanto à
unidade a disparidade aparente. Tal era precisamente o objectivo que se
propusera ao constituir a metafísica como ciência do ser enquanto tal e
ao tomar como seu fundamento o princípio da contradição. A riqueza das
determinações ontológicas que o conceito de substância permite
justificar a Aristóteles, relacionando-as com um único significado
fundamental, é a prova de que alcançou verdadeiramente, com o conceito
de substância, o princípio da filosofia primeira, como aquela ciência
que deve constituir o fundamento comum e a justificação última de todas
as ciências particulares. Aristóteles só devia excluir como ilegítimo
um significado da substância: aquele que separa o ser da essência ou a
essência do ser, que põe a validade e a necessidade do ser de fora do
ser, numa universalidade que não constitui a alma e a vida do próprio
ser. Tal era o ponto de vista do platonismo; por isso Aristóteles se
serve dele continuamente como termo de confronto polémico na construção
da sua metafísica.
§ 75. A POLÉMICA CONTRA O PLATONISMO

A característica do platonismo é, segundo Aristóteles, a de considerar


as espécies como substâncias separadas, reais independentemente dos
seres individuais de que são forma ou substância. Para Aristóteles a
substancialidade (a realidade) da espécie é a mesma do indivíduo de que
é espécie. Para Platão as espécies têm uma realidade em si que não se
dissolve na dos indivíduos singularmente existentes: e em tal sentido
são substâncias separadas.
261

Ora tais substâncias separadas são impossíveis. segundo Aristóteles.


Como espécies deveriam ser universais; mas é impossível que o universal
seja substância porque enquanto o universal é comum a muitas coisas, a
substância é própria de um ser individual e não pertence a nenhum
outro. Se em Sócrates, que é substância, existisse uma outra substância
("homem" ou "ser vivente") teríamos um ser completo de várias
substâncias, o que é impossível.

Aristóteles insiste portanto várias vezes na Metafísica na crítica dos


argumentos que eram seguidos por Platão e pelos Platónicos para
estabelecer a realidade da ideia. Tal crítica versa essencialmente
quatro pontos. Em primeiro lugar, admitir a ideia que
corresponda a cada conceito significa actuar mais ou menos como aquele
que, tendo de contar alguns objectos, julgasse que não podia fazê-lo
senão acrescentando o seu número. As ideias devem ser efectivamente em
número maior que os respectivos objectos sensíveis, porque há de haver
não só a ideia de cada substância, mas também a de todos os seus modos
ou caracteres que podem concentrar-se num único conceito. São outras
tantas realidades que se acrescentam às realidades sensíveis. de modo
que o filósofo se encontra no dever de explicar, além destas últimas,,
também as primeiras, enfrentando dificuldades maiores do que se se
encontrasse apenas perante o mundo sensível.

Em segundo lugar, os argumentos com que se demonstra a realidade da


ideia conduziriam a admitir ideias que até os Platónicos não consideram
que haja; por exemplo, a das negações ou das coisas transitórias, pois
que também destas há conceitos. E assim, até para a relação de
semelhança entre as ideias e as coisas correspondentes (por exemplo,
entre a ideia do homem e cada homem) deveria haver uma ideia (um
terceiro homem); e entre esta
262

ideia, por uma parte, e a ideia do homem e cada homem individual, por
outra, outras ideias; e
assim até ao infinito.

Em terceiro lugar, as ideias são inúteis porque não contribuem nada


para fazer compreender a realidade do mundo. De facto, não são causa de
nenhum movimento e de nenhuma mudança. Dizer que as coisas participam
das ideias não quer dizer nada, porque as ideias não são princípios de
acção .que determinem a natureza das coisas.

Finalmente, é este o argumento mais importante que se liga com a teoria


aristotélica da substância: a substância não pode existir separadamente
daquilo de que é substância. A afirmação do Fédon de que as ideias são
causas das coisas é, segundo Aristóteles, incompreensível, pois ainda
que supondo que as ideias existam, delas não derivarão as coisas se não
intervir para criá-las um princípio activo.

Estes argumentos a que Aristóteles retorna amiúde são simplesmente


indicativos, mas não reveladores do verdadeiro ponto de separação entre
ele e Platão. Partem do pressuposto de uma realidade das ideias
absolutamente separada do mundo sensível e da própria inteligência
humana que as apreende: pressuposto que se não verifica no espírito
autêntico do platonismo. Para Platão, a ideia é o valor e constitui ao
mesmo tempo o dever ser, o melhor, das coisas do mundo e a norma de que
o homem deve servir-se para a valoração das próprias coisas. A ideia
aparece a Aristóteles como separada do mundo não porque Platão haja
negado implicitamente ou explicitamente a relação com o mundo, mas
porque a ideia é incomensurável com o ser do próprio mundo. A ideia é o
bem, o belo ou em geral (segundo os últimos diálogos platónicos) a
ordem e a medida perfeita do mundo, e constitui um princípio diferente
e em consequência estranho e separado do ser' cujo fundamento se
263

pretende que seja. A descoberta da validade intrínseca do ser como tal,


o reconhecimento de que o ser, precisamente enquanto ser e não já
enquanto perfeição ou valor, possui a validade necessária, leva
Aristóteles a rejeitar a doutrina que separa o ser do seu próprio valor
e faz deste um mundo ou uma substância separada.

Por isso a substância aristotélica, até entendida como forma ou


espécie, não pode ser reconduzida à ideia platónica. A substância não é
a ideia que abandonando a esfera supraceleste se envolveu no ser e no
devir do mundo e readquiriu a sua concreção, mas um princípio de
validade intrínseco ao ser como tal: é o ser próprio do devir e do
mundo na própria necessidade.

Aristóteles realizou a inversão do ponto de vista platónico. Para


Platão, os valores fundamentais são os morais que não são puramente
humanos, mas cósmicos, e constituem o princípio e o fundamento do ser.
Para Aristóteles o valor fundamental é o ontológico, constituído pelo
ser enquanto tal, pela substância; e os valores morais circunscrevem-se
à esfera puramente humana. Quando Aristóteles nega que o universal seja
substância, tem em mente o universal platónico que verdadeiramente está
separado do ser, na medida que é um valor distinto do ser. O que ele
defende constantemente contra o platonismo é que o valor do ser é
intrínseco ao ser: é a doutrina da substância.

§ 76. A SUBSTÂNCIA COMO CAUSA


DO DEVIR

Com a indagação sobre a natureza da substância se entrelaça na


Metafísica a investigação em torno das substâncias particulares. Nesta
segunda investigação, Aristóteles é guiado pelo critério que ilustra
264

num passo famoso do livro VII. É necessário partir das coisas que são
mais cognoscíveis ao homem a fim de alcançar aquelas que são mais
cognoscíveis em si; do mesmo modo que, no campo da acção, se parte
daquilo que é bom para o indivíduo a fim de que consiga fazer seu o bem
universal (1020 b, 3). Mais facilmente cognoscíveis para o homem são as
substâncias sensíveis; portanto, destas se deve partir na consideração
das substâncias determinadas. E dado que estão sujeitas ao devir,
trata-se de saber que função desempenha a substância no devir.

Tudo aquilo que devém tem uma causa eficiente que é o ponto de partida
e o princípio do devir; devém alguma coisa (por exemplo, uma esfera ou
um círculo) que é a forma ou ponto de chegada do devir; e devém. de
alguma coisa, que não é a simples privação dessa forma, mas a sua
possibilidade ou potência e se chama matéria. O artífice que constrói
uma esfera de bronze, como não produz o bronze, tão-pouco produz a
forma de esfera que infunde no bronze. Não faz mais que dar a uma
matéria preexistente, o bronze, uma forma preexistente, a esfericidade.
Se tivesse de produzir também a esfericidade, teria de a tirar de
alguma outra coisa, como tira do bronze a esfera de bronze; isto é,
deveria haver uma matéria da qual tiraria a esfericidade e logo ainda
uma matéria desta matéria e assim até ao infinito. É evidente, pois,
que a forma ou espécie que se imprime na matéria não devém, pelo
contrário, o que devém é o conjunto da matéria e forma (sinolo) que
desta toma o nome. A substância como matéria ou como forma escapa ao
devir: ao qual pelo contrário, se submete a substância como sinolo
(VII, 8, 1033 b). Isto não quer dizer que haja uma esfera aparte das
que vemos ou uma casa fora das construídas com tijolos. Se assim fosse,
a espécie não se converteria nunca numa realidade determinada, isto é,
esta casa ou
265

esta esfera. A espécie exprime a natureza de uma coisa, não diz que a
coisa existe. Quem produz a coisa, tira de algo que existe (a matéria,
o bronze) qualquer coisa que existe e tem em si aquela espécie (a
esfera de bronze). A realidade determinada é a espécie que já subsiste
nestas carnes e nestes ossos que formam Cálias ou Sócrates, os quais
certamente são distintos pela matéria, mas idênticos pela espécie, que
é indivisível (1b., 1034 a, 5).

A substância é portanto a causa não só do ser mas ainda do devir. No


primeiro livro da Metafísica, Aristóteles distinguira quatro espécies
de causas, repetindo uma doutrina já exposta na Física ffi, 3 e 7).
"Das causas-dissera (Met., 1,
3, 983 a, 26)-fala-se de quatro modos. Chamamos causa primeira à
substância e à essência necessária, pois que o porquê se reduz em
última instância ao conceito (logos) que, sendo o primeiro porquê, é
causa e princípio. A segunda causa é a matéria e o substracto. A
terceira é a causa eficiente, isto é, o princípio do movimento. A
quarta é a causa oposta a esta última, o objectivo e o bem que é o fim
(telos) de cada geração e de cada devir. " Mas agora é claro que estas
quatro causas são verdadeiramente tais só enquanto se reduzem todas à
causa primeira, à substância de que são determinações ou expressões
diversas. Naquele primeiro ensaio de história da filosofia, que
Aristóteles nos oferece precisamente no primeiro livro da Metafísica,
ele põe à prova esta doutrina das quatro causas para se certificar se
os seus predecessores haviam descoberto outra espécie de causa, além
daquelas enunciadas por ele nos escritos de física. A conclusão da sua
análise é que todos se limitaram a tratar de uma ou duas das causas por
ele enunciadas: a causa material e a causa eficiente foram admitidas
pelos físicos, a causa formal por Platão, enquanto da causa final só
Anaxágoras teve um certo indí-
266
cio. "Mas estes - acrescenta Aristóteles - trataram delas confusamente;
e se num sentido se pode afirmar que as causas foram indicadas antes de
nós, num outro sentido pode dizer-se que não foram indicadas
inteiramente" o Q, 10, 992 b, 13). Aristóteles está assim consciente de
inserir-se historicamente na pesquisa estabelecida pelos seus
predecessores e de levá-la à sua culminação e clareza.
O objectivo que se propôs parece-lhe sugerido pelos resultados
históricos que a filosofia conseguiu antes dele.

§ 77. POTÊNCIA E ACTO

A função da substância no devir confere à mesma substância um novo


significado. Ela adquire um valor dinâmico, identifica-se com o fim
(telos), com a acção criadora que forma a matéria, com a realidade
concreta do ser individual no qual o devir se executa. Em tal sentido a
substância é acto: actividade, acção, conclusão.

Aristóteles identifica a matéria com a potência, a forma com o acto. A


potência (dynamis) é em geral a possibilidade de produzir uma mudança
ou de sofrê-la. Há a potência activa que consiste na capacidade de
produzir uma mudança em si ou noutro (como, por exemplo, no fogo a
potência de aquecer e no construtor a de construir); e a potência
passiva que consiste na capacidade de sofrer uma mudança (como por
exemplo, na madeira a capacidade de inflamar-se, naquilo que
é frágil a capacidade de romper-se). A potência passiva é própria da
matéria; a potência activa é própria do princípio de acção ou causa
eficiente.

O acto (enérgheia) é pelo contrário a própria existência do objecto.


Este está relativamente à potência "como o construir para o saber
construir,
267

o estar acordado para o dormir, o olhar para os olhos fechados, apesar


de ter vista, e como o objecto tirado da matéria e elaborado
completamente está para a matéria bruta e para o objecto ainda não
acabado" (Met., IX, 6, 1048 b). Alguns actos são movimentos (kinesis),
outros são acções (praxis). São acções aqueles movimentos que têm em si
próprios o seu fim. Por exemplo, ver é um acto que tem em si próprio o
seu fim e do mesmo modo o entender e o pensar, enquanto que o aprender,
o caminhar, o construir têm fora de si o seu fim na coisa que se
aprende, no ponto a que se pretende chegar, no objecto que se constrói.
Aristóteles chamou a estes actos não acções, mas movimentos ou
movimentos incompletos.

O acto é anterior à potência. É anterior relativamente ao tempo: pois é


verdade que a semente (potência) é anterior à planta, a capacidade de
ver anterior ao acto de ver; mas a semente não pode ser derivada senão
de uma planta e a capacidade de ver não pode ser própria senão de um
olho que vê. O acto é anterior também pela substância, pois o que no
devir é último, a forma completa, é substancialmente anterior: por
exemplo o adulto é anterior ao rapaz e a planta à semente, na medida
que um já realizou a forma que o outro não tem. A galinha vem antes do
ovo, segundo Aristóteles. A causa eficiente do devir deve preceder o
próprio devir e a causa eficiente é acto. Também do ponto de vista do
valor o acto é anterior já que a potência é sempre possibilidade de
dois contrários; por exemplo, a potência de ser saudável é também
potência de ser doente; mas o acto de ser saudável exclui a doença. O
acto é portanto melhor que a potência.

A acção perfeita que em em si o seu fim é designada por Aristóteles


como acto final ou realização final (entelequia). Enquanto o movimento
268

é o processo que leva gradualmente ao acto aquilo que antes estava em


potência, a entelequia é o termo final (telas) do movimento, o seu
término perfeito. Mas como tal, a enteléquia é também a realização
completa e portanto a forma perfeita daquilo que devém; é a espécie e a
substância.
O acto identifica-se por consequência em cada caso com a forma ou
espécie e, quando é acto perfeito ou realização final, identifica-se
com a substância. Esta é a própria realidade em acto e o princípio
dela. Frente a ela, a matéria considerada em si, isto é, como pura
matéria ou matéria prima, absolutamente privada de actualidade ou de
forma, é indeterminável e incognoscível e não é substância (Met., VII,
10, 1036 a, 8; IX, 7, 1049 a, 27). A matéria prima é o limite negativo
do ser como substância, o ponto em que cessa conjuntamente a
inteligibilidade e a realidade do ser. Mas aquilo que se chama
comummente matéria, por exemplo o fogo, a água, o bronze não é matéria
prima, porque tem já em si em acto uma determinação e portanto uma
forma; é matéria, isto é, potência, no que diz respeito às formas que
pode assumir, enquanto que é já, como realidade determinada, forma e
substância. Se conhecer a realidade e o porquê de uma coisa significa
conhecer a sua substância mediante a espécie ou forma (que é
precisamente a substância das realidades compostas ou "sinoli"), a
matéria representa o resíduo irracional do conhecimento, assim como a
substância representa o princípio ou a causa não só do ser, mas também
da inteligibil idade do ser como tal.

§ 78. A SUBSTÂNCIA IMóVEL

À filosofia como teoria da substância compete evidentemente não só a


tarefa de considerar a natureza da substância, as suas determinações
fun.
269

damentais e a sua função no devir, mas também o de classificar as


substâncias determinadas existentes no mundo, que são objecto das
ciências particulares e de tomar como objecto de estudo aquela ou
aquelas que escapam ao âmbito das demais ciências. Ora todas as
substâncias se dividem em duas classes: as substâncias sensíveis e em
movimento e as substâncias não sensíveis e imóveis. As substâncias do
primeiro género constituem o mundo físico e por sua vez subdividem-se
em duas classes: a substância sensível que constitui os corpos celestes
e é iningendrável e incorruptível; as substâncias constituídas pelos
quatro elementos do mundo sublunar, que são pelo contrário geráveis e
corruptíveis. Estas substâncias são o objecto da física. O outro grupo
de substâncias, as não sensíveis e imóveis, é objecto de uma ciência
diferente, a teologia, à qual Aristóteles dedicou o livro XII da
Metafísica.

A existência de uma substância imóvel é demonstrada por Aristóteles


tanto na Metafísica (XII, 6) como na Física (VIII, 10), mediante a
necessidade de explicar a continuidade e a eternidade do movimento
celeste. O movimento contínuo, uniforme, eterno do primeiro céu, o qual
regula os movimentos dos outros céus, igualmente eternos e contínuos
deve ter como sua causa um primeiro motor. Mas este primeiro motor não
pode ser por sua vez movido pois de outro modo requereria uma causa do
seu movimento e esta causa uma outra ainda e assim até ao infinito;
portanto, deve ser imóvel. Ora o primeiro motor imóvel deve ser acto,
não potência. Aquilo que só tem a potência de mover, pode também não
mover; mas se o movimento do céu é contínuo, o motor deste movimento
não só deve ser eternamente activo, mas deve ser pela sua natureza
acto, e absolutamente privado de potência. E pois que a potência é
matéria, esse
270

acto está também privado de matéria: é acto puro (Met., XII, 6, 1071 b,
22). Este acto puro ou primeiro motor não tem grandeza, portanto não
tem partes e é indivisível. Com efeito, uma grandeza finita não poderia
mover por um tempo infinito, pois que nenhuma coisa finita tem uma
potência infinita; e uma grandeza infinita não pode subsistir. Mas não
tendo matéria nem grandeza, a substância imóvel não pode mover como
causa eficiente; resta-lhe portanto que mova como causa final, enquanto
objecto da vontade e da inteligência. De facto tudo aquilo que é
desejável e inteligível move sem ser movido e um e outro se identificam
no seu princípio, pois que aquilo que se deseja é aquilo que a
inteligência julga bom enquanto é realmente tal. Na hierarquia das
realidades inteligíveis, a substância simples e em acto tem o primeiro
lugar; na hierarquia dos bens tem o primeiro lugar aquilo que é
excelente e desejável por si mesmo. Graças à identidade do inteligível
e do desejável, o sumo grau do inteligível, a substância imóvel
identifica-se com o sumo grau do desejável: a substância é pois também
o grau supremo da excelência, o sumo bem, Como tal, é objecto de amor,
move enquanto é amada, e as outras coisas são movidas pelo que ela move
dessa maneira, isto é, pelo primeiro céu (Met., XII, 7,
1072 b, 2).

À substância imóvel, na medida que é a mais elevada de todas, pertence


propriamente a que até para os homens é a vida mais excelente, mas que
só lhes é dada por breve tempo: a vida da inteligência. Só a
inteligência divina é que não pode ter um objecto diferente de si ou
inferior a si própria. Ela pensa-se a si mesma no lugar do inteligível:
a inteligência e o inteligível são em Deus um só. Enquanto que no
conhecimento humano frequentemente o ser do pensar é distinto do ser
271

do pensado porque este último está ligado à matéria, no conhecimento


divino, como em geral em todo o conhecimento que não se dirige à
realidade material, o pensar e o pensado identificam-se e fazem um só.
"Deus, portanto, se é o mais perfeito que há, pensa-se a si próprio e o
seu pensamento é pensamento do pensamento (Met., X, XII, 9, 1074 b,
34). E pois que a actividade do pensamento é o que pode existir de mais
excelente e mais doce, a vida divina é a mais perfeita de todas, eterna
e feliz (1b., 7, 1072 b, 23).

Se na ordem dos movimentos, Deus é o primeiro motor, na ordem das


causas Deus é a causa primeira, às quais revertem todas as séries
causais, compreendidas as das causas finais (Met., 11, 2). Mesmo no
sentido da causa final, Deus é o criador da ordem do universo que é
comparado por Aristóteles a uma família ou a uni exército. "Todas as
coisas são ordenadas uma relativamente a outra. mas não todas do mesmo
modo: os peixes, as aves, as plantas têm ordem diferente. Todavia
nenhuma coisa está relativamente a uma outra como se nada tivesse a
fazer com a outra; mas todas são coordenadas a um único ser. Isto é,
por exemplo, aquilo que acontece numa casa onde os homens livres não
podem fazer aquilo que lhes agrada, mas todas ou pelo menos a maior
parte das coisas acontecem segundo uma ordem; enquanto que os escravos
e os animais só em pouco contribuem para o bem-estar comum e muito
fazem casualmente" (lb., XII, 10.
1075 a, 12). Do mesmo modo, o bem de um exército consiste
"conjuntamente na sua ordem e no seu comandante, mas especialmente
neste último: pois que ele não é o resultado da ordem mas antes a ordem
depende dele" (1075 a, 13). Assim Deus é o criador da ordem do
mundo mas não do ser do próprio mundo. A estrutura substancial do
universo, para Aristóteles como para Platão, está para
272

lá dos limites da criação divina: ela é insusceptível de princípio e de


fim. Com efeito só a coisa individual, composta de matéria e forma, tem
nascimento e morte, segundo Aristóteles; enquanto que a substância que
é forma ou razão de ser ou aquela que é matéria não nasce nem perece
(VIII, 1,
1042 a, 30). O próprio Deus participa desta eternidade da substância já
que ele é substância (XII,
7, 1073 a, 3) a substância no mesmo sentido em
que são tais as outras substâncias (Et. Nic., 1, 6,
1096 a, 24). A superioridade de Deus consiste só na perfeição da sua
vida, não na sua realidade ou no seu ser, pois que, diz Aristóteles,
"nenhuma substância é mais ou menos substância do que uma outra" (Cat.,
V. 2b, 25).

Como Platão, Aristóteles é politeísta. De facto, em primeiro lugar,


Deus não é a única substância imóvel. Ele é o princípio que explica o
movimento do primeiro céu; mas como, além deste, existem os movimentos
igualmente eternos, das outras esferas celestes, a própria demonstração
que vale para a existência do primeiro motor imóvel vale também para a
existência de tantos motores quantos são os movimentos das esferas
celestes. Aristóteles admite assim numerosas inteligências motoras,
cada uma das quais preside ao movimento de uma determinada esfera e é
princípio de todo o movimento do universo. Aristóteles obtém o número
de tais inteligências motrizes do número das esferas que os astrónomos
do tempo haviam admitido para explicar o movimento dos planetas. Estas
esferas eram em número superior ao dos planetas, pois que a explicação
do movimento aparente dos planetas em volta da terra exigia que cada
planeta fosse movido por várias esferas; e isto com o objectivo de
justificar as anomalias que o movimento dos planetas apresenta
relativamente a um movimento circular perfeito em torno da terra.
Aristóteles admitia por
273

consequência 47 ou 55 esferas celestes e portanto


47 ou 55 inteligências motoras; a oscilação do número devia-se aos
diferentes números das esferas celestes admitidos por Eudóxio e por
Calipo, os dois astrónomos a que Aristóteles se referia (Met., XII, 8).

Aliás Aristóteles fala constantemente em "deuses" (Et. Nic., X, 9, 1179


a 24; Met., 1, 2, 983 a, 11;
111. 2. 907 b, 10, etc.); e aludindo à crença popular segundo a qual o
divino abraça toda a natureza, considera que este ponto essencial, isto
é "que as substâncias primeiras são tradicionalmente consideradas
deuses", tem sido "divinamente designado" e é um dos ensinamentos
preciosos que a tradição salvou (Met., XII, 8, 1074 a, 38), Noutros
termos, a substância divina participou de muitas divindades no que a
crença popular e a filosofia coincidem.

§ 79. A SUBSTÂNCIA FíSICA

A palavra metafísica, inventada provavelmente por um peripatético


anterior a Andrónico, deriva da ordenação dos escritos aristotélicos,
na qual os livros de filosofia se colocaram "depois da física"; mais
expressa também o motivo fundamental da "filosofia primeira" de
Aristóteles, a qual se ocupa da substância imóvel, partindo das
aparências sensíveis e está dominada pela preocupação de "salvar os
fenómenos". O estudo do mundo natural que para Platão pertence â esfera
da opinião e não ultrapassa os limites dos "raciocínios prováveis" (§
59), para Aristóteles é ao contrário uma ciência no pleno e rigoroso
significado do termo. Para Aristóteles não há na natureza nada tão
insignificante, tão omissivel que não valha a pena ser estudado e não
seja fonte de satisfação e de alegria para o investigador. "As
substâncias interiores-diz ele (Sobre as partes
274

dos animais, 1, 5, 645 a, 1 segs.) -sendo mais e melhor acessíveis ao


conhecimento, adquirem superioridade sobre as outras no campo
científico; e como estão mais próximas de nós e mais conformes à nossa
natureza, a sua ciência acaba por ser equivalente à filosofia que
estuda as substâncias divinas... Com efeito até no caso daquelas menos
favorecidas do ponto de vista da aparência sensível, a natureza que as
produziu dá alegrias inefáveis àqueles que, considerando-as
cientificamente, sabem compreender as suas causas e são por sua
natureza filósofos... Deve-se, além disso, ter presente que quem
discute uma parte qualquer ou elemento da realidade, não considera o
seu aspecto material, nem este lhe interessa, antes olha à forma na sua
totalidade. O que importa é a casa, não os tijolos, a cal e as traves:
assim, no estudo da natureza, aquilo que interessa é a substância total
de um ser determinado e não as suas partes que, separadas das
substâncias que o constituem, nem sequer existem". Estas palavras, que
pode dizer-se traduzem o programa científico de Aristóteles, encontram
a sua justificação na teoria da substância que é o centro da sua
metafísica. Esta teoria demonstrou com efeito que cada ser possui, na
substância que o constitui, o princípio ou a causa da sua necessidade.
Cada ser tem, portanto, enquanto tal, o seu próprio valor e se se
considera nele aquilo que precisamente o faz ser, isto é, a forma total
ou substância, é digno de consideração e de estudo e pode ser objecto
de ciência. Por isso Aristóteles adverte na passagem referida que se
deve olhar à forma e não à matéria, à totalidade em que se actualiza a
substância e não às partes.

COnformemente ao programa que as suas últimas e mais maduras


investigações metafísicas tinham especulativamente justificado, a
actividade científica de Aristóteles dirige-se cada vez mais para as
investigações particulares. Fixou a sua atenção principalmente no
mundo animal, como se deduz dos números, os escritos de história
natural que nos restam; mas pode afirmar-se que nenhum campo da
investigação empírica lhe era estranho, pois que preparava ao mesmo
tempo a reunião das 158 constituições políticas e se entregava a outras
investigações eruditas, como a compilação do catálogo dos vencedores
dos jogos píticos.

Mas não é possível ocuparmo-nos de todas as vastas investigações


naturalísticas de Aristóteles, que como tais saem do campo da
filosofia. Sabemos já que a física é para ele urna ciência teorética,
ao lado da matemática e da filosofia primeira. O seu objecto é o ser em
movimento, constituído pelas duas substâncias que são dotadas de
movimento, a engendrável e corruptível que forma os corpos sublunares e
a iningendrável e incorruptível que forma os corpos celestes.

Segundo Aristóteles, o movimento é a passagem da potência ao acto e


portanto possui sempre um fim (telos). que é a forma ou espécie que ele
tende a realizar. Dado que o acto como substância precede sempre a
potência, cada movimento pressupõe já em acto a forma que é o seu
término final. Aristóteles admite quatro tipos fundamentais de
movimento: 1) o movimento substancial, isto é, a geração e a corrupção;
2) o movimento qualitativo, isto é, a mudança ou a alteração-, 3) o
movimento quantitativo, isto é, o aumento e a diminuição; 4) o
movimento local, isto é, o movimento propriamente dito. Todavia este
último é, segundo Aristóteles, o movimento fundamental a que todos os
outros se reduzem: com efeito o aumento e a diminuição são devidos ao
afluxo ou ao afastamento duma certa matéria; a mudança, a geração e a
corrupção supõe o reunirem-se num dado lugar ou o separar-se de
determinados elementos. Por isso só o movimento
276

local, isto é, a mudança de lugar, constitui o movimento fundamental


que permite distinguir e classificar as várias substâncias físicas.

Ora o movimento local é, segundo Aristóteles, de três espécies: 1)


movimento circular em torno do centro do inundo; 2) movimento do centro
do mundo para o alto, 3) movimento do alto para o centro do mundo.
Estes dois últimos movimentos são reciprocamente opostos e podem
pertencer às mesmas substâncias, as quais serão sujeitas à mudança, à
geração e à corrupção. Efectivamente, os elementos constitutivos destas
substâncias, podendo moverem-se quer do alto para o baixo quer do baixo
para o alto, provocarão com estes movimentos o nascimento, a mudança e
a morte das substâncias compostas.

O movimento circular, ao invés, não tem contrários; por isso as


substâncias que se movem com esta espécie de movimento são imutáveis
necessariamente e iningendráveis e incorruptíveis. Aristóteles sustenta
que o éter, o elemento que compõe os corpos celestes, é o único que se
move com movimento circular. Esta opinião de que os corpos celestes são
formados por um elemento diferente daqueles que compõem o universo e
que por isso não estão sujeitos às vicissitudes do nascimento, morte e
mudanças das outras coisas, durou longo tempo na cultura ocidental e só
foi abandonada no século XV por obra de Nicolau de Cusa.

Os movimentos do alto para baixo e do baixo para alto são ao contrário


próprios dos quatro elementos que compõem as coisas terrestres ou
sublunares: água, ar, terra e fogo. Para explicar
O mOviMento destes elementos, Aristóteles estabelece a teoria dos
lugares naturais. A cada um destes elementos cabe-lhe no universo um
lugar natural. Se a parte de um elemento está afastada do seu lugar
natural (o que não pode acontecer senão dum Modo violento, isto é,
contrário à situação natural
277

do elemento) ela tende a retornar com um movimento natural.

Ora os lugares naturais dos quatro elementos são determinados pelo seu
respectivo peso. Ao centro do mundo está o elemento mais pesado, a
terra; à volta da terra, estão as esferas dos outros elementos na ordem
do seu peso decrescente: água, ar e fogo. O fogo constitui a esfera
extrema do universo sublunar; acima dela está a primeira esfera etérea
ou celeste, a da lua. Aristóteles era levado a esta teoria por
experiências bastante simples: a pedra imersa na água afunda-se, isto
é, tende a situar-se sob a água; uma bolha de ar aberta na água vem à
superfície, por isso o ar tende a dispor-se ao cimo da água; o fogo
arde sempre para o alto, isto é, tende a juntar-se à sua esfera que
está acima do ar.

O universo físico, que compreende os céus formados pelo éter e o mundo


sublunar formado pelos quatro elementos, é, segundo Aristóteles,
perfeito, finito, único e eterno. A perfeição do mundo é demonstrada
por Aristóteles com argumentos apriorísticos, que não têm qualquer
referência à experiência, Invoca a teoria pitagórica sobre a perfeição
do número 3 e afirma que o mundo, possuindo todas e as três dimensões
possíveis (altura, largura e profundidade), é perfeito porque não tem
falta de nada. Mas se o mundo é perfeito, é também finito.
Efectivamente, "infinito" significa, segundo Aristóteles, incompleto: é
infinito aquilo que tem falta de qualquer coisa, portanto aquilo a que
pode juntar-se sempre alguma coisa nova. O mundo, ao contrário, não tem
falta de nada: é portanto finito.

Por outro lado, nenhuma coisa real pode ser infinita, segundo
Aristóteles. Com efeito, cada coisa existe num espaço e cada espaço tem
um centro, um baixo, um alto e um limite extremo. Mas no infinito não
pode existir nem um centro nem um
278

alto nem um baixo nem um limite. Portanto nenhuma realidade física é


realmente infinita. A ordem das estrelas fixas assinala os limites do
universo, limites para lá dos quais não há espaço. Nenhum volume
determinado pode ser maior do que o volume desta esfera nenhuma linha
pode alongar-se para lá do seu diâmetro.

Daqui deriva que não podem existir outros mundos para lá do nosso e não
pode existir o vazio. Não podem existir outros mundos, pois que toda a
matéria disponível deve já estar disposta ab aeterno neste nosso
universo que tem por centro a terra e por limite extremo a esfera das
estrelas. Dado que cada elemento tende naturalmente para o seu lugar
natural, cada parte de terra tende a juntar-se à terra que está no
centro e cada elemento tende a reunir-se à própria esfera. Deste modo o
nosso universo tem de recolher toda a matéria possível e fora dele não
há matéria: ele é único. Mas fora dele não existe tão-pouco o vazio. Os
atomistas haviam sustentado que, sem o vazio, não é possível o
movimento, pois que pensavam que, se os átomos (que são semelhantes a
pedrinhas pequeníssimas) fossem impelidos ao mesmo tempo sem intervalos
vazios entre um e outro, nenhum átomo se poderia mover. Aristóteles, ao
contrário, sustenta que o movimento no vazio não seria possível.
Efectivamente no vazio não haveria nem um centro, nem um alto, nem um
baixo-, por consequência não haveria motivo para um corpo se mover numa
direcção em lugar de outra e todos os corpos permaneceriam parados.

Nesta argumentação, como se vê, Aristóteles socorre-se continuamente da


teoria dos lugares naturais, fundada na classificação dos movimentos. E
vai ao ponto de produzir como argumento contra o vazio aquilo que nós
hoje chamaríamos o principio da inércia. No vazio, diz, um corpo ou
permanece-
279

ria em repouso ou continuaria em movimento, enquanto se lhe não


opusesse uma força maior. Este, segundo Aristóteles, é um argumento
contra o vazio; mas na realidade este argumento demonstra apenas que
Aristóteles considera absurdo o que constitui o primeiro princípio da
mecânica moderna, o princípio de inércia. Veremos que este princípio
encontrará reconhecimento na escolástica do século XIV e será formulado
depois exactamente por Leonardo.

Finalmente, como totalidade perfeita e finita, o mundo é eterno.


Aristóteles define o tempo como "o número do movimento, segundo o antes
e o depois" (Fis., IV 11, 219 b, 1): entendendo com isto que ele é a
ordem mensurável do movimento. Distingue além disso a duração infinita
do tempo, no qual vive tudo o que muda, da eternidade, que é a
existência intemporal do imutável. Mas ao mundo na sua totalidade é que
atribui verdadeiramente a eternidade neste sentido. Sustenta que o
mundo não se gerou nem pode destruir-se e abarca e compreende na sua
imobilidade total a infinitude do tempo e também todas as mudanças que
acontecem no tempo. Consequentemente, Aristóteles não nos deixou uma
cosmogonia, como fizera Platão no Timeu; e não podia deixá-la, dado
que, segundo ele, o mundo não nasce.

A esta eternidade do mundo é conjunta a eternidade de todos os aspectos


fundamentais e de todas as formas substanciais do mundo. São por isso
eternas as espécies animais e também a espécie humana, a qual, segundo
Aristóteles, pode sofrer vicissitudes várias na sua história sobre a
terra, mas é imperecível na medida que é ingerada.

A perfeição do mundo que é o pressuposto de toda a física aristotélica,


implica a estrutura finalística do próprio mundo: isto é, implica, que
no mundo todas as coisas tenham um fim. A consi-
280

deração do fim é essencial a toda a física aristotélica.

Viu-se que para Aristóteles o movimento de um corpo não se explica se


não admitindo que tende naturalmente a alcançar o seu lugar natural: a
terra tende para o centro e os outros elementos tendem cada um para a
sua própria esfera. O lugar natural de um elemento é determinado pela
ordem perfeita das partes do universo. Atingir esse lugar e ainda
manter e garantir a perfeição de tudo, é o fim de todo o movimento
físico. Já na lei fundamental que explica os movimentos da natureza
está presente a consideração do fim. Mas o fim é ainda mais evidente no
mundo biológico, isto é, nos organismos animais: daqui se explica a
preferência de Aristóteles pelas investigações biológicas, às quais
dedicou grande parte da sua actividade. "A divindade e a natureza-diz
Aristóteles (De coelo, i, 4,
271 a)-não fazem nada que seja inútil". O acaso (autómaton),
propriamente falando, não existe. Dizemos que se verificam por acaso os
efeitos acidentais de certos acontecimentos que reentram na ordem das
coisas. Uma pedra que cai e fere alguém, fere-o por acaso porque não
caiu com o objectivo de feri-lo, a sua queda cabe no entanto na ordem
das coisas. A fortuna (tyche) é um espécie de acaso que se verifica na
ordem das acções humanas, como, por exemplo, vir ao mercado por um
motivo completamente diverso e encontrar lá um devedor que restitui a
soma devida. A acção deste homem afortunado era feita para um fim mas
não para aquele fim: por isso se fala de fortuna (Fis., 11, 5).

§ 80. A ALMA

Uma parte da física é aquela que estuda a alma. A alma é objecto da


física enquanto é forma
281

incorporada na matéria; as formas deste género são precisamente


estudadas pela física, enquanto a matemática estuda as formas
abstractas ou separadas da matéria. A alma é uma substância que informa
e vivifica um determinado corpo. Ela é definida como "O acto
(enteléquia) primeiro de um corpo que tem a vida em potência" . A alma
está para o corpo como o acto da visão está para o órgão da vista: é a
realização final da capacidade que é própria de um corpo orgânico. Como
todo o instrumento tem uma função, que é o acto ou actividade do
instrumento (como, por exemplo, a função do machado é cortar), assim o
corpo enquanto instrumento tem como sua função a de viver e de pensar;
e o acto desta função é a alma.

Aristóteles distingue três funções fundamentais da alma: a) a função


vegetativa, que é a potência nutritiva e reprodutiva e é própria de
todos os seres viventes a começar pelas plantas; b) a função sensitiva,
que compreende a sensibilidade e o movimento e é própria dos animais e
do homem; c) a função intelectiva, que é própria do homem. As funções
mais elevadas podem fazer as vezes das funções inferiores, mas não
vice-versa; assim no homem a alma intelectiva compreende também as
funções que nos animais são desempenhadas pela alma sensitiva e nas
plantas pela vegetativa.

Além dos cinco sentidos específicos, cada um dos quais fornece


sensações particulares (cores, sons, sabores, etc.). há um sentido
comum a que Aristóteles atribui uma dupla função: 1) a de constituir a
consciência da sensação, isto é, "o sentir do sentir" que não pode
pertencer a nenhum sentido particular; 2) a de perceber as
determinações sensíveis comuns a vários sentidos como o movimento, o
repouso, a figura, a grandeza, o número e a unidade. A sensação em acto
coincide com o objecto sensível: por exemplo, o ouvir o som e o próprio
282

som coincidem. Em tal sentido pode dizer-se que se não existissem os


sentidos, não conheceriam os objectos sensíveis (se não tivéssemos
vista, não conheceríamos as cores). Não conheceríamos em acto:
existiriam porém em potência, porque eles só coincidem com a
sensibilidade no acto desta.
A imaginação distingue-se dos sentidos. Distingue-se também da ciência,
que é sempre verdadeira, e da opinião que é acompanhada pela crença na
realidade do objecto, porque tal crença falta na imaginação. A
imaginação é produzida pela sensação, em acto e as imagens que ela
fornece são semelhantes às sensações; podem pois determinar a acção nos
homens ou também nos animais quando têm a mente ofuscada pelo
sentimento, pelas doenças ou pelo sono.

Análoga à da sensibilidade é a função do intelecto. A alma intelectiva


recebe as imagens como os sentidos recebem as sensações; o seu
objectivo é julgá-las verdadeiras ou falsas, boas ou más; e conforme as
julga, aprova-as ou desaprova-as, deseja-as ou afasta-as. O intelecto é
pois a capacidade de julgar as imagens fornecidas pelos sentidos.
"Ninguém poderia aprender ou compreender nada, se os sentidos nada lhe
ensinassem; e tudo quanto se pensa, pensa-se necessariamente com
imagens" (De an., 111, 7, 432 a). Todavia, o pensamento não tem nada
que ver com a imaginação: é o juízo emitido sobre os objectos da
imaginação que os declara verdadeiros ou falsos, bons ou maus.

Como o acto de sentir é idêntico ao objecto inteligível, isto significa


que quando o intelecto compreende, o seu acto se identifica com a
própria verdade, com o objecto percebido, mais precisamente identifica-
se com a essência substancial do próprio objecto (De an., 111, 6, 430
b, 27). Por isso Aristóteles afirma: "a ciência em acto é idêntica ao
seu objecto" (lb., 431 a, 1), ou, num sentido
283

mais geral, "a alma é, num certo modo, todos os entes"; com efeito os
entes são os sensíveis ou inteligíveis e enquanto a ciência se
identifica com os entes inteligíveis, a sensação identifica-se com os
sensíveis (1b., 431 b, 20).

Todavia esta identidade já não existe quando se considera, não já o


conhecimento em acto, mas em potência. Aristóteles insiste na distinção
entre intelecto potencial e actual. Este último contém em acto todas as
verdades, todos os objectos possíveis da intelecção. Ele age sobre o
intelecto potencial como a luz que faz passar a acto as cores que na
obscuridade estão em potência: isto é, faz passar a acto as verdades
que no intelecto potencial estão apenas em potência. Por isso
Aristóteles lhe chama intelecto activo e o considera "separado,
impassível, não misturado" (De an., 111, 5). Só ele não morre e dura
eternamente, enquanto o intelecto passivo ou potencial se corrompe e
sem o primeiro não pode pensar em nada.

Se o intelecto activo será do homem, de Deus ou de ambos, em que


relações estará com a sensibilidade, qual seja o significado da
separação que Aristóteles lhe atribui, são problemas que Aristóteles
não estuda e que deverão ser largamente discutidos na escolástica árabe
e cristã e no Renascimento.

§ 81. A ÉTICA

Cada arte, cada pesquisa ou como cada acção e cada escolha, são feitas
com vista a um fim que nos parece bom e desejável: o fim e o bom
coincidem. Os fins das actividades humanas são múltiplos e alguns deles
são desejados com vista apenas a fins superiores; por exemplo,
desejamos a riqueza, a boa saúde, pela satisfação e os prazeres que
podem
284

dar. Mas deve haver um fim supremo, um fim que é desejado por si
próprio, e não já enquanto condição ou meio de um fim ulterior. Se os
outros fins são bens, este fim será o bem supremo, aquele de que
dependem todos os outros. Não há dúvida, segundo Aristóteles, que este
fim seja a felicidade. A procura e a determinação desse fim é o objecto
primeiro e fundamental da ciência política, porque só no que respeita a
ela se pode prescrever aquilo que os homens na sua vida social e como
seres individuais, devem fazer ou aprender. Mas em que consiste a
felicidade para o homem?

Evidentemente só se pode responder a esta pergunta se se determina qual


é a missão própria do homem. Cada qual é feliz enquanto faz bem a sua
missão: o músico quando toca bem, o construtor quando constrói objectos
perfeitos. Mas a missão própria do homem enquanto tal não é a vida
vegetativa que ele tem em comum com as plantas, nem a vida dos sentidos
que tem em comum com os animais, mas só a vida da razão. Assim o homem
só será feliz se viver de acordo com a razão; e esta vida é a virtude.
O estudo sobre a felicidade transforma-se também numa indagação sobre a
virtude.

O prazer está ligado à vida que segue a virtude. Com efeito, ela é a
verdadeira actividade do homem; e toda a actividade é acompanhada e
coroada pelo prazer (Et. Nic., X 4, 1174 b). Os bens exteriores como a
riqueza, o poder ou a beleza, podem, com a sua presença, facilitar a
vida virtuosa ou torná-la mais difícil com a sua ausência: mas não
podem determiná-la. A virtude e a maldade só dependem dos homens.
Certamente o homem não escolhe o fim, que está nele por natureza, como
uma luz que o guia, a julgar rectamente e a escolher o verdadeiro bem
(111, 5, 1113 b). Mas a virtude depende precisamente da escolha que se
faz dos meios, com vista ao fim supremo. E esta escolha é livre porque
285

depende exclusivamente do homem. Com efeito, Aristóteles chama livre


àquele que tem em si o princípio dos seus actos ou é "princípio de si
próprio" (111, 3, 1112 b, 15-16). O homem é verdadeiramente livre neste
sentido: enquanto é "o princípio e o pai dos seus actos como é dos seus
filhos"; e quer a virtude quer o vício são manifestações desta
liberdade (111, 5, 1113 b, 10 segs.).

Dado que no homem, além da parte racional da alma, há a parte apetitiva


que, ainda que carecendo de razão, pode ser dominada e dirigida pela
razão, assim há duas virtudes fundamentais: a primeira consiste no
próprio exercício da razão e por isso é chamada intelectiva ou racional
(dianoetica); a outra consiste no domínio da razão sobre os impulsos
sensíveis, determina os bons costumes (ethos-mos), e por isso se chama
virtude moral (Ética).

A virtude moral consiste na "disposição (hexis, habitatus) de escolher


o justo meio (mesótes, mediocritas), adequado à nossa natureza, tal
como é determinado pela razão e como poderia determiná-lo o sábio". O
justo meio exclui os dois extremos viciosos que pecam um por excesso, o
outro por defeito. Esta capacidade de escolha é uma potência (dynamis)
que se aperfeiçoa e revigora com o exercício. Os seus diferentes
aspectos constituem as várias virtudes éticas. A coragem, que é o justo
meio entre a cobardia e a temeridade, gira em torno do que se deve e do
que se não deve temer. A temperança, que é o justo meio entre a
intemperança e a insensibilidade, diz respeito ao uso moderado dos
prazeres. A liberalidade, que é o justo meio entre a avareza e a
prodigalidade, diz respeito ao uso prudente das riquezas. A
magnanimidade, que é o justo meio entre a vaidade e a humildade,
concerne a recta opinião de si próprio. A benignidade, que é o justo
meio entre a irascibilidade e a indolência, concerne à ira.
286

A principal entre as virtudes éticas é a justiça, à qual Aristóteles


dedica um livro inteiro da Etica (Nicom., V = Eudem., IV). No
significado mais gemi, isto é, como conformidade com as leis, a justiça
não é uma virtude particular, mas a virtude total e perfeita.
Efectivamente, o homem que respeita todas as leis é o homem
completamente virtuoso. Mas, além deste significado geral, a justiça
tem um significado específico e é então ou distributiva ou comutativa.
A justiça distributiva é aquela que preside à distribuição das honras
ou do dinheiro ou dos outros bens que Msam dividir-se entre aqueles que
pertencem à mesma comunidade. Tais bens devem ser distribuídos segundo
os méritos de cada um. Porque a justiça distributiva é semelhante a uma
proporção geométrica, na qual as recompensas distribuídas a duas
pessoas se relacionam entre si com os seus méritos respectivos. A
justiça comutativa, ao contrário, ocupa-se dos contratos, que podem ser
voluntários ou involuntários. São contratos voluntários a compra, a
venda, o empréstimo, o depósito, o aluguer, etc. Dos contratos
involuntários alguns são fraudulentos como o furto, o malefício, a
traição, os falsos testemunhos; outros são violentos, como as pancadas,
o assassínio, a rapina, a injúria etc. A justiça comutativa é
correctiva: procura equilibrar as vantagens e as desvantagens entre os
dois contratantes. Nos contratos involuntários, a pena infligida ao réu
deve ser proporcionada com o dano por ele provocado. Esta justiça é
pois semelhante a uma proporção aritmética (igualdade pura e simples).

O direito funda-se sobre a justiça. Aristóteles distingue o direito


privado do direito público, que concerne à vida social dos homens no
estado, e divide o direito público em direito legítimo (ou positivo),
que é aquele estabelecido nos vários estados, e o direito natural que
conserva o seu valor
287

em qualquer lugar, mesmo que não esteja sancionado pelas leis.


Distingue do direito a equidade, que é uma correcção da lei mediante o
direito natural, necessária pelo facto de que nem sempre, na formulação
das leis, é possível determinar todos os casos, pelo que a sua
aplicação resultaria às vezes injusta.

A virtude intelectiva ou dianoética é a que é própria da alma racional.


Ela compreende a ciência, a arte, a prudência, a sabedoria, a
inteligência. A ciência é a capacidade demonstrativa (apoditica) que
tem por objecto aquilo que não pode acontecer diferentemente do modo
que sucede, isto é, o necessário e o eterno. A arte (techne) é a
capacidade, acompanhada de razão, de produzir um objecto qualquer; ela
concerne portanto à produção (poiesis) que tem sempre um fim fora de
si, não à acção (praxis). A prudência (frónesis) é a capacidade unida à
razão de agir convenientemente frente aos bens humanos; cabe-lhe
determinar o justo meio em que consistem as virtudes morais. A
inteligência (nous) é a capacidade de compreender os primeiros
princípios de todas as ciências, primeiros princípios que, precisamente
como tais, não caem no âmbito das próprias ciências. A sabedoria
(sofia) é o grau mais alto da ciência: o sage é aquele que possui ao
mesmo tempo ciência e inteligência, que sabe não só deduzir aos
princípios, mas julgar da verdade dos mesmos princípios. Enquanto a
prudência concerne às coisas humanas e consiste no juízo sobre a sua
conveniência, oportunidade e utilidade, a sabedoria refere-se às coisas
mais altas e universais. A prudência é sempre prudência humana e não
tem valor para seres diferentes ou superiores ao homem; a sabedoria é
universal. Por isso é absurdo sustentar que a prudência e a ciência
política coincidem com a ciência suprema, pelo menos enquanto não se
demonstre que o homem é
288

o ser supremo do universo. Anaxágoras, Tales e outros homens do mesmo


tipo eram chamados sages; não prudentes; porque conheciam muitas coisas
maravilhosas, difíceis e divinas, mas inúteis aos homens, e se
desinteressavam dos bens humanos (Et. Nic., VI, 7, 1141 a).

Este contraste entre sabedoria (sofia) e prudência (frónesis) é o


reflexo no campo da ética da atitude filosófica fundamental de
Aristóteles. Como teoria da substância, a filosofia é uma ciência que
não tem nada a ver com a dos valores propriamente humanos; por isso a
sabedoria, que consiste na plena posse desta ciência nos seus
princípios e nas conclusões, não tem nada que ver com a prudência que é
o guia da conduta humana. A sabedoria te... por objecto o necessário
que, como tal, nada tem a ver com o homem na medida em que não pode ser
modificado por ele: frente ao necessário, é possível uma única atitude,
a da pura contemplação (teoria).

À amizade dedica Aristóteles os livros VIII e IX da Ética Nicomaqueia.


Ela é uma virtude ou pelo menos está estreitamente unida à virtude: em
todo o caso é a coisa mais necessária à vida. "Ninguém - diz ele -
escolheria viver sem amigos, ainda que estivesse provido em abundância
de todos os outros bens". A amizade pode fundar-se sobre o prazer
recíproco ou sobre o útil ou sobre o bem. Mas a fundada sobre o útil ou
sobre o prazer recíproco é acidental e cai subitamente quando cessa o
prazer ou o útil. Ao contrário a amizade que se funda sobre o bem e
sobre a virtude é verdadeiramente perfeita porque a sua raiz está na
própria natureza das pessoas que a contraem e é portanto estável e
firme. "O homem virtuoso - diz Aristóteles - comporta-se para com o
amigo como se comporta consigo mesmo, porque o amigo é um outro ele:
decorre daí que, como a cada um a exis-
289

tência própria é desejável, assim é desejável a do amigo" (Et. Nic. IX,


9, 1170 b, 5).

Dado que a virtude como actividade própria do homem é a própria


felicidade, a felicidade mais alta consistirá na virtude mais alta e a
virtude mais alta é a teorética, que culmina na sabedoria. Com efeito a
inteligência é a actividade mais elevada que existe em nós; e o objecto
da inteligência é aquele que existe mais alto em nós e fora de nós.
O sage basta-se a si mesmo e não tem necessidade, para cultivar e
alargar a sua sabedoria, de nada que não tenha em si mesmo. A vida do
sábio é feita de serenidade e de paz, pois que não se afadiga por um
fim exterior cujo alcance é problemático, mas o fim está na própria
actividade da sua inteligência. A vida teorética é portanto uma vida
superior à humana: o homem não a vive enquanto é homem, mas enquanto
tem em si qualquer coisa de divino. "O homem não deve, como dizem
alguns, conhecer enquanto homem as coisas humanas, enquanto mortal as
coisas mortais, mas deve tornar-se, na medida do possível, imortal e
fazer tudo para viver segundo tudo quanto existe nele de mais elevado:
e ainda que isto seja pouco em quantidade, em potência e valor supera
todas as outras coisas" (Et. Nic., X,
7, 1177 b).

Assim a ética de Aristóteles encerra-se com a afirmação incisiva da


superioridade da vida teorética. Este é um ponto em que o afastamento
polémico entre Aristóteles e Platão é mais acentuado. Platão não
distinguia a sabedoria da prudência: com as duas palavras entendia a
mesma coisa, isto é, a conduta racional da vida humana, especialmente
da vida social (Rep. 428 b; 433 e). Aristóteles distingue e contrapõe
as duas coisas. A prudência tem por objecto os assuntos humanos que são
mutáveis e não podem ser incluídos entre as coisas muito elevadas; a
sabedoria tem por objecto o ser necessá-
290

rio. que se liberta de todos os acontecimentos (Et. Nic., VI, 7, 1041


b. 11). Amim a distância que existe entre prudência e sabedoria é a
mesma que ocorre entre o homem e o Deus. O que quer dizer que, para
Aristóteles, a filosofia tem como objecto fundamental o de levar o
homem individual à vida teorética, à pura contemplação do que é
necessário; enquanto para Platão tem o objectivo de levar os homens a
uma vida em comum, fundada na justiça.

§ 82. A POLÍTICA

Todavia, também segundo Aristóteles, a virtude não é realizável fora da


vida social. A origem da vida social está em que o indivíduo não se
basta a si próprio: não só no sentido de que não pode por si só prover
às suas necessidades, mas também no sentido de que não pode por si,
isto é, fora da disciplina imposta pelas leis e pela educação, alcançar
a virtude. Por consequência, o estado é uma comunidade que não tem em
vista apenas a existência humana, mas a existência materialmente e
espiritualmente feliz; e é este motivo pelo qual nenhuma comunidade
política não pode ser constituída por escravos ou por animais, os quais
não podem participar da felicidade ou de uma vida livremente escolhida
(Pol., 111, 9, 1280 a). E a este propósito Aristóteles sustenta que há
indivíduos escravos por natureza enquanto incapazes das virtudes mais
elevadas e que a distinção entre escravo e livre é tão natural como a
que existe entre macho e fêmea e jovem e velho (lb., L, 13, 1p60 a).

Entre os que, como Platão, se limitam a delinear um tipo de estado


ideal dificilmente realizável e aqueles que, por outro lado, vão em
busca de um esquema prático de constituição e o descobrem em qualquer
das constituições já existentes,
291

o problema fundamental é o de encontrar a constituição mais adaptada a


todas as cidades: "É necessário ter em mente um governo não só
perfeito, mas também realizável e que possa adaptar-se facilmente a
todos os povos" (Pal., IV, 1, 1288 b). É necessário portanto propor uma
constituição que tenha a sua base nas existentes e vise realizar nela
correcções e mudanças que a aproximem da perfeita. Por isso a Política
de Aristóteles culmina na teoria da melhor constituição exposta nos
dois últimos livros; mas a esta teoria chega ele mediante a
consideração crítica das várias constituições existentes e dos
problemas a que dão origem. Viu-se que Aristóteles recolheu umas 158
constituições estatais, das quais, no entanto, só uma, a de Atenas, foi
encontrada. Evidentemente, deve -ter-se servido deste material para as
observações que veio fazendo sobretudo nos livros IV, V, VI, da sua
obra, que aparecem compostos mais tarde.

Como Platão, Aristóteles distingue três tipos fundamentais de


constituições: a monarquia ou governo de um só ; a aristocracia ou
governo dos melhores; a democracia ou governo da multidão. Esta última
chama-se política, isto é, constituição por antonomásia, quando a
multidão governa para o bem de todos. A estes três tipos correspondem
outras tantas degenerações quando o governo descuida o bom comum em
favor do bem próprio. Com efeito a tirania é uma monarquia que tem por
fim o bem do monarca, a oligarquia tem por fim o bem dos possidentes, a
democracia o bem dos pobres: nenhuma visa a utilidade comum. Na
realidade, pois, cada tipo de constituição pode tomar caracteres
distintos. Não existe uma só monarquia e uma só oligarquia, mas estes
tipos diversificam-se segundo as instituições nas quais se realizam.
Existem também distintas espécies de democracia segundo o governo se
funda na igual-
292

dade absoluta dos cidadãos ou se reserve a cidadão dotados de


requisitos especiais. A própria democracia transforma-se numa espécie
de tirania quando em detrimento das leis prevalece o arbítrio da
multidão. O melhor governo é aquele em que prevalece a classe média,
isto é, o dos cidadãos possuidores de uma fortuna modesta. Este tipo de
governo é o mais afastado dos excessos que se verificam quando o poder
cai nas mãos dos que nada possuem ou daqueles que possuem demasiado.

Ao delinear a constituição melhor, em conformidade como o princípio de


que todo o tipo de governo é bom, enquanto se adapte à natureza do
homem e às condições históricas, Aristóteles não se limita a descrever
um governo ideal, mas determina as condições pelas quais um tipo
qualquer de governo pode alcançar a sua forma melhor. A primeira e
fundamental condição é que a constituição do estado seja tal que
proveja à prosperidade material e à vida virtuosa e feliz dos cidadãos.
A este propósito têm-se presentes as conclusões da Ética, isto é, que a
vida activa não é a única vida Possível para o homem e nem tão-pouco a
mais alta e que ao lado dela e acima dela está a vida teorética. Outras
condições referem-se ao número dos cidadãos que não deve ser nem
demasiado elevado nem demasiado baixo, e às condições geográficas. isto
é, ao território do estado. Depois é importante a consideração da
índole dos cidadãos que deve ser corajosa e inteligente como a dos
Gregos. que são os mais aptos a viver em liberdade e a dominar os
outros povos. Também é necessário que na cidade todas as funções
estejam bem distribuídas e que se formem as três classes fundamentais,
segundo o projecto de Platão, do qual Aristóteles exclui, no entanto, a
comunidade da propriedade e das mulheres. É necessário além disso
293
os anciãos, que no estado mandem, pois que ninguém se resigna sem
amargura às condições da obediência se esta não é devida à idade e se
não sabe que alcançará, com a idade, a condição superior. Finalmente, o
estado deve preocupar-se com a educação dos cidadãos que deve ser
uniforme para todos e dirigida não só a adestrar para a guerra mas a
preparar para a vida pacífica, para as funções necessárias e úteis e
acima de tudo para as acções virtuosas.

§ 83. A RETóRICA

Entre as artes que são necessárias à vida social está a retórica. A


retórica é afim da dialéctica: como a dialéctica, não tem um objecto
específico porque concerne a todo o tipo e espécie de objecto e todavia
é própria de todos os homens porque todos "se ocupam a indagar sobre
qualquer tese e a sustê-la, a defender-se e a acusar" (Ret., 1, 1, 1354
a). A função da retórica não é a de persuadir mas de mostrar os meios
que são aptos a introduzir à persuasão.

A retórica procura descobrir quais são estes meios relativamente a


qualquer argumento dado: neste sentido não constitui a técnica própria
de um campo especifico. O objecto da retórica é o "verosímil", isto é,
o que acontece o mais das vezes (enquanto o objecto da ciência é o
necessário, que acontece sempre): o mais, das vezes é o análogo do
necessário nas disciplinas cujo objecto é privado de necessidade (lb.,
1, 2, 1357 a).

Dado que todo o discurso é dirigido a um auditório que é o fim do


próprio discurso e o auditório pode ser ou um simples auditor ou um
juiz que deve pronunciar-se sobre coisas passadas ou futuras, há três
géneros de retórica: a delibe-
294

rativa, a judicial e a demonstrativa. A retórica deliberativa é a que


se volta para coisas futuras e deve persuadir ou dissuadir,
demonstrando que qualquer coisa é útil Ou Perniciosa. A retórica
judicativa refere-se a factos ocorridos no passado e o seu
objectivo é acusar ou defender, persuadindo que tais factos são
justos ou injustos. Finalmente, a
retórica demonstrativa refere-se a coisas presentes e o seu objectivo é
louvá-las ou condená-las como verdadeiras ou falsas, boas ou más.

§ 84. A POÉTICA

A poesia, e em geral a arte, é definida por Aristóteles como imitação.


Mas a imitação pode ser feita com meios diferentes e por modos
diferentes e dirigir-se a objectos diferentes. Com efeito, pode-se
imitar por meio de cores ou de formas como acontece na pintura, ou por
meio da voz como ocorre na poesia, ou por meio do som na música.
Relativamente ao objecto podem imitar-se ou pessoas superiores ao
comum dos homens, como acontece na epopeia e na tragédia, ou pessoas
comuns ou inferiores ao comum, como acontece na comédia. Relativamente
aos modos da imitação, pode-se imitar narrativamente ou dramaticamente:
neste último caso, introduzem-se as diferentes pessoas a agir e a falar
directamente, como acontece na tragédia e na comédia.

Além destas determinações gerais do conceito da imitação, a Poética de


Aristóteles na parte que chegou até nós não contém mais que a teoria da
tragédia. Esta define-se como "imitação de uma acção grave e completa
em si mesma, que tenha uma certa amplitude, uma linguagem adornada em
proporção diferente conforme as diferentes partes; e desenrola-se
através de personagens que actuam
295

em cena, não que narrem; e produza finalmente' mediante casos de


piedade e de terror, a purificação de tais paixões" (Poet., 6, 1449 b).
Aristóteles detém-se especialmente a ilustrar a unidade da acção
trágica. Esta deve desenrolar-se com continuidade do princípio ao fim
de modo tal que todos os acontecimentos se encadeiem e não seja
possível suprimi-los ou mudá-los de lugar, sem mudar e desorganizar a
ordem do conjunto. Por isso o objecto da tragédia mais que o verdadeiro
é o verosímil, aquilo que pode verificar-se "segundo verosimilhança e
necessidade". Por isso, também, ca poesia é mais filosófica e mais
elevada que a história: a poesia exprime principalmente o universal, a
história o particular (1b., 9, 1451 b). Efectivamente a história narra
tudo aquilo que aconteceu a uma dada personagem ou num dado período,
segundo a pura e simples sucessão dos acontecimentos; a poesia imita
somente o verosímil, o qual como se disse (§ 83) é aquilo que acontece
mais geralmente e é portanto o análogo da universalidade (ou da
necessidade) própria dos objectos da ciência.

Se Platão sustenta que a acção dramática, interessando os


espectadores nas paixões violentas agitadas em cena, encoraja neles
tais paixões, Aristóteles crê pelo contrário que a tragédia exerce uma
função purificadora e liberta a alma do espectador das paixões que a
tragédia representa. Aristóteles reconhece o mesmo efeito na música.
"Alguns daqueles que são dominados pela piedade, pelo temor ou pelo
entusiasmo, quando ouvem cantos orgiáticos como os religiosos, acalmam-
se como por efeito duma medicina e de uma catarsis. Por isso é
necessário que se submetam a tal acção aqueles que se vêem sujeitos à
piedade, ao temor e em geral às paixões, de modo conveniente a cada um,
a fim de que se gere em todos uma
296

um alivio aprazível" (Pol., VIII, 7,

ris teles vê assim na arte e em particular na poesia e na música um


meio potente de educação, e no carácter imitativo da arte já não vê
como Platão motivo para considerá-la ilusória. O mundo sensível, que a
arte imita, não é para Aristóteles simples aparência, mas é realidade
que pode ser objecto de ciência; também a imitação dela através da arte
perde portanto o carácter de aparência ilusória. Aristóteles pode assim
reconhecer à arte aquela função catártica que lhe dá valor educativo e
formativo nos confrontos do homem. Sobre a catarsis, faltam na Poética
elementos explícitos que consintam compreender a sua natureza.
Intérpretes antigos viram nela um tratamento médico das paixões, uma
cura que combate, o semelhante com o semelhante. E não é claro se a
catarsis se entende como purificação pelas paixões ou antes como
purificação das paixões. Todavia se se considera que a catarsis está
ligada ao valor propriamente artístico da tragédia ou da música, pode-
se excluir que ela seja, para Aristóteles, apenas uma medicina das
paixões. À catarsis está ligado um momento mais alto da vida
espiritual, um momento no qual a paixão não está excluída, mas
purificada ou exaltada. E efectivamente enquanto a paixão se dirige
unicamente ao objecto (coisa ou pessoa) que liga ao homem com o amor ou
com o ódio, com o temor ou com a esperança, a arte, apresentando a
paixão realizada num complexo ordenado de acontecimentos (como ocorre
na tragédia) ou de sons expressivos (como na música), afasta o homem do
objecto da paixão para interessá-lo na paixão em si mesma, naquilo que
ela é, na sua substância. A paixão tem como seu telos a obtenção do seu
objecto, a arte tem como seu telos a paixão na sua realidade
representada. Aristóteles inclui isto
297

na sua teoria da catársis. A arte liberta a paixão do seu término


natural porque a faz volver à própria paixão, à sua substância
realizada na arte.

§ 85. A LÓGICA

A organização do saber num sistema de ciências, cada uma das quais se


constitui com relativa independência das outras, colocava a Aristóteles
o problema da forma geral da ciência. Aristóteles 72) dividia a
ciência em três grandes grupos: ciências teóricas, física, matemática e
filosofia, que têm por objecto o ser em alguns dos seus aspectos
especiais ou o ser em geral (Met., X1, 7, 1064 b); ciências práticas
ou normativas, das quais a principal é a política, que têm por objecto
a acção; ciências poiéticas que regulam a produção dos objectos. É
evidente que estas três espécies de ciências, na medida em que são
todas igualmente ciências, têm em comum a forma, isto é, a natureza do
seu procedimento. Considerando à parte tal forma. mediante a abstracção
de que cada uma das ciências se serve para isolar o seu objecto, obtém-
se uma disciplina que descreve o procedimento comum de todas as
ciências enquanto tais; e tal disciplina é a lógica, que Aristóteles
chama analítica e que ele foi o primeiro a conceber e fundar como uma
disciplina em si, utilizando e sistematizando as observações e os
resultados dos seus predecessores e especialmente de Platão. Mas,
evidentemente, o valor de uma lógica assim entendida depende da
legitimidade de distinguir a forma geral das ciências do seu conteúdo,
isto é, do objecto particular de cada uma delas: isto depende da
legitimidade da abstracção mediante a qual cada ciência singular,
incluindo a filosofia, consegue determinar o seu objecto. Por sua vez a
legitimi-
298

dade de abstracção funda-se na teoria da substância. em efeito,


considerar a forma separadamente de cada conteúdo particular, só é
procedimento legítimo se a forma é, ao mesmo tempo, a substância, isto
é, a essência necessária daquilo que se considera. Se a forma não
tivesse a validade que lhe vem do ser e não fosse ela só a substância
daquilo de que é forma, o considerá-la à parte através da abstracção
seria uma falsificação. A abstracção justifica-se portanto apenas como
consideração da essência de uma coisa separada das suas
particularidades contingentes. A lógica, como procedimento analítico,
isto é, resolutivo da forma do pensamento como tal, está portanto
fundada sobre a metafísica como teoria da substância e sustém-se e cai
com ela. Num passo da Metafísica (IV, 3,
1005 b, 6) em que Aristóteles parece considerar a lógica como a técnica
indispensável da investigação, ele tem o cuidado de acrescentar que a
consideração dos princípios silogísticos diz respeito ao filósofo e a
quem especula sobre a natureza de qualquer substância. A lógica é assim
reconduzida por ele próprio ao seu pressuposto indispensável: a teoria
da substância.

Por outro lado, esta teoria é o fundamento da verdade de todo o


conhecimento intelectual. A forma é ao mesmo tempo ratio essendi e
ratio cognoscendi do ser: Como ratio essendi é substância, como ratio
cognoscendi é conceito ou definição. Ela garante pois a correspondência
entre o conceito e a substância e assim a verdade do conhecimento e a
racionalidade do ser. Por isso Aristóteles pode dizer que o ser e a
verdade estão numa relação recíproca: que, por exemplo, se o homem é, a
afirmação que o homem é, é verdadeira; e reciprocamente se é verdadeira
a afirmação de que é, o homem é. Mas Aristóteles acrescenta que nesta
relação o fundamento é o ser e que o ser não é
299

tal porque a afirmação que o concerne é verdadeira, mas a afirmação é


verdadeira porque o ser é tal como ela o expressa (Cat.. 12, 14 b, 21).
Noutros termos, a verdade do conceito funda-se na substância e não
vice-versa: a metafísica (ou em geral a ciência) precede e fundamenta a
lógica.

Não pode pois sustentar-se que Aristóteles tenha querido fundar a


lógica como ciência "formal", no sentido mo-demo do termo, isto é, como
ciência sem objecto ou sem conteúdo, constituída unicamente por
proposições tautológicas. A lógica tem um objecto, segundo Aristóteles,
e este objecto é a estrutura da ciência em geral que é também a própria
estrutura do ser que é objecto da ciência. Nesta base, Aristóteles
afirma que a lógica deve analisar a linguagem apofântica ou declarativa
que é característica das ciências teoréticas, na qual têm lugar as
determinações; de verdadeiro e falso se a união ou separação dos termos
(em que consiste uma proposição) reproduz ou não a união ou a
separação das coisas. Aristóteles não nega que existam discursos não
apofânticos, por exemplo a oração súplica. Mas privilegiando o discurso
apofântico, faz dele a verdadeira linguagem, aquela sobre a qual as
outras mais ou menos se modelam ou do ponto de vista da qual devem ser
julgadas. Efectivamente a poética e a retórica que se ocupam de
linguagens não apofânticas são tratadas por Aristóteles à parte e
subordinadamente à analítica. A linguagem apofântica não tem nada de
convencional. Segundo Aristóteles, as palavras da linguagem são
convencionais: tanto assim é verdade que são diferentes duma língua
para outra. Mas elas referem-se a "afecções da alma que são as mesmas
para todos e constituem imagens dos objectos que são os mesmos para
todos" (De inierpr., 1, 16 a, 3). A combinação das palavras é comandada
por isso, através da imagem mental,
300

pela combinação efectiva das coisas que lhes correspondem: assim.. por
exemplo, só se podem combinar as palavras "homem" e "corre" na
proposição "o homem corre" se na realidade o homem corre. Pode dizer-se
portanto que a linguagem é para Aristóteles convencional no seu
dicionário, não na sua sintaxe: a lógica deve voltar-se portanto para
esta sintaxe para analisar a estrutura fundamental do conhecimento
científico e do ser.

As partes do Organon aristotélico, na ordem em que chegarem até nós,


tratam de objectos que vão do simples ao complexo, começando pelos mais
simples, isto é, pelos elementos. Tais elementos são considerados e
classificados nas Categorias. "Categorias" significa predicados; mas na
realidade Aristóteles trata no livro em questão de todos os termos que
"não entram em nenhuma combinação", porque são considerados
isoladamente como "homem", "branco", "corre", "vence", etc. Dos termos
assim compreendidos, não se pode dizer nem que são verdadeiros nem que
são falsos, pois verdadeira ou falsa é apenas uma combinação qualquer
dos termos, por exemplo, "o homem corre". Aristóteles classifica-os em
dez categorias 1) a substância, por exemplo, homem; 2) a quantidade,
por exemplo, de dois côvados-, 3) a qualidade, por exemplo, branco,
4) a relação, por exemplo, maior; 5) o lugar, por exemplo, no liceu; 6)
o tempo, por exemplo, o ano passado; 7) a situação, por exemplo, está
sentado;
8) o ter, por exemplo, tem os sapatos; 9) o agir, por exemplo, queima;
10) o sofrer, por exemplo, é queimado.

obviamente, dado o assentamento geral da lógica aristotélica, a


classificação das categorias não visa só os termos elementares da
linguagem mas também as coisas a que se referem: mais, visa os
primeiros só porque, antes de mais, considera estes últimos.
Conformemente à direcção da sua metafísica, Aris-
301

tóteles considera como categoria fundamental a substância. Um dos


pontos mais famosos do escrito é a distinção entre substâncias
primeiras e substâncias segundas. A substância primeira é a substância
no sentido próprio que não pode nunca ser usada como predicado de um
sujeito e nunca pode existir num outro sujeito: por exemplo, este homem
ou aquele cavalo. As substâncias segundas são ao contrário as
espécies e os géneros: por exemplo a espécie homem, a que cada homem
determinado pertence, e o género animal a que pertence a espécie homem
juntamente com as outras espécies. Porquanto considere de algum modo
justificado chamar substâncias às espécies e aos géneros que servem
para definir as substâncias primeiras, Aristóteles repara que só as
substâncias primeiras "são substâncias no sentido mais preciso, na
medida em que estão na base de todos os outros objectos" (2 a, 37).

No livro Sobre a interpretação, Aristóteles examina as combinações dos


termos que se chamam enunciados declarativos (logoi apophantikoi) ou
proposições (protaseis), isto é, as frases que constituem asserções e
não já súplicas, ordens, exortações, etc. A asserção pode ser
afirmativa ou negativa segundo "atribui alguma coisa a alguma coisa" ou
"separa alguma coisa de alguma coisa". Por outro lado pode ser
universal ou singular: é universal quando o sujeito é universal
(entendendo-se por universal "aquilo que por natureza se predica de
várias coisas", por exemplo: homem; é singular quando o sujeito é um
ente singular, por exemplo Callia. Mas um mesmo termo universal pode
ser tomado numa proposição quer na sua universalidade, como quando se
afirma "todo o homem é branco", quer na sua particularidade, como
quando se afirma "alguns homens são brancos". Aristóteles preocupa-se
em estabelecer a relação entre a proposição universal
302

e a proposição particular, cada uma das quais pode por sua vez ser
afirmativa ou negativa. Estas relações resultam do esquema seguinte:

universal afirmativa (A) todo o homem é branco;


Universal negativa (E) <Nenhum homem é branco>
Particular afirmativa (i) <Alguns homens são brancos;
Particular negativa (O) <Alguns homens não são brancos>
(por uma questão de apresentação gráfica, o esquema não está igual ao
do original)
O esquema foi construído desta maneira (que reflecte exactamente a
doutrina aristotélica) pelos Lógicos medievais que lhe chamaram
"quadrado dos opostos" e que indicaram as várias espécies de
proposições com as letras maiúsculas que foram usadas. Como resulta
daí, Aristóteles chamou contrária a oposição entre a proposição
universal afirmativa e a particular negativa e contraditória a oposição
entre a universal afirmativa e a universal negativa. A relação entre a
particular afirmativa e a particular negativa foi chamada pelos Lógicos
medievais oposição subcontrária. Trata-se de uma oposição para a qual,
segundo Aristóteles, não é válido o princípio da contradição. Com
efeito, nas duas proposições "alguns homens são brancos", "alguns
homens não são brancos", podem ser ambas verdadeiras. Pelo contrário,
para as proposições que estão entre si em oposição contrária e
contraditória, o princípio de contradição é rigorosamente válido. Uma
delas tem de ser falsa e a outra tem de ser verdadeira. Esta segunda
existência (isto é, que uma delas deve ser verdadeira) é a expressa
pelo princípio que muito mais tarde se chamou do "terceiro excluído" e
que Aristóteles, embora sem distingui-lo do princípio da contradição,
expressa-o e defende-o várias vezes (Met., IV, 7. 1011 b, 23; X, 7,
1057 a, 33), afirmando que "entre os opostos contraditórios não há um
303

meio". Todavia Aristóteles considera uma dificuldade que pode surgir do


uso deste Princípio quanto aos acontecimentos futuros. Se se afirma
"amanhã -haverá uma batalha naval" e "amanhã não haverá uma batalha
naval", destas duas proposições contraditórias uma deve ser
necessariamente verdadeira. Mas se uma delas é necessariamente
verdadeira, por exemplo, aquela que afirma "amanhã não haverá uma
batalha naval", isto quer dizer que necessariamente amanhã não haverá
uma batalha naval; verdadeiramente porque é necessariamente verdadeiro
que "amanhã não haverá uma batalha naval". Em tal caso do uso do
princípio do terceiro excluído, referido aos acontecimentos futuros,
surgiria a tese da necessidade de todos os acontecimentos, mesmo
daqueles que são devidos à escolha do homem. Aristóteles não afirma que
estas consequências sejam legítimas e que todos os acontecimentos
aconteçam por necessidade. Uma das duas coisas expressas por uma
proposição contraditória necessariamente se verificará no futuro, mas
esta necessidade não assume qual das duas coisas é que se verificará.
Noutros termos, não é necessário, atendo-se ao princípio do terceiro
excluído, nem que amanhã haja nem que amanhã não haja uma batalha
naval, qualquer que seja a alternativa que se verificará amanhã. Mas é
necessário que amanhã aconteça ou não aconteça uma batalha naval.
Noutros termos, a necessidade consiste na impossibilidade de sair da
alternativa de uma contradição, não no verificar-se duma ou doutra
destas alternativas (19-a, 32). Aristóteles não nota que, se a
alternativa é necessária, ela não pode ser senão alternativa, isto é,
não pode decidir-se nem num sentido nem no outro: pelo que seria
necessária precisamente a sua indeterminação; e amanhã não poderá nem
haver nem não haver uma batalha naval. Como quer que seja, a solução de
304

Aristóteles e toda a discussão do caso mostram claramente o primado que


ele atribui a uma das duas modalidades fundamentais das proposições,
isto é, precisamente à necessidade. A outra modalidade de que fala e
que também permaneceu tradicional na
lógica é a da possibilidade. Mas a própria possibilidade é definida por
Aristóteles como não-impossibilidade, isto é, como simples negação da
necessidade negativa ("impossibilidade" significa de facto "necessidade
que não seja"). E só na base desta definição do possível, ele pode
afirmar que também o necessário é possível porque aquilo que é
necessariamente, não deve ser impossível. Mas a redução do possível a
"não impossível" demonstra como tem andado completamente esquecido, na
lógica de Aristóteles, o significado da possibilidade que Platão tinha
esclarecido como fundamento da dialéctica (§ 56).

Os Primeiros Analíticos contêm a teoria aristotélica do raciocínio. O


raciocínio típico é, segundo Aristóteles, o dedutivo ou silogismo:
definido como "um discurso em que, postas tais coisas, outras se
derivam delas necessariamente" (24 b, 18). As características
fundamentais do silogismo aristotélico são: 1) o seu carácter mediato;
2) a sua necessidade. O carácter mediato do silogismo depende do facto
de que silogismo é a contrapartida lógico-linguística do conceito de
substância. Em virtude disto, a relação entre duas determinações de uma
coisa só se pode estabelecer na base daquilo que a coisa é
necessariamente, isto é, da sua substância, por exemplo, se se quer
decidir se o homem é mortal, apenas se pode encarar a substância do
homem (aquilo que o homem não pode não ser) e raciocinar assim: todo o
homem é animal, todo o
animal é mortal, portanto todo o homem é mortal. A determinação
"animal", necessariamente incluída na substância "homem", permite
concluir da mor-
305

talidade do próprio homem. Neste sentido diz-se que a noção "animal"


fez de termo médio do silogismo: ela representa no silogismo a
substância, ou a causa ou a razão, e que só ela torna possível a
conclusão (94 a, 20): o homem é mortal porque, e só porque, é animal. O
silogismo tem portanto três termos: o sujeito e o predicado da
conclusão e o termo médio. Mas é a f unção do termo médio que determina
a figura (schemata) do silogismo. Na primeira figura, o termo médio faz
de predicado na primeira premissa e de sujeito na outra, como no
silogismo agora citado. Na segunda figura, o termo médio faz de
predicado em ambas as premissas (por exemplo, "Nenhuma pedra é animal,
todo o homem é animal, logo nenhum homem é pedra"). Nesta figura, uma
das premissas e a conclusão são negativas. Na terceira figura o termo
médio faz de sujeito em ambas as premissas (por exemplo, "Todo o homem
é substância, todo o homem é animal, logo alguns animais são
substâncias"). Nesta figura a conclusão é sempre particular. Cada uma
das três figuras se divide depois numa variedade de modos, segundo as
premissas são universais ou particulares, afirmativas ou negativas.

Aristóteles levou até a um certo ponto esta casuística dos modos


silogísticos que na lógica medieval devia encontrar o seu fecho, mesmo
em relação aos desenvolvimentos que a própria lógica sofreu na
antiguidade por obra dos Aristotélicos e dos Estoicos. O silogismo é
por definição dedução necessária: por isso a sua forma primária e
privilegiada é o silogismo necessário, que Aristóteles chama também
demonstrativo ou científico. Dos silogismos necessários, a primeira e
melhor espécie é a dos silogismos ostensivos que Aristóteles contrapõe
aos que partem de uma hipótese. Estes últiMos não são aqueles que se
chamarão em seguida "hipotéticos" (nos quais a premissa maior 4 cons-
306

tituída por uma condicional). mas aqueles cuja Premissa maior não é a
conclusão de um Outro silogismo nem é evidente por si, mas é tomada por
via de hipótese. Um de tais silogismos é aquele que opera a redução ao
absurdo. Entre os silogismos ostensivos mais perfeitos estão os
silogismos universais da primeira figura, aos quais é possível
reconduzir todas as outras formas do silogismo. Finalmente, do
silogismo dedutivo distingue-se o silogismo indutivo ou indução, que é
a outra das duas vias fundamentais através das quais o homem alcança as
próprias crenças (68 b, 13). A indução, segundo Aristóteles, é uma
dedução que, em vez de deduzir um termo do outro mediante o termo médio
(por exemplo, a mortalidade do homem mediante o conceito de animal),
como faz o silogismo verdadeiro e legítimo, deduz o termo médio de um
extremo, valendo-se do outro extremo. Por exemplo, depois de ter
verificado que o homem, cavalo e o macho (1.O termo) são animais sem
bílis (termo médio) e que o homem, o cavalo e o macho são de longa vida
(2.O termo) deduz que todos os animais sem bílis são de longa vida: na
qual conclusão compara o termo médio e um extremo.
O "ser sem bílis" é, neste caso, o termo médio, porque é a razão ou a
causa pela qual o homem, o cavalo e o macho são de longa vida. A
indução é válida apenas se se esgotar em todos os casos possíveis; se,
no exemplo em exame, o homem, o cavalo e o macho são todos animais sem
bílis. Por isso, é de uso limitado e não pode suplantar o silogismo
dedutivo, semo se para o homem é um procedimento mais fácil e claro (68
b, 15 segs.). Aristóteles sustenta por isso que pode ser usado não na
ciência, mas na dialéctica e na oratória, isto é, como instrumento de
exercício ou de persuasão (Ret., 1, 2, 1356 b, 13).
307

Nos Segundos Analíticos, Aristóteles examina as premissas do silogismo


e o fundamento da sua validade. Aristóteles parte do princípio de que
toda a doutrina ou disciplina deriva de um conhecimento preexistente"
(71 a, 1). Para que o silogismo conclua necessariamente, as premissas
de que deriva devem por sua vez ser necessárias. E para ser tais, devem
ser, em si próprias, princípios verdadeiros, absolutamente primeiros e
imediatos; e, no que respeita à conclusão, mais cognoscíveis,
anteriores à conclusão e causa dela (71 b, 19). "Imediatos" significa
que são indemonstráveis, embora evidentes por si próprios: pois que, se
não fossem tais, haveria princípios dos princípios e assim até ao
infinito (90 b, 24). Alguns destes princípios são comuns a todas
ciências outros são próprios de cada ciência. Comum é, por exemplo, o
princípio: se de dois objectos iguais se tiram objectos iguais, os
restos são iguais. Especiais são por exemplo os seguintes princípios da
geometria: a linha tem a seguinte natureza; a linha recta tem a
seguinte natureza, etc. (76 a, 37). Mas os princípios, especialmente os
princípios particulares, não são outra coisa, segundo Aristóteles,
senão as definições e as definições são possíveis só pela substância ou
pela essência necessária. (90 b, 30). A validade dos princípios em que
se funda a ciência consiste por isso em serem eles expressão da
substância ou, melhor, do género das substâncias sobre que versa uma
ciência particular; e pois que a substância é causa de todas as suas
propriedades e determinações como os princípios são causa das
conclusões que o silogismo delas deriva, todo o conhecimento é
conhecimento de causas.

Como dissemos a propósito da ética, Aristóteles admite um órgão


específico para a intuição dos primeiros princípios que é o intelecto:
uma das virtudes dianoéticas, isto é, dos hábitos superiores
308

racionais do homem (§ 81). Como virtude ou hábito racional, o intelecto


não é uma faculdade natural e inata mas, como todas as outras virtudes,
forma-se gradualmente através da repetição e do exercício. Em
particular, forma-se a partir da sensação. Da sensação deriva a
lembrança e da lembrança renovada dum mesmo objecto nasce a
experiência. Depois, na base da experiência, se
consegue surpreender a substância que é una e idêntica num conjunto de
objectos, tem-se então o
intelecto, que é o princípio da arte da ciência. Por consequência, o
conhecimento sensível condiciona, segundo Aristóteles, a aquisição do
intelecto dos primeiros princípios e também de toda a ciência; mas não
condiciona a validade da ciência. Tal validade é, segundo Aristóteles,
completamente independente das condições que permitem ao homem alcançar
a ciência e consiste unicamente na necessidade dos primeiros princípios
e na necessidade das demonstrações que daí resultam.

Enquanto os Primeiros e Segundos Analíticos têm por objecto a ciência,


os Tópicos têm por objecto a dialéctica. A dialéctica distingue-se da
ciência pela natureza dos seus princípios: os princípios da ciência são
necessários, isto é, absolutamente verdadeiros, os princípios da
dialéctica são prováveis, isto é, "parecem aceitáveis a todos ou aos
mais ou aos sábios e entre estes ou a todos ou aos mais ou aos mais
notáveis e ilustres" (100 b, '21). Fundados em princípios deste género
são os raciocínios usados na oratória forense ou política (que
Aristóteles estuda na Retórica), quer nas discussões, quer nas que são
feitas com o simples objectivo de exercitar-se na arte de raciocinar. A
maior parte dos Tópicos, é dedicada ao estudo dos argumentos que se
usam nas discussões: como se disse, os Tópicos de Aristóteles são, no
seu corpo principal, a primeira formulação da lógica
309

aristotélica, a que ele concebeu debaixo da influência do platonismo,


que mantinha a discussão dialógica como o único método de pesquisa. A
análise de Aristóteles visa substancialmente isolar, dividir
classificar e valorizar no seu valor demonstrativo (isto é,
relativamente às formas correspondentes do silogismo científico) os
lugares lógicos, isto é, os esquemas argumentativos que podem ser
usados na discussão. No âmbito da dialéctica encontram também lugar e
reconhecimento os problemas: pois que estes, enquanto são constituídos
por uma pergunta que pode ter duas respostas contraditórias, não nascem
nem quando se trata de deduzir consequências necessárias de premissas
necessárias (como acontece na ciência) nem a propósito daquilo que a
ninguém aparece como aceitável, mas sim naquela esfera do provável que
é própria da dialéctica. (104 a; 104 b, 3). Assim a que aparecera a
Platão como a ciência filosófica por excelência, a dialéctica, é
confinada por Aristóteles numa zona marginal da ciência e inferior a
ela; e adquire um significado totalmente diverso. Certamente, a
dialéctica platónica não tem o carácter de necessidade que Platão
atribui à ciência; mas não tem este carácter porque não o tem mesmo
o, próprio ser que é seu objecto e que é definido por Platão como
possibilidade. Assim a ausência de necessidade que é para Aristóteles
a deficiência fundamental da dialéctica platónica, que ele chama
"silogismo fraco" (Pr. An., 1,
31, 46 a, 31), não é tal para Platão que a considera antes como
condição indispensável para que o procedimento dialéctico possa
submeter a crítica as suas próprias premissas e mudar oportunamente
tais premissas segundo a complexidade do objecto.

Enfim, nas Refutações (elenchi) sofísticas, Aristóteles examina os


raciocínios refutadores ou erísticos dos Sofistas. Ele entende por
raciocínios críticos aquele em que as premissas não são nem
310

necessárias (como as premissas da ciência) nem


prováveis, (como as da dialéctica), mas só aParentemente prováveis. os
argumentos erísticos, a que Aristóteles chama sofismas e que os Latinos
indicaram com o termo de falácias, são divididos por Aristóteles em
duas grandes classes: os que dependem do modo de exprimir-se e aqueles
que são independentes disso. Exemplo dos primeiros é a
anjibolia que consiste no uso de expressões que têm um significado
duplo e que são tomadas ora num ora noutro destes significados. Por
exemplo, quando se diz: "aquilo que deve ser é bem", mas "o mal deve
ser; logo é bem", o "deve sem, na primeira premissa é tomado como
aquilo que é desejável que seja e na segunda como aquilo que é
inevitável. Da segunda espécie de falácias, um exemplo é a petição de
princípio que consiste em tomar, de forma dissimulada, como premissa da
demonstração, aquilo que se deveria demonstrar.

NOTA BIBLIOGRÁFICA

67. Chegaram até nós as seguintes e antigas vidas de Aristóteles: 1.-


DIõGENEs LAÊRcio, V. cap. 1 segs.; 2.1 DIONISIO DE ~CARNAsso na carta a
Ammeo, cap. 5; 3.* Vida menagiana, assim chamada pelo seu editor
Menagio; 4.o Vida neoplatõnlca, que nos chegou em três redacçõ es
distintas; SUIDAS, Léxico, na palavra Arlstõteles; 6.* Biografias
sirlaco-ãrabes compostas entre os séculos V e VM. ]Entre as reconstruçõ
es modernas: ZELLER, 11, 2, u. 1 segs.; GoMPERz, M, p. 20 segs.; JAMER,
A~., p. 11 sega., 133 sega.,
149 segs.. O testamento de Aristóteles foi-nos conservado por DIõGFNEs
LAÉRcio, V, 11.

§ 68. Sobre o problema dos escritos aristotélicos: JAEGER, Op. Cit.;


MORFAU, As listas antigas das ~as de Aristótelw, Lovaina, 1951.-Uma
tentativa para revolucionar a atribuição dos escritos aristotélicos
encontra-se em ZURCITER, Aristotel~ Werk und Gei8t, Paderbon, 1952.
Sobre a cronologia das obras lógicas
311

de Aristõteles: P. GomKE, Die Enatchung der ariBtoteltechen Logik,


Berlim, 1936; F. NUYENS, LIéVOIUt" de Ia psychologie d'Aritote,
UYvaina, 1948, e os autores do volume colectivo Autour d' Aristote,
Lovaina, 1955, negam que o livro XII da Metafí&ica seja uma obra
juvenil, segundo a tese de Jaeger, mas sem argumentos válidos. Cfr. M.
UNTERSTEINER, In. "Rivista di filologia elassáca>.

§ 69. Os fragmentos dos escritos exotéricos foram recolhidos por


VALENTIN ROSE, Leipzig, 1866. Veja-se também: WALZER, Aristotelis
dialogorum fragn~ta, Florença, 1934. Sobre as obras perdidas de
Aristóteles: JAMER, Op. Cit.; BIGNONF, L'Aristotele perdudo e Ia
formazione filosofica di Epicuro, 2 vols, Florença, s. d..
§ 70. A edição fundamental das obras de Aristóteles é a da Academia das
Ciências de Berlim ao cuidado de Bekker (1831), a numeração de cujas
páginas vem reproduzida em todas as edições e serve para as citações. A
e-asa edição foi acrescentada o utilíssimo Indice de BONITZ. Notável
também a edição Firmán-Didot, 4 vols., Pari.3, 1849-69, com tradução
latina. Numerosissimas as edições poateriores das obra6 aristotélicas,
entre as quaL9 é Importante a que Ross publicou na Oxford University
Press. Do próprio Ross é fundamental a edição comentada da Metaf~a, 2
vols., Oxford, 1924; ainda mais a monografia Aristotele, trad. ital.,
Bari, 1946. Esta é actualmente a melhor obra geral sobre Aristételes.
Na historiografia moderna a interpretação da figura de Aristóteles
tomou duas direcções simétricas e opostas: a que faz de Aristóteles um
naturalista e um empirista; aquela que faz dele um espiritualista. Como
exemplo da primeira interpretação: C. PIAT, Aristote, Paris, 1912; J.
BURNET, Aristotle, Londres,
1924. A segunda interpretação foi iniciada por F. RAVAISSON, Essai sur
Ia métaphy8ique d'Aristote, Paris,
1913, e encontrou a sua melhor expressão na monografia de O. HAMELIN,
Le système d'Aristote, Paris,
1920.

§ 71. Que a elegia se referia a Sócrates é a ~tese de GompERz, II, p.


72, que contradiz os testemunhos antigos e é desmentida pela crítica
recente: JAMER, p. 138 segs.; BIGNONE, I, p. 213 segs.-Sobre as duas
fases da Metaffsica: JAMER, cap. 4.

H 73.-74. A doutrina da substância exposta nos livros VII e VIII da


Metafísica é o resultado mais

312

maduro da Investigação "totélica, segundo as coaclusões de Jaeger.

§ 75. A crítica a Platão repete-se multas vezes na M~1~, I, cap. 9;


VII, cap. 13; 14 e 15; XH1, cap. 4 e 5; XIV, cap. 1 o 2. A
forma maIs organizada da crítica é a expoeta no livro XII ; CHERNISS,
Ari8totWs Criti~ of Plato and the Aca-demy, John HopkIns Univ. Preas,
1944.

§ 76. A doutrina das quatro causas está na Met.,


1, 3, 983 a, e na Fís., 11, 3, 194 b.

§ 77. A potência e ao acto dedica Aristóteles todo o livro EK da, Met.,


no qual se fundamentou a exposição do texto. J. OWENS, The Doctrine
of Being in the Aristotelian Metaphysic8, Torontoi 1951.

§ 78. Sobre a substância imóvel, veja-se Met., Xil, 8, 1072 a segs. e


Fís., VUT, 5, 256 b, 20. A doutrina das outras inteligências motrizes
está no cap. 8 do mesmo livro XII. H. VON ARNIM Die Entstehung der
Gotte%1ehre des Aristotele, Viena, 1931.

§ 79- Sobre a física aristotélica: MANSION, Introduction à Ia physique


aristotélicienne, Lovaina, 1913; M. RANQUAT, Aristote naturaliste,
Paris, 1932; J. DE TONQUÉDEC, Qu_-stion-s de cosmologie e de physique
chez Aristote et St. Thomas, Paris, 1950. Uma tentativa para determinar
a sucessão cronológica dos escritos recolhidos na Física foi feito por
RUNNER, The Develo~nt of Ari-stotIe i11ustrated from the earliest books
of the Physics, Kanipden, 1951. A ordem seria esta: livro VI (composto
cerca de 361); livro I e parte do II, livro V e VI entre os anos 346 e
337.

§ SO. Sobre a psicologia: C. W. SHUTE, The Psychology of Aristotle,


Nova lorque, 1947.

§ 81. Sobre a ética: H. VON ARNIM, Die drei Aristotelischen Ethiken,


Viena, 1924, e Eudemische Ethik und Metaphysik, Viena, 1928; WALzER,
Magna Moralia und Aristotelische Ethik, Berlim, 1929; HAmBURGER, MoTaIs
and Law: the Growth of ArístotWs Lega Theory, New Haven, 1951; J. A.
THOMSOM, The Ethics Of Arístotle, Londres, 1953.

§ 82. Sobre a politica: BARKER, Political Thought Of Plato and


Aristotle, Londres, 1906; H. VON ARNIM, Zur Entstehungsge,,,chichte der
aristotelischen Politik, Viena, 1954.

§ 83. Sobre a retórica: ZELLER, 11, 2, p. 754 segs.; GOMPERZ, IIII,


cap. 36-38.

§ 84. Sobre a poética: A. Rostagni, La poetica XAristotele, Turini,


1927; S. H. BUTC=, AristotIeIs

313

Theory of Poetry and Fine Art8, Nova Iorque, 1955; GMALD E. IM ,


Arl[8tOtW8 P00~ The ArPUM~, Leiden, 1957.

§ 86. Tradução Italiana de Organon, com introdução e notas de G. 001",


Turim, 1955.-P~L, Ge8hichte der Log., I, p. 87 segs.; C~EDO, I
jundamenti deUa Logica ari8totelica, Florença; " BLOND, Logique et
méthode cheo A~ote, Paria, 1939; C. A. VIANo, La logica di Aristot^
Turim, 1955.-Para uma valoração da lógica aristotélica do ponto de
vista da lógica contemporânea: J. LUXASIEWICS, ArtatotWa Syllogiatic
fr<"n the Standpoint o/ Modem Pormal Logio, 2.1 ed., Oxford, 1957; W.
KNEALE-M. KN~, The Devel~ent of Logic, Oxford, 1962, p 23-112
314

INDICE

PRE)FACIO DA PRIMEIRA EDIÇAO ... ... 7 PRMFACIO DA SEGUNDA EDIÇAO


... ... 15

PRDdEIRA PARIT,

FILOSOFIA ANTIGA

I-ORIGMN8 E CARACTER DA F11,0SO-

F7A GREGA .. . ... ... ... ... ... 19 II-A ESCOLA


MNICA ... ... ... ... ... 35 M-A ESOOLA
PITAGORICA ... ... ... 53 rV_A ESOOLA
ELEATICA ... ... ... ... 63 V-OS FISICOS
POSTERIORES ... ... ... 81 VI - A SOFISTICA.
... ... ... ... ... ... 97 VII - SWRATES ... ...
... ... ... ... ... 115 VM -AS ESCOLAS SOCRATICAS
... ... ... 133

IX - PLATA0 ... ... ... ... ... ... ... 147 X -A


ANTIGA ACADE3 . ... ... ... ... 225 )CI -
ARISTÓTELES ... ... ... ... ... ... 233

Este livro acabou de se imprimir em Julho de 1976

para a EDITORIAL PRESENÇA, LDA.

na

Empresa Gráfica Feirense, L.da

Vila da Feira Tiragem 3 000 exemplares

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