Vnia Noeli Ferreira de Assuno

O Satnico Doutor Go:

A Ideologia Bonapartista de Golbery do Couto e Silva

Mestrado Programa de Estudos Ps-Graduados em Cincias Sociais

Pontifcia Universidade Catlica So Paulo 1999

Vnia Noeli Ferreira de Assuno

O Satnico Doutor Go:

A Ideologia Bonapartista de Golbery do Couto e Silva

Dissertao apresentada Banca Examinadora da Pontifcia Universidade Catlica de So Paulo, como exigncia parcial para obteno do ttulo de MESTRE em Cincias Sociais, sob orientao da Prof Dr Vera Lcia Michalany Chaia

Pontifcia Universidade Catlica So Paulo 1999

Banca Examinadora:

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4 AGRADECIMENTOS E DEDICATRIAS Meu agradecimento Capes, pelo financiamento da pesquisa. A Vera Chaia, pela prestativa disposio, pela leitura atenta e pelos argutos comentrios, dosando na medida justa o respeito e a crtica. A Silvana Ttora, pelas instigantes questes apresentadas quando da qualificao. Ao pessoal da Ad Hominem, em cujo bojo nasceu e se desenvolveu a idia da pesquisa e cujas discusses me deram os fundamentos e a maturidade para realiz-la. Em especial, a ngela, pelos livros e pela fora moral, a Lvia, pelas sugestes, a Carlos, pela disposio e a Maria, pela impagvel boa vontade, meus sinceros agradecimentos. A Oto, pelo apoio, pela colaborao, pela silenciosa, mas nem por isso menos fundamental, atuao de bastidores, pelo emprstimo do computador e, mais que tudo, pela compreenso que demonstrou nesse perodo conturbado. minha me, Hilda, cujo esforo me possibilitou chegar aqui, a meus irmos e meu av. Um agradecimento especial minha vozinha, D. Via, cujo apoio foi total e fundamental para a concluso desse trabalho. A Ado e Gilvan, pela ajuda na digitao. Vanessinha tambm contribuiu no mesmo sentido - embora no compreendesse porque eu no fazia minha lio quando ela no estava em casa, pra gente poder brincar... A ela, um agradecimento e um beijo. Agradeo ao prof. Leonel Itaussu Mello pela cesso de seu livro, a Betinho e Flora, pelo emprstimo do computador, e CNEC-Central, nas pessoas de Gilci e Lisete, pelo emprstimo de material de consulta. memria de Maurcio Tragtenberg, cuja orientao foi marcada pela coragem, pelo respeito, pela integridade e por um incrvel bom humor, qualidades atualmente to raras e que nos ajudam a acreditar, um pouco mais, no ser humano. memria de Jos Chasin, cuja determinao nunca fraquejou, a despeito de todas as adversidades. Sua vida pessoal, pautada pela preocupao com a prpria autoconstruo como ser humano, nunca se dissociou de vasta e riqussima produo terica, que ainda est para ser descoberta. Suas reflexes sero, aqui, sobejamente utilizadas, mesmo quando no referidas explicitamente e ainda que no tenha ainda conseguido me apropriar dela em sua totalidade e em sua profundidade. A Rago, inspirador efetivo do que h de justo e certo nesse trabalho, venho aqui prestar contas de tantos acertos, de erros sem fim. Sem a ajuda e o apoio de todas essas pessoas, este trabalho no poderia ser concretizado e o resultado atual estaria bastante alterado. Obviamente, os limites ou eventuais equvocos so de responsabilidade pessoal.

SIGLAS CB - Correio Braziliense CN - Conjuntura Poltica Nacional: o Poder Executivo (obra de Golbery, resultado da conferncia na ESG de 1980) DSN - Doutrina de Segurana Nacional ESG - Escola Superior de Guerra FSP - Folha de So Paulo GB - Geopoltica do Brasil (obra de Golbery) JT - Jornal da Tarde OESP - O Estado de So Paulo ON - Objetivo(s) Nacional(is) ONA - Objetivo(s) Nacional(is) Atual(is) ONP - Objetivo(s) Nacional(is) Permanente(s) PE - Planejamento Estratgico (obra de Golbery) SN - Segurana Nacional

O nvel filosfico de um idelogo depende em ltima instncia da profundidade com que saiba penetrar nos problemas de seu tempo, de sua capacidade para saber elev-los altura suprema da abstrao filosfica, da medida em que as posies de classe cujo terreno pisa lhe permitam escavar at o mais profundo desses problemas e chegar at o fim deles. (Georg Lukcs)

Sem teoria contra-revolucionria no h prtica contra-revolucionria. (Florestan Fernandes)

A Segurana Nacional no abstrata. sempre a segurana de uma nao tal como existe concretamente, numa poca determinada. Ora, atualmente, h um Brasil em caducidade e um Brasil em estado nascente. De qual deles se trata de elaborar a poltica de Segurana Nacional? (Guerreiro Ramos)

Incontveis vezes tem sido a ameaa externa, exageradamente apresentada aos olhos do povo, qui mesmo fantasiada, o pretexto utilizado por governantes autocratas para no ceder s pretenses liberais que os molestam ou por uma minoria de ambiciosos que almeje aumentar o mbito de seu mando custa de liberdades pblicas tradicionais. (Golbery do Couto e Silva)

RESUMO

Esta pesquisa tem o objetivo bsico de reproduzir, criticamente, a ideologia do general Golbery do Couto e Silva, contida principalmente em seus livros Planejamento Estratgico e Geopoltica do Brasil. Como parte desta tarefa, faz-se uma ligeira retomada das formulaes do pensamento conservador de Oliveira Vianna e Azevedo Amaral e das contribuies inovadoras no campo militar do general Ges Monteiro - pensadores que, do mbito nacional, influenciaram o pensamento golberyano. Registramos ainda a discusso isebiana sobre segurana nacional, conduzida por Guerreiro Ramos. Tambm apontada, por meio dos conceitos fundamentais, a proximidade com a doutrina da Escola Superior de Guerra. Em seguida, detalham-se os conceitos que avultam de importncia na compreenso do pensamento do general (geopoltica e estratgia, segurana/insegurana, Estado-nao, guerra, planejamento, democracia, liberalismo, elite, massa, civilizao ocidental, objetivos nacionais, poder e potencial nacionais). Mostra-se ao depois como se entretecem em uma teia que constitui propriamente sua viso de mundo. Nesse sentido, vai ressaltada sua apreenso das relaes internacionais de sua poca, da guerra fria, da segurana nacional e de seu planejamento, a questo do desenvolvimento e da soberania e do Brasil e Amrica Latina no quadro da guerra fria. A formulao golberyana subjacente chamada abertura democrtica tambm analisada, dando nfase a seus propsitos minoradores das presses sofridas pelo governo. reproduzida a explicao de Golbery, pela lei dos rendimentos decrescentes e pela teoria do retardo cultural, acerca da necessidade, verdadeiro imperativo, da descompresso. Abordamos a viso golberyana dos partidos polticos, vistos como controladores da participao das massas na poltica, e da democracia apontada como meta: uma democracia essencialmente partidria. Tambm feito um acompanhamento do prprio processo de auto-reforma do regime, mostrando como se intercalam, no pensamento do general Golbery, a reforma partidria, a anistia, o AI-5, o Pacote de Abril. E, enfim, abordada a sada do general do governo, em 1981, provocada pela escalada do terrorismo de direita, e suas ltimas manifestaes sobre momentos importantes da vida nacional, como o movimento pelas eleies diretas para a Presidncia da Repblica.

SUMRIO

INTRODUO _____________________________________________________________ 10
Metodologia de Trabalho _______________________________________________________________________ 20 Estrutura da Dissertao _______________________________________________________________________ 21

Captulo I - A Misria Brasileira: O Capital Atrfico e sua Apreenso pelo Conservadorismo ______________________________________________________ 23
1 - BRASIL: UM PAS PRECOCEMENTE DECADENTE ____________________________________ 23 2 - O CONSERVADORISMO BUSCA SOLUES __________________________________________ 28 3 - A FALSA SOLUO ESGUIANA ______________________________________________________ 39
Guerra ______________________________________________________________________________________ 46 Sociedade ____________________________________________________________________________________ 47 Nao _______________________________________________________________________________________ 49 Estado ______________________________________________________________________________________ 50 Desenvolvimento ______________________________________________________________________________ 54 Geopoltica___________________________________________________________________________________ 56 Golbery e a ESG ______________________________________________________________________________ 58

Captulo II - As Bases do Pensamento Golberyano ______________________ 60

1 - NO PRINCPIO, ERA O MEDO _______________________________________________________ 60
O Estranhamente Crvel Mito do Contrato Social ________________________________________________ 60 A Nao, ou o Segundo Nascimento ______________________________________________________________ 66

2 - O DILEMA IRRESOLVIDO DO CONSERVADORISMO BRASILEIRO: ANTILIBERALISMO E DEFESA DA DEMOCRACIA ____________________________________________________________ 71

O Fracasso do Liberalismo e a Liberdade Impenhorvel do Homem ___________________________________ 71 Nem Anomia, Nem Totalitarismo ________________________________________________________________ 74 Democracia Liberal versus Democracia Participativa _____________________________________________ 77

3 - O PENSAMENTO PLANIFICADO: A TERCEIRA VIA GOLBERYANA _____________________ 80

O Advento do Pensamento Planificado____________________________________________________________ 81 O Que Planejamento?________________________________________________________________________ 83

4 - ELITES CRIADORAS E POVO MASSIFICADO _________________________________________ 87 5 - A CIVILIZAO OCIDENTAL, QUE A NOSSA _______________________________________ 91 6 - OS OBJETIVOS NACIONAIS DE GOLBERY ___________________________________________ 97
Os Objetivos Nacionais Atuais _________________________________________________________________ 100

7 - PODER E POTENCIAL NACIONAIS__________________________________________________ 101

Poder Nacional ______________________________________________________________________________ 101 Potencial Nacional ___________________________________________________________________________ 105

8 - ULTIMA RATIO: A GUERRA ________________________________________________________ 107 9 - GEOPOLTICA E ESTRATGIA _____________________________________________________ 111

Estratgia___________________________________________________________________________________ 112

Captulo III - A Viso de Mundo de Golbery____________________________ 115

1 - RELAES INTERNACIONAIS NO MUNDO ATUAL __________________________________ 115 2 - A GUERRA FRIA E O ETERNO RETORNO A HOBBES_________________________________ 119
Atuao Internacional das Superpotncias _______________________________________________________ 124

3 - GUERRA TOTAL OU O LTIMO CAVALEIRO DO APOCALIPSE_______________________ 125

Guerras Localizadas ou Limitadas ______________________________________________________________ 130 Guerra Social-Revolucionria ou Insurrecional ou Subversiva_______________________________________ 132

4 - O COLOSSO IMPERIAL E A OPO PELO OCIDENTE _________________________________ 134

O Espao e a Posio do Brasil _________________________________________________________________ 134

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A Evoluo do Brasil _________________________________________________________________________ 136 Soberania e Desenvolvimento __________________________________________________________________ 138 Desenvolvam o Brasil, Salvem o Mundo! _________________________________________________________ 142 Projeo do Brasil no Exterior _________________________________________________________________ 145

5 - ATUALIDADES DA AMRICA LATINA ______________________________________________ 148

A Amrica Latina e a Guerra Fria ______________________________________________________________ 150

6 - O COMPLEXO TREMENDO DA SEGURANA NACIONAL _____________________________ 151

Segurana Versus Bem-Estar __________________________________________________________________ 153 Segurana e Desenvolvimento __________________________________________________________________ 155

7 - PLANEJAMENTO DA SEGURANA NACIONAL ______________________________________ 157

Planejamento Especfico da Segurana Nacional __________________________________________________ 157 Planejamento do Fortalecimento do Potencial: Campo Dominante ___________________________________ 159 Planejamento do Fortalecimento do Potencial Nacional: Fatores Crticos ______________________________ 162

Captulo IV - Golbery, o Estrategista da Auto-Reforma da Ditadura ______ 165

1 - ABERTURA OU AUTO-REFORMA?__________________________________________________ 165 2 - O MAGO DA AUTOCRACIA BONAPARTISTA ________________________________________ 174
Os Maquiavis da Ditadura e o AI-5_____________________________________________________________ 178 Professor de Harvard Recomenda ao Governo: Descompresso J!___________________________________ 181 A Lei dos Rendimentos Decrescentes e a Teoria do Retardo Cultural _________________________________ 184 Governo contra Falces e Jacobinos, Contestadores e Subversivos____________________________ 188

3 - CAMINHOS SINUOSOS DA REFORMA LERDA, LONGA E LIMITADA __________________ 193

A Constituinte do Riacho Fundo ________________________________________________________________ 198 O Fracasso do Bipartidarismo e a Reforma Partidria _____________________________________________ 200 A Revelao _________________________________________________________________________________ 205 Nas Mos de Golbery, a Representao Poltica da Sociedade Brasileira_______________________________ 209

Captulo V - A Volta s Sombras ________________________________________ 215

1 - A RENNCIA ______________________________________________________________________ 215

O Fim da Vida Inteligente no Governo?________________________________________________ 220 2 - APS O PODER, O PODER_____________________________________________________ 223

A Cria Persegue o Criador_____________________________________________________________________ 227 Aspectos da Conjuntura Nacional segundo Golbery________________________________________________ 227

CONSIDERAES FINAIS _____________________________________________ 230 BIBLIOGRAFIA __________________________________________________________ 233 APNDICE ________________________________________________________________ 237
Cronologia __________________________________________________________________________________ 237

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INTRODUO
general Golbery do Couto e Silva 1 pertence a uma gerao que, segundo Elizer Oliveira, desempenhou um papel extremamente importante no desenvolvimento das instituies brasileiras, dos anos 50 aos nossos dias, e ns, pesquisadores polticos, ainda estamos por realizar estudos sobre este fenmeno poltico-militar (Oliveira, 1988:240). Golbery foi uma das principais personagens da histria brasileira, desde os anos 50. Unia perfeitamente as qualidades de intelectual e homem prtico - era um intelectual orgnico da burguesia brasileira. Sua peculiaridade: agir nas sombras. Mas o fato de atuar quase sempre nos bastidores no diminui sua, s vezes, dramtica importncia para a histria do Brasil. No obstante a relevncia histrica do general Golbery, nenhum estudo de maior monta se realizou sobre seu pensamento. O que se escreveu sobre ele, em sua quase totalidade, constitui-se de artigos curtos, que apenas tomam-no como ponto de partida para o estudo de outro tema - seja a abertura, seja a ditadura, sejam temas geopolticos 2 . Alm de tratarem apenas de um ou alguns dos muitos temas trabalhados por Golbery, tais artigos, com rarssimas excees, tambm no abordam a totalidade do pensamento do general, pois baseiam-se quase sempre em apenas uma de suas obras, Geopoltica do Brasil, especialmente na conferncia realizada na ESG em 1980. Sua obra Planejamento Estratgico - livro resultante de conferncias proferidas na ESG - praticamente desconhecida 3 . Obras de um mesmo perodo (ambos foram escritos no decorrer dos anos 50), aparecem-nos como trabalhos cujos assuntos se complementam e se explicam - como se ver, inclusive, muitos artigos constam de um como de outro livro. De qualquer forma, os liames que unem as duas ainda precisam ser explicitados por um estudo que tome o general em sua integralidade, refazendo os ndulos de seu pensamento e respeitando, inclusive, incoerncias e buracos que possam existir. Esse um dos objetivos desse estudo.

*** Antes de proceder anlise do pensamento golberyano, consideramos importante nos determos um pouco em um tema que, se no tratado desde j, poder gerar dificuldades para o perfeito entendimento deste trabalho e de seus objetivos. Esta a questo da ideologia (a polmica comea j na sua definio). O fenmeno ideolgico tem provocado constantes e, por vezes, duras discusses entre os que o tentam compreender. As concluses no raro so contraditrias, mesmo as que pretendem se filiar mesma raiz, e o marxismo, longe de ser uma exceo, o exemplo tpico.
As referncias biogrficas do general constam do Apndice. As referncias bibliogrficas completas das obras citadas podem ser encontradas na Bibliografia. 2 Podemos citar, como exemplo: o livro de Schilling, A Diplomacia do Itamaraty e a Geopoltica do General Golbery, cujo objetivo denunciar a influncia de idias como a do satlite privilegiado, a de Brasil-potncia, fronteiras ideolgicas e outras nas relaes com outros pases da Amrica do Sul e com os EUA. Outro exemplo: Golbery constituise em um captulo do livro A Geopoltica do Brasil e a Bacia do Prata, de Leonel Itaussu Mello, que discute os principais temas gepolticos sobre os quais se debruou o general. Do mesmo autor, temos Golbery Revisitado: da Abertura Controlada Democracia Tutelada, um artigo que busca analisar mais detalhadamente a questo da assim chamada abertura democrtica. O general , ainda, citado com maior ou menor destaque em livros que tratam da poca da ditadura e dos militares, especificamente, como em Elizer Rizzo de Oliveira (Militares: Pensamento e Ao Poltica e As Foras Armadas: Poltica e Ideologia no Brasil), Alfred Stepan (Os Militares e a Poltica), 1964: a Conquista do Estado, de Dreifuss, entre outros. Manzini Covre busca fazer uma anlise do pensamento de Golbery juntamente com o de outros personagens importantes da ditadura, no livro A Fala dos Homens. 3 O general publicou ainda o texto tcnico O Tiro do Morteiro em 1939, alm de um tratado turstico sobre Florena de Outros Tempos, Itlia Maravilhosa (1960), este com tiragem reduzida.
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11 De um modo geral, K. Marx visto como importante influenciador do uso moderno do termo ideologia. H quase um consenso sobre a existncia e significao de uma teoria da ideologia em Marx. Esta considerada geralmente como uma de suas maiores contribuies teoria social e filosofia. Contudo, tal constatao relaciona-se com um desacordo quase total sobre o contedo das contribuies marxianas. A problemtica sobre o tema se inicia do momento em que a filosofia passa a se preocupar com elementos que, embora alheios ao campo das cincias naturais, poderiam influenci-las direta ou indiretamente. Surge, assim, eminentemente ligada s questes de mtodo que tinham por objetivo minorar ou eliminar as possibilidades de erro, altamente prejudiciais nascente burguesia e a suas pesquisas. (Essa tendncia ao predomnio da discusso metodolgica se acirrou no decorrer dos sculos, e hoje se configura um predomnio praticamente inquestionado da discusso gnosiolgica.) Desse modo, o interesse com relao problemtica do conhecimento - e por decorrncia pela ideologia - emerge na medida em que, em um determinado momento histrico, o conhecimento verdadeiro considerado como conditio sine qua non para um determinado projeto cientfico e sociopoltico. (Vaisman, 1989:400) Historicamente, a ideologia foi vista das mais diversas formas possveis. A grande maioria dos que se debruaram sobre o tema, porm, tem em comum o fato de considerar a questo ideolgica pelo vis gnosiolgico. Percebemos essa parcializao como um grave problema, tendo em vista que a ideologia est ligada no a questes metodolgicas, mas a questes essenciais relativas totalidade do ser social, conforme veremos. Louis Althusser foi talvez o mais radical dos responsveis pela incluso no campo marxista de uma temtica que parecia resolutiva em relao aos impasses que dominaram a poca anterior, especialmente da questo epistemolgica. Contudo, o que se conclui de uma anlise do tema que tal abordagem desfigura totalmente o pensamento de Marx, designadamente porque a obra marxiana a negao explcita daquele parmetro na identificao da cientificidade, tendo sua prpria arquitetnica reflexiva, por consonncia, natureza completamente distinta daquela suposta pelo epistemologismo, uma vez que baseada na ontologia (Chasin, 1995:338). Esta discusso fundamental para o estudo do fenmeno ideolgico porque este pensamento instaura uma insupervel fissura entre os dois plos constitutivos do ser social: de um lado, as formas sociais da individualidade, ou seja, os indivduos enquanto meros suportes das estruturas e, de outro, a subjetividade individual ou as posies subjetivas em face do social, constituda no interior do paradigma psicanaltico (Vaisman, 1996:67). Esse caminho escolhido por Althusser findou por radicalizar a determinao da questo ideolgica pelo critrio gnosiolgico. Althusser baseia nA Ideologia Alem (que ele mesmo assevera no ser referncia para o estudo da ideologia, uma vez que tal obra no marxista) a afirmao peremptria de que a ideologia no tem histria. Retomemos as palavras do prprio Marx:
La moral, la religin, la metafsica y cualquer otra ideologia y las formas de conciencia que a ellas correspondem pierdem, as, la apariencia de su propia sustantividad. No tienen su propia historia ni su propio desarrollo, sino que los hombres que desarrollam su produccin material cambian tambin, al cambiar esta realidad, su pensamiento y los productos de su pensamiento. No es la conciencia la que determina la vida, sino la vida la que determina la conciencia. (Marx, 1985:26)

Marx est destacando, portanto, que as ideologias no tm histria no sentido de que no possuem historicidade imanente, mas fazem parte da histria humana como de produo

12 da vida e das correspondentes formas de conscincia. Ou seja, quer ressaltar a unidade do processo histrico. Nesse sentido, a via particular pela qual G. Lukcs apreende o fenmeno ideolgico apresenta-se como a que melhor conseguiu captar a especificidade do fenmeno ideolgico em sua posio ontolgica e, portanto, de acordo com a postura marxiana perante o problema 4 . Isso porque, para ele, em Marx a questo ideolgica refere-se a uma concepo de uma histria unitria da humanizao do homem, na qual a ideologia aparece totalmente vinculada prpria dinmica do ser social, de modo que ele, ao examinar o problema da ideologia, busca sistematicamente o nexo ontolgico que este fenmeno possui em relao ao ser social (Vaisman, 1989:15). Ressalte-se esse ponto: inspirado em Marx, Lukcs no reconhece uma ruptura entre posies que se desenvolvem no interior da esfera econmica e aquelas que se pem para alm dela. Isso porque o carter do ser social estruturalmente unitrio - h uma unidade indissolvel entre o ser e o saber do homem, ontologicamente fundada: o homem precisa saber para atuar na natureza e satisfazer suas necessidades. O homem um ser que responde - ressalta Lukcs; na medida em que o faz, ele prprio elabora os problemas a que dever, de acordo com as possibilidades sociohistricas, responder. Tais respostas podem, no momento subseqente, se transmutar em outras perguntas, de forma que tanto as perguntas quanto as respostas se alargam constante e infinitamente, constituindo os vrios graus que medeiam o aprimoramento e a complexificao da atividade do homem. Esse conjunto de perguntas e respostas, que enriquece e transforma o modo de ser e ir sendo do homem, portanto resultado de constantes opes que este obrigado a fazer no processo de construo de sua prpria existencialidade. Assim, no trabalho e nas outras esferas da atividade humana h em comum uma opo clara entre alternativas diferentes, o que pressupe um momento ideal, uma prvia ideao, de um instante em que se pra para refletir sobre a melhor escolha a fazer. (Isso, obviamente, no implica um conhecimento anterior e completo de todas as circunstncias que sero afetadas pelas decises tomadas; embora concreto, o conhecimento sempre e apenas aproximativo, e para efetivar as finalidades a que se prope tem de estar adequado aos processos objetivos sobre os quais devero incidir as decises tomadas.) Assim, a apreenso lukacsiana de ideologia tem por base a noo de homem como um ser prtico que age a partir de decises entre alternativas, uma vez que no abstratamente independente das necessidades que a histria lhe coloca. Na reao a tais necessidades, emprega produtos espirituais que so constitudos em funo destas mesmas necessidades, de forma no linear. Mais detalhadamente: para que as posies teleolgicas ligadas de modo mais direto esfera econmica possam se efetivar, surgem posies teleolgicas secundrias: o processo laborativo coloca aos homens tarefas que s podem ser cumpridas se elas forem acompanhadas por posturas e afetividades adequadas sua execuo. Essa funo desempenhada pelas posies teleolgicas secundrias tanto mais fundamental, quanto mais complexa for a diviso do trabalho (Vaisman, 1989:413). Essas tomadas de deciso se
Vaisman diz que a maioria das concepes a respeito da ideologia por melhores que possam ser do ponto de vista estritamente tcnico, deixam a sensao de artificialidade conceitual e incompletude terica, pois nem articulam e nem integram a problemtica geral da ideologia no contexto global da existncia do homem e da sociedade. /.../ Alm disso, as referncias a Marx /.../ so, na maioria das vezes, muito discutveis, j que se referem quase na totalidade primeira parte dA Ideologia Alem, obra em que Marx analisa especificamente os neo-hegelianos e os verdadeiros socialistas. Ideologia a, e no poderia ser outra coisa pela perspectiva de Marx, deformao e falsificao. Trata-se, no entanto, no de uma teorizao em geral do problema filosfico, mas da denncia de conjuntos ideolgicos concretos. (Vaisman, 1989:15)
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13 diferenciam daquelas diretamente ligadas ao trabalho principalmente porque seu objeto no a natureza, mas outros homens; elas no pretendem, portanto, desencadear cadeias causais, e sim modificar o comportamento dos homens, ou seja, desprender novas posies teleolgicas. Em sntese, a atuao do homem - seja no trabalho, seja extralaborativamente - tem objetivos: desencadear uma cadeia causal (atividades diretamente ligadas ao trabalho) ou provocar mudanas de comportamento nos prprios homens. Qualquer que seja, contudo, o objeto sobre o qual age o ser humano, todas as suas atividades se caracterizam pela inescapvel tomada de decises entre alternativas. Para Lukcs, exatamente nesse mbito - em que os homens do respostas prticas ao ambiente, objetivando resolver problemas que este lhes coloca nos vrios nveis de sua existncia - que nasce e atua a ideologia. As respostas dadas pelos seres sociais so mediadas por algum tipo de produo espiritual, formando o conjunto das posies teleolgicas (excludo, aqui, o trabalho) onde a ideologia desempenha o papel de prvia-ideao. Ou seja, a ideologia, em qualquer uma das suas formas, funciona como o momento ideal, que antecede o desencadeamento da ao, nas posies teleolgicas secundrias (Vaisman, 1989:413). Com isso, Lukcs consegue ressaltar a especificidade do dado espiritual sem, contudo, atribuir-lhe autonomia ou histria imanentes, de vez que a produo de idias faz parte da histria humana global e determinada ou suscitada, atravs de mltiplas mediaes, pelo modo como os homens produzem e reproduzem sua vida. Assim, o momento ideal das posies teleolgicas voltadas prtica social constitudo pelo contedo dessas produes espirituais em sua funo ideolgica. (Vaisman, 1996:107) E, no caso em tela, o carter instrumental importante, tendo em vista que a ideologia s tem existncia social e que ela se refere a um real especfico, que por ela pensado e sobre o qual atua (Vaisman, 1996:108). Portanto, para o filsofo hngaro, As formas ideolgicas so instrumentos pelos quais so conscientizados e enfrentados os problemas que preenchem a cotidianeidade (Lukcs, 1987:II); ela est, dessa forma, umbilicalmente ligada s questes postas pelo aqui e imediatamente. Do ponto de vista ontolgico, estamos, pois, diante do seguinte: o produzido determinado pela sua produo, o que significa que o ser da ideologia determinado pela sua produo, que e s pode ser social. E, em termos gerais, portanto, ela est presente em todas as aes humanas, enquanto orientao ideal. (Vaisman, 1989:418) Ou seja, onde quer que se manifeste o ser social, h problemas a resolver e respostas que visam soluo destes; precisamente nesse processo que o fenmeno ideolgico gerado e tem seu campo de operaes. (Vaisman, 1989:419) Assim, em sua posio ontolgica, so inseparveis em qualquer nvel de desenvolvimento ideologia e existncia social. Observe-se, porm, que, do momento em que a realidade humana passa a ser inflexionada por um conflito social - que permeia todos os graus dessa realidade -, a ideologia passa a se manifestar como um instrumento ideal atravs do qual os homens e as classes se engajam nas lutas sociais, em diversos planos e nveis (Vaisman, 1989:419). Baseando-se em Marx, Lukcs d ento uma caracterizao mais restrita de ideologia: consiste no fato de que os homens, com o auxlio da ideologia, trazem conscincia seus conflitos sociais, e por seu meio combatem conflitos cuja base ltima preciso procurar no desenvolvimento econmico (Lukcs, 1989: XVIII). Nas palavras do prprio Marx, A transformao da base econmica altera, mais ou menos rapidamente, toda a imensa superestrutura. Ao considerar tais alteraes necessrio distinguir entre a alterao material - que se pode comprovar de maneira cientificamente rigorosa - das condies econmicas de produo, e as formas jurdicas, polticas, religiosas, artsticas ou filosficas, em resumo, as formas ideolgicas pelas quais os homens tomam conscincia deste conflito, levando-os ltimas conseqncias (Apud Vaisman, 1996:108).

14 No h contradio entre as acepes ampla e restrita de ideologia, que devem ser entendidas quer como particularizao e generalidade, quer como estgio, dimenso ou momento de um fenmeno uno. Por outros termos, caracterizar de maneira ampla a funo e a gnese da ideologia, de acordo com Lukcs, no contrasta com o reconhecer de que o problema de fundo, os homens que na sociedade travam conflitos, permanea o ponto central, mas agora sabemos que o horizonte social da ideologia no deve permanecer obrigatria e exclusivamente limitado aos conflitos desse gnero (Lukcs, 1989:XVIII). Note-se, ademais, que Lukcs no procede a uma simplificao da questo da conscincia social, proclamando a pura identidade entre esta e a ideologia. A ideologia, sendo precisamente uma forma de conscincia, no absolutamente, em tudo e por tudo, idntica conscincia da realidade; ela, enquanto meio para dirimir os conflitos sociais, algo eminentemente dirigido prxis e, portanto - naturalmente no quadro de sua especificidade participa tambm do carter peculiar de toda prxis, ou seja, o de ser orientada acerca de uma realidade a transformar (Apud Vaisman, 1996:53). Do mesmo modo, Mszros destaca que a ideologia a conscincia prtica inevitvel das sociedades de classe.
Nesse sentido, o que determina a natureza da ideologia, acima de qualquer considerao, o imperativo de ser tornar praticamente consciente do conflito fundamental - a partir dos pontos de vista mutuamente excludentes das alternativas hegemnicas que se defrontam em determinada ordem social - com o propsito de resolv-lo atravs da luta. Em outras palavras, as vrias formas ideolgicas de conscincia social acarretam (mesmo se em graus variveis, direta ou indiretamente) diversas prticas de longo alcance em todas as variveis, na arte e na literatura, bem como na filosofia e na teoria social, independentemente de estarem vinculadas a posies sociopolticas progressistas ou conservadoras. (Mszros, 1996:23)

Assim sendo, conclui ele, Em conseqncia de tais determinaes inerentemente prticas /.../, as principais ideologias levam a marca importantssima da formao social que seu bero gentico. Na medida em que o ser social exerce determinao sobre todas as manifestaes e expresses humanas, qualquer reao, ou seja, qualquer resposta /.../ pode, ao orientar a prtica social, ao conscientizar e oferecer respostas, tornar-se ideologia. (Vaisman, 1996:109) Ser ideologia, portanto, no algo que possa ser determinado em termos gnosiolgicos ou por critrios morais (convico sincera, demagogia cnica). Por outro lado, incorreto dizer que a ideologia representa uma elucubrao arbitrria de pessoas singulares, uma vez que enquanto um pensamento permanece simplesmente o produto ou a expresso ideal de um indivduo, no importa o valor ou o desvalor que possa conter, no pode ser considerado uma ideologia. (Lukcs, 1989:I) Assim sendo, ressaltamos que os critrios gnosiolgicos tm sua importncia na avaliao da qualidade ideolgica de um determinado produto espiritual, o que , obviamente, fundamental para a anlise da concreta relao entre a verdade ou falsidade de uma idia e sua funo na prxis social 5 . Mas, apreendida em sua natureza ontolgica, a ideologia no uma
Lukcs ressalva que a imensa maioria das ideologias se funda sobre premissas que no resistem a uma crtica gnosiolgica rigorosa, especialmente se dirigida sobre um longo perodo de tempo /.../. Mas isto significa que estamos falando da crtica da falsa conscincia. /.../ so muitas as realizaes da falsa conscincia que nunca se tornaram ideologia. O importante, destaca ele, que um estrato social veja-a (verdadeira ou falsa) como um meio adequado para combater as prprias colises sociais /.../. sua existncia social independente tambm do carter moral dos motivos utilizados na sua aplicao. E cita, em seguida, um fragmento da Dissertao de Marx (No dominou, talvez, o antigo Moloch? No era, talvez, o Apolo dlfico uma potncia real na vida dos gregos?), acrescentando que Moloch e Apolo
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15 forma de ser, e sim uma funo social; nenhuma manifestao espiritual, portanto, nasce ideologia, mas pode apenas se transformar em ideologia, coisa que s se pode constatar pelo critrio onto-prtico (verificando a funo exercida por tal manifestao espiritual na realidade humana efetiva). Por ser bastante importante, vamos insistir um pouco mais nesse ponto. O fenmeno da ideologia , assim, analisado por Lukcs por seu fundamento onto-prtico, e no sob o critrio cientfico-gnosiolgico - pois este conduz irremediavelmente a erro. Para Lukcs, a correo ou a falsidade no bastam para fazer de uma opinio uma ideologia. Nem uma opinio individual correta ou errnea, nem uma hiptese, uma teoria etc. cientfica correta ou errnea so em si e por si uma ideologia: podem, somente, vir a s-lo (Lukcs, 1989:V). Em outras palavras, exatamente ser ideologia no uma qualidade fixa deste ou daquele produto espiritual, mas, ao invs, por sua natureza ontolgica uma funo social, no uma espcie de ser (Lukcs, 1989:XVI). Todas as teorias podem funcionar, em determinado momento, como conscincia prtica dos conflitos humanos, que os seres sociais tentam resolver atravs da luta. E por isso que, em termos gnosiolgicos, pode-se determinar se um produto espiritual falso ou verdadeiro, mas no se pode atravs disso determinar se ele pode ou no assumir funo ideolgica (Vaisman, 1996:112). Aqui, pois, a questo da falsa conscincia assume sua real estatura de - momento subordinado na anlise do fenmeno ideolgico. Lukcs exemplifica com as cincias naturais, lembrando como a teoria de Galileu ou a de Darwin se tornaram ideologia sem nenhuma relao direta ou necessria com a sua essncia terica (Lukcs, 1989:XXI). Ademais, a filosofia mais profundamente comprometida com a reproduo correta da realidade, a marxiana, em que o direito unilateral da razo especulativa interrogar o mundo superado pela via de mo dupla de um patamar de racionalidade em que o mundo tambm interroga a razo, e o faz na condio de raiz, de condio de possibilidade da prpria inteligibilidade (Chasin, 1995:362), tornou-se a mais alta produo ideolgica da perspectiva do trabalho 6 . De outra parte, como ressalta Lukcs, so muitas as formulaes da falsa conscincia que no chegaram nunca a ser ideologia; de igual modo, o que se torna ideologia no idntico falsa conscincia. Por outro lado, o apelo autoridade da cincia, como bem demonstrou Mszros, constitui-se numa das mais eficazes formas pelas quais a ideologia dominante apresenta seus
podem ser definidos como estupidez do ponto de vista gnosiolgico, mas na ontologia do ser social eles figuram como potncias - precisamente ideolgicas - realmente operantes. Um outro exemplo citado a parte socialista da teoria ricardiana, que chega a concluses formalmente falsas do ponto de vista econmico; Engels j destacara, contudo, sobre o mesmo assunto, que uma coisa que formalmente falsa para a economia pode, todavia, ser exata para a histria universal /.../. Sob a inexatido econmica formal pode, portanto, ocultar-se um contedo econmico como nunca verdadeiro. (Lukcs, 1989:XX e XXII). 6 Vaisman destaca, com Lukcs, que o marxismo, ao se reconhecer como ideologia - como orientao para a ao -, ao contrrio das teorias da desideologizao auto-iludida e da pretensa neutralidade axiolgica weberiana, no omitiu em nenhum momento a sua prpria determinao social, o seu enraizamento de classe (Vaisman, 1989:153) e, portanto, no age como mistificador da realidade. Para Lukcs, a recusa do falso dilema entre ideologia e cincia institui uma nova relao entre filosofia e cincia, de crtica recproca: a cincia controla, em geral, por baixo, se as generalizaes ontolgicas das snteses filosficas esto de acordo com o movimento efetivo do ser social, se no se distanciam deste na estrada da abstrao. De outro lado, a filosofia submete a cincia a uma permanente crtica ontolgica do alto, controlando continuamente at que ponto cada questo singular discutida no plano do ser no seu lugar justo, no contexto justo, do ponto de vista estrutural e dinmico, se e at que ponto a imerso na riqueza das experincias singulares concretas no torna confuso o conhecimento dos desenvolvimentos contraditrios e desiguais da totalidade do ser social, mas, ao invs, o eleva e aprofunda (apud Vaisman, 1989:155). Essa crtica recproca e, mais ainda, a necessidade de cientificidade do marxismo deriva da prpria especificidade da revoluo proletria, que se indaga no ser e devir de si mesma. Uma autocrtica dessa ordem s pode se verificar, nas palavras de Vaisman, na base de uma legtima objetividade, donde a demanda ontolgica da cientificidade (Vaisman, 1989:158). Mszros tambm ressalta que a cincia proletria de Marx /.../ representou a unidade dialtica das aquisies tericas e das determinaes de valor que era atingvel nas condies sociohistricas dadas (Mszros, 1996: 328). Lwy tambm destaca esse aspecto do marxismo como altamente positivo e superior a outras ideologias.

16 interesses e valores com uma roupagem pretensamente neutra e objetiva. Para Mszros, a iluso da autodeterminao no-ideolgica e da correspondente neutralidade da cincia /.../ no em si um erro ou uma confuso que possam ser debelados por obra do Iluminismo filosfico /.../. Antes, uma iluso necessria, com suas razes firmemente plantadas no solo social da produo de mercadorias e se reproduzindo constantemente sobre essa base (Mszros, 1995:270). O mesmo aspecto fora j destacado por Lukcs. Segundo ele, na arena em que as classes sociais combatem que a ideologia adquire tambm o significado pejorativo que se tornou, historicamente, to importante. A inconciliabilidade factual das ideologias em conflito entre si toma no curso da histria as formas mais variadas: podem apresentar-se como interpretaes de tradies, de convices religiosas, de teorias e mtodos cientficos etc., mas se trata sempre, antes de tudo, de instrumentos de luta, no interior da qual, acrescenta Vaisman, o falso, o ilegtimo, o fantasioso etc. sempre a ideologia do outro (Vaisman, 1989:58). Ter critrios gnosio-metodolgicos como parmetro para discusso dos fenmenos ideolgicos, com fizeram Althusser e seus seguidores, segundo Mszros, aceitar uma estrutura de discurso que no s era favorvel ao adversrio ideolgico como contribua para legitimar sua atividade, tudo isso resultando em uma capitulao de facto ante uma falsa problemtica, trazendo consigo as conseqncias desorientadoras de uma concepo completamente idealista da chamada prtica terica (Mszros, 1995:256). Mszros destaca que
A preocupao intensa com problemas de mtodo se manifesta particularmente em perodos histricos de crise e de transio. Em tais pocas, quando a ideologia anteriormente predominante das classes dominantes no pode mais ignorar ou simplesmente pr de lado seu adversrio, as reivindicaes hegemnicas de ambos os lados devem ser formuladas de tal modo que os mais abrangentes princpios metatericos e metodolgicos dos sistemas rivais se tornem explcitos. Isto acontece precisamente para reforar as aspiraes mutuamente exclusivas das partes opostas a ocupar a posio dominante, tanto terica quanto prtica, na sociedade (Mszros, 1995:333).

A rejeio das abordagens tericas alternativas - rejeio que se d devido a seus contedos e aos correspondentes mtodos - no pode ser explicitada nesses seus termos reais; por isso, a acusao deve ser formulada de tal maneira que parea dizer respeito to-somente suposta violao de alguma regra de lgica universalmente vlida. Dessa forma, os contedos do sistema rival so rejeitados como metodologicamente ilegtimos. Ou, mais resumidamente, o discurso do adversrio no pode ser enfrentado em termos de contedo, j que o sistema velho deve defender a ordem estabelecida, o que o impede de se renovar significativamente. Da a tendncia geral para o formalismo metodolgico (utilizado para dar substncia para as ocas aspiraes universalidade) e para a metodologia pela metodologia (Mszros, 1995:333). Podemos concluir, pois, que, no plano ontolgico, no h uma contraposio entre ideologia e cincia, e, portanto, tanto a cincia pode ter uma motivao ideolgica, sem que isso prejudique sua busca de objetividade, quanto a mais pura verdade cientfica pode ser utilizada como ideologia (Vaisman, 1989:146). Isso no significa, no entanto, que se possa identificar totalmente cincia e ideologia, pois esta se constitui em um campo diferenciado do campo especfico da ideologia, devido sua funo social, de forma que fica patente que a diferenciao entre os dois campos no tem nada que ver com objetividade ou noobjetividade.

17 A forma lukacsiana de apreender o fenmeno ideolgico, como ressalta Vaisman, procura fazer a limpeza do terreno, dos entulhos despejados pelo marxismo vulgarmecanicista ao ressaltar o papel essencial do fator subjetivo e, conseqentemente, da ideologia no processo histrico-social, e isso pela radicalidade de sua postura ontolgica (Vaisman, 1989:16). Nesse sentido, um primeiro passo para a crtica da abordagem gnosioepistemolgica do fenmeno ideolgico a insero das filosofias em seu contexto histricotemporal (que muitas delas criticariam como transcendncia), pois assim se podem desvendar as preocupaes prticas que tais filosofias defendem e que so inseparveis dos mtodos de que elas se utilizam. Esse modo de apreender o fenmeno ideolgico percebe a importncia do estudo biogrfico do autor, menos simples do que tende a parecer primeira vista. O complexo de complexos que a realidade engendra muito freqentemente rupturas entre a vida cotidiana dos indivduos e suas formulaes conceituais; ou, ento, a relao entre elas existe de forma muito mediatizada para ser compreendida por uma anlise mais apressada. Mais ainda, a inteno de um escritor e a significao subjetiva que para ele tenha sua obra nem sempre coincidem com a significao objetiva, freqentemente pouco consciente para seu prprio criador, conforme ressalta Goldmann (Apud Rago, 1998:40). Como ressaltava Lukcs, embora as afirmaes ideolgicas sejam produto especfico de indivduos singulares, sua produo desde o incio sociohistrica - a comear pela linguagem utilizada. Tais condies sociais dominam os pensadores at em suas mais prprias e profundas convices, em seu modo de pensar, em seu modo de colocar os problemas etc., sem que eles mesmos o advirtam /.../. Os filsofos aparecem sempre, no fundo - consciente ou inconscientemente, querendo ou sem querer - vinculados a sua sociedade, a uma determinada classe dela, a suas aspiraes progressivas ou regressivas. E o que em sua filosofia nos parece e realmente pessoal, realmente original, acha-se nutrido, informado, plasmado e dirigido precisamente por este solo (e por seu destino histrico). (Apud Chasin, 1977) No entanto, em que pese toda dificuldade da reproduo biogrfica do indivduo, que se entrelaa numa multiplicidade de situaes em seu cotidiano, ela extremamente importante para o conhecimento objetivo de sua produo filosfica, sem que se possa, contudo, transform-la em fundamento da explicao. nesse contexto que se deve deslindar a exatido ou inexatido do pensamento dado e a posio do autor e de seu texto (pois nem sempre o autor aquilo que diz ser) perante a realidade. A denncia da demagogia cnica, a explicitao da convico sincera ou o miudear das incongruncias tm de vir, necessariamente, de par com a anlise da influncia (ou da ausncia de influncia) daquele modo de pensar na formao social concreta. Partimos da constatao de que qualquer idelogo est sempre, em ltima instncia, conscientemente ou no, ligado sociedade em que vive. Os problemas que ele prope, como sua soluo, esto determinados pelas necessidades e aspiraes sociais do seu tempo e de sua sociedade. Sendo esta uma sociedade de classes, seu pensamento se vincula necessariamente a uma dessas classes, a uma posio regressiva ou progressiva. Em outras palavras, nenhum fenmeno superestrutural - a filosofia, a arte, a literatura, a ideologia em geral - pode ser desligado da realidade concreta em que emerge. Pelo contrrio, continuamente modificado por esta em seus desenvolvimentos. Como destaca Lukcs, apenas no interior desta urdidura que se pode pr claramente em relevo a diferena entre os problemas realmente importantes e de significao permanente e as gradaes puramente professorais. precisamente o caminho que, partindo da vida social, conduz novamente a ela o que d ao pensamento filosfico sua verdadeira envergadura e o que determina sua profundidade, inclusive no sentido estritamente filosfico (Lukcs, 1972:4).

18 Assim, queremos desde j diferenciar-nos de duas tendncias que no raro vm intrincadas e que, a nosso ver, incorrem ambas no mesmo erro: desrespeitar o modo de ser concreto e especfico do objeto ideolgico. A primeira delas o determinismo, estreito e vulgar, que pretende vincular direta e mecanicamente a ideologia analisada realidade emprica - e, portanto, superficial, pois o conhecimento puramente emprico no pode ser seno aproximativo e parcial. A relao de uma formao ideal com a realidade uma via de mo dupla - o real tambm sofre os efeitos dos produtos ideolgicos, eles prprios criaes reais das categorias sociais em que surgem. Portanto, se temos uma formao social real como ponto de partida e ponto de chegada, poderemos abarcar tanto a gnese da ideologia estudada quanto a funo especfica que ela exerce na sociedade. Destaque-se: tais produes s podem ser compreendidas se remetidas base socioeconmica em que foram gestadas. A outra tendncia que repudiamos aquela que realiza a imputao pura e simples de significados ao objeto estudado. Buscamos pautar nosso trabalho pelo respeito forma de ser do objeto. Nossa tentativa de apreender o pensamento golberyano buscar, antes de tudo, a captura, ou seja, segundo Chasin, a reproduo analtica do discurso atravs de seus prprios elementos e preservado em sua identidade. Para tanto, continua ele, a submisso ativa aos escritos investigados sempre ponto de partida e passo fundamental, porque, assim, no se perde de vista a ntima vinculao dos textos trama real e ideal dos quadros reais a que pertencem, com a qual estabelecem liames complexos de confluncia e ruptura (Chasin, 1995:346). Cabe-nos, portanto, deixar falar o autor. Assim, s vezes abusaremos de citaes, mas sero elas imprescindveis para refazer o percurso intelectual seguido por Golbery. *** Outro ponto que queremos deixar desde j esclarecido a percepo da ditadura militar implantada em 64 como uma autocracia bonapartista. As duas principais obras de Golbery foram escritas antes do ltimo perodo militar, e esse um dos motivos pelos quais no pretendemos fazer um estudo histrico detalhado desta poca. Entretanto, uma comparao do pensamento do general com as realizaes do governo militar permite concluir por muitas coincidncias. Obviamente, tambm havia discordncias algumas maiores, outras menores; contudo, pela prpria participao ativa do general Golbery em vrios dos governos ps-64, coerente concluir que ele influenciou bastante o processo. E, o que mais importante, tal atuao histrica coaduna-se com os seus escritos. Pelas caractersticas da atuao particular do general - que, insistimos, tem muito em comum com a atuao mais geral dos prprios governos da ditadura e consentnea com sua prpria teoria -, pudemos qualificar o produto de seu trabalho como ideologia bonapartista. Diferentemente das formulaes analticas de cunho liberal, nas quais o fenmeno bonapartista concebido como procedimento poltico, superestrutural, da direita autoritria, seguiremos a apreenso marxista do fenmeno. A categoria bonapartismo, como se sabe, foi estudada por Marx principalmente nO Dezoito Brumrio de Lus Bonaparte. Pensado inicialmente para o caso francs de Napoleo III, o prprio Marx o estendeu Alemanha bismarckiana. Em ambos os pases, o contexto histrico caracterizava-se pelo desenrolar de momentos extremamente contraditrios e agudos: expanso e crise econmica, guerra civil e internacional, represso brutal e crescimento do movimento operrio, explicitao e intensificao da luta de classes. nessa situao que o bonapartismo aparece como forma especfica de dominao poltico-econmica da contra-revoluo em curso. Ao estudar o fenmeno, Engels disse acreditar que o bonapartismo a verdadeira religio da burguesia moderna, pois Vejo cada vez mais que a burguesia no foi feita para reinar diretamente, por conseqncia /.../ uma semiditadura bonapartista torna-se a forma normal (Apud Rago, 1998:17). Seguindo essa linha, pensadores marxistas como Gramsci,

19 Lnin e Trotsky passaram a utilizar a categoria de bonapartismo (ou cesarismo) como recurso analtico, para alm da referncia a um caso histrico. A categoria do bonapartismo refere-se, grosso modo, a um tipo de dominao burguesa em que o poder poltico no exercido diretamente pela burguesia, mas delegado a uma fora militar, que o absolutiza. Com essa hipertrofia do executivo, o poder legislativo sofre violenta represso, at mesmo quanto sua existncia. Marx, referindo-se ao caso francs, citava a mquina de guerra nacional contra o trabalho e acrescentava que, Na sua ininterrupta cruzada contra as massas produtoras, ela foi forada, contudo, no s a investir o executivo de poderes de represso continuamente acrescidos mas, ao mesmo tempo, a despojar a sua prpria fortaleza parlamentar - a Assemblia Nacional - de todos os seus meios de defesa, um aps outro, contra o executivo (Apud Rago, 1998: 16). Manter a supremacia do capital sobre o trabalho, no obstante declarando-se a favor de todas as classes sociais, continua Marx,
era a nica forma de governo possvel num tempo em que a burguesia j tinha perdido a faculdade de governar a nao e a classe operria ainda a no tinha adquirido. /.../ Sob seu domnio, a sociedade burguesa, liberta dos cuidados polticos, atingiu um desenvolvimento inesperado at para ela prpria. A sua indstria e o seu comrcio expandiram-se em dimenses colossais; a burla financeira celebrou orgias cosmopolitas; a misria das massas era contrabalanada por uma exibio sem pudores da luxria sumptuosa, meretrcia e degradante. (Apud Rago, 1998:16)

O Estado bonapartista leva ao paroxismo a tendncia, inerente ao prprio Estado, de se distanciar da sociedade, apresentando-se como representante direto da nao, como rbitro imparcial, que est acima dos interesses divergentes das classes. No entanto, essa aparente imparcialidade falsa, uma vez que o Estado bonapartista governa em funo dos interesses das classes dominantes - de seus interesses histricos, ainda que em contraposio aos seus interesses imediatos. Assim, como declara Carlos Estevam Martins,
o que distingue o fenmeno bonapartista no o fato de o Estado ter sido dotado de uma maior ou menor capacidade superordenadora da sociedade. Isso no fundamental. O que tpico das situaes bonapartistas que a capacidade de iniciativa da autoridade governamental fica, em grande parte, desligada das volies especficas e imediatas das classes dominantes ou de qualquer de suas partes componentes (Apud Rago, 1998:17).

Em outros termos, Esta forma da dominao autocrtico-burguesa constitui-se num domnio exercido de modo indireto pelo conjunto da burguesia, pelas armas, subjugando, castrando ou atrelando os poderes legislativo e judicirio (Rago, 1998:15). por isso que Marx acrescentou que esta maneira de manter sob controle os produtores pode ser considerada como a ltima forma, degradada, a nica possvel desta dominao de classe, e que ela to humilhante para a prpria burguesia quanto para a classe operria que mantida sob ferros. (Apud Rago, 1998:16) Perceber a ditadura militar instaurada no Brasil em 1964 como bonapartista no significa, de maneira nenhuma, um transplante do conceito francs. Utilizada como recurso analtico, a categoria de bonapartismo no impede a observao de disparidades com relao aos casos clssicos, francs e alemo. Trotsky ressaltou um deles. Segundo ele, na forma clssica de expanso e crescimento econmico capitalista, o bonapartismo apresentou-se como regime pessoalizado, forte, duradouro e viabilizador dos empreendimentos burgueses; mas na

20 fase decadente ele no mais cumpre suas funes de preservao de um equilbrio entre dois campos irreconciliveis, no tendo mais vitalidade para conter as contradies sociais, tornando-se obsoleto e limitado. Acresa-se que, no caso brasileiro, a ditadura bonapartista foi despersonalizada, no sentido de que no houve um indivduo poderoso, aventureiro e oportunista no comando do processo. De acordo com Chico de Oliveira, aqui, Bonaparte, isto , as Foras Armadas, emergem como rbitros de uma situao que politicamente havia chegado a um impasse, cuja raiz deve ser buscada na assimetria entre a diferenciao da estrutura social e o seu registro, ao nvel dos processos polticos e, por fim, na estrutura do poder, no Estado (Apud Rago, 1998:16). Outra diferena do caso brasileiro: aqui, o papel de massa de manobra que sustenta os interesses do capital, tambm caracterstica do bonapartismo, foi desempenhado por amplos setores das camadas mdias, tanto no seu plo tradicional quanto no seu plo moderno, em contraposio ao caso francs - em que foi desempenhado pelo campesinato. No decorrer da histria republicana brasileira, a democracia foi uma alternativa incogitada - a dominao burguesa se deu ora por uma autocracia institucionalizada, ora pelo bonapartismo. Em 1964, segundo Ricardo Antunes, A alternativa bonapartista mostrou-se, uma vez mais, como a soluo possvel para que as diferentes fraes da burguesia - incluindo tambm a frao monopolista estrangeira - pudessem preservar a dominao do capital (Antunes, 1988:19). Assim, Em 64 houve o rearranjo no bloco de poder que articulou vrios setores dominantes, desde aqueles vinculados ao campo, at os industriais, financeiros etc., tendo como ncleo predominante os interesses dos monoplios e das finanas internacionais (Antunes, 1985:34). Com tal rearticulao e livres das preocupaes polticas, aqueles setores dominantes alcanaram um intenso desenvolvimento econmico. Como assinalou Chico de Oliveira, a poltica econmica da ditadura caracterizou-se pela busca incessante de consolidar e aperfeioar, e sedimentar de forma mais acabada, os contornos de um controle monopolstico da economia brasileira, ao nvel das foras produtivas e, do outro lado, dando novos saltos no processo de acumulao, estabelecendo uma nova relao do trip com as classes sociais dominadas (Apud Rago, 1998:16). Assim, a superexplorao da fora de trabalho, tambm reflexo da tendncia exclusivista da essencialidade nacional, foi aqui reproduzida, embora sob formas mais sofisticadas.

Metodologia de Trabalho

Tendo como inteno original realizar uma leitura imanente dos textos do general Golbery, esforamo-nos por deslindar os ndulos centrais do seu pensamento. leitura inicial dos textos seguiu-se outra, em que foram destacados os conceitos e/ou temas mais recorrentes e mais importantes nas tematizaes do general. Ao depois, as diversas manifestaes de Golbery sobre cada um destes conceitos foram agrupadas em aproximadamente setenta grandes temas - que iam de segurana nacional a dialtica, de guerra fria a cincias, entre muitos outros. Em seguida, procedemos a uma reconstruo do iderio golberyano. Esta reconstruo foi feita tema por tema, de modo que ficou de si mesma evidente a importncia prpria a cada um deles. Alguns, pela menor relevncia e em benefcio da conciso, foram eliminados. A maioria foi sendo rearticulada, j em sua dimenso efetiva, ao todo do pensamento do general. Nessa altura do processo, preocupamo-nos em dar voz aos prprios escritos, explicitando

21 como os ndulos da ideologia golberyana se articulavam entre si. Buscamos nos pautar na fidelidade - ainda que crtica - aos escritos do general. Nosso trabalho mantm-se fortemente vinculado aos dois textos citados de Golbery, mas muitos outros autores colaboraram (ainda que quando equivocados) para chegar ao resultado final. A tese de Rago, A Ideologia 1964: os Gestores do Capital Atrfico, a dissertao e a tese de Ester Vaisman, tratando do tema candente da ideologia, o estudo de Maria Selma Rocha sobre a ESG e as reflexes de Jos Chasin acerca da realidade nacional e da resoluo metodolgica marxiana foram aqueles que mais influenciaram nosso trabalho.
Estrutura da Dissertao

No Captulo I, abordaremos a preocupao do conservadorismo brasileiro com o que poderamos chamar questo nacional. Suas tematizaes a respeito ganharam relevncia ao ser reivindicadas por muitos pensadores das geraes posteriores. Entre aqueles que se apropriaram e retrabalharam a herana do conservadorismo destaca-se Golbery. A herana reivindicada, muitas vezes, explicitamente, mas, mesmo quando no explicitada, est presente, subjacente s concepes golberyanas. Dentre os expoentes desse grupo, abordaremos o pensamento de Oliveira Vianna, Azevedo Amaral e a apropriao retransformada deles por Guerreiro Ramos, alm de Ges Monteiro. Os trs - Ramos excludo - tiveram, sem a menor sombra de dvida, larga influncia no pensamento dos militares que ascenderam ao poder com o golpe de Estado de 1964. O terceiro, utilizando-se das reflexes dos seus antecessores, procurou redirecion-la para o nacionalismo trabalhista. Ademais, inclui entre suas preocupaes a segurana nacional, tema basilar do pensamento golberyano. Ainda neste captulo, trataremos da ESG. sabida a grande participao de Golbery no processo de criao da ESG e o quanto fecundou a doutrina da Escola com suas reflexes. Procuraremos abordar as grandes caractersticas da doutrina esguiana, procurando descobrir similitudes e dessemelhanas com o pensamento de Golbery. No Captulo II, abordaremos os conceitos que perfazem a estrutura do pensamento golberyano, sobre os quais ele constri sua viso de mundo. Tais conceitos so aqueles que, nas leituras realizadas dos textos e propriamente no levantamento de temas importantes, apareceram como os basilares de seu pensamento. O primeiro deles o medo, ou a insegurana. Essa a base - profundamente hobbesiana - de todo o arcabouo terico de Golbery. Entre as outras noes que abordaremos estaro nao, Estado, ocidente, liberdade, elite e pensamento planejado, alm da geopoltica e da estratgia. No Captulo III, trataremos propriamente da viso de mundo de Golbery: os reflexos geopolticos de seu pensamento em relao ao mundo atual; sua opo pelo ocidente e a reflexo sobre a guerra total; a relao entre cooperao externa e soberania; a anlise que faz do contexto internacional do momento; a terceira via - o planejamento democrtico - como alternativa anomia e ao totalitarismo. No Captulo IV, discutiremos a estratgia, cujo principal montador foi Golbery, da auto-reforma do ltimo regime ditatorial brasileiro. O captulo se inicia com uma aproximao terica do tema, em que buscamos descartar a noo de abertura democrtica. Passamos, depois, com especial ateno, pela conferncia proferida na ESG em 1980, dando nfase para a viso golberyana da lei dos rendimentos decrescentes, a teoria do retardo cultural e a viso histrica da centralizao e descentralizao no Brasil. A forma como Golbery faz o entrelaamento de tais temas na tentativa de explicar, pela prpria lgica histrica, a necessidade da abertura e os principais momentos da estratgia da abertura (questo do

22 pacote de abril, da reforma partidria e outros) tambm esto presentes. Damos especial ateno, ainda, sua viso dos partidos como os fruns adequados de participao poltica. No Captulo V, finalizaremos a dissertao com a sada de Golbery do governo Figueiredo, relatando as vrias verses a respeito. Tambm reproduzimos as impresses golberyanas de temas candentes como a campanha pelas eleies diretas.

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Captulo I - A Misria Brasileira: O Capital Atrfico e sua Apreenso pelo Conservadorismo

1 - BRASIL: UM PAS PRECOCEMENTE DECADENTE
Aqui, tudo parece que ainda construo e j runa. Caetano Veloso

o pretendemos aqui retomar teorizaes sobre a formao histrica brasileira, cujas mincias no cabem neste captulo. Vamos apenas relembrar, generalizadamente, algumas caractersticas singulares da essencialidade nacional, com vistas a situar as observaes sobre o pensamento conservador, pois no h como compreender essa manifestao ideolgica sem referir a realidade que a gestou. E, apenas como um apontamento, relembremos, com Chasin, a importncia do conhecimento da realidade brasileira, cujo estudo tem incorrido amide em um dos equvocos:
De uma parte, o insatisfatrio entendimento do que venha a ser o carter universal do fenmeno capitalista conduziu a refletir simplesmente com atributos e leis genricas e a constatar a ocorrncia necessria destes, a qualquer custo, no interior das fronteiras nacionais. /.../ De outra parte, uma forma de incorreo mais recente tem hiper-acentuado as singularidades, mas, tomando-as simplesmente como dados empricos, isto , despojados por inteiro de qualquer espessura ontolgica, /.../ faz com que a universalidade concreta seja completamente diluda. (Chasin, 1977:26)

Da mesma forma, Florestan Fernandes insistiu na especificidade da formao socioeconmica brasileira, ressaltando que no h um nico modelo bsico democrticoburgus de transformao capitalista. Os requisitos para a transformao, disse ele, entram em interao com elementos econmicos e extra-econmicos da situao social, e esta hibridez que delimita como se concretizar, histrico-socialmente, a transformao capitalista, qual o padro concreto de dominao burguesa e quais as probabilidades de a revoluo burguesa absorver os requisitos centrais da transformao capitalista. Desconhecer as diferenas dos casos clssicos com os casos comuns e os casos atpicos leva a uma mistificao e substancializao da histria, segundo Florestan. No se pode olvidar que o evolver do capital concretiza vrios tipos de capitalismo, no que j foi propriamente denominado desenvolvimento desigual e combinado. Sendo assim, as caractersticas gerais, comuns ao sistema, no existem seno de forma abstrata, mas constituem, segundo Marx, um conjunto complexo de determinaes diferentes e divergentes. , pois, com o fito de situar, ainda que a grandes traos, o bero gentico do pensamento conservador que fazemos as rpidas notas abaixo. Desde os idos de 1977, Chasin, por sobre os ombros das teorizaes excepcionais de um Caio Prado Jnior, para citar apenas um exemplo, estudava como a formao histricosocial brasileira se ps por um caminho especfico, que ele denominou via colonial de

24 objetivao do capitalismo 7 . So caractersticas deste caminho particular, entre outras, uma estrutura agrria em que decisiva a presena da grande propriedade de origem colonial, cuja produo est voltada para o exterior; as modificaes so realizadas pelo alto, conciliando interesses, sem a participao do povo e excluindo as rupturas superadoras; o desenvolvimento das foras produtivas bem mais lento do que nos pases clssicos como Frana e Inglaterra e, ainda mais, a implantao e progresso do capitalismo industrial ultraretardatria, sofrendo em seu desenvolvimento obstaculizaes e refreamentos de todo tipo; esse retardo histrico e esse desenvolvimento retrado aditam-se a um inacabamento de classes, em que a burguesia deixa de realizar suas tarefas histricas e os trabalhadores precisam tomar como suas as bandeiras que outrora estavam nas mos da burguesia revolucionria, como a democracia. Como caracterstica geral, podemos afirmar que a constituio do capitalismo industrial brasileiro ocorreu ultra-retardatariamente, de forma lenta e sem entrar em contradio com a velha ordem. Nosso capital, atrfico, porque incompleto e incompletvel, em seu trnsito para uma entificao verdadeiramente capitalista,
conservaria as determinaes dessa estrutura agrria, organizao produtiva com base no latifndio com seu sentido da colonizao, voltado para fora. Da o desenvolvimento restringido do mercado interno e o lento caminhar do processo industrial, o carter retardatrio do desenvolvimento das foras produtivas materiais, com a excluso de grande contingente da populao brasileira da vida nacional (Rago, 1998:20).

Esse surgimento estruturalmente subordinado ao mercado capitalista europeu ento em constituio condicionou o fato de que a burguesia brasileira seja subordinada s burguesias dos pases do centro capitalista. Ela jamais buscou, por meio de um processo revolucionrio de massas, sua emancipao econmica e poltica, mesmo - ou melhor dizendo, principalmente - em pocas mais recentes da histria brasileira. Darcy Ribeiro j chamava a ateno para o fato de que a industrializao recolonizadora - promovida pelos capitais internacionais, diretamente ou em associao com os capitais nacionais - atua nos pases subordinados como fator de atraso: embora ocorra a modernizao reflexiva da produo e a substituio de importaes, o excedente econmico aqui produzido remetido para fora e uma classe orgnica burguesa d lugar a um empresariado gerencial cujo compromisso remeter o lucro a seus patres (Apud Rago, 1998:31). A classe dominante brasileira atua, portanto, como um agente da dominao externa - irm siamesa dos que nos exploram a partir de fora e que no tm nenhuma razo especial, alm da continuidade e do crescimento do botim, para desejar a vigncia de uma Repblica democrtica; e compartilha com eles a responsabilidade pelo neocolonialismo imperante (Apud Rago, 1998:33). Florestan Fernandes reitera que, no caminho do Brasil ao capitalismo industrial, o imperialismo que tem o papel hegemnico /.../. O capital estrangeiro moderniza mas, ao mesmo tempo, retira da modernizao o seu contedo e sentido revolucionrio. E com isso temos uma sociedade que pode avanar no sentido do desenvolvimento capitalista, mas raramente pode associar esse desenvolvimento capitalista a uma democracia que estenda a todos as liberdades fundamentais dos cidados, as garantias sociais (Fernandes, 1989:137). Florestan Fernandes ressalta tambm que, no caso da industrializao brasileira, as mudanas espraiam-se por um longo perodo de tempo, determinando um padro de industrializao que sofre oscilaes conjunturais, intermitncias estruturais e inconsistncias
7

- Ver Chasin (1977); Chasin (1989).

25 institucionais, ou seja, uma fraco impulso intrnseco de diferenciao, acelerao constante e universalizao do crescimento industrial (Fernandes, 1981:298). A esse respeito, registrese que o processo de entificao histrica do capital industrial no Brasil, durante toda a primeira metade do sculo, no conseguiu ultrapassar o nvel da incipincia. No final da dcada de 70 no havia se completado, e a questo da produo de bens de capital ainda estava na ordem do dia. Mais detalhadamente, Florestan ressalta como caracterstica de nosso processo de constituio industrial uma industrializao que se atrasa, indefinidamente, no tempo, que se descola do desenvolvimento do mercado interno, da revoluo agrria e da revoluo urbana, ou que se d sem que tais processos adquiram certa velocidade e intensidade, problemas cuja tentativa de soluo leva ao intervencionismo estatal e ao empuxo externo dos centros dinmicos capitalistas, de forma que a revoluo nacional continuaria a ser dimensionada pela infausta conjugao orgnica de desenvolvimento desigual interno e dominao imperialista externa. Por outro lado, a ecloso industrial continua submetida largamente ao velho modelo dos ciclos econmicos, to destrutivo para o desenvolvimento de uma economia capitalista integrada. Os surtos industriais e de crescimento econmico rpido expunham essas classes e estratos de classe, arcaicos ou modernos, a uma intensa e incontrolvel avidez por oportunidades e vantagens estratgicas novas, dificultando a constituio de uma organicidade e uma universalidade de interesses. Essa ausncia de organicidade compele as classes burguesas a se omitirem ou, mesmo, a se anularem diante de certas tarefas prticas especificamente burguesas. Em outros termos, da convergncia artificial e necessariamente contingente de interesses resulta um tipo especial de impotncia burguesa que faz convergir para o Estado nacional o ncleo do poder de deciso e de atuao da burguesia. O que esta no pode fazer na esfera privada tenta conseguir utilizando como sua base de ao estratgica, a maquinaria, os recursos e o poder do Estado. Coutinho tambm salienta que, no Brasil, O Estado foi sempre o protagonista desse processo de modernizao e a burguesia /.../ revelou, ao longo de praticamente toda a histria brasileira ps-30, que estava muito presa a seus interesses econmico-corporativos e incapaz de chegar ao nvel da conscincia tico-poltica. /.../ [a] privatizao do estado aqui assume caractersticas patolgicas (mesmo no sentido de um estado capitalista) (Coutinho, 1967:142). Sem o controle absoluto do poder, que as classes burguesas podem tirar da constituio deste Estado, acrescenta Florestan Fernandes, seria inconcebvel pensar-se como eles conseguem apropriar-se, com tamanha segurana, da enorme parte que lhes cabe no excedente econmico nacional; ou, ainda, como elas logram dissociar, quase a seu bel-prazer, democracia, desenvolvimento e revoluo nacional (Fernandes, 1981:352). A ausncia de uma revoluo democrtico-burguesa impediu que a burguesia brasileira forjasse uma identidade nacional e se projetasse para todas as classes sociais, dado que, no estava dotada de uma dinmica prpria que pudesse efetivamente representar os interesses das demais categorias sociais (Rago, 1998:17). Por outros termos, a burguesia brasileira, pela sua estruturao histrica, no pode realizar seu papel de universalizante poltico - no pode se ver e assumir, na particularidade de seus interesses, como representante de todas as categorias sociais, da sociedade em seu conjunto (Chasin, 1982:11). Essa uma causa e, ao mesmo tempo, um efeito do que observou Carlos Nelson Coutinho:
No Brasil, bem como na generalidade dos pases coloniais ou dependentes, a evoluo do capitalismo no foi antecedida por uma poca de iluses humanistas e

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de tentativas - mesmo utpicas - de realizar na prtica o cidado e a comunidade democrtica. Os movimentos neste sentido, ocorridos no sculo passado e no incio deste sculo, foram sempre agitaes superficiais, sem nenhum carter verdadeiramente nacional e popular. (Coutinho, 167:142)

O outro lado da moeda , portanto, que, na ausncia de uma revoluo democrticoburguesa, as massas no tiveram oportunidade de participar do processo de constituio de uma nova ordem. Com isto, no puderam minimamente interferir nem fazer valer algumas de suas reivindicaes. Pelo contrrio, constituindo-se num momento em que as lutas de classe j se punham no plano internacional, a burguesia do capital atrofiado brasileiro apavorou-se das revolues, aliou-se aos representantes do historicamente velho, as antigas classes dominantes, e operou no interior da economia retrgrada e fragmentada. Quando as modificaes polticas se faziam imprescindveis, eram realizadas pelo alto, compondo e recompondo com as velhas classes atravs de conciliaes e concesses mtuas, sem que o povo participasse das decises e impusesse organicamente sua vontade coletiva (Coutinho, 1967:142). No estamos na era das burguesias conquistadoras, ressalta tambm Florestan Fernandes (Fernandes, 1981:295). Tanto as burguesias nacionais da periferia quanto as burguesias das naes capitalistas centrais e hegemnicas /.../ querem: manter a ordem, salvar e fortalecer o capitalismo, impedir que a dominao burguesa e o controle burgus sobre o Estado nacional se deteriorem. As burguesias que s agora chegaram ao vrtice de suas possibilidades - e em condies to difceis - viram-se patrocinando uma transformao da ordem que perdeu todo o seu significado revolucionrio (Fernandes, 1981:295) e, para as outras classes, encarna a prpria contra-revoluo. Desprovidas de qualquer romantismo poltico, revolucionrio ou conservador, identificam imediatamente a revoluo nacional com seus alvos particularistas (Fernandes, 1981:301). S essencial a defesa e a promoo de interesses comuns da burguesia nacional e internacional, filtrando e ajustando os interesses divergentes de tal forma que seu impacto revolucionrio drasticamente reduzido ou mesmo anulado. A somarse sua insensibilidade perante os problemas nacionais vem este fato extremamente importante de que os setores conservadores da burguesia detm o monoplio de selecionar e introduzir as modificaes historicamente necessrias. Outro fato importante destacando por Fernandes: nas naes capitalistas dependentes, as ideologias e utopias das classes dominantes deixam de sofrer controle societrio eficiente, pois, com freqncia, as demais classes no possuem condies de barganha e de autodefesa dentro da ordem. A esse fator acrescente-se que as burguesias brasileiras no tinham como servir-se do radicalismo burgus para captar a simpatia e o apoio das massas populares sem ao mesmo tempo aprofundar seus conflitos entre si e, o que era mais importante, sem arriscar os fundamentos materiais e polticos da ordem social competitiva sob o capitalismo dependente e subdesenvolvido (Fernandes, 1981:333). Assim, em concluso e em resumo, Ao invs das velhas foras e relaes sociais serem extirpadas atravs de amplos movimentos populares de massa, /.../ a alterao social se faz mediante conciliaes entre o novo e o velho, ou seja, tendo-se em conta o plano imediatamente poltico, mediante um reformismo pelo alto que exclui inteiramente a participao popular (Coutinho apud Rago, 1998:21). Dessa forma, em primeiro lugar pela sua atrofia estrutural, bem como pela poca em que surge, a burguesia nacional mantm-se permanentemente em conflito aberto com as categorias sociais de baixo, ao mesmo tempo em que se subsume ou concilia com os outros setores sociais dominantes.

27 De horizontes estreitos, de potncia auto-reprodutiva limitada, o capital atrfico no pde assumir um projeto nacional em que estivessem integradas as categorias sociais subalternas. Diante dessa especificidade histrica - a misria brasileira -, faz-se necessrio verificar concretamente a possibilidade da efetivao de uma democracia em moldes liberais. Em condies de incompletude de classes e de um capital ele mesmo atrofiado, h, pois, que pesquisar as formas prprias (e possveis) da dominao burguesa. De instaurao ultra-retardatria, de progresso lento e estruturalmente atrofiado, resultado da conciliao com as foras sociais representantes de formas inferiores e da subsuno ao capital hegemnico mundial, o capitalismo brasileiro capaz de realizar apenas uma modernizao excludente, em que o progresso social est radicalmente dissociado da evoluo nacional. Nas palavras de Florestan Fernandes, a revoluo econmica foi dissociada da revoluo nacional, sendo esta relegada a segundo plano. Pe-se portanto uma entificao social que, quanto mais se moderniza, mais exclui as massas do gozo da modernidade poltica e social. Esse tipo de capitalismo que imola a sociedade brasileira o capitalismo possvel por aqui, um capitalismo selvagem e difcil, cuja viabilidade se decide, com freqncia, por meios polticos e no terreno poltico. Ainda Florestan Fernandes observou, de forma muito percuciente, que, no Brasil, instituiu-se uma forte associao racional entre desenvolvimento capitalista e autocracia. /.../ A noo de democracia /.../ se restringe aos membros das classes possuidoras que se qualifiquem, econmica, social e politicamente, para o exerccio da dominao burguesa (Fernandes, 1981:292). Tal excluso d-se pelo expediente da autocracia, esteja ela institucionalizada ou se exponha em seu carter inteiramente bonapartista, ambas prescindindo e obstaculizando a participao poltica das massas, como tantas vezes a histria demonstrou. E vai alm: retira delas o poder de participar at mesmo do mercado capitalista, cujo acesso lhes impedido pela prtica perversa da superexplorao da fora de trabalho. Em outros termos, Desprovido de energia econmica e por isso mesmo incapaz de promover a malha societria que aglutine organicamente seus habitantes, pela mediao articulada das classes e segmentos, o quadro brasileiro da dominao proprietria completado cruel e coerentemente pelo exerccio autocrtico do poder poltico. (Chasin, 1989:17) O capital atrfico acabou consubstanciando um capitalismo tambm atrofiado, incompleto, subordinado aos interesses de fora, em que a lgica no trato com a imensa maioria da populao a modernizao excludente e a violncia estrutural. No Brasil, a dominao burguesa oscila entre dois plos: a truculncia de classe manifesta e a imposio de classe velada ou semivelada , oscila da autocracia institucionalizada ao bonapartismo mais repressor - aqui, a autocracia burguesa institucionalizada a forma da dominao burguesa em tempos de paz, o bonapartismo sua forma em tempos de guerra (Chasin, 1982:11). So essas as duas formas possveis de domnio de uma burguesia para quem toda transformao uma ameaa, mesmo aquelas transformaes historicamente prprias a seu gnero - pois aqui as transies, medida que o capitalismo amadurece e se moderniza, ficam mais difceis, perigosas ou, at, cataclsmicas (Fernandes, 1981:300). A burguesia brasileira No optou pela autocracia, nem a covardia foi de sua livre escolha, meramente assumiu sua misria. (Chasin, 1986:5) Nestas condies, parece que uma democracia efetiva torna-se reivindicao dos trabalhadores, que teriam a tarefa de suplantar a autocracia burguesa correspondente ao capital atrfico. Em resumo, a objetivao pela via colonial do capitalismo
particulariza formaes sociais economicamente subordinadas, socialmente inconsistentes e desastrosas, politicamente instveis em sua natureza autocrtica e

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culturalmente incapacitadas de olhar para si com os prprios olhos e traar um horizonte para seus dilemas especficos na universalidade dos impasses mundiais. Sob os influxos e refluxos do capital metropolitano, produzem e reproduzem a misria de sua incontemporaneidade, armada sobre a incompletude de seu capital (Chasin, 1989: 39).

A misria brasileira, aqui to sumariamente descrita, est na base do surgimento do pensamento conservador do incio do sculo. Lembre-se de que o capitalismo brasileiro em crise precisava ento de uma alternativa para a ordem agroexportadora predominante, amplamente caracterizada pela alternao entre ciclos econmicos expansionistas e a conseqente decadncia posterior. Sabe-se da importncia que tiveram as relaes imperialistas tanto para o auge quanto para o declnio daquela economia, especialmente no que tange intermediao comercial e financeira. apenas no interior da dialtica do auge e decadncia concomitante do sistema agroexportador que a industrializao brasileira se pe. E pe-se somente como uma das possibilidades dentre as alternativas de diferenciao de atividades buscadas em face da crise do caf. A Revoluo de 30 vem marcar o fim da hegemonia agroexportadora e o incio da predominncia da indstria, ainda que apenas em 1956 a participao da indstria na renda interna ultrapasse a da agricultura. A partir da, o processo de industrializao se d de forma mais contnua, sem as tantas interrupes da histria de vrios comeos que foi a da industrializao brasileira. O que se quer ressaltar, a traos largos, a presena efetiva, no obstante incipiente e ultra-retardatria, dos momentos iniciais mais significativos da objetivao do verdadeiro capitalismo no Brasil, processo que demandaria ainda muitas dcadas para se completar. nesse contexto que o pensamento conservador se desenvolve. Tematizando a respeito da misria brasileira, dividia-se j ento em duas grandes correntes: o industrialismo e o ruralismo, alm das combinaes entre as duas. Desta ltima corrente, refira-se apenas o integralismo e um pensador do porte de Alberto Torres: a existncia de uma to forte e influente proposta de freagem do desenvolvimento industrial mostra ainda uma vez como a via colonial no se predispe para o progresso. Da corrente industrialista h vrios nomes, e seu pensamento ser apropriado e retrabalhado por vrias geraes. A de Golbery estava entre elas.

2 - O CONSERVADORISMO BUSCA SOLUES

O que j foi denominado herana do conservadorismo, o saldo do pensamento de Oliveira Vianna, Alberto Torres e Azevedo Amaral principalmente, foi explicitamente apropriada pelos castelistas. Geisel dizia que lera - e muito - Oliveira Vianna e Golbery referia-se a este como o mestre. As diferenas existem, como na questo industrial, da segurana nacional (SN) e outras, relativas ao momento em que os membros da Escola Superior de Guerra se apropriaram daquele pensamento, adaptando-o realidade sobre a qual buscavam interferir. Mas, para alm das citaes explcitas, a estrutura do pensamento dos militares sorbonistas (contrapostos linha dura) est assentada justamente no pensamento conservador desses autores. Antes de mais, importante que se ressalte um avano do pensamento conservador que, fazendo do vcio (a atrofia do capital nacional) uma virtude, props-se, ao menos, a tematizar

29 a natureza do capitalismo brasileiro e as reais probabilidades de objetivao de uma democracia de tipo liberal. E preciso referir isso porque, como, lembra Rago,
Na outra ponta, a esquerda deixou passar batido a crtica real das possibilidades de uma democracia liberal, dada a forma particular de ser e ir sendo de nossos proprietrios na construo do capitalismo brasileiro. /.../ O pensamento conservador ps em tela, mesmo com seu filtro ideolgico, a questo das condies de possibilidade da democracia em nossa formao histrica. (Rago, 1998:268)

O pensamento conservador articulou a percepo da incapacidade das classes proprietrias de pr-se acima de seus interesses mesquinhos, a fim de impulsionar a nao, com a percepo de um fracasso do liberalismo em seu bero gentico europeu e norteamericano. A isso, somou-se ainda o surgimento, na Rssia, de uma sociedade que buscava se contrapor ao capitalismo cristo ocidental - cuja responsabilidade se atribua, em grande medida, ao prprio fracasso do liberalismo. Havia, portanto, que repensar o liberalismo - e, por conseqncia, a democracia - nos moldes em que ela existia no mundo ocidental. No bastasse essa percepo, o pensamento conservador apreendia, corretamente, que estruturas socioeconmicas geneticamente diferenciadas produzem diferentes superestruturas. Contudo, sem jamais pr em tela a superao de nossa misria por uma democracia do trabalho, os pensadores conservadores propugnavam, ao contrrio, uma interpenetrao entre os valores da modernidade ocidental e aqueles da nossa tradio histrica. Procuravam, pois, ir para alm da simples reivindicao de um transplante carbonrio da democracia liberal de tipo europeu e, em busca dessa autntica identidade na-cional, preconizavam uma revoluo conservadora. Um dos expoentes do pensamento conservador brasileiro Azevedo Amaral. Sua influncia significativa e chega a constituir a chave para a inteleco do pensamento de uma parcela da intelectualidade brasileira. A crtica de Amaral vai no sentido de rebater uma concepo terica do pensamento poltico /.../ atribuindo ao regime liberal-democrtico um valor absoluto e universal a ser praticado igualmente por todas as naes. Contra essa orientao o esprito contemporneo reage com a afirmao da idia nacional, ou seja, cada povo sendo uma entidade sociolgica peculiar, deve elaborar as suas instituies sociais e polticas, obedecendo apenas inspirao de seu gnio nacional (Ttora, 1991:88). Segundo este autor, nosso destino histrico estava irremediavelmente ligado formulao de um Estado autoritrio. O liberalismo , para ele, uma utopia, cuja iluso consiste em propiciar a igualdade de oportunidades, inerente ao regime democrtico, s que travestido de uma igualdade abstrata (Apud Rago, 1998:271). Em sua defesa desse igualitarismo meramente formal, o liberalismo mascara as lutas intestinas da realidade, fazendo crer que representa a vontade da nao toda. Mas, na realidade, pugna por interesses particulares, legitimando-se perante a nao procedimentalmente, por meio do processo eleitoral. Ademais, ajunta o autor, constitui a substituio da fora pela astcia no exerccio do poder poltico, uma engenhosa arte de governar inspirada pelo egosmo das elites que apenas d s massas a impresso de que decidem algo importante. Sendo o sufrgio universal e a participao eleitoral das massas instrumentos dos grupos dominantes para legitimar-se, os partidos polticos representam a viga mestra da estrutura liberal-democrtica. Nessa organizao poder-se-ia encontrar a verdadeira essncia, o segredo da organizao e da disciplina das massas populares, de modo a encaminh-los segundo as diretrizes polticas traadas pelos verdadeiros dirigentes. Os partidos polticos cumprem, portanto, duas tarefas intimamente relacionadas: controlar os negcios pblicos

30 para cada setor dominante em particular e, simultaneamente, ao possibilitar a diviso das massas quanto a escolhas, impedir sua ao poltica unificada (Apud Rago, 1998:271). O liberalismo tambm no percebe que os membros da coletividade social exercem diferentes papis, de acordo com sua capacidade, e tm responsabilidades diferentes: uns tm o papel ativo de dirigentes, outros de instrumento de realizao dos objetivos daqueles. Para Azevedo Amaral as massas no so dotadas de uma conscincia prpria e articulada. Governar transcender o nvel instintivo e puramente sensvel da conscincia das massas (Ttora, 1991:106). A base da rejeio azevediana do liberalismo vai alm da constatao da instrumentalizao das massas pelas elites dirigentes. Segundo ele, o liberalismo desossa o Estado, retirando-lhe seu aspecto atuante e interventor. A pretenso do Estado liberal neutralidade econmica , segundo Amaral, uma medida de proteo contra abusos entre as diferentes fraes das classes dominantes e a preservao dos interesses comuns entre estas (Apud Rago, 1998:271). A proposta liberal inclui um momento de estabelecimento do que so esses interesses comuns, a fim de chegar noo de vontade geral da nao. Azevedo Amaral acredita que a formao brasileira impe dificuldades quase insuperveis para chegar a essa noo. Um territrio vasto, em que a populao encontra-se desarticulada e dispersa, portanto impossibilitada de realizar uma leitura da problemtica nacional, e uma legio de analfabetos sem as mnimas condies para se tornar eleitores so fatores histricos que condicionariam negativamente a aferio da vontade geral da nao. A melhor expresso da inadequao desse sistema com a realidade nacional , para ele, a generalizao da corrupo da democracia e das fraudes eleitorais. O fato de ainda sermos, segundo ele, um povo em formao, em que o caldeamento cultural necessita de um amadurecimento que redunde na predominncia do elemento branco sobre o africano ou indgena, contribui para complexificar mais a questo. Sua concluso clara: Fora do solo originrio e de um ou outro caso especial em que idntica eram a isotrmica poltica, a democracia liberal do sufrgio universal e da eleio direta redundou invariavelmente em lastimvel falncia (Apud Rago, 1998:272). Embora considere positivamente o fato de o totalitarismo divisar como indispensvel, para a soluo dos problemas da organizao da produo moderna, a atuao do Estado e o reforo do poder executivo, Azevedo Amaral rejeita tambm a absolutizao do poder dos rgos executivos e administrativos, que considera caracterstico desse fenmeno. Para ele, o Estado totalitrio nada mais que o prprio Estado liberal com sinal invertido: O que define o totalitarismo /.../ no , portanto, a extenso do poder estatal, mas a natureza compressiva, /.../ aniquiladora da personalidade humana e inibidora da iniciativa e liberdade do indivduo, que imprime s instituies um aspecto repelente, tornando-as to incompatveis com todos que prezam a dignidade do esprito (Apud Rago, 1998:273; Ttora, 1991:93). Esta apreenso foi assimilada por Golbery, como veremos 8 . Rejeitado o liberalismo como o totalitarismo, resta a Azevedo Amaral a opo pela parcela autoritria imanente organizao estatal, constituindo-se o Estado autoritrio no nico que est altura das tarefas que o mundo contemporneo exige sejam cumpridas. O aprofundamento e a extenso da interveno estatal, na esfera administrativa como na econmica e na social, , pois, inerente modernidade. Mais que isso, a expresso da prpria essncia do Estado e, por via de conseqncia, da democracia moderna. Situa-se distante da noo de totalitarismo. O Estado autoritrio busca, ao invs, a realizao do bem

Captulo II - As Bases do Pensamento Golberyano.

31 comum, pois est livre tanto das imposies formalistas do liberalismo quanto do totalitarismo anulador da personalidade humana. Por outro lado, Azevedo Amaral no concebia a possibilidade de durabilidade e estabilidade a qualquer forma de governo que ignore o consentimento dos governados e a importncia da representao. Contudo, a representao poltica que apregoa distingue-se daquela propugnada pelo liberalismo: era a substituio da fico igualitria do liberalismo democrtico pelo pronunciamento direto das foras ativas da sociedade, organizadas corporativamente, segundo interesses e preocupaes profissionais (Ttora, 1991:116). Tambm no pensamento de Oliveira Vianna encontramos o antiliberalismo como a pedra fundamental. A alternativa proposta baseia-se na defesa dos valores aristocrticos da tradio brasileira e na pregao por um Estado forte e centralizado. Oliveira Vianna percebia um descompasso entre o Brasil real e o Brasil artificial. Embora sendo nossas elites republicanas adeptas do idealismo utpico, o liberalismo era invivel em nosso pas, um modelo extico que desrespeita a imaturidade e formao especfica do povo brasileiro. O povo est despreparado e incapacitado para o regime democrtico. Os liberais, dessa forma, desrespeitavam a singularidade histrica do Brasil, marcado pela debilidade do conjunto das classes sociais, amorfas e inorgnicas. O Brasil no possui uma sociedade liberal, mas ao contrrio, parental, clnica, autoritria. Em conseqncia, um sistema poltico liberal no apresentar desempenho apropriado, produzindo resultados sempre opostos aos pretendidos pela doutrina. Alm do mais, no h um caminho natural pelo qual a sociedade brasileira possa progredir do estgio em que se encontra at tornar-se liberal (Apud Rago, 1998:275). Na busca de compreender a especificidade brasileira, o pensamento conservador tinha em comum a percepo do pas como uma nao informe e profundamente dividida. O povo inexistia organicamente, as elites estavam despreparadas e portanto a nao no estava altura das tarefas necessrias. Faz-se necessrio formar elites para que intervenham decisivamente no quadro nacional. A caracterstica brasileira da soluo pelo alto est justificada e reafirmada. Preconiza-se um Estado forte e intervencionista, a constituio de uma democracia orgnica em que as lutas de classe passassem ao largo. A inteno era que essa democracia orgnica incorporasse os diversos estratos sociais, a fim de solidificar a sociedade e harmonizar os interesses particulares. A paz social e a harmonizao de classes , assim, recorrente nesse discurso. Segundo Azevedo Amaral, no momento de uma crise histrica, fundamental a atuao das elites dirigentes, que, possuindo um projeto ideolgico, esto capacitadas para conduzir a coletividade sua destinao nacional. As revolues, dessa forma, promanam das elites, que mobilizam as massas para alcanar seus fins. As massas so seres passveis de controle, mas, quando deixadas a seus prprios impulsos, acabam sendo irracionais.
Segundo o idelogo estadonovista, h que distinguir entre uma autntica revoluo e simples sublevaes ou motins. As revolues verdadeiras emergem a partir de crises que abrem alternativas para as grandes mudanas histricas: a revoluo, como todas as crises de mutao que se operam na natureza, cristaliza em novas formas orgnicas da sociedade, pela eliminao de outras, as configuraes elaboradas em um dado momento histrico pela mentalidade das elites intelectualmente dirigentes. (Rago, 1998:273)

Oliveira Vianna concebia que, na contextura brasileira, a descentralizao do poder acabou por conduzir dissoluo de nosso carter nacional, de forma que hoje sofremos a ausncia de solidariedade e de conscincia social. O equvoco do idealismo utpico era

32 resultado da importao de idias estranhas nossa formao. O liberalismo preconizava a existncia em competio de indivduos como mnadas egostas que no punham reparo na constituio da nacionalidade e no tinham nenhum elo de sociabilidade. O remdio, em contraposio, era um idealismo orgnico, que resgatasse a essncia autntica do ser nacional, restaurar virtudes avoengas do Imprio, para sobre elas construturar a modernizao de nossas instituies polticas. Oliveira Vianna destaca a ausncia, no Brasil, de um destino comum, de uma finalidade, um programa, objetivado numa poltica nacional, que ela realiza por meio dos rgos do Estado e com os vrios recursos que a sua organizao de poderes pblicos pe nas mos dos homens das elites dirigentes (Apud Rocha, 1996:80). Na busca de resolver, compreender e contribuir para a soluo de tais problemas, Oliveira Vianna prope-se com vagar e tcnica os problemas do Estado moderno nas condies brasileiras e, por fim, Criou e propagou com insistncia o conceito de Poltica Nacional, a grande poltica que visa a objetivos maiores e mais durveis que os de um partido, regio ou tempo, mas refere-se ao conjunto da Nao e seus objetivos (Macedo, 1988:216). A solidariedade nacional, grande objetivo de Oliveira Vianna, representa, segundo Nilo Odlia,
uma unio nacional nascida no interior de uma populao consciente dos interesses coletivos nacionais, que deveriam sempre preponderar sobre os interesses individuais e particulares. Sua insistncia quase obsessiva em relao solidariedade social era a contrapartida, de sua perspectiva, de uma realidade histrica fortemente trabalhada por fatores naturais e sociais desagregadores, e na qual preponderam os interesses individuais e particularistas de pessoas ou de grupos. (Apud Rago, 1998:276)

A geografia brasileira, de to grandes dimenses, era tambm um fator desagregador, a contribuir para a ausncia de solidariedade social, dada sua ao centrfuga. o espao geogrfico que propicia a figura paradigmtica da nacionalidade, segundo Oliveira Vianna. O movimento oscilatrio entre centralizao e descentralizao reflete a necessidade de conciliao entre o princpio de unidade do poder poltico e a tendncia desagregadora e regionalista, num vasto territrio pobre de circulao e de organizao poltica. O federalismo republicano, nessas condies, retirava do centro seu poder centrpeto, acabando por liberar as disputas locais de cls, grupos, faces. Assim sendo, a descentralizao provoca o aprofundamento dos elementos negativos dispersivos e centrfugos. E mais grave isto ficava quando surgiam no cenrio novas foras (industriais, operrios, imigrantes) que escapavam ao controle do mundo rural. Paradoxalmente, Oliveira Vianna caracteriza a luta de classes como uma das maiores foras de solidariedade nos povos ocidentais e tambm como meio para educao cvica e para cultura poltica. Contudo, segundo ele, nosso ser social exclua o conflito como promotor do civismo e como ferramenta de desenvolvimento de nossa cultura poltica: esta tarefa aqui cabe ao Estado. O matuto arredio acreditava que nossa mentalidade afastava-se dos princpios e instituies liberais, na medida em que os elementos de nossa prpria realidade histrica nos aproximavam da mentalidade pr-capitalista. Era com esta que se poderia contar para o amortecimento das mazelas da modernizao capitalista no Brasil. Dessa forma, o Estado centralizador e autoritrio uma imperativo no s das condies naturais brasileiras, como tambm de nossa formao histrica. O modo de promover a unidade nacional seria viabilizar e aprimorar as instituies polticas brasileiras, a fim de objetivar um Estado forte e centralizado, moralizador e

33 pedaggico. A interveno do Estado teria de dar-se desenvolvendo uma poltica social voltada ao restauro da dignidade do trabalhador. Estaria, assim, promovendo o reequilbrio da ordem social e evitando os antagonismos de classe. O autoritarismo estatal no seria um expediente permanente. Pelo contrrio, Oliveira Vianna ressaltava seu carter transitrio - o Estado Novo comprovara que a estabilidade no assegurada pela manuteno de um governo autoritrio por prazos alongados. Alm do mais, como notou Paim, para Oliveira Vianna, O que se perdeu na prtica liberal brasileira foi a doutrina de representao de interesses. Se os interesses so diferenciados, no se trata de averiguar tecnocraticamente, de forma centralizada, que interesses (mais explicitamente: de que segmentos sociais) vamos erigir em interesse nacional. Isso s possvel mediante a livre disputa entre faces. (Apud Rago, 1998:277). H em Oliveira Vianna uma clara predominncia da esfera poltica sobre a esfera econmica - a organizao da sociedade deve ficar subordinada direo poltica, ao Estado. Segundo Rago, seu projeto poltico de uma nao socialmente solidria, coesa e una implicava, da perspectiva econmica, na existncia de uma opinio pblica organizada e atuante (Rago, 1998:278). Ele propugna ento uma democracia autoritria, em que a necessria interveno do Estado, ao realizar reformas econmicas, permita ao povo ter conscincia de seus interesses prprios e dos interesses da comunidade. Para Azevedo Amaral, a industrializao a nossa vocao, a nica forma de tornar possvel a unidade territorial e a centralizao poltica. Este projeto nacional no descartava a utilizao de capitais estrangeiros - mas estes teriam de ser disciplinados, estariam sob vigilncia. Com a Revoluo de 30, abria-se
a possibilidade de uma renovao conservadora para direcionar os rumos da prpria nacionalidade. /.../ Somente um Estado forte e interventor, aprumado pelas elites renovadoras, estaria revestido da misso de implantar as nossas bases industriais /.../. O projeto de modernizao industrial do pas, a colaborao das classes sociais com a montagem de uma estrutura corporativista, implicariam numa acelerao do desenvolvimento nacional, que subordinaria os interesses particularistas e egosticos dos grupos dominantes aos desgnios do bem coletivo. (Rago, 1998:274)

Ressalte-se, pois, que o Estado autoritrio azevediano tinha como funo no apenas a manuteno da ordem pela harmonizao das classes, mas tambm a modernizao do pas. O Estado autoritrio assume a funo de coordenar e impulsionar o desenvolvimento econmico, reduzindo os custos para a sociedade de um conflito social de natureza destrutiva /.../ para corrigir os excessos de liberalismo econmico, sem, contudo, eliminar o valor da iniciativa individual (Ttora, 1991:91). Oliveira Vianna, por sua vez, no obstante traos ruralistas, abandonou qualquer pregao por uma volta ao passado do patriarcalismo rural. Segundo Carvalho, Conformouse com o fato de que o mundo moderno era o da indstria, do operrio, das classes sociais. A pergunta agora era como organizar este mundo dentro da utopia de uma sociedade harmnica, incorporadora, cooperativa. O corporativismo, o sindicalismo, a legislao social vinham trazer as respostas. No caso brasileiro, estas polticas tinham a vantagem adicional de poupar ao pas os dramas causados pela industrializao capitalista, ainda incipiente, e de lanar-nos na direo de uma nova sociedade harmoniosa e, segundo ele, democrtica. A conduo do processo era considerada, entretanto, tarefa precpua do Estado, e caberia at mesmo forar classes e categorias sociais a se organizarem, pois a organizao seria a nica maneira de se exercer a cidadania no mundo moderno (Apud Rago, 1998:279).

34 Justifica-se a que, para ele, o intervencionismo estatal venha conter o supercapitalismo, com seus graves e inevitveis problemas sociais - a pobreza, a concorrncia generalizada etc. Nesse sentido, o pas precisaria ser preparado para sua modernizao controlada. Haveria que constituir um mercado nacional nico, da mesma forma, uma democracia de opinio organizada. (Rago, 1998:279) Com tudo isso, a interveno do Estado serviria para diversificar a sociedade. *** Da mesma forma que Oliveira Vianna, Alberto Torres percebia as elites brasileiras como egostas, desqualificadas por isso para a direo poltica. O despreparo das massas para a participao poltica tambm ressaltado por ele. Com isso, quer sublinhar, em suma, a incapacidade estrutural destes dois grupos sociais, concebidos assim, genericamente, para organizar a nao; o prprio corpo social que no est altura de nenhuma tarefa histrica de vulto. Tal despreparo patenteava-se no preconceito contra o planejamento, no transplante acrtico de instituies polticas contrrias nossa formao histrico-poltica e, ainda, na ausncia de mtodos de investigao para uma investigao da realidade nacional, a fim de conhecer efetivamente suas caractersticas e as possibilidades polticas da advindas.
Ao colocar em questo a impossibilidade do alcance das finalidades da poltica, quais sejam: promover e impulsionar o progresso da civilizao, pela impropriedade dos paradigmas nos quais se apoiava, Torres procurou demonstrar a necessidade de um mtodo racional caracterizado pela observao e pela experincia. Assim a ao poltica e a garantia de eficcia estariam fundamentadas pela racionalidade cientfica. (Rocha, 1996:83)

Esta profunda preocupao com um mtodo cientfico e racional de investigao ser incorporada pela ESG, que apresentar a doutrina de segurana nacional (DSN) para suprir tal lacuna. O planejamento e suas virtudes vai encantar o general Golbery. Tal preocupao de Alberto Torres relacionava-se com sua defesa de uma soberania real para o Brasil, efetiva, mais forte que as formas jurdico-polticas de soberania. Via o Estado brasileiro ameaado pelos particularismos federalistas e por presses externas e, em contraposio, punha em pauta a questo da organizao do Estado brasileiro, que condicionaria em grande medida seu futuro. Para a conquista daquela soberania real, Alberto Torres reclamava um suporte econmico e militar. Ele tambm atentou para o contraste entre o grau de extenso, penetrao, organizao e integrao do aparelho militar em nvel do poder nacional e a implantao superficial dos partidos e associaes profissionais (Oliveira, 1988:244). Sua preocupao era a satisfao da necessidade premente de certos objetivos nacionais galvanizarem as vontades individuais numa obra que transcendesse os indivduos e garantisse por esta dedicao o futuro e o presente (Macedo, 1988:216). Da tradio conservadora, as idias que sero incorporadas no pensamento golberyano referem-se especialmente crtica aos limites e inadequao do liberalismo poltico e uma concepo de democracia procedimental, preocupao com a unidade e integrao nacionais, pregao por um Estado forte, centralizado e interventor cuja atuao se desse no sentido de diminuir o abismo social entre as classes e o olhar enviesado para as classes proprietrias e dirigentes. ***

35 Outro autor que teve enorme influncia em mais de uma gerao de militares foi Ges Monteiro. J em seu tempo, foi um dos oficiais que exerceram maior influncia sobre a poltica nacional. Suas idias foram, em grande medida, apropriadas pela Escola Superior de Guerra. Uma das idias recorrentes em seu pensamento era estabelecer e justificar o papel tutelar das Foras Armadas. Assim, acaba elaborando justificativas para o procedimento intervencionista destas em vista da precariedade das instituies nacionais. Segundo Ges Monteiro, tambm funo do Exrcito, em especial em pases mal organizados, a manuteno da ordem interna que no representada somente pela garantia material das instituies, mas, por igual, pela integridade poltica e moral da ptria. Diante de qualquer ameaa de degradao desta, uma instituio saturada do sentimento nacional no pode acumpliciar-se, pelo preconceito da ordem constituda, com uma falsa legalidade aviltante e oprobriosa. O corolrio inevitvel: Assim, seria sempre idnea a interveno das classes armadas para conjurar o caos (Apud Pereira, 1988:257). A influncia militar alem manteve-se nele por muito tempo, para o que contriburam os sucessos do nazi-fascismo. Em livro escrito em 1932, ele destacava a necessidade de modernizao do pas, apontando o fanal: A marcha para diante no se deter e por etapas sucessivas havemos de nos encaminhar para um sistema nacional-socialista. Est nisso o maior resultado da revoluo, pela eliminao dos quistos latifundirios e de outras excrescncias mortas que, como o carter mal formado, produzem as maiores infeces do nosso organismo (Apud Pereira, 1988:257). A necessidade de modernizao e reorganizao tambm era vlida e premente para as Foras Armadas, material e organizacionalmente mal preparadas. A reformulao das Foras Armadas era, para ele, essencial para maior garantia de segurana do Governo Provisrio, da consolidao da unidade nacional e da execuo do programa revolucionrio. Sem o instrumento de ao que eram as Foras Armadas, ou com estas no preparadas para a tarefa, o problema se torna excessivamente difcil (Apud Pereira, 1988:257). Ges Monteiro assevera, por conseqncia, que A fora armada, em sua vocao de mantenedora da ordem interna e da unidade da ptria, no momento, teria logicamente que se preocupar mais com este aspecto de sua misso, que com a idia da possibilidade de uma luta externa, hiptese admissvel, embora permanea o estado de paz em que vivemos com todas as naes da Amrica (Pereira, 1988:258). H que destacar, em relao a isso, dois aspectos: em primeiro lugar, a inovadora preocupao com a ordem interna e a unidade da ptria num momento em que as doutrinas militares preocupavam-se da defesa nacional contra uma agresso externa. Em segundo lugar, e isso relativiza o aspecto anterior, note-se que o texto foi escrito no incio dos anos 30, portanto bem antes da Segunda Guerra Mundial e da guerra fria subseqente, que tantas implicaes trouxe no campo das doutrinas das Foras Armadas. Mas a qualidade nova de seu pensamento - a distino clara entre defesa nacional e segurana interna e a identificao como inimigo dos prprios compatriotas indispostos com o regime e seu programa - no pode ser obliterada. J se ressaltou que, na doutrina da ESG, o tema da Segurana Nacional como conceito abrangente de garantia a ser proporcionada em especial pelo Estado ao cidado e ao conjunto da nao por aes econmicas, psicossociais, militares e polticas, encontra suas razes em Ges Monteiro (Macedo, 1988:217). A qualidade precursora do pensamento de Ges Monteiro tambm se manifesta na percepo da transformao da natureza dos conflitos e, por conseqncia, da natureza do inimigo:
O estado de conflito armado, que era latente, agora ativo e se agrava e se torna permanente, pois o intervalo entre uma guerra e outra semeado de lutas e revoltas

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intestinas em grande nmero de pases entre as diferentes camadas sociais, pondo em risco a estabilidade e a existncia dos Estados que no souberam, no puderam ou no quiseram organizar-se fortemente (Apud Pereira, 1988:258).

E acrescenta, numa construo que poderia ser escrita por Golbery: A luta de classe , hoje em dia, o expediente mais seguro e hbil para enfraquecer uma Nao, ativ-la merc dos golpes do imperialismo tanto poltico e moral, quanto econmico e material (Apud Pereira, 1988:258) E. von Ludendorff (que estava no comando das foras germnicas quando da derrota na I Guerra) j havia tornado pblicas, mais de uma dcada antes, suas idias a respeito da guerra total. Provavelmente foi sob sua influncia que Ges Monteiro chama a ateno para o alastramento do fator guerra para todos os campos da estrutura de uma nao, inclusive com a noo de potencial nacional:
O Exrcito um rgo essencialmente poltico; e a ele interessa, fundamentalmente, sob todos os aspectos, a poltica verdadeiramente nacional, de que emanam, at certo ponto, a doutrina e o potencial de guerra. A poltica geral, a poltica econmica, a poltica industrial e agrcola, o sistema de comunicaes, a poltica internacional, todos os ramos da atividade, da produo e da existncia coletiva, inclusive a instruo e a educao do povo - tudo, enfim, afeta a poltica militar de um pas. (Apud Pereira, 1988:258)

Assim, a percepo da atrofia estrutural da realidade brasileira e da inorganicidade de suas classes sociais faz com que ele - no que tambm no est sozinho - perceba as Foras Armadas como a nica instituio organizada nacionalmente e possibilitada a conduzir o processo de modernizao e organizao do pas e defender, portanto, os interesses nacionais. Em suas palavras,
No havendo a opinio pblica do pas se organizado em foras nacionais, restam as foras particularistas, que no podero mais dispor e concentrar em suas mos os interesses da nacionalidade. Ficam s o Exrcito e a Marinha como instituies nacionais e nicas foras com esse carter, e s sombra deles que, segundo a nossa capacidade de organizao, podero organizar-se as demais foras da nacionalidade. (Apud Pereira, 1988:259)

Assim sendo, as Foras Armadas deveriam estar fortalecidas para assegurar que nenhum outro elemento antagnico sua finalidade possa ameaar os fundamentos da Ptria. Nestas condies, as foras militares nacionais tm que ser, naturalmente, foras construtoras apoiando governos fortes, capazes de movimentar e dar nova estrutura vida nacional, porque s com a fora que se pode construir (Apud Pereira, 1988:259). Tambm o general Ges Monteiro criticava o liberalismo. Este era, para ele, a fonte de todos os males sociais e ptrios, pois era moldado na exata medida para permitir a todos a liberdade de se encarniarem na prtica do mal contra o bem, aumentando o babelismo e as complicaes do problema da organizao nacional (Apud Pereira, 1988:258). Um dos aspectos criticados do liberalismo era justamente a pluralidade partidria, absurda pelo carter particularista que expresso desses agrupamentos sem finalidade nacional e, por conseguinte, organizados para atender quase exclusivamente a interesses de grupos, de faces e de indivduos e nunca aos interesses da nacionalidade (Apud Pereira, 1988:259).

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admissvel, como transio, o partido nico, nacional, movimentado sempre no sentido de engrandecer a Nao e no para satisfao dos interesses individuais. O sistema representativo, pelo sufrgio universal e direto, pela maneira como aplicado no Brasil, ser sempre uma irriso e uma causa de degradao de costumes polticos (Apud Pereira, 1988:259).

A fora do Estado, necessria para a construo de uma nova estrutura para a vida nacional, contrapunha-se com a fragmentao das organizaes partidrias: O Estado, tendo o funcionamento dos seus rgos sujeito s oscilaes partidrias, se enfraquece, transige, recua e no pode levar a efeito a sua obra em benefcio da nacionalidade (Apud Pereira, 1988:258). O mundo inteiro, assegura Ges Monteiro, comprova que o caminho a seguir em termos econmicos o nacionalismo econmico, dirigido pelo Estado cada vez mais fortalecido. Ocorre que A burguesia brasileira, porm, no quer compreender o estado de necessidade que se criou para o mundo inteiro e no quer abdicar de certos privilgios em benefcio da nacionalidade. E persiste no desejo de reproduzir os erros com a adoo do mesmo regime poltico, das mesmas normas e costumes que temos de abolir, por bem ou por mal (Apud Pereira, 1988:260). Ao lado desse primeiro ponto, reiterado sempre - O Estado deve intervir e regular toda a vida coletiva e disciplinar a Nao -, Outro ponto radical a educao do povo, sob o trplice aspecto: do desenvolvimento fsico, moral e intelectual, outra das exigncias contemporneas que o Estado deve ter meios e autoridade para resolver. Nesse processo, a base material dada pela organizao da produo e a base moral, uma mentalidade que chamaramos de tradio seletiva, que aceite e aperfeioe o que bom e saiba rejeitar o que mau. isso que, segundo Ges Monteiro, caracteriza o esprito nacional, ao qual se pode atribuir a manuteno de nossa unidade lingstica, racial, religiosa e sobretudo poltica; tal esprito, ainda, que poder dirigir a evoluo da nacionalidade, e dentro do imperativo que se tem criado no transcurso da evoluo da vida humana (Apud Pereira, 1988:260). To inovadoras e fortes foram tais idias que vrios autores atribuem a doutrina da ESG a um simples resgate das idias de Ges Monteiro 9 . Se no podemos cair numa interpretao to simplista, no podemos, por outro lado, desconsiderar a profunda influncia deste autor na confeco da DSN. *** O conservadorismo brasileiro, como se sabe, influenciou decisivamente e por largo espao de tempo uma grande parcela da intelectualidade nacional. Sobejamente reivindicada, em especial pelo conservadorismo militar, acabou esparramando seus influxos por outras correntes, como o nacionalismo trabalhista, liderada pelo isebiano Guerreiro Ramos. Este via Azevedo Amaral como o mais complexo e completo escritor dos anos 30. Segundo Rago, a herana conservadora neste socilogo baiano tem por base as seguintes formulaes: 1) h que traar o itinerrio de nossa histria nacional por meio dos traos que a singularizam; 2) a ausncia do povo em nossa formao deriva de nossa extrao colonial, o que explica ao largo de sua existncia a vacuidade da vida pblica; 3) estas razes histricas explicam a passividade do povo dada a ausncia de um sentimento coletivo
9

o caso de Wilson Martins, em Histria da Inteligncia Brasileira, e tambm Edmundo Campos Coelho, na sua Em Busca de Identidade: o Exrcito e a Poltica na Sociedade Brasileira. Selma Rocha contrape-se a essa tese: Reconhecemos, sem dvida, que as concepes de Ges Monteiro foram apropriadas pelos militares da ESG, mesmo porque as condies de formao dos oficiais, bem como suas publicaes, garantiram que as idias do general estivessem vivas no imaginrio militar. Todavia, nossa questo /.../ permanece: como os oficiais da ESG articularam, objetivamente, tais pressupostos nos conceitos doutrinrios nas dcadas posteriores fundao da instituio? (Rocha, 1996:13).

38 nacional; 4) da, a influncia decisiva no plano poltico de nossos homens pblicos. (Rago, 1998:280) As massas populares, tambm em sua viso, esto incapacitadas para o exerccio da vida poltica, em decorrncia de nossa heterogeneidade social. Como em Oliveira Vianna, a inexistncia de sociabilidade orgnica e de tradies culturais slidas permite nobreza da terra exercer o papel dirigente, excluindo o povo. Num pas com tais caractersticas, uma elite republicana transladou o liberalismo extico, acabando por decair no idealismo utpico. Ainda sob a inflexo viannista, Ramos propugnava um idealismo orgnico, engendrado na e de acordo com a realidade histrico-social de nosso pas. A sua concluso clara: com a fragmentao e disperso das camadas sociais em nosso imenso territrio, no h como ter articulao dessas partes, a no ser pela constituio de um denso mercado interno, um sistema de transportes e comunicaes consistentes. Sem isso, no pode haver povo. (Rago, 1998:281) Em meados da dcada de 50, para ele, havia surgido a categoria povo. Tal gestao havia sido promovida pela constituio do mercado interno, configurado pela industrializao acelerada, levada a cabo sob a gide estatal. Com isto, constituiu-se uma classe trabalhadora moderna, capaz de criar instituies representativas (sindicais e previdencirias), e uma burguesia empreendedora interessada na viabilizao do consumo interno. Disto resultou uma solidariedade indita, atingindo ento a sociedade brasileira o estgio da modernidade. Estava posta, pelo aparecimento da categoria povo, a possibilidade de uma espessa aliana de classes, cujo fundamento estaria justamente no interesse socialmente difundido de constituir um mercado interno e ampliar a produo de bens de capital. configurao concreta da nao com povo corresponderia uma razo sociolgica, contraposta razo cientfica da vacuidade de motivaes coletivas. Com isso, o nacionalismo se tornava um fato sociolgico, que tem a desempenhar um papel revolucionrio. Sua essncia justamente uma vindcia de naes cuja soberania social permanecia inconquistada e que, pelo esforo de toda a comunidade nacional, pelejavam por um desenvolvimento capitalista autnomo em relao aos grandes centros industriais. Por isto a essncia do nacionalismo revolucionria: a autodeterminao nacional s pode ser alcanada por meio da luta, audcia e iniciativa da nao. O nacionalismo representava o instrumento para o impulsionamento da revoluo industrial brasileira. H, portanto, uma atualizao da herana, que tambm orientada para uma vertente democrtica, em prol da edificao de um capitalismo autnomo, popular e nacional. Segundo Guerreiro Ramos, Os capitais estrangeiros controlados pelos trustes, ao entrarem num pas, no se conduzem num espao econmico puro ou abstrato; ao contrrio, afetam todo o sistema social e, principalmente, fazem poltica, no sentido de assegurar cobertura institucional para os seus interesses, necessariamente antinacionais. (Apud Rago, 1998:282) Critica, assim, o nacionalismo ilusrio, desnacionalizante, que acredita no capitalismo associado. Para ele, somente uma revoluo nacional poderia provocar uma mudana qualitativa no nosso estgio histrico pois, no que se refere s naes novas, Sua maioridade histrica exibe-se na aptido que revelam para libertar-se de posies caudatrias. De outra parte, A SN no abstrata. sempre a segurana de uma nao tal como existe concretamente, numa poca determinada. Ora, atualmente, h um Brasil em caducidade e um Brasil em estado nascente. De qual deles se trata de elaborar a poltica de SN? (Apud Rago, 1998:282) Ele mesmo responde: A nossa SN no a de um pas economicamente amorfo ou abstrato, mas a de um pas que iniciou sua revoluo burguesa. Por conseguinte, se inevitvel que a SN tenha uma ideologia, essa ideologia s pode ser a da revoluo industrial brasileira em curso. (Apud Rago, 1998:283)

39 Sobre o Estado, pensava ele: A equao do desenvolvimento de um pas como o Brasil no pode resolver-se sem a interferncia do Estado. Entregues prpria lgica, os capitais privados no se comportam de acordo com as exigncias de inverso de uma economia em desenvolvimento. E considerava contrrios aos objetivos nacionais todos os fatores internos que contribuam para a formao de presses psicossociais, polticas, ideolgicas, institucionais e econmicas tendentes a debilitar o capitalismo brasileiro (Apud Rago, 1998:283). Sua proposta: entender a lgica do mundo atual e alinhar-se com aqueles pases que apresentam a mesma ordem de problemas, a fim de compor uma ao conjunta. O divisor de guas estava posto: o nacionalismo orgnico e o nacionalismo utpico iriam se enfrentar na questo da posio democrtica e da posio autocrtica (Rago, 1998:283).

3 - A FALSA SOLUO ESGUIANA

A Escola Superior de Guerra (ESG) foi caracterizada como um
instrumento de relao orgnica entre setores militares e grupos das classes dominantes, entre grupos militares e outros setores do aparelho de Estado (magistrados, polticos, educadores, embaixadores - numa dimenso poltica e burocrtico-administrativa), com o objetivo de promover determinado tipo de desenvolvimento econmico (de tipo capitalista), dirigido por um grupo especfico (as elites) e dotado de uma ideologia (a ideologia da SN) e uma opo estratgica (o Mundo Ocidental), sob a hegemonia dos Estados Unidos (Oliveira, 1988:237).

Procuraremos, abaixo, analisar essas caractersticas, ainda que sem entrar nas complexidades da doutrina de segurana ou da prpria criao da Escola. O surgimento da ESG brasileira foi largamente condicionado pela conjuntura existente ao final da Segunda Guerra. Lembre-se que, em 1947, eram anunciados a Doutrina Truman e o Plano Marshall, marcando o incio da guerra fria. Por meio da Doutrina, buscava-se afirmar a liderana mundial dos Estados Unidos, pela ajuda econmica ao conjunto da Europa e apoio aos povos livres, que contribuiriam para conter o expansionismo sovitico. Paralelamente a isso, ressaltava o perigo representado pelo totalitarismo sovitico e conferia explicitamente aos Estados Unidos o papel de guardies da paz e da segurana mundial. Por sua vez, o Plano Marshall propunha-se a demonstrar Europa a maior viabilidade de sua prosperidade econmica com a permanncia do capitalismo, ao mesmo tempo em que estabelecia bases militares e tratados de segurana em todo mundo. A Organizao do Tratado do Atlntico Norte (Otan) surgia em resposta Agncia de Informao dos Partidos Comunistas e Operrios (Kominform) e concretizou, diplomtica e militarmente, a poltica de segurana enunciada na Doutrina Truman. Ainda no conjunto de modificaes da poca, aparece, pela derrocada do sistema colonialista, o terceiro mundo, que passa a ser palco de disputas entre as duas potncias, no obstante tentativas de alguns desses pases de desvincularem-se de ambos os blocos contendores. A disputa por reas de influncia tornou-se fundamental para garantir a sobrevivncia dos respectivos projetos de sociedade que se confrontavam e para garantir a segurana dos Estados. Nesse contexto, os EUA, simultaneamente, expandiram seu poder imperial, a fim de estabelecer sua hegemonia no Ocidente, e tentaram universalizar sua concepo de segurana.

40 O contexto brasileiro, como aponta Maria Selma Rocha, esteve duplamente mediado: pela mudana de orientao da poltica externa dos EUA em direo a uma posio mais ofensiva com relao URSS, determinada por Truman (de que exemplo o empenho no desmonte das mquinas regionais criadas por F. D. Roosevelt -presidente dos EUA entre 1933 e 1945 -, temendo defeces pr-Unio Sovitica, e a busca de controle pelos EUA do comrcio mundial de matrias primas) e pela resistncia nacionalista a essa mesma poltica, de que as discusses em torno das minas de urnio e trio, alm da explorao do petrleo, so exemplos. Em 1947, o Brasil havia rompido relaes diplomticas com a URSS. Em 1948, foi oficializado o Tratado Interamericano de Assistncia Recproca (Tiar), que determinava que qualquer agresso a uma nao americana vinda de uma potncia no continental ser considerada como agresso a todas as demais naes americanas (Apud Rocha, 1996:28). Por outro lado, significativas inquietaes em relao s definies doutrinrias e prtica das Foras Armadas haviam surgido no corpo de oficiais da Fora Expedicionria Brasileira (FEB) na Itlia, quando se verificou o contraste entre a capacidade operativa da FEB e a dos militares americanos. De outra parte, Muitos oficiais da FEB regressaram ao Brasil convictos da necessidade de acelerar o desenvolvimento econmico. Do ponto de vista militar, significaria promover o desenvolvimento da economia - abrindo-a inteiramente ao capital estrangeiro, se necessrio - como condio para o desenvolvimento do prprio aparelho militar com vistas ao papel que o Brasil deveria desempenhar na defesa hemisfrica. (Oliveira, 1988:235). Golbery destacou ainda outro aspecto importante em relao FEB:
A FEB no foi importante apenas por ter ido Itlia. Possivelmente ainda mais importante, os membros da ESG foram aos EUA e viram em primeira mo uma grande potncia industrial e democrtica. Eu tambm fui e sofri um grande impacto. Para mim, era absolutamente visvel que um pas de livre empresa conseguira criar uma grande potncia industrial. (Apud Stepan, 1975, 176)

Nesse mesmo ano de 1948, celebra-se a assinatura de um contrato entre os governos dos EUA e do Brasil, para a vinda de uma misso militar norte-americana ao pas para propiciar o estabelecimento e o funcionamento de um curso sobre Operaes Combinadas. A misso terminou por sugerir a criao de uma Escola Nacional de Guerra no Brasil, inspirada no National War College, para tratar de questes relativas a poltica, cincias puras e economia, alm das militares. Em 1948, por determinao do governo Dutra, foi formada uma comisso, presidida por Cordeiro de Farias, para elaborar o anteprojeto de regulamento da Escola, cujo objetivo seria realizar estudos para a fixao da poltica, da estratgia e da doutrina militares, alm de elaborar e coordenar os planos e programas decorrentes. O trabalho do grupo resultou na formulao dos Princpios Fundamentais da ESG, redigidos pelo ento tenente-coronel Idlio Sardenberg. No ano seguinte, o general Cordeiro de Farias foi nomeado comandante da escola. Em agosto de 1949, foi instituda, no mbito do EMFA, a ESG, que agora era uma instituio voltada formao tambm de civis do setor pblico e privado, desde que de notvel competncia e de atuao relevante na orientao e execuo da poltica nacional, com o objetivo no mais de ministrar um Curso de Alto Comando, mas de formular diretrizes quanto ao planejamento e a direo da Segurana Nacional (Rocha, 1996:29). A significativa mudana de objetivos

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revelava as diferenas e divergncias entre os oficiais brasileiros e os integrantes da misso militar norte-americana no que se refere ao papel da nova instituio. Com efeito, o oficialato brasileiro considerava necessrio preparar o conjunto da elite brasileira, militar e civil, para dirigir o Estado nessa nova conjuntura internacional, que demandava, aos olhos da cpula militar, novos padres de eficcia e eficincia no planejamento das aes estatais, pois o imperativo da segurana tornava mais complexas e dinmicas as relaes polticas endgenas e exgenas ao Pas. (Rocha, 1996:31)

, pois, necessrio ressaltar que, ainda que o alinhamento com os EUA no fosse posto em questo pelos militares brasileiros, estes, ao formarem a ESG, fizeram-no tomando como referenciais as caractersticas de sua prpria histria. Como ressaltou Elizer Rizzo de Oliveira, a ESG no foi e no pura e simplesmente transplantada da experincia americana, com a qual manteve uma dupla relao: uma inspirao inicial /.../; uma adaptao diferenciadora, posto que as elites civis /.../ foram procuradas, desde o incio, para participar da ESG (Oliveira, 1988:237) 10 . Sem querer delongar a discusso, cabe observar, em primeiro lugar, que se houvesse o mero transplante, a ESG no poderia realizar seus objetivos de interferir objetivamente na realidade nacional - que ela ento no teria respeitado e qual no se adaptaria. E, o que fundamental, antes da discusso sobre a existncia e extenso da cpia ou no, h que indagar a prpria possibilidade de uma pura e simples transposio mimtica de uma instituio em contextos to diferenciados como o do Brasil e o dos EUA. Seria muito difcil os oficiais responsveis pela criao da Escola no se contaminarem com a realidade nacional. Dentre as muitas influncias que a ESG sofreu, pode-se destacar a da teoria organicista/evolucionista em suas concepes de Estado e sociedade, e, na questo da guerra revolucionria, da doutrina militar francesa, dos postulados militares espanhis nos anos 50 e 60. Houve ainda forte influncia de concepes geopolticas. No plano da experincia poltica, os postulados referentes ao final da Segunda Guerra (como o papel histrico dos militares no interior do Estado) ganharam relevncia. Houve tambm influncia das reflexes dos cientistas polticos e militares norte-americanos, convencidos de que a existncia de governos fortes se constituiria em precondio do desenvolvimento e amadurecimento das sociedades dos pases dependentes, assim como da implantao da democracia no futuro. Os autores considerados clssicos do marxismo tambm foram estudados, a fim de fundamentar a crtica e a negao luta de classes. A ESG valeu-se ainda de outras ideologias conservadoras presentes na sociedade brasileira e nas Foras Armadas, cuja influncia foi acentuada na viso esguiana sobre Estado, sociedade e nao, como tambm de outros matrizes tericos em debate na poca. Como observou Rago, a relao da ESG com o pensamento conservador estreita.
Em sua apropriao, os sorbonistas [esguianos], certamente, retomam determinados elementos, tais como: a busca pela solidariedade e conscincia coletiva da nacionalidade; a harmonizao e paz social, com a colaborao entre as classes sociais; a integridade territorial e coeso nacional; a relao entre a centralizao e a
10

Ubiratan Borges de Macedo, membro do Corpo Permanente da ESG, tambm protestou contra a interpretao da cpia: Ao contrrio do enunciado pelo padre Joseph Comblin em A Ideologia da Segurana Nacional (1977), que atribuiu a uma cpia de doutrina americana o ensinamento esguiano - apesar de no mesmo livro no conseguir identificar essas origens por citar quase sempre documentos brasileiros e no explicar as fundas divergncias entre o National War College e a ESG e as concordncias versarem sobre temas bvios de domnio comum; alm de ingenuidades como ligar a existncia de um Conselho de Segurana Nacional ideologia da ESG, alis j previsto na Constituio de 1946, anterior ESG -, julgamos serem outras suas origens. (Macedo, 1988:215).

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descentralizao na esfera poltica; a superioridade das elites dirigentes em face do atraso cultural e despreparo poltico das classes subalternas; a preparao para a modernizao, conservando-se os valores tradicionais; o combate permanente ao comunismo e subverso interna; a transio lenta e segura, para uma nova institucionalidade jurdico-poltica, necessria ao desenvolvimento econmico. Ordem e progresso. Traduzindo na nova linguagem sorbonista: segurana e desenvolvimento. (Rago, 1998:270)

A mediao de Ges Monteiro, por sua vez, mais do que pessoal, na Doutrina, representou antes o compediamento por um ilustre e autorizado chefe de idias que a Misso Militar Francesa difundira e a que se somou a tradicional funo de poder moderador das Foras Armadas, constante na tradio poltica brasileira (Macedo, 1988:217). No entanto, a existncia da ESG e de sua doutrina constituem um marco na histria das Foras Armadas, uma vez que projetam o Exrcito Brasileiro, no quadro das relaes internacionais, como agentes polticos dotados de identidade e objetivos especficos (Rocha, 1996:16). Quando da fundao da Escola, lembremos, nacionalmente, havia um crescente processo de mobilizao de amplos segmentos da sociedade e o conflito entre posies nacionalistas e internacionalistas. A esquerda tomava o nacionalismo como uma juno de luta de classes e afirmao nacional. As elites eram consideradas como inaptas para enfrentar as novas necessidades conjunturais por concepes to distintas como as altas patentes militares e o Instituto Superior de Estudos Brasileiros (Iseb, que funcionou entre 1955 e 1964). Segundo depoimento de Cordeiro de Farias, ele foi encarregado de organizar no Brasil uma escola nica, que integrasse as trs escolas norte-americanas. Nos EUA,
existia uma escola para tratar dos problemas da produo blica, o Industrial College, outra para formular estratgias, o War College, e uma terceira para integrar as trs foras. No Brasil, um pas pobre e de poucos recursos, ns decidimos criar um s estabelecimento para cobrir estas diferentes finalidades. Segundo esse raciocnio, qual seria o objetivo principal da ESG? Criar lideranas civis e militares para enfrentar a eventualidade de um novo estilo de guerra no mais circunscrita frente de batalha e ao palco de lutas, mas transformada em fato total /.../. Dentro dessa orientao, os civis das mais diversas profisses precisaro estar prontos para exercer papis talvez at mais decisivos do que o dos militares na guerra. (Apud Camargo e Ges, 1981:413-17)

E o depoimento cabal em relao questo discutida: Eles vieram com o regulamento do War College e tentaram induzir-nos a adot-lo sem restries /.../ Eu /.../ Defendia a tese de que a ESG, como um centro de estudos, no poderia deixar de se ligar profundamente aos alicerces nacionais (Apud Camargo e Ges, 1981:417). Esta foi a posio vencedora. Assim, fazia parte das preocupaes militares dotar as elites de papel importante, que realmente tiveram, na conduo da poltica de segurana e desenvolvimento. Era papel das elites civis e militares planejar aquela poltica, por meio de uma tcnica racional de soluo dos problemas. importante, a esse respeito, que se atente para o fato de que a iniciativa militar de criao da ESG veio suprir uma necessidade no atendida pelas classes dominantes:
a criao da ESG como instrumento e parte de um projeto hegemnico de um grupo militar foi facilitada pela frgil organizao poltica dos grupos dominantes (e igualmente das classes subalternas) brasileiros, em razo de fatores histricos /.../. O grupo criador da ESG pode assim conceber-se como uma espcie de mediador das

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lutas polticas reais, tanto no interior dos interesses dos grupos dominantes (as elites) quanto no interior do aparelho de Estado (Oliveira, 1988:239).

A peculiaridade que, Ao contrrio de dirigir-se organizao e ao consentimento da dominao burguesa entre as classes subalternas /.../, este grupo ir atuar sobretudo no nvel superestrutural, mais particularmente nos nveis de governo (Oliveira, 1988:238). Por outro lado,
com a presena das elites civis, a institucionalizao da ESG correspondia institucionalizao da participao poltica dos militares /.../. Tratava-se aqui de oficializar a ascenso dos militares condio de sujeitos do processo poltico e, ao faz-lo, de reforar a tendncia autonomizao do aparelho militar, entendida como a capacidade de as Foras Armadas definirem - com certa independncia diante dos poderes investidos da responsabilidade de control-las - seus objetivos polticos, estratgicos e materiais, por meios entendidos como necessrios realizao de tais fins (Rocha, 1996:34).

Podem-se divisar dois grandes objetivos para a Escola: a elaborao de um mtodo de anlise e interpretao dos fatores que condicionavam os problemas da Segurana Nacional e o estabelecimento de bases doutrinrias para orientar as aes de todos os rgos responsveis pelo desenvolvimento do Potencial Nacional e pela Segurana do Pas (Rocha, 1996:36). Visando a concretizar esses princpios, a Escola, nos cinco primeiros anos de existncia, passou por vrias etapas: tomada de contato com a realidade brasileira; formulao, com objetivos didticos, de um Conceito Estratgico Nacional baseado nas anlises sobre a conjuntura; elaborao preliminar de polticas, para as diferentes reas de ao, com base no Conceito de Segurana Nacional, acompanhada de uma tcnica de planejamento para a Segurana e para o fortalecimento do Potencial Nacional (Rocha, 1996:36). Ao corpo permanente, formado de civis e militares, cabia a direo e organizao dos cursos - em uma escola tradicional, o corpo docente. Os estagirios eram recrutados dentre os oficiais superiores e civis com cargos e funes importantes no Executivo ou em outras reas relevantes. Graas a isso, tambm contribuam com sua experincia especfica para a difuso dos aspectos doutrinrios e conjunturais neles discutidos. Assim sendo, a estrutura interna da Escola foi definida de forma coerente com os objetivos de elaborao e difuso da Doutrina, para torn-la hegemnica entre civis e militares. A mesma coisa ocorreu com os objetivos dos cursos, como o Curso Superior de Guerra. Para exemplificar: os regulamentos anteriores a 1973 pretendiam a elaborao e difuso da DSN, enquanto que, a partir desse ano, tratava-se de cooperar com o governo para execut-la, numa identificao plena entre os ideais e do Estado e os princpios da Doutrina. A partir de 1964, portanto, com a instaurao da ditadura militar, diligenciaram-se
novos estudos e pesquisas, objetivando armar o governo Castelo Branco especialmente de instrumentos para aplicao da Doutrina e de um mtodo de formulao da Poltica de Segurana. No demais lembrar que os estudos da ESG sobre possveis instrumentos do Estado democrtico, contra a agresso subversiva foram referenciais importantes para formulao dos atos institucionais, leis e decretos-lei do governo Castelo Branco /.../ foram fundamentais para a elaborao do Programa de Ao Econmica do Governo (PAEG) /.../ e do Plano Decenal de Desenvolvimento Econmico-Social (Rocha, 1996:38).

44 A ESG, para cumprir seus objetivos, tinha de funcionar primeiro como um instituto de altos estudos, ocupando-se da elaborao e difuso de um mtodo de estudo dos problemas nacionais e internacionais, e tambm como centro de pesquisas, com o objetivo de encontrar solues para as questes estudadas e meios para divulg-las. As questes militares vinculavam-se essencialmente s primeiras. Para complementar o trabalho da ESG, fundou-se a Adesg, Associao dos Diplomados da ESG. Os estagirios ali coligados deveriam, fundamentalmente, construir uma interpretao homognea sobre o processo poltico do incio dos anos 50, de um lado, e de outro, evitar que o clima de comoo pela morte de Getlio Vargas contagiasse os colaboradores da instituio. Depois disso, a Associao consolidou-se como rgo auxiliar da ESG, com a funo fundamental de manter coesos os setores das elites que cursaram a Escola. Isso se coadunava com os objetivos da prpria Escola, que esto umbilicalmente ligados com sua pretenso de efetivar uma ao hegemnica em conjunto com as elites militares e, especialmente, civis, voltadas para a implementao de um Projeto Nacional (Rocha, 1996:12). A viabilidade de seu projeto nacional no se relacionava, necessariamente, com a ascenso dos militares ao poder. A ESG elegeu as elites civis e militares e os setores da classe mdia urbana como destinatrios de seu discurso. Sua doutrina, progressivamente transmutada em proposta para o pas, deveria ser implementada pelas classes dominantes. Por isso, deve-se ressaltar a dimenso pedaggica da doutrina, a ser difundida a setores da classe mdia urbana, que no necessariamente ocupavam ou ocupariam postos no aparelho do Estado, mas cujo apoio era fundamental para a sustentao das aes estatais baseadas na doutrina. importante perceber que esse projeto, embora pretendesse o desenvolvimento e o progresso do capitalismo, no fora a traduo imediata da concepo e das proposies dos capitalistas, isto , no fora mera expresso dos interesses conjunturais dos vrios setores da burguesia, embora fosse portadora de seus interesses histricos. (Rocha, 1996:54) Seu objetivo, portanto, era tornar hegemnico na sociedade seu projeto poltico, a fim de garantir-lhe perenidade e viabilidade. Selma Rocha situa a origem do processo de elaborao da DSN em uma crtica ao Estado, ou, sendo mais especfica, s elites dirigentes do aparelho estatal, que eram vistas como incapacitadas para as tarefas de direo da sociedade brasileira. Eram vistos como caractersticos da ao das elites brasileiras o empirismo, a improvisao e o individualismo. Se, por um lado, eram estas caractersticas estruturais da burguesia nacional, por outro, como observou Antnio Carlos Pereira, A DSN idealiza um Estado e uma Nao nos quais os defeitos so atribudos imaturidade. Torna-se, portanto, necessria a tutela do povo (Pereira, 1988:270). Ao mesmo tempo, vinham-se somar a isto as modificaes na prpria natureza do Estado contemporneo. Percebia-se o processo de desenvolvimento das sociedades capitalistas, como implicando diretamente, naquele exato momento, em uma expanso do espao de atuao do Estado. Desde o incio, portanto, a Escola preocupou-se com o aperfeioamento de mtodos de ao e de deciso do aparelho estatal. Isso corresponderia a uma racionalizao poltica, que teria por base a teoria e a realidade - a dissociao desses dois momentos, segundo a ESG, era um erro grosseiro. Por isso, buscava antes de mais distingui-las com nitidez, para em seguida embrech-las num mesmo campo de conhecimento. Portanto, elaborado sob o signo da racionalidade, o discurso tinha como objetivo especfico o dever-ser e a normatividade da ao poltica, considerando, para isso, alguns juzos de valor que orientassem a seleo dos referenciais tericos e das diretrizes da ao. (Rocha, 1996:50).

45 Coerente com seus objetivos, a ESG desconsiderava qualquer pretenso a uma ablica neutralidade axiolgica. Para a Escola,
so exatamente os valores que lhe conferem especificidade e prestgio. Tambm so os valores critrio da diferena entre doutrina, cincia e filosofia. Reafirmando a superioridade da Doutrina, a ESG criticava a cincia, por um lado, pelo estatuto da neutralidade que lhe era atribudo e, por outro, pelo princpio de indeterminao de suas concluses. Assim, exatamente por suas caractersticas especficas, a cincia no permitiria que a prtica estivesse sob seu domnio. Tambm a filosofia, reduzida a um campo de conhecimento que no se ocupa da comprovao emprica de seus postulados, foi descartada. (Rocha, 1996:51)

Os manuais tambm contestaram as interpretaes que qualificavam a doutrina como dogma ou ideologia. Para os esguianos, uma doutrina deve conter verdades no apriorsticas e acrticas, o que a coloca do lado oposto ao dogma. Por outro lado, a ESG acreditava que as verdades provem da apropriao de um conhecimento cientfico enriquecido, mediante reflexo, por pesquisas e anlises da realidade. Por isso, a doutrina tambm no pode ser qualificada como ideologia, tida como um tipo de pensamento poltico tendente a ser exclusivo e absoluto, precisamente por ser gestado em organizaes polticas. Assim, ao cabo, a ESG se ps como tarefa a construo de uma doutrina poltica construturada, fundamentalmente, sobre valores e princpios polticos.
Em valores, isto , em convices ticas legtimas, porquanto extradas da cultura nacional, e em princpios polticos baseados na cincia e na filosofia, sempre de acordo com sua adequao, para que se construssem conceitos, considerados forma ideal de reduo de princpios polticos, permitindo, assim, a uniformizao de categorias, segundo as quais a realidade deveria ser apreendida. A outra face desses conceitos que eles encerram proposies de ao poltica, de carter normativo, para a vida societria. Por isso, sua elaborao deveria obedecer a um mtodo que permitisse interpretar a totalidade dos aspectos da realidade, tanto de carter individual como social. Alm disso, o conceito deveria conter uma dimenso pedaggica: a difuso de um Projeto Nacional. (Rocha, 1996:52)

A ESG tem, como se pode notar, uma preocupao acentuada com questes de mtodo, para elaborao e difuso de sua doutrina. A concretizao mesma do seu projeto poltico dependia da apropriao do mtodo atravs do qual, e s atravs do qual, a realidade pode ser interpretada em sua totalidade. Isso significa dizer que tudo aquilo que o mtodo no pudesse apreender do real era desconsiderado. Por via de conseqncia, os conceitos foram articulados entre si na forma de um sistema fechado, formando um discurso circular. Foi a partir deste que a Escola considerou a histria e a prpria realidade, selecionando e extraindo da justamente aqueles elementos que reafirmavam o prprio mtodo e as proposies dele derivadas. Por outro lado,
Ao prescindir da considerao do processo histrico, no qual ocorre a ao humana, as prticas sociais e as concepes depuradas de Antagonismos e Contradies foram eternizadas em seu valor e contedo e, por isso, transformadas em instrumentos de conservao de si mesmas ou de situaes e idias. Eis tambm como a Doutrina universalizou um corpo de pensamento que justificava e legitimava o projeto poltico que se pretendia realizar e perpetuar. Por essa razo, ainda que a ESG reivindicasse o carter dinmico da Doutrina, uma vez que a considerava em

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permanente evoluo e transformao, seu desenvolvimento, concebido de signos e categorias permanentes, tornaria o dever-ser apenas um desdobramento e aperfeioamento das caractersticas imanentes e essenciais da chamada cultura nacional. Assim o vir-a-ser, em que tambm se converteu a Doutrina era continuao, jamais ruptura; era harmonia, jamais contradio. Era, pois, a projeo aperfeioada no presente dos fluxos essenciais do passado. (Rocha, 1996:53) Guerra

A ESG um instrumento de um projeto estratgico. Sua formulao doutrinria sobre a SN depende em grande medida da preparao para a guerra. (Oliveira, 1988:241) Por isso, nos primeiros momentos da ESG, uma boa parte dos estudos foi dedicada a esse assunto. A partir de 1951, progressivamente, a maioria das formulaes voltou-se para a guerra revolucionria. Mas mesmo as variegadas distines dadas guerra no continham grandes diferenas, as nfases eram apenas complementares. Para os militares esguianos, havia uma guerra no convencional em curso, sem um teatro localizado, que deveria, por esse motivo, engajar toda a sociedade, as instituies e os recursos da Nao. A partir de 1966, com a acentuada preocupao com relao guerra psicolgica, esta foi definida precisamente como instrumento de dominao. O que havia de especfico, nesse tipo de conflito, que toda e qualquer manifestao contrria ou simplesmente diferente da poltica governamental definida entendida como instrumento, efetivo ou potencial, da Guerra Revolucionria Comunista. Da que os estudos da guerra psicolgica tenham se realizado em estreita relao com as formulaes atinentes guerra revolucionria comunista. Este foi, sem dvida, um dos temas a que mais a ESG dedicou sua ateno. Era consentneo, de outra parte, com a nfase dada s guerras no-clssicas. A guerra revolucionria apresentada como tendo o objetivo de conquistar o poder pelo envolvimento da populao. Esse carter atribudo guerra revolucionria, que atuaria no interior da nao, implicou as formulaes a respeito da organizao da contra-ofensiva nacional - no caso, propriamente as formulaes relativas segurana interna da nao.
Por essa razo, a concepo de Segurana possibilitou que se admitisse a interveno das Foras Armadas, condicionando-a a uma finalidade ao mesmo tempo social e nacional, qual seja, de combate s situaes de perigo objetivo ou potencial. Ampliou-se, pois, sobremaneira o poder de interveno do Estado na vida social /.../ alm da autonomizao do Estado diante da sociedade, tambm a autonomizao das prprias Foras Armadas em relao ao Estado (Rocha, 1996:115).

Como observou o professor Oliveiros Ferreira, o que poderamos chamar de viso militar pode ser um fator positivo no debruar-se sobre elementos geopolticos, mas pode tornar-se negativo no planejamento e execuo de uma ao poltica quando divorcia totalmente a guerra e a poltica. Nas suas palavras,
Quando a poltica e a guerra so encaradas como obedecendo s mesmas relaes bsicas, a manobra militar ganha em flexibilidade pelo fato de as decises serem adotadas num contexto que no exclusivamente blico, e por levar em conta os fatores propriamente polticos que a inspiram; a ao poltica, por sua vez, adquire maior eficcia em virtude da capacidade de previso herdada dos princpios gerais da arte da guerra, entre os quais esto a preciso de pensar-se a guerra simultaneamente em termos absolutos e em termos reais. (Ferreira, 1984:580-581)

47 Quando no se faz essa aproximao entre as duas, tendo por base a semelhana entre fins e meios, poltica e guerra so vistas como tcnicas antagnicas. Ento, ao invs de completarem-se, opem-se. No caso da participao de um grupo militar na poltica, esta sacrificada no que tem de essencial - a ductibilidade da ao, a manobra ttica e a manuteno do contato permanente com a massa a uma errnea concepo do que seja a guerra (Ferreira, 1984:582). Acaba-se pretendendo impor sociedade o ethos burocrtico disciplina, obedincia -, de forma que as divergncias so vistas como atentatrias.
Sociedade

A noo de sociedade da ESG apresentava acentuados traos hobbesianos. O homem visto como um ser egosta que, para conviver com outros homens em sociedade, precisa renunciar parcialmente sua prpria vontade em benefcio do bem geral. A sociedade, regulada por leis e convenes, resulta de um pacto artificial, pelo qual o homem abdica de sua liberdade em favor do Estado, em troca da garantia de proteo e segurana. Do momento em que percebe a sociedade como resultante da evoluo natural de indivduos cujos impulsos e instintos so egostas - que se manifestariam no interior da prpria sociedade e que s poderiam ser inibidos por meio da coero por regras duradouras, em nome do bem geral -, esse esquema hobbesiano articula-se a elementos da concepo positivista e organicista. Toda e qualquer sociedade, independentemente do seu processo de constituio, resulta da evoluo natural dos homens, pela criao de interesses comuns. Desconsidera-se, ento, o homem como sujeito histrico, cuja ao prtica transformadora redunda em que ele tambm se constri na relao com outros homens, em sociedade. Por outro lado, em consonncia com isso, o apelo ao processo histrico seletivo e instrumental, visando a destacar e reforar as noes homogeneizadoras da doutrina. Os vnculos comuns so, ao mesmo tempo, aspecto conformador dos grupos sociais e potencializadores da sua unidade de ao. Essa viso de sociedade reconhece o jogo de interesses individuais e grupais como resultantes de manifestaes naturais, como instintos e intuies. A evoluo da sociedade, ao promover a transformao e a projeo de interesses individuais em coletivos, realizaria a passagem do simples ao complexo e promoveria um estado de equilbrio e adaptao entre seus membros. As diferenas existentes so entendidas como naturais, desde que no afetem o bom funcionamento da comunidade. (Rocha, 1996:77). Assim, a constituio das sociedades vista como um processo evolutivo linear de uma sociedade que, tal organismo vivo, apresenta aspectos como crescimento, adaptao e defesa como inerentes ao seu desenvolvimento. O conceito de ordem fundamental, de modo que os conflitos e contradies so vistos como manifestaes patolgicas cujo tratamento a represso. Esse tipo de viso resulta de um acordo terico entre o positivismo dos militares brasileiros e o funcionalismo estrutural dos norte-americanos 11 .
Nesse sentido, a diferena ao mesmo tempo negada e reconhecida como realidade social. O discurso doutrinrio reconhece a existncia de diferentes grupos
Ubiratan Macedo afirma que A influncia do positivismo foi irrelevante na ESG, cingiu-se ao poder evocativo do lema nacional. A teoria militar do positivismo exposta por Benjamin Constant o oposto da que veio a prevalecer por mediao de Ges Monteiro. Da mesma forma, ele questiona teses como a de Schooyans, de que o integralismo fornecera os aspectos doutrinrios da doutrina esguiana. Para ele, a funo atribuda s elites [pela ESG] mostra o carter nomobilizatrio do modelo poltico esguiano, em contraste com o modelo mobilizador do integralismo (Macedo, 1988:217).
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ocupacionais, tnicos, religiosos e culturais, o que seria positivo na medida em que cada um desses grupos, por suas funes especficas no sistema social, criaria relaes de complementaridade entre si, assegurando, dessa forma, a sobrevivncia e a evoluo do todo social. Entretanto, o discurso omite tanto as diferenas intragrupos - tnicos, religiosos, culturais e econmicos - como as relativas s classes sociais. (Rocha, 1996:78).

Com isso, pretendia-se eliminar as idias de conflito e de contradio, vistos como elementos de desagregao, a fim de afirmar a integrao e harmonizao das classes. Perpetuar a idia de interesse comum era uma forma de garantir a Nao, por isso as diferenas sociais no so expressas nos conceitos. Sendo assim, os Objetivos Nacionais (ON) fundamentam-se exatamente nos interesses comuns. Enredados com estes esto os atributos do carter nacional brasileiro: individualismo, adaptabilidade, improvisao, vocao pacifista, cordialidade e emotividade, a maioria originrios da sociedade colonial, numa viso que imobiliza presente e futuro, influenciada pelos principais pensadores conservadores. O crescimento e a mudana so vistos como desenvolvimento de um princpio j contido na origem: no h rupturas, apenas aperfeioamento. A tese de que a miscigenao criou zonas de confraternizao entre as raas e as culturas, democratizando, dessa forma, a sociedade patriarcal e aumentando a mobilidade social est, para a ESG, na origem da formao social brasileira, que se desenvolveu e se perpetuou no carter do povo na forma de adaptabilidade, cordialidade e vocao pacifista. (Rocha, 1996:79) Esses atributos esto acima de quaisquer diferenas no interior da sociedade e so extensivos a todas as geraes e setores. A histria acaba sendo, aqui, um sedimento de elementos que podem unificar e homogeneizar o povo, inculcando-lhe uma identidade e a perspectiva de seguir um destino comum. Era a construo da mstica nacional, cujo objetivo ltimo era a consolidao da idia e da realidade de nao, reivindicadas por Oliveira Vianna de h muito.
Ainda de Oliveira Vianna, a Doutrina assimilou a concepo de que a sociedade brasileira, como as europias, deveria desenvolver um sentimento nacional mobilizador de seu potencial voltado para o progresso do capitalismo. Em outras palavras, o que foi produto da constituio histrica das naes e Estados europeus deveria aqui ser introduzido, ainda que artificialmente, pelas elites. (Rocha, 1996:80)

A ESG via os grandes movimentos da histria brasileira como manifestaes das elites. As dificuldades de comunicao, a extenso territorial e conjunturas propcias s resolues de cpula so citados como explicao para isso, eximindo-se a populao de uma apatia imvel. E os Manuais Bsicos acentuavam mais:
No houve no Brasil, felizmente, os aspectos de opresso, de violncia e de explorao indiscriminada que engendraram grandes movimentos populares /.../. Grupos polticos, culturais, religiosos e militares tm sido o cadinho das reformas estruturais e ideolgicas; tm constitudo os elementos de orientao das maiores mudanas no rumo da histria do Brasil. (Apud Rocha, 1996:81)

O povo foi qualificado em conformao e para a reafirmao da nao. A definio de povo encontra bases em Alberto Torres. Ao colocar em questo a impossibilidade do alcance das finalidades da poltica, quais sejam: promover e impulsionar o progresso da civilizao, pela impropriedade dos paradigmas nos quais se apoiava, Torres procurou demonstrar a

49 necessidade de um mtodo racional caracterizado pela observao e pela experincia. Assim a ao poltica e a garantia de eficcia estariam fundamentadas pela racionalidade cientfica. (Apud Rocha, 1996:83) Assim, apenas os mais capazes podero de apropriar do conhecimento necessrio para conduzir o Estado e a Nao. Essa perspectiva tem os desdobramentos seguintes: No nvel terico, pelos elementos relativos necessidade de um conhecimento cientfico perseguido pela Doutrina como fundamento de uma prtica poltica viabilizadora de um projeto de Nao e de Estado que lograsse projetar o Brasil, com destaque, no mundo capitalista. Por sua vez, no mbito da prtica poltica, tais premissas tambm conduzem a Escola a eleger as elites como sujeitos privilegiados do referido projeto, pois s elites compete intermediar a relao entre povo e Estado (Rocha, 1996:83).
Nao

A nao definida pela ESG como produto da evoluo natural das sociedades no tempo e no espao: nao a sociedade j sedimentada, baseada em uma identidade coletiva.
Atribui-se Nao a tarefa de consolidar um estgio de evoluo que parte do homem e transcende a sociedade, abrangendo elementos comuns, tais como: lngua, costumes, tradies, idias, ocupao de territrios, dentre outros. /.../ a sociedade, ao se consolidar num territrio e explor-lo, cria tambm as bases de consolidao da Nao. Nesse processo, ganha importncia o surgimento de padres sociais, os quais, entendidos como fenmenos naturais decorrentes da necessidade de ordenamento do complexo de caractersticas da sociedade, do origem s instituies. /.../ pressupe coeso e ao poltica comum. Tendo como categoria essencial o povo, concebe-se a histria como construda sem oposies radicais, isenta de contradies. (Rocha, 1996:85)

Tal concepo de Nao, que inclui insuficincias internas, est bastante afim s do nacionalismo conservador, o que evidenciado ainda pela prioridade que cabe ao Estado como materializao poltico-jurdica da Nao. Isso leva a uma violenta crtica ao liberalismo e, subliminarmente, democracia. Mas o nacionalismo da ESG ia alm: combinava de forma peculiar a idia de colaborao externa em todos os planos da vida nacional com a de soberania e autonomia da Nao (Rocha, 1996:86). Deveria haver coincidncia de interesses entre a elite e a Nao: Em verdade, a coincidncia entre as necessidades da Nao e das elites dirigentes manifestavam-se no objetivo de promover o desenvolvimento capitalista, ressalvadas as possveis diferenas quanto conduo desse processo, devendo prevalecer a orientao do Estado sobre os interesses particulares e momentneos dos vrios setores da burguesia (Rocha, 1996:86). A meta era transformar o Pas numa potncia mundial 12 . Isso exigia que recursos potenciais ou efetivos do Brasil fossem colocados em estado de completa disposio aos fins hegemnicos, fechando assim a possibilidade de integrao comercial mais profunda em termos regionais (do Brasil com a Amrica Latina) ou com os pases socialistas [sic]. Ora, os processos reformistas de carter nacionalista e os movimentos de carter popular passam a configurar obstculos nesta nova ordem (Oliveira, 1988:237). O nacionalismo esguiano foi modelado pela oposio entre democracia e totalitarismo. Esse , como apontou Selma Rocha, um dos pontos vulnerveis da doutrina, uma vez que ao
Segundo Selma Rocha, necessrio distinguir essa perspectiva da idia de nao civilizadora do colonialismo e do imperialismo, bem como da noo de superioridade das raas, rejeitada explicitamente.
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50 definir a democracia, a Doutrina apresenta, ao mesmo tempo, dois modos de entend-la: o primeiro apoiado na idia de que o poder e a soberania da Nao devem ter como fonte a sociedade; e o segundo, que concebe a soberania e o poder como atributos do Estado, a quem cabe, por meio de suas elites, construir intrpretes e executar a vontade da Nao (Rocha, 1996:87). Assim, o contedo conservador desse nacionalismo vai alm da vocao autoritria, expressa no papel atribudo ao Estado e s elites, e ao papel instrumental da democracia. O objetivo maior era transformar a Nao brasileira em potncia capitalista e garantir o bem comum e isso condicionava a relao com os vrios setores da sociedade.
Para viabiliz-lo, a Doutrina priorizou as alianas internacionais em detrimento das foras progressistas da sociedade como meio de fazer prosperar o modelo capitalista e liberar o destino nacional, o devir poltico da sociedade brasileira /.../. Mas, para que esse trao se efetivasse, era imprescindvel a colaborao de toda a sociedade. Assim, a aluso aos conflitos ou contradies que marcaram o desenvolvimento histrico da sociedade brasileira era dispensvel, tanto quanto qualquer mudana teria de ser cuidadosamente controlada, no interrompendo o curso evolutivo natural da Nao. (Rocha, 1996:88)

Assim se explica a nfase dada ao perigo virtual do inimigo interno.

Estado

O Estado foi apresentado como tendo surgido natural e continuamente, dando origem Nao. Esta, pela complexidade das relaes que engendraria, assim como pelas exigncias ditadas para alcanar a ordem e o progresso, tornaria necessria a organizao do aparelho estatal. (Rocha, 1996:90) Populao, territrio, soberania e governo - os elementos constitutivos do Estado - so tomados como manifestaes poltico-jurdicas dos elementos naturais da Nao: o homem, a terra e as instituies. Nesta viso homogeneizante de populao, ainda que - baseando-se em elementos do passado para conferir identidade comum no presente - a doutrina legitime a heterogeneidade e a diviso de classes, nem mesmo assim aponta vnculos imediatos entre o Estado e a classe dominante. Pela noo de soberania, que tem a pretenso de conferir uma autonomia mnima ao Estado em relao sociedade, prevalece a generalidade poltica. Esta autonomia , claramente, voltada ao desenvolvimento do capitalismo e dominao burguesa, mas ainda assim considerada fundamental para refrear o impulso pelo lucro, que contm a potencialidade de gerar desequilbrios sociopolticos atentadores SN. A autonomia do Estado garantida pelo Poder Estatal, pelo monoplio dos meios coercitivos, que o distancia da sociedade na medida em que o governo cedia a autoridade e os meios para impor-se e para impor a ordem. Selma Rocha observa que, ao contrrio do que percebemos em Golbery, a semelhana com Thomas Hobbes
limita-se atribuio que a Escola confere ao Estado, dotado de base jurdica e pleno monoplio da fora para garantir a Ordem e a Segurana, controlando a tenso e reprimindo os conflitos existentes entre os homens. A particularidade que, para a Escola, o Estado no se funda na concesso de liberdade por parte dos homens, mas, precisamente, em suas aspiraes, interesses e ideais comuns. E aqui podemos entender que entre os homens e o Estado h uma mediao fundamental, a Nao,

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para cujo progresso e crescimento devem convergir todos os esforos e empenho do Estado (Rocha, 1996:92).

Assim, a Nao se constitui, pela doutrina, no elo que confere legitimidade aos conflitos interestatais e diferentes projetos de sociedade concorrentes na guerra fria. dessa forma que se justifica o envolvimento do conjunto da sociedade em busca da preservao do Estado. Segundo a ESG, o povo o verdadeiro detentor da energia empregada para a realizao dos ON e do poder poltico, excludo o monoplio do mando. Este, nas democracias representativas, delegado aos governantes, para a realizao do bem comum. Isso se d por meio do consenso, pela autenticidade das representaes poltico-partidrias, pela constante aferio dos interesses imanentes do povo e pela formulao de uma poltica que atenda aos legtimos interesses nacionais. So considerados como fundamentos da democracia a legitimidade do poder, a organizao de um Estado de direito, a responsabilidade de governantes e governados e o governo da maioria. Os protagonistas so o povo e a elite, com atribuies distintas e complementares. s elites cabe um poder hegemnico de interpretao e implementao dos ON. Ao mesmo tempo, as elites devem incutir no povo objetivos por ela definidos, a fim de garantir o aperfeioamento material ou espiritual da nao. No h, na doutrina, mecanismos inibidores de sua ao. So citados apenas os riscos de caos em caso de descompasso entre as aspiraes das elites e as nacionais. Note-se que tanto o papel das elites como os anseios e as aspiraes da sociedade so definidos a priori, o que lhes confere carter formal e permanente, uma vez que no emergem de relaes histrico-sociais especficas. (Rocha, 1996:93) Participao e representao so tambm suportes desse conceito de democracia, ambas tratadas no mbito da pluralidade partidria, em que a participao do povo na vida poltica nacional reduz-se escolha de representantes. (A partir de 1974, o conceito de participao inserido na doutrina como fundamental, ao lado de segurana e desenvolvimento.) A soberania da sociedade , portanto, restrita, enquanto a do Estado ampliada, mesmo porque este considerado legtimo representante da vontade geral da nao. O Estado de direito visto como resultado da necessidade de auto-reduo do poder e pela diviso de poderes, mas tais condies valem apenas para situaes em que no se enxergam riscos democracia e nao. Nas situaes de exceo, a concentrao ilimitada de poderes por parte do Estado passa a ser considerada legtima. Por outro lado,
a Doutrina ressalta que a viabilidade de um sistema poltico democrtico depende do seu grau de enraizamento nas tradies histricas e culturais do Pas. J o seu desenvolvimento depende da garantia do clima de tranqilidade, estabilidade e normalidade sociais, clima este apoiado em duas ordens de constrangimentos coibidores de possveis abusos. A primeira se faz necessria em relao s elites, particularmente aos empresrios, por suas ambies desmedidas. A segunda dirigida aos trabalhadores, visando a evitar manifestaes de descontentamento e revolta. /.../ Dessa forma, a idia de revoluo destituda de qualquer contedo transformador, uma vez que legitimada na defesa da democracia como a contraface da ordem capitalista. (Rocha, 1996:95)

Portanto, retirado da sociedade e do parlamento o poder de elaborao e de deciso no que se refere aos ON. Como membros da elite, os integrantes da Escola pretendem nortear a prtica poltica das elites civis, arvorando-se em guardies dos interesses nacionais. Fixados tais parmetros, s elites civis estaria reservado o papel estrito de elaborao dos objetivos

52 nacionais atuais (ONA), pois os objetivos nacionais permanentes (ONP) so imutveis e permanentes, dada sua origem no passado. Assim, desde o Brasil-colnia verificam-se na sociedade brasileira anseios de integridade territorial, integrao nacional, democracia, progresso, paz social e soberania. A abstrao do processo histrico, e portanto de sujeitos e relaes concretas no tempo e no espao, advm da necessidade de legitimar idias com uma operao ideolgica pretensamente racional. Elizer Oliveira observou que
os ONP esto mais localizados no campo da filosofia, informadora de uma viso do real, do que no domnio das relaes de fora poltica. Pois trata-se de uma viso abrangente sobre o carter nacional, dos atributos que qualificam o povo por oposio s elites: individualismo, adaptabilidade, improvisao, vocao pacifista, cordialidade, emotividade e criatividade. Estas caractersticas so de fato expresses de uma viso de mundo que a prpria da DSN. Esta viso de mundo comporta uma viso jurdico-administrativa do Estado, concebido como um organismo e instrumento de poder /.../. Uma viso organicista e funcional da sociedade /.../. Uma teoria quantitativa do poder, estatal por natureza, que pode ser potenciado mediante aplicao de recursos, visto que ele no deriva de relaes sociais. Uma viso estratgica (Brasil-potncia) erigida sobre um processo de desenvolvimento (capitalista transnacionalizado) sob a direo da elite civil-militar. (Oliveira, 1988:245).

Nenhum outro ON foi desenvolvido ou analisado na Doutrina da ESG at 1979, alm da dupla segurana-desenvolvimento. Desde 1949, a questo da segurana era tratada j nos Princpios Fundamentais. Quanto ao desenvolvimento, embora a doutrina s tenha realizado estudos na dcada dos 60, os Princpios Fundamentais j anunciavam a importncia do tema. Mas, at fins dos anos 50, o tema foi tratado de forma genrica e imprecisa, apresentado apenas em relao segurana e com o objetivo de promover e garantir o bem-estar da Nao. Para a doutrina, so indissociveis os dois. Quando a ESG, a partir de 1964, passou a dedicar-se aos estudos relativos ao Desenvolvimento, o fez remetendo-se sempre ao problema da Segurana Nacional, isto , procurou estudar em que medida Segurana e Desenvolvimento condicionam-se reciprocamente. (Rocha, 1996:111) Inicialmente, insistiu-se na idia de mtua causalidade, contestada a partir de 1969, porque considerou-se que o crescimento do Desenvolvimento no implicaria necessariamente aumento das condies de segurana e viceversa. /.../ Por essa razo, o binmio Segurana-Desenvolvimento, em 1970, passou a ser definido em termos de interdependncia (Rocha, 1996:112). Via-se, ento, que o prprio desenvolvimento poderia acarretar problemas de segurana, como o despertar de crescentes expectativas. Mas sempre se ressalta a ntima relao dos dois, que s so estudados em separado para efeito metodolgico. A prioridade de um ou de outro depende da conjuntura, mas as repercusses so sempre globais.
Podemos verificar, pelo exame da evoluo dos conceitos, que at os anos 60, a despeito das referncias ao Desenvolvimento, o Objetivo Nacional [ON] fundamental, definido pela ESG, foi a Segurana Nacional. Em torno desse objetivo foram articulados os demais conceitos, o que levou a Doutrina a ser qualificada tanto pela Escola, como pela literatura poltica que a analisou, como Doutrina de Segurana Nacional. (Rocha, 1996:114)

53 Abordou-se, tambm, a relatividade da segurana, que para ser atingida demandaria o sacrifcio de necessidades sociais e nacionais, que gerariam fatores de insegurana. Ao apresentar a concepo de segurana como instrumento de defesa do ocidente, a doutrina buscava legitim-la. Em relao URSS, a ESG destacava que sua poltica de segurana se referia ao Estado e no nao, o que a deslegitimava. A crtica, portanto, no se baseia na idia de maior interveno do Estado na vida da Nao, mas sim na razo a partir da qual fundada: se na autoproteo do Estado ou na salvaguarda dos objetivos de toda a Nao. (Rocha, 1996:116) O alinhamento e engajamento no bloco ocidental no vista como imperativo, a partir de 1979, nem se aceita plenamente que seja um instrumento de realizao do projeto nacional. Afinal, como dizia o Manual Bsico, embora no represente um imperativo universal, s um Poder Nacional preparado e aplicado por uma Estratgia Nacional de Segurana preparado e aplicado por uma Estratgia Nacional de Segurana Externa realista, oportuna e flexvel representa efetivamente o alicerce da garantia necessria a uma Nao (Apud Rocha, 1996: 118). Como bem destaca Selma Rocha,
A ESG, nesse ano, parece render-se s contradies de seu Projeto Nacional, a saber: tornar o Brasil uma potncia capitalista, apoiada em alianas externas, particularmente com os Estados Unidos, em todos os nveis. /.../ parece apresentar um balano da tentativa de implantao do Projeto Nacional dos militares que estiveram frente do Estado desde 1964. Sem desconhecer e desconsiderar as diferenas de orientao dos presidentes e o grau distinto de alinhamento de cada um deles em relao ESG, parece irrefutvel que todos governaram nos marcos das mesmas orientaes ideolgicas /.../. A Doutrina, ao indicar tal mudana de perspectiva, ensejou a constatao de que os governos militares no lograram viabilizar sua particular viso nacionalista e o Brasil-Potncia como seu desdobramento (Rocha, 1996:118-119).

Alm disso, nos anos 60, a ESG passou a considerar em seus estudos a tenso norte-sul, percebendo que a condio subdesenvolvida do Brasil engendrava problemas novos, relativos SN, que exigiam o envidar de esforos para sua superao. Quando da instituio do primeiro governo militar, passou a estar no centro das preocupaes da Escola o planejar o desenvolvimento e o progresso da nao, o que reorientou definitivamente seus estudos. A partir da, o desenvolvimento, anteriormente tomado como parte da SN, passou a ser compreendida como, ao lado deste, constituinte da poltica nacional. Nesse momento, definiase o segundo grande ON a ser expresso na doutrina. Por meio desse ON, busca-se fazer aparecer a sociedade inteiramente engajada na superao do subdesenvolvimento e na busca do progresso. Os pases centrais apareciam como o modelo de felicidade e bem-estar a ser alcanado, no que se refere democracia e aos direitos fundamentais do homem. O poder nacional, segundo a ESG, uno e indivisvel. Duas decorrncias disso: em primeiro lugar, a subordinao do todo - o real - sua parte poltica, uma vez que objetiva engajar a nao no desenvolvimento e na segurana, preparando-a para a acirrada disputa pela projeo nos quadros internacionais. Em segundo lugar, elide as diferenas sociais e outras caractersticas internas ao pas. A inteno de fortalecer o Estado, visando a arm-lo para o confronto ou competio com outros Estados. Assim, o poder no considerado como relao social e histrica em que as distintas classes fazem prevalecer seus interesses. A diviso em poltico, psicossocial, econmico e militar vai de encontro ao iderio liberal do equilbrio entre os poderes republicanos. Essa diviso tambm faz um verdadeiro balaio de gatos, na medida em que no poltico esto identificados os trs poderes e os partidos;

54 no campo econmico, os trs setores e a prpria infra-estrutura; no campo psicossocial, a moral, a comunicao social e a opinio pblica; e no campo militar, os trs poderes. Sendo assim, como se cada um dos componentes tivesse a mesma quantidade de poder diante da Nao. rigorosamente verdadeiro, portanto, que, para fins de quantificao da potncia do Poder Nacional, o Poder Legislativo equivalente ao Poder Militar terrestre ou aeroespacial, assim como os partidos polticos em relao moral nacional (Rocha, 1996:132). Contudo, apesar dessa equivalncia entre os poderes, na doutrina o poder executivo prevalece sobre os demais poderes, da mesma forma que o poder do Estado prevalece sobre a sociedade. Em verdade, todas as expresses do poder nacional esto sob direo do Estado e do governo. Por via de conseqncia, a soberania do povo e a prpria democracia passam a pertencer ao campo da expresso poltica, dirigido pelo Estado. Em outros termos, as liberdades individuais e a democracia tm sua manifestao regulada e limitada pela interao entre as quatro expresses do poder nacional. Tambm est subentendida nesta lgica a prevalncia da expresso militar do poder nacional, em detrimento de sua expresso poltica dos partidos e dos trs poderes.
A coincidncia referida expressa na Doutrina a tenso em precisar o que especfico da Poltica e o que da Estratgia. /.../ o texto doutrinrio afirma que a Poltica deve ocupar-se do emprego do Poder, devendo, para tanto, ter sua ao orientada por uma doutrina poltica. Essa atribuio da Poltica a diferenciava da filosofia e da cincia poltica, posto que foge ao domnio da abstrao e da teoria e se situa no campo da prtica. /.../ A contradio entre a prevalncia de um ou outro aspecto s seria resolvida na formulao do Manual de 1979, quando a questo do emprego do Poder Nacional passou a integrar apenas o conceito de Estratgia, isto , foi definido como sua atribuio exclusiva. A dificuldade em distinguir os conceitos no se refere a um problema formal, ou seja, maior ou menor capacidade de racionalizao dos pressupostos da Doutrina. Antes, diz respeito contradio de submeter, total ou parcialmente, a Poltica lgica da guerra. (Rocha, 1996:139) Desenvolvimento

A poltica nacional deve impulsionar a poltica de SN e a do desenvolvimento. Embora sejam consideradas pela ESG como interdependentes, o que significa para a instituio que a prevalncia de uma poderia resultar em desenvolvimento da outra, o predomnio da Poltica de Segurana e a semelhana entre ao Poltica e Estratgia no poderiam se estabelecer de forma permanente, pois colocavam em risco o bem-estar e a liberdade como condies da estabilidade social e do Desenvolvimento. (Rocha, 1996:141) A necessidade de planejamento era afirmada, tendo em vista que o laissez-faire mostrara-se incapaz de conter as crises, a inflao e tantos outros malefcios. Propugnava-se, ento, conforme o Manual, um certo tipo de capitalismo dirigido, onde se procura estabelecer a responsabilidade econmica ao governo e, em termos nacionais, alcanar maior progresso com segurana e estabilidade social. (Apud Rocha, 1996:123) Ou seja, a doutrina atribui ao Estado um papel a um tempo regulador e indutor do processo econmico, permitindo que atue como empresrio em certas reas ou induza investimentos da iniciativa privada, por meio de incentivos fiscais ou estmulo ao crdito. Em acrscimo ao Estado, deveriam ser usados todos os recursos possveis para desenvolver o Brasil, inclusive os particulares e estrangeiros. Isso est explicitado no prprio ncleo de propostas de desenvolvimento contidas na doutrina. A proposta era

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precisamente, mobilizar o capital interno e externo a partir da orientao e conduo do Estado, objetivando superar a condio de subdesenvolvimento do Pas. /.../ A engenharia poltica que a ESG se prope a de processar o Desenvolvimento baseado em um planejamento de Estado, do qual devem participar as representaes orgnicas da burguesia, induzindo as iniciativas empresariais para que os grupos econmicos no atuem unicamente em funo dos seus interesses especficos. (Rocha, 1996:124)

A ESG propalava a idia da necessidade urgente de um desenvolvimento construturado no capital multinacional, desenvolvimento este, porm, essencialmente tcnico, sem nenhuma mudana estrutural. Como instituio, a ESG encorajou dentro das foras armadas normas de desenvolvimento associado a valores empresariais, ou seja, um crescimento cujo curso industrial foi traado por multinacionais e um Estado guiado por razes tcnicas e no polticas. Este Estado seria estvel por intermdio de um autoritarismo poltico incorporado na DSN (Dreifuss, 1981:78). Havia, portanto, preocupao com a prtica do empresariado de realizar uma superexplorao do trabalho, cujo resultado era a ampliao das condies de pobreza e a insatisfao, utilizveis pelo comunismo insidioso. No obstante, as ressalvas s prticas do empresariado no implicam, em absoluto, o questionamento da propriedade privada. Nas palavras de Selma Rocha,
Na Doutrina, a liberdade e a democracia tm, inequivocamente, carter instrumental, pois os manuais constroem os mecanismos de conteno e subordinao da democracia e da soberania lgica da Segurana e dos ditames do Estado. /../ J a propriedade entendida por outro enfoque. Ela entendida como direito inalienvel, como expresso da ordem natural da sociedade. Sua existncia reconhecida como o cerne do capitalismo e, portanto, do Desenvolvimento. (Rocha, 1996:126)

A crtica ao liberalismo no se estende a uma contestao ao direito de propriedade. Reitere-se, porm, que o apoio aos capitalistas - vistos como busca de objetivos prprios, s vezes em detrimento da nao - no era incondicional. Havia que aliar-se ao empresariado, sob a gide do mesmo projeto nacional indicador de investimentos. Sindicatos patronais, federaes e institutos burgueses deveriam estar integrados no sistema de desenvolvimento nacional. Em suma, para a Escola, no se pode suprimir a liberdade econmica, o mercado e a propriedade, sob pena de inviabilizar o desenvolvimento em bases capitalistas. Situao bem diferente ocorre com as liberdades polticas e os direitos civis. Antes de mais, lembre-se a total identificao entre poltica nacional e poltica estatal, o Estado concebido como porta-voz dos interesses da nao. Nenhuma outra fora social partidos ou legislativo, por exemplo - participa da elaborao dos ON ou acompanha sua implementao. A doutrina tambm no admite a participao de outros setores da sociedade civil no processo poltico, mesmo porque nem mesmo concebe sua existncia. As foras sociais organizadas so vistas como grupos de reivindicao ou contestao a ser apaziguados ou combatidos. Os partidos aparecem como agrupamentos que aglutinam e orientam as correntes da opinio pblica politicamente significativas; fora dessas atribuies, so concebidos como ameaas, pois podem se constituir em condutores de presses e antagonismos. A liberdade partidria , por essa razo, substituda pela pluralidade, que seria suficiente para expressar as correntes significativas de opinio e caracterizar a democracia. A Escola, nesse caso, atribui, Poltica Nacional, por meio do Estado e das elites, a funo de controlar o exerccio da liberdade e as condies de bem-estar dos cidados, baseadas na

56 avaliao das condies de Segurana e Desenvolvimento da Nao. A autoridade prevalece liberdade. (Rocha, 1996:144) A necessidade de aes dinmicas em relao ao planejamento do desenvolvimento nacional e sua implementao refora a necessidade de agilidade e eficcia na formulao e nas decises a ele referentes. Portanto, limita-se elite o planejamento e a orientao da vida nacional. Mas a elaborao, as decises e o acompanhamento da poltica a ser executada tarefa atribuda exclusivamente aos dirigentes. Por outro lado, fazia-se necessrio engrandecer o poder nacional por meio de todos os recursos possveis, inclusive externos. O tipo de nacionalismo propugnado pela ESG admite a colaborao estrangeira como necessria para o impulsionamento de nosso desenvolvimento. Esta deveria vir de tal forma que no comprometesse o poder nacional a fim de que, conquistado o estatuto de pas desenvolvido justamente pela assistncia das potncias, possase liberar a vocao imperial, considerada prpria dessa condio, imagem e semelhana dos Estados Unidos (Rocha, 1996:135). As vrias verses da Doutrina no conceberam a possibilidade de fazer avanar o capitalismo brasileiro sem a participao do capital externo. Tambm foi reiterado o papel do Estado como condutor, indutor e regulador do conjunto das atividades econmicas. O Paradigma do capital concluso passa a ser, dessa maneira, a medida para que o capital atrfico alcance o verdadeiro capitalismo, no se apercebendo da impossibilidade estrutural dada pela incompletude de classe de nossos proprietrios em face dos limites histricos de sua potncia social. (Rago, 1998:160) Segundo a doutrina, portanto, a soberania do Estado ilimitada, enquanto que a democracia tem limites.
A SN pode exigir tudo da nao, at mesmo o bem-estar e a liberdade. No de espantar-se, assim, que a democracia, como forma de convivncia poltica, sendo um dos ONP da DSN, no faa parte dos ONA /.../. Na verdade, democracia no faz parte dos ONA da ESG em qualquer de suas publicaes recentes de formao dos estagirios /.../. No h outro critrio mais decisivo do que o do fortalecimento do potencial nacional. (Oliveira, 1988:243)

Contudo, lembra Selma Rocha, ainda que prevalea a soberania do Estado em relao do povo, as reiteradas referncias democracia no se constituem apenas em mero recurso ideolgico do discurso para justificar os poderes estatais. Ainda que restrita, a ESG a considera um instrumento inibidor de possveis abusos de poder em prolongadas situaes de exceo, comprometedoras da Segurana Nacional. (Rocha, 1996:160) Por ver prolongamento da excepcionalidade como comprometedora da prpria segurana que a ESG previu a preponderncia da Poltica de Segurana em relao de Desenvolvimento apenas como situao circunstancial(Rocha, 1996:161).

Geopoltica

Os estudos na rea de geopoltica iniciaram-se em 1952. Essa rea era tratada, ento, cautelosamente, tendo em vista a m fama da geopoltica, dado o seu aproveitamento pelo nazi-fascismo, e a relativizao de seus predicados pelo avano tecnolgico. As definies dadas geopoltica no decorrer dos anos 50 no se articulavam com a DSN e caracterizavam-se por razovel grau de impreciso e determinismo. definio

57 incerta, somam-se a enorme abstrao das diretrizes, que no esclarecem os nem os meios necessrios nem seus agentes viabilizadores. Desde o incio dedicada a servir ao Estado, a geopoltica orientou seus objetivos no plano das relaes internacionais, especialmente com sua idia de que espao poder. Por esse meio, tornou as relaes internacionais como elemento de coeso e centralizao da nao e subordinou a sobrevivncia prpria e a do conjunto da sociedade ao sucesso ou insucesso das aes estatais levadas a cabo nesse mbito. Partia, portanto, de uma idia de Estado autonomizado em relao sociedade, movido por interesses prprios mas, ao mesmo tempo, identificado com o ideal de nao que supostamente representaria. As conseqncias desse raciocnio so muito importantes: as diferenas sociais foram diludas no plano ideolgico e, no plano poltico, os conflitos subordinaram-se aos objetivos globais de domnio de poder. (Rocha, 1996:60) Inoculando os conceitos geopolticos difundidos na poca, a ESG os articulou, a partir de 1958, com os conceitos doutrinrios elaborados. Essa interpenetrao da geopoltica com as questes militares refletia a preocupao com a garantia de sobrevivncia do Estado-nao diante das presses e antagonismos manifestados internamente no pas, mas cujo estmulo encontrava-se no exterior. Aqui, as pretenses expansionistas do lugar ao objetivo de garantir a sobrevivncia do Estado e afirmar a poltica nacional. Por outros termos,
A complexidade das relaes internacionais desenvolvidas nos marcos da guerra fria e a emergncia da concepo de Segurana impunham a superao da viso geopoltica clssica, marcada, fundamentalmente, pela idia de defesa e expanso de territrios. A perspectiva de projeo e sobrevivncia do Estado e da Nao passaram a depender do desenvolvimento do Poder Nacional (em suas vrias expresses), de uma Poltica e Estratgia Nacionais, que o fortalecesse, e da Segurana Nacional, como condio do seu crescimento (Rocha, 1996:61).

Selma Rocha destaca que, no obstante a produo da ESG no que se refere geopoltica ser normalmente analisada tendo por base o pensamento geopoltico golberyano, a influncia deste, como comprova o exame dos manuais, no foi seno muito geral. A doutrina considera a geopoltica como um dos fatores a ser considerados quando da atuao do Estado com vistas a preservar a nao e alcanar os ON. Contudo, no vai alm, deixando de indicar as formas especficas pelas quais se daria essa apropriao. A sntese das discusses da ESG foi expressa no Manual de 1975, por meio de trs idias-fora: a posio geogrfica das naes como um dos condicionantes das relaes internacionais; o espao ou extenso territorial como caracterstica geogrfica que contribuiria ou no para a eficincia das aes polticas (Rocha, 1996:62). No obstante, prepondera a idia de que o fortalecimento do poder nacional determinante para a projeo da nao, mais que os fatores geogrficos. Estes fatores so importantes porque a integrao nacional e territorial (componentes dos ONP) constituem-se em elementos que caracterizam a Nao e propiciam as condies de desenvolvimento das polticas de segurana e desenvolvimento. O que se infere do estudo dos manuais que a geopoltica uma questo menor na doutrina. A geopoltica considerada por Maria Selma Rocha como um dos fundamentos da doutrina devido ao contedo ideolgico das formulaes relativas ao Estado, Nao e perspectiva de sua projeo e hegemonia no plano internacional (Rocha, 1996:64). Uma das definies dadas geopoltica : base cientfica da atuao poltica na luta de vida ou de morte do Estado, pelo espao vital. Sendo assim, aponta Selma Rocha, embora no esteja definido claramente o objeto de estudo, diz-se explicitamente que a funo da geopoltica subsidiar a ao do Estado em seus objetivos expansionistas. Nesse caso, a

58 Geopoltica constitui-se em instrumento de fortalecimento do Estado, o que traduz uma poltica de poder e de sua expanso, concretizando um aspecto de sua poltica nacional (Rocha, 1996:58). As pretenses expansionistas no mundo eram apresentadas como objetivos exclusivos dos pases comunistas, inspirando a elaborao do carter global e total da guerra. Baseava-se, assim, num diagnstico parcial do panorama internacional. As alianas entre os pases do ocidente foram vistas como respostas s investidas do comunismo internacional. Segundo Selma Rocha, a tenso Norte-Sul no considerada para efeito de compreenso do carter da guerra contempornea.

Golbery e a ESG

Em 1963, o embaixador americano no Brasil, em relatrio para seu governo, expressou a relao de Golbery com a ESG: ele geralmente considerado um dos principais intelectuais das Foras Armadas brasileiras e muitas vezes se atribui a ele o papel de principal autor das teorias sobre SN surgidas na Escola Superior de Guerra do Brasil (OESP, 13/12/98). Alfred Stepan, entre muitos outros, apontava Golbery como o principal terico da ESG e muitas vezes chamado de seu pai (Stepan, 1975:132). Stepan atribui a Golbery os momentos realmente originais da DSN brasileira, o fato de ela no ser mera cpia da doutrina norte-americana. Mesmo sendo exagerada, pois, como vimos, outros pensadores conservadores brasileiros deram sua contribuio Doutrina, importante reproduzir o pensamento de Stepan, pois reflete a importncia de Golbery para a ESG. A relao dos oficiais fundadores da ESG vinha de longe. Em 1943, Golbery, Geisel, Mamede, Heitor Herrera, todos capites, trabalharam juntos no III Exrcito, em Porto Alegre, num grupo comandado pelo coronel Idlio Sardenberg, posteriormente redator dos Princpios Fundamentais da Escola. O mesmo grupo trabalharia, trs anos depois, na organizao do Estado-Maior das Foras Armadas, aps o fundamental estgio nos EUA.
Era um grupo coeso, com muitas idias em comum e que tinha por hbito longas discusses em torno do Exrcito, do seu papel e organizao e mesmo dos problemas mais gerais do pas. Nessas discusses, em que Golbery e Geisel se destacavam, foram aprofundando suas afinidades /.../. - A, nesse trabalho, nasceu o embrio da Escola Superior de Guerra - diz Sardenberg (Bones, 1978:19).

Em 1952, Golbery foi chefe de estudos da ESG. As conferncias que pronunciou na poca foram reunidas num livro intitulado Planejamento Estratgico, e hoje so consideradas uma das principais fontes de ideologia da Escola Superior de Guerra e da Revoluo de 64 (Bones, 1978:19; ver tambm Stepan, 1975:136). A influncia de Planejamento Estratgico muito maior do que seus estudos geopolticos, estes considerados com curiosidade e simpatia, mas sem serem incorporados ao iderio oficial da Escola, ao contrrio do sucedido com o outro livro (Macedo, 1988:217). Os depoimentos de Golbery a respeito de sua participao na construo do iderio da ESG exprimem o orgulho de que tenha sido a sua a gerao a deixar substratos na ESG sobre os quais outros estagirios construram Doutrina coerente e integradora (PE:465).
Aqui senti, ento, a trepidao contagiante da criatividade que inspirava esta Escola, na elaborao original de uma Doutrina de Segurana Nacional novinha em folha,

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autctone de fato, por mais que em nada alheia ao que se formulava, justo naquele mesmo momento, nos laboratrios estratgicos mais adiantados do mundo. (PE:465; CN:3) Sob a orientao de homens como Juarez Tvora e Cordeiro de Farias - esprito empolgado e visionrio, um; inteligncia pragmtica e sutil, o outro -, mourejavam lado a lado, horas a fio e at varando noites, militares como Ernesto Geisel, Mamede, Herrera, Rodrigo Octvio e Dorval Reis, diplomatas /.../, tcnicos /.../, ao estmulo do convvio de estagirios da estatura de um Mrio Pedrosa ou de um Jos Honrio Rodrigues, para no citar seno nomes de quem se viria a afastar de ns por contingncias dissociadoras naturais dos perodos dinmicos das revolues, sempre apaixonantes e sempre dramticas, quase nunca justas. (CN:3)

No se pode descurar da importncia mpar dessa trepidao contagiante, tendo em vista que Golbery acredita que S essa batalha prvia das idias nos permitir enfrentar, com confiana, a dura, incessante e por vezes sangrenta batalha pelos interesses vitais que toda a exigncia de uma Nao, principalmente se ainda em fase de desenvolvimento, nesta quadra agitada da histria do mundo (PE:352). E o esforo parece ter valido a pena, pois, em perodos to rudes, mas to cheios de verdade, a Escola tem despendido esforos
no debater, estudar e ensaiar exaustivamente, ano aps ano, o mtodo, os processos e as vrias tcnicas do planejamento da Segurana Nacional, sem que a mova a determinao orgulhosa de impor solues ou de substituir-se aos rgos credenciados para tais tarefas, mas com o objetivo fundamental e superior de forjar uma doutrina, de acumular e transmitir uma experincia, e, sobretudo, de formar planejadores. E galardo no teria maior do que a repercusso de seus trabalhos fora do mbito escolar, atestada que esta por teis e valiosas medidas de carter prtico j tomadas, desde 1955, pelos escales responsveis, em proveito de um planejamento mais objetivo da Segurana Nacional, segundo aquela doutrina e fundamentadas naquela experincia que e deve ser um patrimnio comum. (PE:293-294)

A misria brasileira - as caractersticas essenciais e especficas do processo de formao da realidade socioeconmica nacional - condicionou portanto a prpria gnese do pensamento conservador aqui desenvolvido. Em seu rastro e apropriando-se de muitas de suas conquistas, a ESG buscou dar soluo - pela via do capitalismo associado - aos problemas, falsos e verdadeiros, que percebia na realidade nacional. Golbery foi um dos principais sujeitos desse processo. Acompanharemos, no prximo captulo, os ndulos do pensamento golberyano, cujas bases, para alm da geopoltica, encontram-se neste pensamento conservador e nesta realidade brasileira que ele tanto se esforou por compreender e modificar.

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Captulo II - As Bases do Pensamento Golberyano

1 - NO PRINCPIO, ERA O MEDO

O Estranhamente Crvel Mito do Contrato Social

questo da insegurana - e, portanto, de seu contrrio, a segurana - absolutamente fundamental para o pensamento do general Golbery. Podemos afirmar, sem sombra de dvida, que a quase integralidade da sua teoria baseia-se na questo primria do medo advindo da insegurana. O ncleo basilar sobre o qual se construtura a ideologia golberyana justamente a insegurana do homem diante de um mundo que no compreende e onde luta para sobreviver - o aturdimento profundo do esprito humano ante o mundo complexo e insondvel que o circunda e por vezes o sufoca e at mesmo o agride (PE:11, grifo nosso). Golbery esfora-se por expor a dramaticidade do Medo, adjetivando-o abundncia. Grande medo, medo csmico, medo paralisante e tenaz - mais que um sentimento, um estado de esprito terrvel que surge da insegurana generalizada e crescente, da angstia existencial do homem diante do mundo. Assim, existir sinnimo de viver sob o signo da insegurana, pois viver perigosamente o prprio de toda a vida na natureza, o prprio do homem em meio da sociedade, o prprio do Estado tambm nesse mundo que ainda o circunda (PE:403). Patenteia-se a, e o general no o disfara, a influncia de Hobbes - o filsofo do Grande Medo. O homem o lobo do homem. Ou, nas palavras do general, prprio da natureza humana que cada um, usando seus argumentos, tenha sempre como pano de fundo uma nica preocupao /.../: E como que eu fico? (Revista Veja, 16/4/84) Assim, a natureza do homem a natureza prpria do homem sob o capitalismo, egostica, mesquinha e interesseira. Hobbes apontado por Golbery como o principal representante dessa corrente filosfica que tem por base a questo da insegurana do homem no mundo. Tal corrente, diz ele, continua a existir com toda fora. Para ele, a diferena dos politlogos mais recentes encontra-se no mtodo, mas no na superao do medo fundamental - este ainda hoje persiste e, por isso, domina a teoria dos novos pensadores.
que o impulso incessante que domina, transparente, toda a dialtica hobbiana, tanto quanto o avatar que espicaa aos novos doutrinadores polticos, o mesmo grande Medo, o medo csmico que viu, na Terra, o nascimento da Humanidade e de sua verdadeira angstia existencial, o medo paralisante e tenaz que brota, incoercvel, da insegurana eterna do Homem. (GB:9; PE:362)

Atormentada pela insegurana que prpria da vida, a humanidade acabou por engendrar uma entidade qual delegou poderes excepcionais, a fim de garantir a segurana que no mais que a garantia de sobrevivncia, com tudo o que isso implica. No princpio, era o medo. E o medo fez-se Estado e veio habitar no meio de ns. Para Golbery, foi ainda Hobbes quem descobriu e apontou adorao reverente e temerosa dos povos o complexo estatal, o novo Leviat, esse deus portentoso, embora

61 mortal, da soberania e do poder absoluto. Por meio da teoria do contrato social, Hobbes pensou o Estado como criao racional de uma sociedade atormentada pela insegurana, que assim alienava parte de sua autonomia e de sua liberdade individuais em prol da segurana coletiva. Essas idias de Hobbes, continua Golbery, fecundaram igualmente o liberalismo nascente e o totalitarismo, a rendio total da liberdade do indivduo em aras de um poder soberano, incontrastvel e supremo, tendncia crescente desde ento.
O Estado soberano, surgido das fontes profundas do Medo para prover a segurana individual e coletiva na Terra, passaria a afirmar sua vontade onipotente sobre os destinos de todos os sditos que o haviam criado, assim mesmo, inigualvel e autrquico, mas, j agora, pela prpria necessidade de um raciocnio lgico, escorreito e severo, que o justificaria, de uma vez para sempre, contra todas as crticas e contra quaisquer argumentaes. E, assim, em Hobbes encontrariam, ao seu inteiro dispor, os defensores do autoritarismo mais rigoroso - todos os dspotas futuros, esclarecidos ou no; os senhores da guerra; os novos Csares, no tumulto de suas ambies insofridas; as minorias usurpadoras e tirnicas - inteiramente modelada, em linhas inflexveis e rigorosas, a teoria que lhes absolveria os desmandos e lhes encobriria os caprichos insanos, enquanto se pudessem manter, pelo poder da coao, como governos de fato. (GB:7; PE:361)

Assim, surgido das fontes profundas do medo, de acordo com o mito fascinante e estranhamente crvel do contrato social, o Estado teria como funo arbitrar conflitos internos dos homens-lobo em disputa, a fim de que a segurana e a prpria existncia do todo fosse garantida. O Estado seria, portanto, um rbitro imparcial com possibilidade de decidir com sabedoria salomnica as divergncias que ocorram no interior do grupo e que possam ameaar sua segurana e, portanto, sua existncia. Contraditoriamente, este pensamento acabou por fecundar teorias absolutamente dspares - tanto o liberalismo quanto o totalitarismo. por isso que, na tentativa de compreender fenmenos de massa ocorridos na primeira metade do sculo - como o fascismo e o nazismo, bem como o estalisnismo -, Golbery volta ao tema da insegurana fundamental. Englobando sob a denominao totalitarismo aquelas ocorrncias histricas inconfundveis, Golbery justifica seu aparecimento como j justificara o surgimento do Estado:
Na verdade, a insegurana generalizada e crescente em que se debate, agoniada, a humanidade de hoje, o pio venenoso que cria e alimenta essas hrridas vises, capazes, entretanto, de se tornarem uma realidade monstruosa. A insegurana do cidado dentro de cada nao e a insegurana de uns Estados em face dos outros, a viso onipresente da guerra /.../ dominam o mundo de nossos dias e explicam, por si ss, essa nsia neurtica com que os indivduos - desamparados, as multides - em pnico, os povos - desiludidos e aflitos, a Humanidade, enfim, se ergue e se lamenta e se debate, disposta at a escravizar-se a quaisquer senhores e a quaisquer tiranias, desde que lhe ofeream, num prato de lentilhas, um pouco de segurana e de paz. E, assim, acaba ou acabar afinal por perder, com a Liberdade trada, a prpria Segurana por que tanto almejara. (GB:9; PE:364)

Assim, numa conjuntura em que se debate, angustiado e como que perdido, o esprito humano (GB:15), a humanidade v se acrescer ao velho dilema entre Liberdade e Segurana um colorido profundamente trgico, com o surgimento de novas armas, e com o risco iminente de perda da prpria segurana por que se sacrificou a liberdade (GB:12). Fracassou a busca de segurana com a cesso de poder ao Estado, nos primrdios do seu nascimento. Agora, a equao tende a se repetir, em condies muito mais perigosas. Golbery, temeroso

62 desse resultado, evoca em Hobbes a admirvel construo lgica de sua monoltica sistematizao da poltica mas adverte que, a despeito dessa maravilha argumentativa, a liberdade deve ser preservada (GB:15). Desta forma, no obstante critique eventuais utilizaes incorretas da teoria hobbesiana pelos dspotas, minorias tirnicas e novos csares, Golbery no questiona seus fundamentos. Pelo contrrio, como j dissemos, Hobbes considerado por ele o melhor intrprete da gnese estatal pela alienao de poderes em funo do aumento da segurana. Outro aspecto da mesma questo foi destacado por Oliveiros Ferreira: a influncia patente de Hobbes negada ou se pretende negar por Golbery talvez pelo fato de, insensivelmente, transferir o esquema hobbesiano do plano individual, em que o autor do Leviat situara o problema /.../ para o do Estado, em que para Hobbes, o grande Medo jamais poderia existir, pois o Estado fora exatamente criado para trazer a paz aos homens (Ferreira, 1984:585-586). Alm do mais, pode-se chamar o general de continuador do filsofo do medo, pelo qual ele tambm se deixou dominar. Segundo Ferreira, o temor de que a civilizao cristocidental desaparea que inspira o pensamento do gen. Golbery; e de tal forma se faz sentir a presena desse elemento irracional nas pginas introdutrias que se poderia dizer que o conceito de Segurana Nacional desenvolvido na Geopoltica do Brasil nele se baseia, embora acuse Hobbes de haver-se deixado dominar pelo medo (Ferreira, 1984:586). Deveramos acrescentar que esse temor tambm se refere a qualquer elemento atentatrio segurana do Estado. Outro dado interessante que reflete as bases da viso de mundo de Golbery so os termos colocados do velho dilema liberdade versus segurana, como se outros aspectos no fossem possveis. , note-se, uma inverso total do lema da burguesia revolucionria do perodo iluminista: liberdade e igualdade. Os termos do seu dilema esto ambos sob a tutela do Estado. De outra parte, Golbery no chega a dar uma definio nica, inequvoca, de Estado. Ele d algumas indicaes no decorrer dos escritos, mas no chega s definies didticas que utiliza em outros momentos. Um dos indicativos mais slidos so as metforas biolgicas, bastante recorrentes quando fala do Estado e de seu processo de constituio e desenvolvimento: vida do Estado, organismo social, organismo poltico e outras. Uma das mais singulares metforas biolgicas aquela em que fala da distenso e da centralizao: como que pulsa, vivo, o corao do Estado, na seqncia interminvel de distoles e sstoles - sujeita como tal a arritmias, isquemias e enfartes, bradi e taquicardias, quando no a fibrilaes altamente perigosas (CN:21). As mais claras acepes de Estado que se pode encontrar em Golbery so as reproduzidas a seguir. O general percebe o Estado, juntamente com as Naes e as Comunidades, como grupos secundrios culturalmente organizados que, na escala dos conjuntos nacionais, se vm a dispor, como de todos sabido, bem acima ainda dos chamados grupos primrios e quase primrios, caracterizados que so estes por uma intimidade muito maior e um coeficiente mais elevado de identificao simptica, prprios das relaes face a face (GB:199-200). Estado , para Golbery, um organismo poltico com existncia real sobre uma dada rea e em um momento dado, e nada mais traduz que uma preponderncia das foras coesivas polticas, econmicas etc., sobre as foras desagregadoras de toda espcie (ou, pelo menos, um equilbrio mais ou menos estvel entre essas foras opostas) (PE:211). Impondo seu poder sobre toda uma gama de fatores desagregadores, o Estado no se resume a um aspecto poltico ou militar: Na realidade, a vida do Estado multiforme, estendendo-se-lhe a ao promotora, controladora e inibitria ou coercitiva a campos vrios e mltiplos setores,

63 todos interdependentes de fato e que mal se enquadram em qualquer das costumeiras demarcaes no mais que didticas - campos poltico, econmico, psicossocial e militar, por exemplo. (GB:15; PE:476) O Estado tambm pode ser coisas diversas de acordo com o objetivo que se pretende alcanar. Utilizaremos, para exemplificar, a geopoltica e a geoestratgia, que atuam em diferentes momentos do ser Estado: no mbito da geopoltica (que s pode ser nacional, como veremos em outro ponto), deve-se sempre visar sobrevivncia do Estado como entidade internacional dotada de um poder soberano, como organismo social em processo de integrao continuada, como nao prspera e prestigiada no mundo (GB:169, grifos nossos). Esses trs aspectos, portanto, fariam parte do Estado-nao em sua noo mais ampla. J a geoestratgia nacional deve visar, segundo Golbery, segurana do EstadoNao, portanto instituio estatal e seus diversos rgos. J aqui percebe-se a opo de Golbery em favor da segurana do Estado. Pois, ao fim e ao cabo, para ele Os Estados so realidades indiscutveis e insofismveis que atuam como unidade de poder no cenrio internacional (PE:205). Mesmo as elites, ele as pe sob o domnio e a servio da instituio estatal. A sociedade como um todo est a para servir ao Estado, organizada como nao, e para alm disso constitui uma abstrao. Da sua frase famosa: Os povos so um mito: s existem as naes, e a Nao o Estado (OESP, 6-8-76). Para Golbery, desde o seu aparecimento, sempre foram os Estados que ditaram as regras do jogo, no cenrio internacional; internamente, o Estado que realmente conhece os objetivos da nao e no poupa esforos para atingi-los. Aqui, no h diferenciaes internas no grupo social organizado sob um Estado. De qualquer forma, tal situao permanece atualmente, no obstante surgirem indcios, para ele claros, de novas formas que se relacionaro no mbito internacional num futuro mais ou menos prximo. Em suas palavras,
Desde que se formaram os primeiros Estados, sob a forma arcaica dos EstadosCidades que floresceram e brilharam no mundo da Antigidade, ressurgindo, ao depois, no terreno fulgurante do Renascimento europeu, desde os grandes imprios fundados pela religio ou pela espada at os Estados-Naes que, ainda hoje, entre ns se multiplicam, quando talvez j desponte, em formas embrionrias - a OEA, a OTAN, a OTASE, de um lado, e, de outro lado, a URSS -, a estrutura multinacional de amanh, sempre foram os Estados, os verdadeiros protagonistas no cenrio internacional, como intrpretes e paladinos autorizados das aspiraes e interesses dos correspondentes grupos sociais. (GB:10; PE:365)

Tambm no que se refere s relaes dos Estados entre si, a questo da insegurana fundamental. Como vimos, a prpria realidade que insegura, provocadora: - viver perigosamente. que isso, afinal, o prprio de toda a vida na natureza, o prprio do homem em meio da sociedade, o prprio do Estado tambm nesse mundo que ainda o circunda (PE:403). Isso porque o Estado no est sozinho no mundo: enfrenta-se com outros Estados num mundo de Estados-Naes em sua trajetria prenhe de tremendos pressgios, desde que o Tratado de Vestflia lhes deu foros de protagonistas principais no palco da Histria, primeiro europia, depois universal (CN:19). Cada um dos Estados criados pelo raciocnio lgico e escorreito dos homens tem seus prprios interesses, muitas vezes contrapostos aos dos outros Estados - ou, o que to grave quanto, muitas vezes coincidindo em seus objetivos. Por isso, cada um dos Estados se bate com os outros, procurando fazer prevalecer interesses prprios. a que entra a diplomacia. Mas, se esta falhar, os Estados no podero hesitar em ir guerra - vista por Golbery como praticamente inevitvel. Assim,

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o fato primacial que vale considerar, no conjunto do panorama internacional, que cada Estado se move ao impulso potente de um ncleo de aspiraes e interesses, mais ou menos definidos com preciso num complexo hierrquico de Objetivos. Para os Estados Naes de nossos dias, so seus Objetivos Nacionais [ON]. Animado, assim, cada Estado por seus prprios Objetivos, e fundamentados estes num cdigo moral predominantemente egosta, de admirar seria que no surgissem antagonismos diversos, alguns de importncia vital incontornvel, entre certos Estados, por quererem estes cousas opostas quando no, cada um para si, a mesma cousa, nessa paisagem anrquica que continua a ser, a despeito de todos os esforos despendidos milenarmente em tratados e ligas sempre pouco durveis, a vida internacional do planeta. (CN:11; PE:366-367)

Na atual conjuntura de guerra total, os perigos para o Estado recresceram em escala exponencial - Hoje, a insegurana do Homem a mesma, maior ainda, talvez, do que aquela que provocou o surgimento do Estado (PE:362; GB:9). Ou seja, falhou a tentativa inicial de conseguir segurana pela criao do Estado. O grande responsvel por isso o liberalismo, que prega o Estado ablico, fraco, indefeso. Golbery peleja por nos convencer da gravidade do momento, e no economiza adjetivos para exp-la. Esse ser um dos problemas que ele abordar com mais nfase: o solucionamento de questes que possam pr em cheque a sobrevivncia do Estado ou a sua integridade fsica, ou ainda sua coeso social. Ou seja, o problema da segurana nacional (SN), que em grande medida a segurana da instituio estatal, conforme veremos. Cabe, portanto, buscar o mximo de segurana em meio a esse mundo de altssima periculosidade para o organismo social. Os Estados ainda se relacionam uns com os outros de maneira direta, quase sempre bifrontal, com vassalagens bem definidas, o que Golbery chama de fase feudal das relaes internacionais.
Mas, no mundo dos Estados-Naes, estamos ainda numa fase feudal - urge bem reconhec-lo -, estruturando-se, atomisticamente, o poder em ncleos esparsos e autnomos, numa primeira etapa de cristalizao rudimentar, em que cada Estado se defronta com os demais, tal como, em outras pocas, os bares e os senhores, em seus domnios quase auto-suficientes, desafiavam-se mutuamente e levavam luta suas coortes heterogneas e turbulentas de cavaleiros, de servos, de vassalos e libertos. (CN:12; PE,:368)

Contudo, j se tem claros sinais de que vir por a o superleviat, o organismo poltico multinacional que o prprio panorama internacional de guerra total exige. Da mesma insegurana profunda que produz esse superestado, vm tambm as novas mitologias totalitrias, insidiosa ou explicitamente buscando convencer os indivduos a renegar sua liberdade para conseguir mais segurana, como j vimos. Assim, se no plano interno, desperta, o Leviat, adormecido por tantos sculos, ao som das novas mitologias totalitrias, as quais incitam e buscam seduzir a Humanidade desvalida e temerosa ao escambo ominoso, no plano internacional,
na moldura em contrao de um mundo j sem fronteiras que realmente separem, desponta o Estado-Universal, como soluo reclamada e nica possvel insegurana maior que esta a criar a prpria prognie de Leviats acossados, em suas disputas interminveis e estreis. E esse que est por vir ser o Leviat

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supremo, o Superleviat, senhor absoluto e incontestvel da Terra e do esprito humano. (GB:9; PE:362-363)

Golbery avalia que, para todos os Estados, o bem-estar, a prosperidade e o prestgio internacional tambm devem ter nveis mnimos, seja para a autodeterminao do Estado, seja para a integrao de seu corpo social. A integrao compreende dois significados. Em primeiro lugar, h a integrao fsica do territrio, fundamental para a sobrevivncia do Estado: sobrevivncia, essencial ainda a manuteno do territrio, base fsica do Estado, uma vez que sua mutilao redundar, em qualquer caso, em prejuzo da integrao e em reduo do bem-estar, da prosperidade e do prestgio nacionais(GB:199, grifo nosso). Assim, a integrao do corpo social a outra face da integrao, e est umbilicalmente ligada integrao fsica. Ambas chegam a se confundir, em determinadas situaes, tendo em vista que
a integrao sempre crescente do grupo social que compe a Nao, tanto sob o ponto de vista poltico, como psicossocial e econmico, tambm condio fundamental da prpria sobrevivncia do Estado. Essa integrao um processo social, permanente e dinmico, que apresenta fases crticas de retrocesso e fases positivas de recuperao mais ou menos acelerada, mas desconhece a estagnao duradoura; uma ameaa de desintegrao social, de ciso, de cisma no seio da comunidade nacional sempre um desafio dos mais srios prpria sobrevivncia do Estado-Nao (GB:169).

Alm do cenrio internacional, portanto, h que considerar como tambm importante o quadro interno de cada Estado-Nao. Na viso hobbesiana de Golbery, a vida internacional reflete as caractersticas da vida de cada indivduo dentro da sociedade: a luta de todos contra todos, na busca incessante e, muitas vezes, vital, da realizao dos seus interesses. Ele acredita no Estado como o rbitro supremo que deve dirimir os conflitos sociais e impor, pelo interesse geral, a paz social.
Nada a h de novo que se no houvera manifestado tambm no mbito restrito da estrutura estatal, durante o processo paulatino de concentrao de seu poder, como fora de coao capaz de se impor, soberana, a todos os cidados, e de dirimir, sem apelao, os conflitos que, lanando uns contra outros, prpria paz social viessem, por fim, ameaar. (CN:12; PE:368)

O que se pode concluir do conceito de Estado de Golbery que no passa de uma generalizao abstrata, a-histrica e informe. Formado pelo estranhamente crvel mito do contrato social e embasado em um cdigo moral, animado por uma conscincia coletiva e cnscio dos interesses e aspiraes comuns a todos os seus membros, que em tese representa e que o apiam, parece uma entidade espiritual intemporal e homognea, cujos nicos contrapontos so os interesses de outros Estados. A origem apontada para o Estado busca justamente transmitir a idia de que o Estado eliminou conflitos e diferenas sociais mais srias e representa os interesses de toda uma sociedade - ao invs de classes antagnicas, o povo ou, como ele prefere, a nao. Os casos que demandariam a arbitragem imparcial do Estado, parece, seriam exceo. No h aqui, portanto, o contedo classista que permeia as relaes sociais no capitalismo - Golbery, alis, evita furtivamente a identificao de seu Estado com o capitalista -, de modo que os interesses econmicos contraditrios, as divergncias polticas, sociais, ideolgicas internas a cada Estado desaparecem nesse todo em que todos os interesses so pardos.

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A Nao, ou o Segundo Nascimento

Estreitamente relacionados com a questo estatal, a nao e o nacionalismo so conceitos fundamentais no pensamento golberyano. Todo ele tem por pretenso estar baseado na realidade da prpria Nao, a Nao de hoje tal como de fato se apresenta, soberana, perante as demais naes, a Nao de amanh, tal como prenunciada e possibilitada pelo estgio efetivamente alcanado no momento atual - a Nao toda, em toda a sua plenitude (PE:377-378). Seu pensamento est, avisa desde logo, a servio da construo dessa nao de amanh. A nao apresenta-se, segundo ele, sob vrios aspectos. Ela est assentada, antes de mais, sobre uma base fsica da qual lhe vm os recursos, que a valoriza seja pelo simples peso especfico de sua prpria extenso - espao bruto que cabe ao homem vitalizar -, seja pela forma mais ou menos adequada do territrio e o significado geopoltico de uma favorvel posio relativa, mas que no deixa, tambm, de lhe impor restries desta ou daquela ordem, nem de acusar vulnerabilidades mais ou menos contornveis (PE:377-378). Sob outro prisma, a nao se apresenta como Nao-povo, prenhe de culturas, ideologias e tradies, com uma estratificao social mais ou menos rica, mais ou menos rgida, mais ou menos tensa, uma distribuio desigual ao longo do espao territorial, uma incessante dinmica horizontal e vertical, a que se somam, altamente ponderveis, virtudes e vcios, deficincias e potencialidades, um passado denso de experincias vividas, a confiana inabalvel num destino glorioso (PE:377-378). Por outro lado, a nao tambm Nao-Estado, em sua organizao administrativa e poltica e no dinamismo mais ou menos tumultuado de toda a sua vida pblica. A todas essas somam-se
a nao-oficina, a Nao-emprio, a Nao-complexo-agropecurio, com sua trama de circulao interior e suas articulaes na rede mundial de comunicaes e transportes, uma estrutura econmico-financeira mais ou menos slida e promissora, bem ou mal balanceada nos diversos planos inter-setoriais, melhor ou pior implantada no domnio espacial a que d expresso e que integra; e tambm a Nao-em-armas, vigilante e preparada ou despreocupada e combalida, ante perigos de maior ou menor gravidade e ameaas mais prximas ou remotas. (PE:377-378)

Em muitos momentos confundida com o Estado, a nao tambm s pode existir em segurana. Ela est, assim, enraizada em um duplo aspecto: do ponto de vista poltico, integrada por um propsito superior - as aspiraes nacionais, os interesses superiores do povo, um programa de vida comum, um ideal como destino a realizar-se plenamente. Sob o ngulo estratgico, exige uma perspectiva superordenada pelo mdulo vetorial da Segurana Nacional, voltada para o conjunto de antagonismos mais ou menos diretos que quelas aspiraes, queles interesses, quele programa, quele ideal ofeream outros povos e outras Naes, sejam prximas ou distantes no espao (PE:378). Um dos supremos Objetivos Nacionais Permanentes(ONP) por ele definidos diz respeito justamente persistncia de todo o grupo social, do Estado e da Nao como tais, ou seja, Sobrevivncia da Nao no espao e no tempo como grupo superiormente integrado, em prosperidade e crescente bem-estar, a includo o prprio desenvolvimento econmico e social, j que, para as sociedades humanas, assim como para todos os organismos de maior ou

67 menor complexidade, a estagnao a morte. Segundo ele, eis a, pois, o ncleo fundamental em torno do qual o nacionalismo se condensa e cristaliza (GB:98 e 11; PE:366). O surgimento do Estado no minimizou e menos ainda eliminou os conflitos a exigirem sua arbitragem, de modo que conflitos internos continuam a existir nos Estados nacionais: Mas, de outras lutas, entre grupos diversos - faces, camarilhas, partidos em nada ainda representativos de classes, grupos de presso de toda espcie - palco tambm a sociedade nacional; tambm fica claro o objetivo final: o prmio sempre almejado centrando-se no controle, parcial ou total, duradouro ou transitrio ou simplesmente espordico, do poder do Estado, instituio detentora do monoplio legal da coero pela violncia (GB:98). Isso no deve causar espcie, uma vez que a luta pelos interesses prprios considerada inerente natureza humana. Veremos como essa questo do antagonismo, alinhavada com a idia de nacionalismo, fundamental para o pensamento golberyano. Golbery faz questo, portanto, de caracterizar seus escritos como traduzindo um pensamento geopoltico que se orgulha, sobretudo, de suas razes autenticamente nacionalistas, a fundo embebidas na slida realidade da prpria terra brasileira (GB:3). Reitera sempre que s vale a geopoltica se for, verdadeiramente, nacional. De fato, diz ele, o nacionalismo , ainda, toda a nossa nobreza. E, se no o for conscientemente, muito importa que o seja (GB:96). A questo do nacionalismo muito importante para o pensamento Golberyano. Oliveiros Ferreira chama a ateno para o fato de que os crticos das articulaes e concepes, obra e postura do general, s retiveram o vis anticomunista, fazendo, todavia, abstrao do cerne de sua ideologia nacionalista - de um nacionalismo oitocentista, que em aras da nao sacrifica o demais (Ferreira, 1984:passim). A exposio de Golbery sobre o nacionalismo dplice. Por um lado, acredita que Hoje, subsiste ainda a Nao como polarizadora dessa suprema lealdade, sem a qual o homem nem mesmo seria homem, incapaz de transcender-se abnegadamente, nos sacrifcios mais hericos, a um egotismo esterilizador e anti-social (GB:98). Assim, segundo ele, Vivemos ainda, para o bem maior ou maldio irresgatvel da humanidade - em que pesem profecias pessimistas ou esperanas redentoras - a era do nacionalismo, isto , da lealdade mxima do cidado consagrada Nao. E esta lealdade mais ampla que o patriotismo - um mero sentimento, nobre e alevantado e inspirador, embora -, manifestando-se em toda a sua plenitude no nacionalismo, que muito mais do que isso, porque , sobretudo, uma vontade: vontade coletiva, vontade consciente, vontade criadora de engrandecer cada vez mais a nao, realizando plenamente e, sempre que necessrio, salvaguardando a qualquer preo os ONP (GB:98). Golbery no esclarece a diferena entre o mero sentimento do patriotismo e a vontade nacionalista, que no deixa tambm de ser um sentimento. S acrescenta, como diferenciao, a indicao de que esta coletiva e criadora, coisa que o patriotismo no seria. Essa diviso e at antagonismo entre patriotismo e nacionalismo - especialmente na conjuntura dos anos 50, em que a esquerda assumia bandeiras agressiva e nominalmente nacionalistas - persegue muitos dos nossos pensadores, conquistando alguns e repugnando a outros. Uma das crticas a fazer ao comunismo justamente sua alegao internacionalista, alm de materialista e anticrist. O comunismo extico utiliza-se insidiosamente do nacionalismo presente nas massas - cuja mobilizao mostrou-se fora poderosa desde a Era Napolenica - para promover os interesses do imperialismo sovitico. Da todos esses nacionalismos falsos, esses pseudonacionalismos criminosos e esprios que corrompem e vilipendiam e mistificam tanto mais quanto mais se agitam na blasonaria e na jactncia (GB:99).

68 A esses nacionalismos falsos, ele contrape o nacionalismo verdadeiro:

Ser nacionalista reconhecer, como suprema lealdade, a lealdade nao de que se nfima parte, mas parcela atuante e consciente. Ser nacionalista sobrepor, portanto, a quaisquer interesses outros, individuais ou de faces ou de grupos, a quaisquer vantagens regionalistas ou paroquiais, os verdadeiros interesses da nacionalidade. Ser nacionalista estar sempre pronto a sacrificar qualquer doutrina, qualquer teoria, qualquer ideologia, sentimentos, paixes, ideais e valores, quando quer se evidenciem nocivos e de fato incompatveis ante a lealdade suprema que se deve dedicar, sobretudo, Nao (GB:99).

Consoante com seu pensamento circular e autoconfirmatrio, Golbery no pode trabalhar com a idia de nao dividida. Ele no pode obliterar as divises sociais presentes no interior da Nao, mas elas so elididas quase o tempo todo em funo de uma viso homogeneizante da sociedade. No se responde, dessa forma, quais so realmente os interesses da nao, que so os interesses de quem os define: no caso, as elites, formadas estas, segundo gostaria, nos moldes de seu prprio pensamento e no da ESG. Sendo assim, qualquer um que pensar de forma diferente dele pode e ser alcunhado de antinacionalista. O interesses e aspiraes grupais no so vistos como meramente a somatria dos interesses e aspiraes comuns a seus membros - pois a estes se somariam determinados interesses prprios da entidade coletiva, como a conservao, a coeso e a unidade do grupo, interesses estes que podem estar em oposio a aspiraes estritamente individuais de seus componentes. Assim, a vida em grupo proporciona no apenas a perpetuao de aspiraes individuais, mas tambm a sua modificao e at mesmo surgimento de outros, em funo da prpria existncia do grupo. Como observou Selma Rocha, ao atribuir ao grupo social interesses relacionados aos aspectos da sobrevivncia, expanso, proteo, influncia e integrao, o que se quer traduzir a necessidade que tem o grupo de identificar em seu seio todos os seus componentes e eliminar as diferenas e desequilbrios internos (Apud Rocha, 1996:76). Fortemente influenciada pelo organicismo, essa viso da sociedade a percebe como um organismo sujeito a leis que so idnticas ou anlogas s que governam o funcionamento dos organismos biolgicos. Sendo assim, Em termos organicistas, tudo que contribui para o desenvolvimento e sobrevivncia do organismo (sociedade) visto como natural e positivo. Tudo que perturba seu desenvolvimento ou ameaa sua sobrevivncia visto como patolgico, alheio e antinatural. Diante disso, o objetivo mximo o de preservar um organismo natural chamado sociedade (melhor dizendo, a sociedade capitalista, democrtica, ocidental e crist) e de buscar nas origens de tudo que universal os fundamentos de algo que no muda, apenas se aperfeioa (Burgess e Wolf apud Rocha, 1996:77). Esse pensamento tem como corolrio a radical desconsiderao de qualquer forma alternativa de organizao social. Assim, os fins do nacionalismo so apenas aqueles definidos por essas mesmas elites, que o englobam sob o amplo e mal definido conceito de engrandecimento da Nao. Com essas manobras mentais, Golbery fica livre para dizer que O nacionalismo , portanto, deve ser, s pode ser um absoluto, em si mesmo um fim ltimo, nunca um conceito instrumental. Para ele, pois, pelo menos enquanto perdurar a nao como tal, Lugar no h, nem deve haver, nem poder haver para o nacionalismo como simples instrumento de um fim que o transcenda, como degrau apenas numa escala que o transmonte (GB:99). E complementa firmemente: Isso nunca ser nacionalismo - ser engano, ser burla, ser at mesmo chantagem. E vira, ento, suas baterias contra o alvo comunista, internacionalista e classista:

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Tal o nacionalismo, por exemplo, apregoado, com tanto maior virulncia quanto maior desfaatez, pelos comunistas de todos os matizes - o pseudonacionalismo que disfara a fria e inexorvel lgica de seu internacionalismo imanente na metafsica sibilina de uma dialtica flutuante e acomodatcia, oportunista e cnica, o pseudonacionalismo que se reconhece e se proclama a si mesmo muito mais classista, afinal do que propriamente nacionalista, o pseudonacionalismo que, na verdade , antes de tudo, muito mais partidarista e sectrio do que at mesmo classista (GB:99).

Mas, Golbery v outra questo em relao ao nacionalismo: para ele, no mundo atual, a solidariedade do cidado ao organismo nacional a que pertence por seu nascimento e pela sua formao cultural, que um segundo nascimento acaba relegada a segundo plano, em funo da dependncia a grupos diversos. Desses grupos no lhe dado em todo caso alienar-se, complicando-se a situao porque seus interesses e fins freqentemente divergem, quando no se demonstram antagnicos (GB:20-21). Por isso, segundo ele, impossvel no perceber hoje quanto se vai quebrantando e amolecendo j o esprito nacionalista em muitas reas do globo, justamente naquelas onde primeiro se manifestara ele. que, de to gasta, a ideologia nacionalista a no mais consegue galvanizar a dedicao do cidado nem inspirar as massas desnorteadas e descrentes. Mas a condio de usada da ideologia nacionalista ganha um corpo mais material a seguir, quando ele acrescenta que, tais os bices agora existentes, no mais se oferece, atraente, a promessa de um futuro radiante nos quadros, tornados por demais restritos, de naes combalidas, desesperanadas quase, amputadas muitas vezes (GB:100-101). Com a decadncia do nacionalismo em seu local de origem, propem-se novas formulaes ideolgicas que o substituam: ressurge um novo humanismo em folha; o internacionalismo difunde-se; prega-se um pacifismo desfribante e ablico. De outro lado, de par com o vislumbramento da Idade Imperial em que dominam superestados rodeados de uma pletora de microestados, Esbatem-se, ao mesmo tempo, as fronteiras; afirmam-se e alargam-se alianas em novas formas de comunidade; prenuncia-se, talvez, o surgir de naes rejuvenescidas, em bases territoriais bastante mais ampliadas (GB:100-101). Isso no quer dizer, porm, para Golbery que seja de todo irremedivel, ainda, a tragdia atual desse nacionalismo, decadente e cptico, do Ocidente europeu. Primeiro, destaca ele, o nacionalismo j presenciou e serviu at mesmo de inspirao e fanal e de instrumento ideolgico a coalescncias semelhantes em pocas passadas, no to remotas assim. Ademais, para alm de todas as fronteiras de um Ocidente que j comeara, em verdade, a descrer dela, a ideologia nacionalista obtm xito sempre crescente (GB:228). Na frica toda, na sia (Indonsia, Japo, China, ndia, sul e sudeste do continente), na Oceania, seria justamente o nacionalismo o responsvel pela conteno e posterior expulso do colonialismo: a velha mxima de utilizar-se das armas do inimigo para melhor combatlo; no caso, a arma o nacionalismo. Dessa forma, naqueles cantos do mundo
viceja agora um nacionalismo romntico, turbulento e herico, em plena luta anticolonialista ou dela sado apenas, jungindo ao peso de confusas crendices totmicas e a um tribalismo tradicional e primitivo, embriagado ainda com as primeiras conquistas de uma liberdade to retardada e ensaiando os primeiros passos, incertos mas confiantes, por vezes anrquicos e at mesmo destruidores, na trilha da organizao para o progresso nacional. Campeia a a xenofobia, essa doena infantil do nacionalismo. (GB:100-101)

70 Esmaecente na Europa ocidental, xenfobo no mundo recm-emergido do colonialismo, o nacionalismo encontra seu campo promissor - fundamento do otimismo golberyano - nos Estados velhos-novos da Amrica Latina. Aqui, no obstante problemas vrios que enumera,
a frmula nacionalista toda outra, sem dvida. Com um passado j largo de independncia poltica bem consolidada, de soberania mais ou menos ampla e reconhecida pelo menos em princpio, conscientes de suas reais possibilidades e, j agora, de suas deficincias principais, tendo ainda muito, muitssimo que realizar no prprio quadro nacional que lhes oferece, assim, vasto campo sua capacidade criadora e a seus anseios de engrandecimento e progresso, esto a atingir, afinal, o nvel superior de um nacionalismo j amadurecido, nacionalismo realista e crtico e, por assim dizer, assptico, que no mais se coadunar com a corruptora histeria demaggica e bloquear, por fim, a endemia desvitalizante da teorizao balofa e inatual. (GB:100-101)

esse um dos momentos em que Golbery analisa a realidade para ver ali apenas o que ele quer ver. Da mesma forma que olha para um mapa e v um destino grandioso para o Brasil, v na Amrica Latina um nacionalismo com as caractersticas acima. Se bem que ele no apenas espera que este nacionalismo tenha os efeitos desejados: afinal, tal nacionalismo sadio no deve pairar no ar, mas dever inspirar, motivar, permear toda elaborao poltica, toda concepo estratgica, toda formulao geopoltica (GB:100-101). O nacionalismo sadio ajuda, pois, na constituio e engrandecimento da prpria Nao. E, de par com isto, o nacionalismo verdadeiro a defesa do mundo ocidental cristocapitalista. O Brasil desenvolve um processo de subimperialismo ou de key-country 13 baseado justamente na defesa desse tipo de nacionalismo. Como Oliveiros Ferreira percebeu, a introduo do elemento antagonismo, especialmente no nvel internacional, importante para a amarrao da DSN, principalmente diante do conceito de nao.
Se a idia de Nao poderia, talvez com riscos terico-prticos ainda maiores, conduzir superao do esquema hobbesiano inicial, a introduo da noo de antagonismo e seus derivados remete, no entanto, de novo ao Leviat, isto , a uma concepo do processo social em que a mudana, reconhecida, no pode ser deixada ao sabor das improvisaes polticas, mas deve ser conduzida pelo Estado, cuja grande responsabilidade perante a Nao manter a Segurana, nica razo pela qual, para Hobbes, os homens abdicaram de seus direitos e poderes naturais em favor de um homem ou conjunto de homens que no participa do conventant constitutivo do Estado. (Apud Rocha, 1996:14).

Em outro lugar, Oliveiros Ferreira tambm apreendeu o drama ntimo que perpassa a ideologia golberyana: ser, ao mesmo tempo, nacionalista e estar votado sobrevivncia da civilizao ocidental. Golbery procura resolv-lo proclamando um nacionalismo que toda a nossa nobreza, - mas no um nacionalismo simplesmente, e sim um nacionalismo amadurecido, realista e crtico, conforme vimos, e que no se chocaria com a opo pelo ocidente. Voltaremos a esse ponto.

13

Ver, a respeito, Covre (1983), Schilling (1981) e Mello (1997).

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2 - O DILEMA IRRESOLVIDO DO CONSERVADORISMO BRASILEIRO: ANTILIBERALISMO E DEFESA DA DEMOCRACIA

O Fracasso do Liberalismo e a Liberdade Impenhorvel do Homem

Golbery antiliberal. Por diversas vezes, ao longo de seus escritos, ele o expressa claramente. Vrios outros pensadores conservadores brasileiros tambm eram antiliberais, pois viam uma inadequao entre o liberalismo e a sociedade brasileira. Golbery um dos que vem uma inadequao entre o liberalismo e o prprio mundo moderno. Para ele, o sistema liberal est ultrapassado e pode, inclusive, ser responsabilizado por vrios males que rondam a sociedade atual. Palavras como decadncia, impotncia, lentido, tolerncia, abulia e desiluso so freqentemente associadas, por ele, ao liberalismo. Como destacou Oliveiros Ferreira, a filiao a Hobbes j traduz o carter antiliberal do pensamento golberyano - mas um antiliberalismo de cunho conservador, e no revolucionrio (Ferreira, 1984:586). Mas h que destacar a influncia inegvel do conservadorismo brasileiro nessa percepo de fracasso do liberalismo, um dos pontos centrais do pensamento golberyano. Rejeitando tanto o liberalismo quanto o totalitarismo, Golbery acabar por propor uma terceira via, como veremos. Mais ainda, a noo de falncia do liberalismo que explica o ressurgimento das ideologias totalitrias, o que, por sua vez, est umbilicalmente ligado ao antagonismo vital pelo qual, no seu entender, o mundo passava. Diante da insegurana eterna e sempre crescente do homem em sociedade, uma das mais fortes caractersticas que Golbery identifica no mundo atual, as mesmas idias hobbesianas que fecundaram o liberalismo acabaram alimentando as modernas ideologias polticas totalitrias: pois foi o Medo que provocou a rendio total da liberdade do indivduo em aras de um poder soberano, incontrastvel e supremo (GB:7), ao engendrar o Estado, para prover a segurana individual e coletiva na Terra (GB:7; PE:361). Ocorre, porm, que tal inveno no funcionou a contento. Pois, extrapolando os teoremas hobbeanos, o liberalismo veio a diminuir o poder daquela criao onipotente e autrquica. E, novamente, a humanidade v-se diante do Medo, da insegurana eterna. Novamente, parece encontrar-se na renncia liberdade e no fortalecimento das idias totalitrias (que so diferentes do simples aumento de fora do Estado, como veremos) a soluo para seus problemas. Um acontecimento que se repete no plano internacional, com o despontar do Estado-universal. (GB:9; PE:362-363) Para Golbery, portanto, O mundo decadente de um liberalismo impotente e exausto reclama outra soluo para sua eterna insegurana (PE:115; GB:8). Os indivduos tendem a querer mais direitos, alm das simples e reconhecidamente vs liberdades polticas (grifo nosso). Alis, ainda nesse plano poltico, o liberalismo est sujeito a muitas outras crticas. Golbery faz o seguinte retrato do mundo forjado pelo liberalismo:
o que seja a justia social ainda uma incgnita a determinar; a liberdade da imprensa e a liberdade da palavra pem em equao o problema transcendental de at onde permitir que o poder das idias, sabiamente manipulado, possa servir de trampolim s idias de poder; e qual seja a anatomia desse poder pelo qual se luta, se fazem sacrifcios inglrios e se sucumbe muitas vezes, e se h, na verdade, uma tica do poder (GB:20-21).

72 Essas, sem dvida, so questes essenciais naquele mundo ps-guerra, quando a mquina publicitria nazista (e tambm o estalinismo) havia posto o mundo ocidental diante de problemas at ento desconsiderados. Ao questionar as bases do prprio poder, na busca de resolver a contradio que percebe no capitalismo, sua resposta coerente com seu pensamento conservador. Continuemos, porm, reproduzindo a viso que o general tem do mundo liberal. Para Golbery, o problema central do liberalismo sua inao. Baseado no princpio do laissezfaire, da menor interveno possvel do Estado, o liberalismo propugna, segundo ele, a apatia diante de um mundo que se debate em um conflito terrvel, que lhe poder custar a prpria existncia. Ento, poderamos dizer que, para Golbery, alm de no estar adequado s necessidades contemporneas, ou por isso mesmo, o liberalismo tem muito de irracional e at de mstico:
a crena ainda num providencialismo oculto que saberia, misteriosa e automaticamente, resolver todas as dificuldades e compor todos os desajustamentos, numa sociedade complexa to paradoxal que, nela, o timo de governo seria sempre o mnimo de governao; a confiana nas virtudes, por assim dizer mticas, dessa onisciente volont gnrale, expressa atravs de um mecanismo supostamente incorruptvel por um eleitorado consciente de seus deveres e cioso de seus direitos, capaz de discernir com clarividncia os melhores destinos da ptria e de repudiar com sobranceria os demagogos e os polticos oportunistas (PE:18-19).

Os problemas trazidos pelo liberalismo, no entanto, no se restringem poltica: no campo econmico, Golbery critica
a convico de que o liberalismo econmico, com sua f nas excelncias do mais amplo regime de livre empresa, da iniciativa privada intangvel, do mecanismo insubstituvel do mercado e do jogo igualitrio e justiceiro da concorrncia, asseguraria por si s o progresso e o desenvolvimento econmico, criando riquezas sem conta e corrigindo todas as injustias sociais (PE:18-19).

Golbery no deixa tambm de criticar duramente o modo de ser do prprio capitalismo imperialista, seus apologetas e
as prdicas mais ou menos insinceras sobre as virtudes inexcedveis e sem jaa da livre empresa, a doutrinao cnica em favor da eterna benemerncia do capital estrangeiro, as teses cedias sobre as vantagens inigualveis de um livre-cambismo j defunto e as maravilhas da diviso internacional do trabalho, as apregoadas vocaes agrcolas ou as repetidas demonstraes da perfeio admirvel do mecanismo automtico do mercado livre (GB:248).

E, ainda, no que concerne s relaes internacionais, o liberalismo prope o postulado da igualdade jurdica dos Estados com salvaguarda bastante da soberania dos povos mais fracos, mediante as normas supremas do Direito das Gentes e as regras do formalismo diplomtico (PE:18-19). A falncia do liberalismo , pois, cabal e ampla, espraiando-se para vrios campos da vida nacional e internacional dos Estados. Estamos, portanto, diante de um momento decisivo: diante da decadncia do modo liberal de ser, a humanidade busca outro sistema que possa garantir sua prpria existncia e, quem sabe, um pouco de paz e de segurana.

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A insegurana do cidado dentro de cada Nao e a insegurana de uns Estados em face dos outros, a viso onipresente da guerra dominam o mundo de nossos dias e explicam, por si ss, essa nsia neurtica com que /.../ a Humanidade, enfim, se ergue e se lamenta e se debate, disposta at a escravizar-se a quaisquer senhores e a quaisquer tiranias, desde que lhe ofeream, num prato de lentilhas, um pouco de segurana e de paz. E, assim, acaba ou acabar afinal por perder, com a Liberdade trada, a prpria Segurana por que tanto almejara. (GB:9; PE:364)

E reitera, ainda uma vez, que ou a Democracia se renova e avigora ou ir sucumbir, exangue de foras e de vontade, nos braos speros do cesarismo (GB:21). No outro extremo do gradiente de opes, ele v o totalitarismo, a opo mais lgica, diante da rejeio cabal que faz do liberalismo. No entanto, Golbery tambm o rejeita de antemo. Tal rejeio tem por base a dissociao dos conceitos de liberalismo e de liberdade. Se aquele anmico e irresponsvel, esta , no seu entender, parte indissocivel da prpria natureza do ser humano. Em outras palavras, rejeitar o liberalismo no significa, para ele, rejeitar tambm a Liberdade que exigncia essencial e impenhorvel da condio humana (GB:10; PE:364). E, como a civilizao ocidental tem grande apreo pelo homem, no pode rejeitar a liberdade que parte integrante da natureza humana: A liberdade democrtica um valor inestimvel para a civilizao do Ocidente, e reneg-la, em face do agressor totalitrio, seria, no fundo, confessar-se a priori vencido. (GB:237) Fundamentalmente, contudo, a liberdade no pode ser anulada ou rejeitada porque ela essencial para a manuteno da ordem e do progresso da sociedade. Alm, pois, das prdicas sobre a humanidade de cuja natureza a liberdade parte integrante, seu carter instrumental deve ser considerado por quem quer que busque a segurana e o desenvolvimento social. E to importante Golbery considera esse fator que faz questo de frisar que, neste nosso mundo convulsionado, s haver geraes efetivamente conscientes se se demonstrarem capazes de decifrar esse tremendo complexo da Segurana Nacional, solucionando-o bravamente, sem apostasias covardes e contra o ignorantismo criminoso ou a displicncia ablica (PE:376 e 419). Ele retoma outra vez a questo, enfatizando inicialmente o fundamento tico da liberdade -A liberdade do homem , entretanto, valor eterno, pois que verdadeiro padro de humanidade - para, em seguida, reiterar seu carter instrumental: Sua perda ou compresso poder resultar, sob sistemas de coercitiva concentrao e rgida disciplina de esforos, num progresso mais acentuado e mais amplo. Mas este acabar por exaurir-se de todo, com a histria em todas as suas seculares lies indefectivelmente proclama. (PE:410) Golbery explica esse aparente paradoxo por meio da lei dos rendimentos decrescentes, segundo a qual segurana, liberdade e desenvolvimento, embora em campos opostos ou diferenciados da vida social, mantm entre si relaes estreitas e interdependentes. Todos tm de ser minimamente garantidos, pois dessa mnima garantia depende o equilbrio do todo e, portanto, o prprio desenvolvimento de cada um dos outros elementos. Assim ele o exprime:
medida que se sacrifique o bem-estar, em proveito da segurana, canalizando recursos daquele para esta, o primeiro decresce, enquanto a segurana aumenta mais que proporcionalmente, a princpio; a partir de certo ponto, porm, sofre a curva acentuada inflexo, e os acrscimos, agora cada vez menores, acabaro por se anular de todo, quando se haja alcanado o que, teoricamente, corresponde ao mximo de segurana compatvel com a limitao imposta pelos recursos disponveis. Reduzase, ainda mais, o bem-estar, e a prpria segurana se ver, agora, decrescida. Segurana e Bem-Estar e, em plano mais elevado, Segurana e Liberdade so

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dilemas decisivos com que sempre se viu defrontada a humanidade, nunca, porm, como hoje, em circunstncias to dramticas e to imperiosas, assim. E, como dilemas da vida social, ambos, em ambos se manifesta uma bipolaridade no exclusiva, cada um dos termos opostos dependendo, em verdade, do outro pela funo anteriormente descrita. (GB:14; PE,:370)

Um nvel mnimo de liberdade, como um nvel mnimo de bem-estar, so, pois, indispensveis para o progresso e para a ordem. Lderes de todo o mundo, ouvi-o: no esperem que a diminuio da liberdade redunde sempre, inevitavelmente, em aumento da segurana do Estado, pois, Alm de certos limites, a Liberdade sacrificada determinar, de sua parte, perda vital da Segurana. No esqueais a lio que tiranias aprenderam, no decurso dos sculos: Os escravos no so bons combatentes (GB:15; PE:371). No vos deixai atrair pela maravilha argumentativa de Hobbes, rediviva nas modernas doutrinas sofsticas dos totalitrios de todos os matizes e dos Salvadores pela Espada, uma vez que, a despeito dela,
a Liberdade do cidado dentro do Estado moderno precisa ser salvaguardada, e defendida tambm, dentro de limites que so irredutveis at mesmo na guerra, sob pena de, sem ela - a Liberdade -, totalmente esvair-se a prpria Segurana, em nome da qual tantas aventuras liberticidas se tm empreendido, desde que o mundo mundo, com maior dose de arrogncia ou maior capacidade de cinismo (GB:15; PE:371).

Golbery insiste mais ainda nesse carter instrumental, garante da segurana, da liberdade, afirmando com seu peculiar estilo rocambolesco: Estejamos certos de que defender a Liberdade tambm, graas aos cus, alicerar em slidas bases a Segurana Nacional. E, se no o fora, miservel seria a vida do soldado nos Estados modernos (GB:15; PE:371).
Nem Anomia, Nem Totalitarismo

, pois, fundamental encontrar um regime que, rejeitando o liberalismo inativo, no descure da importncia que a liberdade tem para a vida social. Esse um pecado em que, de acordo com sua viso, incorre o totalitarismo. Essa distino entre democracia e totalitarismo foi um problema para toda uma gerao. Assim,
Para Geisel as sociedades esto inseridas numa escala quanto forma do regime poltico. Esta escala demarcada de um lado pelo totalitarismo e de outro pela democracia. Um e outro so, em si mesmos, formas utpicas de organizao poltica, pois que inatingveis, da ele falar em democracia relativa ou em relatividade democrtica. Essas formas de governo, por sua vez, no so determinadas exclusivamente no campo da poltica, mas pelo desenvolvimento psicossocial, econmico e social de cada Nao. (Mathias, 1995:95)

Para Golbery, o grande problema com relao ao totalitarismo que esse sistema teria avanado para alm do que seria recomendvel na conduo das vidas de cada indivduo, com controles sociais extremos. a, segundo Golbery, que se encontra a oposio entre liberalismo e totalitarismo, que no se d em termos de amplitude da ao estatal.

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Mesmo que se confine - transitoriamente, por certo - a um setor apenas das atividades nacionais, nem por isso o totalitrio vir revestido de um carter propriamente democrtico. (Alm disso, a coexistncia de setores planejados e setores completamente livres muito mais fcil de manter-se no mbito de uma sociedade democrtica, a qual, em seu respeito essencial pelos direitos da personalidade humana, tender sempre para uma prudente limitao do intervencionismo estatal. Enquanto que, no sistema totalitrio, a liberdade concedida em qualquer setor acabar por traduzir-se, em curto prazo, num perigo ameaador para todo o sistema [PE:409].) /.../ o abismo em verdade existente entre tais sistemas opostos se situa, de fato, nos mtodos, por um e outro adotados, de controle social. (PE:407, grifos nossos.)

Essa caracterstica do totalitarismo no dirimida pela legitimidade ou legalidade do governo em pauta, pois Sabido que h perodos de abulia ou at de demncia na vida de quase todos os povos, em que estes, mesmerizados talvez, sacrificam masoquistamente a Liberdade no altar inclemente de deuses esprios (PE:407). E ressalta o que, a seu ver, o fundamento do totalitarismo, que aqui qualificativo apenas do estalinismo, ao qual ele se contrapunha, naquele momento. No campo social, os pecados so a crena no intervencionismo estatal polimorfo e prepotente como nico meio de alcanar a justia social, o que pressupe a liberdade e a igualdade integrais, admitindo-se a oniscincia e a incorruptibilidade como qualidades incontestes de uma minoria fanatizada a dirigir, pelo terror, uma burocracia paraltica e temerosa (PE:19). No que qualificaria como psicossocial, exploram-se todas as armas da propaganda e recorre-se a todos os processos de compulso para amoldar rigorosamente a vontade individual e a conscincia do povo aos cnones traados pela deciso todo-poderosa de lderes carismticos e sua banda de protegidos (PE:19). No campo econmico, estabelece-se uma economia rigidamente dirigida, multiplicando-se os rgos estatais de controle, arruinando-se as empresas privadas pela nacionalizao dos meios de produo, sufocando-se inteiramente a iniciativa privada e erigindo-se o sistema do monoplio generalizado do Estado (PE:19). Por ltimo,
no campo internacional, reafirma-se a supremacia do Poder como critrio final da Justia e do Direito, desencadeando-se a guerra fria sub-reptcia e sistemtica, para enfraquecer e desmoralizar os adversrios at que o novo balano de todas as foras em presena recomende o recurso guerra cruenta e decisiva, como seguro de alcanar, como vitria, a dominao. (PE:19)

Com essas caractersticas, Golbery ressalta que ocorrem crimes que nem a denncia nem a autocrtica nem as desestalinizaes aparatosas podero redimir jamais. Isso porque,
Mesmo que condicionado por imperativos reais da prpria Segurana Nacional, como alis sempre se apresenta com maior ou menor dose de mistificao e de cinismo, /.../ o dirigismo totalitrio abre largo campo corrupo indenuncivel, irresponsabilidade burocrtica, ditadura da nova classe, tirania despudorada e cruel, personalizao do poder e institucionalizao do heri nos campos de concentrao, s ttricas lubiancas, s polcias secretas, espionagem, s lavagens de crebros, aos expurgos em massa, aos genocdios organizados a frio (PE:409).

O contraponto desses crimes e desse enorme sacrifcio do povo no pode ser negado:

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claro que ocorrero, a par disso, impressionantes resultados, neste ou naquele setor, desde logo trombeteados pela propaganda como prova indiscutvel das excelncias do regime. Seria de admirar, por acaso, houve afinal alguns resultados dessa ordem, em face da desmesurada concentrao de todos os esforos para certos fins limitados, com sacrifcio das necessidades mais prementes do povo e de sua prpria liberdade? J a guerra, por vrias vezes, apontara efeitos da mesma ordem. Na dura competio de Poder em que os Grandes se vem empenhados, nada mais natural, pois, que o sistema totalitrio leve, de imediato, indiscutveis vantagens. (PE:409)

O progresso material conseguido, admite Golbery, no s atravs da tcnica stakanovista, exaustiva e inumana, pois A sociedade totalitria, qualquer que ela seja, recorre tambm, por certo, a estmulos e prmios, sendo os privilgios de que goza, na Rssia de hoje, a moderna elite de cientistas e tcnicos o melhor testemunho disso (PE:408). Um tal sistema est, contudo, fadado ao fracasso: como visto, o sacrifcio da liberdade em nome da segurana, abaixo de certo nvel mnimo, torna-se contraproducente, agindo forosamente em detrimento do prprio sistema, segundo a lei dos rendimentos decrescentes. Golbery destaca, ainda, um outro aspecto da mesma questo:
um governo autoritrio s se mantm enquanto eficiente. Ele no tem legitimidade constitucional. Ento, a legitimidade dele est no factual, na prtica. Ele s considerado legtimo enquanto est melhorando a situao de todo mundo, enquanto est produzindo resultados aceitveis. /.../ No se pode jogar toda a legitimidade do governo em cima da realizao de um bom governo, porque isso uma utopia. (Revista Senhor, 22/9/87)

Golbery est ciente, e no o esconde, de que o sistema democrtico no est isento de muitos dos problemas atribudos ao totalitarismo. Porm, para ele, esses problemas no so, aqui, ao contrrio do que ocorre no totalitarismo, inerentes ao prprio sistema, mas constituem-se em desvios ocasionais de percurso. Segundo Oliveiros Ferreira, ao fim, Golbery sucumbe antinomia autoposta comunismo versus democracia e por isso torna-se incapaz de
propor teoricamente um novo sistema poltico em que a segurana jurdica se coadune com a eficcia e a SN, [e] tem como nico ponto de referncia, quando se trata de defender a liberdade, aquele que sua experincia concreta de vida lhe permite vislumbrar, isto , a liberdade de que gozam os oficiais no corpo de oficiais /.../. Por isso, a polis deve organizar-se como o Exrcito, em que os oficiais, livres, zelam pelo bem-estar do corpo de tropa (Ferreira, 1984:588).

Assim, continua ele,

a proposio terica bsica do general /.../ demonstra uma contradio inibitria da ao (a condenao verbal de Hobbes e a aceitao de seu universo de pensamento; a condenao do liberalismo e o apego democracia representativa e s formas liberais, ainda que restringidas, de organizao da opinio; a defesa do Ocidente uma categoria abstrata em que a democracia e o cristianismo se confundem com a propriedade privada dos meios de produo - e a condenao do lucro) (Ferreira, 1984:594).

77 Assim, deslocando do Estado para o controle social o diferencial que a essncia do totalitarismo, Golbery ficar livre para, como veremos, pleitear uma ao estatal forte, principalmente no setor da economia, embora sob moldes diferentes do totalitarismo: o planejamento democrtico.
Democracia Liberal versus Democracia Participativa

Para Golbery, o aspecto primacial do surgimento da democracia d-se no momento em que - descobertas com surpresa por Napoleo as potencialidades blicas da paixo nacionalista das massas - as minorias dirigentes, pela mistificao, apresentam seus interesses egostas como se fossem interesses do povo inteiro.
Criariam, assim, neste, aos poucos, a viva conscincia de que tais interesses e aspiraes eram, de fato, algo importante e superior, a ser atendido em permanncia e nunca, apenas, por ocasio de curtos e espordicos perodos de guerra. Defraudaes sucessivas, o reiterado no cumprimento, impudente e imprudente, de muitas promessas feitas acabariam por alimentar a convico generalizada de um direito do povo a influir tambm nas decises mais importantes. Governo pelo prprio povo e no apenas um governo em nome do povo, supostamente em seu benefcio. Completar-se-ia na prtica a formulao democrtica. (PE:394-395)

Parece-nos que Golbery aborda a questo de uma maneira profundamente abstrata e, ademais, elitista. De qualquer forma, de acordo com ele, os prprios interesses burgueses que levaram democracia. Da mesma forma que o nacionalismo - arma inicial dos colonizadores que acabou se voltando, depois, contra eles -, tambm a democracia burguesa das elites acabou por se generalizar. Podemos inferir que por isso que no importa muito a Golbery se os interesses de uma pequena minoria possam ser falsamente universalizados (embora ele proteste, ressaltando que sem dvida uma usurpao, [PE:326]): isso acabaria redundando em uma conscientizao das prprias massas a esse respeito. Hoje em dia, novamente a presso das massas, entre outros fatores, exige mudanas no modo de ser da democracia. Primeiramente, em suas venerveis frmulas jurdicas, cuja inanidade e insuficincia se patenteiam com a tumultuosa invaso vertical dos brbaros, sintoma mais relevante da acelerada mobilidade social destes dias que correm. Nesse processo,
o direito do indivduo, buscando espraiar-se mais alm das simples e reconhecidamente vs liberdades polticas, desde logo entra em choque no apenas com os interesses j consolidados de grupos vrios que dividem entre si a liderana, mas principalmente com as responsabilidades acrescidas do prprio Estado, levado este tambm, para alcanar real eficincia em suas mltiplas e interdependentes atividades, a ampliar cada vez mais a esfera e o rigor de seu controle sobre uma sociedade j cansada e desiludida do liberalismo fisiocrtico de eras passadas. (GB:20-21)

Assim, para o general, diante de um mundo que lhe exige novas caractersticas, Ou a Democracia se renova e avigora ou ir sucumbir, exangue de foras e de vontade, nos braos speros do cesarismo (GB:21). A democracia nos moldes liberais fracassou, e precisa ser repensada, embora nunca de todo desprezada, uma vez que Somente o regime democrtico, com sua nobre escala de valores sociais, permite, de fato, em plenitude uma expanso criadora da personalidade humana e assegura, por via talvez mais longa e caprichosa sob certos

78 aspectos, um progresso efetivo da Civilizao e do Homem. Ad astra per aspera... (PE:410). Alm disso, continua ele, a Democracia - como frmula de organizao poltica, juntamente com a cincia e o cristianismo, o que caracteriza o prprio ocidente (GB:226). Como seria essa democracia renovada, do ponto de vista golberyano? Para Golbery, o fator essencial que est ligado democracia no a defesa das liberdades, embora isso seja fundamental. Para ele, o essencial a prpria participao.
Creio, firmemente, no fator participao, na evoluo dos elementos que estavam fora. A democracia, para mim, muito mais participativa do que propriamente garante de liberdade. H um mnimo de liberdade que indispensvel, realmente, e deve ser assegurada Sociedade, mas desde que a Sociedade participe nas grandes decises e colabore com o Governo nas leis e nas medidas que devam ser tomadas. Esse mnimo de liberdade ir sendo acrescido pelo prprio esforo, a j com boa presena efetiva do povo no poder. (PE:501)

Esse fator, participao, que d legitimidade e fora para o Estado tomar uma srie de decises, s vezes contrrias aos interesses imediatos de quem decide. Pode-se dizer que a democracia por ele proposta uma democracia metodolgica ou procedimental, no sentido de que no importa muito o que decidido, mas como isso feito. Por isso, ao contrrio da estratgia - cuja base so antagonismos e antagonistas -, quem domina esse campo a poltica, a arte do possvel:
Acredito, por outro lado, que a participao indispensvel, para que se possa, realmente, conduzir certas aes que exigem sacrifcios (PE:501). A respeito, observemos ainda que a Estratgia poder pleitear certos sacrifcios e restries que, do ponto de vista mais amplo e superior da Poltica, sejam julgados excessivos, quando no contraproducentes. /.../ entre o estilo de vida democrtico, com seu liberalismo mais ou menos generoso, sua tolerncia pouco vigilante, suas reaes mais lentas aos perigos, de um lado, e, do outro, o regime autoritrio muito mais agressivo e pronto nas respostas - dilemas que se propem, na verdade, entre a Estratgia e a Poltica e encontram sua soluo na maior hierarquia funcional que esta ltima, de direito, lhe cabe. (PE:425 e 321-322)

Essa sua viso de democracia participativa fica muito clara quando da abertura democrtica, a auto-reforma do regime concertada por ele prprio 14 . Assim, segundo ele, para quem v na democracia, muito mais pondervel e crtico, o fator participao, criador e dinmico, do que a plena garantia de liberdades, por mais fundamentais que sejam estas, prepondera a confiana de que a busca da democracia acabe por despertar compreenses e energias novas que venham a ajudar, decisivamente, o rduo esforo de saneamento e recuperao que se vem, a duras penas, exercendo no campo econmico (CN:31; PE:493). O general Golbery frisava, inclusive, que cabia discutir o prprio termo redemocratizao, pois este no era, segundo ele, pertinente histria poltica do pas que, em verdade, nunca tinha conhecido uma autntica democracia. A democracia participativa golberyana difere essencialmente da democracia participativa reivindicada por movimentos sociais e autores ligados esquerda, pois, alm de instrumental, essencialmente uma democracia partidria. E esta uma precauo coerente com o elitismo, o exclusivismo de seu pensamento, o qual est fundamentado na prpria excluso estrutural das massas das decises. Canalizar qualquer participao para o mbito
14

Ver o captulo Golbery, o Estrategista da Auto-Reforma da Ditadura.

79 partidrio , pois, concentr-la aos limites estabelecidos pelo prprio sistema, e que, portanto, no peitaria sua prpria fundamentao. Novamente, apenas um exemplo do perodo da auto-reforma do regime para aclarar sua posio:
Ns que devemos procurar criar e desenvolver condies para que os partidos possam desempenhar a atuao que lhes prpria - a mobilizao poltica do povo. No sou pessimista quanto possibilidade de Partidos eficientemente estruturados /.../ poderem atrair a colaborao dos mais jovens e ajud-los a se prepararem para o exerccio, no futuro, das lides polticas. Evidentemente, h vocaes polticas em todas as idades todas as vocaes polticas, no s as de jovens, devem encaminharse para os partidos polticos (PE:529, grifos nossos).

A canalizao da participao para o que institucionalmente permitido pressupe, em primeiro lugar, a negociao, realizada naqueles mesmos canais institucionais; no obstante eventuais problemas - j que pode camuflar artimanhas das mais sutis, mesmo que tudo se centre nos partidos e no Congresso, os foros mais adequados ao entendimento -, a negociao fundamental para solucionar conflitos e impedir que atinjam nveis perigosos para o prprio sistema, uma vez que As negociaes so inerentes vida democrtica e a conciliao um objetivo que sempre se deve buscar (in Revista Veja, 16-5-84, grifos nossos). O elitismo e o conservadorismo fica novamente patente quando Golbery, diversas vezes, deixa claro que a entidade povo pode ser facilmente manejvel, principalmente nesta poca singular de tcnicas aperfeioadssimas no manejo sutil das massas. Nessa poca em que a mais rendosa ttica sempre a da mistificao do povo, apresentando-se-lhes interesses secundrios e mesquinhos de minorias insaciveis e corruptoras sob a roupagem vistosa ou inocente de supostos interesses nacionais (GB:98-99), cabe elite - e a um certo setor da elite - interpretar suas verdadeiras aspiraes sempre algo difusas na alma nacional (PE:358). Uma vez que a identificao dos ON repousa em uma anlise interpretativa dos interesses e aspiraes nacionais, mais ou menos conscientes, mais ou menos inarticuladas e por vezes ainda informes, que motivam, em cada poca histrica, toda manifestao de um povo como Nao (PE:27; PE:328), fundamental evitar posies demaggicas ao lado do povo, que nem sempre est consciente deles. Contraditoriamente a suas prprias crticas ao liberalismo, que, como vimos,
a crena ainda num providencialismo oculto que saberia, misteriosa e automaticamente, resolver todas as dificuldades e compor todos os desajustamentos, /.../ a confiana nas virtudes, por assim dizer mticas, dessa onisciente volont gnrale, expressa atravs de um mecanismo supostamente incorruptvel por um eleitorado consciente de seus deveres e cioso de seus direitos, capaz de discernir com clarividncia os melhores destinos da ptria e de repudiar com sobranceria os demagogos e os polticos oportunistas (PE:18-19),

Golbery considera que um sistema democrtico pode se autocorrigir. A propsito da abertura democrtica, expressa que a inteno desta o Aperfeioamento do sistema democrtico, tornado capaz, por si mesmo, de aperfeioar-se ainda mais, assegurando o salutar usufruto das franquias individuais e coletivas e implantando o exerccio corrente e eficaz da atuao participativa de todos os cidados e grupos sociais na tomada das grandes decises de interesse da coletividade nacional. (CN:36; PE:498) Essa e outras contradies no so respondidas por Golbery, pois ele parte da necessidade de manuteno, de conservao do statu quo. Muitas dessas contradies no

80 esto simplesmente no seu discurso, no se referem a deficincias metodolgicas ou a insuficincias tericas, mas esto sedimentadas igualmente na prpria estrutura da sociedade que ele defende. O solucionamento de tais contradies passaria pela ruptura com a realidade mesma que est na base delas, algo que Golbery jamais cogita. A contradio mais especial a rejeio do liberalismo e a defesa da democracia, ainda que com caractersticas diferenciadas com relao aos pases ocidentais - esta , diga-se de passagem, uma contradio irresolvida pelo conservadorismo brasileiro. Afinal, como ressaltou Macpherson,
As reivindicaes da democracia no teriam sido nunca admitidas, nas democracias liberais da atualidade, se estes pases no tivessem contado, em primeiro lugar, com uma slida base de liberalismo. As democracias liberais que conhecemos foram primeiro liberais e democrticas depois. Dito de outra forma, antes que a democracia fizesse sua apario no mundo ocidental, emergiram a sociedade e a poltica de livre opo /.../. No se trata simplesmente de que a democracia chegara mais tarde, mas tambm de que a democracia nestas sociedades foi exigida e admitida por razes competitivo-liberais (Apud Chasin, 1986:229).

Democracia e liberalismo so, assim, duas faces de uma mesma moeda, estreitamente interligados que esto, tendo por base a sociedade capitalista. Sendo assim,
Por mais que no se queira ou possa identificar linearmente liberalismo com democracia, por mais que se procure reservar o primeiro para o mbito da vida privada e o segundo para o da vida pblica, impossvel dissolver o nexo fundamental entre ambos, que se revela precisamente pela clivagem entre pblico e privado, em conseqncia do qual liberalismo e democracia so formas particulares de liberdade - a primeira a viger no interior da vida privada e a segunda nas fronteiras da vida pblica. /.../ Ambas expressam uma certa universalidade, ou seja, uma dada forma de ser-precisamente-assim da liberdade /.../ como exercitao do egosmo racional, o que significa ter por estabelecido que - o homem objeto para o prprio homem (Chasin, 1989:31).

Isso implica em que, ao contrrio do que pretendiam os conservadores brasileiros, no se pode dissolver o feixe de unidade, diversidade e contradio inerente relao liberalismo/democracia, por meio da reteno da positividade das liberdades pblicas e eliminao sumria das negatividades da liberdade privada, ainda segundo Chasin. Oliveiros Ferreira tenta emascular a contradio, destacando, por um lado, que Golbery no defende o ideal de liberdade que os liberais cultuaram, nem seguramente defende a propriedade como a defendiam os fisiocratas, pois tem conscincia de que o ideal liberal do Estado de Direito sucumbiu. Por outro lado, porm, Ferreira acredita que Ele um militar formado na escola do liberalismo - ainda que fosse um liberalismo sem vigor social - e um militar que fez a guerra contra o Eixo e acredita na Democracia /.../ mesmo que deva ser reformulada nos seus fundamentos (Ferreira, 1984:590). Essa concluso, contudo, vai de encontro aos prprios textos de Golbery e tradio conservadora a que busca dar continuidade. Sup-lo, no fundo, apesar de tudo, um liberal atentar contra as mais bvias evidncias.

3 - O PENSAMENTO PLANIFICADO: A TERCEIRA VIA GOLBERYANA

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O Advento do Pensamento Planificado

Para Golbery, o exame consciencioso e profundo do conflito terrvel pelo qual passa o planeta fornece a chave interpretativa para que o ocidente descubra o mundo de amanh, o caminho que as sociedades seguiro no futuro. Nesse mundo cambiante, que preciso conhecer para agir devidamente, tal chave se conseguir pesquisando antes uniformidades que discrepncias, antes acordos que antagonismos, Apreciando, apenas em alguns de seus aspectos mais extremados, esse conflito ideolgico, tal como se manifesta, sobretudo, na definio das atribuies e responsabilidades do Estado (PE:18). O general est ciente de que essa viso planificada do universo e da vida que, no ntimo, faz temer a uns que o Estado, atuando desde posio dominante, venha a adquirir um poder realmente incontrastvel e faz com que os outros professem que tal posio indispensvel a qualquer ao estatal eficiente e produtiva (PE:20). Sua posio, de que o Estado deve ser o agente de um planejamento democrtico, estaria acima das outras
duas concepes antagnicas do Estado: para o liberalismo otimista, a do Estado mero guarda-civil, ablico ante o espetculo das convulses sociais de nosso tempo, aptico em face das mais clamorosas injustias sociais, inerme perante seus decididos inimigos, tanto internos como externos; e, no extremo contrrio, o Estadoguarnio do totalitarismo impenitente, implantando a ditadura e o terror e, em nome de uma pretensa abolio das injustias sociais, socializando a misria, a corrupo, a brutalidade e a ignorncia. (PE:19)

Assim sendo, observa o general gacho, a sociedade atual v-se diante de um dilema fundamental: anomia ou totalitarismo. Para ele, contudo, este um falso dilema - ou, melhor dito, um dilema realmente existente apenas se no formos capazes de formular, em termos precisos e seguros, um planejamento democrtico (PE:22-23). Golbery sublinha que o vocbulo planejamento desencadeia, desde logo, as mais cegas adeses ou motiva, ao contrrio, restries veementes, obscurecendo, em primeiro lugar, o fato de que todo sistema econmico pressupe, por si mesmo, a existncia de planos, individuais ou coletivos, voluntrios ou coercitivos, coerentes ou em competio e, em segundo lugar, que planejamento e controle centralizado ou autoritrio da economia e da sociedade no so, em absoluto, conceitos que mutuamente se impliquem (PE:252-253, grifos nossos). Ele insiste em que o planejamento, ao contrrio do que pregaria o liberalismo, no dispensvel, antes ao contrrio. Assim, ope-se com veemncia liberalidade e ausncia absoluta de controles sociais, o que virtualmente impediria qualquer ao coordenada - o timo de governo seria sempre o mnimo de governao (PE:18-19). Observa que sem controles os homens-lobo poderiam viver em grupo. No planejamento democrtico, diz ele, sem dvida, h controles tambm, nem se compreenderia qualquer planejamento ou ao coordenada qualquer sem a previso e a possibilidade da aplicao de adequados controles sociais. Na verdade, sem controle social no haveria sequer sociedade (PE:408). No , pois, o planejamento ou a ao efetiva do Estado que contrapem totalitarismo e democracia. A questo est em como atua o Estado. Em suas palavras,
No dirigismo totalitrio, a execuo do planejamento vem, afinal, assegurada de todo atravs de um mecanismo coercitivo mais ou menos rigoroso que conceitua a no-obedincia a qualquer das diretrizes dos planejadores como verdadeiros crimes contra a sociedade e, pois, tambm contra o Estado. Tolhe-se, assim, a iniciativa individual no crcere estreito de mltiplas e kafkianas decises superiores. Renega-

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se a Liberdade. Desrespeita-se, comprime-se, conspurca-se toda a personalidade do homem. (PE:408-409)

Enquanto que o mtodo democrtico caracteriza-se pela revigorao de um pleno e salutar exerccio da iniciativa individual por um jogo balanceado de sanes e de estmulos (PE:408), de incentivos de toda ordem e de restries no superiores em nada quelas a que nos tem habituado o largo perodo de intervencionismo, tanto disfarado como s claras, o qual, sem plano algum que dure nem controle qualquer que valha, vem condenando ao fracasso tantas iniciativas corajosas e teis e desmoralizando perante o pas as nossas elites e, perante o estrangeiro, o poder pblico brasileiro (PE:25). No mtodo democrtico, pois, o exerccio da liberdade no mercado se torna tanto mais benfico e til para o prprio cidado, isoladamente considerado, quanto mais se enquadre nos objetivos visados pelos planos vigentes, tanto mais prejudicial e oneroso quanto mais pernicioso possa ser para estes (PE:408).
O homem integrante da sociedade, com todas as suas naturais motivaes de lucro, de bem-estar, de afirmao do seu ego, de sede de aplausos e de prestgio, de solidariedade social e humana tambm, ser solicitado a agir em determinado sentido, mais ou menos intensamente. Entretanto, poder decidir-se por uma ao antagnica, sem que, por isso, venha capitulado e punido como um simples delinqente social, o antipartido ou o antipovo do jargo comunista. (PE:408)

Planejamento democrtico vem a ser, segundo o general - Se no tivermos medo ao espectro de Marx - um processo dialtico, evoluindo sempre mediante a conciliao, em plano superior, das teses e das antteses que definem suas contradies imanentes (PE:260). Golbery v o planejamento democrtico como sntese feliz daquela oposio dialtica, a qual pode-se esperar que abra uma nova era para a histria da humanidade, a era de planejamento, de liberdade e de justia - eficcia e pleno rendimento para as atividades humanas, ampla e livre extenso personalidade individual e consciente de seus deveres sociais (PE:22-23). Sob forte influncia de Mannheim, Golbery prope nada menos que a transformao da mentalidade do homem, tendo em vista a inadequao atual do pensamento linear, mesmo sob a forma superior de uma corrente circular de causalidade. Ele destaca que este pensamento linear ou o pensamento auto-suficiente no deixa nunca de ser uma nova forma de robinsonada que, em suas diversas reas, por mais til que seja de fato como instrumento de uma anlise bem mais penetrante, constri modelos ultra-simplificados sem dvida insuficientes para conduzir a ao num mundo multifacetado cujas partes interdependentes no se podem enclausurar em setores estanques, sob pena de invalidarem-se e esterilizaremse afinal, incapazes de satisfazer o teste decisivo da ao (PE:20). Em substituio a tal pensamento linear, apresenta-se o pensamento planificado como tipo evoludo e nico compatvel com a sociedade moderna (PE:20). Este planejamento planificado implica, assim, no abandono definitivo do conceito simplista da causalidade linear e no reconhecimento da interao concomitante como o elo complexo e indissolvel que d organicidade de fato s estruturas dinmicas em perptua evoluo (PE:89). Se ainda desconfiarmos do planejamento estatal e se quisermos, por prudncia ou timidez, restringir o mais possvel o intervencionismo governamental - limitemo-nos ao campo da Segurana Nacional, com o que estaremos largamente contribuindo no s para o desenvolvimento do pas, mas tambm

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para demonstrar insofismavelmente, num campo em que a interveno estatal plenamente se justifica, que o planejamento de fato o nico mtodo de conduzir com eficincia a poltica de uma nao, o caminho nico para a libertao do empirismo e do regime de improvisaes dispendiosas e muitas vezes desonestas, o meio seguro de coordenar vontades e congregar esforos na consecuo de elevados propsitos comuns (PE:25, grifos nossos).

O planejamento da SN ser, ento, na viso do general, uma verdadeira escola da tcnica a aplicar mais tarde quando entrarmos confiantes e resolutos na era da planificao geral, racionalizando por fim as atividades do Estado e coordenando sabiamente, sem quebra dos princpios democrticos, as iniciativas pblicas e privadas (PE:25). interessante, para concluir este tpico, voltar s indelveis ndoas irracionalistas que perpassam todo o pensamento de Golbery, no obstante, paradoxalmente, a busca da racionalizao pelo planejamento. O general repete o clebre aforismo de Goethe: no comeo - a ao - para argumentar como, para agir no mundo, preciso conhec-lo (PE:12). Para chegar ao conhecimento desta realidade complicada e impenetrvel, necessrio desmont-la, mesmo que custa da quebra de sua organicidade unitria, far-se- imprescindvel selecionar na complexidade desalentadora de seus elementos infinitos aqueles que se afigurem as variveis estratgias da situao existencial. Contudo, atesta o general, nesse sutil processo de abstrao, no chegaremos seno a construir uma pobre viso distorcida - e na verdade irreal - dessa realidade misteriosa que nos prope o desafio eterno da esfinge lendria - compreende-me ou eu te devoro! (PE:12) O conhecimento da realidade do mundo , pois, impossvel - mais que parcial ou distorcido, irreal. O mtodo proposto por ele - o pensamento planificado, que v o mundo no pela monocausalidade, mas pela interao concomitante - , nesse sentido, um pouco melhor que os demais, mas o problema no chega a ser resolvido.

O Que Planejamento?

Planejamento constitui, segundo o general, um sistema de escolhas sucessivas e hierarquizadas entre alternativas que se prefiguram, dentro de um universo de conhecimentos em expanso dirigida, cujo fito racionalizar e orientar a ao com vistas consecuo de determinados fins - dadas, de um lado, certa disponibilidade estimada de recursos e, de outro, uma srie, tambm estimada, de obstculos (PE:254) Ou, mais resumidamente, Planejamento - quer dizer, orientao, ordenao, racionalizao, em suma, do conjunto de aes que visam a determinados fins e que, alm dos meios a empregar e dos obstculos ou antagonismos previstos, implica numa busca dirigida de conhecimentos e mais conhecimentos - em certos casos, informaes - e consiste, sobretudo, num sistema de escolhas ou decises, sucessivas e hierarquizadas, entre alternativas diversas (linhas de ao possveis) (PE:316 e 425). Eis por que j se disse, ganhando em fora sugestiva o que se perde em preciso, que planejar fixar prioridades, isto , ordenar as vrias alternativas aceitas (PE:255). O processo de planejamento - operao caracterizada como de natureza eminentemente criadora, operao essencialmente artstica (PE:278) - consistir, de acordo com Golbery, em reajustamentos mltiplos, sucessivos e reiterados entre necessidades decorrentes dos objetivos e linhas de ao estabelecidas, de um lado, e possibilidades

84 delimitadas pelos fatores crticos identificados, por outro lado - reajustamento comandado pela antinomia das necessidades e das possibilidades (PE:279); entre metas e empreendimentos tentativamente fixados para cada campo ou setor e a importncia relativa destes, tal como evidenciada pelo critrio de dominncia (reajustamento exigido pela antinomia entre o todo e as partes) (PE:279), bem como entre metas e empreendimentos de cada campo ou setor e os relativos aos demais, em face das exigncias, dependncias ou servides recprocas (PE:94) - ainda um outro aspecto da mesma antinomia entre o todo e as partes (PE:279). Ele considera como um dos mais gerais dentre os princpios que regem o domnio do planejamento - o da adaptao recproca entre os fins e os meios (PE:263), do qual deriva o mtodo das aproximaes sucessivas. O general sublinha que em todo o domnio do planejamento, o princpio fundamental o princpio da intencionalidade (PE:254). Esta est focalizada, em primeiro lugar, no objetivo a alcanar, que orienta todas e cada uma das decises, na escolha obrigatria entre alternativas que se ofeream. tambm a intencionalidade que
sugere as prprias alternativas a avaliar e confrontar - obra eminente de criao imaginativa a que no deve faltar nunca um verdadeiro sentido esttico (simplicidade, harmonia, senso rtmico, economia de recursos no alcanar efeitos surpreendentes etc.); limita, de incio, seletivamente a esfera de conhecimentos (teorias cientficas, experincia, informaes etc.) em que se mover o planejador, prescrevendo, a seguir, os rumos da prpria pesquisa que permitir pari passu ampliar esse campo; e fornece padres de referncia segundo os quais estimular tanto a disponibilidade de recursos como a significao real dos obstculos previstos (PE:255).

Os condicionamentos do planejamento referem-se aos fatores de dominncia (campo ou ao em que se processar com maior intensidade) e criticidade (fatores crticos identificados neste ou nos demais campos). A considerao dos fatores crticos permite reduzir pari passu a margem de possibilidades e facilita assim a soluo do problema sempre incerto e sempre renovado e dramtico da escolha (PE:91). A percepo de que uma ao ou linhas de ao apresentem um carter dominante em relao s demais - todas entre si solidrias e visando a um fim comum - recomenda, desde logo que se concentrem esforos segundo tal linha de ao dominante, se se quiser assegurar mais seguras probabilidades de xito e tanto um rendimento superior como eficcia maior (PE:95). De par com isso, a considerao simultnea de fatores crticos limitativos de qualquer esquema de manobra que se conceba impe, por outro lado que, concentrados os esforos segundo uma linha de ao integrante desse esquema, se realize estrita economia no projetar as demais linhas de ao quela primeira subordinada. Chega-se, ento, ao princpio da economia de meios, simples corolrio do princpio da concentrao de esforos ou princpio da massa, porquanto a economia, no sentido restrito de poupana, realmente condio indispensvel justa aplicao do princpio capital da concentrao de esforos (PE:95, grifos nossos). Este princpio capital, tanto estratgico como poltico, recomenda, de um lado, o mximo de concentrao dos esforos na ao considerada decisiva e a outra impe, ao revs, o mximo de economia de meios para as aes secundrias restantes que se tero necessariamente de empreender, em apoio primeira ou como sua cobertura, seja de retaguarda seja de flanco (PE:405). Os condicionamentos do planejamento - dominncia e criticidade - vm a constituir hipteses de trabalho que permitam estimar, com suficiente grau de aproximao, o valor dos fatores crticos mais importantes a considerar desde o incio do planejamento e orientar

85 as mltiplas decises sucessivas, em que os planejadores sero chamados a exercer seu iniludvel dever de escolha (PE:110), e premissas sobre a evoluo da Conjuntura nacional e internacional, em particular quanto ao comportamento de centros dinmicos externos (PE:110). As hipteses de trabalho tm um alto valor como instrumento de pesquisa e anlise da realidade econmica ou social, eficaz no plano abstrato da elaborao terica e no menos no quadro mais objetivo e concreto dos diagnsticos especficos. Aqui, frisa o general, o ato de escolha como elemento fundamental do planejamento se revela ainda uma vez, pois que
o estabelecimento de uma premissa , sem dvida, o resultado de uma escolha bem definida; enquanto que, por outro lado, a formulao de hipteses vrias, s quais se atribua certa ordem de prioridade, decorre em geral, quando considerado o conjunto mais amplo de hipteses de onde se selecionaram aquelas, de uma escolha de tipo mltiplo /.../, embora no deixe de traduzir, no quadro mais restrito das hipteses conservadas, uma verdadeira absteno, uma suspenso voluntria do prprio ato de escolha. (PE:258).

Sendo assim, conclui o general, o planejamento , no fundo, um conjunto encadeado de julgamentos de valor e todo plano no deixa de apresentar seu aspecto negativo (hipteses ou alternativas rejeitadas) (PE:258). Como se do sobre um complexo de julgamentos de valor, as inmeras escolhas que se pem no planejamento, adverte Golbery, so muita vez obscurecidas, impondo solues aparentemente nicas. Isso acontece porque os prprios planejadores deixam-se levar pelo esprito da poca (Zeitgeist), pela sua prpria perspectiva filosfica do mundo (Weltanschauung), para o que contribuem as concepes polticas dominantes, as ideologias em conflito, os interesses de grupos, o meio social em suma com todo o seu poder modelador, e atravs sobretudo da hierarquia de valores polticos, econmicos e ticos que inspira (PE:256). A isso se vm somar
todas as servides decorrentes das prprias limitaes dos instrumentos de aferio da realidade conjuntural, em primeiro plano as estatsticas de que se dispe, barrando quase decisivamente, na prtica, a considerao e anlise de muitas alternativas insuspeitas. Nem falemos, ademais das imperfeies inerentes ao prprios instrumento lgico de anlise que a mente do planejador. (PE:256)

Ele repete a idia, com uma surpreendente miscelnea de tecnicismo e nuanas irracionalistas, quando explica que todo planejamento de carter social importa, em si mesmo, numa projeo para o futuro mais ou menos audaciosa e implica, por conseguinte, uma afirmao dupla de certeza ou de f - de confiana na capacidade efetiva de domnio sobre os acontecimentos e as cousas e de confiana tambm na validade dos conceitos fundamentais em que se estrutura a prpria tcnica de planejamento adotada (PE:163). Assim, estar imbudo dos meios garantes da capacidade de controlar acontecimentos e munirse de uma metodologia adequada so fundamentais. Contudo, continua o general, o conhecimento tcnico e cientfico do mundo-como-natureza, esquematizado em leis, frmulas, teorias e sistemas, pode revelar-se insuficiente e estril se no dispusermos, ao mesmo tempo, de uma interpretao viva do momento que passa, luz de uma perspectiva fisiognomnica do passado - o conhecimento, muito mais intuitivo que racionalista, do mundo-como-processo-histrico. Este conhecimento , segundo o general, o nico que nos permite perscrutar o futuro nas linhas mestras de um destino condicionador de todas as atividades humanas (PE:163, grifos nossos).

86 Nesse sentido, Golbery chama a ateno para o grave perigo das escolhas implcitas por meio das quais persistem em se manifestar componentes de todo irracionais, a desvirtuar o processo de racionalizao que, no fundo, ou busca ser todo e qualquer planejamento (PE:255). Como julgamentos de valor, as escolhas a realizar quando do planejamento abrem campo demasiadamente vasto ao arbtrio do agente de escolha, deixando ainda margem a discusses interminveis e frices de toda ordem, perturbadoras do progresso e rendimento do planejamento e dos prprios planos (PE:275). Esse aspecto tem duas implicaes: por um lado,
o ideal, no planejamento do fortalecimento do Potencial, instituir mecanismos automticos ou semi-automticos de controle e de correo que, sob um rtulo impessoal muito mais aceitvel /.../ disfarcem o arbtrio da escolha, sempre presente, do prprio planejador, libertando, ademais, a este, da obrigao de intervenes diretas muito freqentes que lhe proporo interminveis e embaraosos problemas especficos de escolha (PE:274, grifos nossos).

Por outro lado, ainda em decorrncia das margens de erro do planejamento, impe-se recorrer, tanto quanto possvel, a ndices numricos (PE:275). Assim, a quantificao um instrumento eficaz facilitando a anlise, as comparaes, o entrosamento e a obedincia s limitaes determinadas pelos fatores crticos de toda ordem (PE:94-95). Indispensvel em qualquer planejamento, a quantificao vem facilitar a comparao e escolha entre linhas de ao alternativas, possibilitar o ajustamento entre objetivos parciais e polticas particulares e, ainda, atender s necessidades posteriores de controle no decurso da execuo dos prprios planos elaborados (PE:84), permitindo, por comparao, a aferio do seu xito ou fracasso (PE:276). Contudo, adverte o general, o que realmente deve orientar o planejador so os princpios gerais da Estratgia, dentre os quais o da concentrao de esforos e o da economia de meios - se que se devam considerar distintos - assumem particular relevncia (PE:94-95). Assim, retomando os dois ltimos pontos, o general resume:
Ou o avaliador capaz de atribuir a um repertrio, reduzido ao essencial, de dados estatsticos, pesos convenientes, de acrescer-lhes os fatores fundamentais no mensurveis sob uma qualificao valorizadora mais ou menos significativa, de apreciar-lhes adequadamente as mltiplas inter-relaes e, finalmente, de perceber como se poderiam integrar, de modo orgnico e com o mais alto ndice de rendimento, com vistas a uma finalidade especfica -, ou nada chegar a aduzir de til, de substancial, de palpvel simples apreciao intuitiva e impressionista, to capaz de levar a erros tremendos e trgicos, pois sujeita a governar-se por preconceitos de toda ordem e at por insconscientes desejos. (PE:382, grifos nossos)

Como concluso, o general reafirma que Planejar , no fundo, atribuir prioridades s diversas aes a empreender, com vistas a um fim superior e nico, claramente definido. Suas regras fundamentais: Atuar em larga frente, concentrar esforos nas aes reputadas decisivas, economizar judiciosamente os recursos a emprenhar nas aes secundrias, persistncia, flexibilidade, simpleza (PE:405). A tais princpios, o general acrescenta mais um:
Num campo to vasto e assim to complexo cujas verdadeiras leis e correlaes intrincadas nos escapam ainda, o princpio da segurana recomendar, por outro

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lado, a prudncia, em muitos, muitssimos casos, de aes particulares de explorao, antes de gizar uma estratgia definitiva a ser conduzida, a seguir, como o mximo possvel de vigor (PE:405).

O general salienta, por fim, a diferena entre plano e planejamento: enquanto este
se constitui, de fato, em atividade por assim dizer exploradora que obedece ao mtodo seguro e cauteloso das aproximaes sucessivas e vem at a assumir o aspecto do que j se denominou estratgia das decises abertas, assegurando vasto campo aos reajustamentos freqentes e s correes e revises, aquele, como plano j de todo constitudo, resultado do prprio planejamento, integra num todo coerente, embora sem prejuzo de certa dose de flexibilidade, uma cadeia de decises concludas, finais, mais ou menos definitivas (PE:259).

4 - ELITES CRIADORAS E POVO MASSIFICADO

Bem de acordo com a tradio conservadora brasileira, Golbery acredita que os atores da histria so as classes dominantes - ou, melhor dizendo, os estratos dirigentes das classes dominantes, que ele denomina, ainda de acordo com aquela tradio, de elite. Contudo, alm da herana do conservadorismo, ele tambm sofre forte influncia do pensamento de Spengler e Toynbee, no que se refere a este assunto. J de incio ele deixa claro o destinatrio escolhido para o seu discurso, esperando que suas contribuies sejam capazes de servir, uma vez que se torne instrumento apurado, s elites dirigentes do pas para que estas, aperfeioando e adaptando s contingncias brasileiras pela aplicao objetiva - assim o esperamos e confiantes - as tcnicas de planejamento que sugere, cumpram a tarefa primordial que lhes cabe - garantir a todo custo a Segurana Nacional nestes tempos dramticos de tremenda e sem igual instabilidade do mundo (PE:219). Est claro, portanto, que as elites que so o condutor do processo, ao qual ele busca oferecer instrumentos para que se ponha altura das necessidades deste mundo convulsionado. Isso porque constituem grupos mais densos e superiormente equipados em poderio e cultura (GB:98). Como atestou depoimento de Walder de Ges, Golbery conferia pouca importncia ao povo, ao restante da sociedade. Sua viso elitista do mundo no podia conceber a participao intensiva do que ele denominava massa no processo decisrio. Em sua teoria, o mundo parece girar por si s e a nica interferncia que sofre da atuao das elites, que tm o controle absoluto da histria, desde que aceitem os desgnios autopostos desta. por isso que A poltica era vista por ele como um fenmeno quase autnomo. Um sistema de relaes entre interesses. O povo existe, claro, e sua existncia fornece poltica os limites do que e do que no admissvel. Mas o povo uma realidade distante e difusa (Ges, FSP, 19-9-87). Como observou Oliveiros Ferreira, A assepsia mental e o horror demagogia pervertora do nacionalismo fazem-no descrer das capacidades criadoras do povo. O que se percebe em sua exposio que o povo no sujeito da histria da Nao /.../ to-s o objeto da ao estatal destinada a erguer, na dignidade e no realismo crtico, a grandeza do Brasil (Ferreira, 1984:597). A identificao dos ON pelas elites repousa em uma anlise interpretativa dos interesses e aspiraes nacionais /.../, que motivam, em cada poca histrica, toda

88 manifestao de um povo como Nao (PE:27; PE:328). Isso no justifica, no entanto, posies demaggicas, pois nem sempre o povo est consciente de seus interesses e pode at tomar atitudes com resultados opostos aos desejados:
Por uma questo de formao, condeno aqueles que se apresentam como porta-vozes infalveis do povo. /.../ Se ouvir o que diz o povo obrigao daqueles que se interessam pelos destinos de um pas, aceitar slogans pelo seu valor aparente j outra coisa. As manifestaes populares devem ser analisadas e interpretadas em profundidade, com realismo. (In Revista Veja, 16-5-84)

Numa nao como a brasileira, mal formada, em que as elites no tm uma unificao de interesses e tampouco conseguem representar interesses universais da sociedade, em que os trabalhadores tambm so atingidos pela incompletude estrutural das classes nacionais motivando a declarao de Golbery de que brasileiro de centro -, a conduo do processo sociohistrico s pode ser assumida pelo Prncipe com Virt, que pelo ascetismo de sua conduta, pela viso mais larga e fundamentada que tem dos problemas nacionais e pelo descompromisso eleitoral com o povo, seja capaz de imprimir ao Estado, sem demagogia e sem histeria, as diretrizes capazes de afirm-lo como representante de uma Nao em busca de seu destino (Ferreira, 1984:598). Oliveiros Ferreira, como os prprios membros da Sorbonne, via as Foras Armadas como esse prncipe 15 . Na verdade, elas agiram como imperador, aquele, o bonapartista... Como expressou o prprio Golbery, as elites, a minoria criadora cuja vida inteira deve ser uma incessante inveno, de acordo com a viso toynbeeana, tm originalmente, por seu poder carismtico, pela persuaso, por fora do processo econmico e automtico da mimesis teorizada por Toynbee, a capacidade de guiar as massas na superao continuada de obstculos-estmulos sempre renovados, fazendo da adversidade a matriz fecunda do progresso (PE:168). A elas cabe a importantssima tarefa de interpretar os objetivos nacionais atuais (ONA) - formulao mais precisa e contextualizada dos objetivos nacionais permanentes (ONP) que pairam na sociedade. Mais que isso, cabe-lhes ainda incutir nas massas inconscientes estes mesmos objetivos, os quais no so capazes de perceber como seus. Nas palavras do general, definir os ONA numa
formulao mais precisa e, em cada caso, objetiva, para cada fase da vida da nao considerada, constitui, de si mesmo, obra poltica de sbia auscultao e interpretao legtima do sentir e pensar de todo um povo. Obra que se completa, na verdade, por uma ampla tarefa educativa, tambm, que cumpre s verdadeiras elites representativas realizar, em profundidade, com perseverana, f, dedicao. (GB:101-102)

Ele repete a idia em outra passagem: a capacidade da chamada elite dirigente em sensibilizar e atrair a massa, em arrast-la docilmente sob sua liderana eficaz pela fora carismtica que desperte e assegure o mecanismo mimtico que Toynbee to bem descreveu, d bem a medida real de seu poder criador. Cabe-lhe faz-lo buscando traduzir os interesses e aspiraes, ainda informes, que flutuam imprecisos na alma popular ou indo mais alm e se

No se pode, contudo, radicalizar a analogia, pois que a Sorbonne sempre buscou dar s elites os elementos para que estas agissem devidamente no quadro nacional, sem que os militares estivessem exclusiva e permanente na conduo do Estado.

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89 empenhando, educativamente, para que o povo compreenda e sinta os seus verdadeiros interesses e aspiraes (GB:10-11; PE:366). Ressalte-se que tais tarefas s podem ser cumpridas pelas verdadeiras elites representativas, que so tambm elas parte do povo. Dividem com este objetivos, que so atingidos caso cada uma das foras sociais, elite e massa, cumpra suas funes - diferentes mas complementares. S assim se poder atingir uma condio harmnica que Golbery denomina - novamente tratando a Histria como algo transcendental - como pocas conscientes. Segundo o general, pocas conscientes s podero ser aquelas que bem se dem conta dos desafios decisivos que as defrontam, sendo assim capazes de um esforo conjugado - elite e massas - na concepo e implemento das respostas mais adequadas a assegurar o progresso da prpria sociedade que integram (GB:375 e 419). Para ele, o grande smbolo do avano conseguido pelas pocas conscientes fato de a elite arrastar as massas, com o consentimento destas, para uma era de atritos mnimos e harmonia. Assim, ao chegar ao esforo conjugado elites-massas,
O simples e rstico mecanismo da mimesis toynbeeana vir, ento, naturalmente reforado pelo senso generalizado de uma problemtica vital, o qual, permeando as prprias massas em quase todos os seus crculos de estruturao cultural, facilite a adeso voluntria e consciente liderana esclarecida das minorias dirigentes. Somente assim podero geraes, realmente criadoras, levar a bom termo sua tarefa capital de reviso e reordenao hierrquica dos principais valores sociais, com o mnimo de atritos e o mximo de coerncia e de objetividade, dentro do prazo mais curto, cumprindo a misso que de direito lhes cabe. (GB:375 e 419, grifos nossos)

Para poder conduzir sua gerao ao progresso, diz Golbery, ainda sob influncia de Toynbee, as elites precisam ter desafios pela frente para que sejam capazes de manter a criatividade na conduo dos negcios do pas. Elite, sem contestao, acaba perdendo inteiramente o poder criador (PE:307). preciso, ento, criatividade para dar as respostas necessrias a cada poca. No , porm, o caso na sociedade atual. Pelo nvel de abstrao com que tratado o assunto, sem nenhuma referncia a dados histricos (embora se possa inferir que ele se refere fase contra-revolucionria da burguesia), no fica claro o motivo, mas sabe-se que aquela elite,
agora, esgotada sua capacidade de criar, gastas as suas energias hericas, corrompida em sua moral e alheia a seus deveres e a suas responsabilidades, fracassa no papel histrico de liderana que era a justificativa nica de todas as suas prerrogativas, se v desertada pelas massas que antes a seguiam voluntria e entusiasticamente, e transforma-se em minoria de opresso, em simples grupo explorador - primeiro pela astcia, mais tarde pela fora (PE:168).

No caso brasileiro, em especial, Golbery enxerga as elites como descomprometidas com as necessidades nacionais, preocupadas puramente com seus interesses mesquinhos. A declarao de 1980 (na Conferncia da ESG) de que a busca do aperfeioamento democrtico era defendido pelos setores mais articulados das elites nacionais, de longa data abeberadas nos velhos ideais individualistas e liberais (PE:488; CN:28), parece ser meramente retrica, incoerente com muitas outras manifestaes de seu pensamento. Afinal, para ele,

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A elite empresarial brasileira solidamente autoritria. Apenas aconteceu que, num dado momento, a ditadura j no realizava seus interesses. Ela levou o Estado ineficincia e a exceder-se no controle estatal da economia. Em 1982, pelo menos, Golbery estava certo de que as Foras Armadas e o empresariado no haviam alterado seu compromisso bsico com o autoritarismo. Assim, dizia, a ditadura voltar, com fora total, caso o regime civil e democrtico no produza eficcia econmica (Ges, FSP, 19-9-87).

Com isto, tambm reconhecia a incapacidade da burguesia brasileira de conduzir de forma mais ou menos autnoma o projeto de modernizao do pas. Para essas elites j quase de todo esgotadas de seu poder criador, que abandonam suas tarefas histricas, estarem altura do seu tempo necessrio form-las, dar-lhes a conscincia e os meios tcnicos, e parte fundamental desse processo cabia ESG. A partir do reconhecimento da perda do poder criador das elites, Golbery desfia em uma srie de passagens a constatao, ainda que ligeiramente amargurada, da existncia de minorias dirigentes inescrupulosas e vidas, tirnicas ou predadoras, usurpadoras, insaciveis e corruptoras, grupos mais densos e superiormente equipados em poderio e cultura - a sagaz minoria dirigente, que se especializam em explorar cinicamente a lealdade sincera e muitas vezes desarmada do cidado comum, manipulando-o em prol de seus prprios interesses inconfessveis, que, sob racionalizaes mais ou menos bem urdidas, infiltram-se nos ON. (GB:11 e 98; PE:366) , sem dvida, uma usurpao (PE:326 e 439). O sugestivo esquema marxista da luta de classes, a despeito de sua rigidez e unilateralidade grosseira - ou justamente por isso - ps em todo relevo e em toda crueza esse fato incontestvel que no escapara, alis, observao percuciente dos antigos (GB:98). Assim, hoje, a grande, a maior, a mais rendosa ttica sempre a da mistificao do povo, apresentando-se-lhes interesses secundrios e mesquinhos de minorias insaciveis e corruptoras sob a roupagem vistosa ou inocente de supostos interesses nacionais, como tais impostergveis (GB:98-99). Tal tarefa atualmente facilitada, pois vivemos numa
poca singular de tcnicas aperfeioadssimas no manejo sutil das massas, sobretudo as desarraigadas e quase sempre disponveis e inconstantes massas citadinas - meios de comunicaes ultrapotentes, envolventes, insidiosos, de amplitude e de alcance nunca vistos, uma verdadeira cincia da propaganda fundada nos mais recentes postulados do behaviorismo, da psicanlise, da ciberntica e da semntica, a estimular e fixar, a explorar o mecanismo estereotipado dos reflexos condicionados (GB:98-99).

O fenmeno destacado por Golbery, que poderamos denominar de falsa universalizao de interesses, ocorre, sabemos, em todas as sociedades capitalistas, mas com maior virulncia e selvageria num pas como o Brasil, em que as classes dirigentes esto impossibilitadas e, de resto, desinteressadas em representar os interesses da sociedade como um todo. Como no poderia deixar de ser, dado seu enraizamento social, a anlise de Golbery se detm a. Da mesma forma, a ESG no encontra meios de resolver o problema encontrado:
Embora o governo teoricamente deva ser um delegado da populao no seu todo, na realidade a opinio pblica estabelece apenas uma faixa ampla, na qual o governo pode atuar com o seu beneplcito. Em verdade, so as elites que procuram condicionar os caminhos a seguir dentro dessa faixa. Surge, em conseqncia, a

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necessidade de que os objetivos prprios das elites, que so objetivos de parcelas nacionais, sejam coerentes com os ON. (Apud Rocha, 1996:81)

A falsa universalizao pode ocorrer porque a elite dirigente compenetrada melhor de seus prprios objetivos, bem equipada para a ao poltica e sobretudo hbil no manejo sutil dos mltiplos controles sociais /.../. A capacidade desta em sensibilizar e atrair a massa, em arrast-la docilmente sob sua liderana eficaz /.../ d bem a medida real de seu poder criador (GB:10-11; PE:366). O general tambm est consciente de que esse problema no se d somente nas tiranias. A diferena est em que ocorre, nos Estados autoritrios - sem rebuos quaisquer, nas democracias - sob disfarces de maior ou menor consistncia (GB:10-11; PE:366). Como vemos, muitas vezes Golbery adverte para um problema que de importncia vital para o Estado e sua segurana. Afinal, toda atividade da nao estar voltada para a realizao dos ON, como veremos. Se estes, na verdade, so objetivos da minoria usurpadora, que ser da nao e do Estado que se quer tanto, e a to altos custos, preservar? No obstante reconhea a importncia do tema e a ocorrncia do problema, Golbery no vai nunca alm da simples constatao desse fato, chegando a dizer que nada menos que acessrio: Pouco importa que /.../ muitas vezes se apresentem como interesses e aspiraes da coletividade, alguns que o so, afinal, apenas de uma simples minoria (GB:10-11; PE:366). Ou ainda:
Como quer que seja, porm, buscando, realmente, essa elite ou minoria, traduzir os interesses e aspiraes, ainda informes, que flutuam imprecisos na alma popular ou indo mais alm e se empenhando, educativamente, para que o povo compreenda e sinta os seus verdadeiros interesses e aspiraes, tratando, maquiavlica ou demagogicamente, de mistificar a massa para que adira a seus objetivos particulares de elite ou coagindo-a tal - isso , afinal, acessrio. (GB:10-11; PE:366)

As elites no encontram, sendo assim, nenhum limite para sua ao egosta - embora as conseqncias sejam amplamente negativas. Segundo nossa interpretao, tal displicncia com as negatividades da falsa universalizao de interesses pode estar ligada questo da mimesis. Isso quer dizer que o fato de a elite generalizar a defesa de seus interesses para toda a sociedade pode redundar em que eles realmente se tornem interesses sociais, num processo em que
as minorias dirigentes, inescrupulosas e vidas, seriam levadas a lanar mo de todos os artifcios e todas as formas de mistificao no sentido de apresentar os seus prprios e inconfessveis apetites egostas como interesses e aspiraes naturais do povo inteiro. Criariam, assim, neste, aos poucos, a viva conscincia de que tais interesses e aspiraes eram, de fato, algo importante e superior, a ser atendido em permanncia (PE:394-395).

5 - A CIVILIZAO OCIDENTAL, QUE A NOSSA

tarefa complicada, admite Golbery, caracterizar o que venha a ser a civilizao ocidental. Como ele ressalta, ao longo do evolver histrico desta civilizao, pode-se perceber uma variedade grande de formas, de estruturas, de valores, de ideais e princpios, entre uma dada fase e outro perodo qualquer - do atomismo feudal para o liberalismo citadino ou a

92 frrea centralizao cesarista, da primavera mtica e sonhadora ao outono racionalizador e frio, por exemplo (GB:222). Ainda na sociedade atual, impressiona a qualquer observador a multiplicidade de estilos de vida, de formas de pensamento, de valores e crenas, criando esse colorido aspecto da multanimidade, para nem falar da incorporao de traos exticos propiciada por nossa era de encontro entre civilizaes diferentes (GB:222). No obstante, assevera convictamente, a cultura ou civilizao do Ocidente, tal como a conhecemos afinal, plenamente evoluda e consciente, no se poderia confundi-la nem com qualquer das civilizaes que j desapareceram (GB:221). Ao olhar para o Ocidente histrico milenar, Golbery ressalta como este diferente do Ocidente de hoje. Considerando suas fases sucessivas de evoluo, o Ocidente, na verdade, apresenta analogias, talvez muito mais flagrantes e sugestivas, com as idades contemporneas de outras civilizaes ou culturas (GB:222). E no ser acerca desse ocidente milenar prenhe de tantas antigas tradies, sobrecarregado de um passado nunca morto de inmeras aventuras abortadas e de sonhos e ideais fenecidos, onde se defrontam e por vezes guerreiam-se, nas artes, na religio, na filosofia e na cincia, tantos pontos de vista diversos, tantas crenas antagnicas, tantos sistemas opostos, que ele estar falando (GB:225). Ao mesmo tempo, no ser tambm o ocidente atual, repleno de dissenses e agitado por correntes diversas de idias, de interesses, de crenas, que se digladiam em todos os setores da vida social.
Nem tampouco nos deteremos a apreciar a dominncia exercida, em largo perodo histrico bem recente, pela motivao econmica e, sobretudo, o impulso industrializao cada vez maior, subordinando inteiramente s suas exigncias particulares - e sem dvida mesquinhas - todas as viglias dos sbios, toda a dedicao dos mestres, toda a imaginao dos artistas, desorganizando a famlia tradicional para melhor atender a seus fins materialistas, distorcendo os preceitos religiosos /.../ para impor melhor ainda o seu primado indiscutvel e recorrendo tambm ao cataclismo da guerra para assegurar-se inexauridas fontes de novas matrias-primas ou garantir o monoplio de amplos mercados consumidores. (PE:90)

Ele esclarece, ento, a que ocidente estar se referindo e que levou Afonso Arinos a criticar sua viso mstica do ocidente:
Pois o nico Ocidente que vale como um todo duradouro e coeso, o Ocidente que se pode de fato distinguir, nitidamente, de tantas civilizaes e culturas, dotado de uma individualidade prpria, original e marcadamente caracterstica, para ns o Ocidente como ideal, o Ocidente como propsito, o Ocidente como programa. (GB:225)

O propsito, o ideal, o programa desse ocidente so, justamente, a Cincia, como instrumento de ao, a Democracia - como frmula de organizao poltica e o Cristianismo - como supremo padro tico de convivncia social. Esto contidos nesses princpios essenciais, segundo o general, e em seus justos limites, liberdade, igualdade, fraternidade; o amplo reconhecimento da dignidade do Homem; a plena expanso da personalidade individual; o mximo de bem-estar, fsico e espiritual, para todos; a justia social e a paz (GB:226).

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Sua atualizao perfeita na Terra talvez nunca seja mesmo possvel, mas, nem por isso, deixou ele em tempo algum ou deixa realmente, ainda hoje, de estimular toda essa aventura extraordinria, cheia de xitos surpreendentes, de falhas irremediveis, de fracassos tremendos, de deseres e arrependimentos, de dedicaes e renncias que a longa histria em verdade vivida pela sociedade ocidental. (GB:225)

E se porventura algum dia o Ocidente perder de todo aquele ideal, aquela f que o ampara, aquele propsito superior que o guia, ter, ento, soobrado de fato num ocaso derradeiro e fatal (GB:226-227). Esse ocidente idealizado e mstico no est isento de mculas, pois, em nome daquele ideal, se tm perpetrado crimes e realizado espoliaes e fundado mesmo tiranias. Mas, observa Golbery, esses crimes, essas espoliaes, essas tiranias, se como tal so reconhecidas e como tal estigmatizadas, afinal, luz daquele prprio ideal que conspurcam e, ao renegar, reafirmam (GB:225). A essa corrente de ideal que impulsiona a histria do Ocidente esto ligadas inclusive, embora a contragosto, aquelas foras que hoje o combatem ou lhe so simplesmente apticas. Segundo Golbery, estes so incapazes de venc-la, a no ser na transitoriedade sempre fugaz de certos perodos retrgrados ou na circunscrita delimitao de alguns ncleos reacionrios. Esse ocidente, nosso sculo o veria ocidentalizar todo o planeta, Pelo domnio muitas vezes desumano e cruel ou pela criao de novas civilizaes em remotas paragens desertas, mas, sobretudo, pelo poder de fascinao de sua cultura to bem sucedida (GB:227). Apoiado no poderio esmagador de uma tecnologia surpreendente, o ocidente imps-se s culturas exticas, mesmo as de longa tradio de vigorosa originalidade e de um rico passado milenar que, divididas entre a desconfiana natural e a admirao mimetizadora, viram-se compelidas a assimilar, o mais rapidamente possvel, dessa civilizao estranha, tudo o que lhes permitisse reagir, no prazo mais curto, contra a lenta asfixia, a dominao brutal, o deperecimento certo. Usar as armas - tcnicas, mas tambm ideolgicas - do agressor para melhor combat-lo, foi a via possvel para tais civilizaes (GB:227). No mundo atual, inflexionado por um conflito tremendo, apenas o ocidente est em condies de antepor-se ao avano comunista, e ter de faz-lo, a despeito da desconfiana que sempre suscitaro quaisquer intervenes suas em virtude de um longo passado, no de todo olvidado, de detestveis prticas colonialistas. E o ter de fazer, sobretudo, porque nisso estar envolvida, agora, a sua prpria sobrevivncia, muito mais do que simples interesses materiais ou questes de prestgio (GB:229). O Ocidente est, assim, ameaado. E o pior que no uma ameaa concreta, se assim pudermos dizer, mas como a realizao de uma antiga profecia, de um destino trgico, mesmo contra todos os esforos envidados em contrrio. novamente Histria impiedosa, manipulando os cordis dos homens - e das massas continentais e das civilizaes abstratamente consideradas - independentemente de sua vontade e de suas aes. Isso porque, quando trata da civilizao ocidental, Golbery, sob fortssima influncia de Spengler e Toynbee, deixa entrever profundos laivos irracionalistas, que vm se somar a sua j nossa conhecida viso a-histrica da sociedade. Como observou acuradamente Oliveiros Ferreira, O medo de que a civilizao crist desaparea inspira o pensamento do general Golbery; e de tal forma se faz sentir a presena desse elemento irracional nas pginas preliminares, que se poderia dizer que o conceito de SN desenvolvido na Geopoltica do Brasil se fundamenta nele (Ferreira, 1984). Em sua persistente pregao pelo convencimento do perigo do fim da civilizao ocidental, Golbery ajunta s teses da guerra fria as noes de declnio das civilizaes de Spengler e Toynbee.

94 Golbery comea pelo conceito de cultura, autonomizado em relao s sociedades. Nisto, o general est sob a inspirao da monumental doutrina vitalista de Spengler, que
distinguiu bem das vrias culturas que se tm sucedido na histria da humanidade, a idia da Cultura, una e indivisvel, primofenmeno de todas aquelas e que a todas permeia e fundamenta e impulsiona como ideal supremo a atingir: E na curva envolvente a todos os ciclos de evoluo das culturas se poder mesmo vislumbrar um progresso definitivo da Humanidade (PE:167).

Em linguagem sibilina, Golbery pretende, mas no consegue, explicar como, segundo Spengler, as culturas nascem ao despertar vigoroso de uma nova alma coletiva na protoespiritualidade eternamente infantil e pr-lgica da humanidade primitiva, unificando geraes vrias num gesto super-humano de afirmao propriamente como organismos supra-individuais caracterizados por um smbolo potente de expressividade, uma filosofia, um estilo e um ritmo de vida prprios que podem variar. No decorrer de sua vida, crescem, desenvolvem-se e se expandem aos impulsos insopitveis de seu lan vital, at atingirem a mxima florao de sua maturidade barroca para declinar e morrer por fim, exauridas de todos, aos embalos dos sonhos msticos de uma segunda religiosidade, encerrando assim o ciclo inexorvel de atualizao de todas as suas imanentes possibilidades criadoras (PE:166167). Em sua evoluo assim predeterminada, a censura trgica entre a primeira fase das civilizaes - chamada propriamente de cultura por ser
rica de intuies geniais, prenhe de inspirao artstica em busca de expresso, animada pelo vigor entusiasta de um grande mito religioso e arraigada profundamente me-terra de sua paisagem original, comunitria, orgnica, integrada por uma vontade essencial, a princpio primaveril, lou, tmida, potica, inexperiente e balbuciante, depois confiante em si mesma, reformista, puritana e finalmente outonal e frgil como que a sentir o prenncio do declnio e da morte que se avizinham (PE:166-167)

e a ltima fase, de civilizao, gasta de poder criador, cptica, pessimista, friamente intelectual, utilitria, imperialista, megalopolitana, sociedade mecnica mantida coesa apenas por uma vontade arbitrria, tal censura trgica a marca indelvel do comeo do fim. Nesta fase,
o monumentalismo deforma as criaes artsticas e o niilismo destri todos os valores consagrados, campeia a demagogia mais cnica e fenecem tiranizadas todas as liberdades, inaugura-se a era sangrenta dos Estados contendores e constitui-se afinal o Imprio, frmula corrompida, rgida, desptica e vazia, nica que poder sobrepor-se anarquia generalizada, mas que no resistir aos embates do tempo (PE:166-167).

Golbery repudia no pensamento spengleriano a sugestiva analogia organicista to cara ao esprito germnico; com Toynbee, rejeita tambm o rgido determinismo spengleriano que chega a descobrir constantes histricas na durao de cada ciclo e cada fase de evoluo das culturas e afirma inapelvel o destino mortal de todas as civilizaes (PE:167-168). Contudo, assinala, Toynbee acaba por concordar em que no mais possvel admitir quer a unicidade da civilizao, quer a hiptese difusionista de um bero comum para todas as culturas; e, tambm ele, advoga uma morfologia comparada das sociedades civilizadas que as

95 considere indivduos filosoficamente contemporneos de uma mesma espcie social. Toynbee, ao proceder
anlise minuciosa da ascenso e queda das vinte e uma civilizaes de que h memria terem florescido face da terra, comprova, em vinte delas, a interrupo do processo dialtico de seu crescimento no sentido de uma complexidade estrutural crescente e de maior autodeterminao, pela supervenincia de um colapso brutal, no orgnico nem prefixado, como afirma Spengler, mas verdadeiro ato incidental de assassnio, ou antes, de genossuicdio que marca o incio da fase involutiva de desintegrao tanto corporal como espiritual, quando no haja de sobrevir alternativa trgica - a morte esttica da petrificao cultural (PE:167-168).

Golbery ressalta que o cisma declarado no seio do grupo social e o nascimento de um proletariado interno e um proletariado externo vem inaugurar uma era de tremendas perturbaes sociais, na qual projetam-se os salvadores pela espada em tentativas mltiplas e afinal vitoriosas de implantao do Estado Universal e da tumular Paz Ecumnica que assinalam, para Toynbee, o momento decisivo da derrocada inevitvel (PE:168). Agora com Spengler, o general analisa o progresso da civilizao ocidental. Como ele destaca, com o predomnio da civilizao citadina,
afirma-se inconteste a supremacia materialista da economia, do dinheiro e da mquina - a idolatria tecnolgica, /.../ esgota-se o solo agrcola pelo abandono, o xodo rural lana nas metrpoles de insulae-slums-favelas uma populao marginal de novos brbaros nmades que engrossam as multides amantes da ao direta e do circo, decai a famlia pela limitao voluntria da natalidade e pelo contgio da rude moral das fbricas e das quadras de esportes profissionais, e a promiscuidade estimula o sincretismo religioso em que vicejam os cultos mais primitivos e estranhos. Enquanto isso, no cenrio internacional, surgem as grandes Potncias imperialistas /.../ e inaugura-se o perodo trgico em que nos encontramos nestes anos de deciso, de sucessivas guerras de aniquilamento cada vez mais ferozes e da mais despudorada e desapiedada poltica de poder (PE:172).

Nossa civilizao ocidental est talvez j ferida de morte, assustada e perplexa ante o espetculo histrico desta quadra agnica em que vivemos - verdadeiras tempestades de impulsos inconscientes e brbaros a sacudir, a galvanizar, a revolucionar as massas ainda embrutecidas e mal despertas agora de seu sono milenar (PE:13) e que, desta civilizao dominadora, prticas e tcnicas - no o esprito - buscaram e ainda buscam assimilar, hoje se rebelam mais ou menos abertamente ( PE:175). Ou seja: a civilizao ocidental passa na atualidade por um perodo crtico de perturbaes violentas semelhante aos que sempre precederam o estabelecimento pela fora de um Estado Universal, criado atravs de mltiplas guerras, pelo ltimo remanescente ainda vitorioso (PE:172-173). De fato, segundo Golbery, passamos j por muitas tentativas de implantao do Estado Universal, entre as quais cita as guerras napolenicas e os dois conflitos mundiais. Isso para reafirmar seus temores de que, numa era atmica, ameaam sobrevir conflitos ainda mais mortferos - motivo pelo qual projeta-se e proclama-se e defende-se, j quase mesmo sem f, a criao de uma comunidade de poder, de um controle institucional supranacional, de qualquer forma estvel e no desptica de ordem universal (PE:172-173). Assim, conclui com Toynbee que o Ocidente, depois de cercar o mundo por mais de 250 anos, agora se v cercado por sua vez, na defensiva contra uma presso concntrica de todos os lados, num mundo global e sem margens onde quem cerca cercado (PE:172-173).

96 Temos, ento, Spengler e Toynbee apontando a ameaa do surgimento de um grande Imprio Universal em que se aniquilar, por fim, a civilizao ocidental (GB:22). Essa viso vem se coadunar com teorias geopolticas adotadas pelo general e que previam para logo o surgimento do superleviat. Mas, destaca Golbery, existe singular e etrea possibilidade de salvao para a civilizao crist do Ocidente: justamente pela f,
mediante a transferncia shakespereana de campo de ao do macrocosmo do mundo para o microcosmo da alma humana infinita e imortal, o que permitir afinal o nascimento de uma sociedade nova de dimenses espirituais superiores s de todas que at hoje surgiram, prosperaram e acabaram por desaparecer no lento e impassvel defluir dos sculos (PE:169).

nessa possibilidade (anti-spengleriana) de transfigurao mstica que Golbery aposta para que possamos, mediante nossos prprios esforos, dar histria, em nosso caso, algum giro novo e sem precedentes, como proclama Toynbee. De seu lado, o Brasil, gestado sob o signo da prpria Cristandade, resultante final da transposio da cultura ocidental europia para terras quase desertas e virgens onde no havia cultura autctone que lhe resistisse ou pudesse deturpar-lhe a essncia, embebido desde sempre nas idias e nas crenas ocidentais, no poderia renegar jamais esse Ocidente em que se criou desde o bero e cujos ideais democrticos e cristos profundamente incorporou sua prpria cultura (GB:226-227).
E, pois, pertencemos ao Ocidente; nele estamos e vivemos; o Ocidente vive e persiste, realmente, em ns, em nosso passado e em nosso presente, em nosso sangue e em nossos msculos, em nossos coraes e em nossos nervos, nos ideais pelos quais lutamos e nos interesses que defendemos, na tcnica que nos arma o brao, na cincia que nos alimenta o esprito, na f que nos fortalece a alma, nos livros que lemos, nas palavras que proferimos, nos cnticos que entoamos, nas preces que balbuciamos, at nesta maravilhosa paisagem plstica que nos rodeia, praias, montanhas, selvas, campos, planaltos e rios, ocidentalizados mais e mais pelo esforo perseverante e incansvel de incontveis geraes. Ns somos, tambm, o Ocidente. (GB:226-227)

A contradio figadal entre a opo pelo ocidente e o nacionalismo pregado por Golbery est aqui mais que patente. essa contradio que o faz proferir frases estranhas, como a que segue, que poderia ser repudiada veementemente por ele prprio como oportunista:
E se o Brasil subsistir em segurana neste glfo excntrico do Atlntico Sul, poder bem ser destino seu recolher a herana de cultura de uma civilizao portentosa que se tenha esvado na loucura da guerra, cumprindo-lhe ento, por sua vez, aquela misso histrica que tem cabido a muitos outros povos no evolver impassvel dos sculos, em que todos so /.../ como corredores olmpicos passando de mo em mo o facho luminoso da vida. (PE:219)

Assim, como afirmou Oliveiros Ferreira,

A operao mental que o general Golbery pretende fazer - construir uma geopoltica brasileira para auxiliar os Estados Unidos e o Ocidente a defender-se contra o

97
imperialismo comunista de origem extica - de difcil realizao, porque nega, de incio, o fundamento mesmo do raciocnio geopoltico, que a poltica de poder e a afirmao do Poder Nacional desvinculado do contexto mais geral da civilizao em que se insere /.../ Geopoltica e o ecumenismo se excluem logicamente - da mesma maneira que a construo do Poder Nacional e a interdependncia entre os que j assumiram responsabilidades na poltica internacional e aqueles que para elas se preparam. A construo, note-se bem, porque para os poderes nacionais j erigidos a interdependncia a forma histrica da afirmao de sua hegemonia sobre os demais Estados. (Ferreira, 1984:596)

6 - OS OBJETIVOS NACIONAIS DE GOLBERY

Como vimos, cada Estado mobiliza-se ao impulso potente de um ncleo de aspiraes e interesses, mais ou menos definidos com preciso num complexo hierrquico do Objetivos que, para os Estados-Naes da atualidade, so seus objetivos nacionais (ON). Aos ON Golbery atribui a pretenso de traduzir os interesses e as aspiraes e todo o grupo nacional, assim mesmo, indefinido, uno e indivisvel. No tratamento dessa questo aparecem tambm os laivos irracionalistas do pensamento do general. Temas como instinto, alma popular ou alma nacional, vontade coletiva so aqui recorrentes e aditam-se ao ahistoricismo - ou, antes, anti-historicismo - de seu pensamento. Segundo ele, a elaborao, para fins expositivos, dos ON , por assim dizer, instintiva e resulta naturalmente do processo histrico atravs do qual o grupo adquire e plasma uma conscincia nacional (PE:60-61 e GB:252). O conjunto dos ON deve constituir um sistema e ser, portanto: coerente, isto , no apresentar incompatibilidades quaisquer; econmico, vale dizer, sem redundncias; e elegante, de um manifesto valor esttico (PE:318 e 427). O problema da racionalidade na formulao dos ON parece estar somente em sua apresentao, j que sua captura - ou, melhor dito, interpretao - parece ser obra de alguma entidade ou atividade mstica. Golbery insiste em que os ON, especialmente os permanentes, no so criaes especulativas, mas se acham imersos, com evidncia maior ou menor, as mais das vezes apenas vislumbrados antes pelo sentimento do que pela razo, nas aspiraes sempre algo difusas da alma nacional, como quer, alis, que se entenda esta expresso (PE:358, grifos nossos). Outras formas de conhec-los tambm passam pela intuio ou pela simples formulao por algum membro inspirado da elite: No menos verdadeiro , tambm, que prhomens do pas, expoentes todos da prpria nacionalidade e seus legtimos intrpretes realistas, uns e visionrios, outros - poderiam j haver intudo ou formulado objetivos to fundamentais vida nacional (PE:358, grifos nossos). Sem se deter mais na complexa e sibilina forma de interpretar ou formular os ON, Golbery passa logo etapa seguinte, julgando que, diante de objetivos to fundamentais, reconhec-los como tais, traduzi-los com acerto e preciso e anunci-los como guias e inspirao de toda ao poltica, eis o ato mximo de criatividade poltica, padro do verdadeiro estadista (PE:358). Golbery indica o Estado, e nele o governo, como o agente de suas transformaes. Ora, se certo que os ON s podem ser formulados em toda a sua clareza e adequao realidade a partir do Estado, tambm verdade que no podem ser formulados pelo Estado, enquanto unidade de deciso e ao com legalidade prpria, mas apenas por aqueles que compem o ncleo do poder no Estado (Ferreira, 1984:579).

98 Na verdade, para Golbery, a interpretao dos ON - que pairam ou esto plasmados irracionalisticamente na alma popular, muita vez deles inconsciente - tarefa da sagaz minoria dirigente, que pode a infiltrar, sob racionalizaes mais ou menos bem urdidas, seus prprios interesses pouco confessveis, como j vimos (GB:11; PE:366). Por isso, no processo de sua definio em termos precisos, importa eliminar, tanto quanto possvel, as superestruturas ideolgicas e as racionalizaes mais ou menos especiosas com as quais, freqentemente, se mascaram as aspiraes e interesses de fundo mais egosta e carter mais agressivo (PE:60-61 e GB:252). Os interesses divergentes so vistos aqui, como se pode perceber, como mera questo metodolgica, no como contraposio de fundo socioeconmico. A isso relaciona-se a exposio dos ON, que e deve ser encarada como uma obra de arte, de vez que as obras de arte promovem o sentimento de identificao. E no indispensvel que todos se sintam facilmente identificados com os Objetivos enunciados? S essa identificao dar ao plano o selo autntico de uma autoridade inconteste (PE:318 e 427). A elite, especialmente a elite dirigente, no dever, contudo, apenas auscultar a alma nacional, como quer que se entenda esta expresso, em busca dos ON que nela esto plasmados. tambm a sua, como tambm j referido, uma fundamental tarefa pedaggica: o esclarecer ou incutir na alma popular o reconhecimento dos ON como seus,
Tanto mais quanto menos consciente esteja o povo, esteja a Nao, de seu prprio destino, no manifesto ainda, que se esconda indeciso no crepsculo de um futuro auroral. Mesmo porque, em circunstncias tais, o papel magno do estadista ser o de criador que parte de um quase nada, por vigorosa - quase direi, sagrada - empatia com a alma popular em seus impulsos menores, ainda sem clara afirmao no mago da vontade coletiva, e, captando-os ainda em seu estado nascente, d-lhes corpo coerente e contedo mais rico e com eles vem a inspirar, como que em promissora autofecundao, o prprio povo, para catequiz-lo e mobiliz-lo ao pragmatismo e dinamismo da ao efetiva. E esse o lder verdadeiro, em seu profetismo arrebatador e carismtico, em quem o povo, a Nao toda acaba por enxergar sua prpria encarnao em moldes humanos. (PE:358, grifos nossos.)

A influncia do pensamento conservador, para alm das nuanas msticas, absolutamente patente nesse raciocnio. Pode-se concluir que a nao brasileira est justamente nessa fase, inconsciente de seus objetivos, no aguardo de sua interpretao pelos membros dirigentes da elite ou, mais especificamente, por um lder carismtico que os mobilize (queles membros) em funo deles. Elizer Rizzo de Oliveira sintetizou o paradoxo expresso pelos ON:
como a DNS no abre s massas a possibilidade de definio de interesses, os interesses s passam a existir de fato, e politicamente, na medida em que so interpretados pela elite, ao nvel do Estado. Do contrrio, permanecem como aspiraes latentes da nacionalidade. Se no forem traduzidos pela elite, encontrando, portanto, porta-voz em outro grupo social, sero sempre passveis de suspeita da ao dos inimigos internos. Correlatamente, em nome do bem comum, do interesse coletivo, os interesses contraditrios das diferentes classes sociais so amalgamados em ON que correspondem, de fato, aos interesses da elite, ainda que em nome da nao. (Oliveira, 1988:245)

99 Os ON dividem-se em permanentes (ONP) e atuais (ONA). Os ONP, pedra fundamental de toda a construo, fundamentam-se numa anlise interpretativa dos interesses e aspiraes nacionais, mais ou menos conscientes, mais ou menos inarticuladas e por vezes ainda informes, que motivam, em cada poca histrica, toda manifestao de um povo como Nao (PE:60-61 e GB:252). Os ONP expressam, dessa forma, aspiraes e interesses que perduram em determinada etapa, mais ou menos longa, da evoluo do grupo nacional; como ncleo constante e universal a figuram, sob formas mais agressivas e positivas ou mais defensivas e negativas, as idias motoras de integrao nacional, autodeterminao ou soberania, bem-estar e progresso (GB:155). Uma vez que Tais objetivos se radicam no amplo campo da Poltica, arte do Estadista, continua Golbery, os ONP so objetivos polticos, lato sensu (PE:27 e 328). Contudo, para Elizer Oliveira, os ONP localizam-se no no campo da poltica, mas no campo da filosofia, uma vez que constituem uma viso abrangente sobre o carter nacional do povo brasileiro, como vimos quando falamos da ESG 16 . Unificados e a servio do interesse vital de sobrevivncia, os ONP integram num ncleo universal e constante, portanto imutvel, as idias-foras de autodeterminao, de integrao, de bem-estar, prosperidade e prestgio, as quais, por sua vez, polarizam uma constelao de valores e ideais sociais, tanto polticos como econmicos e ticos, diferindo largamente de pas a pas e de cultura a cultura (GB:169). Percebe-se a que os ON golberyanos relacionam-se umbilicalmente sobrevivncia do grupo como tal, o que implica desde logo a manuteno do statu quo. No se questiona uma mutao mais aprofundada do grupo; nem se pode conceber que, depois de tanto tempo sendo uma sociedade com tais ou quais caractersticas, o grupo por inteiro, ou mais provavelmente grupos dentro do grupo, queira mudar para alguma coisa diferente... A manuteno do que o objetivo nacional permanente superior. No est sob anlise, portanto, uma substancial transformao. Sendo assim, Sobrevivncia da Nao como Nao e, pois, soberania, integrao crescente, prosperidade, bem-estar e prestgio so as categorias intemporais em que tais interesses e aspiraes necessariamente se inscrevem (GB:101-102). O desenvolvimento econmico-social est includo nestes ltimos tpicos e constitui um fator importantssimo, j que, para as sociedades humanas, assim como para todos os organismos de maior ou menor complexidade, a estagnao a morte (GB:11; PE:366). Em 1959, Golbery inclua entre os ONP brasileiros a salvaguarda intransigente de nossa independncia poltica, ressalvando que so admitidas autolimitaes, nunca essenciais, da soberania nacional, em benefcio da cooperao e da paz internacionais. Ainda no campo poltico, a democracia, com bases cada vez mais amplas na participao efetiva e consciente do povo, tambm considerada um ONP (GB:74-75). No mbito do relacionamento administrativo intranacional, era vista como fundamental a garantia das liberdades regionais (sentido federativo) e da autonomia local (municipalismo). A consolidao da unidade do grupo nacional pela crescente integrao social era um ONP que tinha como fundamentos os princpios da justia social e da moral crist. O outro lado dessa unidade estaria na incorporao efetiva de todo o territrio nacional, humanizando-se e valorizando-se os largos espaos ainda vazios. O fortalecimento equilibrado da estrutura econmica teria naturalmente reflexos positivos nos nveis de bemestar e cultura do todo o povo, em todo o pas, garantindo-se o grau de auto-suficincia realmente indispensvel ao pleno exerccio da prpria soberania nacional (GB:74-75).

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Captulo I - A Falsa Soluo Esguiana.

100 No mbito externo, a manuteno do statu quo territorial na Amrica do Sul, contra quaisquer tendncias revisionistas ou a formao de blocos regionais, polticos ou simplesmente econmicos, que possam vir a constituir ameaa prpria paz do continente somava-se ao robustecimento do prestgio nacional, baseado no princpio da igualdade jurdica dos Estados, e a crescente projeo do pas no exterior com vistas salvaguarda eficaz de seus prprios interesses e em benefcio tambm da prpria paz internacional (GB:74-75). Note-se, para finalizar, que Os conceitos usados pela DSN (segurana, poder nacional, estratgia, ON, fronteira ideolgica, guerra ideolgica, guerra subversiva etc.) foram tomados emprestados da poltica internacional. Aplicados ao campo interno, levam transformao do adversrio em inimigo (Pereira, 1988:270). Assim, os objetivos que so diferentes dos definidos pela elite so, desde j, vistos como contrrios aos interesses nacionais, como vimos.

Os Objetivos Nacionais Atuais

A formulao precisa e objetiva dos ONP para as vrias etapas da vida de uma nao constitui obra poltica de sbia auscultao e interpretao legtima do sentir e pensar de todo um povo, que se completa, na verdade, por uma ampla tarefa educativa, tambm, que cumpre s verdadeiras elites representativas realizar, em profundidade, com perseverana, f, dedicao (GB:101-102). A capacidade da chamada elite dirigente em sensibilizar e atrair a massa, em arrast-la docilmente sob sua liderana eficaz pela fora carismtica que desperte e assegure o mecanismo mimtico que Toynbee to bem descreveu, d bem a medida real de seu poder criador. Cabe-lhe faz-lo buscando traduzir os interesses e aspiraes, ainda informes, que flutuam imprecisos na alma popular ou indo mais alm e se empenhando, educativamente, para que o povo compreenda e sinta os seus verdadeiros interesses e aspiraes (GB:10-11; PE:366). Isso porque os ON admitem variaes mais ou menos pronunciadas dentro de largos perodos de tempo, segundo o grau de maturidade poltica alcanado pelo grupo nacional em sua evoluo cultural, econmica e social (PE:60-61; GB:252).
Conforme as circunstncias vigentes em cada caso, a sobrevivncia, a autonomia, o desenvolvimento traduzir-se-o em objetivos, secundrios porque decorrentes da conquista de terras alheias ou defesa do prprio territrio, de agresso ou de paz, de aquisio de riquezas ou salvaguarda de patrimnios, da obteno de esferas de influncia ou libertao econmica, de subjugao cultural ou de afirmao nacionalista, de autarcia, de irredentismo, de liberdade ou de imperialismo, de satelizao, de domnio - toda uma gama de objetivos polticos, econmicos, psicossociais e at mesmo militares (GB:11; PE:366).

Os objetivos nacionais atuais (ONA) representam a cristalizao dessas aspiraes e interesses, luz das limitaes impostas pelas possibilidades e circunstncias do momento, em particular pelos antagonismos internos e externos, tanto existentes como presumveis (GB:155). Como ressalta o general, a SN o operador qualitativo que transforma as expresses de natureza poltica em expresses estratgicas correspondentes - ou, termos mais claros, aplicado este operador aos ONP, resultariam imediatamente os ONA, no houvesse a a interferncia do princpio fundamental da adequao dos fins totalidade dos meios disponveis (PE:30 e 329-330). Entre outros motivos, isso ocorre porque, enquanto que os ONP irradiam de um centro nico de poder - a Nao considerada, os antagonismos procedem de centros vrios - em regra, outros Estados-Naes ou coligaes mais ou menos

101 firmemente estruturadas de Naes - entre si relacionados, quando mais no seja, pela prpria existncia das reaes comuns atravs das quais se solidarizem (PE:317 e 426). Assim, sendo, os ONA diferem dos ONP tanto, necessariamente, em qualidade como, freqentemente, em amplitude (PE:27-28 e 328-329). Pelo dito acima, fica logo esclarecido que os ON, tanto permanentes quanto atuais, condensam-se estes em torno da necessidade de segurana /.../ contra todas as ameaas sobrevivncia do Estado-Nao, portanto, em formulao universalizada (GB:169). Em verdade, os ONA referem-se exclusivamente aos antagonismos que se identificam, seja no campo interno, seja no campo internacional, contrrios desejada consecuo daqueles ONP (PE:27-28 e 328-329). Por isso, esto no mbito de atuao mais restrito da Poltica de Segurana Nacional, caracterizado este pela existncia de antagonismos e de presses adversas - so objetivos estratgicos (PE:27-28 e 328-329). Golbery salienta que a poltica comanda a estratgia, determinando-lhe seus objetivos prprios - os ONA - em funo dos ONP. Aqueles so objetivos, pois, de carter estratgico, enquanto os ONP so objetivos polticos. (GB:155-156) Chega-se aos ONA por uma Avaliao Estratgica da Conjuntura, a qual, luz dos prprios Objetivos Permanentes, ponha em foco tais antagonismos, a natureza e o valor das presses dominantes atravs das quais eles j se manifestam (presses atuais) ou possam vir a manifestar-se em futuro no muito remoto (presses potenciais) (PE:27-28 e 328-329). Mas o importante, insiste ele, que os ONA devem ter uma formulao ntida, profunda, no podendo ser substitudos por simples indicaes de rumos ou aes a perseguir. necessrio delimitar claramente o fim a atingir. Assim, as aes a realizar, sua natureza, ritmo, intensidade e eventualmente suas finalidades especficas para atingir cada objetivo devero estar claras. Segundo o general, a definio dos ONA deve ser regulada pelo princpio da adaptao dos fins aos meios.
Assim, na maioria dos casos - tais sejam as deficincias e vulnerabilidades do Potencial Nacional e to fortes se estimem, por outro lado, as presses contrrias torna-se imperioso escalonar no tempo a realizao dos ONP, adotando-se, provisoriamente, Objetivos Atuais, mais modestos. Em tal caso, impe-se na formulao desses ONA, incluir, como um objetivo essencial, a elevao ou fortalecimento do Potencial Nacional - o que, mais tarde, em conjuntura favorvel, permitir ampliar os ONA de modo a cobrir inteiramente os ONP, em extenso e profundidade. Da resulta que, em relao a estes ltimos - os ONP - o princpio fundamental o princpio oposto da adaptao dos meios aos fins objetivados. (PE:66; GB:256)

Tais princpios manifestam-se historicamente na sucesso alternada de perodos caracterizados por uma poltica externa ora passiva e esttica (introvertida), ora ativa e dinmica (extrovertida), e correspondentes simples acumulao de Potencial ou sua aplicao no campo das relaes internacionais (PE:66; GB:256)

7 - PODER E POTENCIAL NACIONAIS

Poder Nacional

102 A definio de Estado como uma unidade de poder que se defronta com outras unidades de poder presentes no mundo torna fundamental a questo do poder. De forma um tanto cnica, Golbery concorda em que possa - e mesmo um dever moral imperativo - haver um largo esforo para salvar, pela humanizao do Poder, o futuro da democracia da humanidade (PE:175). Contudo, relembra ele, nesse mundo catico em que ainda vivem as naes na idade das cavernas, o poder a lei nica por elas conhecida ou respeitada(PE:175). Ademais, acrescenta, no se pode esquecer nunca que o conceito fundamental da cincia social o poder, da mesma forma que a energia o conceito fundamental da fsica. Em oposio ao liberalismo de Locke, que s justificava o emprego da fora contra a fora ilegal e injusta, hoje ficou claro que o poder , por sua prpria essncia, indefinidamente expansivo, no podendo deter-se seno ao chocar-se com outro poder mais forte (PE:175). Nesta nossa era perturbada, em que domina o signo materialista do poder e a trgica tenso da insegurana no s poltica mas sobretudo econmica, justifica-se pois que toda estratgia, como poltica de SN, se fundamente numa anlise realista do que constitui o poder da nao e cogite na aplicao, ao definir seus objetivos especficos e traar as linhas mestras do planejamento que lhe compete, de avaliar o poder dos Estados que dominam o panorama mundial e dos que integram o quadro regional (PE:175). No se deve, certamente, desprezar as foras outras que atuam no cenrio internacional mais ou menos ponderavelmente em plano supranacional (como grupos econmicos organizados em trustes ou cartis, as grandes instituies religiosas e filantrpicas e tambm as ideologias construtivas ou malss, que transcendem dos limites espaciais das Naes). Contudo, assevera Golbery, uma vez que prevalece o sistema anrquico dos mltiplos Estados-soberanos, a Nao ainda forosamente a unidade de poder no campo internacional e, portanto, ser na avaliao realista do poder das Naes que se fundamentar a Estratgia, por mais idealistas que possam ser alguns dos objetivos por ela generosamente visados (PE:176). Num mundo em que impera absoluta a mais desnuda Realpolitik e a prpria nao lder do mundo proclama o melhoramento da posio relativa de poder o objetivo primordial da sua poltica exterior, destaca Golbery, preciso subsistir e indispensvel agir e no h como agir nem mesmo como subsistir a no ser pelo poder. Sempre se negaram a reconhec-lo, a no ser demasiadamente tarde, todos os defensores da poltica de apaziguamento (PE:176). A estes, ele aponta a trgica realidade de nossa poca conturbada: fora do Poder no h salvao (PE:176). Assim sendo, o general reitera,
As relaes entre os Estados se expressam hoje, com clareza nunca igualada antes, em mltiplas equaes dimensionais de poder e o Poder , por si mesmo, como todos sabemos, um complexo que largamente extravasa do mbito restrito das Foras Armadas para o campo Psicossocial, o Poltico e, sobretudo, o Econmico nesta fase histrica de alta mecanizao e tecnicidade da guerra. (PE:24)

O poder do Estado, instituio detentora do monoplio legal da coero pela violncia (GB:98) tem como depositrio o governo, qualquer que seja este, em virtude de uma transferncia - legtima, legal ou de fato, pouco importa, e , sobretudo, o poder de forjar, fortalecer ou aplicar o prprio Poder Nacional, com toda a sua capacidade de coao no mbito interno e de afirmao no exterior, at mesmo pela guerra (PE:326 e 439).

103 Considerando uma viso parcial do poder nacional julg-lo quer como propriedade caracterstica dos Estados-Naes que, somente atravs dela, que conseguem adequadamente manifestar-se em toda a sua plenitude, quer como capacidade de que de fato dispem para influir sobre a conduta de outros seres - indivduos, grupos ou tambm Estados - seno at control-la, Golbery o qualifica como uma simples relao multidimensional estabelecida entre o detentor desse Poder, ou, melhor dito, o agente que o aplica - o Estado, efetivamente representado por um Governo - e os entes sobre os quais se exerce - seus prprios cidados ou grupos sociais, no interior do prprio territrio, ou outros Estados-Naes, no mbito internacional (PE:379). Tal relao legitimada, ademais, por um fim sempre proclamado, qual seja, a satisfao de aspiraes e interesses vitais da coletividade nacional, traduzidas estas em ON capazes de assegurar a adeso consciente e entusistica de todos e galvanizar-lhes o impulso e a vontade criadora (PE:379). Assim, sua viso - teoricamente mais completa - reconhece
no Poder Nacional, a propriedade ou capacidade ou aptido de um dado EstadoNao, no momento considerado, influir - at mesmo pela violncia, se necessrio, na conduta dos seus cidados ou grupos sociais internos, bem assim, em mbito internacional, na de outros Estados-Naes, sempre num sentido favorvel satisfao dos interesses e aspiraes nacionais. (PE:379)

Registre-se que uma parcela da sociedade pode se apropriar do poder estatal, desvirtuando pelos meios mais sutis seus fins. Quando tal acontece, o que se passa, afinal, que uma simples parcela do prprio Poder Nacional, explica Golbery, assume o controle do Poder Estatal /.../ e passa a empregar, provavelmente em benefcio de si mesmo, o prprio instrumento como um todo (PE:326 e 439). O poder estatal tem como instrumento o poder nacional. A guerra fria extravasamento da guerra no tempo -, explica o general, o evidenciou como essencial a integrao permanente, mesmo durante o perodo de paz, de um Poder Econmico, de um Poder Psicossocial e de um Poder estritamente Poltico num instrumento nico de ao da estratgia - o Poder Nacional (PE:397). A definio dada por Golbery para o poder (e para o potencial) nacional uma definio instrumental,
no s no sentido de que caracterize aquele poder como o instrumento integrado da ao poltica e estratgica do Estado-Nao, mas instrumental, sobretudo, por se prestar prpria pesquisa como instrumento de anlise, de computaes e de estimativas - uma definio operacional, em suma, que se preocupe menos da essncia do definido, e mais com dizer como se poder criar, construir, ampliar e avaliar esse Poder Nacional, dentro das limitaes - claro - que conceito to complexo no deixaria de impor. (PE:380)

Poder nacional - instrumento da ao estratgica - , definido, assim, como o resultante da integrao de todas as foras nacionais, de todos os recursos fsicos e humanos de que dispe cada nao, de toda a sua capacidade espiritual e material, da totalidade de meios econmicos, polticos, psicossociais e militares que possa reunir para a luta (GB:12; PE:369). Ou, mais especificamente, a expresso integrada dos meios de toda ordem /.../ de que a Nao dispe, efetivamente, no momento considerado, para promover, no mbito interno e no campo internacional, a consecuo e salvaguarda dos ON, a despeito dos antagonismos internos e externos, existentes ou presumveis (GB:156; PE:380-382).

104 Tal poder nacional o instrumento unificado da Estratgia. Entretanto, para anlise e planejamento, necessrio considerar quatro expresses inter-relacionadas do Poder Nacional: o poder poltico, o poder psicossocial, o poder econmico e o poder militar (GB:156; PE:380-382). Sob a designao psicossocial, Golbery rene fatores demogrficos, tnicos, culturais, sociais e ticos (GB:156; PE:380-382). As quatro designaes acima no se referem, portanto, a poderes distintos, mas a um s e exclusivo poder nacional de que todos aqueles nada mais so, afinal do que meras perspectivas sob ngulos sempre restritos (PE:397). Essas expresses do poder nacional constituem seus fundamentos. Golbery os v dispostos em duas ordens: a dos fundamentos geogrficos, muito mais estveis e definidos, servindo de condicionamento, por sua vez, aos fundamentos polticos, econmicos, psicossociais e militares (PE:186). Dessa maneira, a geografia os penetra a todos e, portanto, influi igualmente em cada um dos ramos da Estratgia e da Poltica, enquanto que os demais so fundamentos do ramo que lhes corresponde, claro que sem prejuzo das inter-relaes plenamente reconhecidas entre todos esses, no seio da Estratgia Geral ou da Poltica (PE:186).
A verdade, porm, que o Poder das Naes, como a prpria Estratgia e a Guerra Total, , no fundo, indivisvel, de modo que toda e qualquer discriminao em formas distintas de Poder realmente arbitrria, atendendo apenas a convenincia sobretudo de ordem prtica. /.../ Parece-nos, entretanto, que subsistiro sempre vantagens didticas, metodolgicas e sobretudo de ordem prtica naquela discriminao. (PE:184)

importante notar que o poder nacional a expresso antes de uma integrao do que propriamente de uma soma daqueles fundamentos citados (PE:185). Golbery cita, aprovativamente, a frase de Russell: o poder, como a energia, est constantemente passando de uma a outra de suas formas (PE:187). E o general ressalta que a despeito de no haver uma forma de Poder que seja absolutamente superior s demais, a verdade que sempre esta ou aquela ser melhor adaptada, e portanto mais eficaz, em determinadas circunstncias e para determinados fins (PE:186). Golbery esclarece ainda que as definies dadas referem-se ao mbito da estratgia (aquele em que se apresentam antagonismos), por mais que se no obscurea, desde logo, a presena decisiva de valores ticos e psquicos - o moral do povo, sua mentalidade criadora etc. - insuscetveis, por certo, de qualquer mensurao acurada (PE:380-381). Ademais, adverte Golbery, muito mais do que um agregado, uma soma impossvel de grandezas to heterogneas, trata-se a de verdadeira integrao de fatores, na qual a considerao de cada um deles determina modificaes, por vezes bruscas, dos coeficientes que meream, por si ss, os demais (PE:381). Assim sendo, por exemplo, Certas vulnerabilidades ou deficincias do carter nacional podem, sem dvida, anular quase as promissoras vantagens de um riqussimo territrio (PE:381). A integrao do poder nacional mostra-se, segundo o general gacho, como condio fundamental conduta de toda uma flexvel estratgia de paz.
E esse poder, atuante desde o tempo de paz como trunfo decisivo e sustentculo real nas discusses diplomticas, j desde ento supervalorizado pela sombra prestigiosa que sempre o acompanha, de um Potencial mais amplo, suscetvel de atualizar-se em prazo maior ou menor, que dever ser transformado, orientado, mobilizado para a eventualidade da guerra que se venha a concretizar, assumindo, a

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partir de ento, sua componente militar, exteriorizada nas Foras Armadas, o papel dominante. (GB:12; PE:369)

Em outros termos, como nem sempre dispe o Estado de um poder nacional altura das responsabilidades decorrentes da guerra ou, nem mesmo, das que tenham sido assumidas no perodo de paz, tratar-se-, imperativamente, de fortalecer esse poder, desenvolv-lo no tempo devido e por todos os processos, a fim que, no balano vital entre possibilidades e necessidades, entre meios e fins, entre obrigaes e recursos, no subsista um dficit fatal que pressagie, para a Nao, a derrota e a servido e a morte. Maximizar o Poder Nacional, em face das exigncias impostas pelo fantasma da guerra que j nos persegue - eis um dever a que se no podem esquivar, de forma alguma, as Naes atentas ao futuro que de todas se avizinha a passos to agigantados. (GB:12; PE:369) Assim sendo, um dos pontos fundamentais do pensamento golberyano ser, justamente, o processo de fortalecimento do poder e do potencial nacionais, como veremos.

Potencial Nacional

noo de poder nacional, Golbery ajunta a de potencial nacional que , segundo ele, poder em ser ou potencial de poder (GB:156; PE:380-382). , em outros termos, aqui, no domnio estratgico, o Potencial, um potencial de Poder, isto , expresso apenas estimada de um certo Poder futuro, no qual permanecero incorporados todos os componentes duradouros do Poder atual (PE:387). Assim, um poder futuro sempre, afinal, emanao do Potencial de hoje (PE: 382). A fim de elucidar a distino entre poder e potencial, Golbery apela para a ontologia em seus conceitos fundamentais de existncia, de potncia, de ato e de operao (ao ou ato segundo), concluindo que
se um ser em ato est em seu sentido pleno, manifestando-se pelo prprio ato primrio do ser (existncia) e, mais ainda, de ser isto ou aquilo (essncia), enquanto que um ser em potncia, ao contrrio, no se pode manifestar, sendo apenas um poder ser outra cousa, ento o Potencial nada mais realmente que o Poder em Potncia de ser poder futuro (PE:117-178).

Enquanto que
o Poder realmente poder em ato ou poder atual, donde resulta desde logo a impropriedade da expresso Potencial Atual, ontologicamente inadmissvel. Dito em outras palavras, o poder sempre atual (existente) e ao mesmo tempo potencial ou capacidade de ser no futuro um poder diferente, o que possibilita a transformao do poder atual em poder futuro mediante a atualizao do potencial. (PE:177-178)

O meio de transformar potencial em poder a mobilizao nacional. Golbery relembra o carter eminentemente relativo da potncia - a potncia essencialmente relativa ao ato (por ou para o ato) - e o da capacidade operativa dos seres - todo ser obra na medida em que est em ato, para concluir que o Potencial sempre relativo ao Poder Futuro, o que importa em reconhecer que o potencial varia com as condies futuras de sua prpria atualizao; e,

106 ademais, o Poder atua na medida em que realmente Poder e nunca como potencial (PE:177-178). importante compreender essa discusso, porque ela d embasamento filosfico ao planejamento fortalecimento do potencial nacional. No que concerne estratgia - com vistas a realizar estimativas e avaliaes -, potencial nacional assim conceituado:
Expresso integrada dos meios de toda ordem /.../ susceptveis de, em maior ou menor prazo, serem transformados em poder, para fazer a guerra. O Potencial considerado pela Estratgia , assim, referido ao esforo mximo de que a Nao capaz para enfrentar determinado antagonismo. Corresponde ao que tambm denominado Potencial de Guerra. o mximo de Poder Nacional futuro, bem amarrado no tempo. (GB:156; PE:380-382)

Tambm aqui so admitidos, para fins de anlise e planejamento, quatro expresses ou fundamentos inter-relacionados, no obstante o carter unificado do potencial nacional: potencial poltico, potencial econmico, potencial militar e potencial psicossocial - vale dizer demogrficos, tnicos, culturais, sociais e ticos - alm dos fundamentos geogrficos que a todos os demais, por sua vez, condicionam mais ou menos estreitamente (GB:156; PE:380382). Por esta sua qualidade de integrao de fatores dos mais diversos, o Potencial Nacional no redutvel a quantificao (PE:42). Considerado a verdadeira chave para a compreenso realista e fria da dinmica internacional, o potencial nacional - mais at que o poder - apresenta o problema de sua prpria criao e fortalecimento. Com o advento da guerra fria, o potencial nacional pesaria realmente muito mais, nas aes continuadas e perseverantes de guerra fria, do que o prprio Poder, tal como existente de fato, em dado momento, para ser logo prontamente superado (PE:397). Isso faz com que se pense,
a partir de ento, no mais na estreita e rudimentar tarefa, muitas vezes contraproducente at, de organizar e equipar e adestrar foras militares imponentes como se isso bastasse - mas sim em gerar, desenvolver, revigorar, consciente e planejadamente, aquele Potencial, dantes surgido espontaneamente como subproduto natural de um desenvolvimento econmico e social orientado - quando orientado - para fins bem diversos e necessariamente mais amplos e menos precisos. (PE:398)

Sem essa atuao decidida nesse sentido, a noo de potencial nacional tem reduzida significao prtica, pois que muitos desses recursos perigaro permanecer eternamente como potenciais inexplorados, como j bem o esto, afinal, aprendendo as naes que se deixaram embalar, anos, dcadas a fio, com as glrias ftuas do ttulo, to pomposo quanto inexpressivo, de pas do futuro (PE:384). Do ponto de vista terico, o conceito tem todo cabimento, e Golbery o denomina de potencial geopoltico, a fim de ressaltar seu carter mais amplo, no estritamente estratgico. Golbery esclarece que tambm no mbito do potencial nacional, como do poder, rege a lei dos rendimentos decrescentes e a do retardo cultural por modo que os acrscimos em cada setor, se no se refletirem ou forem acompanhados de um aumento tambm nos demais aumentos correspondentes /.../ - iro, mais e mais, se traduzindo em reforo cada vez menor do Potencial em conjunto, at o ponto de verem de todo anuladas a sua significao e influncia (PE:400).

107 Assim, o potencial deve ser fortalecido de forma global, num desenvolvimento nunca apenas econmico, mas desenvolvimento social em toda a sua amplitude, com objetivos coordenados que se enquadrem, harmonicamente, para o fim ltimo de elevar o Potencial Nacional altura das responsabilidades efetivas da Nao na quadra histrica que vivemos (PE:411-412). Para o general, Qualquer estudo menos superficial sobre o Poder Nacional deve pr em relevo todos e cada um dos aspectos a considerar na avaliao do Poder e do Potencial estratgico das Naes, quais sejam, seus elementos (espao, homem e recursos), seus fundamentos ou fatores (geogrficos, polticos, psicossociais, econmicos e militares), suas limitaes (de ordem externa ou interna), bem como seus instrumentos de ao nos vrios campos (natureza, alcance e limitaes prprias) (PE:181-182). Mas, observa Golbery, nos dias que passam, a guerra o fator dominante nas relaes internacionais, em ato ou em potncia, e, por conseguinte, o potencial estratgico de um pas s pode ser definido em relao ao ato da guerra, emprestando-lhe assim a expresso de poder mximo com que a nao poder atuar em circunstncias determinadas (PE:179). O potencial de uma nao estrangeira, por exemplo, s nos interessa avali-lo no quer permita, no qualquer ao visando consecuo dos Objetivos por esta Nao considerados, mas sim as que se oponham a nossos prprios objetivos ou pelos menos com eles interfiram (PE:189). Assim, como j observara Spykman, o poder das naes, por sua prpria natureza, alm de necessariamente relativo (PE:181), tambm subjetivo, um juzo de valor cujo nico teste realmente objetivo a prpria guerra (PE:182). De qualquer forma, Golbery sublinha, a superao de antagonismos, sejam externos sejam internos, reverte, pela melhoria da posio relativa de poder, num caso, ou pela reduo se no anulao de vulnerabilidades prprias, no caso oposto, sempre em benefcio do fortalecimento do Poder Nacional (PE:33-34 e 330). O general salienta a importncia do fator tempo no que se refere efetivao do potencial; sendo assim, h que captar as dessemelhanas entre o potencial disponvel - o que se espera quase seguramente poder mobilizar em tempo til e a despeito do provvel adversrio - e o Potencial total que exigir para sua atualizao um prazo mais ou menos demorado. (PE:179) Tambm o fator espao importante, pois o potencial (e o poder) sempre local, ou melhor dito, localizado, devendo-se reconhecer a existncia indiscutvel de centros de poder ou bases, mais ou menos concentradas, de onde ele irradia em todas as direes /.../ tanto dentro como fora da unidade poltica - o poder decresce sempre na razo inversa das distncias a que se aplica (PE:180). No tendo o potencial disponvel possibilidade de fazer frente com satisfatria probabilidade de xito realizao dos ONP, impe-se a reduo destes escala mais modesta das possibilidades nacionais, sob a reserva de que futuras ampliaes de tais possibilidades, atravs da elevao ou fortalecimento do Potencial Nacional, devero permitir a paulatina expanso dos objetivos estratgicos reduzidos, inicialmente adotados (PE:32 e 330).

8 - ULTIMA RATIO: A GUERRA

Como vimos, o egosmo caracterstica inerente ao homem e ao Estado que pretensamente o representa, na viso golberyana. Estando os Estados desejosos de coisas diferentes ou de coisas iguais, a guerra aparece como praticamente certa, inevitvel. Relembremos: quando surgem os antagonismos, o que ocorre freqentemente, entra em cena a

108 diplomacia, na busca de solucionar pacificamente a disputa. Falhem, porm, a prudncia e a solrcia diplomticas e sejam realmente vitais os interesses em jogo, impedindo sacrifcios de parte a parte, e a guerra vir, por fim, para solucionar, a seu modo, o conflito fatal.(PE:367; GB:12). Para Golbery, a guerra ou mesmo a sua ameaa que, como ultima ratio, decide afinal das questes realmente vitais entre Estados contendores. Seu planejamento importante porque na guerra que a Nao realiza o esforo mximo de que capaz nas circunstncias consideradas (PE:178). Ficam, ento, patentes duas questes: primeiro, a guerra - vista aqui seja como arte, seja tambm como tcnica especializada (PE:138) - como resolutiva para os conflitos mais srios, viso claramente militar desse fenmeno. Outro aspecto patenteado: a guerra como a unio da Nao, catalisadora de esforos do conjunto da sociedade em funo de um nico objetivo: a vitria.
Por outro lado, mesmo no campo interno, o tempo de paz se diferencia do estado de guerra por um sem nmero de caractersticas inconfundveis, desde a atmosfera geral da vida nacional e o esprito que anima o povo, at a possibilidade aberta, no ltimo caso, ao Estado de impor medidas especiais de controle, de poltica, de interveno no domnio econmico que se no tolerariam, de forma alguma na paz. (PE:35-36)

Assim, com certa dose de cinismo, Golbery assevera que A guerra sempre serviu de justificativa ditadura, desde os tempos de Roma antiga. E o napoleonismo da prpria dinmica dos processos revolucionrios profundos (PE:23). Para Golbery, nessa faixa de indeterminao que mal separa a guerra da paz, o que caracteriza a guerra exatamente pela entrada em ao da fora militar como instrumento efetivo de violncia fsica, o que imprescindvel para seu planejamento e o estabelecimento de prazos crticos, por exemplo. Nesta guerra, vista portanto no seu sentido tcnico, limitado e preciso, o objetivo alcanar, com a vitria sobre o adversrio, a consecuo de objetivos estratgicos precisamente definidos(PE:33 e 331). Sendo assim,
Outras formas de conflito a que, por simples extenso, se vem aplicando a denominao hoje corrente de guerra fria, por mais que apelem a todo o arsenal de instrumentos e tcnicas utilizados tambm na guerra propriamente dita, ficam portanto excludas - sero manifestaes mrbidas, se o quisermos, mas do tempo de paz. (PE:34-35) impe-se, assim, caracterizar a guerra pelo emprego da violncia organizada a servio da Estratgia e, em ltima anlise, da Poltica Nacional. A guerra fria no guerra, portanto - o emprego analgico do termo , sem dvida, mais pernicioso do que til. (GB:157-158)

Vem acrescer-se sua viso de guerra como quase inevitvel a noo de que a conjuntura internacional, em cada perodo histrico, se caracteriza sempre pela manifestao de um antagonismo dominante entre duas naes ou coligaes de naes - um deles, o grande perturbador (GB:159). Em suas palavras:
num ecmeno plenamente solidrio, normal que, em cada perodo histrico, dentre todos os antagonismos, atuais ou potenciais, que a j se manifestem ou tendam a manifestar-se, sempre um deles, por sua amplitude maior, sua dinmica superior, a importncia dos centros de poder envolvidos e os interesses vitais que ameace ou

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que mobilize, venha a caracterizar-se nitidamente como o antagonismo dominante, dando colorido aos demais, arregimentando-os muitas vezes a seu prprio servio, quando no os contendo em estado apenas latente ou simplesmente larvado, moldando-os, em suma, a todos, numa verdadeira bipolarizao bem definida, por temporria que seja, do campo todo de tenses sociais, em relao qual povo algum, espao algum, interesse algum possa realmente alhear-se ou guardar uma estrita neutralidade. (GB:186)

Pela noo de antagonismo dominante, Golbery busca expressar o choque entre civilizaes e culturas distintas quando das fases decisivas dos encontros entre elas. Por meio destes - e a inspirao, ainda aqui, Toynbee - as civilizaes alcanam a integrao de seu ecmeno ou desaparecem e morrem.
Em cada poca considerada, o Antagonismo Dominante, como um m potente, reorienta todas as tenses secundrias, distorcendo-as at mesmo de seus fins particulares, em proveito da grande pugna que se trava. Desconhec-lo, releg-lo a plano secundrio na anlise geopoltica ou geoestratgica seria erro imperdovel que nunca seriam bastantes para resgatar os mais honestos propsitos de um sadio nacionalismo. (GB:210-211)

Pelo conceito de antagonismo dominante, Golbery pretende encobrir todos os outros antagonismos: pases economicamente dependentes e imperialistas, classes dominantes e classe dominada. Lembremos, ainda uma vez, a reflexo de Oliveiros Ferreira, como a introduo do elemento antagonismo, especialmente no nvel internacional, importante para a amarrao da DSN: tem por objetivo voltar ao esquema hobbesiano dos homens-lobo, que deveria forosamente, pela lgica, ser superado com a constituio da nao. A essas ilaes claramente a-histricas, ele acrescenta um forte toque do modernismo reacionrio alemo, em sua apologia da guerra como geradora da novidade: Mais uma vez a guerra, por si mesma ou pela perspectiva de sua ocorrncia, determinar a apurao decisiva de uma tcnica nova, para progresso da humanidade (o planejamento democrtico) (PE:25). Ele concorda que a guerra deva ser malsinada, mas acredita que no se pode esquecer que ela tambm a me de todas as coisas, ou pelo menos de algumas coisas importantes. Assim, ele lembra, por um lado, a influncia quase decisiva da guerra na revoluo surpreendente da tcnica e, pois, da civilizao e das culturas e, por outro, como a guerra veio a ser, em verdade, um fator capital na implantao dos princpios e das prticas democrticas (PE:394, grifos nossos). Essa viso da guerra como um instrumento de avano da democracia tem que ver com o surgimento da guerra moderna. Isso porque na guerra antiga
Guerra era mesmo, por definio, a manobra e, sobretudo, o entrechoque dos exrcitos e esquadras - nada mais do que isso. Fora dela ou at mesmo lado a lado, conseguiam os povos prosseguir na mesma vida de antes, com algum contrapeso a mais de sacrifcios impostos seja pela conscrio mais ou menos rigorosa, seja pela carga sempre acrescida do fisco. Em larga fase, nem se jogavam, no tabuleiro da guerra, interesses ou aspiraes nacionais, como tal reconhecidas pela maioria do povo. Povo nem havia, no sentido funcional que lhe atribui a atual sociologia do poder. Contendiam reis, contendiam aristocratas, contendiam simples minorias dirigentes, por seus interesses restritos, dinsticos ou econmicos ou fossem l o que fossem, e o povo assistia, aplaudia muita vezes, resmungava ou se insurgia de quando em vez, sofria sempre em grau maior ou menor. (PE:393-394)

110 A guerra moderna tem, diferentemente disso, o carter de guerra nacional, agressiva, ao contrrio do classicismo, que pregava uma resistncia passiva. Com a ascenso da burguesia,
Os exrcitos de profissionais e mercenrios fazem-se nacionais. A defensiva vista como recuo provisrio e s a ofensiva considerada como capaz de atingir os resultados visados pela guerra, a vitria. O movimento e a surpresa assumem considervel importncia. A iniciativa individual, tanto dos chefes subordinados como dos demais elementos componentes das tropas, adquire valor decisivo. O moral sobrepuja, no raro, o material. /.../ Compreende-se o valor da capacidade de manobrar visando batalha e no a fugir-lhe (Magalhes, 1958:303).

O levantamento em massa surgido na poca - possvel graas substituio do soldo pelo recrutamento - permitia larga e rpida ampliao dos efetivos, mantidos pelo que se chamou a grande requisio, e tudo isso trouxe uma importante modificao: agora, Era a guerra em vez da guerrilha (Magalhes, 1958:305). Com o levantamento em massa e com o conceito de nao em armas - o engajamento de todo o povo -, a guerra de novo tipo tinha amplas diferenas em relao antiga:
Mesmo de incio, a guerra estritamente militar, levada a efeito apenas por exrcito e esquadras em teatros de operaes mais ou menos limitados - inteiramente a salvo, portanto, as populaes da retaguarda - eram guerras j de um novo carter, mobilizando aspiraes e interesses nacionais s paixes mais densas e ardorosas do povo. Que este se encontrasse, aqui e acol, inteiramente iludido por uma hbil propaganda a servio de minorias predadoras, pouco importava no caso. O essencial era a nova dimenso psicolgica da guerra. (PE:395)

Esse potencial da guerra moderna no deixou de ser percebido pela burguesia em ascenso, segundo Golbery:
E as novas minorias dirigentes, muito mais alertas, perceberam desde logo que havia, solta, uma nova fora, ultraperigosa se incontrolada, assustadora por seu potencial de destruio - uma verdadeira bomba psicolgica. Fora natural que normalmente s se apresentava, como a radioatividade, em reaes moderadas, dissipando-se sem graves riscos. Saber despert-la quando julgado conveniente, a seguir, orientando-a habilmente para os fins perseguidos, de novo encade-la depois - viria a ser, portanto, a suma de uma arte de governo do Estado, para a qual governo continuava sinnimo de explorao de toda uma comunidade em beneficio exclusivo da prpria minoria dirigente. (PE:394)

Foi esse novo carter da guerra, como j vimos, um dos responsveis pelo surgimento da democracia. Pois, para o general gacho, a democracia surge porque as minorias dirigentes, para utilizar-se da inovadora potencialidade blica das paixes das massas, apresentam seus interesses egostas como se fossem interesses do povo inteiro. Este, pelo j conhecido mecanismo da mimesis, apropria-se daqueles valores novos, vendo-os realmente como algo importante e superior, a ser atendido em permanncia e nunca, apenas, por ocasio de curtos e espordicos perodos de guerra. No cumpridas as promessas feitas em troca da paixo das massas, estas percebem um seu direito a influir tambm nas decises mais importantes. E assim, pela via tortuosa da guerra moderna, Completar-se-ia na prtica a formulao democrtica (PE:394-395).

111 Mesmo essa guerra moderna, porm, no havia ainda chegado ao termo de seu desenvolvimento, pois, de acordo com algum desgnio a-histrico ou transcendental misterioso, teria, naturalmente, de evoluir, ampliando o seu domnio e estendendo-se no tempo, como guerra total primeiro, como guerra fria depois (PE:395). Mas esta j outra histria, que acompanharemos no prximo captulo.

9 - GEOPOLTICA E ESTRATGIA
O tema geopoltica de fundamental e reconhecida importncia para o pensamento do general Golbery. Fundamenta todo o seu pensamento, desdobrando-se em reflexes sobre os mais variados temas - reflexes que esto inteiramente impregnadas pelo clima da guerra fria. A conceituao da geopoltica e tambm aspectos muito especficos deste assunto no sero tratadas aqui. Primeiro, porque a geopoltica o tema mais conhecido e trabalhado de todo o pensamento golberyano, e o interesse sobre o tema pode ser saciado nas publicaes j existentes sobre esse assunto 17 . De outra parte, as reflexes geopolticas - anlise do espao e posio, relaes internacionais etc. - esto presentes em vrios momentos da pesquisa, como se ver. Pontuaremos, aqui, apenas alguns dos elementos imprescindveis para a compreenso de outros tpicos do iderio golberyano. A geopoltica fundamenta todo o pensamento de Golbery. Ele a entende como bsica para a compreenso da realidade contempornea, pois, mesmo que tenha desta uma perspectiva parcial, a geopoltica a unificadora e classificadora de uma realidade cambiante e complexa, em que, a despeito de tudo, preciso planejar e agir (GB:94). Assim, enquanto o marxismo v as relaes econmicas como fundamento da sociedade e, portanto, da sua apreenso, Golbery o v na geopoltica. Esta, como um dos ramos da poltica (GB:64), tem os mesmos elementos de cincia - na conceituao e fundamentos - e de arte - na prxis - que a prpria poltica admite (GB:64). Seu contedo comportaria uma doutrina e uma metodologia, uma perspectiva do mundo ou cosmoviso e diretrizes para a ao. Ser luz da doutrina geopoltica que, de um ponto de vista inflexivelmente nacional - adaptada s caracterstica geogrficas, psicossociais, polticas e econmicas de cada nao se esboar uma perspectiva do mundo, cabendo atualiz-la de acordo com a evoluo da conjuntura, em especial no que se refere a avanos tecnolgicos e modificaes polticas. Em conseqncia, sero definidas grandes linhas de manobras a efetivar para a consecuo ou salvaguarda dos ONP. Da doutrina geopoltica, salienta Golbery, resulta portanto todo um programa, ainda que esteja sujeito a freqentes e profundas revises. Isso porque a geopoltica, para o general, precede mesmo a poltica, colaborando com ela mediante a apresentao de sugestes e de projetos tambm (GB:102). A geopoltica golberyana no neutra. Sob o ponto de vista nico e privativo do espao fsico (GB:33), ela deve visar, em essncia, sobrevivncia do Estado, como entidade internacional dotada de um poder soberano, como organismo social em processo de integrao continuada, como nao prspera e prestigiada no mundo (GB:168). A ela cabe suprir e estimular viva conscincia do prprio valor espacial (GB:102), com a finalidade prtica de a discernir a margem de possibilidades e aproveitar na construo da maior grandeza, do progresso crescente e da segurana interna e externa do Estado, beneficiando-se das vantagens positivas que a terra oferea e neutralizando, na medida do possvel, os aspectos negativos que ela apresente em sua imparcialidade incomovvel. (GB:33).
17

Em especial, Miyamoto (1981), Mello (1997) e Schilling (1981).

112 Da que as diretrizes de uma geopoltica essencialmente brasileira, da paz, criadora e afirmativa (GB:94), pretendam a integrao e valorizao espaciais, o expansionismo para o interior e, tambm, de projeo pacfica no exterior, a conteno ao longo das linhas fronteirias, a participao na defesa da civilizao ocidental, a colaborao com o mundo subdesenvolvido de aqum e alm-mar - a que pertence ainda o Brasil e a que solidariza, mais ou menos estreitamente, interesses e aspiraes semelhantes, a par de ameaas da mesma ordem e de origens idnticas (GB:170) - e a segurana nacional (GB:137-138). Seus fundamentos se radicam, pois, na Geografia Poltica, mas seus propsitos se projetam dinamicamente para o futuro. (GB:33) Para Golbery, Ao lado de uma Geopoltica para a luta, para a defesa ou para o ataque, subsiste e subsistir sempre uma Geopoltica da paz, voltada para os valores muito mais altos e generosos da solidariedade internacional, da comunho voluntria dos povos, do progresso incessante da civilizao e da cultura (GB:94). Esta geopoltica da paz deve estar voltada tambm, com especial ateno, para a defesa da civilizao ocidental. Oliveiros Ferreira captou a contradio imanente nesse raciocnio. Como ele observou,
Geopoltica e o ecumenismo se excluem logicamente - da mesma maneira que a construo do Poder Nacional e a interdependncia entre os que j assumiram responsabilidades na poltica internacional e aqueles que para elas se preparam. A construo, note-se bem, porque para os poderes nacionais j erigidos a interdependncia a forma histrica da afirmao de sua hegemonia sobre os demais Estados. /.../ O geopoltico votado s a discernir a margem de possibilidade a aproveitar na construo da maior grandeza, do progresso crescente e da segurana interna e externa do Estado/.../ choca-se a cada passo com o cristo ocidental (Ferreira, 1984:596).

Estratgia

Acerca desse assunto, tambm apenas pincelaremos as concepes golberyanas. Para o general, a estratgia no uma cincia propriamente (PE:323 e 436). O campo da estratgia, diferentemente do da geopoltica, est restrito quele em que se manifestem antagonismos. Assim, Em qualquer domnio em que se verifique um entrechoque de interesses ou objetivos, competio de vontades ou luta entre indivduos, entre equipes ou quaisquer grupos sociais - a estratgia, lato sensu, tem justa e cabida aplicao (GB:155). De maneira que os princpios propriamente polticos tm aplicao no campo estratgico, mesmo reformulados, enquanto que os especificamente estratgicos no se aplicam na totalidade do domnio poltico (PE:436 e 323). Num ecmeno solidrio, num mundo interdependente, a estratgia deve estar atenta ao contexto internacional; afinal no h estratgia nacional que valha, se no buscar enquadrar-se numa perspectiva objetiva da conjuntura mundial, que s poder ser fornecida pela anlise estratgica do antagonismo dominante do momento (GB:159). Mas seu carter sempre e essencialmente nacional. Estratgias integradas de coligaes ou de blocos s tm validade se traduzirem, em uma nova frmula de integrao, os prprios objetivos e as diretrizes especficas da poltica, estratgia ou geopoltica nacionais (GB:101), se resultarem de um processo de acomodao conciliadora entre teses estratgicas, todas sempre do mais puro quilate nacional (GB:210). Vista por Golbery como nunca restrita ao setor militar e guerra propriamente dita, a estratgia subordinada poltica mais abrangente, de acordo com Golbery, embora possa

113 constituir-lhe, em determinadas circunstncias, o ncleo dominante e vital, to importantes e graves sejam os antagonismos a considerar (PE: 433 e 320). No quadro de uma Poltica toda inclusiva, visando ao engrandecimento da nao e ao bem-estar e prosperidade do povo em seu conjunto, a Estratgia se restringe ao domnio especfico menor da SN. (GB:102). Cabe, portanto, poltica orientar a estratgia, restando a esta condicionar a primeira, reduzindo-lhe os largos vos pela advertncia dos perigos que subsistem alertas ou podero ser despertados por uma ao poltica pouco atenta a reaes previsveis por provveis antagonistas (PE:434 e 321).
O mbito estratgico, por mais amplo que venha a ser nas pocas de intranqilidade geral e ameaas onipresentes, , pois, bem mais restrito sempre que o poltico. /.../ Resulta da que a Poltica comanda sempre tanto a Estratgia quanto a Geopoltica, a esta como colaboradora de suas prprias formulaes, quela como subordinada sua, com misses definidas a cumprir num mbito operacional mais reduzido. Da primeira, ex-ante, acolhe e incorpora sugestes ou rejeita proposies; da segunda, ex-post, ponderaes apenas e restries de maior ou menor severidade. (GB:102)

Insistimos tanto nessa distino porque ela significar, ao menos teoricamente, a subordinao da guerra poltica - questo, como vimos, largo tempo irresolvida pela ESG. Para Golbery, portanto, a estratgia subordina-se sempre a fins ou objetivos que lhe so impostos de fora /.../. Inscreve-se pois, em qualquer caso, em outro domnio mais amplo - o de tais objetivos ou fins (GB:153). Embora a estratgia nacional seja uma estratgia geral, necessariamente integrada, para fins de anlise e planejamento tambm se consideram estratgias particulares relacionadas aos diversos campos da poltica nacional. Estas so subordinadas quela e visam a alcanar objetivos particulares fixados para cada um dos campos e incidir tambm, em sentido inverso, no inimigo: uma estratgia poltica, com a funo precpua de criar e fortalecer laos de coeso interna e de cooperao externa; uma estratgia psicossocial objetivando fortalecer o moral da Nao e de seus aliados; uma estratgia econmica visando a reforar a estrutura econmica nacional e o seu rendimento, garantindo-lhe a complementao mediante recursos exteriores; e, por fim, uma estratgia militar cujo fito reforar a estrutura militar da Nao. De um modo geral, a cada estratgia particular cabe, especialmente, reforar a expresso correspondente do poder nacional e enfraquecer ou destruir o poder dos antagonistas considerados, mediante aes conduzidas no campo que lhe prprio. (GB:157) A verdadeira misso da estratgia, observa portanto o general gacho, no , de forma alguma, restrita de ganhar decisivas batalhas, mas sim, muito mais ampla e variada, a de atingir determinados fins em campos variados, mediante o emprego eficaz dos meios militares, atravs da batalha, se necessrio, pela manobra sem batalha sempre que for possvel (GB:149-150). A estreiteza das teorias que reduziam toda a arte a uma nica faceta - a da estratgia de aniquilamento, to ao gosto germnico - foi, segundo o general, definitivamente superada. E a ameaa atmica colossal de nossos dias, no quadro de possveis aes de retaliao em massa que s poderiam causar o aniquilamento recproco dos contendores, no ter deixado de contribuir grandemente para este retorno moderao e ao bom senso. (GB:151) Cumpre estratgia garantir a segurana indispensvel consecuo ou salvaguarda dos ON, superando, contornando ou diferindo os antagonismos que a isso se anteponham.
Estratgia de hoje , assim, a arte de fortalecer e aplicar, tanto na guerra como na paz, o poder nacional, para superar ou vencer - em certos casos, apenas diferindo ou contornando - os antagonismos que se manifestem ou possam vir a manifestar-se, no

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campo interno ou no mbito internacional, em oposio mais ou menos frontal queles ON (GB:153).

Com o surgimento da guerra fria, a Estratgia avanaria, por sua vez, ainda mais sobre o campo sempre destinado Poltica, em particular Poltica internacional, pois evidenciouse o fato de que, na paz como na guerra, as relaes entre os Estados obedecem aos mesmos princpios de ao e se conformam a tipos de manobras semelhantes, integrando, na verdade, uma s arte - a de promover e assegurar os ON, a despeito dos antagonismos, no s exteriores como tambm internos - haver-se-ia de reconhec-lo outrossim, em face do papel cada vez mais importante desempenhado, tanto na guerra propriamente dita, como na guerra fria, pela quinta-coluna telecomandada do exterior (GB:152). Assim, hoje, a estratgia coincide plenamente com a prpria poltica de segurana nacional. Vimos como elementos presentes de h muito no pensamento conservador encontramse no pensamento do general Golbery: a viso do papel destacado das elites na histria e da necessidade de sua formao, a denncia da falsidade liberal, a imperiosidade da interferncia do Estado na economia so exemplos. Por outro lado, estas noes so permeadas pela geopoltica e entremeadas pelas muitas influncias sofridas por Golbery: Mannheim no que tange ao planejamento, Spkyman e Toynbee no que se refere civilizao ocidental, Toynbee nas reflexes acerca da elite etc. No prximo captulo, veremos como essas noes se articulam para formar uma viso de mundo cujo objetivo bsico a conservao do statu quo, de uma realidade internacional baseada na noo de poder, numa argumentao catastrofista e maniquesta que acaba por propor como solues para todos os problemas o planejamento e a opo pelo ocidente.

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Captulo III - A Viso de Mundo de Golbery

1 - RELAES INTERNACIONAIS NO MUNDO ATUAL
uma realidade, como a de hoje, convulsionada, so de tal ordem os antagonismos despertados e a variedade e importncia das presses correspondentes que no deve espantar que o campo menor da Estratgia quase totalmente recubra o campo mais amplo da Poltica. Isso se d por um
maior dinamismo das relaes internacionais e, sobretudo, uma periculosidade muito acrescida das condies existenciais, seja porque a Nao considerada sofra de graves e numerosas vulnerabilidades /.../ em face de presses externas, ou mesmo internas, de importncia incontestvel, seja porque as aspiraes e interesses nacionais, vale dizer, seus Objetivos Permanentes, por agressivos e ambiciosos e extrovertidos, provoquem a reao decidida de contendores tambm poderosos (PE:28).

Como vimos, de acordo com o general Golbery, os Estados ainda se relacionam uns com os outros de maneira direta, quase sempre bifrontal, com vassalagens bem definidas, estruturando-se, atomisticamente, o poder em ncleos esparsos e autnomos (CN:12; PE,:368). Contudo, se no quadro nacional desperta o Leviat, na moldura em contrao de um mundo j sem fronteiras que realmente separem tm-se claros sinais do despontar do Estado-Universal, organismo poltico multinacional que o prprio panorama internacional de guerra total exige. E esse que est por vir ser o Leviat supremo, o Superleviat, senhor absoluto e incontestvel da Terra e do esprito humano (GB:9; PE:362-363). Abre-se a era da histria continental que Ratzel predissera (GB:22). Tais ilaes baseiam-se na constatao da falncia da Liga das Naes, triste aborto de um grande idealismo utpico, e da ONU, que apenas criou um palco incruento onde se digladiam tenazmente naes inimigas e irreconciliveis e onde ressoam as tenses violentas que dissociam o mundo de nossos dias (GB:20-21). Sem nenhum organismo internacional que possa controlar a unidade de poder que o Estado - que s estaca, vimos, diante de um poder mais forte -, campeia no mundo a lei do mais forte:
Os pases fortes tornam-se cada vez mais fortes e os fracos, dia a dia, mais fracos; as pequenas naes se vem, da noite para o dia, reduzidas condio de Estados pigmeus e j se lhes profetiza abertamente um fim obscuro, sob a capa de iniludveis integraes regionais; a equao de poder do mundo simplifica-se a um reduzido nmero de termos, e nela se chegam a perceber desde j apenas raras constelaes feudais de estados-bares rodeados de satlites e vassalos. (GB:22)

Diante de uma tal realidade, Golbery confessa no entender como - a menos que busque, por um mecanismo subconsciente de compensao, enganar-se a si mesmo e angstia da instabilidade a que deseja fugir - os velhos sonhos de paz universal ainda tenham

116 defensores 18 . Afinal, ressalta ele, os ideais de renncia guerra como instrumento da poltica viram-se inteiramente ultrapassados pela realidade indiscutvel dos fatos (GB:2021). No salve-se-quem-puder em que se transformou nossa era perturbada, ele tambm no pode conceber como ainda se acredite
na justia internacional, na intangvel liberdade das naes, reconhecida e respeitada por todos, e nesse princpio, to lgico, to moral, mas no menos irreal, da autodeterminao e absoluta soberania dos povos, o qual, nem por no se poder nele confiar, de forma alguma importa que se deixe de us-lo e defend-lo a todo custo como argumento nico, que , dos fracos contra os fortes (GB:20-21).

Descartada, pois, por absolutamente impossvel, a crena de que a justia pode ser conseguida pelos fruns internacionais de conciliao de Estados egostas, nesse momento, em que a guerra fria dominava o cenrio internacional, cada um dos Estados esbarrava com as exigncias objetivas da realidade internacional - mesmo que fosse contra seus prprios valores. Golbery insiste: no se pode agir ignorando o quadro mundial, tendo em vista que
as naes s se podem construir olhando firmemente para o futuro e preparando-se para enfrent-lo. Nem as relaes internacionais se conduzem com senso absorvente no presente, a no ser durante curtos e decisivos perodos de crise; e, por isso mesmo, o mundo de hoje, esse mundo que conhecemos de Estados-Naes vrios, todos proclamando e reclamando larga dose de soberania, sem controles adequados e merecedores de f que protejam os mais fracos da soberbia e prepotncia dos mais fortes, esse universo em que ainda impera, afinal, a lei da jngal levemente atenuada apenas, apresenta-se aos olhos do estrategista como um campo cerrado de potenciais nacionais em intrincada interao. (PE:389-390)

No campo das relaes internacionais, Golbery ressalta como fundamental a questo da integrao. Sublinha que Naes isoladas umas das outras, sem frentes de contacto nem zonas de interesses comuns, no so propriamente amigas, nem podem ser realmente inimigas (GB:173-174). Mas ele v este campo como necessariamente conflituoso, pois o estreitamento do contato poder lev-las tanto cooperao como ao conflito - mais provavelmente, por certo, ao segundo do que primeira, seno, com maior propriedade, primeira (cooperao), superando, ao cabo de algum tempo, o segundo (conflito) (GB:173174). Ao mesmo tempo, ele observa que o sentimento de solidariedade entre naes de uma dada regio qualquer ser sempre tanto mais forte e resistente quanto mais srias e prementes forem as ameaas externas, variando at entre os extremos de um quase indiferentismo e de uma quase aliana, ao influxo da atuao, nesse particular, sobremodo decisiva dos centros externos de poder de onde possam partir agresses mais ou menos perigosas e como tal reconhecidas (GB:175-176). Golbery ressalta que justamente no mbito internacional que mais se destaca a revoluo axiolgica - a subverso csmica de valores e de conceitos pela qual passam os povos da Terra e que pode conden-los a total aniquilamento, se no souber a Humanidade resolver a tempo as contradies profundas que aquela subverso por si mesma denuncia (GB:20-21).
O ex-presidente Jnio Quadros, em cujo governo Golbery criou o Conselho de Segurana Nacional, assim se pronunciava sobre seu ex-assessor: As idias dele me impressionavam. Teses que sustentei na poltica externa e interna confundiam-se com as dele. Por exemplo, a idia de que um pas no tem amigos nem inimigos, tem interesses (Apud Bones, 1978:20, grifos nossos).
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117 Vivemos num mundo em que Os progressos surpreendentes da tcnica e da industrializao acelerada rompem, pela continuidade do ar e pela permeabilidade do ter, a escala de todas as compartimentaes espaciais, em que se educara o esprito moderno (GB:22). Esse complexo de relaes bipolares, triangulares e multipolares, de intensidade e natureza variadssimas, que envolvem cada Estado num emaranhado de tenses discordantes, j no se pode ignor-lo e confinar-se num recanto mais ou menos delimitado do globo (GB:22). Hoje j no h mais confins nem desvos nem terras-de-ningum neste mundo que dia a dia se encolhe. (PE:29-30) No h mais lugar para esplndidos isolamentos - nem o isolamento seria possvel, nem, se o fosse, poderia aspirar a ser suportvel, quanto mais a ser esplndido (GB:144). As exigncias do cenrio internacional so inescapveis e a esto, a impor a cada Estado uma srie de procedimentos garantes de sua existncia e integridade. Segundo Golbery, j pertence histria a era do expansionismo europeu, otimista e descuidado, que canalizava para plagas longnquas as ambies e a agressividades das Grandes Potncias imperialistas (PE:29-30). Reitera o general que no estamos mais nos tempos remansosos em que as naes fracas e pobres de recursos podiam viver e prosperar at certo ponto livremente, de forma marginal em relao aos antagonismos ferrenhos, mas especialmente circunscritos, dos poderosos da poca, sem que a fraqueza e o relativo pauperismo se convertessem em danosas e agourentas vulnerabilidades ante agressores sempre dispostos a explor-las em seu benefcio prprio (PE:29-30). Por isso, Golbery ataca o neutralismo agressivo dos No-Alinhados como o indisfarvel antiamericanismo da Terceira Via de Pern. Afinal, deixar de tomar uma posio, num conflito em que a prpria sobrevivncia do mundo est em jogo, um erro grosseiro e potencialmente letal, mas antes de tudo falso. Pois, num mundo desta forma constitudo, A estrutura ntima do Estado - estrutura poltica, econmica e social - v-se forada, portanto, a amoldar-se s exigncias e s limitaes impostas pelo sistema vigente de relaes internacionais (CN:23; PE:480). E, se s exigncias dessa realidade ningum pode escapar, isso especialmente vlido para os Estados pobres.
Se a tais imposies externas podem furtar-se, embora nunca de todo, as trs, ou melhor, as duas superpotncias ou verdadeiros Estados imperiais que hoje dominam o panorama internacional, uma vez que a vastido e diversidade de seus recursos lhes permite quase alcanar a auto-suficincia econmica na paz como na guerra nica frmula segura da liberdade e independncia absolutas -, os demais Estados e, sobretudo, aqueles que ainda no souberam, ou no puderam, valorizar o potencial latente de seu territrio e de sua populao /.../ devem antes reconhecer aquele fato como base de todos os seus planejamentos do que construir na areia movedia de um isolacionismo enganador e perigoso - pois que irreal - os planos, de antemo fadados ao insucesso, de um futuro de prosperidade e grandeza. (CN:23; PE:480)

Golbery sublinha que o mundo atual resultado de duas revolues industriais que lhe alteraram profundamente todos os padres dimensionais, a escala toda do espao e do tempo, avizinhando as mais distantes paragens e pondo em ntimo contacto as mais apartadas culturas (GB:73). Este nosso mundo , hoje muito mais denso e, pois, muitssimo mais agitado por tenses e atritos de todas as dimenses e da mais variada natureza (PE:378), um mundo cheio de contradies e de incoerncias, mas, na verdade, um mundo s (GB:186). Vivemos hoje distantes da poca em que a compartimentao espacial da humanidade, assim estanque, limitava quase sempre as tenses, impondo um campo bem definido e restrito aos antagonismos que inevitavelmente surgissem (GB:185). H muito que as civilizaes ou

118 culturas deixaram de viver mais ou menos confinadas em universos distintos, com suas amplas fronteiras (GB:185). Neste mundo atual, o isolamento constitui uma simples utopia, medida que os padres, tanto de espao como de tempo, sofrem bruscas e impressionantes mutaes, reduzindo drasticamente as dimenses todas do planeta, a cincia e a tcnica assegurando meios de comunicao cada vez mais potentes, mais econmicos e de mais ampla e incoercvel difuso (GB:200). Para o general, O smbolo de nossa era bem o smbolo da integrao, processo solucionador por excelncia de todos os antagonismos e que melhor convm ao esprito faustiano do homem moderno, inimigo de todas as limitaes (PE:21). Assim, vo sendo derrubadas todos os tipos de barreiras isolacionistas que compartimentavam e compartimentam ainda a grande fraternidade humana - as distncias fsicas e as distncias sociais, os obstculos naturais e os esteretipos disjuntivos, os preconceitos de raa, de cultura, de nacionalidade e riqueza, o artificialismo reacionrio das cortinas de bambu e de ao (PE:16-17). E a fora que as demolem vem dos novos meios de comunicao adaptados ductilidade e fluidez das massas, pelo poder do mimetismo nunca de todo reprimvel e pela mobilidade social acelerada segundo ambas as dimenses - a horizontal e a vertical - da estratificao da sociedade moderna. E o maior dinamismo que da resulta nas relaes entre indivduos, entre estamentos e classes, entre Estados nacionais, obriga a um contacto nivelador cada vez mais estreito at mesmo os mais dspares modelos conceptuais ainda subsistentes nas reas mais longnquas do globo. (PE:16-17) Golbery v este processo interativo e acelerado ampliado Terra toda, prenunciando uma espcie de aldeia global, a alvorada de uma Weltanschauung realmente universal, uma perspectiva ecumnica, uma comum axiologia, uma conscincia verdadeiramente mundial, servindo de amplo quadro em que se situem, e se integrem, e se espelhem as variedades individuais, regionais ou grupais, como todo o colorido prprio de suas vises muito mais particularistas (PE:17). De fato, o general considera que o processo acelerado de massificao no seio da sociedade contempornea como talvez o fenmeno mais alarmante da atualidade (PE:15). No campo internacional, a questo do poder tornou-se fundamental, pois cada Estado uma unidade de poder que se defronta com outras unidades de poder presentes no mundo, uma nao um simples tomo mais ou menos carregado de poder que a energia fundamental a animar todo o campo das relaes internacionais (GB:149). As relaes entre os Estados se expressam hoje, com clareza nunca igualada antes, em mltiplas equaes dimensionais de poder e o Poder , por si mesmo, como todos sabemos, um complexo que largamente extravasa do mbito restrito das foras armadas para o campo psicossocial, o poltico e, sobretudo, o econmico nesta fase histrica de alta mecanizao e tecnicidade da guerra. (PE:24)
que, talvez, se esteja realmente a esboar uma nova ordem para o mundo: seno praza aos cus evit-lo! - o Imprio Universal, com sua paz ecumnica, mas seu incontrastvel e desptico cesarismo interior - a cristalizao do poder em unidades de larga base geogrfica, verdadeiras panregies de economia e organizao social superiormente equilibradas. (GB:215)

Outro fato universal da atualidade justamente a segurana. Mesmo os povos mais afastados das principais reas estratgicas nas quais as superpotncias contendem diretamente sentem-se e devem sentir-se, pois, cada vez mais ameaados e comprimidos, com a sua prosperidade, o seu bem-estar, o prestgio internacional a que aspiram, a prpria unidade e at

119 mesmo sua soberania e sobrevivncia sob o impacto necrosante de presses exgenas malignas de virulncia nunca vista (PE:30). Abram alas para a guerra fria.

2 - A GUERRA FRIA E O ETERNO RETORNO A HOBBES

A guerra fria est na base de mais uma rodada do eterno retorno golberyano a Hobbes, desta feita para explicar esta era louca em que o constante e incansvel af de poder e mais poder que no cessa seno com a morte(PE:174) 19 . Para alm do extravasamento da guerra para outros campos pela guerra total, para Golbery, fato Muito menos espetacular, muito mais enervante o espraiamento da guerra tambm no tempo, levando a que se cunhasse o conceito de guerra fria (PE:397) 20 . Esta extenso do fenmeno da guerra pela realidade insofismvel da guerra fria, alm de toda a crueza desptica da poltica de poder so, sem dvida, caractersticas lamentveis, mas no menos reais, da atual dinmica das relaes internacionais e esto a impor o reconhecimento de um estado de emergncia de alarmante gravidade a tocar, a rebater nos mais distantes confins do planeta (PE:23-24), constituem uma realidade cambiante e complexa, em que, a despeito de tudo, preciso planejar e agir (GB:94). No contexto atual, dado o maior entrelaamento de interesses entre os povos todos da Terra, a manifestao de um antagonismo dominante entre dois blocos - um deles, o grande perturbador - palpvel (GB:159). Nesta era de emprego desenfreado da fora bruta nas relaes internacionais, na qual a busca constante e incansvel de poder no cessa seno com a morte, (PE:174), a guerra fria constitui a nica paz que realmente nos dado conhecer (GB:236-237). E, por isso, hoje, a insegurana do Homem, o dilema eterno que o aflige, como animal social que , mais acentuado e tem como opo, unilateral e paradoxalmente, o sacrifcio completo da Liberdade em nome da Segurana individual e coletiva (GB:9). A guerra fria evidenciou que a integrao das expresses do poder nacional em um instrumento nico no seria apenas exigncia imposta pela crise mais ou menos duradoura de uma guerra violenta, antes deveria subsistir e afirmar-se, permanentemente, como condio fundamental conduta de toda uma flexvel estratgia de paz. E, mais que isso, o Potencial Nacional pesaria realmente muito mais, nas aes continuadas e perseverantes de guerra fria, do que o prprio Poder, tal como existente de fato, em dado momento, para ser logo prontamente superado (PE:397). Nesta tal guerra, constata o general, ainda um pouco desnorteado, as Foras Armadas desempenham apenas um papel potencial, empregadas como ameaa permanente do desencadeamento da guerra verdadeira, e participam de demonstraes, de intervenes brancas, de simples aes de policiamento (GB:236-237).
Mas o esforo, na guerra fria, vem exercido sempre em outros campos, ora no econmico - pelo dumping, pelo boicote, pela ajuda econmica e financeira, pela assistncia tcnica etc. - ora no psicossocial -, pela propaganda e contrapropaganda incessantes, pela doutrinao, pela exacerbao de ressentimentos e dissenses, pela ameaa e pelo terror - ora ainda no campo propriamente poltico, atravs da atuao de partidos simpatizantes, de alianas partidrias de toda ordem, da quinta-coluna
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Oliveiros Ferreira percebeu esse retorno, mas desconsiderou a importncia, para o pensamento do general, da voragem avassalante da guerra fria. Fora desse contexto, parece-nos impossvel conceber a histeria discursiva do general acerca da guerra total - permanente, onipresente, global, indivisvel, apocalptica e inevitvel. 20 Segundo o general, estender a denominao guerra aos fenmenos da guerra fria - que so manifestaes mrbidas, se o quisermos, mas do tempo de paz (PE:34-35) - mais pernicioso que benfico.

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sempre ativa, de toda a atividade preparatria dos golpes de Estado ou das prprias insurreies. (GB:236-237)

Outra caracterstica, ainda nesse sentido, que se o prprio da guerra fria apresentla sempre, de boa ou m-f, como imputvel unicamente ao antagonista, a guerra propriamente dita cada vez mais escapa ao formalismo das prvias declaraes de hostilidades (GB:207). Vimos de ver como o sentimento de solidariedade entre naes de uma dada regio qualquer ser sempre tanto mais forte e resistente quanto mais srias e prementes forem as ameaas externas (GB:175-176). Tal comentrio d abertura para a pregao acerca da guerra fria e da opo pelo ocidente. Isso porque o grau de sensibilidade das prprias naes interessadas, em relao a essas agresses, disfaradas talvez, talvez indiretas, se revestir sempre de importncia capital para a solidariedade regional (GB:175-176). Por isso, Golbery no se cansa de repetir: dvidas no poder haver de que o Ocidente se acha ameaado e ameaado seriamente, e em todos os seus recantos (GB:230). um conflito de profundas razes ideolgicas em que o materialismo comunista do Oriente e a civilizao crist do Ocidente jogam pelo domnio ou pela libertao do mundo (GB:186187). Esse antagonismo dominante arregimenta todo o planeta sob seu dinamismo avassalante a que no podem, no podero sequer escapar, nos momentos decisivos, os propsitos mais reiterados e honestos de um neutralismo, afinal de contas, impotente e obrigatoriamente oscilante (GB:186-187). Nesse conflito fatal, a vantagem imediata de ao est com o bloco comuno-sovitico. Isso porque, para o ocidente, ser muitssimo mais difcil tomar a iniciativa de uma ofensiva estratgica atmica, devido ao impacto psicolgico altamente desfavorvel em todo o resto do mundo mais ou menos neutralista e oscilante (GB:230). Outros elementos que dificultam a tomada de iniciativa pelo ocidente - quer dizer, pelos Estados Unidos - dizem respeito situao extremamente vulnervel de suas concentradas posies na Europa e, em menor grau apenas, do prprio arsenal norte-americano, dificuldade maior, nos regimes democrticos, de controlar o derrotismo e o pnico e aos indiscutveis efeitos desmoralizantes de uma tal deciso numa sociedade educada nos princpios humanitrios e superiores de nossa tica crist (GB:230). No que se refere ao armamento, tambm nesse particular o Ocidente dispor ainda de muito menor liberdade de ao do que os comunistas: em primeiro lugar, ter dificuldades maiores para tomar qualquer iniciativa de ampliao da guerra ao nvel atmico irrestrito. Em segundo lugar, porque se ver obrigado desde logo, dada sua enorme inferioridade em potencial humano e, pois, em nmero de Grandes Unidades terrestres, a inserir numa guerra geral armas diferentes das clssicas, a fim de enfrentar a inundao por foras soviticas numerosas. Somente o emprego de armas e engenhos atmicos tticos lhe permitir compensar as esmagadoras vantagens do nmero de que se beneficiam os comunistas. (GB:232-233) Por todos esses motivos, Golbery acredita que o desencadeamento brutal de uma guerra atmica irrestrita s possa surgir por deciso fria e calculista dos senhores absolutos do Kremlin (GB:230). De outra parte, observa o general, a estratgia da guerra fria necessariamente mundial, envolve e busca envolver todo o planeta. A estratgia do bloco comuno-sovitico dplice: a dos povos no-ocidentais, aos quais busca atrair para a sua rbita; e a do prprio mundo ocidental, onde busca espalhar a ciznia, a desconfiana e o caos, enfraquecendo-o e dissociando-o com a sua pregao antiamericanista, anticapitalista, anticrist, materialista e demaggica. Um exemplo desta ltima a prpria Amrica do Sul da Argentina peronista

121 que poca encontrava-se, tambm, sob a cnica ofensiva do comunismo desagregador e pervicaz (GB:237-238). Tambm aqui as maiores desvantagens so ocidentais. Por um lado, porque lhe mais difcil que para os comunistas variar bruscamente de atitude, sob pena de desprestgio face do mundo todo, quebra da boa vontade dos neutros, enfraquecimento de alianas duramente conseguidas, restries prpria unidade de vistas e de propsitos em seu seio (GB:237). Por outro lado, porque, o ocidente homogeneizado uma sociedade democrtica, aberta infiltrao da propaganda inimiga e que, respeitando a conscincia do indivduo e a dignidade da pessoa humana, no pode reprimir com eficcia a atuao desagregadora da quinta-coluna sovitica, dos simpatizantes e dos teleguiados comunistas (GB:237). No caso de guerras localizadas - sejam as guerras por procurao, sejam aquelas em que os grandes intervm abertamente -, os comunistas tm maior liberdade de ao, porque podem empenhar facilmente seus satlites e lanar mo das famigeradas foras de voluntrios, ao passo que os EUA no tero outro remdio seno intervir s claras, com suas prprias Foras Armadas, pondo em jogo todo o seu prestgio internacional e muitas vezes enfrentando o perigo de dissenses com alguns de seus aliados menos interessados, quando no mais temerosos (GB:239). A gravidade, multiformidade e onipresena das ameaas a que se expe obrigaria o ocidente a enquadrar em uma estratgia coerente e coordenada todos os Estados ocidentais. Contudo, no obstante a incontestvel supremacia de que veio a desfrutar, pelo seu inigualvel poder econmico e militar, o grande pas lder da Amrica do Norte, a experincia norte-americana, nesse particular, deixaria muito a desejar - nem mesmo, internamente, seu esforo, altamente louvvel e frutfero, de traar e conduzir uma poltica internacional acima dos partidos logrou manter-se, sem discrepncias nem brechas, por longo prazo (GB:239). Para a construturao de uma aliana ocidental, Golbery sublinha, h que atender a certos interesses: em primeiro lugar, dos aliados e s em menor escala, dos prprios neutros, a fim de que chegasse o Ocidente, afinal, a um grau mnimo de concordncia geral, indispensvel existncia verdadeira do que merecesse o nome de uma estratgia coletiva ou coordenada de todo o mundo ocidental (GB:239-140). Mesmo que tal estratgia totalmente unificada no exista, Golbery ressalta que a estratgia de conteno/isolamento constitui, de si, uma estratgia ocidental, como um todo bem definido e coerente, vlida para todo o mbito mundial e duradoura no tempo (GB:240241). E justifica que uma estratgia de repulso seria impraticvel e suicida, incorreria num crime injustificvel e at contraproducente se incentivasse a rebelio intil de populaes indefesas sob uma tirania totalitarista disposta a tudo. Tambm no possvel, alm do mero esforo de imaginao de alguns publicistas exaltados ou tericos com os ps nas nuvens, a guerra preventiva, de vez que o ocidente no poderia desencade-la (GB:240-241). De outra parte, reitera, no ocidente o isolacionismo no mais seria capaz de captar o apoio de um povo que, por duas vezes j, vira-se ludibriado por essa tese amolecedora e cujo amadurecimento poltico se processara, aceleradamente, atravs das rudes e trgicas provaes de duas guerras totais no curto perodo de um quarto de sculo (GB:240-241). Este isolacionismo era reconhecido como impossvel, mas no eliminava anseios anlogos de um escapismo ablico e cego, mascarado por vezes com racionalizaes bem tecidas sobre a base de frustraes e ressentimentos de um prestgio que se esvaa, especialmente no caso da Frana. Os pases da Europa ocidental buscariam uma to cmoda quanto ilusria terceira posio, buscando tornar-se o fiel da balana no conflito dominante da poca, Como se o que

122 estivesse realmente em jogo fossem simples interesses particulares dos opulentos ianques e no a questo vital da prpria sobrevivncia de todo o mundo do Ocidente!... (GB:240241). No combate ao comunismo totalizante, no deixariam de ocorrer erros tremendos de apreciao (caso da China e dos supostos inofensivos comunistas agrrios), tergiversaes, injustificveis retardos e at mesmo defeces de alguns (conflito coreano), teimosias gloriosas mas inteis (Indochina) ou nem mesmo gloriosas, nem teis (Arglia) (GB:242-244). A tudo isso suplantaria, Com centro no dinamognico arsenal norteamericano (GB:186-187), a original e fecunda concepo do Plano Marshall, que alcanaria enorme xito acerca da vital e fraterna solidariedade do mundo capitalista e que reestruturaria a Europa destroada no ps-guerra; da mesma forma, a vasta rede de sistemas regionais de segurana coletiva (Otan, Otase), a articulao de pactos mlti ou bilaterais, reforados por compromissos solenes (Doutrinas Truman e Eisenhower e a Resoluo de Taiwan), seriam outros tantos passos decisivos na edificao paulatina de um dispositivo estratgico, no s militar, mas tambm econmico e poltico, traduzindo o conceito bsico de conteno do comunismo, brilhantemente transformado em realidade palpvel (GB:242-244 e 186-187). E eis que o mundo anticomunista se estrutura, contra a expanso sovitica, pelas Amricas e Austrlia, a frica quase toda, a Europa ocidental e do Sul, alm de amplas cabeas-de-ponte na sia - a Turquia asitica, o Ir, o duplo Paquisto e a Tailndia. Enquanto que, de sua parte, o mundo comuno-sovitico, solidamente ancorado na URSS e na grande China continental, transborda j a oeste por sobre os chamados satlites jungidos ao Pacto de Varsvia e, na fachada de leste, pela Coria do norte e o Vietn setentrional (GB:186-187), de olho ainda em outras regies do mundo. Olhando o mapa-mndi desde uma perspectiva geopoltica brasileira, Golbery distingue um hemiciclo interior, num raio mdio de 10.000 km da Amrica do Sul, que abrange a Amrica do Norte, a frica ocidental e a Antrtida. Este circundado por um hemiciclo exterior, balizado, grosso modo, por um arco de 15.000 km de raio e que engloba a Eursia, a frica Oriental, a Austrlia e parte da Antrtida. Para alm desse hemiciclo exterior, ainda h a China, Japo, Indonsia, Malsia e Filipinas. Do hemiciclo interior no h a temer qualquer ameaa nossa segurana, adverte Golbery, em primeiro lugar pela ausncia potencial de agresso, mas tambm pela presena possante dos EUA, alm da zona psicolgica de amortecimento formada pela comum profisso de f democrtica e o ideal pan-americanista (GB:80). Golbery observa, olhando a histria do sculo, que o hemiciclo exterior, ao contrrio, constitui para a Amrica do Sul, o hemiciclo perigoso, de onde lhe tm advindo, poca trs poca, as ameaas mais graves, mais duradouras, continuadas e potentes (GB:129-130). E hoje, adverte, vem-nos, mais uma vez, ameaas gravssimas, arrimadas agora a todo um novo e requintado arsenal de armas terrificantes que vo desde a sutil propaganda ideolgica, conduzida em moldes racionais e frios, at os modernos engenhos termonucleares, capazes de inaugurar uma nunca vista guerra intercontinental (GB:135-136). No caso do Brasil, de acordo com o general, numa primeira fase de uma guerra geral do ocidente contra o oriente, por mais destruidores e tremendos que venham a ser os ataques de intimidao ou de represlia a que podemos ser submetidos, nunca deixaro de ser espordicos, intermitentes, localizados por certo e de curta durao. Somente o domnio, pelos soviticos, de importantes bases no litoral fronteirio da frica permitir-lhes- atuar decisivamente, em continuidade e potncia combinadas, contra algum ponto do territrio brasileiro. Da que o prprio destino do Brasil esteja em jogo na grande batalha de manuteno da invulnerabilidade de toda essa frica atlntico-meridional a penetraes, sobretudo, radicao a do poder sovitico (GB:136-137).

123 Por isso, assevera o general, o hemiciclo interior

de fato constitui a retaguarda vital de todo o mundo do Ocidente. Qualquer penetrao importante, a, de um inimigo comprometer certamente todo o sistema defensivo do mundo ocidental, sobretudo porque tornar, desde logo, extremamente vulnerveis as comunicaes martimas e areas, de que o Atlntico Sul palco insubstituvel e a Antrtida, o ferrolho (GB:191).

Assim sendo, o hemiciclo interior (Amrica do Sul, frica e Antrtida, basicamente) avulta, no dispositivo geral, como fronteira decisiva da segurana sul-americana (GB:129130). De forma que o continente sul-americano poder bem se considerar imune contra aes mais diretas e em fora, enquanto as trs massas cobridoras do hemiciclo interior no estiverem em mos de um agressor potencial (GB:82 e 184). Manter as terras do hemiciclo interior em mos amigas , segundo esse raciocnio, no uma opo ideologicamente fundamentada, mas sim um imperativo geopoltico, traado no mapa do mundo pela disposio eterna das massas terrestres que nos circundam (GB:184) - portanto, imutvel, neutro e inescapvel. Daquelas trs massas continentais, prossegue a anlise, a frica a mais vulnervel, enquanto a Antrtida e a Amrica do Sul permanecem superiormente protegidas em termos geopolticos e estratgicos. A frica , dentre aqueles trs, o continente mais importante, dada a sua proximidade maior do centro de poder capital de todo o Ocidente e cujo envolvimento permitir completar pelo sul (GB:191). E, para complexificar a situao, por sua posio estratgica, entre os dois blocos antagnicos, pelas vias de acesso naturais que a ela conduzem, pela instabilidade em que se debate, a poro mais vulnervel e, ao mesmo tempo, mais valiosa - mais cobiada, portanto (GB:136-137). No continente africano, a estratgia da aproximao indireta ser, sem dvida alguma, a mais rendosa, de efeitos mais imediatos e, alm disso, muito menos perigosa. Relegada a ao militar ostensiva ao plano meramente secundrio das ameaas e das ostentaes de prestgio e de fora, fica disponvel todo o amplo e variado espectro das tticas sutis de infiltrao /.../ que compem esse complexo moderno da guerra insurrecional ou subversiva e que oferece perspectivas muito mais promissoras de xito, sobretudo onde j se manifestem tenses sociais das mais graves e se eternize um padro intolervel de vida (GB:136-137). A completar essa viso, Golbery avalia as zonas vrias de instabilidade extremamente perigosa do mundo atual, concluindo que
dentre todas essas reas, as vulnerveis, por falta de um potencial efetivo suficiente de que, a rigor, carecem todas - ao mesmo tempo que ausncia de uma slida estrutura regional que possibilite e assegure a participao, eficaz e a tempo, do poderio ocidental radicado aqum-oceano, quando no mesmo por escrpulos ou temores que se rotulam de um neutralismo as mais das vezes incoerente, abrem largas brechas infiltrao solerte ou ao ataque violento - talvez muito mais provavelmente primeira do que ao segundo - o Oriente Mdio tumultuado, a ndia e o Sudeste asitico (GB:214).

infiltrao comunista, nestes locais, se oferecem, favorveis, uma turbulncia natural e um miservel padro de vida (GB:187), aliadas a um crescimento demogrfico explosivo (GB:214), tornando-os presas fceis, incapazes, por si ss, de se defenderem com xito contra o expansionismo sovitico (GB:229).

124
Atuao Internacional das Superpotncias

O general comenta que, ao ascender ao poder pela Revoluo de 17, o partido bolchevista imporia ao msero povo russo, sob o nome de comunismo de guerra, nova carga tremenda de privaes e de provaes. Tal realidade pouco mudou, e ainda hoje o espectro inventado de um cerco imperialista preparado com vistas ao desencadeamento do massacre que serve de esteio segregao das cortinas de ao e ao conformismo imposto como camisade-fora a uma vasta constelao to variegada de povos (PE:23). Sobrepondo os meios aos fins e acabando por enxergar apenas os primeiros, a poltica e a estratgia russas foram aberrantemente desvirtuadas por um processo acelerado e violento de burocratizao de todas as formas de vida econmica, poltica, cultural e social que, felizmente, mais dia, menos dia, ter de ceder ante a presso acumulada de um inconformismo fortemente recalcado (GB:265). A URSS movida, na viso do general Golbery, por um expansionismo imperialista, hbil e inescrupuloso na tcnica das agresses disfaradas, bem equipado, poltica e militarmente, para a ttica difcil dos avanos e recuos, das negaas e das provocaes, das ameaas mltiplas renovadas ora aqui, ora acol, das conquistas pedao a pedao, e superiormente treinado na estratgia, muito mais sutil, da guerra fria sem fim (GB:192-193). A guerra fria: eis a o quadro verdadeiro da coexistncia pacfica com que os comunistas acenam para o Ocidente, em seus trombeteados e falsos apelos de paz, certos de que, em tal ambiente, podero alcanar, com riscos muito menores, o seu objetivo final de conquista do mundo (GB:237). J os EUA pautaram por longo tempo sua conduta internacional pela doutrina do espao vital, que surpreendentemente aparece, apenas mascarado, nas doutrinas norteamericanas do destino manifesto (GB:28). E, no ps-guerra, assumindo meio a contragosto, como que a medo, as responsabilidades e o prestgio crescente de pas lder da civilizao ocidental, o pas abandonou o big stick que o primeiro Roosevelt to desassombradamente manejara e convenceu-se de que outros processos e outras tcnicas de persuaso seriam muito mais produtivas no alicerar, solidamente, a paz interna e a defesa coletiva do continente, como bases indispensveis segurana prpria, cada dia mais ameaada (GB:175). Contudo, observa o general, esse mesmo prestgio, essa mesma supremacia precisaria ser manejada com habilidade diplomtica para no ferir os justos melindres e os ressentimentos flor da pele de aliados rebaixados, neste mundo de ps-guerra, a posio nitidamente subalterna (GB:239). Segundo o general, natural que, representando a conteno do comunismo, em suas atuais fronteiras, o propsito fundamental da estratgia do Ocidente, os EUA estejam concentrando esforos na estruturao, no fortalecimento de material de guerra, na cooperao econmica ampla e na manuteno, nas proximidades, de poderosas foras militares, sem prejuzo do elevado nvel do poder de intimidao atmica (GB:239). Mas o ressentimento notrio na teorizao do general Golbery. Pois, de acordo com ele, o restante do mundo (a frica quase toda e as Amricas, tanto Central como do Sul), ficaria relegado a um segundo plano bem ntido nas preocupaes e assistncia dos EUA, quase inteiramente guiadas, aqui, ainda por interesses imediatistas e inconfessveis dos altos crculos financeiros daquele pas (GB:239). Os cuidados pela manuteno de uma solidariedade continental idealista e nobre padecem os mais diretos reflexos do maior comprometimento dos EUA no alm-mar, onde a concentrao de desmedidos esforos e uma vigilncia sempre alerta levam-nos a descurar as tenses que agitam, subterraneamente,

125 o edifcio imponente, mas pouco slido - convenhamos - de um pan-americanismo ainda envolto, em grande parte, em frmulas grandiloqentes, mas quase de todo vazias de real contedo econmico, ideolgico e poltico (GB:175). Por isso, o general mostra o fato indiscutvel de que, tendo os americanos, tanto aprendido dos ingleses e de sua fria e calculadora poltica de equilbrio de poder, preferem uma solidariedade continental nos moldes citados, que permita justificar e manter e acentuar mesmo, se possvel, uma indiferenciao igualitria e niveladora desta paisagem sulamericana, afinal to prxima e onde no lhes ser agradvel contar, por certo, com vizinhos poderosos e talvez irrequietos (GB:175, grifos nossos). Contudo, adverte o general, essa uma estratgia contraproducente, que pode abrir uma brecha no continente para a entrada do comunismo. De forma que, conquanto vitalmente interessados em conter a expanso multiforme do imperialismo sovitico onde quer que se manifeste e, sobretudo, no Oriente Mdio intranqilo e no norte da frica, os EUA nem por isso podero descurar da extraordinria significao geopoltica e geoestratgica da Amrica do Sul. Pois, acentua Golbery, os EUA no permitiro de forma alguma, em nome dos princpios da solidariedade continental ou do ideal pan-americanista ou da segurana coletiva, mas, se necessrio for, mesmo contra quaisquer princpios, que se instale neste continente seu vizinho imediato do sul qualquer foco comunista ultraperigosos sua prpria sobrevivncia (GB:192-193, escrito em 1959, grifos nossos). Embora seus escritos sobre a guerra fria fossem dos anos 50, Golbery observaria, posteriormente, que no careciam de atualizao - muito embora observasse mudanas: maior definio em relao bipolarizao rgida e a agravao guerra fria viria a suceder, no primeiro qinqnio dos 60, uma fase nova, de guerra fria em diminuendo e de um policentrismo, tanto no ocidente como no oriente.
Quebra-se, assim, o monoplio ideolgico que a Rssia sempre desfrutara e esbatese a misso messinica universal de um comunismo j no mais monoltico. E no s isso, porque o neutralismo avana tambm em novas reas. Ao mesmo tempo, a proliferao nuclear se erige em problema crucial e o perigo da escalada domina toda ao estratgica de fora, no mundo algo diferente que surgiu aps a confrontao dramtica de outubro de 62 (a crise dos msseis em Cuba). (GB:3-4)

Contudo, argumenta o general, todas essas mudanas no so substanciais, de forma que seu raciocnio passou por elas inclume. Isso porque, assevera, no se pode falar propriamente do surgimento de uma multipolaridade, mas de um afrouxamento da bipolarizao. O antagonismo entre o Ocidente cristo e o Oriente comunista domina ainda a conjuntura mundial. (GB:3-4) E o mundo convulsionado e agnico de hoje continua vislumbrando trgicas perspectivas, a despeito de quaisquer vislumbres de coexistncia pacfica de conciliao e entendimento que j se queriam, otimistamente, enxergar no longeperto do horizonte dos tempos (PE:375-376 e 419).

3 - GUERRA TOTAL OU O LTIMO CAVALEIRO DO APOCALIPSE

Antes do surgimento da guerra total, o conceito que orientava a mobilizao militar era o de defesa nacional em guerra convencional, a defesa do territrio nacional contra agresses externas. No incio da I Guerra Mundial, persistia a idia de que a guerra se resumia a embates entre foras militares. Sendo assim, na preparao deste primeiro grande conflito mundial, os

126 militares se desaperceberam da mobilizao industrial, e ainda mais da cientfica, realizando apenas a mobilizao militar. No seu decorrer, contudo, a guerra terminou por evidenciar qualidades diferenciadas: o quanto a revoluo industrial pusera os povos em interdependncia; a necessidade de amplos recursos humanos e materiais etc. Com a estabilizao das frentes de guerra,
a luta se torna verdadeiramente mais cientfico-industrial que militar. Com apelo insistente maior produo dos recursos necessrios para sustent-la e a busca de novos armamentos defensivos e ofensivos. /.../ Acentua-se desde logo /.../ o carter generalizado da guerra, bem marcado pelo apelo a todos os concursos tanto em homens como em materiais; e o que mais, o apelo ao estrangeiro, feito em nome dos interesses superiores da civilizao (Magalhes, 1958:364).

Ao final da guerra, Erich von Ludendorff, derradeiro chefe do Estado-Maior da Alemanha derrotada, lana a teoria da guerra total. Ele se esfora por demonstrar, explorando uma verdade incompleta, /.../ [que] a vitria dos aliados resultara /.../ das fraquezas do moral no interior alemo, da traio... Culpa da defeco dos catlicos e judeus, destarte, reavivando as j adormecidas teorias racistas posteriormente exploradas por Hitler (Magalhes, 1958:371). Ludendorff gostava de ressaltar que, tendo se modificado o carter da guerra, modificava-se tambm sua relao com a poltica. Esta deve, como a guerra, ter carter total. Para obter o mximo de poder de um povo na guerra total, a poltica deve se identificar com o princpio conservador de vida do povo, feito sua medida. /.../ Como a guerra exige alta tenso, a poltica total deve j em tempo de paz preparar-se para sustentar esta luta vital em tempo de guerra. A concluso, ele o diz explicitamente, deve ser a substituio das teorias de von Clausewitz: A guerra e a poltica servem conservao do povo, mas a guerra a suprema expresso de vontade da vida racial. Por isso que a poltica deve servir guerra (Apud Pereira, 1988:254). Ludendorff vai adiante: segundo seu pensamento, Em cada pas, o dever mais urgente do governo o de desmascarar o adversrio mais encarniado da unidade nacional, de proceder a medidas eficazes e conhecer os verdadeiros meios de obter a coeso do povo. De outra parte, O dever mais urgente dos chefes da guerra total o de exigir dos chefes civis alcanar esta coeso a qualquer preo (Apud Pereira, 1988:254). Esta primeira viso de guerra total, entrevista por Ludendorff raiz das amargas frustraes de 1918, era, segundo Golbery, deformada ainda pelo esprito do militar profissional - todas as foras da nao estritamente subordinadas ao esforo militar a aplicarse, brutalmente, em decisivos campos de batalha (PE:395). Faltava, portanto, quela teleologia histrica sem sujeitos corrigir tal perspectiva unilateral, chegando-se a um conceito supostamente mais perfeito de guerra total. Durante a II Grande Guerra, os EUA percebem desde logo a necessidade de fazer a mobilizao cientfica. A guerra, que j se desenvolvia em trs dimenses (ar, terra e mar), ganha expresso na quarta dimenso (tempo). Surge a fora da energia nuclear, atmica. Alm disso,
o complexo atual da guerra mais valoriza ainda a importncia dos fatores morais, podendo-se vencer o adversrio por meio de uma hbil propaganda, de uma hbil atuao sobre a sua vontade de combater com os recursos materiais e intelectuais ora disponveis de atuao sobre as massas... uma condio que favorece as potncias de maior pujana econmica (Magalhes, 1958:379).

127 A guerra torna-se, assim, guerra ampliada a todo o espao territorial dos Estados, absorvendo a totalidade dos esforos de que capaz a Nao, redirecionando todas as atividades para o objetivo da vitria, cobrando os mesmos sacrifcios e expondo aos mesmos perigos soldados, civis, homens, mulheres e crianas e obrigando abdicao de liberdades seculares e direitos custosamente adquiridos, em mos do Estado, senhor todo-poderoso da guerra. Estendeu-se a toda a amplitude do espao mundial, a todos os povos, obscurecendo a figura jurdica da neutralidade e equiparando beligerantes e no-beligerantes nas mesmas provaes, em um transbordamento mximo que desconhece quaisquer limitaes espaciais. Mas, acima de tudo, ampliou-se tambm na escala do tempo, incorporando em si mesma o pr-guerra e o ps-guerra como simples manifestaes atenuadas de seu dinamismo avassalante - formas larvadas da guerra, mas no fundo guerra (GB:24-25). Registre-se a contradio entre a conceituao tcnica da guerra (caracterizada pelo emprego da violncia), mais precisa, utilizada para o planejamento. A verso aqui apresentada dispensa preocupaes com a exatido, pois seu objetivo justamente o convencimento. E assim que a guerra extravasou de vez todos os limites que lhe foram anteriormente impostos, tornando-se uma guerra total que, como a paz, indivisvel.
De guerra estritamente militar passou ela, assim, a guerra total, tanto econmica e financeira e poltica e psicolgica e cientfica como guerra de exrcitos, esquadras e aviaes; de guerra total a guerra global; e de guerra global a guerra indivisvel e por que no reconhec-lo? - permanente. A guerra branca de Hitler ou a guerra fria de Stlin substitui-se paz e, na verdade, no se sabe j distinguir onde finda a paz e onde comea a guerra (GB:24-25).

Guerra total um conceito, pois, que busca traduzir o esparramar-se da guerra para campos que anteriormente lhe eram alheios: para alm do militar, o poltico, o psicossocial e o econmico. Estaria, assim, o poder militar recolocado no seu justo papel de um dos instrumentos apenas com que a Nao faz a guerra e realiza seus planos estratgicos - o gume cortante do Poder Nacional. Avultou a importncia de outros fatores, como o econmico dada a necessidade crescente de foras militares cada vez mais numerosas e de padro tcnico mais elevado -, das aes psicolgicas, fundadas no reconhecimento do valor incomensurvel das foras morais na guerra, a necessidade de extrema versatilidade e inigualvel capacidade de vencer as distncias e salvar obstculos e a prpria diplomacia, chamada a prosseguir em suas manobras complicadas durante todo o perodo de guerra e no apenas no perodo de paz e de tenso e nas negociaes de ps-guerra, em ntima coordenao sempre com as aes propriamente militares (PE:397). Ressalte-se, pois, o carter subordinado da guerra em relao a fins outros, impostos pela poltica nacional.
A preeminncia do setor militar, reconhece-se, freqentemente haveria de ocorrer, mas no de forma alguma imperativa, por mais que, traduzindo o mximo de violncia, subsistisse sempre em potencial como ameaa cada vez inibitria. /.../ De qualquer maneira, a conduta da guerra tinha escapado, inteira e definitivamente, das mos especializadas dos militares para a responsabilidade mais alta e a viso mais global dos verdadeiros estadistas. (PE:396)

Apesar de ter sido reestruturada sua importncia, o poder militar continua pesando fortemente, devendo o Brasil em especial mant-lo pronto para o caso de ser necessrio:

128
O mundo cada vez mais um s; est todo inter-relacionado; e temos visto no uma guerra quente e contnua, mas episdios sucessivos que tm trazido, para ns, prejuzos bastante importantes. Acho que, numa conjuntura como esta, que, se no de guerra, de um clima de pr-guerra, a expresso militar ter que influir, fortemente, em tudo o que trouxer deciso na rea da poltica externa. /.../ hoje em dia, h mesmo quem ache que o mundo est vivendo a terceira guerra mundial: da o papel militar avultar por demais no quadro internacional e, portanto, influenciar muito de perto a poltica exterior dos pases. No temos, realmente, uma previso de emprego em curto prazo de foras armadas em nosso pas, porm sabemos quer precisamos estar preparados para viver uma conjuntura em que as foras armadas tero, cada vez, presena maior em vrias partes do mundo, com reflexos em todos os outros pases (PE:503).

Tendo feito estes esclarecimentos iniciais, podemos passar ao ponto seguinte: a pregao golberyana, em tons dantescos, verdadeiramente apocalpticos, em busca da conscientizao de seus contemporneos acerca da natureza total da guerra atual. A guerra total, cujo surgimento foi possibilitado pela agigantada evoluo tecnolgica dos ltimos tempos, aliada s caractersticas dinmicas do atual sistema de Estados-Naes, caracterizase pela
extenso desta a todo o territrio amigo e inimigo, devido ao alcance aumentado dos meios de agresso e imperiosa integrao do esforo nacional; transbordamento a todos os campos /.../ e recurso a instrumentos de toda a ordem; tendncia guerra global. Essa guerra total , afinal, a guerra no seu mximo de violncia e para ela o campo militar nitidamente dominante. (GB:157-158)

a introduo para um arrazoado catastrofista que, de um s flego, intenta reproduzir uma realidade aterradora. E to contundente a sua pregao que quase podemos v-lo, Profeta do Apocalipse, anunciando a vinda dos sete Anjos Vingadores e traando o destino terrvel da humanidade pecadora:
E a guerra moderna que se trava entre naes, mobilizando toda a fora arrasadora, todos os impulsos destruidores, todo o primarismo incontido da emotividade brbara das massas angustiadas e esporeadas luta, expandindo-se, em crescendo, a todos os setores de atividades, no mais a guerra de mercenrios ou de profissionais endurecidos, mas a guerra total que a todos envolve e que a todos oprime, guerra poltica, econmica, psicossocial e no s militar, perdurando no tempo sob a forma de guerra fria ou ampliando seu domnio no espao como avassaladora onda universal que no respeita nem os desertos saricos, nem as alturas tibetanas, nem as imensidades polares, vem acrescer ao velho dilema entre Liberdade e Segurana um colorido profundamente trgico, quando as novas armas sadas, incessantemente, dos laboratrios de pesquisa - as bombas atmicas, as superbombas de hidrognio e cobalto, os teleguiados de alcance intercontinental, os satlites artificiais que j cruzam os cus, anunciando as plataformas giratrias do futuro de onde podero ser lanados ataques inopinados, demolidores e esquivos - passam a ameaar a humanidade inteira, em sua loucura coletiva, de aniquilamento e de morte. (GB:12; PE:367-368)

Arrependei-vos, pecadores, que se aproxima o Armagedon: Essa a guerra - total, permanente, global, apocalptica - que se desenha, desde j, no horizonte sombrio de nossa era conturbada. E s nos resta, Naes de qualquer quadrante do mundo, prepararmo-nos para ela,

129 com determinao, com clarividncia e com f. (GB:12; PE:367). Pois, diante de uma guerra no mais s guerra, tambm guerra econmica, tambm guerra poltica, guerra psicolgica, guerra de ideologias; a guerra civil como a revoluo so tambm guerras; a guerra pode ser guerra fria e, como tal, permanente, insidiosa, multiforme - que ser, ento, a paz? (GB:144) Bem-aventurado aquele que l e bem-aventurado aquele que ouve as palavras desta profecia e guarda as coisas que nela esto escritas, porque o tempo est prximo! (Apocalipse, 1:3) A estes bem-aventurados que podem ouvir seu Sermo da Montanha, Golbery incita:
Homens de todas as latitudes e de todas as raas - a guerra global -, homens de todas as idades - a guerra permanente -, homens de todas as profisses e dos credos mais diversos - a guerra total -, devemos, pois, olhar bem de frente essa Esfinge dos novos tempos, para decifrar-lhe o mistrio tremendo que em si mesma encerra e fortalecermo-nos na defesa da Liberdade /.../ para que nem na guerra acabemos por soobrar, vencidos, nem por ela mesma soobre, afinal, conosco, a Humanidade inteira. (GB:9-10; PE:364)

Ento me disseram: importa que profetizes outra vez a muitos povos, e naes, e lnguas, e reis (Apocalipse, 10:11), a fim de convenc-los dos deuses a serem adorados e dos valores a serem abandonados. Se no o fizerem, haver choro e ranger de dentes, e o homem buscar a morte e no a encontrar - permanecendo em agnica expectativa. Da em o corolrio da pregao, to cuidadosamente preparado e que apresenta-se, mesmo em sua totalizao simplista, como absolutamente lgico.
A essa guerra onipresente, todos os instrumentos de ao, direta ou a distncia, lhe so de valia igual para alcanar a vitria que se traduza, por fim, na efetiva consecuo dos ON e na satisfao completa das aspiraes ou das ambies - justas ou injustificveis, pouco importa - da alma popular, vitria tanto menos custosa quanto se possa a ela chegar sem o emprego decisivo, mas cruento, da fora. (GB:24-25)

Esta guerra total serve-se, por isso, de todo tipo de armas: as polticas (negociaes diplomticas, presses e intervenes, alianas e contra-alianas, acordos e tratados), as econmicas (sanes, emprstimos e investimentos de capital, presses cambiais, poltica tarifria e discriminaes comerciais, embargos, boicotes, dumping), as psicossociais mais ainda (propaganda e contrapropaganda, persuaso ou intimidao pelo rdio e a imprensa, chantagens, ameaas, terrorismo), conservando as foras militares como um trunfo poderoso que tanto vale hoje, fator cataltico indispensvel, na mesa das discusses como nos campos de batalha (GB:24-25). E a tcnica galga o espao exterior com seus sputiniks de agora, seus vigias atentos de amanh e suas plataformas de ataque de um futuro no remoto, e domestica e controla as mais terrificantes exploses atmicas para entrega em domiclio do inimigo, atravs de alcances intercontinentais cada vez mais ampliados (GB:144). Numa conjuntura em que a guerra entremeia a poltica interna e a poltica externa dos Estados, transborda sobre toda a poltica nacional, confunde aes revolucionrias e subversivas com as atividades propriamente militares, coloca em plano idntico as aes ofensivas e defensivas conduzidas no campo econmico ou no setor da propaganda e da doutrinao, insiste o general, em que a guerra invade a paz, esta s pode ser percebida como condio humana de carter permanente e normal (GB:144).

130 Como destacou Oliveiros Ferreira, Golbery , ele prprio, criatura do filsofo do medo, o que em grande medida determina o tipo de guerra que tem na imaginao (Ferreira, 1984:578). De todo modo, a redeno possvel da humanidade maculada est em entender devidamente o complexo tremendo da guerra e utilizar-se dos meios possveis para enfrent-la. Somente quando estamos absolutamente conscientizados desse imperativo inescapvel que vem a luz no fim do tnel:
o conceito universalmente admitido da guerra total, o que traduz afinal, seno a predominncia absoluta, mas felizmente no eterna, dos objetivos de poder e de fora sobre todos os valores e sobre todas as motivaes ticas, religiosas, cientficas, sociais e artsticas que estas, somente estas podero conduzir a humanidade a seus destinos mais altos? (PE:90, grifo nosso.)

A noo golberyana da guerra moderna , como pode-se perceber pela explanao acima, a-histrica, aparentemente no tem relao com a realidade histrico-social do homem pois, uma vez ativada, pode desenvolver-se naturalmente at uma antiguerra - a destruio total das partes conflitantes e do resto da humanidade que no tem nada que ver com a histria - sem que a razo ou as relaes polticas intervenham para impedir a hecatombe. Uma guerra para a qual no h mais fronteiras, pode estar em todos os lugares e deve, por via de conseqncia, ser combatida por todos os meios e que comea a ser ganha ou perdida na paz. Tal guerra, que ele v como o fator dominante na conjuntura moderna, representa um reducionismo pauprrimo, uma extraordinria simplificao das relaes sociohumanitrias, que funde e confunde a sobrevivncia de instituies e sistemas com a sobrevivncia fsica dos contendores; que identifica conflito a guerra tendo como parmetro uma impossvel paz paradisaca. Como atentou Joseph Comblin, O espectro da guerra generalizada tem por finalidade despertar uma sensao de insegurana radical da qual se espera fazer surgir uma submisso igualmente total. A pregao golberyana, embora possa provocar arrepios, no nos pode fazer esquecer a situao do homem como sujeito da histria: as guerras generalizadas, como quaisquer outras, como destaca o sacerdote belga, so determinadas e limitadas por finalidades polticas (Comblin, 1980:36). E o prprio Golbery atenua toda a sua parlenda anterior com uma simples frase, na qual admite que O conceito de guerra total no fundo, afinal, um verdadeiro conceito-limite (GB:158 e 233-234).
Guerras Localizadas ou Limitadas

Golbery ressalvava que a grande probabilidade de que uma guerra geral, limitada do ponto de vista atmico, degenere, em curto prazo, numa guerra nuclear irrestrita ou total, reiterando a ameaa permanente de recproca destruio total dos contendores pela guerra atmica, com seus perigos e novos engenhos de difcil deteno, far com que os riscos nela envolvidos sejam quase iguais ao desta ltima, especialmente numa era de paridade atmica e ampliao paulatina do nmero de potncias nucleares. Objetivos limitados, interesses secundrios no compensaro os riscos tremendos de uma generalizao e totalizao simultneas da guerra. (GB:234) Por isso, a possibilidade de sua ocorrncia diminuta, dando espao para guerras atenuadas - localizadas ou limitadas. De forma que probabilidade maior parece de fato apresentar, hoje, a guerra limitada, o conflito localizado e, sobretudo, a agresso comunista indireta que capitaliza os descontentamentos locais, as frustraes da misria e da fome, os justos anseios nacionalistas, os ressentimentos e dios anticolonialistas para provocar perturbao ou tomada ostensiva de domnio, seja por golpes

131 de Estado, seja mediante uma longa e exaustiva guerra subversiva de terrorismo e de guerrilhas (GB:192-194). Como, segundo Golbery, teriam demonstrado, recentemente, a Guerra da Coria (na dcada de 50, ocorreria ainda a guerra localizada na Indochina, e nos anos 60, a do Vietn), havia muito espao para as guerras limitadas. Nessa disputa pela hegemonia - ou pelo equilbrio - entre os dois blocos, provavelmente sero utilizadas apenas armas convencionais, se, para ambos os partidos, os objetivos visados e os riscos envolvidos sejam, por sua prpria natureza, limitados tambm. Nunca se deixar, contudo, de considerar o emprego de engenhos atmicos; no ser mesmo impossvel o recurso a ataques nucleares e termonucleares de carter estratgico, embora sempre circunscritos ao teatro de guerra tacitamente aceito(GB:234). Nesse caso,
se estiverem em equao questes vitais para um ou para o outro dos antagonistas, potncias nucleares ambos, a evoluo da guerra atmica limitada para guerra atmica irrestrita ou total ser quase certa, ser mesmo inevitvel, em prazo maior ou menor, conforme decorram, na realidade, os sucessos militares. (GB:283)

Nessas guerras localizadas - sejam as denominadas guerras por procurao, nas quais os contendores principais se acobertam por detrs dos beligerantes efetivos, como a URSS e a China tm insistido em fazer, sejam aquelas em que a interveno dos Grandes se venha a fazer de maneira ostensiva, o campo preferencial da atuao pode no ser o militar, embora se deva admitir sempre o risco de que venha a s-lo a qualquer momento, por um aumento subitneo do coeficiente de violncia. Este campo, em tais formas de guerra, potencialmente o campo dominante.
Nessas guerras localizadas, a limitao no emprego das armas atmicas e termonucleares surge, a rigor, como um corolrio e nada mais, porquanto os centros de poder de ambos os contendores - os antagonistas principais encapuzados, no caso de guerra por procurao - se acham situados para alm da rea realmente conflagrada e, pois, o ato capital do conflito atmico irrestrito no ter, verdadeiramente, cabimento. (GB:234)

Por outro lado, tais guerras localizadas trazem riscos incomensurveis de descontrole de seu desenvolvimento e o risco de perda de prestgio. A essa tenso nervosa insuportvel mantida nessas guerras, acrescenta-se o srio desgaste de foras. Por isso, conclui Golbery, so mais vantajosas para o bloco comuno-sovitico, mais resistente no seu controle ditatorial das populaes. So, pois,
uma arma inigualvel com que experimentar, ora aqui, ora mais acol, o dispositivo defensivo mantido pelo Ocidente custa de uma energia sobre-humana e de inmeras concesses a aliados exigentes e quase sempre desconfiados, em toda a sua vasta periferia, e pr prova, principalmente, a determinao deste para a luta. (GB:235)

Sendo assim, este tipo de guerra s se pode empreender na periferia do prprio domnio comunista e de preferncia, por certo, onde haja satlites (GB:235). Em qualquer dos casos, porm, continua o general, haver um elemento novo: o da guerra sob condies atmicas, o perigo sempre presente de que possa ela, a qualquer momento, degenerar em um conflito atmico irrestrito; nessas condies, a disperso maior das foras, alto grau de

132 auto-suficincia dos grupamentos de combate, a mobilidade e potncia acrescida dos momentos emprestaro caractersticas muito particulares (GB:232).

Guerra Social-Revolucionria ou Insurrecional ou Subversiva

Em artigo escrito em 1954, Golbery advertia que, Hoje em dia, para toda Hiptese de Guerra externa se deve considerar a ao de elementos quinta-colunistas no interior do pas, ressaltando ainda que O comunismo no escaparia, antes serve de modelo aprimorado, a essa perigosa combinao de agresses externas e internas, simultneas ou no (PE:41). Nos pases subdesenvolvidos, por suas caractersticas especficas no que se refere a vulnerabilidades, posio geopoltica e potencial de defesa, o perigo tanto mais premente quanto menos violenta a forma de que se revista, muito mais urgente quanto s variantes subversivas da guerra. De forma que A guerra localizada e a guerra geral so espectros muito mais terrveis, em verdade, mas ainda se escondem nos desvos de um futuro mais ou menos hipottico. No nos devem fazer esquecer, de forma alguma, os perigos mais imediatos (GB:238-239). Os fenmenos da insurreio, da guerra social-revolucionria ou subversiva so vistas portanto como uma das tcnicas empregadas pelo oriente agressor - esta tendo a vantagem de atuar no interior do sistema defensivo do Ocidente, possibilitando a agresso indireta e mesmo a distncia, comandada do exterior. Da vm a inspirao como tambm os tcnicos da subverso, alm de armas, dinheiro, propaganda e ameaas de toda natureza. Outro tipo de apoio a presena ostensiva, nas imediaes, dos prprios tanques e avies soviticos ou chineses. Nestas expresses da guerra fria, destaca ele,
a ideologia comunista cumpre seu papel capital de ponta-de-lana impalpvel e insinuante, no mobilizar uma minoria disciplinada e fantica de profissionais da revoluo, no criar um ambiente de agitao e tumultos, no aprofundar todas as dissenses e explorar todos os ressentimentos, no insuflar constantemente o dio em relao ao Ocidente, tudo de modo a promover, na primeira oportunidade favorvel, a irrupo, conforme o caso, de um golpe de Estado /.../ ou de uma insurreio de massas (GB:235-236).

Como observou Oliveiros Ferreira, na insurreio que consagra a preparao revolucionria que A Poltica e a Guerra se identificam plenamente. O conceito de guerra subversiva constitui, ainda segundo Golbery, a fronteira imprecisa entre a guerra propriamente dita, caracterizada pela entrada em ao efetiva das Foras Armadas, e a guerra fria, em cuja ocorrncia as armas atmicas no tm emprego.
Naquela, as Foras Armadas regulares tm apenas um papel, as mais das vezes, episdico ou, pelo menos, cedem primazia ao dos guerrilheiros, dos sabotadores, dos partisans, de um lado, e represso quase de carter policial, de outro, a menos que o conflito evolua, como tem acontecido freqentemente, medida que os insurretos adquiram firme controle de certas pores do territrio conflagrado, para a guerra do tipo convencional ou clssico, de propores reduzidas (GB:236-237).

Na guerra fria as Foras Armadas desempenham um papel potencial de ameaa, mas o esforo vem em outros campos - o econmico, o poltico - em que entra toda a atividade preparatria dos golpes de Estado ou das prprias insurreies - ou o psicossocial - pela propaganda e contrapropaganda incessantes, pela doutrinao, pela exacerbao de

133 ressentimentos e dissenses, pela ameaa e pelo terror. Assim, em Golbery, a guerra revolucionria/insurrecional/subversiva uma das manifestaes da guerra fria, uma tcnica de conquista sem relaes com a histria das populaes. Portanto, tm que ver com objetivos estratgicos de uma das duas superpotncias, e ocorreria num vcuo sociohistrico, no fossem as referncias aos ressentimentos e dissenses internas e misria to bem explorada pelos comunistas. Como tcnica de conquista, demanda uma contratcnica que no distingue guerra revolucionria, subverso, guerra de libertao, guerrilha ou terrorismo. por isso que, na dcada de 60, com a entrada em cena na DSN deste componente contra-revolucionrio, muda a caracterstica do material blico enviado aos pases subdesenvolvidos: este agora leve, adaptado guerrilha. Outra decorrncia que os pases subdesenvolvidos passam a ter papel militar ativo, pois agora sua a responsabilidade de prevenir/reprimir a guerra revolucionria dentro de suas fronteiras, cabendo aos EUA apenas a orientao. Isso permitia, ainda, que os EUA ficassem mais livres para discutir com seu rival sobre as questes nucleares. Golbery chama ainda a ateno para o fato de essa forma de agresso, muito mais grave porque insidiosa e sutil, no exige a contigidade espacial para se dar. A atuao a distncia, embora mais difcil, melhor disfarvel, principalmente em vista do efeito demonstrao: condies econmicas precrias, sujeitando as massas misria e fome em face do consumo ostentativo de minorias corruptoras propiciam o ambiente favorvel propagao da ideologia revolucionria e aparentemente igualitria do comunismo (GB:192-194). No que tange ainda aos conflitos internos, Golbery ressalta que a devem-se considerar, para fins estratgicos, aqueles antagonismos motivados pelo descontentamento ativo de grupos dissidentes internos, desde que da resultem ou possam vir a resultar ntidas presses desfavorveis consecuo dos ONP (PE:37). De forma que est excluda a oposio dos partidos polticos minoritrios, exercendo-se nos regimes democrticos dentro de normas legais amplamente admitidas e benficas, essencial mesmo vitalidade e eficcia do sistema institucional; assim tambm, a atividade normal dos chamados grupos de presso, o jogo das influncias regionais no panorama federativo etc. (PE:37). Mas h que tratar como hipteses de guerra os antagonismos ligados atuao de grupos importantes, tanto ilegais como aparentemente legtimos, que revolucionariamente se proponham a mudanas no regime /.../, o irredentismo de minorias lingsticas ou tnicas, as aspiraes separatistas de certas provncias, a autodeterminao almejada por populaes coloniais (PE:37). Embora acredite que Antagonismos dessa ordem podero manifestar-se e finalmente diluir-se sem que, a qualquer momento, ameacem a paz interna - ainda que produzam a intranqilidade pblica, perturbaes da ordem, demonstraes turbulentas de massa, golpes terroristas, motins populares e at mesmo quarteladas -, Golbery chama a ateno para eles porque entende que outros, entretanto, podero culminar na subverso armada, na revoluo, na guerra civil, em que j se empenhem foras ponderveis, regulares, irregulares ou improvisadas, em aes mais intensas e prolongadas que quebrem realmente a continuidade da paz (PE:37). Parodiando Elizer Rizzo de Oliveira, poderamos dizer que, Mais do que uma concepo acerca das modificaes verificadas no fenmeno poltico-militar da guerra, a incorporao do conceito de guerra revolucionria ou insurrecional a este pensamento sugere a necessidade de combater, no mbito brasileiro, todas as foras que se opusessem ao projeto estratgico das elites (Oliveira, 1988:241). E, continua Oliveira,
Tal identificao fundamenta-se numa viso organicista da sociedade e do Estado como entes naturais, no como totalidades complexas de relaes sociais. Sendo

134
natural a integrao, o conflito sempre atribudo ao de inimigos ideolgicos desta ordem natural; secundariamente, ele pode ser resultado da ao no esclarecida e egosta das prprias elites. (Oliveira, 1988:241-242)

4 - O COLOSSO IMPERIAL E A OPO PELO OCIDENTE

O Espao e a Posio do Brasil 21

Para Golbery, no que se refere conquista efetiva do territrio do Brasil, esse colosso imperial de nossos dias - e muito mais de um futuro que a passos largos se aproxima (GB:110), este um processo que, ainda hoje, j de h muito acalmada de todo aquela febril agitao do desbravamento, no est completo. Embora tenhamos ultrapassado o tnue fio litorneo e a colonizao perifrica do sculo XVI, ainda assim nada mais fizemos que ampliar a base de partida para explorao e assenhoreamento do interior brasileiro a escassos 500 km da orla ocenica (GB:42). Sua anlise geopoltica do Brasil destaca um notvel adensamento demogrfico servido por trama rica de comunicaes ferrovirias e rodovirias no tringulo Rio-So Paulo-Belo Horizonte. Este o ncleo central do Brasil, seu verdadeiro corao ou heartland, que concentra a maior massa de populao e de riquezas, com uma circulao intensa, uma produo grande, onde situam-se as mais importantes indstrias de base. Ali, o dinamismo mais poderoso e enrgico (GB:43-44). No restante do pas, existem apenas dois ncleos ecumnicos e alguns escassos mdulos de condensao geogrfica, verdadeiras ilhas de populao, destacando-se em meio a um vasto deserto. Sua concluso que, aps 450 anos de histria,
somente o heartland central, portanto, vai atingido, em pleno, o seu destino geopoltico de vasta rea de condensao ecumnica, centro de propulso econmica, encruzilhada complexa de caminhos, n de amarrao natural de todo o bloco continental, plataforma essencial ao futuro expansionismo para o interior. A
Os detalhes da anlise do espao e da posio (duas categorias geopolticas de Ratzel) brasileiros em Golbery podem ser encontrados em vrias partes do GB; um resumo est em Mello (1997); Miyamoto (1981) trata tambm do assunto. A categoria geopoltica de espao estatal ou territrio vista por Golbery no como meramente reduzida ao espao fsico: ele pretende ter a a viso do espao poltico em toda a sua plenitude, incluindo extenso, forma e contextura; valor estimado; base fsica mais ou menos compartimentada em regies e sub-regies naturais distintas; englobando zonas j vivificadas pela ocupao efetiva de aglomeraes humanas - o ecmeno - como zonas mortas ou passivas; compreendendo um ncleo central, ncleos secundrios e marginais e o simples domnio; limites do territrio, as fronteiras polticas e principalmente as fronteiras de civilizao, zonas vitais, reas crticas de produo e de circulao, zonas-problemas. tambm o espao econmico com todas as suas diferenciaes regionais e, no menos, as regies culturais, as regies tnicas, as regies lingsticas, sempre que for ocaso (GB:34). A posio que a geopoltica estuda tambm no se limita posio matemtica, definida pelas coordenadas geogrficas, mas considera a situao no mbito mundial, no espao regional e no relacionamento inter-regional; aprecia a acessibilidade s correntes internacionais do trfego; o grau de dependncia em relao ao comrcio exterior; a proximidade ou afastamento relativamente aos grandes centros dinmicos; intensidade de presses externas; a maior ou menor continentalidade do espao; distingue zonas de frico, atuais ou potenciais, com os espaos polticos circunvizinhos; o dinamismo da osmose fronteiria e os caminhos naturais de penetrao; e eventualmente delimita plataformas de expanso dentro do territrio ou zonas de influncia no espao exterior (GB:35). Mesmo que no de forma totalmente direta - pois que o prprio fato local s pode ser bem avaliado vista de seu condicionamento externo -, pode-se admitir que o estudo do espao respeita geopoltica aplicada ao campo interno, com vistas integrao e valorizao do territrio nacional, ao tempo em que a estimativa da posio interessa mais geopoltica relativa ao exterior, com vistas defesa ou ataque, e cuja caracterstica principal a projeo do espao nacional sobre os espaos circunvizinhos. E a est porque a Geopoltica, se no fomenta os imperialismos, lhes abre o caminho a sonhos de conquista, domnio e expanso territorial (GB:35).
21

135
se vai ultimando, assim, aquela coincidncia fundamental dos espaos fsicos, demogrfico, econmico e poltico que ancora o poder no centro de base compacta, possibilitando-lhe atuar dinamicamente e em potncia. (GB:123)

E a temos duas das idias centrais da geopoltica golberyana: destino geopoltico (que, como veremos, tambm se apresenta no campo externo ao Brasil) e que ele reitera sempre, proclamando que o grande heartland central, pelas suas simples e desnuda expresso espacial e a posio superior que desfruta no conjunto como centro natural da estrutura inteira, traz inscrito em si mesmo um destino imperial manifesto, tanto mais que o desbravador, o povoador e, com ele, a civilizao e a tcnica todas viriam de terras remotas, atravs sempre do Atlntico (GB:114). A outra idia o expansionismo para o interior, sua propositura final, conforme teremos oportunidade de ver. No obstante os muitos elementos negativos da avaliao, Golbery acredita que
Evolumos, pois, - e no pouco - da tnue colonizao perifrica que caracterizava ainda o Brasil nos comeos do sculo XVII, para ocupao de ampla base de partida, favorvel manobra que teremos de realizar, da incorporao real do imenso domnio do interior, praticamente ainda o deserto, comunidade nacional. (GB:73)

Golbery destaca, veementemente, que o Brasil, dono de vasto territrio, hoje um pas territorialmente satisfeito. Tendo, pois, seu espao vital j conquistado, trata-se de ocup-lo e explor-lo devidamente, o que contribuiria para superar a realidade do profundo desequilbrio econmico e cultural entre as regies de seus diversos quadrantes, os vrios brasis em que realmente se desdobra o panorama continental brasileiro. Assim, reafirma, nossa geopoltica, ao menos nesse momento histrico, dever ser ainda uma geopoltica de expansionismo interior, de integrao e valorizao territoriais, sem quaisquer ressaibos de um imperialismo alm-fronteiras descabido e grotesco para quem dispe, dentro de seu habitat, de todo um territrio imenso a construir (GB:169-170). E, sob profunda influncia viannista, conceitua seus dois brasis, formados pelo ecmeno (espao valorizado efetivamente pela humanizao), pouco mais que um tero do pas, e a oeste, o simples domnio, o Brasil marginal, inexplorado em sua maior parte, desvitalizado pela falta de gente e de energia criadora (GB:43) - a deixa para a retomada a proclamao de Mrio Travassos: Para Oeste!,
o qual nos cumpre incorporar realmente Nao, integrando-o na comunidade nacional e valorizando a sua grande expresso fsica hoje ainda quase completamente passiva. Tarefa sem dvida gigantesca que est a exigir um planejamento cuidadoso e a longo prazo e que consumir largos anos para sua realizao, alm de recursos vultosos de toda ordem. (GB:43)

E arremata, atestando a urgncia e importncia vital do cumprimento desta propositura, sob pena de perda de territrios, de integrao nacional e, pois, atentado sobrevivncia:
o vcuo de poder, como centro de baixas presses, atrai de todos os quadrantes os ventos desenfreados da cobia. E, portanto, se larga a empresa e sobremodo difcil, impe-se pelo menos dispor sem tardana, na cintura dessa imensa rea vazia, postos avanados de nossa civilizao, convenientemente equipados para que possam testemunhar a posse indiscutvel da terra, espera dos melhores dias de uma integrao e valorizao contnuas e totais, estejam em condies de opor-se a quaisquer veleidades aliengenas de penetrao. (GB:43).

136 No campo interno, a problemtica geopoltica resume-se na incorporao efetiva e vitalizao de todo o amplo domnio, em grande parte ainda vazio do homem e da civilizao fecundadora, conforme atesta Golbery (GB:47, 92 e 60-61). Olhando o mapa do Brasil com o objetivo de auscultar a fiel mensagem inscrita no modelado eterno do habitat imenso que nos coube humanizar e valorizar, a fim de decifrar as proposituras de nosso destino geopoltico, Golbery consegue a proeza de entrever, em seus largos traos, a estratgia portentosa de toda uma herclea integrao territorial, de nossa imperiosa projeo continental e da no menos imperativa segurana contra ameaas externas alm-mar (GB:3). Sua anlise da posio do Brasil conclui que o pas est magistralmente bem situado para realizar um grande destino to incisivamente indicado na disposio eterna das massas continentais, quando lhe soar a hora, afinal, de sua efetiva e pondervel projeo almfronteiras (GB:213).
A Evoluo do Brasil

Como prenncio dessa construo, Golbery analisa, h uma evoluo favorvel do pas em todos os campos. No setor demogrfico, em particular, registra-se um crescimento quase explosivo da populao (GB:72-73). Mesmo que persista o xodo rural e as migraes internas sejam descontroladas, esta dinmica migratria surpreendente e trepidante e entrecruzada (GB:110) vai vivificando e humanizando nosso territrio - avana para o interior, lenta, desordenada, irregular, mas constantemente, a vaga vitalizadora do povoamento (GB:72-73), a atestar a ausncia real de barreiras internas decisivas e a consolidar, mal ou bem, a prpria unidade nacional pela aculturao incessante e niveladora e a miscigenao indiscriminada (vista esta, portanto, como positiva para o forjamento da identidade nacional, ao contrrio de alguns pensadores conservadores do incio do sculo) (GB:110). O que precisamos a todo custo quanto antes deter o xodo rural desordenado, vinculando o homem terra do interior pela pequena propriedade, reduzindo o retardo cultural que ope o serto cidade, e diversificando em base mais slidas a nossa economia 22 (CN:47; PE:497). Para que no se percam tais positividades, preciso evitar que cresa desmesuradamente a populao, sobretudo nas j grandes concentraes de pobreza, que existem no pas, sobretudo por meio da educao e informao (PE:503). No campo econmico, tm sido ultrapassadas, embora nunca de todo, as formas prcapitalistas, a partir das mais rudimentares - a caa e a pesca primitivas, a simples coleta dos frutos da terra, a lavoura itinerante e predatria com todo o seu complexo da queimada - /.../, pastoreio extensivo e rude, /.../ amplos latifndios de monocultura patriarcal baseada no trabalho servil, minerao aventureira e vida (GB:71). Com isso, a sociedade brasileira vaise elevando a tipos estruturais mais modernos pela industrializao intensiva, no confinada aos meros bens de consumo mas alicerada na grande indstria de base e voltada constituio de um mercado interno de grandes e inegveis potencialidades amplas, carente de produtos de toda ordem. Bem assim, s possibilidades da concorrncia no mercado internacional, ainda que problemtica no incio (GB:71). Pode-se visualizar, desse modo, a superao da situao semicolonial do Brasil, pela superao das formas de produo semicoloniais:
interessante notar que em nenhum momento, como atentou Ferreira, o general prope a nacionalizao da propriedade - seria uma incoerncia com seu pensamento, pois esta, para Golbery, est ligada necessariamente supresso da liberdade. J o tipo de reforma agrria que prope aparece a seus olhos como indispensvel manuteno do equilbrio poltico no campo - indispensvel, portanto, SN (Ferreira, 1984:589).
22

137
No mais a exclusiva produo de bens primrios, de matrias-primas e outros produtos de exportao, sujeita a todas as escorchadouras imposies do exterior e jungidas inteiramente nos moldes das clssicas plantations, aos interesses imediatistas de empresrios e capitalistas estrangeiros. /.../ No mais a secular renovao de ciclos econmicos - o pau-brasil, o acar, o ouro, a borracha, o caf agonizante - conduzindo afinal estagnao e ao desalento, aps um perodo, mais ou menos efmero, de euforia e riqueza. (GB:72-73)

Temos, pois, em andamento um desenvolvimento econmico-social,

em ritmo embora ainda inferior ao que seria desejvel, dependente sem dvida, em muito, de contribuies macias do exterior, mas que apresenta j, de fato, aprecivel grau de autonomia em certas reas progressistas de elevados ndices de poupana, amplas economias externas, forte propenso para investir; e, demais, um indiscutvel esprito imperialista, alerta e vigoroso, muitas vezes at mesmo incontido e extravagante, que bem traduz uma herana duradoura daqueles insuperveis desbravadores de todo um continente intacto. (GB:109-110)

Golbery no ignora que desenvolvimento econmico acelerado, na nsia de queimar etapas, pode gerar, por si mesmo, as mais srias crises, entre as quais cita problemas creditcios, de divisas, inflacionrios, as sucessivas greves, a insatisfao e motins (GB:72). Ademais, pode agravar os pontos de estrangulamento do sistema: dficit energtico, deficincia dos servios urbanos, falta de tcnicos qualificados, deficincia de mo-de-obra. Se no bastasse,
onera, terrivelmente, as sempre reduzidas disponibilidades de um equipamento de circulao constantemente em forte retardo com relao demanda; aumenta cada vez mais o alarmante descompasso entre uma agricultura atrasada, de rendimento ainda muito baixo, e uma indstria em promissor avano, a despeito mesmo dos gravames iniciais que lhe tolhem a produtividade; aumenta, dramaticamente, o perigoso desnvel entre as vrias regies do pas, exacerbando os contrastes e criando zonas marginais e reas-problemas - uma periferia nitidamente subdesenvolvida em derredor de alguns ncleos vigorosos de elevado ritmo de expanso econmica. (GB:72-73)

Tais sacrifcios so, contudo, imprescindveis para que, pelo desenvolvimento da industrializao, possa-se alcanar afinal, uma libertao mais efetiva em relao aos grandes centros externos, mveis do dinamismo econmico mundial e contribuintes, eles mesmos, para tal desenvolvimento libertrio. Isso tambm vir em benefcio da unidade e da coeso nacionais, e na articulao cada vez mais slida das diversas pores do amplo domnio, mesmo as mais distantes ou mais excntricas, a ncleos propulsores radicados no prprio territrio e, sobretudo, orientados por genunos propsitos nacionais (GB:72-73). J No campo psicossocial, a despeito dos enormes tropeos e de muitos erros de orientao, a educao se avigora, ampliando-se seu mbito de difuso e distanciando-se ela de um academicismo de ostentao para formas mais tcnicas e bem mais produtivas, em geral (GB:72-73). Ocorre um enrijecimento benfico da estrutura psicossocial da nao, pois, mesmo que o problema social seja ameaado de agravamento pelas interminveis crises poltico-econmicas (que cristalizam interesses e conscientizam as classes de sua concorrncia), amenizado pelo sentimento profundo da unidade nacional, pelo orgulho pela terra e pela gente e pelo esprito nacionalista, ainda que seja este sem dvida muito flor da

138 pele e o seu tanto primrio (GB:72-73). Tambm melhoram os padres sanitrios, embora no to ampla e rapidamente como seria necessrio. E, lamenta o general, como no poderia deixar de ser, numa sociedade que se caracteriza por to elevado ndice de mobilidade social, decai visivelmente o tono de moralidade sob a presso das vivas dificuldades econmicas, da competio desenfreada, do ritmo agitado e cansativo da vida e no menos ao estmulo de muita propaganda perniciosa (GB:72-73). No campo poltico, parte a espetacular sucesso de formas institucionais adotadas at chegar atual, repblica federativa com regime representativo presidencial, e por sob a dinmica partidria, o estilo to criticado e to criticvel da vida pblica, funcionamento precrio do sistema opinio pblica-governo e propaganda, a ingerncia to poderosa e sutil do poderio econmico, o que realmente vale assinalar, considera o general, o inegvel processo de maturao poltica das massas, cada vez mais adensadas nos grandes e mdios centros populacionais e, dia a dia, graas penetrao dos mltiplos meios de comunicao e difuso de idias, mais atentas e mais participantes da vida pblica (GB:72-73). Passaram histria o velho senhor de engenho e a figura tradicional do coronel do interior. Bem assim, as aristocracias rurais cederam inteiramente a dianteira a novas elites - a burguesia comercial, os bacharis, os bares industriais - e estas, por sua vez, sofrem desde logo presses de baixo e crescente infiltrao em suas fileiras de elementos egressos de outros estratos, num meio cambiante ao extremo. Sob os influxos de imposies econmicas e de mutaes de origem externa, o iderio poltico tambm se renova aceleradamente. E, em concluso, segundo uma perspectiva a longo prazo, o progresso no sentido de uma democratizao efetiva da vida poltica nacional sensvel e inegvel (GB:72-73).

Soberania e Desenvolvimento

Assim, conclui Golbery, ainda que traga os inmeros problemas citados, a industrializao pela ajuda externa a nica sada possvel: que ao Brasil, na hora presente, s h uma escolha: engrandecer-se ou perecer (GB:62). E, no obstante a tarefa por realizar seja de ingente vulto, ela necessria para que o Brasil venha a ser, afinal, o colosso do Sul. A isso no se poder chegar com recursos prprios. parte a descrio feita acima da realidade nacional, Golbery levanta, nos comentrios Conferncia da ESG, em 1980, o problema dos recursos para o desenvolvimento, j que o Brasil um pas de poupana muito baixa. E pergunta: Poderemos ns, com recursos prprios - qual o Baro de Mnchhausen /.../ desenvolver o pas? Sim. Mas vamos levar demasiado tempo. E passar por sacrifcios muito grandes! Nesse caminho, ademais, corre-se ainda o risco de no atingir o sucesso, pois que muitos desses recursos [potenciais] perigaro permanecer eternamente como potenciais inexplorados, como j bem o esto, afinal, aprendendo as naes que se deixaram embalar, anos, dcadas a fio, com as glrias ftuas do ttulo, to pomposo quanto inexpressivo, de pas do futuro. (PE:384) A alternativa para ele lgica: A poupana externa que nos venha de outras companhias - transnacionais ou no - estrangeiras talvez represente o acrscimo crtico ao crescimento do Produto Nacional Bruto. Assim, completa, que o Brasil essencialmente depende - e quanto! - do restante do Ocidente e, em particular dos EUA, para o seu comrcio, o seu desenvolvimento econmico, o seu progresso tcnico e cultural, at para a sua prpria segurana fato que para ns, brasileiros de hoje, no exige discusso maior (GB:248). A concluso consoante:

139
A poupana estrangeira, em certa medida, indispensvel para que asseguremos o prprio processo do desenvolvimento, a fim de atender quela preocupao /.../ do atendimento necessrio aos novos contingentes de jovens que vm ao mercado de trabalho. Ento, sem o auxlio da poupana externa, o pas poder se desenvolver; outros tm tentado isso e conseguido, mas com sacrifcios muito grandes e num prazo excessivamente longo para a premncia de nosso caso. (PE:515-516)

Para chegar a efetivar a condio brasileira de superestado potencial, o progresso da tecnologia ser de grande valia, multiplicando-nos as possibilidades e a capacidade de atuao, desde que nos esforcemos em conhec-lo em primeira mo e assimil-lo sem retardos (GB:134). Assim, no que se refere ajuda externa, h que levar em conta a transferncia de tecnologia, porque, realmente, a engenhosidade brasileira ser capaz de inventar muitas coisas, mas certamente vai ter uma dificuldade desnecessria para inventar coisas que j esto inventadas. Se for possvel adquiri-las a preos mais baratos do que o de um esforo longo e penoso, ser sempre melhor. Mas isso no significa descurar totalmente da produo de tecnologia, mas inserir-nos em nichos em que nossa experincia seja maior e a concorrncia internacional seja menor: Cuidemos daquilo que especfico da nossa economia autctone - tecnologia do sisal etc. (PE:515-516). Como bem observou Rago,
O bonapartismo, como se pode observar, se transforma, assim, numa espcie de gestor do capital atrfico subordinado ao imperialismo. A defesa castelista do capitalismo associado, uma vez reconhecida nossa posio hierarquicamente inferior aos EUA, perpassa inteiramente a ideologia da autocracia burguesa. Gestor que atende tambm aos chamados e desejos do capital estrangeiro. Alis, repise-se esta dimenso, precisamente aqui se deu a ruptura democrtica com a plataforma nacional e popular defendida pelo nacionalismo trabalhista em nosso pas. (Rago, 1998:143)

A iluso necessria do bonapartismo era que os capitais externos seriam por ns utilizados para conseguir autonomia. Com a ajuda externa, conseguiramos assentar as bases de nossa independncia do exterior. Golbery tinha alguma conscincia dessa contradio. Ele mesmo retoma a frase de Washington: Deveis sempre ter em vista que loucura o esperar uma nao favores desinteressados de outra; e que tudo quanto uma nao recebe como favor ter de pagar mais tarde com uma parte da sua independncia. A perda da soberania nacional foi uma das preocupaes dos estagirios da ESG, em 1980. Inquietava-os especialmente a questo das transnacionais e seu domnio sobre certos setores da economia. Golbery ponderava:
o que me parece que h setores em que, de forma alguma - segundo o princpio que est na Constituio e que todos obedecemos - h setores em que, absolutamente, no se deve permitir a ingerncia estrangeira e h outros que se podero liberalizar mais ou menos. Alis, entendo que isso varivel com o tempo. Algum setor hoje com tal caracterstica, poder, amanh, deixar de ser setor altamente nacionalizado; poder admitir a presena estrangeira. E vice-versa. (PE:515-516)

De forma que, conclua ele, Se conseguirmos manter sob controle nacional - quer dizer, inteiramente fora de presses excessivas de centros de deciso exteriores - alguns dos setores-chave da economia, teremos garantido a soberania do pas (PE:515). Alm disso, a

140 permisso da entrada de capitais estrangeiros e empresas transnacionais era instrumental seu objetivo era dar-nos condies para andar com nossas prprias pernas. Uma das implicaes desta quadra mundial de interdependncia entre os Estados, afirmava o general, a rediscusso do conceito de independncia e de soberania. Afinal,
Nada do que um Estado resolva ou deixe de fazer no cenrio internacional ou mesmo no prprio mbito interno - j que estas ltimas atividades necessariamente tero sempre repercusses exteriores, por enfraquecerem ou fortalecerem, em maior ou menor grau, o seu prprio potencial nacional - poder ser realmente indiferente, nos dias de hoje, a outro Estado qualquer. E note-se que uma nao determinada /.../ se encontra a defrontar-se com mais de oitenta outros Estados, tantos quantos compem a atual configurao poltica do universo e os quais se apresentam, alm do mais, constituindo largas malhas de interesses mais ou menos solidrios atravs de organizaes das mais diversas. (GB:149)

Se abre espao para intervencionismos de todos os tipos, essa argumentao no significa, contudo, para Golbery, que a soberania e a independncia no sejam mais atributos necessrios ao Estado. Pelo contrrio: apesar das j citadas indicaes de que est por vir uma nova ordem internacional, dominada por entidades multinacionais, a soberania ainda uma das mais claras exigncias desse organismo poltico que o Estado, e sem a qual no pode sobreviver.
A sobrevivncia sem qualquer dose aprecivel de autodeterminao ou soberania seria, em verdade, no mundo dos Estados-Naes que ainda hoje nos rodeia, apesar de certos sintomas indiscutveis de transmutao em processo de todo o sistema, uma contradio insolvel ou mera fico jurdica; algo sobreviveria sempre, por certo, mas nunca um Estado (GB:168).

Assim, mesmo considerando que h uma gradao bastante extensa na amplitude desse atributo do Estado, Golbery conclui que nem por isso, entretanto, podemos considerlo sequer como menos essencial (GB:168). A contradio permanente entre o nacionalismo geopoltico e a opo pelo ocidente, Golbery busca resolv-la afirmando que o Estado soberano admite, ele prprio, autolimitaes maiores ou menores de seu poder de soberania, em benefcio da paz ou da cooperao internacionais, quando no mesmo em face de certas graves ameaas de sua total destruio (GB:168). Mesmo assim, argumenta, se a generosidade materna da natureza cedeu ao litoral brasileiro e ao nosso promontrio nordestino posio to favorvel para a defesa do ocidente, essa trunfo brasileiro e exclusivamente por ns deve ser empregado, por mais que estejamos, sem tergiversaes, dispostos a utiliz-lo em benefcio de nossos irmos do norte, a que nos ligam tanto e to tradicionais laos de amizade e de interesses, e em defesa ao mesmo tempo da civilizao crist, que a nossa, contra o imperialismo comunista de origem extica (GB:52). Ainda sobre a questo da soberania, lembremos que, segundo Golbery, o nacionalismo sadio existente em toda a Amrica Latina fez com que antigos receios quanto aos EUA fossem abolidos, gerando ressentimentos contrrios: que estes no ofeream a ajuda necessria. Esse nacionalismo ressentido, Golbery tambm o porta, magoado de que os EUA no leiam nas imutveis massas continentais o destino grandioso do Brasil, que eles deveriam ajudar a construir. Constatar que os EUA negociam a peso de dlares e auxlios vultosos de toda espcie e at custa de certos recuos, mudanas de opinio e arranhes em seu prestgio, o apoio e a cooperao de povos ou indecisos ou francamente hostis apenas aumenta a mgoa,

141 que o general tenta superar propondo que faamos valer os trunfos altamente valiosos de que dispomos, para obter os meios necessrios ao exerccio de uma misso e um dever que decorrem da prpria terra que nossos avs desbravaram e defenderam mesmo com seu sangue contra o invasor intruso de eras passadas (GB:52). Como o preo do poder a responsabilidade, podemos, de um lado, utilizar-nos dos trunfos geopolticos de que dispomos para a defesa da civilizao ocidental, mas, de outro lado no podemos deixar de aceitar, e aceit-los conscientemente, os nus decorrentes deles, pois de forma alguma poderamos abrir mo de deveres que so exclusivamente nossos, como o da integridade do territrio nacional e no menos o da segurana do Atlntico Sul ao qual esto vinculadas a nossa prosperidade e, sem dvida, a nossa sobrevivncia (GB:52). Pois, se o Brasil subsistir - e se subsistir em segurana poder bem ser destino seu recolher a herana de cultura de uma civilizao portentosa que se tenha esvado na loucura da guerra, cumprindo-lhe ento, por sua vez, aquela misso histrica que tem cabido a muitos outros povos no evolver impassvel dos sculos, em que todos so /.../ como corredores olmpicos passando de mo em mo o facho luminoso da vida. (PE:219)

Por esses mesmo trunfos, o mundo comunista lana olhares de cobia para o litoral brasileiro e para a Amaznia. Por isso, se alguma ameaa h a esses territrios, frise-se que no bem tal ameaa motivada por ambies colonizadoras que aqui pensem encontrar uma fonte de matrias-primas essenciais e, ao mesmo tempo, um mercado para seus produtos manufaturados (GB:51).
Para tal fim a estaria a frica, tradicional campo de luta dos imperialismos colonialistas, muito mais prxima, menos rebelde por certo, rica de matrias-primas valiosas e no protegida nem por um fosso to respeitvel como o Atlntico, nem por interesses vitais de uma superpotncia como os EUA. O que nos ameaa hoje, como ontem, uma ameaa no dirigida propriamente contra ns, mas sim indiretamente contra os Estados Unidos da Amrica, a qual, mesmo se a entendermos subestimar /.../, nem por isso resulta insubsistente (GB:51).

Os trunfos citados pelo general: a importncia estratgica do Nordeste brasileiro - no para ns que nada queremos do outro lado do Atlntico, mas para os EUA, como plataforma de ataque ou simplesmente de salto por sobre o oceano ao continente africano (GB:51), das matrias-primas - mangans, areias monazticas - e da embocadura amaznica com seu tampo da Maraj, para no falar na sua economia no competitiva e da larga e comprovada tradio de amizade. Se j dispomos de tudo isso, e se entre os hispnicos nossos vizinhos recrudesce um antiamericanismo disfarado de terceira posio, aproveitando-se do envolvimento dos EUA no alm-mar, o Brasil tem superiores condies de
negociar uma aliana bilateral mais expressiva que no s nos assegure os recursos necessrios para concorrermos substancialmente na segurana do Atlntico Sul e defendermos, se for o caso, aquelas reas brasileiras to expostas a ameaas extracontinentais, /.../ mas uma aliana que, por outro lado, traduza o reconhecimento da real estatura do Brasil nesta parte do Oceano Atlntico, posto um termo final a qualquer poltica bifronte e acomodatcia em relao a nosso pas e Argentina, ambas naes, por exemplo, igualmente aquinhoadas, contra todas as razes e todas as evidncias, em armas de guerra naval. (GB:50-51)

142 Reconhecimento da real estatura do Brasil nessas paragens, principalmente em face da Argentina, eis a exigncia. No -toa que os pases da Amrica do Sul realizem, no obstante as desconfianas e litgios que os separam, uma composio de interesses e uma conjugao de esforos, quando se trate de satisfazer todas as ambies e todos os ressentimentos custa do vizinho extico, rico demais hoje em virtude de seu imperialismo prepotente, que nem pode aproveitar devidamente suas terras imensas e cuja vontade se julga andar um tanto alquebrada pela contribuio em alta dose de sangue escravo inferior... (GB:53) E Golbery quer esquecer o fato indiscutvel, por ele mesmo revelado: para os norte-americanos, que tanto aprenderam dos ingleses e de sua fria e calculadora poltica de equilbrio de poder, interessa justificar e manter e acentuar mesmo, se possvel, uma indiferenciao igualitria e niveladora desta paisagem sul-americana, afinal to prxima e onde no lhes ser agradvel contar, por certo, com vizinhos poderosos e talvez irrequietos (GB:175). A soberania pode ser objeto, ento, de escambo, desde que seja uma barganha leal. Assim, conclui o general, o direito de utilizao de nosso territrio, seja para o que for, um direito exclusivo de nossa soberania que no devemos, de forma alguma, ceder por um prato de lentilhas (GB:52, grifos nossos). O equivalente para os trunfos geopolticos brasileiros dado pela frase: Tambm ns podemos invocar um destino manifesto, tanto mais quanto ele no colide no Caribe com os de nossos irmos maiores do norte... (GB:52).

Desenvolvam o Brasil, Salvem o Mundo!

O Destino Bate Porta! H que decidir agora: engrandecer-se ou perecer. O primeiro caminho, embora difcil, oferece a possibilidade de uma grandiosidade futura - que depende, em primeiro lugar, de uma deciso prpria, do Brasil. Mas Golbery tambm chama responsabilidade as Naes do centro capitalista. Afinal, adverte o general, nesta quadra de agourentos e apocalpticos sismos sociais (GB:185), o planeta no pode mais acolher, ao lado de naes abastadas, poderosas e prepotentes, a misria chocante e, sob todos os aspectos, altamente perigosa, da humanidade que se agita e sofre e procria com altssima taxa de natalidade, nos rinces menos favorecidos da terra (GB:206-207). Faz-se necessrio e urgente que o mundo capitalista, do qual representamos, ns todos da Amrica Latina, simples elos mais dbeis, tome conscincia afinal, de que no haver como combater, com segurana de xito, as promessas do milnio comunista a par das indiscutveis e at espetaculares realizaes no domnio da cincia, da tcnica e da produo material de riquezas seno de um jeito: oferecendo, aos povos todos subdesenvolvidos da Terra, uma alternativa diversa entre a estagnao e a misria generalizada, de um lado e, do outro, a industrializao, o progresso material, o poderio nacional, alcanados embora estes, em regime totalitrio, custa de sacrifcios tremendos (GB:248). Mas, ressalta ele, tais propsitos tm de ser sinceros e diferenciados com relao s prticas existentes:
E, para faz-lo, nunca bastaro as prdicas mais ou menos insinceras sobre as virtudes inexcedveis e sem jaa da livre empresa, a doutrinao cnica em favor da eterna benemerncia do capital estrangeiro, as teses cedias sobre as vantagens inigualveis de um livre-cambismo j defunto e as maravilhas da diviso internacional do trabalho, as apregoadas vocaes agrcolas ou as repetidas demonstraes da perfeio admirvel do mecanismo automtico do mercado livre.

143
Contraproducentes sero, afinal, os emprstimos a conta-gotas, que cada vez mais jungem o devedor bolsa vida e vontade fria dos prestamistas, o oferecimento de armas quase sempre j obsoletas com que se busca agradar aos militares, a distribuio de comendas para afagar vaidades, de recompensas mais sonantes para pagar dedicaes, de tiradas oratrias para embair os incautos e o apoio, ostensivo ou mascarado, a todas as ditaduras vigorosas, a todos os potentados e a todas as corrupes. (GB:248)

Estas so prticas velhas conhecidas e falidas. Neste caso, segundo o general, importa dar uma grande inconcussa demonstrao da vitalidade e poder de criao do prprio regime democrtico, no rpido soerguimento de povos subdesenvolvidos a um nvel elevado de bemestar, de riqueza e de progresso (GB:248-249). Por meio desta experincia em vasta escala, indiscutvel e inspiradora, se patentearia para o mundo que nesse regime, sem sacrifcio das liberdades pblicas, sem opresso da personalidade humana, sem escravizao nem trabalho forado nem campos de concentrao nem massacres brutais, possvel romper o ciclo deprimente do subdesenvolvimento econmico e levar um povo plena realizao de seus destinos histricos (GB:248-249). De maneira concludente e sugestiva, estaria atestado que as crticas e os ataques contra o capitalismo explorador e mesquinho, a rapinagem sem freio das grandes empresas internacionais, a odiosa prepotncia do imperialismo expropriador de bens e escravizador de naes no mais se coadunariam, em verdade, com uma realidade evolvida a planos muito mais altos de reconhecimento da solidariedade humana e do dever de cooperao entre povos (GB:248-249). De forma que, adverte Golbery, um desafio crucial foi lanado s prprias convices democrticas de todos os povos do Ocidente, o que significa testar sua capacidade de sensibilizar e atrair, para a rbita de seu exemplo de vida as novas naes do sudeste asitico, a frica recm-desperta e inclusive a Amrica Latina, ainda mais ou menos indecisas todas, em sua imaturidade poltica, entre a formao poltica democrtica e a ideologia totalitria do marxismo (PE:410). E, ressalta ainda o general, o ritmo do desenvolvimento de cada pas, relativamente ao contexto internacional de que faz parte, haver sempre que atender, sob pena de trgica insolvncia, ao princpio capital da proporcionalidade do poder ao vulto das responsabilidades e compromissos assumidos (GB:108). Ora, raciocina o general, nenhuma experincia dessa ordem, mais veemente e mais decisiva, se poderia levar a efeito do que a requerida, hoje, pela grave crise econmica e social que sufoca e esteriliza os esforos desmesurados das populaes latino-americanas (GB:248249).
Mais resguardada de interferncias por parte do bloco comunista, mais prxima dos centros propulsores do dinamismo norte-americano, dotada de uma boa base territorial e de imensas riquezas ainda quase inexploradas, dispondo de um potencial demogrfico e satisfatrios ndices de mobilizao para tarefas de reconstruo, profundamente crist, animada de ideais democrticos e criada no seio da prpria cultura ocidental, a Amrica Latina /.../ constitui vasto e promissor campo para uma tal experincia, generosa sem dvida, mas tambm de alta significao para a defesa dos postulados, dos valores, das crenas da civilizao toda do Ocidente que, atualmente, j se apresenta quase desnuda na sua esterilidade e na sua capacidade de atrao, ante a arremetida pertinaz e desagregadora da ideologia marxista. Redimindo os povos irmos desta Amrica, o Ocidente redimiria, pela esperana, os povos todos da Terra. E as sereias comunistas cantariam ao vento insensvel suas promessas blandiciosas... (GB:248-249, grifos nossos).

144 Desta Amrica Latina, complementa o general, o Brasil , em si mesmo, uma expresso e um espelho (GB:248-249). Neste vasto imprio americano, composto por zonas de elevado progresso e dinamismo trepidante, a par de regies retardadas e nitidamente marginais, o Brasil - num estgio de desenvolvimento pouco mais que incipiente - est em condies muito propcias para sentir, perfeitamente, o drama de toda a incontvel humanidade subdesenvolvida, da prpria Amrica, da frica imensa, das regies Sul e Sudeste da sia, at a Indonsia. Poder, por isso,
servir de intrprete fiel a anseios que bem capaz de medir, com a certeza de defender causa justa, em benefcio da prpria Civilizao Ocidental cuja misso capital, no momento, a de oferecer, a todos esses povos desesperanados e frustrados, uma alternativa mais risonha do que a apresentada pelo comunismo. (GB:197-198)

Alm do mais, o Brasil, pelo prestgio de que j goza no continente e no mundo, pelas suas variadas riquezas naturais, pelo seu elevado potencial humano e, alm disso, pela sua inigualvel posio geopoltica ao largo do Atlntico Sul tem importncia toda especial para as imperiosas necessidades de defesa do Ocidente e dispe de todas as condies para tornar-se um dos mais especiais locus de aplicao de uma espcie de plano Marshall latinoamericano em cujo espelho as naes subdesenvolvidas de todo o mundo podem-se mirar e que redunde em um aumento do desenvolvimento latino-americano (GB:246). E, uma vez que integrante, com parcelas bem significativas de seu territrio e de sua populao, de todas as reas geopolticas do continente, o desenvolvimento do Brasil teria reflexos imediatos no conjunto da Amrica do Sul (GB:135). O Brasil se arvora, pois, em representante dos interesses de toda a Amrica Latina e, mais, de todos os povos subdesenvolvidos da Terra, como vimos. Estaria, em troca, oferecendo s potncias ocidentais os meios de que dispe para a defesa do Ocidente. Seu objetivo final, ao contrrio do que absorveram alguns intrpretes (especialmente, a teoria do sub-imperialismo), era tornar-se uma potncia de nvel mundial, pois apenas as potncias desse nvel esto, e mesmo assim temporariamente, livres de grandes antagonismos. importante, pois, reter que a condio do pas como satlite, key country etc. tinha um carter instrumental, um fim bem mais alto. Baste exemplificar com a citao abaixo:
Para uma dada nao qualquer, tal oscilao s vir a cessar, em verdade, quando, pelo seu maior desenvolvimento e seu franco progresso, se haja ela distanciado tanto das demais, que perigos e ameaas, nas circunvizinhana poltica, sejam afinal completamente arredados por longo prazo, seno mesmo em definitivo. Em tal caso, porm, a dinmica das relaes internacionais o que tem demonstrado que essa nao emergir, propriamente, do crculo regional restrito em que dantes se afirmara e crescera, passando a integrar agora outro mundo mais dilatado, dentro do qual - a menos que ocupe, desde logo, singular posio pelo seu potencial efetivo - se ver de novo submetida ao constante ritmo de uma mesma oscilao entre ameaas prximas e perigos distantes, agora apenas ampliada numa escala maior. S como potncia realmente mundial, poder ela escapar, por algum tempo, a essa pendular atrao de seus primordiais interesses de SN. Mas, ainda assim, no esqueamos que a paz ecumnica nunca pde durar indefinidamente (GB:170).

De qualquer forma, Golbery no se preocupa em consultar os ditos pases da periferia do capital a ver se concordam com que o Brasil os represente. Parte do princpio de que, se h

145 discordncia, ela supervel, visto que no divergncia de propsito, de objetivos, de fins, mas apenas diferenas quanto definio de prioridades, de escala e de ritmo de execuo - fatores fundamentais na efetivao de medidas para soluo definitiva do problema do subdesenvolvimento continental, cuja definio representa a distncia que vai do insucesso quase certo ao xito quase de todo garantido(GB:249-250). Mas, reitera, O reconhecimento pelos pases lderes do Ocidente, em particular pelos EUA, da justeza e solidez de nossos anseios depender, entretanto, grandemente de ns (GB:249-250). Talvez o que falta deveras seja o conhecimento, por parte dos dinmicos criadores da grandeza norte-americana, de que exista de nosso lado uma vontade decidida de aceitar plenamente as responsabilidades que nos cabem, impulsionando uma positiva capacidade realizadora. (GB:52-53) Por isso preciso argumentar, discutir, esclarecer, com provas, com dados positivos, com propostas concretas (GB:249-250). J admitindo que a liderana do Brasil no assim to natural e automaticamente vista pelos outros pases do subcontinente, afirma que se faz necessrio, tambm, convencer todas as outras naes latino-americanas, igualmente interessadas, em uma campanha coordenada e ativa, bem como dar demonstraes claras de nossa prpria capacidade de realizao, estabelecendo prioridades em relao aos problemas internos dos que mais nos afligem e barram o franco caminho do progresso e solucionando-os efetivamente, embora de maneira parcial em funo da escassez de recursos (GB:249-250). E mais: a honestidade de nossos propsitos, deve ser atestada pela aceitao consciente de sacrifcios, da mesma forma que a firmeza de nossa conduta o ser pela austeridade indiscutvel na ao. preciso, sobretudo, testemunhar, evidncia, que somos, no s por origem, mas ainda mais por convico, povos deste mundo livre do Ocidente que estaremos prontos a defender, sem tergiversaes covardes nem subterfgios desonrosos, quando soar a hora extrema da prova (GB:249-250). E sua defesa dos povos subdesenvolvidos termina com a afirmao altrusta de que, para ns, povos desta outra Amrica ainda embrionria e em luta com a misria e a fome, o penhor supremo da redeno o senso das responsabilidades prprias na defesa do ocidente (GB:249-250).
E ser, pois, com uma nota de confiana nos destinos do Brasil que /.../ poderemos concluir, salientando que, panregio em si mesmo, nosso pas, capaz de articular, sob sua liderana caracteristicamente democrtica, as unidades muito menores e de potencial bem mais reduzido que o cercam, est fadado no s a subsistir galhardamente nesse mundo de amanh em que tantas outras soberanias podero vir a soobrar ou diluir-se, mas ainda a firmar-se, no contexto internacional, como campeo das virtudes crists e dos inigualveis padres democrticos em que, a despeito de passageiros repdios, sempre desejou e desejar viver e progredir, para engrandecer, por sua vez, a cultura da humanidade. (GB:215)

Projeo do Brasil no Exterior

Se a geopoltica interna propugna a valorizao do espao nacional, Golbery assinala que ela no concorda plenamente com a geopoltica externa, voltada a questes de segurana e defesa. E retorna ao velho dilema - o do antagonismo entre as foras continentais e as atraes martimas, que ele considera importantssimo para nosso futuro. Isso porque, se de um lado est toda a vasta hinterlndia nacional espera de vitalizao, do outro est o mar, no um mar qualquer, mas o oceano mais vivificado do mundo que a porta dos impulsos mais fortes de renovao e de progresso, do qual dependero sempre a nossa

146 prosperidade e, talvez em grau muito maior no futuro, a nossa segurana. No nosso litoral favorvel, o dominante promontrio nordestino e as avanadas de Fernando de Noronha e Trindade abrem grandes possibilidades de prosperidade e libertao das foras estrangeiras (GB:61). A respeito da projeo do Brasil no cenrio internacional, o general adverte:
no basta uma deciso desde j assentada, com vistas a possveis emergncias vindouras. A ao futura pede, necessariamente exige, a atividade presente, prolongamento indispensvel daquela. E, pois, deve o Brasil projetar-se desde j, no cenrio do mundo, o que, no entanto, s poder realmente fazer, sem cair no ridculo dos blefes, das chantagens e das simples bazfias, se assentar, definitivamente, com coragem as grandes linhas de sua atuao posterior em fases de crises internacionais, mais difceis de prever, e assumir claramente responsabilidades e deveres perante toda a humanidade. (GB:195)

Se o Brasil for capaz, em sua ao para projetar-se no cenrio do mundo, de assentar essas grandes linhas de sua ao posterior e assumir essas responsabilidades, Se a isso nos abalanarmos, se disso formos realmente capazes, atestando uma maturidade poltica que j tanto tarda, ento no s a ONU, no s a OEA, se nos oferecem como quadros naturais em que exercer nossa capacidade de atuao, mas ainda outros campos esto a a atrair nossa esclarecida e construtiva interveno. (GB:195) Estes campos seriam: em primeiro lugar, o mundo luso-brasileiro. Portugal e suas colnias ocupam, nesse mundo ao largo da Amrica do Sul, situao invejvel que nunca ser demais ressaltar, e a defesa da segurana de suas colnias, alm de significar tambm a nossa segurana, uma responsabilidade portuguesa que devemos estar prontos a reconhecer e assumir a qualquer momento, como nossa tambm (GB:195-197). E o Brasil deve ajudar a desenvolver esta conscincia por algo ainda difusa, de uma comunidade luso-brasileira /.../, conscincia essa que dia a dia s faz se afirmar, passados, de h muito os naturais ressentimentos da prpria campanha de independncia e as desconfianas subseqentes (GB:70). Ampliando a esfera de solidariedades que devemos conscientemente admitir, atravs de laos embora menos apertados (GB:195-197), o sentimento de uma genuna identidade cultural com o mundo latino e catlico de alm-mar (GB:70), este mundo catlico, mais vasto ainda, constituindo uma terceira esfera de nossa solidariedade internacional. O quarto arco seria o mundo subdesenvolvido, cujas dores o Brasil est em condies de sentir (GB:195-197). E eis a quatro grandes amplas janelas que o Brasil encontra abertas, de par em par, para o vasto universo ao largo de sua fachada atlntica (GB:195). A atuao nesses campos, porm, no pode fazer esquecer o esprito do panamericanismo, alicerado no reconhecimento de uma unidade continental que os perigos externos ameaadores desse nosso sculo conturbado pe, cada vez mais, na categoria das realidades indiscutveis, e que triunfa diante de inmeras e graves divergncias, de agudos choques de interesses e dos receios, no de todo infundados, por certo, contra interferncias descabidas e prepotentes dos mais fortes (GB:70). No caso da Amrica Latina, e da Amrica do Sul em particular, cabe ao Brasil estreitar os laos de cooperao internacional, participando, ativa e generosamente, da soluo dos graves problemas com que se defrontam os povos das diversas reas geopolticas internacionais de que participamos, em todas, com amplas parcelas de nosso territrio e significativo contingente humano(GB:94). (A Argentina, de sua parte, participa apenas de uma das reas geopolticas do subcontinente, segundo Golbery.)

147 Ser, pois, no quadro de uma geopoltica da paz, criadora e afirmativa que o Brasil em face de um planeta tumultuado, ainda mais, pela misria e pela fome do que por ambies expansionistas e de domnio que, alis, existem de fato e no so, de forma alguma, nem desprezveis nem remotas, assumir o papel que lhe cabe no concerto das naes em prol da rendio de toda essa periferia econmico-social de que ainda participa (GB:94). No caso de atuao sul-americana em paragens extracontinentais, pondera, deveremos nos conformar, natural e realisticamente, a um papel de simples foras auxiliares no conjunto operacional do ocidente - e, para isso, nos devemos conscienciosamente preparar (GB:194). Porm, lembra o general, a Amrica Latina no est imune a ataques solertes, insurreies e guerras revolucionrias ditados pela insidiosa ideologia comunista, tanto mais de temer quanto mais perdure a estagnao econmica, a corrupo, a misria, a ignorncia e a fome. No caso dessa hiptese
mais permanente, mais premente, muito mais possvel, no s no devemos contar com qualquer apoio exterior, antes, tudo devemos fazer para que este venha a ser inteiramente desnecessrio, evidentemente, suprfluo e at mesmo injustificado, a fim de que a ocupao estrangeira, sob pretextos quaisquer ou quaisquer razes, por imponderveis que sejam, no se torne o preo desmesurado de uma segurana que no tenhamos sabido manter como homens. (GB:194)

Contra essa hiptese mals, impe-se, sem tardana, prevenir as elites descuidadas, egostas e fartas, fortalecer as massas desprotegidas e inermes, ao calor desta sbia e nobre cultura crist que a nossa, e sobre a base indispensvel de um desenvolvimento industrial, que no repudie, porm, os valores espirituais (GB:194). Diante disso, em prioridade decrescente, Golbery destaca como diretrizes indeclinveis para uma geopoltica brasileira adequada atual poca agitada e cataclsmica:
Combater o subdesenvolvimento nas reas mais retardadas e no restante do continente, cooperar na imunizao tambm dos jovens pases africanos infeo fatal do comunismo, estar vigilante e atento a qualquer progresso sovitica na direo dessa frica atlntica onde se situa a fronteira avanada e decisiva da prpria SN, colaborar por todos os meios em mant-la totalmente livre do domnio comunista (GB:137).

Em primeiro lugar, pois, deve o Brasil preparar-se, com os outros pases da Amrica Latina, para acudir qualquer dos vizinhos, na defesa de um inigualvel patrimnio comum, contra quaisquer investidas exticas (GB:194). Afora as j citadas, Golbery refere-se ainda participao brasileira
na manuteno dos basties defensivos do mundo ocidental que, l longe na Europa, no Sul asitico e na Austrlia, garantem a nossa relativa tranqilidade e toda a nossa segurana. Tudo isso, claro, sem prejuzo de estar em condies de repelir ameaas mais diretas, necessariamente no muito potentes nem tampouco duradouras, no caso de uma guerra global. (GB:194)

148

5 - ATUALIDADES DA AMRICA LATINA

Golbery v progresso nos Estados velhos-novos da Amrica Latina,
apesar de suas mltiplas e desconcertantes sobrevivncias feudais, do lamentvel e sempre vicejante esprito de hegemonia militarista, do caudilhismo ainda exuberante, da inautenticidade poltica de sua intelligentsia, do absentesmo acovardado de sua classe mdia, das extremas vulnerabilidades de uma opinio pblica pouco articulante e, ainda por cima, de toda forma cerceada, das inmeras carncias e debilidades srias de um subdesenvolvimento j crnico e apenas superado em pequenas ilhas de progresso surpreendente e excepcional (GB:100101).

Esses pases latino-americanos, por meio de provaes, de sacrifcios, de lutas e de crises sucessivas, prosseguem, paralelamente, na conquista de mais altos padres culturais e polticos e em busca de revigoramento de suas tambm dbeis estruturas econmicas (GB:73). Velhos litgios cedem espao a um sentimento de solidariedade continental e A Amrica Latina toma conscincia de fato de sua inegvel expresso geopoltica, no s potencial mas j atual. Tambm bem certo que amadurece, neste hemisfrio, uma conscincia de solidariedade continental, estimulada pelos ideais generosos de alguns verdadeiros estadistas pan-americanos, ao calor de cujas convices se iriam desfazendo, aos poucos, desconfianas e incompreenses vrias, mal fundadas no desconhecimento suspicaz e em descabidas tradies avoengas de razes antigas, mas exticas (GB:173). Tomando j conscincia de sua inegvel expresso geopoltica, as naes latinoamericanas esquecem-se dos antigos receios gerados pela sombra projetada pelos EUA. Dissenses velhas e tradicionais desconfianas vrias esbatem-se aos poucos e afirma-se um sentimento de solidariedade continental, sob o calor das prticas de uma boa vizinhana compreensiva e sem subterfgios (GB:73). Os EUA, elevados estes, agora, categoria de superpotncia lder reconhecida do Ocidente e de responsabilidades, portanto, ampliadas a uma escala universal, so alvo de ressentimentos de outra ordem: reclama-se hoje, nesse particular, uma ajuda e uma assistncia que, em verdade, nem mesmo seria sequer considerada em pocas mais distantes (GB:73). Isso possvel porque tais pases tm um passado j largo de independncia poltica bem consolidada e esto conscientes de suas reais possibilidades e, j agora, de suas deficincias principais, que so muitas e que oferecem vasto campo sua capacidade criadora e a seus anseios de engrandecimento e progresso (GB:100-101). Elas atingem, assim, afinal, o nvel superior de um nacionalismo j amadurecido, que no mais se coadunar com a corruptora histeria demaggica, um nacionalismo sadio que deve inspirar, motivar, permear toda elaborao poltica, toda concepo estratgica, toda formulao geopoltica (GB:100-101). Golbery pondera, porm, como j vimos, que, se por um lado o hemisfrio todo no se pode livrar da sombra possante da grande nao irm do norte, por outro lado os imperativos de segurana e no menos os de seu gigantismo econmico obrigaram os EUA, a sarem do seu tradicional isolacionismo e a se projetarem alm-mar na Europa e na sia. Tal afastamento corresponde ao afrouxamento de naturais tenses intracontinentais, encontrando paralelo no abrandamento de uma doutrina de domnio como sempre foi, a despeito de quaisquer subterfgios, a tese de Monroe, substituda agora por uma doutrina multilateral de segurana coletiva; na instituio de uma poltica de boa-vizinhana em

149 substituio do big stick; na prtica de intervenes mais discretas, a diplomacia dos desembarques de fuzileiros cedendo diplomacia menos ostensiva do dlar - no reconhecimento enfim de que a unio voluntria e a paz continentais so pr-requisitos indispensveis a planos muito mais altos e, no momento, inadiveis impostos por exigncias da segurana prpria, embora expressos por vezes em termos menos realistas de uma nova cruzada pela civilizao da Europa. (GB:49-50) Por outro lado, como se fora de uma criatura transcendental dominadora de nossas vidas a que poderamos chamar destino geopoltico, o meio fsico sul-americano ganha, em Golbery, caractersticas de uma inquestionvel realidade plasmadora, condicionando, atravs dos obstculos que apresenta e das vias de acesso que propicia, como dos recursos de toda ordem que, aqui e acol, oferece, a expanso forosa dos vrios plos de irradiao humana. Esta ampliou-se numa talvez desordenada mas, nem por isso, menos efetiva e vigorosa ocupao paulatina do habitat imenso que a onda explosiva de um crescimento demogrfico incomparvel febrilmente e sem cessar impulsiona (GB:173). No esperaremos muito tempo at que as vagas de povoamento, provindas de quadrantes diversos /.../ acabem por defrontar-se e cerrar mais intimamente umas contra as outras, no restante de uma fronteira que hoje pouco mais ainda do que a mera definio cartogrfica.
A histria de todos os povos a est para testemunhar que, se o contato intenso favorece, atravs do intercmbio mutuamente vantajoso e do conhecimento recproco, a amizade e a colaborao internacionais, essas s se vm, em geral, a concretizar aps um perodo, mais ou menos dilatado, de conflitos e choques, de lutas ostensivas e surdas pela hegemonia, /.../ processo atravs do qual se acabe por atingir uma situao de estabilidade mais durvel e profcua (GB:173).

Assim, tudo leva a crer que problemas novos de antagonismos surgiro, que velhas controvrsias venham a ressurgir ao acicate de interesses reais, polarizem-se de fato as tenses ainda imprecisas em zonas de frico atualmente submersas no grande vazio do indiferentismo bilateral provocado pela distncia e pelo deserto (GB:173). De outra parte, no obstante os progressos apontados por Golbery nas naes latinoamericanas, os problemas socioeconmicos persistem, possibilitando aos comunistas a tentativa de penetrar na couraa pan-americana, mediante a explorao hbil e sempre oportuna dos justos anseios de maior independncia efetiva e nvel de vida superior das massas espoliadas e ainda quase indigentes do submundo subdesenvolvido da Amrica (GB:130-131). De forma que, para tais naes, seus problemas de segurana oscilam entre dois plos: por um lado, perigos de origem extracontinental que, ao se manifestarem mais ntidos, mais urgentes, reforam a prpria solidariedade de todo o hemisfrio e fazem esquecer, quase de todo, as preocupaes relativas a sempre possveis conflitos no interior do prprio continente (GB:170). E estes conflitos intracontinentais, reincidentes a cada amenizao das ameaas externas e conseqente enfraquecimento da solidariedade continental. Felizmente, na atual conjuntura conflituosa, a ameaa de origem extracontinental sobreleva, inegavelmente, a quaisquer outras, no exigir, de nossa parte, ateno redobrada e um esforo deliberado e viril de segurana coletiva (GB:176). Para isto contribui inclusive o descontentamento comum das naes sul-americanas, em face da mal disfarada indiferena atual dos EUA, absorvidos estes nos atos que julgam decisivos para alm do Atlntico e do Pacfico, pois interessa aos latino-americanos pr, no seu devido relevo, o carter alarmante e premente desse perigo de origem extracontinental remota, capaz, entretanto, de atuar a distncia com eficcia nunca vista (GB:176-177).

150

A Amrica Latina e a Guerra Fria

Os povos subdesenvolvidos do continente, por suas vulnerabilidades especficas e seu reduzido potencial de defesa, como por sua prpria posio geopoltica, esto expostos a um perigo tanto mais premente quanto menos violenta a forma de que se revista. Hipteses terrveis como a guerra localizada ou a geral No nos devem fazer esquecer, de forma alguma, os perigos mais imediatos (GB:238-239). A Amrica do Sul j se encontra sob ameaas muito mais palpveis que podem concretizar-se em surtos insurrecionais com o fito de implantar um governo favorvel ideologia comunista e que se constitua em grave e urgente perigo unidade e segurana das Amricas e de todo o mundo ocidental (GB:192194). Em relao a tal perigo, pois, necessita a Amrica do Sul premunir-se, a fim de que, efetivando-se ele, no nos vejamos na contingncia desprimorosa, humilhante mesmo, e, alm do mais, prenhe de riscos incalculveis, de recorrer a foras alheias para que venham, em territrio nosso, acudir nossa incapacidade, assim comprovada, de manter as instituies democrticas e livres e o estilo de vida cristo pelos quais sempre optamos (GB:192-194). Para precaver-se diante de tais perigos, j vimos, deve-se alertar as elites e fortalecer o povo nos ideais ocidentais. mas tomando tambm medidas prticas:
Tamponadas as brechas de nordeste e sudeste pelas avanadas da Islndia, de Aores-Madeira-Canrias e de Prncipe Eduardo-Crozet-Kergueln-Mac Donald; e prolongada a segurana, no Pacfico, ao arco balizado pelas ilhas Hava, as Esprades, as Marquesas e as da Sociedade - a fortaleza sul-americana permanecer quase que inexpugnvel, se, contra a infiltrao quinta-colunista, a agresso disfarada em subverso insuflada de longe, a penetrao ideolgica emoliente e sutil, forem tomadas, com oportunidade e sabedoria, justas medidas preventivas e, se necessrio, repressivas (GB:82 e 184, grifos nossos).

E, lembre-se, h sempre o imperativo geopoltico de manter as terras do hemiciclo interior em mos amigas, mas tambm a Amrica do Sul precisa desenvolver-se e criar riquezas e realizar plenamente os seus destinos nesta poca de vertiginoso progresso das tcnicas e das armas, arrasadoras ou insidiosas, de ataques realizados por sobre distncias intercontinentais (GB:83 e 184). De forma que, insiste muitas vezes o general, no bastar nunca porfiemos simplesmente em manter o territrio nacional e a circunvizinhana imediata na Amrica do Sul imunes infiltrao persistente e mistificadora do comunismo ou a menos provveis ataques diretos, dificilmente montados em fora ou repetidos no tempo. Estar atentos e dispostos a cooperar, se e quando necessrio, na defesa, a todo custo, dessa frica de oeste e do sul que nos fica fronteira e de onde um inimigo ativo nos poder diretamente ofender, dominando-nos as comunicaes vitais do Atlntico centro-meridional (GB:85-87), imperioso. Tendo essas diretrizes previamente definidas, no precisaremos tomar graves decises sob impulsos emotivos ocasionais, no caso de uma evoluo mais sombria da conjuntura internacional (GB:83 e 184). Porque mesmo que estejamos vivendo, como hoje vivemos, na Amrica do Sul, um ambiente de cordialidade sincera e muito bom entendimento entre todas as Naes, no estamos livres de que episdios noutras regies mais incertas do planeta possam desbordar nossas reas perifricas e, portanto, influir decisivamente nas deliberaes que tenhamos que tomar (PE:303). Se o teor dessas decises j est previamente definido e

151 de acordo com o que proclama o general, muitos problemas estaro superados no que tange, por exemplo, a intervenes latino-americanas em pases vizinhos, a ajuda ao vizinho para se livrar do vrus do comunismo. No que se refere a antagonismos que surjam eventualmente no interior do continente, o Brasil, de qualquer deles, nunca se dever alhear, intervindo para preveni-los, limit-los ou abrand-los, seno faz-los cessar, dentro do objetivo fundamental de assegurar a paz, reforar a unidade continental e manter o statu quo. Mas, esclarece o general, Somos uma nao territorialmente realizada, satisfeita com o patrimnio que detemos custa de antigos conflitos a que no nos pudemos furtar, e de uma atuao diplomtica perseverante e clarividente; e, pois, no haver por onde partilharmos ou sequer transigir com qualquer descabido esprito de revisionismo das fronteiras (GB:134). De sua parte, o Brasil no tem a temer, na regio amaznica, a curto prazo, um ataque ou um conflito com os vizinhos. Mas o indiferentismo e o abandono que tm sido nosso tratamento nas fronteiras mortas daquela regio a deixa aberta a penetraes dissimuladas, coisa que bem se pode admitir para breve, que j est mesmo acontecendo segundo notcias que nos chegam daqui e dali, e que poder acarretar no futuro conseqncias desastrosas. Mesmo acreditando que numa tal situao levaramos no fim a melhor, o general pondera que o que mais vale antes evitar que remediar, sobretudo quando s se poder remediar com processos drsticos e talvez sangrentos, de forma que o tamponamento efetivo dos caminhos naturais de penetrao, que de alm-fronteiras conduzem Amaznia necessidade urgente, para que, como dissemos, possamos levar a cabo, quando oportuno, tranqila e metodicamente, um plano de integrao e valorizao daquele imenso mundo ainda perdido (GB:54-55) A responsabilidade brasileira no desenvolvimento conjunto da Amrica do Sul no poderia ser maior, uma vez que integrante, com parcelas bem significativas de seu territrio e de sua populao, de todas as reas geopolticas do continente (GB:135). O que pode fazer nesse sentido tornar cada vez mais pondervel a nossa presena a, com a contribuio mais imediata do potencial dinmico do ncleo central brasileiro, distendido para mais junto delas, especialmente pela circulao (rodoviria, martima, area e fluvial), exigncia tambm do prprio mercado comum que se estabelecia na poca, grande passo projetado no sentido de maior unidade continental e de um desenvolvimento econmico mais acelerado e coerente. O Brasil no se poderia retardar em cooperar, decididamente, na criao dessa base indispensvel (GB:135). A penetrao na vizinhana latino-americana de populaes brasileiras (os brasiguaios so o melhor exemplo), o contrato para a construo de Itaipu, os portos e as estradas todos voltados integrao com os nossos vizinhos, durante a ditadura, foi denunciada como a realizao dos propsitos imperialistas ou subimperialistas existentes no iderio golberyano 23 .

6 - O COMPLEXO TREMENDO DA SEGURANA NACIONAL

23

Ver Schilling (1981) e Mello (1997).

152 A questo da segurana, como vimos, estrutura todo o pensamento de Golbery: em verdade, por oposio insegurana eterna do homem, um dos seus pilares. Segurana nacional , na definio do general gacho, o grau relativo de garantia que o Estado proporciona coletividade nacional, para a consecuo e salvaguarda de seus Objetivos, a despeito dos antagonismos internos ou externos, existentes ou presumveis (GB:155-156). No caso do Brasil atual, a SN estaria ameaada - o que uma ameaa sua prpria existncia. A esta tambm estariam condicionados o desenvolvimento e o progresso nacionais, pois Somente em segurana poder alcanar o Brasil os supremos objetivos em que se traduzem as aspiraes e os anseios do povo e somente em segurana poder mesmo sobreviver a Nao, coesa, ntegra e prspera, num planeta que ambies desmedidas de poderio e domnio ameaam submergir num caos imprevisvel de sangue, de suor e de lgrimas. (PE:219) Num mundo convulsionado e agnico como o de hoje, na viso de Golbery, a SN extrapolou em muito os crculos estreitos militares aos quais antes estava restrita antes do advento da guerra total e
permeado aos poucos o domnio todo da poltica estatal, condicionando quando no promovendo e determinando todo e qualquer planejamento, seja de ordem econmica, seja de natureza social ou poltica, para no falar dos planos propriamente militares, tanto de guerra como de paz. Nem de outra forma poderia ocorrer, desde que a guerra deix[ou] de ser um hiato trgico num mundo de tranqilidade e de paz (GB:23).

Em outros termos, A Estratgia, arte dantes reservada maestria dos chefes militares na conduo de suas campanhas, tendo atingido a maioridade, alou-se a planos muito mais elevados, caracterizando-se, afinal, na aplicao como uma verdadeira poltica de SN (GB:25). Que , porm, e qual o elemento novo desta segurana nacional? A discrepncia est, justamente, na distncia que separa defesa nacional de segurana nacional. Preservar a sobrevivncia do Estado e a dos valores permanentes da Sociedade por ele representada so condies de Segurana. Opor-se aos detratores daquelas condies uma ao legtima de Defesa. (Paixo Neto, 1988:247). Ou, mais sumariamente: A defesa um ato. A segurana, um estado. Ningum vive, permanentemente, defendendo-se (Brasil, 1983:36). Da mesma forma que a insegurana, portanto, a segurana um estado de esprito. Essa percepo de uma nova caracterstica pretendeu defender a entrada dos EUA na II Guerra, uma vez que no havia ameaa real a seu territrio. Justificava-se que a guerra no fosse um ato de defesa, mas como propriamente um estado, para resguardar a segurana da nao no s no espao, como tambm no tempo, contra qualquer ameaa, mesmo que longnqua. uma noo, portanto, que parte de pr-conceitos. Seu objetivo no apreender efetivamente a nova realidade, mas justificar um determinado posicionamento j existente antes dele - no , pois, um conceito que busque pensar a realidade, mas simplesmente justific-la. Aquela preservao da sociedade e de seus valores constitui, justamente, o basilar ONP. Sendo assim, poltica de SN aquela que visa a salvaguardar a consecuo dos objetivos vitais permanentes da Nao, contra quaisquer antagonismos, de modo a evitar a guerra se possvel for e empreend-la, caso necessrio, com as maiores probabilidades de xito (PE:22). Note-se, pois, com Comblin, que o culto da segurana s pode favorecer os privilegiados e justificar o statu quo - do momento em que pretende manter o que e busca

153 obliterar os conflitos sociais, paralisa qualquer mudana e pe-se a servio dos poderosos (Comblin, 1980:229). Uma vez que formulam e conhecem mais profundamente, alm de ter os meios tcnicos para tal, o agente garantidor da SN so as elites que, aperfeioando e adaptando s contingncias brasileiras, pela aplicao objetiva, as tcnicas de planejamento que Golbery sugere, cumpriro - assim o esperamos e confiantes - a tarefa primordial que lhes cabe: garantir a todo custo a Segurana Nacional nestes tempos dramticos de tremenda e sem igual instabilidade do mundo (PE:219) Os setores da elite que tm a obrigao de tomar as atitudes necessrias para que se preserve a SN so aqueles que esto no controle do aparelho estatal.
Nesse campo de primacial importncia para a vida da Nao, do qual dependem, na verdade, a sua sobrevivncia, sua integrao cada vez maior, a prosperidade do povo e um slido prestgio internacional e onde se joga na paz contra a tragdia da guerra, e na guerra contra a misria da derrota, no h de fato - nem poderia haver em s conscincia - quem negue no Governo a responsabilidade total e, pois, o direito incontestvel de agir, orientando, mobilizando, coordenando, para tal fim, todas as atividades nacionais. (PE:22-23)

De forma que Temos, assim, na cpula da Segurana Nacional, uma Estratgia, sendo esta arte de competncia exclusiva do governo sob cuja coordenao esto todas as atividades polticas, econmicas, psicossociais e militares que visam concorrentemente consecuo dos Objetivos nos quais se consubstanciam as aspiraes nacionais de unidade, de segurana e de prosperidade crescente (GB:25). Para que no subsista nenhuma dvida, Golbery fala claramente da expanso de poderes e suas conseqncias - dentro da constitucionalidade - como resultado lgico da atuao de um governo responsvel diante de risco para a segurana:
E a concentrao maior de poder que da resultar, em mos dos delegados da vontade do povo, a ampliao da esfera de atribuies reservada ao Poder Executivo, as restries impostas aos prprios direitos de cidadania na forma prevista nos textos constitucionais so corolrios iniludveis de toda situao de reconhecida gravidade para a Segurana Nacional - a aplicao de tais corolrios comportando, como evidente, grande margem de flexibilidade que lhes permita convenientemente adequar-se ao progressivo aumento ou relaxao das tenses externas ou internas que se estejam a manifestar. (PE:22-23)

Esto previamente justificadas, com tais argumentos, as atitudes que o bonapartismo por em prtica. Mas persiste um problema: e se os delegados da vontade do povo passam a defender, por meio da concentrao de poderes, seus prprios interesses contra aquele mesmo povo - em outros termos, se os poderes comissariados em nome da SN passam a ser utilizados em prol da segurana do prprio governo? Afinal, Golbery no explicita, em nenhum momento, um meio de garantir que os objetivos para cuja consecuo se volta toda a nao sejam, realmente, objetivos nacionais, e no da elite que os formulou. por isso que, muita vez, Na prtica, a DSN resultou na segurana do governo contra a nao (Pereira, 1988:270).
Segurana Versus Bem-Estar

A SN, parmetro inelutvel, exige uma inverso das prioridades usuais, impe o nus tremendo de uma economia visceralmente destrutiva aos anseios normais de

154 desenvolvimento e bem-estar que animam a todos os povos, em especial os que esto relegados a padres de vida pouco elevados ou inelsticos (GB:12). um novo dilema - o do Bem-Estar e da Segurana, mais dramtico porque no h como fugir necessidade de sacrificar o Bem-Estar em proveito da Segurana, desde que esta se veja realmente ameaada. Os povos que se negaram a admiti-lo aprenderam, no p da derrota, a lio merecida (GB:14; PE:369-370). No se pode, pois, deixar de planejar-se tendo em conta a questo da SN, pois este um condicionamento imposto pela prpria realidade, independentemente das vontades, um imperativo da hora que passa. Os sacrifcios que imponha, como verdadeiros prmios de um seguro contra a derrota, tero sua contrapartida efetiva na preservao atual e futura da soberania nacional, na garantia da liberdade do povo e na certeza de que poder ele livremente eleger o estilo de vida que mais o seduzir. (PE:24) Mas Golbery faz uma ressalva, que o diferenciar, por fim, dos militares da linha dura: os sacrifcios tm limites - h que ponderar nas doses do remdio amargo:
Mas, se h um mnimo de segurana a atingir ou a manter, em funo da natureza e o valor dos antagonismos em presena, de acordo com o maior ou menor grau de probabilidade da guerra que se tem a temer, e conforme a urgncia e gravidade do perigo que se h de vencer, existe, tambm, por outro lado, um mnimo de bem-estar que se precisa assegurar, de qualquer forma, em permanncia. (GB:14; PE:369-370)

Por isso, diz ele, geraes efetivamente conscientes, so aquelas que se conseguem compreender profundamente a questo da SN - e compreender quer dizer tambm solucionar bravamente, sem apostasias covardes e contra o ignorantismo criminoso ou a displicncia ablica, os dilemas superiores do Bem-Estar em face da Segurana, do Progresso em face da Segurana, da Segurana em face da Liberdade (PE:376 e 419). Isso porque no se pode indefinidamente exigir todo o esforo de uma sociedade sem lhe dar nada em troca. Ele vai explicar isso com a famosa Lei dos Rendimentos Decrescentes:
medida que se sacrifique o bem-estar, em proveito da segurana, canalizando recursos daquele para esta, o primeiro decresce, enquanto a segurana aumenta mais que proporcionalmente, a princpio; a partir de certo ponto, porm, sofre a curva acentuada inflexo, e os acrscimos, agora cada vez menores, acabaro por se anular de todo, quando se haja alcanado o que, teoricamente, corresponde ao mximo de segurana compatvel com a limitao imposta pelos recursos disponveis. Reduzase, ainda mais, o bem-estar, e a prpria segurana se ver, agora, decrescida. Segurana e bem-estar e, em plano mais elevado, segurana e Liberdade so dilemas decisivos com que sempre se viu defrontada a humanidade, nunca, porm, como hoje, em circunstncias to dramticas e to imperiosas, assim. E, como dilemas da vida social, ambos, em ambos se manifesta uma bipolaridade no exclusiva, cada um dos termos opostos dependendo, em verdade, do outro pela funo anteriormente descrita. (GB:14; PE:370)

Essa lei exige, pois, o reconhecimento de que, relativamente a cada um dos campos considerados - ainda para setores dentro destes - existe um mnimo irredutvel de potencial especfico, de componente especfica do Potencial - que, se no satisfeito, praticamente anular toda e qualquer significao de excedentes porventura existentes nos demais campos ou setores (PE:398). Em outros termos, ainda:

155
A segurana estrutura-se, pois no pode deixar de estruturar-se, sobre uma base irredutvel de bem-estar econmico e social, nvel abaixo do qual se ofender a prpria capacidade de luta e de resistncia da nao, incapacitando-a, afinal, para o esforo continuado e violente que dela a guerra exigir. Esta bem um domnio em que s foras morais cabe papel saliente, e no h moral de um povo que se possa manter indene alm de certos limites de exausto e de desnimo. (GB:14; PE:370, grifos nossos.)

E da a concluso reconfortante:
No se acredite, pois, que o sacrifcio da Liberdade possa conduzir sempre a um aumento de Segurana. Alm de certos limites, a Liberdade sacrificada determinar, de sua parte, perda vital da Segurana. Os escravos no so bons combatentes - eis a lio que tiranias aprenderam, no decurso dos sculos. Estejamos certos de que defender a Liberdade tambm, graas aos cus, alicerar em slidas bases a Segurana Nacional. E, se no o fora, miservel seria a vida do soldado nos Estados modernos (GB:15; PE:371).

O carter instrumental que assumem o prestgio internacional, o bem-estar e a prosperidade como objetivos a alcanar no negado nem mascarado pelo general. Embora sejam valores em si mesmos genunos que devem ter um nvel mnimo indispensvel, seja autodeterminao do Estado, seja mesmo integrao efetiva de seu corpo social (GB:69), eles s encontram guarida na poltica nacional na medida em que interessem, com elevado grau de prioridade, ao fortalecimento do Potencial Nacional, em particular ao enrijecimento do prprio moral da populao (GB:102).

Segurana e Desenvolvimento

Essa argumentao de Golbery, ligando desenvolvimento a segurana, sofreu influncia de um consultor adjunto de SN de Kennedy, W. W. Rostow, citado diversas vezes tanto no Geopoltica quanto no Planejamento. Rostow e um grupo de intelectuais ligados Casa Branca haviam trabalhado uma teoria do desenvolvimento econmico que elaborava e tornava academicamente respeitvel a vinculao entre segurana interna e desenvolvimento econmico nos pases menos desenvolvidos (Huggins, 1998:118). De acordo com Rostow, a maior exposio de um pas em desenvolvimento ideologia comunista ocorria no enquanto este pas fosse subdesenvolvido propriamente, mas quando comeasse a se industrializar, com a presena do capital estrangeiro. Nesse momento de decolagem, havia a mais alta possibilidade de desordens e cooptao pelo inimigo. A teoria da modernizao desse autor asseverava que sem ordem civil no poderia haver desenvolvimento econmico e progresso social. Porm, o ciclo de desordem social, infiltrao comunista e insurreio violenta, presente em toda parte, podia ser encurtado atacando-se as razes econmicas e sociais do descontentamento dos cidados. Era preciso criar ou impor a ordem para prover as condies de desenvolvimento econmico nessa etapa de decolagem (Huggins, 1975:118). Em linguagem bastante abstrata, Golbery considera que, num mundo em vertiginosa ascenso para novos e revolucionrios padres, o fato de o Brasil ser uma nao em crtico e ainda rudimentar estgio de seu desenvolvimento econmico e social o caracteriza como um pas potencialmente agredido, pois vivemos numa era cujo dinamismo potente, incoercvel, fatal, ameaa transbordar por todo o planeta, submergindo, numa pseudomorfose aviltante e

156 sufocadora, todos os ncleos de civilizao e cultura ainda no amadurecidos e suficientemente resistentes (GB:170). Em seguida, porm, ele desce um pouco mais prpria realidade, mostrando o subdesenvolvimento econmico como uma falha potencialmente muito perigosa na poltica de SN. por isso que, entre os ON, so destacados os que dizem respeito persistncia do Estado-Nao: sobrevivncia no espao e no tempo, autonomia e o prprio desenvolvimento econmico e social, j que, para as sociedades humanas, assim como para todos os organismos de maior ou menor complexidade, a estagnao a morte (GB:11; PE:366). por isso, tambm, que, contra a ideologia comunista, impe-se prevenir as elites e fortalecer as massas na cultura ocidental, mas h que faz-lo sobre a base indispensvel de um desenvolvimento econmico e social que no repudie, porm, os valores espirituais para cingir-se aos simples padres materialistas (GB:194). Segundo o general gacho, no que concerne aos pases subdesenvolvidos, sua grande, seno a maior, vulnerabilidade reside na fraca acumulao de poder efetivo de que podem dispor, limitadas suas potencialidades estratgicas, principalmente, pelos mesmos fatores estruturais ou conjunturais, tanto endgenos como exgenos, que lhes tm tolhido o ritmo ascensorial indispensvel para que atinjam afinal a maturidade do pleno desenvolvimento econmico (PE:24-25). Nestes pases, destaca, o planejamento da SN e sua execuo honesta e objetiva concentrar-se-o necessariamente na acelerao do ritmo de crescimento econmico, embora sem descurar, paralelamente, do reforamento dos fundamentos de outra ordem do Poder Nacional - e concorrero decisivamente para o solucionamento, em mais breve prazo, do problema crtico e angustiante do desenvolvimento da economia (PE:24-25) Um planejamento assim orientado para o bem-estar e a justia social poderia destinar, de um total sempre limitado de capital disponvel, maior volume de investimentos aos setores que mais diretamente interessem quele binmio, sem a atribuio de quaisquer recursos a inverses de exclusivo carter estratgico-militar e, portanto, no reprodutivas de fato (PE:24-25). Mas, destaca o general, as necessidades da SN e as do progresso e bem-estar do pas no so assim to discordantes.
Afora as amplas possibilidades de inverses em muitos empreendimentos bivalentes, sempre preferveis no caso de paridade dos outros fatores, o que mais est a Segurana Nacional a exigir, num pas do tipo do nosso, sobretudo a ampliao de nossa infra-estrutura econmica, a reduo dos pontos de estrangulamento de nossa economia to desordenadamente volvida, a atenuao pelo menos dos graves desequilbrios existentes entre seus diversos setores bsicos - objetivos todos, por certo, de alta essencialidade em qualquer programa de desenvolvimento econmicosocial. (PE:24-25)

Como percebeu Rago, o que se delineia, com tal projeto, nada menos que a construo de uma democracia dos proprietrios com a tutela permanente de um Estado armado para conseguir um mximo de eficincia, tanto econmica, ideolgica e militar, o que importaria tambm na acelerao do processo de modernizao capitalista brasileiro, sincronizando todos os setores da vida social, por meio de uma elite dirigente capacitada ao projeto de Grande Potncia. Assinala, pois, da o seu vnculo com a tradio conservadora no Brasil, a incapacidade da estruturao de uma sociedade industrial complexa sob o molde do liberalismo. (Rago, 1998:306) Veremos mais detalhes ao tratar do planejamento do fortalecimento do potencial nacional.

157

7 - PLANEJAMENTO DA SEGURANA NACIONAL

Planejamento Especfico da Segurana Nacional

O planejamento da SN, vaticina o general, nada menos que um imperativo da autodeterminao do povo, da soberania que deste povo faz, realmente, uma Nao, da integrao slida de todos os grupos sociais que habitam um territrio, do qual faz uma Ptria, da prosperidade tambm que, em certo grau, constitui a alternativa nica que se oferece estagnao e morte das civilizaes e das culturas - um imperativo, pois, da prpria sobrevivncia nacional (PE:312 e 421-422). So razes, pois, aparentemente acima de qualquer questionamento - fazem obscurecer e calar as objees que se possam fazer, justa ou injustamente, ao planejadora do Estado (PE:312 e 421-422). Para Golbery, S um poderia ser o agente no planejamento da Segurana Nacional, como na conduo das aes estratgicas - o Estado, representado por um governo que se vale, para tanto, de todo o Poder Estatal (PE:325 e 439). E, mais especificamente, deve ser um Estado com executivo forte, pois um Estado de governo centralizado se acha, de fato, melhor aparelhado para conduzir aes decisivas, bem coordenadas, no exterior (CN:21), de modo que a predominncia do Poder Executivo sobre os outros realmente um fenmeno universal na quadra de hoje (PE:511-512). Aos que desconfiam do planejamento estatal e, por prudncia ou timidez, querem reduzir o intervencionismo governamental ao mnimo possvel, ele recomenda que se limitem ao mbito da SN e nesse campo planejem e realizem o quantum satis de desenvolvimento econmico, de progresso social, de racionalizao administrativa, a poltica externa, o preparo militar do pas, com a convico de que estaro contribuindo para demonstrar insofismavelmente, num campo em que a interveno estatal plenamente se justifica, que o planejamento de fato o nico mtodo capaz de conduzir com eficincia a poltica de uma nao (PE:25). E, mais ainda, assim se estar aprendendo a faz-lo dentro de moldes democrticos (PE:25). O planejamento governamental representa, segundo o general gacho, um risco - um risco calculado. Ele chama a ateno para o fato de que riscos muito maiores devem ser considerados nas questes relativas SN, envolvendo a vida ou morte da Nao, a independncia ou subjugao de um povo, o futuro de geraes e geraes, motivo pelo qual a o planejamento a cargo do Estado , sem contestao, imprescindvel (PE:312-313),
E tanto mais quanto mais desprotegida a Nao; mais perigosos e fortes e traioeiros, os seus inimigos; mais graves, as vulnerabilidades prprias; mais fraco, o Potencial Nacional em relao aos provveis agressores; mais prementes, as Hipteses de Guerra a considerar, nesta poca, principalmente, em que modernos engenhos atmicos de destruio em massa ameaam o mundo das naes subdesenvolvidas de rendio incondicional e inglria. (PE:312-313)

Alm do fortalecimento do potencial nacional (de carter geral, no especfico, como vimos), e da mobilizao nacional (que se refere a uma determinada hiptese de guerra mais provvel), as atividades do planejamento da SN so exercidas em outros campos, referentes especificamente ao prprio planejamento da aplicao efetiva do Poder, na consecuo, ou simples salvaguarda que seja, dos ON (PE:391-392). A poltica de SN recobre todos os momentos da existncia de uma nao, transmutando-se em trs expresses intercambiantes:

158 uma estratgia da paz, uma estratgia de guerra e uma estratgia da guerra fria, menos definida e incisiva e, portanto, bem mais complexa e ardilosa. Planej-las, no tempo apropriado para execut-las com a mxima probabilidade de xito - imperativo que se no poder, de forma alguma, desafiar impunemente (PE:391-392). Em resumo, Informao, em primeiro lugar - Fortalecimento do Potencial que se transmude, se e quando necessrio, em Mobilizao Nacional - incansvel Aplicao do Poder, tanto na paz como na guerra - definem as trs esferas do planejamento - da ao, sem dvida tambm - no campo necessariamente integrado da Segurana Nacional. (PE:391-392) No planejamento da SN A complexidade intrincada do contexto social, indivisvel de fato e cerrado sobre si mesmo, nas quais variveis independentes no existem, obriga a uma seleo mais ou menos arbitrria das que se tomaro, no ponto de partida do planejamento, como fatores dominantes hipoteticamente autnomos, sujeitando por isso mesmo todo o processo a revises subseqentes (PE:27 e 325). Tendo como um dos fatores fundamentais os prazos crticos, as diversas fases e estudos constituintes do planejamento da SN, embora possam ser feitos por grupos diferentes, pertencem ao mesmo escalo governamental: o mais alto (PE:191-192). Da a importncia de assegurar a coordenao entre as aes estratgicas a planejar e desencadear nas diversas reas e de buscar estabelecer um perfeito entrosamento entre as aes estratgicas de natureza diversa que a se iro aplicar (PE:193). Uma avaliao do potencial de outros pases - mesmo que bastante relativa e subjetiva dever permitir, atravs do conhecimento de seus elementos de fora e de suas vulnerabilidades, uma idia do Potencial com que esse pas poder agir contrariamente a nossos prprios Objetivos ou de forma a interferir desfavoravelmente com eles (PE:197). Nas naes aliadas, tal avaliao deve verificar a cooperao com nossos propsitos, no deixando por certo de haver, mesmo em tal caso, componentes desfavorveis (PE:197). Tal avaliao ter como uma das concluses a definio da caracterstica estratgica ou no de uma rea, se a rea considerada, por sua significao estratgica, constitui ou no um campo de aplicao efetivamente til para uma ao ou aes estratgicas visando consecuo ou pelo menos salvaguarda dos ON (PE:198). Uma deciso-chave para o planejamento da SN a fixao da hierarquia das hipteses de guerra. Esta deve ser feita, luz dos ONP, verificando seu grau de perigo, natureza e valor relativo da ameaa que traduzem, sua origem e reas de incidncia, pelos mveis que parecem animar as atividades do inimigo, pela significao da cooperao internacional com que poderemos contar etc., o grau de probabilidade de sua real efetivao e os benefcios que se esperam com a vitria (PE:334-335). O planejamento da SN tambm importa em que, luz dos ON, se verifiquem os fatores favorveis e desfavorveis a eles, se faa uma avaliao estratgica da conjuntura num estudo objetivo, cuja finalidade formular juzos de valor sobre a realidade estratgica do momento e sobre o sentido e ritmo de sua evoluo, no tempo e no espao (PE:61; GB:253). Em resumo,
Racionalizao - como propsito geral; seqncia hierrquica de decises cada vez mais precisas, cada vez menos amplas - como primeira idia do mtodo; garantia da conservao ou salvaguarda dos ON - como finalidade especfica; antagonismos a vencer, contornar ou diferir - como reaes a considerar ou obstculos ativos; aes no campo interno e externo - como domnio: eis, em sntese, o que entendemos por Planejamento da Segurana Nacional. (PE:316 e 426)

159 No caso do Brasil, embora com aproveitamento da experincia de outros pases no que concerne ao assunto, ocorreu uma reelaborao a que no falta um cunho de originalidade nem o interesse sempre presente a alcanar uma adaptao, se no perfeita, pelo menos satisfatria, s condies peculiares do problema estratgico brasileiro (PE:351). E, segundo ele, natural que isso acontea, pois este planejamento tem a estratgia por essncia e, pois, obedece, deve obedecer, no seu processamento e, sobretudo, na concepo e coordenao de aes a planejar, a uma Doutrina Estratgica que s poder ser vlida se assentada solidamente na realidade objetiva da situao do Brasil em meio ao contexto internacional de nossos dias (PE:351). Em caso de obedincia cega a figurinos aliengenas, chegar-se-ia ao irrealismo, a fantasias perigosas, ao fracasso irremedivel (PE:351).
Planejamento do Fortalecimento do Potencial: Campo Dominante

O planejamento do fortalecimento do potencial nacional um dos ciclos de desdobramento do o planejamento da Segurana Nacional O general gacho acredita que os pases subdesenvolvidos dificilmente poderiam
desencadear o to almejado processo auto-acelerador do desenvolvimento, sem recorrer a um planejamento racional sob a gide do Estado, que coordene, dentro de rigorosa prioridade na aplicao de recursos escassos, tanto as atividades de carter propriamente econmico, como as que se devam levar a efeito, paralelamente, no campo da poltica, da educao e da sade pblica, da assistncia social e da defesa do pas. (PE:23)

A interveno do Estado importante porque o Potencial, como o Poder, uma estrutura essencialmente equilibrada, integrada pelo jogo de relaes de mximos e de mnimos, e um Dficit em um qualquer de seus campos ou setores poder constituir, dentro de certos limites, verdadeiro ponto de estrangulamento a impedir ou frear o fortalecimento global do sistema alm de nveis determinados (PE:400). Isso se d porque, nesse campo, rege uma lei, como econmica, de rendimentos decrescentes, segundo a qual os acrscimos em cada setor, se no se refletirem ou forem acompanhados de um aumento tambm nos demais - aumentos correspondentes, no muito variveis embora no respectivo grau - iro, mais e mais, se traduzindo em reforo cada vez menor do Potencial em conjunto, at o ponto de verem de todo anuladas a sua significao e influncia (PE:400). Ao mesmo tempo, diz o general, o sistema apresenta elevada capacidade autopropulsora e auto-aceleradora, manifesta sob a forma de um equilbrio evolutivo, como o desenvolvimento econmico e social de que o Potencial pode ser simples subproduto natural e espontneo (PE:400).
Tal capacidade, entretanto, s consegue atualizar-se a partir de certo nvel de desenvolvimento, de certo ritmo mnimo alcanado, quando adquirida j a impulso necessria para que entrem efetivamente em jogo fatores de propulso e acelerao, antes quase de todo inibidos. Ademais, /.../ ocorre freqentemente um processo reversivo, esgotando-se aquela capacidade e passando-se estagnao ou mesmo retrocesso, quando, a partir de certo nvel superior, comearem a atuar, agora, fatores freadores tambm existentes. (PE:400)

Em sua argumentao em defesa do planejamento, o general adverte que a ao, isto , a interveno, nunca poder deixar de produzir-se; variar, apenas, o grau de conscincia e de

160 segurana que a anime, de forma que A no-interveno, muitas vezes, representar at, em verdade, a pior forma de interveno (PE:411). Em outra palavras, o governo est sempre agindo nessa rea, pelo simples fato de que sua prpria existncia o obriga a manifestar-se e qualquer manifestao sua sempre aplicao de Poder, com desgaste ou criao conseqente de certa dose de Potencial (PE:411). Por longo prazo /.../ o mundo assistiu, sem nisso convenientemente fixar-se, gerao e ao fortalecimento do Potencial como simples subproduto natural do prprio desenvolvimento econmico e social (PE:393). Agora, de acordo com os dois argumentos apresentados acima, uma necessidade imperativa
inicialmente, intervir no processo de acumulao de Potencial, com o fim sobretudo de eliminar os mais graves pontos de estrangulamento que se identifiquem, e comunicar-lhe a impulso mnima indispensvel para que passe a atuar, realmente, a capacidade autopropulsora imanente do sistema; a partir de ento, controlar a marcha evolutiva do processo, visando a evitar um esgotamento prematuro dessa mesma capacidade e, sobretudo, prevenir os graves perigos de uma estagnao de fundo estrutural, de uma reverso mais ou menos acelerada, de crises alarmantes, de uma adaptao espasmdica ameaando de ruptura o sistema. (PE:400) 24

Contudo, resistncia ao planejamento nos pases perifricos vem se somar uma srie de problemas oriundos da prpria situao de subdesenvolvimento. Por isso, Golbery concorda com a afirmao de Lewis, segundo a qual O planejamento , ao mesmo tempo, muito mais necessrio e muito mais difcil nos pases atrasados do que nos adiantados (PE:293). Por isso, para ns, pases subdesenvolvidos ou em etapa nitidamente retardada ainda de nosso desenvolvimento - aquele planejamento assume aspectos de outra ordem que importa sobretudo pr em relevo (PE:25). Isso especialmente importante num pas como o Brasil, vasto agregado quase inorgnico de regies de nveis de desenvolvimento muito dspares. Antes de mais, deve-se considerar que o Planejamento para o desenvolvimento e para o bem-estar nacionais no est sob as mesmas restries impostas pela considerao em primeiro plano do fator de segurana (PE:98). Nos pases desenvolvidos, Uma slida estrutura econmica e social se oferece, mediante simples reajustamentos, como base de mobilizao j de todo existente, ao planejamento de guerra cuja importncia avulta, por conseguinte, de importncia; o processo de fortalecimento passa a desempenhar papel apenas secundrio (PE:271). Para um pas plenamente desenvolvido que tenha a enfrentar antagonismos de pequena monta, o ciclo do planejamento do fortalecimento do Potencial Nacional perderia muito de sua importncia, conforme j vimos; dentro dele, qualquer dos campos poderia, entretanto, vir a ser o dominante. (PE:93) Nos pases subdesenvolvidos, em contraposio, nem sempre dispe o Estado de um Poder Nacional altura das responsabilidades decorrentes da guerra ou, nem mesmo, das que tenham sido assumidas no perodo de paz. Por isso, em tais pases, tratar-se-, imperativamente, de fortalecer esse Poder, desenvolv-lo no tempo devido e por todos os processos, de modo que, no balano vital entre possibilidades e necessidades, entre meios e fins, entre obrigaes e recursos, no subsista um dficit fatal que pressagie, para a Nao, a derrota e a servido e a morte (PE:13 e 369). Nesses pases subdesenvolvidos, ainda quando
Esta defesa golberyana do planejamento, somada preocupao com a minorao das desigualdades sociais, levam Manzini Covre a qualificar o capitalismo preconizado pelo general como capitalismo social/capitalismo misto (Covre, 1983:31).
24

161 o inimigo no se caracterize por um poder exorbitante, o problema capital vem a ser, sempre, o da criao da prpria base de mobilizao, atravs de um fortalecimento acelerado e racional do Potencial, tais as exigncias multiformes e imperiosas da guerra moderna. Sendo assim, e Paradoxalmente, neste caso em que a guerra muito mais perigosa, o planejamento de guerra assume papel nitidamente subordinado (PE:271). Nestes pases, tendo em conta as prprias vulnerabilidades decorrentes de seu estado de subdesenvolvimento, os antagonismos no s internos mas externos avultam sobremodo de importncia, exigindo pronto remdio quelas fraquezas e colocando desde logo em primeiro plano a questo do planejamento, no que objetive principalmente o fortalecimento do Potencial Nacional (PE:105). Golbery continua destrinando os objetivos do planejamento do fortalecimento do potencial: a superao, neutralizao, reduo ou pelo menos diferimento, por meios pacficos, dos antagonismos que se manifestem (ou ainda, preventivamente, dos que se prev possam vir a manifestar-se), tanto no mbito interno, como no campo internacional, em oposio aos ONP. Isso sem que se tenha de sacrificar um ou mais ONA em funo de outros, e tambm garantindo uma futura ampliao dos ONA, elevando-os a nvel compatvel com os dos ONP (PE:270). De outro lado, tambm quer garantir que, ao cabo dos prazos crticos admitidos, poder-se- contar com as melhores condies possveis para enfrentar a guerra (PE:270).
O planejamento do fortalecimento do Potencial Nacional visa, em ltima instncia, como sabemos, a melhorar a equao de poder existente em relao aos diversos antagonismos que se considerem no conjunto do planejamento estratgico, do qual aquele se constitui em parte integrante, tanto mais essencial quanto mais desfavorvel sejam, na realidade, os termos da mencionada equao. Da se concluir, desde logo, a supremacia que lhe vem a caber de direito, no caso dos pases fracos, pobres e desarmados que se defrontem com antagonistas poderosos e decididos. (PE:269)

Nos pases subdesenvolvidos, a existncia, no setor econmico, de dificuldades no s conjunturais, mas sobretudo de base estrutural reflete-se na diminuio do bem-estar social do povo, aguando-se os conflitos entre classes e entre grupos diversos e avultando os antagonismos entre regies distintas, entre as cidades e os campos, entre as elites e as massas (PE:106). Por outro lado, no mbito internacional, a expresso poltica da Nao vem diminuda e contrafeita, inerme como se encontra esta presso econmica dos poderosos do dia. Diante disso, o poder militar ser uma irriso ante os perigos que dia a dia se acrescem, e alm do mais ilusoriamente fundamentada na importao obrigatria de material blico, de matrias-primas essenciais a qualquer esforo de guerra e at mesmo de recursos indispensveis vida das prprias populaes. Todos esses problemas, lembra o general, ocorrem em conseqncia da falncia do aparelhamento econmico, invalidado por graves falhas de carter infra-estrutural e asfixiado e anemizado por mltiplos pontos de estrangulamento de dilatao cada vez mais difcil (PE:106).
De fato, no se trata, nessa fase e mediante tal processo, de aumentar de imediato o nvel de Poder, muito menos o de sua expresso militar. O que em verdade se busca fortalecer as potencialidades blicas, em geral, da Nao - entre estas, em maior ou menor grau, mas nunca excessivamente, as militares tambm -, persistindo todas, em sua grande parte, como potencialidades apenas, at que sobrevenha o momento em que seja inevitvel desencadear-se, afinal, o processo da mobilizao [em face de uma hiptese de guerra mais provvel]. Dessa forma, podero elas, em largo prazo,

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concorrer igualmente para o progresso pacfico da Nao e para o bem-estar de todo o povo, sem que deixem de estar presentes nas negociaes diplomticas, onde de fato o que mais vale, em regra, no o Poder atual e efetivo, mas sim o prestgio alicerado num Potencial que se faz praa, alis, de possuir. (PE:384. A observao entre colchetes nossa.)

O fortalecimento do potencial nacional visto como a soluo efetiva desses ou de outros antagonismos, num nvel que permita neutralizar as vulnerabilidades mais graves, alicerando em bases slidas o prprio poder militar (PE:105). O campo econmico ser o dominante no que se refere concentrao de esforos e conduo das aes mais relevantes,
certos de que no deixaro de redundar, imediata ou mediatamente, reflexos altamente benficos, impulsos criadores e estmulos de grande eficcia nos demais campos estratgicos e embora reconhecendo a necessidade de nestes levar a efeito, com judiciosa economia de meios, tanto aes secundrias de apoio como outras dotadas de autonomia maior, visando todas a alcanar um nvel mnimo imprescindvel harmonia e coerncia do conjunto, seno ao pronto atendimento de antagonismos ou vulnerabilidades particulares que a se manifestem (PE:106).

Para o general, em face do fortalecimento do potencial, o desenvolvimento econmico aparentemente mais generoso porque menos definido nos prprios fins que proclama - um vago bem-estar futuro do povo que justifique, sobretudo, pela esperana os sacrifcios impostos na hora presente, este, sem dvida, muito mais substanciais do que aquele (PE:411). Contudo, em verdade, o desenvolvimento econmico, como programa, de fato, muito menos integral e corrente do que o fortalecimento do Potencial Nacional, pois
nele se desprezam, perigosamente, ou ao menos subalternizam-se em definitivo, numa nfase unilateral - quase direi de funda inspirao marxista - ao campo econmico, nico considerado, os imperativos do prprio desenvolvimento social em seu conjunto, seja os do setor da educao e do enrijecimento moral do povo, do revigoramento das convices e dos valores democrticos, do amadurecimento poltico das massas, seja os do aperfeioamento de toda a estrutura poltica e das prticas administrativas, da melhoria do padro de higidez da populao, da eliminao ou, pelo menos, atenuao das tenses sociais sempre presentes, seja ainda os de um efetivo atendimento das exigncias mnimas da prpria defesa do pas numa poca de incertezas e cataclsmicas ameaas solidariedade e paz universais. (PE:411)

No mero desenvolvimento econmico, o Estado avulta em primeiro plano, esquecido de seus deveres supremos e desatento s suas mais indeclinveis responsabilidades (PE:411412). A uma perspectiva to estreita e estrbica de um materialismo indisfarvel e malso, Golbery ope a viso global de um desenvolvimento, nunca apenas econmico, mas desenvolvimento social em toda a sua amplitude, com objetivos coordenados que se enquadrem, harmonicamente, para o fim ltimo de elevar o Potencial Nacional altura das responsabilidades efetivas da Nao na quadra histrica que vivemos (PE:411-412).
Planejamento do Fortalecimento do Potencial Nacional: Fatores Crticos

163 Nos pases subdesenvolvidos, sendo o campo dominante do planejamento do fortalecimento do potencial o econmico, o principal fator crtico sempre o capital necessrio aos investimentos de vulto que sempre se impem (PE:404). No caso brasileiro, deve-se considerar tambm, especialmente, a capacidade de importar; a escassez de certas matrias-primas; a existncia de mo-de-obra especializada etc. Golbery explicita que os recursos de base - ao lado das unidades de tempo - assumem especial preeminncia no planejamento do Potencial Nacional. Nos recursos de base, esto includos o potencial humano e o capital (nacional e estrangeiro) disponvel para investimentos e a capacidade para importar. No que se refere necessidade de recursos financeiros, Golbery assim a classifica: 1) Capital para investimentos - estes devem realizar-se em todos os campos, a despeito mesmo de sua baixa rentabilidade em muitos setores fundamentais da infra-estrutura econmica ou de sua rentabilidade diferida sobretudo nas aplicaes de imediata finalidade social (PE:107). parte esse problema, lembre-se que tais investimentos s a longo prazo podero redundar num aumento do ndice real de produtividade da fora de trabalho. A pauta de inverses deve abranger, em primeiro lugar, quelas que visem resoluo dos pontos de estrangulamento; em seguida, os que objetivem criar, estrategicamente dispostos, vrios ncleos de germinao econmica, tudo isso sem descuidar da ampliao da demanda efetiva e do impulsionamento da produo (PE:107). 2) Recursos outros - para a manuteno dos servios cada vez mais extensivos do Estado, em face de suas responsabilidades acrescidas, mas tambm para o consumo destrutivo das Foras Armadas, em seus programas de treinamento efetivo (PE:107). 3) Divisas - especialmente em moeda forte, para a importao de materiais estratgicos indispensveis ao pleno funcionamento do sistema econmico e at mesmo vida frugal da prpria populao, entre os quais se destacam os bens de produo. As divisas devem bastar ainda para saldar pontualmente compromissos assumidos em perodos anteriores, com o fito de restaurar o crdito no exterior. E so necessrias ainda mais divisas, tambm, para atuar eficientemente no campo internacional, embora em reas estratgicas circunscritas, apoiando pela ao econmica hoje to eficaz as diretrizes de uma poltica externa objetiva e realista (PE:107-108). Por outro lado, observa Golbery, quem diz divisas, diz maior volume de produo exportvel, crditos para expandi-la, crditos para defend-la contra torpes manobras especulativas, crditos para a propaganda junto ao consumidor de outras terras, e no menos a implantao de indstrias de substituio, vale dizer mais e mais capital para novos investimentos judiciosamente selecionados (PE:107108). Toda esta vasta poltica, observa ele, dever realizar-se sem o recurso ao processo oneroso e quase que suicida da poupana forada conseguida atravs da inflao (PE:107108). Mas h ainda outros fatores crticos a solucionar. Na ausncia de matrias-primas ou produtos de base, resultar paralisado todo o progresso econmico-social, bem assim o aparelhamento militar da nao (PE:108). Sua importao nos expem a presses econmicas dos exportadores, alm de ser altamente onerosa e sujeita a restries. Esses aspectos, na guerra podem significar a distncia que vai da vitria derrota (PE:108). Mais um fator crtico nos pases subdesenvolvidos a subpopulao crtica existente em alguns deles. Nesse caso, o oramento do potencial humano ganha enorme relevncia. J o problema da superpopulao que se manifesta em outros pases, por mais grave que seja do ponto de vista social e pelas repercusses econmicas do desemprego tanto visvel quanto disfarado, no desempenha papel limitador direto que caracteriza um fator crtico, segundo o

164 conceito adotado (PE:109). Este critrio o da disponibilidade de mo-de-obra qualificada e de pessoal especializado para recrutamento militar (PE:109). No que compete ao comrcio exterior, outro fator crtico citado pelo general, h que acompanhar detalhadamente sua evoluo Antecipando um dos lemas do bonapartismo - exportar o que importa -, Golbery considera a exportao o fator k nos pases subdesenvolvidos - a austeridade e honestidade comercial tambm como fatores crticos. Com isso, antecipar tambm a poltica econmica da ditadura, de compresso do consumo interno - expediente em que a superexplorao da fora de trabalho foi largamente utilizada. Assim sendo, se do comrcio exterior
quisermos extrair o mximo de possibilidades e ganncias, no h seno como vender, vender a preos compensadores mas nunca to escorchantes que estimulem a produo competitiva e o recurso a sucedneos, vender muito e vender a todos, sacrificar mesmo o consumo interno para acrescer os excedentes exportveis de produtos de mais fcil colocao e, por outro lado, comprar aqui ou acol, mas comprar materiais essenciais, produtos insubstituveis e sobretudo bens de produo, drasticamente eliminando a importao, sempre denunciada mas sempre incessante, dos artigos de luxo que abarrotam no s o comrcio, mas at as ruas das tenciais (PE:112, grifos nossos).

Por fim, o general reitera que

O planejamento do fortalecimento do Potencial , sobretudo, o amplo domnio das decises abertas em que se garante larga margem ao jogo das alternativas, diferindo, no tempo as escolhas, em face da evoluo de uma conjuntura complexa que no se pode nem diagnosticar com suficiente grau de preciso, nem frontalmente contrariar. O perodo das revises e reajustamentos se estende por longo prazo e subsiste, quase sempre, a possibilidade de corrigir ou, pelo menos, atenuar os efeitos dos erros de previso ou de deciso. (PE:273)

Nesse processo, aconselha o general gacho, recorre-se, de preferncia, ao jogo de estmulos e atrativos para induzir aceitao do plano e influir no comportamento dos grupos mais diretamente interessados, segundo o sentido desejado (PE:273). O mundo atual, marcado pela guerra fria e pela guerra total, caracteriza-se pelo enfrentamento de poderes no cenrio internacional. O Brasil tem muito a oferecer ao ocidente, mas quer em troca ajuda para chegar a tornar-se o colosso do sul. J muito temos evoludo nesse sentido, e a cooperao estrangeira seria o atalho por onde chegaramos mais rapidamente ao nosso destino geopoltico. Esse o nosso interesse ou objetivo nacional, e desde j estamos cientes de que o preo do poder a responsabilidade, principalmente na manuteno da segurana nacional nossa, do nosso continente e da frica convulsionada e catica. No tarefa pequena, admita-se. Veremos, no prximo captulo, como a ditadura falhou na tarefa bem mais simples de garantir um desenvolvimento econmico que superasse as falhas de nossa estrutura semicolonial. Cada vez mais longe da construo do Brasil-potncia, os militares tiveram de retirar-se do cenrio.

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Captulo IV - Golbery, o Estrategista da Auto-Reforma da Ditadura

1 - ABERTURA OU AUTO-REFORMA?

chamada abertura democrtica pareceu basear-se em uma estratgia muito antiga, que em ingls se denomina brinkmanship. Tomada em termos gerais, trata-se da arte ou da prtica de levar uma situao perigosa ou uma confrontao at o limite do que pode ser considerado seguro, para conseguir um determinado desfecho. Naturalmente, o alto risco assumido tanto pode levar ao desastre como ao sucesso (Werneck, OESP, 25-12-98). Em sua acepo mais restrita, brinkmanship a ttica de deliberadamente criar um risco perceptvel, e no completamente controlvel, e deixar a situao fugir de certa forma ao controle para intimidar o adversrio, na expectativa de que este recue, temendo o pior. Deixase, assim, pairar a ameaa de ir s ltimas conseqncias, ultrapassando o limite fatal e arrastando o adversrio consigo para o abismo. Para que a ttica funcione a represlia prometida no pode ser percebida como uma certeza absoluta. Afinal, a eficcia da ameaa decorre da percepo de que quem a faz poder ser obrigado a cumpri-la, mesmo que, no ltimo momento, isso seja contrrio a seus melhores interesses. Portanto, um grau de incerteza fundamental para a credibilidade do processo: como se o processo desencadeado no fosse totalmente controlvel, envolvendo riscos de toda ordem, tal qual uma borda na extremidade de uma rampa inclinada e escorregadia. A ameaa crvel a disposio de iniciar a descida da rampa, mesmo tendo em conta que cada movimento na direo da borda envolve o risco de um escorrego fatal para ambas as partes (Werneck, OESP, 25-12-98). Golbery disse algo muito parecido, com relao estratgia, bem antes do processo de auto-reforma do regime:
Na realidade, a suma da estratgia no est em tomar decises e implement-las a bom termo, a despeito do que faam os antagonistas, num clima de incerteza imanente, mais ou menos difusa. O que lhe superior ainda saber, por si mesmo, criar ambigidades, usando esse instrumento ttico por excelncia das aes polticas de uma forma a projetar em torno, envolvendo o antagonista, um ambiente de incertezas que possa manejar, adensando-o ou clarificando-o, ao sabor dos prprios interesses. E tudo isso, sem ultrapassar certos limites perigosos, de um lado para no perturbar comandos e colaboradores e, de outro, para no confundir sinais e desorientar de todo o antagonista, pois este precisa conhecer, com segurana, algo de nossas intenes, por exemplo e conforme as circunstncias, o que queremos de fato, o que nunca cederemos ou at onde poderemos negociar e ceder. (GB:137)

As transies em geral, na sua forma mais aparente, tm o carter: uma realidade esquiva e escorregadia, um tempo de indefinies, um momento em que um regime comeou a se esgotar, mas ainda no h outro perfeitamente consolidado. Contudo, os estrategistas do regime que perceberam a necessidade de transio tambm a conceberam como um processo totalmente controlvel por eles prprios, bem de acordo com sua viso de mundo conservadora e elitista. Como ressalta Leonel Itaussu Mello, Concebida fundamentalmente como relao amigo/inimigo ou como continuao da guerra por outros

166 meios, a poltica de distenso passou a ser planejada rigorosamente como uma operao de estado-maior e executada segundo uma concepo estritamente militar (Mello, 1989:209). A realidade, porm, no se enquadrou exatamente nos planos dos estrategistas do regime. Procuraremos abordar nesse captulo, alm do processo e do discurso, uma comparao com o que foi previamente definido pelo governo 25 : o projeto, que vem a ser a estratgia elaborada para o processo de distenso, expressando as intenes e os limites de uma ao nesta direo e comportando um grau bastante alto de voluntarismo por parte de seus proponentes (Mathias, 1995:23). O projeto tentaria, pois, em um contexto que implica sempre algum grau de conflito, abarcar toda a problemtica existente e dar-lhe respostas, a fim de manter a realidade dentro do planejado. Ocorre, porm, que, o processo, ainda que impulsionado pelo projeto, muitas vezes foge ao controle porque toda mudana traz consigo uma dinmica autnoma que faz nascer novos horizontes (Mathias, 1995:109) Como se ver, no teremos a preocupao de encaixar o processo brasileiro de transio em qualquer uma das classificaes existentes 26 : nossa preocupao ser apenas reproduzir a realidade, do modo mais aproximado possvel. Para tanto, vamos retomar algumas reflexes de talhe ontolgico j desenvolvidas no primeiro captulo, sobre a entificao social brasileira. A esse respeito, relembremos, primeiramente, o fato de que ditaduras e milagres esto entre as caractersticas mais profundas e dominantes de nossa formao sociohistrica: em verdade, elas lhe explicitam o carter essencial. Baste exemplificar reportando o perodo que vai desde a ascenso de Vargas, via eleio, at o golpe de 64, no qual ocorreram os anos mais democrticos e mais liberais de nossa histria: um perodo extremamente curto, portanto, e, o que mais significativo, no qual a democracia foi diversas vezes gravemente ferida e ao fim do qual veio a fenecer, sem conseguir desenvolver-se. H que atentar para a diferenciao fundamental: Trata-se, pois, no Brasil de conquistar a democracia, e no propriamente de reconquist-la, visto que, at hoje, em termos concretos no a conhecemos de forma duradoura e real, nem mesmo nos limites mais acanhados do que se entende por democracia burguesa. (Chasin, 1979:154) A crise da poca - que perpassou os governos Geisel e Figueiredo - iniciara-se, pelo menos, no segundo semestre de 1973: era a crise do ltimo milagre. Mais que isso, era o fracasso de uma poltica econmica, e no simplesmente o desgaste ou esgotamento da ditadura implantada em 1964. As principais caractersticas do milagre e da poltica econmica da ditadura cujo detalhamento no cabe no mbito deste captulo so as seguintes. Em primeiro lugar, a produo nacional para consumo interno tem seu plo dinamizador sustentado na produo de bens de consumo durveis, notadamente a indstria automobilstica. Centrar a produo em torno de bens de consumo durveis significa, na realidade de um pas da periferia do capital, desde logo, eleger um mercado consumidor privilegiado:
Destinada ao consumo interno, essa forma de produo tinha que gerar imprescindivelmente um privilegiado mercado de consumo, socialmente muito
Lamounier foi dos primeiros a atentar para a diferena entre os dois nveis. Segundo ele, De tanto falarmos nas artes do general Golbery /.../, acabamos acreditando que o ncleo dirigente do regime militar detinha o completo controle sobre os acontecimentos. Confundimos o discurso - sem dvida dominante naquela poca - de que tudo era meticulosamente tramado no Palcio, com o processo real da redemocratizao [sic], que era complexo e multiforme (Lamounier, 1994:16). 26 Sobre o assunto, consultar Andrade (1997), Antunes (1984), Antunes (1988), Cardoso (1981), Chasin (1977, 1979, 1980, 1982, 1986a), DAraujo e Castro (1997), Gutemberg (1994), Mathias (1995), Mello (1989), Rago Filho (1998), Lamounier (1994) e Fernandes (1981), entre outros.
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restrito, numericamente acanhado, mas suficientemente dimensionado para ser apto a absorver a produo efetuada, e assim realizar a mais valia criada, e precisamente a isto que se chamou de pacto social com a classe mdia. (Chasin, 1979:165)

Esse setor produtivo est em grande parte em mos de estrangeiros, de modo que a mais valia apropriada s se realiza nas suas remessas para o exterior, uma vez que, para que o esquema funcione adequadamente nas condies de um pas economicamente subordinado, so necessrios o concurso dos dinheiros internacionais e a aplicao do arrocho salarial sobre a grande massa dos trabalhadores. O primeiro aparece sob a forma de investimentos diretos e muito especialmente de emprstimos. O arrocho preserva a existncia da mo-deobra barata e faculta a produo de bens, ditos competitivos, para o mercado internacional. H, ademais, que compreender o liame inseparvel que une produo e distribuio, esta determinada por aquela. Como ressaltava Marx, a produo , tambm, distribuio das relaes sociais e dos instrumentos de produo e, na origem, a distribuio constitui um fator de produo. De forma que a concentrao de renda ocorrida com o milagre decorrncia lgica e necessria da forma como estava organizada a produo - o milagre necessariamente excludente, a misria que produz
resultante, portanto, da organizao da produo que ele subentende, e no a simples falta de uma equao distributivista e mais eqitativa. (Chasin, 1979:165) Em outros termos, a forma atual da produo da riqueza que causa diretamente a superexplorao do trabalho, isto , a misria das massas trabalhadoras. Sendo a estrutura econmica vigente a responsvel direta pelo arrocho, impossvel melhorar a distribuio sem reorganizar a produo. (Chasin, 1980:111-112)

Sem atentar para esse aspecto, as oposies deixaram de denunciar a estrutura de produo, para reclamar a correo de supostas formas injustas de distribuio da riqueza. Ainda mais: surpreendida, no campo econmico, pela eficcia do sistema, voltou suas baterias para a defesa das franquias democrtico-institucionais. Estas tornaram-se, ao depois, pedra de salvao de todos: as oposies viam-nas como a via para a melhoria na distribuio de renda, enquanto para os governistas representavam o fecho de ouro para os avanos conseguidos no campo econmico. Outra caracterstica do sistema, o desequilbrio da balana comercial, tem suas razes na importao de bens de produo e insumos bsicos, que entram para que se produza mais para exportar, sustentando o crculo vicioso. Por outros termos, o modelo exportador gera o modelo importador, num processo em que a ampla maioria do povo brasileiro, os trabalhadores das cidades e dos campos, tm at suas necessidades primrias desatendidas, relegadas ao nvel mais baixo da subsistncia. Enquanto isso, como chegaram a denunciar alguns economistas, ocorria a venda de produtos nacionais a preos inferiores ao custo interno, o que correspondia nada menos que a um subsdio ao consumo de outras naes. Financiava-se, com isto, a acumulao, que atendia dinmica do capital monopolista, particularmente o estrangeiro. Era a efetivao das proposituras golberyanas para a soluo do fator k, o comrcio exterior. Isso tinha ainda outro efeito: o desequilbrio crnico do balano de pagamentos, dado que a produo de bens de consumo durveis implica, em condies de subdesenvolvimento econmico, a importao de bens de produo e insumos bsicos. A necessidade de divisas para financiar estas importaes explica o esforo exportador para obter dlares, o que por sua vez explica o desequilbrio da balana comercial e correlativamente da balana de pagamentos, compondo em grande velocidade o endividamento externo. Numa palavra: os

168 prprios mecanismos do milagre, tanto melhor funcionassem, mais o conduziam inviabilidade. Sendo assim, o esgotamento desta fase de acumulao tinha de ocorrer, pelas exigncias naturais do prprio sistema. O milagre mostrava-se totalmente inadequado para resolver os problemas sociais deste pas - ao invs, sua prpria essncia era radicaliz-los. Mas esse sistema tambm propiciou, mesmo que num curto perodo, uma densa acumulao. Atendeu, portanto, s demandas do capital, em especial do capital financeiro internacional. Atente-se para esse fato. Enquanto esto realizando seus lucros, os setores dominantes, nacionais e estrangeiros, mantm-se politicamente unidos e consideram as formas ditatoriais da gesto do Estado como uma soluo muito adequada, naturalmente ajustada s necessidades gerais do pas. Pior: tornaram-se impudicamente co-autores da infame estratgia do assassinato poltico engendrada pela ditadura brasileira, uma vez que A equipagem dos aparatos repressivos foi fartamente apoiada e financiada pelos empresrios, comprometendose ainda estes, em caso de necessidade, com a transformao blica das indstrias. Em 48 horas, a Mobilizao Industrial permitiria que elas fossem convertidas em fabricaes de armamentos, munies, carros de combate etc. (Rago, 1998:198). Com a sustentao financeira dos proprietrios e dos centros imperialistas, que formavam especialistas em tortura, matar subversivos era uma atividade altamente profissional, como confirmou um ex-torturador. Tanto que o Brasil se tornou centro de exportao de tcnicas de tortura para suas congneres latino-americanas. Ou seja: mesmo a face mais degenerada do regime contou com o apoio da burguesia nacional. Mas o apoio ao regime muda com o esgotamento patente do perodo de acumulao, quando a burguesia deixa de ganhar dinheiro - pois desde o reino da Prssia se sabe que em questes de dinheiro cessa a cordialidade. Nesse momento, quando vm a pblico fazer crticas ao sistema, na verdade, os novos empresrios esto se pronunciando contra as conseqncias negativas que o desaquecimento econmico provoca nos seus negcios. Mesmo que suas crticas venham s vezes encapadas em expresses polticas que, por vezes, tm a aparncia de licitaes liberalizantes, eles Efetivamente no quebram lanas pelas prerrogativas polticas democrticas. De fato as temem, pois os direitos polticos democrticos teriam de ser partilhados com as massas, caso formalmente institudos (Chasin, 1979:162). O governo Geisel, primeiramente, faz crer que no h crise nenhuma, enquanto busca solues (como o II PND) para o problema que corretamente via, a questo da indstria de base. Em seguida, porm, a crise no pode mais ser obnubilada. Entra em cena, nesse momento, a poltica do desaquecimento econmico. Portanto, o prprio milagre, devorando seus fundamentos, teve de ser amarrado por uma poltica de desacelerao econmica. Esta, ao condenar os diversos setores econmico-sociais ao retrocesso ou pelo menos estagnao, no tinha como satisfaz-los. Instaura-se a celeuma no interior das classes dominantes.
O desaquecimento no interessa, nem agrada a ningum. Os fantasmas da insolvncia, da recesso, do desemprego e outros mais rondam e envolvem a tudo. Os beneficirios do milagre insistem na continuao dos privilgios. A insatisfao das diversas reas econmicas vai aparecendo. Ningum quer pagar o nus do desastre. A unanimidade dos setores articulados no pacto do poder desaparece. (Chasin, 1980:114)

Foi assim, pois, que o fim do milagre econmico acabou por gerar uma diviso nas hostes de apoio ao governo entre os que propugnavam o desaquecimento econmico e os beneficirios do perodo anterior, que se recusavam a abandonar seus privilgios. Por outro lado, a ditadura havia conseguido o que era fundamental, naquele momento, para certas

169 parcelas dos setores dominantes: no campo econmico, permitira um perodo curto, mas profcuo, de acumulao, financiada em grande medida pela superexplorao da fora de trabalho; no campo poltico, desbaratara por longo tempo o movimento de massas e as oposies. Cabe aqui lembrar a expresso marxiana segundo a qual modificaes na estrutura de produo de um pas tendem a provocar alteraes tambm em seus aspectos polticos. Estes so, portanto, essencialmente determinados, enquanto aqueles so determinantes. no interior de tal concepo que consideramos o estudo o fenmeno da abertura. Esta, como fenmeno poltico, no pode ser vista, sob pena de deturpao terica e desorientao prtica, como algo autnomo em relao estrutura econmica. H que esclarecer, desde j, que no se trata de uma relao economicista, como entendeu o marxismo vulgar e divulgaram os antimarxistas. Trata-se de reconhecer o primado ontolgico do fundamento econmico e entender a autonomia relativa do fenmeno poltico como nos clssicos, quando ento j no se trata de autonomia, mas da indicao da nomecanicidade da relao, o que vale dizer da sua determinao enquanto vnculo essencial, irremovvel sob pena de desfigurao, que se objetiva num andamento constituinte profusamente mediado. (Chasin, 1977:147) A essa discusso pode tambm ser agregada a que se refere aparncia e essncia de um fenmeno. Ambos partes integrantes deste, no se confundem, mas mantm sua particular identidade. Para compreender verdadeiramente um fenmeno, h que romper a crosta de sua aparncia e capturar os ndulos essenciais que fazem o seu ser-precisamente-assim. Dessa maneira, o projeto de distenso no mais autonomizado no poltico, livre das determinaes econmico-sociais, como sendo um caminho de mo nica, prprio de uma liderana carismtica, cujo valor e presena histrica se balizam pelo desmantelamento da estrutura repressiva (Rago, 1998:256). Da mesma forma, no se pode esquecer que sociedade civil sinnimo de sociedade burguesa classista, sendo, portanto, impossvel conceber o Estado como algo separado das classes que o controlam e dominam 27 . O poder ditatorial no paira no ar: sua sustentao est embasada nas classes burguesas nacionais e internacionais, que se utilizaram da violncia ditatorial como uma fora produtiva, para aumentar seus lucros. No -toa, bem ao contrrio, que a essncia do regime era expressa no binmio segurana e desenvolvimento: no se separava a forma bonapartista de poder da sua poltica econmica 28 . Tal distino, contudo, foi lamentavelmente esquecida na anlise do processo de abertura. Isso se deve a um fenmeno que tem ocupado todo o espao possvel no arsenal ideolgico das classes sociais brasileiras: o politicismo, irmo siams do economicismo enquanto este opera determinaes mecnicas e imediatas entre a estrutura econmica e a superestrutura social, o politicismo realiza uma hipertrofia do poltico e passa a considerar todo o real deste prisma reduzido. Ao faz-lo, acaba por, inapelavelmente, descaracterizar todo o conjunto estudado, inclusive a prpria poltica. O resultado de tal operao , por conseqncia, um objeto irreal, pois este resulta da brbara amputao do ente concreto, que sofre a perda de suas dimenses sociais, ideolgicas e especialmente de suas relaes e fundamentos econmicos. (Chasin, 1982:7) O politicismo assim definido:
Da que seja um equvoco distinguir, no processo de abertura, uma liberalizao e uma democratizao, referindo uma sociedade civil e a outra sociedade poltica, entidades inseparveis constituidoras da sociedade burguesa. 28 Castelo Branco fez uma clarssima declarao a respeito: Desenvolvimento e segurana, por sua vez, so ligados por uma relao de mtua causalidade. De um lado, a verdadeira segurana pressupe um processo de desenvolvimento, quer econmico, quer social. /.../ De outro lado, o desenvolvimento econmico e social pressupe um mnimo de segurana e estabilidade das instituies. E no s das instituies polticas, que condicionam o nvel e a eficincia dos investimentos do Estado, mas tambm das instituies econmicas e jurdicas que, garantindo a estabilidade dos contratos e o direito de propriedade, condicionam, de seu lado, o nvel e a eficcia dos investimentos privados (Apud Rago, 1998:147).
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Politicizar tomar e compreender a totalidade do real exclusivamente pela sua dimenso poltica e, ao limite mais pobre, apenas de seu lado poltico-institucional. /.../ O politicismo, entre outras coisas, fenmeno antpoda da politizao, /.../ Expulsa a economia da poltica ou, no mnimo, torna o processo econmico meramente paralelo ou derivado do andamento poltico, sem nunca consider-los em seus contnuos e indissolveis entrelaamentos reais, e jamais admitindo o carter ontologicamente fundante e matrizador do econmico em relao ao poltico. (Chasin, 1982:7)

Ou, mais detalhadamente:

Entenda-se por [politicismo] a reduo do todo problemtico nacional ao meramente poltico /.../ algo que em muito se distingue da considerao de que todo grande problema um problema poltico, no sentido de que as grandes questes sociais tm sempre a magnitude de negcios pblicos. Radicalmente distinto tambm do ato de politizar, que implica em partir de uma equao da totalidade, conceitualmente elaborada. Ao inverso, o discurso politicizado da oposio a diluio, o desossamento do todo, a sua liquefao em propostas abstratamente situadas apenas no universo das regras institucionais. a autonomizao e prevalncia politicolgica do poltico em detrimento da anatomia do social, isto , do alicerce econmico. /.../ Inobservncia que, justamente por destacar, isolar e hiperacentuar o poltico, despolitiza, na exata medida que desliga o poltico da raiz que o engendra e reproduz. (Chasin, 1977:146)

A raiz liberal desse procedimento explcita, pois aqui a economia pertence esfera do privado, enquanto a poltica, formalmente estufada, colocada no terreno da coisa pblica. Ao proceder dessa forma arbitrria, grosseira e simplificadora, acaba-se por perder a concretude e com ela a eficcia. Basear a prpria atuao numa anlise politicista da realidade corresponde, portanto, a condenar-se ineficcia e mesmo impotncia no plano poltico, pois que os objetivos so limitados de antemo pelo estreito campo de atuao. J vimos que nossa burguesia, que sempre adotou como apropriado o liberalismo econmico, nunca foi democrtica. Assim somado estreiteza da burguesia brasileira, o politicismo traz como conseqncia, entre outras, que apenas a esfera poltica seja exibida ao pblico como passvel de aperfeioamento; o campo econmico, pelo contrrio, considerado um tabu. De forma que, para a burguesia, Desfeitas, pela crise do milagre, as condies de sustentao da ditadura militar bonapartista, tratava-se de encaminhar o desenho de outra forma de sustentar a mesma dominao. (Chasin, 1982:10) Assim, operando politicisticamente, pode-se passar de uma forma de poder a outra, conservando inalterada a base que o engendra e anima. O politicismo, aqui, atua como freio antecipado, que busca desarmar previamente qualquer tentativa de rompimento deste espao estrangulado e amesquinhado (Chasin, 1982:8). O ardil do politicismo surge, assim, como uma arma vital para a reproduo do autocratismo burgus, forma recorrente do seu ser social limitado. Mecanismo que lhe permite manipular as conscincias oposicionistas, debilidade estrutural e fora poltica que lhe alimenta. (Rago, 1998:18) Isso porque o regime distingue claramente entre discurso econmico e discurso poltico e, quando considera de seu interesse, abre a questo poltica discusso. Mas no permite o questionamento questo econmica, pelo que esquiva-se de

171 pr a pblico esse assunto 29 . essa uma das mais sutis vitrias da situao, pois dessa forma que ela torna vitoriosa a sua poltica, ao passo que a oposio, brandindo dominantemente o poltico, colhe a derrota em todas as instncias. (Chasin, 1977:145) Assim, a ditadura abria para discusso o mbito poltico. No que no improvisava desde os tempos de Castelo havia a expectativa de institucionalizar os princpios de 64. Defensores da ditadura julgavam possvel consolidar suas diretrizes globais sob a forma do Estado de direito, restando a discutir o momento conveniente. Contudo, Estado de direito e democracia no se confundem, e esta distino fundamental as oposies obliteraram. Assim, no momento em que props a abertura, o sistema levou de roldo toda a oposio, nesse seu estratagema. parte o reconhecimento de sua resistncia e at momentos de valoroso sacrifcio, deve-se compreender que as oposies construram uma histria permeada de equvocos, totalmente enredada na malha politicista. Patenteou-se, mais de uma vez, a subsuno terica das oposies, que estavam sob a hegemonia ideolgica burguesa. Ressalte-se que as dissenses internas s classes dominantes so normais numa tal conjuntura. E elas ocorreram de tal forma que j no podiam ser escondidas do pblico. Racha a base social da dominao burguesa em sua forma bonapartista, que at ento atendia plenamente aos interesses dos grupos dominantes. Aos poucos, d-se uma reduo no teor e no ndice bonapartista do poder. As diversas fraes da burguesia, cada qual querendo absterse do pagamento do nus da crise, vm a pblico, desejosas de manifestarem suas queixas e decididas, agora, a buscarem novas solues - Abertura! (Chasin, 1982:9) Em resumo, tencionando obnubilar a falncia ampla de sua poltica econmica, o regime faz o possvel para manter suas vigas mestras, ao mesmo tempo em que, abrindo, busca socializar os nus do desastre por ela mesma gerado. O governo amplia o espao poltico para esconder a inexistncia de solues econmicas. sada do Estado bonapartista, havia se completado a internacionalizao da economia brasileira, que, nas condies em que se deu, no era muito mais que o aprofundamento de sua subsuno econmica. Nesse momento, concretaram-se definitivamente os limites de sua acumulao industrial, afastando de vez qualquer possibilidade de autonomizao do sistema capitalista nacional. Agregue-se a isso a informao fundamental acerca da disperso ideolgica da esquerda e lembre-se, ademais, que o prprio liberalismo encontrava-se, poca, em refluxo. nessa conjuntura que se passa a discutir a sucesso de Geisel. Mais do que nunca, a questo da produo de bens de produo e insumos bsicos precisava ser resolvida. Mais do que nunca, o Brasil se tornava arena de luta dos monoplios internacionais. E esse momento de crise que est no bojo da movimentao poltica, que sua essncia. A movimentao poltica, alm de seu carter diversionista, tambm encobre decises fundamentais para o pas. Por isso,
No , portanto, difcil entender por que a disputa pelo poder se manifesta desta vez com particular intensidade, sendo cada uma das candidaturas afloradas o produto ou a incorporao de tendncias ou interesses que buscam impor suas convenincias e solues de vantagem. isto que est em jogo, e no simplesmente futricas de caserna. guerra brava, envolvendo o pas em suas estruturas fundamentais, onde o ventilar do aspecto institucional, alm de se prestar a dilaes e mascaramentos, e
Mesmo um texto altamente politicista, como o de Suzeley Mathias, toca nesta questo: Se a democracia supe liberdade, para Castelo Branco s pode existir liberdade se acompanhada de responsabilidade. /.../ A responsabilidade de que fala Geisel, na verdade, nada mais do que a tranqilidade social. Somente pode existir democracia se for afastada qualquer possibilidade de questionamento do modelo socioeconmico dado. O exerccio da liberdade com responsabilidade significa a adeso ao modelo econmico e maximizao da produtividade do trabalho (Mathias, 1995:96-97).
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at mesmo a instrumento de jogo cnico para os olhos do grande pblico, que esconde a batalha interna e oculta, para a qual esto centradas, para valer, todas as baterias, pode ser tambm, quando considerado isolado e prioritariamente, utenslio para encaminhar solues econmicas subjacentes que antagonizam os interesses das massas populares e ferem negativamente o encaminhamento adequado da questo nacional. De modo que as foras dominantes, em todas as suas componentes, disputam o jogo da sucesso presidencial preocupadas com o conjunto dos problemas nacionais sabendo, no entanto, distinguir com preciso as questes de base das complementares, empenhando-se, ao nvel decisivo quanto s equaes relativas poltica econmica (Chasin, 1979:169-170).

Temos, em resumo, que a situao de desencontro e inconformismo das diversas faces da classe dominante e sua necessidade de reencontrar uma frmula para um novo perodo de acumulao engendra um debate, que aos poucos vai ganhando dimenses pblicas e que acaba por espraiar-se at as fbricas e sindicatos. Assim, pelos interstcios resultantes das disputas interburguesas, as massas trabalhadoras se inserem, impondo quele dilogo o argumento decisivo da fome. Mas, a esfera econmica, o governo no a arrisca em manobras e a mantm hermeticamente fechada. Porm, se por um lado a poltica econmica incapaz de subsistir, a depender dos ndices de reajustes salariais, abaixo destes os trabalhadores sofrem as agruras da fome. muito importante reter esse aspecto, uma vez que a ditadura no um simples exerccio de um poder arbitrrio de uns sobre os demais:
A ditadura est na prpria anatomia da sociedade civil, nas relaes sociais de produo. A ditadura do capital sobre o trabalho logra o seu mximo objetivo: como alcanar taxas de crescimento econmico com a elevao da produtividade e a diminuio politicamente forjada do valor da fora de trabalho. Os operrios a explicaram com uma simples expresso: a poltica do arrocho salarial. (Rago, 1998:362)

Lembre-se que, a partir de 1964, a poltica salarial constituiu-se no principal instrumento da acumulao capitalista subordinada no Brasil. Como ressaltou Rago, a modernizao excludente continha uma dupla violncia: violncia econmico-social, inerente ao capital atrfico, excluindo dos benefcios produzidos os prprios produtores diretos da riqueza nacional, e a violncia jurdico-poltica, transmudada em fora produtiva, arrochando os salrios, reprimindo e cerceando a liberdade de organizao e movimentao poltica do trabalho em nosso pas. (Rago, 1998:97) A emerso das massas trabalhadoras vinha de encontro a esses aspectos, atuando diretamente sobre a organizao material da estrutura social. Dada essa dimenso nova, o movimento dos trabalhadores conseguiu destruir na prtica instituies depravadas que visavam a perpetuar aquela estrutura (por exemplo, a lei antigreve). Sua atuao, essencialmente econmica, mostrou-se desde logo profundamente poltica. Elas mostravam o caminho a seguir: liquidar o alicerce econmico da ditadura, despedaar a poltica econmica da superexplorao do trabalho, dizer no, definitivamente, ao arrocho salarial e com isto puxar o tapete sob os ps do sistema (Chasin, 1980:17). E isso feria sua mais profunda necessidade: a de edificar uma concreta democracia de massas. Pois, no a exigncia de comer um claro direito democrtico? Ou, no a anistia a liquidao do arrocho da liberdade? E no h que anistiar a fome? E gritar pela existncia material no luta pela liberdade de expresso? (Chasin, 1980:132)

173 Os movimentos dos trabalhadores mostraram, pois, s oposies o caminho a seguir. Mesmo que padecendo de problemas de fundo, abordaram a questo basilar de que o empenho pela democracia jamais pode ser postulado parte das questes fundamentais que dizem respeito aos modos pelos quais o produtor direto est concretamente envolvido, em cada momento dos processos, na produo e reproduo da existncia material da sociedade. (Chasin, 1977:178) Demonstraram que A questo democrtica, da perspectiva do trabalho, e mesmo do prisma de certo liberalismo menos acanhado e superado, no puramente entendida como a questo relativa s formas de governo, ou melhor, aos modos pelos quais as classes dominantes exercem sua hegemonia. (Chasin, 1979:173) Sua importncia mpar para a histria brasileira faz ver todo o perodo anterior a maio de 1978 como uma longa e dolorosa fase de tentativas, embates, encontros e desencontros da resistncia democrtica; sendo com as greves que realmente vem a se instaurar um efetivo e verdadeiro movimento democrtico. (Chasin, 1980:120) Contudo, as massas, que apontavam o real objetivo a perseguir para alcanar a verdadeira democracia pois democracia, minimamente efetiva, e arrocho salarial no coexistem, nem podem coexistir, a no ser na democracia da autocracia burguesa institucionalizada , foram duplamente manietadas. Da parte do regime, que via ameaados os fundamentos do seu poder, a interveno. No h contradio entre as promessas do aperfeioamento democrtico e a represso efetivamente desencadeada, tendo em vista que so duas faces de um mesmo itinerrio: correr muito para no sair do lugar.
Em menos de quinze dias, mesmo com os descompassos de sua imaturidade, o movimento grevista obrigou o quinto presidente a desvestir o uniforme da renovao conciliadora, com que vem se travestindo, e a envergar sua verdadeira natureza. /.../ A persistncia e o fortalecimento do movimento de massas, xecando o regime de exceo nos seus fundamentos, induziu interveno. /.../ Mais ou menos represso, mais ou menos contraditoriedade com a distenso, o que preciso atentar que a interveno indica exatamente o objeto pelo qual, no momento atual, o regime continua disposto a empregar a fora. (Chasin, 1980:121 e 122-123. Grifos nossos.)

Mas no foi o regime o nico a atuar contra os interesses nacionais contra a busca pela efetivao democrtica. Tambm as oposies trataram de se apropriar dos movimentos dos trabalhadores, j ento desbaratados, e adequ-los aos seus interesses. Viam o movimento como um perigo para a abertura e, sob a inteno de aparar arestas e evitar choques frontais, intentaram primeiro conquistar eleies para depois cuidar da vida. Deixando para depois a questo econmica e, conseqentemente, afastando as massas, as oposies acabaram por deixar para depois a democracia. Com isso, O aprimoramento das formas polticas significou concretamente a manuteno da ditadura do grande capital. (Rago, 1998:92) O que mais uma vez destaca como a institucionalizao da autocracia burguesa, expresso jurdica do politicismo, bem como sua expresso armada, o bonapartismo, so formas de poder poltico de uma mesma forma de capital. O politicismo a sua essncia. A burguesia brasileira, pela sua estruturao histrica, no pode realizar seu papel de universalizante poltico, conciliando-se ou subordinando-se permanentemente com aquelas classes que esto em seu nvel ou acima dele e mantendo com as subordinadas uma relao em que a autocracia burguesa institucionalizada a forma da dominao burguesa em tempos de paz, [e] o bonapartismo sua forma em tempos de guerra (Chasin, 1982:11).

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2 - O MAGO DA AUTOCRACIA BONAPARTISTA

Golbery, como um intelectual orgnico de sua classe, foi quem melhor compreendeu a necessidade de transio, elaborando toda uma teoria para justific-la. Transformou-se, assim, no idelogo da auto-reforma. Um dos principais agentes do processo de auto-reforma do regime e importante interlocutor de Golbery, no obstante se situasse na outra ponta do regime, manifestava uma grande admirao pelo general. Ulysses Guimares dizia ter o maior respeito pelo requintado intelectual que foi o Golbery, cujas armaes brilhantes se constituram nos nicos desafios polticos enfrentados pelo MDB durante a ditadura. As outras dificuldades que tivemos eram com a fora bruta, a violncia fsica, com a norma jurdica pervertida, sem qualquer criatividade (Gutemberg, 1994:220). E acrescentava uma analogia:
Mesmo assim, Golbery sempre me pareceu uma verso do Amrico Pisca-Pisca, da fbula de Monteiro Lobato, O Reformador da Natureza. Para Amrico PiscaPisca, o mundo estava errado e a Natureza s fazia tolices. Por exemplo, ele no admitia que jabuticabeira fosse uma rvore sustentando frutinhas pequenas, e a abbora nascesse duma planta rasteira. At que, dormindo sombra de uma jabuticabeira, uma jabuticaba caiu no seu nariz. (Gutemberg, 1994:220)

Golbery considerado o principal arquiteto (OESP, 7-8-81), o estrategista do projeto poltico da auto-reforma do bonapartismo. Afinal, foi Golbery quem mostrou aos lderes dos partidos, com a frmula segurem seus radicais que ns seguramos os nossos, o caminho traado pelo presidente Geisel para seu projeto de pacificao poltica. (Veja, 18-6-75) Cabe reconhecer a sua paternidade no que se refere transio, lembrando que
o criador acabou propositalmente se recolhendo por trs da criatura, o general Geisel, que, de certa forma, foi quem levou a fama. Convm, /.../ em benefcio da verdade histrica, separar definitivamente esta entidade xipfaga que, na verdade, existiu, mas que, s vezes, tinha suas crises de identidade. /.../ Quando houve a escalada do terror, em 1975, em So Paulo, e a tortura desandou no DOI-Codi, Golbery andava adoentado. Geisel custou a se recompor, por conta prpria. Sem Golbery, Geisel no saberia exatamente o que fazer (Senhor, 22-9-87).

So inmeras as manifestaes que apontam Golbery como o artfice da transio, inclusive acima de Geisel. Reproduzimos mais duas. A primeira foi publicada pouco depois de sua morte:
No tenho dvidas, hoje, de que Golbery foi, realmente, o projetista da abertura, ainda que essa no fosse possvel de realizar sem a deciso poltica do general Ernesto Geisel. Todos os testemunhos so unnimes: j nos tempos de Castello Branco, ele, Golbery, defendia a distenso do regime como necessria e indispensvel. Seu raciocnio era direto e franco, como de hbito: a cirurgia revolucionria, dizia, j produzira seus efeitos necessrios, estava, pois, na hora de se retornar normalidade poltica, porque os governos autoritrios no se sustentam por si mesmos, s sobrevivem quando tm resultados sempre timos e isso, advertia, era uma tarefa impossvel de conseguir. (Bardawil, Senhor, 22-9-87)

A outra citao do prprio ex-presidente Figueiredo. Ele dizia, referindo-se a Golbery, que De sua inesgotvel capacidade de trabalho, em permanente oferta para a

175 conduo habilidosa dos assuntos mais delicados, da universalidade de seus conhecimentos e solidez de sua cultura, de sua pacincia sem limites para ouvir e compor idias que se antagonizavam, nasceram as melhores sugestes para as realizaes mais expressivas, e irreversveis, de meu governo. (Apud FSP, 8-8-81) Golbery, ao mesmo tempo em que fora um dos primeiros militares brasileiros a propugnar a superao do regime da Constituio de 46, diferenciava-se de outros setores militares desde o incio, acreditando que o regime de 64 era preciso para que se implementassem reformas econmicas extremamente necessrias para o pas, mas que no poderiam se efetivar em um regime democrtico. O principal idelogo da autocracia burguesa bonapartista /.../ tentou a cooptao da intelectualidade de esquerda para o projeto castelista quando ainda mal tinha assentado a poeira da conspirao. Ainda em 64, ele reuniu intelectuais progressistas e lhes disse isso, acrescentando que no se tinha inteno de perseguir ningum (Rago, 1998:315). Golbery, derrotado pela linha dura nas disputas internas do governo, fica no ostracismo durante o perodo mais duro do regime - embora se mantendo ativo na coleta de informaes , voltando apenas no governo Geisel. Ento, a novidade no trato da questo poltica - que seria a marca registrada dos novos presidentes em relao ao anterior - surge, ainda antes da posse. Indicado por Mdici para suced-lo na presidncia, Geisel convoca Golbery para a chefia da Casa Civil. Os sinais de mudanas eram to fortes que todas as atenes acabaram voltadas para a formao de seu governo. Mdici se melindrou com a precoce ateno que se dava ao futuro governo, especialmente porque Geisel emitia claros sinais de que se encaminharia por via diferente da dele em termos polticos. Mdici via aquela diferenciao como uma traio:
Nos seus estertores, o governo Mdici se incomodava com os efeitos sobre sua imagem dos sinais liberalizantes exibidos diariamente pelos escritrios do Largo da Misericrdia, no Rio, onde o general Geisel trabalhava na organizao de seu futuro governo, tendo como principal colaborador - seria melhor dizer parceiro - o general Golbery do Couto e Silva, por quem o presidente Mdici alimentava antiga apatia e muitas mgoas pessoais. /.../ Ora, Mdici presumia-se o responsvel pela indicao de Geisel e se considerava trado pela fixao to antecipada desse contraste em que passaria histria - como aconteceu - como chefe de um governo atrabilirio enquanto Geisel seria o presidente que ps fim tortura e censura. (Gutemberg, 1994:118)

s suscetibilidades de Mdici, ajunte-se o fato de ele ter sido ludibriado por Figueiredo (chefe da Casa Militar de seu governo), a quem nunca perdoou por t-lo enganado, em 1972, no momento em que se organizava sua sucesso, dizendo que Geisel e Golbery haviam rompido sua amizade. Foi graas a essa informao que ele indicou Geisel para seu governo, pois sua inimizade com Golbery era antiga e conhecida 30 .
30

Geisel confirma essa histria: o Mdici, ao longo da vida, sempre esteve ligado mais ou menos a ns. /.../ quando Costa e Silva foi escolhido presidente, Mdici foi indicado para o SNI e surgiu uma divergncia entre ele e Golbery. Dizem, mas no sei qual o grau de verdade, que, quando eu estava para assumir a presidncia, o Mdici, conversando com Figueiredo - que era seu chefe da Casa Militar - teria dito que achava que eu ia levar o Golbery para o meu governo e darlhe uma funo de destaque, mas que ele, Mdici, no gostaria que isso ocorresse. Nessa ocasio, o Figueiredo teria assegurado: No, o Geisel no vai levar o Golbery para o governo. Seria uma afirmao inverdica. Quando se constituiu o meu governo, o Golbery foi para a chefia da Casa Civil, e o Mdici se zangou com o Figueiredo. Isto o que consta, o que se diz, mas no d para saber se tinha havido isso ou no. evidente que eu no podia admitir que o Mdici quisesse interferir ou vetar um nome no meu governo. Era uma prerrogativa minha. O fato que consta sobre a divergncia entre o Figueiredo e o Mdici essa intriga (DAraujo e Castro, 1997:433). Ver, ainda: Bones, 1978:20 e Gutemberg, 1994:145.

176 De qualquer forma, Geisel assume em 1974 e d talhe novo sua administrao. Seu governo procura avanar em termos polticos e econmicos; contudo, busca faz-lo sem se livrar das caractersticas essenciais da ditadura, como o famigerado AI-5. Tal contradio aparente era resultado de uma estratgia que
procura impor abertura poltica sua prescrio de ritmo - lento, seguro e gradual -, mas precisa conviver com o que se convencionou chamar de entulho autoritrio e com a realidade do momento: j se haviam passado dez anos do golpe de 64 e os primeiros cassados recobravam seus direitos polticos. /.../ O presidente, empolgado com seu programa de desenvolvimento da infra-estrutura econmica, abre um ambicioso leque de iniciativas modernizadoras, enquanto o general Golbery - seu grande amigo, a quem entrega as operaes da distenso poltica - convence a sociedade de que so irreversveis os avanos da abertura. (Gutemberg, 1994:136)

Na chefia do Gabinete Civil, Golbery, o crebro poltico do quarto governo do regime militar de 64 (Gutemberg, 1994:145), comea a pr em prtica a reviso do processo poltico em curso. Sua influncia fundamental na definio do ritmo, abrangncia e dos sinuosos caminhos que o pas percorrer: a partir de ento, a conduo da poltica do governo revelou a inspirao golberyana em todo o seu poder (Pesce, 7-8-81). A auto-reforma do regime, no entanto, no cai como um raio em dia de cu azul. Golbery tem toda uma teorizao a respeito, exposta principalmente na famosa conferncia de 1980, que abordaremos a seguir. Em primeiro lugar, a questo da legitimidade 31 . A legitimidade, pensa Golbery, imprescindvel para a continuidade de qualquer governo. H, fundamentalmente, dois tipos de legitimidade: em primeiro lugar, H a legitimidade processual, adquirida pelos governantes atravs do processo de constituio do poder (Apud Ges, FSP, 19-9-87). Com este tipo de legitimidade os militares no podiam contar, por razes bvias decorrentes da forma como chegaram ao poder. Mas h tambm, destaca ele, outro tipo de legitimidade: aquela advinda da eficcia - no caso, econmica - que, ao atingir determinados objetivos, minimiza at a resistncia daqueles que no tiveram oportunidade de escolher seus governantes. Contudo, essa no uma legitimidade incondicional: exige, para se manter, que os efeitos benficos sejam solidificados e mesmo ampliados. E foi a que surgiu o problema para o regime de 64: enquanto havia um processo de acumulao e crescimento em curso, a oposio ficou acuada pelo sonolento descaso da opinio pblica. Quando, porm, a economia deixou de ir bem, os militares sentiram-se fortemente contestados. Para o crebro racionalista de Golbery, no poderia ser diferente, dado que
um governo autoritrio s se mantm enquanto eficiente. Ele no tem legitimidade constitucional. Ento, a legitimidade dele est no factual, na prtica. Ele s considerado legtimo enquanto est melhorando a situao de todo mundo, enquanto est produzindo resultados aceitveis. Agora, os resultados um dia so bons e outro dia so maus. Sofrem influncia externa, at de calamidades pblicas. Ento, a concluso parece lgica. No se pode jogar toda a legitimidade do governo em cima da realizao de um bom governo, porque isso utopia. Porque haver de chegar o dia em que esse governo no vai funcionar direito. (Cf. Senhor, 22-9-87)

Golbery no cita explicitamente Juan Linz e sua explicao, ento nova, da necessidade de abertura pela crise de legitimidade. Assim, no temos condies de saber se houve (e qual o grau) de influncia das teses de Linz no pensamento golberyano.

31

177 Por isso, continuava o general, quando comeamos o governo Geisel, a verdade que a abertura j deveria ter sido feita, idia tambm defendida por Geisel e que voltava idia castelista de que o perodo de exceo deveria ser o mais curto possvel. A gravssima situao econmica por que o pas passava, poca, justificava e impunha, portanto, uma reforma, pelo menos para alguns setores governistas 32 . Isso porque a sociedade, transformada numa imensa panela de presso, e os trabalhadores em particular, sob os efeitos nefastos do arrocho salarial, no aceitaria mais uma vez pagar o nus da crise. Golbery tinha clareza disso, como ficou exposto na citao acima. Ele sabia que no se pode ter todo o poder o tempo inteiro, especialmente em momentos de crise. Portanto, pela lgica, para alargar a base de apoio ao governo nesses momentos, necessrio abrir o esquema de poder, j que, como estampava editorial da Folha, Uma distribuio racional dos sacrifcios e nus da angustiante situao econmico-social em que nos achamos s ter eficcia se for aceita pelos diferentes setores sociais, e para que seja aceita imprescindvel que seja livremente negociada e democraticamente decidida (FSP, 88-81). E, afirma Golbery,
Tanto mais se faria isso imperioso, quanto fortes presses continuariam advindo dos outros campos: sob dramticas ameaas de crise sria, em conseqncia de renovados impulsos inflacionrios e desequilbrios irredutveis no balano de pagamentos, cruelmente afetado pela multiplicao incessante do preo do petrleo importado - o campo econmico; e sob tenses crescentes, sobretudo nas explosivas periferias dos grandes centros populosos e nas zonas do interior mais perturbadas por sucessivas calamidades climticas - o campo psicossocial. (PE:486; CN:25)

O processo decisrio , ento, o que est sendo posto na berlinda. Porm, tambm aqui os militares reformistas impuseram limites claros quanto ao que podia e ao que no podia ser decidido. E, desde logo, o que se abriu participao foi o campo poltico, especialmente o setor mais restrito da poltica partidrio-institucional, enquanto que a essncia econmica do regime foi colocada como absolutamente fora de discusso. Busca-se uma legitimidade que j no se sustenta no campo material da deciso (o que se decide) e sim em sua forma (como se decide) (Offe apud Andrade, 1997:19). Isso no escapa a Golbery. Ele prprio destaca que v na democracia, muito mais pondervel e crtico, o fator participao, criador e dinmico, do que a plena garantia de liberdades, por mais fundamentais que sejam estas; essa viso que lhe d plena confiana de que o prprio processo de aperfeioamento democrtico, ora em curso, acabe por despertar compreenses e energias novas que venham a ajudar, decisivamente, o rduo esforo de saneamento e recuperao que se vem, a duras penas, exercendo no campo econmico (CN:31; PE:492). Andrade faz um destaque que julgamos fundamental: h, no interior do mesmo termo participao, diversos contedos, diversas formas de concretizao. A utilizao do discurso participacionista no necessariamente da prtica, mas esta inclusive, dependendo de como se d traz, geralmente, um contedo simblico que, politicamente, pode vir a ser bastante til.
Andrade ressaltou que a diminuio do crescimento econmico coincidiu, em 1974, com a reorientao para aspectos sociais das preocupaes de rgos como o Banco Mundial. Interligados esses dois fatores, ocorre nesse momento, conforme Andrade, a substituio da DSN pela Doutrina de Integrao Social. O pas assiste ao surgimento de vrios rgos de conotao social, a reorientao da poltica habitacional e o advento do desenvolvimento comunitrio como estratgia de atuao em relao aos problemas sociais. Temas como descentralizao e participao, que haviam estado fora do dicionrio poltico da ordem autoritria, passam a fazer parte dos planos e programas do governo, numa tentativa de mudar o carter das aes governamentais, revestindo-as de uma retrica que, at ento, era parte do discurso das oposies (Andrade, 1997:46). Essa interpretao peca por dissociar da DSN seus dois plos constitutivos: a segurana e o desenvolvimento, que inclui a garantia de um mnimo de bem-estar social. Mas importante destacar, como ela faz, a nfase maior dada aos problemas sociais a partir da deciso da abertura.
32

178 Desde a primeira metade dos anos 70, diz Andrade, Como no havia recursos suficientes para responder a toda a demanda por bens e servios pblicos, era preciso definir prioridades, e isto era algo problemtico, se feito revelia da clientela, num momento em que se fazia necessrio criar bases seguras de legitimao da ao governamental (Andrade, 1997:133). De fato, assim que se permite a participao e a discusso de certos assuntos especialmente depois de uma fase em que isso era totalmente proibido - consegue-se a adeso de amplos grupos antes oposicionistas, animados com o progresso e/ou preocupados com um retrocesso. O conflito substitudo pela negociao, em um processo que muito mais vantajoso, se mantido sob controle, para o grupo que detm o poder. De maneira que a abertura participao, naquele momento, concretizada dentro dos limites impostos pelas agncias governamentais, traz muitas vantagens para o poder pblico. De qualquer forma, em muitos Estados, A nfase na participao era a tnica desse novo discurso, uma participao revestida de um contedo tico-humanista e, em certo sentido, esvaziada de contedo poltico. /.../ A adoo desse novo discurso e dessas novas prticas no significava uma mudana radical no perfil do sistema de poder (Andrade, 1997:86-87). Isso porque O projeto de liberalizao do regime autoritrio, ao mesmo tempo em que era reformista no que diz respeito adoo de formas mais modernas de atuao, sustentava-se politicamente em bases conservadoras, alimentando-as e fortalecendo-as (Andrade, 1997:57). Cardoso destaca que hegemonia oligoplico-autoritria buscada contempla momentos de verificao de vontades, dando sociedade a iluso de participao, mas mantendo a ordem acima de tudo, querida por todos, se possvel: imposta na marra, se necessrio. Ordem com lei, por certo. /.../ o cidado ser respeitado (relativamente) e a ordem estabelecida ser mantida (absolutamente) (Cardoso, 1981:11)

Os Maquiavis da Ditadura e o AI-5

O Ato Institucional n 5, decretado em 13 de dezembro de 1968, esteve a partir de ento no centro das discusses em torno do carter ditatorial do regime. Baixado meio a contragosto por Costa e Silva, o famigerado e tristemente clebre AI-5 marcou o recrudescimento da represso e do carter intimidatrio da ditadura militar. A presso pela decretao do AI-5 foi, fundamentalmente, como sabido, da assim chamada linha dura, ou, segundo Oliveiros Ferreira, o partido fardado (embora muitos de seus nomes importantes fossem civis). Constitua um golpe dentro do golpe, contra a oposio e mesmo contra a Sorbonne. Contudo, como lembra Rago, que isto no nos leve a que, tecendo as diferenas, esqueamo-nos do trao comum, pois vrias dos castelistas tinham a plena convico de que, enquanto durasse a subverso, haveria a necessidade do terrorismo aberto, no-mascarado (Rago, 1998:109). Golbery expressava como A Revoluo de 31 de maro, sem quaisquer propsitos definidos de centralizao ou de autoritarismo, foi obrigada pelas circunstncias a esposlos, afirmar e reafirm-los, inicialmente para sanear a economia e manter a ordem pblica, depois em contraposio a um terrorismo irresponsvel; lentamente incorporando-os como elementos essenciais reconstruo nacional e criao, afinal, da grande potncia emergente de nossos sonhos (GB:12; PE:473). Assim, ele ressalta sem pudores, j nos anos 50, se por um lado A guerra sempre serviu de justificativa ditadura, desde os tempos de Roma antiga, por outro lado, o mais importante, o napoleonismo da prpria dinmica dos processos revolucionrios profundos (PE:23). Um exemplo, no obstante fosse contrrio decretao do Ato, Golbery acreditava, conforme exprimiu na Conferncia de 1980, que a liberdade da imprensa e a liberdade da

179 palavra pem em equao o problema transcendental de at onde permitir que o poder das idias, sabiamente manipulado, possa servir de trampolim s idias de poder (GB:20-21). Ele considerava a censura inteligente e eficiente muito difcil mas, como vemos aqui, era uma questo que se punha. Uma democracia liberal em moldes clssicos era assim descartada. Em 3 de janeiro de 1969, Golbery manteve contato com o embaixador, John Thuthill, e o conselheiro poltico da embaixada dos EUA, Frank Carlucci. A conversa demonstra que ele continuou ativo nos seus anos de desgraa poltica na coleta e anlise de informaes polticas. Comprova, tambm pela primeira vez, o estreito contato que Golbery manteve, pelo menos nesse perodo, com o governo dos Estados Unidos (Sotero, OESP, 13-12-98). Nessa conversa, fica claro que Golbery discordou da decretao do Ato. Segundo Golbery, o AI-5 era totalmente desnecessrio porque Castelo Branco procurou transmitir a seu sucessor todos os poderes necessrios para enfrentar qualquer possvel contingncia. Tinha certeza de que havia alcanado seu objetivo, comentando em certa ocasio que o governo Costa e Silva seria um timo governo porque as condies haviam sido criadas para ele. (OESP, 13-12-98) Golbery deixou claro na conversa que considerava alguns dos principais responsveis pelo AI-5 homens pequenos, preguiosos, incompetentes e, em alguns casos, com claros sintomas de desequilbrio mental. (Sotero, OESP, 13-12-98) Para Golbery, o governo Costa e Silva foi inepto ao no se utilizar da autoridade que possua a fim de concretizar polticas governamentais reformistas cujas bases foram lanadas por Castelo. Via Costa e Silva como uma pessoa com grandes qualidades humanas; no entanto, entre estas suas qualidades no figurava a liderana. Ele acreditava que o governo no tem orientao segura e, com falta de percia, com inao e ministros incompetentes, agravou e criou problemas em vez de solucion-los. Golbery citou especificamente o setor estudantil e a inabilidade com que o governo tratou o caso Mrcio Moreira Alves como exemplos. Na opinio de Golbery, o senador Daniel Krieger tinha a soluo adequada quando props que a prpria Cmara lidasse com Alves, censurando-o por falta de decoro parlamentar e, conforme deixou implcito, removendo-o do cargo. Com a presso do governo, os deputados foram empurrados para uma posio em que seria quase vergonhoso para eles votar pela suspenso da imunidade parlamentar de Moreira Alves. (Thuthill, OESP, 13-12-98) Em referncia aos maquiavis da linha dura, Golbery afirmou que estes fazem presso nos bastidores, dando preferncia aos aspectos negativos de uma revoluo preocupam-se com desforras, como a suspenso de direitos polticos, remoo de altos funcionrios de seus cargos e confisco de propriedades. Segundo o general, provavelmente este mesmo grupo havia fabricado o caso Moreira Alves, fazendo algazarra em torno de um discurso que passara despercebido. Os generais que pressionavam pelo ato no percebiam que era um anacronismo, pois, como Golbery gostava de ressaltar, no se pode querer toda fora durante todo o tempo exatamente o que se propunha com o AI-5. O perigo do AI-5, para ele, no estava apenas na sua onipotncia, na proteo corrupo pela censura imprensa, ou na violao dos direitos humanos, pela suspenso do habeas-corpus: o AI-5, sobretudo, centralizava perigosamente o poder (JT, 7-8-81). Esse, como veremos, considerado por Golbery como um pecado capital. A centralizao excessiva traz em seu seio os germes que impulsionam a descentralizao e, de acordo com o grau de retardo da situao do momento em relao necessidade de descentralizao, esta pode se dar pelo meio que ele mais teme: uma ruptura catica. Alm disso, para ele, em muitos casos, o governo exagerava no uso do instrumento excepcional que era o AI-5: era como usar estreptomicina para tratar resfriados, fazer lobotomias para extirpar verrugas e dar um tratamento de pneumonia a uma simples gripe.

180 Porm, diante da oposio bipolar, e pela simples existncia do Ato, o governo se veria obrigado a utiliz-lo enquanto esse existisse, a fim de manter a autoridade. Diante de tal situao, na chefia da Casa Civil de Geisel, ele desabafou: o AI-5 era to insuportvel para a oposio quanto desagradvel para o governo (Gutemberg, 1994:147). Por tudo isso, Golbery foi um dos primeiros conspiradores de 1964 a conceber a necessidade de um estratagema capaz de acabar com a ditadura do AI-5 sem uma exploso poltica e social (JT, 7-8-81). A premissa era que no existe possibilidade de manter um regime de exceo - transitrio por essncia - sem promover sua institucionalizao por meio da adoo de regras duradouras e claras. Mais que isso: Golbery achava que os trs governos anteriores j haviam cumprido seus objetivos no setor de segurana. Ele enxergava, parte, um grupo de generais que acreditava firmemente na ameaa comunista, especialmente na castrista. Embora achasse que estavam certos at certo ponto, Golbery dizia que eles exageram demais a ameaa e esto vendo fantasmas. Segundo Golbery, sabe-se muito bem que a esquerda est dividida em vrias faces e no representa ameaa sria e imediata ao governo (Thuthill, OESP, 13-12-98). Mas a forma de livrar-se do incmodo instrumento de poder no era consensual.
Alguns defendiam a incorporao pura e simples do AI-5 que identificavam como sendo o grande empecilho aplicao integral da Constituio /.../. Outros entendiam que era necessrio eliminar o AI-5, mas preservando algumas de suas prerrogativas nas mos do governo, de modo a assegurar ao Estado meios para garantir a estabilidade poltica e o desenvolvimento econmico. Um terceiro grupo entendia que a institucionalizao somente seria alcanada pela eliminao do AI-5 acompanhada de medidas que levassem a alguma modificao da Constituio de 1967. (Mathias, 1995:63-65)

Mas Golbery no via, naquele momento, possibilidades de moderao no curto prazo. Ele destaca que o fato de a primeira lista de cassaes ser curta e no incluir juzes do Supremo Tribunal Federal era encorajador. Mas, no geral, duvidava seriamente de que polticas mais moderadas fossem adotadas logo. Pelo contrrio, expressava um temor: Haver mais cassaes e talvez o Supremo Tribunal seja atingido, algo que Castelo sempre impediu, e a promessa de reconvocao do Congresso para maro no era muito crvel. Na opinio de Golbery, muito significativo o fato de o AI-5 no especificar um tempo limite. Castelo entendia que as limitaes contribuem para a moderao, para o saneamento rpido e o fim do perodo de exceo. (Thuthill, OESP, 13-12-98) A oposio do general ao AI-5, como se v, no era baseada em princpios democrticos ou humanitrios. Baseava-se no temor de que a centralizao excessiva gerasse aqueles efeitos que sempre questionava.
O general Golbery calcula que o nico acontecimento capaz de justificar o AI-5 e o que veio depois a execuo das reformas necessrias. Ele citou especificamente a reforma agrria, o ensino, a estabilizao financeira, a taxao e a redistribuio da riqueza nacional. Ele se mostrou mais otimista com a possibilidade de reformas do que com as perspectivas de moderao, pois percebe que Muricy e outros generais no se opem s reformas. De outra parte, destacou que eles no tomaro a iniciativa da execuo das reformas sociais e econmicas porque no esto muito preocupados com elas ou empenhados nelas. /.../ Mas disse que Delfim Netto est adotando poltica econmica benfica. (Thuthill, OESP, 13-12-98)

181 Ele, Golbery, estava interessado em intervir para incentivar a moderao e as reformas, e o disse explicitamente. Considerava muito perigoso, nesse contexto, a denncia enftica do recrudescimento da ditadura. Enrgica presso internacional - presso dos EUA sobre a assistncia que eles do, por exemplo - extremamente perigosa, segundo o general Golbery, pois foraria os militares a cerrar fileiras em torno do lema do nacionalismo exacerbado. Aos EUA ele recomendou cautela. Afinal, Conforme comparou, eles esto num tnel e acabaro saindo do outro lado, desde que no fiquem bloqueados dentro do tnel. Golbery acha que, se eles forem, as conseqncias talvez sejam mais graves, pois radicais dentro do governo assumiro o controle. (Thuthill, OESP, 13-12-98) A leitura do relatrio da conversa indica que o conselho de Golbery a Thuthill provavelmente teve um peso decisivo na calibragem da reao de desaprovao de Washington ao AI-5 /.../. As prioridades americanas na Guerra Fria /.../ certamente tambm contriburam para que Washington levasse em conta o conselho do general brasileiro e evitasse crticas pblicas contra as arbitrariedades perpetradas pelos generais e seus auxiliares civis em Braslia.

Professor de Harvard Recomenda ao Governo: Descompresso J!

Durante a ditadura Mdici, Samuel Huntington, professor de Harvard, preparou, a pedido do ministro Leito de Abreu, um estudo sobre uma possvel sada honrosa da ditadura explcita. Como lembra Rago, as idias do professor de Harvard j eram conhecidas da intelectualidade conservadora brasileira, que freqentemente o consultava. Elas estaro presentes em certas conceituaes de Roberto Campos, como, por exemplo, o uso classificatrio para este perodo de autoritarismo democrtico no lugar de ditadura militar, suas anlises das grandes ondas de democratizao e de refluxos de autoritarismo no mundo (Rago, 1998:252). Pode-se ainda encontrar em Huntington formulaes que eximem o estamento militar do pecado de golpismo: segundo o professor, a interveno das Foras Armadas na poltica s ocorre em vista de uma crise no poder civil. Somente quando instituies apolticas - Igreja, empresariado, universidades - se politizam, em funo daquelas mudanas econmicas, perdendo seu eixo de poder, que as Foras Armadas penetram no vcuo de um mandante universalmente aceito e restabelecem a ordem. No documento encomendado pelo governo, denominado Abordagens da Descompresso Poltica, Huntington alertava para as conseqncias negativas advindas de perodos de desenvolvimento econmico, os quais aumentam a desigualdade de distribuio de renda, modificam as relaes estabelecidas entre grupos sociais, estimulam nveis mais elevados de mobilizao social, intensificam as tenses sociais, aumentam as presses sobre o governo e encorajam o envolvimento de grupos na poltica (Apud Rago, 1998:251). O Brasil, que passava por modificaes econmicas acentuadas, devia evitar os riscos inerentes a tal situao. A melhor forma de faz-lo, segundo Huntington, era descomprimir, preferencialmente de forma impessoal - uma descompresso sem descompressor. A descompresso, para Huntington, teria trs componentes:
Institucionalizao de procedimentos para determinar a sucesso em cargos pblicos, muito especialmente na Presidncia, como tambm no Congresso e em cargos estaduais, e para elaborao de decises entre grupos pertinentes na formulao de polticas pblicas; O alargamento da participao na escolha de autoridades pblicas e na elaborao de polticas, de modo a representar mais grupos de interesse legtimo e mais setores da populao no processo governamental; A

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liberalizao de restries em curso; de direitos individuais, polticos e civis e uma aberta discusso pblica de questes governamentais e polticas (Apud Rago, 1998:252).

O professor procurava desvincular a democratizao dos objetivos puramente instrumentais. Huntington considera que este processo de transio se vinca a vrios fatores como os valores ticos bsicos, a responsabilidade e eficincia governamental, a prpria imagem internacional do pas, sendo que a democratizao pode ser alternada por outras formas de representao poltica do povo (Rago, 1998:252). Contudo, reitera a probabilidade do colapso do regime e o risco de um retrocesso, defendendo, ao mesmo tempo, um afrouxamento gradual dos controles autoritrios, executado muito de perto pelo poder. Esse ponto enfatizado: o governo deveria demonstrar que o processo est sob seu domnio, sem parecer em nenhum momento ceder a presses de grupos oposicionistas. Segundo o professor de Harvard, ceder a exigncias poria o risco de perder o controle do processo. De acordo com Rago, O documento plasma uma ordem seqencial de problemas, colocando-os numa distribuio determinada: primeiro a institucionalizao, depois a expanso da participao e da representao e, finalmente, a liberalizao (Rago, 1998:253). Por outro lado, Huntington alerta para que a discusso em torno de quem deva ser o presidente no redunde em discusses sobre como o presidente deve ser escolhido. Ou seja, segundo o professor, no se devia pr no horizonte a possibilidade de uma eleio direta, mas apenas um aperfeioamento do processo de consulta, incluindo a burocratas civis, empresariado, produtores rurais e classes trabalhadoras. Prega, pois, o alargamento da base poltica do governo. O cientista de Harvard, complementa Rago, na parte das conseqncias polticas do desenvolvimento, tenta caracterizar a necessidade de assimilar as reivindicaes sociais essenciais, para a determinao mais explcita das formas e direo desejveis que a descompresso poltica dever tomar. Em outras palavras, antecipar as demandas da sociedade civil para no perder o controle do governo. (Rago, 1998:254) Huntington ainda chega a sugerir que o Brasil poderia se espelhar no mecanismo de institucionalizao do processo mexicano - na ausncia de um Partido Revolucionrio Institucional, sugere a criao de um partido para desempenhar aqui o mesmo papel de se conservar e se autoperpetuar no poder, abrangendo nele o mximo de agrupamentos e deixando as oposies com seus padres antigos de volatilidade, personalismo e populismo. Em seu livro A Ordem Poltica nas Sociedades em Mudana, especialmente no captulo Partidos e Estabilidade Poltica, Huntington reitera as mesmas idias. Ele ressalta como, nas sociedades em fase de modernizao, surgem e atuam novos grupos socioeconmicos que ou no existiam ou no tinham vez na sociedade tradicional. A assimilao desses novos grupos no sistema poltico, adverte o professor, absolutamente fundamental para a estabilidade do sistema. O problema est, para Huntington, na questo da expanso da conscincia e da participao poltica produzida pela modernizao. De acordo com ele, As comunidades polticas que mantm um equilbrio estvel entre participao e institucionalizao em nveis baixos de ambas enfrenta a perspectiva de futura instabilidade a menos que o desenvolvimento das instituies polticas acompanhe o ritmo da expanso da participao poltica, acrescentando que, caso as perspectivas nesse sentido sejam baixas, o sistema poltico dessas sociedades ser caracterizado pela instabilidade (Huntington, 1975:404). Sendo assim, havendo um equilbrio entre a participao e a institucionalizao, em que as instituies so capazes de absorver novas foras sociais e novos graus de participao, a sociedade ser estvel.

183 Ainda segundo o professor de Harvard, Os meios institucionais principais de organizar a expanso da participao poltica so os partidos polticos e o sistema partidrio (Huntington, 1975:405). Ao contrrio das sociedades j modernizadas, em que h instituies fortes, nos pases que entraram tardiamente na fase de modernizao faltam instituies polticas tradicionais capazes de se adaptarem com xito s necessidades do Estado moderno. Em vista disso, a reduo da probabilidade de instabilidade poltica resultante da expanso da conscincia e do envolvimento polticos exige a criao de instituies polticas modernas, isto , partidos polticos, desde cedo no processo de modernizao (Huntington, 1975:406). Para o professor Huntington, os pases modernizados tardiamente so obrigados a enfrentar em tempo reduzido problemas que os outros pases enfrentaram durante perodos histricos relativamente longos. Para esses, aconselha prioridade mxima ao reino da poltica e sua organizao. Ele adverte: Um alto nvel de participao combinado com nveis baixos de institucionalizao partidria poltica produz poltica anmica e violncia. Inversamente, porm, um nvel baixo de participao tende tambm a enfraquecer os partidos polticos vis-avis outras instituies polticas e foras sociais. E arremata com uma assertiva que, a nosso ver, seria seguida risca pelo regime que se auto-reformava: do interesse dos lderes partidrios expandir a participao poltica desde que sejam capazes de organizar a participao dentro do esquema do seu partido (Huntington, 1975:409). Os partidos polticos, ressalta o professor, dirigem a participao poltica de caminhos anmicos para os canais eleitorais. Assim, um Estado sem partidos frgil, pois no dispe de meios institucionais para gerar e absorver mudanas permanentes. A sua habilidade em modernizar o pas do ponto de vista poltico, econmico e social drasticamente limitada. Um partido forte, assevera, substitui interesses privados fragmentados por um interesse pblico institucionalizado. Partidos fortes tambm se tornam o lao que liga uma fora social a outra e cria uma base de lealdade e identidade que supera os agrupamentos mais paroquiais (Huntington, 1975:412). H, pois, que contrapor-se aos opositores - conservadores, burocratas e populistas da organizao partidria, pois Quanto maior o tempo em que o vcuo organizacional mantido, mais explosivo se torna (Huntington, 1975:413). Um regime sem partidos conservador; um regime antipartidrio reacionrio. O progresso da modernizao aumenta a fragilidade do sistema sem partidos. (Huntington, 1975:414) Ademais, conclui o professor de Harvard, A competio partidria em geral se justifica em termos de democracia, governo responsvel e predomnio da maioria. Pode tambm justificar-se, entretanto, em funo da estabilidade poltica, fator que parece ser o foco de sua ateno (Huntington, 1975:435). De fato, a concluso do livro citado tambm aponta para isso. Segundo Huntington, A organizao a estrada para o poder poltico, mas tambm a base da estabilidade poltica e, portanto, a condio essencial da liberdade poltica (Huntington, 1975:467, grifos nossos). O vcuo de poder existente nos pases em modernizao s pode ser preenchido de forma permanente pela organizao poltica. A estabilidade do sistema est ameaada: Ou as elites estabelecidas entram em competio entre si para organizar as massas por intermdio do sistema poltico existente ou as elites dissidentes as organizam para derrubar o sistema. Embora Golbery no cite explicitamente estas teses de Samuel Huntington, ele as conhecia: ainda em 1974, em visita ao Brasil, o professor Huntington deu diversas declaraes aos jornais, aconselhando o presidente Geisel a descomprimir lenta e gradualmente o campo poltico. A influncia existiu, portanto. Ademais, a Conferncia de 1980 deixa entrever, no que atenta questo partidria, muitas idias comuns entre Golbery e o professor de Harvard, conforme veremos.

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A Lei dos Rendimentos Decrescentes e a Teoria do Retardo Cultural

Golbery baseia toda a sua tematizao sobre a auto-reforma do regime na Lei dos Rendimentos Decrescentes, que vimos com mais detalhe ao tratar especificamente da SN. Bebendo na fonte de Turgot e dos marginalistas que lhe sucederam, Golbery transporta uma teorizao essencialmente econmica para o cenrio poltico. Recordemo-la:
Mas, se h um mnimo de segurana a atingir ou a manter /.../, existe tambm, por outro lado, um mnimo de bem-estar que se precisa assegurar, de qualquer forma, em permanncia. que, neste particular, rege, como na cincia econmica, a lei eterna dos rendimentos decrescentes /.../. medida que se sacrifique o bem-estar, em proveito da segurana, canalizando recursos daquele para esta, o primeiro decresce, enquanto a segurana aumenta mais que proporcionalmente, a princpio; a partir de certo ponto, porm, sofre a curva acentuada inflexo, e os acrscimos, agora cada vez menores, acabaro por se anular de todo, quando se haja alcanado o que, teoricamente, corresponde ao mximo de segurana compatvel com a limitao imposta pelos recursos disponveis. Reduza-se, ainda mais, o bem-estar, e a prpria segurana vir, agora, decrescida. (GB:14)

No que concerne ao problema poltico da abertura, propriamente dito, a lei dos rendimentos decrescentes retraduzida ou complementada por Golbery com a teoria do retardo cultural, que ele deriva de Ogburn. Segundo esta ltima, no se pode avanar demasiadamente em um campo enquanto outros permanecem muito atrasados, pois isso provocaria uma ruptura catica. Vamos acompanhar um pouco seu raciocnio. No obstante seu empenho, muitas vezes recompensado, em conhecer a particularidade brasileira, descartando at noes de h muito herdadas que considerava inadequadas nossa formao, Golbery tinha uma sria tendncia para a autonomizao da histria e, mais especificamente, de certos fenmenos histricos como o Estado. Como vimos, este era pensado quase como um organismo vivo, autnomo em relao sociedade e prpria histria que as sociedades constroem. Assim sendo, busca captar o que considera uma dialtica inerente a eles: as sstoles e as distoles, conceitos emprestados da biologia, que retratam os movimentos espasmdicos do corao para bombear o sangue ao corpo. Apesar desse pensamento autnomo-biologista - em que ressoa fortssima e, de resto, amplamente reconhecida, a influncia das reflexes do conservador Oliveira Vianna -, Golbery pretende estar reproduzindo uma dialtica inerente ao Estado quando estuda os processos de centralizao e descentralizao. A vida dos Estados vista como o desenrolar-se de uma sucesso constante de etapas centralizadoras ou descentralizadoras, que substituiriam uma outra aparentemente de forma independente da sociedade. que essa sucesso, ao que parece interminvel, de fases de centralizao e fases de descentralizao desponta como caracterstica sempre presente na evoluo, no s do Brasil, mas de todos os Estados modernos (PE:476; CN:13). O fato de relativizar tais caractersticas, emprestando-lhes um carter no-linear, replena de desvios e retrocessos, no obnubila, porm, a raiz politicista que engendra tal pensamento. como se cada poca histrica, por si s, conduzisse fatalisticamente o Estado e a Nao ao centralismo ou descentralismo, porque so seus parmetros especficos de espao e de tempo que condicionam a humanizao do territrio geogrfico. Acompanhemos esse raciocnio com suas palavras:

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Alm disso, cada poca histrica - com seus parmetros especficos de espao e de tempo a condicionarem toda e qualquer equao de circulao e, pois, tanto a permeabilidade da base fsica do Estado difuso de idias, ao intercmbio de bens, mobilidade horizontal de pessoas e grupos sociais, como, sobretudo, ao alcance efetivo das aes de comando e de controle - admitir um mximo e um mnimo de centralizao ou descentralizao que lhe sero imanentes e, assim, intransponveis de fato. (PE:477; CN:15)

No escapa a Golbery o grau de deturpao da histria que essa viso parcial carrega. A histria , para ele, passvel de vrias interpretaes ou recortes, e ele se prope a fazer o recorte dele, embora admitindo que longe estamos da conceituao muito mais rica e objetiva da periodizao histrica, na qual no deixaria de inserir-se esse dado a mais. Assim, mesmo admitindo a parcialidade de seu recorte histrico, Golbery o percebe como legtimo e continua insistindo em que tais fases centralizadoras/descentralizadoras, longe de poderem ter seu incio e fim facilmente estabelecidos, na verdade tm uma fluidez permanente e incontrolvel. Por isso, somente lhe pode ser assinalado um clmax dentro de uma faixa, larga e difusa, de maximizao que, justamente por ser larga e difusa, no permite uma segura e precisa avaliao axiolgica: como dizer-se que o processo, em seu conjunto, estar mais adiantado hoje do que h um ano, uma vez que ele envolve campos diversos, alis maldefinidos e nunca estanques, se no de forma relativa? (PE:477; CN:15-17) Uma vez que a vida do Estado multiforme, englobando vrios campos e mltiplos controles, pode-se conceber que tais campos apresentaro avanos e retardos uns em relao aos outros: o processo centralizador, tanto como o de descentralizao, avanar - se avanar - como que num movimento ondulatrio - nunca progredindo linearmente, portanto - atravs dos campos todos em que se veja, artificialmente embora, decomposta a realidade, de si mesma ntegra e indivisvel (PE:478; CN:15). Assim, pois, Em dado momento, o processo de centralizao (ou descentralizao) estar mais avanado, por exemplo, no campo poltico do que no campo econmico - ora muito mais avanado, ora um pouco menos. E isso corresponde noo de retardo cultural PE:479; CN:18). Segundo esse pensamento, o avano de um campo em detrimento de outro tem consigo um terrvel poder de trazer o caos, que a ruptura, ou no mnimo a freagem do processo de avano naquele primeiro campo. Quase com as mesmas palavras, o que consideramos uma influncia golberyana, o presidente Geisel tambm se manifestou a esse respeito, ao realizar a
denncia da retrogradao dos intentos da Revoluo Restauradora, por causa da atrofia de um dos seus fatores, haja vista que o atraso de um deles frear inevitavelmente o avano de todos os demais /.../. Nessa dinmica, esclarece, no h lugar para retardos ou hiatos excessivos. De pouco valer concentrar-se o mximo de esforos num setor nico, desprezando os demais, porquanto a inrcia destes se acrescer, com o tempo, alm de toda a medida, impondo as restries da conhecida lei geral dos rendimentos decrescentes. (Rago, 1998:234)

O fenmeno do retardo cultural, destaca Golbery, traz consigo a noo de um potencial catastrfico de ruptura ou deslocao do sistema e, portanto, o conceito de limites impostos magnitude daquele retardo, pois, Ao atingir este certa dimenso, evidente que passar a atuar como fator de desacelerao e freada do processo todo, com repercusso nos demais campos, a menos que o processo seja to poderoso que desencadeie, ele mesmo, impulsos renovados no setor retardado (PE:478; CN:17). Por isso, diz Golbery, essa deve

186 ser uma questo que no pode passar em branco para aqueles que se propem a dirigir os destinos de uma Nao:
Conselho aos estadistas, estrangeiros e planejadores: evitem deslocaes no sistema e o perigo de rupturas, cuidando em que o processo, seja de centralizao ou descentralizao, no se retarde em excesso num dos campos qualquer em relao aos demais. Por outro lado, apliquem estmulos bastante fortes no campo que seja mais propcio, segundo a velha ttica do aproveitamento das linhas de menor resistncia, para provocar ou facilitar a progresso, tambm, em outros campos mais retardados ou resistentes. Quando no, ao contrrio, instituir bloqueios ou balizamentos bem visveis naquele campo mais permevel, para conter a foras impulsionadoras de maior presso que possam resultar desagregadoras ao progresso de conjunto. (PE:478; CN:17)

Ou seja, como so interligados, os diversos campos de atuao do Estado tendem a gerar efeito sobre os demais campos. A relao dinmica entre centralizao e descentralizao destacada:
Imbricados como so, verso e anverso de um mesmo processo nico apreciado em sentidos opostos, tese e anttese imersas numa sntese que o que lhes assegura, atravs de si mesma, a existncia de ambas - a centralizao como a descentralizao esto presentes, as duas, a cada momento, o processo evolutivo de qualquer delas acarretando, inexoravelmente, o surgimento de fatores intrnsecos da outra que assim nasce da primeira, /.../ crescendo at afirmar-se e inverter, afinal, os termos da equao de equilbrio permanente em que se traduz a coexistncia de ambas em sua imanente oposio. Na fase ascendente da centralizao, produzemse, portanto, grmens da prpria descentralizao, obstculos que comeam desde logo a opor-se primeira, mas sem fora de retard-la, quanto mais det-la; tudo se passa assim, at que a centralizao atinja seu clmax; a partir de ento, os fatores em oposio ou obstculos comeam a preponderar, freando o processo de centralizao cada vez mais, at reduzi-lo inoperncia. (PE:479; CN:18)

Assim, a prpria histria, desenvolvendo-se naturalmente sem a interveno dos homens, acaba por criar os sucessivos momentos de centralizao e de descentralizao. O golpe de 64, segundo Golbery, no tinha inteno de instituir um regime absolutamente centralizador, ainda menos por to longo tempo. O que se queria era, simplesmente, varrer para fora do cenrio sociopoltico nacional algumas figuras e ideologias consideradas nefastas, ao mesmo tempo em que se impulsionava a economia com medidas que dificilmente seriam implementadas num governo plenamente democrtico, por requererem intensa interveno estatal ou o enfrentamento de interesses fortes. Mais detalhadamente, seriam necessrias medidas para preservao da tranqilidade e da ordem social, ao mesmo tempo em que se promovia a assepsia ideolgica e financeira. Para realizar tais tarefas, o governo, mais precisamente o Executivo, desembocou em uma centralizao excessiva. Os movimentos de resistncia terrorista t-lo-iam obrigado a manter a centralizao. Tinha-se, por fim, uma situao em que
Em franca escalada cumulativa, a centralizao poltica e administrativa acabaria por concentrar na Unio e, dentro desta, no Poder Executivo, a suma do Poder Pblico, ao qual nem poderiam atingir pequenas rebeldias distantes, muitas delas at simplesmente ignoradas, enquanto desafios mais fortes ou prximos encontrariam sempre gil e decisiva represso. (CN:24)

187 Golbery cita Geisel, para reiterar que nenhuma nao pode prescindir do planejamento estatal. Mas este no pode, segundo o ex-presidente, ser pretexto para ditaduras.
Em nome de um planejamento estatal, proclamado embora como devendo ser democrtico e nada mais que indicativo, e da SN episodicamente ameaada, de fato, por um inesperado surto terrorista, o processo de centralizao polticoadministrativa progrediria a largos passos, medida que novos impulsos inflacionrios e repetidas dificuldades no balano de pagamentos, mesmo que decorrentes, em larga proporo, de incontrolveis fatores externos, voltassem a desequilibrar o sistema econmico sob presses insuportveis. (Apud PE:483; CN:22)

A ditadura pde centralizar o poder porque, segundo Golbery, chegou-se a a um mximo de circulao de bens, de pessoas e de idias permeando a vasta base territorial (GB:12) e, lembre-se, a circulao condiciona geopoliticamente as possibilidades de interferncia humana em dado territrio. Como em todo processo de centralizao de qualquer instituio social, Expandir-seia, pujante, a burocracia, quase nunca bem orientada e esclarecida, atuando em muitos casos em rebeldia disfarada ou persistente resistncia passiva para exclusivo benefcio prprio (PE:484; CN:23). A burocracia acaba por botar obstculos ao Estado, cuidando mais de seus interesses mesquinhos do que do prprio processo de centralizao racionalista e planejador, a que deveu seu nascimento e a preponderncia de seu difuso, embora onipresente, poder. E isso , alis, confortador... (CN:18; PE:479). O crescimento da burocracia corporativista e corrupta avultaria, sobretudo, com a proliferao de fundaes evidentemente fictcias e, na administrao indireta, a de novas empresas pblicas ou de economia mista, /.../ dotadas todas de estatutos privilegiados e larga dose de autonomia, o que fazia necessrios novos instrumentos centralizados de controle. E a reao natural excessiva centralizao far-se-ia, assim, em nome de uma eficincia a exigir decises imediatas justo ao nvel da execuo, clamando por uma descentralizao que acarretaria, em crculo vicioso, inevitvel reforo prpria cadeia de controle. (PE:484; CN:23) Era como se, assim, aumentasse aceleradamente a entropia do sistema, multiplicando-se e acumulado-se as perdas devidas a rudos parasitas na vasta teia, essencial, da rede de controle e comando (CN:18; PE:479). O regime marchava firmemente para um mximo de centralizao com um mximo de inoperncia (PE:484; CN:24). Ainda mais:
A hipertrofia do Executivo acabaria por anular a atividade legislativa do Congresso, quase que limitado a chancelar projetos de iniciativa do poder maior, quando no se abstendo perante eles. Em assuntos decisivos, o Poder Executivo substituir-se-ia at mesmo ao Judicirio, no julgamento e punio de quem se insurgisse contra ele, recorrendo para tanto a diplomas de exceo. Nesse quadro de crescente centralizao, a inrcia prpria da mquina administrativa estatal aumentaria dia a dia, entorpecendo o prprio processo de tomada de decises - estas, cada vez mais complexas e de repercusses [crescentes]. (CN:23; PE:484)

Mas... Histria no pode parar e, por isso, se utiliza dos homens para realizar Seus misteriosos desgnios. E tambm castiga aqueles que no obedecem ao Seu mandamento nmero um: No se pode querer toda a fora durante todo o tempo (JT, 7-8-81).

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Em meados da dcada de 70, talvez se haja atingido o mximo de centralizao poltico-administrativa. A partir de ento, esforos conscientes do Governo Federal somar-se-iam quelas tenses freadoras, surgidas naturalmente no seio do prprio sistema. A conscincia do fenmeno j alarmante, por outro lado, iria contagiando aos poucos as vrias camadas da populao, a partir de seus quadros dirigentes, e despertando assim iniciativas, protestos e reaes em favor de uma descentralizao que mal se esboava ento, mas, dia a dia, iria se afirmando. Nesse quadro, a desburocratizao seria uma bandeira natural. (PE:485; CN:24)

Governo contra Falces e Jacobinos, Contestadores e Subversivos

Ocorre, porm, que nem todos os homens tm conscincia de que seus destinos esto determinados por Histria. H alguns que se prendem ao passado, aos velhos poderes e ideologias. Se so pessoas que detm o poder e acabam por tentar deter Histria, criam ento a situao que se deve estigmatizar como retardo cultural - o aceitar-se conscientemente generalizaes e progressos em face da evidncia indiscutvel e real, mas, em determinados setores, continuar a apegar-se s frmulas cedias e a conceitos obsoletos (GB:167). Um dos lados era, obviamente, o dos atingidos mais diretamente pela ditadura: progressistas, comunistas, deputados cassados etc. Como destaca Rago, no deve causar estranheza a ferocidade com que a burguesia investiu contra o conjunto de propostas englobadas como reformas de base que, de fato, mantinham-se perfeitamente no mbito do capitalismo, mas apontavam para a ruptura com seus traos mais gravosos para os trabalhadores, implicando uma contraposio subordinao imperialista e organizao econmica interna que lhe correspondia. (Rago, 1998:58) Esse era o lado dos que se alinharam no campo democrtico, vislumbrando um capitalismo nacional autonomizado pela ruptura com as economias centrais, e que objetivava a ampliao do mercado interno com a elevao material da fora de trabalho nacional e a estatizao dos setores produtivos da infraestrutura, cujas maiores expresses foram justamente Brizola e Arraes. (Rago, 1998:129) Mas havia dentro do prprio grupo no poder uma camarilha que se pretendia verdadeiramente revolucionria. Para este grupo, estava-se numa guerra: a revoluo permanente contra a guerra subversiva, tambm permanente. Essa guerra subversiva, por ser ideolgica, conseguia at infiltrar-se nas Foras Armadas, dividindo-as com suas bandeiras, dentre as quais a abertura. Defender esse projeto seria, portanto, defender o ideal do inimigo, renegar os ideais de 64 e instaurar o divisionismo nas Foras Armadas. O governo Geisel via-se, assim, diante de dois tipos de oposio: aquela situada mais esquerda, que era crtica abertura por seu carter limitado, e a direita, que pretendia representar a revoluo permanente. Essas duas oposies, segundo o general, nem sempre combatiam entre si. Muitas vezes, juntavam seus interesses em um combate unificado ao governo. Golbery assim expressa essa duplicidade:
Partira-se, em verdade, de uma situao duplamente bipolar - Governo versus Oposio, Revoluo versus anti-revoluo - sujeita, a todo momento, a perigosas radicalizaes, sempre difceis de dissolver ou neutralizar. No que aqueles termos polares coalescessem sempre num dilema - Governo seria, por definio, a revoluo no poder ou a revoluo institucionalizada e legal; a oposio, bifronte, ficaria teoricamente, seja direita, capitaneada pelos que se intitulariam revolucionrios legtimos - os eternos puros, falces ou jacobinos, a linha dura -, seja esquerda, em larga faixa bem matizada onde se situariam subversivos, contestadores, insatisfeitos e saudosistas. Mas, ideolgica ou estrategicamente

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adversos, esses dois grupos, na prtica, freqentemente se aliariam demonstrando mais uma vez quanto a esquerda e a direita esto bem mais prximas uma da outra do que as foras do centro. (PE:486; GB:25)

Golbery sempre procurou transferir para a poltica seu raciocnio de militar, idealizando o projeto de auto-reforma como uma tarefa de estado-maior. E foi como militar que ele imaginou uma estratgia: manter o inimigo separado, dividido, alternando pauladas em cada grupo, mas tambm tentando coopt-los por concesses a grupos menos radicalizados de cada frente.
Da a bvia manobra que se oferecia ao Governo, em posio central e forte entre dois grupos de opositores: mant-los, sempre que possvel, separados e alternar aes de conteno, seno de contra-ataque, entre um e outro, garantindo, para si mesmo, espao de manobra cada vez maior e, pois, maior liberdade de ao para concretizao de cada um de seus prprios objetivos polticos, sem interferncias desastrosas ou perturbadoras. (PE:488; CN:27)

Para vencer as oposies, Golbery propugnava uma poltica que, acima de tudo, apanhasse de surpresa a esquerda e a direita, deixando-as neutralizadas, na defensiva ou acuadas e mantendo-se, sempre, a iniciativa poltica com o governo federal. Como ressaltou Mello,
Essa assimilao reducionista da ao poltica arte militar conhecida /.../ ofensiva estratgica, com o objetivo de romper as linhas inimigas, dividir e semear confuso nas hostes adversrias /.../. Manobrando a partir de sua posio central, o governo poderia manter divididos os partidos recm-formados e recorrer ao expediente de punies e recompensas para, com maior liberdade e dentro de cada conjuntura especfica, cooptar os possveis aliados e isolar o inimigo principal. (Mello, 1989:211-212)

Nas palavras de Oliveiros Ferreira, Golbery tem uma viso burocrtico-militar do processo poltico, concebido no como ajustamento ou conflito, tentativa de domnio de conscincia e inclusive violncia, mas como um exerccio de ordem unida (Ferreira, 1984:585). O processo de liberalizao interna administrado pessoalmente por Geisel. S valem os avanos por ele oficializados, e qualquer um que se adiante paga caro pelo atrevimento. A respeito, observou Cardoso, a democracia conservadora de Figueiredo tem como objetivo separar o movimento das instituies polticas da movimentao social (Cardoso, 1981:11). Assim, No plano geral, da crtica dos princpios, a ousadia permitida. No plano concreto, da ao poltica, as batalhas que se travam - quase todas - so como as de Itarar: nunca chegam ao tiroteio. A atuao negativa do governo sobre cada um dos grupos deveria ser pendular: nunca bater apenas em um dos lados, seja a direita ou a esquerda, a fim de que nenhuma tenha motivos para se reagrupar e, tambm, para que o outro lado no se fortalea demasiado.
Tratar-se-, em nosso caso, de manter e ampliar uma rea central de manobra, essencial promoo, em tranqilidade e segurana, de nossos objetivos polticos, mediante a aplicao, em sucesso irregular, de golpes inopinados contra as vrias frentes circundantes, cada uma de per si. Dessa forma, buscar-se- balizar, desde logo, limites s aes adversrias permitidas, ampliando-se gradativamente, a seguir, nosso espao de segurana e manobra. Ser at mesmo uma atuao pedaggica nos

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moldes do condicionamento de Skinner, reforando-se a identificao daquilo que assegura compensaes valiosas, em oposio s atitudes contraproducentes ou suicidas. (PE:494; CN:33)

Ele repete a idia com outras palavras:

Para cada paulada direita, preciso dar, tambm, uma paulada esquerda. aquela histria de no avanar de vez. O governo estava querendo abrir no centro. Tinha de conter, ao mesmo tempo, a direita e a esquerda. /.../ Agora, o resultado da eleio de 1974 veio mostrar, de fato, que j no se podia andar muito devagar, porque a significava colocar lenha na fogueira dos inimigos vitoriosos no pleito (Cf. Senhor, 22-9-87).

As pauladas direita e esquerda deveriam, portanto, se alternar. Mas haveria que ter dois cuidados: primeiro, que os ataques no ocorressem conjuntamente, a fim de que os inimigos no tivessem oportunidade de se aliar. Segundo, que o ataque no fosse to forte que eliminasse o grupo atacado. Ambas as providncias tinham de ser tomadas para que no se formasse uma frente nica de oposio. Os inimigos tinham de ser mantidos vivos, embora fracos, para que se desgastassem mutuamente, no exigindo a interveno to freqente e desgastante do governo.
A eliminao de um e qualquer daqueles grupos, reforando o esquema bipolar, levaria, no entanto, definio de uma s frente de oposio, contnua e no desbordvel, contra a qual s caberiam, da por diante, manobras medocres de simples empuxo frontal, seno de mtuo desgaste pelo atrito. (PE:488; CN:27)

A desarticulao ou conteno das diversas frentes oposicionistas traria ainda outra vantagem: indo pelo campo poltico, a linha de menor resistncia, acumulavam-se e economizavam-se foras para atacar o problema bem mais grave e que tinha resistncia muito maiores, o da economia:
Esta ser, por outro lado, essencial criao de nova correlao das foras polticas, seja no mbito federal seja no panorama dos Estados federados, e de impulsos tais que permitam promover, com xito e oportunidade, o avano paralelo da descentralizao tambm em campos bem mais resistentes como o econmico, por exemplo. At l, espera-se que os principais obstculos inerentes a este possam ter sido removidos ou, pelo menos, superados. (CN:34-35)

Assim, por um lado, a demisso do general Frota, o esvaziamento da campanha oposicionista do general Euler e o afastamento de Hugo Abreu (que veremos mais frente) tiveram como ponto final o xito do processo sucessivo, mas por outro trouxeram a questo de como proceder diante de uma frente nica de oposio.
A estratgia recomendaria - como requeria, alis, tambm a prpria inteno democratizante - pronta desarticulao do sistema oposicionista, propiciando-se o surgimento de mltiplas frentes distintas, em relao s quais voltasse a ser possvel levar a cabo novo tipo, mais ampliado, da mesma manobra em posio central que fora o penhor do xito alcanado na fase anterior. (PE:488; CN:28)

Desarticular esta segunda frente de oposio, tarefa fundamental para o progresso da prpria causa democratizante e liberalizadora, seria facilitada pela heterogeneidade inata da

191 oposio. E tambm por ser essa causa to insistentemente patrocinada pelos setores mais articulados das elites nacionais, de longa data abeberadas nos velhos ideais individualistas e liberais (PE:488; CN:28). Isso se traduziria, em termos polticos, pela instituio, em 1979, do pluripartidarismo. Golbery no tinha nenhuma dvida de que A radicalizao menor, a maior liberalizao do regime e tolerncia do Governo, contribuiro largamente para que surjam fortes impulsos de atomizao da frente oposicionista. Contudo, no obstante o sucesso inicial da manobra, o momento (1980) ainda exigia cautela nas aes por parte do governo, para no reverter o processo:
Nesta quadra de indefinies que antecede o registro formal e definitivo dos vrios partidos polticos e, portanto, a reimplantao de novos liames eficazes de fidelidade, a indisciplina pode bem atuar mais energicamente no campo da oposio, j dissociada em vrios partidos, desde que evitemos, de nossa parte, o exerccio de certos tipos de presses que possam determinar contraproducentes efeitos de aglutinao ante perigos comuns. Como se v, o momento ainda de instabilidade e de preocupaes mltiplas, requerendo mpar mestria na conduo poltica, boa dose de tolerncia e capacidade de negociao. (PE:492; CN:31)

Golbery vai ainda mais a fundo. Na verdade, todos ns precisamos reeducar-nos para a convivncia democrtica (PE:494; CN:33), diz ele, detalhando em seguida as contribuies nesse sentido que o governo pode dar em vrias frentes, ressalvadas, claro, as advertncias de cautela no trato com a oposio, para mant-la dispersa, e de coeso nas hostes governistas:
Na frente militar, pr desde logo um paradeiro a pronunciamentos inconvenientes que possam ser interpretados como sinal de fraqueza do Governo ou divisionismo nas Foras Armadas; depois, na frente sindical, liquidar-se um vigoroso movimento grevista que, preferindo a opo revolucionria da confrontao opo democrtica da negociao, extravase para a contestao de carter poltico, desmoralizando-lhes as principais lideranas e, tambm, os chefes de entidades auxiliares que, saindo de seu campo de ao legtimo e legal, indevidamente se intrometam no episdio; mais tarde, na frente estudantil, desconhecer entidades no legalmente representativas, alianas estranhas de mestres e alunos e quaisquer presses contestatrias em relao a medidas anunciadas pelas autoridades competentes, levando-as tranqilamente a seu termo; a seguir, na frente parlamentar, coibir manifestaes agressivas e imprprias, apelando para as adequadas providncias legais; finalmente, na frente dos meios de comunicao, reprimir atuao ilegal pelos meios que na Justia se ofeream; e assim por diante, at alcanar um relativo clima de tranqilidade, conveniente promoo do objetivo fundamental - a institucionalizao de um sistema democrtico mais aperfeioado e com imanente capacidade de aperfeioar-se ainda mais. (PE:494; CN:34-35)

Todas essas atitudes certamente seriam recompensadoras para o sistema, que conseguiria atingir seus objetivos:
O ressurgimento da vida partidria, no s reconhecida esta como legtima, mas protegida e mesmo acatada pelo prprio Governo, de esperar-se que recoloque, afinal, os partidos em seu papel original de principais atores do campo poltico, fazendo refluir aos leitos de suas atividades especficas aquelas muitas entidades no-polticas que haviam, extravasando de sua rea operacional, usurpado espuriamente aquele mesmo papel de sucedneos de partidos. (PE:493; CN:32)

192 Assim, portanto, ao mesmo tempo em que pretendia abrir caminho no pas para a democracia, o governo Geisel recorria com freqncia, sem pudores, ao AI-5. Esse movimento pendular se mostra, tambm, em outras situaes. As cassaes do incio de 1975 so explicadas por Golbery como uma atitude tomada diante da reao do Exrcito ao discurso de um deputado e a denncias de que alguns foram eleitos por votos de comunistas. As cassaes eram necessrias, segundo ele, porque precisvamos dar uma satisfao direita. /.../ Ento, preciso levar em conta isso, no propriamente como uma iniciativa do governo, mas como uma contra-reao dele a uma reao que veio de fora (Cf. Senhor, 22-987). Enquanto isso, no setor crtico da economia, onde se manifestam resistncias bastante fortes liberalizao (CN:25),
a batalha ingente contra a inflao e os srios desequilbrios do balano de pagamentos prossegue incansvel, sem a segurana ainda - embora no faltem elementos objetivos para renovadas esperanas - de resultados promissores, na segunda metade deste ano. /.../ aprofunda-se o fosso de retardo cultural entre a marcha institucional para uma democracia que se deseja mais progressiva e liberal e participativa e a rigidez da frente econmica, a exigir, esta, maior amplitude e eficincia dos controles governamentais. (PE:489; CN:27-28)

Mas no era contraditrio liberalizar o regime e, dentro desse processo, abrir um setor sensvel como a imprensa, geralmente crtico ao governo, num momento to difcil de problemas econmicos, a reclamarem, insistentes, por controles mais amplos e efetivos e, pois, uma disciplina centralmente coordenada, com profundos reflexos em toda a estrutura governamental e social? A prpria liberalizao do regime no seria temerria, com o risco de, abrindo-se uma brecha, desmoronar-se todo o sistema e fugir ao controle? Golbery ponderou tambm esse aspecto, concluindo:
Em realidade, no nos resta outra opo. Momentos muito mais favorveis no foram, dantes, aproveitados, por motivos que aqui no nos cabe pesquisar. Mas isso, de qualquer forma, no justificaria o retardarse ainda mais aquele processo descentralizador, j h muito reclamado como necessrio e urgente. Alm do que, as presses contrrias, hoje fortes e quase insuportveis, voltariam a acumular-se aceleradamente pondo em risco a resistncia de todo o sistema, nessa enorme panela de presso em que, como j teria sido assinalado em tempos passados, veio a transformar-se o organismo nacional, aps dcada e meia de crescente compresso. (PE:501)

A busca de legitimidade pelo desempenho econmico uma base voltil, frgil uma vez que um desempenho econmico ruim pode destru-la, e um bom desempenho pode ser considerado obrigao dos dirigentes. Com o colapso, portanto, Geisel j no podia derivar dos xitos econmicos a legitimidade do regime. Por outro lado, o uso da represso poderia ter efeito inverso ao pretendido, reduzindo ainda mais a base de apoio. Portanto, segundo Mello, s restava ao regime a alternativa de forjar uma legitimidade duradoura a partir do espao especfico da poltica (Mello, 1989:203), com a retomada do projeto castelista. Assim, A normalizao institucional, alm de cumprir seu objetivo poltico cardeal, qual seja, a liberalizao do autoritarismo, funcionaria tambm como uma vlvula de escape utilizada pelo regime para enfrentar, inclusive, as agruras da recesso econmica e controlar as manifestaes sociais de

193 insatisfao, sem recorrer intensificao do emprego de mtodos coercivos. (Mello, 1989:204) E, embora reitere diversas vezes e em vrias ocasies de que necessrio abrir o regime e que a participao muito mais necessria em momentos que exijam sacrifcios econmicos (PE:478; CN:17), pelos motivos j expostos, Golbery no pretende em nenhum momento renunciar ao controle desse processo liberalizante, pelo contrrio, pretende mant-lo estritamente dentro do permitido 33 .

3 - CAMINHOS SINUOSOS DA REFORMA LERDA, LONGA E LIMITADA

O campo em que se fazia mais claro o retardo e onde, segundo Golbery, surgiriam primeiro reaes, cuja oposio era mais fcil diante do autoritarismo crescente e indisfarado era justamente o campo poltico, sobretudo no setor especfico da comunicao social. Cabia, pois, tomar as medidas adequadas para evitar o retardo cultural deste ponto em relao aos demais. A soluo seria impulsionar o campo poltico, a fim de liberar os eflvios da sociedade comprimida. E, nesse campo, especial ateno cabia censura imprensa, de dificlimo, quase impossvel manejo, que se requeira ao mesmo tempo inteligente e eficaz (PE:485; CN:24). Essa questo era das que mais indignavam a opinio pblica e daquelas que angariavam os mais amplos e contundentes apoios. Estes, ao contrrio do que ocorria em outras reas, acabavam trazendo avanos concretos para as oposies. Por outro lado, medidas para atenuar ou extinguir a censura aos meios de comunicao sofreriam poucas resistncias, colhendo, pelo contrrio, apoio variado e concreto. Estava indicado o caminho de menor resistncia a seguir, para dar andamento s reformas no campo poltico. Por isso, a liberao da imprensa era prioritria para Golbery j desde as articulaes para a candidatura Geisel (as suas duas outras intenes originrias eram o fim da tortura e o retorno da disciplina ao Exrcito), e ele se empenhou pessoalmente para tal tarefa, conforme depoimento de Elio Gaspari 34 . , pois, pelo fim da censura que se inicia o processo de liberalizao do regime. Golbery falou a respeito na Conferncia de 1980:
Segundo Elio Gaspari, Golbery teria retirado da publicao da Conferncia de 1980 um trecho de trinta linhas. No conseguimos verificar a veracidade da informao, uma vez que a cpia da Conferncia por ns retirada na Biblioteca do Exrcito tambm no compreende o texto ausente do livro. O trecho retirado seria o seguinte: Algumas valiosas regras de ao podero ser apontadas para uma manobra dessas, no to simples como, alis, possa parecer: 1) Cada par de aes (contra a direita e contra a esquerda) deve desencadear-se em prazo curto, uma seguindo-se logo outra, para que se crie a convico geral de sua solidariedade e se evidencie no estar o poder central agindo sob a influncia de qualquer delas reforo de posio prpria, independente; 2) intervalos entre pares solidrios de aes devem ser dos mais variados, garantindo-lhes efeitos de surpresa; 3) as seqncias esquerda-direita e direita-esquerda devem suceder-se sem qualquer regularidade perceptvel; 4) as aes devem ser as mais distantes possveis entre si, quanto a seu espao social de aplicao, isto , alvos preferenciais devero ser as extremas da direita ou esquerda, permitindo-se aos elementos mais moderados delas desvincularem-se; 5) no perder oportunidades de ao sempre que a esquerda ou a direita se excedam, tanto mais quanto mais flagrantes sejam os seus excessos; 6) graduar as reaes de modo a nunca enfraquecer demasiadamente - quanto mais eliminar prematuramente - uma qualquer das extremas em reforo outra, o que, possivelmente, viria a ser comprometedor para a posio central e isenta do governo. Tambm aqui caberia salientar algumas regras teis para a conduo da manobra. O momento no parece, entretanto, dos mais apropriados.... (Cf. Gaspari, Veja, 23-9-87. Ver tambm Couto e Silva, CN; Couto e Silva, 1980, Conferncia T 202-80.) 34 Armando-se para acabar com a censura, Golbery colecionava artigos vetados /.../. Armando-se para acabar com a tortura, colecionava casos indiscutveis. /.../ O retorno da disciplina aos quartis, no entanto, ficou inteiramente a cargo de Geisel. Golbery nunca se meteu nesse assunto, at mesmo porque seu nome era maldito no Exrcito, onde sempre fora acusado de besta por ler muito, de politiqueiro por ter dirigido o SNI e de corrupto por ter presidido a Dow Qumica, subsidiria brasileira da multinacional do mesmo nome. No Exrcito voc no pode sair da mdia e eu sa, esse o preo, dizia o general. (Gaspari, Veja, 23-9-87).
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A descentralizao, mediante liberalizao da censura imprensa - primeiro passo e da abertura democrtica ainda no completada hoje e que se lhe seguiria quase inevitvel, viria a instituir-se na rea poltica e de maneira decisiva, prenunciando seu extravasamento, mais cedo ou mais tarde, aos demais campos onde se manifestavam resistncias ainda bastante fortes, sobretudo no setor crtico da economia. (PE:486; CN:25)

E, embora preconize a abertura do regime participao, em busca de legitimidade, Golbery no pretende em nenhum momento renunciar ao controle desse processo liberalizante. O governo deixa sempre claro, a todo momento, que o fundamental permitir, de forma lenta, gradual e segura, a transio para um regime mais liberal, sob controle estrito do governo, seu agente. De fato, Golbery, que se tornara a referncia poltica do regime, pretendia ter tanto controle sobre o processo que os prazos e as metas para o fim do regime militar eram constantemente estabelecidos e periodicamente revisados por ele, para evitar sobressaltos devido a uma inadequao com a realidade mutante (Gutemberg, 1994:141). Ele tambm reiterava, na Conferncia de 1980, a necessidade de impor limites claros atuao dos oposicionistas do regime - afinal, dizia ele, todos ns precisamos reeducar-nos para a convivncia democrtica (PE:494; CN:33) -, procurando ao mesmo tempo convencer os demais de que tudo se deva fazer nesta fase para estabelecer, o mais precisamente possvel, o que permitido e o que no permitido (PE:513). Revendo o processo na Conferncia citada, Golbery resume seu percurso: dado o imenso abismo existente entre o campo poltico e outros campos da sociedade, no de surpreender que tenha sido proposta uma
abertura poltica democratizante, desencadeada justamente atravs da liberao progressiva dos controles da censura, nem, tampouco, que esse estgio inaugural do processo exigisse, para que no escapasse a qualquer controle, prazo bastante longo e conduo vigilante e ativa. que se impunha conter, desde logo, inevitveis excessos, balizando-se limites mais ou menos definidos permissividade. E, por outro lado, ganhar, a despeito de inevitveis recidivas do poder coercitivo, suficiente grau de credibilidade quanto s intenes prprias e, pois, ao futuro de todo o processo liberalizante. (PE:485; CN:25)

Segundo o general, portanto, os militares se anteciparam dramatizao das demandas sociais por mudana poltica. Tendo se antecipado, puderam controlar o processo, fazendo com que a transio no precisasse significar o alijamento poltico das Foras Armadas, mesmo que abrir no tenha sido fcil, pois Cristalizaram-se muitos interesses, dentro das Foras Armadas e da burocracia civil e ainda na relao entre ambas e a elite econmica (Ges, FSP, 19-9-87).
Sob a tica golberyana, assim, a abertura foi uma produo de racionalidade poltica dos militares, motivada por interesses corporativos das Foras Armadas. O exerccio ostensivo do poder pelos militares levou a poltica para os quartis. /.../ Quebrou-se a unidade das Foras Armadas. /.../ Sair da poltica era necessrio para refazer a unidade perdida. Em especial, o envolvimento dos militares com a poltica promovia o crescimento dos servios secretos. Esses servios tornaram-se autnomos e seus homens adquiriam regalias e privilgios que incomodavam as foras militares. (Ges, FSP, 19-9-87)

195 Por outro lado, observando a sociedade, Golbery percebia que a elite brasileira no era nem um pouco democrtica. Pelo contrrio, tinha forte carter antidemocrtico. Ela no se opunha ao regime em si, mas desgostava-se do fim do ciclo de acumulao e negava-se a pagar o nus do processo, alm de pleitear a sada do Estado da economia. Segundo testemunho do professor Walder de Ges, Golbery sabia que
A elite empresarial brasileira solidamente autoritria. Apenas aconteceu que, num dado momento, a ditadura j no realizava seus interesses. Ela levou o Estado ineficincia e a exceder-se no controle estatal da economia. Em 1982, pelo menos, Golbery estava certo de que as Foras Armadas e o empresariado no haviam alterado seu compromisso bsico com o autoritarismo. Assim, dizia, a ditadura voltar, com fora total, caso o regime civil e democrtico no produza eficcia econmica (Ges, FSP, 19-9-87).

De sua parte, Golbery no tinha a menor inteno de ir contra os interesses da elite, a no ser no caso excepcional de esses interesses irem de encontro aos supremos ON. A autoreforma do regime no pretendia, de nenhuma maneira, revolucionar o andamento do setor econmico. Sua inteno, pelo contrrio, era mant-lo, embora melhorado, pois seria esse regime que impulsionaria o desenvolvimento do Brasil. Quanto ao povo, ao restante da sociedade, Golbery lhe conferia pouca importncia. Sua viso elitista do mundo no podia conceber a participao intensiva do que ele denominava massa no processo decisrio. como se o mundo girasse de forma autnoma e aquele fenmeno do retardo cultural, por si s, criasse as reaes na sociedade que podem gerar a ruptura catastrfica. A nica interferncia que sofre da atuao das elites, que tm o controle absoluto da histria, desde que aceitem os desgnios autopostos desta. por isso que,
Listando os fatores que levaram os militares a aceitar a abertura poltica, ele colocou as presses da sociedade em ltimo lugar. A poltica era vista por ele como um fenmeno quase autnomo. Um sistema de relaes entre interesses. O povo existe, claro, e sua existncia fornece poltica os limites do que e do que no admissvel. Mas o povo uma realidade distante e difusa. (Ges, FSP, 19-9-87)

Foi com esse raciocnio que Golbery arregaou a manga e atirou-se com voluptuosidade de estrategista na coordenao do processo de auto-reforma do regime bonapartista que havia no Brasil. Era um jogo que, certamente, muito lhe aprazia, embora guardasse momentos amargos e ferozes opositores. O artfice do projeto de reforma nem sempre podia fazer as coisas a seu gosto. Golbery chegou a reclamar publicamente de certa lentido na conduo do processo por ele imaginado, justificando: O assessor sempre mais afoito, at por natureza, porque a opinio dele vai ser submetida a um crivo, no vai subsistir por si mesma. Portanto, ele tem mais liberdade. Eu me lembro de que vrias vezes, conversando com o presidente [Geisel], eu comentava que, no tempo do Castelo, ele reclamava da lentido nas decises, mas agora, na cadeira do poder, ele tambm demorava demais (Cf. Senhor, 22-9-87). Embora reclamasse, Golbery compreendia que, com tais atitudes, Geisel Conseguiu um certo equilbrio. E com isso at perdeu um certo tempo. Mas, s vezes, tem de se trocar o tempo pelo valor da manobra (Cf. Senhor, 22-9-87). Alm disso, segundo ele, Geisel teve de enfrentar problemas adicionais imprevistos:
Primeiro, as dificuldades de ordem econmica. O choque do petrleo obrigou o governo a fazer um esforo muito demorado para absorv-lo. Foi absorvido, mas a veio o segundo choque e esse, por sua vez, j acompanhado do crescimento

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exagerado das taxas de juros. Isso, no campo econmico. E no campo poltico havia um problema que muito caracterstico da poltica. Quando o sujeito est fora, ele quer andar ligeiro (Cf. Senhor, 22-9-87).

Por outro lado, no foi apenas em relao ao tempo que o processo no andou como queria Golbery. Ele passou por srias derrotas no governo Geisel. Chegou a preparar, ainda em 1974, uma nota oficial, em que o governo admite que os dissidentes polticos desaparecidos foram vtimas dos rgos de represso. Sua nota foi arquivada e substituda por uma escalada contrria do ministro Armando Falco (JT, 7-8-81). No entanto, qualquer balano da correlao de foras no governo deve considerar que ele Desempenhou papel de indiscutvel importncia em episdios delicados do governo Geisel: o afastamento do general Ednardo Dvila Melo do comando do II Exrcito, em So Paulo; a demisso sumria do ministro Sylvio Frota e o clebre Pacote de Abril (Senhor, 22-9-87), sagrando-se vencedor da batalha decisiva, a queda de Frota.
A campanha ultradireitista dos seguidores do ministro Slvio Frota, que com isso imaginava torn-lo sucessor natural de Geisel, consistia em denunciar o governo como infiltrado de comunistas. /.../ numa imitao grotesca das aes de 1967, que impuseram Costa e Silva a Castelo e que em 1973 impuseram o prprio Geisel a Mdici, procuravam intrigar Geisel com os militares para impedi-lo de fazer Figueiredo seu sucessor. (Gutemberg, 1994:160)

A imploso da candidatura de Frota e o conseqente lanamento de Figueiredo presidncia (que seu amigo Heitor de Aquino chamava de Segunda Guerra Mundial) foi visto por Golbery como um episdio de algum perigo: o verdadeiro perigo esteve em que, logo em seguida, Frota convocou todos os generais, para voltar com o apoio de todos eles.
No dia 12 de outubro de 1977, feriado de Nossa Senhora Aparecida, em impressionante manobra durante a qual correu o risco efetivo de ser bombardeado no Palcio do Planalto, Geisel demitiu o general Frota. Durante mais de doze horas esteve sob a mira dos canhes do 11 Grupo de Artilharia Antiarea, do Setor Militar Urbano, que podem fazer tiro visual sobre a praa dos Trs Poderes e estavam sob comando do famoso general Dieguez, fiel ao general Frota e disposto a tudo. (Gutemberg, 1994:160)

Nesse momento de perigo, o governo preparou duas contrajogadas: A primeira jogada foi pegar o Bethelem. E a segunda foi uma coisa muito besta, mas fundamental, que foi muito bem executada pelo Hugo Abreu. Ele esperou cada general no aeroporto e levou-os ao Palcio, para antes falar com o presidente Geisel (Cf. Senhor, 22-9-87). Isso foi importante, segundo Golbery, porque, para os militares, o Palcio no era nada, enquanto que o Ministrio da Guerra era o prprio poder (Cf. Senhor, 22-9-87). Assim, ao fim do episdio, A maioria dos generais ficou com Geisel e o presidente removeu a ltima resistncia considervel designao do general Figueiredo para presidente em 1978. E s ento comeou a distole. (Gutemberg, 1994:160) Segundo Golbery afirmaria mais tarde, a sucesso era elemento crucial do projeto de distenso elaborado por Geisel. Segundo entendiam, no seria possvel, num nico perodo de governo, proceder a todas as reformas necessrias para retornar a um perodo de maior descentralizao do poder (Mathias, 1995:127). A escolha de Figueiredo, nesse sentido, tinha uma importncia estratgica muito grande. E era a expresso, tambm, do prprio poder de Geisel naquele momento:

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Um dos maiores e no resolvidos problemas do regime militar implantado no Brasil foi a questo da Presidncia da Repblica. Ainda que mantendo a rotatividade no cargo, a deciso castrense sempre recaa sobre um general-de-exrcito como forma de identificar o comando das Foras Armadas com a direo do pas e evitar insubordinaes ou questionamentos polticos. /.../ A designao de um general-dediviso (trs estrelas, no integrante do Alto Comando) sem consulta rea militar no somente mostra o poder acumulado por Geisel, mas tambm que este havia atingido mais um objetivo de seu projeto: atravs da quebra da hierarquia como eixo definidor do processo, afastava-se, ainda que parcialmente, o Exrcito do centro poltico decisrio. (Mathias, 1995:131)

Figueiredo havia trabalhado com Golbery por dez anos no Instituto de Pesquisas e Estudos Polticos (Ipes) e viera a substitu-lo, escolhido por ele prprio, na chefia do SNI, durante o governo Castelo. Para suceder a Geisel, Golbery havia inicialmente pensado em Petrnio Portella ou Paulo Egydio. Mas, depois, voltou-se para a candidatura Figueiredo, que era um lder no Exrcito e no esquema de segurana - portanto, inatacvel por esse lado. Mas tambm era o filho de um exilado, que deveria ter sensibilidade para a abertura poltica, calculou Golbery (Bardawil, Senhor, 22-9-87). Assim, antes mesmo da posse de Figueiredo, reconfirmado no cargo de chefe do Gabinete Civil da Presidncia da Repblica, Golbery j tinha esboado as etapas do cronograma de abertura. Na Conferncia na ESG, Golbery expunha os vrios pontos que considerava prioritrios para atuao, no governo Figueiredo. Em primeiro lugar, como no podia deixar de ser, a democracia e da descentralizao/participao:
- aperfeioamento do sistema democrtico, tornado capaz, por si mesmo, de aperfeioar-se ainda mais, assegurando o salutar usufruto das franquias individuais e coletivas e implantando o exerccio corrente e eficaz da atuao participativa de todos os cidados e grupos sociais na tomada das grandes decises de interesse da coletividade nacional; - descentralizao adequada da sistemtica do Governo, com maior responsabilidade e iniciativa ampliada garantidas aos Estados federados e aos municpios, e estmulo crescente s atividades comunitrias (PE:498; CN:37).

Em seguida, vinha o problema econmico:

- saneamento e fortalecimento do setor econmico, melhor protegido contra presses adversas provenientes do exterior e constituindo slida infra-estrutura tanto para a grandeza maior do Brasil-potncia do sculo XXI como para o florescimento de uma sociedade mais justa na distribuio da renda, bem mais rica e menos vulnervel a desgastantes crises peridicas (PE:498; CN:37). 35

Com relao a este campo, Figueiredo foi escolhido, bom que se esclarea, porque formulou uma sumarssima diretriz econmica, aglutinando em torno dela alguns setores. Os ataques desfechados contra outras candidaturas militares no podem ser reduzidos a disputas palacianas.

Os pontos seguintes eram: - expanso cultural do pas tanto no setor das cincias e tcnicas como no das artes, mais solidamente estruturado o perfil nacional, indene, j ento, a toda e qualquer forma de contatos e intercmbio com outras culturas de alm-mar ou alm-cordilheira; - maior projeo do pas no exterior, no s na defesa realista e objetiva dos interesses nacionais, mas ainda na promoo coletiva e solidria da paz e do progresso da humanidade.

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De modo que, poca, a proposta alinhada em torno de pouqussimos itens (desenvolvimento agrcola, desestatizao, irresoluo quanto ao setor nacional de mquinas e equipamentos, o que significa resoluo pela via externa) reuniu as esperanas possveis de um contingente significativo dos setores do capital, que lhe entreabriu um crdito de confiana. Contudo, desde o princpio, parceiros outros dos idos do milagre se viram ameaados, quando no alijados, pois uma equao unitria que contemplasse a todos, na nova fase de desenvolvimento pretendida, se mostrou impossvel de ser encontrada nas novas condies. /.../ Suficiente para permitir a uno e levar ao poder, em meio s speras disputas que prosseguiam, a plataforma tracejada, no entanto, precisava (e precisa) ir sendo convertida num programa econmico completo e concreto de governo. Isto, todavia, at hoje no foi alcanado. (Chasin, 1980:117)

A Constituinte do Riacho Fundo

No final, embora com alguns reparos e concesses, o projeto de Golbery foi vencedor. A transio lerda, longa e limitada foi, alm disso, ou antes por isso mesmo, gradual e segura para o regime. Os prprios membros do governo tomaram muitas das decises, algumas das quais foram apresentadas como fato consumado sociedade no interior de uma srie de medidas que passaram celebremente histria como o Pacote de Abril.
Hoje, possvel afirmar, sem medo de exagerar, que o processo de abertura poltica no Brasil comeou exatamente com esse pacote, sem dvida o ato mais arbitrrio da histria republicana. Mas, sem o pacote, o presidente Geisel no poderia demitir, como demitiu, o general Sylvio Frota, nem impor s Foras Armadas e ao pas a candidatura do general Figueiredo. (Pesce, OESP, 7-8-81)

O pacote foi discutido e decidido na Granja do Riacho Fundo pelos participantes do staff governamental. Golbery fazia questo de destacar que na Constituinte do Riacho Fundo, como ficou conhecido o grupo, havia sempre muita participao e debate, com a presena de pessoas como Petrnio Portella, Heitor Aquino, Francelino Pereira e Marco Maciel. Alm disso, faziam-se muitas consultas a outros polticos, por telefone, porque, em benefcio da agilidade, aquele no podia ser um grupo grande. Eu teria estendido essa coisa um pouco mais, dizia Golbery, Mas havia o desejo muito forte do Geisel de reabrir logo o Congresso (Cf. Senhor, 22-9-87). As questes abordadas seguem o roteiro abaixo:
A anistia, primeira etapa do plano, tornou impossvel a convivncia de correntes polticas na grande federao de oposies /.../; a reforma partidria, segunda etapa, recolheu os restos do naufrgio dessa federao, sistematizando-os em partidos emergentes, todos ansiosos por adquirir identidade prpria; o adiamento das eleies municipais, terceiro passo, era imperativo tanto de poltica econmica como de necessidade eleitoral: no se podia enfrentar o custo eleitoral de uma campanha durante a qual as oposies fariam o striptease do governo, apanhado no p de apoio pelo agravamento da crise do petrleo; finalmente, o ltimo ponto, as eleies diretas para os governos estaduais, destinava-se exatamente a satisfazer o anseio

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nacional, sem representar perigo para os donos do poder, muito mais empenhados - com toda razo - em manter o colgio eleitoral que eleger o prximo presidente. (Pesce, OESP, 7-8-81)

A primeira questo enfrentada, a anistia, tambm levou em conta a atuao dos exilados polticos no exterior. Nos primeiros meses depois do golpe, abastecido com informaes da CIA, que seguia os asilados brasileiros em Montevidu, Golbery preocupavase com a ocorrncia de possveis aes isoladas de violncia (Gaspari, Veja, 23-9-87) planejadas por eles. Em seguida, porm, o problema se tornou outro, propriamente poltico. Instalados em diferentes capitais europias, em contato com a imprensa estrangeira, os exilados denunciavam o regime militar brasileiro e nada era possvel fazer para paralis-los. S a anistia, na medida em que promovesse a volta dos exilados, poderia ser uma resposta consistente (Ges, FSP, 19-9-87). Para Cardoso, A relao entre anistia e reforma partidria era direta: os velhos lderes, os do Exterior e os marginalizados no Pas, no aceitariam alinhar-se com os da resistncia democrtica, os que no se exilaram nem foram expulsos da vida pblica. /.../ Para exorcizar tal risco, os fiadores do regime no se pejaram de manipular e as oposies de claudicar (Cardoso, 1981:7). Tambm no que se refere anistia respeitou-se a busca do equilbrio pela poltica pendular. Para Golbery, O problema bsico da anistia foi semntico. Precisamos, num certo momento, votar uma anistia para a direita. /.../ Agora, alm de anisti-los, tnhamos de fazer isso de uma maneira que no fosse chocante, que no produzisse reaes muito fortes /.../ um modo de dar anistia a todo mundo sem dizer que estava dando (Cf. Senhor, 22-9-87). Conseguiu-se isso quando se excluram da anistia os condenados, aqueles que tivessem esgotado todos os recursos de defesa, situao na qual ningum estava. O melhor foi que (os militares) no se deram conta disso naquele momento. Porque, no fundo, pouca gente sabia que a anistia, na verdade, iria anistiar todo mundo. /.../ Eles tinham medo. Tinham receio da abertura de processos, dos levantamentos... Todos ns sabemos que muita gente tem culpa no cartrio (Cf. Senhor, 22-9-87). Dentre as decises da Constituinte do Riacho Fundo, estava a criao dos chamados senadores binicos que, nomeados pelo governo, afastavam a possibilidade, cada vez mais prxima, de as oposies conseguirem maioria no Senado. Golbery, no entanto, tinha outra verso para a criao dos senadores binicos:
Dizem que os binicos foram criados para assegurarmos a nossa maioria no Senado. Esse realmente foi um dos objetivos, mas foi um objetivo menor. Sinceramente, havia, tambm, e em muito maior escala, o desejo de melhorar o nvel do Senado. /.../ havia por a um certo nmero de homens respeitveis que seriam os candidatos naturais aos cargos de senador binico. Isso era um desejo mas, infelizmente, ele acabou triturado pelas ambies pessoais e pelos acordos polticos nos Estados (Cf. Senhor, 22-9-87).

Tambm se fixou ali a durao do mandato do prximo presidente. Apesar de no ser propriamente um democrata, a fixao de um mandato de seis anos pretendia, segundo Golbery, garantir em primeiro lugar o revezamento no poder. Para tal, era to prejudicial um tempo excessivo como um mandato muito curto. Em suas palavras,
Essa coisa dos seis anos de mandato estava muito ligada a nossa idia de que no deveria haver continusmo. Um presidente querer 12 anos de poder, para ns, parecia muito forte /.../, ao passo que quatro anos muito pouco, justificaria a

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tentativa continusta. E cinco anos d uma confuso danada porque no coincide com as eleies para deputado (Cf. Senhor, 22-9-87).

Suzeley Mathias avalia o Pacote de Abril e conclui que, com ele todos perderam:
Perdeu a oposio porque nem mesmo teve voz para protestar contra o fechamento do Congresso, mostrando toda a sua impotncia, e porque perdeu a oportunidade de tentar negociar o que deveria ser a reforma poltica. Perdeu o governo porque mostrou-se incapaz de mudar dentro das prprias regras por ele fixadas. Todavia, a longo prazo, o Pacote de Abril mostrou sua importncia ao garantir para Geisel maior controle sobre o pblico interno e proporcionar-lhes flego para as reformas polticas futuras /.../. A partir do Pacote de Abril, as reaes contrrias ao governo aumentaram em nmero e qualidade. Talvez ele nunca tenha estado to longe da sociedade como naquele momento. (Mathias, 1995:121-122)

Segundo Golbery, outras medidas ao final no implementadas tambm foram discutidas, como a vinculao de mandato e o voto distrital. A questo dos dois teros para emendar a Constituio acabou sendo feita depois, mas a seria o n final. /.../ muita gente no se deu conta, ainda, como esta emenda fundamental. Esta emenda que est virando problema para a oposio. Se no tivesse essa emenda, ns todos estaramos liquidados (Cf. Senhor, 22-9-87) 36 .

O Fracasso do Bipartidarismo e a Reforma Partidria

A reforma partidria, segunda etapa do processo de auto-reforma, seguia a mesma linha da fase de liberalizao da imprensa. De fato, o ajuntamento de todos os partidos em apenas dois, se inicialmente havia cumprido a misso de explicitar apoios e oposies, agora tornavase uma frente quase imbatvel nas urnas. Isso fazia com que as eleies fossem tomando o carter plebiscitrio, em que cada eleitor expunha seu contentamento ou seu desagrado com o regime instaurado por meio do voto no partido oficial ou na oposio consentida. Nas eleies de 1974, por exemplo, a derrota do governo foi fragorosa. Os efeitos s no foram maiores porque em 1974 se renovava apenas um tero do Senado. Se estivessem na disputa os dois teros, como deveria acontecer em 1978, a vitria teria dado ao MDB o controle do Senado. (Gutemberg, 1994:141) 37 Assim, trata-se inicialmente de impedir a manuteno da congregao de oposies em uma frente ampla. Por outro lado, a oposio de h muito deixara de se conter nos estreitos limites partidrios impostos pela ditadura. A proibio da existncia de partidos alm dos consentidos voltava-se, qual bumerangue, contra o prprio governo. Os movimentos sociais incrustavamse todos no nico partido oposicionista e iam adiante, alargando na prtica seu espao de manobra e empurrando para alm do simplesmente poltico, no obstante as proibies legais,

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A entrevista de 1983, exato momento em que o governo havia perdido a maioria no Congresso. A postura do governo, ao permitir a realizao das eleies de 1974 como prometido, pode ser explicada porque as eleies visavam a mensurar o apoio ao governo e tambm porque ningum acreditava em uma derrota da Arena. /.../ qualquer resultado beneficiaria o governo: o importante era a realizao das eleies em clima de relativa liberdade para funcionar como uma varivel de legitimao do governo. (Mathias, 1995:95) Alm disso, o governo podia aferir suas bases de apoio. No entanto, os opositores direita do governo no se contentariam com vitrias eleitorais: queriam que o projeto distensionista fosse abandonado. Assim, em setembro de 1976, vrios organismos da sociedade civil foram atingidos por atentados a bomba.

201 sua atuao e suas reivindicaes. Golbery se referiu a esse fenmeno na Conferncia de 1980:
pela sua indefinio dentro de um s partido extremamente heterogneo e a precariedade de uma insegura atuao isolada, as foras polticas oposicionistas acabariam por submergir-se em conglomerados mais amplos que abarcariam desde organizaes religiosas e para-religiosas, confundidas numa prtica pastoral utopicamente restrita ao campo poltico, a associaes culturais leigas, sindicatos e outras muitas entidades profissionais e at mesmo pseudofilantrpicas, aparentemente no-engajadas. Os verdadeiros agentes no campo poltico passaram a ser muito mais esses conglomerados do que o prprio partido da oposio. E nesses conglomerados, pelo prestgio tradicional e proteo que poderiam oferecer, as organizaes religiosas e para-religiosas assumiriam posio relevante, quase hegemnica. (PE:493; CN:32)

Alm do prejuzo bvio para a estratgia governista, tal agrupamento frentista retirava a discusso e a atuao do mbito poltico, no qual a ditadura sempre fez questo de mant-lo, a fim de no ver questionado em nenhum momento o fundamento econmico do regime. Havia, portanto, que desatar o n grdio: implementar um projeto de abertura seguro, e ao mesmo tempo emprestar credibilidade ao processo, numa conjuntura de avano da oposio. por isso que os partidos, para Golbery, eram o verdadeiro canal de discusses da sociedade, levando ao parlamento as vrias disputas sociais intestinas e desativando o potencial de ruptura catica que um movimento social de massas como o novo sindicalismo poderia engendrar 38 . O mago do regime lamentava que outros meios de controle do movimento sindical tivessem deixado de existir:
Mas h tambm esse novo sindicalismo, que os governos revolucionrios no tiveram sensibilidade de orientar por meio do Ministrio do Trabalho. Outro dia, o Ari Campista me falava, melancolicamente, sobre a mquina de controle sindical do Ministrio do Trabalho e da Previdncia que vinha do Estado Novo e que foi preservada at o incio dos anos 60 para barrar o controle comunista. Ns a mapeamos com perfeio no Ipes. Pois o Campista me disse que ela acabou, no tem mais condies de recuperao. um instrumento que nos vai fazer falta. Essas lideranas sindicais ps-64 so disputadas palmo a palmo pelos americanos da AFLCIO, que a CIA estimula, e pelos comunistas, que continuam treinando gente em Moscou. (Gutemberg, 1994:162-163)

Para o general, mesmo no campo estritamente poltico, so poucos os atores credenciados a atuar: apenas os partidos, para ele, devem a combater. A poltica parlamentarinstitucional era, certamente, um campo mais seguro para a conduo do processo de abertura. Conforme afirmou a Ulysses Guimares, ainda em 1975, os partidos so o melhor meio de atuao poltica do ponto de vista de quem est no poder, uma vez que podem isolar os radicalismos de esquerda ou direita e reduzi-los sua real expresso poltico-eleitoral. Os partidos posicionados mais ao centro do espectro poltico (incluindo a a centro-direita e a centro-esquerda) eram para ele os mais importantes, pois Liberais, conservadores e socialChasin, pelo contrrio, escrevia, em 1980: Assim, o roteiro poltico do movimento sindical no o de se isolar eventualmente numa legenda prpria, mas o de encontrar o sentido poltico de sua prpria ao, condicionando e compelindo a prpria oposio parlamentar, obrigando-a a prestar a solidariedade que lhe devida e levando-a a assumir uma plataforma democrtica global e concreta onde um programa econmico alternativo a vertebrao imprescindvel para a florao, como a copa do tronco, do elenco indispensvel de todas as franquias democrticas. (Chasin, 1980:132)
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202 democratas dispunham de todos os atrativos ideolgicos, programticos, utpicos e propagandsticos para atrair a maioria do povo e se alternar no poder, sem proporcionar qualquer chance aos radicais extremistas, desestabilizadores e irrealistas que, como os loucos, deviam ser isolados mas no imolados (Gutemberg, 1994:168). Alis, destacava o general, j era desaconselhvel, segundo a psiquiatria moderna, at sua segregao em hospcios. Assim, expressava-se ele:
Tenho esperana de que a abertura poltica - a maior liberalidade do Governo - faa com que os partidos renasam com fora, na plenitude de sua funo de partidos com apoios legtimos do campo poltico, resultando a a tendncia do retorno de todas as outras entidades e organizaes sociais no partidrias a seus papis apolticos, a suas esferas prprias de atuao, para oposies no-ideolgicas. (PE:521)

A idia dos partidos como o campo normal de atuao poltica dos setores sociais reiterada em outra passagem: Golbery diz-se otimista quanto possibilidade de Partidos eficientemente estruturados atrarem os jovens e ajud-los a se prepararem para o exerccio, no futuro, das lides polticas, complementando em seguida: Evidentemente, h vocaes polticas em todas as idades e todas as vocaes polticas, no s as de jovens, devem encaminhar-se para os partidos polticos. (PE:529) E no deixa dvidas de quem seria o agente condutor do processo que redundaria em partidos polticos mais autnticos, ao afirmar que Ns que devemos procurar criar e desenvolver condies para que os partidos possam desempenhar a atuao que lhes prpria - a mobilizao poltica do povo. Suzeley Mathias atesta que esse tambm era, em geral, o pensamento do prprio governo:
Numa sociedade complexa, a participao poltica envolve necessariamente a representao, o que implica alternativas reais de escolha e existncia de grupos organizados para esta finalidade. No pensamento do general-presidente [Geisel], h a valorizao tanto da participao quanto do direito de escolha. Todavia, enquanto a primeira restritiva, a segunda esvaziada de seu contedo poltico. A participao deve restringir-se aos partidos polticos. As demais associaes civis, como sindicatos, no tm e no podem cumprir essa tarefa. /.../ Porm, ao partido no cabe tomar decises: estas so responsabilidade do governo, que est acima das faces e interesses: ao partido cabe simplesmente sugerir. (Mathias, 1995:99)

Para o sistema, pois, a permisso ao multipartidarismo poderia trazer benefcios muito maiores do que a manuteno do bipartidarismo. A reforma do sistema partidrio, em 1979, que tinha como objetivo claro dividir e fragmentar a oposio, no deveria provocar a fragmentao do partido governista. Por outro lado, era tambm objetivo do governo, naquele momento, consolidar uma face mais progressista e mais moderna do partido governista, o que gerou permanentes conflitos entre diferentes foras polticas dentro dele. /.../ Marcava-se definitivamente a diferena entre o velho e o novo que, at ento, conviviam dentro de um mesmo esquema partidrio (Andrade, 1997:165). H que atentar que muitos dos arenistas, especialmente os governadores, perceberam a hora de se desfazer da imagem de co-partcipes da ditadura, credenciando-se para participar do projeto democrtico em um futuro prximo. Em 1978, consolida-se o processo de escolha de novos atores polticos, os quais, na medida em que participaram de governos anteriores, haviam-no feito como tcnicos no

203 umbilicalmente ligados ao regime. E eles continuam, ainda hoje, atuando no cenrio poltico nacional. A instituio do multipartidarismo se coadunaria, ademais, com os propsitos sinceros de maior liberdade que o governo nutria.
A estratgia recomendaria - como requeria, alis, tambm a prpria inteno democratizante - pronta desarticulao do sistema oposicionista, propiciando-se o surgimento de mltiplas frentes distintas, em relao s quais voltasse a ser possvel levar a cabo novo tipo, mais ampliado, da mesma manobra em posio central que fora o penhor do xito alcanado na fase anterior. (PE:488; CN:28)

Golbery mais explcito ainda quanto aos objetivos a alcanar, por meio do multipartidarismo, mostrando que, para derrotar o inimigo, conhec-lo bem ainda o atalho a seguir.
Pela dissociao pluripartidria buscou-se melhor caracterizao, individualizao melhor das foras polticas atravs de partidos mais homogneos e mais autnticos em sua representatividade acenando-se-lhes com o justo monoplio, entre eles e somente entre eles compartindo, da ao poltica da qual so, de direito, os nicos instrumentos especializados. /.../ O ressurgimento da vida partidria, no s reconhecida esta como legtima, mas protegida e mesmo acatada pelo prprio Governo, de esperar-se que recoloque, afinal, os partidos em seu papel original de principais atores do campo poltico (PE:493; CN:32, grifos nossos).

Golbery no deseja, porm, manter eternamente o pluripartidarismo. Mas tambm no acredita que, no outro espectro das opes, estaria fatalmente a diviso da oposio como estratgia levada a cabo pelo governo.
Estamos saindo de uma fase de bipolarismo, de uma bipolaridade poltica mais ou menos forada e no poderamos alcanar taxa de democracia e de liberalizao do regime, seno permitindo a penetrao de outros partidos. Portanto, a tese do pluripartidarismo. Sem dvida, se deixarmos os atuais partidos que esto surgindo e que mal ainda tm contextura, contedo, autenticidade - se agruparem novamente, cairamos de volta do bipartidarismo. Dir-se- , ento: a idia manter sempre a Oposio dividida? A idia manter sempre uma oligarquia do partido do poder, do partido que est no poder? Assim no me parece. (PE:507)

Ele rejeita, portanto, o monoplio eterno do poder pelo mesmo grupo da elite. No que rejeite a diviso do poder pela elite, como um todo; no, ele questiona to-somente a permanncia no poder de um nico grupo ou partido representante da elite. De acordo com seu pensamento, a elite precisa de desafios constantes, pois do contrrio perderia poder criador, fundamental para a conduo da Nao. necessrio, pois, a ascenso de novos grupos ao depositrio do poder, o Estado, para que a elite continue desempenhando seu papel histrico diante das massas e em favor da Nao. Por outro lado, porm, Golbery tambm no acredita que a qualidade da democracia se faa pela quantidade de partidos polticos que disputam entre si o poder estatal. Embora considere que, na conjuntura pela qual o pas passava, o multipartidarismo fosse inevitvel e talvez imprescindvel, baseava-se nos modelos britnico e americano para expressar o sistema partidrio que gostaria de ver implementado: no um bipartidarismo imposto, mas

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um bipolarismo autntico - um bipartidarismo na prtica, que no seria um regime de apenas dois partidos existentes por imposio legal, mas dois partidos constitudos por um bipolarismo pragmtico. De maneira que - no sei se estas minhas notas possam parecer muito sibilinas - mas acho que ns samos de bipartidarismo para um pluripartidarismo como abertura, esperando-se venhamos a implantar no pas um bipolarismo pragmtico. Quer dizer, no sero reconhecidos somente dois partidos, mas, na prtica, dois partidos que funcionaro como agentes de poder. Suponho que chegaremos a a uma soluo mais justa. (PE:510)

Mesmo quando defende o bipartidarismo como mais racional, Golbery o faz a fim de conferir ao processo poltico a chamada legitimidade procedimental, em que importa menos o que se decide do que o como se decide. A democracia restringe-se, aqui, a uma estreita questo de mtodo. Poderamos ajuntar a, para fins de esclarecimento, as observaes de outro ardoroso defensor do bipartidarismo:
Um sistema bipartidrio mantm um equilbrio mais eqitativo entre as foras sociais e os partidos polticos. Os partidos competem pelo apoio das foras sociais, mas cada partido tira o seu apoio de muitas foras, e, por isso, no instrumento de nenhuma delas. Ao contrrio do que acontece no sistema multipartidrio, o aparecimento na poltica de uma nova fora social no exige necessariamente a criao de um novo partido. Ao contrrio do que sucede no sistema unipartidrio, a assimilao da fora social no se efetua necessariamente atravs de uma nica organizao poltica. H assim uma certa lgica no sistema bipartidrio, mas uma lgica mais poltica que social e se funda muito mais na necessidade de estabilidade poltica que na atrao da escolha popular e das liberdades democrticas (Huntington, 1975:439, grifos nossos).

No entanto, ainda no chegara a era do bipartidarismo pragmtico esperada por Golbery. Cabia, naquele exato momento, manter a poltica pluripartidarista, de dissociao da frente de oposio, cuidando em no lhes dar motivo para se reagruparem.
Para tanto, cuidar-se- de consolidar e, se possvel, ampliar as prprias foras, mantendo sempre dissociada a frente oposicionista, j agora, tambm, pelo atendimento privilegiado das pretenses desde ou daquele partido ou grupo, em detrimento dos demais. E isso ser tanto mais exeqvel quanto mais nossos propsitos, sinceros, de liberalizao democratizante incluam muitas das aspiraes de outros partidos ou grupos, de maior afinidade conosco e cuja aliana ou apoio poder vir a ser alcanado, numa hbil e esclarecida manobra de cooptao por partes. (PE:495; CN:34)

Pode-se concluir, portanto, que a importncia que tinha a reforma partidria para o governo advinha do fato de os partidos se tornarem uma forma de controle pois, como vimos, no pensamento governista, o partido detm o monoplio da participao social, sendo-lhe atribuda a funo de bloquear a mobilizao social. Os partidos isolam os radicalismos e os limitam ao que politicamente aceitvel e seguro para o regime. Est, assim, claramente delimitado o campo de ao permitida. Por outro lado, pelo que acompanhamos da fala golberyana, a funo do sistema partidrio se detm a: o partido no governa, serve apenas para monopolizar a ao e despolitizar a participao social. No mximo, consultado quando de decises drsticas, realizando-se acordos nas cpulas que inibam o vazamento das discusses para a massa da populao. A democracia partidria proposta , portanto, nada

205 mais que uma democracia de controle, instrumental, em que os diversos partidos existentes legitimam o processo poltico. Ferreira acrescenta um dado importante: os estrategistas do governo
No podiam supor - porque sup-lo seria contrariar a viso liberal do mundo em que se criaram - que a multiplicidade partidria, dada como uma das causas da fraqueza da democracia brasileira, era conseqncia no de uma legislao eleitoral feita ao sabor dos interesses privatistas (o que, at certo ponto, era verdade), mas, fundamentalmente, da multiplicidade de vises segmentares do processo poltico, da articulao meramente regional dos interesses socioeconmicos /.../ e da ausncia de uma classe politicamente organizada, isto , organizatoriamente coesa, no conjunto do territrio nacional (Ferreira, 1984:591).

A Revelao

Ainda em relao reforma partidria, nos deteremos um pouco num interessantssimo relato de um encontro secreto de Ulysses Guimares, o hbil articulador poltico das oposies federadas, com Golbery. Era abril de 1975. Ulysses, um de seus maiores interlocutores, teve o secretrio-geral do MDB, Thales Ramalho, por companhia e testemunha. Aquele que seria posteriormente alcunhado Senhor Diretas narra, pela pena de Gutemberg, a estratgia que lhe foi revelada pelo artfice da auto-reforma do regime para desmontagem do aparato repressivo e, ao mesmo tempo, preservar instrumentais jurdico-polticos da autocracia burguesa. Nessa conversa, Golbery ressalta - a pretexto de uma de suas frases preferidas, Ad astra per aspera (para chegar aos astros preciso vencer dificuldades) - que o pas j est suficientemente sofrido. a preparao para a frase-chave, que acrescenta a seguir: Precisamos apressar o processo da democratizao. A condicionante tambm no demora: Mas sem virar esttua de sal, como a mulher de L. No podemos nos perder olhando para trs (Gutemberg, 1994:146). Ou seja, houve uma ruptura poltica no pas e deve-se encaminhar a atuao a partir desse fato, sem se fixar na situao anterior, por revanchismo, saudosismo ou triunfalismo. Ressaltava que o antigo regime, se caiu, no foi o vento que o derrubou. Era porque estava podre ou porque no apresentava estabilidade estrutural. O que se impe agora que implantemos uma democracia moderna e resistente a todas as tenses e temperaturas, usando as melhores lies da cincia poltica. Golbery frisava, inclusive, que cabia discutir o prprio termo redemocratizao, pois este no era, segundo ele, pertinente histria poltica do pas que, em verdade, nunca tinha conhecido uma autntica democracia. (Gutemberg, 1994:147) Passadas essas preliminares, Golbery avisa que est ali no apenas com o conhecimento do presidente da Repblica, mas plenamente autorizado por Geisel para fazer revelaes que reputava importantssimas aos lderes da oposio, j que, embora sem negligenciar a constante lembrana de que as iniciativas eram privativas do governo, admitia o papel decisivo da nova fora parlamentar com que a oposio emergira das eleies de 1974 e no deixou de mencion-la inmeras vezes (Gutemberg, 1994:147). E, dada mais essa informao, surpreende Ulysses ao revelar que o governo desejava livrar-se do mais ldimo entulho da ditadura: o AI-5. Sabemos que Golbery ops-se desde o incio a este instrumento, mas, quela altura, sua extino era mais do que a oposio podia sonhar, a curto prazo. Tal revelao era, pois, realmente assombrosa, se se pensar que o fim do AI-5 representaria nada menos que o fim da ditadura. Acompanhemos Gutemberg:

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Golbery j comeou sua dissertao sobre as intenes de abertura do governo com uma afirmao surpreendente e desnorteante. O presidente quer revogar o AI-5. Tem a disposio de substitu-lo o mais rpido possvel por outro instrumento qualquer que no o deserde de poderes excepcionais para ocasies excepcionais, mas que, em compensao, tranqilize a nao em tempos de normalidade. /.../ Restauremos a razo. (Gutemberg, 1994:147)

Mas o fim do Ato famigerado no era um favor oposio: para o governo Geisel, era um incmodo espinho cravado na garganta:
Segundo Golbery, o AI-5 era to insuportvel para a oposio quanto desagradvel para o governo. /.../ Geisel considerava que o AI-5 era um bumerangue e ameaava sua prpria autoridade civil de presidente da Repblica. Demolido o AI-5, raciocinava Golbery, desabaria tambm a grande srie de limitaes liberdade poltica, como o bipartidarismo. E acabariam os pretextos de rebeldia, de todos os tipos, que a legislao revolucionria inspirava. Removida a causa, cessam os efeitos. (Gutemberg, 1994:147)

Revela-se, aqui, pois, a inteno do sistema de poder de decretar o fim do AI-5 (o que se consumou em fins de dezembro de 1978), o fim da censura imprensa e o fim do bipartidarismo, por meio da criao de uma estrutura pluripartidria, de apenas cinco partidos, conforme veremos. Segundo Golbery, o governo ainda no sabia como faz-lo, nem por meio de que instrumento, mas ressaltava que o presidente estava empenhado e sem dvida achariam uma frmula. Continuando sua exposio explosiva a respeito da rearticulao das foras polticas brasileiras, novamente aqui Golbery afirma que os partidos so o melhor meio de atuao poltica do ponto de vista de quem est no poder, uma vez que podem isolar os radicalismos de esquerda ou direita e reduzi-los sua real expresso poltico-eleitoral. Ainda assim, porm, o Estado, mesmo permitindo a organizao livre, estaria, dessa forma, aparelhado com salvaguardas suficientes para conter radicalismos direita e esquerda.
Toda a estratgia era baseada numa singela teoria sobre a aglutinao do universo da sociedade em apenas cinco partidos. Eles brotariam de maneira natural, se enquadrariam com facilidade numa legislao que exigisse uma representatividade robusta - para evitar que surgissem partidos de aluguel, pequenos, sem significao e transformariam a abertura poltica num salto civilizatrio e modernizador do Estado brasileiro. As excentricidades, as tendncias minoritrias e os acidentalismos seriam absorvidos pelos partidos antes que chegassem s ruas. (Gutemberg, 1994:148-149)

De fato, no interessava ao governo abrir demais o leque partidrio. A situao ideal, conforme pensavam, seria a criao de quatro ou cinco partidos, e, ainda assim, o governo manteria sua maioria no Congresso concentrada apenas em um, a fim de no ter de abrir o governo, por meio de negociaes, a outros grupos polticos. Fazia parte da mesma lgica a pulverizao da oposio em vrios partidos, a fim de no se ver novamente diante de uma frente do tipo do MDB. Golbery detalhou, em seguida, sua idia a respeito da pulverizao da poltica nacional nos cinco partidos que, achava ele, cobririam de ponta a ponta o gradiente ideolgicoprogramtico da sociedade nacional. E tocou ainda em outro tabu do sistema, trazendo o tema da anistia arena. Segundo Gutemberg, as cassaes sumrias de mandatos parlamentares,

207 com a perda de direitos polticos que os impedissem de voltar pelos braos do povo, obedeciam a clculos sobre a influncia vital dos polticos. Para casos extremos, como o de Brizola, admitia-se quinze anos sem direitos polticos. Embora no pedisse explicitamente apoio - Objetivamente, profetizava, diz Gutemberg -, Golbery abria a discusso, propondo o incio imediato de estudos cooperativos, realistas, srios, considerando-se a conjuntura, a respeito das cassaes, das quais Algumas eram sabidamente injustas e infelizes. No se tratava de revogar decises revolucionrias, mas desfazer as injustias perfeitamente corrigveis. Da, chegar-se-ia com naturalidade anistia. O governo queria receber sugestes, estava aberto a propostas construtivas e a discusses discretas. (Gutemberg, 1994:149) Em sua exposio, Golbery falava de decises que j haviam sido tomadas por Geisel. Com aquelas revelaes, Golbery transportava seus dois interlocutores, com quatro anos de antecedncia, para uma realidade brasileira que apenas se concretizaria a partir de 1979, especialmente pela Emenda n. 11. Creditava ao presidente, e a ele unicamente, o papel de delegado solitrio do poder revolucionrio, que antes era partilhado pelos generais-presidentes com os ministros militares, os altos comandos, o SNI e os grupos intermedirios de presso militar, conhecidos como o sistema. (Gutemberg, 1994:149) Geisel, isolando-se assim, desautorizava falsos procnsules. Golbery, ao atribuir aquelas idias e a disposio para efetiv-las a uma terceira pessoa, mostrava evidente e afetado excesso de modstia. /.../ Ele no era um mero anunciador daquelas maravilhas, mas o contra-regra que estaria nos bastidores providenciando para que o mgico tivesse todo apoio no palco. (Gutemberg, 1994:150) O carter absolutamente sigiloso da conversa havia sido acertado quando a reunio fora marcada, por intermdio do marechal Cordeiro de Farias. Ulysses, sob o impacto daquelas revelaes fantsticas, disse ser desnecessria tal providncia:
Samos daquele apartamento como os apstolos depois de assistirem cena da transfigurao, no monte Tabor. Absolutamente deslumbrados e detentores de informaes to extraordinrias como aparentemente delirantes e com a mesma recomendao do Evangelho: A ningum conteis o que vistes. Um pedido tranqilizador, porque passaramos por loucos se descrevssemos nossa experincia. Procurei, na minha parte, manter o senso crtico. As promessas eram extraordinrias. (Apud Gutemberg, 1994:151)

A realidade dos meses que se seguiram, porm, ficou devendo muito s promessas. De fato, ocorreu justamente o contrrio da liberalizao prometida: um endurecimento do regime militar, agudizado por dois contratempos: primeiro, uma recada de Golbery que, sofrendo conseqncias tardias do deslocamento da retina, voltaria a suas atividades apenas em agosto. Segundo, uma declarao pesada de Ulysses Guimares, redigida em resposta a crticas do presidente Geisel, na qual comparava o regime brasileiro ditadura de Idi Amim Dada, o que irritou profundamente o presidente. Cordeiro de Farias acreditava que Ulysses tivesse redigido aquela nota de propsito, para frustrar os planos que, a seu pedido, Golbery lhe havia exposto na esperana de obter sua parceria como presidente do MDB. Tambm era essa a opinio de Severo Gomes: para ele, Ulysses temia que a abertura poltica planejada por Golbery - se ocorresse como lhe fora descrita - esvaziasse o MDB e seu prprio papel singular de patriarca da oposio. Ulysses teria reagido ao que considerava ameaa aos seus planos pessoais de poder. Noutras palavras, ele sabotara o projeto de Golbery. (Gutemberg, 1994:153) O fato que, logo em seguida, o regime endureceu. Ulysses preferia, no entanto, no considerar sua nota como responsvel pelo endurecimento. Ele achava, pelo contrrio, que

208 havia sido premonitria. De qualquer forma, em seguida o MDB foi marginalizado nas discusses feitas com a sociedade civil, sendo novamente procurado apenas em maro de 1977, quando Portella comunicou a Ulysses que estava credenciado pelo presidente Geisel a iniciar amplo dilogo com a sociedade por intermdio das suas instituies e lideranas. Realmente, Portella estabeleceu dilogo poltico com dezenas de lideranas da sociedade civil. Conhecida como misso Portella, acabou tendo um papel precursor dos prodgios da Abertura. Essa misso , segundo Cardoso, um dos dois estratagemas do regime: a operao encantamento, que se refere abertura do dilogo com a sociedade civil margem do Congresso, dos partidos - mas tambm do Sistema -, e a operao desbaratamento, pela qual os granadeiros do rei [Portella e Golbery] decapitaram, um a um, os generais rebeldes, fossem ministros, chefes da casa militar ou simplesmente ex-qualquer coisa. (Cardoso, 1981:5) Em seguida, porm, novamente houve um endurecimento. Em 31 de maro de 1977, o Congresso rejeitava a reforma do Judicirio, primeira votao incerta a que o governo se arriscara sem salvaguardas, deixando de recorrer ao ato institucional, mas tambm sem negociar e sem conceder nada s oposies. Ato contnuo derrota, o presidente Geisel voltou a usar seus poderes excepcionais: determinou o recesso do Congresso e baixou o chamado Pacote de Abril, um verdadeiro festival de emendas Constituio e leis ordinrias. Gutemberg destaca a violenta disputa interna em que estava, ento, envolvido o governo. Em 1977, o ex-senador Magalhes Pinto surpreendeu todo mundo, declarando-se candidato Presidncia da Repblica, embora fosse pblico que Figueiredo j havia sido escolhido para o cargo mediante compromissos polticos assumidos em 1973, durante a Primeira Guerra Mundial (conforme Heitor Aquino), a ascenso de Geisel. Mas a eleio de Figueiredo se tornaria, justamente, a Segunda Guerra Mundial, com o surgimento da candidatura de Magalhes Pinto. Afinal,
os militares no aceitavam qualquer discrepncia no script que estabeleciam. O hbito da disciplina e da subordinao ao comando hierrquico, essenciais na caserna e absurdos na vida civil, sobretudo na poltica, desarvorava-os por completo. Raciocinavam assim: se a conspirao para que o general Figueiredo substitusse o general Geisel havia conseguido se impor nas Foras Armadas, s restava aos polticos da Arena - a quem tratavam como subalternos - submeter-se. Eles achavam que dispunham do poder como um butim de combate. (Gutemberg, 1994:168)

Diante da teimosia de Magalhes Pinto, Golbery determinou ao presidente da Arena que lanasse uma nota oficial desautorizando o lanamento de nomes sucesso presidencial. Golbery tambm liberou Figueiredo para atrair seus amigos do grupo de Mdici, inclusive Mrio Andreazza, a quem tinha horror, para atuar com vistas inviabilizao da candidatura de Magalhes Pinto, primeiro, e para cortar o avano do general Euler, depois. Em 15 de outubro de 1978, Figueiredo foi eleito. Um ms depois, no obstante os senadores binicos, o MDB voltou a derrotar o governo no voto majoritrio para o Senado. Contudo, nesse meio tempo, o endurecimento com a oposio visava a acalmar os setores radicais das Foras Armadas. Ulysses Guimares observava que, por tradio, os grupos governistas rivais mediam foras vendo quem atingia mais profundamente os civis. Ulysses descrevia o ano de 1978 como um bal, cuja coreografia fora elaborada por Golbery e cujos passos eram danados por Geisel e Figueiredo. Golbery, alm de coregrafo, tambm continuaria a reger a orquestra, tendo Portella como spalla. O AI-5 tem data marcada para acabar. Agora tudo pode acontecer. O jogo poltico est liberado. S o general Golbery, surpreendentemente, parece no acreditar no prprio feitio. Ainda continua a

209 esquematizar as coisas, como se pudesse deflagrar sstoles e distoles com um estalar de dedos. (Gutemberg, 1994:151) Nesse ano, o lder da oposio consentida foi novamente posto a par de planos de Golbery, desta vez por intermdio de Petrnio Portella, o grande articulador de Golbery junto aos congressistas. Por meio de Portella,
Para demonstrar seu teorema da sstole e da distole /.../, Golbery citava episdios da vida poltica brasileira dos ltimos cinqenta anos. Eram incidncias to repetitivas, gerando tal naturalidade na aceitao fatalista pela sociedade que, para revert-las, era essencial ir alm do apenas anedtico. Justamente o que Golbery propunha. As lideranas responsveis precisavam adotar um ambicioso planejamento estratgico, de longo prazo, que estabelecesse mecanismos de salvaguarda e garantisse a estabilidade. (Gutemberg, 1994:156-157)

A respeito dessa conversa, Ulysses d o seguinte depoimento:

Considerei a informao como uma espcie de orientao para entender a forma confusa com que estavam tomando corpo e sendo implantadas, como concesses espontneas e dadivosas, e sem participao do MDB, algumas das boas profecias que tivemos em 1975. Ao mesmo tempo pensei que tambm poderia ser um alerta. Um aviso para que evitssemos empolgaes, j que, passada a distole, fatalmente sofreramos a sstole. (Gutemberg, 1994:157)

Apenas um parntese: no esquema de Golbery, duas personagens, alm do presidente, tinham papel destacado. A primeira era justamente Petrnio Portella, que conseguiu verdadeiros milagres pelo caminho estratgico da aproximao indireta: quando no se pode marchar em frente, tem-se de contornar. /.../ Quem exigia as salvaguardas eram mais as Foras Armadas e o Petrnio percebeu isso. O Exrcito e o SNI faziam presso, desconfiavam... Ento, era preciso dar-lhes as salvaguardas (Cf. Senhor, 22-9-87). A segunda figura de destaque no esquema era Tancredo Neves, o grande profeta da oposio nos planos do general Golbery. Reservava-se para ele o destino de liderar um partido de centro-esquerda que, a mdio prazo, talvez em 1991, pudesse receber o governo das mos do ltimo general-presidente. Esta era vista como a salvao, a garantia de alternncia sem riscos de mudanas excepcionais.
Tancredo via as vantagens dessa confiana, mesmo remota, dos militares, e procurava combin-la com uma atitude oposicionista firme, radical, acintosa. /.../ O jogo de Tancredo era to competente que disfarava seu interesse. Golbery dizia com franqueza no entend-lo. Tudo se fazia para favorec-lo e ele cada vez mais radicalizava como oposio. (Gutemberg, 1994:246) Nas Mos de Golbery, a Representao Poltica da Sociedade Brasileira

Ultrapassado o embate que terminou com a posse de Figueiredo - sob o lema conciliao para renovao, dentro da continuidade -, Golbery prepara-se para seu prximo lance: a nova distribuio da fora eleitoral, com o fim da supremacia do MDB e a criao de um novo partido, de total confiana do regime militar e que deveria se constituir em alternativa de poder para a combalida Arena (Gutemberg, 1994:161-162). J em 1976, quando Golbery descartou que a proposta de dissoluo dos partidos fosse implantada aps as eleies municipais, havia a preocupao, segundo Kinzo, de criar meios de garantir para o governo uma base de sustentao no quadro partidrio, a comear pelo modo como foram

210 conduzidas as sucesses estaduais, e proclamada inteno de fortalecer a Arena depois das eleies de 1978 (Apud Rago, 1998:310). As prelees de Golbery em reunies com militares e polticos governistas eram fartamente reproduzidas no Congresso e voltavam a um ponto tocado na conversa secreta com Ulysses: Golbery acreditava que, Liberado, o pas se dividir em cinco partidos. Com seu dedo auricular, chamava a ateno para o fato de que a extrema-esquerda, legalizada, acabaria por ser melhor identificada:
Teremos a extrema-esquerda de sempre. Comunista, radical, irascvel, dogmtica, irrecupervel. Agora, porm, europeizada. Legalizada, trocar o modelo subversivo leninista pela ao parlamentar-eleitoral. Teremos o Partido, Prestes, e as dissidncias em que se fragmentou desde o XX Congresso. Albaneses, maostas etc. Eu acho que o Arraes surgir nesse agrupamento como grande chefe incontestado, para unificar ou dividir mais ainda. /.../ S no acredito que os comunistas consigam mais de 10% dos votos no total do pas, que foi a votao de Yedo Fiza para presidente em 1954. /.../ um nmero tolervel, mesmo no Congresso. (Gutemberg, 1994:163)

Temos, contudo, um depoimento de Golbery, de 1980, que aparentemente contraria essa verso. Respondendo s questes pospostas pelos estagirios esguianos sua Conferncia de 1980, Golbery salientava:
A mim me parece que a legalidade do Partido Comunista no apresenta a vantagem que para muitos existe, de que os comunistas sero identificados: o Partido Comunista na legalidade, com sua atuao mais ou menos tolerada, no vai fazer com que se veja efetivo e real o brao oculto do comunismo, e eles tero, ento, a facilidade de combinar uma ao ostensiva e legal, com uma ao subterrnea e disfarada, como sempre fazem. No vejo vantagem nisso para o Brasil; acho at um absurdo que um partido, qualquer que ele seja, que pretenda alterar inteiramente os princpios bsicos da Constituio, da prpria tradio da nacionalidade brasileira, possa funcionar. por isso que o PC no deve funcionar, a meu ver. Evidentemente, no posso afirmar oracularmente as coisas, mas desejar, posso; e posso, inclusive, no acreditar que venhamos a ter o retorno do partido comunista legalidade. A idia no me atemoriza, no sentido de que no creio que isso se v fazer. Especialmente porque, hoje, o PC no um s. Hoje h vrios, de vrias marcas e vassalagens ao exterior. (PE:531)

Pode ser que a contradio se ponha no por uma convico profunda, mas talvez pela diferena do pblico ouvinte: os esguianos provavelmente eram muito mais resistentes volta do PCB legalidade, diferentemente dos polticos. Ainda de acordo com o depoimento de Ulysses a Gutemberg, Golbery passou em seguida para o dedo anular:
Adiante, teremos a esquerda moderada, de centro-esquerda, socialistas no comunistas. Visceralmente no comunistas, social-democratas moda europia. Marxistas, mas no leninistas. Podem eventualmente chegar ao poder, sem riscos democracia. Desde o velho Partido Socialista Brasileiro do doutor Mangabeira /.../. Tero lugar a os remanescentes do brizolismo, condenados a ser mais uma seita gacha da poltica brasileira, como os ncleos integralista e parlamentarista, que so o fiel da balana eleitoral do Rio Grande do Sul. Mas, nesse bolo, ainda sero

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majoritrios, porque nem sempre se entendem, os sindicalistas getulistas, os janistas, os pelegos, gente que nossa Ivete Vargas controla. (Gutemberg, 1994:163)

Ou seja, o partido pretensamente representante do trabalhismo, herana reivindicada por Brizola, estava reservado para Ivete Vargas. Golbery passa, em seguida, ao polegar:
A extrema-direita reunir todos os nossos fascistas, nazistas, integralistas, reacionrios em geral. Os nipo-nazi-fascistas /.../. Os eternos remanescentes da Cruzada Anticomunista /.../. No sei que nvel eleitoral atingiro, mas ser relevante, proporcionalmente, apenas no Paran, um pouco de Santa Catarina, So Paulo, Minas e Esprito Santo. /.../ Plnio Salgado, em 1955, que era um voto radical de direita, /.../ conseguiu entre 8% e 9% dos votos apurados no pas. (Gutemberg, 1994:163)

A direita civilizada tambm tinha um papel no estratagema de Golbery e correspondia a seu dedo indicador:
Naturalmente haver a direita moderada, conservadora, civilizada, mas onde tambm se abrigaro os populistas, como sempre aconteceu. Dos bacharis urbanos da UDN aos coronis rurais do PSD - os descendentes deles, quero dizer; os salvados do adhemarismo; eventuais dissidncias sindicais; o janismo notrabalhista, o dinheiro dos banqueiros e dos empresrios. No tem nem longinquamente o peso isolado da centro-esquerda. Em compensao, est muito mais disponvel para composies do que os social-democratas. A vocao desse partido de centro-direita aliar-se aos liberais do centro-centro. (Gutemberg, 1994:164)

E, por fim, chegava a vez do dedo mdio:

E o poderoso partido centro, que a posio de equilbrio e poder, que deve ser lastreado ideologicamente pelos liberais, mas para onde declinaro fatalmente os governos que venham a se estabelecer, se quiserem dispor das garantias democrticas. O perfil desse partido, por mais que se procure, se aproxima sempre do velho PSD, sem o principal e grave defeito que tinha o pessedismo, que era o descompromisso estratgico. /.../ Esse partido de centro-centro pode ter o papel do Partido Liberal alemo. Para o lado que ele pender vai o poder. Pode ser para a esquerda, pode ser para a direita, mas o preo dos liberais o compromisso com o equilbrio e a estabilidade. (Gutemberg, 1994:164)

Para comandar esse partido de centro-liberal, o general pensava na slida base mineira: de Tancredo Neves a Magalhes Pinto, que receberiam o majoritrio MDB fluminense de Chagas Freitas. Essa arrumao, imaginava Golbery, seria efetivada por meio da simples eliminao legal do bipartidarismo imposto e artificial. Arena e MDB seriam eliminados, esvaziados por uma grande dispora rumo a partidos ideologicamente mais ntidos. Florestan Fernandes observou bem um aspecto, geralmente negligenciado, da reforma partidria que, segundo ele, voltava-se para a criao de um partido alternativo da situao /.../ destinado a provocar uma gradual desconcentrao militar do regime (Apud Antunes, 1984:28). Outra medida a tomar seria liberar a troca de legenda pelos parlamentares e estimular as lideranas partidrias para que pudessem impulsionar esses projetos. Contudo, ela nunca se

212 cumpriu, o que acabou por desgastar o bruxo junto a Figueiredo. Tambm contribuiu para desprestigi-lo e fortalecer seus crticos, como os generais Medeiros e Venturini. Como conta Gutemberg, a primeira tentativa de induzir ao surgimento desse leque partidrio, por meio da Emenda Constitucional n 11, em vigor a partir de janeiro de 1979, no deu certo. verdade que Golbery no esperou apenas que a lei desse resultado, devendo ter tentado infiltrar pessoas nos lugares certos para provocar determinadas reaes. Mas nem isso lhe evitou o fracasso rotundo: o MDB acabou engordando com gente vinda da Arena, como Teotnio Vilela. Isso no estava nos planos de Golbery. Segundo Lus Nassif, o mistrio fazia bem ao nebuloso Golbery. No fosse o mistrio, h muito a opinio pblica teria tomado conhecimento de que o estrategista infalvel, o pensador capaz de esculpir a Nao, no passava de inveno de uma certa imprensa. (Nassif, FSP, maio/84) 39 Como essa primeira tentativa fracassou, Golbery resolveu induzir mais firmemente as reaes que queria. Assim, em novembro de 1979, decretou-se a extino compulsria da Arena e do MDB. As coisas pareciam andar melhor, ento. O PP, de Tancredo e Magalhes Pinto, ao qual logo aderiu Chagas Freitas, finalmente surgiu em 1980, diante do fato consumado da extino do MDB, e reunia governistas insatisfeitos e falsos oposicionistas. Curiosamente, contudo, o PP mais enfraqueceu o PDS do que o MDB, pois recebeu sobretudo adeses de governistas, com exceo de Minas e do Rio de Janeiro. Ulysses continuava pregando que a luta contra a ditadura s terminaria com a Constituinte, e que a desagregao do MDB seria fatal para o processo de democratizao. Como observou Fernando Henrique Cardoso, O PMDB [] frente que aspira a ser partido pelo que no une: a expectativa de ser poder, sem poder dizer que poder ser. (Cardoso, 1981:7. A observao entre colchetes nossa.) O PMDB era, portanto, uma frente policlassista, ainda sob hegemonia liberal, no conseguiu ir alm das propostas institucionais. No foi capaz de forjar um programa econmico e poltico que tivesse como eixo as aspiraes das massas trabalhadoras. (Antunes, 1984:41) O que seria o PTB de Brizola virou partido-auxiliar do PDS, com Ivete e Jnio Quadros (Cardoso, 1981:7). A legenda perdeu de todo seu contedo reformista, rendendo-se ao fisiologismo e s suas expresses caricatas, cujo apoio mais expressivo provavelmente seria do lumpem proletariado e das classes mdias atingidas pela crise. Era um partido para ser aliado, nas horas de crise, do PDS. Despojado da legenda petebista, Brizola criou um partido imprevisto e o trabalhismo histrico renovado virou um PDT demasiadamente feito medida de um s lder para dar cabida renovao pela base (Cardoso, 1981:7). Assim, o PDT sem ter ganho a feio de partido, tem oscilado entre o politicismo das demais agremiaes e um reformismo que tem suas fontes no nacionalismo varguista. (Antunes, 1984:41) Um dos temores do regime, conforme percebeu argutamente Rago, estava concentrado na possibilidade de Brizola apresentar um projeto alternativo plataforma econmica desenvolvida no ps-64, tendo como base a orientao do nacionalismo exacerbado. (Rago, 1998:308) Assim, para quebrar o controle brizolista do trabalhismo Brizola era o melhor exemplo de tudo o que os militares quiseram erradicar da vida nacional com o golpe de 64 - surgiu o PT, e o que seria um forte movimento trabalhista novo virou um PT demasiado principista para ser forte sindical e popularmente (Cardoso, 1981:7). Segundo Rago,
O Partido dos Trabalhadores, que se estruturava paulatinamente e sem razes partidrias, poderia, na concepo do arguto idelogo [Golbery], ser o arete do
39

Ver tambm, a esse respeito, O Estado de So Paulo, 18 de maio de 1984.

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poder para dividir o trabalhismo. Recorde-se a sua famosa previso: a melhor forma de destruir a liderana de Lula, o fundador do PT e a maior expresso do novo sindicalismo do ABC, seria a sua transformao num poltico, amarrado lgica da poltica parlamentar, desatando-o do movimento de massas que ganhava fora. (Rago, 1998:308)

Os comunistas tentavam tambm se reorganizar sob as vistas grossas da represso, mas se fragmentaram. A extrema-direita permaneceu no PDS, tornando-o mais pesado e estigmatizado. Outras legendas menores e inviveis tambm foram criadas, surpreendendo os homens incrustados no poder.
A imagem de feiticeiro que o regime atribua ao general Golbery fazia com que os militares, a comear por Figueiredo, esperassem que, com a extino do bipartidarismo, surgissem magicamente os cinco partidos previstos pelo chefe da Casa Civil. Golbery era um intelectual, trabalhava com abstraes, mas seu pblico interno fazia uma leitura objetiva e imediatista de cada um dos seus projetos. No caso da reorganizao partidria, o desapontamento foi total, sobretudo porque o grande objetivo, terminar com o gigantismo do MDB, acabara produzindo um efeito contrrio. /.../ Os inimigos de Golbery, at ento acuados, sentiram-se vontade, enquanto a oposio tomava a iniciativa. O governo, cumprindo o projeto de abertura de Golbery - que consistia em conceder, abrir mo, devolver generosamente sociedade prerrogativas autoritrias, e com isso tornar-se competitivo nas urnas -, passava por dbil, fraco, incompetente. A impresso generalizada era de que no concedia nem cedia, apenas liquidava seus poderes. Essa situao, desmoralizante para a direita militar, irritava o presidente Figueiredo e enfraquecia Golbery. (Gutemberg, 1994:248)

Assim sendo,
Embora Golbery fosse melhor estrategista do que operador poltico, ele pagaria pela resistncia da Arena em assumir e capitalizar as iniciativas do governo no sentido da abertura poltica. A abertura planejada por Golbery era feita de encomenda para a Arena e, obviamente, para esvaziar o partido da oposio, que, com o tempo, superava todos os obstculos e estava em condies de usar em seu benefcio as regras do jogo poltico viciado estabelecido pelo regime militar a fim de se manter no poder, fingindo que se submetia ao jogo democrtico. (Gutemberg, 1994:140-141)

Discordando da pusilanimidade e do favorecimento de oficiais, como veremos, Golbery renunciou e foi substitudo pelo ex-ministro do Supremo Tribunal e ex-chefe da Casa Civil do governo Mdici, Leito de Abreu. Numa deciso desastrada, este resolve incluir na reforma eleitoral a proibio de coligaes partidrias para as eleies diretas para governador, marcadas para 1982. O objetivo era corrigir o que os militares linha-dura consideravam frustrao prtica dos resultados prometidos por Golbery para a liberao partidria. Essa nova lei eleitoral corretiva de Leito atendia aos militares radicais, prometendo-lhes com isso garantir melhores chances ao PDS. (Gutemberg, 1994:249) Tal deciso acabou por reverter a imploso do MDB, que acabou se fundindo com o PP e criando um superpartido, recriao do MDB com apenas um P a mais. Uma ltima palavra sobre este partido. O politicismo dominou a histria do PMDB, mecanismo de que o sistema se aproveitou. Primeiramente, no seu brilhante golpe da fuso entre PMDB e PP. Includa na soluo frentista, de molde e carter liberais, as esquerdas so fletidas a uma posio mais direita, do mesmo modo que, incorporando o PP, o PMDB

214 foi empurrado ainda mais para a mesma direo. (Chasin, 1982:19) Ricardo Antunes tambm ressalvou que a incorporao do PP pelo PMDB servir para fortalecer e consolidar a hegemonia de tendncia liberal e conservadora, cujo descomprometimento com qualquer proposta de mudanas mais substantivas e estruturais evidente. (Antunes, 1984:32) Veremos, no prximo captulo, como se deu a sada de Golbery do governo - diante do episdio grave do atentado fracassado ao Riocentro - e sua viso do processo eleitoral que escolheria o sucessor de Figueiredo.

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Captulo V - A Volta s Sombras

1 - A RENNCIA
os primeiros dois anos do governo Figueiredo, Golbery teve uma influncia grande, que ia bem alm de simplesmente conduzir a reforma da autocracia, que em si j era a tarefa mais importante a que se propunha o governo. Seu amigo Mrio Henrique Simonsen foi indicado por ele para a Secretaria do Planejamento. Doutro lado, o presidente ouvia atentamente suas orientaes na relao tanto com a linha dura quanto com a oposio mais esquerda. Figueiredo, lembre-se, afastou sistematicamente das promoes todos os nomes da linha dura, inclusive o rubicundo general Coelho Neto, cuja promoo lhe fora solicitada pelo prprio ministro do Exrcito, general Walter Pires. Alm disso, Figueiredo aceitou a anistia quase total imaginada por Petrnio Portella e to criticada entre os colegas da rea de segurana (Bardawil, 22-9-87). Assim, de incio tudo parecia correr mais ou menos como Golbery pensara, ao optar pelo apoio a Figueiredo. Mas esse general no era Geisel. Da parte deste, Todos os seus compromissos haviam sido cumpridos: ele empreendeu a descompresso lenta, gradual e segura e, ao mesmo tempo, no abriu mo dos poderes excepcionais que a Revoluo lhe dera at o final de seu mandato. /.../ Cabe dizer, entretanto, que se Geisel conseguiu realizar todas as suas intenes, no pde transmitir para seu sucessor a sua capacidade e a sua liderana. Porm, deve-se considerar que a falta de alternativas de Figueiredo e a herana recebida foram muito diferentes, limitando muito sua capacidade de ao. Todavia, tambm isto pode ter sido objeto do clculo geiselista. (Mathias, 1995:136-137) Essa interpretao baseia-se em editorial dO Estado de So Paulo: No instante em que a indicao do futuro presidente parece resultar, como de fato resulta, de uma deciso pessoal (quando muito de poucos), ser difcil a ele, uma vez empossado, encontrar o ponto de equilbrio entre as exigncias de segurana e os reclamos de liberdade. Talvez por isso mesmo e este talvez seja o nico aspecto positivo a ressaltar nesse processo falho sob todos os pontos de vista o futuro presidente seja obrigado a ouvir mais os setores representativos da sociedade civil a fim de, tendo bases civis de apoio, poder realizar a transio para um regime institucional estvel. (Apud Mathias, 1995:139) Figueiredo no tinha projeto poltico prprio: sua inteno era continuar a obra de seu antecessor. Mas, apesar de tomar para si a tarefa da abertura, Ao contrrio de Geisel, Figueiredo no aceitava seus conselhos de dar pauladas, tambm, direita (Bardawil, Senhor, 22-9-87). Esse fato viria a provocar, em 1981, a sada de Golbery do governo. Vrios foram os motivos que contriburam para a renncia de Golbery. Acompanharemos, a seguir, a imprensa da poca, que reproduzia as informaes e verses variadas, s vezes desencontradas e, at, contraditrias.

216 Entre as causas da sada de Golbery inclui-se o resultado provvel das eleies de 1982, pois Golbery advogava uma reforma eleitoral mais abrangente para assegurar melhores condies nas urnas aos candidatos pedessistas e, assim, preservar a posio no Colgio Eleitoral que escolher o sucessor do presidente Figueiredo, em 1984 (Lima, FSP, 12-8-81). J seu opositor, o ministro chefe do SNI, general Octvio de Medeiros, acreditava que o governo no poderia assegurar essa maioria. De acordo com Medeiros e seu grupo, o ministro Golbery - a quem se responsabiliza pelo fracasso da operao de imploso do bipartidarismo - provocou, com sua proposta de reformas eleitorais casusticas, uma reao incontrolvel contra tudo que se identifique politicamente com o governo. (FSP, 12-8-81) Portanto, o desastre na implantao do multipartidarismo e as derrotas cada vez mais freqentes que o governo amargava nas urnas criou o ambiente para o avano da direita, comprovando O axioma de que a liberdade ou existe plenamente ou no existe (Gutemberg, 1994:248). Assim, por um lado, Golbery continuava a defender a realizao de eleies livres e achava que a sada para a crise econmica do pas deveria ser poltica, para evitar que o PDS sofresse as conseqncias. O ministro Octvio de Medeiros, por sua vez, teria insistido na criao de salvaguardas - o termo por ele empregado ou casusmos que garantissem a vitria do partido do governo nas eleies de 1982. (OESP, 7-8-81) Outro motivo para a renncia que veio somar-se a esse foi a nomeao do general Coelho Neto, inveterado caador de comunistas, para a chefia do gabinete do ministro do Exrcito, com o que Golbery no teria concordado. O fato representaria a rearticulao dos militares politicamente duros e intransigentes, que o ministro Golbery desejaria marginalizar do sistema. (Manso, FSP, agosto-81) Ao reclamar com o presidente Figueiredo a respeito de tal nomeao, Golbery teve responder o que faria se fosse ministro e no pudesse nomear seu chefe de gabinete. Sua resposta veio sem titubear: Pediria demisso, n? Tambm foi dito, na poca, que havia uma aliana entre Delfim Neto, ministro do Planejamento, e Octvio de Medeiros. Dois embates, vencidos por Delfim, teriam desagradado a Golbery: primeiro, o aumento nas contribuies previdencirias, de 8% para 10%. Segundo, a retirada do FGTS do funcionalismo pblico, sem que este fosse compensado, como queria Golbery, com a introduo do 13 salrio. Circulou, ainda, a verso de que Golbery teria pretendido conseguir de Figueiredo a substituio de Delfim, Jair Soares (ministro da Previdncia) e Murilo Macedo (do Trabalho), mas no teve foras para faz-lo. Segundo as informaes, a crise na previdncia, que explodira como verdadeiro escndalo, havia sido intencionalmente superestimada, com o nico objetivo de provocar um confronto interno no corao do governo entre o grupo aberturista, empenhado em manter as eleies de 82, e do setor duro (Russo, FSP, 8-8-81). De fato, Golbery havia manifestado sua estranheza quanto disparidade de cifras entregues ao presidente Figueiredo a respeito dos furos na Previdncia Social. Golbery achava que o presidente da Repblica devia, no caso, admitir a divergncia em questo, agindo contra os responsveis pelo erro - os ministros Jair Soares (Previdncia) e Delfim Neto (Planejamento) (Lima, FSP, 12-8-81). O que provavelmente os supostos articuladores dessa trama maquiavlica no contaram foi com a reao do ministro Golbery do Couto e Silva de se exonerar. Claro que seria melhor para os supostos articuladores dessa trama que ele continuasse frente do Gabinete Civil, mas derrotado. Pelo menos

217 formalmente, o grupo aberturista continuaria no poder, mas com limitado espao de manobra. (Russo, FSP, 8-8-81) Outras informaes davam conta de que Golbery teria agido com extrema nobreza e esprito de sacrifcio, ao pedir demisso. T-lo-ia feito como um derradeiro gesto poltico, para propiciar ao presidente Joo Figueiredo condies de ampla reforma do ministrio, inclusive atingindo todos os responsveis pelo setor econmico-financeiro. Diante dos sucessivos desencontros entre ministros, e no estando a atual estratgia dando resultados, Golbery se teria disposto ao sacrifcio consciente. Ele saindo, fica o general Figueiredo em condies de, desejando, no manter mais ningum (OESP, 7-8-81). Ainda outra verso para sua sada do governo veio em 1983, no Correio Braziliense. De acordo com o jornal, Golbery j teria advertido Figueiredo, antes mesmo de tomar posse, de que trabalharia apenas at 1981. Foi somente para coordenar a transio entre os dois tempos - Geisel e Figueiredo - que Golbery havia concordado em participar dos primeiros dois anos do governo, at que completasse seus 70 anos, atingindo o dead-line do projeto pessoal (Mota Neto, CB, 7-8-83). A derrota no episdio do Riocentro convenceu-o da hora de deixar o governo, mas quis faz-lo de forma matreira e engenhosa. Ele teria, ento, entregado a Figueiredo sua carta de demisso, guardando segredo porque achava que esta carta iria arrancar do chefe do governo o efeito demolidor que o documento de trs meses atrs [sobre o Riocentro] no havia conseguido (Mota Neto, CB, 7-8-83). Contudo, de acordo com essa verso, Figueiredo deixou vazar a demisso, tornando fato consumado sua sada do governo. De qualquer forma, o que se pode concluir de todas as informaes acima que a crise que levara demisso do general Golbery no era civil, como se informava em Braslia, mas uma crise militar e, mais do que isso, uma crise resultante do desentendimento de dois grupos militares e tambm do acmulo de vrias crises que se sucederam nos ltimos tempos, e que teriam comeado a amadurecer com o episdio do Riocentro (JT, 7-8-81). Este foi, sem sombra de dvida, o fator mais importante para a demisso do general. Golbery j vinha reclamando atuao mais efetiva de Figueiredo na apurao e punio de denncias de tortura nos DOI-Codi e da participao de militares duros em atos terroristas (exploso de bombas em bancas de jornal e, depois, na OAB). Essas reclamaes recresceram exponencialmente com o fracassado atentado ao Riocentro, quando bombas explodiram no colo de um militar, durante as comemoraes do Primeiro de Maio. Tudo levava a crer que se preparava ali um atentado terrorista de enormes propores. Golbery queria a apurao efetiva dos fatos, mesmo que se comprovasse que era um atentado e que envolvesse militares - do que, alis, no tinha dvidas. Alm de ter funcionado como estopim do congelamento da distenso, existem srios indcios de que o episdio do Riocentro teve forte repercusso negativa nas Foras Armadas, que, enquanto instituio, sentiam-se direta e injustamente atingidas pela perda de legitimidade dos militares enquanto governo e pelos excessos praticados pela comunidade de segurana. Ademais,

218 em sua condio de instituio fiadora do regime, as Foras Armadas estavam receosas de que o vrus contagioso da poltica, entendida pejorativamente como atividade facciosa e divisionista, penetrasse para dentro dos quartis. (Mello, 1989:214) Golbery, por sua vez, achava que era o momento, alis j havia passado da hora, de dar a paulada direita. Por isso, assim que pde se informar sobre o atentado e concluir que s poderia ter sido feito por intermdio da rea de segurana, Golbery chamou o lder do partido do governo e conversou com ele longamente. Este foi dali direto para o Senado, onde prometeu, em discurso, uma investigao cabal do episdio, doa a quem doer. Contudo, o ministro Medeiros se opunha a isso e sua posio saiu vitoriosa. Golbery sentiu-se isolado dentro do governo e preparou imediatamente sua sada. Escreveu uma longa carta ao general Figueiredo denunciando o engodo do inqurito do Riocentro, alertando para o fato de que a abertura era, em todo caso, irreversvel e mais ou menos prevendo a decadncia do governo a partir daquele momento, dado seu envolvimento, cada vez maior, com a candidatura do general Medeiros Presidncia da Repblica (Bardawil, Senhor, 22-9-87). Em 1987, depois da morte de Golbery, publicou-se que ele enviara a Figueiredo uma carta, datada de 4 de julho de 1981, em que denunciava os DOI-Codi e pedia que sua estrutura fosse desmantelada. No documento, j mencionado nos jornais da poca, Golbery mostra que no tinha dvidas sobre a participao do pessoal da segurana no atentado do Riocentro. Ele achava que, para manter a credibilidade, num momento em que esta era a moeda com que o governo contava para negociar com as oposies, diante de uma dramtica crise econmica, haveria que tomar medidas punitivas exemplares aos autores do ataque. O general acreditava que a repercusso imediata do atentado no se comparava ao que, futuramente, poderia desencadear, uma vez que as oposies, temerosas de um retrocesso caso tivessem uma reao mais dura, esperavam a campanha pelas eleies para depois, segundo o general, dirigir uma saraivada de crticas ao governo pela sua inatividade diante daquele episdio. A atitude que Golbery esperava do presidente era a extino imediata e sem titubeios dos DOI-Codi, que considerava infiltrados, seno dominados mesmo, pela minoria terrorista que vivia em funo da revoluo permanente e cujo poder chegava aos mais altos escales do governo, numa meno ao general Medeiros e seus seguidores. Abaixo, reproduzimos os principais pontos do texto de Golbery. Tudo indica que o IPM /.../ substanciar as concluses finais de ter havido crime de competncia da Justia Militar /.../. As reaes da opinio pblica /.../ foram, como se esperava, atenuadas pelo reconhecimento dos perigos maiores de qualquer atitude radical, capaz de prejudicar o processo de abertura democrtica /.../. No h por onde confiar em que, tornadas irreversveis as eleies e desencadeada a campanha poltica, no venham a surgir ataques fortes, violentos e mesmo irresponsveis contra o governo e as autoridades, quanto conduta seguida no episdio. E isso poder levar /.../ a situaes de gravidade e conseqncias imprevisveis. Da convir - impor-se, na verdade - que algo se faa desde j, com vistas a evitar ou atenuar tais repercusses futuras. /.../ Verdade indiscutvel que um grupo radical, minoritrio apenas, irresponsvel e adepto de prticas terroristas /.../ se no

219 dominou ou controla, pelo menos infiltra os rgos vulgarmente chamados DOI-Codi e, desde a, a coberto dessas organizaes e valendo-se, assim, de grandes facilidades e larga soma de poder, desencadeou aes terroristas mltiplas obedecendo a linhas hierrquicas distintas das legais e legtimas e que se estendem no se sabe at que nveis superiores dos escales governamentais. /.../ [O] atentado frustrado coloca o governo e, infelizmente, o prprio presidente - por mais que se tenha conseguido coloc-lo fora do quadro decisrio, apenas do ponto de vista exclusivamente formal - num dilema inescapvel: ou incapacidade de ao repressora, por falta de autoridade efetiva, ou complacncia e comprometimento de fato, em grau maior ou menor, no intento terrorista, pelo menos em seu acobertamento. /.../ Ao que parece, ordem presidencial - presidencial porque s [so?] a imagem e a autoridade do presidente que precisam ser resguardadas - para que sejam logo extintos os chamados DOI-Codi, claramente, expressa e difundida, sem estardalhao, embora nem comportando justificativas /.../. No se trata de saber ou no saber a verdade verdadeira. Indiscutvel, veemente, inegvel a suspeio, evidente aos olhos de todos. (Apud Veja, 23-9-87) Posteriormente, Figueiredo negou ter recebido tal carta confidencial, ressaltando que Golbery nunca o procurou para conversar sobre a atuao dos DOI-Codi (FSP, 21-9-87). Segundo o ex-presidente, foi ele prprio quem agastou Golbery, levando-o demisso (FSP, 19-9-87), quando da nomeao do general Coelho Neto para a chefia do gabinete do ministro do Exrcito. E quando mandou um deputado federal fazer um discurso dizendo que Guilherme Romano, um amigo de Golbery que viveria falando em nome do presidente, no tinha poderes para tal. Figueiredo disse, tambm, que fez fora para apurar e punir os responsveis pelo atentado do Riocentro, mas no o pde dada a indefinio da Justia (FSP, 21-9-87). De qualquer forma, o presidente, certamente, lamentou o atentado, se no por outros motivos, pela repercusso puramente negativa que ele trazia para o governo. O episdio provocou um desabafo pblico de Figueiredo: Se a coisa foi do lado de l, no poderia ser mais inteligente. Se foi coisa do nosso lado, no poderia haver burrice maior (Gutemberg, 1994:249). O ex-presidente Geisel, que se punha ao lado de Golbery ao defender uma apurao rigorosa do atentado, procura mostrar a situao em que Figueiredo se encontrava, no momento: O problema no foi apurado como deveria ser. Passaram a mo pela cabea dos culpados. Hoje em dia poucos so os que tm dvidas. Golbery achava que ns j estvamos suficientemente adiantados nessa questo da abertura na tendncia normalizao da vida no pas, para podermos apurar direito. Achava que tnhamos que apurar e tomar medidas para evitar, inclusive, a reproduo futura de fatos semelhantes. Figueiredo, nessa hora, deve ter tido um drama de conscincia muito grande. Achou que era mais recomendvel ficar com a classe, ficar com os companheiros do Exrcito - se bem que no com o Exrcito como um todo, porque acho que grande parte no aprovava aquilo. (DAraujo e Castro, 1997:437) Portanto, por mais que tenha discordado e lamentado o atentado, Figueiredo mais no fez, permitindo que os setores duros do governo agissem para acobertar responsabilidades.

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O Fim da Vida Inteligente no Governo? Golbery, que j vinha acumulando desgostos, como vimos, no pde compactuar com omisso daquele tamanho. Discordava sinceramente da postura do governo e, alm disso, queria passar histria como artfice da abertura e diferenciar-se dos duros. Vendo que sua posio no seria a do presidente Figueiredo, pediu demisso. A partir de ento, perdeu toda objetividade na conduo da auto-reforma do regime; com a bomba do Riocentro, o governo Figueiredo enlouqueceu politicamente 40 . Com a queda de Golbery e o fortalecimento da tendncia mais marcadamente bonapartista, os riscos aberturistas passaram a ser mais controlados. E com o pndulo pendendo para este lado, os mecanismos um pouco mais sofisticados de manuteno do poder foram substitudos, dando lugar a medidas mais toscas. (Antunes, 1984:36) Durante sua passagem pelos governos militares, Golbery cultivava a imagem de bruxo que tudo sabia, de estrategista insupervel, homem de inteligncia incomum e de discrio igualmente grande. Colecionava adjetivos, como general do silncio e Satnico Doutor Go, e era visto como algum que Destacou-se entre seus pares porque, alm de maquinar, interessou-se em estudar o funcionamento da mquina, ainda que tenha preferido usar com parcimnia aquele recurso que torna os pensamentos compartilhveis: a palavra (Azevedo, Veja, 10-6-92). Havia, certamente, anlises segundo as quais Golbery, ideologicamente, sempre foi apenas manipulador de oportunidade, estrategista do poder (JT, 7-8-81). Mas, em geral, era visto como o homem da abertura. Por tudo isso, sua renncia da Casa Civil do governo Figueiredo foi considerada, por muitos analistas, como a mais profunda crise de todos os governos militares (Russo, FSP, 8-881; Branco, JT, 7-8-81) e, na medida em que, por seu peso especfico enquanto principal estrategista poltico do governo e pelas funes de coordenao administrativa que sua pasta encerra, protagonizou at aqui o papel de primeiro-ministro, sua exonerao equivale a uma queda de gabinete em regime parlamentar (FSP, 8-8-81). Enio Pesce destacou que, Em toda transio, quando a negociao imperativa, preciso que haja interlocutores vlidos. O principal interlocutor do governo est agora fora do circuito e ningum sabe se o canal de comunicao continuar aberto e se ele ser utilizado com a competncia necessria. De certa forma, o papel do general Golbery era talvez mais importante do que o do prprio presidente da Repblica, na medida em que este, evidentemente, no se poderia envolver pessoalmente em negociaes nada prprias de um chefe de Estado. (Pesce, OESP, 7-8-81)

O depoimento do ex-presidente Geisel a esse respeito confirma o retrocesso: Golbery deixou o governo por causa do problema do Riocentro. Ele achava que Figueiredo tinha que mandar apurar direito o que tinha acontecido e punir os responsveis, isto , ele tinha que enfrentar a rea militar, ou a rea radical que tinha atuado nesse episdio. O problema do Riocentro era o fato em si. Com a abertura, deveria estar encerrado o problema da represso. O Riocentro foi um recrudescimento, uma nova exploso reacionria contra a abertura. (DAraujo e Castro, 1997:435)

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221 A situao foi considerada ainda mais grave tendo em vista que, num regime que se abre sem democratizar o processo decisrio (Editorial FSP, 8-8-81), a sociedade civil, excluda dos meandros do poder, no conhecia os reais motivos da sada - a no ser superficialmente as divergncias entre Golbery e o general Medeiros - e as mudanas que ela traria. Assim, embora se soubesse que nenhum dos dois grupos que disputavam entre si o governo era realmente democrata ou que alteraria o fundamento econmico da nao, havia de escolher o que era menos ruim. Nem os duros nem os aberturistas aceitavam os riscos de uma democracia de conflito poltico real. O grupo da Sorbonne, representado pelo general Golbery, quer um regime democrtico com limitaes. Mas no quer as Foras Armadas envolvidas no conflito poltico, atuando como partido. O autoritarismo regulado, o conflito poltico limitado, certo grau de exerccio das franquias democrticas, so tidos como necessrios, desde que no envolvam a competio pelo poder. /.../ A diferena de mtodos. Mas, para que a democracia, por via pacfica, seja conquistada - essa diferena essencial: a abertura permite a pregao, o debate, a organizao e a mobilizao. pelo menos uma oportunidade para o incio da estruturao de uma sociedade civil respeitada e atuante. Mesmo que a abertura, como sabemos, seja insatisfatria, defend-la o primeiro dever dos democratas (Magalhes, FSP, 8-8-81). A partir de ento, segundo a Folha, a liberalizao do regime passou a representar um perigo, devido insatisfao social provocada pelo desastre administrativo. Temos eleies marcadas para o ano que vem, e entre as perspectivas do governo no figura a hiptese de uma derrota que o obrigue a entregar o poder. Nestas condies, o peso ditatorial do modelo desequilibra a balana e neutraliza o segmento empenhado na abertura, promovendo um retorno direita. /.../ Se a linha da abertura fosse vitoriosa, os demitidos seriam outros. Quando a poeira assentar e as paixes adormecerem, o general Golbery ocupar o lugar que lhe reserva a histria do movimento de 1964. Apesar do erro fundamental que cometeu, ao conceber um modelo autoritrio, ficar certamente na galeria dos democratas (FSP, agosto-81). Essa era uma posio bastante comum, no momento. Embora alguns tenham julgado que ele foi o artfice do retardamento estratgico do processo de auto-reforma da ditadura bonapartista, Ou seja, desenvolveu uma ttica para fazer a mais lenta das aberturas, conservando o mximo de poder para o mesmo sistema que patrocinara o fechamento, na etapa anterior (Pereira, FSP, 8-8-81), at mesmo para os sindicatos a demisso, longe de ser um alvio, foi considerada preocupante. s vezes um conservador moderno pode ser mais perigoso do que progressistas primitivos, mas certo que por aqui j no se fazem conservadores modernos como antigamente (Carta, Senhor, 28-7-87). Embora tenha sido ele um frio estrategista, sempre disposto a procurar esquemas de utilizao facilitada, para perturbar a paz das oposies e tornarlhes a existncia mais difcil, era consenso geral atribuir-lhe uma funo no apenas moderadora, como dirigida no sentido de formalizar e preencher a promessa do presidente Figueiredo de tornar o Brasil uma democracia /.../. A sua deciso de deixar o governo - e ainda mais pela forma que escolheu -

222 obviamente fruto da verificao de que sucessivos projetos fracassaram ou no puderam ser levados a termo, ou da iminncia de fatos novos no cenrio poltico brasileiro. As causas no tero sido imediatas, a saber, projeto poltico, divergncia na apreciao da poltica econmica, sade, etc., etc., mas sim um acmulo de fatores adversos e condies com as quais o estrategista nmero um do governo julgou no mais poder conviver. (Abramo, FSP, 8-8-81) A renncia de Golbery foi amplamente temida por provavelmente representar uma ascenso dos duros. Estamos todos perdidos, disse o presidente do PP, Tancredo Neves, sobre o fato. E no era simplesmente pela renncia em si, mas porque este era um acontecimento revelador de vrios e gravssimos fenmenos: o abismo entre o centro decisrio estatal e a sociedade civil, marginalizada antes, durante e depois do episdio; a complexidade e profundidade dos conflitos que se colocam no interior da cpula do aparelho burocrtico /.../; a importncia decisiva do choque das personalidades situadas no epicentro do poder /.../; a instabilidade das alianas interpessoais que os personagens forjam para captar a confiana do prncipe e assegurar sua hegemonia no processo decisrio, o que os submete a pactos e acordos que so atados e desatados ao sabor das circunstncias /.../, em um exerccio permanente de seduo, proteo e intriga /.../. Mais que tudo, entretanto, o episdio revela a fragilidade das organizaes sociais, sua absoluta impotncia (Magalhes, FSP, 8-8-81). Algumas anlises procuraram mostrar onde estava o equvoco de Golbery, que acabou por determinar sua queda. Analistas militares consideraram que ele, embora dotado de alta capacidade intelectual, cometeu um erro fundamental de avaliao. Como estrategista poltico, o general sempre evitou as manobras de ruptura que se caracterizam por um encontro frontal entre foras sociais diversas. Sabendo que deveria conciliar interesses to diversos, utilizava-se de manobras em linhas interiores, que significam colocar-se no centro do poder e, sempre tomando a iniciativa, manter ao redor de si os grupos de presso social, isolados uns dos outros e cabendo ao Planalto entreter, separadamente, a cada um. Considerava o ministro Golbery, segundo os analistas, que os militares estariam na periferia do sistema como um das foras a serem mantidas, adoadas e embaladas a distncia. Os militares, entretanto, situavam-se dentro do ncleo de decises e no em sua periferia. Obviamente, num choque dentro do sistema, perdeu o ministro Golbery. (Manso, FSP, agosto-81) Houve interpretaes diversas sobre a rediviso do poder depois da renncia. Alguns analistas apontavam Delfim Neto e Octvio Medeiros como os novos homens fortes do governo. Outros, porm, avaliavam que, com a sada de Golbery, Figueiredo passava a aglutinar o poder. O importante a reter que a crise provinha da prpria essncia de um regime que se abre sem democratizar o processo decisrio (FSP, 8-8-81) e que, especialmente, no permite nem mesmo a discusso do que para ele fundamental: a conduo econmica do pas. A

223 economia, que passava ento por uma crise, opunha os setores burgueses, nenhum deles disposto a pagar a conta do fim do milagre. Na base da crise poltica est o modelo econmico exaurido, que, se por um lado determinou o desencadeamento de um processo de descompresso, por outro fez com que esse projeto seja mantido num quadro rgido, pela ameaa que representa-riam para os militares o recrudescimento das manifestaes sociais e, sobretudo, porque no se pretende alterar o pacto social falido. (Manso, FSP, agosto-81) Como apontou Mello, mesmo que Golbery tenha sido posteriormente derrotado nas lutas palacianas, uma anlise da Conferncia de 1980 mostra que ele no se equivocou nos clculos da estratgia de abertura. Assim, mesmo que os setores radicais tenham persistido durante o governo Figueiredo, buscando o solapamento da poltica de abertura controlada (o que veio a causar a sada de Golbery do governo e o estancamento do processo), O general diagnosticou corretamente o potencial de imploso da heterognea e problemtica frente emedebista /.../ e, a despeito dos resultados das eleies de 1982, que transferiu para a oposio o controle dos primeiros estados do pas, o governo logrou manter a posse da maioria no Congresso e no Colgio Eleitoral, que deveria eleger indiretamente o futuro sucessor do presidente Figueiredo. (Mello, 1989:213) Fernando Henrique Cardoso aponta que os clculos do regime previam a vitria de uma democracia conservadora, uma vitria dentro deste regime (Cardoso, 1981:7). Mathias tambm aponta que o projeto geiselista, continuado por Figueiredo, foi vitorioso nos meios e objetivos. Nos meios, porque o gradualismo anunciado desde o incio foi respeitado. Nos fins, porque o afastamento das Foras Armadas do poder no representou, em nenhum instante, a volta dos militares aos quartis e, ao final, se o regime recebia o nome de democrtico, nem por isso a incerteza estava institucionalizada (Mathias, 1995:143-144). Contudo, h que ressaltar, o projeto sorbonista fundamental - o trnsito do pas at seu destino geopoltico de grande potncia - foi um rotundo fracasso: ao final da ditadura militar, a subsuno ao capital estrangeiro - que o grupo castelista acreditava ser fator de desenvolvimento nacional - estava aprofundada, afastando mais ainda a possibilidade de constituio de um capitalismo autnomo. 2 - APS O PODER, O PODER Realmente, no governo, o poder vale no que poder para. Ou seja: poder para criar algo, para resolver algo, para contribuir com algo para o progresso do pas, disse Golbery, aparentemente magoado porque lhe atribuem apego ao poder, acrescentando que afastar-me do poder sempre me foi fcil, graas a Deus (Veja, 16-5-84). Quando saiu do governo, Golbery voltou a atuar de sua maneira peculiar: nas sombras. Seu gabinete no Banco Cidade era assiduamente freqentado por altas figuras republicanas,

224 com as quais o general exercitava seus jogos prediletos: a coleta de informaes e as manobras polticas. Libertado dos limites que o poder impe a seus servidores, ficava mais vontade para exercer sua virtuose de estrategista, embora no aparecesse no teatro de operaes ou na imprensa. De fato, no precisava disso: Golbery era avesso a entrevistas, entre outros motivos, porque no lhe faltavam porta-vozes. A ltima vez que tentou intervir mais ou menos abertamente em grandes questes nacionais foi durante as discusses preparatrias para a eleio para a Presidncia da Repblica, que se realizaria em 1982. Em entrevistas de grande repercusso a Jlio Bressane e a Elio Gaspari, Golbery criticou veementemente o presidente Figueiredo. Sobre a propalada inteno deste de esticar o prprio mandato, Golbery declarou: o continusmo a doena infantil da democracia brasileira e da democracia latino-americana e, caso efetivado, estaria quebrando a melhor tradio da nica boa tradio dos regimes autoritrios militares. a receita da rotatividade. Vo quebrar os ossos, ento, da nica coisa que se mantm. /.../ Ningum agenta mais militar no governo, nem as Foras Armadas (CB, 7-8-83). Naquela conjuntura, o continusmo era muito mais srio, tendo em vista que, para o general gacho, Figueiredo no tinha mais sade nem interesse para governar o pas. E, ainda neste tom, critica o veto de Figueiredo candidatura Maluf, por conceb-lo como coercitivo. Diz que, dessa forma, ele rasga a nica coisa que ficar para ele como imagem no futuro: que ele abriu o pas ao regime democrtico (CB, 7-8-83). De sua parte, Golbery foi defensor ardoroso e ativo da candidatura Maluf. A campanha das diretas foi, para ele, um magnfico espetculo de civismo, marcada pela ordem mantida pela autodisciplina dos cidados. O tom festivo e popular foi bastante destacado pelo general naquelas manifestaes raras e empolgantes, com entusiasmo, alegria e humor. Esse era, para ele, o lado atraente das manifestaes, que parece superior ao seu contedo poltico (Veja, 16-5-84). O aspecto negativo estava no emocionalismo agressivo, arrogante e perigoso que o slogan fcil s acentuava, e o tom ameaador, que substitua gradativamente o clima festivo-emocional. Esse clima ameaador, associado a um triunfalismo falso e manipulado, ricocheteou contra as prprias multides. A rejeio da emenda, um fato previsvel, mas que fora escamoteado s praas, resultou em tremenda frustrao, comparvel que se abateu sobre o pas ao final do jogo decisivo da copa do Mundo de 1950. de se louvar, contudo, que a essa frustrao no tenham correspondido desordens. Esse um sinal de educao poltica (in Veja, 16-5-84). Fica-nos a pergunta: a educao poltica foi oferecida pela ditadura, por meio da represso? Assim sendo, essa seria mais uma das conquistas do regime, a ser registradas. Outro problema: para Golbery, mistificao acintosa e propositada (Veja, 16-5-84) a exposio de bandeiras com smbolos comunistas e a presena de lderes de organizaes clandestinas nessas manifestaes. Golbery aceitava que o povo queria as diretas. Achava mesmo que eleies sempre trazem vantagens: favorecem a educao poltica paulatina da sociedade, do maior respaldo aos governantes e patrocinam a identificao dos novos dirigentes com os cidados (Veja, 16-5-84), entre outras. Contudo, tambm trazem inconvenientes e riscos. Para ele, Os maiores riscos esto na demagogia embusteira, no oportunismo deslavado, no carisma irresponsvel, na explorao da boa f e da ingenuidade do povo. Na verdade, tanto nas eleies diretas como nas indiretas, as grandes decises sempre so tomadas pelas cpulas

225 polticas e a manipulao das bases sempre intensa e malandra (Veja, 16-5-84). Da a necessidade de tutela por meio de um grupo que se considerasse acima do pequeno mundo dos interesses imediatamente polticos, que achasse que trabalhava apenas para atingir os ON. Mesmo sendo as diretas um desejo da nao, Golbery recusava-se a apoi-las simplesmente para agradar ao povo. Por uma questo de formao, condeno aqueles que se apresentam como porta-vozes infalveis do povo. /.../ Se ouvir o que diz o povo obrigao daqueles que se interessam pelos destinos de um pas, aceitar slogans pelo seu valor aparente j outra coisa (Veja, 16-5-84). Isso porque, de acordo com ele, Muito mais do que Diretas J, /.../ o pas precisa de mudanas (Veja, 16-5-84), principalmente no aspecto socioeconmico. Mesmo se recusando a dar mais detalhes sobre o assunto, Golbery ressaltou que foi por visualizar essa necessidade de mudanas substanciais que ele deixou o governo, em 1981. Para ele, a rejeio da emenda Dante de Oliveira representou a consolidao da normalidade constitucional. Ele acreditava que a oposio como um todo sara perdendo ao final da campanha pelas diretas, uma vez que se tornou evidente que eles iludiram o povo (Veja, 16-5-84). No meu entender, ao longo desses acontecimentos, s avultam dois vitoriosos, quase isoladamente. Um o nosso Duce dos Pampas, o engenheiro Leonel Brizola, com todo o seu inegvel e perigoso carisma, a mesma ousadia e arrogncia, a mesma prepotncia com que promove expurgos ao seu belprazer e, agora, com as tinturas de um socialismo de fancaria. /.../ O outro vencedor o nosso Fidel Castro do ABC paulista, o Lula, com barba bem mais hirsuta e idias mais curtas. Ele um lder operrio autntico que infelizmente se perdeu nos labirintos da poltica partidria matreira e nas delcias do radical-chique. Disputando com esses dois vitoriosos h ainda os radicais, que continuam com suas ameaas, preparando uma escalada de violncia, dando vazo a seu revanchismo intolerante, cuidando da mobilizao de greves sabidamente ilegais. A ao destes radicais provoca reaes de autoridades que mais os satisfazem quanto mais elas se deixam levar a desmandos que permitam denunci-los com veemncia e indiscutvel razo (Veja, 16-5-84). De acordo com o professor Walder de Ges, que manteve longa conversa com Golbery, em 1982, o general relativizava a importncia do que estava escrito na Constituio. O importante, para ele, a dinmica poltica, funcionamento concreto da poltica. Se a norma constitucional estiver de acordo com a dinmica, ela funciona. No estando de acordo, no funciona (Ges, FSP, 19-9-87). O interessante que Golbery, desdenhando em 1984 dos que acreditam no impasse da sucesso, afirmava que o verdadeiro impasse est na circunstncia de que a grande maioria que deseja mudar as regras do jogo no dispe dos dois teros dos votos do Congresso necessrios para qualquer mudana de prescries constitucionais(Veja, 16-5-84). Eram ainda as repercusses da deciso da Constituinte do Riacho Fundo. Para ele, os impasses reais advinham das manobras da oposio para desbancar os candidatos do PDS. Se, por um lado, a oposio pretende mudar as regras do jogo para conquistar o poder - o que, alm de legtimo, vem sendo feito de forma sincera, por outro lado havia os que tentavam trapacear ao propor mudanas nas regras do jogo a fim de afastar Maluf e Andreazza, apresentando suas frmulas como aperfeioamentos legislativos e impessoais (Veja, 16-5-84).

226 Uma dessas manobras seria a tentativa de admitir a chamada candidatura avulsa, mecanismo que representa pura e simplesmente a liquidao dos partidos polticos, que so instrumentos essenciais vida democrtica (Veja, 16-5-84). Outra manobra era a reestruturao partidria, em que se inclua o sonho da criao de um novo partido, para desestabilizar o PDS e implodir o Colgio Eleitoral (Veja, 16-5-84). Mais uma manobra destacada por ele foi a investida contra o Colgio Eleitoral em favor da eleio indireta mas pelo Congresso; isso era incuo porque o Colgio Eleitoral s pode morrer de uma forma e somente uma: atravs da aprovao pelo Congresso de uma emenda constitucional (Veja, 165-84). Como destacou J. A. Guilhon Albuquerque: A estratgia alternativa, e que veio a ser vencedora no Colgio Eleitoral de 1985, era de fato uma variante da distenso geiseliana, isto , consistia em uma coalizo entre os setores moderados e liberais do regime e os setores confiveis da oposio /.../ a eleio de Tancredo Neves /.../ representou uma espcie de coroamento inesperado da distenso lenta, gradual e segura preconizada pelo general Geisel. (Apud Mello, 1987:220) Golbery explicitou seu desejo de que a emenda Figueiredo no passasse, acrescentando que, na verdade, trata-se de diversas emendas, capeadas por uma s mensagem. Destas, Dada a importncia da matria e as conseqncias funestas que poder acarretar para o pas, a mais condenvel era a que permitia a reeleio do presidente e do vice, sem que tenham sequer de se desincompatibilizar, mudana que , alm de tudo, um evidente estmulo corrupo (Veja, 16-5-84). Sobre o mandato-tampo de dois anos, tambm proposto poca, Golbery disse que vem a ser um verdadeiro crime contra a nao. Estamos no meio de uma grave crise econmica e financeira. Acrescente-se que temos uma dvida externa de difcil negociao, sobretudo porque nos falta a perspectiva de tempo que d a nossos credores a tranqilidade indispensvel para esse tipo de conversaes. Para ele, O que o Brasil precisa hoje no de presidente de menos, mas de mais presidente (Veja, 16-5-84). O general disse, ainda, esperar do prximo governo Um encaminhamento satisfatrio do problema econmico e financeiro, com a melhoria do padro de vida da comunidade. Politicamente, espero a ampliao paulatina da vida democrtica, com maior participao de cada brasileiro na gesto da coisa pblica e respeito s liberdades individuais. Em particular, saliento a necessidade urgente de uma reforma constitucional, pois no podemos mais conviver com uma Constituio to casustica, uma verdadeira colcha de retalhos, sem padro de medida ou de homogeneidade, incapaz de resistir ao tempo. Acredito tambm que seria indispensvel ao prximo governo - e at mesmo aos prximos - a formao de um governo de coalizo nacional, no s para reduzir os antagonismos de hoje, to conflitantes, mas principalmente para somar foras na soluo da grave crise brasileira. Alm disso, cumpre recriar o clima de descentralizao com uma interferncia cada vez menor do Estado na vida do Pas (Veja, 16-5-84). Segundo Lus Nassif O jurista Fbio Comparato considerou a entrevista do exministro Golbery do Couto e Silva [a Elio Gaspari] como parte de uma jogada dos que querem manter desesperadamente o atual quadro poltico de monopolizao do poder pelas Foras Armadas: alguns empresrios e a burocracia governamental (Nassif, FSP, maio-84). Destacou-se, tambm, que no era mera coincidncia que entrevistas de Mdici e Golbery

227 estivessem no mesmo nmero. E na capa. No que seja uma traio a Figueiredo. No, uma punhalada nas costas, repetida diversas vezes (OESP, 18-5-84). Este mesmo texto ressalta a urgncia com que foram feitas as entrevistas, e conclui: Era inadivel (OESP, 185-84).

A Cria Persegue o Criador

A importncia do setor de informaes era justificada por Golbery por ser o campo estratgico de uma incerteza bastante grande. Diante disso, Saber o que o adversrio faz, o que pretende fazer, se possvel, e, no mnimo, o que poder vir a fazer com menor ou maior grau de probabilidade - eis a tarefa da busca e interpretao das informaes, a qual, no por acaso, recebeu, em muitos pases, o nome de inteligncia. Ocultar nossos propsitos, impedir ou pelo menos dificultar que o antagonista os desvende ficou batizado de contra-informao ou contra-inteligncia. Tanto se reconheceria o primado da inteligncia, em boa parte intuitiva, no campo da estratgia, que esta, sob tais aspectos, se viria a situar em plano mais elevado que a poltica. (PE:460) Quando cria o SNI, em 1964, Golbery tem uma opinio bem clara: Um servio como esse, escreveu, /.../ nunca deve assumir responsabilidades operacionais, sob pena de tornarse um observador diretamente engajado no xito da operao em si (Apud Gaspari, Veja, 23-9-87). To diferente ficou o rgo que o general desabafou, em 1981: criei um monstro. Por essa poca, alis, Golbery passou a ser vigiado pelo SNI, que por sua vez era tambm vigiado por ele. Assim, a cria passou a vigiar seu criador, que, por sua vez vigiava o SNI e capturava os papis com o resultado da espionagem (Gaspari, Veja, 23-9-87), abastecendo-se de informaes sobre desafetos e afetos, inclusive sobre ele prprio. (Foi, assim, dos primeiros a saber da doena grave de Tancredo.)

Aspectos da Conjuntura Nacional segundo Golbery

Em julho de 1987, depois da conveno fracassada do PMDB, Golbery disse: Ns tambm somos culpados por isso. /.../ Vinte e um anos de ditadura exacerbaram os piores hbitos e tolheram o surgimento de lideranas novas. o que provaria, segundo Golbery, a Conveno peemedebista (Carta, Senhor, 28-7-87). Nas anotaes em que respondia a questes postas pelos estagirios da ESG a respeito de sua Conferncia de 1980, Golbery se posicionava a respeito de outras questes polticas. Uma delas era o parlamentarismo, cuja implantao no considerava benfica para o pas: Parece-me que estamos numa fase muito inicial ainda do processo de abertura poltica para determinarmos, com maior objetividade, nesse dilema entre parlamentarismo e presidencialismo. No tenho predileo pelo parlamentarismo. Acho que, de qualquer forma, preciso haver um Executivo forte, sobretudo num pas como o Brasil, um pas em desenvolvimento, um pas de territrio imenso e de problemas mil. Num ponto de vista timo, a

228 Frana tem mostrado que possvel a convivncia entre o regime parlamentarista e um executivo forte. Mas, francamente, no podemos comparar o Brasil com a Frana. (PE:527) Ainda nas mesmas notas, Golbery esclarece porque o voto distrital, a que era favorvel e que foi um dos assuntos discutidos pela Constituinte do Riacho Fundo, acabou sendo deixado de lado: o sistema alemo do voto distrital misto /.../ seria, a meu ver, uma experincia interessante a fazer-se no pas /.../; mas ns temos que pensar um pouco na adoo dessa medida, porque toda a atuao do Governo deve ser muito cuidadosa, para no dar motivos a uma reaglutinao das foras que hoje constituem a oposio. Tudo precisa ser muito bem medido porque, se adotarmos o voto distrital, se adotarmos uma srie muito grande de outras medidas, talvez com isso levemos aglutinao desses partidos da minoria. No momento, acho que a existncia dos vrios partidos mais importante do que o processo eleitoral (PE:519). Golbery tambm deixa claro, em 1980, o que pensa da poltica: A prtica poltica exatamente buscar o acordo. Ns estamos muito falhos de prtica nesse setor, devido a um longo perodo em que isso no era necessrio, mas, agora, devemos aproveitar todas as oportunidades para faz-lo (PE:511-512). Por isso, afirmou aos estagirios da ESG que a inteno do Legislativo de recuperar poderes levar a uma afirmao do Poder Legislativo nas suas prerrogativas prprias e nas suas atividades e, sobretudo, ir propiciar aquilo de que no momento estamos mais necessitados, uma vez que o regime bipolar no oferecia condies para tal: negociaes polticas. Mas, adverte, se a soluo deve atender a parte substancial dos desejos do Legislativo, deve satisfazer tambm ao que o Executivo considera tambm prerrogativas para uma ao eficaz do governo (PE:511-512). De qualquer forma, sublinhava, As negociaes so inerentes vida democrtica e a conciliao um objetivo que sempre se deve buscar. Entretanto, pode camuflar artimanhas mais sutis, mesmo que tudo se centre nos partidos e no Congresso, os foros mais adequados ao entendimento. O essencial separarmos aquilo que visa ao entendimento daquilo que apenas esperteza (Veja, 16-584). Embora destacasse que as prerrogativas do Poder Legislativo, de incio, no devero ser to amplas quanto podero ser daqui a algum tempo, medida que o progresso democrtico for efetivando maiores resultados (PE:511-512), Golbery tambm ressaltava outros aspectos: primeiro, um Estado de governo centralizado se acha, de fato, melhor aparelhado para conduzir aes decisivas, bem coordenadas, no exterior (CN:21). Ou, em outros termos, a predominncia do Poder Executivo sobre os outros realmente um fenmeno universal na quadra de hoje. /.../ Quer dizer, a maior liberdade, a maior independncia entre os trs poderes /.../ evidentemente, obedece a limites muito mais estreitos que em pocas anteriores. /.../ Desejo demonstrar a a existncia de um fator, por assim dizer, universal, limitando a descentralizao entre os trs poderes, antigamente supostos iguais e equivalentes (PE:511-512).

229 E, por ltimo, ainda uma frase sobre a poltica: na prtica, e a no ser quanto aos objetivos ltimos, sempre se confundem e transformam alternativamente os meios em fins e os fins em meios. E no ser acaso um problema fundamental e eterno da tica, o da o da justificao dos meios pelos fins? (PE:176-177)

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CONSIDERAES FINAIS
Ficam patentes, a quem se proponha, como ns, joeirar o iderio golberyano, algumas caractersticas bsicas. Lembremos, primeiramente, como o general esteve na vanguarda de sua gerao, dando trato a questes que apenas nas dcadas seguintes estariam na ordem do dia: a especificidade e subordinao da estratgia poltica, a tenso norte-sul ofuscada pela guerra fria, os conflitos internos e a guerra revolucionria, a relao entre segurana e desenvolvimento. At mesmo na ESG, como vimos, essas questes s foram aparecendo e ganhando solues tericas pretensamente mais acertadas (e mais prximas do iderio golberyano) tempos depois de difundidas pelo general gacho. Fica claro tambm que Golbery efetivamente conseguiu captar algumas determinadas peculiaridades do mundo contemporneo. Quando ele fala da rede mundial de comunicaes, do progresso da tcnica, das relaes internacionais como entrechoques de unidades de poder - quase como se estivesse falando dos dias atuais. Mas tudo isso no o mais relevante no pensamento do general. Uma caracterstica basilar do pensamento golberyano o absoluto e inquestionado comprometimento com o statu quo. Golbery parte da realidade tal qual ela existe, e se prope a modificar-lhe apenas, e no mximo, caracteres tcnicos, sem nunca se pr o revolucionamento ou mesmo o questionamento do mundo tal como . Se apreende muitas das peculiaridades do mundo contemporneo, se pensa a realidade atual, seu objetivo no nunca modific-la - justific-la ou, mais precisamente, alter-la no mesmo sentido, para que funcione mais adequadamente aprimor-la. Essa tarefa buscada com o auxlio de alguns recursos que se tornam outras caractersticas do iderio golberyano. Uma delas o ecletismo. As teorias mais dspares e mesmo contraditrias so aqui mescladas, reelaboradas e externadas como explicao racional e isenta de contradies. Alis, poucos dos assuntos tratados por Golbery constituem novidade. Assim, as previses de Ratzel acerca do despertar da idade imperial ou do superleviat so aditadas s advertncias spenglerianas sobre o cesarismo e s idias de Estado universal e paz ecumnica de Toynbee. Seus escritos sobre geopoltica, completamente embrechados na realidade da guerra fria, pretendem unir as noes ratzelianas de espao e posio com as teorias do corao do mundo ou heartland de Mackinder e Haushofer e com as idias de Mahan e Spykman sobre o controle do espao interno americano. O conceito de cordo sanitrio envolvendo e contendo o chamado mundo comunista de Spykman. Na geopoltica do Brasil, so retomadas as teorizaes de Mrio Travassos e, no campo das relaes internacionais, Golbery se declara discpulo de Delgado de Carvalho. Oliveira Vianna era chamado mestre, como vimos, e assim muitos outros exemplos poderiam ser dados. Ressalte-se, no se trata simplesmente de erudio, que tambm inegvel. So teorias que guardam, entre si, amplas diferenas, contradies, vises de mundo divorciadas. Ademais, Golbery transfere teorizaes de um campo para outro sem maiores cuidados: o caso da lei econmica dos rendimentos decrescentes, cujo corolrio, lembre-se, vem da teoria do retardo cultural de Ogburn. Uma miscelnea to grande de teorias, nem mesmo a virtuosidade e a verve escrevinhadora do general poderia impunemente fazer. Notamos - outro aspecto desse ecletismo - surpreendentes nuanas irracionalistas, de par com um racionalismo tecnicista e a-dialtico. Consideremos, ainda, que todas essas teorias se juntam na ingente tarefa de convencernos de uma simplista e radicalmente maniquesta reduo do mundo a entidades antagnicas e da resoluo dos problemas pela adeso a uma delas. Esta, porm, est tambm ela prenhe de

231 contradies que nem mesmo o fervoroso fanatismo ocidental de Golbery pode enevoar. No que se refere a esse ponto, o general refere-se a questes primaciais (como deturpao dos ON pela elite), mas no as destrina, como se somente a franqueza de cit-las o livrassem da obrigao de buscar solues ou apresentar crticas mais detalhadas. um limite, porm, que no se refere simplesmente a uma deficincia terico-metodolgica do general ou a um diversionismo cnico. A questo est posta no no campo da teoria, mas no campo da prpria realidade - e aqui ela continua irresolvida pelas categorias sociais dominantes deste pas. O solucionamento das contradies apresentadas passa necessariamente pela superao das estruturais deficincias do capital atrfico. O general Golbery qualifica-se o tempo inteiro como dialtico, mas escapa-lhe a percepo adequada da realidade por um motivo bsico, alm dos j citados: a necessidade que traz no imo de eliminar toda contradio e seu desenlace, a transformao radical. As contradies no so admitidas, toda a argumentao de Golbery, em quaisquer assuntos, vai sempre no sentido de realizar uma atuao anterior sua ecloso, de modo a impedi-las de vir tona. Caso se manifestem, as contradies devem ser eliminadas pelo entendimento mtuo no resolvidas propriamente, o que poderia implicar um conflito. Esse um dos pontos repisados pelo general gacho: as rupturas so potencialmente destruidoras. Toda mudana deve-se dar pelo acordo, pela conciliao. Essa , como vimos, uma caracterstica da miservel classe dominante brasileira, que segue risca o velho adgio francs: preciso que tudo mudo para que tudo continue como est. O custo da mudana sem transformao que Golbery prega a contradio imanente e incontornvel entre bem-estar, condio necessria segurana, e sua incoerncia com a lgica da formao social brasileira, excludente e tirnica. Sua pregao por um regime que realize uma acumulao de capital, distribua a renda criada e ainda preserve as liberdades pblicas invivel para o capital atrfico. Ento, seu incontornvel sacrifcio do bem-estar segurana equivale nada menos que superexplorao da fora de trabalho perpetrada pela burguesia brasileira. Contudo, a maior contradio do pensamento do general Golbery era muito mais ampla que sua prpria pessoa: dizia respeito prpria ideologia 64 e sua iluso socialmente necessria de chegar ao desenvolvimento econmico e autonomia pela cooperao estrangeira e pela interveno estatal. Lembre-se que esta questo pesou demasiadamente no momento do golpe militar. Pois, se estava definido este como o caminho a seguir, processos reformistas de carter nacionalista e/ou popular tornavam-se muito logicamente obstculos para a realizao do projeto consubstanciado na ideologia 64. a busca por realizar as tarefas econmicas abandonadas pela burguesia nacional, histrica e estruturalmente dbil para impor sua autonomia e cumprir suas tarefas histricas, mas que acaba encobrindo e justificando a subsuno ao capital internacional monopolista. E assim que as teorias do general s a muito custo se aproximam da realidade concreta e da histria. A pauta da generalidade sua essncia, o preo a pagar pela opo prvia pela conservao e o preo a pagar pelo ecletismo. Assim mesmo, genrico, circular e autojustificatrio, ecltico e a-dialtico, o discurso golberyano logrou grande influncia na realidade nacional. De forma que fica explicitado que o iderio golberyano e a DSN so ideologias - e no porque seus conceitos no tm cientificidade - certo que no a tm -, mas porque tm uma funo social inegvel: mantenedora de uma formao social de molde colonial, embora tecnicamente avanada. A ideologia golberyana, consoante com a essencialidade da formao nacional - excludncia das massas e a dominao autocrtica, para relembrar apenas duas est toda ela voltada interferncia prtica na realidade, na tentativa de solucionar em determinado sentido os conflitos que ali se do.

232 A influncia desse iderio na histria brasileira claramente perceptvel. Em favor da SN, suprimiu-se a institucionalizao da autocracia burguesa e, com o recurso da fora, pelejou-se por reorientar e acelerar os rumos do crescimento industrial capitalista brasileiro. Uma modernizao conservadora pleiteada em clara associao com os interesses multinacionais, mas alardeada e pretendida como importante fator para a soberania nacional e, portanto, afianadora, em conjunto com outros elementos, da to sagrada SN do general Golbery e do grande projeto da ideologia 64: a construo do Brasil-potncia. Esse projeto, ficou patente o seu fracasso. No apagar das luzes do bonapartismo, a subordinao nacional em relao aos pases do centro do capitalismo estava ainda mais acentuado, o que se evidenciou na crise persistiu nas dcadas seguintes. Rotundo fracasso do regime para o qual o general Golbery buscou uma sada minimamente honrosa e, acima de tudo, segura: a auto-reforma.

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BIBLIOGRAFIA
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APNDICE
Cronologia

1911 - Golbery do Couto e Silva nasce, em 21 de agosto, na cidade de Rio Grande, Rio Grande do Sul. 1927 - Ingressa na Escola Militar do Realengo, no ento Distrito Federal do Rio de Janeiro. 1930 - Declarado aspirante a Oficial da arma de infantaria, conquistando o primeiro lugar em toda a sua turma de cadetes de todas as armas. 1932 - Servindo no 9 Regimento de Infantaria, participa das operaes na Revoluo de 32. 1941 - Presta concurso de provas livres para admisso na Escola de Estado-Maior, em que foi o nico oficial aprovado. Ao pular turmas, por merecimento, travar contato com os cadetes mais velhos, entre os quais Ernesto Geisel. 1944 - Segue para estgio no Exrcito norte-americano, no Fort Leavenworth, sendo transferido depois para a Fora Expedicionria Brasileira na Itlia, como oficial de informaes. 1946 - Promovido a major (junho) e transferido para o Estado-Maior Geral (hoje EMFA). 1947 - Nomeado membro da Misso Militar Brasileira de Instruo no Exrcito do Paraguai, onde permanece por trs anos. 1950 - classificado no Estado-Maior do Exrcito, designado adjunto da Seo de Informaes. 1951 - Promovido a tenente-coronel. 1952 - Nomeado adjunto do Departamento de Estudos da Escola Superior de Guerra, na diviso de Assuntos Internacionais, depois na Diviso Executiva. A, reencontrar Geisel. No perodo em que ficar na ESG, proferir as conferncias que deram origem ao livro Planejamento Estratgico, publicado em 1955. 1954 - Divulgado o Manifesto dos Coronis, de que foi o redator (segundo Heitor Herrera). 1955 - Tendo articulado, com a Unio Democrtica Nacional, um movimento para impedir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek e seu vice, Joo Goulart, punido pelo ministro da Guerra, marechal Henrique Teixeira Lott, com oito dias de priso. exonerado de suas funes na ESG e transferido para Belo Horizonte, numa jogada do ministro da Guerra que espalhou pelo pas os oficiais envolvidos na conspirao (novembrada). 1956 - Promovido a coronel e transferido para o Estado-Maior do Exrcito, Seo de Operaes, Subseo de Doutrina. 1960 - Nomeado para o EMFA, como chefe da Seo de Operaes. 1961 - Nomeado chefe de gabinete da Secretaria-Geral do Conselho de Segurana Nacional do governo Jnio Quadros (fevereiro). Com a renncia de Quadros (agosto), passa a articular, com outros militares e civis, o impedimento da posse do vice Joo Goulart. Tem a idia de dar a Goulart a posse sob regime parlamentarista. Em setembro, com a posse de Goulart, pede transferncia para a reserva, sendo automaticamente promovido a general-dediviso (trs estrelas, abaixo de general-de-exrcito). Passa a liderar o Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais (Ipes). Ali, monta um servio de inteligncia cujas informaes sero

238 posteriormente aproveitadas pelo governo Castelo Branco. Tinha agentes infiltrados nas principais organizaes de trabalhadores, estudantes e intelectuais. Estabelece ligaes com ao Instituto Brasileiro de Ao Democrtica (Ibad) e com o Movimento Anticomunista (MAC), todos envolvidos em conspirao contra o governo. 1964 - Com o golpe e a ascenso de Castelo Branco Presidncia da Repblica, nomeado chefe do Servio Nacional de Informaes (SNI), com status de ministro de Estado (junho). Juntamente com Geisel, tem grande influncia sobre o presidente. 1967 - Com a posse de Costa e Silva, do grupo da linha dura, sucedendo a Castelo Branco, Golbery sai do governo e passa a trabalhar no Tribunal de Contas da Unio. 1969 - Aposenta-se e retira-se do servio pblico. Passa a atuar como diretor e conselheiro da filial brasileira da multinacional Dow Chemical. 1974 - Assume a chefia do Gabinete Civil do presidente Ernesto Geisel, com a funo precpua de realizar a distenso poltica. 1975 - Divulgada nota oficial do II Exrcito informando que o jornalista Wladimir Herzog fora encontrado morto em uma das celas do DOI-Codi em So Paulo. 1976 - Divulgada nota oficial do II Exrcito informando que o operrio Joo Manoel Fiel Filho fora encontrado morto em uma das celas do DOI-Codi em So Paulo (19 de janeiro). No mesmo dia, o presidente Geisel exonera o general Ednardo Dvila Melo do comando do II Exrcito em So Paulo. 1977 - Rejeitado no Congresso o anteprojeto, elaborado pelo governo, para reforma do Poder Judicirio (30 de maro). O governo fecha o Congresso por 14 dias e baixa o Pacote de Abril. Em outubro, o general Sylvio Frota, aspirante a candidato Presidncia da Repblica, demitido por Geisel. 1978 - Greve dos metalrgicos em So Bernardo do Campo projeta nacionalmente a liderana de Lus Incio da Silva, o Lula (maio). Em setembro, o Congresso aprova medidas polticas propostas pelo governo: revogao do AI-5, restabelecimento do habeas-corpus para crimes polticos, anistia aos cassados h mais de 10 anos, entre outras. 1979 - Golbery reconfirmado no cargo de chefe do Gabinete Civil pelo novo presidente Joo Batista de O. Figueiredo. 1981 - Por divergncias com o presidente acerca da atuao em relao ao recrudescimento do terrorismo de direita, sai do governo. Ingressa na diretoria do Banco Cidade. 1987 - Morre, aos 76 anos, de insuficincia respiratria em decorrncia de um cncer no pulmo.