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J.W. Rochester - Os Magos

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"Os Magos"

J. W. Rochester mdium Wera Krijanowskaia Copyright - 1997 - 2S Edio 3.000 Exemplares

Livraria Espirita Boa Nova Ltda. Rua Aurora, 706 So Paulo - SP - 01209-000 - Fone: 223-5788 Lmen Editorial Ltda. Rua Conselheiro Ramalho, 946 So Paulo - SP - 01325-000 - Fone: 283-2418

Editorao Eletrnica - Ricardo Baddouh Traduo - Dimitry Suhogusoff Reviso - Maria Carolina C. Silveira Capa Brasilio, Figueiredo e Pedro Fotolito da Capa - Binhos Fotolito Ltda. Fotolitos - Fototrao Ltda. Impresso - Grfica Palas Athena

Esta obra uma co-edio da Livraria Espirita Boa Nova Ltda e da Lmen Editorial Ltda.

SOBRE O AUTOR
John Wilmot Rochester nasceu em 1o ou 10 de abril de 1647 (no h registro da data precisa). Filho de Henry Wilmot e Anne (viva de Sir Francis Henry Lee), Rochester parecia-se com seu pai, no fsico e no temperamento, dominador e orgulhoso. Henry Wilmot havia recebido o ttulo de Conde devido ao seu empenho em levantar dinheiro na Alemanha para ajudar o rei Carlos I a recuperar o trono, depois de ter sido obrigado a deixar a Inglaterra. Quando seu pai morreu, Rochester tinha 11 anos e herdou o ttulo de Conde, pouca herana e honrarias. O jovem J. W. Rochester cresceu em Ditchley entre a bebida, as intrigas do teatro, as amizades artificiais com os poetas profissionais, a luxria, os bordis de Whetstone Park e a amizade do rei a quem ele desprezava. Sua cultura, para poca, foi ampla: dominava o latim e o grego, conhecia os clssicos, o francs e o italiano. Em 1661, com 14 anos, saiu do Wadham College, em Oxford, com o ttulo de "Master of Arts". Partiu, ento, para o Continente (Frana e Itlia) e tornou-se uma figura interessante: alto, esguio, atraente, inteligente, charmoso, brilhante, sutil, educado e modesto, caractersticos ideais para conquistar a frvola sociedade de seu tempo. Quando ainda no contava com 20 anos, em janeiro de 1667, casa-se com Elizabeth Mallet. Dez meses aps, a bebida comea a afetar seu carter. Teve quatro filhos com Elizabeth e uma filha, em 1677, com a atriz Elizabeth Barry. Vivendo as mais diferentes experincias, desde combates marinha holandesa em alto mar at envolvimento em crime de morte, a vida de Rochester seguiu por caminhos de desatinos, abusos sexuais, alcolicos e charlatanismo, um perodo em que atuou como "mdico". Quando contava com 30 anos, Rochester escreve a um antigo com-panheiro de aventuras relatando estar quase cego, coxo e com poucas chances de rever Londres. Em uma rpida e curta recuperao, Rochester retorna a Londres. Pouco tempo depois, agonizante, realiza sua ltima aventura: chama o sacerdote Gilbert Burnet e dita-lhe suas memrias. Em suas reflexes finais, Rochester reconhecia ter vivido uma existncia inqua, cujo fim lhe chegava lenta e penosamente em razo das doenas venreas que lhe dominavam. Conde de Rochester morreu em 26 de julho de 1680. Depois de 300 anos, atravs da mdium Wera Krijanowskaia, Rochester manifesta-se para ditar sua produo histrico-literria, testemunhando que a vida se desdobra ao infinito nas suas marcas indelveis da memria espiritual, rumo luz e ao caminho de Deus.

Captulo I

Existem lugares que transmitem a impresso de que a natureza os criou num momento de tristeza. Eles emanam algo melanclico e esta sensao vaga, mas indescritivelmente tirnica, transmitese a todos aqueles que esto prximos. Um lugar semelhante encontra-se no norte da Esccia. As margens ali so de altas escarpas, entrecortadas por pro fundos fiordes. Feito um cinturo zangado e ameaador, cercam aquele local hostil para os marinheiros as ondas ruidosas que fervilham entre os recifes e as escarpas pontiagudas. No cume de uma das montanhas mais altas, ergue-se um antigo castelo, cujo aspecto lgubre e austero se harmoniza com a montona e desrtica paisagem em volta. A julgar pela pesada e compacta arquitetura, pela espessura das paredes enegrecidas, pelas estreitas e fundas janelas em forma de seteiras, ele bem que poderia ser atribudo ao sculo XIII; mas, devido a seu aspecto extremamente conservado, comeava-se a duvidar se aquilo no seria um capricho de algum ricao, manaco por obras da Idade Mdia. De fato, nas duas espessas torres redondas, nenhuma ameia faltava. Os muros da fortificao estavam totalmente intactos, enquanto que o largo fosso, do lado do planalto que cercava o antigo castelo, estava cheio de gua, protegido por pequenas torres e uma ponte levadia com grade de proteo. Mas essa sensao de modernidade s se sentia enquanto o castelo era visto de longe; ao se aproximar, o viajante convencia-se de que por debaixo de rochas macias, aqui e ali, irrompiam o lquen e o musgo, e de que somente os muitos sculos poderiam dar uma colorao negro-cinzenta quela antiga fortaleza rude e retirada, que parecia grudar-se montanha como um ninho de guia esculpido.

Do lado do continente, os arredores tambm apresentavam um aspecto tristonho e pouco agradvel. Aos ps do castelo estendia-se um vale, coberto de urze e recortado por profundos barrancos, e, s ao longe, numa elevao, divisavam-se o campanrio pontiagudo de uma igreja e as casinhas de uma aldeia, mergulhadas na vegetao. Do mesmo lado, de dentro das paredes do castelo, podia-se enxergar o verde dos seculares carvalhos e olmos. Mas, se o aspecto externo do castelo parecia transportar o viajante para alguns sculos antes, a ampla e magnfica estrada, que recortava o altiplano, acabava por demolir a iluso e fazia voltar realidade da cultura do sculo XIX. Num dia encoberto de agosto, por essa estrada bem mantida e arborizada vinham duas carruagens. Na primeira, de tamanho menor e aberta, estavam sentados um jovem e uma jovem que trajava um vestido azul-escuro e um chapu da mesma cor. Essa tonalidade escura acentuava ainda mais a brancura ofuscante de sua tez e a excepcional cor plida de seus cabelos loiros, que poderiam ser tomados por brancos, no fosse um leve matiz dourado que lhe conferia um toque especial. A segunda carruagem era uma espcie de um grande e amplo furgo, provido na dianteira de um assento baixo, no qual estavam acomodados um homem de meia-idade e uma camareira idosa, de pouca conversa. Os nossos leitores provavelmente reconheceram nos dois primeiros viajantes Ralf Morgan ou, por outra, o prncipe Supramati e a sua esposa Nara, que iam ao seu castelo. Eles levavam consigo uma arrumadeira idosa, cegamente fiel a Nara - Tourtoze, de cuja dedicao, discrio e humildade todos podiam ficar certos. Os jovens estavam calados, contemplando ora aquela paisagem tristonha, que se abria diante de seus olhos, ora a silhueta escura do castelo, que se desenhava em massa negra no fundo cinzento do firmamento. O tempo piorou. Do oceano assobiavam rajadas de vento; o horizonte cobriu-se de nuvens negras e o rugir da tempestade tornava-se cada vez mais audvel. Pelo jeito o velho castelo quer nos recepcionar com um furaco no muito amigvel observou sorrindo Supramati. Oh! J estaremos em casa quando a tempestade desabar. Desta altitude, a viso do mar bravio terrifcante, ainda que um espetculo grandioso - observou Nara. Narayana, pelo visto, apreciava este local. Em sua pasta eu encontrei uma foto do castelo prosseguiu Supramati. - Entretanto, para o incorrigvel pndego, que s se sentia bem em meio da algazarra e agitao da sociedade, este local desrtico e retirado, respirando tristeza, no possui nenhum atrativo. Voc se esquece de que Narayana era um imortal! Era justamente uma vida desregrada que o deixava abatido espiritualmente e, nessas horas, nada se harmonizava melhor com as suas tempestades morais do que o caos dos elementos desenfreados. Ele realmente apreciava este abrigo

em momentos difceis. Os adereos internos do castelo e a sua conservao so uma obra de Narayana. Foi por isso que eu lhe sugeri vir para c e estudar a magia inferior. Nenhum local melhor adaptado do que este, pois ele era um mestre em assuntos de decorao e instalaes, quer se trate de um buqu de flores ou de um laboratrio - concluiu Nara Entrementes, a carruagem, atrelada a cavalos de puro sangue, percorreu rapidamente a distncia que os separava do castelo, atravessou a ponte levadia, passou por baixo dos portes abobadados e parou junto entrada, coberta por lajes de pedra. Na ampla e escura ante-sala, que, pelo visto, outrora servia de sala de armas, eles foram recepcionados por administradores: um velho calvo de barba prateada, uma governanta idosa e alguns criados de rostos enrugados e carrancudos. Somos recebidos por um verdadeiro acervo de antigidades. Estou comeando a achar que Narayana reuniu aqui essas pessoas por coquetice - observou Supramati, subindo a escada e a muito custo contendo a vontade de dar uma gargalhada. Narayana no gostava de pessoas indiscretas. Ao encontrar pessoas leais, que viam e ouviam somente o que podiam ver e ouvir, para esquecer tudo em seguida, ele tentava prolongar ao mximo a vida delas. A maioria dos criados j alcanou uma centena de anos - assegurou Nara com um leve sorriso nos lbios. No obstante a idade avanada, os criados do castelo deixaram tudo maravilhosamente preparado para a recepo do senhorio. Em todas as imensas lareiras, decoradas por braso, ardiam chamas vivas, pois sob as grossas abbadas do castelo o ar era mido e frio. Na sala de jantar, a mesa estava posta com todo o requinte. Quanto ao almoo, este foi um ponto de honra do cozinheiro, sendo magnfico tanto em seu cardpio como na maneira de servir. Supramati expressou o seu contentamento ao administrador e aps o almoo inspecionou os cmodos. Toda a moblia era antiga e destacava-se por seu 1uxo sbrio e simples. As paredes eram revestidas de entalhes talhados que ficavam nos quartos do prncipe eram, provavelmente, do fim do sculo XIV, enquanto os dos aposentos de Nara pareciam contemporneos rainha Elisabeth. A nica coisa que destoava do estilo geral daquela moradia da Idade Mdia eram os tapetes orientais que cobriam o cho. A porta do gabinete de Supramati levava a uma pequena varanda cercada por balaustrada de pedra, que, feito um ninho de andorinha, ficava suspensa sob o abismo. Trmulo de fascinao e medo, ele debruou-se sobre a balaustrada. Abaixo dele e ao redor, desencadeava-se, ao longe, uma tempestade. Raios cintilantes riscavam o cu negro e iluminavam com a luz plida as ondas enfurecidas que, espumando e inflando

feito montanhas, parecia irem em ataque s escarpas, quebrando-se ruidosamente sobre os penhascos da margem. O vento rugia e assobiava, os troves rolavam, enquanto Supramati, em p no balco, parecia pairar sobre todo aquele caos. Estava ele totalmente absorto por aquele grandioso e terrifcante espetculo, quando uma pequena mo se encaixou na sua e a cabecinha loira recostou-se no seu ombro. Supramati abraou, calado, a esposa e eles ficaram contemplando o lgubre abismo que se estendia a seus ps. Subitamente, no se sabe de onde, apareceu um largo feixe luminoso que rasgou a escurido, jogando uma luz suave e brilhante sobre as ondas revoltas, reverberando em prata as cristas que coroavam a espuma branca. Ao notar a surpresa do esposo, Nara explicou: No muito longe daqui h um farol. Nenhum infeliz marinheiro que esteja navegando hoje ficar to reconhecido ao encontrar essa luz benfazeja, que lhe servir de orientao em seu caminho perigoso. Esse farol faz-me lembrar a marca de sua vida, Supramati! A semelhana do marinheiro que enfrenta o mar revolto, voc se lanou ao oceano incgnito de misteriosos e terrveis conhecimentos. Em meio escurido que o cerca e dos elementos da natureza que o aguardam para a luta, seu nico albergue ser a sua fora de vontade e a esperana da iluminao ser o farol em que voc conseguir concentrar todos os seus esforos; assim, a luz ofuscante da magia superior, feito uma estrela brilhante, ser seu guia e iluminar-lhe- o caminho. voc que ser o meu guia, minha estrela brilhante no caminho espinhoso do meu estranho destino murmurou ele, apertando a esposa ao peito. - Voc me dar o seu amor que me apoiar, iluminar as minhas dvidas e me acalmar a angstia da expectativa de difceis provaes vindouras. Sim, Supramati! Eu lhe darei o meu amor, mas no terreno, no carnal, mas um amor puro, inexaurvel e enobrecedor, que une as nossas almas por sculos e que as arrasta pelo infinito caminho de aperfeioamento e conhecimentos. Sem dizer uma palavra, ele deu um beijo ardente na mo de Nara, mas uma forte emoo selava os lbios de ambos e eles admiravam em silncio o grandioso espetculo. Quando uma chuva torrencial teve incio, Supramati sugeriu esposa voltar aos quartos. O gabinete estava iluminado com um abajur azul. Na lareira crepitava alegremente o fogo, difundindo o calor. O conforto luxuoso do recinto era um contraste agradvel com a tempestade que esbravejava l fora. O elevado estado de nimo de Nara, que ria e brincava ao servir o ch, aumentava ainda mais essa sensao deleitvel. O restante da noite passou muito alegre. No entanto, como os

cnjuges se sentiam um pouco cansados devido viagem ou talvez quisessem ficar sozinhos para se entregarem aos seus pensamentos, eles se retiraram cedo para os seus aposentos. Supramati deitou-se na cama, mas o sono fugia-lhe. As incertezas da iniciao para a qual ele estava se preparando oprimiam-no; e aquilo que ele havia visto at ento do mundo do alm, mais o repelia do que atraa. Alm do mais, o temporal que continuava desenfreado dava nos nervos. Na profunda paz da noite, ouvia-se, com nitidez mrbida, o assobiar e o gemer do vento na lareira, o rugir do oceano; as ondas furiosas que batiam na margem parecia sacudirem o penhasco e faziam tremer o velho castelo nele localizado. Para mudar o rumo dos pensamentos, Supramati comeou a examinar os objetos em volta. Nos tapetes que cobriam as paredes estava representado um combate: o vencedor, de joelhos aos ps de uma dama, era agraciado por ela com uma corrente de ouro. O desenho deixava muito a desejar: o rosto plido da senhora do castelo e do cavaleiro eram terrivelmente feios. Supramati desviou o olhar para um retrato pendurado bem em frente dele, iluminado por uma lmpada que pendia do teto. O retrato foi pintado sobre madeira e representava uma mulher vestida de preto, com vu na cabea. O trabalho do retrato era imperfeito, no entanto percebia-se que era obra de um verdadeiro artista, pois, no rosto achatado e branco, saltavam dois olhos azuis, aos quais o pintor conseguiu imprimir uma expresso desesperadora de amargura, que despertava piedade por aquela mulher, agora cinzas de muitos sculos atrs. Sim, tudo aqui falava do passado fenecido e da fragilidade da vida humana. As alegrias e as tristezas de tantas geraes extintas foram tragadas pelo misterioso mundo invisvel. Subitamente, uma angstia e medo diante da vida infinita, que se estendia sua frente, apertaram dolorosamente o corao de Supramati. Esquecido de tudo, ele comeou a pensar sobre os acontecimentos inusitados que deram um rumo to estranho sua vida. Feito um caleidoscpio, projetavam-se diante dele os anos de sua vida pobre e laboriosa na qualidade de mdico, suas pesquisas cientficas e o medo involuntrio da morte, que ele sentia devido tuberculose a minar-lhe a sade. Logo depois, feito um verdadeiro gnio das "Mil e uma noites", surgiu Narayana e transformou o pobre e moribundo Ralf Morgan no prncipe Supramati - um milionrio imortal. Ele refez mentalmente uma nova viagem s geleiras junto com o seu misterioso acompanhante, ouvindo a sua narrativa sobre as maravilhosas propriedades do elixir da longa vida. Relembrou o seu primeiro encontro com Nara, seus encontros com os outros imortais e o ingresso na irmandade dos cavaleiros da "Tvola Redonda da Eternidade", no ferico palcio de Graal. Por fim, ele se recordou de sua viagem ndia e de quando conheceu o mago Ebramar, que se tornou o seu protetor por muitos sculos. Ao se recordar do ltimo, a inquietante angstia que lhe oprimia a alma

dissipou-se imediatamente. Poderia ele desanimar quando tinha um protetor to poderoso, uma esposa fiel que o amava e um amigo como Dakhir - seu irmo pela imortalidade? Por que no passar por aquilo que os outros passaram? Sem dvida, a carne impotente e treme s de tocar em foras ocultistas. Mas no estava ele dotado de vontade para derrotar aquela fraqueza? No mesmo instante, ele foi dominado por um forte desejo de aconselhar-se com Ebramar, confessar-lhe os seus receios e pedir-lhe apoio e conselho. Supramati levantou-se rapidamente e decidiu experimentar o presente que lhe dera o mago no dia em que ele deixava o castelo no Himalaia. Ebramar havia-lhe dito que com o auxlio daquele objeto ele poderia cham-lo, se sentisse uma necessidade imperiosa. No sof, encontrava-se uma pequena mala com diversos objetos ocultistas que sempre gostava de ter mo e que ele prprio arrumava e no deixava que outros tocassem. Ao abrir a mala, retirou uma caixa redonda, de tamanho de um prato e com cerca de dez centmetros de altura. A caixa era executada em uma espcie de metal branco, parecido com prata, mas com matizes multicolores que lembravam madreprola. Na tampa estavam gravados uns smbolos fosforescentes estranhos. J no era a primeira vez que Supramati examinava curioso aquela caixa. Agora, tambm, revirando-a com as mos, levou-a at o ouvido, pois pareceu-lhe que em seu interior alguma coisa crepitava. E de fato, da caixa vinham sons e barulho de ar comprimido, tal qual pode-se ouvir encostando-se uma concha no ouvido. Balanando a cabea, ele sentou-se, colocou a caixa sobre a mesa e apertou um sinal movedio no centro da tampa, como lhe fora ensinado por Ebramar. Ouviu-se um ranger seco e a tampa se abriu. Do interior da caixa desprendeu-se um aroma sufocante e o bafejar de ar quente, que lembrava a Supramati aquele ar que ele tinha respirado noite durante a sua permanncia no castelo do Himalaia. Inclinando-se curioso para saber o que havia dentro da caixa, ele no viu nada alm de uma nvoa cinzenta que pairava no fundo, sendo que este era to escuro, que parecia no ter fim - o que era totalmente incrvel para um objeto com dez centmetros de profundidade. Sem conseguir entender mais nada, ele se limitou a executar fielmente as instrues de seu mestre e comeou a olhar para dentro da caixa. Poucos instantes depois, no fundo surgiu um ponto vermelho. O ponto rodopiava, aproximava-se e aumentava rapidamente. De chofre, um grito de assombro soltou-se dos lbios de Supramati. Diante dele, em forma de uma nvoa ntida surgiu a formosa cabea de Ebramar, envolta num suave vapor prateado.

Os grandes olhos gneos do mago fitavam-no com um profundo e lmpido olhar; os lbios sorridentes abriram-se em sorriso e a voz bem familiar pronunciou surdamente: Sado-o, meu filho! No se assuste: o que voc v no milagre e tampouco uma bruxaria, mas uma simples adjuno das leis da natureza. Seus pensamentos inquietos e confusos chegaram at mim e eu venho sua presena para dizer-lhe que no desanime antes de iniciar a tarefa, e que no tema foras desconhecidas, pois o estamos protegendo. Sem dvida, o caminho iniciao duro e espinhoso, mas grande tambm a recompensa para aquele que permanecer firme. Voc nem imagina a felicidade que ir sentir ao descobrir a sua fora astral aumentada, submetida sua vontade disciplinada; quando voc entender que j no mais um escravo cego das estranhas e desordenadas foras, mas -cnscio de suas foras - um governante dos elementos da natureza, submissos sua poderosa fora de vontade. Supramati ouvia sem entender de que maneira Ebramar, separado dele por um oceano e milhares de quilmetros, podia falar-lhe e comparecer sua presena em forma tangvel. Um tremor de pavor sobrenatural percorreu seu corpo. No mesmo instante, ouviu-se uma leve risada. O que voc v agora, meu filho, lhe parecer coisa normal, quando voc descobrir o mecanismo que desencadeia este fenmeno. Seja paciente, firme e obstinado! Chegar a hora em que a escurido se dissipar diante de seu olhar deslumbrado e esclarecido e se descobriro os milagres do infinito. Ao fazer um ltimo gesto amigvel, a viso comeou a empalidecer. A cabea perdeu a definio de seus contornos, diluiu-se numa nvoa esbranquiada e transformou-se novamente num ponto vermelho que desapareceu ao longe. Respirando pesadamente, Supramati embrulhou a caixa num pano e guardou-a na mala. Deitado na cama, demorou a pegar no sono. O que vira e ouvira impressionou-o profundamente, mas ao mesmo tempo aumentou-lhe a vontade de descortinar aquele mundo misterioso onde se manifestavam aqueles fenmenos espantosos. Sua inquietao e medo desapareceram. S de pensar que ele, a qualquer momento, poderia se aconselhar com o poderoso protetor que, apesar da distncia que os separava, estava por perto - sentiu um efeito benfico e tranqilizador. Por fim, um sono profundo e restaurador cerrou as suas plpebras. Acordou recuperado e bem disposto, num dos melhores estados de nimo. O tempo tambm havia melhorado e os fulgurantes raios solares inundavam o mar. At o local desrtico, sob a ao dos raios vivificantes, tomou um aspecto alegre. Nara tambm estava contente e animada. Quando, aps o desjejum, Supramati expressou a sua vontade de dar uma volta para conhecer o castelo, a esposa observou sorrindo:

Voc ter tempo suficiente para isso. Aqui no h nada de especial para se ver, e a parte do castelo, destinada s aulas de ocultismo, eu sugiro que voc veja em companhia de Dakhir. Aproveitemos esta maravilhosa manh para dar um passeio e conhecer os arredores. Depois do almoo, eu mesma o levarei sala que batizei de templo da iniciao. Diga-me, meu senhor soberano, voc aprova a idia? Com todo o prazer, minha bela feiticeira! A voc, eu sempre obedeo! Alm do mais, confesso que um passeio ao ar puro bem mais interessante e agradvel do que ficar olhando para essas vetustas abbadas - asseverou jovialmente Supramati. Eles deram um longo passeio a cavalo e depois desceram at o mar por uma tortuosa vereda de pedra que Nara conhecia. Para qualquer um, que no fosse um imortal, o caminho representaria um srio perigo de vida. Aps o almoo, Nara puxou o marido pelo brao. Vamos ao seu futuro purgatrio - acrescentou ela em tom malicioso. Junto a seu quarto havia um gabinete no muito grande, cuja entrada fora artificialmente escondida no revestimento de madeira da parede. De l, por uma escada em caracol, eles subiram para o andar superior e foram dar num gabinete totalmente idntico ao do andar de baixo, escuro e sem janelas como o primeiro. A luz do archote carregado por Nara, Supramati divisou no fundo do recinto uma grande porta de ferro, cheia de sinais cabalsticos em vermelho e preto. No centro de duas almofadas da porta havia um medalho em forma de estrela pentagonal, onde eram representados desenhos simblicos. Num dos medalhes, reproduzia-se uma serpente vermelha na ponta da cauda, carregando um archote; no outro - uma pomba, segurando no bico uma aliana de ouro. Tanto acima daquela porta, como por sobre a entrada do templo egpcio, havia um disco solar alado fundido em molde, e acima deste - os emblemas dos quatro elementos da natureza, entre os quais uma fita negra cingia a seguinte inscrio, feita em letras gneas: "Quem passar por todas as esferas do conhecimento -adquire a coroa de mago; mas para aquele que levantar a cortina dos mistrios -jamais haver um retorno"! Nara deu tempo para que o marido examinasse a porta e explicou: Os smbolos que voc v so chaves para muitos fenmenos curiosos. Mas vamos entrando! Ela apertou uma mola; a porta, imediatamente, abriu-se silenciosa e eles entraram num quarto totalmente redondo e sem janelas. De um globo de vidro, pendente do teto, jorrava uma suave luz azulada, iluminando de leve o recinto; no obstante, Supramati podia enxergar com nitidez qualquer objeto. A sala era um templo e um laboratrio ao mesmo tempo: numa das laterais, sobre uma

elevao de alguns degraus, ficava o ara, rodeado de cortinas em veludo negro; na outra lateral estava instalada uma fornalha, equipada com imensos foles, retortas, vidrarias e demais objetos alqumicos. Nas estantes, viam-se livros com encadernao em couro, rolos de pergaminhos, escrnios; o armrio de vidro estava repleto de frascos, vasos e sacos de diversos tamanhos. Sobre o ara repousava uma espada ao lado de uma cruz em p, feita de um metal desconhecido. Prximo ao ara pendia um sino. Junto parede, em cima de um alto pedestal, havia um espelho de superfcie brilhante e colorida, j visto por Supramati no castelo em Reno. Ali mesmo, no centro da sala, localizava-se um disco de metal polido e um martelo. O disco, porm, no era to pequeno como aquele, com o qual certa vez ele provocou, inadvertidamente, o aparecimento de uma estranha viso do exrcito dos cruzados. Entre todas aquelas coisas, viam-se pequenas mesas com castiais dourados ou prateados com velas de cera -dessas que so usadas em igrejas. Em duas mesas grandes agrupavam-se in-flios fechados. Em cima de cada uma delas havia um vaso de gua, to pura e fresca, que parecia ter sido recm-colhida da nascente. Baixas poltronas estofadas completavam a moblia do quarto. Um aroma estranho, acre e ao mesmo tempo excitante, enchia a sala. Aps ter examinado tudo, Nara disse: Vamos chamar agora por Dakhir! Ela levou o marido at o estranho espelho e acionou uma mola. O espelho comeou a sacudir, desceu do pedestal e parou diante deles. S agora Supramati se deu conta do tamanho do espelho que alcanava a sua altura. Nesse nterim, Nara arrumou um chumao de uma espcie de algodo e comeou a esfregar intensivamente com ele a superfcie polida do espelho; este de imediato escureceu, perdeu o seu aspecto colorido e tornou-se negro feito nanquim, cobrindo-se de gotculas prateadas que parecia infiltrarem-se de dentro para fora. Ao surgir uma nvoa brilhante, Nara entoou um canto numa lngua estranha ao marido. Ao terminar o canto, ela disse: Olhe agora com ateno! Com curiosidade compreensvel, observava Supramati aquele estranho processo a se desenrolar diante de seus olhos. A face do espelho parecia ter adquirido movimento; tremia e crepitava; sacudiu-se num denso vapor e tornou-se violeta, descortinando ao dissipar-se uma vista para o mar. Diante deles agora, perdendo-se ao longe, abria-se uma plancie marinha, agitada por suave brisa; o ar picante do mar bateu-lhe no rosto. De longe, deslizando pelas ondas, vinha se aproximando um navio que Supramati logo reconheceu ser de Dakhir. Minutos depois, o convs se

desenhou nitidamente e logo se emparelhou com o estranho espelho. No convs, recostado no mastro, estava Dakhir e em seu rosto plido brincava um sorriso. Entregando o seu chapu de feltro, ele fez uma mesura. Apresse-se, Dakhir! Estamos esperando por voc. Supramati est impaciente! - gritou Nara, agitando a mo. Amanh noite estarei jantando com vocs soou a voz sonora e bem familiar. Nesse instante, a nvoa violeta encobriu a estranha janela, surgindo o disco metlico a absorver rapidamente os rolos nevoentos que ainda afluam da superfcie. Tudo voltou ao seu estado anterior. Supramati deixou-se cair na poltrona, enxugando o suor que lhe cobriu a testa. D para ficar louco com as incrveis coisas que eu presenciei, que fariam ruir todos os preceitos da natureza - balbuciou ele, jogando a cabea contra o espaldar da poltrona. Nara desatou a rir. Quando voc, Supramati, recai na vaidade empolada de um cientista abalizado, comea a falar coisas engraadas. Ser que possvel fazer ruir as leis da natureza? No seria mais simples e lgico admitir que ainda existem para vocs leis desconhecidas, cuja manipulao por aqueles que conseguem govern-las, realizando fenmenos, parece-lhe surpreendente s porque voc no conhece a sua essncia? Logo esses "mistrios" ficaro claros e voc ser o primeiro a zombar de seu nervosismo de hoje. Supramati aguardava com visvel impacincia a chegada da noite seguinte. Apesar das evidncias, seu ceticismo nato fazia-o duvidar de seus prprios olhos. Parecia-lhe impossvel que Dakhir viesse at eles conforme o prometido. A viso do dia anterior no era nada mais do que uma alucinao, provocada por seus nervos abalados. Por ordem de Nara, o jantar foi posto para trs pessoas e, s dez horas aproximadamente, um dos velhos criados fez entrar a visita aguardada. Desta vez Dakhir vestia um elegante e impecvel traje moderno. Aps cumprimentar os anfitries, todos se sentaram mesa. Terminado o jantar, quando eles ficaram a ss, Dakhir apertou fortemente a mo de Supramati e disse: Agradeo-lhe, amigo, por voc ter-me escolhido como o seu orientador! Estou cansado de vagar pelos mares e ficarei feliz em descansar aqui em companhia de vocs. S o fiz movido por simpatia e voc no me deve nenhum agradecimento - redargiu Supramati jovialmente. - Quando voc acha que ns devemos iniciar os nossos estudos? Amanh noite, se voc no tiver nada contra.

Excelente! No prescrever voc nenhum tipo de preparao para as nossas aulas dos rituais? As preparaes tero incio amanh e at l ns estamos livres! Em seguida a conversa mudou de assunto. O dia seguinte passou muito rpido. Eles conversaram, passearam e almoaram com muito apetite. Sobre a iniciao nada foi dito. Somente quando chegou a noite, Dakhir anunciou: Est na hora de a gente se retirar, Supramati! Despea-se de sua bela esposa por uma semana. o tempo necessrio para a preparao do primeiro ato de sua iniciao. Os jovens se retiraram ao laboratrio j descrito anteriormente. Para surpresa de Supramati, Dakhir abriu uma porta de cuja existncia ele nem suspeitava e que dava para um quarto contguo. L havia duas camas e uma espcie de grande banheira de vidro, cheia de lquido azulado transparente. Aqui - disse Dakhir -, ns devemos passar uma semana em jejum, oraes e purificao. Comearemos j! Ele acendeu doze castiais com velas da espessura de um punho e o carvo das trempes, jogando nelas um punhado de p, que se inflamou em chamas multicolores e encheu o quarto de aroma asfixiante. Agora se dispa e entre naquela banheira! - ordenou Dakhir. Supramati obedeceu. Mas para sua grande surpresa, aquilo que ele julgava ser gua se verificou uma substncia estranha, praticamente intangvel. Ainda que ele sentisse o contato de coisa mida, a umidade parecia vir do bafejar do ar e no do lquido. Pelo seu corpo percorreram pontadas clidas e Supramati convenceu-se admirado que a banheira, cheia at as bordas, esvaziara-se de uma forma incompreensvel. Ele no poderia dizer se aquela substncia estranha teria escoado por algum tubo invisvel ou se fora absorvida pelo organismo. Ele somente se sentia mais calmo e mais forte, tanto que saiu da banheira bem mais aliviado e comeou a se vestir. Depois disso, o tempo passava rapidamente. Todos os dias, Supramati tomava um banho dentro da substncia misteriosa e se submetia defumao. Duas ve zes por dia, Dakhir dava-lhe um alimento que consistia de po branco e uma taa de vinho tinto que ele ia buscar no ara do laboratrio. O tempo restante, Supramati dedicava leitura de oraes, marcadas num caderno fornecido por seu mestre, decorao de diversas frmulas mgicas e aos exerccios que se destinavam a disciplinar a fora de vontade e adquirir o hbito de se concentrar num objeto.

Absorto em seus exerccios, Supramati no percebia o correr do tempo. Ele se sentia vigoroso, sua mente estava clara como nunca. No tinha sensao de fome nem de cansao e ficou extremamente surpreso, quando Dakhir lhe disse certo dia: Sete dias j se passaram. Tome o ltimo banho e vista a roupa que est naquela gaveta. Supramati apressou-se em cumprir a ordem. Saindo da banheira, tirou da gaveta uma larga e longa tnica de cor leitosa que o cobriu em pregas macias at os calcanhares. Curioso, ele apalpou o tecido: no era seda, nem l ou linho. Era muito fino e ao mesmo tempo denso e fofo feito penugem; cintilava como se salpicado por gotculas de orvalho e emitia um leve crepitar ao ser amassado. Que tecido este? Eu nunca vi um igual - indagou Supramati. feito a partir de fibras de uma planta mgica - respondeu Dakhir, vestindo uma tnica idntica. Em seguida, ele tirou de uma outra gaveta dois cintos metlicos com sinais cabalsticos em relevo e uma corrente com estrela violeta. Aps colocar ambos os objetos, Dakhir acrescentou: Coma esse pedao de po e tome uma taa de vinho! Depois, pegue a vela de cera e... ao caminho! Supramati obedeceu em silncio. Seu corao palpitava fortemente, pois, pelo visto, chegava a hora de entrar pela primeira vez em contato com o terrvel mundo invisvel. Armando-se da espada que estava sobre o ara, e segurando na outra mo uma vela, Dakhir prosseguiu: Agora v at a cortina no fundo do quarto! Eu o seguirei. Dominando valorosamente a inquietao que tomou conta dele, Supramati dirigiu-se para a cortina indicada, que antes passara despercebida. Assim que ele se aproximou, a pesada cortina abriu-se como se levantada por mos invisveis, deixando antever uma passagem estreita em forma de ponte, atravs de um abismo negro que se estendia pelos lados. Sem olhar ao redor, Supramati atravessou o abismo. Ergueu-se uma segunda cortina e ele entrou numa ampla sala, redonda como o laboratrio, mas praticamente vazia. No centro, sobre o piso de pedra estava desenhado um crculo vermelho, em volta do qual havia quatro trempes com carves que queimavam em chamas multicolores: brancas, azuis, verdes e vermelhas. Por causa do cheiro asfixiante que envolvia o recinto, a cabea de Supramati ficou tonta. Mas ele esqueceu de tudo ao ver Nara, que lhe sorria jovialmente. Descala como eles, vestida na mesma espcie de tnica, a jovem estava parada no fundo da sala junto a uma corda do sino que pendia do teto. Seus cabelos soltos, que caam at os calcanhares, envolviam-na feito uma capa brilhante. Ela estava bela como nunca, suas feies encantadoras respiravam importncia solene e vontade inabalvel. Venha e fique no centro do crculo - ordenou ela.

Supramati obedeceu, utilizando todos os esforos para dominar o tremor que o sacudia. Ento Dakhir, erguendo a espada e acenando com ela para o norte, sul, leste e oeste, entoou um estranho canto, enquanto Nara comeou a bater pausadamente no sino. Os longos e plangentes sons encheram a atmosfera, acompanhando a voz de Dakhir. A sensao era que se batia num instrumento de vidro. Subitamente o canto e o som do sino interromperam-se. Aps um minuto de tumular silncio, Dakhir trovejou: Espritos da natureza! Venham das profundezas da terra, da gua, das alturas do ter e do fogo que a tudo atravessa! Servos do espao, que movem as foras dos elementos, apaream a ns! Com o chamado, a sala encheu-se de barulho. O vento assobiava, a terra tremia e no ar ouviam-se estalidos. Parecia que uma multido invisvel se movia empurrando uns aos outros ao redor dos presentes. A seguir, as densas nuvens encheram a sala numa nvoa que, ao se dissipar, logo tornou visvel o estranho exrcito que se apinhava junto ao crculo, fitando em Supramati os olhares flamejantes. Eram seres cinzentos de contornos indefinidos, envoltos em vus esvoaantes. Aparentemente, eles tentavam traspassar a linha do crculo, mas o ar, de imediato, era recortado por raios e sobre Supramati surgia uma alva cruz cintilante. As massas areas recuaram e se dividiram em quatro grupos em volta de cada trempe. Agora os seus contornos j eram mais ntidos e podiam ser distinguidas as estranhas e horripilantes formas daqueles seres espectrais. Eles eram vermelhos feito fogo e parecia serem fundidos de ferro em brasa; outros eram esverdeados como se feitos de espuma palustre estagnada. A nica coisa que tinham de humanos eram os olhos fosforescentes. O terceiro grupo se destacava por suas formas estranhas e estava equipado de asas azuladas. Eles voejavam sem parar em torno da trempe de chama azul. Por fim, entre os rolos de fumaa negra, moviam-se os asquerosos e minsculos seres com rostos sinistros cinza-terrosos. Tremendo e suando em bicas, olhava Supramati para aquela horripilante turba, quase deixando que a vela lhe escapasse da mo. Como num sonho, ouvia ele o canto que se entoou no espao, ora harmnico ora surdo, ora rspido ora desafinado. Era uma mistura de queixumes, choros, gritos de alegria e mpetos luz. Ento, pela segunda vez, soou a voz estentrea de Dakhir. Espritos da natureza! Vocs procuram por um senhor, por um campo de trabalho! Ali est o seu novo senhor! Eu os uno a ele e vocs juram obedecer-lhe e ajud-lo.

Um trovejar ensurdecedor do trovo sacudiu o castelo at as suas fundaes. Raios brilhantes cintilaram por todos os lados, envolvendo por uns instantes Supramati, como se por uma retcula gnea. A terra parecia ter se desfeito, formando a seus ps um negro abismo insondvel. No mesmo instante, do outro lado do abismo, desenhou-se um arco de pedra - uma monumental passagem para o ignoto mundo de alm-tmulo, envolto em trevas. Nara e Dakhir agilmente se postaram junto do nefito, agarraram-no pelos braos e o empurraram para frente. Atravesse sem recuar os quatro portes do invisvel ou ser o seu fim! - gritaram eles energicamente. Aflito, cerrando valorosamente os dentes, Supramati lanou-se para frente e atravessou o abismo, apertando febrilmente a vela na mo. Ao passar a soleira do arco, ele se viu na mais completa escurido. A terra estava escorregadia e parecia que a qualquer minuto poderia ruir sob os ps. No obstante, ele avanava olhando para a vela que segurava nas mos, empurrado por um forte vento que lhe soprava nas costas. Aps um minuto, que pareceu uma eternidade, no lusco-fusco desenhou-se um segundo arco, de forma diferente, que servia de entrada para um corredor estreito, praticamente escuro. Corajoso e resoluto, Supramati ps os ps naquele passadouro e, imediatamente, de todos os lados, viu-se cercado por animais medonhos. Eram bichos rastejantes, morcegos e insetos venenosos que surgiam das trevas, mordendo-o e se agarrando a ele. Renhido, quase fora de si, prosseguia Supramati o seu caminho pela terra deslizante, sem se dar conta do que estava pisando. Uma luz ofuscante que lhe bateu no rosto fez com que ele estacasse. O corredor dilatou-se subitamente e revelou uma nova porta, arremessando chamas como do interior de uma fornalha. Junto a ela estava sentado um animal fantstico com rosto humano, de tamanho gigantesco. Atrs das costas do monstro erigiam-se imensas asas, o seu olhar ameaava de morte a qualquer um que se aproximasse. Um suor glido cobriu o rosto do jovem mdico, mas em seus ouvidos soavam ainda as palavras de seus orientadores. V em frente sem recuar, seno ser o seu fim! E com coragem desesperadora ele lanou-se adiante. Pareceu a Supramati haver mergulhado numa corrente de fogo. Os olhos do terrificante ser, como ferro em brasa, penetravam-no, e ele, instintivamente, ergueu a mo com a vela. Para sua surpresa, notou que o monstro abaixou a cabea e comeou a andar sua frente como se quisesse indicar o caminho. A medida que eles avanavam, o monstro perdia seu aspecto nojento.

A asquerosa cara animalesca transformou-se em cabea de anjo, de rara beleza. Seus cabelos encaracolados eram adornados por uma grinalda de flores brancas. O corpo do monstro foi se modificando e, aos poucos, adquiriu a forma de uma tnica gnea. Subitamente as chamas se extinguiram. Ante o olhar assustado de Supramati, estendia-se uma superfcie de gua. O vento uivava levantando gigantescas ondas revoltas, lanando no rosto do nefito e do anjo gneo tufos espumosos das cristas de ondas. Supramati pensou em parar, mas o anjo olhou-o altivo e o jovem, como se golpeado por esporas, jogou-se nas ondas. Por uns instantes, pensou estar se afogando num precipcio sem fundo. A gua glacial cobriu-o impedindo-lhe a respirao; os ouvidos zumbiam, a cabea girava, sua viso escureceu. Mas, subitamente, veio uma onda, levantou-o e trouxe-o para a superfcie. Supramati olhou surpreso em volta. A gua havia desaparecido; o uivo e o assobio do vento cessaram: em torno reinava um majestoso silncio. Agora ele se encontrava na superfcie lisa como espelho polido de um lago e, em volta, abriase uma alegre paisagem. Viam-se rvores verdejantes e prados salpicados de flores, e sobre sua cabea abria-se o firmamento azul-claro. Diante dele, banhado por feixes de luzes ofuscantes, estava o anjo gneo. Na mo, erguida para o alto, ele segurava um crucifixo branco, coberto de sangue. O semblante daquele guia misterioso respirava grandiosidade inumana; seu olhar flamejante, lmpido e impenetrvel, fitava os olhos ofuscados de Supramati. Ento retumbou a sua voz sonora: Veja! - disse ele, apontando para o crucifixo. -Este o caminho da eternidade inundado com sangue daqueles que triunfaram sobre a carne! Este um caminho de sofrimento de todos; aqui devem ser vencidas todas as paixes humanas, todas as luxrias, todas as fraquezas espirituais. O homem material aqui crucificado para ressurgir como um homem no-material e entrar no grandioso porto de conhecimento absoluto. Assim, transpasse este limiar, mido com o suor de seu trabalho e coroado com o sacrifcio de sua carne, e, ento, acender-se-lhe- no mundo invisvel a estrela cintilante de mago! A paisagem alegre anuviou-se e mudou de aspecto. A terra verdejante avolumou-se e abriu embaixo de si um tmulo, iluminado por uma vaga meia-luz. No centro do tmulo, havia um sarcfago aberto, acima do qual cintilava uma estrela ofuscante; ao lado do tmulo de pedra estava o gnio que fora o seu guia. S que agora, em vez da cruz, ele segurava nas mos um clice negro. O que significa tudo isso? - perguntou-se mentalmente Supramati. Isto significa o seguinte: eis o enigma que voc dever decifrar - respondeu o gnio erguendo o clice. No mesmo instante tudo escureceu. Supramati teve a sensao de estar voando dentro de um precipcio, e perdeu os sentidos.

Ao abrir os olhos, ele viu Nara e Dakhir inclinados sobre ele. Supramati passou a mo pela testa e tentou juntar as idias. Parecia-lhe ter acordado de um pesadelo, cheio de vises medonhas. De repente, a memria lhe voltou e ele recordou-se nitidamente daquilo que havia acontecido. Quando ele quis abrir a boca para falar, Dakhir levou o dedo aos lbios e disse baixinho: Fique calado! No revele os mistrios vistos por voc! Carregue-os consigo como uma luz orientadora.

Captulo II

Aps alguns dias dedicados ao descanso, passados em animadas e amistosas conversas e leituras interessantes, Dakhir anunciou certa noite que j era hora de iniciar o trabalho e que para tanto, bem cedo no dia seguinte, eles deveriam estar no laboratrio. De novo as invocaes? - indagou, fazendo careta, Supramati. Nara sacudiu em ameaa o dedo para Supramati, mas Dakhir respondeu-lhe sorrindo: No, primeiro a teoria e depois a prtica. No dia seguinte, mal o sol havia apontado no horizonte, Supramati dirigiu-se ao laboratrio. Dakhir j estava l, debruado sobre um volumoso in-flio. Aps saudarem um ao outro, Dakhir disse levantan-do-se da cadeira: Antes de mais nada, meu irmo, vou lhe mostrar como se deve iniciar o dia. Ele levou Supramati a um quarto onde havia duas camas e uma banheira. Atravessando-o, sem se deter, por uma porta secreta e uma escada em caracol, eles desceram ao piso inferior, onde estava instalado um verdadeiro quarto de banhos, com uma enorme piscina de mrmore no centro. O restante da moblia consistia de toalete com todos os seus pertences, uma cama e dois grandes bas. Trs vezes por semana ns vamos nos refrescar nesta piscina. Est vendo esta mola? Se voc acion-la, a piscina se encher, se voc empurr-la para a direita, a gua se esgotar. Dentro da gua voc ir colocar um copo desta essncia aromtica que est nesta nfora azul. Aps o banho, vista os trajes que voc encontrar no ba. Aquelas roupas so bem mais confortveis, alm disso

elas so mais adaptadas, por sua forma e cor, ao nosso tipo de trabalho do que os trajes no grito da moda. Depois de fazer tudo isso v ao laboratrio. O banho refrescou extraordinariamente Supramati. A essncia aromtica conferia gua uma tonalidade levemente rosada e encheu o quarto com aroma de rosas e violetas. No ba Supramati encontrou um longo e largo traje de l preto, um barrete da mesma cor e uma corrente de ouro com uma insgnia pendurada, adornada com sete tipos de diferentes pedras preciosas. Ao chegar ao laboratrio, ele encontrou Dakhir vestido com traje semelhante. Estamos parecendo corri o doutor Fausto! Para completar a iluso s falta Mefistfeles. Absolutamente! Eu justamente represento Mefistfeles, travestido num honesto mdico cientista - brincou Dakhir. - Eu o iniciarei em mistrios diablicos da magia negra, nobre Fausto, dotado de eterna juventude, bem mais longa que a do seu prottipo. Alm disso, a m fama com que a lenda me cercou torna-me bastante adequado para o papel do sedutor. Aps se sentarem Dakhir prosseguiu: Antes de mais nada eu lhe falarei da "substncia primeva", ou seja, daquilo que voc nada sabe. No pense que eu vou esgotar a matria; eu mal conheo o abecedrio do gigantesco conhecimento que contm todo o mecanismo do Universo. No trarei os dados da cincia moderna que voc, como mdico e excelente qumico, j conhece; lembrarei apenas que a cincia "oficial" ignora a natureza da maioria das foras geradoras fsicas que nos cercam, e que, ao se estudarem os princpios ou os componentes dos corpos, so feitas novas descobertas, e qualquer corpo, considerado como simples, na verdade tem-se verificado bem complexo. E assim, por todo o espao infinito, acha-se esparsa uma substncia etrea, mais fina que o mais fino e impondervel gs ou fluido. Essa substncia a matria primeva - como ns a chamamos. Ela - se assim podemos dizer - uma chama no estado de um fluido imperceptvel - a fora geradora da vida, que a tudo impregna. Mas conheceriam os iniciados superiores todas as propriedades dessa extraordinria substncia, que bem que poderia ser chamada de sumo vital do Universo? - eu tenho dificuldade de afirmar. Essa substncia est espalhada por todo o espao do Universo. Quando se inicia a formao de uma nebulosa, ento, graas extraordinria velocidade giratria, a matria primeva densifica-se, e cada um dos planetas que se formam absorve-a no volume de suas necessidades futuras. Esta amade-leite imprescindvel para a vida dos corpos celestes e para tudo que h neles durante a sua existncia de bilhes de anos, pois a matria primeva faz parte de tudo que vive, respira, move-se ou emite a energia luminosa. L, onde essa luz se extingue, comea a decomposio: a morte.

Todos os planetas contm em suas entranhas uma certa reserva desse sumo vital e o mundo existe at se esgotar a sua ltima gota ou se quebrar o equilbrio das foras csmicas, mantido por essa estranha substncia, pois ela no nada mais que aquele sopro divino, do qual fala o livro de Gnese aquele sopro do Criador que paira sobre as trevas do caos e isola os elementos. De fato, a substncia, ao penetrar na matria em formao, ainda que faa a separao, continua a desempenhar sempre um papel primordial, transformando-se pelo trabalho de rotao em diferentes corpos que ela anima, ainda que destinada desta forma a alimentar o mundo durante toda a sua vida planetide. Contudo, para as substncias orgnicas, animadas por ela por fora do fracionamento e infinita transferncia, ela s fornece uma vida orgnica - o que voc v nas plantas, animais e seres humanos. Em estado puro esta substncia nunca faz parte de uma vida normal, pois transmitida para a posteridade atravs da gerao. Para ns, "imortais", tudo isso se apresenta de modo diferente. Ns absorvemos a matria primeva em seu estado primitivo e adquirimos com isso, para o nosso corpo, a longevidade de uma vida planetide. Como voc sabe, nenhum desperdcio ou acidente consegue exaurir a fonte inesgotvel da vitalidade em ns contida, se no recorrermos, claro, ao expediente utilizado por Narayana, e que teve conseqncias deveras considerveis. Ns, para morrermos, devemos esperar pela transferncia a um outro planeta. L, a matria primeva encontra-se em combinaes qumicas diferentes do que em nosso mundo, com as quais a exaurida e enfraquecida substncia, que se encontra em ns, j no consegue se associar. Ter incio, ento, uma decomposio, e ns, aps uma longa vida, festejaremos, finalmente, o ingresso no mundo invisvel. Por isso, recomendvel utilizar-se de todas as foras para progredir e no ficar esttico num mesmo lugar em nossa vida espiritual. Supramati estremeceu e jogou nervosamente para trs os seus cabelos castanhos. Sabe, Dakhir! Tivesse eu uma noo exata daquilo que estava fazendo, por nada neste mundo eu teria toma do aquela taa traioeira. Existem momentos em que a perspectiva de uma vida infinita me deixa de cabea zonza. Acredito! Eu j passei por isso. Mas quanto mais eu estudava, mais diminua essa sensao. De qualquer forma, j que Rubico foi atravessado, devemos seguir adiante! Diga-me, por favor, quem foi o felizardo que recebeu primeiro a matria primeva com todos os seus terrveis poderes e depois a passou para outros? Voc me pergunta o que nem mesmo eu sei. No fcil apontar o inventor da panacia, cujos benefcios ns aproveitamos, devido antigidade do acontecimento. Existe uma tradio popular que lhe pode parecer por demais legendria.

Assim, segundo reza a lenda, Eva, tentada pela serpente (o tempo), tomou daquela substncia, pois a vida parecia-lhe to maravilhosa que ela queria continuasse indefinidamente. Ela deu de beber tambm a Ado, em funo do que ambos foram expulsos do paraso. Mas, ao abandonarem-no, eles pegaram um pouco daquela substncia, com o que se explica a longevidade dos primeiros patriarcas e de Matusalm. Dizem tambm que Melquisedeque tinha aquela substncia e era membro da irmandade. Hiro tambm, ao passo que Prometeu o seqestrou e mais tarde foi aniquilado. Onde estaria a fonte original dessa substncia misteriosa - eu no sei. Uns afirmam que na ilha de Ceilo, onde se localiza o paraso terrestre; outros falam de um local misterioso na Mesopotmia, entre os rios Tigre e Eufrates; alguns me asseveraram que na frica existe uma gruta que desce quase at o centro da terra, no interior da qual jorra a fonte das foras vitais. Quem saber onde est a verdade de todas essas narrativas? Eu s posso afirmar que uma quantidade considervel desta substncia se acha disposio de cada centro de nossa irmandade, sob a guarda de um dos membros. Narayana foi o guardio de um desses depsitos, localizado nas geleiras, e agora o guardio voc. Espere! Eu esqueci de lhe dizer mais uma coisa a esse respeito! Contaram-me que grandes serpentes, de uma determinada espcie, conhecem as propriedades da matria primeva e conseguem achar o caminho at ela. A rainha das serpentes, dizem, absorve obrigatoriamente aquela substncia. Mas, depois, a serpente dilacera a matria, que, devido ao contato com o ar e com as emanaes animalescas de que ela se impregnara, adquire o aspecto de uma pedra cintilante azul-celeste, dotada de fora miraculosa. Isso - por assim dizer - o palladium de todo o reino de serpentes. Mas os iluminados sabem como conseguir a pedra, dotada de propriedades surpreendentes. Ela cura doenas, protege de venenos mortais, regenera feridas, desenvolve foras ocultas, concede clarividncia, entre outras coisas. O detentor dessa pedra consegue submeter a vontade de outras pessoas, ficando invulnervel a qualquer tipo dessas intenes. No raro os profanos tinham nas mos esse tipo de pedra, sem suspeitarem de todas as suas propriedades. Um iluminado imortal poder, se assim o quiser, com uma gota da essncia primeva, decompor essa pedra, a qual se volatiliza em gs. A partir delas so feitas as estrelas mgicas; o mesmo tipo de pedra encontrado na insgnia de peito de Maha-Atma. Do material dessa pedra consistia o p que estava nas mos de Van Helmont e de Helvtius, com auxlio da qual at os metais mais rudes poderiam ser transformados em ouro. Os verdadeiros bastes mgicos - no os bastes comuns dos feiticeiros - so impregnados pela mesma matria primeva. Da a sua fora frente aos elementos da natureza. Com a ajuda desse

basto, o mago faz crescer a vegetao, influi no tempo, fazendo-o melhor ou provocando chuvas, tempestades, troves e relmpagos. Com o auxlio de um basto semelhante, Moiss fez abrir a terra e invocou as chamas que devoraram os rebeldes. A matria primeva, em forma de p, representa a pedra filosofal dos alquimistas; misturandoa com a terra, ela produz plantas mgicas, e o mesmo p, associado a diversas substncias qumicas, forma as gemas preciosas, dotadas de diversas propriedades mgicas. Resumindo, um mago, dependendo de seu grau de conhecimento, poder provocar diversos fenmenos e, se voc visse um deles, teria imaginado estar num mundo mgico; no entanto, tudo que voc teria visto no passaria de uma simples e sbia aplicao de foras desconhecidas aos profanos. Todos os magos e os iniciados possuem a matria primeva. Uns se utilizam dela para garantir a si a vida planetide; outros se contentam em aproveitar suas propriedades e estudam-na como uma cincia especfica. Conseqentemente, nem todos os magos e os iluminados utilizam-se de vida planetide? - indagou Supramati. Todos eles tm uma vida extremamente longa, mesmo os que no querem prolongar a vida atravs do conhecimento. Isso se deve ao fato de que a vida deles, sbria e correta, sem quaisquer excessos, mais espiritual que material e vai esgotando a fora vital lentamente. Alm dos imortais da nossa irmandade, existe ainda um nmero considervel de iniciados que asseguram a si uma vida de muitos sculos com o auxlio de outros recursos, que lhes preservam a juventude ou idade madura, com a opo de se retirarem ao mundo invisvel assim que desejarem. S que esta categoria de sbios obrigada a manter um regime especial e deve evitar zelosamente qualquer tipo de excesso, coisa que um imortal da nossa irmandade no obrigado a fazer. Infelizmente, no so poucos sujeitos tipo Narayana que ingressam nas irmandades. Existem casos de tolos desregrados que brincam com fogo, sem a mnima disposio de estudar e entender as terrveis fora de que dispem. Mas esse tipo de pessoas desaparece da arena depois de um tempo mais ou menos longo, da maneira como desapareceu o seu antecessor. Ento ns iniciaremos com o estudo da matria primeva? - interessou-se Supramati. Sim e no! Sem dvida, a substncia primordial est em todas as coisas e ns a encontramos onde quer que seja nas mais variadas aplicaes; entretanto, o nosso programa de estudos bem mais restrito. Iremos estudar aquilo que chamamos de magia negra, ou seja, dedicaremos o nosso tempo ao estudo das foras da natureza em seu estado desarmnico e destruidor. Cada elemento tem os seus funcionrios. Assim voc ir se familiarizar, antes de tudo, com esses protagonistas inferiores, terrveis em seus poderes. Somente quando voc venc-los, tornar-se o seu senhor e no tremer diante das caticas e terrveis foras que nos rodeiam, ns

passaremos ao nvel bsico da magia branca, onde por ns aguardam as recompensas, ou seja: uma paz relativa, certa harmonia e a conscientizao de nossas foras. Passando por esse estgio, eu espero que voc seja digno de ser um discpulo de Ebramar e, sob a orientao dele, poder subir alguns degraus at o foco fulgurante da harmonia absoluta. Terei eu foras suficientes para percorrer tal caminho? - balbuciou Supramati. O mais importante no hesitar! Lembre-se sempre de que a dvida j uma meia derrota. claro que voc ter que vencer muita coisa e suportar provas duras e penosas; mas com energia e obstinao voc superar o que outros j superaram, inclusive eu. Imagine o quanto foi difcil para um rude e ignorante pirata galgar os primeiros degraus do conhecimento - o que bem mais simples para voc, um cientista, j preparado para trabalho intelectual. Voc tem razo, irmo, eu me envergonho de minha pusilanimidade. Permita-me agradecerlhe e pedir-lhe desculpas por faz-lo assumir a tarefa ingrata de iniciar um profano ignorante como eu, que tanto o faz perder a pacincia. Dakhir sorriu e apertou calorosamente a mo de Supramati. No se atormente com os remorsos inteis. Estou feliz em ser seu orientador. No somos ns irmos verdadeiros, unidos pelo mesmo destino, mesmas idias e trabalho comum? A minha pacincia jamais se esgotar, pois eu mesmo passei por todas essas dvidas, inquietaes e duras provaes que esperam por voc. Passei por momentos inevitveis de desnimo, impacincia e at de frustrao, quando, ao utilizar-me dos poderes ocultos, eu vi fenmenos cujos princpios no conseguia explicar; muitas questes ficavam sem uma resposta, enquanto me diziam com condescendncia: "Calma, mais tarde voc vai entender tudo!". A conversa continuou girando sobre o mesmo tema. Supramati tinha um especial interesse pela matria primeva, o que o fazia a toda hora voltar a esse assunto, de modo que Dakhir observou: Estou vendo que voc quer de uma s vez chegar ao ntimo do "Sagrado dos

Sagrados" e saber mais do que eu posso lhe ensinar. Isso impossvel; eu apenas vou-lhe ensinar o abecedrio. Mas j que voc se interessa pelas propriedades e pelo princpio de funcionamento da matria primeva, vou mostrar uma experincia que vai-lhe dar uma noo de como age o gerador misterioso durante a formao de um planeta, separando em diversas partes os elementos bsicos. Animado, Supramati levantou-se e seguiu Dakhir, enquanto este foi at o fundo do quarto, acionou uma mola e abriu uma porta at ento imperceptvel. Este castelo parece uma caixa com escaninhos secretos! Suas paredes e pisos esto cheios de surpresas - observou rindo Supramati. Ao adentrar com o seu companheiro numa sala redonda, ele quase levou um tombo, a tal ponto o piso brilhante do recinto estava liso.

Com os diabos! Estou com a sensao - que Deus me perdoe - de estarmos andando em cima de cristal! - acrescentou ele. Totalmente correto - confirmou, tambm em tom alegre, Dakhir. - Cuidado para andar! Supramati examinou interessado o ambiente. A sala estava praticamente vazia. Diga-me, Dakhir, por que os quartos daqui so todos redondos e no retangulares? porque nas sesses de magia, para a movimentao dos fluidos, o crculo bem mais adequado que as formas quebradas. Suspendendo em seguida uma cortina pesada, ele abriu uma janela alta e estreita, executada em vidro macio e muito grosso. Olhe! O centro do piso feito de cristal vermelho, enquanto l, na base, voc est vendo uma espcie de caixa de cristal. justamente com o auxlio daquele instrumento que ns faremos a experincia. Supramati aproximou-se e inclinou-se sobre uma grande caixa transparente. Ela parecia estar vazia e s no seu fundo se levantava um pequeno rolo de nuvem, reverberando todas as cores do arcoris. Neste receptor est o fluido do espao, no estado e na combinao em que se encontrava durante a formao do nosso planeta. Agora voc ver o efeito que exercer sobre ele a matria primeva. Dakhir tirou do bolso um pequeno frasco com rolha de ouro, cheio de lquido misterioso, familiar a Supramati. Este frasco - disse ele - est dotado de um mecanismo que s deixa passar um dcimo de uma gota da substncia, necessrio para a nossa experincia. Um minuto depois, a gotinha, parecida com uma fagulha gnea, caiu sobre o fundo da caixa. No mesmo instante, Supramati sentiu um forte golpe na nuca e pareceu-lhe que a terra lhe fugiu dos ps. Dakhir agarrou-o pela mo e o apoiou. Alis, essa sensao no durou mais que um segundo e Supramati quase no lhe deu nenhuma ateno, pois todos os seus pensamentos se concentraram no espetculo que se desenrolava diante dos seus olhos. No interior do receptor de cristal tudo parecia estar em ebulio. Nuvens multicoloridas turbilhonavam-se com velocidade estonteante, espalhando-se, densificando-se, contorcendo-se em espirais e quebrando-se em remoinhos, como se fustigados por furaco. Para completar a iluso, o quarto encheu-se de estalidos, silvos e barulho ensurdecedor, como se vinte mquinas eltricas entrassem em funcionamento ao mesmo tempo. O barulho, vez ou outra, era abafado pelo rolar do trovo.

Subitamente todos esses sons cessaram e tudo se diluiu numa esfera cinzenta, sulcada por raios. Depois, num piscar de olhos, diante do estupefato Supramati, formaram-se quatro camadas de cores e composies diferentes. No fundo do caixo, agitava-se crepitando a massa fundida; sobre ela surgiu uma camada enegrecida, mas transparente. A terceira camada era ainda mais difana e tinha colorao azul-celeste. Todo o espao restante era preenchido com um vapor cinzento. Examinando-se mais atentamente, o vapor parecia ser urdido de milhares de pontos cintilantes. Da matria fundida elevava-se uma espcie de vnulas finas que, estalando, percorriam as trs camadas sem se deterem, contorcendo-se feito serpentes. O que aconteceu diante de voc em alguns minutos, no espao leva milhes de anos para acontecer sob a ao desta matria primeva, da qual algumas gotas seriam suficientes para devorar o nosso planeta e lev-lo ao estado gasoso. Uma vez que a experincia que eu mostrei bastante imperfeita, no se desenvolveu uma forma esfrica. Mas isso indiferente! Mesmo sem isso, voc entende que a matria fundida o centro do planeta, foco do princpio vital; a cor enegrecida representa a primeira condensao de matrias mais rudes, que formaram uma casca. Em seguida vem uma camada lquida e atmosfrica, perpassada por fogo do espao - que vocs chamam de eletricidade -, as correntes que, representadas por vnulas gneas, sempre se acham em comunicao com o reservatrio principal do centro. Deixando Supramati olhar o quanto quisesse para aquele mundculo invocado, Dakhir pegou uma enorme lupa e a estendeu ao amigo. Pegue! Este aparelho foi feito a partir de um diamante que pesava mais de cem quilates. Ele bem mais perfeito do que os que vocs possuem. Com o seu auxlio voc poder perceber que, quando as matrias em formao alcanam o ponto em que ns estamos, j possvel enxergar as formas de seres e plantas, cujos germes eles contm e que mais tarde sero gerados pela terra. Supramati pegou o aparelho e de seus lbios soltou-se uma exclamao surda. Diante de seu olhar estupefato apareceu um infindvel nmero de plantas e animais de toda a espcie. Era fauna e flora que se destacavam por sua diversidade. Tudo era areo, indefinido e a tal ponto misturado, que seriam necessrios meses para se ter uma idia clara do que l havia. Dakhir interrompeu-o de sua observao. Est na hora de desintegrar tudo isso. Por enquanto, o que voc viu j suficiente, e um estudo detalhado levaria muito tempo. Eu vou fazer o mundculo entrar em contato com o ar e ele se desintegrar na atmosfera sem deixar vestgios. Abrindo a janela, ele baixou a cortina e ambos foram ao quarto vizinho. Compenetrado e confuso com tudo que havia visto, Supramati sentou-se na poltrona e mergulhou em pensamentos.

Vamos almoar! Voc ainda no viu o nosso refeitrio - disse animado Dakhir, batendoo no ombro. Tem razo! Estou faminto, ainda que tenha esquecido disso. um bom sinal! Se voc se esqueceu do almoo, significa que est pronto para ser um cientista. Conversando, eles passaram pelo laboratrio, desceram a escada e por uma porta que ficava num gabinete escuro entraram numa sala, no muito grande, com vigas enegrecidas pelo tempo e paredes escuras de madeira trabalhada. O buf, a mesa e as cadeiras macias com espaldares altos apontavam a antigidade do castelo. A janela alta com vidros multicoloridos estava aberta e ao seu lado havia uma poltrona estreita sob o baldaquim. A mesa, coberta com uma toalha branca, decorada com prataria e flores, estava servida para duas pessoas. Junto a uma das cadeiras, um ano esperava para servi-los. A refeio consistia de legumes, ovos e um pudim de frutas secas. Fora isso, sobre a mesa havia queijo, po, leite e uma garrafa de vinho. O nosso cardpio no prima por diversidade, mas, enquanto estivermos trabalhando aqui, voc ter que se contentar com os pratos vegetarianos, Todos os imortais passam por isso observou Dakhir. Se ns fssemos simples mortais, teramos de nos contentar com po e gua para preparar o organismo atravs de um jejum rigoroso; mas, uma vez que somos imortais, podemos permitir-nos um almoo bem lauto. Oh! Eu acho o regime vegetariano excelente - disse Supramati. - Durante o tempo em que fiquei morando na casa de Ebramar, alimentei-me exclusivamente de legumes, sem sentir alguma falta de alimentos de origem animal, que, alis, me so repugnantes. Quando terminar a sua primeira iniciao e, de um modo geral, quando voc voltar para a sociedade, poder utilizar a carne, se que ento voc vai quer-la. E bem provvel que no, pois eu sei que o alimento de origem animal contamina o organismo com os elementos mortuosos. Ao terminarem o almoo, os jovens retornaram ao laboratrio. Dakhir trouxe um volumoso in-flio com desenhos, smbolos estranhos e texto incompreensvel. Este livro contm todas as categorias de frmulas. Todos estes smbolos e frmulas voc ter de aprender de cor. Quando dominar totalmente estas primeiras formas de encantamento, ns passaremos primeira experincia. At os reles feiticeiros conhecem parcialmente estas frmulas, mas com voc a situao diferente. Voc no poder, semelhana de um feiticeiro ignorante, ficar escravo das foras malficas ao invoc-las; precisa, desde os primeiros momentos, tornar-se

o seu senhor e governante. Uma vez que ainda no desenvolveu a segunda viso, eu lhe darei culos mgicos que lhe permitiro enxergar tudo o que ocorre em sua volta. Supramati iniciou os trabalhos com afinco. Ele ps-se a estudar os sinais misteriosos e as frmulas estranhas, compostas de nmeros e palavras, cujo sentido no entendia. No incio era-lhe difcil acostumar-se a esse tipo de estudo, mas nisso ele contava com a ajuda e explicaes de Dakhir. At o fim da tarde, Supramati aprendeu, praticamente sem errar, a pronunciar algumas frmulas e desenhar com certa firmeza alguns sinais cabalsticos. Ele estava to compenetrado em seus estudos, que no percebeu o anoitecer. Dakhir acendeu a lmpada e, ao verificar a hora, observou sorrindo: Termine o trabalho; por hoje bastante! Logo so dez horas e nossa bela dona-de-casa nos espera para o ch. Voc no precisa ter tanta pressa em aprender tudo de uma vez, pois, graas a Deus, tempo o que voc mais tem. E verdade, mas que eu gostaria de passar, o mais rpido possvel, os primeiros degraus mais difceis e tediosos da iniciao - declarou Supramati, enxugando o suor. Aps vestirem seus trajes habituais, foram ao refeitrio, onde Nara esperava por eles. Os pratos frios j estavam servidos, juntamente com o samovar de prata a assobiar na mesa. E ento, Supramati? Como foi o seu primeiro dia da iniciao? - interessou-se a jovem, esboando um sorriso. Muito interessante! - respondeu Supramati beijando a esposa. Ao se sentar ao seu lado, ele comeou a contar-lhe animadamente o que havia feito durante o dia. Todos os mistrios do mundo invisvel me excitam e ao mesmo tempo me deixam apavorado. Eu, um ignorante preguioso, assusto-me com o gigantesco trabalho que terei de enfrentar. Aos ps da extensa escada que terei de galgar, eu me pergunto: como os outros puderam subir to alto sem ficarem tontos? - brincou ele em tom triste. Voc se utilizar de duas faculdades que ajudaram seus predecessores: a coragem e a obstinao atalhou Nara alegremente. Depois acrescentou em tom srio: Um pressentimento me diz que voc alcanar os degraus superiores do conhecimento e se tornar um grande mago. Voc sempre foi um pensador e labutador incansvel. Quanto mais voc avanar no novo caminho, tanto mais ir se interessar pelo mundo oculto e pelos poderes que ele lhe confere ao prov-lo de um verdadeiro exrcito de valorosos e hbeis guerreiros, ainda que demonacos e invisveis

para os profanos, pois eles se escondem na atmosfera ao redor. Voc ainda no sentiu o prazer de

estar acima da turba, ler os pensamentos alheios, aliviar os sofrimentos secretos e governar as foras da natureza. Deus queira que os seus pressentimentos se realizem e que eu fique digno do bom conceito que voc tem em relao a mim. De qualquer forma, empregarei toda a minha fora de vontade para tanto - assegurou ele, beijando a mo da esposa. A conversa continuou ainda por algum tempo sobre o mesmo tema. Quando Dakhir mencionou as invocaes que eles ainda teriam de fazer, Supramati lembrou-se de algumas sesses espritas que presenciara durante a sua ltima estada em Londres. Naquela poca ele estava muito doente e a morte, que o rondava, fez com que ele se interessasse em aprender mais sobre as trevas do tmulo, ao qual almejava. Supramati tornou-se membro de um daqueles crculos e participou de uma srie de sesses. Ele presenciou manifestaes muito singulares: aparecimento de coisas, efeitos luminosos e at uma materializao parcial. Alguns fenmenos exerceram nele uma profunda impresso; outros provocaram dvidas. Eu sei que sesses deste tipo esto em moda e, de um modo geral, o espiritismo vem se desenvolvendo, porquanto preenche as necessidades do corao de pessoas fartas dos argumentos fteis dos renegadores e da intolerncia da cincia, comparvel - sem nenhum exagero - intolerncia clerical - observou Nara. - Infelizmente, o espiritismo se encontra em situao catica e desfavorvel, estagnando no b-a-b do mundo oculto, pois os espritas ignoram as leis que governam os fenmenos. Bons mdiuns so muito raros e os espritos dirigentes so normalmente prejudicados pela desarmonia e at por desejos malficos dos presentes, ou seja, aquela turba ignara, interessada em assistir as sesses para, posteriormente, negar e ridiculariz-las, imaginando que o mundo do alm-tmulo, com os seus terrveis mistrios, est ali para diverti-los. verdade! O espiritismo gera mais achincalhadores e negadores do que adeptos - disse Dakhir. - No obstante, esta doutrina lenitiva j fez muitas coisas boas e salvou inmeras almas do sorvedouro trgico do materialismo. O que seria se fosse diferente?! Todos silenciaram por alguns instantes, aps o que Nara acrescentou: Sim, eu gostaria de que o espiritismo, que prova a existncia do mundo do alm-tmulo de uma maneira acessvel a todos, triunfasse para o bem da humanidade. A propsito, Supramati, se voc quiser, ns podemos ainda hoje noite realizar uma sesso esprita. Eu o tornarei de imediato um clarividente e voc ver todo o processo oculto das manifestaes espritas. Sem dvida que eu quero! Voc se antecipou ao meu desejo. Vamos logo, ento, ao laboratrio.

Para que temos que ir para l?! A minha sala deestar ideal. Assim, vo at l, senhores, e preparem tudo! Enquanto isso, eu mandarei providenciar o jantar para depois da sesso - o que no ser uma m idia. Um jantar vegetariano, naturalmente! exclamou Supramati alegre. Justo! Por enquanto voc vai ter que esquecer a carne e, daqui a alguns anos, os rosbifes, os faises assados e outras iguarias vo parecer-lhe pedaos de cadver. Voc vai ver coisas que iro tirar-lhe o apetite; e o cheiro da de composio que normalmente no sentido por gastrnomos ordinrios ir sufoc-lo. Na pequena sala de estar, eles baixaram as cortinas e retiraram os mveis que atrapalhavam, colocando no meio do quarto uma pequena mesa redonda. Depois apagaram as luzes, deixando apenas uma vela acesa. Mal eles acabaram os preparativos, chegou Nara. Ela trouxe consigo uma pequena trempe de prata e a colocou sobre a mesa. Depois, com uma pina, ela tirou da lareira alguns pedaos incandescentes de carvo e os colocou na trempe, ficando Dakhir na tarefa de sopr-los para atiar o fogo. Tirando do bolso um frasco, Nara lanou o seu contedo sobre o carvo. Imediatamente subiu uma densa fumaa, espalhando pelo recinto um aroma que Supramati julgou ser familiar. Ele lembrou-se de ter aspirado o mesmo aroma no dia em que esteve na casa do conde Rokk, no entanto, mesmo sendo este menos forte, no o impediu de ficar tonto por alguns instantes, sentando-se em silncio mesa. Ento Dakhir pegou o basto de vrios ns, que pendia em seu pescoo numa corrente de ouro, feito um lornho feminino, e, inclinando-se, encerrou a si e aos outros num crculo imaginrio. Por alguns instantes reinou um profundo silncio. Subitamente Supramati teve a sensao de que tudo em seu redor comeou a soar, mover-se e a girar com ele: a mesa, Nara e Dakhir -, com uma rapidez estonteante. Uma luz azulada despontou e naquela penumbra divisou assombrado uma alta e esbelta figura vestida em trajes cinza da cor de morcego. A criatura, extremamente esguia, hbil e mvel, segurava na mo um basto escarlate, em cuja ponta rodopiava uma esfera da mesma colorao. Por todos os lados desprendiam-se fascas gneas que se uniam, em seguida, em fios flamejantes. O crculo, desenhado por Dakhir, lanava agora chamas de todos os tamanhos. Os presentes viram-se enclausurados por uma retcula fosforescente. Com interesse cada vez mais crescente, observava Supramati aquilo tudo. Surpreendido, viu como por trs das pregas do reposteiro, das paredes, do cho e at da lareira, comearam a aparecer diferentes seres, agrupando-se em volta do crculo. Nos rostos de alguns estava estampada uma expresso maliciosa e despreocupada; nos outros maldosa, animalesca e at cheia de dio. Os ltimos tentavam atravessar a retcula, mas eram repelidos como se recebessem uma descarga eltrica. Somente quando, junto da mesa, surgiram alguns seres

que, pela rapidez dos movimentos e trajes, eram parecidos com a figura que segurava a esfera gnea, Nara expressou a vontade que eles trouxessem uma jarra de gua do refeitrio. Imediatamente, alguns dos espritos se retiraram, trazendo em seguida a jarra, envolta por um denso vapor compacto parecido com algodo. A jarra era carregada com muita dificuldade por trs seres cinzentos que a colocaram, em silncio, sobre a mesa. Dakhir ordenou que fosse tocada uma msica na flauta que estava sobre o peitoril da janela. Imediatamente, um dos espectros pegou o instrumento e tocou, bastante bem, uma pequena ria conhecida de todos. Aparentemente, as experincias suscitaram a inveja entre os restantes. A maior parte dos espectadores dissipou-se, mas retornou rapidamente para junto do crculo mgico que no conseguiam atravessar. Isso os impedia de participar das diverses que, pelo que parecia, lhes agradavam sobremaneira. Portanto, vinham trazendo os mais variados objetos que se entreviam por trs do vapor que lhes servia de transporte. Ali havia esferas pretas parecidas com seixos, batatas, ovos podres, roupas e at areia. Todos esses membros da respeitvel companhia se rivalizavam entre si. Nesse meio tempo, o interior do crculo se ampliava, medida que de Dakhir e Nara se desprendiam correntes de luz e calor. O ente, no traje da cor de morcego, tornava-se cada vez mais compacto e rapidamente alcanou uma densidade palpvel que poderia ser vista at por um olho normal. Com a leveza, prova de sua surpreendente fora, o ser agarrou a cadeira macia, ergueu-a e sacudiu sobre a cabea de Supramati. Este se jogou instintivamente para trs, mas o esprito recolocou no lugar s gargalhadas. Neste nterim, apareceu um novo esprito que, sem demonstrar alguma dificuldade, atravessou o crculo gneo e passou pela retcula, postando-se entre Dakhir e Nara. Um grande vu branco envolvia a figura do esprito recm-chegado e cobria as suas feies. Nas mos ele segurava um buqu de flores. O aroma de lrios e rosas encheu todo o quarto. Supramati surpreso olhava para a nova apario, que comeou a descobrir lentamente o vu. Subitamente, ele soltou um grito: nela ele reconheceu a sua me. Bela e rejuvenescida, ela fitava-o com um olhar estranho e parado. Com o seu grito, a viso cambaleou, empalideceu e quase se diluiu, mas imediatamente ressurgiu. Me! Eu a vejo de novo, querida me! - balbuciou ele, trmulo. Com as lgrimas lhe aflorando os olhos, ele ajuntou: Eu posso toc-la, abra-la?

O esprito virou-se com o olhar suplicante para Nara. Esta, imediatamente, levantou-se e colocou as mos nos ombros da viso. Praticamente no mesmo instante, da jovem Nara comearam a emanar rolos de vapor fulgurante, que, s vezes, adquiria uma tonalidade rosada. Toda essa substncia parecia estar sendo absorvida pela viso, que rapidamente adquiria o aspecto e a densidade de pessoa viva. Voc pode beij-la - disse Nara sorrindo, retirando as suas mos. O jovem mdico se levantou, agarrou trmulo o esprito pelas mos e o puxou para si. Sim, esta era realmente a sua me adorada, sem qualquer vestgio da doena, cansao ou velhice, em todo o res-plendor da beleza que ele viu quando era um menino. Ralf! Minha adorada criana! - pronunciou a querida e bem conhecida voz. Mos reais enlaaram o seu pescoo e os lbios mornos e trmulos encostaram-se aos dele. Por algum tempo eles ficaram abraados em silncio, quebrado por Ralf, que disse emocionado: Oh, minha querida me! Como ramos cegos ao imaginarmos que nunca mais poderamos nos encontrar! Voc estava perto de mim quando eu chorei a nossa separao e no pde me fazer um sinal, consolar-me - e tudo isso se deveu a nosso desconhecimento das leis do mundo invisvel. Diga-me se voc est feliz! Voc viu o meu pai? Eu vi seu pai. Ele est feliz e tranqilo, pois cumpriu bem e corretamente a sua tarefa em vida. Voc o ver mais tarde. Diga-lhe que eu o amo e todos os dias rezo por ele e voc. Veja, me, como eu estou forte e sadio! Agora voc no precisa recear como antes pela minha sade - acrescentou ele com um sorriso maroto. Uma expresso de temor e tristeza anuviou as feies do esprito. Pondo a mo sobre a cabea do filho, a viso disse: Temo agora se no ser por demais longa essa vida com a qual eu me preocupava e que se extinguiria em pouco tempo. Diga-me, voc aprova este estranho destino para o qual me empurrou a fatalidade? indagou Supramati em tom de tristeza e inquietao. Eu no ouso reprovar, querido Ralf; eu sou por demais ignorante. Apenas receio que seja por demais penosa a provao da imortalidade e o enorme trabalho que o aguarda para tornarse digno das foras misteriosas obtidas. Pergunte para aqueles que penetraram nas esferas superiores do conhecimento e que contam sua vida em milhares de anos. Esto eles felizes por carregarem eternamente o perecvel invlucro terreno, sem possibilidade de descansarem na morte? Submetido a milhares de sofrimentos inerentes vida terrena, j que o privilgio da imortalidade sentido

apenas pelo corpo, o esprito permanece vulnervel como antes, sem se utilizar da prerrogativa de no sentir, no amar, no chorar os sofrimentos que a imortalidade no consegue aliviar. O esprito calou-se por instantes, mas logo prosseguiu em voz mais dbil: Eu sinto volatilizarem-se as foras que me foram dadas. Assim, at um novo encontro, meu filho! Eu aparecerei quando voc me chamar num momento difcil, no para a soluo dos problemas relacionados com a gesto do Universo, mas s para que voc oua uma palavra amiga. Ele sentiu que a mo dela se tornava cada vez menos densa, que se dilua e se tornava intangvel. Toda a viso se derretia, tornava-se transparente e, por fim, desapareceu por completo. Respirando com dificuldade, Supramati deixou cair-se na cadeira e fechou os olhos. Dakhir acendeu uma vela e disse: Voc est exausto, meu amigo, no com o corpo, mas com o esprito. Assim, vamos interromper esta sesso. Apesar de sua imortalidade, voc far bem se se deitar para dormir. Supramati endireitou-se, pegou as flores deixadas pela me sobre a mesa, em cujas folhinhas ainda brilhavam gotculas de orvalho, e, com um sentimento misto de infelicidade e alegria, encostou-as aos lbios. Apesar da bem intencionada sugesto de Dakhir, todos permaneceram em seus lugares e continuaram a conversar. Supramati lamentava-se que os cticos, com os objetivos preconcebidos, impedissem o progresso do espiritismo, que representava, entretanto, uma das fontes de consolo para os espritos sofredores, contribuindo, ao mesmo tempo, para o seu renascimento moral, devolvendo-lhes a f na vida do alm-tmulo. Oh, esses cticos! - exclamou rindo Nara. s vezes eu tenho uma vontade imensa de convenc-los do contrrio, colocando-lhes os culos mgicos. Acho que todos esses grandes tagarelas ficariam malucos ao reconhecerem que toda a atmosfera em volta est povoada por seres invisveis, cuja existncia eles contestam e, no espao, que eles consideram vazio devido a seus equvocos presunosos, habita um verdadeiro mundo de seres intangveis. J no a primeira vez que ouo voc e Dakhir mencionarem certos culos mgicos. Posso v-los pelo menos uma vez? - pediu Supramati. Com todo o prazer! - prontificou-se Nara. Ela abriu a escrivaninha entalhada com acabamento em marfim, tirou de uma gaveta um par de culos com armao em ouro e estendeu-os ao marido. Com interesse bem compreensvel, Supramati examinou os culos, executados em um material estranho para ele, mais transparente que o vidro e que reverberava luzes multicolores. Sem pensar muito, ele colocou-os, mas para sua grande surpresa nada viu, alm de ondas coloridas que emitiam sons, moviam-se e fundiam-se. Ao mesmo tempo, parecia-lhe que o seu crebro estava sendo esmagado por um anel incandescente.

Tire os culos e v lavar o rosto! Hoje voc no vai conseguir ver nada, pois os seus rgos esto demasiadamente saturados por aquela substncia que eu queimei antes da sesso disse Nara. - Mas esses culos tornam transparente, para o olho de um ser humano comum, a cortina que esconde o mundo invisvel. Ela guardou os culos. Supramati dirigiu-se apressado ao seu quarto para lavar o rosto, pois sentia uma enorme dor de cabea, que passou imediatamente aps o uso da gua fria.

Captulo III

Trs semanas se passaram sem trazer nada de especial. Supramati estudava com afinco os smbolos mgicos e as frmulas quase sempre incompreensveis que os acompanhavam. Quando pedia a Dakhir que as explicasse, este dizia que, antes de tudo, Supramati devia decor-las. Bem, mas muito mais difcil decorar as galimatias quando voc no as entende! - rebatia impaciente Supramati. Entretanto, isso imprescindvel, pois, se voc conhecesse o sentido dessas frmulas mgicas, elas provocariam os seus respectivos fenmenos e voc ficaria na situao do aprendiz de feiticeiro como no conto de Goethe. Somente o desconhecimento das palavras pronunciadas por voc impede sua mente e sua vontade que voc as ponha em execuo. Supramati teve que se contentar com tal explicao. Aos poucos, comeou a dar razo s palavras de Dakhir, ao notar, ele prprio, fenmenos estranhos. Assim, quando ele pronunciava as frmulas mgicas, era dominado por uma certa inquietao, indescritivelmente opressiva. Ouvia um barulho estranho, comeavam a surgir sombras prximas a ele, acendiam-se fagulhas em cantos escuros e um comicho clido percorria as suas veias. Quando as manifestaes desta espcie se tornavam demasiadamente reais, Dakhir interrompia o estudo das frmulas e por um determinado tempo passava a estudar outros assuntos. Ele falava ao seu amigo das propriedades ocultas das pedras preciosas, mostrando-lhe as diversas cores que elas emitiam, ilustrando com exemplos os efeitos daquelas emanaes luminosas sobre as plantas, animais e homens.

Estudavam tambm venenos vegetais, animais e minerais, as propriedades das plantas e os efeitos do magnetismo animal; agora, no entanto, para os olhos do jovem mdico abria-se uma Botnica e Qumica totalmente novas. Eles prosseguiam tambm com os exerccios de disciplinamento da mente. Certa vez, Dakhir trouxe ao laboratrio um grande disco, coberto por um tecido preto. Colocando-o sobre a mesa, retirou o pano. Supramati comeou a examinar curioso o disco metlico azul retinto que reverberava todas as cores do prisma como um espelho mgico, j visto por ele antes. O disco estava encaixado numa espcie de moldura, na qual se viam incrustados diversos metais, pedras preciosas e medalhes com lquido. Na parte superior, a moldura era adornada por um medalho em forma de nfora. O que isso? Tambm um espelho mgico? Para que serve? - indagou Supramati. Sim, tambm espelho mgico, s que executado em outros metais que voc ainda no conhece. Ele lhe ajudar a alcanar uma habilidade muito difcil: controlar e disciplinar o pensamento vivo e suas imagens. O espelho, como voc v, composto de substncias mais tangveis. mais sensvel que um barmetro, que registra somente as oscilaes da atmosfera. Neste valioso instrumento, imprescindvel a todo mago genuno, so registradas as mais sutis vibraes da mente - um barmetro da alma. Os profanos incorrem em erro ao imaginarem que o espelho mgico possui s uma aplicao: mostrar ao mago os quadros do passado e do futuro e desvendar os segredos deste ou daquele objeto, totalmente indiferentes ao cientista. No entanto, em realidade, este instrumento destina-se a estudos muito mais srios e serve para exercitar a mente. Chegou a hora de voc iniciar este aprendizado. Portanto, olhe para o disco pensando em alguma coisa e tentando represent-la em sua mente o melhor possvel. Escolha uma coisa simples, mas bem definida, para logo de incio acostumar-se a formular nitidamente o seu pensamento. Os pensamentos fugidios e caticos nada reproduzem. Supramati inclinou-se e comeou a olhar para o espelho. Imediatamente aflorou sua mente uma infinidade de objetos, sem que seu pensamento conseguisse se fixar exclusivamente num s objeto. Para sua surpresa, viu que na superfcie metlica se refletiu um verdadeiro caos de coisas, seres e flores que se misturavam, faziam caretas e em seguida desapareciam em nvoa sangnea. A cabea de Supramati tonteou e ele fechou os olhos. Pare, pare! - exclamou rindo Dakhir. - Voc reproduz mais pensamentos que o espelho pode suportar. Repito-lhe, escolha algum objeto bem simples como uma mesa, uma garrafa, alguma fruta e assim por diante. E quanto mais definido for seu pensamento, mais vivida e perfeita ser a imagem reproduzida por ele. Supramati inclinou-se novamente sobre o espelho, concentrou-se, e nele logo apareceu uma cinzenta e mal definida representao de uma garrafa, mas, praticamente no mesmo instante, surgiu,

cobrindo-a, a imagem de um copo cheio de lquido espumante e ao redor de tudo aquilo se ouviu uma mistura vaga e engraada das vozes de Lormeil, Pierette e o restante da companhia, cuja imagem se associou de certa forma com a representao da garrafa. Supramati aprumou-se enfurecido, rindo involuntariamente. Nunca pensei que era to difcil concentrar o pensamento num determinado objeto observou ele. Ningum se d conta disso ou presta um mnimo de ateno para o trabalho desorganizado da mente - acrescentou Dakhir. - Como conseqncia disso, na vida se pensa numa infinidade de coisas inteis, perdendo-se um precioso tempo e cansando-se a mente sem qualquer objetivo. Agora, veja! Vou lhe mostrar como age sobre esse instrumento um pensamento disciplinado. Vou pensar sobre a fruteira com frutas. E Dakhir, por sua vez, inclinou-se sobre o espelho. Seu olhar faiscante tornou-se imvel; entre as sobrancelhas surgiu uma ruga. Sobre a superfcie polida apareceu imediatamente uma fruteira com pras, mas, uvas e outras frutas. Tudo estava colorido e parecia vivo. Supramati soltou um ai de admirao, mas Dakhir balanou a cabea. No h com que se admirar - argumentou ele. - Meu pensamento foi bastante negligente. O prato estava sem cor e as cerejas no fundo no estavam suficientemente coloridas. Tais imprecises ocorreram devido a minha pressa em imaginar o objeto que queria mostrar-lhe. Deve-se agir com toda a exatido, imprimindo a cada objeto, feito um artista, a forma, a cor e os matizes naturais. Dakhir continuou a olhar sobre a imagem invocada por ele, e Supramati, para sua grande surpresa, viu que sobre a fruteira apareceu uma delicada pintura e as frutas tomaram sua colorao natural. Surpreendente! - exclamou ele. - Mas diga-me, por que a imagem invocada por um pensamento desapareceu com tanta rapidez como surgiu, enquanto essa se parece com uma verdadeira obra de arte e ainda continua a perdurar j faz alguns minutos? A razo a mesma: o seu pensamento inconstante, fugidio e catico, sem condies de criar nada definido, menos ainda de conseguir reter aquela representao. Eu s penso em que quero invocar a imagem e no deixo o meu crebro criar qualquer outro pensamento. O crebro um rgo tal qual um brao; basta desenvolver a fora de reflexo e obrig-lo a trabalhar obedientemente. E possvel representar nesse espelho, com a mesma perfeio, quadros complexos? Sem dvida! Qualquer pensamento seu pode ser refletido aqui. Pegando o jeito e com o tempo, neste espelho poder ser observada uma srie de quadros. Vou lhe mostrar alguns deles.

Evidentemente, isso bem mais difcil do que representar a imagem de uma garrafa, no entanto, o que eu vou lhe mostrar ser apenas o b-a-b da grande arte de pensar. Cada vez mais interessado, Supramati fixou o olhar no espelho. Agora este pareceu ampliarse e nele projetou-se a imensa plancie marinha, iluminada pelo luar. Mas eis que, das ondas, comeou a avolumar-se e aproximar-se lentamente a montanha, sobre a qual se erigia o abrigo misterioso dos cavaleiros do Graal. O quadro maravilhoso comeou a desbotar aos poucos e diluiu-se num vapor cinzento, dando lugar ao templo da irmandade no momento do ofcio divino. Sim, aquela era realmente a imensa sala com suas colunas, finos entalhes e mosaicos coloridos. Do vo da cpula jorravam raios solares, inundando de luz o piso de pedra e as roupas alvas dos cavaleiros. Nos degraus do altar estava o superior da irmandade e, diante dele, o prprio Supramati. Era a vida em si, nada ali estava esquecido; tudo respirava e vivia. Que grande artistapensador teria que ser ele para representar de tal forma a natureza e invocar naquele lgubre laboratrio o aparecimento do oceano e inund-lo de vivos raios solares. Com um sentimento misto de admirao e medo olhava Supramati para Dakhir, que estranhamente fixava o espelho mgico. Mas, subitamente, este esfregou com a mo os olhos e virouse com um sorriso para seu amigo; o quadro sumiu imediatamente e o espelho readquiriu a sua habitual cor preta. Dakhir, voc alcanou a sublime arte de cuja existncia eu nem suspeitava. Acho que nunca conseguirei tal habilidade. Voc s me acha um grande artista porque no viu algo melhor - retrucou Dakhir. O meu pensamento ainda no reproduz aromas, sons e coisas assim. De um modo geral, estou longe do objetivo. Mas como a sua admirao lisonjeia o meu ego, vou lhe mostrar uma partcula da minha arte, ou seja, vou fazer o meu pensamento ser visvel para outra pessoa. Alis, tais fenmenos podem ser feitos tambm pelos profanos, que os interpretam a torto e a direito e os denominam de espectros em vida. O prprio fato j se manifestou to freqentemente que neg-lo intil. No momento da morte ou do perigo, muitos apareciam junto aos seus familiares como pessoas reais; s vezes, tocavam-nos e conversavam com eles. Na realidade, estes fenmenos no so nada mais do que as manifestaes do pensamento que se tornaram no s visveis como palpveis. Somente com os profanos tais fenmenos ocorrem casual e inconscientemente, eu, no entanto, posso evoc-los minha vontade.

Devo acrescentar ainda que o pensamento passivo, ou seja, quando voc no pensa em nada definido, reflete-se no espelho mgico em forma de linhas fosforescentes, mais ou menos vivas, dependendo da energia das vibraes cerebrais. Entretanto, o pensamento no pode ser passivo, mas ativo e produtivo. O trabalho da mente deve ser harmnico para no fatigar o crebro, pois todos sabem e j experimentaram por si que os pensamentos impetuosos e inquietos provocam um terrvel esgotamento de todo o organismo. Agora vamos ao quarto vizinho para respirarmos o ar puro e depois lhe mostrarei o meu pensamento, visvel a distncia. Voc est cansado? - perguntou Supramati, inspirando prazerosamente o puro e fresco ar martimo. Eu no estou cansado, mas voc est com uma aparncia desorientada, embora aquilo que voc viu no o tenha perturbado tanto. At a cincia "oficial" de vocs comea a se convencer da "tangibilidade" do pensamento, que at fotografado! Sem dvida, estas experincias ainda so insuficientes e seu resultado ruim, como ocorre com as descobertas recentes; no entanto, as pessoas esto a meio caminho de submeter ao controle cientfico um dos sentidos humanos mais tempestuosos e birrentos. At para ns, disciplinar o pensamento e o seu instrumento - o crebro - um trabalho fenomenal. Pensar-se-ia que os cientistas - trabalhadores mentais, capazes de solucionar mentalmente os problemas mais complexos -, j teriam dado este primeiro passo, e no entanto, se eles tivessem que concentrar toda sua fora de vontade para fazer a representao de um objeto, voc precisaria ver que ziguezagues se refletiriam no espelho mgico! Sem dvida, Supramati, so-lhe imprescindveis os treinamentos que teve no incio, pois atravs deles voc poder reproduzir mentalmente todos os sinais cabalsticos e os smbolos mgicos das invocaes. Tudo isso voc dever fazer de forma rpida e precisa, sem a menor hesitao. Aps uma hora de descanso, eles retornaram ao laboratrio e postando-se em frente do espelho mgico, Dakhir disse: Agora eu vou cumprimentar Ebramar, e voc olhe para o espelho. claro que ser muito difcil eu conferir a mim mesmo um aspecto inteiramente vivo e real, pois isso exigiria uma concentrao muito forte, mas, de qualquer forma, voc conseguir ver-me. Carregando o cenho e com as veias na testa entumecidas pelo esforo da concentrao, Dakhir debruou-se sobre o espaldar da cadeira em que estava sentado Supramati e este logo viu, no centro do espelho, um crculo brilhante que foi aumentando gradativamente at transformar-se num gigantesco disco da cor do luar. Diante de seu olhar estupefato, surgiu o terrao de seu palcio no Himalaia.

Junto mesa, apinhada de livros, estava sentado Ebramar, inclinado sobre rolos de papiro; ao lado, no tapete, estava deitado o co galgo. Encantado, olhava Supramati para aquele quadro que lhe era muito familiar e caro, para o prado verdejante cheio de flores vivas, para o chafariz, cujo jato lmpido fulgia em respingos brilhantes e para os picos das montanhas cobertas de neve que delimitavam o horizonte. Subitamente no azul-escuro do firmamento, surgiu, aproximando-se rapidamente, uma nuvem avermelhada. As orelhas do cachorro ficaram em p, ele se sentou e dirigiu o olhar inteligente para o dono, enquanto este levantou a cabea e parecia estar prestando ateno em algo. A nuvem avermelhada desceu, ento, sobre o terrao e Supramati reconheceu nela Dakhir. Sua figura era airosa, os contornos do corpo no eram totalmente definidos, mas a cabea era bem delicada e reconhecvel. Supramati virou involuntariamente a cabea e estremeceu. Dakhir continuava como antes, debruado sobre o espaldar da cadeira; apenas seu rosto mortalmente plido e seus olhos vtreos faziam lembrar um cadver. Supramati olhava horrorizado para os olhos esbugalhados e escurecidos e as mos geladas e imveis que adquiriram a cor crea. Sim, aquilo realmente era um corpo, abandonado por foras vitais. Com um tremor glacial, desviou o olhar para o espelho. Ali, como anteriormente, estendia-se a paisagem alegre do palcio hindu. Ebramar levantou-se, um sorriso afvel iluminou as suas feies bondosas e ele estendeu a mo a Dakhir. Pelo movimento dos lbios de ambos, Supramati concluiu que eles estavam conversando. Em seguida, Ebramar pegou, de um vaso prximo, uma flor prpura e a colocou na mo de Dakhir. Toda a cena se passava to prxima, que a Supramati parecia poder encostar na mo de Ebramar. Nesse instante, este virou-se, sorriu e fez um sinal de saudao como se tivesse visto o jovem mdico, depois sentou-se em seu lugar, debruou-se sobre a mesa e fitou com o olhar pensativo a figura de Dakhir. Esta recuou e transformou-se novamente numa nuvem avermelhada. Um minuto depois a viso empalideceu sumindo e Supramati ouviu atrs de si um pesado e profundo suspiro. Ao virar-se rapidamente, ele encontrou o olhar radiante do amigo, que com um sorriso jovial lhe estendeu a flor e disse: Ebramar mandou-lhe um abrao e enviou esta flor como lembrana. Supramati saltou da cadeira e apertou a cabea com as mos. Ah! - exclamou ele com a voz rouca de emoo. - Isso j no mais o aparecimento do pensamento, mas uma verdadeira magia. Parece um conto mgico. Dakhir balanou a cabea.

No, meu amigo! O que lhe parece mgico ou mi lagroso nada mais que uma manifestao do pensamento e do corpo astral, segredado com o auxlio da fora da mente. Alis, o que eu lhe mostrei so puras bobagens em comparao com aquilo que se pode e o que se deve alcanar. Quando eu lhe ensinar o pouco que sei, ns nos tornaremos discpulos de Ebramar. Sob a sua orientao, vamos estudar a magia superior e ante ns se abriro outros horizontes. Dakhir! o orgulho, encoberto por modstia, que o faz dizer que voc alcanou pouco, quando voc alcanou a perfeio - rebateu Supramati novamente se sentando na cadeira e encostando testa a maravilhosa flor que encheu de aroma todo o laboratrio. Dakhir balanou pensativa e significativamente a cabea. Voc me julga mal, porque no tem nenhuma noo sobre a incomensurabilidade do conhecimento que devemos alcanar. Ebramar, que , sem dvida, um gigante do conhecimento, um proeminente e sbio cientista para o qual, ao meu ver, no existem mais mistrios no Universo, com parado ao que sou - um pobre pigmeu -, disse-me certa vez: "Quando eu espreito os infinitos mistrios que ainda devo estudar, estremeo na minha ignorncia, sinto-me uma insignificante poeirinha cega!!" Perdoe-me, irmo, pelas palavra tolas e ofensivas - desculpou-se Supramati abraando Dakhir. - que, s vezes, fico tonto neste mundo estranho para onde o destino me jogou to inesperadamente. No estou nem um pouco ofendido e entendo muito bem o estado de sua alma, pois tambm passei por tudo isso. Mas por hoje chega! Voc est exausto e muito perturbado. Vamos at Nara: sua presena vai acalm-lo melhor. A partir desse dia, Supramati iniciou com novo fervor o trabalho. Seu maior anseio era disciplinar os seus pensamentos e passava horas a fio diante do espelho mgico. E, quando o disco refletiu, pela primeira vez, uma folha verde correta e levemente tingida, Supramati sentiu uma tal alegria inocente, que Dakhir e Nara desataram a rir. Por outro lado, os estudos das frmulas mgicas das quais ele nada entendia, de diversos sinais cabalsticos e de uma longa lista de nomes estranhos enfastiavam-no bastante e s com um esforo constante da vontade obrigava-se a adquirir os conhecimentos que lhe pareciam totalmente inteis. No raro ele fraquejava e sentia uma exausto profunda que no tinha, alis, qualquer relao com suas foras fsicas, pois, invariavelmente, permanecia forte e em perfeita sade, mas o trabalho intelectual tornava-se, s vezes, insuportvel, ainda que ele tentasse vencer corajosamente esse tipo de fraqueza. Dakhir observava, atento, o estado de nimo de seu discpulo e, nos momentos difceis, facilitava as coisas: ora interrompendo o trabalho por alguns dias, dedicando-os ao descanso e divertimentos, ora substituindo os exerccios - o que tambm dava excelentes resultados.

A sua profisso anterior no perdeu para Supramati o seu interesse; os estranhos e totalmente novos enfoques da arte de curar e destruir, que lhe eram descortinados pelo seu mestre, interessavam-no to vivamente, como a arte de refletir, a qual estudava com fervor. Certa vez, enquanto conversavam j por um longo tempo sobre a cura de diversas doenas, Supramati perguntou inesperadamente: Explique-me, pelo amor de Deus, Dakhir, por que necessrio ser um bom mdico para tornar-se feiticeiro ou mago, ainda que de grau inferior? Porque o corpo o principal objeto sobre o qual se pratica o conhecimento malfico do feiticeiro e, no entanto, essa indispensvel arma da alma uma mquina muito complexa e exigente. Por isso o mago deve conhecer todos os meios da cura, inclusive os da destruio do corpo. Como mdico, voc sabe que, para a formao do corpo humano, a natureza utiliza substncias minerais, vegetais e animais, que so absorvidas por uma me durante a gravidez e servem posteriormente para manter a chama daquela gota da matria primeva que os pais fornecem ao futuro ser no instante da fecundao. A ao de outros agentes poderosssimos, tais como a cor, o som, o aroma e assim por diante, ainda pouco conhecida da cincia moderna. Entretanto, a verdadeira cincia mdica consiste na habilidade de se utilizar de todos os meios para eliminar do organismo as substncias inteis e ministrar aquelas que faltam. Por isso voc deve aprender a encontrar, onde quer que seja - na atmosfera e em diferentes reinos da natureza -, foras atuantes capazes de manter a vitalidade de qualquer ser; ao mesmo tempo, dever aprender os meios de destruio tanto ocultistas como materiais. Eu sempre me interessei por Botnica e pelas maravilhosas propriedades das plantas; mas o que ouvi de voc comprova que eu pouco sei nesse sentido - observou pensa-tivmente Supramati. Isso bem natural, pois a cincia, na Medicina, coloca as plantas em segundo plano. Em sua crassa ignorncia, o homem desdenha os humildes benfeitores da humanidade que crescem aos seus ps. A natureza, em sua sbia previdncia, proveu-nos com um meio eficaz contra qualquer tipo de doena. Se os mdicos possussem uma lupa, parecida com os nossos culos mgicos, ficariam bem surpresos com as descobertas que teriam feito. Como prova do que lhe digo, vou lhe mostrar algumas ervas e razes sob os culos mgicos, pois a sua viso espiritual ainda no est desenvolvida. Dakhir se aproximou de um grande escrnio de carvalho com arestas de metal, pezinhos de bronze, e o abriu. Todo o interior do escrnio estava subdividido em sees, repletas de ervas, flores secas, razes, frascos e pedras preciosas. Supramati inclinou-se e comeou a examinar curioso o contedo da caixa. Dakhir retirou das sees anexas duas plantas e as colocou sobre a mesa. Voc quer me mostrar a arnica e a valeriana? - surpreendeu-se Supramati.

Esperava ver alguma coisa desconhecida, uma planta diferente j pela sua espcie? indagou sorrindo Dakhir. - Eu escolhi propositadamente as ervas bem conhecidas, nas quais at a sua orgulhosa cincia reconhece propriedades medicinais, ainda que as atribua medicina popular. Agora pegue os culos mgicos e contemple estes dois grandes representantes do reino vegetal em todo o seu brilho ocultista. Aquilo que voc ver o grau superior da luz, descoberta por Gellenbach, que irradiada por objetos e a qual ele chamou de "od". Voc sabe que esta descoberta ainda muito discutida: por enquanto, o mximo que se aceita que das pontas de dedos e dos cristais emanam raios luminosos de diferentes coloraes. Com o auxlio deste instrumento, voc ver a fora astral que se irradia de cada objeto. Os iluminados a vem imediatamente com sua viso espiritual, o que lhes permite julgar se uma determinada substncia faz bem ou mal. Deixe que eu veja de novo com os olhos normais esses grandes curadores do reino

vegetal, para que eu possa avaliar melhor a diferena que vou ver depois disse Supramati, examinando atentamente as pequenas flores e as razes escurecidas da arnica. - Os meus cegos e ignorantes olhos nada viram de especial nestes dois representantes do mundo vegetal - observou sorrindo Supramati, colocando os estranhos culos. Subitamente um grito de surpresa e admirao soltou-se dos lbios de Supramati, a tal ponto que a modesta planta modificou o seu aspecto. As pequenas folhas amareladas pareciam estrelas douradas e o cerne transformou-se numa esfera de cor azulada que vibrava sem parar. Das folhas amarelas, irradiavam-se pequenas fagulhas eltricas que, atravessando a nvoa azulada, parecia urdirem na atmosfera um tecido to fino como uma teia de aranha, que cobria a planta com um vu brilhante que vibrava, recortado por fascas. Est vendo esse trabalho surpreendente? o tecelo fludico. Ele renova e repara os tecidos danificados, tanto fludicos como materiais, causados por ferimento, pancada e assim por diante. Da vm as suas propriedades maravilhosas que curam as feridas e previnem ms conseqncias de fraturas e machucaduras. O aroma vivificante da arnica desinfeta imediatamente o local danificado, enquanto a pequena mquina eltrica faz debandar o sangue que se acumula em funo da pancada, substituindo, onde for necessrio, a substncia vital e restabelecendo o tecido. Alm disso, a arnica tem a faculdade de atrair e acumular uma grande quantidade de calor solar. Voc no pode imaginar os efeitos poderosos que exercem as foras deste modesto curador sobre o organismo do homem, e at sobre plantas, quando se sabe utiliz-lo para tratar de flores quebradas, amassadas ou que esto por morrer de esgotamento. No entanto, no vou esconder, o estudo de todas as propriedades medicinais dessa planta um trabalho enorme. Agora vamos examinar a valeriana - acrescentou Dakhir, substituindo a arnica pela valeriana. Concentrado e em silncio, Supramati inclinou-se sobre o tubrculo, que imediatamente mudou de aspecto. Estava agora vermelho feito sangue. Era atravessado por grossas nervuras com ndulos eltricos. Cada uma das razes parecia salpicada de fagulhas e no centro ardia uma pequena

chama tremeluzente, a partir da qual se entendiam, pelas nervuras, fios gneos. De toda a planta emanava uma luz prpura reverberando em ouro e que formava ao seu redor uma larga aura. A chama astral acumulada nesta planta, sendo introduzida no corpo, suscita a vitalidade, acalma e aquece o organismo, agindo principalmente sobre as funes do crebro e funcionamento do corao - disse Dakhir tirando do amigo os culos mgicos e guardando-os na caixa. Provavelmente outras plantas so menos dotadas do que estes dois prncipes do reino vegetal! observou Supramati. Sim e no! Algumas plantas tm aplicao especfica, mas no existe uma folhinha, um vegetal qualquer que no possua alguma qualidade benfica ou malfica. E isso totalmente normal, pois a planta retira para si as foras de tudo que a cerca; da atmosfera - os fluidos das estrelas; do solo - os seus minerais; da gua - os seus sais: tudo serve para a sua formao. Todos esses elementos com as suas riquezas inesgotveis, curativas ou destrutivas, esto disposio do mago superior e proporcionam-lhe um poder praticamente fantstico, se ainda acrescentarmos o aroma, os sons e as cores -esses grandiosos geradores do universo - que somente ele pode e sabe comandar. Ns, no entanto, s podemos aprender a utilizar as foras primrias, estudando os fundamentos ocultos do poderoso Mal. que se espreita no caos que nos cerca. E assim, precisamos aprender a fazer o mal, sem ousar, entretanto, empregar esse poder; devemos estudar as foras destrutivas, submet-las a ns e fazer uso de nosso conhecimento para combat-las. Se eu o entendi bem, estamos na condio de um homem "honesto" que sabe como roubar para obter alguma coisa, mas encara esse ato um crime vergonhoso; ou que sabe como matar para saciar a sede de vingana, mas por nada neste mundo sujaria as suas mos com isso. Voc formulou corretamente o meu pensamento, caro Supramati! A familiarizao com o mal oculto no feita para praticar o mal - o que seria indigno para a mente que almeja a luz. Possuir o poder de fazer o mal e nunca pratic-lo uma virtude sublime da consagrao superior. Por que admitido um relacionamento entre o mundo terreno com o medonho mundo dos espritos inferiores? - indagou Supramati. - Se os bons espritos superiores se comunicassem com as pessoas e as instrussem, quanto mal poderia ser evitado! Dakhir balanou a cabea. A sua pergunta confirma a sua ignorncia do mundo do alm-tmulo. impossvel erguer uma parede entre dois mundos to intimamente ligados entre si. Os seres que se libertam do corpo e passam ao outro mundo permanecem ligados Terra por uma infinidade de elos de amor, dio e hbitos, e so atrados ao mesmo local em que habitavam. A morte no consegue quebrar esses elos, pois cada coisa, cada pensamento, cada ser - bom ou mau -

desprende uma substncia astral que forma uma unio slida. Os assim chamados "mortos" - so seres invisveis, mas no ausentes; e para um olhar espiritualizado, aqueles que so considerados para sempre desaparecidos no abismo ignoto - encontram-se entre ns. Quando voc visitar o mundo invisvel que nos cerca de todos os lados - cujo pedacinho foi visto por Dante -, e que merece o nome que tem: o "inferno", ento voc ter condies de formar uma noo sobre a vida ali reinante, sobre as lides que ali so travadas e sobre as tempestades que ali se desencadeiam, cujo rudo o nosso grosseiro ouvido no consegue apreender. Sem escutar e sem nada enxergar ao redor, alm da atmosfera lmpida e tranqila, pretensiosamente povoada no mximo com bacilos e tomos da poeira, o homem imagina inocentemente viver e reinar sozinho num espao vazio que forma, em sua concepo, o Universo. Nara j me mostrou uma enormidade de seres que se apinham ao nosso redor. Confesso que fiquei arrepiado ao ver aquele mundo estranho com seus mistrios surpreendentes - adicionou Supramati. Sim, a primeira esfera, a que envolve o nosso planeta, um lugar bem desagradvel, e voc s viu a sua superfcie. Eu espero apresent-lo a alguns chefes das corporaes infernais - "demnios", segundo a opinio dos homens. Naquele mundo, posso lhe oferecer uma proteo. Nas esferas superiores, voc ser introduzido algum dia por Ebramar ou por algum dentre os iluminados, do mesmo grau. Oh! Quando que voc me apresentar aos senhores demnios? Muito em breve, pois estou vendo que voc est cansado de decorar as palavras cabalsticas e sinais simblicos dos quais nada entende - troou Dakhir rindo. Isso verdade! Confesso que fico agastado em ter que repetir feito um papagaio aquelas palavras sem sentido - concordou Supramati. Depois ele acrescentou com uma leve hesitao: Diga-me, o aspecto externo daquelas criaturas do inferno muito horripilante? A primeira impresso que se leva da visita quela esfera infernal - terrvel! Eu conheci uma pessoa que, sem uma preparao necessria, penetrou naquele mundo, vindo a morrer vinte e quatro horas depois; seus cabelos ficaram brancos em poucas horas. Quanto a voc, no precisa temer coisas assim! Voc imortal e as suas madeixas escuras no perdero a maravilhosa tonalidade. Isso me conforta, caso contrrio eu teria de ficar grisalho por toda a vida planetide arrematou gargalhando Supramati. Oh, no! Existe um meio de devolver aos cabelos a sua cor anterior e, ao organismo - o vigor da juventude, at para os mortais comuns. E voc conhece tais meios, Dakhir?

Tenho algumas indicaes: a verdadeira receita desse milagroso elixir, que os iniciados superiores possuem, ainda desconheo. A propsito, quero lhe contar uma histria bem singular, da qual fui testemunha e que ilustra bem as minhas palavras. Certa feita, eu passei alguns meses com Ebramar. Todos os dias ns realizvamos passeios pelos arredores, durante os quais ele me distraa com suas conversas sempre interessantes e instrutivas. Numa dessas excurses, fomos parar mais longe que de costume; eu precisava descansar e estava morrendo de sede. Ebramar, que, como voc sabe, l os pensamentos, imediatamente disse: Aqui perto vivem algumas pessoas humildes. Descansaremos na casa deles! E, de fato, depois de alguns minutos de caminhada, vimos umas casinholas, imersas na vegetao. Entramos no primeiro casebre que encontramos, pertencente a uma mulher muito velha. A mulher providenciou-nos apressada po e leite. Ao partirmos, eu lhe dei uma moeda de ouro. Enquanto ela se desfazia em agradecimentos, Ebramar observava-a sorrindo. Eu tambm, vovozinha, no quero ficar sem agradecer pela hospitalidade. Pea-me qualquer coisa: sou um mago e posso atender ao seu desejo. A velha olhou curiosa e desconfiada para ele e depois disse meio insegura, meio marota! Meu bom homem! Se o senhor realmente um mago, faa com que eu tenha dentes. Se soubesse como difcil comer po velho tendo somente um dente! S isso? Com prazer! - fez Ebramar. E assim falando, tirou do bolso um saquinho - que voc sabe ele carrega sempre consigo retirou dele um frasco e colocou algumas gotas numa nfora de barro com gua! A gua adquiriu um aspecto leitoso. Guarde a nfora num lugar escuro e fresco disse Ebramar. - Durante 9 dias, faa um gargarejo com esta gua trs vezes por dia: de manh, ao meio-dia e noite. Daqui a seis semanas, apesar de sua idade, voc ser capaz de roer nozes, comer cascas, mesmo de arvores. Eu estava muito interessado e decidi saber sobre o efeito do remdio seis semanas depois. Mas, naquela poca, eu tinha tanta coisa para estudar, que se passaram alguns meses antes que eu pudesse realizar a excurso planejada. Encontrei a velha, sentada em frente do casebre. Ela parecia ter rejuvenescido e comia com apetite um pedao grande de po, que no me pareceu ser muito fresco. Bem? E como esto os dentes? - perguntei. Ela levantou-se rapidamente e exclamou alegre:

Que Brahma e seu enviado, o mago divino, sejam abenoados! Graas ao seu remdio, agora eu tenho dentes de que at meus netos podem invejar. A velha abriu a boca e mostrou duas fileiras de dentes, brancos como prolas, que formaram um estranho contraste com o seu velho rosto cheio de rugas. Eu fiquei enxaguando com tanta parcimnia, que consegui economizar a gua milagrosa para compartilh-la com minha velha irm. Ela tambm est com dentes novinhos em folha acrescentou ela. Ao voltar para casa, relatei o encontro a Ebramar e lhe pedi que me desse a receita ou pelo menos um frasco daquela substncia. Ebramar riu da minha empolgao, mas recusou-se. Voc no est pensando em fazer fortuna na Europa, vendendo dentes aos imprestveis perdulrios ou s despreocupadas coquetes, j que voc no corre esse risco - observou ele malicioso. O assunto terminou assim, mas eu sei que ele possui remdios incrveis, que deixariam os mdicos boquiabertos. Durante os nossos passeios, eu vi como ele curou, com incrvel rapidez e sem qualquer operao, alguns cegos, sendo que dois deles sofriam de catarata. Quanto cura dos paralticos - isso para ele brincadeira de criana. Como que ele cura a catarata? indagou Supramati, empalidecendo de perturbao. Ele umedece o globo ocular com um lquido de colorao esverdeada. Depois coloca nos olhos uma venda e leva o doente para um local onde os raios solares no o alcancem. Aps um determinado perodo de tempo, dependendo da gravidade do caso. o enfermo levanta-se com a viso restabelecida. Alguns dias foram dedicados ao descanso em companhia de Nara. Posteriormente, Dakhir e Supramati mudaram-se para o laboratrio com o intuito de se prepararem para o encontro planejado com os altos funcionrios do mundo do alm-tmulo. Eles fizeram um regime alimentar especfico, que no foi do agrado de Supramati, pois todos os pratos servidos tinham sabor picante e aromtico. Ademais, ele tinha de ficar todo o tempo na escurido e o leo da nica lamparina do quarto exalava um cheiro forte e irritante. Por fim, Dakhir prescreveu banhos quentes, colocando na gua ervas aromticas - o que sempre provocava uma sensao de asfixia em Supramati. No estivesse ele to interessado no encontro com os seres do "outro" mundo, teria se enfastiado; mas as conversas com o amigo animavam-no e excitaram ainda mais o seu interesse, de forma que no via a hora que os nove dias de preparao terminassem. Finalmente chegou o dia. Um pouco antes da meia-noite, eles colocaram um traje de malha preta e toucas da mesma cor, semelhantes a coifas da Idade Mdia, que se aderiam totalmente na

cabea e encobriam os cabelos. Em seguida, Dakhir pendurou no pescoo o basto mgico e ambos passaram ao laboratrio. Ali acenderam quatro velas e trempes com ervas aro-mticas, que ardendo com estalos difundiam uma fumaa densa e acre. A seguir, Dakhir com o amigo vieram para dentro do centro do crculo mgico, fora do qual havia duas cadeiras. Erguendo os dois braos, Dakhir pronunciou cadenciadamente as frmulas da evocao, j conhecidas de Supramati, e, quase imediatamente, na ponta do basto, fulgiu uma chama vermelhosangnea. Ento, utilizando o basto como uma pena, Dakhir desenhou no ar um sinal cabalstico, cujas linhas, fosforizando, vibrando e estalando feito fogos de artifcio, projetavam-se na atmosfera. Um minuto depois, formou-se no ar uma nuvem que logo se densificou numa espiral de fumaa negra, dissipou-se, fazendo surgir a figura colossal de um homem: sua roupa cheia de plos, bem aderida ao corpo, delineava formas musculosas e peito largo. Asas vermelho-sangneas erguiam-se atrs de suas costas e dos ombros caa uma capa vaporosa cinzenta que se estendia por trs, perdendo-se na penumbra. A capa parecia ter sido urdida de um nmero infindvel de rostos humanos, cujos contornos imprecisos se fundiam num s, e apenas seus olhos fosforescentes feito brilhantes ardiam na massa nevoenta. Os traos regulares do rosto comprido e magro transbordavam de astcia e fora poderosa: os olhos brilhavam como fogo abrasador, enquanto dois feixes fosforescentes, que se irradiavam de sua fronte, tinham o aspecto de chifres curvados. Sado-o, Sarmiel! - pronunciou Dakhir fazendo uma mesura ao estranho indivduo que tinha o aspecto de pessoa real. Em seguida, virando-se para Supramati, que calado e pasmo examinava o visitante, acrescentou: Estenda a mo, irmo, ao seu novo aliado, senhor dos espritos que erram na primeira esfera do nosso planeta. A ele so submissos milhes de criaturas malficas, invisveis, descontentes, revoltosas e nocivas, descartadas para o espao depois da vida, cheia de leviandades e delitos. Ele o servir e ajudar quando for necessrio. Dominando o tremor interno, provocado pela viso daquela inusitada criatura, Supramati estendeu a mo. No instante em que os dedos deles se juntaram sob o crculo mgico, do basto de Dakhir espargiu uma chama que, semelhana de uma flecha gnea, perfurou as suas mos, selando assim a aliana celebrada. Um sorriso enigmtico percorreu o rosto do terrvel demnio e o seu olhar flamejante pareceu querer sugar o rosto plido, mas decidido de Supramati.

No me tema! - disse ele em voz sonora e gutural. - Quando voc conhecer os meus sditos, convencer-se- que em suas almas h tanto bem quanto mal. No nos erguem capelas; no se defuma o ldano em nossa homenagem; no nos entoam hinos de louvor, no entanto, nenhum crime, nenhuma queima ou desgraa perpetrada pelas nossas mos. Somos apenas "demnios" e todos ignoram como difcil o nosso trabalho para o bem de nossos irmos na humanidade... Alis, sempre assim! A gratido para os benfeitores consagrados, canonizados; os carrascos amaldioam-se e os juizes glorificam-se. Um toque de zombaria soava nas palavras do gigante. Recusando-se com um gesto brusco a sentar-se na cadeira e continuar a conversa, o esprito deu um passo para trs. Pela sala passou silvando uma rajada fria de vento e a viso desapareceu na coluna de fumaa negra. Quando se dissipou o ltimo remoinho da nvoa negra, Dakhir pronunciou uma nova frmula de invocao e desenhou no ar um novo sinal cabalstico. Um minuto depois junto ao crculo mgico, apareceu outro espectro. No era um gigante como o seu predecessor. Era um jovem alto e esbelto; o traje vermelho que aderia ao seu corpo delineava suas formas maravilhosas. Seu rosto plido e transparente distinguia-se por uma beleza funesta. Nos grandes olhos negros e impenetrveis, fulgia uma expresso de energia invencvel, misturada com uma fria crueldade. O sorriso que brincava em seus lbios purpreos e os dentes alvos como prolas denotavam algo realmente diablico. Uma touca justa cobria-lhe a cabea e sobre a fronte, entre duas chamas, erguia-se uma cruz brilhante em forma de chifres. No pescoo, havia uma corrente multicolor da qual pendia, sobre o peito, uma grande estrela de ouro. No brao, enrolava-se uma corda com uma flecha gnea na ponta do lao. Atrs dele, via-se uma larga aurola refulgindo como uma chama de incndio. Ali, envoltos em nvoa fumacenta, estavam postados dois seres em malha negra e cintos vermelhos, longas chamas tremeluzentes atrs das costas e pequenos crucifixos na fronte. O recm-chegado estendeu a mo de beleza clssica, fina e branca, de dedos delgados, e Supramati, quase maquinalmente, estendeu a sua - imediatamente um relmpago selou a aliana entre eles. Desta vez Dakhir fez uma mesura com visvel respeito e disse a Supramati: Esse com quem voc celebrou a aliana o rei das larvas. Voc no precisa saber o nome dele, porque bastam smbolos e frmulas sagradas para que voc possa, quando for necessrio, chamar em seu auxlio tanto ele como um dos seus subordinados. Voc ainda no tem uma noo exata do que so larvas, essas asquerosas e nocivas criaturas que povoam o mundo invisvel espreita dos vivos para destru-los. Para dom-las, necessrio existir um poderoso senhor, tal qual o seu novo aliado.

Mais socivel que o seu predecessor, o senhor das larvas sentou-se na cadeira a ouvi-los, brincando com o anel decorado com uma gema vermelha como uma gota de sangue. Com as ltimas palavras de Dakhir, uma expresso mista de zombaria e cansao esboou-se pelo belo semblante do esprito. As suas palavras, Dakhir, ainda so uma letra morta para o seu discpulo - disse ele com um leve sorriso. Nele ainda esto por demais vivos "o homem caduco" e o psiquiatra moderno para que possa penetrar no nosso mundo, rejeita do to categoricamente pela "imaculada" cincia que s ad mite aquilo que pode apalpar, pesar e dissecar com bisturi. Voc tem razo! O irmo Supramati ainda cego em muita coisa, mas ele tem vontade e obstinao - argumentou Dakhir. - Para crer e entender necessrio enxergar. Eu calculo que em breve estarei com ele em seus domnios e espero que voc possa mostrar-lhe a malfica atividade das larvas e o modo como voc as amansa. Venham, terei prazer em mostrar-lhes o meu reino - prontificou-se sorrindo o estranho visitante. Vocs escolheram uma hora bem oportuna para a visita. A Terra envia-nos profusamente belos exemplares dessas "maravilhosas" criaturas e os encarnados se esmeram em acertar-lhes o gosto. Temos trabalho bea, pois voc mesmo sabe que no h nada mais difcil do que arrancar pessoas de uma mesa bem servida. At mais! Ele levantou-se, fez um gesto de despedida e pareceu ter afundado na penumbra vermelha que, em seguida, dissipou-se. Eu lhe mostrei dois terrveis zeladores da ordem, senhores dos exrcitos do Mal -

disse Dakhir sorrindo ao ver o rosto perturbado e desnorteado de Supramati. Agora ns chamaremos ainda alguns chefes dos operrios das corporaes e espritos inferiores, tais como animais e outros seres. Ante o olhar surpreso, mas agora menos medroso de Supramati, desfilou uma srie de criaturas, um mais medonho que o outro no que dizia respeito sua forma e cor. Ele, provavelmente, sentia aquilo que devia ter sentido o primeiro cientista que descobriu com o auxlio do microscpio o novo mundo, inacessvel ao olho comum. Por fim, a diversidade e enormidade de smbolos e formas que Dakhir pronunciava com corajosa segurana (todos os visitantes o conheciam e ele conhecia a todos) cansaram Supramati; apesar do febril interesse com que ele ouvia e olhava tudo aquilo, sentiu algo semelhante a uma fraqueza. Ao not-la, Dakhir anunciou que para aquele dia j era o suficiente e ambos retornaram ao quarto. Ele deu a Supramati uma taa de vinho e ordenou-lhe que tomasse um banho. Agora, antes de iniciarmos alguma coisa, eu lhe darei uma folga para descansar. Vamos! Nara espera-nos para jantar. Voc mereceu a companhia dela - acrescentou ele dando uma risada.

Supramati, como num sonho, seguiu Dakhir. Sua cabea estava tonta com todas as impresses vividas. Teria ele sonhado ou tudo havia acontecido de fato? Ele temeroso apertou com as mos a testa, coberta de suor gelado, e em sua mente passou o pensamento: no teria ele perdido o juzo e assim j estava no manicmio, ou no teria sido criao de seu crebro doentio toda aquela estranha epopia com o elixir da longa vida e todas as conseqncias de seu encontro com Narayana? Uma sonora gargalhada de Dakhir tirou-o das reflexes. No se assuste! Voc no est louco. Tudo, inclusive a sua encantadora esposa, pura realidade. Um minuto depois j estavam no refeitrio onde os esperava Nara. A dona-de-casa estava alegre e como sempre encantadora. Ela beijou o marido, mas quando ele quis contar-lhe sobre o que vira e ouvira durante o tempo da ausncia, Nara o interrompeu: Vamos jantar! Suas impresses voc poder contar depois do jantar. Dakhir deve t-lo alimentado mal e voc est com fome. De fato, o nosso cardpio deixou muito a desejar - brincou Supramati. Aps o jantar, que Supramati achou delicioso, todos foram sala de estar. Quando se acomodaram diante da lareira, Nara perguntou: E ento? Voc viu a Sua Excelncia, o senhor das larvas? Como ele bonito, no verdade?! Ele seria bem sedutor, no repousasse sobre ele essa responsabilidade nojenta. Voc no quer me obrigar a ter cimes ao admirar to abertamente a beleza do rei das larvas? - observou sorrindo Supramati, beijando a mo da esposa. Instantes depois ele arrematou: Eu gostaria de formar uma noo melhor sobre as larvas. Tudo o que eu sei delas muito pouco. Nara tornou-se sria. Larva, meu amigo, Narayana: um ser que, semelhana da hiena, aproxima-se sorrateiramente de uma pessoa para alimentar-se de seu sumo vital, sugerir-lhe suas prprias paixes insatisfeitas e arrebat-la ao sorvedouro da pobreza moral e padecimentos fsicos. Aquele que voc viu um grande benfeitor da humanidade. Seu nome desconhecido na Terra, ningum sabe quantas vtimas conseguiram se salvar graas energia daquele esprito - um trabalhador incansvel que ajuda, salva e liberta os infelizes. Ele tem que ser visto em ao. Corajoso e frio, ele vence e submete a si os seres mais vis, perigosos, malficos e asquerosos que vagueiam na atmosfera terrestre saturada de decomposies. A tarefa nojenta! Imagine que voc tenha que combater de frente os leprosos; e esta expiao, a que ele se props, s vezes, parece-lhe por demais pesada, mas ele busca foras em sua energia de ferro. Sim, na energia, e tambm na crueldade - observou Supramati.

Naquele meio em que ele age, ambas so necessrias. Voc nem pode imaginar o que acontece na primeira camada atmosfrica que envolve o nosso globo terrestre. Voc entender melhor quando fizer uma excurso ao mundo desconhecido. Ser pior do que aquilo que voc me mostrou em Veneza? Oh, sim! Ainda mais, porque totalmente diferente - assegurou rindo Nara.

Captulo IV

Aps duas semanas dedicadas ao descanso, e que passaram num clima de animao, Dakhir disse certa manh que era hora de reiniciarem o trabalho, pois eles teriam que fazer a excurso ao mundo invisvel, o que exigiria preparativos especiais. Ao entrarem no quarto contguo ao laboratrio, Supramati quis saber que tipos de preparativos seriam necessrios para a viagem zona do alm-tmulo. Para penetrarmos no mundo invisvel, preciso, antes de tudo, livrarmos da carga do corpo... Supramati desatou a rir, mas Dakhir prosseguiu imperturbvel: Eu o entendo. Parece-lhe ridculo o que eu acabei de dizer; entretanto, a magia dispe de recursos que nos deixam naquele estado, parecido com o de um morto... simplesmente impossvel! No to impossvel como parece. Um estado semelhante acontece com os sonmbulos, como se perdessem o seu peso e adquirissem uma leveza extraordinria. Muitos j viram como eles conseguem passar por aberturas, intransponveis para os outros, galgar telhados e passear pelas cornijas em que mal cabe o p de um homem. Em outras palavras, eles andam inclumes por onde quer que seja, contanto que no sejam assustados. A diferena que nos sonmbulos esse estado involuntrio, eles no podem provoc-lo mesmo que queriam, enquanto que um mago dispe desse recurso seguro e conhece as leis que devem ser acionadas; assim, ele alcana resultados bem melhores. Desta forma, o mago consegue praticar a levitao, andar pela gua, diminuir as distncias correndo na velocidade de um p-de-vento e outras coisas. Nos Atos dos Apstolos, cita-se o caso do mago Simo que se elevava no ar.

Sim, mas com a ajuda do demnio? sorriu Supramati. Ainda que fosse! Aos ignorantes e cegos, cheios de preconceitos, as foras desconhecidas sempre parecem obras do demnio ou contos de carochinha - observou com desprezo Dakhir. Com a chegada da noite, Dakhir levou Supramati a um quarto que este ainda no havia visto antes e fechou a porta atrs de si com tanto cuidado, que dessa no ficou um mnimo sinal por fora - a parede parecia inteiramente macia. Aqui ns temos um laboratrio preparado para a viagem que vamos empreender. O ar ambiente tem uma composio especial. Vamos sentar e conversar at meia-noite, at chegar a hora de eu lhe dizer o que fazer. Supramati olhou em volta, mas nada conseguiu enxergar. O quarto estava escuro; no havia nem velas nem lmpadas acesas, apenas atravs de uma janela gtica penetrava uma penumbra noturna plida. Junto janela havia duas cadeiras. Dakhir, que parecia conhecer o ambiente, levou o seu amigo perto da janela; eles se sentaram e comearam a conversar. A lua subiu e a sua plida mas viva luz inundou o quarto, permitindo que Supramati o examinasse detalhadamente. A sala tinha um formato circular, praticamente do mesmo tamanho que o laboratrio; no centro havia uma espcie de pavilho com paredes de vidro. Mais adiante, no fundo, divisava-se uma piscina onde jorrava um chafariz, cujo jato brilhava em luzes coloridas ao luar. Quando o velho relgio do castelo bateu a meia-noite, Dakhir levantou-se. Vamos! Precisamos tomar um banho. Ele despiu-se rapidamente e pulou na piscina. Supramati no se fez de esperado e seguiu o seu exemplo. Parecia-lhe que nunca se sentira to bem. A gua no estava fria mas primava por seu incomum frescor. Ela parecia acariciar o corpo e fortalecer cada fibra do ser. O peito respirava com uma extraordinria leveza e todo o corpo parecia leve, flexvel e forte como nunca. Supramati bem que ficaria por toda a noite naquela maravilhosa piscina, mas Dakhir, aps alguns minutos, ordenou: J suficiente! Saia e se vista! Ele apontou para um objeto de tamanho no maior que um leno dobrado em quatro, que estava sobre a mesa. Supramati olhou desconfiado para o objeto apontado e em seguida observou rindo: Escute, meu amigo! Uma pessoa do meu tamanho vai caber naquilo?

Fique calmo! Sou to alto como voc e a indumentria est de encomenda. Veja s! Antes de tudo voc dever abri-la e coloc-la pelos ps. Balanando a cabea, Supramati desembrulhou o pacote e tirou um traje parecido com uma malha, incluindo at um capuz para a cabea; entretanto, pelo tamanho, nele mal caberia uma criana de dois anos. Sua desorientao aumentou ainda mais, quando Dakhir vestiu o traje que se assentou facilmente em todo o corpo. Sem mais hesitar, Supramati comeou a vestir a malha que se verificou extraordinariamente elstica. Era feita de um tecido muito fino e macio, como uma cambraia das mais delicadas, e a sensao era de se estar vestido numa pele acetinada. A malha assentou-se justa no corpo, sendo que no s os braos estavam cobertos mas tambm a cabea, ficando aberto apenas o rosto. No obstante, o traje no tolhia os movimentos e, apesar de toda a sua leveza, era quente como pele e pinicava todo o corpo, como se da vestimenta irradiasse corrente eltrica. A sensao geral era de que a malha houvesse aderido prpria pele, adquirindo uma colorao cinza-prateada. , at difcil imaginar um roupa mais estranha que esta. De que feita? Nunca vi nada parecido disse Supramati, fazendo uma srie de movimentos para certificar-se de que ela no os dificultava realmente. Oh! Existe muita coisa que voc ainda no viu, meu caro doutor Ralf Morgan. Esse tecido difcil de ser encontrado em Londres. Ns o chamamos de "pele dos espritos" - devolveu rindo Dakhir. Com os diabos! Fiquei na mesma, meu caro mestre! Ento os espritos trocam de pele feito as cobras, enquanto vocs a aproveitam para traje de viagem ao reino das sombras? Exatamente! Esse traje indispensvel para embrenharmos nas cidades dos mortos, no espao da quarta dimenso - explicou Dakhir, abrindo uma das paredes do pavilho de vidro e convidando o amigo a segui-lo. Supramati viu-se num quarto vtreo, iluminado pela suave luz azulada do luar. No centro havia uma mesa de vidro e duas cadeiras. Sobre a mesa, numa caixa aberta viam-se duas taas, cheias de lquido flamejante da cor de safira e duas roscas doces. Sentemos e tomaremos ao xito de nossa viagem - props Dakhir, acomodando-se na cadeira. Ao dizer isso, ele secou de um gole a taa e Supramati seguiu-lhe o exemplo. O lquido que ele tomou parecia fogo, mas no ardia; seu gosto lembrava um forte vinho envelhecido. Mas o que realmente deixou-o admirado foi o gosto da massa escura. Ela derretia na boca, era suave feito mel, e de sabor e aroma lembrava rosas, lrios, baunilha e outros elementos cheirosos.

Dominado por agradvel languidez, Supramati recostou-se no espaldar da cadeira; uma sensao de bem-estar jamais experimentada se apoderou dele. Uma brisa refres-cante soprou-lhe no rosto e, em seguida, ergueu-o e balanando suavemente o levou ao espao. Quanto tempo perdurou aquele inconsciente esquecimento cheio de deleite, ele no tinha a menor noo. Abrindo os olhos, ele viu que ainda estava sentado na cadeira, a porta do pavilho encontrava-se aberta e atrs da soleira estava Dakhir, mas a Supramati pareceu que ele estava pairando no ar. Vamos! Est na hora - disse Dakhir. Supramati levantou-se e imediatamente soltou um grito ao perder o equilbrio. Ele levantou-se no ar e deu algumas cambalhotas, e quanto mais ele tentava se pr em p, tanto mais se virava pairando no ar. Sem parar de dar cambalhotas, ele se debatia feito algum que se afogava. Assustado, Supramati comeou a gritar, enquanto Dakhir ria feito um louco. Enraivecido pelas gargalhadas ofensivas do amigo e mentor, ele resmungou ofegante: No hora de rir, quando estou arriscado a quebrar o pescoo! Oh! Voc no corre esse risco. Ser que voc se esqueceu de que imortal? atalhou Dakhir sem parar de rir. Pegando Supramati pelo brao e apoiando-o, ele disse: Ande pois, como voc anda normalmente! Eles deram alguns passos juntos. Oua! - observou Supramati. - Eu no sinto nada embaixo; parece que estou andando sobre molas que se dobram aos meus ps. Chega! No fale besteira, meu caro doutor! Voc se esqueceu de que eu lhe disse que o nosso corpo perderia a gravidade. Agora estamos, por assim dizer, pairando no ar. Supramati olhou em volta. Ao ver ao redor de si um escuro espao aberto, ele desvencilhou-se da mo de Dakhir, soltou um grito surdo e comeou a fazer esforo desesperado para se agarrar a alguma coisa. Que mania de gritar a toda hora! Por que que voc est gritando? Est com medo de machucar-se? Entenda que ao perder a gravidade voc no poder nem cair nem bater em nada, ainda que o joguem contra o cho. Ao finalizar as palavras, Dakhir bateu fortemente em sua nuca. Supramati deu uma cambalhota e desceu at o cho, mas quase que imediatamente subiu, feito uma pena, at a altura de seu companheiro. Apesar da observao justa de seu mentor, ele no conseguiu conter um novo grito. Desta vez riu de seu prprio mau hbito e acrescentou, pegando Dakhir pelo brao: J estou comeando a me acostumar a manter o equilbrio! Assim, podemos ir! Mas... para onde iremos? Vamos conhecer algum planeta?

Oh! Voc ainda ter muito tempo para empreender uma viagem to longa. Agora vamos nos limitar a fazer uma visita aos cintures atmosfricos que cercam o nosso planeta, ao mundo ignoto ao olho de um homem comum. Eles se aproximaram da janela, que Dakhir abriu acionando uma mola escondida na parede. Uma forte rajada de vento que invadiu o quarto jogou-os para trs e, em seguida, arrebatou-os para fora. Cerca de um minuto rodopiaram no ar. Tudo em torno deles assobiava, crepitava e soava estranhamente. Subitamente, a cinzenta atmosfera em volta se abriu num crepitar seco, deixando antever um espao inundado de luz vermelha. Ao mesmo tempo, at os ouvidos de Supramati chegaram sons caticos e desafinados, enquanto um sopro de ar ftido o envolveu tolhendo-lhe a respirao. O que isso significa? Onde estamos? indagou Supramati, olhando surpreso para o espao infinito que se estendia diante deles, imerso em luz purprea. o espao da quarta dimenso - os domnios dos desencarnados - respondeu sorrindo Dakhir. Conseqentemente, neste momento ns somos uma espcie de defuntos? No deixa de ser! Estamos penetrando no reino deles e vivemos a impresso semelhante quela que experimenta um esprito que abandona o invlucro carnal. Em meio a essa conversa, uma corrente poderosa continuava a arrast-los com velocidade estonteante. Parecia a Supramati que eles se aproximavam de uma cidade cujas construes emergiam da penumbra avermelhada. Descendo com a mesma rapidez, eles se viram numa rua emoldurada por casas altas de contornos indefinidos. Em volta delas apinhavam-se homens e mulheres de todas as idades e posio social, inclusive crianas e animais. Todos corriam, empurravam-se e parecia estarem ocupados com alguma atividade febril. Nos rostos nutridos estavam congeladas expresses de preocupao, os olhos ardiam, mas era difcil entender para onde, de fato, corria aquela multido. Estavam vestidos em diferentes tipos de trajes ou simplesmente cobertos em trapos pretos; mas a maioria estava nua e tinha aspecto repugnante. Muitos daqueles sujeitos ora sumiam dentro de casa, ora corriam de novo para a rua. So todos espritos? Correto? - informou-se Supramati. Sim, ns viemos parar numa grande cidade, mas qual... - no sei lhe dizer, pois no estamos em condies de uma vida material e estou com dificuldade de me orientar de imediato. Assim, o que ns podemos ver bem so as casas invadidas por espritos para satisfazerem, na medida do possvel, os seus desejos carnais. So os descarnados que, como voc v, correm perdidos em todas

as direes, invejosos dos vivos, cheios de todos os desejos animais. So criminosos indolentes, cuja vida passou inutilmente e que agora esto repletos de dio e inveja em relao aos encarnados. E quem so aqueles que se atiram para todos os lados feito loucos, com olhar desorientado e assustado? So os tolos que no querem entender que esto mortos e procuram por suas casas. Mas vamos adiante! Aqui no h nada de interessante - acrescentou Dakhir. Enquanto eles prosseguiam, j mais devagar, Supramati perguntou: Por que a atmosfera que nos envolve est tingida em cor vermelha? o reflexo das emanaes carnais aqui acumuladas - respondeu Dakhir, detendo-se diante de uma grande casa com entrada imponente. Sem tocar com os ps nos degraus da escada, eles entraram numa imensa sala, profusamente iluminada, onde estava em vias de terminar o banquete de um grande nmero de cavalheiros e damas. A mesa com prataria, loua de cristal e flores era uma desordem geral. A imensido de garrafas vazias, os rostos vermelhos dos comensais, seus olhares embaciados e aflitos eram uma prova de que as oferendas de vinho em homenagem a Baco foram abundantes. Alguns homens dormiam roncando alto. Desta vez diante de nossos viajantes estavam pessoas vivas, ou melhor, encarnadas, como comprovava a vivaci-dade das cores, a definio dos contornos e a solidez dos corpos. Entretanto, em volta deles comprimia-se um grande nmero de criaturas repugnantes que pertenciam ao mundo do alm. Elas grudavam-se aos encarnados e aos pratos de comida que estavam sobre a mesa. Os olhares vorazes que as criaturas lanavam para os comensais e para os restos da comida denotavam claramente o quanto nelas ainda estavam vivos todos os desejos carnais; algumas encostavam seus lbios roxos boca dos vivos, aspirava-lhes o sumo vital, o qual, em forma de um vapor rosado, partia-lhes da boca, dos membros e acima da cabea. A alguns passos da mesa, refestelado na poltrona, estava um homem, ainda jovem, pelo visto mortalmente embriagado. Seu colete estava desabotoada, a gravata arrancada e o rosto plido salpicado de manchas vermelhas. Envolvendo o seu pescoo com os braos cheios de chagas, a ele estava abraada uma mulher totalmente nua. Os longos e densos cabelos emaranhados envolviam-na feito uma capa de fumaa negra. Sua boca estava encostada na regio onde estava o corao do homem. A mulher sugava com tanta fora a vitalidade de sua vtima, que o rosto do jovem se cobriu de lividez cadavrica, o peito tremia e convulses doloridas percorriam por todo o seu corpo. Em meio algazarra, risos e animao do banquete ainda em curso, ningum parecia perceber que ele provavelmente estivesse sofrendo, debatendo-se como se fosse num pesadelo.

No obstante, o asqueroso ser dava seqncia sua ao criminosa, apesar dos esforos de dois homens em trajes negros, nos quais Supramati reconheceu os ajudantes do esprito denominado por Dakhir de rei das larvas. Ambos, com visvel aflio, estavam inclinados sobre o homem agonizante e empurravam a mulher, lanando sobre ela feixes de fagulhas eltricas; mas tudo era em vo. Ela, feito uma aranha, agarrou-se sua vtima e se recusava a solt-la. Ento um deles levou at os lbios uma corneta escarlate que levava no pescoo, e ouviu-se um som penetrante. Imediatamente no ar surgiu um ziguezague gneo que rever-berou com todas as cores do arco-ris. A larva estremeceu, mas, pelo visto, a sede do prazer era mais forte que o medo, pois ela com a fria redobrada grudou-se ao jovem embriagado, cujo rosto se cobriu subitamente de rubor acentuado e a boca ficou semi-aberta, como se ele estivesse se sufocando. Neste instante, ouviu-se um silvo agudo e um leve crepitar; a dois passos do repugnante casal deitado na poltrona, surgiu a figura alta do rei das larvas. Seu semblante intemerato era belo e terrvel; seu olhar estava flamejante e severo, envolto numa aurola prpura fumacenta. Ele ergueu o brao e uma flecha gnea atingiu a larva na nuca; ela virou-se como se mordida por uma cobra, mas no obedeceu ordem de deixar em paz a vtima. Ento um novo jato de fogo atingiu-lhe um outro centro nevrlgico e ouviu-se um sibilar, tal qual produzido por gua ao cair sobre um ferro em brasa. A mulher soltou um dilacerante grito rouco, prostrou-se na terra e rastejou at o domador. S ento Supramati viu o seu belo rosto, branco como giz, no qual em mancha sangnea se salientavam os seus lbios. Todos os vcios e paixes se refletiam ento naquele rosto, deformado pela expresso de terror e dio infernal. De chofre, ela deu um salto para trs e novamente se lanou sobre o jovem deitado na poltrona. Este soltou um gemido e levou a mo ao corao. Um olhar irado fulgiu nos olhos do senhor das larvas. A corda luminosa que pendia em seu brao desenrolou-se com a rapidez de um raio, envolveu a criatura asquerosa, amarrou-a e jogou no cho. Ao mesmo tempo, um feixe de fagulhas espargiu sobre a mulher. Ela rolava feito uma esfera negra, coberta de cerdas gneas, uivando, assobiando e exalando um odor sufocante de cadver. Imediatamente alguns auxiliares do senhor das larvas a agarraram e arrastaram para o espao. Ento o esprito virou-se para Supramati e o seu mentor. Minhas saudaes, Dakhir, e a voc tambm, nosso novo companheiro! Deve ser a primeira vez que voc presencia uma morte oculta, que os mdicos naturalmente no iro aceitar, atribuindo-a ao infarto ou paralisia cerebral. H-h-h!

Um riso de escrnio soltou-se de seus lbios. Em seguida, fazendo um sinal de despedida com a mo, ele desapareceu to inesperadamente como viera. O olhar de Supramati, involuntariamente aterrorizado, deteve-se na poltrona. No rosto do jovem congelou-se a imobilidade da morte. S ento o estado dele chamou a ateno de outros, pois alguns dos presentes se inclinaram sobre o cadver tentando reanim-lo, enquanto outros, com rostos plidos e aflitos, comprimiram-se em volta. Por que que ele no quis salvar o infeliz? Voc me disse que o senhor das larvas livra da morte inmeras vtimas - indagou Supramati. Inmeras, mas no todos. No caso, as condies eram por demais precrias. Exaurido pelos abusos, o organismo era uma presa fcil para a diablica sacerdotisa dos vcios, atrada para c por desejos impuros e emanaes da orgia. Enfraquecida pela beberagem, a alma da vtima no teve foras para se defender contra o insacivel vampiro, sedento de fluidos carnais e... assim essa pessoa pagou com a vida pela sua loucura. O salvador apareceu muito tarde; ele no conseguiu segurar a vida que se esgotava feito um rio, do interior do organismo exaurido pela devassido. E quantas mortes semelhantes so registradas nos anais do Universo! - concluiu suspirando Dakhir. Qual ser a sorte dessa alma que to inesperada e obscenamente foi arrancada do corpo durante uma bacanal? - perguntou Supramati. Ela permanecer em busca vida dos prazeres tal qual o seu carrasco. Sfrega e eternamente insatisfeita, ir vagar pelos locais consagrados volpia, tentando tomar dos encarnados qualquer partcula que seja de suas sensaes. Mas vamos! Quero lhe mostrar o cemitrio. Voc ainda no viu com um olhar clarificado um lugar assim. Para voc isso ser um espetculo muito interessante Um minuto depois, Supramati divisou um imenso espao cercado de muro e cheio de rvores, atravs de cujas folhagens se via uma infinidade de cruzes. Dos dois lados das alamedas arborizadas erguiam-se monumentos morturios, luxuosos e humildes. Alguns tinham sido erguidos recentemente, outros, antigos, cobertos de musgo, estavam com as inscries j gastas. Ao longe, viam-se as paredes brancas e a cpula dourada de uma igreja. A lua inundava com a sua luz plida o lugar da "paz eterna", como o chamam os homens, ainda que ele no d nenhuma paz aps a vida tempestuosa, pois ali, pelas alamedas, assim como antes pelas ruas, corria ou andava lentamente uma verdadeira multido de seres preocupados, desorientados, lgubres ou rancorosos. Junto a diversos monumentos, encontravam-se em p seres cinzentos, vaporosos e de contornos indefinidos. Eles pareciam tristes e um tanto desorientados; outros, no entanto, conversavam exaltados.

Entre os ltimos, via-se que os seus rostos estavam desfigurados de dio e inveja. Os rpidos olhares desafiadores, cheios de rancor, atravessavam a atmosfera, e os rolos de fumaa negra que os envolviam indicavam que as conversas nem de longe eram calmas e amistosas. Dakhir deteve-se perto de um desses grupos e fez um sinal a Supramati para que ele ouvisse a conversa. Ali, separados por uma pequena distncia, havia dois monumentos, diferentes um do outro. Um deles era uma magnfica capela de mrmore branco, sobre a qual repousava um busto, representando um homem jovem e bastante bonito, mas de aspecto vil. Uma magnfica grade de bronze dourado cercava o monumento ornado por um grande nmero de coroas de metal e porcelana. O outro tmulo tinha um aspecto humilde e abandonado e, sem dvida, estava esquecido. O piso de pedra era coberto de mato, a cruz de ferro estava meio cada, a grade tinha sinais de destruio. Nos degraus de mrmore da capela estava sentado o original do busto e ouvia com escrnio o discurso ardente de um homem plido e magro, com semblante de uma ave de rapina, que gritava e gesticulava intensamente: Voc no tem com que se orgulhar, seu desprezvel parasita, e se pavonear com o opulento monumento de corado com as flores! Em vez de me reprochar pela modesta cruz que se ergue no meu tmulo, voc deveria lembrar que essa capela de mrmore foi construda com o meu dinheiro, o mesmo que foi utilizado para sustentar a sua vida de farra, seu miservel, e da desprezvel mulher que eu tirei da sarjeta e tornei minha esposa. Hi-hi-hi - fez o outro. - No deite a sua blis, seu velho harpago! Voc sempre primou por modstia, tanto que sua esposa, no desejando irrit-lo, ergueu-lhe um monumento bem ordinrio. Eu sou diferente: eu sempre gostei do luxo. Alis, eu entendo o seu rancor: voc tem inveja dos lamentos e lgrimas que no se poupam em minha memria. O primeiro riu zombeteiro. Ora! Eu no tenho nenhuma inveja do amor e dos lamentos desperdiados por voc. Eles murcharam tal qual as flores frescas que sua boa mulher no tem trazido desde o dia em que encontrou um novo amante para consolar-lhe a velhice. Fique voc enterrado dezoito anos como eu e nem o seu nome ser lembrado! Mas isso no tem nada a ver com a revoltante ingratido da velha bruxa em relao a mim, seu benfeitor. Tenho vergonha dos meus conhecidos e daqueles que vm me visitar, quando eles vem esta ordinria lpide e se convencem da falta de respeito que me tem a miservel. Ela no rezou por mim nenhuma missa de rquiem e eu, para minha prpria ignomnia, tenho que correr s missas que so rezadas para outros. O proprietrio da capela de mrmore objetou sarcasticamente e a discusso aumentou, mas Supramati, sem ouvi-la, disse que no valia a pena escutar as altercaes de dois patifes.

Meu Deus! Ser possvel que os espritos possam se vangloriar de monumentos tumulares e que tais bobagens, meramente terrenas, incitem neles rivalidades e provoquem discusses? observou Supramati. Voc sempre se esquece de que a morte diz respeito somente ao invlucro carnal de homens. Do calabouo carnal, que chegou ao estado da destruio, a alma se depara com todas as fraquezas e virtudes; um gabola, que no tem mais nada a contar do que vantagens, vangloria-se da elegncia de seu tmulo ou suntuosidade de seu monumento. Em geral, como voc v, as pessoas imaginam erroneamente que alm do tmulo reina uma absoluta impassibilidade e aniquilamento. Todos os sentimentos humanos de um desencarnado, suas alegrias e infelicidades, afetam tambm o mundo invisvel. Para voc se convencer disso, escute o que se fala aqui. Olhe, por exemplo, para aquela mulher, marcada com uma cruz vermelha. um sinal que indica que ela acabou, voluntariamente, com a sua vida. Aquela infeliz, como toda pessoa viva, sente a necessidade de abrir-se com algum, e, ao encontrar uma alma simptica, confia-lhe a sua desgraa. A parte do cemitrio onde eles estavam era bem mais humilde e os monumentos de mrmore e bronze deram lugar s cruzes de madeira. Perto de um desses tmulos com uma simples cruz branca, totalmente coberto por flores vivas, estavam em p duas sombras - a de uma suicida e a de uma moa de rosto triste e delicado. As vestes cinzentas da ltima eram cobertas por uma espcie de vu prateado e leve. A jovem, pelo visto, tentava consolar a sua interlocutora - um esprito sombrio e sofredor, vergando uma capa pesada e escura. Voc no est em condies de entender totalmente a minha infelicidade - dizia amargurada a suicida. Voc uma pessoa feliz! Os seus pais e o noivo choram por voc; flores frescas sempre lhe enfeitam o tmulo e os espritos olham com respeito para esses indcios das recordaes que voc deixou para os outros... Por fim, voc pode se deslocar livremente, e eu?... O que eu j no passei? Sozinha, sem teto e sem comida, eu fiquei desesperada e acabei com a vida. Ser que eu no fui suficientemente castigada pelo fato de ter sido infeliz, de que o bem mais valioso do ser humano - a vida - tornou-se insuportvel, e eu me rebelei contra o destino injusto que me sentenciou sem motivos, negando-me um lugar ao sol, ao qual eu tinha tanto direito como todos os outros? Acredite-me, no fcil morrer, quando em um jovem e forte organismo arde a vontade de viver e ser feliz! E a despeito disso, um destino funesto perseguiu-me at na prpria morte. Os homens, to cruis como o prprio destino, negaram-me at um tmulo decente: enterraram a suicida, como se ela fosse um animal imundo, num canto do cemitrio, sem orao, sem ao menos colocarem uma cruz sobre a terra que a cobre!

No entanto, eu preciso de oraes para depurar-me de miasmas que me sufocam, para livrarme do fardo da matria que habita no meu corpo fludico que no pde ser esgotado nem pela pobreza, nem pelas lgrimas e nem pela luta cruenta da minha existncia terrena. Anime-se, minha pobre e infeliz irm! - disse em tom afvel o esprito da outra jovem. Provavelmente logo iro rezar uma missa de rquiem por mim; ento voc vai comigo igreja e ns rezaremos juntas. Os cnticos, o aroma do ldano, as oraes e lgrimas dos presentes tero um efeito benfico sobre voc. Eu lhe darei apoio e vou rezar com voc, e a misericrdia divina dissipar as sombras que a afligem. Depois, voc no pode isolar-se. Reze e chame pelos amigos do espao; eles viro para consol-la. No se amargure pelo seu tmulo solitrio. Deus no faz diferena entre ele e o monumento mais suntuoso. A grama e as flores tambm crescem a e junto delas vm brincar as crianas - esses anjos terrenos que em sua inocncia e despreocupao danam e cantam sobre a terra que nos cobre, sem pensar na fatdica hora em que elas depositaro o seu fardo e tomaro lugar entre ns: uns - chorados por seus familiares, outros -alquebrados, exaustos e esquecidos por todos. Pense em tudo isso, minha pobre irm! Ento o passado lhe parecer menos amargo e voc se esquecer dele para pensar no futuro. Descansaremos aqui - sussurrou Dakhir. - Eu gosto destas cidades de mortos. Aqui a vida bem especial; o reflexo das ambies e vaidades terrenas, mas aqui tambm pairam, semelhana de vapor prateado, os mais puros sentimentos espirituais, como, por exemplo, o verdadeiro amor, pois junto ao tmulo no h segundas intenes. Somente afeies francas e lgrimas sinceras acompanham o homem para o alm, enquanto a infelicidade, que aqui se expressa, mera essncia de propenses que nada exigem e nada esperam, mas se ligam somente aos vnculos mortos das recordaes do amor e do bem, que absorvem todas as ofensas e discordncias. Para ns, o nosso estranho destino veda um descanso sob a terra para a preparao de uma nova vida, mas eu gosto destas cidades dos mortos, onde repousam tantas geraes extintas. Eu o entendo. Assim como voc, eu gostava de visitar cemitrios para refletir. Em Londres eu costumava ir l aos domingos. Na poca eu era muito pobre e doente e a minha transferncia para a eternidade parecia estar prxima. Horas a fio eu pensava sobre a vida do almtmulo, olhando para as lpides e cada uma delas se apresentava para mim um mistrio. Sob cada montculo tumular, espreitava-se a essncia da vida humana e a lpide ocultava dos mortais o seu eplogo. Que rico arquivo - pensava eu - seria aquilo para os romancistas caso fosse possvel erguer as tampas e estudar as vidas desaparecidas - vidas verdadeiras, genunas e no falsas como as crnicas de louvao. Quantas tragdias desconhecidas e aventuras extraordinrias teriam sido descobertas!

Continuando a conversar, eles andavam pelo cemitrio e examinavam seus habitantes quando, subitamente, Supramati gritou: Olhe, Dakhir! O que aquilo esquerda? Pode se pensar que uma espcie de procisso. Mas por que, ento, entre aquela multido se acham animais: bois, ovelhas e aves? E tudo aquilo geme, chora e reza. No posso entender para onde se apressa toda aquela multido tresloucada. Por acaso eles esto fugindo de uma iminente catstrofe? Dakhir sorriu. Sim, haver uma catstrofe fatal para qualquer ser vivente. Essa catstrofe a morte! As pessoas morreram, mas os animais foram abatidos nos matadouros e os fluidos da decomposio atraram-nos uns aos outros. Tanto uns como os outros no conseguem atinar a mudana inesperada da existncia deles. Os mais infelizes so os descrentes. Ao se verem vivos e com todos os rgos, eles teimam em acreditar que ainda se acham na terra e procuram avidamente por multido, pois a solido assusta-os. Outros procuram por amigos para pedir esclarecimentos a eles. Mas, uma vez que a maior parte ainda se encontra materializada, os fluidos da decomposio os unem e eles se formam em grupos, conforme voc os v aqui. Era com misto de curiosidade e medo que Supramati olhava para aqueles fenmenos, inditos para ele. O mundo desconhecido no qual ele havia penetrado to estranhamente o interessava cada vez mais. As recordaes, no incio vagas e em seguida cada mais ntidas, afluram ao seu crebro. Ele j havia estado ali; ele j vira aquele espao imerso em luz sangnea e havia passado pela sensao de medo e desorientao que se refletia nos rostos assustados daqueles seres que passavam ao lado dele. Mergulhado em seus pensamentos, Supramati no notava o tempo passar e ficou extremamente surpreso, quando eles retornaram ao tmulo da jovem mulher. Pelas alamedas sombreadas agora andavam pessoas vivas e o nmero dos desencarnados havia diminudo significativamente. Agora j dia e todo tipo de pessoas vem visitar os tmulos de seus familiares explicou Dakhir. - Aqui as mudanas do dia e da noite so imperceptveis. Mas veja! L est vindo a famlia da jovem que ns vimos. Eles esto levando flores frescas. Oua! Agora est claro e eu estou com medo que nos vejam. Uma vez que ns estamos pairando no ar, os pedestres podero se assustar ao verem visitantes to incomuns. Isso seria terrvel! melhor a gente ir embora! Fique tranqilo! Agora, graas s condies em que nos encontramos, ningum conseguir nos ver. Tranqilizado quanto a isso, Supramati comeou a examinar os parentes do esprito que lhe sugeria simpatia.

Era a famlia de um operrio, composta de dois homens, uma mulher de meia-idade e trs crianas: duas delas eram meninas, uma de doze e outra de dez anos. Todos seguravam flores nas mos e comearam a enfeitar unidos o tmulo, tirando as flores murchas e envolvendo a cruz com grinaldas frescas. Somente a filha mais velha no participava no trabalho comum e vagueava perto do tmulo. Ela deteve-se pen-sativmente junto ao tmulo da suicida e depois se sentou na grama, junto ao monumento da irm. Era uma criana dcil, plida, magra e doentia. Seus olhos pensativos, que ardiam febrilmente, parecia atravessarem o mundo do alm e toda a sua figura respirava tristeza consciente e angstia de ser, cujo destino era morrer ainda nova. De repente, Supramati viu surpreso que junto da menina surgiu a figura indefinida da falecida e colocou-lhe a mo sobre a cabea. Um minuto depois, a menina levantou a cabea e disse: Mame! A Mary tem tantas no-te-esqueas-de-mim que no haver espao para colocar todas que trouxemos conosco. Deixe-me fazer uma coroa e lev-la naquele cantinho junto ao muro, sobre o tmulo abandonado, onde nem ao menos h uma cruz. Pelo visto ningum ama nem tem d do pobrezinho. A bondosa mulher olhou surpresa para a filha e, assentindo com a cabea, disse: Bem, j que voc quer, faa uma coroa. E no se esquea de orar pela alma do desconhecido. A menina ficou muito feliz e iniciou o trabalho. De dois pauzinhos ela fez uma cruz, ornou-a com as flores e fez uma coroa. Em seguida, depois de chamar a irm, ela correu ao tmulo solitrio da suicida, praticamente perdido no meio do mato. Ali ela enterrou a cruz, depositou a coroa e ps-se de joelhos, enquanto a sua irm lhe seguiu o exemplo. Vamos orar, Liza, pela alma do pobre falecido que jaz aqui. Que Deus d paz sua alma e bem-aventurana no paraso! Tenho grande pena dos esquecidos; eles me parecem mais infelizes que os mendigos de rua. Aqueles podem, ao menos, estender a mo e suplicar ajuda dos passantes, enquanto um morto no consegue nem pedir uma orao para si. Por isso o dever de todos pensar neles. Juntando as mos em prece, ambas as meninas comearam a orar com ardor. Feito ondas prateadas partiu de suas inocentes almas a orao, inundando como se por uma luz solar o tmulo e a sombra da suicida, que surgiu junto ao tmulo ornado de flores. Todo o organismo fludico do esprito sofredor tremia e parecia avolumar-se sob o efeito daquele mpeto ardente. As sombras que o rodeavam clarearam e a crosta glacial que aderia ao corao perturbado, cheio de dio e queixumes, derretia dando lugar f e esperana.

Est vendo o efeito e a fora da orao? - murmurou Dakhir. - Olhe como o esprito sofredor animou-se e sacudiu de si o peso que o oprimia; como a corrente da vida, fora desta orao inocente, levou a infeliz alma para o caminho da ascenso, do qual ela duvidava, e esta dvida na justia divina, em conseqncia da injustia de homens, foi justamente aquilo que a levou a praticar o suicdio. Juntemos as nossas oraes s oraes dessas crianas - instrumentos inocentes da misericrdia divina e depois prosseguiremos o caminho. Eu ainda quero lhe mostrar muita coisa aqui. E eles voaram novamente, mas, desta vez, levantaram-se para uma altitude maior. A atmosfera tornou-se menos vermelha e mais transparente. Mas ali, tambm, reinava atividade febril e um movimento incessante para frente e para trs. No espao cinza-rosado que atravessavam, eles se cruzavam ora com imensos espritos que passavam por eles com a velocidade do pensamento e que em seu aspecto lembravam gigantescos morcegos; ora com estrelas de diferentes tamanhos e de todos os matizes do arco-ris; ora nuvens cinzentas, nas quais se desenhavam vagamente rostos humanos. Pelo visto, cada um daqueles seres estava ocupado com seus afazeres. Cada qual se dirigia em direo diversa. Ocorria, s vezes, de alguns se juntarem e outras vezes de se reunirem numa mirade de espritos que voava numa massa densa. Estamos cruzando com as corporaes de espritos guiados por seus lderes -

explicou Dakhir. No raro uma ampla faixa de luz ofuscante marcava o vo de um esprito superior, que era sempre acompanhado por um numeroso cortejo. Voc est vendo aqueles cidados celestiais? Eles devem ter recebido alguma misso.

Mas ns no vamos procurar fazer amizade com eles. Para que serviria? observou sorrindo Dakhir. Vamos aproveitar para fazer uma visita a dois grandes espritos: ao chefe dos espritos errantes e a EbnAri, o rei das larvas. So lugares dos mais interessantes.

Captulo V

A mente humana no consegue imaginar os estranhos e terrveis mistrios que se escondem no mundo invisvel. O homem acha que ele j no tem mais o que pesquisar no espao que o cerca: ele determinou as distncias, mediu as temperaturas, analisou a composio das substncias e, no entanto, os seus instrumentos, onde quer que seja, s encontraram o vazio, o frio e a escurido... Reflexes de tal tipo projetavam-se na cabea de Supramati quando ele, com a velocidade do pensamento, voava atravs dos espaos incomensurveis, iluminados diferentemente e cheios da febril animao de nova vida, atividade e paixes - um verdadeiro reflexo da humanidade que povoava o planeta, circulando em torno das camadas atmosfricas que o envolviam. Dakhir havia lhe dito que eles iriam at o senhor dos espritos errantes, maus e infelizes. Vamos at o rei do inferno! - acrescentou ele meio rindo, meio srio. E para qu? - indagou Supramati curioso e alarmado. Para qu? Para estudarmos o mal, sem o qual ns no podemos aprender a fazer bem. No se pode defender-se de um perigo que no se conhece. Justamente a ignorncia que desarma tanto os homens como os espritos - explicou Dakhir. A seguir, erguendo o seu basto, ele comeou a gir-lo sobre a cabea, pronunciando algumas palavras cabalsticas. Alguns minutos depois, na ponta do basto formou-se uma esfera fosforescente, semelhante a um novelo de fios. Dakhir agarrou-a e a comprimiu na mo. Supramati sentiu imediatamente como se eles fossem suspensos por uma corrente e levados numa nova direo.

Logo aquela atmosfera cinza-rosada em que eles voavam deu lugar a um denso e pesado ar, saturado de vapor acre sulfuroso. Uivava vento tempestuoso, ouvia-se o rolar de troves e a colorao do espao em volta ia passando do amarelo-laranja ao negro, salpicada de raios brilhantes. Rajadas de vento clido envolveram-nos com o odor sufocante de sangue e carne queimada. Agora eles estavam voando por entre uma fumaa negra. Subitamente diante deles se abriu um imenso espao, iluminado por luz purprea, e dentro dele divisaram uma gigantesca construo area, como se feita de nvoa escarlate, mas a tal ponto transparente, que atravs dela se podia enxergar tudo. Um grande arco gneo, em cujas faces se moviam, tremiam e crepitavam estranhos sinais desconhecidos, compunha a entrada, fechada por uma mesma grade gnea que oscilava feito uma cortina. Bem, e como que ns vamos entrar nesta fortaleza do inferno? - perguntou Supramati. Utilizando os recursos que ns temos a obrigao de conhecer - respondeu Dakhir. Ele ergueu novamente o seu basto e desenhou com ele no ar uma figura cabalstica; ao mesmo tempo, feito um arco de violino, ele tocou as cordas de um instrumento invisvel e a cada movimento de sua mo ouviam-se estranhos sons estridentes. A grade que impedia a entrada se abriu imediatamente, como uma cortina, e no vo do arco do porto surgiu um ser repugnante e medonho; por esta viso, Supramati jogou-se para trs quase perdendo o equilbrio. A colossal figura - no era nem homem nem animal - fechou-lhes o caminho. O poderoso corpo era negro, as imensas pernas terminavam em cascos; nas mos do gigante viam-se unhas curvadas; o rabo comprido se arrastava no cho. Os chifres vermelhos sobressaam-se na cara enegrecida de traos animalescos, com a expresso de dio e crueldade. O olhar gneo do monstro parecia ameaar a aniquilar quem quer que fosse se aproximar dele. A cada movimento seu, dele espargiam feixes de fagulhas. Olhe, Supramati, para o drago que guarda a entrada do inferno! Ele representa a personificao do mal desencarnado, das paixes impuras, instintos animalescos, desejos insatisfeitos, inveja e dio insaciveis. Este guardio no limiar dos mistrios do inferno , ao mesmo tempo, o smbolo dos sofrimentos do esprito subtrado do corpo material e vido de prazeres lascivos. Atrs daquela grade se encontra o laboratrio do mal - a sede dos diablicos seres, malficos e infelizes, atormentados com a sede de vingana. Ali se acham reunidos todos os inimigos da ordem, os cegos que enfrentam peito a peito as grandiosas leis que regem o mundo, querendo deles se vingar pela necessidade inevitvel de se depurarem pelo sofrimento. A despeito da evidncia de que somente a harmonia cria e encerra a felicidade, sade, fertilidade e fartura, esses inimigos da paz, amor e virtude sempre carregam consigo o inferno que neles ferve, o desespero que os dilacera, a dvida que os corri e o rancor de ter que permanecer no

mesmo lugar. Eles tentam semear no corao humano os desejos mais impuros, a desconfiana, o culto no-existncia e a negao cega. A viso dos sofrimentos causados por eles proporcionalhes uma cruel satisfao e um esquecimento temporrio de sua prpria existncia repugnante. E assim ns veremos demnios de verdade, seres que se consagram exclusivamente a fazer o mal? E eu que achava que, no final, tudo se regenerava com o triunfo do bem - observou Supramati. Voc tem razo! Os seres que se consagram ao mal e que ns veremos mais tarde de fato so demnios, pois eles persistem em sua vilania. Mas nos recnditos de

suas sombrias almas vive espreitando a aspirao luz e ao desejo de escapar das trevas que os asfixiam. Bem, vamos entrar! Depois voltaremos a conversar sobre este assunto. Obedecendo ao sinal da ordem desenhada por Dakhir, o terrvel guardio da entrada recuou, e Supramati, como num sonho, adentrou uma daquelas estranhas cidades etreas, outrora vistas por Swedenborg. A cidade parecia no ter fim. Ao longe, as montanhas areas emolduravam o horizonte; de todos os lados se abriam precipcios negros e insondveis. Toda a paisagem carregava um aspecto indescritivelmente funesto. Eles saram para uma imensa praa. Os rolos de nuvens negras parecia pairarem sobre o terrificante abismo e, ali, cercado de fumaa negra e feixes de raios, estava sentado um homem que Supramati j havia encontrado numa das invocaes. Ao redor dele, em todas as direes, agitava-se uma multido de espritos, ouvindo trmulos os princpios do mal, que ali lhes eram incutidos, e as infalveis receitas para gerarem desordens e desencadearem devastaes. Com a aproximao dos visitantes, as massas lgu-bres abriram o caminho para darem a passagem e, ao sinal de seu senhor, se dispersaram por todas as direes. Minhas saudaes, Dakhir e Supramati! Bem-vindos! Sentem-se e vamos conversar pois, sem dvida, foi para isso que voc trouxe o seu nefito - disse Sarmiel com sorriso bonacho, fazendo com a mo um sinal de saudao. Supramati pensou, no fundo de sua alma, que o convite de "sentar-se" no era nada mais que uma frase retrica, pois no se via nenhuma cadeira, e uma nuvem seria um sof de resistncia deveras duvidosa. Mas para o seu assombro, viu Dakhir acomodar-se bastante bem na nuvem, o qual, ao perceber a hesitao de Supramati, desatou a rir. Voc sempre se esquece, meu amigo, de que ns perdemos a densidade do corpo, de modo que uma nuvenzinha qualquer pode suportar o nosso peso. Avexado, Supramati sentou-se numa nuvem grande que lhe pareceu palpvel e elstica. Mas tudo que ele via e sentia lhe parecia a tal ponto extraordinrio e inverossmil, que ele se perguntou, mais uma vez, se no havia perdido o juzo ou estava sendo vtima de um terrvel pesadelo.

Um riso escarnecido interrompeu os seus pensamentos e Supramati olhou temeroso para o ser que representava a encarnao do grande mal, espreitando de forma invisvel e imperceptvel os humanos para destru-los. No, no!... Voc no est sonhando e os verdadeiros doidos seriam os que se propusessem a trat-lo - observou Sarmiel. - E agora pergunte o que voc quiser! Posso? Ento, com a sua permisso, eu gostaria de saber por que voc e seus subordinados tm por objetivo fazer o mal? Por que vocs semeiam discrdias e desordens por todos os cantos? Que prazer lhes pode proporcionar o sofrimento dos homens? Por fim, eu gostaria de saber por que vocs lutam contra as foras que governam o Universo, mais poderosas que as de vocs. Por que vocs se insurgem contra as leis inabalveis que traaram o caminho ao esprito atravs de todos os reinos da natureza, cujo objetivo a perfeio? Ora! Voc quer saber muito! Mas antes de responder, eu quero lhe fazer uma pergunta difcil. Por que, ento, o poder superior e a perfeio criam seres imperfeitos, obrigam-nos a elevarse at o protoplasma de um arcanjo, atravs de milhes de mortes, a padecer em funo de seus instintos, cujo germe foi concebido junto com eles, e a torturar-se com todos os sofrimentos possveis da alma e do corpo? A que aspiram eles atravs dessa agonia infinita? perfeio, como bem-aventurana suprema? Vaga promessa de uma felicidade duvidosa! Como se fosse to desejvel alcanar a harmonia, que representa, sob a mscara de imparcialidade e amor humanidade, nada mais alm do que uma profunda indiferena e egosmo empedernido. Ns nos insurgimos contra essas leis implacveis que prometem alegrias remotas e desconhecidas, enquanto sentenciam, de antemo, as infelizes criaturas aos sofrimentos inumanos elos inquebrantveis de uma corrente infinita, geradas imperfeitas e escravas do trabalho sem fim, que a fora criadora suprema dirige autocraticamente. E com que direito? Sempre se sustentando naquela terrvel lei da escravido do fraco pelo mais forte. O fraco ignorante sempre esmagado pela roda daquele que sabe governar as leis. A humanidade extenuada chora cnscia de sua ignorncia, treme e consome-se: na terra - do medo da morte, sempre a ameaar como a espada de Dmocles, e no espao - sob o flagelo da expiao. O cho dos templos est surrado pelas marcas de joelhos de homens aterrorizados que clamam por Deus misterioso, suplicando-lhe clemncia e misericrdia, e no entanto Ele, em tom mais zombeteiro que o nosso - que vocs chamam de "satnico" -, responde: - Vivam segundo a Minha inabalvel lei. E esta lei probe que vocs se utilizem dos instintos que eu coloquei em suas almas, sendo que a manifestao livre desses instintos um crime. Disciplinem os sentidos a vocs concedidos para que deles s reste o que for imprescindvel para o movimento universal, que os impele para frente para transformarem-se na farinha celestial da qual se panifica a matria primeva.

Por que que voc me olha com tanto espanto, Supramati? D uma olhada ao redor e a justeza de minhas palavras ficar patente. Quem conhece Deus? Quem sabe o que Ele ? Normalmente o explicam assim: " Pai todo-misericordioso, infinitamente bondoso, refgio de todos os sofredores, protetor dos fracos e deserdados, sempre preocupado com a felicidade de suas criaturas". , na teoria. Enquanto na prtica assim: "No Universo, tudo que respira - sofre; e todo bom sentimento punido cruelmente naquilo em que ele se manifesta. Por exemplo, o amor; primeira vista, o sentimento mais puro do corao humano, mas o que ele proporciona alm dos sofrimentos? Uma morte cega e cruel subtrai os seres mais queridos: crianas e adolescentes; a doena acorrenta as pessoas ao leito da dor; um destino caprichoso lana na misria as pessoas mais nobres; a fatalidade persegue os mais puros, causando-lhes sofrimentos que somente podem ser suportados pelo infeliz corao humano. E para que tudo isso? Para depur-los; para testar a sua f na misericrdia de Deus... O que j no foi inventado para testar a f das criaturas!? Que cruel escrnio! Junto do banquete para ser servido aos eleitos, acomodam-se os deserdados e famintos, permitindo-se que eles admirem, de estmago vazio, como se refestelam os comensais. Mas... ai deles se lhes passar na cabea a vontade de estender a mo em direo a algum naco de po. Sobre eles desabar o fogo celestial; uma voz ir vociferar: "No ouse tocar naquilo que pertence ao seu prximo! Voc privado do essencial para a sua prpria purificao. Voc dever morrer de fome para que a sua f seja testada. A recompensa aguarda-o no paraso! ' Vaga promessa de uma felicidade incompreensvel. Com a morte decretada inutilmente devido a toda espcie de provaes, um pobre faminto, que furtara um pedao de po e fora posto atrs das grades, quebra a cabea para conseguir entender: por que, gerado com um estmago que exige alimento, crime contra a Divindade haver pego o que ningum lhe d para a satisfao da primeira necessidade? Por que s os outros tm direito de almoar e jantar, enquanto ele no tem direito nem ao menos a uma casca amanhecida? "No filosofe e se submeta com f e humildade sapincia divina, que s lhe deseja o bem" respondem-lhe. claro que essas palavras so muito reconfortadoras, mas continuam sem explicar nada da mesma forma. De igual maneira so misteriosas e incompreensveis as causas de sofrimento dos seres inferiores, pouco desenvolvidos, claro, no obstante capazes de sentir e entender o sofrimento. Existe alguma medida de crueldade do homem em relao aos animais? Existe alguma sentena de morte que um ser humano, para a satisfao de sua gula, sua preguia e de sua falsa mas famigerada

sede de saber, no utilize contra esses indefesos seres que no so protegidos nem por cu nem por inferno? E em todos os cantos fervilha, de um lado - o dio de homens sua sorte, e de outro - o dio dos animais em relao a homens, que os torturam e matam. Tanto uns como outros se esforam para se vingarem pelas injustias sofridas, e a magia negra no tem melhores aliados como os espritos inferiores, que ela invoca e atia contra os homens. Em funo dessa luta, motivada por dios mortais, a nossa expectativa que, no final das contas, ns triunfemos sobre as foras escravizadoras que nos condenaram ao trabalho e ao sofrimento, atirando-nos, feito uma esmola, nesgas de conhecimento. No, ns queremos saber tudo, queremos penetrar no saber da criao e ter a chave do mistrio. Por que apenas a perfeio pode criar seres imperfeitos, obrigados por uma lei desconhecida a readquirir, atravs de milhares de mortes, sofrimentos e privaes, o direito de ocupar um lugar junto ao foco da perfeio? Voc prega somente o mal, revolta e sofrimento e, entretanto, na primeira vez em que voc apareceu para mim, havia me dito que graas a voc e aos seus subordina dos muitas catstrofes e crimes foram evitados e que a humanidade ignora o seu trabalho para o bem dos encarnados. Explique-me essa contradio! - pediu Supramati. Um sorriso amargo fulgiu no olhar do terrvel demnio. A existncia da contradio aparente, pois, conforme eu lhe disse, nos coraes dos meus subordinados h tanto bem quanto mal. Essa insegurana, sempre renascente, essa luta entre os dois instintos justamente o sofrimento que nos legaram. E por que ns no podemos oferecer proteo aos encarnados e prevenir as catstrofes? Quem sofre, entende dos sofrimentos dos outros, principalmente se conhecemos e amamos esses outros. No importa que eles vo nos enfastiar com as suas gratides; mas voc achar totalmente natural que ns ofereamos a proteo, essencialmente, para aqueles cujos desejos so mais passionais, para aqueles que so mais audaciosos no mal e mais rancorosos; pois o nosso exrcito necessita daqueles cujas vidas foram esmagadas e asfixiadas em suas garras, e que tenham sido suficientemente martirizados e desprezados sem razo, para ficarem com averso a seus mpetos magnnimos e a sua aspirao ao cu. Aquilo que vocs chamam de "virtude", "humildade crist" etc... ou seja, tudo aquilo que, entoando "aleluia", suportado sem rancor frente s injustias e perseguies, ns chamamos de pusilanimidade, que no respeitada nem na Terra nem aqui... Para provar este axioma possvel trazer uma srie de exemplos. Os filhos que amam as mes que se sacrificam para educ-los morrem, mutilam-se ou perecem moralmente, enquanto os filhos das mes que buscam as aventuras, as mes sem um pingo de vergonha que largam seus filhos nas mos de outros - florescem, crescem e trazem-lhes alegrias e reconhecimento.

Da mesma forma, uma mulher honesta, inteligente e humilde, sobrevive sombra e na solido; enquanto uma sacerdotisa do amor - esse chacal de hbitos noturnos que vagueia em torno da famlia para destru-la - embonecada e reverenciada, brilha na primeira fila. O vcio sempre triunfa; ele invulnervel em sua satisfao egostica. E sempre os inocentes so responsabilizados por ele. Assim, quando os pais so devassos, quem sofre o castigo so os filhos, nascidos de um amor ilegal; sobre esses desaba toda a fria da virtude afrontada. Os pobres filhos, testemunhas inconvenientes da vergonha, que ousam ainda reivindicar certos direitos, so rejeitados, asfixiados, afogados ou entregues para a "engorda" nas mos cruis de algum administrador de educandrio, onde, na pressa de se ver livre deles, estas pequenas e indefesas vtimas so condenadas para servirem a duas mortes seqenciais: a do esprito e a do corpo. Ambas as passagens so duras e inteis nestas condies. Os pais e as mes dos sacrificados permanecem, no entanto, inclumes; continuam a freqentar a sociedade e so os que mais alto falam em defesa da moral, enquanto esta, indulgente, fecha os olhos para as suas fraquezas. O assassinato, dizem, um dos crimes mais odientos. Por que que ento o massacre de milhares de inocentes permanece impune? Terra, dizem tambm, foi dada a homens para nela se encarnarem, suportarem provaes preestabelecidas e se aperfeioarem. Mas por que, ento, tantos seres so descartados para o mundo invisvel onde eles no tm condies de cumprir com esses propsitos, doridos, repletos de fluidos vitais, inteis para eles? E, no entanto, asseveram-nos que nada ocorre por acaso e que em cada tomo existe o elo imprescindvel ao grandioso "tudo". Mas, pelo visto, essa estranha anomalia no diz respeito a ningum, e ningum se apressa em corrigi-la. Isso - asseguram-nos os nossos adversrios - so as provaes para pais e filhos. No nossa tarefa desmenti-los, pois justamente essas provaes, mais as encarnaes mal sucedidas, tm preenchido as nossas fileiras com os mais rancorosos. E isto compreensvel! Abandonados pelo cu, eles procuram ajuda no inferno, enquanto o defensor legal dos destitudos est em algum lugar longe... Ele est sempre ausente na hora da necessidade de evitar alguma injustia ou proteger um inocente... por isso que os homens no O temem. Eles sabem perfeitamente que podem pecar sem punio e zombam dos tolos que sacrificam as delcias do presente em troca de uma vaga esperana do futuro incerto. Enquanto Supramati ouvia em silncio, em sua alma se processava uma estranha reao, e recordaes amargas e insuportveis avolumaram-se em sua mente. Ele lembrou-se de infortnios imerecidos que desabaram sobre os seus pais, do patrimnio arruinado que fora o motivo da morte do seu pai, da enfermidade que levou para o tmulo a sua me. Diante dele, projetou-se novamente a sua dura vida de trabalho e uma infinidade de pequenas privaes, que ele suportava s para cercar a

adorvel me de paz e conforto, mas, apesar de tudo isso, ele nunca teve uma chance de iniciar um tratamento radical e muito custoso a que ela teria que se submeter. Certa vez, logo depois que ele acabou de se formar, ofereceram-lhe um trabalho de acompanhar para o sul um doente muito rico que queria ter um mdico junto a si. Foi-lhe muito duro separar-se da me, que ainda estava bastante fraca; mas ele aceitou a oferta para ganhar algum dinheiro e posteriormente iniciar o tratamento especial de sua querida doente - um tratamento muito caro, mas que auspiciava bons resultados. Mesmo agora, ele estremeceu de indignao ao lembrar de todo o seu fastio e desprezo no relacionamento com aquele homem, sempre se jactando de seu bolso bem recheado, cuja vida passara em farras e todo tipo de prazeres. Aquele homem nunca amou ningum sinceramente, nunca teve de sofrer, nunca trabalhou, jamais deu algo para algum, no derramou uma lgrima sequer em solidariedade ou ajudou o prximo; somente os desejos mais torpes e asquerosos norteavam a sua existncia. E aquele cadver vivo e nojento era bem tratado, adulado e protegido feito uma coisa de valor! E tudo era feito exclusivamente por causa de seu ouro. Enquanto ele, cuja vida era s trabalho e renncia, era subtrado da possibilidade de evitar o desaparecimento da melhor das mes, da mais pura e bondosa das mulheres, s porque ele no dispunha de um mnimo daquele ouro, o qual era atirado aos punhados apenas para prolongar por alguns dias a existncia intil daquele velho devasso... Supramati cerrou furioso os punhos. Toda a revolta contra a impotncia do cu e as injustias que reinavam no mundo, que outrora se assomava em sua alma, ressurgiu do abismo, para o qual o tempo o havia atirado. Uma gargalhada estridente interrompeu as suas reflexes. Ele levantou a cabea e encontrou o olhar zombeteiro e flamejante de Sarmiel. Sim, sim! O pobre mdico tuberculoso, que derramou lgrimas amargas no tmulo antecipado de sua me, tambm era dos nossos - pilheriou Sarmiel. - Enquanto isso, rico e imortal, cheio de presuno e contentamento, sem nada a temer - nem morte - e vido da coroa dos magos est separado de ns por um abismo. Voc veio para c para estudar o mal, com vistas de vencer-nos com as nossas prprias armas. Tanto faz! Ns resistimos, inclusive, a bem mais fortes que voc. Agora eu lhe responderei, sem vacilar, por que ns lutamos contra as foras muito mais poderosas que as nossas. porque ns estamos no limite do desespero. Ns no podemos contar com o senhor invisvel que nos criou. Ele no tem misericrdia com suas criaturas - somente a indiferena de um facttum, semelhante a uma mquina infernal que arrasta no se sabe para onde a humanidade enlouquecida, cujo corao e inteligncia sempre esbarra no incompreensvel. "Por qu?!" - grita em desespero o gnero humano. Mas, em resposta, ele s encontra o silncio, e o mistrio insondvel

envolve o passado e o futuro de toda a criao. Vo girando no infinito os mundos e os seres, sem conhecerem o caminho a seguir. S uma coisa clara: ns somos governados por duas foras terrveis. Uma delas nos empurra para a frente e a outra - ns detm e impede o nosso retorno sede. Ao nos encontrarmos entre essas foras, ns nos debatemos inutilmente e nos tornamos um exrcito de demnios, sitiando os mundos. As esferas harmnicas no nos atendem; bem, talvez na desordem do caos ns vejamos o objetivo final da dana da vida e fiquemos de posse da chave do enigma, antes de atravessarmos a gnea barreira lmpida que nos oculta os grandes mistrios da existncia. Talvez esse santurio fique inacessvel e todos os nossos esforos sejam coroados por edio de uma lei nova; ficaremos ento cercados por um exrcito de tomos claros, um exrcito de sabedoria, por virtudes de poder e beleza de perfeio ilimitada, e nos tornaremos prisioneiros daqueles muros fulgurantes que nos separam para sempre do mundo com o qual estamos ligados com todas as fibras do corao. Os lbios dos arcanjos esto cerrados pelo grandioso selo dos mistrios; o silncio o seu poder. Mas quem poder nos provar que esses seres lmpidos no estejam arrependidos por terem vencido todas as suas fraquezas, que emocionam o corao imperfeito de humanos? A alma lmpida, mas vazia, do ser perfeito est, provavelmente, perdendo o hbito de chorar, amar, sentir as alegrias e penalizar-se por aqueles que sofrem. Com um olhar aptico, ela observa as duras provaes daquele que outrora amou. Mas ele no tem outro interesse alm da qualidade da luz que dele emana e da bem-aventurana da paz infinita. Alis, tudo isso so simples suposies... Mas, se por um lado -nos difcil descortinar os mistrios que nos cercam, podemos tentar impedir o movimento ascendente dos espritos. Quem que est em condies de garantir que ns no seremos o fiel da balana na hora em que o nmero dos "eleitos" comear a diminuir? Que tipo de tempestade ser desencadeada? Que tipo de mudanas ocorrero por conta da alterao do equilbrio? Quem, no fim das contas, ir governar o Universo?! Os olhos do grande esprito do mal flamejavam maldosamente. O caos, a revolta, as paixes desenfreadas que nele efervesciam, refletiam-se em seu rosto desfigurado. Era com misto de medo e terror que Supramati olhava para o ser cego, ainda que audacioso, que ousou enfrentar, numa luta desigual, os grandes princpios da ordem e harmonia, querendo destron-los com o auxlio da legio de cegos espritos inferiores. Estaria ele de fato acreditando na possibilidade da vitria? Teria ele esperanas de deter o movimento infinito? No, aquilo era impossvel! A fora destruidora do mal poderia aniquilar o planeta, talvez pulverizar o sistema inteiro, mas a grande fora-motriz do Universo escaparia desses cegos. Assim como eles no conseguem aniquilar um esprito, no conseguem parar o movimento das estrelas ou destronar o ignoto

arepago que se oculta atrs da barreira de luz a eles inacessvel, pois as prprias paixes que os animam lhes impedem o acesso. Feito uma nvoa malfica, pairam as legies do mal na atmosfera, espalhando o dio, desgraas e doenas. Aquilo que Supramati ouviu s poderia ser pronunciado pelo inferno. Somente ele poderia interpor o terrvel "por qu", para o qual o homem no encontra resposta nem explicao e o qual invade o homem com blis e rancor. Sombrio, com o cenho carregado, olhava Dakhir para o abismo que se estendia a seus ps. Supramati aprumou-se e lanando-se frente gritou: Vamos fugir deste medonho local de trevas e revolta! Sinto-me enlouquecer nesta atmosfera de sabedoria satnica! A gargalhada de Sarmiel parecia estremecer o cu. Voc quer fugir? E para onde? Onde voc vai se esconder das verdades amargas que eu disse? Em vez de correr do mal melhor aprender a govern-lo, no no intuito de venc-lo, mas para faz-lo seu aliado contra o bem e impedir que a odiosa e cruel fora o impila para a frente. Se voc fraquejar e a sua alma tola for buscar a luz, voc ser arrastado pelos cabelos pela escada da ascenso eterna, cada degrau da qual martirizar o seu corpo e a alma, e os arcanjos o traro ensangentado e dilacerado aos ps do trono do Eterno. O brao colossal do terrvel demnio se estendeu, apontando com o dedo para algo invisvel. L, no meio de centenas de milhes de vias lcteas, reina a Divindade. Mas naquela priso celestial voc se transformar, no mximo numa mola, num fio eltrico a mais da mquina criadora, preservando de sua individualidade apenas a conscincia de si: voc deixar de odiar e amar, e far parte da rotao universal, "perfeito" e "feliz", pois de voc no sobrar nada alm do vazio, que substituir corao morto... Sem ouvir mais, Supramati lanou-se para frente, seguido de Dakhir que o apoiava pelo brao. Atrs deles se ouviam gargalhadas de escrnio - terrificantes, demonacas, sonoras, que faziam estremecer todas as fibras do ser. Dakhir! - gritou Supramati, sufocando-se e sem condies de dominar-se. - Ser que tudo que ele disse verdade? Ser verdadeira a afirmao de que a imortalidade eterno sofrimento, eternas provaes, eterna morte, morte em diversas formas? De fato, o inferno o nico capaz de urdir um plano diablico de deter os espritos no meio do caminho e obrig-los a se desviar do progresso, do cu e da luz. fato tambm que eu, feito um cego, almejo o desconhecido e que este se estende diante de mim em infinito. Aos poucos eu vou me despojando de todos os sentimentos que me so caros, aos quais eu me acostumei, e para tornar-me o qu? - gritou ele e silenciou, assustandose com a sua prpria voz, lamentosa, doentia e trmula, feito uma corda partida. o seu

Acalme-se! - disse Dakhir. - No se entregue dvida - o pior inimigo do homem. Ela foi invocada pelo discurso malicioso de Sarmiel e dominou-o com tal fora, que se diante de voc as portas do cu fossem abertas voc teria recuado, duvidando da luz diante de seus olhos. No se pode empolgar-se desse jeito! Tudo que ele disse verdade, mas enfocado sob um falso ponto de vista. Ele no quer admitir que para a alma -j que ela imortal - seria insuportvel permanecer esttica num nico lugar por toda a eternidade, e que as transformaes, por mais que elas sejam difceis, possuem um grande objetivo inevitvel. A perspectiva que Sarmiel abomina de poder se tornar uma das molas propulsoras da perfeio dever constituir-se, entretanto, num ideal que qualquer esprito deve almejar. Livrar-se para sempre de dvidas que atormentam, de sentimentos mesquinhos e de impulsos impuros, para abraar toda a humanidade num sentimento de amor puro e tranqilo, desprovido de qualquer interesse pessoal, deve ser uma felicidade bem maior que todas as nossas imperfeitas alegrias terrenas. Alm disso, por acaso, a sensao lmpida da conscincia saciada em ter alcanado a totalidade do conhecimento e compreendido a origem e a finalidade de todo o existente no conta nada? No, no! O cu vale a pena ser alcanado. Da mesma forma, para compreender e vencer o mal necessrio estud-lo. Depois do que lhe falou Sarmiel, voc deve ter uma viso clara dos motivos pelos quais as legies do mal so to numerosas e poderosas. Todos esses espritos agastados por dvida, que vem no sofrimento uma injustia e no provao, esperam, por meio da difuso do mal, deter nos outros a inexorvel aspirao perfeio. Para vencer esse exrcito de cegos, ns devemos estudar o mal; no para utiliz-lo com o objetivo de opor-se s inabalveis leis, mas para elevarmos at a luz, a qual, apesar de todos os obstculos, nos arrasta a ela, feito uma mariposa lmpada. Ns fomos feitos de luz e nela nos transformaremos de novo. Nenhuma escurido pode se misturar com a origem ancestral da pureza perfeita. possvel que alguma imundcie se grude a ela, mas chegar a hora que esta mcula se soltar e se transformar em cinzas, e de seu bojo fulgir uma luz ofuscante, que representa a essncia de nosso ser, uma herana eterna de nosso lar celestial. E a este lar ns retornaremos, apesar de todas as provaes no infinito caminho atravs de todos os reinos da natureza; apesar de todos os sofrimentos e amarguras passados, para depois gozar de paz e harmonia perfeita. Um silvo estridente e uma furiosa rajada de vento interromperam Dakhir. Uma nuvem negra recortou feito furaco o ar e diante deles surgiu o funesto Sarmiel. Todo o seu ser tremia e dele, semelhana de cratera de um vulco, expeliram-se chamas, colunas de fumaa e feixes de fascas.

Vo-se enganando com as falsas esperanas! - trovejou zombeteiro o esprito das trevas. No toa que se diz: "Bem-aventurados so os pobres de esprito por que deles ser o reino dos cus". No blasfeme, esprito orgulhoso e cego! disse em tom severo Dakhir. - Voc grande e poderoso por seu conhecimento e imenso o seu reino! Turbas desprezveis fervilham aos seus ps; crimes, os mais variados possveis, se espreitam sob as suas asas, e infinito o nmero de destruies e de vtimas que voc semeou no mundo; contudo, h quanto tempo voc preside aqui sem alcanar a vitria? Debalde o seu exrcito luta ferozmente contra o cu, voc no avanou um passo sequer ao centro da luz sublime, pois as trevas at ali no alcanam. Voc martiriza as criaturas de Deus, pensando com isso magoar o cu, no entanto voc mesmo sofre da insatisfao de todos os seus desejos. Voc blasfema e abomina a paz, a harmonia perfeita e a lmpida e tranqila conscincia do dever cumprido. E por que, ento, o seu corao mortificado, atormentado por dvidas e sem esperanas, no est satisfeito? Isso inegvel; apesar de minha ignorncia, eu vejo isso atravs de sua couraa. A despeito de toda a sua indignao, voc tambm uma criatura de Deus, gerada a partir da mesma luz divina, que com todas as fibras de seu ser aspira paz - essa, talvez, a principal foramotriz que impulsiona toda a humanidade a subir pela escada ngreme e estreita da perfeio, na expectativa de algum dia gozar da sua indescritvel bem-aventurana. A cara do demnio desfigurou-se estranhamente; de seus lbios soltou-se um grito sinistro e dilacerante, feito soluo, e ele baixou a cabea por uns instantes. Mas, quase imediatamente, ele se endireitou, sombrio, ameaador e cheio de dio. Sacudindo o punho cerrado, ele brandiu: Bem, e da? Quando eu estiver cansado do mal que no me leva a nada, quando eu estiver saturado dele, eu tomarei de assalto os muros gneos para descobrir o que acontece atrs deles. Voc no ser o primeiro audacioso a aventurar-se dentro dos limites do muro sagrado. Mas voc j viu, por acaso, algum que de l retornou para dizer aos mortais o que h por trs daquela proteo misteriosa? Quem poder garantir que o caminho ao cimo de l no mais comprido do que o daqui? O lgubre e flamejante olhar do demnio pareceu se grudar ao plido mas decido rosto de Dakhir. Eu acho que ambos estamos longe do objetivo final!... -ressoou ele. Talvez. S que voc reconhece isso por orgulho, e eu porque assim me sugere o meu modesto senso - redargiu Dakhir. Sarmiel nada respondeu. Sua figura diluiu-se numa gigantesca nuvem negra e em seguida desapareceu no espao sem deixar vestgios. Dakhir pegou a mo de seu amigo e ambos voaram para a frente.

Captulo VI

Tentando se recuperar espiritualmente e acalmar os impetuosos pensamentos que se desencadearam em sua mente, Supramati no deu, no incio, qualquer ateno ao que ocorria em volta; mas, logo percebeu que em torno dele se abria um espao cinzento e nuvioso. Como se atravs de uma cortina ele via o cu, salpicado de estrelas, no entanto essas pareciam bem maiores do que vistas a partir da Terra. Dakhir! Leve-me para algum planeta, pois eu quero ver se as pessoas que nele habitam tm tantos vcios, so to ignorantes, to vidas por prazeres como na nossa repulsiva Terra. Ou talvez ali reinem harmonia e sapincia! Eu no posso fazer isso - respondeu Dakhir. Para empreender tal excurso, s Ebramar dispe de fora e conhecimentos necessrios. Quando ns nos tornarmos seus

discpulos, e eu espero que isso seja relativamente breve, provvel que ele nos leve aos mundos inferiores, onde pareceremos uns anjos, e tambm aos mundos sbios e disciplinados, onde nos sentiremos insignificantes. Alis, eu atenderei, parcialmente, ao seu desejo e o levarei a um mundo bastante original, ou seja, residncia de Ebn-Ari. Supramati comeou a rir. O Rei das Larvas possui a sua prpria residncia? E os seus sditos moram junto com ele? Exatamente! Voc mesmo vai ver que no espao existem para criaturas malficas e perigosas o mesmo tipo de priso que ns temos. Ento voc quer me mostrar uma dessas prises? Sim! um pequeno planeta morto de nosso sistema. Fica bem perto da Terra, mas muito escuro e invisvel para ns. Como v, no espao nada se perde e os mundos

extintos, que j no produzem nada, servem, enquanto ainda no se desintegraram, para local de permanncia de espritos que abusaram de sua liberdade. E aquele mundo estril? Sem dvida. L no existe mais nem vida vegetal nem animal. Os seres humanos l no conseguem sobreviver devido s condies desfavorveis: frio intenso, gases venenosos, e assim por diante. A desintegrao lenta at que uma exploso final espalhe as suas partculas. E at l o planeta abandonado serve de reino a Ebn-Ari e seus sditos - as asquerosas larvas. Esses seres malficos que sugam as foras vitais dos encarnados tornam-se finalmente demais pesados para subir no espao. Anfbios de dois mundos - mundo dos espritos e mundo dos vivos - eles vagam invisveis na terra, semeando morte e terrveis doenas de esprito por todos os cantos. Sobre essas criaturas nocivas foi instituda uma severa vigilncia permanente. Para que eles no se apoderem da Terra, eles so, na maioria dos casos, juntados num mesmo local. Mas este local deve ser suficientemente resistente: como uma pedra, jogada na gua e que no pode subir tona, e como um esprito, separado do corpo material, saturado de fluidos grosseiros, que no consegue elevar-se ao ter, caindo em seguida para terra. Somente privados das condies que os unem vida terrena e da fonte de alimentao, que so as pessoas vivas, eles, por bem ou por mal, so obrigados a desistir de seus atos mortferos. O planeta abandonado atende a todos os requisitos. Por isso, quando morre corporalmente essa espcie de criatura larval, que com o tempo se torna um vampiro, ela agarrada e levada quele mundculo para l permanecer at que se purifique o bastante para retornar s condies normais. Eu sei que as pessoas negam a existncia desses seres, zombam da credulidade dos que acreditam, chamando-os de tolos e loucos por acreditarem em vampiros, larvas, scubos e ncubos. Bem, o que podemos fazer?! O mais in-solente dos risos e a mais teimosa incredulidade so impotentes diante de um fato. Sempre houve narrativas fantsticas, que os cientistas diziam ser produto de alucinaes, de auto-sugesto, mas que nada mais so do que ardis de vampiros. Os assassinatos ocultos que deixaram pistas palpveis, apesar de sua evidncia, so negados devido ao temor de se parecer ridculo. Voc tem razo! Eu mesmo, apesar de gostar de cincias ocultas, achava que tais narrativas eram lendas, baseadas na credulidade de gente pouco desenvolvida. Agora entendo que os estudos que eu considerava srios eram totalmente vazios. Sim, no h ignorncia mais teimosa que a presuno cientfica, imaginando que tudo j foi pesquisado. Olhe! Ns estamos nos aproximando do nosso objetivo. Est vendo aquele contorno negro? o cadver daquele mundculo o nosso vizinho, de cuja existncia os astrnomos nem suspeitam. Mas, antes de ns penetrarmos em sua atmosfera, devemos nos fortificar, pois precisaremos de fora.

Dakhir tirou detrs do cinto dois frascos, deu um deles para Supramati, que o esvaziou de um s gole. O lquido pareceu quente, mas destacava-se por um gosto agradvel; uma sensao de calor vivificante percorreu-lhe todos os membros, enchendo-o de foras e energia, mas, praticamente no mesmo instante, ele sentiu-se tonto e pareceu-lhe que um turbilho de vento o agarrou e arrastou velozmente com silvos para no se sabe aonde. Ele sentiu estar caindo, como atrado por uma poderosa corrente. Em seguida, o torpor e o estado semiconsciente dissiparam-se, dando lugar a uma outra sensao. Pareceu-lhe estar em p junto janela de um trem-relmpago, olhando para os contornos imprecisos de objetos e vistas estranhas que se abriam diante dele, ora numa penumbra embranquecida, ora escarlate e at violeta-escura. Subitamente ele sentiu um empurro to inesperado, que fechou os olhos e o movimento cessou. Supramati abriu os olhos suspirando. Teria ele acordado de um sono fantstico? No despertaria ele, finalmente, da alucinao da loucura? Seria possvel tudo aquilo que ele havia visto, vivido e sentido? No acordaria ele, novamente, em seu humilde quarto londrino com os raios solares penetrando atravs das cortinas das janelas, brincando nas flores do tapete e na moldura dourada do retrato de seus pais?... A voz de Dakhir dissipou seus devaneios. Acorde! Ns j chegamos. Supramati aprumou-se e olhou curioso em volta. Ele estava em p nos degraus da escada feita de pedra preta, parecida com o basalto. Em ambas as laterais da escada enfileiravam-se figuras genuflexas moldadas, nas mos erguidas elas seguravam uma espcie de tocha. Em torno, divisavam-se as runas de um gigantesco templo ou palcio abandonado. Viam-se galerias, sustentadas por colunas com brilhantes inscries esmaltadas. Mas todas aquelas esculturas e ornamentos tinham um estranho e inusitado aspecto; jamais ele vira algo semelhante. Alm disso, a cor vermelho-sangnea da atmosfera acentuava ainda mais a estranha impresso geral. Onde estamos? - indagou Supramati. No palcio de Ebn-Ari. Ele no est em casa mas ns podemos esper-lo. A entrada aqui proibida, uma vez que aqui repousa, aps um longo dia de trabalho estafante, o terrvel anfitrio. Eles subiram a escada, passaram por uma comprida galeria que dava uma volta no prdio e pararam diante de uma macia porta negra, brilhante como vidro, na qual estavam esculpidas as figuras de animais e plantas.

Dakhir empurrou a porta, que se abriu imediatamente, e eles adentraram uma imensa sala, cujo teto tinha a forma de uma cpula. Ao redor, enfileirava-se uma srie de colunas baixas, ricamente entalhadas e pintadas em cores vivas. Entre as colunas viam-se grandes vasos, nos quais ardiam chamas violetas, verdes e amarelas. No fundo da sala, num estrado de alguns degraus, erguia-se uma espcie de trono, feito de rocha preta; em seu espaldar viam-se pousadas duas aves, parecidas com guias, abrindo as asas sobre o trono em forma de baldaquim. No centro da sala, num pedestal alto, estava erigido um enorme crucifixo alvo, envolto em nvoa azulada fulgurante, semelhana de aurola. A certa distncia, um do outro, estavam dispostos bancos de pedra. A porta lateral levava para uma outra sala, da mesma forma ampla e lgubre, mas mobiliada luxuosamente. A luz purprea que a inundava conferia-lhe um aspecto bem sinistro. Dessa segunda sala, uma porta levava ao terrao, aos p do qual, perdendo-se ao longe, se abria um imenso jardim. As folhagens verde-escuras das enormes rvores eram densas; os arbustos cobertos de flores formavam grupos; ao longe, divisava-se um lago de superfcie lisa e brilhante, e um pouco antes dos penhascos azul ndigo se precipitava uma catarata espumante. Mas o silncio mortal que reinava ao redor era um forte contraste com aquela viso cheia de vida. No se movia sequer uma folha, no se ouvia o menor rudo do lado da catarata. Supramati j abria a boca para fazer uma pergunta ao seu amigo, quando subitamente por entre os arbustos num pequeno relvado notou um grupo de figuras humanas e foi, quase correndo, em sua direo. Mas com a mesma rapidez ele se deteve, olhando surpreso para uma jovem e bonita mulher, parada imvel a alguns passos dele. Ela parecia estar petrificada em meio ao turbilho de dana. Seu brao estava erguido sobre a cabea, uma das pernas pairava no ar, a tnica fina grudara-se ao corpo pela rapidez do movimento, os cabelos soltos esvoa-avam ao vento; no entanto, ela no se movia. Os seus olhos estavam esbugalhados e um sorriso congelara-se em seus lbios. A alguns passos da mulher, doze jovens mulheres se seguravam pelas mos como se fossem iniciar uma dana de roda, mas elas tambm estavam imveis como a primeira. Dakhir! O que significa tudo isso? Por que esse silncio mortal e essa imobilidade tanto na natureza como nas danarinas que parece terem se transformado em esttuas? Voc tem razo! Tudo que voc v aqui est petrificado. Encoste na folha, no arbusto, na flor ou nos cabelos dessa mulher e voc vai ver que tudo est to duro como rocha. Convencido das palavras de seu amigo, Supramati disse decidido: Tudo aqui artificial! Que obra de arte estranha e ao mesmo tempo perfeita! Quem conseguiu conferir a estas obras um aspecto to vivo? At os matizes das cores destacam-se por

frescor e naturalidade extraordinrios no entanto, tudo no passa de pedra! S no consigo entender qual o objetivo desta obra artstica. Dakhir suspirou. Com um olhar triste, ele percorreu aquele quadro sinistro que os cercava. Tudo que voc v no uma reproduo de arte, mas representa o resultado de uma terrvel catstrofe que desabou muito tempo atrs sobre este mundo infeliz, trans formando-o num cadver planetrio. Uma exploso repentina de gases destruidores envenenou a tal ponto a atmosfera, que as pessoas que aqui viviam, os animais e as plantas - tudo ficou asfixiado e cristalizado, mantendo o aspecto natural de vida - os movimentos, as poses, as expresses daquele instante quando surgiu a morte, transformando-os instantaneamente em esttuas. Aqui, voc est numa espcie de Pompia, mas bem mais surpreendente que a nossa terrena, pois aqui tudo se conservou, transformando-se em pedra. Apalpe a gua que cai da cascata: ela tambm se tornou uma densa massa cristalizada sob o efeito de sopro mortfero, que aniquilou no planeta o calor, os movimentos e a luz, pois os densos vapores que o envolvem absorvem os raios solares, criando uma plida luz avermelhada, conforme voc v. Como este planeta parece com nossa Terra! Ele composto dos mesmos elementos. de um mesmo pedao que criou o nosso planeta, desprendendo-se da massa csmica, as mesmas falanges dos espritos habitavam, alternadamente, ambos os mundos vizinhos. Sendo assim, no h nada de extraordinrio, salvo algumas diferenas insignificantes, que aqui reinassem as mesmas concepes de mundo, usos e costumes. A civilizao ia progredindo de maneira semelhante e at as idias religiosas eram passadas de um planeta a outro. E depois, como voc v, a aniquilao da vida neste planeta no rompeu os elos de ligao e nossa Terra envia para c os seus rebeldes habitantes fludicos. Mas vamos adiante para darmos uma olhada no palcio, antiga residncia imperial; mais tarde eu o levarei cidade, povoada de larvas. Mudo de nervosismo, Supramati seguiu seu mentor, que, pelo visto, conhecia bem a topografia local. Eles passaram atravs de uma alameda cercada de rvores e floreiras e logo se encontraram diante de uma escadaria que levava a uma longa galeria a cu descoberto. A galeria estava apinhada de gente. Os serviais tendo nas mos pratos, nforas e cestos com frutas, estavam paralisados em sua sfrega carreira, mas tudo produzia a impresso de tal vivacidade arrebatadora, que Supramati, ao passar ao lado daqueles serviais apressados, imaginou ter sido empurrado por um deles em sua azfama.

Um grande arco, guardado por duas sentinelas, levava sala do banquete, iluminada com luz sangnea sinistra que penetrava atravs de enormes janelas abertas. No interior da sala, estendiam em duas fileiras longas mesas, s quais estavam os convidados - homens e mulheres - cujos trajes eram uma mistura de moda egpcia, grega e assria. Com frio no estmago ia passando Supramati ao longo daquelas mesas, olhando para os rostos imveis, nos quais se congelou a expresso daquele instante em que a morte os fulminara inesperadamente. No fundo do recinto, sobre um estrado dominando o ambiente, havia uma pequena mesa ao redor da qual estavam sentadas apenas seis pessoas. No centro da mesa numa cadeira de espaldar alto, erguia-se a figura de um homem jovem, traos finos e regulares de rosto, com expresso soberba. Sobre a cabea ele trazia uma espcie de tiara, que terminava com uma ave de asas abertas. Suas mos e pescoo eram adornados por maravilhosas jias e na mo erguida ele segurava uma taa, prestes a ser enchida por um criado que estava atrs do rei. Um sorriso orgulhoso cheio de satisfao iluminava-lhe o rosto, e os lbios semi-abertos, sem dvida, eram um sinal de que ele estava falando no momento em que o sopro da morte os cerrou para sempre. Com os olhos enuviados de perturbao, olhava Supramati para aquela sala de banquete que se tornou um cemitrio e para aquela multido festiva e relaxada que agora nada mais era seno esttuas de pedra. Que terrvel memento mori da fragilidade humana! Vamos?! - props Dakhir, pegando Supramati pelo brao. - Aqui s h restos da civilizao inopinadamente extinta. Na cidade voc ver as larvas, vampiros e todos aqueles habitantes que anseiam por vida real, tendo que sobreviver neste mundo cristalizado. Como horrvel aqui, no meio deste silncio mortal, em companhia desses mortos e com esta luz vermelha! Oh! As larvas e os vampiros tambm so mortos. Mas vamos! Os belos guerreiros que guardam e protegem a mesa imperial e o porto no podero impedir a nossa sada. Tremendo de terror Supramati passou entre as esttuas armadas que protegiam o trono ou que estavam perfiladas na larga escada que levava da sala contgua a um imenso ptio, atravancado de todo tipo de bigas e liteiras. Um cavalo atrelado, com a crina e o rabo svoaando, empinava-se nas patas, s custas contido pelo cavalario. O maravilhoso animal poderia servir de belo modelo para um escultor. Bem junto da escadaria estava parada uma liteira; uma jovem e bela mulher, num traje rico e luxuoso, estava descendo dela e virando a cabea; parecia emitir uma ordem ao criado, parado respeitosamente diante dela e ouvindo-a atento.

Que espetculo perturbador! No ser fcil passar por entre todos - observou Supramati. - O que estariam comemorando? Quem eram essas pessoas poderosas, ricas e provavelmente cobertas de glria, que esto aqui imveis sculos a fio entre os serviais reverenciosos, transformados em pedra por um poderoso e enigmtico sopro, ceifando-lhes a vida, a grandiosidade e o poder? Que msero, ignorante e cego voc se sente diante do grandioso terror de tais catstrofes! Sim, ns pouco ainda sabemos do que ocorre em volta de ns na natureza e estamos longe de entender as leis que nos governam - concluiu Dakhir. Continuando a conversar, eles atravessaram o ptio, depois passaram por um outro, to grande como o primeiro, e saram para uma larga margem do rio apinhado de embarcaes de todas as espcies e tamanhos, cuja maioria estava enfeitada com flores. Na descida ao rio comprimiam-se os passageiros. Do outro lado do rio espalhava-se a cidade, recortada por largas ruas, emolduradas por graciosas e grandes casas. A ornamentao e o esmerado acabamento dos prdios indicavam uma civilizao j bem desenvolvida. Aqui, como em outros lugares, via-se uma povoao numerosa, surpreendida no meio de seu af e prazeres. Mas entre as esttuas humanas moviam-se seres vivos, com os rostos desfigurados pelas paixes, com expresses animalescas e sofridas, desavergonhadamente expondo os corpos desnudados cobertos de chagas nojentas. Est vendo aqueles homens e mulheres, de todas as idades, que emporcalharam tanto o seu corpo espiritual? Eles, assim como antes, esto repletos de desejos insaciveis; rejeitam a purificao atravs do sofrimento como a

nica salvao capaz de arranc-los desse terrvel estado, que lhes foi imposto pela separao do corpo carnal, e que deles fez renegados de ambos os mundos, sem conseguirem fundir-se totalmente com nenhum deles. A sua permanncia aqui um castigo cruel, principalmente para aqueles que foram arrancados da prazerosa ocupao de sugar as foras vitais dos encarnados, ou de se grudar a algum indivduo para gozar de sensaes carnais, com o auxlio de seus sentidos. Ebn-Ari com os seus serviais traz para c centenas dessas asquerosas e malficas criaturas que, furiosas e desesperadas, vagam por entre as sedues que as cercam. Todas as suas sensaes se excitam com a viso de mesas cheias de iguarias e de tantos homens e mulheres no res-plendor da juventude e beleza. Resumindo, aqui no existe uma paixo que no pudesse achar objeto de sua excitao; no entanto, tudo aqui est morto! Nem ao menos o menor sopro de vida bafejar aqui para satisfazer a sede incitada dos prazeres. Blasfemando terrivelmente, os seres realizam entre si as orgias mais deprimentes e entregam-se neste silncio e escurido s mais torpes paixes.

A cidade, pelo visto, tinha muitos habitantes - observou Supramati, olhando com averso para os espectros vampricos que vagueavam entre as esttuas humanas. Sem dvida! E no s nesta cidade, mas em todas as outras no continente e em todo o globo, pereceram todos os seres viventes - confirmou, suspirando, Dakhir. Mas vamos! - acrescentou ele. - Eu gostaria de lhe mostrar mais um lugar, uma vista sinistra e grandiosa que me deixou uma impresso formidvel ainda na primeira vez em que estive aqui. Respirando com dificuldade naquela atmosfera no habitvel para qualquer outro ser vivente em condies normais, Supramati seguiu seu amigo. Eles passaram por algumas ruas e subiram num morro alto, em cujo cume se erguia um enorme prdio; seus contornos macios e as pesadas colunas desenhavam-se nitidamente no fundo escarlate da atmosfera. Sob uma enorme cpula avolumava-se uma gigantesca figura alada, envolta numa tnica. Numa das mos ela segurava no alto um grande crucifixo; na outra - trazia aos lbios um trompete. Em sua cabea assentava-se uma coroa e cada dente seu reverberava chamas multicolores semelhana de luzes errantes. Todas essas luzes saltitavam, moviam-se e ardiam feito fogo de artifcio na cabea da esttua, formando em volta dela uma estranha aurola que se desenhava magicamente no firmamento vermelho-sangneo. O que aquilo? - perguntou Supramati. a esttua do anjo de Deus, conclamando os homens para orarem e mostrando-lhes o smbolo da eternidade, que nico onde quer que seja. Antigamente, conforme me contaram, daquele trompete se ouvia um hino harmnico durante as liturgias, extremamente bonito, pois um mecanismo artificial acionava os instrumentos parecidos com o rgo. Agora - disse-me certa vez EbnAri - entre as larvas corre solta uma lenda que diz que na hora da destruio final do planeta, o trompete do anjo soar novamente e toda a populao petrificada, assim como a natureza, iro se animar e que somente na catstrofe final tudo ir morrer de fato. De acordo com a lenda, todo esse povo petrificado um terrvel monumento da ira Divina que puniu as pessoas que esgotaram a pacincia e misericrdia do Senhor com seus atos malficos, desprezo por todas as leis divinas e humanas, e guerras fratricidas. Sem pararem de conversar, eles subiram pela alta e monumental escadaria talhada na rocha, parecida com prfiro, mas mais vermelha e transparente. Pelas laterais da escada viam-se mendigos, paraplgicos e vendedores, provavelmente de artigos religiosos; entretanto, Supramati no lhes deu qualquer ateno, tanto estava perturbado, pois toda sua ateno se concentrava na viso de uma multido de pessoas humildes, estendendo as mos para os passantes, para sempre pregadas terra. Apesar de tudo que ele j havia visto, a impresso era to deprimente, que o corao de

Supramati batia acelerado quando ele entrou pelo porto aberto do templo, imerso numa penumbra escarlate. A despeito do lusco-fusco sinistro, Supramati conseguiu distinguir nitidamente os detalhes do ambiente. As pilastras esmaltadas com cores vivas sustentavam a abbada. Entre as colunas via-se imobilizada uma multido de fiis. Alguns degraus levavam ao santurio em cujas laterais se postavam os membros de um coral, segurando nas mos os seus instrumentos; seus dedos parecia vagarem pelas cordas e os lbios estavam semi-abertos. O sopro destruidor que trouxe a morte passou to rpido, que no lhes deu tempo de cerrar os lbios. Diante da entrada do santurio estava postada a alta e majestosa figura do sacerdote. Sua longa barba branca caa-lhe sobre o peito, suas vestes brilhavam de gemas preciosas; ambas as mos estavam erguidas em solene orao. Atrs dele, no fundo do santurio, divisava-se vagamente um crucifixo dourado e um castial de sete braos. Subitamente entre as esttuas do santurio em penumbra, Supramati divisou certos seres estranhos que se movimentavam e passavam de um lugar para outro. Apavorado, ele reconheceu neles os espritos vampricos, sentados ou deitados no piso de pedra gemendo surdamente. O que significa isso? O que eles esto fazendo? Eles vieram buscar apoio e alvio neste local consagrado divindade. Aqui se preservou, ou melhor, ficou impresso na densa atmosfera o puro e benfico fluido da orao, da f e do anseio ao Criador, por isso a este lugar tm vindo aqueles infelizes, cansados da punio que os atingiu e que aspiram pela renovao. A viso do crucifixo - smbolo da eternidade e expiao pelo sofrimento faz renascer em suas sombrias almas a vontade de sacudir de si a lama que os sufoca e voltar para o caminho da reabilitao, do trabalho e da ascenso - explicou Dakhir persignando-se. O olhar nervoso de Supramati pregou-se por alguns instantes ao rosto inspirado do sacerdote, de cujos lbios semi-abertos provavelmente partia uma orao - uma bno ao povo ali reunido - e seu corao bateu com sentimento de pena e respeito indescritveis. Que poder tinham as foras puras, ali invocadas, se at os seus vestgios haviam se conservado at aquele momento, feito uma fonte jorrando vida, fora e esperana naquele mundo morto e hirto!? Supramati prostrou-se de joelhos e rezou por longo tempo. Em seguida, levantando-se, ele pediu ao amigo para abandonarem aquele sinistro planeta, cuja viso muito o oprimia. Seu desejo no muito corts em relao ao seu anfitrio. No podemos sair sem vermos Ebn-Ari! Alm disso, temos um dever a cumprir, ou seja, visitar nossos irmos imortais, adeptos do elixir da longa vida, que esperam por libertao pela morte ou transferncia para um outro mundo em formao - observou sorrindo Dakhir. Supramati empalideceu e deu um passo para trs.

Meu Deus! Aqui habitam os imortais? - exclamou ele, apertando a cabea com as mos. - Aqui existem infelizes que passaram pela morte de seu planeta? Existem vivos entre estas runas e cadveres? Mas o seu sofrimento mil vezes maior do que a punio dos espritos padecentes aqui aprisionados! Como que eles conseguem viver aqui? Isso medonho! Por meio de conhecimentos, meu amigo, e com o auxlio da matria primordial disposio deles. Repito-lhe que ser extremamente descorts de nossa parte menosprezar-lhes a companhia neste planeta. Sem dvida! Ento vamos! Nem me passaria pela cabea ir embora daqui sem visit-los, se soubesse de sua presena - interrompeu-o Supramati, impaciente. Vamos rpido! Mas diga-me, Dakhir, as larvas sabem que aqui habitam pessoas vivas? Para eles isso no faria nenhuma diferena, pois chegar at os imortais elas no tm nenhuma possibilidade. Saindo do templo, eles se dirigiram para os arredores da cidade. Passando atravs de um jardim, Supramati tropeou. Ao inclinar-se, ele viu que ali estava o corpo de uma criana de dois, no mximo trs meses de vida, deixada, pelo visto, por sua me, j que a poucos passos se via em p uma mulher desenrolando uma roupinha, prestes a trocar aquele encantador pequerrucho de cabelos enrolados. Dakhir! Eu posso levar daqui como recordao esta criana, que eu colocaria sobre a minha escrivaninha como peso de papel? Isso me serviria como prova de que eu no tinha sonhado, perdido o juzo ou fui vtima de uma extraordinria alucinao. Por que no! Pelo que sei, isso no proibido e eu de bom grado prepararei o honorvel meninote para que voc possa lev-lo consigo. Antes de mais nada, porm, necessrio desprend-lo da terra com uma corrente eltrica e, depois, alivi-lo do peso e da densidade. Mas antes vamos visitar os nossos irmos da "Tvola Redonda da Eternidade". E eles so numerosos aqui? Por que as larvas e outros espritos impuros no conseguem chegar at eles? - perguntou Supramati. Porque eles j so purificados e o conhecimento deu-lhes o poder suficiente para manter uma distncia respeitvel daqueles animais nocivos. Quanto ao nmero dos imortais, ele , naturalmente, pequeno e no tem aumentado, ainda que seja composto de ambos os sexos. Isso se deve ao fato de que no existem nascimentos entre eles por causa daquelas excepcionais condies em que eles se encontram. Alis, nem eles querem que isso ocorra. Ao sarem da cidade, Dakhir desenhou com o basto no ar um sinal cabalstico. Imediatamente eles se alaram no ar e voaram, ainda que pesada e lentamente, em direo da cordilheira que se projetava no horizonte.

L, parecia haver se juntado uma srie de densas nuvens brancas. Quando eles se aproximaram, a massa nebulosa verificou-se ainda mais densa e deixou em Supramati a impresso de que aquilo era um muro que cercava um imenso vale. De fato, o muro real, ainda que fludico, e protege os domnios da irmandade dos imortais observou Dakhir, enquanto eles o atravessavam. Do outro lado abriu-se um mundo totalmente diferente. O verdejante vale era emoldurado por escarpas; o ar era puro e invs da antiga iluminao vermelho-sangneo, ali se filtrava uma luz plida mas clara. Numa das elevaes erguia-se um enorme prdio portentoso, cercado por grossos muros. Eis a fortaleza de nossos irmos - disse Dakhir, detendo-se junto ao porto trancado. E ele desenhou no ar um sinal cabalstico que, provavelmente, representava alguma palavra na lngua comum a todos os iniciados, mesmo que estes se encontrassem num outro planeta. A porta se abriu e os viajantes adentraram uma galeria abobadada, em cuja entrada eles foram recepcionados por um velho muito bem conservado, vigoroso e forte. Ele trocou saudao com Dakhir, apertou a mo de Supramati e levou-os para uma sala onde estavam reunidas cerca de doze pessoas de idade variada. Todos eram altos e bonitos, de olhos verdes e brilhantes. Eles cercaram os visitantes e, para surpresa de Supramati, este persuadiu-se de que entendia quase tudo o que falavam. A lngua usada pelos imortais parecia snscrito, porm era mais elaborada e rica em expresses. Dakhir anunciou que trouxera o seu irmo imortal que passava pelo primeiro grau de iniciao e que no conseguia entender como eles poderiam viver num mundo morto. Eu lhe expliquei que vocs sobrevivem aqui graas ao seu conhecimento. Se algum de vocs pudesse ser-lhe um guia, e mostrar o local de tanto interesse para o meu amigo, eu ficaria muito grato. Eu ficaria aqui conversando com vocs, enquanto ele iria comprovar os milagres que podem ser produzidos pelo conhecimento at num mundo extinto. Um jovem de olhar triste e sonhador separou-se do grupo e aproximando-se de Supramati disse-lhe sorrindo: No gostaria de ir comigo, irmo? Eu terei prazer em lhe servir como guia! Supramati, agradecido, aceitou a oferta. Eles passaram por algumas salas e desceram ao jardim. O guia mostrou a Supramati os campos meticulosamente trabalhados que parecia estenderem-se at os limites dos contrafortes que emolduravam o vale. Mais ao longe nada se via alm de densas nuvens que, feito um muro, se erigiam no horizonte e perdiam-se no cu cinzento. Ali, por todos os cantos reinava a vida. Viam-se rvores, frutas, flores, pssaros cantando em meio a folhagens, gado que pastava em paz na grama, gua que caa barulhenta das escarpas. Ao

longe brilhava a superfcie de um grande lago. Apenas faltava o cu azul e os vivificantes raios solares para aquela tranqila e alegre paisagem. Examinando tudo com a mxima ateno, Supramati conversava com o seu guia tentando adaptar-se sua lngua, entendida parcialmente; neste caso, ajudou-lhe muito o seu conhecimento de snscrito. Logo eles conseguiam se explicar livremente e Supramati perguntou de que forma eles conseguiram se salvar da catstrofe e dar vida quele cantinho de terra. O seu cicerone suspirou. Voc me faz lembrar de coisas tristes, contudo eu entendo a sua curiosidade e tentarei satisfaz-la, contando-lhe os fatos testemunhados. Antes de tudo, devo-lhe dizer que a aproximao da catstrofe era de nosso conhecimento... Ante o olhar surpreso de Supramati, ele acrescentou sorrindo: Seramos cientistas medocres, se no tivssemos condies de prever o desastre. Mas era impossvel evit-lo. Assim, os nossos magos sabiam o que estava por vir. O modo como a atmosfera ficou desequilibrada sempre leva morte instantnea e cristalizao toda a superfcie do planeta. O calor interno se volatiliza, feito o ar de um fole furado, o globo planetrio fica envolto numa camada to grossa de gases e vapores, que os raios solares no conseguem atravess-la. E assim, a morte do nosso planeta era inevitvel: mas ns, imortais, no podamos morrer e por isso que fomos obrigados a sanear o nosso abrigo, onde podamos sobreviver tal qual num osis vivo no meio deste cadver planetrio. Para alcanar o objetivo, ns tnhamos disposio a matria primeva do elixir da longa vida, conforme vocs o denominam. Orientados por nossos magos, irrigamos com a essncia vivfica as terras do vale, borrifamos as plantas e a misturamos no alimento dos animais; resumindo, criamos um lugar indestrutvel mas reduzido, dentro dos limites do qual ns podamos purificar a atmosfera e manter as condies necessrias para a sobrevivncia. Feito isso, ns vivemos aqui uma vida bem singular, dedicando-nos por inteiro cincia e aguardando pacientemente o momento de nossa libertao, j que o destino nos condenou no s a viver, mas a sobreviver ao planeta onde nascemos. Um tremor involuntrio percorreu o corpo de Supramati; todo o horror desta existncia eterna, para a qual ele tambm se sentenciou insensatamente, apoderou-se dele com fora redobrada. Enxugando com a mo trmula o suor da testa, ele observou em voz baixa: Sim, a sua sina terrvel! Mais terrvel ainda presenciar semelhantes desastres e sobreviver a eles. Se as recordaes no lhe forem por demais penosas, conte-me as suas sensaes no momento da desgraa e tudo o que voc sentiu depois que se viu na escurido nesta terra morta. Parece-me uma sentena insuportvel no poder sair dos limites deste vale, onde a cincia mantm ainda uma vida quimrica para no se ver em trevas, no topar a cada hora em milhares de cadveres

e no ouvir os gemidos e blasfmias dos asquerosos e covardes seres para os quais este cadver planetrio, como voc o chama, serve de calabouo. O companheiro de Supramati no incio nada respondeu e subiu calado os degraus de um grande pavilho arborizado, perto do qual eles se encontravam. Uma balaustrada delimitava o imenso salo. O imortal eremita acotovelou-se sobre o corrimo e, apontando para a paisagem sua frente, disse: verdade! Uma vida longa penosa, no obstante, no devemos faz-la ainda mais dura, dando-lhe um carter trgico e desesperador. Dispomos at de um conforto invejvel. A natureza em nossa volta linda, ainda que seja estranha; o acervo das runas do passado fora dos limites do vale uma conseqncia inevitvel do tempo, que a tudo destri, ainda que mais lentamente que certas catstrofes, mas no com menos firmeza. Assim, diante de ns abre-se um vasto campo de estudos e pesquisas cientficas, e o trabalho nos faz esquecer do resto. Acredite, irmo, que o verdadeiro mundo de um homem se insere nele prprio e que dele depende criar para si um paraso ou inferno. Supramati recostou-se em silncio sobre uma das colunas que sustentavam o telhado do pavilho e olhou pensa-tivamente para aquele quadro, imerso na plida luz espectral que conferia a todos os objetos uma tonalidade extremamente suave. Diante deles, estendia-se um grande lago, cercado de vegetao exuberante. Em sua superfcie espelhante, no agitada por nenhuma brisa, nadavam sem pressa grandes aves de pescoo comprido e penacho na cabea, parcialmente assemelhando-se a paves e cisnes; havia as de cor branca, preta, prpura e at azul feito safira, com penachos dourados - todas pareciam pedras preciosas vivas. Apenas o silncio mortal reinante imprimia quele maravilhoso ambiente um selo de mistrio e tristeza. Supramati comeou a examinar o caramancho a cu aberto onde agora eles se encontravam. Era amplo, cercado de flores e vegetao, com mesinhas e cadeiras confortveis. Algumas das mesas estavam atravancadas com livros e manuscritos. Como voc v, irmo, temos um conforto necessrio - disse o guia de Supramati. Sentemo-nos aqui! Vou atender ao seu desejo e contar-lhe as minhas impresses no momento do desastre. Confesso-lhe que estas recordaes so muito duras para mim, mas a sua curiosidade justa e eu considero de meu dever satisfaz-la. Conforme eu j disse, ns estvamos prevendo a inevitvel catstrofe, mas no sabamos com preciso o momento em que ela ia se dar. Baseando-nos em diversos sintomas, perturbaes atmosfricas, chegamos concluso que o minuto fatal estava prximo e que o incio seria dali a sete anos, e que depois - ns sabamos - seria o fim de tudo.

Todos os nossos preparativos estavam concludos, entretanto ramos oprimidos por tristeza e pavor. Sentamos uma imensa pena de milhares de criaturas, negligentes e despreocupadas, fazendo pouco caso de todos os avisos e vaticnios da iminente morte. Naquele tempo eu contava alguns sculos e no possua parentes diretos, mas entre os habitantes da cidade eu tinha amigos e conhecidos. Foi neles que eu tentei incutir a necessidade de orao e arrependimento para que a terrvel transio os apanhasse puros e preparados. Minhas pregaes no tiveram xito, pois os cientistas oficiais asseguravam que tudo estava em ordem, que nada na natureza prenunciava o fim, e que os profetas da desgraa eram simplesmente ridculos. Os indcios do perigo, no entanto, vinham crescendo, mostrando-nos que a decomposio da atmosfera j havia comeado - o que provocaria a formao de gases mortferos. As ltimas semanas notabilizaram-se por saltos incrveis da temperatura: um frio terrvel, sem qualquer transio, dava lugar ao calor insuportvel, e vice-versa. Em diversas partes do planeta ocorreram catstrofes regionais: furaces inditos, terremotos terrveis, erupes de vulces em locais onde eles nunca aconteceram e, finalmente, o arquiplago foi inesperadamente tragado pela gua. Por fim, chegou o dia fatdico. O calor era de rachar; o ar estava denso e sufocante. Atendendo ordem do mago superior, ns reunimos todos os animais a serem preservados e ministramos a eles o elixir da longa vida, defumando ervas umedecidas com a essncia primeva nas trpodes. Contudo, ele no nos disse que a hora do desastre j tinha soado. Tomado de aflio, eu me dirigi ao templo. Minha inteno era rezar e depois visitar meus amigos, cuja sorte me preocupava sobremaneira. Toda a cidade estava em p e fervilhava em animao. Devo acrescentar que um pouco antes daquele dia tinha acabado uma longa guerra devastadora, coroada com a vitria do nosso jovem monarca. Na vspera do dia fatdico, o rei entrou triunfalmente na cidade liderando o exrcito. A vitoria seria comemorada durante trs dias consecutivos e os festejos pblicos atraram cidade a populao circunvizinha. Voc no reparou no acampamento onde estava aquartelado o exrcito espera da revista que deveria ocorrer logo depois do banquete do rei? No! Dakhir no me levou l. Foi medonho! Dez mil soldados e quinze mil espectadores ficaram para sempre erguidos naquele acampamento. Mas continuemos! Eu cheguei a cavalo e logo me dirigi ao templo. Ao ver a multido ruidosa e alegre que enchia as ruas, meu corao comprimiu-se; e eu ainda ignorava que a vida de milhares de pessoas duraria to pouco. Mandei de volta o cavalo com o meu acompanhante, pois tinha a inteno de pernoitar na cidade e s no dia seguinte retornar irmandade.

Passou cerca de uma hora. A liturgia estava chegando ao fim e eu j estava prestes a abandonar o templo quando, subitamente, aconteceu uma coisa estranha. Todo o ar comeou a crepitar, sendo recortado, cruzado por raios azuis, verdes, amarelos, vermelhos e violetas. A seguir tudo pareceu incendiar-se. As chamas comearam a sair da terra, paredes, pessoas, cu, rvores e todos os objetos; era um mar de fogo. Fiquei tonto e asfixiado. Uma dor dilacerante percorria todos os meus membros, cada nervo do meu ser parecia estar sendo arrancado e queimado ao contato com as chamas que se desprendiam de mim. Depois eu perdi os sentidos. No sei dizer quanto tempo fiquei desacordado. Quando abri os olhos, a luz do dia foi substituda pela penumbra escarlate, que est a, e que imprime a tudo esse aspecto funesto. Fiquei apavorado. Naquele minuto esqueci de minha imortalidade e conhecimento. Eu no passava de uma msera poeirinha humana, tremendo diante da destruio e consciente de sua impotncia ante os elementos enfurecidos da natureza. Naquela hora no me dei conta de que tudo estava acabado e imaginava que aquilo era um prlogo da catstrofe. Provavelmente agora - pensava eu ento - a terra ir tremer; ouvir-se- um estrondo subterrneo, os rios sairo dos leitos e do interior da terra se soltaro correntes destruidoras de lavas, cinzas e gases mortferos. Um suor gelado cobriu-me o corpo... Tudo que lhe conto agora passou na minha mente com a velocidade de um raio. Mas nada veio a ruir, nada se moveu; fui envolto em silncio mortal. Foi justamente aquele silncio, aps aquela animao toda, que me deixou apavorado. Olhei em volta. Por toda a parte viam-se pessoas, s que estacionadas, como se fulminadas por terror. Eu corri para um homem mais prximo, peguei-o pela mo - ela estava rgida e fria como pedra. Recuei aterrorizado. Pela segunda vez a natureza humana com as suas medocres fraquezas deixou-me estupefato. S ento compreendi o sentido da revelao feita para ns: "Morte instantnea e cristalizao de toda a superfcie do planeta". E assim, tudo se realizou... Todos aqueles seres humanos que me rodeavam, feito vivos, eram cadveres, como se petrificados por encanto de um basto mgico. E eu estava vivo! Sa inclume da terrvel catstrofe!.. O que senti naquele momento indescritvel!. Tinha medo de mim mesmo... medo do futuro!.. Como um alucinado, corri para fora. Se algum me visse naquela hora, no teria acreditado que eu era um representante imortal do conhecimento superior. Antes o instinto, do que a vontade, me trouxe casa de meus amigos. Na entrada estava esttico o porteiro. Feito furaco passei por ele e entrei no quarto, onde normalmente se reunia toda a famlia.

De fato, todos estavam ali. O dono da casa, sua esposa e o filho pareciam conversar perto da janela aberta. Os outros membros da famlia se encontravam junto mesa, enquanto a irm mais velha servia-lhes frutas. Chorando copiosamente, apalpei todos, fixando seus olhos imveis que, feito vivos, refletiam pensamentos: srios, alegres ou maliciosos, do ltimo instante de suas vidas. Fiquei longo tempo chorando, rezando e refletindo. S depois que me voltou uma relativa tranqilidade, eu me pus a caminho de volta para a irmandade. No caminho tudo estava inteiro e nada mudou de aspecto; apenas as rvores e seus frutos viraram pedra e as guas dos riachos e cascatas solidificaram-se. Foi pela primeira vez que vi os muros branco-nuviosos que cercavam o vale, mas atravess-los, eu j no tinha foras. Sentia-me muito mal e feito uma massa innime desfaleci na terra. Apesar do elixir da longa vida, o meu organismo ficou muito abalado e minha alma teve de suportar todo o martrio da agonia. Quando voltei a mim, vi-me deitado no terrao do palcio da irmandade. Em torno de mim havia uma luz suave e uma brisa aromtica respingava em meu rosto gotculas do chafariz localizado perto de mim. Agarrei hesitante um galho de rvore sob a minha mo - ele era flexvel; por todos os cantos, as flores emanavam aroma, os pssaros chilrea-vam, o prado estava verdejante. Estaria sonhando?! Talvez a medonha viso da terra morta tivesse sido um pesadelo!? Mas este equvoco durou pouco. No terrao apareceram alguns de nossos irmos. Em seus rostos, normalmente serenos, li tristeza e infelicidade. Era evidente que eles haviam passado por horas difceis. A essncia primeva preservou-nos da morte, mas no nos livrou de sentimentos humanos, da dor e das paixes. Somente os magos superiores estavam invariavelmente calmos e impassveis. Aos poucos ns fomos nos acostumando nossa nova situao e olhvamos com indiferena, quando o planeta se foi povoando com os asquerosos espritos: rejeitos do nosso vizinho - a Terra. Aqui se instalou Ebn-Ari e sua interessante personalidade agradou-nos bastante. Ele um grande sbio e um dirigente austero de seu povo diablico e traioeiro. Eu no imaginava que Ebn-Ari tivesse relacionamento com a comunidade - disse sorrindo Supramati. Seu cicerone tambm sorriu. Para ser franco, ele pouco mantm este relacionamento e nunca, sem um convite expresso, atravessa os muros de nossa irmandade; no entanto, ns sabemos que ele gosta de descansar em nosso tranqilo e pacfico abrigo. Ocorre tambm que os espritos vampricos, cansados de sua triste vida, vm para c para pedir-nos que os ajudemos a sair deste local de sofrimentos, e ns fazemos de tudo para impedir que o nosso planeta seja alvo destas desagradveis visitas. Mas isso muito difcil: o fardo desses pobres seres - anfbios de dois mundos - por demais pesado.

O guia se calou e apontando com a mo Dakhir, que apareceu na curva da alameda em companhia de alguns imortais, acrescentou: Seu irmo est chamando! Est na hora de vocs irem! Supramati agradeceu ao seu cicerone e todos se beijaram em despedida. Alguns minutos depois, os nossos viajantes j se encontravam alm dos limites do muro nuvioso.

Captulo VII

Perturbado, Supramati quis iniciar uma conversa sobre as particularidades da catstrofe que ceifou a vida de tantos milhes de pessoas, mas Dakhir anunciou que eles ainda teriam muito tempo para isso no castelo da Esccia e que eles teriam de se apressar para ir residncia de Ebn-Ari, que, quela hora, j devia ter retornado para casa. Na enorme escada de basalto que levava aos seus prprios aposentos, eles viram Ebn-Ari, que, pelo visto, tinha acabado de chegar com seus companheiros. Eles trouxeram cerca de uma dzia de seres de ambos os sexos que estavam num estado indescritvel de desespero e raiva. A densidade destes era tal, que antes poderiam ser tomados por encarnados vivos do que por espritos. Seu rugi-do ouvia-se de longe. Nos degraus da escada, junto aos ps de Ebn-Ari, con-torcia-se um ser feminino de beleza demonaca, mas ao mesmo tempo nojento devido expresso animalesca de seu rosto. A mulher gritava em voz alta e exigia que a devolvessem Terra ou, pelo menos, atmosfera terrestre; sem lhe dar ouvidos, o Rei das Larvas empurrou-a com desprezo. Ao seu sinal, os ajudantes retiraram-na dali. Virando-se para os visitantes, Ebn-Ari fez um sinal de saudao e disse: Desculpem-me, meus amigos, por eu receb-los com este concerto lancinante, mas o monstro espiritual, arrancado da Terra, est possesso por eu t-lo separado de suas vtimas. E, no entanto, o que lhe falta aqui? Ela poder ocupar, a seu bel-prazer, um dos palcios abandonados. A moblia luxuosa, as mesas esto fartas de pratos requintados,

os pores esto cheios de vinhos finos e a sociedade numerosa, ainda que um pouco calada. E que belos jovens e encantadoras mulheres a freqentam! H-h-h!

Ebn-Ari soltou uma sonora gargalhada de escrnio. Mas voc est sendo muito cruel com os seus sditos - observou Dakhir. - terrificante ter que ficar nesta escurido, cercado de objetos que de vida s tm a aparncia! um cemitrio vivo - um suplcio em dobro para espritos sofredores. Uma expresso de implacvel e cruel sorriso esboou-se no rosto de Ebn-Ari. Faltar-me-ia misericrdia para ter pena de todas essas criaturas imprestveis, e caso elas no queiram ficar aqui, que vo embora e se submetam purificao inexorvel. J estou enojado de ter que dirigir este pensionato de moas com essas maneiras depravadas. Se isso continuar da forma que est, logo no vai caber mais ningum. Ento que fiquem at se arrependerem e agentem os suplcios de Tntalo, saciando suas taras com damas e cavaleiros de pedra. Continuando a conversar, Ebn-Ari levou os visitantes ao quarto contguo. L eles se sentaram e comearam a falar sobre o estranho planeta e a catstrofe que o levou quele estado. Mas logo a conversa passou novamente a abordar as larvas, que interessavam sobremaneira a Supramati. Diga-me, por que os espritos se tornam to materiais, que at a morte no consegue lhes devolver o estado espiritual? Depois, o que eles devem fazer para se purifica

rem? - interessou-se Supramati. Os motivos de tal estado so simples e claros. A vida material, repleta de toda a espcie de abusos, impregna a tal ponto o corpo astral com os fluidos impuros, que, quando a morte o separa do corpo material, o esprito pesado como uma montanha -j no est em condies de se elevar atmosfera. Ele sente todos os desejos carnais e, para saci-los, utiliza-se de todos os recursos, at dos mais criminosos. O que se refere purificao desses sujeitos, ela se processa muito lentamente e difcil, exigindo arrependimento, concentrao e oraes ardentes. Para tornar-lhes mais fcil esta tarefa, aqui se acha instalada uma cruz, saturada de fluidos puros; tocando nela, eles podem se purificar e fortalecerse at que alcancem a leveza necessria para deixar este mundo com sua terrvel atmosfera e passar esfera preparada para a encarnao. Se voc tiver interesse em ver este trabalho de purificao, eu poderei mostrar-lhe. Justamente agora ns temos um esprito ansioso em abandonar o planeta. Supramati agradeceu-lhe efusivamente. Todos os trs foram sala, onde j tinham estado antes, no centro da qual se erguia um crucifixo branco, reluzindo como neve ao sol. No longe da porta, Ebn-Ari parou e apontou com a mo um ser de vagos contornos humanos. O ser estava abaixado no pedestal e, envolvendo-o com os braos, encostou a testa base do crucifixo. Do smbolo da expiao parecia jorrarem feixes gneos e correntes de vapor azulado que penetravam no corpo da criatura genuflexa, tornando-a cada vez mais transparente e area. Vez ou

outra raios cintilantes recortavam a cruz de cima para baixo. De repente, a aurola azulada que o envolvia tremulou e comeou a vibrar e o esprito genuflexo subiu lentamente ao ar, ainda se segurando na cruz. Seu rosto expressava uma felicidade desmedida. Apoiado por ondas azuladas que o envolviam, o esprito continuava a ascender. Por fim ele soltou a cruz e, oscilando, subiu at o fim da abbada, desaparecendo na sombra. Este esprito logo ir deixar-nos: ele est prestes a se purificar totalmente - observou Ebn-Ari ao se virar para a sada da sala. Supramati seguiu-o pensativamente. Pouco depois ele perguntou: Poderia voc, Ebn-Ari, dar-me uma definio mais precisa sobre um assunto que nos interessa? Vocs chamam de "larvas" os espritos nocivos que povoam este planeta; vocs falam tambm de espritos "larvais". Bem, j bem antes, quando eu estudava o ocultismo, eu li em algum lugar que os ocultistas modernos do o nome especfico de "larvas" aos parasitas psquicos gerados pela mente humana, cuja existncia depende do grau da fora mental que as cria. Explique-me, pelo amor a Deus, as diferenas que caracterizam esses seres! Se eu fosse descrever e explicar-lhe em todos os detalhes a questo colocada, levaramos muito tempo - disse sorrindo Ebn-Ari. - Alm do mais a nossa terminologia nesta questo deveras pobre, sendo motivo de muitos mal-entendidos. Os ocultistas modernos - conforme voc me diz - do o nome de "larvas" ao pensamento humano, ativo e criador, que, no decorrer de um tempo maior ou menor, vive como um ser especfico - um pensamento, contudo, malfico, que age negativamente sobre o organismo como uma fora demonaca. A mim me parece que seria mais lgico chamar essas substncias efmeras, que vivem s custas da vida de outrem, de "parasitas psquicos", e o termo "larvas" deve ser deixado para designar os espritos criminosos que destroem conscientemente as vtimas em que eles encostam. Eu j lhe disse que esta questo por demais complexa e difcil esgot-la em algumas palavras. Aos poucos voc aprender tudo isso na prtica e na teoria. Em resumo, eu lhe digo que damos o nome de "esprito larval" para um esprito sofredor, cujos anseios carnais se mantiveram to fortes, que invs de compreender o seu estado e tentar atravs do arrependimento, oraes e purificao, quebrar os elos que o ligam a esta matria, ele, pelo contrrio, busca com todos os meios saciar as suas paixes no-satisfeitas. Tais espritos anseiam por excrees humanas e visitam todos os locais onde fartamente se depositam fluidos materiais, tais como: cozinhas, restaurantes, banquetes e orgias. Eles so companheiros inseparveis de pessoas viciadas e voluptuosas, e seu corpo astral vai adquirindo, aos poucos, tal densidade, que eles tm dificuldade de se mover at na atmosfera densa da primeira esfera e por isso se agarram ao corpo de uma pessoa para servir-lhes de sustentao. A partir desse momento que comea a obsesso e, se possvel, a possesso.

Ocorre uma coisa estranha: num mesmo corpo humano habitam dois espritos, que contestam o poder um a outro. s vezes sai vitorioso o esprito do vivo, mas, com maior freqncia, vence o esprito possessor, que comea a se regalar com todas as sensaes da vida carnal. Entretanto, tal confrontao sempre acaba mal para o organismo, causa alteraes no crebro, provoca paralisia progressiva e termina em morte. Tais espritos so impuros, nocivos - claro - e vidos por prazeres, no entanto eles no so totalmente irrecuperveis, pois causam o mal no pelo simples prazer de faz-lo, mas devido ao seu egosmo, leviandade e volpia. Estes ns chamamos de espritos "larvais". O nome de "larva" ns damos ao assassino e bandido do espao, o qual, caso consiga, se apossa do corpo de uma pessoa viva e sem qualquer compaixo expulsa o proprietrio legal, formando laos que o ligam ao corpo. Ao se tornar o senhor do organismo, sentenciado pela lei da natureza a se decompor, a larva acha um jeito de prolongar por algum tempo, maior ou menor, a vida ilusria, graas ao fluido material acumulado em seu corpo astral em conseqncia da atividade constante sobre os vivos, e extraordinria fora que ela utiliza para manter, com dificuldade, o instrumento adquirido. Esta criatura asquerosa utiliza o cadver habitado para diversos tipos de abusos e para a consecuo de coisas decididamente inditas. Para manter aquela vida efmera, a larva, com implacvel crueldade, vai tomando de assalto novas vtimas, dilacera-as e mata, pois o fluido contaminado da decomposio, assim que sai de seu corpo astral, fatal para qualquer ser humano vivo. A larva tem a capacidade tambm de se materializar facilmente e manter essa densidade corprea durante dias, meses e at anos, se lhe for dada a liberdade de se revitalizar. Algumas se materializam durante a noite; outras aparecem at de dia, e para um profano difcil diferenci-las de seres vivos. Mas uma relao com elas, o seu contato trgico para os encarnados e esses tugues do espao no podem ser tolerados - por isso que so afastados: os mais submissos so mantidos prisioneiros na atmosfera da Terra, enquanto os mais perigosos so transferidos para c, onde elas, queiram ou no, so obrigadas a parar com sua atividade funesta. Neste planeta extinto, onde as larvas tm de ficar, no h liberao de fluido material e vivfico, portanto, o corpo astral que as preenche e a matria que as sobrecarrega vai aos poucos se volatilizando. claro que se a orao e o arrependimento no acompanharem a purificao, esta estende-se por longo tempo e poder durar sculos inteiros, pois a m vontade do esprito servir de impedimento para a purificao. O esprito que voc acabou de ver agora orando junto cruz pertence aos habitantes mais antigos do planeta morto. um ex-adepto da magia negra que abusou de seu conhecimento para

satisfazer seus baixos instintos. Fulminado por contragolpe durante um dos seus atos malficos, ele se tornou uma larva e acabou sendo enviado para c. O esprito da mulher que eu trouxe faz parte dos mais perigosos. Para dizer a verdade, ela j deveria ter sido expulsa da Terra faz muito tempo, mas ela conseguiu at hoje, com uma diablica habilidade, evitar o banimento, o qual teme mais que tudo. A traioeira alma, profundamente depravada, ex-bruxa e herona de sabs medievais, essa sacerdotisa de todo tipo de vcios j passou presa numa solitria do espao. Mas, to logo saiu, encontrou um meio de se reencarnar, ainda que isso lhe fosse vedado. Pode-se entender: a famlia dela propiciou-lhe condies favorveis, pois os pais eram criminosos. Sua me, a despeito da natureza animalesca e impura, no suportou o contato com os fluidos de putrefao e do corpo astral contaminado que nela germinou. Ela morreu prematuramente dando luz um monstro espiritual, que comeou a sua carreira terrena j com este primeiro assassinato. Depois, tudo correu como era de se esperar. Absorvendo inconscientemente o sumo de todos que a rodeavam, os quais enfraqueciam, definhavam e sucumbiam, este ser mortfero foi crescendo at se tornar uma moa, e conseguiu achar para si um ambiente adequado. Os repugnantes mistrios de antigos sabs nem de longe so lendas: eles so realizados at nos dias de hoje. Nessas asquerosas reunies ela tinha um papel de destaque. Tudo em sua volta morria de extenuao. intoxicado pelo contato devastador desse vampiro encarnado, que recebeu o apelido de "Vnus Fatal". Alis, ela no se limitava aos assassinatos inconscientes, ela tirava de seu caminho todos aqueles que a incomodavam. Acidentalmente - se que existe alguma coisa acidental - ajuntou com um sorriso de mofa Ebn-Ari -, acidentalmente, o veneno que se predestinava sua rival foi tomado por ela mesma, e ela morreu poucos dias depois. Sua fria, no momento que ela se encontrou no espao, impossvel de ser descrita. Todas as suas paixes animalescas tempestearam em seu ser e para satisfaz-las ela recorreu s atividades diablicas. Em pouco tempo ela praticou dez assassinatos; no dcimo-primeiro eu a peguei -como se diz - em flagrante e pus termo s suas andanas, trazendo-a para c para ela refletir sobre seus xitos passados e se amainar. Ela s ir sair da minha capital depois de se purificar, mas ningum ir apress-la - finalizou Ebn-Ari com seu habitual riso rspido e desdenhoso. Supramati ainda quis fazer algumas perguntas, mas Ebn-Ari balanou a cabea e disse: Por hoje basta! Est na hora de voc, Dakhir, levar o seu nefito. A agitao passada por ele, mais as condies em que ele se encontra, so demasiadamente fortes at

para seu corpo imortal. Voc tem razo! Eu mesmo estou vendo que hora de irmos - concordou Dakhir. - E assim, at o nosso prximo encontro na Terra, terrvel Senhor das Larvas e protetor de suas vtimas!

Ebn-Ari suspirou. Cansa-me muito a minha misso e o asqueroso mundo de vcios para onde fui chamado para trabalhar. Freqentemente fico aborrecido e enojado da crueldade que eu tenho de empregar; mas no h o que fazer. As leis tm de ser respeitadas: a vida material - para os encarnados; a vida no espao - para aqueles que chamamos de "mortos". Cada um tem de ficar e trabalhar em sua esfera, e eu sou obrigado a cumprir at o fim a tarefa que assumi voluntariamente. Continuando a conversar, eles saram para a escada de granito, onde aportaram ao chegarem quela cidade estranha. Dakhir ergueu o seu basto - no ar desenhou-se um sinal flamejante. No mesmo instante a cabea de Supramati tonteou e ele sentiu uma poderosa rajada de vento levant-lo impetuosamente ao espao. Logo depois veio aquela seqncia de solavancos, iluminao inusitada; vibraes lancinantes fizeram Supramati concluir que eles haviam adentrado as camadas atmosfricas da Terra. Ao sentir uma forte e inesperada sacudida, como se tivesse topado em alguma coisa, o vo teve o seu trmino. Supramati verificou surpreso que eles se encontravam no pavilho de cristal de onde partiram em aventura ao mundo da quarta dimenso. O pavilho agora estava iluminado em uma espcie de luz prpura e junto da mesa estava Nara, colocando em duas taas um lquido vermelho flamejante de uma nfora dourada. Tome, Dakhir! Ele, sem falta, ter que descansar. Suas foras esto totalmente esgotadas devido ao estado inslito do corpo. Supramati mal ouviu as ltimas palavras da esposa, levando aos lbios dele a taa. O lquido aromtico encheu seu organismo de calor vivfico e de bem-estar extraordinrio. Uma profunda sono-lncia dominou-o e ele perdeu os sentidos. Quanto tempo durou aquele sono profundo, feito morte, nem ele tinha condies de dizer. Quando abriu os olhos, estava deitado numa grande cama com colunas e baldaquino, em seu dormitrio no velho castelo escocs. As cortinas estavam meio levantadas e deixavam penetrar raios brilhantes de sol, vertendo reverberaes douradas no fundo escuro do tapete. Nos primeiros instantes, ele no conseguia se lembrar de nada e sentia s uma necessidade premente de ar fresco e luz. Saltando da cama, correu at a janela e a abriu. Uma corrente de ar puro e refrescante bafejou-lhe o rosto. Ele se debruou no parapeito e inspirou avidamente o sopro do oceano que se estendia diante dele. Os raios do sol ascendente inundavam em ouro as ondas eternamente inquietas. Aos poucos as vagas lembranas comearam a despertar em seu crebro; mas os quadros que se erguiam de sua viagem area eram a tal ponto estranhos, que o ceticismo inerente a ele assomou-se-lhe imediatamente. Com um sentimento misto de desconfiana e irritao, Supramati per-

guntava-se se Nara e Dakhir ousaram fazer uma brincadeira de mau gosto com ele, levando-o a ter alucinaes para faz-lo acreditar que ele realmente havia feito uma viagem ao mundo do almtmulo. Supramati espreguiou-se e j quis chamar o criado para ordenar que lhe trouxessem roupa para se vestir, quando estacou e resmungou pensativo: Que diabos! Eu me lembro bem de ter vivido uma sensao diferente. Estou sentindo agora o peso do corpo e antes eu estava to leve que podia pairar no ar e at perdia equilbrio. E ento, lembrou-se claramente de tudo: Sarmiel, com sua terrvel lgica diablica; o planeta morto, os irmos imortais e Ebn-Ari com seus nefastos sditos. A impresso destas recordaes era to forte, que ele se recostou por uns instantes parede, apertando a cabea com as mos. Como se em sonho, Supramati dirigiu-se at a campainha. Ele queria se vestir e ir falar com Dakhir, mas de repente viu surpreso um objeto volumoso sobre a mesa ao lado da cama. Supramati aproximou-se rapidamente e julgou tratar-se de um fragmento de pedra, arrancado de uma rocha. Mas, mal se inclinou sobre ele, de seus lbios soltou-se um grito contido de estupefao e ele se apoiou sobre a mesa, tremendo de perturbao. Diante dele estava a prova de que a viagem ao mundo do alm-tmulo no fora um sonho. A superfcie da pedra parecia estar coberta por uma delicada vegetao de cor azul esverdeado. Naquele outrora suave leito repousava o corpo de um beb - a obra insigne da infausta e trgica arte da natureza. As mozinhas e os pezinhos macios e delicados do pequeno ser parecia serem feitos de marfim escurecido, sua cabecinha cobria-se de madeixas negras como asa de corvo e sua boquinha estava semi-aberta. Com as mos trmulas, ergueu Supramati a pedra e comeou a examinar interessado aquele ser, nascido no outro planeta - testemunha muda do terrvel desastre. Os grandes olhos cinzaesverdeados da criana pareciam fit-lo com um lmpido olhar sorridente, os pequenos e encaracolados fios de cabelo, grudados na testa, parecia serem flexveis e sedosos, no entanto, tudo era to slido como pedra. Com que terrificante rapidez teriam agido os mortferos gases para resguardarem em suas vtimas aquele aspecto da vida? E de que forma Dakhir conseguiu trazer para ali aquele fragmento pesado de pedra? Depois de colocar o beb sobre a mesa, Supramati cobriu-o com um leno e decidiu guardar aquela estranha obra de arte numa vitrine especial. Vestindo-se rapidamente, ele foi ao aposento da esposa. Sentia uma necessidade irreprimvel de v-la para transmitir-lhe as suas impresses e fazer algumas perguntas. Em sua excitao, pensou at em acordar Nara se ela estivesse dormindo, no entanto esta j havia acordado e estava sentada junto da porta aberta do balco, folheando um livro.

Nara! De fato, preciso ter uma cabea boa para no endoidar de tantas aventuras. Quando eu penso no que vi e passei, torno a achar que aquilo foi sonho. Nara estendeu-lhe sorrindo a mo e fazendo-o sentar-se com ela no sof ao lado, disse jovialmente: No ser toda a nossa vida, meu querido, um sonho ininterrupto? At os acontecimentos de nossa vida eterna passam de lado semelhana dos quadros alternveis de decoraes teatrais, que mal aparecem, desaparecem de novo... Mas conte-me as impresses e as peripcias de sua inusitada viagem ao mundo do alm. Supramati contou emocionado tudo o que viu e sentiu. Quanto mais mistrios eu conheo que governam a vida humana, quanto mais eu me familiarizo com as terrveis leis da eternidade, tanto mais eu quero estud-las - con cluiu Supramati. Faz bem! O conhecimento a ncora da salvao de nossa longa vida. S ele pode nos fazer aceitar os sofrimentos espirituais da existncia eterna, que nos nega at o necessrio descanso tumular. Para ns o trabalho um apoio, esquecimento e progresso, se no quisermos decair como decaiu Narayana - observou pensativamente Nara. A partir daquele dia Supramati voltou a trabalhar com um ardor cada vez mais crescente. Seus estudos absorviam-no a tal ponto, que ele esqueceu do resto. Seu interesse vida externa extinguiuse totalmente e ele vivia exclusivamente no excntrico mundo do conhecimento ocultista que lhe abria horizontes cada vez mais novos. Dakhir, vez ou outra, at tinha que interromp-lo para lhe dar alguns dias de descanso. No velho castelo os dias no eram contados. Ali nada mudava e como sempre reinavam luxo moderado, silncio e isolamento. Alguns criados velhos desapareceram e foram substitudos por outros - da mesma forma velhos, calados e humildes. Supramati mal notava essas mudanas, pois a administrao da casa era de inteira responsabilidade de Nara. Ele estava inteiramente imerso no estudo de frmulas mgicas que logo no apresentavam para ele qualquer mistrio. Podia realizar as invocaes e penetrar nos campos da magia negra com seu terrvel poder de fazer o mal. Supramati no desdenhava tambm a Medicina. S que agora ele estudava um mtodo totalmente diferente de tratamento e a utilizao de novos remdios. O magnetismo, a clarividncia e a homeopatia desempenhavam um papel preponderante. Mas, com especial afinco, ele se dedicava exercitao da fora da mente. Seu pensamento disciplinado fazia surgir no espelho mgico imagens cada vez mais perfeitas e complexas. Sua poderosa e inflexvel fora de vontade jamais o traiu e governava os espritos superiores e foras destruidoras. No ambiente imutvel em que vivia Supramati, ele foi o nico que sofreu mudanas e somente ele no se dava conta de que do antigo mdico Ralf Morgan no havia restado praticamente nada. O

sorriso ctico desapareceu totalmente dos lbios do sbio mago; o mundo com suas alegrias torpes e interesses midos parecia no existir para ele, e em seus grandes olhos escuros ardia aquela estranha chama que certa vez o fez assombrar-se ao verific-la nos olhares de outros membros da irmandade imortal. Uma noite Supramati teve xito de levar at o fim uma operao mgica muito complexa que exigia tanto conhecimento quanto energia. Dakhir apertou-lhe alegre a mo e disse: A minha misso terminou. - Voc, meu irmo, adquiriu a primeira iniciao. Ns estudamos o mal, pesquisamos as suas razes e aprendemos os seus contravenenos. Agora voc est no limiar da magia branca. Aps um descanso merecido, ns podemos voltar para Ebramar e j sob a sua direo iniciar o estudo da cincia da luz. No dia seguinte, quando depois do almoo todos foram a uma pequena sala de estar, Supramati iniciou a conversa sobre a ida deles ndia, mas Nara o interrompeu: Espere! Antes de se enterrar no Himalaia, ns precisamos descansar um pouco, retornar sociedade e realizar algumas pequenas viagens. Que sentido tem perdermos o tempo em contatos com multido ignara e viajar sem qualquer objetivo?! Voc se engana profundamente, meu querido, e se esquece de que para o nosso conhecimento tornar-se real, devemos aplic-lo naquelas mesmas pessoas que voc chama de "multido ignara". Antes de iniciarmos novos estudos, devemos enfrentar a sociedade para certificarmos de que as paixes e o turbilho de prazeres no tm autoridade sobre ns, e tambm para renovar os laos que nos unem humanidade, os quais nunca devero se romper, se no quisermos nos tornar um ridculo anacronismo vivo. Meu Deus, Nara, como voc exagera! Em alguns trs ou quatro anos que ns passamos aqui isolados, ns no conseguimos ficar to atrasados em relao sociedade. Mas, se voc tambm, Dakhir, acha que isso recomendvel e at necessrio - vamos viajar e levar uma vida mundana! Graas a Deus, ns no temos problemas de falta de tempo! Mas para onde iremos? Primeiro a Paris e depois a Veneza. Podemos tambm esticar a viagem at as geleiras e visitar o depsito do qual voc um dos guardies. Depois iremos ao castelo da irmandade, quando chegar a hora de nos reunirmos l para relatar o nosso trabalho e traar o programa para o futuro. A pobre Lora vai ficar feliz em rever Dakhir, do qual nos apos samos por tanto tempo. Agora, senhores, se vocs esto de acordo com o meu programa, permitam-me que eu arrume tudo para a viagem e cuide de seus trajes. Quando estiver tudo pronto, eu os avisarei. Enquanto isso vocs podem cuidar livremente de seus trabalhos normais. A proposta foi aceita em meio a risos.

O resultado de tudo isso foi que Nara teve uma conversa confidencial com Tourtoze, e esta, na mesma noite, deixou o castelo.

Captulo VIII

Passaram-se cerca de trs semanas depois da conversa que acabamos de descrever. Certa manh, Nara anunciou que todos os preparativos j estavam concludos e que no dia seguinte eles deixariam o castelo. O restante do dia os homens dedicaram colocao em ordem do laboratrio e arrumao dos pertences que levariam consigo. Eles queriam deixar tudo arrumado para o tempo de sua longa ausncia. Na manh do dia seguinte, a criada de Supramati trouxe ao seu senhor um traje novo, bem diferente em seu aspecto e corte daqueles que ele normalmente usava. a ltima moda em Londres, Vossa Alteza - assegurou Tourtoze ao notar um olhar desconfiado de seu senhor. - Veja! O meu traje tem um corte exatamente igual. Hum! Estou vendo que a moda mudou muito. Estou curioso para ver o vestido de Nara resmungou Supramati, abotoando uma comprida sobrecasaca de l da cor de morcego. A seguir, pegando um chapu de feltro, de aba pontiaguda, ele saiu apressado ao quarto da esposa. Nara estava diante do espelho ajeitando o chapu. Ela trajava um vestido justo de l com cortes nas laterais o que permitia que fossem vistas as pantalonas bufantes, as meias pretas, as pernas bem delineadas e os pequenos sapatos de salto alto. Nara! Voc j se viu no espelho? Seu vestido indecente e esse chapu com trs penas e um enorme lao simplesmente ridculo! - exclamou Supramati. a ltima moda em Paris! - atalhou com firmeza a jovem mulher.

Ao medir o marido com um olhar de chacota, ela acrescentou: E voc por acaso est se achando lindo nesse roupo e chapu pontiagudo? Parece um judeu empetecado da Galcia! E ainda teima em reclusar-se da sociedade da qual nada sabe! Diabos! Comeo a crer que vamos encontrar muitas surpresas - arrematou rindo Supramati. Depois do desjejum em companhia de Dakhir, que tambm vestia traje idntico ao de Supramati, todos os trs saram. No ptio aguardava por eles um automvel que, bem mais rpido do que os cavalos, levou-os a toda para uma pequena estao ferroviria. A regio desrtica que cercava o castelo no sofrera qualquer mudana, porm os povoados que eles haviam visto de longe no dia da chegada cresceram enormemente, e as altas chamins fumegantes apontavam que ali tinham sido instalados diversos centros fabris. A estao tambm estava mudada. De um pequeno prdio, perdido na vastido ao redor, ela se transformou numa enorme estao, executada exclusivamente em ferro e vidro, erguendo-se no centro da formosa cidade cujas casas e graciosos chals, cercados por jardins, espalhavam-se ao longe em redor. Pensativo e cada vez mais surpreso ia contemplando Supramati tudo em volta, comeando a desconfiar de que ele passou no velho castelo bem mais tempo do que havia imaginado. Nos primeiros dias de sua permanncia na Esccia, Supramati recebia e lia jornais; entretanto, ao se entregar cada vez mais aos estudos, ele comeou a deixar a leitura no segundo plano. A poltica j no tinha para ele qualquer interesse, os acontecimentos mundanos que agitavam a sociedade, com a qual no tinha nada em comum, tornaram-se para ele indiferentes e at aversivos. Mas, agora, na nsia de recuperar as suas informaes sobre a vida moderna, assim que eles entraram no saguo da estao, ele comeou a procurar sofregamente um vendedor de jornais. No encontrou nenhum, por outro lado, ele viu uma espcie de mostrador que girava ao redor de seu eixo. Em cada compartimento havia diversos peridicos. Embaixo, uma mquina automtica indicava o preo de cada jornal. Um minuto depois, Supramati segurava nas mos um exemplar do "Times". Um tremor nervoso atravessou-lhe o corpo. Ele leu: "30 de setembro de 1940" - sua ida ao velho castelo ocorreu, entretanto, em agosto de 1900! Conseqentemente, desde o dia de sua chegada Esccia passaram quarenta anos e no quatro ou cinco como ele havia imaginado. Seria isso possvel? No estaria ele sonhando? Supramati no teve tempo de desfazer a dvida; nesse exato momento, assobiando e soltando fumaa, plataforma aproximou-se o trem, sua locomotiva pouco lembrava aquelas que ele conhecia. Uma vez que a parada seria bem rpida, Nara, aparentemente nem um pouco perturbada, pegou seu marido pelo brao e arrastou-o para um dos vages.

Supramati deixou-se cair na poltrona desorientado. Sua cabea girava. Ele no conseguia se recuperar do nervosismo ao descobrir que tinha ficado praticamente meio sculo no laboratrio. A dvida novamente lhe assomou. Ao tirar do bolso sua carteira, ele comeou a escarafunch-la. Recordou-se de que nela ficaram guardados alguns papis, marcados com data, relacionados com o tempo de sua viagem para a Esccia. A primeira folhinha que lhe caiu nas mos verificou-se ser uma conta da compra que ele havia feito na vspera da partida deles de Veneza. Comparou a sua data com a do jornal. No havia menor dvida: sem perceb-lo, passou quarenta anos no laboratrio e agora j contava setenta e quatro anos. Quem iria acreditar! Ainda hoje, pela manh, contemplava no espelho o seu aspecto juvenil. Alis, no ignorava que a sua juventude era eterna e, em comparao com a idade de Nara, era mais novo que um beb de colo. Mas, a despeito de tantos sculos vividos, a suave beleza de sua esposa no ficou nem um pouco prejudicada; somente os seus olhos, ao contemplarem o espao, s vezes traam cansao e desiluso de uma longa vida. Pelo visto, o trabalho abrevia o tempo, e bem que Nara estava certa quando disse que para os imortais, mais do que para outros seres humanos, o trabalho a ncora da salvao. Neste instante Supramati sentiu uma espcie de onda quente. Levantou os olhos e interceptou o olhar apaixonado da esposa, que lhe sorria triste e marota. Ele se aprumou. Passando a mo pela testa, como se quisesse afugentar pensamentos enfadonhos, disse em tom alegre: Perdoem-me, amigos, que eu, apesar de seus ensinamentos, no consigo me livrar das antigas asneiras. Uma simples bobagem, de quarenta anos terem passado to rpido e imperceptivelmente, deixou-me zonzo; e, ento, eu fiz as contas e cheguei concluso de que estou com setenta e quatro anos. Mas agora estou bem! Sou senhor de minha posio e tentarei, o mais rpido possvel, entender a realidade. Entretanto, no futuro, vou procurar manter contato com o mundo para no parecer um extraterrestre. Todos ns passamos no comeo pelas mesmas surpresas e o compreendemos perfeitamente - observou rindo Dakhir. - E agora leia o seu jornal para se orientar pelo me nos um pouco. Supramati aprofundou-se na leitura, cujo entendimento era mais difcil que supunha. Eram latentes as profundas mudanas no plano poltico do mundo. Os nomes das pessoas que dirigiam o destino dos povos eram-lhe totalmente estranhos. Mas o que saltava aos olhos do sbio e futuro mago era o fato irrefutvel de que o acaso reinava na terra, que o mais forte oprimia e explorava o mais fraco com mais crueldade, e que o egosmo insensvel tiranizava a sociedade, nivelando todas as posies, colocando em primeiro plano uma nica divindade - o ouro. Em Londres os nossos viajantes ficaram apenas uma semana. Dakhir e Supramati aproveitaram esse tempo para saber dos acontecimentos dos ltimos quarenta anos. Quanto a Nara,

esta parecia conhecer mais que todos e contou-lhes sobre a sorte de algumas personalidades pelas quais se interessava. Supramati pensou em visitar a sua antiga residncia, mas o velho prdio de Kromwell havia desaparecido juntamente com o jardim, dando lugar a um colossal edifcio de Quinze andares; sendo que o prprio quarteiro, outrora num subrbio, agora era uma parte do bairro central da cidade que se espalhou por todos os lados. A clnica psiquitrica ainda estava l, ainda que trs vezes maior do que como ele a conhecia. Estava apinhada de pacientes. Os casos de doenas mentais iam aumentando a cada ano numa proporo que inspirava uma tomada de medidas drsticas. Como era de se esperar, ningum se lembrava do doutor Ralf Morgan. Supramati comprou algumas obras cientficas e uma coleo inteira de "Revue". Ao folhear atentamente os livros adquiridos, ele se familiarizou rapidamente com todos os fatos histricos que ocorreram desde o seu afastamento da vida mundana, formando um quadro preciso sobre a situao social, econmica e religiosa da sociedade naquele momento em que ele nela reaparecera. Tudo que leu o abateu profundamente. A evidente decadncia da humanidade, bestificada por vcios e cobia, parecia se precipitar incontrolvel para a sua destruio. Algumas tentativas humanitrias de extinguir as chamas da guerra no lograram xito. Por duas vezes o mundo ficou inundado de sangue e coberto por cadveres. Numa dessas campanhas trgicas, a Inglaterra derrotada perdeu uma parte de suas colnias em benefcio da Amrica, que estendia por toda parte os seus tentculos em suas ambies insaciveis. O comrcio, em todas as suas modalidades, era o centro de tudo, e ao redor dele giravam os interesses da humanidade. O ouro - a mais terrvel fora diablica - saiu das trevas e reinava aberta e autoritariamente como o nico dolo do Universo; abalou os tronos, enfraqueceu a Igreja, destruiu a moralidade, substituiu a justia pela violncia bruta da riqueza. As mos mais sujas, desde que tivessem o ouro, podiam profanar impunemente os altares mais puros e escarnecer de qualquer direito e honra. A medida que aquele triste quadro se desenrolava, e mais nitidamente se desenhavam todos os seus pormenores, Supramati ficava dominado de tristeza cada vez maior. Na vspera de sua partida de Londres, depois de ler o relatrio sobre alguns processos, nos quais a venalidade do poder judicirio e a vergonhosa injustia saltavam aos olhos, Supramati afastou com repugnncia os livros e os jornais, perguntando-se terrificado para onde tudo aquilo iria levar. De repente ele se lembrou de um antigo vaticnio, feito por um mago, lido num velho manuscrito mgico. Em sua mente ergueram-se, quase literalmente, as palavras profticas: "Das profundezas da terra surgir o diabo, que se tornar poderoso aliado do mal. Ele ser amarelo e brilhante e o seu aspecto e o cheiro iro excitar as mais baixas paixes.

"Somente alguns conseguiro segur-lo escorregadio nas mos. No lugar onde se detiver, haver fartura de prazeres e honrarias, mas, ao mesmo tempo, os coraes humanos endurecero e a chama divina se extinguir sob a mo pesada do demnio, cujo lema ser "Prazer a todo custo"! "Depois chegar o tempo em que, tendo se entediado de viver entre os seus eleitos, esse terrvel e escapadio demnio aparecer na arena social procura de poder, honrarias e venerao. "Elevado ao trono por seus adeptos e sditos, ele a todos subjugar, tudo comprar e zombar da aniquilao total. "Em seu desmedido e desenfreado orgulho, o desavergonhado demnio exigir que as virtudes se prostrem aos seus ps e que as grandes verdades o sirvam como escravos. Ele ameaar irado os seus sditos, se no lhe trouxerem a virtude ridicularizada e enlameada, outrora objeto da venerao. "E sua vontade ser satisfeita. A justia coberta de lama, com a boca espumando ouro, com as mos sujas amarradas, perder a capacidade de pronunciar a verdade e julgar imparcialmente. O amor pervertido e vendvel se transformar em depravao asquerosa, em cujo rosto iro cuspir; a misericrdia ser apenas uma justificativa para os abusos, um termo convencional para tirar dinheiro dos tolos e, finalmente, a f - essa consolante divina - banida e ridicularizada, no ir mais iluminar com os raios de esperana os coraes e os rostos martirizados, desfigurados por dvida, revolta e paixes desorganizadas. "Nessa poca o bezerro de ouro ir reinar sobre todo o mundo e aos seus ps rastejar a humanidade ultrajada. "Ento chegar a hora, quando Deus verdadeiro, Criador do Universo, ficar entediado com tantos crimes, e Ele se insurgir contra o enganador que O havia rejeitado, que Lhe tomou o lugar, falou de Seu nome e zombou de Seus servidores puros. "E a ira de Deus desabar sobre esse rebanho bpede, e a voz, feito um trovo, retumbar no espao insondvel: "Insensatos! Se o demnio de ouro tudo o que vocs querem, ento fiquem com ele e se regalem daquilo que ele oferece; mas tudo que Eu lhes dei, Eu mesmo tomarei de volta. "E o Senhor chamar todas as suas criaturas que no veneraram o demnio e lhes perguntar se eles preferem ficar na terra ou segui-Lo. "Ento as criaturas inquiridas exclamaro em pranto: "Leve-nos, Senhor! S a Voc ns veneramos e s em Sua misericrdia ns temos f. O demnio nosso inimigo. Ele nos persegue e destri. "E ter incio uma grande migrao. As aves, os peixes, o gado domstico e os animais selvagens - tudo que povoava o ar, as guas, as florestas e as plancies -, tudo que alimentava, vestia e divertia os homens, desaparecer da face da terra. Em seguida desaparecero as flores, as rvores e a grama, seguir-lhes-o as fontes de gua e os rios. Tudo isso fugir e encontrar o abrigo no seio do

Eterno. E a terra estril se transformar em deserto, onde resplandecero soberbos os magnficos palcios repletos de tesouros - mas no haver o po de cada dia. "Ento, ao ver a morte se aproximando de todos os lados, um grito de terror se soltar do peito da humanidade criminosa. Esta chamar pelo demnio, mas ele ficar surdo aos gemidos e queixumes, pois ele era grande, poderoso e zombador s at aquele momento em que explorava a natureza criada por Deus, enquanto usava e abusava de Suas criaturas. "Levadas ao desespero, as pessoas iro andar em barras de ouro, mas a procura por alimentos ser intil e o impassvel e inclemente demnio ir rir da impotncia delas. Elas, que tudo venderam e se humilharam por um punhado de ouro, no sabero nem orar. O Senhor, ao ver Seus templos vazios e o Seu Nome olvidado, no suavizar Sua ira e entregar esse ingrato gnero humano morte cruel que ele mesmo preparou para si"... Supramati estremeceu. A profecia coincidia com a de Ebramar; e tudo que ele leu e estudou era uma prova de que os homens se precipitavam em direo do fim prenunciado. E o destino dele era ser uma testemunha dessa terrvel catstrofe, dessa agonia medonha do mundo inteiro! Oh, que traidor Narayana! E por que que eu fui tomar a taa sedutora da vida eterna? murmurou Supramati. Na noite do dia seguinte os nossos viajantes chegaram a Paris. A carruagem que esperava por eles levou-os rapidamente ao palcio de Supramati. A eletricidade inundava praticamente com a luz do dia todas as ruas. Por cima das ruas, em trilhos areos corriam pequenos trens cheios de passageiros; por todos os cantos elevavam-se prdios de quinze ou mais andares. A atividade febril da metrpole cresceu de forma patente. No dia seguinte, Supramati e Dakhir decidiram dar um passeio pela cidade para estudar a fisionomia de Paris. Em Londres, eles pouco saram de casa, ao se dedicarem sobretudo a leituras, visando se instruir para enfrentar o mundo novo ao qual eles retornaram. O palcio de Supramati em nada mudou; de seus muros, como antes, podiam ser vistas as folhagens amareladas das rvores seculares. O velho prdio tinha agora um estranho aspecto antigo e destoava das edificaes colossais que o comprimiam de todos os lados. A criadagem numerosa, de rostos desconhecidos, reuniu-se para recepcionar o senhorio. Todos os criados, pelo visto, tinham uma especial predileo por maneiras refinadas. Desde o servial, a fazer mesuras constantes imbudas de dignidade prpria, at a camareira, vestida em saia de seda, de relgio e anis nos dedos, que saudou Nara com reverncia de corte, todos observavam entre si uma rigorosa hierarquia. Ordenando que o jantar fosse servido o mais rpido possvel, Supramati foi ao seu aposento para trocar de roupa, e, ao retornar em seguida sala de jantar, nela encontrou surpreso um homem, provavelmente o mordomo, com ares de um funcionrio graduado de ministrio. Ele dirigia cerca de

uma dzia de jovens que desembrulhavam cestos e passavam aos criados os pratos prontos de um lauto jantar. Por que que trouxeram a comida em cestos? O cozinheiro no foi avisado de nossa vinda? - perguntou Supramati. Vossa Alteza ento desconhece que mesmo pessoas to ricas como o senhor no tm condies de manter um cozinheiro? Esse tipo de empregado domstico j no existe mais. Agora temos catedrticos em gastronomia que dirigem fbricas de alimentos que abastecem a populao. Verdade? Depois de morar muito tempo na ndia, onde tudo to conservador, eu ainda no tive tempo de me familiarizar com os novos hbitos de Paris. H muitas fbricas desse tipo? Como que elas conseguem satisfazer o pblico? - perguntou sorrindo Supramati. Existem vrios tipos de fbricas: cozinha aristocrtica, burguesa e popular. Os catedrticos em gastronomia, que dirigem as instituies da primeira categoria, ganham at cem mil francos; os da segunda - sessenta, e os da terceira - quarenta; seus auxiliares tambm ganham bem. O cardpio dos desjejuns, almoos e jantares publicado todos os dias pela manh e os pratos escolhidos so levados aos clientes atravs de dutos pneumticos especiais. Devido ausncia de Vossa Alteza, o palcio no foi equipado com esses dutos. Assim, eu ordenei que os pratos fossem trazidos por entregadores. O meu contrato prev que eu devo cuidar de tudo que se referir ao servio de mesa de Vossa Alteza. O resto no da minha conta. Tudo isso maravilhoso! Mas por que eu vejo aqui tantos criados? Seu nmero por demais grande para servir a trs pessoas apenas. Isso primeira vista. Cada um desses criados um especialista que se formou numa determinada profisso. Um, por exemplo, cuida somente de bebidas e deve saber que tipo de vinho corresponde a um determinado prato. Alm disso, de praxe que nas casas de alto nvel haja sempre dois turnos de empregados, pois em razo das recepes, grande nmero de convidados e a necessidade de se levantar cedo e dormir tarde, o servio torna-se muito estafante. Alm disso, muito difcil encontrar pessoas que se disponham a aceitar este trabalho duro. Espero que Vossa Alteza no tenha nada contra por eu ter recorrido ao mtodo usual! Absolutamente, eu quero que tudo seja feito de acordo com o costume local.

Neste instante na sala de jantar entrou Dakhir, seguido de Nara, e todos os trs se sentaram mesa. O jantar estava magnfico, mas compunha-se essencialmente de pratos de carne; e como os nossos viajantes haviam se desacostumado de alimentos de origem animal, optaram por no se servir deles.

Futuramente, Grospen, cuide para que nos sirvam pratos vegetarianos. Espero que eles possam ser adquiridos na fbrica de alimentos! - disse Supramati, dirigindo-se ao mordomo que, com ares de importncia, dirigia os criados. Sem dvida, Alteza! A partir de amanh a sua ordem ser cumprida. E isso at mais fcil, pois a maioria da populao vegetariana, uma vez que o nmero de gado e aves diminui a olhos vistos. Por qu? J no se dedicam atividade de pecuria e avicultura? As causas ainda no so claras, mas o fato que as aves vm diminuindo e tornaram-se um artigo bastante raro; algumas espcies de peixe j no existem mais. Supramati trocou um olhar significativo com Dakhir e a esposa. Os sintomas da ira de Deus j comearam, ento, a se manifestar... Supramati e sua esposa foram se deitar bem tarde. A viso dos quartos que ele ocupava, quando ainda comeava a nova vida de imortal, e diversos objetos que provocaram a recordao de uma srie de fatos durante a sua permanncia ali originaram uma jovial e animada conversa. Nara, em tom de malcia, perguntou a Supramati se ele no tinha a inteno de procurar por sua antiga paixo Pierette - e at sugeriu-lhe utilizar-se do espelho mgico para localizar a antiga rival. Engraadinha! Uma rival agora no constitui um perigo. Quanto ao espelho, eu no quero lanar mo dele em minhas investigaes. Esqueamos por enquanto os nossos estudos e a magia; vamos utilizar as faculdades humanas normais. Amanh eu vou me informar sobre o pobre visconde De Lormeil, que durante todo esse tempo deve ter entrado em muitas dvidas; e tambm sobre Pierette, Lilian e a caridosa Rosali. Serei acompanhado por um secretrio que dever vir amanh. No mnimo ele ter o aspecto de um ministro! - observou rindo Nara. No dia seguinte chegou o secretrio, um homem discreto, simptico e jovem, com o qual Supramati iria cidade. Ele tinha que passar em alguns bancos para acertar umas contas e descontar uma quantia para as despesas. Desta vez eles foram a cavalo. De seu administrador, Supramati soube que era dono de magnficos cavalos, mas que aquele meio de locomoo era um capricho de pessoas nobres. A medida que eles passavam pelas ruas bem familiares, Supramati se convencia cada vez mais do enorme progresso que foi dado em direo ao luxo e conforto. Tudo funcionava na base da eletricidade e vapor, e as mquinas fizeram com que o trabalho humano fosse praticamente desnecessrio. No obstante, as pessoas no pareciam mais felizes; os rostos plidos e magros, as roupas surradas e todo tipo de sinais de pobreza eram encontrados a cada passo. Oh, Deus! Quanta misria! Ser que no se faz nada para diminuir a pobreza, ou os rgos responsveis so impotentes para minorar a sorte dos infelizes? - perguntou Supramati.

Os rgos, Alteza, no conseguem acabar com a terrvel pobreza e a questo social aguou-se como nunca - respondeu o secretrio. - O capital dos investidores e dos industriais alcanou dimenses colossais. O custo de vida subiu terrivelmente e os preos dos gneros de primeira necessidade esto em patamar jamais visto. As pessoas de classe mdia j no conseguem viver como antigamente e por isso a luta pela sobrevivncia tornou-se cruenta. S Deus sabe como ser o futuro! Neste instante eles estavam passando ao lado da catedral de Nossa Senhora. O antigo templo tinha aspecto abandonado e seus portes estavam fechados. Por que a catedral est fechada? inquiriu Supramati. Est fechada para evitar profanaes e sacrilgios. Alm disso, as missas so celebradas nos domingos de grandes festas religiosas, e, mesmo assim - como se diz a sete chaves. Mas por que tudo isso? Por muitas razes, Vossa Alteza! Primeiro, os ofcios pblicos do culto cristo so proibidos. O clero, que no mais recebe subsdios do governo, tornou-se reduzido; o nmero de fiis est diminuindo a cada ano. Todos ficaram contagiados com a liberdade de pensamento! -troou sorrindo Supramati. No totalmente. Temos uma infinidade de seitas. Os budistas so muito numerosos e possuem diversos templos. Quanto s sinagogas, s Paris conta com cerca de duzentas. Pelo visto, os povos orientais guardam com mais fora as suas religies que ns - concluiu em tom amargurado o secretrio. As suas palavras me fazem crer que o senhor pertence ao nmero de cristos dos mais renitentes. Sim, Vossa Alteza! Eu perteno a uma famlia muito antiga que permanece firme f de seus antepassados e doutrina de antigamente. Somente no dia seguintes Supramati comeou a procurar os seus velhos conhecidos. Primeiramente ele se informou de Rosali Berken. Ela havia falecido cerca de quinze anos atrs, mas era lembrada no quarteiro e pelo visto todos sentiam pena daquela humilde benfeitora dos pobres. Sobre Pierette e Lormeil ele no conseguiu nenhuma informao. O hotel do visconde foi vendido cerca de vinte anos antes para pagamento de dvidas e ele desapareceu a partir daquele dia. Todas as tentativas de encontrar algum dos antigos conhecidos no deram em nada. Supramati j estava perdendo as esperanas de achar algum fio vivo que o unisse com o passado, quando soube que, num clube artstico, o ex-tenor Penson ainda estava vivo e recebia uma penso da sociedade dos artistas dramticos e opersticos.

Supramati pegou o endereo e dirigiu-se imediatamente para o lugar afastado, onde morava Penson. A viagem foi longa. A residncia do ex-tenor localizava-se nos arredores de Paris. Por ali ainda podiam ser encontradas pequenas casas cercadas de jardim, o que conferia quele lugar um aspecto campestre e patriarcal. Ali habitavam pessoas humildes e trabalhadoras; funcionrios da classe mdia ou aposentados, governantas, comercirios e trabalhadores de escritrios. Todas as manhs, uma verdadeira mirade de bicicletas levava aquele povo ao local de seus afazeres dirios. A casinha onde morava Penson era retirada e o jardim que a ladeava possua uma alta cerca. A porta foi aberta por uma menina. No incio ela anunciou que o av no estava em casa, mas, depois de lanar um olhar para o bem vestido visitante e para a sua suntuosa carruagem, ela convidou-o para entrar e esperar at que avisasse o av. Eu gostaria que a senhorita s me indicasse onde est o senhor Penson. Eu sou um velho amigo dele e queria fazer-lhe uma surpresa. A menina levou-o ao jardim, cuja maior parte estava ocupada por uma horta. Apontando para um homem vestido numa jaqueta de nanquim e com uma grande chapu de palha na cabea, ela disse: Ali est o meu av! Em seguida ela se retirou discretamente. Ao aproximar-se, Supramati viu que o ex-tenor estava ocupado com o corte de alcachofras. Um grande cesto de seu lado estava cheio de pepinos, suculentos repolhos e outros legumes. Apesar de seus oitenta anos, ele era um velho bem vigoroso e forte. Ao ver o visitante, ele foi ao seu encontro, mas, subitamente, recuou e soltou um ai surdo. A faca de jardim caiu-lhe das mos. O que foi, Penson? Eu o assustei ou o senhor no me reconheceu? - perguntou Supramati, sorrindo e estendendo-lhe a mo. Por Baco! Eu acho que o reconheci. Pessoas como o senhor no podem ser esquecidas! E ainda que o senhor me tenha assustado, no h nada de anormal nisso. J faz - que Deus me perdoe quarenta anos que a gente no se v. Conseqentemente, pelas leis da natureza, o senhor deveria estar com uns setenta anos, e eu sei como duro chegar a essa idade. O senhor, pelo visto, permaneceu como era um belo jovem de trinta anos. Se o senhor no for o prprio diabo, no mnimo deve ter obtido dele um elixir contra a velhice. Oh! O diabo no tem nada com o meu aspecto externo. que ns, os hindus, demoramos para envelhecer - explicou sorrindo Supramati. Provavelmente lisonjeado com aquela visita, o artista levou Supramati a um pequeno terrao anexo e no sossegou at ele aceitar um copo de vinho e uma cigarrilha.

Conversaram sobre o passado e o futuro. Supramati interessou-se sobre o destino de algumas pessoas conhecidas de ambos. A maioria j havia falecido, mas, quando a conversa tocou o visconde, o rosto do velho entristeceu. Oh, sim! Eu sei o que lhe aconteceu. Para a sua prpria infelicidade ele ainda continua vivo, mas no sei se por muito tempo. A vinda do senhor ser providencial, pois eu conheo a sua generosidade. Se o senhor procura por ele, isso provavelmente aliviar os seus ltimos dias. esta de fato a minha inteno. Mas qual foi a confluncia dos fatos que o levou misria? Onde ele mora? Aqui perto, na casa de fundos de uma viva que d abrigo aos pobres dessa categoria, ou melhor, s pessoas de alta roda arruinadas. O senhor deve-se lembrar que

Lormeil gostava de viver bem e alm do mais era um jogador. Antes de viajar, o senhor o recompensou bem, mas com o passar de alguns anos ele torrou tudo e os credores vende ram os seus bens, ficando ele, por assim dizer, na rua. Todos viraram o rosto, pois ele se comprometeu com alguns atos malvistos. A partir de ento, ele foi levando uma vida bem obscura: foi um crupi em Mnaco, depois foi um agente numa seguradora e, por fim, membro de uma claque. Resumindo, descendo de degrau em degrau, ele acabou na misria e totalmente doente, sendo recolhido pela benfeitora de que lhe falei. Tudo isso eu soube por acaso e ento fui visit-lo. A partir desse dia, medida do possvel, ns o ajudamos, pois ele necessita praticamente de tudo. A minha filha e a neta levam-lhe diariamente um prato de sopa, e de duas velhas saias costuraram-lhe um roupo. No temos muito para dar, mas que duro ver a situao de penria de um homem que j teve dias melhores. A pena por aquele homem comprimiu o corao de Supramati. Se no longe daqui, poderia o senhor me levar casa do visconde? A dois passos; eu terei imenso prazer em acompanh-lo - prontificou-se Penson. Meia hora depois eles estavam entrando numa casinha semi-destruda e, atravs de um estreito e escuro corredor, foram dar num quarto mido e sujo. Toda a moblia consistia de uma velha mesa, dois banquinhos de madeira e uma cama rstica, na qual jazia um ser humano, envolto num cobertor surrado. Oh, infeliz! - pensou Supramati, lembrando-se dos luxuosos aposentos do garboso esbanjador. Aproximando-se da cama, Supramati inclinou-se sobre o homem deitado com os olhos fechados. Com seu olhar de mdico, ele imediatamente concluiu que diante dele estava um moribundo, mas nunca teria reconhecido Lormeil naquele esqueleto ressequido, metido em pele que mais parecia um pergaminho, sulcada por rugas profundas. Visconde! - chamou Supramati, tocando a mo gelada do moribundo.

Ao ouvir aquela sonora voz metlica, Lormeil estremeceu e endireitou-se como se recebesse uma descarga eltrica. Cerca de um minuto os seus embaados olhos vtreos fitaram desorientados Supramati, acendendo-se em seguida em chama de alegria. Estendendo-lhe as mos trmulas, o visconde exclamou, tremendo com todo o corpo: Supramati! Meu magnnimo protetor! Meu pobre amigo! Como me arrependo de no ter vindo antes; se ao menos eu soubesse que o senhor estava nessa situao to infeliz. Mas no se desespere, tudo ir mudar e eu tomarei providncias para que a sua vida seja cercada de tranqilidade e conforto. Uma expresso de profunda amargura percorreu o rosto lvido do moribundo. Agradeo-lhe, Supramati, pelas boas intenes, mas neste mundo eu s preciso de um tmulo. Eu desperdicei criminosamente a minha vida e os meus bens - e fui duramente punido com uma vida longa e pobreza inslita. Passei fome e frio, dormi nas estradas, pedi esmola e me alimentei de cascas de po, atiradas aos ces... Um choro convulsivo impedia que ele falasse, mas, dominando-se rapidamente, ele continuou com voz rouca e entrecortada: Morrer... morrer... a nica coisa que eu desejo. Oua, Supramati. Se o senhor quer realmente prestar-me um ltimo favor, mande que me enterrem decentemente, que no joguem o meu corpo numa vala comum! Profundamente emocionado, Supramati apertou forte a mo do visconde. Juro-lhe que farei isso! Se o senhor tiver algum desejo quanto ao seu enterro, diga-me e eu o atenderei. Eu fico muito grato! Nesse caso eu gostaria de ser enterrado no cemitrio da minha propriedade rural. Ali, naquele saco de linho, o senhor encontrar alguns papis onde se acham as indicaes necessrias. Naquela propriedade nasci, l tambm esto as sepulturas dos meus pais e... A voz do velho passou ao sussurro, o rosto empalide-ceu mortalmente e dominado por uma inesperada fraqueza ele esmoreceu na cama. Supramati olhava pesaroso e pensativo para o visconde. Ele sentia uma imensa pena por aquele pecador, to duramente castigado, e ao mesmo tempo uma vontade de salv-lo com algumas gotas do elixir da longa vida. No estava ele tambm a ponto de morrer, quando apareceu um desconhecido, salvou-o e o fez rico, independente e sbio'?! Talvez o visconde, purificado por sofrimento, arrependa-se e torne-se um seguidor! Nenhuma lei, nenhuma condio impedia que o adepto e o detentor da essncia primeva dela no pudesse se utilizar a seu critrio e aumentar a corrente dos membros da irmandade. Dakhir

havia lhe dito que nenhuma responsabilidade recairia sobre aquele que, sob a influncia de um mpeto de magnanimidade ou pena, imortalizasse algum, pego aleatoriamente sem qualquer escolha. Supramati j tinha posto a mo no bolso para pegar o minsculo frasco, quando um novo pensamento lhe assomou mente. Praticaria ele uma boa ao ao visconde, dando-lhe a vida eterna? E se, incapaz de um trabalho srio, ele, gozando de perfeita sade e detentor de imenso patrimnio, recair em seus antigos vcios e tornar-se um outro Narayana, ainda mais desprezvel e mesquinho que o primeiro? No teria sido o visconde um representante genuno de gente ociosa e pervertida que s vive em funo de prazeres, sempre pronta a lamber a mo mais esqulida que lhe oferea o ouro? No! sbia a lei que arrasta para a vida do alm-tmulo seres inteis e com vcios. Todas estas reflexes, longas para serem descritas, duraram apenas alguns segundos. Lanando um ltimo olhar para o corpo quase exnime, Supramati virou-se e suspirando fundo saiu do quarto. Antes de se sentar na carruagem, Supramati agradeceu a Penson, pediu-lhe para alugar para o visconde um lugar decente e fazer todo o possvel para minorar o sofrimento de seus ltimos minutos; disse tambm para pegar os papis do visconde para atender ao ltimo desejo do infeliz e enterr-lo junto a seus pais. O tenor aposentado aceitou as incumbncias e prometeu avis-lo da morte do visconde - o que no iria demorar muito. Supramati dirigiu-se para casa com o corao oprimido. Apesar da convico de ter agido bem, parecia-lhe ter assinado a sentena de morte e esta pesada impresso oprimiu-o pelo resto do dia. Somente noite, ao ficar a ss com Nara, ele contou-lhe em que situao encontrara o visconde e tudo que sentiu e pensou em relao a ele. A jovem ouviu triste e pensativamente, e apertou participativa a sua mo: Voc fez bem, Supramati, e no pode se censurar por no ter salvado a vida intil e criminosa de um homem totalmente incapaz de suportar a dura provao de uma vida quase eterna. No se esquea de que, se no quiser ser como Narayana, preciso trabalhar duro e espiritualizar-se em vivo. Para dizer a verdade, o nosso destino terrvel e os adeptos no devem aumentar demasiadamente as suas fileiras. Eu mesma tenho na conscincia alguns pecados semelhantes, mas eu dei a essncia da vida somente a pessoas teis e trabalhadoras, que sobem obstinadas e enrgicas a estreita vereda do progresso. E voc, que no pensou em preservar para o bem dos pobres a vida til da madame Rosali, chora por no ter dado a imortalidade a um patife! Era justamente o que eu dizia para mim. Desconheo a razo de eu ter tanta pena de um homem moribundo, cuja salvao estava em minhas mos.

Voc teria prestado para ele um mau servio. Uma vida eterna s vezes pode se constituir num suplcio insuportvel para as pessoas incapazes de se adaptarem s con

dies anormais. A propsito, eu me lembro de um episdio que quero lhe contar e cujo protagonista foi Narayana, incorrigvel em sua leviandade criminosa, apesar de seus conhecimentos sobre os mistrios da vida. Aconteceu por volta de 1340 e 1350. Ns passamos com Narayana alguns meses na Itlia e amos Bavria, onde ele possua um pequeno castelo do qual agora no sobra nada. L, Narayana tinha a inteno de se dedicar a algumas experincias mgicas junto com um dos nossos, que vivia nos arredores. Ainda que nos utilizssemos de todas as facilidades a que tnhamos acesso naquela poca, a viagem era por demais morosa, pois as estradas eram uma lstima e noite tnhamos de parar. Certo dia, ao passarmos pelo Tirol, fomos pegos em meio a uma terrvel tempestade e ficamos numa situao difcil, pois, como era de nosso conhecimento, por perto no havia nenhuma casa para nos abrigarmos. Ento, um dos cavalarios, natural daquele pas, sugeriu levar-nos a um pequeno castelo ali perto, fora da estrada principal. Narayana aceitou alegremente a proposta e o cavalario foi nos levar atravs de atalhos para um vale isolado em direo ao castelo, grudado numa escarpa. Ns fomos recebidos de braos abertos pelos proprietrios do castelo - pessoas simples, bondosas e hospitaleiras. A famlia compunha-se de um cavaleiro, sua esposa, trs filhos e alguns serviais de fisionomias patriarcais. Durante uma conversa que se entabulou no jantar, Narayana comeou a perguntar ao cavaleiro sobre a vida e os anseios dele e da esposa quanto ao futuro. Os cnjuges responderam que eram muito felizes. O belo vinhedo proporcionava-lhes bastante vinho, os campos lhes asseguravam o po necessrio, o castelo, pela solidez e localizao, era bastante seguro, os filhos eram bons e sadios, a senhora do castelo era um exemplo de esposa e me e, finalmente, os criados eram honestos e fiis. O Senhor, em Sua bondade, deu-nos de tudo. A nica coisa que nos preocupa o tempo, que tudo mudar: ns e nossos criados ficaremos velhos; os filhos crescero e abandonaro o nosso ninho e a morte separar todos. Se por algum milagre tudo pudesse permanecer como est; se nem a morte nem a velhice nos ameaassem - ento todos os nossos desejos seriam realizados - concluiu rindo o bom cavaleiro.

Eu notei um sorriso estranho no rosto de Narayana, mas, no incio, no dei qualquer importncia. Mesmo depois, quando ele ficou revolvendo a bagagem, no cheguei a desconfiar de nada. A pedido de nossos anfitries, ns adiamos a partida at o dia seguinte. Ficou decidido que viajaramos logo depois do almoo. Quando Narayana, sentando-se mesa, anunciou que por sua vez ele gostaria de oferecer aos donos da casa um vinho sem igual, que eles, sem dvida nenhuma, jamais haviam tomado, tive um pressentimento e fiz-lhe uma observao em grego. Narayana nada me respondeu e com sua habitual teimosia pegou a garrafa e encheu a taa dos presentes, sem se esquecer dos filhos do cavaleiro. No satisfeito, ele pediu a permisso de servir os criados, o que foi cordialmente aceito. Eu estava tremendamente perturbada, sem acreditar que ele pudesse abusar da confiana daqueles infelizes; mas, antes que eu pudesse tomar alguma providncia, eles secaram as suas taas. Ao ver que todos caram, como se fulminados por um raio, eu entendi que o mal j estava feito. O que voc fez? - gritei eu possessa. O que eu fiz? Dei-lhes a felicidade que eles queriam: eles no mais ficaro velhos nem morrero respondeu ele rindo. A seguir, umedecendo com aquele terrvel lquido dois pedaos de po, ele os deu a dois ces caadores, deitados embaixo da mesa. Quando uma hora depois ns partamos, os dois criados que nos acompanhavam e que no haviam tomado a bebida sinistra acharam que seu senhorio estava embriagado mortalmente. Narayana confirmou-lhes a suposio e ordenou que no os incomodassem at que eles acordassem sozinhos. Cento e oitenta anos depois ns passvamos pelo mesmo caminho e Narayana, lembrando-se do episdio, disse que queria visitar o castelo. Eu me recusei categoricamente a acompanh-lo e fiquei num hotel prximo, enquanto Narayana partiu. Ele voltou no dia seguinte e comeou a contar alegremente como no castelo, de incio, foi tomado por diabo; o criado que serviu a mesa naquele dia fatdico atirou-se no cho e comeou a chamar em auxlio todos os santos do paraso. O cavaleiro, mortalmente plido, sacudia-lhe em ameaa uma cruz e a esposa borrifou-o com gua benta. Mas Narayana persignou a si mesmo e anunciou que ele era um cristo e no tinha medo nem da cruz nem da gua benta e que ele estava extremamente surpreso com aquela modo de recepo. Se o senhor no um demnio, nem anticristo - observou em tom triste o cavaleiro

-, talvez o senhor seja um habitante do cu, vindo para libertar-nos, pois a sua visita anterior ocasionou conseqncias estranhas que nos fazem temer quanto ao salvamento de nossas almas.

Depois o cavaleiro contou que ele e sua esposa no envelheciam nem morriam, ainda que ele contasse duzentos e quinze anos e a sua esposa duzentos e seis. Ainda mais estranho era que eles ainda continuavam a ter filhos, que cresciam e morriam como todos, enquanto que os trs primeiros permaneciam iguais, sem crescer um milmetro. Dois dos criados e at dois cachorros de caa tambm estavam vivos. Todas essas circunstncias inditas nos anais do mundo chamaram a ateno do clero. Foi feita uma investigao e ns fomos acusados de ter coisas com o diabo. O povo nos

evita e nos amaldioa. H pouco tempo atrs, minha esposa foi ameaada de ser queimada viva feito uma bruxa e o nosso castelo de ser incendiado. O que ser de ns? J sem isso, os tempos muda ram tanto, que impossvel viver - concluiu o pobre cavaleiro chorando copiosamente. Eu apontei para Narayana todas as inconvenincias que surgiriam, se aquelas pessoas fossem expostas curiosidade geral, e ele concordou que era preciso escond-los, pois a sua consagrao aos mistrios levaria muito tempo e, alm do mais, eles j estavam chamando muita ateno. No dia seguinte, Narayana retornou ao castelo e convenceu os imortais involuntrios de que lhes revelaria o segredo da inslita aventura. Aproxima-se o fim do mundo - disse ele. Para lutar contra o anticristo, Deus est

selecionando homens beatos e bons, que Ele livra da morte. Estas pessoas formaro o exrcito do Senhor e depois sero levadas para o cu como Enoque e Elias. Depois completou que ele, Narayana, fazia parte dos eleitos e que para ali viera para todos empreenderem uma romaria a Jerusalm. Preocupada, mas feliz, aquela gente aceitou a oferta. Dias depois Narayana ps fogo no castelo. Mas em vez de Jerusalm, eles foram levados ndia. E at hoje eles vivem l? - perguntou Supramati. Os dois filhos, sim; os outros morreram todos... Como assim? Foram debalde as tentativas de consagr-los nos mistrios. A mente deles, pouco desenvolvida, no estava preparada para os estudos; eles se sentiam infelizes e estavam to desesperados, que o mago responsvel por eles achou melhor devolv-los ao mundo do alm com o auxlio de um preparado anlogo ao que Narayana havia recorrido. A partir deste exemplo, meu querido, voc v como perigoso dar vida infinita para aquele que no pode usufruir dela para o prprio aperfeioamento. Desta forma, s lhe falta parabenizar-se por ter resistido tentao de fazer do visconde um imortal. . De fato, assim mesmo e eu entendo perfeitamente que a morte uma lei misericordiosa. No entanto, o ser humano sente sempre uma grande infelicidade, quando um ser prximo ou apenas conhecido passa para o outro mundo.

E isso bem natural! - observou sorrindo Nara. - O fluido vital, espalhado pelo mundo e inserido em cada tomo em forma de uma atrao comum e inerente a cada criatura, forma uma corrente resistente. Assim, sempre que algum ser se desprende dessa corrente, todos aqueles que eram unidos por essa atrao sentem um vazio, e a infelicidade, motivada pelo rompimento dessa corrente fludica, normalmente muito grande. Os elos que so criados pelo fluido vital so to poderosos, que at os objetos que serviram por longo tempo ao homem so por ele impregnados e se lhe tornam muito caros. Por isso acontece ser muito difcil separar-se de um mvel velho ao qual se acostumou; tambm de uma casa, onde se morou por tanto tempo, e assim por diante. Alguns dias depois apareceu Penson para avisar da morte do visconde, e Supramati aproveitou a ocasio para lhe dizer que logo ele viajaria ndia; como lembrana, doou ao ex-tenor uma quantia bem substancial na qualidade de dote para a neta. De fato, sua permanncia em Paris pouco interessava e at oprimia Supramati. Ele tinha um carter totalmente diferente de Narayana, que levava um vida dispersiva apesar dos estudos e isolamento a que vez ou outra recorria. Isso se devia ao fato de que Narayana nunca se purificava. Ele era sempre dominado pelo material, que o arrastava para toda sorte de desregramento. Supramati, no entanto, sbrio, puro e srio, no transcorrer dos anos utilizados para a primeira iniciao, libertou-se em definitivo da parte "decadente" de sua pessoa. O poder oculto adquirido por ele no lhe servia de entretenimento e ele no se cercou da aurola de um mgico para maravilhar ou assustar as turbas festivas. Pelo contrrio, encarava seu poder como o primeiro degrau da longa escada do conhecimento que teria de galgar. Todos os seus pensamentos eram ocupados pelo futuro, sem lhe dar tempo de se interessar pelo presente. Supramati habituou-se, uma vez por todas, ao isolamento, ao trabalho rduo e aos contatos com o outro mundo. Por vezes, quando se debruava sobre um manuscrito astrolgico e encontrava dificuldade em solucionar algum problema difcil, ele sentia algum toc-lo levemente e bafej-lo com um sopro quente ou frio. Ento, diante dele surgia uma cintilante figura area ou um vulto denso e escuro; mas Supramati no se assustava com as visitas do espao e os tratava bem ou com muito respeito, dependendo do que elas mereciam - mas sempre aceitava agradecido os seus ensinamentos. No raras vezes em seu laboratrio retirado, surgia Ebn-Ari ou algum outro demnio poderoso e, debruando-se sobre a mesa, um deles desenhava algum sinal desconhecido para ele ou explicava-lhe o seu poder. Fica claro que, com este tipo de carter e tal orientao da mente, Supramati ficava entediado e se sentia um estranho no meio daquela turba leviana e ignorante em que vivia.

Alm disso, aquela "sociedade" em que ele ingressou mudou muito e chocava suas idias e convices. Era-lhe repugnante aquela orientao de "mercantilismo" geral que igualou todas as posies sociais, sem aparar as desigualdades dos deserdados... Ainda mais, chocavam-no o caos religioso e a numerosidade das seitas que se hostilizavam entre si; fora delas cada um tinha a sua prpria religio, cada um explicava a seu modo os mistrios da vida, procurava uma soluo mais cmoda para as questes que lhe interessavam, propagava os mais diferentes paradoxos e, na essncia, no acreditava em nada. No menos aversivo era-lhe o cinismo geral das mulheres, ainda mais insolente do que o dos homens. Qualquer preocupao em manter um mnimo de decoro externo, qualquer sentimento de vergonha, de dignidade e dever, parecia, definitivamente, serem proscritos. Aquilo que quarenta anos atrs era visto como vergonhoso e humilhante, agora adquiria um direito de cidado. Ningum se constrangia em viver como lhe era de agrado e ningum nada tinha a ver com isso. Necessrio era apenas ter o ouro e, ento, quem o tivesse poderia criar as suas prprias leis e no ter que obedecer a elas. Compreende-se que em tais condies a "famlia" -na antiga acepo da palavra praticamente deixou de existir e as estatsticas constataram a diminuio da populao em propores terrveis. A graciosidade aristocrtica de Supramati e de seus companheiros, assim como a sua riqueza, no deixaram de criar-lhe na sociedade uma posio privilegiada e chamaram para eles a ateno geral. Dakhir era tido como um irmo de Supramati e ambos eram bajulados de igual forma. Quanto a Nara, os homens estavam loucos por ela, ficando furiosos com a "virtude engraada" daquela encantadora mulher. Apesar de seu materialismo vulgar, aquelas pessoas sentiam que os trs tinham algo especial, e um velho diplomata, famoso em definir com preciso as pessoas no primeiro olhar, disse que Supramati e sua encantadora esposa pareciam ter vindo do inferno. Todos os trs tm a mesma palidez leitosa e o mesmo olhar gneo autoritrio, e na expresso de seus olhos e sorriso entrev-se algo que nos faz pensar que eles lem os pensamentos alheios - diziam eles. No obstante por assim se dizer tal reputao "diablica", todos disputavam a companhia dos ricos estrangeiros, ansiando serem apresentados a eles. O antigo Ralf Morgan era por demais mdico em sua alma para tentar utilizar na prtica os novos conhecimentos de Medicina que ele adquirira. No incio ele curou algumas pessoas pobres e, depois, uma de alta sociedade. Mas essa srie de curas miraculosas trouxe-lhe uma fama to grandiosa e ameaava com tantos clientes, que Supramati achou por bem sumir para mais longe possvel. Numa

bela manh, todos os trs deixaram s escondidas Paris e viajaram para Veneza, mantendo-se rigorosamente incgnitos.

Captulo IX

No velho palcio que se afigurava to forte e indestrutvel como os seus proprietrios, Supramati continuou ainda mais dominado pelas recordaes. Aps o jantar, ele passou aos seus amigos as impresses de outrora, quando, ento, novamente elevado condio de prncipe, chegara ao palcio e sentira-se extremamente constrangido em sua nova posio. Esse fato engraado fez com que Dakhir e Nara rissem muito. Mais tarde, ficou decidido que eles ficariam em Veneza at o dia de sua partida para a reunio da irmandade. Voc est querendo fazer umas visitas, Nara? Ser muito embaraoso se algum nos reconhecer observou Supramati. Acalme-se! Ningum nos reconhecer. O mximo que diro que voc muito parecido com um dos seus parentes - rebateu a jovem mulher... - Lembro-me de um caso cmico que aconteceu com o debochado Narayana. Vocs sabem que este ttulo de prncipe lhe pertencia de longa data. Uma vez que Narayana gostava muito de Veneza, ele no perdia a oportunidade, pelo menos uma vez por sculo ou, s vezes, at mais, de passar aqui alguns anos. Certa vez, numa de suas estadas aqui no incio do sculo XIX, Narayana encomendou a um artista famoso a pintura de seu retrato; vocs devem ter notado que ele tinha essa mania! Todos se surpreendiam com a extraordinria semelhana do retrato. Logo aps ns viajamos, e uns oitenta anos depois retornamos novamente a Veneza. Narayana no fez por menos e pendurou o seu retrato no gabinete. Este, naturalmente, chamou a ateno de todos. Um velho nobre disse-me maravilhado: Como o seu esposo se parece com seu antepassado! simplesmente fabuloso! No fosse o traje, poder-se-ia jurar que era o prprio.

Narayana ficou felicssimo e imediatamente encomendou um novo retrato. Essa brincadeira se repetiu at 1740, quando ns viemos para c de novo. Ele se divertia com aquelas exclamaes e, em conseqncia, toda vez encomendava um novo retrato. Oh, Narayana! Em muitos assuntos, ele parecia uma criana grande. Por certo essas pinturas ainda existem!? - perguntou Dakhir. claro! Todas esto penduradas no gabinete anexo biblioteca - respondeu, levantandose, Supramati. Vamos dar uma olhada: so, decididamente, obras de arte

notveis. Todos foram ao gabinete e comearam a admirar quatro retratos pintados de corpo inteiro e no tamanho natural. Nos ricos trajes dos sculos passados, a beleza de Narayana se destacava em todo o seu esplendor. uma pena que esse homem, to belo e talentoso, tenha tirado pouco proveito das vantagens de seu extraordinrio destino para desenvolver o esprito, interessando-se apenas por coisas suprfluas - observou Supramati. Vamos torcer para que ele aproveite melhor sua existncia no mundo do alm-tmulo. Os duros sofrimentos e as condies difceis que vm depois da morte faro com que ele se torne mais srio - ponderou Nara. Em seguida, com um leve sorriso ela completou: De qualquer forma, graas a sua mania de retratos, ele nos deixou uma lembrana interessante. verdade! Eu s lamento que ele no lhe tenha transmitido esse gosto pelos retratos. Os seus, infelizmente, so muito poucos. Oh! Eu me sacrifiquei s para satisfazer-lhe essa paixo. Uma prova disso so as fotografias e o retrato que adornam a escrivaninha e o seu gabinete, Supramati. Eu realmente no gosto de ser retratada. A nica imagem que me cara a minha esttua. Naquele tempo, eu de fato era jovem de corpo e alma. Atualmente j no sou capaz de sentir os mpetos e as paixes ou sonhar com o futuro como antigamente. Aquilo foram coisas do passado que feito um sonho j no existem mais. Meu corpo permaneceu jovem, mas meus olhos traem a minha velhice. Nenhum artista conseguir captar a expresso deles e um retrato se restringiria pintura do traje. Supramati e Dakhir permaneceram calados. Tristes, eles olhavam para a imagem de seu antigo companheiro, que no transcorrer de sculos conseguiu conservar o vigor de sentimentos e a capacidade de gozar os prazeres. Mas em nossa galeria falta um retrato. O seu o terror dos marinheiros, o fantasma sinistro dos oceanos! - disse inesperadamente Nara, colocando a mozinha no ombro de Dakhir. Este, subitamente arrancado de seus pensamentos, estremeceu.

O heri de uma lenda perde sua aura se divulgar o seu retrato ou comear a distribuir cartes de visita - argumentou Dakhir com triste sorriso. Estou vendo que voc tem em alta conta o seu prestgio de "espantalho", mas ns sabemos tanto como Wagner, ainda que por intuio, que o "Holands Voador" era um jovem bonito e perigoso s para os coraes femininos. Ns queremos ter uma lembrana sua e assim pedimos que faa uma pose para o seu retrato. Em meu traje tradicional? claro! O desejo de uma dama para mim uma ordem. Mas para cumpri-la eu no vou me submeter ao fastio de posar para qualquer "pincelador" incapaz de transmitir todo o misterioso encanto com que respira a minha legendria individualidade. Vou lhes dar um retrato, obtido de outra forma. Espertinho! Voc quer nos mostrar uma habilidade que ainda no conhecemos? interessou-se Supramati. E verdade! Confesse que eu estudei mais que voc. Providencie para que amanh, tardinha, preparem uma moldura do tamanho da parede com uma tela branca. Eu, na presena de vocs, farei meu retrato - anunciou jovialmente Dakhir. No dia seguinte, todos se reuniram na pequena sala de estar de Nara. Foram retirados todos os quadros e enfeites da parede, agora ocupada por uma enorme tela com moldura dourada, do cho at o teto. A noite estava nevoenta e escura. Uma chuva fina tam-borilava na janela; nos quartos do velho prdio estava frio devido umidade que vinha dos canais. Nara ordenou que fosse acesa a lareira, ainda que esse tipo de calefao j no estivesse em uso. O tempo no est muito propcio para a nossa experincia - notou Dakhir. - Vamos ter de esperar at que o fogo apague na lareira, enquanto eu fao alguns preparativos. V se preparando! Mas previno-o de que eu estarei observando e posso descobrir o seu segredo. No sou mais to tolo como antes, quando voc me ensinava a fixar os pensamentos disse Supramati rindo. Oh! Naturalmente voc ir descobrir o meu mtodo, mas para aplic-lo ter que estudar ainda muito. Auxiliado por Tortoz, Dakhir trouxe de seu quarto um grande escrnio que ele chamava de "laboratrio do inferno", e uma trpode com carvo. Quando o fogo na lareira se apagou por completo, ele trancou a porta chave, acendeu o carvo na trpode e jogou sobre ele uma espcie de p. A seguir, desligou a luz e o quarto ficou iluminado apenas por uma chama esverdeada na trpode, espalhando um forte cheiro resinoso.

Ao tirar da trpode um grande frasco com um lquido incolor, Dakhir comeou a espargi-lo sobre a tela. Imediatamente se difundiu um forte cheiro de oznio que absorveu completamente o odor resinoso de antes. A tela pareceu cobrir-se de gotculas de brilhantes, adquirindo uma aparncia transparente. Dakhir colocou, diante da moldura, uma pequena mquina eltrica equipada com longas e flexveis espirais metlicas. Feixes de fagulhas eltricas espalharam-se sobre a tela e, transformando-se em jatos gneos, comearam a sulcar em ziguezague a sua superfcie. Depois, cobrindo todo o fundo da moldura, formou-se uma camada nevoenta e fosforescente que se agitava feito gua bafejada por vento. Em p e com a mo erguida, Dakhir desenhou no ar alguns sinais cabalsticos que, por alguns instantes, fosforesciam e em seguida se transformavam em crculos, pontos e feixes de fagulhas cintilantes. No recinto ouvia-se um leve crepitar, acompanhado pelo sopro do vento. Subitamente, como se empurrado por aquelas correntes areas mornas, no ar, surgiu uma espcie de grande retngulo preto-cinzento, transparente como teia de aranha, no qual se delineavam vagamente os contornos de alguns objetos. No era possvel ver os detalhes do desenho, pois o retngulo oscilava em todas as direes como se agitado por brisas que o empurravam para o interior da moldura com as mesmas dimenses. Pouco depois, o estranho objeto encostou-se moldura e pareceu fundir-se camada em movimento que cobria a tela. Por alguns instantes, tudo se misturou numa massa fervente, reverberando todas as cores do prisma; em seguida, brilhou um raio cintilante e os presentes acharam-se numa profunda escurido. Por enquanto muito difcil julgar a semelhana do retrato - observou rindo Supramati. Espere um pouco para depois criticar a minha obra - disse Dakhir, virando-se e apertando o boto. Uma luz eltrica inundou o recinto e iluminou o quadro; ele emitia tal vivacidade, que ambos espectadores fitaram os olhos nele encantados e mudos. Diante dos dois se abria um oceano, iluminado por um plido luar, meio fechado por nuvens; nas eriadas ondas grisalhas, oscilava suavemente um navio espectral, e, sobre ele, recostado no mastro, estava Dakhir envolto numa capa escura. Um archote fixado ao mastro jogava uma luz purprea em seu rosto plido e nos grandes olhos negros que fitavam tristes a escurido nebulenta. Em volta do navio, sobre as ondas, boiavam alguns cadveres; ao longe, perdendo-se na penumbra, viam-se os fragmentos de um navio destroado. Dakhir, isso no um quadro! o prprio passado invocado por voc, fixado na tela por um mtodo que desconheo - balbuciou nervosamente Supramati. - a prpria vida! Olhe, Nara, como a luz do archote brinca no rosto do cadver daquela mulher. E a espuma da onda que ergue aquele cadver! Diga-me qual o milagre que faz parecer que tudo esteja se movendo! Palavra de

honra! Pode-se jurar que a gua ir engolir agora aquele cadver, que os corpos realmente estejam boiando em volta do navio e que o archote solta fumaa e crepita! Supramati levantou-se e passou a mo pela tela. Apalpando - parece um quadro comum; se eu me afasto alguns passos, tudo fica animado, respira e se move - disse ele maravilhado. - Dakhir! Voc um grande feiticeiro! Os artistas que puderem contemplar esse incompar-vel quadro vo inutilmente quebrar a cabea procurando descobrir que tinta indita utilizou o artista ao executar esta maravilhosa obra. E, de fato, ser difcil determinar a composio qumica destas tintas. Os cientistas diro modestamente que isso um segredo perdido assim como os outros e que a cincia do futuro ir descobrir o mtodo da reproduo deste quadro - completou sorrindo Dakhir. - A propsito, voc acertou: isto realmente a reproduo do passado, cujo reflexo eu fixei na tela. Eles ainda conversaram por longo tempo sobre o fenmeno visto, sobre os estudos que deveriam iniciar sob a direo de Ebramar e sobre as desgraas que estariam esperando a humanidade. J comeava a amanhecer quando se separaram, decidindo partir, o mais rpido possvel, para a ndia. No dia seguinte, noite, resolveram ir ao teatro. Estava sendo apresentada uma pera e eles queriam conhecer as novas tendncias da msica italiana. Mal as cortinas haviam se levantado e a sala de espetculos mergulhava na penumbra, quando Nara e seus companheiros ocuparam o camarote. Eles comearam a ouvir a musica, mais barulhenta que meldica, e assistiram com interesse a apresentao que, por seu realismo, estava muito alm dos limites permissveis no palco. Durante o primeiro intervalo, comearam a examinar a sala, nela procurando algum de seus antigos conhecidos. Mas era difcil reconhecer nos respeitveis velhinhos e nas velhinhas grisalhas, com as costas encurvadas, outrora mulheres jovens e bonitas e cavaleiros garbosos que cortejavam sem trgua Nara. Alguns daqueles restos distintos do passado que se encontravam na sala olhavam com surpresa compreensvel para Supramati e Nara, lembrando-se deles, mas considerando-os como desconhecidos e surpreendiam-se com a grande semelhana de seus antigos amigos. Muitos no despregavam o olhar de Supramati, mas este no lhes dava qualquer ateno. De repente, ele estremeceu e, inclinando-se, focalizou com o binculo o camarote em frente. Ali estava sentada uma jovem loira muito bonita e elegante, conversando animadamente com um rapaz que parecia apaixonado por ela. Nara! Est vendo aquela moa de chapu branco, com diadema de esmeraldas na cabea? Lilian - vtima de Narayana, cuja histria eu lhe contei - sussurrou Supramati no ouvido da esposa. Nara focalizou rapidamente o binculo no camarote apontado, mas, neste instante, a moa que ali estava sentada tambm os notou. Ela estremeceu to forte, que o leque lhe caiu da mo e

empalidecendo mortalmente jogou o corpo no espaldar da poltrona. Seu olhar inquieto e estupefato pareceu pregar-se em Supramati. Coitada! Ela reiniciou o seu repugnante ofcio. Graas ao elixir ela conservou sua juventude e beleza, mas no se pode dizer que em seus olhos brilhe alguma felicidade - observou Nara em voz baixa. Um minuto depois ela acrescentou: Voc deve falar com ela, Supramati. Talvez ela tenha perdido ou gasto o seu patrimnio e isso a empurrou para o caminho da devassido. Se eu for at l, o que ser de minha reputao de homem casado? - brincou Supramati. Oh! Eu no vou ficar enciumada de um marido to exemplar, ainda que voc tenha inspirado a Lilian paixo to ardente - replicou Nara. - V em frente, com a conscincia tranqila! Talvez ns sejamos teis para aquele ser infeliz. No se esquea de que ela uma vtima de Narayana e isso impe certas responsabilidades em relao a ela. Voc tem razo. Amanh irei visit-la. E agora vou saber o endereo dela e o nome que adotou. Dez minutos depois, Supramati j sabia que Lilian se transformara em Adrienne Levanti, tendo aparecido na sociedade de trs a quatro anos atrs, e que era amante do marqus de Palestre um toscano muito rico. De posse das informaes, Supramati foi at o caf ao lado e escreveu a seguinte mensagem: "Amanh, s 11 horas, esteja sozinha. Eu irei visit-la. S." Essa mensagem enviada ao camarote da cortes foi to habilmente entregue pela porteira, aliciada com uma moeda de ouro, que o marqus que sara para fumar no saguo de nada desconfiou. Lilian ficou intensamente perturbada ao reconhecer em Supramati o seu benfeitor, que a salvara do terrvel estado em que a colocou Narayana, ao torn-la rica e querendo orient-la no caminho do bem e da vida sria e til. Ela no se esquecera do belo e magnnimo jovem que no se dignou a am-la, e, ainda que ele no lhe desse qualquer notcia, continuava um ideal inacessvel em seu corao. Quando Lilian o viu inesperadamente belo e sedutor como antes, e ainda na companhia de uma encantadora mulher - sua esposa -, uma verdadeira tempestade desencadeou-se em sua alma. A infelicidade, a paixo e o cime sufocavam-na. A mensagem de Supramati acalmou-a um pouco. Ele a reconhecera e queria v-la - isso j era um consolo! Lilian sentiu que no estava em condies de ficar no teatro e em funo disso, assim que o marqus retornou, alegou no estar bem - o que era confirmado por sua palidez e aspecto abalado - e voltou para casa. Ela passou uma noite insone. Nas longas horas de devaneio solitrio e no silncio noturno, rememorou todo o seu passado - toda a estranha e inexplicvel epopia de sua vida. Mais tempo que

o normal se arrastavam as horas da manh que antecediam a chegada de Supramati. Em p, no balco, Lilian escrutava com o olhar os passantes. O seu corao palpitou acelerado e a respirao ficou ofegante quando, junto da entrada, parou uma gndola, dela saindo Supramati. Lilian recebeu-o no boudoir. Ela estava to emocionada, que no conseguiu soltar uma palavra e, estendendo-lhe calada a mo, apontou para a poltrona. Estou feliz que um acaso novamente me tenha feito encontr-la jovem e bonita - disse ele, apertando-lhe amistosamente a mo. Entretanto, eu no posso esconder, miss Lilian, que estou muito triste em encontr-la num caminho espinhoso e humilhante, que eu tinha a esperana de que a senhora abandonaria para sempre. Um rubor escuro cobriu-lhe o rosto. O senhor toca diretamente no ponto dolorido, mas ao senhor, meu benfeitor, eu devo fazer uma confisso completa e relatar-lhe sobre aquele estado em que o senhor to generosamente... No, miss Lilian, a senhora no me deve nenhuma explicao ou confisso interrompeu-a Supramati. - Mas se quiser confiar-me, como a um amigo, o que aconteceu durante os longos anos de nossa separao, eu ficarei reconhecido. Acredite, estou muito interessado em seu destino. No ser a senhora uma vtima da leviandade criminosa do meu irmo Narayana. Oh! Eu ficarei feliz em confiar-lhe tudo! Mas depois o senhor tambm, por sua vez, responder a uma pergunta que eu tenho e me explicar os mistrios que ocorrem em meu corpo. Eu lhe transmitirei apenas os fatos inditos que aconteceram comigo. Estou adivinhando o que a senhora quer saber e responderei medida do possvel. Aps a sua partida, eu tentei honrar a minha promessa e iniciei uma vida nova. Estudava, lia e me aperfeioava em canto e msica. Alm disso, sob a direo de madame Rosali, eu me dedicava a causas beneficentes e freqentava a igreja. Devo confessar que todas essas atividades, s quais no estava habituada e me entregava mais por obrigao do que por convices ntimas, no preenchiam a minha vida e deixavam o meu corao vazio. A felicidade momentnea que eu experimentava ao minorar a misria de algum pobre, ou ao ver o meu sucesso nas apresentaes de piano, no me satisfaziam. A nica pessoa para a qual eu queria mostrar os meus talentos e por cujos elogios ansiava estava longe e no dava qualquer notcia de si. Se a senhora buscasse a aprovao divina e no de uma pessoa, to imperfeita como a senhora, seu corao ficaria satisfeito - disse Supramati meio constrangido, meio nervoso. No estou querendo justificar as minhas falhas e fraquezas; eu s quero confess-las para melhor expor os motivos dos meus erros conseqentes - rebateu Lilian suspirando pesadamente. - Mas. continuando... Durante trs anos, levei uma vida isolada e de trabalho, sem encontrar nenhum conhecido, at que um dia me encontrei com o visconde de Lormeil, que eu no via desde a minha catstrofe com Narayana. O visconde de nada sabia. Alegre em me ver, disse que no me largaria, pois tnhamos muito o que conversar. Fomos ao jardim de um caf que, por

ser cedo, estava quase vazio, e me contou que Narayana havia morrido e a ele sucedeu o seu irmo. Ele se desfez em elogios a respeito do senhor. Concluindo, ele me contou que o senhor se casou em Veneza e depois partiu para a ndia... Lilian calou-se indecisa, provavelmente perturbada e constrangida. Bem, miss Lilian!? Continue! Suponho que lhe foi muito desagradvel a notcia.sobre o meu casamento secreto - observou Supramati sorrindo. O senhor tem razo! - reconheceu ela. Fiquei furiosa. Eu interpretei o seu casamento com aquela encantadora mulher, provavelmente merecedora do senhor, como uma ofensa pessoal. Em minha fria, eu me senti livre do meu compromisso de levar uma vida honesta, sem compreender na minha cegueira que a virtude til, sobretudo, para aquele que a ela se atm. Apesar dos pedidos e ponderaes de Rosali, irrefleti-damente mergulhei em todo tipo de devassido mundana, mas o meu corao permanecia vazio e, nas horas de solido, os remorsos me dilaceravam por ter desdenhado os conselhos do meu benfeitor. Para preencher aquele vazio e sufocar a conscincia pesada, lanava-me na prtica de toda a sorte de excessos. Eu buscava sensaes fortes, apostava na bolsa e na roleta, e acabei por gastar todos os meus bens numa especulao arriscada. Perdi tudo que tinha, mas isso no me deixou aborrecida. A minha beleza, sobre a qual nem o tempo nem os excessos tinham qualquer efeito, era uma inesgotvel fonte de riqueza. Eu no conseguia atinar por que a minha beleza no murchava. Ainda que j contasse com cinqenta anos, o espelho refletia o rosto de uma mulher de vinte e cinco. s vezes, eu pensava: ser que no sou a segunda Ninon de Lenclos? Certo dia - e isso aconteceu h sete anos - senti uma forte indisposio. Isso me surpreendeu e assustou, pois havia mais de trinta anos que no ficava doente. Eu sentia uma terrvel fraqueza, um peso de chumbo nos membros e uma indescritvel averso vida. O mdico que me veio examinar no conseguiu encontrar uma causa orgnica da doena e concluiu que, provavelmente, era o meu sistema nervoso que provocava aqueles sintomas doentios. Supondo que eu estava me aproximando dos quarenta, ele acrescentou que a idade tem as suas exigncias e prescreveu-me repouso absoluto, durante alguns meses, em algum lugar retirado, longe do barulho de diverses mundanas. Eu deveria viver, preferencialmente, num local com ar puro, passar o maior tempo possvel passeando na floresta, tomando leite, mantendo um regime vegetariano, enfim, nada fazendo ou vendo para proporcionar ao organismo um repouso completo. Segui o conselho do mdico e fui morar numa fazenda retirada no sul da Alemanha. Os donos eram pessoas pobres, simples, boas e honestas. Sua pequena propriedade era cercada pela floresta, o que - como o senhor sabe - uma raridade nos tempos de hoje; mas o velho fazendeiro, pessoa de hbitos tambm antigos, por nada no mundo concordava em vend-la. Eu me instalei naquele lugar ermo.

Nos primeiros dias me senti melhor, mas logo os sintomas alarmantes reapareceram com fora redobrada: o peso nos membros tornou-se insuportvel, a viso deteriorava-se, a audio embotavase, os cabelos comearam a ficar grisalhos, o porte curvou-se, e a pele, at aquele dia acetinada e fresca, ficou sulcada de rugas. Resumindo: em duas ou trs semanas - no consigo determinar exatamente o tempo, pois eu estava feito uma louca - tornei-me uma velha horrvel. O estado da minha alma estava pssimo. Eu estava to acostumada a ser jovem e bonita, que havia esquecido de minha idade atual. Em vo, tentava me convencer de que a vinda da inesperada velhice era coisa natural e que s um acaso inexplicvel a havia adiado por tanto tempo; no obstante, no conseguia me habituar a esta idia. A ltima fase daquele terrvel estado foi demasiadamente dura. Todo o meu corpo parecia ter ressecado, os cabelos caam aos cachos, perdi todos os dentes. Em poucos trs dias, minha boca no tinha nada, o crnio ficou desnudado, a fraqueza chegou a tal ponto, que j no conseguia me levantar e achava que a hora j tinha chegado. O meu estado era motivo de preocupao dos donos da fazenda e eles queriam buscar um mdico, contudo eu fui energicamente contra. Viver do jeito que eu estava era mil vezes pior que a morte. Dei algumas ordens quanto ao meu enterro e tambm uma soma para isso. Eles no deveriam notificar ningum da minha morte. Eu queria desaparecer sem deixar vestgios. Isso foi noite. Estava deitada num pequeno quarto, mergulhada num pesado torpor, e, nos instantes de lucidez, via a agonia que antecedia a hora final. De repente, senti como se no local onde eu tinha um ferimento outrora causado por Narayana acendesse um fogo. Dali, parecia espargirem flechas gneas que perfuravam o meu corpo em todas as direes, causando exploses internas ora na mo, ora no p, ora no olho ou no estmago e assim por diante. Sentia dores lancinantes que iam de um lugar para outro com incrvel rapidez. Por fim, a minha cabea pareceu despedaar-se e perdi os sentidos. A proprietria me disse depois que, quando ela veio me visitar, achou que eu estava dormindo. Dormi assim por quarenta e oito horas. Quando acordei, estava me sentindo bem, apenas com muita fome. A criada que me trouxe o desjejum anunciou que eu estava com bom aspecto e havia rejuvenescido trinta anos. Resumindo: a juventude e a beleza me retornaram mais rpidas do que viera a velhice. Paulatinamente, saram-me os dentes e os cabelos cresceram, e eu me tornei do jeito como o senhor me v agora. A minha bondosa anfitri, no incio, olhava-me com medo supersticioso, mas depois se acalmou e confessou-me que considerava a minha enfermidade como uma feitiaria, cujo efeito sinistro fora quebrado por uma sagrada relquia que ela, sem que eu percebesse, havia posto embaixo do travesseiro. Eu nada disse, pois tambm no conseguia explicar o que havia ocorrido comigo. Quando me recuperei totalmente, tinha que retomar o meu vil ofcio para viver da forma como estava habituada. Eu no queria aparecer com o meu antigo nome nem voltar para o lugar que

freqentava antes. Adotei o nome de Adrienne Levanti e fui embora para a Amrica. De l me trouxe a Veneza o meu amigo italiano. O resto no tem a mnima importncia. Agora, explique-me o que aconteceu comigo. O senhor, para quem o tempo no tem qualquer autoridade, dever possuir a chave do mistrio e poder dizer-me quando ser o fim da minha juventude artificial e da vida odiosa que me oprime como um fardo insuportvel... Estou enfastiada de tudo, no tenho um objetivo na vida e no sirvo para nada. Diga-me, ao menos por compaixo: quando e como vir o meu fim?... Supramati ouviu com misto de surpresa e inquietao o longo relato. S agora ele entendia as palavras de Ebramar, que dissera que a essncia da vida, tendo sido introduzida no organismo de Lilian da forma como foi por Narayana, agia de modo diferente e aumentava em muito a longevidade, sem torn-la, entretanto, totalmente eterna. Mas... de que maneira? Ebramar no havia explicado e Supramati desconhecia o que aconteceria a Lilian no futuro. O modo como o organismo dela rejuvenescera outra vez era uma novidade para ele e indicava apenas a diversidade de efeitos daquela substncia miraculosa e ao mesmo tempo terrvel. A senhora me pergunta mais do que eu posso responder-lhe - disse Supramati, aps

um minuto de silncio. - certo que existe uma substncia desconhecida que aumenta a durao da vida num prazo maior ou menor e que mantm as foras e a juventude; mas um crime utilizar-se desse perigoso meio to insensatamente. Eu considero que Narayana praticou um delito contra a sua pessoa, pois no pediu o nosso consentimento e no pesou se a senhora seria capaz de suportar tal provao, condenando-a para a vida, cujo fim eu no tenho condies de prever, mas que suponho seja muito longa. E isso ele fez s para satisfazer as suas paixes animalescas! Ao ver que Lilian empalidecera mortalmente, fitando-o aterrorizada, Supramati acrescentou: Acalme-se e encare com coragem o futuro! No que depender de mim, farei tudo para

aliviar-lhe a sua sina. Primeiro, eu lhe assegurarei um patrimnio que a livrar da necessidade de comercializar a sua individualidade. O capital ser distribudo de tal forma, que as ocasionais especulaes no possam tir-lo da senhora. Segundo, eu vou reiterar-lhe o meu conselho, ou seja: tenha uma vida orientada para algum objetivo nobre e til e no para uma ambio mesquinha. Ns devemos derrotar os sentimentos desenfreados que fervem em sua alma e no aproveit-los como uma desculpa para a realizao de diversas tolices. Eu no consigo acreditar que essa humilhante vida que a senhora leva possa satisfaz-la. A senhora mesma disse que essa vida era-lhe repulsiva. E no pode ser diferente! A fagulha divina, inserida em seu ser, impele-a para frente -das trevas para a luz. nisso que consiste o destino das almas; esse o caminho pelo qual ns devemos subir para nos unirmos ao nosso Pai Celeste.

Dedique-se ao trabalho e ao aperfeioamento de si e esta vida, que tanto a assusta, no lhe parecer to longa e a senhora sentir menos o vazio deste passageiro mundo, onde a morte ceifa a todos em volta, deixando viva apenas a senhora. Tudo o que o senhor me diz verdade, no entanto, quando penso no meu futuro aterrorizante, fico desesperada - balbuciou Lilian, cobrindo o rosto com as mos. Em seguida, aprumando-se rapidamente ela acrescentou: O senhor me diz para trabalhar e me aperfeioar. Mas como? De que jeito? O isolamento e beneficncia no me satisfazem e no trazem interesse algum para a minha vida. Eu cuidarei para arrumar-lhe atividades mais interessantes - observou sorrindo Supramati. - Antes de tudo, acertarei as questes patrimoniais. At logo! Em breve a senhora ter notcias minhas. Ao voltar para casa, Supramati contou a Nara os resultados de sua visita e discutiu com ela o que poderia ser feito para tornar menos penosa a sorte da infeliz vtima de Narayana, sentenciada, pelo visto, a uma vida prolongada. Aps refletir demoradamente, Nara sugeriu tentar interessar Lilian com as cincias ocultas. Talvez esses estudos despertassem o seu interesse e at a preparassem para ser uma ajudante deles no futuro. Nara queria conversar particularmente com a jovem e explicar-lhe toda a situao. De acordo com a deciso tomada, Nara convidou Lilian para ir a sua casa. Lilian foi, movida tanto por cime como curiosidade, mas todos esses sentimentos logo desapareceram na conscientizao amarga de sua patente insignificncia diante daquela mulher. Foi a que ela compreendeu, de uma vez por todas, por que Supramati, sendo o marido de Nara, no poderia am-la. Ao mesmo tempo, sentia-se vencida pela benevolncia carinhosa dele em relao a ela, e despertou-lhe a vontade de aproximar-se daquele casal eleito atravs do trabalho e purificao moral. Lilian aceitou agradecida a oferta de se entregar ao estudo das cincia ocultas; alguns fenmenos, mostrados por Nara, interessaram-na sobremaneira. Ajudados por Dakhir, que tinha no continente muitos conhecidos, entraram em contato com um velho alemo que morava perto de Nuremburgo num castelo isolado e se dedicava a cincias esotricas. Tanto ele como sua esposa aceitaram que Lilian ficasse em sua casa na qualidade de discpula, enquanto um dos adeptos superiores, que morava em Londres, comprometeu-se observar a nefita e orient-la. Quando todos os preparativos estavam concludos, Lilian viajou para Nuremburgo de posse de um novo patrimnio e animada com as melhores intenes de estudar e se aperfeioar. O seu corao estava mais calmo e a gratido sugeria-lhe o desejo de justificar as preocupaes em relao a ela e ganhar merecidamente o respeito de seus benfeitores.

Captulo X

Certa noite, depois da partida de Lilian, Supramati estava sentado sozinho em seu gabinete. Dakhir havia sado a algum lugar e Nara trabalhava em seu quarto, pondo em dia as suas observaes e repassando o dirio que mantinha religiosamente h vrios sculos, e que continha as mais interessantes memrias que possam ser escritas por um ser humano. Deitado sobre o sof, Supramati folheava os novos romances. Ele queria ter uma noo sobre a nova literatura italiana, porm, enfastiado com aquela tola e vazia leitura, jogou os livros sobre a mesa e comeou a pensar. Encontrar-se naquele gabinete solitrio sempre o fazia ficar com um estado de esprito peculiar. As lembranas de seu primeiro dia no palcio e toda uma espcie de sensaes sentidas pelo pobre e modesto Ralf Morgan, de chofre deslocado para um ambiente mgico das "Mil e uma noites", assomavam-se-lhe mente. Desde ento se passaram quarenta e cinco anos; mas, em certos momentos, parecia-lhe que foram sculos, a tal ponto ele havia mudado. Que horizontes se abriram sua mente, em que mistrios ele penetrara e que poderes adquirira! A sua vontade j no era um bambu balanando ao sabor do vento; o pensamento j no era uma chama tremeluzente que poderia ser apagada por uma brisa. Agora o ato de pensar tornara-se uma gnea corrente flexvel que, semelhana de uma flecha, partia da mente disciplinada e alcanava o objetivo almejado. Um sorriso maroto brincou nos lbios de Supramati. Feito um escolar que repete convicto uma lio bem decorada, ele concentrou por um minuto a sua vontade, fitando com o olhar brilhante a vela sobre a escrivaninha. Imediatamente o ar foi recortado por uma chispa e a vela acendeu. Pouco

depois, um dos livros que estava no sof se levantou no ar e, como se trazido por alguma fora invisvel, depositou-se em sua mo. Um nmero infindvel de tais experincias eram realizadas por ele, sempre com xito, em seu laboratrio. Desde o dia em que reingressou sociedade, topando a toda hora com a ignara e leviana multido, tinha a impresso de que todos os seus conhecimentos ficaram l, no castelo escocs, onde, como num sonho, passara meio sculo mergulhado no trabalho que lhe absorvia todo o tempo. Mas no! Ele nada havia esquecido ou perdido. Sua vontade era inflexvel, dominadora e poderosa, e as foras ocultas se lhe sujeitavam submissas. No, ele no voltou ao que era! Involuntariamente o seu pensamento se afastou para aquele a quem devia o seu estranho e maravilhoso destino. Naquele recinto, tudo ainda lembrava Narayana. Aquela moblia - era Narayana que havia escolhido, naquele armrio ainda estavam suas coisas, e, ali, sobre a escrivaninha, estavam os retratos dele e de Nara. Um suspiro de d e lamento soltou-se do peito de Supramati. Ele tinha pena de seu antecessor, impelido por seus impulsos e paixes para atos criminosos, levando-o para um fim to lastimoso. O que ele estaria fazendo? Encontrava-se Narayana naquele estado horrvel, no qual o encontrara ali, naquele mesmo palcio? Agora j no o assustaria: j no era mais um acovardado que desmaiava ao ver um ser do outro mundo! Ele vencera todos os horrores com que o drago impedia a entrada ao mundo invisvel e tinha disposio uma arma que submetia os espritos inferiores e perigosos que povoavam os sumidouros do enigmtico mundo do alm-tmulo. Continuando a olhar para o retrato de Narayana, notou uma pequena esfera da cor de safira correr pela tela, transformando-se em seguida numa pequena nuvem que comeou a aproximar-se dele, girando e fosforescendo. Ele teve a sensao de uma espcie de teia de aranha escorregar-lhe pelo rosto e sentiu o odor de sangue. Os trabalhos ocultos desenvolveram a perceptividade de Supramati, de forma que ouviu um leve crepitar, imperceptvel a qualquer outro, produzido pela presena de um esprito - esprito de Narayana, provavelmente. Ser que ele queria lhe falar alguma coisa? No precisaria de ajuda? Fosse o que fosse, Supramati considerou como seu dever responder ao chamado e, assim, perguntou mentalmente: Voc quer que eu o invoque e materialize, Narayana? A voz sussurrou-lhe no ouvido: Peo-lhe... Supramati levantou-se e trouxe do dormitrio o escrnio com diversos frascos e ps. Colocando-o sobre a escrivaninha, tirou dele uma trpode de prata, uma travessa do mesmo metal, um castial com sete braos e uma vasilha larga de cristal.

Afastando a mesa at o centro do quarto, colocou sobre ela a travessa, o castial e a trpode, colocando na ltima alguns pedaos de carvo. Ao encher com gua fresca a vasilha de cristal, ele ps ao seu lado uma taa, completando-a com uma essncia vermelha que tirou do frasco, e que difundia um aroma agradvel e vivificante. Terminados todos os preparativos, apagou a luz eltrica e tirou debaixo das vestes o basto mgico, pendurado numa corrente de ouro. Aps reverenciar norte, sul, leste e oeste, comeou a ler cantando as frmulas mgicas e desenhando no ar sinais misteriosos acima da mesa. Mal haviam desaparecido os contornos luminescentes dos hierglifos, o ar foi recortado por uma chama crepitante que acendeu as sete velas e o carvo com o p, colocado por Supramati. O p inflamou-se numa chama branca e viva feito luz de magnsio, iluminando os cantos mais afastados do gabinete. A seguir, a chama comeou a reverberar todas as cores do prisma e finalmente se apagou com uma pequena exploso. O fenmeno que acabava de ser produzido custava-lhe outrora muito esforo e trabalho, mas Dakhir exigia de seu discpulo esta habilidade, necessria para todo aquele que quisesse dominar as cincias ocultas, pois os objetos mgicos no podem ser acesos com chama comum e necessrio invocar o fogo do espao. Por essa razo, os feiticeiros medocres que no detm poderes para invocar esse tipo de fogo, tentam obt-lo acendendo com um raio algum objeto e mant-lo a todo custo para as sesses de magia. Abaixando o basto e continuando o canto pausado, Supramati afastou-se da mesa, junto da qual surgiu uma grande mancha cinzenta, transparente como teia de aranha. Uma brisa gelada agitava aquela nuvem. medida que diminua e se extinguia a chama branca, a mancha cinzenta densificava-se e esticava-se, tomando a forma de uma figura humana. O ser de contornos indefinidos e dois pontos fosforescentes no lugar de olhos, cambaleando e oscilando para todos os lados, aproximou-se da mesa. A mo area separou-se da massa nevoenta e agarrou a taa, esvaziada pelo estranho ser de um s gole. Quase imediatamente, a figura humana compactou-se e surgiu a cabea coberta de cabelos negros, que mergulhou por algumas vezes na vasilha com gua; a seguir, o vulto nela molhou tambm as suas duas mos. Agora j se podia divisar uma figura alta de homem, envolto numa larga capa brancocinzenta. Quando o vulto se virou, Supramati deu com o rosto de Narayana que lhe estendia os braos. Agradeo-lhe, amigo Ralf, por voc ter atendido ao meu chamado e ter-me trazido vida real - disse Narayana em voz sonora. Supramati apertou-lhe efusivamente a mo.

Sou eu que devo agradecer. De que forma eu poderia pagar-lhe por aquela ddiva sem preo que voc havia me dado? Estou feliz que o meu conhecimento tenha permitido que eu o trouxesse para c e pudssemos conversar. Deixe-me cumpriment-lo pela mudana de seu estado. Fiquei muito triste na ltima vez em que o encontrei aqui. Voc deve ter trabalhado muito para ter se purificado at esse ponto! Narayana aproximou a poltrona e se sentou. Por alguns instantes o seu olhar vagou pelos objetos em volta. luz das sete velas, Supramati reparou que no belo rosto de seu antecessor se gravaram sinais de muito cansao; por outro lado, a expresso de raiva infernal e os pequenos chifres vermelhos que se anteviam antigamente por detrs dos cabelos, negros como asa de corvo, desapareceram por completo. Naquele momento, Narayana tinha o aspecto de um homem totalmente real. Virando-se para Supramati, Narayana disse em tom meio zombeteiro, meio melanclico: Na ltima vez que voc me viu, por fora dos sofrimentos eu era um ser repulsivo e cruel. Sim... No h palavras para transmitir aquele inferno que eu passei! Sem dvida, pequei muito, mas para uma pessoa com o meu carter era uma enorme tentao viver por centenas de anos, munido de incrveis poderes que me colocavam acima de toda a humanidade. Feliz voc, Ralf Morgan, porque em suas veias corre um sangue calmo e no corao habita um grande amor cincia. Voc vai subir muito na escada do conhecimento e os sculos coroaro a sua fronte com a estrela do mago! Eu, no entanto, fiquei escravo da minha carne, um joguete de minhas paixes desenfreadas e, no espao, tornei-me um escravo da matria primordial, que vertia as correntes de vida nas veias fludicas do meu corpo astral. Voc viu como eu deca. Ao me conscientizar dessa decadncia, sofri como na prpria carne as dores fsicas que dilaceravam o meu corpo astral. Entretanto, no foi em vo que adquiri alguns fragmentos do conhecimento; tinha uma mente parcialmente disciplinada e amigos, entre os quais o velho que voc viu na gruta dos antepassados. Apoiado por eles, iniciei o trabalho para purificar-me e expiar, ao menos um pouco, o mal que causei. Voc pode ver os resultados do meu esforo. Eu ainda continuo sendo um esprito sofredor, mas j no necessito de alimento nem de prazeres materiais. O crucifixo de Nara j no me obrigar a recuar. Mas, a propsito da minha ex-esposa, voc est feliz com ela? Para mim, ela um anjo! Antes assim! Em relao a mim, ela sempre foi ingrata e cruel. A mim ela no concederia nem meia hora de conversa! Verdade, eu lhe sou infinitamente grato por ter me materializado neste gabinete cheio de recordaes. Tenho a impresso de que ainda sou o senhor deste castelo. Aos meus olhos voc permanece sendo! Eu gostaria de provar melhor a minha gratido.

Se voc realmente deseja fazer-me algo agradvel, Ralf, ou melhor, Supramati - como aqui o chamam -, deixe-me ficar aqui por quinze minutos para sonhar e entregar-me s lembranas, como se eu ainda pertencesse a este mundo. Supramati, que estava sentado na poltrona, levantou-se rapidamente. Eu o deixarei sozinho imediatamente. Fique aqui e considere-se como dono desses quartos que ainda respiram voc. Supramati fez um sinal amistoso com a mo e retirou-se para o dormitrio, cuja porta fechou chave. Ele no percebera uma estranha expresso de zombaria que cintilou nos olhos do espectro. Mal passaram alguns minutos desde a sada de Supramati do gabinete, a porta oposta, que levava ao aposento da esposa, abriu-se rapidamente e dela irrompeu Nara. Sua aparncia denotava inquietude. O que voc fez?! - gritou ela, correndo at o marido e agarrando a sua mo. - Voc materializou Narayana e o deixou sozinho no gabinete? Como voc pde fazer essa loucura? Isso imperdovel! Voc no nenhum profano que se diverte sem entender o que est fazendo... Supramati olhou para ela sem nada entender. Sem esperar pela resposta, ela correu at a porta do gabinete, mas esta se abriu e na soleira surgiu Narayana. Seus olhos negros ardiam, nos lbios vagava um sorriso orgulhoso e triun-fante e nas faces plidas estampara-se um suave rubor. Sua rara beleza apresentava-se em todo o seu esplendor. Constrangido, Supramati olhava admirado para ele, sem entender o motivo da ira de Nara; no entendia que desgraa poderia advir de uma simples materializao ou do desejo do esprito de ficar por alguns minutos sozinho no quarto, onde ele mesmo viveu por muito tempo. Mas um olhar, lanado por acaso para o interior do gabinete, f-lo estremecer. Na parede, em frente da qual estava sentado Narayana, havia uma abertura de cuja existncia Supramati nem suspeitava, e sobre a mesa estava um escrnio aberto, que, pelo visto, fora retirado do esconderijo. Ao lado do escrnio, estava um frasco com rolha de ouro, que continha a essncia primeva. O insolente esprito ousou se utilizar dela... Supramati empalideceu. Mas no teve tempo de abrir a boca, pois Narayana mediu Nara com um olhar de mofa e disse: Voc chegou muito tarde para impedir-me, minha bela ex-esposa! Apesar de ser muito precavida, voc se esqueceu de prevenir Supramati, cujo corao os sculos ainda no tiveram tempo de endurecer como o seu. Voc mereceu isso, mas a sua insensatez , decididamente, incorrigvel - replicou Nara cerrando o cenho. No se preocupe, eu mesmo arcarei com as conseqncias do meu audacioso ato e as desavenas conjugais j no me preocupam. Alm do mais, os seus encantos perderam para mim

qualquer poder - observou em tom zombeteiro Narayana. - E assim, tranqilize-se, encantadora e cruel Nara: eu no vou reclamar pelo esplio nem por voc. Voc sabe melhor que todos como ser duro agora qualquer relacionamento com os seres humanos. Assim, eu irei ao palcio de um ioga no Himalaia e no vou perturbar mais ningum. Nara deu de ombros, virou as costas e saindo do quarto atirou ao marido: Tolo! Duplamente tolo! No leve a mal que eu tenha sido o responsvel por esse ttulo honorfico, meu pobre amigo e herdeiro. Somente eu o escutei. Nos velhos tempos, alis, eu fui agraciado por ttulos mais vigorosos; mas, partindo de uma mulher bonita, a gente agenta - disse Narayana, rompendo-se numa sonora gargalhada. Ah, voc realmente no tem jeito! observou Supramati rindo involuntariamente. Depois, em tom j srio, ele perguntou: O que voc fez? Somente aquilo a que eu tinha direito: eu me utilizei da essncia primeva que lhe leguei. Voc no ficar mais pobre com umas gotas a menos. Basta, Narayana. Tudo que pertenceu a voc continuar seu. Eu no preciso de nada. A minha ddiva mais preciosa - a iniciao - ficar comigo. Voc uma pessoa boa e correta, Supramati! - elogiou Narayana em tom amistoso. Eu quero que voc saiba que no preciso dos bens terrenos que lhe deixei em herana. De qualquer forma, tudo fica sua disposio. No pense, no entanto, que eu lamento a sua ressurreio. Eu sei. Mas entenda, Supramati, que no me tornei um homem comum; eu sou um anfbio que entrou por duas portas no mundo invisvel. No posso utilizar alimento comum, a no ser especial, que praticamente no custa nada. Eu simplesmente adquiri a capacidade de no me decompor por conta da essncia primeva, que me supriu de vontade ou de fora vital, permanecendo ao mesmo tempo um esprito. Assim eu, a meu critrio, posso ser visvel ou no. Vou lhe demonstrar agora. Narayana pegou Supramati pela mo e imediatamente se fez desaparecer. Por mais que este olhasse em volta, s enxergava o ar transparente e, no entanto, sentia o aperto forte dos dedos de Narayana. Por fim, ele se tornou novamente visvel, extasiando-se diante da surpresa e desorientao do jovem mago. Voc ainda ignora muitos mistrios, pois teve acesso somente aos princpios da cincia; mas devo reconhecer que voc as estudou coerentemente, ainda que os fenmenos que podem ser produzidos com o auxlio da matria primeva lhe sejam praticamente desconhecidos. A sua multiplicidade infinita, j que este agente com a mesma facilidade que torna coesas as molculas

tambm as quebra. Com a quarta parte do que sobrou neste frasco, voc poder ressuscitar um cemitrio inteiro. S que no ser o mesmo que eu fiz comigo. Eu atra do espao uma quantidade de molculas que me garantem unicamente a densidade necessria para uma vida semi-humana, livre, alis, de quaisquer incmodos carnais. Tal vida eu pretendo levar num maravilhoso palcio, localizado no Himalaia. Voc ainda no o viu, mas espero que v me visitar l. Voc, apesar da imortalidade, sente o fardo do corpo material e necessita de milhares de coisas para o seu conforto, locomoo, e assim por diante. Se no consegue morrer de fome, de qualquer forma deve sentir outros desconfortos, dos quais j estou livre. Supramati deixou-se cair impotente na poltrona e passou a mo na testa. Decididamente, eu comeo a me perder no labirinto dos milagres e mistrios inexplicveis, cuja fonte a matria primeva. Estou cada vez mais convicto de que no passo de um ignorante, que mal acabou de decorar o alfabeto. Mas voc, Narayana, hbil nessa cincia que desconheo totalmente; voc estudou as propriedades da essncia primordial. Tire-me algumas dvidas que tenho! Terei prazer de lhe contar o pouco que sei. Neste caso, diga-me, antes de tudo, estava voc brincando quando disse que com o auxlio da matria primeva eu poderia ressuscitar o cemitrio inteiro? Eu falei srio. E isso totalmente possvel. Eu no entendo. Devido ao nosso sistema de enterro, dentro das sepulturas s sobram os ossos, enquanto dos cadveres incinerados apenas ficam as cinzas. De que forma, ento, esses restos podero reviver e se animar? Narayana apagou as sete velas que ainda estavam ardendo. Depois ele foi ao quarto contguo, sentou-se no sof e disse para Supramati ocupar o lugar ao lado. Estou vendo que voc tem muitas perguntas e, sendo assim, aqui ser mais confortvel. Enquanto sobrar qualquer remanescente de corpo humano, existir um objeto, impregnado de fluido vital. Isso, como queira, ser o fundamento, junto ao qual poder ser concentrado um sistema molecular, que outrora constitua uma coisa integrada. O processo pode ser desencadeado sempre e numa velocidade impressionante, desde que aos restos do corpo for introduzida uma partcula da matria primeva, necessria para a aglomerao. E os seres ressuscitados desta maneira tornam-se imortais? - perguntou plido e atnito Supramati. No, no! Eles adquirem a vitalidade s por algum tempo, nunca muito longo devido ao fato de que a matria intensamente absorvida pelo processo, que possui tambm as suas inconvenincias. Assim, por exemplo, para devolver ao corpo um esprito que ele antigamente habitava, s vezes necessrio arranc-lo de um que ele anima no momento, o que provoca a morte

daquele sujeito, pois a fora atuante desconhece obstculos e manifesta-se invariavelmente ali, onde se verifica ser mais forte. No caso que nos interessa, a fora superior se encontrar no corpo destrudo, uma vez que a dose da essncia depende do operador. O esprito, trazido dessa forma ao seu habitai anterior, perde a lembrana do passado, indiferentemente se foi chamado do espao ou arrancado do outro corpo. A propsito, com o auxlio desta matria - a verdadeira essncia da vida possvel criar um ser humano artificialmente, mas a sua vida seria efmera, porque a matria vital absorvida muito rpido. Tal criatura se transformaria em cinzas; mas repito: isso bem possvel. Por que Dakhir nunca me falou destas coisas to importantes? - balbuciou Supramati. Oh! Dakhir um mentor muito diligente e por demais metdico. Ele lhe ensinou as frmulas mgicas que fazem submeter os seres inferiores, desenvolveu as suas potencialidades ocultas e disciplinou a sua fora de vontade; no entanto no o familiarizou com as propriedades da matria primeva, deixando isso, provavelmente, para o futuro. Eu, ao contrrio, sempre fui um aluno rebelde e nunca suportei estudos muito lentos. Eu almejava orientar-me em todos os campos da cincia. Terei muito prazer em compartilhar com voc os resultados de meus estudos neste campo. Se voc quiser, eu lhe mostrarei algumas experincias que ilustram o que acabei de lhe falar sobre as propriedades e os poderes da essncia primeva. Como se eu no quisesse! Ficarei reconhecido do fundo da minha alma se voc me der alguma luz sobre as propriedades da matria em meu poder, que no sei usar, correndo um risco de fazer o mal, onde s quero fazer o bem. Podemos iniciar imediatamente uma experincia de ressurreio. J quase meia-

noite. A hora favorvel, e como eu, graas a Deus, no corro risco de me decompor, entrego-me a sua inteira disposio. Vamos at a ilha dos mortos. L ns escolheremos alguns defuntos e os faremos voltar para as alegrias da vida. Visto eles no terem condies de saber quem so os seus benfeitores, no podero nos delatar e jamais aceitaro a idia de que estavam mortos - concluiu rindo Narayana. Supramati ps-se a pensar indeciso. A possibilidade de estar presente numa experincia to indita atiava-lhe a curiosidade, e um certo aborrecimento em relao a Dakhir e Nara, que lhe iam ministrando os conhecimentos em doses homeopticas, incitava-o a aceitar a proposta de Narayana. Por outro lado, sua boa e correta alma sentia-se atormentada com o temor de causar algum mal ao lanar a mo, criminosamente, de poderes desconhecidos. Narayana, que o observava atentamente, soltou uma gargalhada escarninha. Voc est vacilando? Talvez - h-h-h! voc esteja com medo de Nara e Dakhir?! Neste caso, esquea de que eu falei. Deus me livre se voc receber uma reprimenda de seus severos mentores.

Um rubor brilhante cobriu o rosto de Supramati. Chega de falar besteira! No recebo ordens de ningum e quero assistir a esse fenmeno que voc prometeu me mostrar. S deixe que arrume as coisas e pegue minha capa! Voc que sabe! No se esquea de levar o frasco com a essncia e me arrume tambm uma capa qualquer. Eu no posso sair rua com este traje do outro mundo disse Narayana, atirando para o cho a capa que vestia, e que ao cair, desfez-se toda. Ele encontrava-se agora num traje de veludo violeta com larga gola em renda e botas de cano longo com esporas. Supramati olhou-o sorrindo e, depois, guardando apressadamente as coisas, perguntou: Diga-me, por que Nara tenta impedir, a todo custo, que voc adquira o seu atual estado? Isso no lhe indiferente? Um sorriso enigmtico deslizou pelos lbios de Narayana. Pergunte a ela! Talvez ela lhe diga a razo dessa m vontade em relao a mim. Eu no quero irrit-la mais ainda, suscitando talvez suspeitas infundadas. Dez minutos depois, ambos saram do palcio atravs de uma escada secreta que dava na laguna lateral. Aos ps da escada, havia um barco. Eu mudei os planos - anunciou Narayana sentando-se no barco e se envolvendo todo na capa. - At a ilha dos mortos muito longe e, alm do mais, l difcil retirar os ossos. Pensei numa coisa melhor. Perto daqui - a ele citou o nome de um dos pequenos canais laterais - h um velho palcio semi-destrudo. O seu dono, de famlia antiga tradicional, est totalmente arruinado e subsiste num dos quartos do primeiro andar, onde logo acabar morrendo, opondo-se, entretanto, a vender as runas. Naquele palcio havia outrora uma capela sob a qual construram um tmulo, atualmente esquecido. L ns encontraremos o que precisamos. Est bem! - concordou Supramati pegando nos remos e se dirigindo ao local apontado. Era um antigo quarteiro de Veneza. As casas, rodeadas por um pequeno canal, tinham em grande parte um aspecto desrtico e abandonado. Por fim, Narayana indicou um prdio mais destrudo que os demais e disse: Que palcio, hein! Pare junto daquela pequena porta esquerda! Supramati encostou o barco junto a um velho anel de bronze, fixado na parede, e comeou a subir a escada. Narayana ia frente. Sob a presso de sua mo, a porta abriu-se rangendo, fechandose quase imediatamente. Aqui est mais escuro que na goela do diabo! - resmungou Supramati. Dizendo isso, ele tirou do bolso uma esfera de vidro com cabo de bronze; a esfera comeou a emitir uma luz brilhante.

Oh! Ento j descobriram o segredo das lmpadas eternas que tanto seduziram os cientistas desde que elas foram encontradas nas sepulturas romanas? observou Narayana. Sim, o segredo foi desvendado h trinta anos atrs. Agora elas esto em moda. Bem, Narayana, ande na frente e indique o caminho, pois voc conhece a disposio da casa. Oh, perfeitamente! Eu vi este palcio em seus tempos ureos, ou seja, em 1560. Na poca, a casa era um luxo s. Eles atravessaram rapidamente uma infinidade de salas vazias. A luz viva da lmpada iluminava paredes desnudadas, afrescos cobertos de musgo eplafonniers balanantes que ameaavam cair no cho. Havia um contraste marcante entre toda aquela pobreza e desolao e as maravilhosas lareiras de mrmore branco e amarelo, pisos de mrmore em mosaico, cobertos por poeira, e todo tipo de fragmentos. Os passos de Supramati ressoavam forte pelo piso de pedra, enquanto Narayana deslizava silencioso ao seu lado. Subitamente, uma sensao estranha e oprimente apertou o corao de Supramati. Naquele profundo silncio noturno, naquele ambiente angustiante da destruio, nele despertou alguma coisa que recordava o antigo Ralf Morgan. Que aventura estranha ousava ele empreender em companhia de uma pessoa no menos estranha, vinda do alm! Ah! - fez inesperadamente Narayana. - No se entregue aos seus pensamentos tolos. Pense s naquilo que vamos fazer. Estamos nos aproximando do nosso objetivo. Se no me engano, no fim desta galeria ns vamos sair para um grande ptio, onde, antigamente, havia um chafariz e do outro lado ficava uma capela. E, de fato, aps andarem por alguns minutos, eles se encontraram frente a uma porta que levava para um ptio calado com piso de pedra e ladeado por uma galeria em arcos. Neste momento, a lua saiu das nuvens que cobriam o cu. A luz fraca do luar, do outro lado do ptio desenhava-se uma construo com cpula, encimada por uma cruz. A capela tambm tem uma sada do outro lado para uma travessa, mas, com toda certeza, aquela porta deve estar trancada por dentro, pois nenhum ofcio religioso celebrado ali h muito tempo - explicou Narayana. incrvel como voc lembra bem da localidade, com todos os seus escombros observou Supramati. Narayana deu uma gargalhada. Eu tive aqui muitos amigos e durante uma poca fui uma visita constante. Mas vamos! Temos de passar pela sacristia que servia de entrada aos senhores do palcio que construram a capela.

Eles atravessaram o ptio e detiveram-se diante de uma pequena porta carcomida por vermes; com um empurro de ombro, Supramati derrubou a porta. A sacristia verificou-se estar completamente vazia, da mesma forma que a capela, que tinha um aspecto deveras melanclico. Os vidros de duas altas e estreitas janelas seteiradas estavam partidos; o altar estava desnudado. Algumas lpides tumulares adornavam as paredes. Narayana foi at o fundo da capela, esquerda do altar, onde se encontrava uma placa de pedra com um anel de bronze embutido no centro. Ele se inclinou e, sem um esforo visvel, levantou a tampa. Ento, luz da lmpada, divisaram os degraus estreitos de uma escada. a entrada cmara morturia - disse Narayana comeando a descer a escada. Supramati o seguiu com a lmpada. Logo depois, eles se achavam num pequeno subterrneo que precedia a cmara morturia. A porta de bronze da cmara estava com ferro-lho, lacrado por um grande cadeado. Supramati pegou um ferro cado no cho e com alguns golpes quebrou o cadeado. Tirado o ferrolho, a porta abriu-se rangendo. Da cmara bafejou um ar viciado, repleto do odor sufocante da umidade. Sem dar ateno ao fato, Supramati entrou. A luz da lmpada que ele segurava na mo iluminou uma fileira caixes, grandes e pequenos, dispostos em suportes de pedra ao longo das paredes. Alguns deles estavam podres e a madeira putrefata resvalara-se no cho misturada aos ossos: outros caixes estavam inteiros. Narayana dirigiu-se diretamente a um grande e macio caixo de carvalho enegrecido, com cantos em metal. Aqui - disse ele - repousa aquela que eu quero ressuscitar. A pobre Lorenza foi uma mulher lindssima. O seu marido - um velho monstrengo - asfixiou-a com as mos num acesso de cime por t-lo preterido a um amante jovem e bonito. A histria s no veio tona porque o velho patife, Marco, era parente do doge. Continuando a conversar, Narayana comeou a retirar a pesada tampa do caixo, que cedeu com muita dificuldade, vindo a cair com estrondo sobre o cho. Do caixo, levantou-se uma nuvem de poeira. Jogando de lado um vu carcomido pelo tempo, Supramati viu o corpo que ali jazia. No era um esqueleto, pois a enegrecida e ressecada pele cobria os ossos, desenhando todas as suas depresses; em vez de olhos, anteviam-se apenas cavidades negras; a boca sem lbios fazia arreganhar os dentes, e toda a cabea, envolta numa massa exuberante de cabelos, tinha o aspecto de crnio nu. Narayana torceu o rosto. No sobrou muito da beleza de Lorenza! Mas voc vai ver agora por que o senhor Marco pode ser perdoado por ter na conscincia este crime. O que se preservou espetacularmente o vestido.

D uma olhada para este brocado prpuro! Ele grosso e resistente feito couro, apesar de mais de trs sculos. As fbricas de hoje bem que poderiam copi-lo. Supramati apalpou o tecido, de fato bem conservado. Apenas a renda dourada que adornava o corpete de largas mangas enegreceu totalmente. Bem, est na hora de iniciar o trabalho! Eu vou at a fonte para pegar gua -

anunciou Narayana. Dizendo isso, ele saiu, enquanto Supramati, confuso e perturbado pelos mais diversos sentimentos, recostou-se na parede. A sua conscincia censurava-o por ele ter se decidido a fazer aquela experincia que, em caso de xito, seria uma terrvel provao para aquele ser; mas em contrapartida a este sentimento juntou-se um outro - a curiosidade extremamente excitada de um "cientista", que lhe abafava os remorsos. Era com impacincia febril que ele se perguntava se aquilo no seria um conto de fadas, idealizado por Narayana. Como poderiam as mos do esqueleto que seguravam o crucifixo de madeira enegrecido se tornarem mos de uma pessoa real e esse cadver decomposto sair de seu caixo? A chegada de Narayana interrompeu os seus pensamentos alarmantes. Para sua surpresa, o outro trouxe uma xcara de gua e uma lamparina antiga que tinha, pelo menos, uns cento e cinqenta anos. Aqui esto! - disse Narayana satisfeito, colocando a xcara e a lamparina num dos caixes ao lado. Para que a lamparina? Comparada minha lmpada, ela no passa de um vaga-lume observou Supramati. A sua esfera de luz viva e ofuscante pode atrapalhar a experincia. Peo-lhe embrulh-la e guard-la no bolso assim que voc colocar trs gotas da essncia na xcara - respondeu Narayana. Isso eu posso fazer bem at com a lamparina. Mas como que voc a acendeu? Assim! - disse Narayana, erguendo a mo. Imediatamente em sua mo acendeu uma chama tremeluzente, que se apagou to logo baixou o brao. Supramati tirou o frasco e ps trs gotas de lquido na gua. Imediatamente da xcara subiu uma grande chama vermelha e a gua pareceu se transformar numa massa fundida. Jogue todo o contedo da xcara no caixo! - ordenou Narayana.

Supramati obedeceu. Ouviu-se um crepitar, como se houvessem jogado gua em cal virgem. Agora a gente se afasta at aquele canto escuro. De l ns podemos ver tudo, sem sermos vistos.

Calado, com o corao palpitante, Supramati recostou-se na parede olhando para o caixo, onde alguma coisa estalava, efervescia, e para o alto subia um denso vapor esbranquiado, sulcado de ziguezagues gneos. A seguir, do teto, paredes e cho comearam a saltar centenas de fagulhas fosforescentes, que feito uma cascata de estrelas cadentes se precipitavam com estalido seco sobre a massa no caixo. O corao de Supramati acelerou com uma fora terrvel; devido perturbao, faltava-lhe o ar. Ele olhou assustado para Narayana em p ao seu lado, mas no conseguiu ver-lhe o rosto, pois ele, neste instante, havia escondido a cabea com a capa. Esta estava coberta por uma nvoa luminescente que delineava claramente a sua figura na parede escura, e sua mo com dedos finos e delgados, segurando a prega da capa, era de fato a mo de uma pessoa real. Com um tremor involuntrio, Supramati virou-se e continuou a olhar para o caixo. Ali alguma coisa havia mudado. O vapor esbranquiado transformou-se numa nuvem, vermelha como sangue, que ia se absorvendo rapidamente no interior do caixo. Neste nterim, do teto desceu semelhana de luz errante uma enorme chama que atravessou com a velocidade de uma flecha a cmara morturia e mergulhou no caixo, arrastando consigo os restos da nuvem vermelha. Tudo se apagou e ao antigo tmulo, iluminado fracamente pela lamparina, sobreveio um silncio mortal. De chofre, no profundo silncio, algo se moveu e ouviu-se o farfalhar de um tecido de seda. Em seguida, ouviu-se um suspiro humano, to lamentoso e dbil, que um tremor glacial percorreu o corpo de Supramati. Ento, na borda do caixo, surgiu uma mo branca, depois a cabea e o torso da mulher, que, com visvel dificuldade, se ergueu e se sentou tomando flego. O rosto que quinze minutos atrs era um crnio expressava agora um terrvel pavor; os olhos vagavam assustados pelo ambiente sinistro. Grande Deus! Virgem Santssima! Ento no foi um pesadelo que Marco queria me sufocar? E acharam que eu havia morrido? - balbuciou a voz trmula. A mulher endireitou-se rapidamente, ergueu-se e saltou cuidadosamente do caixo. Subitamente ela estremeceu e, levantando o p, olhou para ele atentamente. Quem foi que me colocou estes sapatos rotos?! - exclamou ela num linguajar puramente toscano. Tomada por repentina fraqueza, ela se sentou no degrau e agarrou a cabea com as mos, querendo, provavelmente, juntar as idias. Supramati, que a observava avidamente, viu que era uma mulher ainda muito jovem, esbelta, com maravilhosos cabelos negros. Dominada indubitavelmente pelo pavor que lhe sugeria aquele sinistro lugar, a jovem levantou-se e pegou a lamparina..

Quem poderia ter trazido esta lamparina? Sem dvida, "ele", sabendo que eu estava viva. Mas... onde que "ele" est? - sussurrou ela e em seus lbios esboou um sorriso de contentamento. Ela se virou e saiu rapidamente da cmara morturia. Meu Deus, que ser encantador! Mas que ser dele? - balbuciou Supramati cheio de d e admirao. - O que voc fez, Narayana, algo diablico! No ser voc aquele "ele" que ela est esperando? - acrescentou Supramati inquieto. Voc a prpria encarnao da perspiccia, amigo Ralf! Agora devo-lhe confiar uma grande responsabilidade: a de proteger Lorenza. Espero que Nara no fique com cimes, pois voc um marido to bom e fiel! pilheriou com riso seco Narayana. - Alis, mesmo me arriscando a deixar brava a minha ex-metade, eu no posso me dedicar bela ressuscitada. No tenho direitos humanos nem espirituais sobre ela; mas ela no vai entender isso, se me vir, e seu amor s causaria problemas. E agora... at vista! Suba! A coitadinha est no ptio sem compreender as mudanas que ocorreram com o seu palcio. Oferea-lhe os seus servios de cavalheiro. A propsito, voc poder voltar ao barco por um caminho mais curto. Na sala onde est a lareira adornada com a cabea de Apoio existe uma porta esquerda. Ela sai para a galeria que os levar diretamente para o saguo. Eu lhe deixarei a capa que voc me deu. A capa ser til para encobrir o traje de Lorenza, que no est muito em moda. Um minuto depois, Supramati j estava sozinho no tmulo; Narayana havia desaparecido. Supramati subiu a escada e viu Lorenza no ptio. Ela, ao que tudo indicava, estava muito assustada, parada indecisa sem ousar ir adiante. Senhora! - chamou ele, aproximando-se da jovem. - Permita-me acompanh-la para um lugar onde a senhora poder descansar. Supramati falava em italiano. Lorenza levantou para ele os grandes olhos negros e com visvel desconfiana examinou a figura alta, envolta numa capa escura, portando um grande chapu de feltro na cabea. Subitamente ela recuou e assustada murmurou: Brav i ? ! Um sorriso involuntrio aflorou aos lbios de Supramati. Tranqilize-se, senhora! Eu sou um nobile e no um bravi. Quero lev-la at a minha esposa. O resto ns discutiremos depois - acrescentou ele, jogando-lhe nos ombros a capa e pegando a lmpada. Entendo! O senhor foi mandado por Narayana. Ele vir ao meu encontro para proteger-me disse Lorenza, baixando o capuz. - Mas eu no quero ir pela casa: Marco poder nos ver. Ns podemos sair pela capela.

No tenha medo de nada, senhora! Ningum nos ver ou deter! A senhora pode

confiar em mim! Visivelmente assustada, Lorenza seguiu-o. Entretanto, quando ela passava pelos quartos vazios e destrudos, foi assaltada por tal pavor, que, agarrando o brao de Supramati, gritou em voz sufocante: - O que significa tudo isso? A casa toda est saqueada! O que poderia ter acontecido aqui em poucos dias? A senhora logo saber de tudo. Aqui no um local para uma conversa longa - disse Supramati, arrastando a acompanhante para a sada. Durante a viagem, nenhuma palavra foi dita; mas, quando Supramati encostou o barco perto de seu palcio, Lorenza gritou em voz surda: O senhor pretende me entregar? O senhor est me levando ao palcio de Narayana? Aqui ele jamais me esconderia. Leve-me at ele! Eu quero v-lo! - acrescentou ela, desatando-se em pranto. Um sorriso irnico e triste percorreu o rosto de Supramati. Junto com a vida, na alma da infeliz despertara tambm o amor ao homem traioeiro, que fora a causa de sua triste morte e que agora a arrancou do tmulo s para realizar uma "experincia interessante" e provar que ele era capaz de ressuscitar os mortos. Em palavras curtas mas enrgicas, ele convenceu Lorenza a sair do barco e a levou sala de estar de Nara, pedindo-lhe que esperasse por ele. Ele foi direto para o aposento da esposa para relatar-lhe o ocorrido. Nara no estava dormindo. Ela, aparentemente, estava irritada e andava inquieta pelo quarto. Quando o marido entrou, mediu-o com um olhar sombrio. E ento? Qual vai ser a novidade? Que outra besteira voc acabou de fazer? Co-participante de que novo ato ignbil f-lo Narayana? Perdoe-me, Nara - disse Supramati pegando-lhe a mo e trazendo-a aos lbios. - verdade! Eu me permiti entusiasmar-me com uma experincia criminosa; no entanto, a tal ponto extraordinria que... Precisou matar um ser vivo e envolver em luto toda uma famlia para ressuscitar o cadver, com isso permitindo que Narayana pudesse demonstrar os seus "conhecimentos"?! Sinceramente, no tem fim a raiva diablica e a impertinncia com as quais ele brinca com as vidas humanas, feito pees, criadas para a sua diverso. Voc escolheu um mestre perigoso. Ele um cientista inconseqente. Ele no se utiliza das terrveis foras para algum objetivo til; no tem bom senso, prprio de um verdadeiro iniciado, mas negligente em seus atos criminosos. Talvez eu tivesse sido insensato, mas fui movido unicamente pela sede do conhecimento. Quero, uma vez por todas, conhecer as propriedades da matria primeva em meu poder. Voc e Dakhir,

entretanto, deixam-me na ignorncia, medindo-me o conhecimento em gotas, feito remdio - refutou contrafeito Supramati. Se voc quer estudar seriamente, deve avanar devagar; voc, Supramati, apesar de suas boas qualidades, uma criana terrvel! No o levou hoje a sua curiosidade insensata, que no se detm diante de nada, a praticar um ato cruel e intil? Qual ser o destino da mulher que vocs, pode-se dizer, recriaram? O que ela far ao se ver em condies estranhas para ela neste mundo, onde ningum a conhece? Supramati ruborizou. Atraindo Nara a seus braos, ele a beijou na face. Como sempre voc tem razo, minha bela e sbia feiticeira! Mas, se o mal est feito, ajudeme a repar-lo nos limites do possvel. Eu trouxe a pobre Lorenza para c. No podemos abandon-la na rua. Agora ela est na sua sala de estar e, reconheo, o seu aspecto desesperador... Imagino! Para dizer a verdade, o desespero lhe seria at uma ddiva. Ainda que a boa Lorenza no merea a minha compaixo e ajuda, mas, j que passou tanto tempo, mais a morte dupla que ela ainda ter que enfrentar, eu a perdo e tentarei amenizar-lhe a sorte. Voc chegou a conhecer Lorenza? Oh, claro! Casaram-na com um velho, mas um nobre senhor muito rico, que a amava perdidamente at Narayana t-la seduzido. O relacionamento deles foi to escandaloso, que acabou descoberto por Marco e este, num acesso de cimes, asfixiou a esposa. Estava ele torturado por remorsos, ou o choque foi muito duro para sua compleio, s sei que depois do crime ele teve um ataque apopltico e seis meses depois faleceu. Quanto a ns, fomos embora de Veneza e toda a histria foi abafada. Agora eu vou at a morta-viva, enquanto voc, "caador insacivel da verdade", vai falar com Narayana. Talvez ele lhe ensine como criar um ser humano com o auxilio da essncia primeva. At isso ele sabe fazer. E se no povoarem um deserto inteiro, na certa vo me arrumar mais uma preocupao com alguma nova vtima de suas experincias. Sem esperar pela resposta, Nara deu as costas e retirou-se do quarto. Lorenza estava sentada na sala de estar com o rosto coberto entre as mos; em sua cabea havia uma tempestade e um verdadeiro caos de pensamentos; parecia-lhe estar ficando louca. As evidncias mostravam que a partir do momento em que ela ficara inconsciente, at aquele instante onde se viu no tmulo, ocorrera uma extraordinria mudana em tudo que a cercava. Ela lembrava-se claramente quando estava retornando para casa de gndola, cheia de flores que Narayana lhe atirou em profuso durante o corso no Grande Canal. Era a muito custo que ela escondia a paixo pelo sedutor Narayana, um estrangeiro s na origem, mas que, pelos trajes, maneiras e devoo crist, no se distinguia dos senhores venezianos,

com exceo, talvez, de sua generosidade de strapa. Com que criatividade sutil ele sempre encontrava uma maneira de cobri-la com presentes desde que se tornara o seu amante! Aps aquela maravilhosa tarde, sobreveio uma noite medonha. O marido fez uma cena violenta. Ela recordou-se trmula do seu rosto transfigurado, dos olhos injetados de sangue que a fitavam com cime selvagem e dos dedos glidos de Marco, que, feito uma tenaz, apertavam-lhe a garganta. Tudo aquilo se passara h apenas alguns dias atrs, no entanto, o magnfico palcio transformou-se em runas, as ruas mudaram de aspecto, os trajes dos transeuntes diferiam daqueles a que ela estava acostumada, e at este quarto, para onde a trouxera o estranho protetor, respirava algo novo, desconhecido. Tudo lhe era estranho ali, desde o fogo que ardia em alguns tubos de vidro, at a inusitada moblia revestida em cetim. Uma dor aguda comprimiu-lhe o crnio e ela, alque-brada, deixou cair a cabea sobre a mesa. Um toque da mo de algum fez com que Lorenza estremecesse. Ela se aprumou e ps-se de p. Senhora Nara! a senhora? - balbuciou ela e imediatamente se calou perplexa. Sim, sou eu, senhora Lorenza! Vamos ao meu quarto onde poderemos conversar. Constrangida, Lorenza dirigiu-se obedientemente ao boudoir de Nara, onde, sobre uma mesinha, tinha sido preparada uma refeio, consistindo de legumes, leite e po, e at mesmo uma taa de vinho. Antes de tudo coma para fortalecer-se - disse Nara fazendo sentar-se a sua visitante. A viso da comida excitou o apetite de Lorenza. Ela tomou o vinho e experimentou de todos os pratos. Quando quis iniciar as explicaes, Nara a deteve. Antes de comear com as explicaes, a senhora precisa tomar um banho e trocar o vestido. Ningum dever v-la nesse traje. Assim, vamos ao meu banheiro. Lorenza obedeceu calada, sentindo-se exausta e sem condies de refletir. Ela despiu-se obedientemente e imergiu na banheira, onde Nara colocou um lquido de um pequeno frasco. Enquanto a sua visita se lavava prazerosamente, Nara trouxe de seu guarda-roupa algumas roupas e um robe, pois no queria acordar a camareira. O banho refrescou Lorenza e, quando vestiu as peas ntimas de cambraia e o largo robe de seda, com acabamento de renda, sentiu-se completamente bem. Agora voc deve tirar uma soneca - disse sorrindo Nara. Antes eu gostaria de agradecer-lhe por sua bondade. Eu a mereo to pouco e sou muito culpada diante da senhora - murmurou Lorenza enrubescendo e baixando os olhos.

Todas as suas faltas diante de mim esto esquecidas e perdoadas, pois aos mortos no se julga. Como primeira explicao de muitas coisas que lhe parecem incompreensveis, devo dizerlhe, marquesa, que a sua letargia durou por muito mais tempo do que a senhora imagina.. Nesse nterim, Narayana morreu... Lorenza empalideceu e gritou em voz surda: Narayana morreu e eu estou viva? Cobrindo-se de lgrimas, ela prosseguiu em voz entrecortada: Por que Deus quis que eu sobrevivesse a ele? Por mais pecaminoso que seja o meu amor, ele nos une com todas as fibras do meu ser. Por ele eu seria capaz de tudo! Ao ver que Nara estava quieta, olhando triste e pensa-tivamente para ela, Lorenza murmurou, tentando sufocar o choro e dominar o desespero: Perdoe-me este desafogo da minha infelicidade, que para a senhora equivale a uma ofensa. A minha nica desculpa que no se pode ordenar ao corao, e o prprio Narayana me disse que havia se separado da senhora que no o amava mais, e o fato de ele amar outra mulher era indiferente para a senhora. Isso verdade? Seria possvel no amar uma pessoa assim como ele? verdade. Eu nem poderia amar Narayana. Afastava-me dele a sua vida desregrada, seus princpios imorais, as traies, a leviandade cruel com que ele desonrava as mulheres. O seu relacionamento com a senhora e seu marido era indigno. Ele se dizia amigo do marqus e aproveitouse de sua ausncia para seduzi-la. A senhora era to jovem e bonita, que instigou facilmente o capricho do estroina. Seu marido, entretanto, tinha um amor sincero pela senhora. Quando a senhora acabou com sua felicidade e honra, ele foi levado a praticar o crime e logo depois morreu. Como? Marco tambm morreu? balbuciou Lorenza, deixando-se cair na poltrona. Sim! S lhe resta orar por ele e pelo seu sedutor. Deus lhe deu vida para que se arrependa e consagre o resto de seus dias s oraes e purificao da alma. Conte-me de que ele morreu e quanto tempo eu fiquei em sono letrgico? Em outras palavras, explique-me tudo o que aconteceu depois que eu... perdi a conscincia - perguntou timidamente Lorenza. S que no agora; chega de impresses por hoje. Terei de contar-lhe muitas coisas que podero perturb-la, mas agora a senhora precisa descansar. Ao notar que Lorenza se preparava para protestar, Nara disse autoritria: Sem objees! Tome este calmante, deite-se no sof no quarto ao lado e durma. Amanh a senhora saber tudo que quer.

E, de fato, Lorenza no imaginava o quanto estava debilitada. A terrvel "experincia" que suportaram sua alma e corpo estava cobrando o seu preo. Assim, mal ela se deitou no sof, o calmante f-la mergulhar num profundo sono. Nara olhou triste e pensativa para o belo rosto, que, por sculos inteiros, fora cinzas e agora estava animado por fora criminosa. Um suspiro pesado soltou-se do seu peito. Infeliz! Que sofrimentos morais aguardam por voc aps o despertar! Quando que, Narayana, a justia celestial vai alcan-lo? Quando que voc compreender a leviandade criminosa de brincar com os terrveis conhecimentos que vieram parar em suas mos? - balbuciou ela. Voc me odeia e por isso me julga to severamente - pronunciou uma voz sonora muito familiar. Nara se virou e seu lmpido e sereno olhar encontrou-se com os olhos ardentes de Narayana. Voc veio admirar a sua diablica obra? Ser que a sua conscincia no di por voc ter agido to cruelmente, mais uma vez, com a vtima de seus caprichos? - recriminou Nara. - Mas prosseguiu ela -, voc sabe perfeitamente que eu no o odeio, pois o grau de minha iniciao exclui esse tipo de sentimento malfico. Eu s tenho pena de voc e o censuro pelo fato de que voc, tendo em mos a taa do conhecimento, prefere a ela a taa dos prazeres. Lamento que voc no quisesse sacudir de si as cinzas de um homem infame e se utilize dos fragmentos dos conhecimentos adquiridos apenas para fazer o mal ou tolices. Voc mesmo sabe que em seu passado h mais maldies que bnos. Por que que voc sempre acaba fazendo aluses a Lorenza? No s a ela. Lembre-se de quantos abusos ocultos voc realizou, esquecendo-se de que a terrvel, criadora e destrutiva fora geradora foi-nos confiada para que fssemos seus mudos e fiis guardies e no, absolutamente, para que a utilizemos como divertimento ou satisfao de fantasias pessoais. Os estatutos da irmandade, qual voc j foi filiado, probem expressamente a utilizao da matria primeva violando as leis gerais vigentes - como a de ressuscitar os mortos -, o que pode ocasionar desordem e complicaes inditas. Se todos ns utilizssemos as conhecidas propriedades da misteriosa essncia da forma que voc a utiliza, teramos posto todo o planeta de pernas para o ar. Voc tem razo, Nara, entretanto tambm h um equvoco de sua parte. A ressurreio de apenas um nico ser no ir incendiar o mundo nem abalar a sbia lei que sentencia morte tudo o que vive. Da mesma maneira, no trar mal a ningum, se eu tomar algumas gotas da essncia da longa vida. Para voc as conseqncias sero muito duras.

Eu mesmo vou arcar com elas. Mas poder voc, sabedora das leis a que eu sou submetido, julgar-me to severamente? de seu conhecimento que, devido minha longa vida, o meu corpo astral est demasiadamente impregnado de matria primeva e que por muito tempo, difcil de ser determinado, no poderei encarnar-me novamente. Assim, eu sou condenado a vagar. No entanto, visto eu no ser admitido s esferas superiores, sou obrigado a levar a minha existncia no meio mundano e voc compreende bem as desvantagens de tal estado. Que imaginao humana capaz de inventar um inferno mais medonho que o vagar em torno da terra?! A dana dos mortos, homens e animais; a atmosfera - arena de luta desesperadora de bilhes de seres que buscam o equilbrio; os lamentos confusos, as cenas de crimes em meio ao turbilho infernal de mortes e nascimentos - no, existir nestas condies, positivamente, eu j no tenho foras. Juntar-me ao exrcito de Sarmiel eu no tenho vontade. A pobre humanidade j sofre o suficiente sem que eu lhes aumente esse sofrimento. Continuar a existncia de um co errante... tambm no quero. E assim eu decidi vir, pela metade, ao mundo dos humanos para aqui ficar, longe de ter que desfrutar daquele ambiente ftido da primeira esfera. Semi-esprito, semi-homem, eu vou morar na ndia, fortificando-me semelhana de um iogue com os fluidos vitais, sem fazer mal a ningum, salvo, claro, a alguns patifes que no merecem outra coisa. Prometo-lhe no me utilizar mais da matria primeva e s me divertir com a minha dualidade. Imagine s como ser engraado, se uma velha dama impossibilitada de me ver pisar no meu p e eu soltar um "ai!", ou se eu, por exemplo, fao um "h-h-h" no ouvido de um conquistador barato que est confessando seu amor amada. E tais tolices o conseguem divertir? Sinceramente, voc digno de pena, Narayana! Meu Deus! Quem haver de sugerir-lhe o gosto ao verdadeiro conhecimento?! -

suspirou Nara. Acalme-se! No vou me dedicar somente s tolices. Assim que me arrumar decentemente - voc conhece o meu lema: "se para viver, tem que se viver bem!" -, eu me divertirei um pouco, ofuscando as pessoas com o meu brilho e intrigando-os com o mistrio de que me cerco, fundarei uma escola de iniciao. Terei alguns discpulos, aos quais ensinarei, se no a magia superior, pelo menos os fenmenos produzidos por um semi-mago. E voc ver que serei respeitado no menos que Supramati, dotado de todas as qualidades para se tornar um mago genuno, o que reconheo sem nenhuma sombra de inveja.. E agora - at a vista, minha bela ex-esposa! Convido-a, junto com Supramati, a visitar-me. Vocs sero bem-vindos, principalmente voc, pois ao renunciar aos direitos de marido e a todos os prazeres a isso conjugados, eu reservo para mim o direito de cavalheiro e tentarei com a polidez do segundo tirar as ms impresses do primeiro. Palhao! - concluiu Nara, dando de ombros e rindo involuntariamente.

De volta para o quarto, Nara encontrou Supramati inquieto e alarmado. Ele perguntou-lhe imediatamente sobre Lorenza e Nara contou-lhe o que havia feito a respeito, acrescentando ter visto Narayana que a censurou por seu dio, em funo do qual ela, presumidamente, o julgava de forma to severa. Eu tambm acho que voc no tem boa-vontade em relao a ele - observou Supramati. - Voc ficou possessa s porque eu lhe dei um pouquinho de elixir; no entanto, que diferena isso faz a voc? Nenhuma, claro, salvo algumas inconvenincias fludicas, decorrentes dos elos que se formaram entre ns durante os sculos. Eu s acho intil e temerrio deixar que Narayana caia em tentao. Se ele permanecesse em seu estado errante, a averso a isso o teria empurrado para a frente no caminho da purificao e do trabalho srio. Enquanto agora, ele ficar inerte; vai se divertir e no fazer nada. De qualquer forma, estou sinceramente arrependido da minha imprudncia - lamentouse Supramati. Lamentar-se agora tarde! No, meu amigo, eu estou vendo que voc precisa estudar ainda muito antes de adquirir no s os conhecimentos de um autntico mago, mas tambm o juzo.

Captulo XI

Para Nara principiaram dias difceis. Ela tinha que explicar para a pobre Lorenza um fato inaudito, ou seja: que ela havia dormido por mais de trs sculos e que daquilo que ela conhecia e gostava nada sobrou. O mais triste que o intelecto da ressuscitada se recusava a entender aquilo que ela considerava ser o impossvel. No incio Lorenza teimava em desconfiar que naquilo havia uma perversa mistificao, mas a realidade nua e crua logo lhe dissipou a ltima iluso e isso motivou um estado to desvairado, que s um sono artificial conseguia interromp-lo. Finalmente, aps uma semana de desespero mais tempestuoso - gritos, desfalecimentos e rios de lgrimas -Lorenza caiu numa profunda apatia. Horas a fio ela ficava deitada no sof, recusandose a comer e beber, ou, sentada junto janela, a fitar o canal com um olhar desconfiado e malencarado, como tramando algo desesperador. Nara a vigiava preocupada; Supramati estava totalmente abatido com as conseqncia de sua "experincia cientfica". Para ambos, o estado de esprito da ressuscitada era ainda mais penoso pelo fato de que se aproximava o dia da partida deles para a irmandade e eles no queriam deixar Lorenza, antes que passasse aquela perigosa crise moral. Com a anuncia de Dakhir, decidiu-se levar Lorenza para a ndia e instal-la numa comunidade de mulheres, cujo destino era idntico ao dela. L tentariam desenvolver-lhe a mente e

criar novas condies de existncia, voltadas para o estudo e o trabalho. Se ela fosse considerada incapaz de encontrar a felicidade e a paz nessa orientao, ento se poderia tentar cas-la, assim que ela adquirisse a devida tranqilidade para reingressar na sociedade com um novo nome, sem revelarse o segredo de seu estranho e extraordinrio passado. Certa manh, Nara dirigiu-se ao quarto de sua paciente para tentar incutir-lhe a sensatez. Sem dar ateno ao semblante sombrio e preocupado de Lorenza, Nara sentou-se ao seu lado e, em tom severo, com que jamais conversara com ela, observou que uma crist autntica, imbuda de f e confiana, teria se submetido aos desgnios da Providncia, por mais inexplicveis que eles lhe parecessem. Ao perceber o rubor e o constrangimento de Lorenza, a mentora relembrou-lhe o terrvel pecado que precedia a sua letargia - que ela estivera morta, isso permaneceria em segredo - e que Deus, ao puni-la, foi to misericordioso, que a uniu a Nara, que ela j conhecia, e assegurou-lhe um novo futuro. Acrescentou ainda que Supramati lhe daria um patrimnio bastante substancioso, que a livraria de quaisquer preocupaes financeiras. Assim, ela, com base em sua deciso, poderia retornar sociedade e casar-se sob um novo nome ou partir com eles para a ndia e descansar entre amigos at se acalmar o suficiente para decidir sobre o seu futuro. A conversa teve seus frutos. A segurana de no ser pobre acalmou, pelo visto, Lorenza, e por fim ela expressou a vontade de ir a uma igreja para orar. Nara presenteou-a com um dote completo e em seguida a levou para a igreja de So Marcos. Assistir missa, celebrada como nos velhos tempos, fortaleceu a pobre mulher. A partir deste dia Lorenza tornou-se mais sensata e expressou o desejo de acompanhar Nara e o seu marido a Benares. O tempo que lhe restava antes da partida ela dedicou para visitar igrejas e procurar os tmulos de seus contemporneos, junto aos quais orava longamente. Permaneceu por muito tempo rezando junto ao mausolu do marido, que, no fim das contas, conseguiu achar. Duas semanas depois, todos partiram de Veneza e foram parar em Chipre, onde instalaram Lorenza na casa de Tourtoze. L ela deveria esperar por eles. A jovem estava triste e sria, mas calma. Agora j no se receava por sua indiscrio, pois ela havia compreendido que o seu passado no era daqueles que poderia falar. Numa noite escura e tempestuosa, do porto saiu um pequeno barco. Nele estavam trs imortais que no temiam ondas nem tempestades, dirigindo-se corajosamente para o mar aberto. Assim que as ltimas lmpadas do porto sumiram no nevoeiro, diante deles surgiu um naviofantasma, esperando com as velas iadas os seus passageiros. Quanto tempo durou a viagem, Supramati no tinha nenhuma condio de dizer. Diversos sentimentos agitavam-lhe a alma, quando eles atracaram a uma escarpa perdida no oceano; em suas entranhas de granito ela ocultava os mistrios mais ntimos.

A cerimnia de recepo foi igual a da vez anterior e logo depois todos se retiraram aos seus quartos. No dia seguinte, vestido em tnica alva, srio e visivelmente preocupado, Supramati dirigiu-se para assistir cerimnia religiosa, cuja solenidade o impressionou sobremaneira. O velho Sumo Sacerdote que realizava o ofcio, da mesma forma que meio sculo atrs, chamava um por um os presentes e ungia suas cabeas com algumas gotas de lquido misterioso que carregava num clice. Supramati, Nara e Dakhir eram os ltimos. O ancio ordenou-lhes que ficassem aos ps dos degraus e levou o clice para o altar. Retornando, ele abraou Supramati e o beijou calorosamente. Eu estou feliz, meu irmo, em saud-lo aqui como um membro til e digno de nossa irmandade. Voc cumpriu aquilo que prometera. As riquezas no o ataram ao mundo material, no o arrastaram com seus prazeres e no o fizeram insacivel em relao s banalidades mundanas que sempre continuam as mesmas, com este ou outro nome, imperdoveis at para os seres que vivem e morrem feito insetos, mas que para um imortal no passam de delitos e infortnios. Voc retorna a ns sem estar maculado por paixes impuras; trabalhou bem e passou pelos primeiros degraus do conhecimento. Agora est pronto a iniciar o difcil, porm glorioso, caminho da iniciao superior. Mas eu noto em sua alma o medo e a inquietao diante do imenso campo de trabalho e conhecimento que ter de enfrentar. Tranqilize-se, meu irmo! Por mais duro que seja o caminho, o desejo e a fora de vontade fazem superar todas as dificuldades, porquanto um trabalho febril obriga a esquecer o tempo. Aps cada mistrio revelado, depara-se com uma nova porta fechada, cuja chave deve ser achada. dessa forma, passando de um campo a outro, que se consegue subir pela escada da luz que leva ao centro ignoto, onde reina o Ser Impecvel - o Criador do infinito. E quanto mais voc subir, tanto mais a sua alma se preencher de harmonia, adquirindo o poder. Ao nosso irmo, Ebramar, ns confiamos a tarefa de orient-lo no estudo da magia superior, e ele lhe ensinar como utilizar os conhecimentos adquiridos. As provaes de um mago s terminam quando ele for capaz de criar algo til para o bem-estar de todos e conseguir se utilizar conscientemente das grandiosas foras geradoras do Universo. Lembrem-se, irmos reunidos aqui, que a imortalidade um fardo pesado e o nosso objetivo minorar a agonia do nosso velho e moribundo mundo e colonizar um novo planeta. Ento, que a conscientizao desta responsabilidade o ampare, Supramati, e o arme de coragem e persistncia, as quais no podem ser abaladas por nada! O ancio fez a Nara um sinal para ela se aproximar. Voc tambm, minha filha, trabalhou bem! Purificou-se e o turbilho de mpetos carnais, ao qual foi lanada por uma descuidada unio com Narayana, no tem mais sobre voc qualquer

efeito. Um trabalho muito importante a aguarda sob a direo de Ebramar. Execute-o com probidade e diligncia e subir mais um degrau. E por fim, para voc, Dakhir, eu tenho uma boa notcia. A ltima das maldies, que pendia sobre voc, obliterou-se. Suas antigas vtimas o perdoaram e tornaram-se seus amigos; os espritos sombrios, que insistem em seu dio, so impotentes diante de voc. O fluido destruidor que deles emana acaba caindo sobre as prprias cabeas. Puro e livre de qualquer ligao com o seu passado criminoso, voc atravessar o limiar da iluminao superior. Radiante e renovado de felicidade, Dakhir prostrou-se de joelhos e beijou a ponta da tnica cintilante do Sumo Sacerdote. Este imps a mo sobre sua cabea abaixada e abenoou-o. Cerca de um minuto permaneceu ainda Dakhir de joelhos, imerso numa orao ardorosa. Levantando-se, perguntou indeciso: E a minha vtima Lora? Durar muito ainda a sua punio? A sua sina oprime o meu corao feito uma rocha pesada. O ancio deu um sorriso. Que esta preocupao no atrapalhe sua ascenso luz. J h muito tempo o dio de Lora se transformou em amor. As reflexes, as oraes e a submisso ao destino fizeram o resto para a sua purificao. Ela est vida por segui-lo, mas como em sua misso se exclui qualquer relacionamento, salvo o espiritual, Lora tambm se dedica ao trabalho e estudos. Sob a orientao de Nara, ela passar por iniciao que a capacitar para se tornar sua companheira de trabalho e discpula fiel no momento em que na terra tero incio duras provaes e terrveis cataclismos. Eles prepararo a humanidade cega em sua leviandade insensata. Assim, meus amigos, descansem aqui o quanto quiserem. Depois, Dakhir, o seu navio-fantasma o levar ao local estabelecido e seus amigos sero seus ltimos passageiros. Trs meses inteiros passou Supramati com a esposa e Dakhir no misterioso abrigo de Graal. Harmonia indescritvel e paz celestial reinavam naquele ambiente ferico; agora Lora morava com eles. Ela estava feliz e triste ao mesmo tempo; seu amor terreno a Dakhir ainda retinia dolorosamente em sua alma. No entanto, o convvio fraterno e afeio do jovem adepto, assim como as primeiras instrues no campo de conhecimento que ele lhe desenvolvia, abriram para ela novos horizontes lmpidos. Atrada por eles, os insignificantes sentimentos terrenos perderam o brilho e desapareceram. Quando Dakhir se preparava para partir com os amigos, despedir-se de Lora j no foi to difcil como da primeira vez. Lora quis acompanh-lo, mas o Superior da irmandade ordenou-lhe que ficasse para a execuo do ritual da purificao. Ela seria levada para a ndia depois. Os nossos viajantes no passaram por Chipre. Supramati enviou uma mensagem a Tourtoze, ordenando-lhe viajar com Lorenza a Calcut e, l, aguard-los no palcio. O navio-fantasma levou os nossos amigos a um pequeno porto da ilha de Ceilo.

No era sem um vago sentimento de tristeza que Dakhir abandonava o convs do navio, testemunha de seus crimes e expiao. De p num pequeno bote, ele no desgrudava os olhos de seu antigo companheiro, oscilando nas ondas. De chofre, o navio embaciou-se, como se as luzes de So Elmo - conforme dizem os marinheiros - houvessem percorrido a cordoalha e, em seguida, tudo se diluiu e desapareceu no ar. Suspirando pesadamente, Dakhir sentou-se num banco e mergulhou em pensamentos. Os amigos no o perturbaram. S quando saram para a margem, ele passou a mo pela testa como se querendo espantar um pensamento indesejvel e comeou a falar da viagem. A partir deste momento, os nossos viajantes se utilizavam de meios normais para chegarem a Calcut, onde Supramati tinha que acertar alguns assuntos antes de partir para Benares. No transcorrer daquela viagem, a todos voltou o bom humor, um pouco abalado com a permanncia no navio-fantasma. Eles tentaram esquecer o passado, conversando sobre o futuro e o trabalho que tinham pela frente. Estudar sob a orientao de Ebramar um deleite - observou certo dia Nara. - Ele explica to claramente os mais complicados assuntos, que eles parecem simples e fceis. Devo admitir que muito rigoroso e, sobretudo, exige muita disciplina da mente, a ponto de considerar imperdovel qualquer negligncia quanto ao ato do pensar ocioso. Mas a isso voc pouco a pouco vai se acostumando. Alm disso, a noo do poder de uma reflexo disciplinada e consciente, que s pode ser comparada a um elemento da natureza, impe a responsabilidade de ser sempre um senhor desta terrvel arma, que pode fulminar feito um relmpago. Voc e Dakhir ainda tero muito que trabalhar para adquirir esta faculdade, ainda mais que o ambiente em que vocs ficaro facilitar sobremaneira esse trabalho. Voc tem razo, Nara! Eu me recordo com satisfao da poca em que estive com Ebramar. Naquele ambiente de paz completa e harmonia indescritvel, a alma parece ir amealhando foras e voc se sente como se lhe crescessem asas. um verdadeiro antegozo da bem-aventurana celestial. Em Calcut, os nossos heris permaneceram s por alguns dias para instalar Lorenza numa comunidade feminina, dirigida por uma iniciada. A comunidade logo iria se transferir para os arredores de Benares, para ficar mais perto dos sbios misteriosos que habitavam os escondedouros do Himalaia. medida que Supramati se aproximava de Benares, ficava cada vez mais inquieto. O motivo disso era que no palcio, para o qual ele levava Nara, morava Nurvadi e seu filho, transformado por ele num imortal. O filho deveria contar agora 42 anos. Como confessar a Nara que sob o mesmo teto iria viver com ela a ex-amada dele, a mesma de quem ele esqueceu por mais de dois anos, a sua esposa legal?

Quando o trem deixou a penltima estao e se aproximava rapidamente da cidade sagrada dos hindus, a aflio de Supramati atingiu seu clmax. Debruada sobre a almofada, Nara observava em silncio a expresso de diferentes sentimentos que se alternavam no rosto inquieto do marido. Por fim, ela se levantou, colocou a mo sobre o ombro de Supramati e disse com um olhar malicioso: Chega de se atormentar por causa de seus velhos pecados! Naquela poca voc estava livre e at que se aproveitou da liberdade. Eu seria ingrata se ficasse brava com tais tolices. Conheo a histria de Nurvadi e, do fundo da minha alma, tenho d daquela infeliz criatura que tem por voc um amor to puro. Eu no quero que ela fique constrangida nem enciumada. Assim, diga-lhe, por favor, que sou sua irm. Terei chance de conversar com ela. A infeliz imortal e seria um pecado deix-la subsistir em sua total ignorncia. Quero tentar desenvolver a sua mente e abrir- lhe o caminho para o conhecimento. Supramati encostou aos lbios as duas mos de Nara. Ele estava contente, ainda que meio sem jeito. Sinto-me mal em passar sua magnnima mentira - balbuciou ele. Ser apenas uma meia mentira, pois ns nos devotamos iniciao suprema, que no admite qualquer relao terrena. O nosso amor transfigurado na fuso pura de almas e esta afeio, livre de tudo que material, torna-se eterna e indestrutvel - concluiu ela com olhar carinhoso. Eles chegaram a Benares aps o meio-dia. Depois de se banharem, Nara mandou o marido visitar Nurvadi. V, v! Seja bom e carinhoso com ela, ela merece isso! E depois, traga-a para o jantar e apresente a seus irmos - acrescentou ela, rindo sinceramente diante do aspecto confuso do marido. Ainda sob o efeito de um sentimento misto de constrangimento e decepo, Supramati dirigiu-se aos distantes aposentos do palcio, onde morava Nurvadi. Por uma criada ele soube que Nurvadi estava no terrao e que ali mesmo se achava um jovem prncipe que acabara de retornar de uma viagem do Himalaia para se encontrar com o pai. Supramati ficou surpreso. De que forma o seu filho soubera de sua chegada? S se Ebramar o houvesse prevenido! Mas ele jamais lhe falara sobre aquela relao. Ele percorreu rapidamente uma srie de quartos familiares, dirigindo-se ao terrao; os tapetes macios abafavam-lhe os passos. Ao entrar no quarto favorito de Nurvadi, contguo ao dormitrio, de imediato viu a jovem mulher. Ela estava no terrao, de costas para ele, e abraava um menino que, pela aparncia, no tinha mais que dez anos. Supramati estacou emocionado. Milhares de recordaes faziam seu corao bater mais acelerado. Sua voz tremeu levemente quando ele chamou baixinho:

Nurvadi! A outra virou-se rapidamente e com um grito de louca alegria lanou-se nos braos de Supramati. Voc voltou! Eu o vejo de novo! Oh, se eu pudesse morrer de tanta felicidade! Supramati abraou-a e beijou-a na testa, mas nesse beijo ia uma tranqila afeio de irmo e no a paixo de um amante - e Nurvadi compreendeu isso. Ela se aprumou e temerosa fitou os lmpidos e brilhantes olhos de Supramati a olh-la com carinho. Veja, ali est a nossa criana - disse ela confusa e hesitante, apontando para o menino, que estava ao lado com os olhos abaixados. Supramati aproximou-se do filho, abraou-o e cobriu-o de beijos apaixonantes. A seguir, afastando-o de si, comeou a examin-lo com um misto de alegria e tristeza. Ainda que a beleza angelical do menino saltasse aos olhos, ele ainda era uma criana e no um homem, apesar da idade que tinha. Sandira! Seu aspecto me alegra e tambm me amargura. Voc no aquela pessoa

adulta que eu esperava encontrar... O menino levantou para ele os grandes olhos negros e seu olhar fez Supramati estremecer. O pensamento que brilhava naqueles olhos aveludados era o de um homem maduro, desenvolvido, forte de esprito e vontade. Eu o compreendo, pai! Mas o que voc v uma obra sua. Eu no gostaria de entristecer com uma crtica o nosso primeiro encontro, mas j que foi voc o primeiro a falar do meu aspecto externo, que nem de longe corresponde minha idade real, permita-me adverti-lo de que foi extremamente irrefletido de sua parte ministrar a um organismo no desenvolvido uma substncia to perigosa. Sem dvida, o que o norteou foi o amor e o receio de me perder; ademais, voc ignorava os sofrimentos a que estava me condenando. Se no fosse Ebramar e seus divinos conhecimentos, eu ainda seria, por longos sculos, uma criana de colo. Como? Voc conhece Ebramar? exclamou Supramati. Sou seu discpulo e passei sob a sua direo um longo caminho da iniciao. Somente graas a um regime especial e ao trabalho ininterrupto eu cresci um pouco. Mas deixe-me saud-lo agora e transmitir-lhe que o nosso mestre comum nos aguarda. Supramati ouvia as palavras sem tirar os olhos daqueles pequenos lbios rosados. Voc est coberto de razo, meu filho! Agi com uma inconseqncia criminosa

quando me utilizei da terrvel fora, sem medir as conseqncias do meu ato. Perdoe-me por eu ter causado tantos sofrimentos imerecidos. O meu nico consolo que aquele comportamento insensato o levou a ter a proteo de Ebramar. Eu gostaria de agradecer-lhe por ele ter reparado o mal que fiz. Alis, talvez voc tenha lucrado ao ter evitado todas as tentaes terrenas, toda aquela lama carnal e

espiritual com que se enfrenta um homem no mundo. Nada impede agora a sua ascenso para o conhecimento supremo. Sandira sorriu. Deus me dera que estivesse certo! necessrio ainda percorrer uma longa distncia e ns s conhecemos o ponto de partida. O objetivo do caminho ainda se perde no oceano da sagrada mas impenetrvel luz do centro, protegido por sete gnios da esfera. L, pela derradeira vez, se erguer a dvida e sussurrar no ouvido do labutador incansvel que alcanou os portes do santurio: "Que recompensa voc ter por seu duro trabalho, por ter atravessado com tanta coragem o caminho espinhoso das trevas e desgraas"? , pai! s vezes eu fico atordoado e me questiono: onde est aquela lmpida paz? Que fora terrvel e inexorvel nos impele para a frente? O olhar do jovem estava fixo no espao e suas mozi-nhas apertavam convulsivamente as mos do pai. Supramati olhou para ele com tristeza. Em sua recordao Sandira continuava sendo um beb, que ele carregava no colo; enquanto o filho que ele via agora, era um estranho desconhecido - uma criana externamente, mas um pensador pelo desenvolvimento mental, atormentado por grandes problemas existenciais. Supramati sentou-se no sof e fez Sandira sentar-se a seu lado. Entre eles se entabulou uma longa conversa sobre o passado e o futuro. Ao se aproximar a hora do jantar, Sandira anunciou aos seus interlocutores que os levaria at seus irmos, que queriam conhec-los. Era tal a impacincia de Supramati em ver Ebramar, que ele expressou sua vontade de viajar j no dia seguinte. Nurvadi pediu permisso para acompanh-lo. Ela no queria se separar to rpido dele e do filho. Mas bastou a Nara algumas horas de conversa para dominar por completo a mente de Nurvadi. Ela explicou a Nurvadi os motivos de sua estranha existncia e da necessidade de criar um objetivo mais srio na vida do que o de viver exclusivamente para dormir e embelezar-se. Nara participou a Nurvadi que no longe do local onde habitava o sbio, mentor de Sandira, havia uma escola para mulheres, da mesma forma sentenciadas a uma vida longa; e lhe props que ela ali ingressasse - o que foi aceito com alegria. Aps alguns dias de uma viagem agradvel atravs do pas montanhoso com vistas maravilhosas, os nossos viajantes chegaram finalmente ao misterioso palcio onde habitava Ebramar. Aparentemente eles estavam sendo aguardados, pois a porta da entrada estava aberta e o mesmo administrador, que recebeu Supramati quarenta anos atrs, recepcionou-os alegre e respeitosamente.

Sandira anunciou que ele mesmo levaria todos ao gabinete de trabalho do mago. Ebramar recebeu-os junto da porta e abraou calorosamente Supramati e Dakhir; a seguir, com carinho fraternal, estendeu as mos para Nara, que o fitou com o olhar lmpido e cheio de reconhecimento. Ao serenarem as primeiras emoes, todos se sentaram e entabulou-se uma conversa genrica. Ebramar cumprimentou Supramati pela rpida concluso da primeira iniciao, e Dakhir pelo rompimento de todos os vnculos que o uniam a seu triste passado. Ele anunciou que lhes concedia alguns dias de liberdade e descanso antes de iniciarem os estudos. Depois, virando-se para Nara, acrescentou sorrindo: Para voc, minha irm, eu guardei o lugar de Vairami, que deseja se voltar exclusivamente ao culto da magia, retirando-se esfera da meditao. Sendo assim, voc dirigir a escola de mulheres e as primeiras aulas das nefitas: Nurvadi e Lora, que ali acabam de ingressar. A primeira ser imediatamente entregue a Vairami. Atendendo ordem do mago, Sandira foi buscar a Sumo Sacerdotisa. Supramati que ouvia tudo atentamente perguntou: Como, mestre? Voc ainda tem uma escola para mulheres? Nunca teria imaginado! Oh! Aqui h muita coisa que voc ainda no viu. Eu lhe mostrarei tudo no dia em que voc for examinar os seus domnios - respondeu sorrindo Ebramar. Supramati balanou a cabea. No, mestre! Aqui, onde tudo respira sua sabedoria e bondade, nada me pertence, salvo sua amizade e proteo. Bem-aventurada a casa onde habita um sbio como voc! Bem-aventurados so todos aqueles que podem morar aqui, sob a sua orientao, para alcanarem a luz do conhecimento supremo! O que me so os milhes depositados em todos os bancos do mundo na conta de Supramati!? Ao atravessar esta soleira, deixei para trs tudo que me unia com a azfama terrena. Eu s trago uma partcula de conhecimento e a vontade ardente de trabalhar com todas as foras para ascender luz pelo caminho perigoso do qual no h retorno, pois na frente ir luzir o ignoto objetivo misterioso e atrs de mim se escancarar o sorvedouro. Fique firme em sua deciso louvvel e voc no parar no meio do caminho. Tenho certeza de que um dia terei a felicidade de colocar em sua cabea a coroa cintilante do mago assegurou Ebramar, apertando-lhe fortemente a mo. A conversa foi interrompida pela chegada de Sandira e uma jovem e bonita mulher em vestes brancas, envolta num comprido e largo vu de gaze. Em suas regulares feies repousava uma serena expresso e os negros olhos aveludados ardiam de exaltao. Cruzando as mos no peito, ela fez uma reverncia diante de Ebramar.

Eu mandei cham-la, Vairami, para anunciar-lhe sobre a iminncia de atender-lhe o seu desejo de se entregar ao isolamento. A nossa irm, Nara - ele apontou para a jovem - ir assumir a direo de suas alunas. Devido a diversas razes, eu no posso marcar o dia em que lhe passarei a nova tarefa; mas, por enquanto, Vairami, confio-lhe uma nova nefita, Nurvadi. Fique com ela e a acomode com voc. Enquanto voc, minha filha, despea-se de seu filho. Voc o ver somente nos feriados. Quanto ao futuro dele, pode ficar tranqila. Nurvadi corou. Seus olhos encheram-se de lgrimas; no obstante dominou corajosamente a emoo. Ela abraou Sandira e Nara, apertou a mo de Supramati e beijou a mo de Ebramar. Vairami agradeceu efusivamente a seu mestre. A seguir, tirou de si o vu, cobriu com ele a cabea de Nurvadi e retirou-se com ela do terrao. Diga-me, mestre, h muitas mulheres imortais na escola que ser dirigida por Nara? interessou-se Supramati. H cerca de duzentas pupilas e todas so imortais. por isso que ns as iniciamos em conhecimento superior. As pequenas comunidades, semelhantes quela onde vocs colocaram Lorenza, tm um carter totalmente diferente e perseguem outros objetivos - respondeu Ebramar. , grande Deus! Mais de duzentas imortais! Quem foi esse ser to irresponsvel para constituir essa quantidade de imortais? - exclamou Supramati. Nara balanou a cabea. Voc se esquece, meu amigo, de que antes de se tornarem magos todos aqueles que transformaram aquelas mulheres em imortais eram pessoas comuns. O mesmo sentimento que o motivou a dar a essncia primeva ao seu filho orientou tambm os outros. Ali h mulheres que foram muito amadas; mes, filhas e irms, das quais na poca eles no queriam se separar. Lembre-se de como voc mesmo queria dar o elixir da longa vida ao visconde de Lormeil. Quem sabe quantos pecados dessa espcie estariam na sua conscincia, se voc vivesse mais tempo neste mundo. De qualquer forma, a lista das vtimas de Narayana bem extensa. Chegar a hora em que ns no vamos achar-nos por demais numerosos. Ao desabarem os cataclismos, haver trabalho para todos. Quando em volta de ns todos sucumbirem, mal bastaremos para povoar uma cidade - observou em tom triste Ebramar.

Captulo XII

Passaram cerca de dez dias desde a chegada dos nossos heris ao palcio de Ebramar. No incio, o tempo corria como num sonho. A harmonia que reinava em todos os cantos exercia um efeito benigno sobre todos e as conversas com Ebramar produziam uma impresso deleitosa. Mas eis que j fazia dois dias que Dakhir e Supramati estavam sozinhos. O mago retirou-se, alegando que precisava de alguns dias para se concentrar. Nara tambm se ausentara e se preparava com Vairami para a sua nova funo de dirigir a escola de iniciao. Os amigos sentiam-se ss e tristes. Sentados no terrao anexo ao aposento de Supramati, eles lembravam o passado e teciam planos para o futuro. A noite j havia cado fazia tempo e a lua cheia iluminava vivamente o quadro mgico em torno deles. Sabe, Dakhir, Narayana nos enganou! Ele prometeu se comunicar conosco, entretanto no nos d qualquer notcia - disse inesperadamente Supramati, recostado no corrimo. ! Ele uma pessoa extremamente instvel. Talvez tenha mudado de idia e no queira revelar-nos o seu refugio - acrescentou Dakhir. Eu gostaria de saber o que estar fazendo aquele estranho e enigmtico esprito, uma mistura de vcios e virtudes, cincia e leviandade. S que tenho vergonha de perguntar isso a Ebramar. Um barulho de asas f-los virarem-se.

Calados e surpresos, olharam para um magnfico pavo branco que pousou na balaustrada, abrindo coquete a sua cauda branco-prateada, como se salpicada por pedras preciosas multicolores. O topete dourado sacudia-se em sua cabea. Os olhinhos negros fitavam Supramati com um olhar inteligente, quase humano. Meu Deus! Que ave maravilhosa! Nunca vi uma igual! - exclamou Dakhir. O pavo bateu as asas, pulou para o jardim e comeou a revirar a cabea como que convidando para ser seguido. Posso jurar que ele um mensageiro de Narayana! - disse Dakhir. O pavo inclinou rapidamente o seu topete fosforescente e comeou a correr pela alameda como se quisesse se certificar de que o estavam seguindo. Supramati foi atrs da ave misteriosa, mas Dakhir de-teve-se pensativo. Talvez o estejam convidando sozinho hesitou ele. O pavo soltou um grito baixo e balanou impaciente duas vezes a cabea. Palavra de honra, ele nos entende! No vamos faz-lo esperar - exclamou rindo Supramati, agarrando a mo de Dakhir e arrastando-o consigo. O pavo movia-se rpido para a frente. Eles atravessaram o jardim, uma comprida e quase escura alameda e foram dar num descampado coberto de grama densa e alta. No era sem dificuldade que avanavam. Em seu caminho, serpentes se levantavam sibilando, jogando-se imediatamente para trs, pois nenhum animal se atrevia a atacar os imortais. Preocupados em no perder de vista o pavo, os jovens j no davam qualquer ateno aos rpteis asquerosos. No fim do vale havia um fundo desfiladeiro, que eles desceram atravs de uma ngreme trilha quase invisvel; embaixo estava totalmente escuro, mas o pavo que corria na frente desenhava-se na escurido em nuvem branca. A ave parou diante de uma rocha negra, coberta de musgo, e esgueirou-se devagar para dentro de uma fenda estreita, coberta por arbustos. Dakhir e Supramati, sem se deterem, foram atrs e encontraram-se num estreito corredor que deu, inesperadamente, numa gruta alta e estreita, iluminada por uma luz azulada, e que formava uma espcie de abbada sobre um canal ou rio subterrneo. As margens do canal eram altas e abruptas. Os degraus, esculpidos na rocha, levavam at a gua, onde um barco parecia esperar por eles. Era uma espcie de piroga comprida e estreita, com proa alta, decorada com pavo dourado e equipada com uma lmpada eltrica no dorso, cujos raios brincavam nas estalactites da abbada. Dakhir pegou os remos, Supramati assumiu o leme, enquanto o pavo se instalou na proa atrs da lmpada, com o dorso voltado para eles. medida que seguiam em frente, diante de seus olhos se abriam estranhas e maravilhosas paisagens.

O rio subterrneo corria em curvas; ora de um lado, ora do outro, escancaravam-se grutas profundas. Algumas delas pareciam galerias e perdiam-se de vista, outras consistiam de imensas cavernas, todas iluminadas por luzes multicolores muito suaves. Algumas grutas, envoltas em nvoa esverdeada, pareciam gigantescas esmeraldas; outras estavam inundadas por luz rsea de rubi plido, mas a maioria delas estava imersa em luzes azuis de safira que predominavam no canal principal e eram to fortes, que a luz eltrica diante deles perdia o brilho. De onde vinha aquela luz era difcil de saber. Podia-se pensar que ela se infiltrava por entre as paredes da montanha. Os amigos contemplavam como enfeitiados aquela paisagem mgica, extraordinariamente diversificada. Ora da escarpa se lanava jorrando uma corrente que parecia rubi fundido, ora na superfcie lisa azul-escura da gua surgiam impressionantes flores aquticas umas vezes azulturquesa, outras, brancas, com estames dourados ou vermelhos como corais. Por vezes, as numerosas ramificaes do rio deixavam os amigos num impasse quanto escolha do caminho, mas o pavo estava atento e sempre avisava com um grito, quando eles estavam prestes a se desviar do caminho certo. evidente que o nosso guia est nos levando at Narayana. Se a morada dele for parecida com o caminho que nos leva at l, ento o nosso incorrigvel estroina ir provar-nos mais uma vez o seu incomparvel bom gosto -observou Supramati. Neste instante, ouviu-se uma gargalhada estentrea e escarninha, cujo eco se repetiu sob as abbadas; ressoou to perto, que ambos involuntariamente se viraram e comearam a procurar Narayana com os olhos, mas este permanecia invisvel. Apenas o pavo abriu a sua cauda colorida e soltou um grito penetrante que soou feito uma gargalhada. Neste nterim, a abbada ficou mais baixa, o canal estreitou-se e fez uma curva fechada. Agora o barco deslizava atravs de uma passagem baixa e estreita; a lmpada se apagou e os amigos encontraram-se numa escurido quase completa. Subitamente uma forte correnteza suspendeu o barco e este, como uma flecha, precipitou-se pela passagem escura e reta, indo parar inesperadamente num enorme lago, em cujas guas prateadas reverberavam alegremente os raios do sol nascente. Esta mudana deu-se to rpido, que os jovens, ofuscados pela corrente de luz, fecharam por alguns instantes os olhos, e ao abri-los soltaram em unssono um grito de admirao e surpresa. A gua sobre a qual oscilava o barco era to transparente, que se podia enxergar qualquer irregularidade e cada seixo em seu fundo. Os peixes cintilavam ao sol com as es-camas prateadas, douradas ou vivamente coloridas. As margens do lago eram altas, escarpadas, cobertas por mata e cingidas por altas montanhas. Bem em frente deles, numa ilha ou pennsula - no momento era difcil distinguir -, encerrados numa exuberante vegetao esmeraldina, viam-se os muros e o telhado de um palcio.

Impulsionado por forte remador, o barquinho voou pela superfcie lisa do lago e, minutos depois, encontrava-se junto escadaria de mrmore, decorada na parte inferior com duas esfinges de bronze. Em cima, divisava-se um largo prtico com colunas. A recepo do barco ficou por conta de quatro jovens esbeltos. Portavam tnicas brancas, cingidas com cintos de fivela em ouro, klaftas e colares no pescoo. Eles puxaram e amarraram o barco. No mesmo instante, o pavo soltou trs gritos agudos, abriu a cauda e desapareceu. Dakhir e Supramati saltaram para os degraus da escada. Mas, antes que eles pudessem alcanar a plataforma superior, surgiu Narayana em pessoa - alegre, sorridente e ainda mais belo do que nunca. Ele vestia um traje longo, cingido por cachecol, que lhe delineava o porte esbelto; um turbante leve cobria-lhe a cabea. Bem-vindos, caros amigos, minha humilde cabana! - saudou ele, abraando efusivamente as visitas. Palhao! - retrucou rindo Supramati. - Um palcio mgico e ele chama de humilde cabana! Se for do gosto de vocs, podem ficar o tempo que quiserem, ou melhor, tanto tempo quanto lhes permitir o seu severo mestre Ebramar - disse Narayana fazendo entrar os seus amigos no palcio. Atravessaram uma srie de salas de magnfica arquitetura, mobiliadas com luxo imperial. Era evidente que Narayana tinha predileo por aquele refgio em qualquer tempo que fosse, pois, ao lado de obras de origem oriental, havia trabalhos modernos de escultura e telas de artistas cuja viso naquele palcio indiano produzia uma estranha impresso. Narayana parou numa imensa sala decorada moda oriental, com sofs baixos. Fiquem vontade, meus amigos, como se estivessem em suas casas. Ao lado h um quarto de banho e sugiro que vocs se refresquem. Depois ns teremos um repasto, descansaremos um pouco, quando o calor diminuir, e eu lhes mostrarei a minha casa de ermito. Ao fazer um gesto amistoso com a mo, Narayana desapareceu. Supramati e o seu companheiro foram ao quarto contguo, que se verificou ser uma imensa sala com uma banheira no centro. A banheira era to espaosa, que nela caberiam facilmente duas pessoas. Ali, esperavam-nos dois empregados, que os despiram e, aps o banho, vestiram-nos em largas e leves tnicas brancas, acompanhando-os a seguir a um salo que dava para o jardim. Ali, junto a uma mesa luxuosamente servida, aguardava-os Narayana. Sentem-se, amigos! Uma vez que vocs ainda so seres humanos de verdade, precisam comer - disse o estranho anfitrio, sentando-se mesa e apontando para as cadeiras.

O cardpio consistia de legumes, maravilhosamente preparados, diversos tipos de biscoitos e frutas, vinho, leite e mel. Dakhir e Supramati estavam esfomeados e renderam a devida homenagem ao desjejum. Quanto a Narayana, este se restringiu a um pequeno copo de leite e um pedacinho de po do tamanho de um ovo. Supramati que o estava observando, indagou com um leve sorriso: O que est acontecendo? Est de regime ou as condies mpares de sua existncia lhe impem uma severa dieta? , a poca de bons pratos e jantares lautos acabou desde que eu me privei voluntariamente da vida material - respondeu Narayana, torcendo o rosto. - Alis, eu no posso me queixar: no sinto fome e me utilizo somente de substncias indispensveis para a renovao do fluido vital que corre em minhas veias. O elixir da longa vida uma substncia material e no espiritual, assim sendo, para o seu equilbrio, ela exige uma espcie de combustvel no organismo. Cada vez mais eu me conscientizo do enorme campo de trabalho que representa o estudo da matria primeva. Se pegarmos s voc, Narayana, em seu estado atual, voc j um enigma complicado. Se ns contssemos a algum de nossos contemporneos a sua ou a nossa histria, seramos chamados de doidos - observou Supramati. Narayana ps-se a rir. Pudera! Esses mseros insetos vagueiam na Terra uns sessenta anos, mas vangloriam-se como se tivessem vivido sculos. To logo eles se deparam com algo desconhecido, uma lei ou fenmeno que lhes parea inusitado, imediatamente gritam: "Isto um milagre!" "Isto impossvel!" "Isto contraria as leis da natureza!" "Isto um contra-senso!" O raio da luz, ao brilhar inesperadamente, cega um cientista autmato. Ele teme aquele fenmeno novo que derruba todas as suas idias preconcebidas; ele se defende, esconde-se atrs dos velhos textos, fecha os olhos diante das evidncias e prefere inventar as mais inverossmeis suposies e hipteses para no admitir a mais simples e clara verdade, que se contrape s suas concepes estreitas. No! No para essas pessoas que ns poderamos relatar a nossa verdadeira histria. Mesmo as grandes descobertas, por pouco no vingaram devido cegueira da turba e teimosia obtusa dos cientistas oficiais. Voc tem razo! Por mais estranho que parea, todas as verdades supremas, assim como as grandes descobertas, sempre se aceitaram com hostilidade. Talvez isso se deva ao fato de que os sbios das pirmides e dos pagodes ocultavam o conhecimento superior sob o vu do segredo - observou Dakhir. Sem dvida, e era uma deciso inteligente. Quanto aos orculos das modernas religies, eles perderam a chave dos mistrios e fundamentam a sua autoridade em f cega. Eles que so cegos e se remetem aos gritos ao "demnio" e "heresia" toda vez que a cincia ou a humanidade d um passo para a frente - completou Narayana num esgar de riso.

Animando-se subitamente, ele prosseguiu: Mas para aquele que lanou um olhar alm do vu de sis no existe o impossvel. Tudo aquilo que possa imaginar a mente humana - todos esses fenmenos so possveis e realizveis para aquele que sabe e consegue acionar as leis que ele controla. Cristo proferiu uma grande verdade ao dizer que a f (convico, fora de vontade) pode remover as montanhas. Supramati, que observava pensativo o inquieto e expressivo rosto de seu estranho anfitrio, indagou inesperadamente: Diga, Narayana, como voc, com sua inteligncia e conhecimento de grandes mistrios, tem-se preocupado to pouco com seu aperfeioamento moral e agora condenou a si mesmo a esse estado de imobilidade? O rosto de Narayana anuviou-se, mas dando uma risada sonora e penetrante ele disse: Acredita voc que mover-se para frente uma grande felicidade? Duvido! Veja: eu vivi por longo tempo e, de tdio, cheguei a estudar muito, no tanto para o meu aperfeioamento espiritual, quanto para aprender a utilizar na prtica os poderes adquiridos. Tive minhas horas de depresso, quando eu estava prestes a fazer uma visita ao santurio inacessvel do prprio cu para saber, enfim, se, ali, encontraria a paz para aquela pobre centelha, torturada e dilacerada, que ns chamamos de alma e que foi criada pela vontade absolutista, sem perguntar se ela queria ou no viver. O que haveria l, atrs daquele muro gneo onde reina o triunfo total sobre a matria escravizada, onde tudo perfeio, onde borbulha a irreconhecvel fora criadora que esconde Aquele que deve ser o nosso soberano, o qual ns chamamos de Deus e Quem dirige nossos destinos e nossos sofrimentos... O olhar de Narayana ardia e seus punhos cerravam-se furiosamente, enquanto ele prosseguia aps uma breve pausa: Sim! No foi uma nica vez que eu tentei entrar fora para saber o que l havia, dominado por desespero total, dvida e horror desse vaivm de ascenses e quedas, com mpetos de me lanar naquele santurio fulgurante. No chega de l o menor barulho, no se manifesta a menor atividade visvel e os sete gnios, que ficam de guarda em volta daquele misterioso centro esto mudos. Voc se surpreende, Supramati, dizendo que eu quero estagnar num mesmo lugar? No pensa que a ascenso uma bem-aventurana to grandiosa? E verdade, o caos e a tempestade da luta e dos sofrimentos, em que se agita no incio a centelha inteligente, amainam com o tempo; mas quanto mais alto voc se eleva, mais aumenta o horror do silncio impingido. Os mestres deixam de gui-lo e voc obrigado a se orientar com os conhecimentos que tem. A necessidade empurrao para a frente e a inexorvel lei da atrao impele-o para aquele centro misterioso de onde voc saiu e no qual dever afundar. Com que objetivo, qual a sorte e o futuro que o aguardam? - isso

ningum sabe! E desta forma, vagando entre a ignorncia do protoplasma e o silncio do arcanjo, ns realizamos essa gloriosa ascenso pela qual voc anseia e que me assusta... Voltando novamente ao seu tom de troa, Narayana acrescentou: Mas, como h tempo de sobra, eu prefiro dar uma parada e gozar um pouco de descanso num lugar como este palcio, onde me sinto bem e do qual no espero separar-me to cedo. Seguiu-se um longo silncio. Ao ver que as visitas estavam quietas e pensativas, Narayana levantou-se e props que fossem visitar o palcio e os jardins, o que foi aceito com visvel prazer. Primeiro foram ver a casa, que era um verdadeiro museu, e depois saram para o jardim. Ali, a arte e a natureza se fundiram, criando um autntico paraso. O que conferia uma peculiar originalidade quele pequeno parque era, primeiro, a diversidade da vegetao: ao lado das palmeiras, cresciam pinheiros e outras espcies de florestas setentrionais; depois, em meio da densa vegetao, foram espalhados pequenos pavilhes que, por seu estilo e arrumao, lembravam as diversas pocas da vida passada de Narayana. Assim, por exemplo, por entre os ciprestes e loureiros, via-se uma minscula vila grega; uma outra construo, que se refletia nas guas do lago, lembrava um palcio veneziano. Por todos os cantos reinava um luxo requintado e viam-se reunidas, com gosto apurado, maravilhosas obras de arte. Por fim, eles se detiveram diante de um grupo de palmeiras, accias e diversas espcies de rvores, cuja densa folhagem formava uma abbada verde, impenetrvel para os raios solares. Os jatos prateados que esguichavam do chafariz de mrmore espalhavam um agradvel frescor. Todos se sentaram num banco de mrmore e a conversa girou em torno daquilo que eles acabaram de ver. Meu Deus! Como tudo aqui maravilhoso! Como se fosse num conto mgico! - exclamou Dakhir. Por conseqncia, aqui justamente o lugar mais adequado para vocs, pois ns somos prncipes mgicos, seres legendrios e fantsticos. Os sculos vo passando, saturando aos poucos as nossas almas; ns perdemos a genuna alegria de viver, a dvida torturante e o futuro infinito vo minando dolorosamente os nossos nervos. Assim, bem justo que nos cerque e que torne menos penoso o nosso surpreendente destino esta beleza natural, da qual nunca nos fartamos. As palavras de Narayana fizeram voltar os pensamentos dos presentes aos assuntos que foram abordados durante o desjejum; e reiniciou-se ento a discusso das leis que regem o progresso, sobre a justia celestial, o bem e o mal e sobre outros problemas ainda no resolvidos. Justia celestial o emprego das leis implacveis que habitam a alma e que se vingam por sua violao ou recompensam por qualquer esforo - brandiu Supramati. Justia!.. Recompensa!.. Quem no gostaria de se utilizar do benefcio de um e regalar-se do outro?! S que difcil capturar essas duas filhas do cu, to esquivas e enganadoras como a

irm delas - a esperana! arrematou Narayana num esgar de riso. - Se vocs quiserem, meus amigos, eu lhes contarei uma lenda hindu que justamente ilustra a questo de seu interesse. Narayana concentrou-se por um minuto e depois, em tom propositadamente empolado, comeou: Era uma vez, diz a lenda, vivia um tolo que sonhava com o cu a tal ponto, que no mais enxergava a terra. A sua f na justia de Brahma era inabalvel e ele suportava submisso todas as injustias e ofensas que lhe eram causadas por pessoas ricas, autoritrias e felizes, divertindo-se sempre em poder mostrar o seu desprezo em relao s mentes ingnuas. Por fim, o tolo morreu de fome nos degraus de um pagode, dirigindo ameaas aos seus opressores com a justia de Brahma e profundamente convicto de receber a recompensa por sua submisso e pacincia. Leve e radiante, ascendia ele ao espao. Seu corpo astral respirava luz e calor. Olhou com desprezo para seus pobres restos mortais humanos que abandonara; ele se sentia feliz, pois tudo em sua volta era paz e silncio. Ele falava consigo: "Eis-me aqui no caminho do cu. S preciso saber onde fica o palacete celestial onde preside Brahma, praticando a justia, punindo os pecaminosos e recompensando os justos". Vagando procura do caminho ao paraso, ele topava com multides de seres que se turbilhonavam na atmosfera - eram seres asquerosos, cobertos de lceras morais. Todos eles blasfemavam e queixavam-se. Nenhum deles conseguiu responder pergunta de Vaidkhiva - como era chamado o nosso heri. Os pobres espritos, sofredores e atormentados, nada sabiam da justia de Brahma e ignoravam o lugar onde Ele ficava. Eles s ouviram falar que Ele reinava nas alturas acima das estrelas e que os mais dignos e puros poderiam comparecer diante de Seu fulgurante trono. Ondas de foras misteriosas carregam os justos at o semblante de Brahma e as mesmas lanam os criminosos e os insatisfeitos no sorvedouro da expiao. Feliz e cheio de confiana, Vaidkhiva exaltava glrias a Brahma, sua justia e poder. Agarrado pelas ondas da harmonia, foi levado para a lmpida esfera superior, onde se encontrou com a mesma espcie de justos, radiantes e sbios, que tambm louvavam Brahma e a Sua justia. Vaidkhiva perguntou a um de seus colegas para onde eles iam to rpido. Para o mesmo lugar que voc - responderam-lhe. Para o trono de Brahma, buscar a recompensa pelas injustias sofridas, pelo nosso

trabalho e nossa f. Trabalhando incansavelmente, Vaidkhiva subia, e outros subiam com ele. Repletos de f e obstinao, eles dirigiam louvores glria, sapincia e misericrdia de Brahma. Mas, quando eles indagavam onde ficava o Seu domiclio celestial, recebiam a resposta:

Continuem o caminho! E mais adiante! E Vaidkhiva subia e subia. Agora ele era imagem apenas de uma nuvem luminosa. Seu conhecimento era imenso e os poderes - quase ilimitados, mas ele continuava aguardando pela justia celestial e recompensa por seu trabalho. E assim, passando de uma esfera a outra, ele alcanou, finalmente, o centro do Universo. Ali se erguia um muro de luz ofuscante, formada inteiramente de uma srie de sis; seus limites pareciam infinitos ou, pelo menos, incomensu-rveis. Somente a perfeio, adquirida por ele, permitia a Vaidkhiva contempl-lo, e diante dele, feito uma viso nebulosa, reverberando todas as cores do arco-ris, estava um dos gnios-guardies da muralha sagrada. J estamos junto aos portes do palcio de Brahma! - exclamaram Vaidkhiva e os justos que acompanhavam a sua falange. - Deixe-nos passar, abra os portes do cu, gnio das esferas, guardio da entrada sagrada! - diziam eles. -Ns merecemos a felicidade de comparecer diante do semblante radioso de Brahma. Ns suportamos pacientemente todas as injustias e ofensas, trabalhamos incansavelmente para abrir o caminho at aqui, nossa f jamais fraquejou em provaes e sofrimentos, e, mesmo em situaes de dificuldade suprema, entovamos cnticos glria e generosidade de Brahma, apoiando os fracos, animando os ignorantes e persuadindo os descontentes. Ns triunfamos sobre a dvida que nos torturava e impedia o nosso caminho. Agora, exaustos com a longa ascenso, queremos prostrar-nos diante do trono de Brahma, regozijar-nos da paz anunciada e conseguir a punio justa de nossos perseguidores. O gnio continuava mudo; a muralha fulgurante permanecia fechada e debalde eles repetiam o seu pedido - no havia resposta, pois, nos lbios do gnio, estampava-se o selo dos mistrios que ele guardava. Estupefatos e inquietos, os justos entreolharam-se sem entender aquele silncio; mas eis que detrs do muro soou uma voz desconhecida, poderosa como trovo e ao mesmo tempo harmnica feito o som de harpa: Vo e trabalhem mais, pois as palavras de vocs comprovam que ainda no esto prontos para comparecer diante do trono de Brahma. Vocs acabaram de pedir a justia e a recompensa, sem terem entendido que tanto uma como a outra j lhes foi concedida. Olhem para as suas vestes claras, avaliem a sua pacincia infinita, os conhecimentos adquiridos, instintos domados e desejos sufocados. Tudo isso vocs obtiveram pela benevolncia e misericrdia de Brahma, que os apoiou e recompensou por todo o esforo com o degrau superior da perfeio. Aqueles que os ofenderam, maltrataram e obrigaram a sofrer, seguem atrs, acusando, por sua vez, os outros por injustias e crueldades, sem compreenderem, da mesma forma como vocs, que da matria s se liberta atravs do sofrimento. O mundo em que vocs outrora viveram j no existe mais, pois

passaram mais de cinqenta milhes de anos desde o dia em que Vaidkhiva morreu na escada do pagode. Tudo j lhes foi concedido pelos poderes e justia de Brahma, mas vocs procuram por paz, sem entender que ela no existe e que a suprema bem-aventurana consiste da atividade constante. Vocs no amadureceram para atravessar os portes do cu e contemplar o semblante radioso de Brahma. Vo, trabalhem e entoem cnticos em Sua glria! A voz misteriosa calou-se. Uma parte dos justos baixou a cabea em submisso e mergulhou em orao. Mas a alma de Vaidkhiva encheu-se de fria alucinada. A dvida, que no o largou at entrada do paraso, apesar da perfeio, murmurava-lhe com o maledicente escrnio: Bem, e agora? Quem estava certo? Possesso, Vaidkhiva lanou-se sobre a muralha reluzente, tentando galg-la e gritando feito um louco: Cumpra a justia prometida! Julgue meus opressores e recompense-me pelo trabalho feito! Um silncio profundo veio-lhe como resposta. Ele se arremessou de novo para a frente, proferindo maldies-quando, de repente, as estrelas que lhe encimavam a cabea desintegraram-se com um estrondo trovejante, soltando colunas de fumaa negra; toda a atmosfera estremeceu e detrs da muralha misteriosa cintilou um relmpago brilhante atingindo o corao de Vaidkhiva. Seu corpo transparente desintegrou-se em bilhes de tomos e os elementos desenfreados do caos primevo agarraram-no e o arrastaram com silvos para dentro do furaco gneo, que calcinou suas vestes claras, matou-lhe a memria e tirou seus conhecimentos e poderes. Feito uma folhinha seca, levada por um p-de-vento, voava ele ao abismo insondvel, at que um terrvel solavanco fez paralisar inesperadamente o seu vo desvairado. Alquebrado, dilacerado por dores horrveis, Vaidkhiva conscientizou-se, a muito custo, que estava enclausurado numa enorme rocha. De sua luz radiante sobrou apenas uma pequena centelha purprea, que reluzia feito uma luz errante. Ele tinha dificuldade em pensar. De todo o seu conhecimento e poder, sobrou apenas uma vaga recordao sobre aquilo que ele fora e a conscincia de que agora ele era alguma outra coisa, como uma simples pedra. Subitamente, um canto desafinado quebrou a sonoln-cia em que se encontrava o gigante decado. Ele viu uma multido de pessoas quase nuas, cobertas por peles de animais, que se aproximavam trazendo nas mos ramos e frutas. Eles as depuseram na rocha e as incendiaram; prostra-ram-se de joelhos - oh, que horror! - e iniciaram um cntico glorificando a justia de Brahma. O canto despertou inesperadamente a memria de Vaidkhiva. Ele foi tomado por tal desespero, que a rocha rachou e de seu mago jorrou uma fonte, transparente como brilhante.

As lgrimas do justo sero a recompensa dele - proferiu uma voz, consolando a alma confusa de Vaidkhiva. A ignara e ingnua turba endeusou a fonte maravilhosa. De todos os cantos confluam a ela doentes, invlidos e cegos, obtendo a cura em sua gua medicinal, uma vez que junto com as lgrimas inesgotveis que jorravam do corao petrificado de Vaidkhiva flua a prpria essncia da natureza. Nas gotas cristalinas da fonte concentrava-se todo o poder adquirido pelo mago, a sua habilidade de governar as correntes astrais e as radiaes benficas que dele emanavam - o que no pde ser totalmente eliminado. Os miserveis, os deserdados e os pobres de esprito compreenderam isso e, atravs das lgrimas do justo, aliviavam os seus sofrimentos. Com as suas prprias mos, eles trouxeram material e construram um pagode para preservar a fonte. Cada um que imerge em suas guas, exalta a glria de Brahma e dirige louvores sua sabedoria. Narayana calou-se. Seus interlocutores tambm ficaram por algum tempo em silncio, depois do qual Dakhir observou calmamente: A sua lenda bem potica, mas repleta de paradoxos. Enquanto ns estamos embaixo da escada da perfeio, a nossa mente fraca no tem condies de abarcar o nosso destino em todo o seu gigantesco volume; sobretudo apresenta-se-nos como um mistrio impenetrvel o seu objetivo final. No obstante, temos certeza de uma s coisa, ou seja, a de que a lei inexorvel nos impele para a frente e que nesse caminho qualquer parada fatal. Por isso pusilnime e intil lamentar-se, duvidar e julgar a fora to poderosa, que enfrent-la seria to insensato, como um nadador enfrentar as ondas do oceano durante uma tempestade. Alm disso, permita-me acrescentar interferiu Supramati - que Vaidkhiva, apesar de toda a sua perfeio e de louvores glria de Brahma, era muito inconseqente. De que forma, ao alcanar a harmonia, ele conseguiu preservar o esprito rancoroso? Por que, detentor de um poder quase ilimitado, ele mesmo no julgou, neste caso, os seus inimigos? A sua fria, quando ele obteve a resposta justa, totalmente incompreensvel. A moral da minha lenda que a busca da perfeio um empreendimento muito arriscado e que nunca se pode ter uma certeza quanto a alcanar o seu objetivo, pois o instinto humano est a tal ponto incrustado na alma, que praticamente impossvel estabelecer quando ele desaparecer por completo. O heri da minha lenda, provavelmente, purificou-se no transcorrer de sua longa ascenso; seu ser parecia uma nica onda de harmonia. Todo o seu pensar transformou-se em fora de vontade e governava as leis csmicas que ele compreendeu e das quais sabia se utilizar; apenas em seu

ntimo se conservou uma partcula de "homem", ou seja, um tomo da dvida e do egosmo. Essa partcula rebelou-se e incinerou toda a maravilhosa edificao. Para mim mesmo - concluiu Narayana -, tiro desta lenda - seja ela falsa ou verdadeira - a seguinte moral prtica: uma vez que ningum nos apressa e ns temos tempo de sobra, mais sensato gozarmos o presente e protelar, o quanto possvel, aquele minuto perigoso, quando teremos de comparecer diante dos misteriosos portes celestiais e dos guardies mudos - os gnios das esferas. Voc est dizendo tolices, Narayana! Voc sabe demasiadamente para no compreender todo o fardo da ignorncia e est prxima a hora em que voc derramar lgrimas amargas por ter sentenciado a si esta inatividade - interrompeu-o Supramati. Isso no me assusta! Eu me sinto bem aqui e pretendo ficar o mximo que puder. Eu irei observar de longe como vocs, esvaindo-se em suor de sangue, iro rastejar pelo ngreme e ingrato caminho da perfeio, atrelados biga da ignorncia. Voc se esquece de que com cada esforo, com cada passo para a frente, a carga da ignorncia vai diminuindo e a subida torna-se mais fcil - observou sorrindo Dakhir. E no tero vocs imaginado que esta talvez seja a melhor recompensa misteriosa que os aguarda? Bem, ser que j no basta de falarmos disso? Nesta questo, a gente nunca ir concordar um com o outro. Acho melhor eu mostrar-lhes a ilustrao para a lenda de Vaidkhiva: a rocha onde est enclausurada a alma do sbio, chorando a sua queda. E voc tem aqui essa pedra legendria? evidente que eu quero v-la! - exclamou Supramati curioso. Sim, no fundo do meu jardim. Vamos, eu lhes mostrarei! - prontificou-se animadamente Narayana, levantando-se. Atravs de uma longa alameda emoldurada por rvores frondosas, eles atravessaram todo o jardim e saram num pequeno bosque. Aps andarem por cerca de dez minutos, deram num pequeno prado, no centro do qual se erguia um pequeno pagode. No interior do pagode, numa agradvel penumbra, delineava-se claramente uma grande esttua a Buda, instalada num alto pedestal. Aos ps da esttua, divisava-se uma grande pedra cinzenta, rachada de cima a baixo; de suas entranhas, jorrava murmurejando um fio de gua cristalina, caindo num reservatrio, que, ainda que estivesse cheio, no transbordava. Para onde ia aquela gua - era difcil de determinar, pois no se via em lugar algum um orifcio de escoamento. Em torno do reservatrio, estavam sentados sobre tapetes, em diferentes poses, sete homens nus, extremamente magros. Uma expresso de xtase congelou-se em seus rostos e as poses indicavam o seu estado catalptico.

So os faquires-meditadores, guardies voluntrios da fonte miraculosa. Eles ficam anos a fio sem se moverem deste lugar at morrerem, quando ento so substitudos por lunticos da mesma espcie. Eu assumi a responsabilidade de cuidar deles. Uma vez por dia, trago para cada um, um punhado de arroz, que eles engolem maquinalmente; dou-lhes de beber a gua da fonte e molho os seus corpos ressequidos. Isso suficiente para manter a vida fsica; quanto a seus espritos, eles, sob o efeito do xtase, pairam no ter, esquecidos de seu invlucro carnal. Sim, sim! As irradiaes carnais, o significado da vida dessas vtimas da violncia cientfica servem para manter e prolongar a existncia de algum cientista inescrupuloso, ao condenlos ao sofrimento intil, enquanto, nesse nterim, ele goza dos prazeres de uma vida de opulncia, disfarada com o trabalho mental - disse Dakhir em tom grave, olhando penalizado e com simpatia para aqueles esqueletos vivos, sentados de forma to imvel e aptica como a pedra sagrada que eles protegiam. Bem, esta pedra no para a minha horta! A matria primeva por mim absorvida liberame da necessidade de buscar a fora vital de um organismo estranho gracejou Narayana, dizendo a seguir: Entretanto, est ficando quente! Voltemos para casa, meus amigos, para vocs descansarem. Na hora do jantar nos encontraremos. Eles retornaram ao palcio, onde Narayana os deixou. Mas, ao invs de dormir, eles comearam a examinar as valiosas obras de arte de todas as pocas e, depois, comearam a folhear os manuscritos raros. O tempo passava rpido e o sol j havia alcanado o znite, quando, por fim, eles se deitaram exaustos no sof e adormeceram. Narayana despertou-os. Vamos jantar! O sol j baixou e o ar est fresco e aromtico. Metade da vida que eu levo j seria timo disse ele em tom alegre. - Mas, antes de tudo, tomem um banho: isso refresca. Meia hora depois, um dos belos efebos que servia no palcio levou Dakhir e Supramati a um salo a cu aberto com vista para o jardim. Atravs da arcada de colunas finas, viam-se conjuntos escuros de rvores, por entre as quais cintilava a superfcie lisa do lago. Uma suave luz azul-celeste iluminava a sala, no centro da qual estava a mesa luxuosamente servida. Com a entrada das visitas, Narayana levantou-se do sof onde estava deitado e todos se sentaram mesa. O jantar foi to maravilhoso como o desjejum. Da mesma forma como de manh, o dono da casa limitou-se a servir-se de leite e frutas; ele estava alegre e inesgotvel em assuntos, de modo que a refeio passou em meio a grande animao.

J era noite, quando eles se levantaram da mesa e foram ao terrao. Bilhes de estrelas cintilavam no azul-escuro do firmamento e a lua ascendente iluminava tudo com meiga e suave meia-luz. Ao notar que as visitas mergulharam na contemplao da ferica paisagem, Narayana bateu no ombro de Supramati e disse: E a?! Voc ainda acha uma "tolice" e "crime" o meu desejo de descansar um pouco neste maravilhoso ambiente, gozando o presente em vez de almejar um objetivo desconhecido e uma felicidade duvidosa que, de qualquer forma, serei obrigado a alcanar algum dia, querendo ou no? Pare de confundir a alma de Supramati justamente numa hora em que ele se prepara para entregar-se a um duro e exaustivo trabalho de iniciao superior, que exige, antes de mais nada, uma total tranqilidade e concentrao de todas as faculdades mentais - observou contrariado Dakhir. Pelo contrrio. Justamente nesta hora em que ele se prepara a realizar uma grande tolice, querendo se enterrar vivo, deve-se ajuiz-lo e mostrar-lhe todas as delcias da vida, s quais ele quer renunciar, sem t-las gozado at se fartar. Eu no lamento nem um pouco as trivialidades da vida, seus prazeres vazios e absurdos. Estou mais interessado em novos horizontes que vo me abrir os estudos de grandes problemas retrucou sorrindo Supramati. Estou vendo que voc incorrigvel! Eu, pelo contrrio, gosto dos prazeres que voc tanto abomina e, estando voc aqui na qualidade de minha visita, fao questo que comparea ao concerto e bal que sero apresentados esta noite em homenagem a vocs. Pelo visto voc tem uma corte bem organizada, uma vez que dispe at de orquestra e corpo de bal. Gostaria de assistir tanto um como outro. Ainda que eu no busque os divertimentos mundanos, no obstante no os desdenho, e o seu gosto refinado ir garantir-nos um espetculo interessante - assegurou Supramati, risonho. Narayana soltou um suspiro. Infelizmente eu no disponho mais daqueles recursos que tinha antes; mas, no espao, sempre possvel arrumar bons msicos. No fundo do lago, repousam muitas bailarinas bonitas que se afogaram para a grande infelicidade dos brmanes, seus protetores. Narayana, por tudo que santo, no pense em ressuscitar essas defuntas! Eu me recuso a assistir a esse tipo de espetculo - gritou assustado Supramati. O anfitrio alegre deu um leve sorriso zombador. No grite e se acalme! No vou ressuscitar ningum. A questo uma simples materializao, que proporcionar tanto prazer aos espritos invocados quanto a ns, e, ao alvorecer,

todos os artistas retornaro ao mundo do alm. Por conseguinte, voc poder, com a conscincia tranqila, deliciar-se com o concerto e o bal. Narayana virou-se e bateu no gongo de bronze em cima da mesa. Imediatamente apareceram dois jovens criados: um com uma trempe e outro com um escrnio, que colocaram junto da balaustrada. Narayana tirou do escrnio um frasco e uma caixinha. Entoando meia voz a invocao, ele verteu sobre o carvo algumas gotas de lquido vermelho e jogou um pouquinho de p. Imediatamente se levantou uma densa fumaa; em seguida, cintilaram feixes de fascas, espalhando-se em zigue-zagues gneos em todas as direes, surgindo finalmente esferas vermelhosangue que se lanaram para cima feito foguetes e explodiram com o estrondo de trovo. Algumas delas caram no lago cuja gua parecia entrar em ebulio. A seguir tudo silenciou por algum tempo. Mas eis que das paredes, da escurido do bosque e do ar, comearam a surgir nuvens brancas, agrupando-se de um lado do terrao. Parado, com a mo erguida e olhar flamejante, Narayana parecia mandar sobre elas, dirigindo os seus movimentos. Aps alguns minutos, a metade do grande terrao ficou separada por uma cortina branco-cinzenta tremu-lante, salpicada de fascas. Em seguida, ouviuse uma estranha msica, mistura de vozes humanas e sons de instrumentos desconhecidos. No era um canto definido nem sons de orquestra; antes eram ondas de vibraes harmnicas, surpreendentemente suaves e fortes. A melodia executada era original e estranha como o prprio mtodo de execuo da orquestra misteriosa. Supramati, como enfeitiado, ouvia admirado aquela msica, quando de repente sua ateno foi chamada para um retumbar surdo que vinha do lago. Ele viu como tona subiu uma onda espumosa que correu para a margem e, quando ela se quebrou nos degraus da escada, surgiram algumas figuras femininas de contornos indefinidos, que antes parecia deslizarem do que andarem pelo terrao. Narayana lanou mais uma pitada de p sobre o carvo e a fumaa levantada, em vez de subir, comeou a se aproximar em redemoinho dos vultos areos que vinham vindo. Esses parecia absorverem a fumaa, perdendo a sua transparncia, e, alguns minutos mais tarde, seis mulheres com a aparncia de pessoas reais aproximaram-se de Narayana, cruzaram os braos no peito e o saudaram com mesura. Eram belssimas jovens indianas no resplendor da vida. As tnicas bordadas de gaze mal cobriam as suas formas esbeltas. As gemas preciosas que adornavam as suas cabeas, braos e cinturas, fulgiam em luzes multicoloridas. Narayana disse algumas palavras em hindu e depois se sentou no sof, fazendo acomodarem-se junto de si os seus amigos. Neste instante, nos globos rosados acenderam-se as lmpadas eltricas inundando o terrao com luz forte. As danarinas comearam a danar. Leves, graciosas e cheias de vida, elas

rodopiavam ou formavam grupos maravilhosos e plsticos, ao mesmo tempo provocantes e lascivos como a prpria seduo. Quando as danarinas fizeram uma nova mesura, com isso dizendo que a apresentao havia terminado, Narayana levantou-se e fez um sinal para que elas se aproximassem. Devemos mimosear as nossas maravilhosas danarinas com um bom jantar. So raras as vezes que elas tm uma oportunidade de regalar-se com estas iguarias e essa a nica recompensa que ns podemos oferecer-lhes - disse alegre. - Somos em trs e elas esto em seis, ento natural que cada um de ns assuma a responsabilidade por duas beldades. Balanando a cabea e rindo, Supramati e Dakhir pegaram, cada um, as mos de duas mulheres e seguiram atrs de Narayana sala de jantar. A mesa estava posta, mas, em vez de pratos vegetarianos, ali havia carne com sangue, po e vinho quente, muito aromtico. vidas, lanaram-se as visitas do alm sobre aquela comida com tal estranha voracidade, que Supramati mal tinha tempo de repor-lhes nos pratos mais comida e encher-lhes as taas. medida que as danarinas se saciavam avidamente, seus rostos plidos iam adquirindo uma colorao rosada. Seus olhos brilhavam de curiosidade e paixo olhando para Dakhir e Supramati. Quanto a Narayana, eles exprimiam total indiferena e desprezo. Vejam s! As ingratas menosprezam e ofendem o seu benfeitor - observou em tom de escrnio Narayana. E patente que Supramati goza de maior sucesso. As canalhas pressentem que ele o menos santo de ns. De fato, os olhares mais ardentes eram lanados para Supramati. Uma danarina, em particular, fazia de tudo para desconcertar-lhe a tranqilidade. Agora ela j danava s para ele, recorrendo a todos os atributos de sua beleza. Todo o seu ser parecia fulgir em algo demonaco e tentador - o que inebriava, submetia e perturbava a mente e o corao. Apesar da rigorosa disciplina da primeira iniciao, que lhe ensinou a dominar os mpetos instintivos e submeter o corpo vontade da mente, Supramati, sem perceb-lo, entregava-se aos perigosos encantos da criatura. Seus grandes olhos escuros ardiam de admirao; um rubor leve tingiu-lhe as faces. Esquecendo tudo em volta, ele seguia os movimentos da danarina que ia se aproximando impercep-tivelmente, tornando-se cada vez mais sedutora e lasciva. Num salto gracioso, ela caiu de joelhos diante de Supramati e abraou-o apaixonadamente. D-me algumas gotas da essncia vital que voc possui! Conceda-me a ddiva divina da existncia terrestre - murmurou ela com olhar suplicante. Supramati tentou empurr-la, mas simpatia e pena em relao quela criatura juvenil, para sempre atirada ao mundo do alm, faziam-no fraco. Subitamente o rosto da danarina perdeu o brilho, a mo, que repousava na mo de Supramati, ficou fria e um tremor percorreu por todo o seu corpo delicado.

Ah! Eu estou desaparecendo! A vida e as foras esto me abandonando! - gritou ela, agarrando-se com fora a Supramati. - Cruel! Ser que voc tem d de uma gota de vida que eu lhe suplico? Na voz fraquejante da infeliz soava tal desespero, que, dominado por pena, Supramati, esquecendo de tudo, comeou a procurar febrilmente o frasco com a essncia vital que ele normalmente trazia consigo. Mas o bolso estava vazio -ele esquecera de pegar o frasco. Alis, j seria tarde. A morte triunfante apossou-se de sua presa. O corpo gracioso da danarina que jazia diante dele parecia derreter-se e dilua-se rapidamente. Logo sobrou apenas um vago vulto que, em seguida, transformou-se em uma ndoa esbranquiada, desaparecendo no ar. Como se sob o efeito de um pesadelo horrvel, recuperando com dificuldade o flego, Supramati passou a mo pela testa e olhou em volta: na sala no havia ningum, alm de Dakhir e Narayana. Voc ainda no se acostumou a recusar os pedidos tolos. um imortal ainda muito inocente, inflama-se e se entrega ao sentimento de pena com demasiada facilidade - zombou Narayana. - Voc estava to absorto, que nem ao menos viu como ns - Dakhir e eu - declinamos de tais splicas. Tem razo! No estou acostumado a esse tipo de jogo cruel e espero nunca encontrar algum prazer nele. Mas voc, Narayana, pertencente aos dois mundos, no deveria zombar da morte e da vida! Neste instante, ouviu-se um leve tilintar de sininho de prata. Ebramar est chamando por ns - disse Dakhir, levantando-se apressadamente. No vou segurar. Eu mesmo irei acompanh-los, pois vocs no conhecem todos os meandros do labirinto subterrneo - disse Narayana, apertando-lhes a mo. Logo eles alcanaram o barco. Mal os primeiros raios do sol ascendente douraram o horizonte, eles entraram no jardim em anexo ao palcio de Ebramar. Passaram cerca de duas semanas e no aconteceu nada de especial. Conversavam, liam, passeavam e gozavam da paz agradvel. Certa noite, depois do jantar, Ebramar disse, levantando-se da mesa: Est na hora de iniciarmos o trabalho, meus filhos! Amanh vou levar Nara para o seu novo local e depois vocs comearo os seus estudos sob a minha direo. Despea-se de sua companheira, Supramati! Ao alvorecer vocs se separaro e vo se ver muito raramente. Supramati empalideceu. Chegou a hora que ele tanto temia - a hora da separao da mulher que ele ainda amava com um sentimento terreno. Seu corao apertou-se de medo e infelicidade. Seu olhar entristecido procurou com angstia o olhar de Nara. Mas nos olhos lmpidos da jovem lia-se

uma afeio to pura e profunda, uma energia to latente, que a coragem e a tranqilidade retornaram a ele. Supramati aproximou-se de Nara, abraou-a e a beijou fortemente. Seja o meu apoio, ainda que de longe, se eu fraquejar em meu caminho espinhoso, pois eu sinto que em mim ainda est muito vivo o homem "terreno" - balbuciou ele. Vamos nos ver mais vezes, se possvel. Os meus pensamentos jamais o abandonaro. Quanto mais as nossas almas forem se libertando da matria, tanto mais elas ficaro prximas uma da outra e maior ser o indestrutvel amor que nos une - disse Nara, olhando para ele meigamente e o beijando. Fazendo com a mo um amistoso sinal de despedida, ela saiu do quarto. No dia seguinte, antes do amanhecer, Sandira veio buscar o pai. Ele trouxe-lhe uma comprida tnica branca, com uma faixa laranja costurada a ela, um cachecol da mesma cor que deveria servir-lhe de cinto e uma espcie de klafta. So as vestes dos discpulos de iniciao superior - acrescentou ele, ajudando Supramati a vestir-se. Em seguida, Sandira levou-o a um pequeno quarto, onde Dakhir j estava vestido com traje semelhante. Praticamente ao mesmo tempo chegou Ebramar, saudando todos amistosamente. A seguir, ele os levou pelo mesmo caminho que tomaram para irem se encontrar com Narayana. Como antes, desceram ao desfiladeiro, passaram por um corredor estreito, esculpido na escarpa, e saram para o canal onde por eles esperava um barco. Ebramar pegou no leme. Logo viraram para uma galeria lateral que, por sua vez, tinha inmeros braos. Aps uma viagem bastante longa, divisaram-se os degraus que atravessavam o canal em toda a sua largura. Ao encostarem o barco, Supramati viu-se diante da monumental entrada de um templo subterrneo, decorado com colossais figuras simblicas. O interior era uma espcie de gruta ou sala de dimenses gigantescas, com colunas dispostas irregularmente. As paredes, de cima a baixo, estavam cheias de esculturas de magnfico trabalho e originalidade surpreendentes. Uma luz azulada extremamente suave, apesar de seu forte brilho, iluminava a enorme gruta. Que obra magnfica! Mas quem foram os gigantes que conseguiram executar tal trabalho e quantos sculos eles precisaram para isso? - balbuciou admirado Supramati. Foi a raa negra, no apogeu de seu brilho intelectual e produtivo, que criou este mundo subterrneo que inclui muitas maravilhas inimaginveis para voc - respondeu Ebramar em voz baixa. Ordenando que os discpulos ficassem parados e esperassem por ele, Ebramar desapareceu atrs de uma enorme cortina purprea que escondia o interior do templo.

Supramati curioso comeou a examinar o ambiente. Agora ele conseguia distinguir que dos dois lados da cortina havia galerias pouco iluminadas que se perdiam na escurido longnqua. Viu tambm que, nas depresses das paredes, estavam instaladas altas trempes com carvo em que os jovens acendiam incensos; um aroma agradvel e vivifico encheu a gruta. De sbito, sua ateno foi chamada por um canto vindo de longe e que, sem dvida, se aproximava. Logo, de uma das galerias saiu um coro de mulheres, trajadas em vestes brancas e envoltas em vus. Liderando, vinham Vairami e Nara, levando no meio Nurvadi. Quando, ao terminarem o hino, elas silenciaram, ouviu-se um coro masculino e uma nova procisso saiu da outra galeria, formando um segundo semicrculo. Iniciou-se um profundo e solene silncio. A cortina entreabriu-se e por detrs dela saiu Ebramar em companhia de alguns homens, vestidos, como ele, em alvos trajes reluzentes. Ebramar trazia um clice, parecido com aquele que tinha visto nas mos do superior do Graal. Do clice subia um vapor dourado. Nara e Vairami aproximaram-se do mago e prostra-ram-se de joelhos. Dois dos companheiros de Ebramar tiraram o longo vu da sacerdotisa e cobriram com ele a cabea loira de Nara. V e trabalhe, minha filha, no s para voc, mas tambm para as suas companheiras de vida to longa, que as teriam deixado desesperadas, se no fosse preenchida por estudos e coroadas por aquela clareza que lhes confere o conhecimento - disse Ebramar, oferecendo o clice jovem. Esta umedeceu os lbios no vapor dourado e mergulhou em prece profunda. Instantes depois, de seu corpo comeou a desprender-se uma luz esbranquiada, que a envolveu feito aurola. Ento Ebramar dirigiu-se a Vairami: Seu desejo est atendido. Voc pode se entregar meditao at que eu a chame. Ele, ento, deu-lhe tambm o clice. Quando Vairami tomou dele, com ela repetiu-se o mesmo fenmeno que com Nara, mas de forma mais intensa. A luz alva concentrou-se com tal fora sob a fronte de Vairami, que parecia uma chama iluminando as feies da jovem aparentemente em estado de xtase. Subitamente, ela pareceu oscilar, levantou-se no ar e desapareceu numa densa nuvem que a envolveu e, arrastando-a para cima, desapareceu no ar. Ento Nara retornou para junto das mulheres, ocupando a posio de liderana e, cobrindo a cabea de Nurvadi, perdeu-se com o seu cortejo na galeria subterrnea. Os homens tambm se retiraram e logo na imensa gruta ficaram somente Dakhir e Supramati. Vamos voltar para casa - disse Dakhir. - Provavelmente veremos Ebramar s amanh, quando ele nos apontar o local de nosso novo trabalho de iniciao. Ao retornarem para casa, cada um se recolheu a seu quarto, quieto e preocupado.

Supramati deitou-se no sof e apertou a cabea com as mos. Um verdadeiro caos de idias e sentimentos tempestuava-se nele. Havia muito tempo que o seu estranho destino no o oprimia como naquele momento. A separao de Nara causava ao seu corao uma dor quase fsica. Ele se sentia sozinho, abandonado e infeliz. O trabalho gigantesco que tinha pela frente assustava-o e a vida infindvel, da qual ele no podia se separar, sugeriam-lhe averso e desespero. Lgrimas quentes jorraram por suas faces, mas, neste minuto, pareceu-lhe que uma mo afagou a sua testa e a bem familiar e querida voz sussurrou-lhe no ouvido: Pense no futuro em vez de pensar no passado! Voc no est sozinho: ns no nos separamos, pois a minha alma o v e o ouve. Trabalhe, v em frente com coragem, meu amado, e logo lhe ser concedida a mesma alegria. Voc vai poder me ver e falar livremente comigo. A matria rude j no nos separar. A voz calou-se, mas Supramati sentia-se surpreendentemente acalmado e fortalecido. Respeitoso e conformado, ps-se de joelhos e numa orao ardente suplicou que o Criador lhe desse apoio e foras para suportar dignamente o misterioso destino que lhe fora reservado. Quando se levantou, j lhe havia retornado o autodo-mnio. Sentou-se ao lado da janela e comeou a apreciar a paisagem mgica que se lhe abria frente. Conforme lhe havia sugerido Nara, ele comeou a pensar no futuro. Com o passado estava tudo terminado. Sua vida mundana, com suas alegrias e tristezas, sumiu na lonjura nevo-enta. Quando ele retornasse na prxima vez para o meio das pessoas, ter-seiam passado anos, ou, talvez, sculos inteiros. Valeria a pena lamentar-se sobre a infelicidade e sofrimentos das efmeras criaturas criminosas, cegas de paixes, elas prprias atraindo para si a ira Divina? No! Mil vezes no! Ele estava feliz, pois diante dele se estendia um vasto horizonte e abriase-lhe o caminho aos campos claros da cincia pura. Ento, adeus meu passado sombrio apesar das alegrias passageiras. Avante, em direo luz! - murmurou ele.

Continuao no romance "A Ira Divina".

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