Este documento descreve a situação em Lisboa durante o cerco de 1384 pelas tropas de Castela. A fome e o sofrimento eram generalizados entre a população, com muitas mortes diárias. Na noite descrita, os sinos tocaram em luto e as procissões de penitência percorriam as ruas enquanto a cidade esperava ansiosamente por socorro. Crianças famintas vasculhavam o chão em busca de comida e uma mãe chorava por não poder alimentar seu bebê.
Este documento descreve a situação em Lisboa durante o cerco de 1384 pelas tropas de Castela. A fome e o sofrimento eram generalizados entre a população, com muitas mortes diárias. Na noite descrita, os sinos tocaram em luto e as procissões de penitência percorriam as ruas enquanto a cidade esperava ansiosamente por socorro. Crianças famintas vasculhavam o chão em busca de comida e uma mãe chorava por não poder alimentar seu bebê.
Este documento descreve a situação em Lisboa durante o cerco de 1384 pelas tropas de Castela. A fome e o sofrimento eram generalizados entre a população, com muitas mortes diárias. Na noite descrita, os sinos tocaram em luto e as procissões de penitência percorriam as ruas enquanto a cidade esperava ansiosamente por socorro. Crianças famintas vasculhavam o chão em busca de comida e uma mãe chorava por não poder alimentar seu bebê.
Este documento descreve a situação em Lisboa durante o cerco de 1384 pelas tropas de Castela. A fome e o sofrimento eram generalizados entre a população, com muitas mortes diárias. Na noite descrita, os sinos tocaram em luto e as procissões de penitência percorriam as ruas enquanto a cidade esperava ansiosamente por socorro. Crianças famintas vasculhavam o chão em busca de comida e uma mãe chorava por não poder alimentar seu bebê.
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A ALA DOS NAMORADOS
ANTNIO CAMPOS JNIOR
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BREVE NOTA OS EVENTOS QUE ANTECEDEM ESTA HISTRIA
Corria o ano de 1383. O rei D. Fernando I, acabara de morrer com apenas 37 anos, vtima de doena. A sua nica herdeira, Beatriz, era apenas uma criana de 10 anos de idade mas, inconsequentemente, j tinha sido mandada para fora do pas para ser tomada como esposa do Rei de Castela. Com o trono vazio, a viva, D. Leonor de Teles, tomou para si o poder aclamando reinar em nome da sua filha e do seu marido, o Rei de Castela, e ps logo o seu amante galego, Joo Fernandes Andeiro, como seu consorte e ministro do reino. Tal ao trouxe a indignao da populao em todas as suas faes: na plebe, na burguesia, no clero e entre a nobreza; e o que comeou por ser vrias revoltas populares contra os ditos da rainha e do seu ministro, culminaria numa guerra civil, por todo o territrio, opondo os opositores e os defensores da nova monarca. A liderar a fao opositora, que recusava a nova rainha e a submisso do trono a Castela, estava Joo, Mestre de Avis, meio-irmo do falecido rei que, apesar de ser um filho bastardo, tinha sido reconhecido aos seis anos pelo pai, D. Pedro I, como filho e foi posto por este a estudar cavalaria na Ordem de Cristo, armando-o depois cavaleiro e dando-lhe o ttulo de "prncipe de Portugal". Sendo um bastardo, a sua aclamao ao trono era ilegtima aos olhos da igreja, mas a apoia-lo tinha a povo, a burguesia e uma grande parte da nobreza que no via com bons olhos a hiptese de Portugal vir a ter um rei castelhano. Assim, a 6 de Dezembro desse mesmo ano de 1383, juntamente com um grupo armado, Joo de Avis invade o Pao do Conselho (atual cmara de Lisboa), mata o Conde de Andeiro e proclamado regedor e defensor do Reino pela populao que o aclama, inconsciente de que aquilo era o inicio de um dos mais perigosos e sangrentos conflitos que Portugal se veria confrontado at ento. Sabendo da morte do seu ministro e amante, D. Leonor de Teles foge, antes de ser capturada pelos seguidores do Mestre de Avis, e refugia-se na corte do seu genro, D. Joo I de Castela, dando a este um pretexto para fazer aquilo que ele j desejava fazer: invadir Portugal e validar a sua pretenso ao trono. Estes eventos so o preldio real das situaes que conduziram guerra Luso- Castelhana entre 1383 e 1385 e que culminaria na batalha de Aljubarrota. A histria que vai ler inicia-se j em plena invaso de Castela, durante o cerco de Lisboa de 1384, que durou exatamente 4 meses e 27 dias, e que quase dizimou a populao lisboeta.
PRIMEIRA PARTE INFORTUNADOS AMORES
CAPTULO I DOR QUE ENLOUQUECE
Fora calmo aquele dia de Junho de 1384. O sol sumira-se afogueado, globo enorme de ouro fulvo que deixara pelos cumes dos montes e sobre as guas dormentes do Tejo um crepsculo agoirento, vermelho como a prpura antiga dos autocratas e como o sangue forte da plebe. Em todas as torres de Lisboa bateram lugubremente as badaladas das alvorada. Parecia que nunca os sinos da cidade tinham tido uma voz assim dolente! Badaladas como trgicos soluos daquele bronze que parecia ter dentro em si a alma angustiosa da cidade. E no era deles afinal aquela tristeza imensa; era do corao de quem os ouvia. A voz dos sinos era a mesma dos dias jubilosos; no corao dos atormentados, dos famintos, dos que traziam consigo a dor e o luto, que a repercusso mudara como se viesse timbrada pelas amarguras da Ptria e pelas tristezas de cada lar. Jesus! soluara uma velha a quem o marido e o filho tinham morrido, dias antes, numa sortida s portas de Santa Catarina, contra os Castelhanos que cercavam Lisboa (*).
[(*) O bloqueio terrestre da cidade pelas tropas de Castela comeara em 9 de Fevereiro de 1384. O cerco cerrara-se em 27 de Abril, depois de ter chegado ao Tejo a primeira diviso de uma poderosa esquadra castelhana.]
Esto a dar aquelas badaladas como se fosse para lembrar os tantos que a morte levou e os muitos que ho de acabar, se o nosso Senhor no tiver d desta pobre cidade e desta infortunada Nao! E para maior agouro e mais doloroso contraste, as sinetas de bordo das cinquenta e trs naus e gals que El-rei de Castela tinha no Tejo tambm tocaram na alvorada, mas essas numas vibraes agudas, ligeiras, como se tivessem um timbre de riso de escrnio pela aflio da cidade. Ouviam-se bem na trgica melodia daquele crepsculo. A armada potente de Castela estava atracada desde Santos at para l de Cacilhas, muito prxima da praia, a cerrar estreitamente o cerco. Mas do acampamento castelhano, a rodear Lisboa das alturas de Santa Clara ao Monte da Graa e Penha, das extremidades de Valverde (o valezito da atual Avenida da Liberdade), daqueles hortejos s lombas de Campolide e do monte de Santa Catarina s praias de Santos; dali vinham ainda mais opressoras repercusses naquele anoitecer de Junho. Vinham do estridor arrogante das trombetas no soberbo alarde das Trindades. Esto a uivar os lobos de Castela! M peste os ponha em fuga! comentara um besteiro(*) de cabelos grisalhos.
[(*) soldado que tem a besta como arma, estando na mesma categoria blica que os arqueiros ou archeiros.]
J pela noite dentro, as procisses de penitncia cruzavam-se nas ruas, gemendo o seu miserere, e as igrejas atulhavam-se de gente angustiada, que fazia preces pela boa fortuna da cidade. Para que Deus protegesse o jovem Nuno lvares Pereira, j vencedor dos Castelhanos na batalha dos Atoleiros, e para que a nossa Senhora trouxesse rapidamente e a salvamento a esquadra que esperavam do Porto com o socorro de que tanto carecia a capital. Depois passaram silenciosas, num passo pesado e lento, de piques e bestas ao ombro, as quadrilhas de peonagem(*) de reforo para as setenta e sete torres e trinta e oito portas que tinham as muralhas de Lisboa e para as trincheiras de estacaria dobrada, que reforavam as defesas at praia de Santos, e seguiam ao longo da Ribeira e dos Fornos da Cal at ao mosteiro de Santa Clara.
[(*) "peonagem" era todo o soldado raso de posio militar mais baixa, apelidado de "peo"]
Para os lados das Portas de Santa Catarina e da Torre de lvaro Pais (na moderna rua de S. Roque), trotava um grupo de cavaleiros, de bacinetes emplumados, cotas e braais. Iam para onde o perigo era maior e mais frequentes as escaramuas com os sitiantes. Depois o soluar das preces emudeceu, as velas dos altares apagaram-se, as grandes portas das igrejas cerraram-se. Esmoreciam pelas esquinas e sobre as portas de casas abastadas os lampies e as candeias dos nichos, mngua de umas gotas de azeite, porque at nisto se manifestava a misria daquela encantadora Lisboa, qual os mouros tinham chamado a Sultana do Mar Azul do Ocidente. Foi correndo a noite e a cidade parecia adormecida num sono de pesadelos. Mas nem toda ela adormecera. Nas muralhas velavam as atalaias, e dos lados da Ribeira vinha, a espaos, um rumor brando de vozes. Mas nos lares que a morte enlutara de lgrimas de dor, nos castelos miserveis, quantos esqulidos havia, que no conseguiam dormir por causa da sua horrorosa tortura de famintos? No recanto de uma travessa, um grupo de esfarrapados esquartejava sofregamente uma mula escanzelada para o seu banquete daquela noite. Havia dois dias que no traziam na sacola nem uma cdea bolorenta de esmola, uma cdea daquele po miservel que ento se fazia na cidade com o bagao da azeitona, as razes das ervas e as malvas dos quintalejos abandonados. No terreiro, onde ainda um ms antes se vendiam uns restos de trigo, bandos de crianas semi-nuas, estonteadas de sono e rodas de fome, andavam a arranhar o cho para ver se a terra tinha escondida em si a fartura de alguns bagos de trigo. Eram mais bem sucedidos que as pobres crianas, os ces sem dono, a focinhar nas montureiras, que trescalavam podrides de cadveres. Em frente da S, as torres castels, envoltas num manto de sombra como figuras gigantescas de alguma lenda, uma mulher nova, de cabelos esparsos, uma farrapagem de brocados a cingir-lhe o corpo, que era talvez belo, parara arquejante, aconchegando muito aos seios um vulto pequenino de criana, num choro convulsivo e dbil. Como tu choras, amor da minha alma! Cheia de fome! Eu sei! Eu sei! Filha, dava-te o meu sangue, e no posso matar-te a fome! Murmurara-lhe isto num estrangulamento de soluos como se a pequenina a pudesse compreender, e apertava-a mais contra o peito como se quisesse que do seu seio ressequido aquela boquita lhe pudesse beber o sangue. Lavada em lgrimas! Tm mais sorte os que morrem! Que tamanha misericrdia seria se a nossa Senhora nos levasse a ambas para si! E a pequenita num choro cada vez mais convulso, mais rouco, mais dolorido. Num relancear dos seus olhos de alucinada, turvos de lgrimas, a desventurada mulher deu com um painel da Senhora Me de Deus, que o padre Cabido mandara erguer por cima da porta do templo, desde que as misrias do cerco tinham posto a cidade em maiores desalentos. Uma grande lmpada de bronze punha os seus reflexos de luz dourada na figura da Virgem com o seu Jesus pequenino ao colo, Me e Filho numa expresso de jbilo e ridente fulgor. Foi at ela, a tremer, a pobre esfarrapada; ajoelhou-se fervorosamente, a acalentar a filha, e ps no painel um olhar mortificado, numa splica em que as lgrimas davam o dobro das palavras. Senhora, acudi-me! Ningum me ouviu, ningum me pde socorrer! Escutai-me vs! Socorrei-me, Senhora! Me divina fostes, mas tambm eu quero minha filha, como vs, Senhora, ao vosso filho. Sofreu, sofrestes com ele, e mataram-no; mas o vosso era Deus, e a esta, coitadinha, sou eu que a deixo morrer! Senhora, talvez nunca sofresse fome o vosso pequenino Jesus, por se no terem secado para ele os vossos seios como secaram os meus! A criancinha estrebuchou-lhe nos braos como uma avezita agonizante e soltou um grito dolorido. A esfarrapada ergueu-se de repente, a tremer doidamente, e deu uns passos torcidos para que a luz da lmpada lhe iluminasse melhor o rosto da pequenina. Ests a esfriar! Filha! Filha! Olha para mim! rouquejou ao beij-la, a tatear-lhe a cara, em convulses de epiltica. Mas a filha j no a ouvia. Estava morta. Morta pela fome. A mulher sacudiu-se em soluos e ps-se numa correria doida pelo terreiro da S com o cadver da pequenina erguido nos braos, trementes como se fossem de uma octogenria. E no cu de profundo azul brilhou um fulgor intenso de estrelas, no alheamento e na indiferena daquela dor de me a envolver-se em desvario de loucura! A enlouquecida sentou-se no degrau do portal a regougar uma trova de acalentar crianas e a embalar nos braos o corpo hirto da filha. Vibraram de repente naquele lgubre silncio vozes altas de gente que vinha da Porta de Ferro a correr. Gentes, despertai! Boas novas chegaram! Erguei-vos e dai graas a Deus! E com as vozes altas, alvoroadas, ressoavam nos ares as marteladas das aldravas, revoava um sussurro de gente surpreendida, um ranger de portas que se abriam e um rudo de adufas que se levantavam. Entrou um grupo de homens no terreiro da S. Vinha diante deles um galeote com uma acha de pinho embreada, acesa em guisa de archote, a esfumar de negro aquela frouxa penumbra das estrelas e a projetar os seus clares vermelhos na fachada vetusta daquele grande templo. Por Deus, que chegaram boas notcias! Que notcias so? inquiriram os estremunhados, assomando s portas com as candeias de luz na mo. So notcias de Nuno lvares, o jovem campeo? perguntavam. Quereis ver que deu nova arremetida contra os castelos e venceu outra batalha? Eu j sonhei com ele trs noites a fio, a entrar por Castela adentro, ao lado do senhor S. Jorge, com o seu bacinete de ouro e a sua lana de prata! E que tinha levado escalada os muros de Badalhouce (*).
[(*) O Assim chamavam a Badajoz. Parece que foi fundada pelos mouros com a denominao de Baladelaixe, que os nossos antigos mudaram para Badalhouce.]
No vos deiteis a adivinhar, gente endrominada, que o caso foi outro. Dizei qual. Contai o que houve. Falai depressa. Dizei insistiram muitas vozes. Lanou ferro (atracou) em Cascais a armada que veio do Porto a socorrer-nos esclareceu um dos recm-chegados. Pois Santa Maria seja bendita e que viva quem nos vem ajudar. Viva! Viva! E o senhor dom Bispo que mande abrir as portas da S, e os senhores cnegos que mandem pr luzes nos altares, para que Deus nos ampare! E quem trouxe tal notcia? Um homem bom do Porto, mercador rico, de rijas febras e destemida gana para o mar, que pelo escuro da noite fugiu de Cascais num batelzito e, por entre a armada inimiga, se atreveu a c vir trazer-nos a boa notcia! J esteve a falar com o Mestre informou outro dos avisadores, referindo-se ao Mestre da Ordem Militar de Avis, filho bastardo de el-rei D. Pedro. E com ele veio tambm aquele destemido fidalgo jovem de Riba- Douro, que foi o mais belo pajem da rainha combora (*) e o mais animoso na guerra do ano passado.
[(*) Mulher que tem amores ou vive com um homem casado. Assim chamavam rainha D. Leonor Teles.]
No sei quem seja! Ora! Nem Lisboa conhece outro mais afoito de alma. aquele jovem de vinte anos que mandou desafiar o Condestabre de Castela. Ah! Esse ento todos ns sabemos quem . claro que se sabe. Ruy de Vasconcelos, da melhor nobreza de Riba- Douro. Morrem por ele as mulheres novas. E dizem que no pao real por ele se perdeu certa dama linda como as estrelas. E olhai que nunca mais se lhe soube o paradeiro! E enquanto iam falando assim, em grupos ou de porta para porta, a multido dos alvoroados aumentava de instante para instante; as luzes das candeias brilhavam pelas adufas como pirilampos e voejava pelos ares um rumor mais intenso de passos e de vozes. Entretanto, no portal da S, alheada de tudo, a enlouquecida me, a quem a filha morrera, soluava as oraes com ela deitada no regao. A multido podia l ouvi-la! Ningum reparara naquela mulher nova, enrodilhada em farrapos de brocado, endoidecida no drama da maior dor humana, toda mirrada na sombra enorme da igreja. E ela tambm absolutamente alheia a todo aquele alvoroo, como se ali a tivessem cegado as suas prprias lgrimas e de tudo tivesse ensurdecido no estonteamento daquela mgoa inexcedvel e sem remdio!
* * *
Gentes, a vem o Mestre, o Defensor, o que um dia ser rei! gritou frente da multido, numa voz dominadora, que se sobrepunha a todas as outras, um homem alto, espadado, exemplar admirvel dessa raa de plebeus que havia ento, de conscincia lavada e nimo intemerato, para falarem alto fosse a quem fosse, e para morrerem a peito descoberto pelo seu crer e pela sua coragem. Era o tanoeiro(*) Afonso Eanes, o chamado "Juiz do Povo", um revolucionrio dos dias turbulentos que seguiram morte do rei D. Fernando.
[(*) Tanoeiro ou toneleiro um arteso dedicado ao fabrico de barris, pipas ou tonis para embalar, conservar e transportar mercadorias, principalmente lquidos.]
Tinha sido o tribuno e o comandante da populaa, para que a Nao se defendesse das pretenses de el-rei de Castela e no lhe deixasse levar a coroa do monarca falecido, na herana da infanta portuguesa D. Beatriz, esposa do rei invasor, mais a bandeira e a histria da terra portuguesa. E o caso foi que, sem a interveno daquele mestre tanoeiro, talvez a Nao no tivesse por chefe o jovem Mestre de Avis, e tivesse esmorecido na defesa da sua independncia. Entre os homens de ao preponderante que apoiaram o bastardo de el-rei D. Pedro e da plebeia Teresa Loureno subida do trono, trs havia de incontestvel grandeza Nuno lvares Pereira, fidalgo e guerreiro juvenil; lvaro Pais, o velho chanceler dos tempos de el-rei D. Fernando, e aquele valente mesteiral (mestre arteso), que se chamava Afonso Eanes Penedo. Ei-lo, a vem! anunciou outra voz. E com ele aquela alma boa do povo. O nosso querido velhinho, lvaro Pais. Certo se ir recolher o Mestre aos paos de Apar S. Martinho. Viva o Mestre! gritou uma multido prxima das Portas de Ferro. E pouco depois, adiante de todos mulheres e carpinteiros da Ribeira com archotes aceso , Sem nenhuma ostentao de poder, singelamente, quase ombro a ombro com o povo que o adorava, o Mestre de Avis subia lentamente com lvaro Pais, muito abordoado ao seu basto, arrastando por ali acima, penosamente, com as suas pernas trpegas. Ao lado dele, na esquerda, um legista que, h dois anos, viera da Universidade de Bolonha onde se formara em leis o doutor Joo das Regras. Um pouco atrs, acotovelados pela multido dos maltrapilhos descalos, dois pajens com tochas acesas, e depois o comandante dos besteiros. Oito homens de armas por escolta e mais ningum naquele cortejo do Defensor do Reino ttulo dado pelos cidados de Lisboa o Mestre da Ordem de Avis; um infante bastardo pelo pai, um homem do povo pela me. Havia explicao para o cortejo ser pequeno. Ainda nessa tarde o Mestre recebera avisos de certos movimentos suspeitos da esquadra castelhana e fora logo para as Portas do Mar, sem nenhuma comitiva, para observar ele prprio qual seria o intento do almirante de Castela. E por l se demorara pela noite dentro, de atalaia, sem ter podido perceber o intento daquela evoluo dos navios sitiantes. Tomou precaues, mandou um aviso confidencial s torres e s quadrilhas que guardavam as portas para se manterem em dobrada vigilncia, mas no quis dar alarme pobre cidade, j to atribulada de provaes. Nas trincheiras da praia dirigiu ele prprio, sem alarmes, as precaues de sobreaviso e, como em outras ocasies, teve a auxili-lo dedicadamente o arcebispo de Braga, D. Loureno, com o seu estado-maior de cnegos e a sua hoste de frades e clrigos seculares. Os trabalhos e os sacrifcios eram para todos. O arcebispo, um homem intrpido, no admitia isenes de privilgio para ningum naquela conjuntura angustiosa. Para ele era tambm servio de Deus defender a Nao mo armada, e a sua hoste de tonsurados no era das menos fervorosas nem das menos destemidas na defesa das trincheiras e no arranque das sortidas. Fora ele at o principal organizador na defesa do lado do rio, passando indiferentemente da sua tarefa de dirigente aos mais rudes trabalhos de construo, para estmulo da peonagem e dos seus clrigos. Pela noite adiante chegara o batel em que vinha o comerciante do Porto, Joo Ramalho, com a notcia de ter atracado em Cascais a esquadra de socorro. O Mestre combinou ento com o Ramalho o plano a seguir, no s quanto entrada dos navios, mas tambm a respeito do apoio que poderiam dar-lhe os defensores da cidade. Assente o que devia fazer-se para que a empresa, realmente grave, tivesse bom xito, Ramalho voltou para Cascais com o mesmo risco e destemor, e o Mestre regressava agora ao pao para ali discutir com os seus cavalheiros e caudilhos(1*) do povo, entre os quais tinham lugar proeminente os homens de ofcios da "Casa dos Vinte e Quatro"(2*) do povo, com todas as mincias e disposies da parte do plano que pertencia cidade.
[(*) 1 - caudilho: algum com uma posio de chefia; era assim nomeado algum de uma comunidade que tivesse numa posio capaz de exercer liderana e de a representar quando fosse preciso. Eram os caudilhos que representavam o povo nas assembleias sociais convocadas pelos reis, chamadas Cortes. 2 - A Casa dos Vinte e Quatro era um rgo deliberativo da administrao municipal de Lisboa - e, mais tarde, de outras cidades do Reino de Portugal e do Imprio Portugus - era composto por representantes das guildas, ou seja, das associaes de ofcios, como a guilda dos artesos ou a dos mercadores.]
E era neste assunto gravssimo que o Mestre vinha a conversar com aquele velho alquebrado, que fora o crebro dirigente da revoluo e trazia em si, no seu arcaboio de septuagenrio, uma das maiores almas de Portugal. A multido olhava para aqueles os dois esperanada como se aquele homem de gorra negra e cabelos de neve fosse o smbolo imaculado da Ptria, que os de Castela pretendiam matar, e o outro, um bastardo real, monge-cavaleiro de vinte e seis anos, representasse a maior promessa e a mais rtila esperana de um Portugal remoado, mais forte, mais brilhante, de mais pura e altiva alma, emergido dos Iodos daquela decadncia pelos milagres de esforo de uma revoluo. Viva o nosso Messias! gritaram algumas mulheres comovidamente. E envolveram, num olhar de sonho, aquele homem jovem, de amplas costas, trigueiro e rubro como os galeotes da Ribeira e os picos das montanhas; de rosto largo numa forte expresso de energia; naquela cabea de pensador o bacinete (*) emplumado dos campeadores fidalgos, nos ombros largos o manto branco dos Cavaleiros de Avis e sobre a cota de armas o estreito escapulrio com a esguia cruz verde do mestrado da Ordem, estampada naquela brancura do hbito, a lembrar as toalhas dos altares e a bandeira da Nao.
[(*) A parte da armadura que protege a cabea]
Messias da Ptria para a redimir, filho de um rei para ascender ao trono, se a Nao vencesse, filho de uma mulher do povo, como o aclamavam febrilmente. Que Deus vos guarde, Senhor! clamava a ral num voto fervoroso, de braos erguidos como para o abraar, e a trapagem de burel(*) agitava-se- lhe sobre o peito arquejante.
[(*) Tecido tpico portugus do qual se faziam as capas e os capotes. confeccionado a partir da l.]
Deus vos oua, gente leal, e a todos nos mantenha na santa defesa de Portugal volveu-lhes o Mestre, pondo neles, afetuosamente, os seus olhos negros, penetrantes, e esboando nos lbios rubros um sorriso de familiaridade, que lhe modificava as linhas duras do longo rosto, quase quadrangular, de queijo proeminente e barba escanhoada, conforme o preceito imposto aos monges cavaleiros. Amanh haveremos de ter dura luta. A armada que veio do Porto entrar e ns de c lhe daremos uma mo disse o Mestre. Grande armada, Senhor? perguntou um mesteiral,(*) de barrete na mo.
[(*) "Mesteres", este termo designava, na sociedade portuguesa medieval, um grupo de artesos ligados entre si por uma guilda de determinado ofcio. O equivalente ao que hoje seria um sindicalista, embora esta comparao seja muito afastada. O termo "mesteiral" passou tambm, com o tempo, a ser usado para designar todos aqueles quem tinham actividades de arteso, como os tanoeiros, ferreiros, oleiros, etc., estivessem ou no ligados a uma guilda; depois passou ainda a designar todo aquele que era aprendiz de um "mesteiral".]
Dezassete naus e outras tantas gals. Mestre e Defensor nosso, bom socorro ser, mas a outra de Castela tem mais do dobro! Respondeu-lhe. Deus estar connosco, e pela nossa causa a alma e o sangue de ns todos. Ficai prevenidos. Ao romper da manh, estaremos todos onde for preciso. Conto convosco; contai comigo. El-rei de Castela no levar a herana que vem aqui buscar. S Lisboa lha poderia entregar, e nem vs nem eu deixaremos que a tome. Mestre e Defensor, honradas palavras dissestes! acudiu Afonso Eanes na sua voz dominadora A cidade no se rende e a herana no se entrega! Assim o queremos todos e assim ser com a ajuda de Deus! confirmou o Mestre com uma grande energia sugestiva. Todos! gritaram Por esta nossa terra contra as hostes de Castela: Portugal e S. Jorge! Ide agora repousar, meus filhos disse-lhes paternalmente lvaro Pais, na sua voz tremente de velho Ao romper da manh seremos uns com os outros e o dia h de ser de bravia luta. Mas at eu, com as minhas pernas trpegas, me hei de arrastar para onde for preciso para que a soldadesca de Castela veja como os velhos de Lisboa so capazes de morrer pela sua terra. Pai do povo sois vs disse uma regatona velha da Ribeira conhecida entre o povo por "Tia Lourena da Ribeira", que reunia sua volta um grupo de mulheres mais novas. e aqui tendes quem vos ajude a ir ver como esse bailado de amanh h de ser. Falta o po na cidade, mas ainda, louvores a Deus, no faltam as pedras para britar os focinhos a esses ces danados de Castela! Ide repousar, meus filhos repetiu o alquebrado chanceler dos tempos de D. Fernando Muito h que dispor para o dia de amanh, e a todas as coisas precisa de prover a sua graa disse indicando o Mestre Ide com Deus. At ao amanhecer acudiu D. Joo num gesto amigvel de despedida. E foi andando para cima, ao lado de lvaro Pais e do douto Joo das Regras. Viva o Mestre! Viva o nosso Messias! aclamou a multido num arrebatamento de entusiasmo, como se estivesse esquecida de todas as privaes, de todas as misrias e de quantos perigos enormes podia trazer-lhe o dia seguinte.
* * *
Vamos ter po, mulheres de Deus! disse a regatona da Ribeira Vir trigo na armada do Porto. Vai acabar a fome! Destacando-se do adro da S, numa apario como a de um fantasma, nos braos a criancita morta, a pobre me enlouquecida, disse em gritos agudos como uivos: Acabar a fome!... Tambm a minha filha... Acabou! Tantas mulheres! E no houve nenhuma... Nenhuma... Que lhe matasse a fome... A ela!... Olhai... Morreu! Uma profunda impresso de estranheza e de supersticioso pavor oprimiu a multido, e com mais profunda violncia o corao das mulheres. Recuaram, cheias de terror como se aquela desventurada fosse um espectro fugido de alguma campa da S. Num extenuamento de foras, a infortunada dobrou os joelhos subitamente e caiu sobre o cadver da filha. Eh! Mulheres, que por bem pouco temeis! exclamou a tia Lourena J supondes que alguma alma penada! De fome que ela falava; e com fome seria que baldeou a terra; era capaz de o jurar. Pois eu no tenho medo e vou dar ajuda a essa criatura de Deus. Cuidado, tia Lourena, que pode ser moura encantada ou judia feiticeira, que ande a penar! Credo! Figas, demnio! disseram algumas. Contos da Carochinha. Eu vos digo j o que . E a regatona aproximou-se da desditosa; para grande assombro da assistncia, ajoelhou-se no cho e levantou-lhe a cabea. Me bendita, que ela parece estar morta! Chegai, c por caridade, esse pedao de luz. Um mesteiral aproximou-se dela com os restos de um archote que ficara a arder no cho. Arcanjo bento, que linda ela ! Rapariga de boa criao, parece feita de marfim! Vinde ver; no tenhais medo. Uma pequenita com a cabecita dourada! Morta, est morta! Ela, a me, que ainda tem vida. Est-lhe a boca a tremer e as lgrimas a saltarem-lhe em fio dos olhos cerrados! Um fiozito e uma cruz de oiro ao pescoo! Aproximai-vos, pasmadas dos meus pecados, que esta nem moura nem judia. As mulheres aproximaram-se, mal refeitas ainda do seu terror supersticioso. Aguilhoados pela curiosidade, alguns mesteirais e maltrapilhos se tinham j aproximado, formando uma roda. Jesus! Que magreza tamanha! comentou uma rapariga saloia. E olhai que este saiozinho esfiampado do tecido rico das donas! notou outra. Brocado esclareceu a tia Lourena. Talvez lho tivessem dado de esmola! lembrou uma tecedeira da Corredoura. Hum objetou a tia Lourena A pele branca e assim fina, que nem as toalhas dos altares, condiz bem com esta esfarrapada rica. Esta nunca andou como ns torreira do sol nem ao vento frio das madrugadas. Quem ser, tia Lourena? Eu sei l, mulher! Talvez mal casada com algum desses tredos que se foram para os ces gadelhudos de Castela. Nestes ruins tempos tudo pode ser, mulheres de Deus! Mas aqui a falar que a gente no a acode. Vamos lev-la daqui. Dou-lhe eu uma cama no meu casinhoto, e ainda l tenho um naco de po de bagao para lhe matar a fome. Talvez tivesse ficado por a escondida, como outras que eu sei, abandonadas pelos pais e pelos maridos, que foram ao faro dos favores do rei castelo (*).
[(*) Aos de Castela chamava o povo castelos, e assim os denomina tambm nas suas crnicas de el-rei D. Fernando e de D. Joo I, o grande cronista Ferno Lopes, pai da nossa Histria, como lhe chamava Alexandre Herculano.]
Tambm eu sei de algumas e bem conheo a toca onde esto metidas! Aqui, bem perto, sei eu de me e filha que vivem escondidas, e essas, minhas queridas, no passam fome! disse a tia Lourena, aconchegando para si e friccionando com as suas mos encortiadas a testa de neve da pobre me desmaiada. Essas conheo eu bem! disse uma velha mendiga Olhai, uns passos ali para baixo, alm, naquela grande casa, onde ningum apareceu nem se ergueram as cortinas quando o Mestre passou! Vivem na farturinha e querem l saber do resto! Ali no entra a fome! E a velha mendiga, com a mo engelhada, a tremer no ar, apontou para um grande prdio, todo envolto em sombras. A rapariga est a querer voltar a si anunciou jubilosamente a tia Lourena V, minha linda, eu vos darei guarida, se no tiverdes para onde ir. Estava a pr-se a lua no cu, como uma prola enorme a deslizar por um mar azul, profundo, imenso. Filha! rouquejou a enlouquecida, enclavinhando as mos por entre os negros cabelos revoltos. E desprendeu-se de repente dos braos da tia Lourena. Ps-se de p, relanceou em volta um olhar espavorido. Deu com o cadver da criana, estendido no cho, soltou um grito como se tivesse sido arrancado da sua alma espedaada, estendeu-lhe os braos, cambaleou e foi cair de joelhos ao p dela, numa convulso-de soluos. Ento, resignai-vos pediu-lhe a regatona, inclinando-se para ela enternecidamente Tantas mes tm perdido os seus filhos pequeninos! Tantas! E parecia velada de choro a voz forte e spera daquela velha de soberba musculatura, que tinha as rudes audcias de um rufia e as brandas meiguices de uma pomba. Endoidece-a a dor! Coitada! segredou piedosamente para a velha mendiga uma forte rapariga, que tambm era me. Filha da minha desgraa, filha da minha alma! Caem sobre ti as estrelas do cu... Flores pequeninas, todas feitas de luz! Ento, minha pobre menina! Vamo-nos embora daqui. Eu buscarei para a vossa pequenina as flores que o sol ainda no queimou. Rosas de todo o ano, branquitas como ela, que eu tenho no meu quintalejo. Olhai a lua... A sua madrinha... No tinha outra... Nem pai que se soubesse!... Vamos l insistia a tia Lourena Eu levo a inocentinha. Tambm tive filhos pequeninos, tambm Deus mos levou, e a um, que chegou a homem, mataram os castelos, h dois meses. Aqui vos diz este meu burel de d. Vinde comigo. De sbito, ouviu-se uma tropeada de cavalos. Desciam escudeiros apressadamente dos lados do pao de Apar S. Martinho. Iam com avisos do Mestre, convocando para a madrugada, os chefes da nobreza e os homens dos ofcios da Casa dos Vinte e Quatro do Povo, espcie de conselho de defesa, pequeno parlamento popular, que, quatro sculos mais tarde, se poderia chamar em Frana um comit de salvao pblica sem guilhotina.
* * *
A tia Lourena conseguira afinal levar dali a enlouquecida. Deitara nos seus braos a criana morta e duas vizinhas suas iam amparando a pobre me, num alheamento de tudo, sem foras que no fossem para o arranco dos soluos e para os gritos pungitivos da sua mgoa. Seguiam por ali abaixo. A regatona morava num beco muito prximo s Portas do Mar. Debaixo vinham subindo a p, lentamente, dois homens que no podiam confundir-se com gente da plebe, ainda mesmo que no trouxessem atrs de si dois escudeiros apeados. Um deles, jovem forte e esbelto, de admirvel gentileza, trazia um bacinete emplumado, cota e braais, esporas douradas de cavaleiro fidalgo. O outro, de longas barbas brancas, rosto macilento, avergoado de rugas, tinha um olhar de amargurado e o ar de mortificao de um asceta. Cingia-lhe o corpo ressequido uma tnica de tecido branco, de grande cabeo orlado de conchas com uma cruz vermelha do lado esquerdo; cintura corda de esparto, nos ps grosseiras sandlias. Apoiava-se a um alto bordo, que tinha uma cabaazita pendente, como usavam os peregrinos da Terra Santa. Dava-lhes em cheio o luar, e, naquele seu estranho contraste, dir-se-iam figuras fantsticas numa apario de lenda. Pobre Portugal, meu querido Ruy! vinha dizendo o velho. Num estreitamento da ladeira cruzaram-se com eles as mulheres que levavam a enlouquecida. Monge peregrino! exclamou a desditosa, subitamente agitada por aquela apario A minha filha... Sabe?... Morreu de fome!... Monge, reze por ela! E, sacudindo as duas mulheres com febril energia, tentava aproximar-se do peregrino. Que isto, criaturas?! perguntou o jovem cavaleiro Que significam as palavras desta mal-aventurada? A tentar desprender-se das outras, a desditosa dobrara-se toda para a frente, de cabea baixa, mas, de repente, como se tivesse reconhecido a voz daquele homem fidalgo e essa voz a tivesse confrangido duramente, ergueu-se com uma face violenta e volveu de relance para ele o olhar turvo de lgrimas. Subitamente levou as mos ao rosto e caiu para trs nos braos das duas mulheres, dando um grito indefinvel. As mos, numa tremura, tinha-as espalmadas contra o rosto como se tivesse a preocupao de o esconder daquele jovem cavaleiro. Mas explicai-me, criaturas, que mulher esta, e porqu este seu desvario aflitivo?! interrogou com estranheza o juvenil companheiro do monge. Senhor cavaleiro, desculpai-a. Morreu-lhe a filha explicou umas das mulheres e a pobrezinha tresvariou! Pois que Deus, Senhor nosso, tenha piedade da sua dor e lhe d resignao disse humildemente o velho peregrino. Vejo que sois de pobre condio acrescentou o cavaleiro, metendo a mo na escarcela(*) Aqui tendes para ajudarem a pobre mulher.
[(*) Uma espcie de bolsa que se levava cintura. Muito usada nos sculos XIV e XV]
E estendeu a mo para uma das que a seguravam. Dava-lhe uma pequena moeda de ouro. Seja pelo amor de Deus! agradeceu a mulher e que a nossa Senhora vos d boa fortuna. E vo-la conceda tambm respondeu-lhe, seguindo para cima com o peregrino. Levai-me daqui pedia em voz baixa a endoidecida Depressa... No lhe mostreis... A pequena! No lhe digam que era minha filha! No! A ele nunca! Tenho vergonha! Tenho vergonha! E assim a levaram dali, com as mos cada vez mais cingidas ao rosto, como se uma grande vergonha a oprimisse tanto, que at aquela sua loucura de me a pudesse compreender e sentir!
CAPTULO II DRAMA ANTIGO
Em Santo Eli, o cavaleiro e o monge pararam em frente do porto de um velho palcio brasonado. Tio Mendo, ides ver que alvoroo far a minha querida me. Por mim ento, nem que fosse num sonho me poderia esperar! Tal como a mim me sucedeu no Porto, quando l fostes dar, ao fim de tantos anos de trabalhos. Tantos! Olha, faz amanh doze anos que eu me parti daqui com o corao despedaado e a alma cheia de luto. Todos julgavam que por l tinhas morrido! s vezes nem sequer pode morrer quem no quer fazer a Deus a ofensa de se matar. Histrias tristes e longas. Bate l e arranja modo para que a tua me no fique mais doente com esta surpresa da minha vinda. Nem ela conta comigo. Mas descansai, tio Mendo, que eu acautelarei o nosso aio e as criadas para que lhe no deem a notcia de repente. Bateu serenamente com a grande aldrava de bronze do porto. Os dois escudeiros tinham parado a uma dezena de passos. Teria sido melhor vir mais cedo disse o peregrino. Bem o queria eu, mas com as informaes que tive de dar ao Mestre e depois naquela demorada conversa com o Arcebispo, acerca das coisas do Norte, foi-se passando uma grande parte da noite. Podamos vir c de manh. Vs preciseis de repouso. De manh haver de ajudar na entrada das naus e gals, sabe Deus com que longos e arriscados trabalhos, e ficar-me-ia o remorso de estar em Lisboa por to demoradas horas sem vir ver a minha me. Dizes bem, Ruy. Tardam em abrir! Bato outra vez. Deu trs fortes marteladas e ento, poucos minutos passados, assomou ao postigo do porto a cara engelhada de um velho. Quem bate, e a que vindes? perguntou. Meu querido Gonalo, sou eu. Santa Maria! exclamou o velho. No te espantes tanto, homem de Deus, e vem depressa. A minha me como est? Um pouco melhor dos seus achaques, senhor meu. Louvores a Deus! Mas no faas rudo para que se sobressalte! O Gonalo Vasques abriu com penoso esforo a pesada porta de carvalho com chaparia de ferro. Santa noite, meu querido senhor saudou, muito dobrado. Boa noite, meu velho. Porque foste tu a vir abrir o porto? O jovem do porto est doente, e aos outros no h rudo que os acorde. Mas eu ainda no estou em mim, meu querido amo e senhor! A grande alegria que vai ter a senhora D. Dulce! Andava j raladinha de receios e de saudades por vs! Pois sim, meu velho, mas sem alvoroto haveis de ir acordar a sua aia, para que lhe d aviso da minha chegada e lhe diga que ao romper da alvorada irei beijar-lhe a mo. De olhos pasmados no peregrino, o Gonalo Vasques levantou de cima do banco antigo de cedro o lampio de aros de ferro e vidros corados, que ali pousara para abrir o porto, e indicou aos dois escudeiros os brandes metidos em argoles de bronze, na extrema do vestbulo, a um outro lado da larga escadaria. Vinde acend-los para acompanhardes o nosso amo. Cada um dos escudeiros trouxe uma tocha que acendeu um lampio. Entretanto, o velho Gonalo no tirava os olhos do peregrino, mirando-o de alto a baixo com uma grande expresso de espanto e de supersticiosa venerao. Como poderiam ter entrado na cidade, cercada por terra e mar, o jovem cavaleiro, seu amo, e aquele peregrino de longos cabelos e grandes barbas de neve?! E porque o trazia consigo seu amo Ruy de Vasconcelos? Era isto o que ele a si prprio perguntava, atnito. Mendo percebeu-lhe a estranheza e aproximou-se dele lentamente, depois de ter observado que ningum mais poderia ouvi-los, pois os escudeiros se tinham afastado. Nem podeis sonhar sequer, Gonalo Vasques disse-lhe baixo, com uma grande expresso de tristeza, pondo-lhe a mo no ombro, afetuosamente que velho este de tamanha grandeza para vs! Senhor, peregrino dos Santos Lugares me parece que sois, mas no me diz a memria que eu algum dia vos tivesse visto! Desde jovem, por largos anos, Gonalo Vasques. Em todos os dias e em cada hora me veis. Mas to mudado me trazem as mgoas e os trabalhos, que nem j me podeis conhecer e mais velho pareo do que sou! Pela voz me estais a lembrar algum, a quem muito queria e venerava e daqui fugiu infortunado, fidalgo e senhor com quem me criei! Mas engano certo ser dos meus ouvidos e do meu corao de velho! Passaram muitos anos, senhor, que ele se foi! Depois aqui se contou um dia que tinha morrido e houve luto nesta casa! Eu creio que os mortos no voltam. Quer Deus s vezes que alguns voltem. De uns sei eu que voltaram, Gonalo Vasques. Numa tremura de comoo, o septuagenrio ps nele um olhar investigador, cheio de enternecido interesse. Pelo tanto que os ficaram a chorar e pela tamanha saudade que deixaram, de alguns sei eu que deviam de voltar, porm nunca mais ningum os viu, meu senhor! Pois ide avisar a aia da vossa ama e l em cima eu vos contarei depois o caso de um que voltou disse-lhe o peregrino, comovidamente. Em maior tremura, num alvoroo de dvida, o Gonalo Vasques tomou o lampio e volveu-lhe em voz rouqueiante: Vou, c vou, e ser como dissestes. Foi para a escada com as pernas a vergarem-se-lhe e o corao a bater-lhe. Doidamente como se quisesse fugir-lhe do peito. Pela voz parece-se um pouco! ia dizendo consigo Talvez o no tivesse levado a morte. J tem havido casos assim, consoante dizem os contos antigos. Estou em crer que ele! Meu conhecido desde novo, por muitos anos, que outro poderia ser? Entretanto, muito inclinado para o tio, Ruy dizia-lhe quase em segredo: J adivinhou quem sois, o pobre do Gonalo Vasques! Olhai como as pernas se lhe vergam a tremer por aquela escada acima.
* * *
Tio e sobrinho tinham entrado para a sala de armas, sala alterosa e vasta, de altas janelas de ogiva com vitrais flamantes. As paredes adornadas de soberbos trofus e panplias antigas. Poucos minutos volvidos, o Gonalo Vasques entrava. E ento? perguntou-lhe Ruy de Vasconcelos. A criaturinha ergueu-se toda cheia de pasmo e l foi a tremelicar para os aposentos de dormir da senhora D. Dulce. Muito bem. Agora escuta, Gonalo Vasques disse-lhe o peregrino, aproximando- se comovidamente Aquele infortunado que h muitos anos foi-se embora, dos mortos que voltam, e aqui o tens de braos abertos para ti, meu velho. Jesus da minha alma, que mo estava a adivinhar o corao! exclamou com uma neblina de lgrimas na voz e no olhar O meu querido senhor Mendo Rodrigues, to amigo e meu protetor, to grande exemplo de cavaleiros! E ainda maior exemplo de desventurados! Bendito Deus, ainda que tudo isto no se passasse de um sonho! Deixai que vos beije as mos! soluou, a dobrar os joelhos. Velho, de p, os teus cabelos brancos esto a par dos meus; peito a peito para que os nossos coraes se escutem, e nos meus braos, como h cinquenta e trs anos tu me erguias nos teus, amigo lealssimo dos mais devotados que eu tive. Abraaram-se comovidos. Senhor Ruy de Vasconcelos, meu honrado senhor e amo disse da porta Marta Vicente, a aia de D. Dulce. Saudaes, minha boa Marta. Bons olhos vos vejam e boa fortuna venha convosco, meu senhor! A minha me? Dela vos trago recado para a irdes ver sem demora aos seus aposentos de dormir. Senhor, est num alvoroo com a boa noticia que lhe dei! Pois ide l dizer-lhe que no tardo um credo em lhe ir receber a bno. Eu vou, meu senhor disse, olhando insistente, numa grande expresso de estranheza, para o velho peregrino. E assim que ela se retirou, Ruy disse para o tio: Ficai vs aqui, tio e meu senhor, se tal vos apraz. Fico, sim. Aqui me acompanhar o nosso Gonalo Vasques. Eu irei dispondo o corao da vossa irm para tamanha surpresa. Deste mal-aventurado morto que voltou interrompeu Mendo Rodrigues, sempre naquele profundo tom de tristeza que se tornara o timbre de mgoa imutvel da sua voz.
* * *
Gonalo Vasques, amigo, senta-te. Senhor, diante de vs! Neste escabelo (tipo de banco), ao p de mim. Puxou-o para si brandamente e sentou-se ao lado dele. No bastariam noites inteiras, grandes como noites de Dezembro, para eu te contar os longos anos que sofri. H de isto ir a pouco e pouco, se a vida me chegar para tanto. Agora o que mais importa falar desta pobre terra de Portugal, em tamanho perigo de se perder, Gonalo Vasques! E, a bem dizer, por causa da mesma criatura que a vs vos perdeu, meu senhor! A rainha combora!(concubina) rouquejou Mendo Rodrigues, erguendo-se de repente, as rugas mais cavadas no rosto, a palidez mais lgubre, os lbios numa contrao violenta, o olhar num sbito relampejar de cleras H seis meses me disseram em Inglaterra que, de dia para dia, se tornara mais vil essa loba real, a ladrar amores com um cachorro galego! Contava-se que, a poder de cimes, matara o marido, como a poder de ignomnias infamara o trono, vergonha e afronta de todas as rainhas, vergonha e afronta das piores esposas, ral degradante das nfimas bonejas! Senhor meu, acalmai-vos por quem sois! rogou-lhe. E pelo que sou respondeu-lhe, moderando-se Tens razo, Gonalo Vasques. Sete anos a arrastar-me na humildade destas vestes, a esmagar o corao contra o meu prprio passado, a pedir a Deus que me levasse ou de tudo me fizesse esquecido, e nem a morte me quis, nem o corao se esqueceu! No mereci que Deus me ouvisse, e ainda h tempestades de dio e de clera neste Mar Morto em que a minha alma naufragou! Em velho, procurarei ser calmo rouquejou, sentando-se outra vez ao lado dele Vai-me contando o que sabes desta nossa terra, Gonalo Vasques. Em Inglaterra s me souberam dizer umas coisas incompletas e mal compreendidas. Anteriormente, em Tunes, onde fui cativo e remador de gals, em Alexandria onde me traficaram como escravo e na Terra Santa onde vivi de esmolas, ningum sabia e ningum dizia nada desta nossa terra de Portugal! O que vs passastes, senhor Mendo Rodrigues! Contos longos de infernal amargura guardo-os para as longas e tormentosas noites de Inverno, se quiser Deus que eu l chegue. Depois daquela noite de desgraa em que me fui daqui, manchado de sangue e louco de desespero, aquela horrenda noite de Outubro de 1371, que nunca mais me saiu da alma, cheia de negrumes, laivada de sangue... Por causa daquela treda mulher de encantamentos, que foi rainha caluniosa dos Portugueses! No meu tempo era somente uma adltera de enfeitiadora juventude e perversa desvergonha, a quem el-rei doidamente se avassalara. Aquele senhor rei D. Fernando, a quem Deus perdoe os tamanhos males que trouxe nossa terra com tais desonestos amores, que at para ele foram de morte! E quem sabe ainda se tambm para Portugal! verdade, senhor, quem sabe?! Mas vai-me tu desafogadamente, como te lembrarem, as coisas de mais importncia, que se passaram aqui. De Inglaterra embarquei para o Porto, muito enfermo e em tal desfalecimento de nimo l cheguei, to devorado de febres, que mal falei do tempo ido com o meu sobrinho Ruy. Nem com ele desafogaria como contigo, meu velho e leal confidente. Guerras sei eu que umas poucas tem havido de runa e de vergonha nesta desgraada terra, desde aquela em que eu entrei como tu sabes. A do ano de 1369 disse Gonalo Vasques E s essa no foi por causa daquela mulher de to lindo rosto, que parecia uma santa, e de to negregado corao, que nem as feras queriam ser o que ela foi! Aquela de 69 anos no trouxe grandes males. Foi uma guerra por ambio de el-rei, que meteu Portugal na Liga dos reinos de Arago e de Navarra, contra o rei Henrique II de Castela, das Astrias, de Galiza e Leo. E nessa Liga entrava tambm o rei mouro de Granada, segundo ouvi! Um rei mouro! Entrava. Dessa no nos vieram grandes prejuzos, bem o sabes. Invadimos a Galiza e tommos a Corunha. verdade que tambm os Castelhanos entraram depois por Trs-os-Montes e pelo Minho e nos tomaram Bragana e Braga e cercaram Guimares. Mas por ali se ficaram, e s no ano seguinte se atreveram a cercar a nossa Cidade Rodrigo, com o mesmo nulo resultado com que os nossos lhe foram bloquear o rio Guadalquivir, para render Sevilha. As outras que se lhe seguiram foram cem vezes piores! Daquela s veio um grande mal, porque de alm Minho trouxe el-rei, como seu parcial, a esse co Galego que se chamava Joo Fernandes Andeiro. Que foi a sua e a nossa vergonha por aqueles amores de infmia... Com a loba real de cabelos fulvos e olhai enfeitiador, que era Leonor Teles. Quando eu parti, estava el-rei j com a inteno de quebrar o ajuste do seu casamento com a infanta de Castela, pois j o tinha avassalado a formosa esposa de Joo Loureno da Cunha (*).
[(*) Tinha casado com D. Leonor Teles em 1368.]
Dali veio ento a causa de todas as guerras que nos tm afligido! El-rei queria fora casar com ela, sem lhe importar que fosse casada e tivesse o marido vivo. O povo soube do desvario e amotinou-se. Foi ento que el-rei fugiu com ela e l se foi casar para os lados do Porto, em Lea do Bailio; pouco depois do vosso tamanho infortnio. Mulher de dois maridos! Mas os reis podem muito, e o Santo Padre l deu por desfeito o casamento com o outro, que fugiu para Castela. Ouvi dizer que por l andava na corte, com tal descaramento e escrnio da sua prpria afronta, que trazia na gorra, em guisa de plumas, duas pontas de ouro. Que abjeto homem e que pervertidos tempos estes nossos! O povo sentiu pelo rei a vergonha que ele no sentia! Alvorotou-se Lisboa; mas o que podia o pobre povo, se tantas pessoas da nobreza e tantos prelados se conformavam com aquela rainha sem vergonha? Os mais audazes foram esganados pelas justias de el-rei e, na cabea de todos eles, um tal Ferno Vasques, alfaiate que valia tanto como se fosse um destemido cavaleiro! A esse o vi eu a espernear na forca, depois de lhe terem decepado as mos. (*)
[(*) Os tumultos do povo de Lisboa, encorajados pelo alfaiate Ferno Vasques, foram os primeiros protestos de uma revoltas popular pelo pudor contra Leonor Teles.]
Ouvi em Inglaterra que o rei Henrique de Castela muito se ofendera pela quebra do ajuste de casamento com a infanta sua filha, que o senhor rei D. Fernando trocara por Leonor Teles... A Flor de Altura como por c lhe chamavam na corte, meu senhor. Flor de perdio para tantos homens e para esta terra que ela o foi! Flor que entontecia pelo muito que tinha de bela, e matava nos seus espinhos como se fossem lnguas venenosas de serpentes! Em Bristol me contaram que o rei Henrique de Castela declarou guerra ao nosso por aquela ofensa, e ento se aliou D. Fernando com o rei de Inglaterra e veio c o Conde de Cambridge. Dessa aliana de reis nada vos sei dizer, meu senhor; mas o que eu sei que a chegaram muitos ingleses, gente dura e feroz para combater e dizem que ainda pior para destruir e rapinar, se eram certas as queixas que deles fazia o povo. Anos terrveis de desgraa para a nossa terra! Nem a pior peste, nem o mais horroroso terramoto, nos podiam trazer mais runas, mais lgrimas, tamanha perda de vidas, tal medonha levada de sangue! E Gonalo Vasques levantou-se numa atitude de desespero. Vieram os Castelhanos pela Beira dentro, tomaram e destruram cidades, vilas, aldeias! Queimadas, em cinzas, tudo raso at chegarem a Coimbra! E foi nesse triste ano de 1372 que a loba real, como vs lhe chamais, teve uma filha, a infanta D. Beatriz, causa desta guerra de agora e, ao cabo de contas, ainda uma causa que vem da maldita me que tinha, Deus me perdoe! Eu sei. a esposa do rei D. Joo I de Castela. Esposa de doze anos, meu senhor; uma criana com quem os Castelhanos andam a jogar contra ns! A pobrezinha pode l entender esses enredos em que a meteram? Ainda ela andava no bero e j lhe andavam a tratar do casamento! Uns poucos de casamentos, que se iam ajustando e desmanchando enquanto a infantazinha ia crescendo! Nunca se tinha visto coisa assim! Depois de lhe terem arranjado dois noivos diferentes de Castela, chegaram a celebrar-lhe as bodas com o filho de um duque ingls, que a veio. E ela com nove anos! Depois, ainda outro noivo de Castela, porque o noivado com o Ingls desfez-se, e por fim, o ano passado, a foram levar fronteira, pobre menina de onze anos, para que fosse esposa do rei vivo de Castela. E para que lhe servisse de joguete poltico, est-se a perceber, para o rei castelhano reclamar a coroa, a bandeira, as tradies, o braso, o prprio nome desta nossa terra, com tanto amor e tamanho esforo erguida no Mundo! Mas d-me ideia de que foi a invaso de 1372 (*). Os Castelhanos tinham chegado a Coimbra, disseste. E de l vieram sobre Lisboa, que no tinha ento os muros e torres que se fizeram, trs anos depois. Isso j eu notei. As muralhas que eu conhecia faziam a cidade mais pequena e muito a confrangiam em volta do monte do Castelo. Pois a nova cerca quem a ergueu foram os braos do povo. Fazei ideia, senhor, que, h onze anos, os Castelhanos do rei Henrique puderam ter o seu arraial no alto de S. Francisco e a cerca nova vai entestar agora com o monte de Santa Catarina! O terror que foi aquele cerco de 73! Deitaram fogo s casas e assolaram tudo volta da cidade, aqueles excomungados de Castela! Mas, ao menos, no os deixaram entrar c dentro. No ano de 1381 houve outra invaso e a perda da nossa armada nos mares de Castela! Pudera! Ia a comanda-la um irmo da loba, para que todas as nossas desgraas proviessem dela! Logo no ano seguinte se fizeram as pazes com Castela e ainda foi pior que as fizessem! O rei castelhano tinha ficado vivo, e logo a combora real se lembrou de lhe dar a filha em casamento, para ficar mais segura no trono. E l foi levar-lha a Elvas. Aquela seria a herdeira da coroa dos nossos reis, e como tal se disse que lhe juraram lealdade os fidalgos de Portugal e Castela, para o caso de el-rei no ter filho varo legtimo que lha herdasse. No tinha? Teve um... Tinha nascido no pao, no ano anterior. Era filho varo da rainha D. Leonor Teles. Percebo. Contou-se que el-rei o tinha esganado nascena! Deus me perdoe se assim no foi! Havia de ter sido, Gonalo Vasques. O msero rei devia andar ralado de cimes, cheio de infernais desesperos aquele seu corao cobarde. Meio morto e de dela escravo que ele andava, meu senhor! Quem reinava era ela, e a quem tinha amor era o Galego Joo Fernandes Andeiro, feito Conde de Ourm, por graa de el-rei. Misria de rei! Podia fazer da coroa a insgnia de escrnio que Joo Loureno fizera da gorra! Nas suas horas de perfdia, a combora arrancar- lhe-ia dos ombros o manto do pai, o rei justiceiro, do av, o bravo do Salado, para lho transmudar em almadraque do conde Galego! Cobarde para ser rei, cobarde de mais at para ser homem! Viu algum que fosse rebater os invasores de Castela frente da sua hoste, como os reis de quem provinha? Ningum, senhor! Na guerra de 73 meteu-se em Santarm, todo perdido de amores, pela sua enfeitiadora, e no houve splicas que o tirassem de l! Lisboa e o Reino que chorassem os seus males e se defendessem como pudessem. At se conta que a Rainha se regozijava com as tamanhas desventuras que Lisboa estava a sofrer! E porque essa inaudita perversidade?! Porque Lisboa tivera vergonha pelo rei e fiz uma revolta contra aquele casamento. E o poltro a tudo se dobrava! Tinha dentro em si um inferno de zelos, sentia-se enterrar numa sepultura de lama, e s a coragem lhe chegou para estrangular uma criana! Fosse como qualquer homem honroso, e tinha apunhalado a combora mesmo nos degraus do trono. Tal como o irmo bastardo, o senhor infante D. Joo, matou a irm da loba. Maria Teles! Mas essa, menos linda que a irm, era honesta como ela nunca foi! Senhor, pois por causa da irm foi que o marido lhe deu morte cruel e traioeira. A loba receava que D. Maria, casada com o bastardo de um rei, viesse ainda a fazer-lhe sombra, e levantou-lhe a calnia de esposa infiel. Para desse modo a irmanar consigo. Armou-lhe a intriga, teve quem fosse meter a calnia nos ouvidos do marido de D. Maria Teles, e D. Joo l foi a Coimbra mat-la como um animal! Ouvi que lhe retalhara a golpes de adaga aquele seu corpo de neve! Tempos torpes estes nossos! Da morte do Conde Andeiro soube eu na cidade de Londres. Tinha de ser, meu senhor. Aquilo era vergonha de fazer corar um judeu! E a cadela coroada cada vez com menos vergonha! No seria injria nenhuma se lhe prendessem na coroa o vu aafroado daquelas que no podem viver entre gente honesta (*).
[(*) Era o vu que naquele tempo tinham obrigao de usar as mulheres perdidas, para que no as confundissem com as outras.]
O Mestre de Avis matou o Galego com um golpe de adaga. Foi o que eu ouvi em Inglaterra e depois no Porto. Deu-lhe o golpe depois de o ter levado para o vo de uma janela do pao. Mas quem acabou de matar o Andeiro foi um fidalgo de nome Ruy Pereira, homem de nimo destemido. Conheo-o. Vem na armada do Porto. Foi a 6 de Dezembro do ano passado que o mataram. El-rei D. Fernando tinha falecido a 22 de Outubro, e a 22 de Novembro, tinham sido as suas exquias. Boa memria tm os teus setenta e quatro anos, Gonalo Vasques! Senhor, o corao ajudou-a a no esquecer estas datas, que lembram desgraas da nossa pobre terra de Portugal! A morte do msero rei ps o povo em grande mortificao. Logo se percebia que o rei castelhano havia de vir pela herana da coroa. Nem ele casou para outro fim com aquela infanta de onze anos. E com a coroa o Reino. O povo bem sabia que dos fidalgos havia alguns do lado da rainha combora e muitos do lado da infantazinha, rainha de Castela. A herana maior era a de Portugal para os Portugueses. A maior e a nica legtima herana. Essa, meu senhor, s teria poucos fidalgos que a defendessem, embora alguns valessem por muitos. Ai de Portugal, se no tivesse por si a alma e o brao do povo! O Mestre matou o Andeiro, mas quem fez a revoluo foi o povo. Aqui em Lisboa e no Porto. As duas melhores lanas que tem Portugal so a do Mestre e a de um jovem cavaleiro que l anda a lutar pelas terras do Alentejo e j venceu uma batalha aos Castelhanos. Um bastardo do Prior da Ordem dos Hospitaleiros, um rapaz de assombroso valor, Nuno lvares Pereira. Senhor, esse mesmo . Fala-se dele em Inglaterra, e muito hoje a ele se referiu o teu amo Ruy. Vale esse mais, todos o dizem, que trs dobros dos outros que so pela rainha criana, esposa do rei castelhano. Senhor Mendo Rodrigues, perdoai- me o desafogo, mas at esses dois, o Mestre e Nuno lvares, so como se fossem do povo, e o Mestre do povo descende tambm. O Mestre por ser filho de Teresa Loureno; bem sei. E Nuno lvares, bastardo como ele, porque a sua me Iria Gonalves, ao que me contaram, se no bem da gente humilde, muito mais est chegada ao povo que ilustre nobreza destes reinos. Iria Gonalves foi cuvilheira(*) da senhora infanta, rainha de Castela, ainda esta era pequenina.
[(*) Cuvilheira tinha ali o significado de camareira-menor do pao. Na aceo geral, o termo indicava uma criada grave de casa nobre. O termo mais tarde passou a designar a mulher intermediria de amores ilcitos ou dada a alcovitices.]
Senhor, perdoai! Dais-me confiana de amigo e eu falo-vos com o corao nas mos. Regala-me ver que os da minha semelhana tambm servem para opor os embargos do seu sangue a essa herana, que seria a morte de Portugal. Dizes bem, Gonalo Vasques. Honrado esse teu orgulho, meu velho! volveu-lhe o fidalgo, abraando aquele septuagenrio, que o apertava a si numa tremura de comoo.
* * *
Mendo! Meu desventurado irmo! dissera da porta da sala uma dama de singular palidez. E foi para o peregrino de braos abertos, o peito num arquejar violento, como se o agitassem ondas de soluos. Dulce! rouquejou Mendo, recebendo-a nos braos Minha irm! disse, beijando-a, a tremer, os olhos afogueados em lgrimas Aqui tens o espantoso desgraado que supunhas morto. Ouviu-me Nossa Senhora, meu querido Mendo! O meu corao pedia- lhe por ti, mesmo quando todos te davam por morto. Eu no podia desmentir o boato, mas olha que trazia comigo uma voz a dizer-me bem que podia Nossa Senhora fazer-me o milagre de trazer-te. E ouviu-me e trouxe-te, bendita seja a sua infinita misericrdia! Merecias tu que te ouvisse; eu no, que tantas vezes, sem remdio, lhe pedi a morte. Que envelhecido vens, meu pobre irmo! Mas eu j sei o muito que padeceste. O Ruy contou-me tudo. O pouqussimo que eu tive ocasio de resumir-lhe, minha Dulce. Mas voltaste, mas tenho-te aqui. Bendita noite! E sentou-se no escabelo de espalda, extenuada, a respirar a custo. Senta-te aqui ao p de mim. Eu por qualquer coisa me afadigo. Aqui, sim? Contaram-me que tens estado enferma, que tens padecido muito disse-lhe o irmo afetuosamente, sentando-se ao p dela. O mal maior do corao, assim como se muitos punhais o tivessem ferido e ficassem cravados nele, para que nunca mais as feridas fechassem. Cansou, respirava oprimida. Eu sei, Dulce. Por mim tambm, pela minha desgraa, e pelo meu crime, a dor, que veio agravar a tua viuvez. A que eu te causei, pior ainda, porque foi tambm de vergonha. No, no! No se fala agora dessas coisas mortificadoras. Sim, tranquiliza-te. Voltaste, temos-te aqui; eis o milagre consolador. Me e senhora disse-lhe Ruy, que estivera a falar baixo com Gonalo Vasques. Diz. Vai levando-se a madrugada e o meu tio e senhor h de precisar de repouso. Ah! Certamente confirmou Dulce. No te preocupes por mim. Tivemo-lo no Porto sempre a arder em febre, e em toda a viagem quase no pde levantar cabea! disse Ruy para a me. Senti alma nova quando avistei a serra de Sintra; enrijei com os ares de Lisboa. Me, chorou como uma criana quando a terra se avistou! Saudades de doze anos. Aqui nasci, aqui me criei, e s daqui me levou um vento louco de desgraa. J que a morte me no queria para si em terras estranhas, aqui a viria esperar, nesta linda terra, qual tanto queria e quero, mal afortunada terra, minha segunda me, de tanta desventura como eu! Mendo, e quem sabe ainda para que maiores infortnios?! disse, relanceando um olhar de amargura para o filho Se Deus a desamparar e os bons homens no bastarem para lhe acudir! Ouviram-se os sinos prximos. J se ouve o toque das matinas! notou Ruy Uma cidade alvoroada madruga mais cedo! Foi a uma das janelas, destrancou-lhe as portas e entreabriu um pouco a vidraa, de cores vivas e pinturas de batalhas, por maneira a evitar que a aragem fresca da madrugada pudesse fazer mal me. Sero trs horas, se forem. Ainda luar como de dia! Anda o povo impaciente: Est a tocar o sino grande da S. Fechou a janela. D. Dulce erguera-se, e todos de p, de mos postas, rezaram baixo o av maria matinal. Ruy foi beijar a mo me. Filho, Nossa Senhora esteja contigo disse, dando-lhe a bno e beijando-lhe a face carinhosamente. E convosco, me e senhora minha. Tio, a vossa bno pediu-lhe, beijando-lhe a mo. Que o Deus dos oprimidos e da suprema justia te ampare e seja pela sua glria, cavaleiro fidalgo, que tanto esforo deve ao teu nome e tanto tens de pagar tua terra pelo teu foro de homem leal e para resgate das tamanhas desgraas que outros causaram. Abenoou-o com uma grande solenidade religiosa e depois abraou-o. Ruy, eu sei que tens sido dos mais esforados como s dos mais jovens entre quantos so a derradeira esperana de Portugal, homens de prole (*) ou homens da plebe, que de uns e outros, da alma e do sangue de todos, carece agora Portugal. Bem hajas, cavaleiro. Bendita seja a tua espada; bendito seja o teu sangue!
[(*) Prole, ou simplesmente prol, como os antigos escreviam, designando ascendncia nobre.]
Numa comoo profunda, Ruy tomou-lhe as mos febrilmente e beijou-lhas. Ama e senhora minha disse Gonalo Vasques para D. Dulce, dobrando-se a tremer glorioso dia seja este que vai comear, para todos os vossos, para todos os nossos. Deus vos escute, Gonalo Vasques. Apareceu porta um escudeiro. Senhor cavaleiro disse curvando-se. Que me quereis? Chegou recado do Mestre para lhe irdes falar ao pao de Apar S. Martinho, antes que rompa a manh. Em breve estarei com sua senhoria. Quem trouxe o recado? O prprio Juiz do Povo. Ento o meu afilhado Afonso Eanes disse D. Dulce E no o mandaram entrar?! disse para o escudeiro. Senhora, ficou espera de resposta na sala baixa do recebimento. Pois que suba. Ruy, vai tu l busc-lo. Da melhor vontade, me e senhora minha. E saiu com o escudeiro. Quem vem a ser esse Afonso Eanes? perguntou Mendo. Um honrado tanoeiro, de quem certamente j te esqueceste. Aqui veio muitas vezes, e dois anos depois de sares do reino casou-se e fui eu madrinha da noiva, uma honesta rapariga que se criara em casa da nossa tia D. rsula, que Deus tenha consigo. No me recordo. ele ento o Juiz do Povo? . E o mais que ele tem sido dizei-o vs, Gonalo Vasques. Homem de espada, aquele mestre tanoeiro, homem para saber falar ao Povo e ir adiante dele! informou o velho com o seu adorvel desvanecimento de plebeu Quando foi a reunio do povo e de alguns fidalgos no alpendre de S. Domingos, para se decidir se o senhor Mestre de Avis havia de ser ou no nomeado Regedor e Defensor do Reino, isto em Dezembro do ano passado, alguns houve que lhes puseram dvidas; mas Afonso Eanes falou-lhes claro e forte, de mo na sua espada de mesteiral, e venceu o que ele disse e quis, e o Mestre foi nomeado. Desgostoso pelos poucos fidalgos que estavam com ele e pelos fracos meios que tinham para defender Lisboa, o Mestre chegou a querer ir para Inglaterra, ou fingiu que tal era o seu intento; mas Afonso Eanes tomou-lhe as rdeas do cavalo e disse- lhe resoluto que tal no fazia, porque o povo no queria ser de Castela e s ele devia ser o guia e o chefe do povo. Aquele bem o Condestvel do povo.
[(*)Condestvel era um ttulo nobre. O Condestvel de um reino funcionava como o seu guardio pois era dado o comando das foras armadas e atuava como o brao direito do rei.]
Entrai, mestre Afonso Eanes disse da porta Ruy de Vasconcelos. Santa madrugada disse o Juiz do Povo, entrando enleado, ele que nas praas, frente das turbas, ou nos alpendres de S. Domingos, falando sua gente e aos nobres, era homem de resoluo desenvolta e sem papas na lngua.
Foi direito a D. Dulce e saudou-a, dobrando-se, a ponteira da sua larga espada a arranhar o ladrilho da sala. Madrinha e senhora da minha maior venerao! disse-lhe. Muito me apraz ver-vos aqui, honrado Afonso Eanes. Vossa mulher e filha, esto bem? Louvores a Deus, bem, senhora minha. Trazeis-me ento recado de urgncia para o meu filho? O Mestre quer ouvir o vosso filho a respeito de mais umas coisas da armada que veio do Porto. Haver luta? Senhora, talvez daqui a poucas horas. Deus seja por ns! murmurou D. Dulce, num confrangimento do corao. Senhor Afonso Eanes, vou pr a cota e os braais. Ser demora de instantes, e aqui voltarei depressa para ir falar ao Mestre. Saiu. Mendo Rodrigues falava baixo com Gonalo Vasques ao p de um grande trofu de armas, que tinham sido glorificadas na batalha do Salado (*).
[(*) Batalha travada nas margens do Rio Salado, entre a Penha del Ciervo e Tarifa nos fins de Outubro de 1340. O rei de Castela pedira a el-rei D. Afonso IV de Portugal, seu sogro, que o fosse auxiliar contra o poder formidvel do rmarroquino, Abul-Hassan, que viera Espanha, com um exrcito enorme, e tinha por aliado o poderoso rei mouro de Granada, Aben-Hamed-Jusuf. O rei de Portugal entrou em Castela com o seu punhado de portugueses e naquela colossal batalha, contra quatrocentos e quarenta mil mouros da frica e da Espanha, foi D. Afonso IV que desbaratou o rei de Granada, antes mesmo que o monarca de Castela houvesse vencido o de Marrocos. Foi uma das maiores batalhas da Idade Mdia.]
Afilhado dizia D. Dulce a meia voz para o famoso caudilho da plebe o meu dever de mulher Portuguesa, devoo e dever, no me consente mgoas e receios diante daquele filho, que toda a minha vida; pertence Nao o seu brao e o seu sangue; mas o meu pobre corao de me todo mortifica-se em temores de morte, cada vez que esse jovem temerrio se afasta de mim! Senhora, que remdio! Matar-nos-iam Portugal, se j no houvesse quem por ele desse a vida! Eu sei, afilhado. Esse o dever, maior em mim do que em outras mes, a quem no couberam os encargos de famlia que eu tenho. O av de Ruy morreu no Salado; o pai, bem o sabeis, h trs anos o mataram os Castelhanos na desastrosa batalha naval de Saltes. Mas os meus receios de me nunca diante dele os disse. Andam comigo emudecidos. Quando daqui saiu armada para socorrer o Porto e voltar de l mais forte de gente e de navios, Ruy ofereceu-se para ir nela, como tambm sabeis, no intuito de trazer de l a gente armada da nossa casa e terras de Riba-Douro. Muito louvei o fidalgo- cavaleiro por tal resoluo, mas Deus me livre que ele saiba as muitas lgrimas que pela sua causa chorei. Madrinha e senhora, como no haveis vs de proceder assim pelo vosso ilustre nome e pelo vosso sangue nobre e leal, se at as mes sem apelidos, esfarrapadas da arraia-mida,(*) tm feito o sacrifcio dos seus filhos nesta contenda contra quem nos quer levar a coroa que era dos nossos reis e a bandeira que de ns todos? Senhora, algumas h que tm perdido todos os seus filhos e vo com os filhos das outras para os muros e torres em guisa de peonagem, para se baterem com os de Castela!
[(*) Arraia-mida uma expresso ou um calo para designar a plebe, isto , a povo comum sem representatividade.]
Podem faz-lo. Eu sei, senhora minha. Nas suas condies, os trabalhos endureceram- lhe o nimo. Ferro que a m sorte malhou a fogo, tomou a rijeza do ao. Parece que se lhes mudam em sangue as lgrimas que tinham o direito de chorar! H trs semanas, senhora minha, morreu ao p de mim, s Portas de Santa Catarina, com o corao trespassado por uma lana castelhana, uma pobre me coberta de luto. No comeo do cerco mataram-lhe o marido; dois filhos morreram-lhe um ms depois a defender a torre de lvaro Pais! Andava ralada de mgoas, roda de fome, e ainda teve nimo para ir combater! Vs, senhora, fazeis sacrifcio diferente; mas a verdade que o fazeis em proveito da nossa causa, ocultando do vosso filho choros e receios que podiam quebrar-lhe o nimo, e ele dos mais valorosos e dos que mais valem entre quantos ficaram leais a Portugal. Muito dado a proezas e sonhos de cavalarias novelescas. Olhai o seu louco desafio ao Condestvel de Castela, muito empenho em imitar o jovem Nuno lvares, e aqui tendes porque eu sinto receios maiores do que outras mes. Mestre Afonso Eanes, podemos sair disse o jovem cavaleiro, entrando de bacinete (*) emplumado, cota e braais.
[(*) O bacinete era a parte da armadura que defendia a cabea. Viterbo no seu Elucidrio chama-lhe morrio ou chapu de ferro. Podia ser singelo, sem viseira ou cara, ou de camal, que era a pea destinada a defender a boca, os queixos e a garganta.]
No trazia armadura completa porque s era possvel o combate a p. Na cidade tinham morrido de fome, tinham sido abandonados voracidade dos mendigos, ou posto fora por falta de raes, quase todos os cavalos de luta existentes no princpio do cerco. Lanados para fora dos muros quase todos, logo depois de terem expulsado como bocas inteis os judeus e as aventureiras de vu aafroado. Tendes-me vossa disposio, senhor Ruy de Vasconcelos. Me e senhora minha disse, aproximando-se dela para se despedir. D. Dulce levantou-se numa tremura, que inutilmente tentava disfarar. Afogueara-se-lhe levemente o rosto, imensamente plido. Filho, que Deus te abenoe como eu, e que seja pela glria do teu nome e da nossa terra a minha bno disse, dando-lhe a mo a beijar. De sbito se ouviu o som distante dos sinos tocando a rebate; D. Dulce fez-se lvida e sentou-se com um grande desfalecimento de nimo. Gonalo Vasques abriu as portas da janela e levantou a cortina. Uma lufada de ar frio da madrugada apagou umas tochas, que ardiam cingidas em argolas de ferro, e encheu a sala com a repercusso confusa das vozes do povo, do tropel da peonagem, de centenas de timbres dos sinos das igrejas e dos sinos de alarme das setenta e sete torres que havia nas muralhas da cidade. Torva madrugada! exclamou, agoirento, o velho aio, num relance de olhos para o cu escuramente nublado, a contrastar agora com a noite luarenta e limpa daquele domingo que acabara h apenas trs horas. Senhora, no vos sobressalteis dizia o tanoeiro Isto apenas o alarme para pr toda a gente em armas e chamar aos muros e torres da cidade uma parte da peonagem. Convm entreter assim os sitiadores de modo a persuadi-los que vamos fazer-lhe uma sortida. Entretanto iro-se dispondo na Ribeira as foras que tm de ajudar a entrada dos nossos navios. Vai passando o tempo, mestre Afonso Eanes! veio lembrar-lhe Ruy com impacincia. A armada no comear a entrar seno na mar da hora de tera. Senhora, Deus fique convosco disse, despedindo-se. E seja por ns todos. Me e senhora, adeus! Filho, at quando puderes voltar. Uma palavra pediu o peregrino, tomando o sobrinho de parte Mantm o meu segredo disse-lhe baixo Para o Mestre e para todos serei o que j se disse que era. Um velho cavaleiro de Riba-Douro, que andou pelo Mundo em cavalarias andantes e no fim fez voto de peregrinar pelos Lugares Santos, ocultando de todos o seu nome. Aqui recomendei que no o divulguem. Tio e senhor, ficai descansado. Saram. D. Dulce dobrou-se no escabelo, a soluar. Magotes de homens armados passavam na rua vociferando cleras contra os sitiadores. Atrs uma multido de mulheres cantando esta rude trova de desafio aos traidores e aos Castelhanos:
Esta es Lisboa presada, Miradla e deijadla, Se quizeredes carnero Se quizeredes cabrito Qual dieron a el Obispo.
Assim de escrnio e de ameaa para os de Castela e para os de c, era esta a cano dileta da plebe, desde os dias da revolta em que o Conde Andeiro, o vadio galego, cara assassinado no pao do Limoeiro, e o bispo de Lisboa, um Castelhano, fora atirado de uma torre da S para o lajedo do adro. O Andeiro fora golpeado a poucos passos da rainha amante, e o bispo, enrodilhado na sua batina roxa, viera cair aos ps da multido enfurecida, que lhe descarnou s chuadas os ossos esmigalhados e, em uivos de dio, o levou de rastos, dilacerado, pelas ruas lamacentas da cidade, como se fosse um co morto! Tm destas alucinaes medonhas e destas ferocidades odientas as revoltas dos povos que mais se humilharam e mais sofreram! So as iniquidades monstruosas da sua dor e das suas vergonhas.
CAPTULO III O FILHO DE D. DULCE
Ainda no tinha clareado bem a manh, porque o sol nascente mal se percebia atravs do toldo, escuro das nuvens, quando o Mestre saiu do pao de Apar S. Martinho, com o seu pequeno estado-maior de fidalgos, o seu conselho de estado de mecnicos da Casa dos Vinte e Quatro, um squito de pajens e escudeiros e uma tumultuosa comitiva de mulheres e farroupilhas da plebe, que desde alta madrugada o esperavam nas imediaes daquela grande e sombria edificao real. A um lado do Mestre, j armado para combater, o Arcebispo de Braga, de bacinete como um cavaleiro, mas em vez de plumas, uma pequenina imagem dourada da Virgem, arns sob a roqueta, o cinturo da espada a cingir-lhe a batina; do outro lado, de gorro negro e beca de seda aleonada, o chanceler Joo das Regras. Poucos passos atrs, um clrigo minorista com o escudo do arcebispo campeador, e ao lado dele o padre Joo de Azambuja, amigo ntimo e companheiro de infncia do Mestre; meia dzia de homens de prole, com os seus pajens e escudeiros, e com eles Ruy de Vasconcelos. Os vereadores da cmara com a sua bandeira nova, em que a cruz vermelha da Ordem de Cristo abraava os castelos antigos do braso nacional, o Juiz do Povo e os vinte e quatro deputados dos homens de ofcio. Depois, a turbamulta. Iam S ouvir missa; depois seguiriam para a Ribeira, onde o arcebispo j tinha tudo preparado para o embarque da gente de armas que havia de ir dar a mo aos das naus e gals surtas em Cascais. No adro do templo estava o anadel-mor dos besteiros com um troo deles como se fosse um guarda de honra dos nossos tempos. Na frente com as suas vestes flamantes e os seus bacinetes de altas plumas vermelhas, os trombeteiros com as grandes trompas de prata, as longas do tempo do rei Pedro I. Mal avistaram o Mestre e a bandeira da cidade, logo fizeram vibrar as trompas numa saudao triunfal, que os sinos das torres acompanharam em frenticos repiques. Foi breve a missa. Enquanto descem Ribeira, metamos ns por entre os magotes de gente estremunhada e faminta que vai para as igrejas fazer preces ou corre aos muros e s torres para ajudar a defesa e dar entrada dos navios chegados do Porto. Tomemos o caminho do Castelo de S. Jorge para ver de alto, num relance de olhos, o panorama daquela linda Lisboa que muito crescera nos ltimos vinte anos a despeito de todas as suas desventuras. para ns um espetculo curioso, magnfico; havia de ter para os Portugueses daqueles tempos um aspeto comovedor, de carinhoso desvanecimento e de alanceados receios. Trezentos anos antes a Lissibona moura toda se aconchegava em pinha pelas encostas do monte da Alcova (onde hoje se ergue o Castelo de S. Jorge), em contacto com o seu grande rio apenas pelo bairro excntrico da Alfama. O monte da Graa e a colina onde foi edificada a igreja de S. Vicente ficavam nos arrabaldes da pequena cidade mourisca. O Rossio era um esteiro por onde as mars resfolgavam; o monte do Carmo um spero relevo dos terrenos convizinhos daquela cidadezita maometana. Volvidos dois sculos, a Lisboa portuguesa tinha uma cerca mais ampla, mas ainda no abrangia o Rossio nem S. Vicente, por muito cingida ao monte do Castelo; porm j se desafrontava dos lados do Tejo, para l da Porta da Alfofa e da Porta do Sol, at chegar praia, entre a Porta da Judiaria pelo nascente e a Porta do Mar pelo poente, muito vizinha da Ribeira Velha. A cidade tinha crescido admiravelmente; mas a cidade conquistada e agora ocupada por cristos, j no cabia no seu encerro de muralhas e saltara para fora delas, formando ncleos de povoao at ao moderno largo do Loreto e s vizinhanas do Corpo Santo pelo Oriente, e at alm de S. Vicente, nas convizinhas de Santa Apolnia, pelo Ocidente. Da ladeira do Castelo bracejara at ao Caracol da Graa e ao monte de Santana. Foram estes os arrabaldes vandalicamente assolados pelos Castelhanos em 1373, quando a tenda real do invasor podia erguer-se, a curta distncia do Rossio, no monte de S. Francisco. Agora, naquele ano de 1384, as muralhas novas, construdas nove anos antes, abrigavam quase todos aqueles ncleos de populao. O acampamento dos Castelhanos vinha a subir de Santos para os altos da moderna Estrela at Campolide e dali tomava para o alto do Andaluz e pela baixa da Corredoura ao monte da Graa, fechando o vale de Arroios, para trepar s encostas de Xabregas, a cavaleiro do Tejo. Se a manh no estivesse nublada e o sol rompesse em triunfais esplendores, que soberbo espetculo no seria aquele! Mesmo assim imponente, porque no havia negrumes no cu que de todo pudessem velar a exuberncia de luz de uma manh de Junho, pondo em tudo aquilo uma densa tristeza de sombras, nem o sol ia subindo to oprimido e afrontado de nuvens que, de um para outro momento, no lograsse esfarrap- las de arremesso, para que a sua querida cidade, de sculos remoada e sempre linda, lhe visse a face de ouro resplandecente e se no julgasse tambm ao desamparo daquele decorador, amorvel e omnipotente, de quanto ela tinha de belo, de antigo, de glorioso. Luz de apoteose a dar alma e voz s pedras santas das igrejas e s pedras musgosas das runas, luz vivificadora para fazer cantar numa aleluia de amores as fontes e as montanhas, luz evocadora para ressurgir as grandes figuras mortas, luz de sonho para um dia melhor em cada lar e para uma melhor ambio maior em cada povo. Viesse ela misericordiosamente naquele dia de atormentada crise, e todas as pobres mes enlutadas menos amarguradamente se resignariam, e talvez os famintos pudessem tambm sonhar dentro daquela cidade angustiada, sozinha agora a defender um nome, uma bandeira, a histria e o futuro de uma nacionalidade.
* * *
Vinha do oeste uma aragem viva e forte que fazia esvoaar doidamente, como se fossem grandes pssaros de flamante plumagem, todos os pendes erguidos nas setenta e sete torres da cidade, e mais as centenas deles de desvairadas cores e soberbos emblemas que tinha o longo acampamento castelhano, cidade branca de vinte e cinco mil homens, quase metade da outra dos sitiados. E pela amplido do Tejo, para os lados do Rasteio velho, as bandeiras e galhardetes das quarenta naus e catorze gals de D. Juan Fernandez de Tovar, almirante-mor de Castela. Avistava-se bem o pavilho da tenda real em Santos, percebiam-se os piques, as lanas, os pendes da gente castelhana que ocupava o pontal de Cacilhas, o monte e a povoao de Almada. Centenas de trombeteiros castelhanos atroavam os ares com os seus alardes de farroncaria. Na torre mais alta do Castelo, fidalgos e batalhadores invlidos, de cabea branca e arcaboio dobrado, curiosos inteis, mulheres e crianas de vrias condies sociais, esperam de olhos pasmados o lance gravssimo, que pode ser a salvao ou a perda irremedivel da cidade. Anjo bento, que tamanho poder eles tm! comentava doloridamente uma pobre mulher com um filhito ao colo. Pudera, no! disse-lhe do lado um velho de aspeto fidalgo, cavaleiro a quem tinham mutilado os dois braos naquela campanha da Galiza em que a hoste do rei Fernando tomou a Corunha Tudo aquilo para levarem a herana que ns no lhe queremos entregar. E com to avultada gente de guerra, a principal, a mais poderosa e soberba de todas as Espanhas; das duas Castelas, de Leo, das Astrias, da Galiza, da Navarra. At cavalaria de cavaleiros mouriscos de Andaluzia! E non diz vos mais cavaleiros franceses e homes darmes do Bearne e de Gasconha dos mille informou por detrs do mutilado, naquela sua lngua de trapos, um homem alto, vermelhao, que j entendia sofrivelmente a lngua portuguesa, mas no era capaz de falar seno naquela forma atrapalhada. Este novo interlocutor era o ingls micer Percivel, a quem o Mestre dera o encargo de tesoureiro, em substituio de D. Judas (Judah-Aben-Mosseh- Navarro) judeu rico e preponderante, que fora tesoureiro de el-rei D. Fernando e por ser um dos parciais da rainha D. Leonor Teles com ela fugira de Lisboa, logo s primeiras convulses da revoluo. Se aqueles negregados metem no fundo a tal armada do Porto, o que ser ento de ns!... disse a mulher que tinha a criancita ao colo. Iremos todos de arremetida contra eles; as prprias mulheres, as prprias crianas, at os velhos e mutilados como eu. Enquanto se forem entretendo a golpear os que no podem lutar, menor nmero de inimigos encontraro diante de si os outros dos nossos que esto capazes de combater disse-lhe o decepado com fria serenidade. Jesus, filho da minha alma! exclamou a pobre me num estarrecimento de nimo, apertando febrilmente o pequenito contra o peito. Antes morrer s lanadas para se acabar o cerco, do que ficar aqui a cair de fome e atroar os ares com lamrias. Mas se as tais naus que vierem do Porto c entrarem e trouxerem milho e trigo... Em tal no creio eu interrompeu o mutilado Viro cheias de gente de armas, que no chegar para escorraar daqui os de Castela. So mais bocas para a fome, e no ser maravilha que, depois de j no haver nem ervas, nem razes, nem bichos mortos para devorar, se tornem os Castelhanos os nossos carniceiros fornecedores e cada porta e cada torre das muralhas um talho para a cidade faminta. Senhor, no vos sei entender! volveu-lhe a mulher num confrangimento de suposies. Queria dizer-vos que ainda haver quem devore as carnes daqueles que os Castelhanos matarem. Tal no permita Deus e surdo seja o demo! acudiu a pobre mulher com um gesto de terror Meu senhor, fome tenho eu e mais o meu pequenito, pois s esta madrugada tivemos um caldo de folhas de vide, que nem os ces seriam capazes de beber, e olhai que nem com o tresdobro da fome seria capaz de tocar num pedao de carne dessa que dissestes! Credo, Senhor meu Deus, antes a morte! O Ingls entendeu e sorriu. Ratas alvitrou tem cidade milhones e daria comer gente mais dos meses. carne coelhas pequenas. V de retro! regougou uma velha a cuspinhar, enjoada At me d ganas de deitar os bofes pelas goelas fora! Vamos agora para outro grupo. Um velho charlato, mezinheiro e amador de astrologia, dizia coisas solenes aos seus ouvintes. Olhai as nuvens no cu a pintarem o que h de acontecer! e apontava um acastelado de nuvens de formas caprichosas, que o vento ia desfazendo ou englobando com diverso aspeto Vede bem ali, para os lados da barra. Aquela nuvem maior parece mesmo a nossa cidade com os seus amores, o seu castelo, as suas torres! E as outras, muito estendidas, mais esbranquiadas, so assim como um grande rio com aqueles farrapos a darem- se ares de naus vela. E a correrem, a correrem para c. Assim como se fossem os nossos navios a entrarem a barra. E de c aquela farraparia de nvoas a desfazer-se. So as naus de Castela! So as naus de Castela! O cu diz tudo; no cu que se l o destino dos homens e das naes, quando h quem saiba ler o que ele diz. E todos pasmados, num alvoroo de emoo, olhos cravados naquelas visualidades, a alma a voar-lhes para aquele sonho de astrlogo, que via a Lisboa nas nuvens, coisa de mais engenho do que ver Braga por um canudo. Este estrlico explicava a outra mulher, uma quarentona adoutorada Ser estrlico, criatura de Deus, ainda mais que ser clrigo! Ler nos astros e meter os olhos pelas nuvens, sempre maior prenda que entender livros e alanzoar latim. Efetivamente os recortes de uma grande nuvem pardacenta estavam dando, cada vez com mais completa iluso, a forma de um monte coroado por um castelo, tendo em volta, pela encosta, um relevo de edificaes de torres com ameias. Uma fachada de nublado mais claro, menos densa, a deixar transparecer uns tons azulados e um esmalte de luz, podia lembrar o mar ou um grande rio. Depois, sob a sugesto daquele farsista ou daquele visionrio, astrlogo amador, no maravilha que aos olhos pasmados da pobre gente ingnua tudo aquilo se lhes estivesse desenhando nitidamente e at uns flocos soltos do nublado se lhes afigurassem as velas das naus que entravam, das naus que se desfaziam. O sol a romper! clamaram de repente umas poucas de vozes em comovido alvoroo. Sobre aquela cidade e aquele mar de nuvens! acudiu logo o astrlogo Como um resplendor de glria! De sbito, mar e cidade desfizeram-se nos ares e por um minuto, espetaculosamente belo, apareceu desafogada a face resplandecente do sol. Ento, como nas visualidades de uma lenda, faiscaram fulgores de ouro fulvo em todos os arneses, nas choupas de todos os piques, nas ascumas de todas as lanas, sobre as muralhas, sobre as torres, pelas sinuosas linhas da cidade branca do acampamento. Tinham transparncias de cristal as espumas do Tejo, rutilaes de azul e prpura os vitrais dos templos e as altas janelas ogivais do pao da Alcova. Parece um milagre! exclamou uma mulher com os olhos cheios de deslumbramento e de lgrimas. Milagres da nossa Senhora! disse outra, lembrando uma imagem ento muito piedosamente querida em Lisboa. Olhai a vidraria de S. Vicente de Fora! Tambm ser por ns o santo mrtir! Parece que de sbito se acenderam l dentro todos os crios dos altares! Durou instantes apenas aquele divino resplendor. Veio logo de oeste uma lufada violenta, a empurrar contra o sol uma montanha enorme de nuvens de azulado negrume. O sol apagou-se e um toldo imenso de sombras desceu lugubremente sobre a cidade, sobre o mar, sobre os abarracamentos dos Castelhanos. Entrou nas almas da pobre gente aquela ditalada sombra, confrangendo-lhas. Parecia-lhes aquilo um agouro fnebre de desgraas. Revoaram ento pelos ares uns murmrios de amargurada estranheza. E logo outro sobressalto maior. Tocaram alarme os sinos das torres nas muralhas de Santo Agostinho e de S. Vicente de Fora. Os Castelhanos! gritou algum que estava daquele lado do Castelo que dava para os lados de S. Vicente Vo arremeter contra o Postigo do Arcebispo e contra as Portas de S. Vicente. Reparai naquela chusma dos seus cavaleiros e homens de peonagem! E mais l para cima! indicou outro, apontando a muralha e as portas do Largo da Graa. Ouvia-se o choro alto das mulheres. Algumas ajoelharam, de mos postas, rezando aflitivamente. J os sinos das igrejas davam tambm o sinal de rebate. Vibravam as trombetas como gritos selvticos de combate. M peste mate esses castelos e Deus os meta nas profundas do inferno! praguejou uma recadeira, engelhada e rubra, de braos no ar e punhos fechados contra a gente de Castela. Pe as tuas mozinhas, filho, e reza comigo para que a nossa Senhora nos acuda! soluava um mulher ainda nova com um pequenito ainda de joelhos ao p de si, olhos marejados postos nela, numa vaga expresso de pavor. Aqueles ces! bramiu o fidalgo mutilado Querem ver se nos tomam a cidade antes que a armada entre! Completo engano. Aquela investida era apenas um ardil para atrair as maiores foras dos sitiados quele lano das muralhas, to distante das obras defensivas da Ribeira, perturbando ou mesmo malogrando deste modo qualquer grande esforo dos lados do rio, em auxlio da esquadra que ia forar a entrada no Tejo. Compreendiam bem os Castelhanos que se no poderia tomar de arremetida uma cidade que, desde o princpio de Abril, havia mais de dois meses, com to valorosa tenacidade se tinha defendido. Mas o que eles tinham percebido tambm era que, na Ribeira, desde a vspera, se estavam preparando navios, certamente para irem auxiliar a entrada da esquadra vinda do Porto, atacando de revs as naus e gals de Castela.
* * *
Dois homens chegaram aodados s portas de S. Vicente. Um deles cavaleiro fidalgo ainda jovem, o outro, homem do povo com o ar resoluto de um campeador. O fidalgo era Ruy de Vasconcelos; o plebeu Afonso Eanes. Escaramuava-se j febrilmente nas muralhas e torres, e os virotes e as pedras esfuziavam nos ares. As bestas de torno despediam virotes grandes, quase como lanas, as catapultas arremessavam pedregulhos, tiros de pedra como ento se dizia, tiros que faziam estrondo. Mas a gritaria e a algazarra dos desafios e improprios de uma e outra parte, em portugus e castelhano, em muito excedia o rudo das armas. O Juiz do Povo foi direito ao anadel, comandante de uma quadrilha (peloto ou destacamento) de besteiros e pees de lanas e piques, ali de guarda aos nossos grossos portes chapeados da muralha de S. Vicente. Vai j bravia a luta, senhor anadel! Por ora mais de gritaria que de sangue. S ainda nos mataram cinco homens e temos ali na torre onze feridos. O Mestre manda que sustenteis bem este lano da muralha; mas no consintais que se juntem aqui mais homens que os precisos para a defensa. Aos que vierem das outras torres, mandai-os que voltem pelo mesmo caminho. Aos da chusma da cidade ordenai que vo ter com o Mestre Ribeira, pois l que mais se carece de gente para lutar. Olhai as chusmas que vm correndo para aqui disse-lhe o anadel, apontando uma multido de populaa armada que vinha subindo. De foices, de chuos, de machados, de espetos, a multido subia cantando:
Esta s Lisboa prezada Miradla e deijadla.
Afonso Eanes foi tomar-lhes o caminho. Gentes! gritou-lhes. Viva Afonso Eanes, o Juiz do Povo, o brao direito do Mestre! Viva! Viva! E que Deus o guarde! gritaram por aquelas ruazitas e veredas abaixo centenas de vozes. Escutai! Escutai! clamaram das primeiras filas, e a palavra foi revoando de boca em boca por ali abaixo. Vai ele falar, e o nosso corao que fala pela sua boca. Aqui se no precisa de mais gente para lutar disse o glorioso tanoeiro na sua voz dominadora. Mas os castelos querem entrar na cidade por estes lados! No querem tal replicou Afonso Eanes Olhai que fingimento deles para vos trazerem aqui enganados a uma luta, que no h de valer duas cascas de alho. Mas ento para qu, mestre Eanes? Para que o Mestre e o Arcebispo fiquem desamparados de gente na Ribeira, e se no possa dar ajuda aos navios que vieram do Porto. Ora a tendes a que vem toda essa farronca de arremetida por estes lados. Mas vs para aqui viestes e no estais com o Mestre na Ribeira! De l vim com ordens suas para que se no junte aqui quem aqui no preciso. Pois iremos j de carreira ter com o Mestre. Mas olhai que a batalha est mais bravia! alegou um, menos submisso Reparai: mais de vinte feridos que vm em braos, descendo daquele lano de muro! Deixai l os feridos. Ide ter com o Mestre! disse Afonso Eanes num tom enrgico de mando. Da face da torre que dava sobre as grandes portas debruou-se um homem de armas, gritando: Anadel! Os castelos esto a crescer na arremetida! So j para cima de quatro mil cavaleiros e peonagem. Andam em correrias de desafio os seus ginetes e mouriscos... Reforai as portas! Vede l, mestre Eanes! alegou em gritos o insubmisso E quereis ento ir daqui para a Ribeira?! Disto entendo eu mais do que vs, e o Mestre mais que ningum volveu-lhe asperamente, de olhar cravado nele Homens, sou eu o vosso juiz e o Mestre o nosso defensor; manda ele e quero eu que vades para a Ribeira! L esto navios que preciso guarnecer de gente para os levar contra as naus de Castela em auxlio das nossas, que ho de entrar ao encher da mar. Ide! Vamos, sim, mestre Afonso Eanes. Manda o Mestre. Quer o nosso juiz que vamos. E ele a modo de Condestrabre c da gente do povo. Vamos! Vamos! Vinde tambm, Afonso Eanes. Eu subo torre estava dizendo Ruy de Vasconcelos ao tanoeiro e de l observarei com que gente o inimigo est arremetendo. Pois sim... Mas esperai um instante. Vinde connosco insistiam alguns. Agora no devo respondeu o tanoeiro Tenho de levar informaes ao Mestre; mas l estarei convosco dentro em pouco. Ide. Viva o Mestre! Viva Afonso Eanes! S. Jorge e Portugal! Portugal s para os Portugueses! E com o tripum de todos esses ces gadelhudos de Castela se h de tecer uma corda que d volta cidade. Estrondearam gargalhadas com o chiste de farronca e toda a turbamulta comeou a descer, cantando. Vamos l ento disse o Juiz do Povo para Ruy de Vasconcelos. Subiram torre. Havia j muitos feridos. Formados, em hoste, os Castelhanos no seriam menos de cinco mil. Choviam os virotes e as pedras. Em carreiras vertiginosas, fantsticas, duzentos cavaleiros de Andaluzia, mouros convertidos e mouros cativos, volteavam como figuras de sonho por diante das muralhas, soltando gritos de desafio e de insulto para os sitiados. De um e outro lado, mulheres. Na linha dos postos inimigos, por detrs da hoste, grupos de mulheres, de trajos espaventosos, em cantares e bailados; eram as aventureiras do arraial castelhano, bonejas garridas de Espanha, que acompanhavam o exrcito e j andavam habituadas carniaria dos combates (*).
[(*) O Segundo Ferno Lopes, o acampamento dava ideia de uma cidade, com barracas de jogo, de perfumarias, e arruamentos de traficantes e de mulheres toleradas.]
De c, nas torres e nas muralhas, mulheres esfarrapadas, velhas e novas na mesma palidez amargurada de famintas, com arregaadas de pedras que arremessavam febrilmente contra os de Castela, no a cantarem as trovas sensuais das outras de Espanha, fartas de vinho e de viandas; mas entoando as grosseiras canes da revolta, numa rouquido de fraqueza e num timbre em que se percebiam vibraes de dor. Est visto que um ataque de fingimento disse Ruy para o Juiz do Povo Reparai. Daqui se distinguem bem. Naquela hoste que j numerosa vista da escassa gente de guerra que ns c temos, apenas dois: ou trs pendes da nobreza e um da ordem de Calatrava. O mais, peonagem para ir entretendo a escaramua com os virotes e a sua algazarra. Fora intento de el- rei de Castela dar investida formal por este lado, e certo veramos ali a flor da sua cavalaria da velha Castela, de Leo e Navarra com os campeadores aventureiros de Gasconha e do Bearne. Mas no nos enganamos. Isto no passa de algazarra para nos sobressaltar os nimos e dividir as foras. De repente, um grande rumor de vozes na torre e o rudo de muita gente que subia. Ruy e Afonso Eanes voltaram-se num movimento de estranheza. Haveria tornado a turbamulta que o Juiz do Povo mandara para a Ribeira? Seriam homens de armas dos outros lanos da muralha? Mas ento porque os deixara entrar o anadel, violando a ordem do Mestre? No era gente de armas, nem homens para combater, mas somente mulheres com chuas e abadas de pedras para atirar contra os Castelhanos. frente delas a tia Lourena, a velha regatona das Portas do Mar, com um longo forcado ao ombro. Fizeram-lhe uma ovao as outras mulheres que j estavam na torre, umas oito ou dez. Viva a tia Lourena! A marechala das mulheres! Santo dia, comadres, e boa gana nos d Deus contra aqueles ces gadelhudos (*).
[(*) Gadelhudos por trazerem os cabelos compridos em contraste com os Portugueses.]
E acercando-se das ameias com a mo na testa em guisa de pala: O qu! S aquilo! Oh, criaturas de Deus, aqueles esbarrondamos ns pedrada, e podem mandar os homens embora. Que vo ter com o Mestre. Apesar da chuva de virotes que vinha das primeiras Filas dos Castelhanos e dos gemidos de dois besteiros que tinham cado varados, os homens de armas riam daquele dizer farronqueiro da tia Lourena. o que eu vos digo, mulheres. Venho da Ribeira com a minha hoste de saias e de l me fui por me parecer que isto era coisa pior e porque o Mestre est na teima de no querer embarcar mulheres. Olhai, olhai! Aqueles torriscados mourisca, a fazerem-nos gatimanhos e aos corropios, aqui mesmo beira do muro! V, mulheres! Quem tiver bofes e pulso que lhe d uma surriada de calhaus. para j gritou, atirando o forcado ao cho Por S. Jorge e Portugal, ces de Mafoma, ces de Castela, ou do demo que vos leve! E amparando com a mo esquerda o seu grosso avental de estopa, mudado em bolsa de projteis, a intrpida fundibulria despedia enormes calhaus com rijo pulso e mo certeira, numa fria de vertigem. Seguiram-lhe as outras o exemplo e uma torrente de pedras desabou sobre os ginetes mourisca, a voltearem provocadores, quase rentes da muralha. At os besteiros, de arco retesado, se ficaram a olhar para aquilo com um sorriso de regalo. V, mulheres bradava a tia Lourena, encostando-se mais s ameias v, que lhes havemos de dar fim mouriscada das cavalhadas. A dois j eu britei o toitio. Ps! Aquele fica empanzinado para todos os dias da sua vida. Os dois ginetes levantaram uma algazarra medonha de insultos, mas o caso era que j iam curveteando para mais longe das muralhas. Dez ou doze tinham baldeado dos cavalos abaixo e um deles era o prprio chefe. Avanou ento mais para os muros a peonagem com os besteiros na frente, como os atiradores modernos. E berravam chufas e afrontas para as mulheres. Ah! Sim! V, mulheres, por cada palavro castelhano um calhau portugus! Rameronas chamorras! (*) gritaram os de l.
[(*) Chamorros era a alcunha desprezadora que os Castelhanos tinham posto aos Portugueses por eles usarem ento os cabelos tosquiados.]
A, vaganaus gadelhudos. M peste vos mate, que nem os lobos vos queiram roer. V vivo, para cima deles! A vo as pedras da coroa que vindes buscar. Veio ento sobre os muros uma chuva de virotes. Cantai, raparigas! gritou a tia Lourena a incitar-lhes o nimo. Acautelai-vos, cobride-vos com as ameias recomendou-lhes Afonso Eanes, expondo-se mais ainda. Besteiros, disparai agora os virotes mandou Ruy de Vasconcelos, tirando do argolo da torre e agitando no ar um pendo com os castelos do braso portugus e a cruz da Ordem de Cristo. Pois que no cantais, cantarei eu na minha voz de cnego velho:
Esta s Lisboa prezada Miradla e deijadla Se quizeredes carnero, Qual diron al Andero.
Mas de repente a regatona heroica truncou a cano revolucionria e deu uns passos atrs. Tinha empalidecido aquele rosto vermelho-escuro. Algum... Que me... Acuda! rouquejou No desanimeis. Amparou-a nos braos um homem de armas. Cravaram-lhe um virote no peito! disse um besteiro. Est ferida a tia Lourena! gritou uma mulher. E foi logo um coro de lstimas do mulherio. Mais pedras... Sobre eles regougou a regatona, de olhar amortecido, o saio e o avental manchados de sangue. Afonso Eanes correu para ela. Junto das ameias, Ruy incitava os besteiros a uma intensidade maior de esforo, para que os tiros fossem mais repetidos e mais certeiros. Ele prprio tomara a besta das mos de um ferido e dava exemplo aos outros. ferida grave! disse consigo o Juiz do Povo. E logo para dois homens de armas: preciso lev-la daqui para o hospital. S me custa... disse em voz sumida a tia Lourena. Dizei o qu? Tenho em casa... Uma rapariga... Endoidecida... E cerrou os olhos. Tem, tem, eu bem o sei soluou uma das mulheres que viera com ela. Onde mora esta valente mulher? perguntou-lhe o Juiz do Povo. s Portas do Mar. Todos l sabem onde mora a tia Lourena. Ide descansada disse-lhe Afonso Eanes, muito debruado para ela Vo tratar-vos do ferimento e eu, logo que possa, irei saber da rapariga endoidecida. A tia Lourena entreabriu os olhos rasos de lgrimas, como se naquele olhar quisesse exprimir um voto de gratido, mas no pde falar. Coitadinha! murmuraram a chorar umas poucas das suas companheiras. Era a mais destemida alma de mulher que tinha Lisboa! comentou amargamente uma das fundibulrias. V, depressa! mandou Afonso Eanes. Trs homens levantaram nos braos o corpo agigantado da regatona, atravessaram com ela para o postigo da ogiva da plataforma e desceram lentamente a escada estreitssima da torre. Quinze ou vinte mulheres se dispunham a seguir Lourena. Duas ou trs bastam protestou uma das mais animosas E aqui ficaremos ns para a vingar, enquanto durarem as pedras. Seguiram-lhe a indicao, e apenas trs foram atrs da corajosa regatona ferida. Mas uma delas era aquela que dera informaes ao Juiz do Povo e a essa a reteve ele por instantes. Olhai que me deveis trazer notcias daquela vossa companheira. Ou mas ireis levar Ribeira, ou a minha casa, depois que a nossa armada houver entrado. Sabeis onde moro? Ora, quem que no sabe? Mas haveis de dar licena que primeiro, e logo na volta do hospital, v saber da rapariga doida. Filha ou parenta da tia Lourena? Uma desconhecida, linda como os anjos! Enlouqueceu com a morte da uma filha, e a tia Lourena levou-a para casa por caridade. Topou-a ontem noite ao p da S, com a filha morta nos braos e j na loucura da sua dor. Parece vir de gente de estimao. Para vir pr-se nossa frente foi que a Lourena a deixou em casa s com uma tia doente e velhinha que l tem consigo. Est bem. Ide, e no vos esqueais. Afonso Eanes foi para junto de Ruy de Vasconcelos. Estava ele a ser o mais formidvel besteiro da torre. Ah! Mas eles vo retirando-se! observou o tanoeiro. Vo. Os virotes saem daqui certeiros e temos-lhes deitado abaixo muitos homens. Demos os enforquem! exclamou a que ficara acaudilhando as mulheres J l no podem chegar os nossos calhaus! Vo corridos de vergonha, comadre! comentou uma rapariga espadada Viram bem que para defender isto contra eles at as mulheres dos chamorros bondavam. Repicaram os sinos. Esto a repicar os sinos do Castelo! E agora os da S! O que ser?! o sinal de que a armada do Porto j se avista dos lados do Castelo velho replicou o Juiz do Povo. E como o sabeis vs aqui?! inquiriu uma espevitada. Porque sei que este o sinal que o Mestre ordenou se fizesse, mal que os vigias da torre albarr do Castelo dessem f dos navios. Pois que viva a nossa armada e em boa hora a traga c Deus e os anjos. Senhor Afonso Eanes disse-lhe Ruy de Vasconcelos tempo de ir ter com o Mestre. H de ter estranhado esta nossa tamanha demora. Aqui nada mais h que fazer. E no rio que a batalha ter de ser decisiva e digna de ns. Vamos. Desceram. A multido das mulheres seguiu atrs deles gritando: Ribeira a ter com o Mestre! Viva o nosso Messias! (*)
[(*) Por vrias vezes se refere Ferno Lopes aos servios intrpidos prestados pelas mulheres de Lisboa naquele cerco. Tinham trabalhado nas obras de defesa, ajudando os homens, e corriam aos muros como soldados, mal ouviam o toque de alarme nos sinos.]
Eram quase 9 horas quando chegaram Ribeira. A mar enchia. A armada portuguesa vinha j na altura do Rasteio velho. Estava a entrar gente de armas nas barcas preparadas para combater; nas gals velhas, que ainda na vspera estavam varadas na praia, e em trs ou quatro naus pequenas. A maior e a melhor era uma nau mercante genovesa, que viera ao Tejo carregada de panos ricos e fora embargada para se aproveitar na defensa do rio. Destacava-se da grande massa de gente armada a figura singular do Arcebispo D. Loureno; a espada cingida batina, aberta at baixo, o roquete por cima da cota de armas, o rtilo bacinete, encimado pela imagem doirada da Virgem. Era como o grande chefe do estado-maior daquela tropa da plebe, e dela ia escolhendo para embarcar a gente melhor e mais bem armada. E atrs dele, ajudando-o, l estava tambm a sua hoste de frades e clrigos, de buris e batinas arregaadas, de chuo ou lana ao ombro. O Mestre que se no embarque! gritava a gente mida. Est bem de ver que o Mestre deve ficar. Tem de olhar pela defesa da cidade e do rio; para nos governar a todos. Que fique! Que fique! O Mestre estivera a ouvir as informaes que lhe traziam Ruy de Vasconcelos e Afonso Eanes e tomara para a longa prancha atracada nau maior, a que fora embargada aos Genoveses. Que se no embarque o Mestre! clamou o mulherio. O infante bastardo, aquele filho de Teresa Loureno, a quem a populaa adorava, voltou-se para a multido e disse-lhe alto, serenamente: Gentes, importa que eu v. Perder-se-ia Lisboa, se a nossa armada se perdesse. Deus ser convosco e comigo. Pois vamos todos com o Mestre! gritou um velho. Vamos! Vamos! Todos com ele! No pode ser, gente! clamou o arcebispo, intervindo e opondo onda da plebe, a mover-se j para o embarcadouro, toda a sua hoste de tonsurados Esto as barcas a deitar fora e gente de mais tem a bordo aquela nau explicava-lhes. Olhai se nos deixais perder o Mestre. Seria meter o reino nas unhas dos castelos. Apesar dos protestos de receio da multido, o Mestre de Avis embarcou. Iam deps ele o Juiz do Povo e Ruy de Vasconcelos. O povo tem razo segredou o tanoeiro para o filho de D. Dulce Isto uma imprudncia do Mestre; ele devia ficar. Por entre a multido veio atravessando lentamente um velho de longas barbas de neve, tnica de burel como a dos monges, chapu e bordo de peregrino. A multido agitou-se num movimento de supersticiosa estranheza. Um peregrino da Terra Santa! Ser ento de bom agouro. Talvez traga relquias do Santo Sepulcro. Tamanhas barbas e cabelos! Gadelhudo como os de Castela! Este no chamorro. No seja algum dos deles! Ou algum dos nossos tredos que andam com eles! Nesse fingimento para nos atraioar! Dizem que o demnio andou uma vez vestido de monge e de barbaas de velho. E o porco sujo dos infernos h de ser de Castela. Figas! Cruzes, anjo bento! Sou um homem de Portugal como vs; cristo como sois, leal nossa terra como qualquer homem fidalgo ou homem da ral, que se tenha aqui por mais leal disse-lhes alto Mendo Rodrigues, numa tremura de voz Na desgraa que eu sou maior do que nenhum de vs. Rodo de fome como ns? perguntou-lhe escarninho um regular septuagenrio. Velho volveu-lhe tristemente rodo de amarguras! Fome tive-a eu durante alguns anos de cativeiro. Quem sois? O vosso nome, dizei? Fiz voto de o no dizer. Sou dos que mais querem nossa terra. Isto vos baste, e Deus seja pela nossa justia e pela nossa glria! O prelado de Braga aproximara-se. A que vindes? perguntou-lhe. A reanimar os que tiverem desalentos e a fazer do meu corpo sem armadura o escudo de algum que faa mais falta do que eu. Senhor Arcebispo, deixai-me embarcar nessa nau em que vai o Mestre. Fui cavaleiro, tenho a experincia de guerra; fui galeote cativo, tenho a prtica do mar. Darei conselho ou terei o consolo de morrer ao lado dos homens leais da minha terra. E no podeis dizer quem sois? Senhor, no. Mas vede que sob este hbito de monge se no podem esconder armas e da minha antiga condio de cavaleiro vos podem dar testemunho as cicatrizes que tenho no peito. So de lana e espada. A nau em que est o Mestre j tem gente de mais volveu-lhe o Arcebispo, entre surpreendido e suspeitoso da insistncia. Irei nalgum desvo onde ningum mais queira ir. Estranha insistncia a vossa! Senhor, tambm um voto da minha alma. E j que de mim duvidais, dou-vos pelo meu abonador a Ruy de Vasconcelos, o cavaleiro fidalgo ao qual ningum pode pr suspeies. Esse dos valentes! disse um homem do povo. E dos leais! At mandou desafiar o grande Condestabre de Castela acudiu uma mulher. Podeis ir disse-lhe o Arcebispo, movido pelo tom de lealdade e de comoo em que o peregrino lhe falara. Mas j de bordo de naus se ouviam imprecaes e brados de desespero. Amaina o pano todo e ncoras para o fundo, que o vento est de revs. Levava-nos rio acima! Olhai! Olhai! A barca de Gonalves Borges! L a vai levando o vento desgarrada por ali acima! No quer Deus Nosso Senhor ser por ns! exclamou com mgoa uma mulher. O Mestre vem para terra! Efetivamente, reconhecida a impossibilidade de navegar no rumo do Rasteio, com o vento forte de revs, o Mestre mandara que a nau fosse posta em rvore seca e com todos os ferros no fundo e que a gente de armas desembarcasse. Levou tempo o desembarque. Para dentro da nau, onde duzentas pessoas iriam constrangidas, tinham entrado quatrocentos homens de guerra. Mas de justia explicar que no iam no intento de dar batalha a bordo, onde mal poderiam manejar as lanas e as espadas, mas para atracar a algumas naus da armada de socorro e reforar-lhes as guarnies que vinham incompletas. Era uma temeridade de trgico desenlace, qual o vento providencialmente se ops. As quarenta naus e dezasseis gals da esquadra castelhana facilmente tornariam desastrosa aquela tentativa planeada com mais arrojo que reflexo. Uma triste m fortuna! dizia baixo o Mestre ao Arcebispo num grupo em que estavam o Juiz do Povo e Ruy de Vasconcelos E assim deixamos sem ajudas as nossas dezassete naus contra as quarenta que a tem el-rei de Castela! (*)
[(*) As naus daquele tempo eram em geral de baixa tonelagem. As mais pequenas, entre sessenta e cem toneladas; de cento e cinquenta e duzentas toneladas com quarenta a sessenta tripulantes, as maiores. Como navios de transporte, s vezes levavam duzentos ou trezentos combatentes, mas estes de modo que mal se podiam mexer l dentro.]
E mais as treze gals nossas contra as dezassete dos Castelhanos ampliou o Arcebispo. E o pior ser que esmoream os dos nossos navios, sem saberem a razo porque lhes falta o auxlio que lhes foi prometido! lamentou o Mestre, sacudindo os ombros e avincando o rosto num gesto de desespero. Mestre e senhor! disse Ruy de Vasconcelos A remos tambm se l pode chegar em qualquer ligeira galeaa. Se me dais licena, buscarei a oito ou dez galeotes e vou eu dizer nossa armada por qual motivo lhe falta o auxlio prometido. Ide, sim volveu-lhe o Mestre, envolvendo-o num lento olhar de admirao e de reconhecimento Ide, e assim prestais um honrado servio nossa causa. Senhor, fico agradecido respondeu Ruy, afastando-se num alvoroo de jbilo. Se a pobre me sonhasse isto que ele vai fazer! disse consigo Afonso Eanes Mal-aventurado nos seus amores, parece apostado em buscar a morte em feitos que ningum se lembraria de lhe pedir! Parecia que o tanoeiro conhecia algum segredo de amores do jovem cavaleiro. Oito galeotes de boa alma e bom pulso para levarem uma galeaa ao Rasteio velho props alto o filho de D. Dulce. Ofereceram-se dez. Para que ser, criaturas de Deus?! perguntou uma mulher. para ir bater as quarenta naus de Castela respondeu de mofa aquele sapateiro remendo, vezeiro em enganar a fome bebendo vinho Aquele da tripa de Nuno lvares e foi gerado na corte do rei Artur de um cabelo das ventas do grande Galaaz acrescentou de chacota o Bernardo Pingueiro. Passa fora, odre de tripa! replicou-lhe uma mulher abespinhada A alma que tens nem para alma das sapatas de Berzebu serviria. Riram muito da rplica, apesar da conjuntura difcil, aqueles pobres diabos famintos. Ruy, um galeote a mais disse-lhe baixo Mendo Rodrigues, inclinando-se para o sobrinho Tive quatro anos de prtica nas gals de Tunes acrescentou com um sorriso que parecia um esgar de dor. Pesa-me o pedido. No insistais nele. Insisto. Melhor remar dentro de uma tnica de burel quem j remou agrilhoado a um banco, de ferros aos ps. Em dez minutos estava pronta a partir uma galeaazita ligeira de dez remos. Ala, ala! gritou Ruy de Vasconcelos. Os galeotes meteram os remos na gua num arranque valente. Deus v convosco, Ruy de Vasconcelos! gritou-lhe da praia o Mestre. S. Jorge e Portugal! gritou o jovem com a bandeira dos castelos e da cruz vermelha a esvoaar-lhe alto por cima da plumeira do bacinete. Olhai que at o barbaas da Terra Santa l vai! notou uma rapariga da rua das Linheiras. Vai para excomungar os casteles enquanto o rapazote mete as naus no fundo com a tromba da galeaa chasqueou o sapateiro avinhado, ilustre irmo da confraria de S. Crispim, bendito patrono dos remendes. A galeaa l ia de arrancada, envolta em espumas, aos saltos sobre as guas do rio, que o vento levantava revoltas como ondas de um mar embravecido.
CAPTULO IV HERIS E FAMINTOS
A esquadra de Castela, muito encostada ao Rastelo e de proas ao sul, tinha esperado a enchente da mar e vento de feio para dar batalha aos navios portugueses, seguindo nas suas guas. Quando a galeaa pequena, em que Ruy de Vasconcelos partira, ia em frente da moderna Junqueira, j a vanguarda da esquadra portuguesa vinha a todo o pano com vento de feio. A primeira diviso, como hoje diramos, era composta de cinco naus, A maior, chamada Milheira, vinha comandada pelo fidalgo cavaleiro Ruy Pereira, tio de Nuno lvares, e trazia a bordo quarenta besteiros e setenta homens de armas. Era tambm a mais veleira. Atrs dela velejavam a Estrela e mais trs de menos valia. A segunda diviso era constituda pelas gals, movidas a remos, de paveses altos e pendes erguidos, em formatura cerrada. Compunha-se de doze naus pequenas a terceira diviso. Vendo que a armada inimiga se no despegava do Rasteio, o impetuoso Ruy Pereira mandou meter a Milheira pela proa das naus de Castela. As outras quatro da vanguarda seguiam nas mesmas guas. Era para avaliar de perto a fora e as disposies da esquadra adversa e for-la por aquela provocao a travar combate, que facilitasse a entrada ao grosso da armada portuguesa. Sabendo por informaes anteriores, que a esquadra de Castela era talvez trs vezes maior que a de Portugal pelo nmero e grandeza dos navios e pelo efetivo das tripulaes, Ruy Pereira compreendia bem o que havia de temerrio naquela operao em que quarenta naus facilmente podiam aferrar dezassete, cerc-las, venc-las pela abordagem e apres-las, havendo ainda a desproporo na batalha entre as gals. Mas ia evidentemente disposto a sacrificar a sua diviso para salvar dois teros da esquadra. O vento era favorvel e todos os outros navios portugueses meteriam velozmente rio acima enquanto a Milheira e as outras da vanguarda metiam contra todo o poder da armada inimiga. Mas os Castelhanos no se saram com o desafio, no faziam querena, como diz o cronista Ferno Lopes, e ento Ruy Pereira mandou virar de bordo contra Almada, a ver se tentava o inimigo a persegui-lo, assim isolado e temerrio, para combater sozinho com a sua diviso enquanto as doze naus e treze gals se acolhiam ao ancoradouro interior. Como se o almirante de Castela lhe houvesse percebido o intento, nenhum dos seus navios se mexeu. Mas a diviso das gals portuguesas meteu fora de remos para a armada do Rasteio, a remos em estala, como diz Ferno Lopes, e foi ento que os de Castela se decidiram a batalhar, prolongando-se com a esquadra portuguesa por barlavento (julavento) numa linha que a isolasse da cidade. Saiu na frente da armada inimiga a poderosa nau almirante ]uan de Arena to fortemente preparada para a abordagem que at trazia suspenso a meio do mastro grande um batel guarnecido de besteiros, alguma coisa semelhante s gveas de combate dos navios modernos. A galeaa de Ruy de Vasconcelos partiu de voga arrancada para os navios portugueses da vanguarda, no seu rumo em direo a Almada. Aquela a Milheira em que vem Ruy Pereira disse o filho de D. Dulce para o tio conheo-a bem. Mas aqueles navios separados do resto da armada. Que loucura! Remai de estala mandou Ruy de Vasconcelos Forte, depressa! E numas guinadas impetuosas, o batel meteu por barlavento da Milheira, a oito braas dela. l de bordo! clamou o jovem cavaleiro, pondo as mos em concha em frente da boca. Que l? perguntou do castelo de popa o prprio capito. Senhor Ruy Pereira, no conteis com a ajuda dos navios da cidade. O vento no os deixa largar. o recado que vos trago do Mestre. Pois embora. Ide dizer-lhe que a armada entrar e com as minhas naus lhe abrirei eu o caminho, ainda que hajam de ficar no fundo do rio! Capito avisou o vigia da proa toda a armada castelhana est de volta com as nossas gals! Investe na dianteira com uma grande nau. Mestre gritou Ruy Pereira pelo bordo do norte sobre a armada inimiga contra a nau maior do almirante-mor de Castela. O mestre deu as vozes para a manobra, e a Milheira comeou a mover-se, levantou uma espumaceira alta em volta do seu bojudo arcaboio. Senhor Ruy Pereira, deixai-me entrar na vossa nau. Falta o tempo. Ide dizer ao Mestre que sacrifiquei tudo para salvar a armada. Pois iremos ver como esse sacrifcio se faz gritou-lhe o destemido jovem Tio disse baixo, muito inclinado para Mendo Rodrigues quereis que vamos? Quero. Galeotes, nas guas desta nau. E toda envolta em caches de espuma, a galeaa l ia fazendo corcovas de corcel bravio atrs da Milheira. Seguida pelas outras quatro da diviso, a Milheira cortou a linha inimiga e meteu logo contra a nau maior e mais audaz do inimigo a de ]uan de Arena. Parecia que uma febre de heroicidade agitava o arcaboio da Milheira e lhe dava alentos picos como se levasse em si uma grande alma votada Ptria, num sonho de glria! E levava; era a alma de Ruy Pereira. Abalroou a outra, deitou-lhe os arpus, cingiu-se com ela. Seguiram-lhe o impulso as outras quatro naus da diviso. Num volver de olhos, o tio de Nuno lvares calculara bem o lance para o sacrifcio de sublime abnegao. Vendo em perigo a sua nau almirante, a mais poderosa, era natural que uma parte importante da armada do Rasteio corresse a socorr-la. E assim foi. Vieram logo cinco das maiores naus de Castela e uma grande carraca como primeiro socorro ao navio almirante. E, aps estes, outros. Entretanto, a bordo da Milheira lutava-se denodadamente. A de Juan de Arena tinha o dobro dos homens de armas e do batel suspenso no mastro grande, os besteiros crivavam de virotes a gente de abordagem da nossa nau. Uma gritaria medonha a bordo, uma chacina horrorosa de parte a parte! Brandindo um machado nas suas mos possantes, a viseira do bacinete salpicada de sangue, o arns amolgado, numa fria pica, Ruy Pereira lutava na dianteira de todos, cada vez mais resolvido a empenhar naquela batalha todos os seus dons de cavaleiro e toda a sua abnegao de patriota. Espedaavam carne as lanas, os machados, as achas, os espades; esfuziavam no ar os virotes e os gritos de arremetida, numa convulso de dio, convs e os castelos estavam j alastrados de feridos, em gemidos inteis de splica ou numa torva agonia de morte. S. Jorge e Portugal! bradava Ruy Pereira, cada vez mais encarniado naquela formidvel luta. Santiago y Castilla! clamavam da nau inimiga A ellos los chamorros. Almirante-mor de Castela, hs de ver como os chamorros morrem! A mar subia e o vento sacudia o velame, alteando as golfadas do mar. Com os arcaboios unidos, as vergas a tatearem-se como garras, as amuras, como os peitos, num contacto arquejante de dios, os pendes e as bandeiras a esvoaarem uns contra os outros, como aves multicores que tambm fossem lutando nos ares, todas aquelas naus foram subindo contra os barrocais de Cacilhas. Dir-se-iam feras enormes, que, na alucinao da briga, se fossem arrastando umas s outras, de garras enclavinhadas. Mas a mar e o vento, que atiravam para o sul aquela massa de navios abalroados, tambm metiam rio acima, com excecional velocidade, a diviso das gals e as doze naus da ltima diviso da nossa esquadra. A galeaa de Ruy de Vasconcelos seguira sempre a Milheira, e num dos lances da luta, conseguira abalroar uma gal de Castela, aprisionando-lhe o capito. Mas quando as cinco naus portuguesas estavam j encurraladas entre o pontal de Cacilhas e os barrocais, fechando-lhe o cerco uma. Parte considervel da esquadra inimiga, a galeaa pde atracar Milheira e Ruy de Vasconcelos e Mendo Rodrigues subiram para bordo. A batalha ali tornara-se ainda mais desesperada. Era um lance de vida ou de morte. O peregrino realentava os que pareciam menos animosos ou acudia aos feridos com misericordiosa solicitude. O sobrinho pusera-se ao lado de Ruy Pereira e duas vezes entrara com um troo de homens na de Juan de Arena. Mas antevia-se j o desfecho trgico da batalha. O inimigo tinha o triplo das foras e a Milheira estava empachada de feridos. Com o rosto esbraseado, o ar a faltar-lhe, Ruy Pereira levantou a viseira do bacinete para respirar com mais desafogo e readquirir foras para uma decisiva arremetida. Logo reparou nele um dos besteiros do batel iado a meio do mastro grande da nau castelhana. Nem havia Castelhano que no trouxesse os olhos em Ruy Pereira, enfurecidamente. Pareciam miraculosas as energias daquele batalhador; a alma daquele homem enchia a nau; mat-lo, seria mat-la. O besteiro retesou o arco, visando o rosto daquele lutador prodigioso, disparou; o virote partiu e foi cravar-se entre os olhos do heri. Combatei... Vs! gritou Ruy Pereira, e caiu, desamparado. Revoou um grito enorme de dor a bordo da Milheira,, grito de duas dezenas de vozes, como se o virote castelhano houvesse ferido tambm os coraes daqueles bravos. Uns poucos de homens correram para o capito. Um instante apenas e a morte imobilizou o heri. Estava feito o sacrifcio a que a sua alma pica se votara naquele dia. Foi enorme, foi esmagadora a impresso de desalento por aquela morte. A nau tinha de render-se. De bordo da outra percebera-se a enorme perda e logo a anunciaram em clamores de triunfo, para incitarem os nimos. Tinham l o quntuplo dos homens de armas que ainda restavam de p a bordo da Milheira. Santiago y Castilla! A ellos! O punhado de companheiros de Ruy Pereira rendeu-se. S dois se no renderam porque esses, pela outra borda da nau, se desceram para a galeaa atracada. Das cinco naus da nossa vanguarda, trs ficaram apresadas, mas duas intrepidamente romperam por entre os navios inimigos, conseguindo escapar- se.
* * *
As gals portuguesas estavam j a salvo para cima da praia da Ribeira. As dozes naus da retaguarda iam subindo j para alm de Cacilhas, e uma s v ficara atrasada porque a tinham abalroado cinco das gals de Castela no momento em que o vento lhe escasseara. Era a nau de lvaro Gonalves de S. Atrs das cinco gals estavam outras tantas naus, para as apoiarem e reforar- lhes as guarnies. Da galeaa, a meter para Lisboa de voga arrancada, Ruy de Vasconcelos via bem a bandeira da nau portuguesa e, com aquiescncia do tio, mandou meter o naviozito ao rumo oposto. Galeotes, para aquela nau de Portugal, que parece perdida. A alguns dos nossos poderemos aqui dar guarida. Era aquele o ltimo lance da batalha e Gonalves de S o segundo heri daquele dia. A sua nau estava crivada de virotes e tinha parte do velame rasgado. Os virotes bamboleavam-se cravados no aparelho e o prprio timo parecia uma pregadeira. Tinha a bordo muitos homens feridos, mas nas gals de Castela ainda havia mais. Assim como uma baleia que de repente sacudisse de si um bando de espadartes, a nau repulsara as gals, ajudada por uma rajada de vento favorvel, e metera para dentro, tomando para a praia da antiga Porta do Mar. Repicavam os sinos da cidade. O Mestre andava na Ribeira com os seus cavaleiros e a turbamulta dos famintos. Pelos altos, sobranceiros ao rio, pinhas de gente em gritos de aclamao ao Messias e em brados entusisticos de aplauso gente da esquadra. A armada castelhana perdera sangue e vidas; no perdera navios, no fora derrotada, podia continuar a bloquear Lisboa; mas sofrera um desaire. Rompera-lhe o bloqueio uma esquadra muito menos forte.
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Ruy de Vasconcelos desembarcava da galeaa. Trazia o brao esquerdo levemente ferido por um virote. Foi procurar o Mestre para o informar do que presenciara. Mendo Rodrigues tomou para casa da irm. E da, trigo e milho? Vem coisa que chegue para matar a fome cidade? inquiria a populaa esfaimada, cercando a maruja e os homens de armas que tinham desembarcado da esquadra. Isso sim! respondeu-lhes o mestre de uma gal que acabara de varar na praia O que trazemos no dar para mais de duas ou trs semanas, e s para as bocas dos que vieram. Pois j que assim , que se reparta por todos ns o que a trazem, e depois ser a fome tambm para todos retorquiu um calafate. E os da cidade acudiu uma padeira j h mais de um ms que andam a arreganhar o dente. Agora nem po de bagao e de razes! Pouco durou essa farturinha, que fazia nojo aos ces! Daqui a pouco ainda pior! Mais bocas para maior fome. Hum! Se o povo quiser, ainda pode remediar-se por um dia ou dois. Est a gozar, tia Brgida! o que vos digo, alma de Deus! Eu bem sei de certas casas ricas onde h trigo sonegado. Era o povo querer dar-lhes varejo, a por volta da noite. Mas d-se-lhes, que no pode querer Deus que uns vivam farta onde tantos andam mirrados de fome! Pois est bem de ver que assim. Olhai, criaturas disse ela em tom de confidncia ao seu grupo, uns quinze homens e mulheres eu sei de uma casa onde h para cima de sessenta alqueires de trigo, que no veem sol nem lua. Isso dava pio para mais de cem pessoas a por uns poucos de dias! E eu l em casa com trs crianas a ralarem-me o corao de dia e de noite, coitadinhas! A chorarem, a pedirem-me po, at de joelhos e mos postas, doidinhas de fome, e eu sem lha poder matar! E eu, mulher de Deus?! A pobre da minha me entrevadinha, e os meus cinco filhos todos esbagoados de choro, porque j nem h ervas entre as pedras para as irem roer. Eu j nem tenho alma para os ouvir! A eles e velhita, coitadinha, que se pe a enganar a fome, rezando a Nossa Senhora que lhe d a morte! Pois sim, criaturas interveio a padeira a misria de muita gente, mas o que eu sei que h na cidade quem tem fartura. Deviam de ser obrigados a repartir com a pobreza. Obriga-os a gente. E a alguns nem era pecado tirar-lhes tudo o que eles tm aferrolhado. Olhai, sabeis quem mora na tal casa onde eu sei que h para cima de sessenta alqueires de trigo? Quem ? Quem ? Dizei. A mulher e a filha daquele negregado judeu rico, o tredo que fugiu com a rainha boneja: D. Judas. Bem sei. Foi o tesoureiro de el-rei, que Deus haja, e ficou podre de rico. Tem anto a a mulher e a filha? Tem, cheias e fartas, muito alapardadas em certa casa grande, para os lados de Santo Eli. Bom stio para se ir l. E ainda vs no sabeis tudo, criaturas de Deus! L tm escondidas consigo as duas judias... Nossa Senhora de Escada, que nem o seu amado Filho pode ter d de uma cidade onde essa peste de gente vive regalada e farta! Mas dizei quem que essas excomungadas tm escondidas consigo. A mulher e a filha de um fidalgo bilhostre, que era todo da rainha descarada e agora est com os de Castela, tal como o excomungado de D. Judas. Jesus! Que at uma boa obra ir tirar o po a essas cabras. E a mulher do tredo que anda contra a nossa terra uma moura de Andaluzia, que o traidor roubou ainda nova e depois se converteu para casar com ele! Quem me ps tudo isto em pratos limpos foi uma escrava moura que havia na dita casa e de l fugiu anteontem. At me contou que as porcas das judias escupiam, na divina imagem do nosso Senhor crucificado! Credo! Nem Deus pode ser por uma terra que tem dessas vboras! E a benzerem-se, nuns grandes gestos de horror, as mulheres propuseram diversos alvitres para salvar a cidade daquela abominvel gente, tirando s judias o mal empregado trigo que l tinham. At ser uma bendita limpeza ir l. E num crescendo de horror catlico e de esfaimada cobia, algumas propunham j enfurecidamente que, depois de lhes tirarem os haveres, as reduzissem a carves, entaipando-as em casa e lanando-lhe fogo. Nisto interveio o remendo pingueiro, que j tivemos ocasio de ouvir. Eu c que me no ralo. Se h l vinho, vou, e pouco se me d que sejam mouras ou judias. Para o beber, tanto se me faz. L pelo trigo que eu no dou um passo. Na fome apertando mais comigo, e s aperta quando o vinho me larga, l tenho um aougue debaixo do soalho da loja. Cardumes de ratos que parecem lparos. E ando na desconfiana de que j se comem uns aos outros, ds que o cerco comeou! Rompeu contra o sapateiro um movimento de indignao colrica. A padeira verberou-o por esta forma: Passa daqui, remendeiro porcalho! Sangue de burro castelhano que te tinham de dar a beber, escanzelado borracho, que de tudo mofas! Afastaram-se dele e entraram numa taberna que se chamava do Galo Preto, certamente por ter espetado por cima da porta um galo de folha de ferro. Tinha anoitecido. A mar dos desalentos crescera muito mais do que a outra que de manh ajudara a meter dentro do Tejo a armada vinda do Porto. J tinha corrido o sino da S, ou como se dissssemos que passava j das 9 horas, quando se comeou a notar um formigueiro de gente miservel para os lados de S. Martinho. Iam num alvoroo, bichando conversas. Alguns traziam candeias acesas, e um da frente levava um lampio de ferro. Foram subindo e tomaram para os lados de Santo Eli. Eram decerto mais de cem pessoas; as mulheres, os farroupilhas, os mendigos constituam a grande maioria do juntamento; mas de onde em onde luziam ponteiras de ao de piques. Gumes de machados, singelos bacinetes de besteiros. ali disse alto uma mulher, estendendo o brao na direo de certo prdio grande, ladeado de corpulentas rvores. Para a direita, subindo, ficava a igreja de S. Bartolomeu, para a esquerda uma ruazita estreita que ia dar antiga Porta de Alfofa, na cerca velha da cidade. Ali? Pois vamos tulha de D. Judas e depois se arranjar o brasido para queimar as judias e as outras do tal que se bandeou por Castela. O pior ser o alarme do fogo! Pode o Mestre estomagar-se com a gente! Pior alarme o da fome! objetou a padeira que dirigia a multido e qual dera informaes a respeito da casa do riqussimo judeu, que fora tesoureiro de el-rei D. Fernando, depois parcial da rainha D. Leonor Teles, e era agora criatura do rei de Castela Melhor feito ser este nosso que o da armada esta manh. Que entrou e no nos trouxe com que a gente matasse a fome aos filhos! Pois aqui est comigo quem sabe bem da fortuna que h naquele ninho maldito de gente judia e de uma raa de traidores. E a padeira indicou uma escrava moura, velha, que tinha ao seu lado, muito embiocada. Esta foi a que fugiu de l, por causa dos ruins tratos. Fala, mulher, diz a estes pobretes de Cristo, que trazem a barriga pegada s costas, diz-lhes que farturinha de trigo l tm aquelas negregadas, que fazem judiarias imagem do nosso Senhor, pregado na cruz, e at lhe cospem em cima. A velha moura, uma descendente dos muitos cativos que tinham ficado em Lisboa, quando D. Afonso Henriques conquistara a cidade ao poder mauritano, confirmou alto o que a padeira dissera a respeito das afrontas imagem de Jesus e deu ainda pormenores de mais hediondos sacrilgios. A multido rompeu num alarido de cleras. E tm l uma tulha cheia de trigo? No verdade que tm? Moura, responde disse-lhe a padeira. verdade. No sero menos de trinta sacos grandes declarou alto a escrava. A fartura de uma semana, mulheres de Deus! Pelos nossos filhos, pelos nossos velhinhos, para todos ns! E entrementes vir Nuno lvares do Alentejo no nosso socorro. Esse que sabe bem como se vai ao plo aos castelos. V feito! Ao ninho das serpentes judias! E eram como uivos de fome e como rugidos selvticos de superstio, os brados com que uns e outros se incitavam por aquele assalto inquo. Acendei as cordas embreadas clamou a padeira Moura, guia-nos porta do celeiro. A escrava tomou a dianteira de todos. A multido ia atrs dela, de roldo, a uivar cleras. Cadelas judias! rouquejavam umas esfarrapadas com os punhos no ar, ameaando Viveis cheias e fartas, e eu tenho l no seu nicho de trapos os meus pequenitos a chorarem de fome!
* * *
Tinham j escavacado machadada a porta do quintal. Era por ali o caminho mais perto para a tulha. Outros, homens e mulheres, abriam a machado a porta principal do prdio. Dois vultos brancos de mulheres tinham assomado varanda alta. O cu estava toldado de nuvens, mas a luz vermelha de dois archotes que os assaltantes tinham erguido alto, para que todo o prdio se visse bem, iluminava tragicamente aquelas angustiadas figuras. Por piedade e em nome do cu! suplicava uma delas, nova e gentil, morena de cabelos negros, tipo acentuado de judia. Pela divina Me de Jesus, no nos faais mal! pedia a outra, de mos postas, arquejante, com os seus grandes olhos espavoridos, como se aquela chama vermelha dos archotes fosse o prenncio de uma enorme desgraa. Era ainda mais nova que a outra, branca de neve, cabea dourada como os arcanjos dos altares. Os gritos de uma e outra, numa tremura de medo, num timbre de dor indefinvel, cortados de soluos, vibravam por entre o estalejar sinistro da porta golpeada e as torvas ameaas da multido, como por entre os rumores de uma tempestade o grito dolente de duas aves espavoridas nos ares. Parece a porta de um castelo! Seguravam-se bem estas malditas! Mas vai dentro em cavacos! Por misericrdia! Ns no fizemos mal a ningum! alegava uma delas a chorar, mos enclavinha-. Das na grade de ferro, a cabea inclinada para baixo, com os cabelos j soltos, em ondas revoltas. E a outra mais nova, imensamente plida, caiu de joelhos contra a grade, a soluar oraes. Ah! Vai dentro a porta! Acaba-se com a judenga vil! Queima-se o ninho das serpes! Aleluia e queima de judenga segunda-feira! Fogueiras antes do S. Joo! Para as mulheres de D. Judas! E mais pelas outras do traidor! Me de Jesus, misericrdia! suplicou a mais linda e a mais nova, encostando aos vares da grade a sua cabecita anglica, emoldurada numa juba de cabelos louros, como filigrana subtil de ouro plido. Trigo! A tulha cheia de trigo! regougaram os que tinham entrado pelo quintal. Viva Deus, que est a porta em cavacos! V para dentro! E foram todos de cambulhada contra a porta, bramindo, acotovelando-se, numa fria doida. As excomungadas tm uma grade de ferro ao topo da escada! Duas mulheres mais idosas correram para a varanda como loucas. Era uma delas a esposa de D. Judas, a outra, a esposa de um fidalgo que se bandeara com os de Castela. Filha, desampara-nos Deus! exclamou numa angstia imensa a mais velha, a esposa do judeu. Madalena! soluou a outra me Filha, que me no quis ouvir Nossa Senhora! Esto a quebrar a grade! gritou de dentro uma serva. Socorro! suplicou, debruada da varanda, num esforo supremo, aquela a quem a me dera o nome de Madalena Algum piedoso... Que seja por umas pobres mulheres sem defensa! Vinha um homem subindo rapidamente, talvez porque o rudo da multido o houvesse sobressaltado. E um maltrapilho, que estava na cauda dos assaltantes, de archote erguido, voltou-se para cima ameaador: Espera, gata miadeira, que te havemos de esganar, antes que venha algum acudir-te. E o claro do archote, que dava um tom fantstico de lenda quela figurinha branca de mulher, linda e juvenil, de cabelos de ouro como as santas e as princesas dos retbulos gticos e dos livros de Horas, projetava tambm uma tnue claridade sobre a figura do homem que subia. Reluzia-lhe um firmai de ouro no gorro emplumado, trazia um manto branco, pendente, deixando ver a cota de cruz vermelha e braso fidalgo e o punho em cruz de uma longa espada. Era jovem e forte, sem nenhuma dvida um cavaleiro. Viram-no bem, como viso providencial, os olhos lacrimosos de Madalena. Acudi-nos! disse-lhe num grito de splica Sede por ns, cavaleiro! Senhora, sim respondeu-lhe, correndo direito multido, ainda a ulular desesperos, enquanto no cimo da escada uns homens batiam inutilmente com os olhais dos machados contra os vares de ferro de uma grade Tende-vos, assaltadores de mulheres, que vos mando em nome do Mestre! Num movimento de enorme surpresa, a multido um pouco se esbandalhou, hesitante. O tom altivo e firme da intimao, feita em nome do Mestre por aquela soberba figura de cavaleiro, surgida ali como por encanto, deixou em todos aqueles nimos uma impresso de receio e de deslumbramento. Um cavaleiro que vem em nome do Mestre! preveniu sumidamente um homem, voltando-se para os que estavam na escada. E logo se extinguiu a vibrao dos ferros batidos pelos olhais dos machados. vilania ameaar mulheres, de ladres assaltar casas pela calada da noite! Afastai-vos! mandou, impondo-se com dominadora arrogncia. A multido recuou mais, acabrunhada; mas logo, num movimento de reao, umas poucas de mulheres avanaram para ele, apoiadas por quatro ou cinco homens, armados de chuos. Mas quem sois para assim quererdes mandar em nome do Mestre?! Sou algum capaz de vos mandar no seu prprio nome e obrigar-vos a cumprir o mandado! o da galeaa da batalha desta manh! disse alto uma das mulheres, afirmando-se nele o que h trs meses mandou desafiar o Condestabre de Castela! E era efetivamente Ruy de Vasconcelos.
CAPTULO V A FILHA DE UM TRAIDOR
Sentiram de repente vergonha at os que eram da ral, hoste miservel de rotos e de famintos. Em volta daquela cabea juvenil de campeador, de altivez leonina e mscula beleza, fulgia uma aurola prestigiosa de herosmo. Era uma figura de sonho pela sua juventude romanesca e forte e uma figura de epopeia pelo seu esforo impetuoso e nobre. Pelos velhos contos e pelas suas trovas, o povo conhecia a lenda dos cavaleiros de aventura, a vaguearem pelo Mundo para terar lanas pela dama dos seus amores, e s vezes at pelas quimeras da sua fantasia; nos elmos dourados plumas brancas como a espuma das ondas e plumas rubras como as papoilas dos trigais, no escudo um moto de amor e um nome de mulher, o arns numa alvura evocadora do luar, na cruz da espada esmeraldas e rubis como nos diademas das princesas e no colo palpitante das castels. Eram assim os cavaleiros dos romances medievos; os da Tvola Redonda e do louro rei Artur; o da lenda teutnica, maravilhosamente guiado nas guas pela plumagem branca de um cisne, aventureiro sublime em busca do Santo Graal; os que iam para as justas de amor e os que se iam para a conquista do Santo Sepulcro. E aquele que afrontava ali a multido dos famintos e dos supersticiosos parecia recortado dos cantares de algum rimance antigo. Senhoras disse para cima aquietai-vos, que ningum ousar ofender-vos, porque sou eu por vs. Senhor volveu Madalena comovidamente, numa tremura de voz Nossa Senhora vos pague e abenoada seja vossa me na terra e no cu! Vinde pelo trigo, pobres de Cristo, e depois se queimar o vespeiro gritou a padeira, assomando ao porto do quintal. Um roubo?! um roubo o que vs quereis?! interrogou torvamente Ruy de Vasconcelos encaminhando-se para a padeira Assaltantes, dando saque, vs, gente do povo, como se fsseis tambm de Castela! O povo tem fome, senhor cavaleiro, e que no por Castela bem o sabeis vs replicou a padeira Podamos ir bater porta das casas ricas daqueles que ficaram leais nossa terra; mas tal no faramos, ainda que a fome nos comesse a ns e levasse para os covais os nossos filhos pequenos e os nossos velhos. Mas ali dentro h fartura e est l gente vil que contra a nossa religio e contra a nossa terra! Aviso-vos de que no consentirei afrontas a essas damas indefesas. Estou a perceber que no sabeis quem so! Olhai que esto ali alapardadas a mulher e a filha do judeu tredo que D. Judas, e com elas, a mulher e a filha de um fidalgo que atraioou a nossa terra e anda com os de Castela. As do judeu hospedaram as outras. E qual culpa tm essas criaturas do mal que fizeram os maridos e os pais? Vejo que os mais enfurecidos contra elas sois vs, mulheres! E quantas que tambm so mes, quantas que tambm tm filhas? A padeira adiantou-se uns passos e, de mo na ilharga, retorquiu-lhe: Mas no ofendemos Jesus, Senhor Nosso, e no temos tulhas de trigo; mas somos capazes de morrer por esta nossa terra, como vs, cavaleiro, e temos fome! Lembrai-vos que o Mestre mandou dar ao senhor Nuno lvares, e bem empregados foram os bens que eram de David-o-Negro, aquele judeu de grandes riquezas que se passou para Castela, e ento tambm o povo faminto pode tomar para si o trigo de D. Judas. Bem falado! Bem falado! aplaudiram dezenas de vozes. Pois levai o trigo, mas, pela minha f, que no tocareis nessas damas. Levai-lhe todo, que da minha casa vir o po para que no acabem mngua. E amanh, sol fora, sem arrudo e sem ameaas, aparecei porta de D. Dulce Rodrigues de Vasconcelos, e l se repartir com os mais necessitados uma parte do milho e do trigo que veio das suas terras de Riba-Douro. Viva o jovem cavaleiro! clamaram as mulheres. Levai-lhes o trigo, mas daqui nada mais levareis, que vos no consinto eu. Daqui, agora, nem os seixos da rua. Acudam! Socorro! Esto a arrombar a porta do jardim! gritaram em cima as servas. Senhor cavaleiro, vm para nos matar! soluou Madalena, debruando-se da janela Defendei-nos! Defendo, sim, com todo o esforo de que for capaz, senhora minha. Arrancou da espada e correu para o porto do quintal. Senhor cavaleiro, no preciso! disse a padeira, tomando-lhe o passo Bonda que eu l v. Vou eu, e o povo no far mal a estas mulheres. Tende-vos a, povo! gritou do porto numa voz mscula, dominadora. Depois, voltando-se para o Vasconcelos: Guardai a vossa espada para os de Castela, vs que sois um fidalgo leal. Guardai-a para defenderdes Lisboa e para ajudardes Portugal. Ningum por vossa inteno far mal a essas mulheres: mas tambm ns as vigiaremos para que no faam dano de feitiaria e de traio, seja a quem for. Vou eu ter mo naquela gente. E deitou a correr para dentro do quintal. Senhor cavaleiro disse de cima, a tremer, a esposa de D. Judas dai-nos a honra de entrar, que vos queremos beijar as mos. Senhora, entrarei, porm, para vos acompanhar enquanto correrdes perigo. Entrou. Uma serva da casa abriu a grade do topo da escada, correndo o ferrolho. Boa vai ela! comentava na rua uma velha Entrementes as mes lhe beijam as mos, capaz ser ele de lhes beijar as filhas. Aquele um belo galo de crista erguida e espores dourados! acudiu outra velhacamente. Como os cabelos da mais jovem. Mas deixai objetou rancorosamente uma esfarrapada deixai que o que se no faz em dia de Santa Luzia pode fazer-se ao outro dia. Vo enfeiti-lo as judias e a outra sereia que l est! disse alto, num regougar de voz, a escrava moura E ainda no disse tudo o que sei, mas ficar para outra vez! V, criaturas pasmadas veio dizer a padeira aviar, que vamos a repartir 0 trigo. Vamos por ele. Vamos l! gritaram umas vozes enrouquecidas. E foram todos de roldo para o quintal. Vinha de l um sussurro enorme de muitas vozes numa irrequieta sofreguido. E a sobrelevar a todas, a voz trovejante da padeira: Eh! L! Vai aos punhados, assim mesmo cru! No vale. Espere cada qual o seu quinho e coma-o depois como quiser.
* * *
Ruy de Vasconcelos fora recebido na sala grande de D. Judas por aquelas atormentadas mulheres, ainda lvidas de pavor. Senhor cavaleiro disse comovidamente a judia de cabelos brancos teve o cu piedade de ns e trouxe no nosso favor o vosso nimo generoso! E procurava tomar-lhe as mos para lhas beijar. A vida nos salvastes, senhor acudiu D. Maria de Mendona, esposa de Gil Vasques de Mendona, um parcial de Leonor Teles e agora um servidor do rei de Castela, na ala de traidores que estavam no seu exrcito, sitiando Lisboa. Era uma dama de cerca de quarenta anos. J comeavam a embranquecer os seus opulentos cabelos ondeados negros; mas as rugas de uma vida amargurada ainda lhe no tinham apagado completamente a esplndida formosura. Sou Maria de Mendona disse-lhe, apresentando-se a infortunada mulher de... Gil Vasques de Mendona. Baixara a voz, e enrubescera como se tivesse medo e vergonha de dizer aquele nome. Sei quem sois, senhora, e est a minha memria a recordar-me certa dama que h dez anos vi muitas vezes no pao. Chamavam-lhe a Flor de Granada. Dizeres lisonjeadores. Fui moura; meu pai era de Granada. De mim, senhora, que vos no podeis talvez lembrar. Era uma criana. Mas da minha me certo vos recordareis. Dizei-me o seu nome. D. Dulce Rodrigues de Vasconcelos. Fomos companheiras e amigas no pao disse Maria de Mendona, num suspiro, tocado de mgoa e de saudade. O vosso palcio, senhora, era ao p da Porta de S. Pedro, da antiga cerca. L fui por vezes com a minha me. Tivemos de fugir de l por culpas que no eram nossas, e l est fechado como casa onde algum morreu! Aqui nos acolheu por caridade esta famlia, e aqui temos vivido a ocultas. A minha filha Madalena disse, apresentando-lha Era pequenina quando eu vivia na corte com a vossa ilustre me. Senhora minha! balbuciou Ruy, curvando-se gentilmente diante de Madalena, muito perturbada, num enleio adorvel Fomos crianas que nalgum tempo se conheceram e depois, por largos anos, uma da outra ficaram esquecidas. Boa hora me deu Deus para vos encontrar, pondo em servio vosso a minha vida e a minha espada, se mandardes que uma e outra sejam por vs, enobrecendo-se. Envolveu-a num carinhoso olhar de deslumbramento, como se fosse aquela princesa ideal que a sua juventude sonhara em devaneios de batalhador e de cavaleiro andante. Maria de Mendona sentia-se lisonjeada naquela homenagem sua linda e estremecida filha. A judia jovem afogueara-se e como que os seus olhos negros se incenderam num relmpago de inveja por aquela hspede sua, mais formosa. Mas logo, num relance para aquele jovem cavaleiro de lenda, tristemente se lhe turvaram. Nunca para ela, a judia rica e odiada, outra juventude assim brilhante ainda se curvara em tal acariciadora homenagem! Ruy dobrou o joelho diante de Madalena e tomando-lhe a mo pequenina e branca, escultura ideal nalgum prodigioso jaspe, a que um milagre houvesse dado vida, beijou-lha levemente como um pajem beijaria a mo de uma infanta nas salas magnificentes de algum pao real. Mas daquele enlevo o despertou bruscamente um rudo alto de vozes na rua, dominado por clamores enfurecidos de ameaa. Voltam! exclamou num confrangimento de terror a judia de cabelos brancos, abraando-se na filha. No tenhais medo, senhora. Aqui me tendes para vos defender. E na rua gritavam: Que o da galeaa nos aparea! Que o jovem desafiador do Condestabre de Castela nos escute. Nobre cavaleiro, Ruy de Vasconcelos! por mim que chamam! disse o jovem Vasconcelos, indo arrebatadamente para a grande janela de balaustrada. Senhor, olhai que vos no faam alguma traio! recomendou Madalena, timidamente, numa tremura de voz. Senhora minha, nada receio dessa gente. Assomou janela alta de ogiva, os vitrais incendidos na chamazita das quatro tochas que ardiam na sala. Escutai, senhor cavaleiro! gritaram de baixo Por vossa inteno, o povo perdoar s mulheres do traidor, porm s judias enfeitiadoras, no. No! No! Quem perdoa ou deixa de perdoar no sois vs; so as justias do Mestre e defensor nosso. E quem as defende agora sou eu. Vede se entendeis bem, gente tumultuosa. Eu! No as podereis defender sempre retorquiu-lhe a padeira, que era a parlamentria da multido Elas pagaro seus malefcios. Assim o h de querer Deus, Senhor Nosso. Esta escrava moura, que fugiu dessa casa sabe bem o que elas fazem, e conta que h a um caminho debaixo do cho. Vai dar a Vila Nova de Gibraltar e praia. Por ele podero entrar os de Castela, guiados pelo tredo rabilongo de D. Judas! (*). Vede o que fazeis, senhor cavaleiro, que ns tudo isto iremos contar ao Mestre!
[(*) Rabilongo por ter cauda pendente. Ainda, trs sculos depois, havia quem acreditasse que os judeus se diferenavam dos outros homens por um apendculo curto como os de certas raas de macacos! Acreditava-se e escrevia-se! E assim, por dio religioso, inconscientemente punham na gente israelita a prova material da teoria de Darwin, o fisiologista ingls, falecido em 1882.]
Ide, mas aqui no entrareis. Ide, que tambm eu direi ao Mestre o vosso intento, e a ele e a vs hei de mostrar que, se no falto aos meus encargos de cavaleiro para defender damas, tambm sou incapaz de quebrar os meus deveres de Portugus leal, protegendo traidores. Ide, ou irei eu ensinar-vos o caminho! No vos assomeis assim, gavio branco, dentro desse pombal! gritou uma regatona. Senhor, tende cautela! pediu-lhe D. Maria de Mendona. Vale-vos serdes quem sois! disse de baixo a padeira E a elas agora lhes dais vs salvamento por saber a gente o que tendes feito pela nossa terra. V, gente, embora daqui. O vespeiro h de arder em louvor de Jesus, Senhor Nosso. Para outra vez ser. H mais mars que marinheiros. Vamos l. Mas preciso ir dizer ao Mestre que h ali um caminho debaixo do cho! lembrou um dos maltrapilhos E ningum sabe onde vai ter! Numa hora m, a cidade a cair de fome, ns nos muros e nas torres a lutar, e D. Judas entrar c dentro pelo seu caminho de toupeira com algum troo de Castelhanos! A diz-lo j ao Mestre, e ele que nos mande a ns entulhar o tal caminho com as pedras e as cinzas daquela casa de Judas. V! V feito! De madrugada ser alvitrou a padeira. No; agora! J de caminho! E c voltaremos depois para queimar o vespeiro! Pois seja como quereis aquiesceu a padeira. E a multido l foi enovelada por ali abaixo, a regougar ameaas. Ruy afastara-se da varanda com o rosto avincado, numa preocupao que o tornava sombrio. Maior perigo ainda para estas pobres mulheres de uma raa to cruelmente odiada! soluou a esposa de D. Judas, numa lividez de terror, a filha muito chegada a si. Fugiu da vossa casa alguma escrava moura? perguntou-lhe o filho de D. Dulce. Antes de ontem daqui fugiu uma ladra, que roubou a esta minha filha um grande fio de prolas de toucar. Velha e miservel a tinha eu tomado por d, e nesta casa lhe dei guarida, vai em nove anos. Assim me pagou! Percebi que essa escrava era incitadora dos dios daquela gente. Foi ela quem denunciou que havia nesta casa um caminho oculto. H, senhor; nisso no mentiu ela. Onde vai ter? interrogou, sombriamente apreensivo. Por mim vos no sei dizer, mas ouvi uma vez ao meu marido que ia dar sinagoga maior de Vila Nova de Gibraltar (*).
[(*)Era o bairro em que os Israelitas viviam extremados da outra populao da cidade. Tambm se lhe chamava a Judiaria Grande. Vila Nova era a designao vulgar para os agrupamentos de edificaes recentes, nas imediaes das cidades, ou modernas em relao ao ncleo principal das outras edificaes.]
S a? Dizei-o francamente, senhora. Estou a entender que tambm vs de alguma coisa suspeitais e pareceis arrependido da piedade que tivestes de ns! Nunca me arrependi de um dever cumprido, e este me no esquecer nunca volveu-lhe, relanceando um olhar acariciador para Madalena Mas que este meu auxlio no fique afrontado com a mcula de alguma suspeita, que valeria a maior amargura que eu pudesse ter na minha vida, muito vos rogo me informeis com desassombrada franqueza. Toda a verdade vos disse, toda! Pois ento, senhora, ide juntar o que tiverdes de maior valor e que mais facilmente se possa levar daqui para fora. Daqui para fora! Senhor, porqu?! Porque eu no posso aqui ficar a defender-vos, e a esta casa a condenou aquela gente por suspeita e perigosa para a defesa da cidade. Vo contar ao Mestre a denncia da moura e ele mandar que venham a examinar esse caminho oculto. Deus de Abrao! soluou a judia, abraando-se filha numa convulso de choro. Senhora, no podem as lgrimas dar-vos remdio. Mau foi que a essa gente se metesse em cabea que por aqui poderiam entrar os sitiantes, guiados pelo vosso marido. Pode muito o Mestre, e nada poderia contra semelhante suspeita! Amanh o saber a cidade toda, e essa multido de angustiados, que tanto tm sofrido na defensa da sua bandeira e dos seus lares, correr aqui para vos queimar e destruir a casa, queimando-vos com ela. Deus misericordioso! Me, minha pobre me, fujamos daqui! rouquejou, espavorida, a filha de D. Judas. Talvez ainda esta noite continuou Ruy Disse-o nas suas ameaas aquela gente. Haveis de t-lo percebido. Jesus! soluou D. Maria de Mendona. Nossa Senhora nos d amparo! disse Madalena, pondo as mos numa tremura de splica. Mas em outras casas antigas de Lisboa h de haver tambm, tenho ouvido contar que h, caminhos debaixo do cho alegou a mulher de D. Judas at no pao da Alcova, e s este basta para condenar duas tristes mulheres! Por muito que me custe diz-lo, dever de lealdade avisar-vos que esta hora no para enganos e disfarces de palavras. Bem sabeis que os antecedentes do vosso marido pem uma tremenda suspeita sobre esse caminho. Mas olhai interveio D. Maria de Mendona que tambm na minha casa ouvi falar de um caminho oculto, que nunca vi nem sei onde vai dar. Senhoras minhas, o tempo voa e estamos ns aqui a malbarat-lo com desnecessrias alegaes! Pois mandai ento o que devemos fazer. Apenas aconselho, senhora. Esta casa est irremediavelmente perdida para vs. Ide buscar as vossas joias e o vosso dinheiro. Tudo o mais o podeis considerar perdido. E depois, para que refgio? Para vos acolherdes proteo do Mestre. Tendes a algum servo em quem depositeis confiana? Um criado velho da minha raa. Esse para me ir guiar j entrada desse caminho. Sim, ir. caminho que se possa fechar? Tem uma porta de grossos vares de ferro com ferrolhos e tranquetas. Pelo lado de dentro? Sim. Est bem; ide sem perda de tempo. Eu irei entregar ao Mestre a chave dessa porta e contar-lhe quanto sei. Deus meu! Entretanto a populaa voltar! Ireis comigo presena do Mestre. o maior testemunho de lealdade que podeis dar-lhe. Senhor, aonde mandardes. Saram numa tremura convulsiva de terror. E ns, filha? Senhor cavaleiro, quereis deixar-nos aqui sozinhas, tolhidas de medo? perguntou-lhe Madalena com os olhos rasos de lgrimas. Senhora, a minha casa no fica longe, e a minha me vos dar abrigo. Apareceu o criado velho para guiar Ruy de Vasconcelos porta do subterrneo. Tende d de ns! No vos demoreis pediu Madalena num adorvel tom de splica. Voltarei depressa, senhora.
* * *
Desceram uma escada de pedra, estreita e lbrega. Na frente o criado com um brando aceso. Ao fundo da escada, sob uma arcaria de abbada abatida, uma porta esguia e baixa de grossos vares de ferro com os topos chumbados nas ombreiras de pedra, esverdinhadas da humidade. Tinha trs ferrolhos e uma fechadura grande, saliente, em que o ferrolho maior se fixava. Dependurado de um grampo, na ombreira, uma enorme chave de bronze, manchada de verdete. Ruy examinou a porta atentamente e experimentou os ferrolhos e a fechadura. Por este caminho s a um homem de frente disse consigo e um homem nem no meio dia poderia limar e partir a malho estes vares, mais grossos que duas hastes de lana Est bem disse para o criado voltemos. Ide adiante. E seguiu atrs dele, levando a enorme chave. Ao topo da escada ouviu soluar alto. Esperavam-no as duas judias, lvidas, trementes, cada uma com um cofrezito de joias. Atrs delas duas servas com umas trouxas pequenas. Mandai, senhor disse a mulher de D. Judas Aqui trazemos o que de mais valor podemos levar. Iremos agora ao pao de Apar S. Martinho ter com o Mestre. Um tropel de gente em carreira para aqui! veio avisar Madalena, confrangida de pavor. Aps ela a me, num pasmo e numa palidez de esmorecida. No vos apavoreis. As portas interiores resistiro por algum tempo e a minha espada far o resto. Eu vou ver. Correu para as grandes janelas da frente. O tropel era de uma quadrilha de homens de guerra, talvez uns quarenta, que vinham de carreira; seguia-os uma multido de rotos e de mulheres. Na frente trs homens com archotes. Homens da hoste! Tanto melhor disse alto Ruy de Vasconcelos. Deus meu, homens armados! rouquejou na sala a filha de D. Judas, em convulses de medo, de grande pavor. Gentes! gritou o anadel-mor dos besteiros, voltado para a multido a ordem do Mestre que no entreis. Tende-vos a. Pois sero cumpridas as ordens do Mestre e executai vs os seus mandados, que ns aqui esperaremos. Era a padeira quem assim falava. Um rumor alto de muitas vozes apoiou os seus dizeres. Entrou pelas janelas dentro a fumarada negra dos archotes e um claro vermelho incendiou os vitrais, dando vida s suas figuras bblicas e projetando no soalho de cedro antigo, amarelecido, uns laivos sanguneos, reflexos da prpura dos reis de Jud, pintados nos grandes vidros. Ester, filha minha, que estamos perdidas! soluou Judite Navarro, num olhar pvido, fito naquelas manchas vermelhas. D. Maria de Mendona e Madalena acercaram-se-lhes, compassivas. Senhor anadel-mor disse de cima Ruy de Vasconcelos vou abrir- vos a grade da escada e eu prprio vos entregarei a chave da porta de um caminho oculto que vai dar sinagoga de Vila Nova, segundo aqui me declararam. Estava para a levar ao Mestre; dar-vo-la-ei a vs. No intento de dissipar quaisquer suspeitas da multido a respeito da sua lealdade, Ruy disse alto da janela abaixo isso que podia dizer apenas ao anadel- mor. que s tinha medo de que algum pudesse duvidar da sua boa f de patriota. J vos tinha reconhecido, senhor Ruy de Vasconcelos volveu-lhe o anadel. O jovem cavaleiro veio para dentro. Tende confiana na justia e no nimo generoso do Mestre, senhoras minhas. E na devoo e lealdade da minha alma como na sua justia. Eram para todas elas as suas primeiras palavras, mas s para uma as outras mais cariciosas e de mais calorosa dedicao. O seu olhar disse muito mais do que as palavras, e Madalena compreendeu-o num afogueamento de alvoroo, que a tornou ainda mais linda.
Ruy correu a abrir a grade da escada. Entretanto, o anadel mandara a doze besteiros que fossem vigiar a casa do lado do quintal; quatro besteiros e quatro homens armados de chuas ficariam na rua e vinte subiriam com ele para revistarem o interior do prdio. Senhor anadel foi dizer-lhe rua o juvenil paladino daquelas desamparadas mulheres podeis entrar e aqui tendes a chave de que vos falei. Conheceis esse caminho de que as mulheres e os maltrapilhos foram falar ao Mestre? Apenas lhe vi a entrada. No cabe por ele mais que um homem de frente. Fecha-o do lado de c uma porta fortssima de grossos vares de ferro, que o mais possante Hrcules de Castela no conseguiria limar e partir no meio dia. Est seguramente fechada. Aqui est a chave que eu ia levar ao Mestre. Ele vir tambm. Mandou chamar o Juiz do Povo; ficou a esper-lo; vir com ele. Foram despert-lo os saqueadores? Ainda se no tinha deitado. Inquiria das coisas do Norte com o almirante da armada que chegou. Entremos ento. Eu convosco. minha honra de cavaleiro est confiada a defesa de umas desventuradas damas. J o sabia respondeu-lhe secamente o anadel. Subiram. Ruy foi mostrar a porta do subterrneo e l ficaram de guarda dois besteiros de besta de garrucha e quatro homens de chuas. Depois, enquanto o anadel passava revista a toda a casa e colocava sentinelas s janelas e portas de comunicao, Ruy foi para junto das damas. Empenhava os mais dedicados esforos para as reanimar. Agora as menos atemorizadas eram D. Maria de Mendona e Madalena; mas as duas judias, essas estavam cada vez mais esmorecidas. Tinham medo da justia do Mestre, que, pelo prprio interesse da sua causa, poderia transigir com os clamores sanguinrios da populaa que o adorava. Bem sabiam que o Mestre se limitara a mandar confiscar os bens de David-o- Negro e a do-los a Nuno lvares, consentindo, todavia, que a mulher, D. Cimfa e os filhos ficassem na cidade. E o antigo almoxarife de el-rei D. Fernando era to judeu e to traidor como D. Judas; mas contra elas havia a mais, num terrvel agravamento dos dios supersticiosos da populao: as denncias da escrava moura, aquele suspeito caminho oculto, e at a clandestina hospedagem misericordiosamente concedida mulher e filha de um fidalgo que fora muito da rainha Leonor Teles e era agora pelo rei castelhano, sob pretexto de defender a herana da infanta portuguesa, aquela criana a quem tinham feito rainha de Castela. Demais a mais, sabia-se que Gil Vasques de Mendona estava com o exrcito sitiante. Muitos defensores da cidade o tinham reconhecido entre os mais audazes nas investidas, desde as primeiras escaramuas do Lumiar, preliminares do cerco. Na sua perspiccia de mulher e no seu instinto de me, D. Maria de Mendona percebera logo claramente o sbito deslumbramento que a filha tinha produzido naquele providencial defensor de nome ilustre e sangue nobilssimo. E at nisto lhe parecia ver um favor do cu com que momentos antes, nem se atreveria a sonhar. O amor daquele jovem por Madalena bem podia ser o amparo e a suprema ventura da sua linda filha, se os escrpulos do fidalgo leal sua terra se no levantassem como estorvo irredutvel entre o corao de Ruy e a filha do traidor. Esposa daquele prestigioso jovem, Madalena veria dissipadas as nuvens ameaadoras da sua primavera de mulher, em pleno cu azul a estrela dos seus destinos, num rtilo abril de flores aquele inverno desabrido e tenebroso, que uma desgraa de famlia desencadeara sobre os seus dezassete anos encantadores. No seu bendito egosmo de me, em tudo isto pensara de relance aquela mulher que tanto sofrera e to nova experimentara o travo das lgrimas e as mgoas supremas da vida! Roubada aos pais por um bandido fidalgo; sem lar e sem famlia, moura forada a abjurar a sua religio para no ficar perpetuamente a desprezvel concubina do aventureiro brasonado que a roubara e para que sobre o bero da sua filhita, que foi afinal por ela que tudo sofrera, no casse a mcula irremedivel de uma bastardia odiosa, toda a sua juventude se lhe escureceu nas agruras daquele drama ntimo, que ningum pde avaliar porque s ela o viveu e sentiu.
* * *
Num lance em que Judite Navarro fraquejou mais na tortura dos seus pavores, quase desmaiada nos braos da filha, e quando D. Maria de Mendona, muito dobrada para ela, lhe dizia palavras misericordiosas de dedicao e de consoladora esperana, Ruy tomou a mo de Madalena, num arrebatamento febril, e beijou-lha brandamente, segredando-lhe: Por vs a minha vida e todos os sonhos da minha alma! Vem do vosso olhar a luz porque o meu corao ansiava. Viver dela; morrer por ela. Senhor! titubeou Madalena com uma perturbao que a tornava ainda mais linda. O Mestre! O Mestre! gritou a multido da rua. Viva o Messias de Portugal! Deus de Israel! exclamou Judite Navarro, erguendo-se de sbito numa tremura convulsiva. Senhora, confiai no nimo do Mestre, justiceiro e generoso. Falai-lhe no nosso favor, senhor cavaleiro! suplicou-lhe Ester, pondo nele os seus grandes olhos negros, noite voluptuosa e ardente, sob uma neblina de lgrimas. Eu vou, senhoras, e pedirei o favor da sua generosidade como se para mim a pedisse.
* * *
Numa antessala, Ruy exps lealmente ao Mestre tudo o que se passara naquela casa. D. Joo ouvia-o com fria serenidade. Ao seu lado, o Juiz do Povo seguia com afetuoso interesse a larga exposio do filho de D. Dulce. Como bom cavaleiro e homem generoso procedestes; mas tendes to grande fama de lealdade entre a gente do povo, que mal-aventurado lance foi esse para vs! Logo quis o acaso que a um tempo defendsseis a mulher e a filha de um judeu traidor e, talvez ainda pior, a mulher e a filha de um fidalgo de Portugal que se bandeou por Castela e com os homens de armas do rei estrangeiro cerca a maior cidade e o mais forte abrigo da sua Ptria! Senhor, pobres mulheres, que mcula de culpa lhes pode caber a elas pela traio infame do marido e do pai?! disse-lhe, empalidecendo. Herdam-se vergonhas como se herdam as glrias; caem sobre uma famlia as torpezas daquele que se aviltou e era seu chefe. Mestre e senhor, uma injustia dos homens! Ento injustia h de ser tambm que, pela herana dos gloriosos feitos, se enobream os descendentes daqueles que os praticaram. Vs, por exemplo, que de cabea erguida podeis falar dos vossos preclaros avoengos. Senhor, para os tomar de exemplo e, pelo que eles fizeram, tornar maior o encargo que a mim me pertence. Bem o sabeis, Mestre e senhor. Sei, mas olhai que sobre a famlia de Gil Vasques de Mendona caiu maior afronta que sobre as mulheres de D. Judas. No era esta a ptria do judeu, nem era a sua f igual nossa, nem dele a nossa bandeira, para lhe querer e morrer por ela. Era um troquilhas, um cigano ganancioso; nem a bem dizer um traidor. Foi para onde lhe conveio, ao vezo de maiores favores. apenas um desprezvel sabujo para se mandar forca, se c voltasse. O outro, no! O outro, no! Senhor volveu-lhe Ru de Vasconcelos, cada vez mais plido e era por umas e outras que eu vinha pedir-vos! Pedir o qu?! Que as defenda das iras do povo? Est concedido. Mais alguma coisa, senhor. Esta casa tem de ser deitada abaixo e entulhado esse caminho secreto por onde o povo receia que entrem de surpresa alguns dos sitiadores de Lisboa. Ser um receio infundado e creio que , mas embora. No quero que o povo corra aos muros e s torres na suspeita de que mo traioeira lhe pode meter c dentro quem v investi-lo pelas costas. Senhor, no era o meu pedido para deixardes de p a casa do judeu, bem que se me afigure desvairado o receio da arraia-mida. Ento para qual fim? Para me concederdes que na minha casa d abrigo mulher e filha de Gil Vasques de Mendona, o t mi dor. De rosto carregado, olhar fito no juvenil cavaleiro, o Mestre respondeu lentamente: Perdereis nessa generosidade irrefletida todo o prestgio que tendes no povo pelo nome glorioso de quem vindes e pela fama da vossa lealdade e esforo! Leva-las para vossa casa, porqu? Porque vo ficar ao desamparo, se eu no as puder confiar ao corao misericordioso da minha me! Estou a perceber nesse propsito algum sonho do vosso corao mouco. mulher do traidor, pouca conversa, Deus sabe com que f, a essa a conheci eu; foi a maior formosura nos pacos de el-rei, que Deus haja. Havia quem a julgasse de beleza igual ... Flor de Altura, n flor do mal que matou a irm, o rei, e queria matar o Reino! filha no a conheo eu; mas estou a adivinhar que muito a conheceis vs, Ruy de Vasconcelos! Senhor, em criana a conheci e dela me tinha esquecido. Ao cabo de dez anos a tornei a encontrar. A sua idade? No ter mais de dezassete anos. Vede se esse amparo que lhe quereis dar a infamar a ela, pondo mcula no vosso honesto lar! Vede bem o que ides fazer contra ela e contra vs. O povo suspeitar da vossa lealdade. O povo bem sabe como eu tenho posto a vida em risco na defesa da nossa terra. Por loucos amores, e eu j vos suspeito enamorado, no raro os maiores deveres se esquecem e as mais austeras virtudes se perdem. Senhor, a vs e ao povo hei de eu mostrar de que lealdade e esforo maior ainda sou capaz. Por Deus e pela minha me, Mestre e senhor, aqui vos juro! Creio, mas olhai que no seguro jurar contra os caprichos de amores, que nalgumas horas enfeitiam um jovem como vs... J cruelmente experimentados por outros de m fortuna. O traidor est nessa hoste que tem assolado Portugal e oprime Lisboa para nos avassalar, roubando-nos o que mais prezamos. Se lhe puserdes m fama na filha, eu consentirei que resgateis essa culpa, tornando-a vossa esposa. Nem eu, enquanto for o Defensor do Reino, nem o povo comigo, enquanto as foras de Castela o no esmagarem. Senhor, honestamente viver em companhia da minha me. Na hora em que lhe surpreendesse o intento de me levar para o caminho ignbil do pai, ningum com mais profundo desprezo do que eu a expulsaria da minha casa. Eu sozinho procurarei resgatar a torpeza que o pai lhe deixa de herana. Na dianteira dos vossos cavaleiros, em quantas batalhas lutardes, de peito afoito para os maiores perigos, com o dobrado fervor pela santa causa que defendemos, eu pagarei com o meu sangue ou com a minha vida os direitos do favor que hoje vos suplico e espero do vosso grande corao, Mestre e senhor. Numa hora assim vos enfeitiou! Senhor, ainda a bem dizer uma criana e ficar ao desamparo, aos baldes do Mundo como as esfarrapadas das ruas, talvez na misria, certamente exposta s iras sanguinrias da populaa, se vs no consentirdes, senhor, que v confi-la piedosa generosidade da minha me. E com tal comovedora sinceridade disse isto, que foi-se embora profundamente o propsito do Mestre. Juiz do Povo, qual parecer o vosso? disse, voltando-se para Afonso Eanes. Mestre, a mim me quer parecer que o nobre senhor Ruy de Vasconcelos merece, pelo seu nome e leal intrepidez, que tal favor lhe concedais. Se fosse preciso que por tal enobrecido cavaleiro algum respondesse perante vs, senhor, responderia eu, como para o povo hei de responder firmemente por ele. Est bem. Deixo vossa conscincia, Ruy de Vasconcelos, todo o encargo desta concesso. Podeis abrigar na vossa casa a mulher e a filha do traidor Gil Vasques de Mendona. Senhor infante e defensor nosso! disse Ruy calorosamente, num jubiloso arrebatamento, de joelho dobrado, a procurar a mo do Mestre para lha beijar Para todos os sacrifcios que de mim quiserdes, fora da conta dos que devo Nao e para os mais destemidos feitos de que for capaz nos maiores perigos e nas maiores batalhas, Mestre, contai com o cavaleiro que deu guarida famlia de um traidor. Aqui vos juro! Sim, ide dizer-lho, e levai-as convosco. Senhor, e as judias? Vou mand-las para Vila Nova, e l ho de ficar encerradas e com guardas vista, para que de todo se dissipem as suspeitas do povo. Quanto vos devo, senhor, e que generosa e grande alma a vossa! Afonso Eanes disse o Mestre para o glorioso tanoeiro o anadel- mor que entre. O Juiz do Povo foi cham-lo casa contgua, onde ficara guardando ordens. O anadel entrou sozinho. Ruy despediu-se do Mestre e saiu. O cavaleiro Ruy de Vasconcelos tem licena minha para sair com essas duas damas, a quem defendeu das iras do povo. Oito dos vossos homens para o acompanharem a casa de D. Dulce de Vasconcelos. Quinze besteiros da vossa confiana para escoltarem j a Vila Nova de Gibraltar essas duas judias e os seus servos. O Juiz do Povo ir com elas para lhes determinar l a casa em que devem ficar encerradas e verificar se na sinagoga maior desemboca o caminho oculto que h nesta casa. Senhor, as vossas ordens sero cumpridas. Tomai providncias para que esta casa seja demolida desde j e amontoadas sobre o caminho oculto todas as pedras derribadas. Ide diz-lo a essa gente do povo que a est fora, e que assistam demolio todos os que quiserem assistir. Quando a manh vier, deve de estar por terra a casa grande de D. Judas. Mestre, vou cumprir os vossos mandados. O anadel retirou-se e a seguir entrou Afonso Eanes. Senhor, entendo agora o sbito encantamento de Ruy de Vasconcelos! Vistes a filha de Gil Vasques? Mestre, vi. No teriam sido mais lindos os dezoito anos de D. Leonor Teles! Mas o seu olhar tem uma luz de bondade e de casta meiguice que... Que a rainha adltera nunca teve concluiu o Mestre, acudindo hesitao do tanoeiro Agora, oxal que Ruy de Vasconcelos no falte ao que deve o seu nome, e Deus lhe d melhor fortuna do que teve com os seus malogrados amores por aquela juvenil dama do pao, desaparecida h dois anos, sem que ningum saiba o que foi feito dela. D. Leonor de Gusmo. Ouvi falar dela e dizia-se que era das mais formosas que tinha o pao. At se chegou a dizer que se teria juntado com a rainha, viva do vosso irmo, que Deus tenha consigo! E as judias? Como ficaram? Numa aflio, lavadas em lgrimas. Tendes de as acompanhar a Vila Nova. E deu-lhe as indicaes que j conhecemos.
* * *
Foi enternecedora a despedida das judias. Afastaram-se de D. Maria de Mendona e de Madalena num arquejar de soluos e em tal amargura de lgrimas, que parecia despedida para nunca mais se tornarem a ver. Tendes quem vos proteja, Madalena segredou-lhe Ester Navarro, indicando o jovem cavaleiro num olhar Ns, ningum! Eu lhe pedirei por vs volveu-lhe Madalena com adorvel ingenuidade, ruborizada, num fio trmulo de voz. Diz-me o corao que nunca mais nos tornaremos a ver! soluou a esposa de D. Judas, abraando D. Maria de Mendona, numa angstia de pressentimentos lgubres. H de querer Deus que nos tornemos a encontrar. Assim o espero da misericrdia divina. Ter d de ns o Deus de ns todos. Hei de eu pedir-lho nas minhas oraes, pelo tanto bem que vos devo e pela generosa guarida que me destes. O Juiz do Povo chamou-as. Era preciso partir. E l saram entre a escolta para a comuna dos Judeus, aquela ridente Vila Nova de Gibraltar, asilo e clausura de uma raa odiada. Revoavam alto os apupos e as pragas da populaa. Ruy saiu instantes depois com as suas desventuradas protegidas; atrs delas uma escolta de homens armados. As mulheres e os farroupilhas, contidos pelo prestgio do jovem cavaleiro, limitaram-se a resmungar comentrios maliciosos e vaticnios de humilhadora obscenidade. Mas o Mestre saiu ento e a multido agitou-se e partiu enovelada atrs do seu dolo. Viva o nosso Defensor, o nosso Messias! gritavam. Dali a minutos, a populaa voltava. Cantavam lugubremente no silncio da noite, batidas pelas picaretas, arregoadas pelos alvies, desprumadas pelas alavancas, as velhas cantarias da casa grande de D. Judas Navarro. E os madeiramentos seculares, de cedro e Carvalho, estoiravam num rudo estridente, a lembrarem gritos bruscos, singulares, de alguma estranha dor, cortados por uma dezena de machados.
CAPTULO VI AMORES DE SONHO
Longas horas oprimida de espanto pela demora do filho, D. Dulce sentiu uma grande impresso de consolo quando ele apareceu na casa do sero, que era onde ela costumava esper-lo noite. Mendo j a tinha informado do arrojo de Ruy durante a batalha naval e de como ele voltara a salvo. Mas impresso de consolo sucedeu bruscamente um sobressalto de surpresa, pelos ares misteriosos com que Ruy lhe solicitou uns instantes de conversa reservada para lhe fazer um pedido. Foi com ele para uma saletazita da sua antecmara. Numa comoo enorme, em que o jbilo se ensombrava de receios, olhos fitos nela como para lhe surpreender os pensamentos, Ruy contou-lhe abertamente quanto se passara em casa de D. Judas. De surpresa em surpresa, D. Dulce escutava-o enternecidamente com adorvel interesse de me extremosssima. Ruy ia reservando para o fim o lance mais difcil, que era tambm o de maiores receios para ele. Filho, foste digno de ti prprio ao defenderes essas amarguradas criaturas. Deus te pague essa honrada generosidade. Ds-me orgulho, filho! disse-lhe carinhosamente, inclinando-se para ele e tomando-lhe as mos E o Mestre acedeu aos pedidos dando proteo s judias? Mandou-as para Vila Nova de Gibraltar. Pobres mulheres! E as outras, a mulher e a filha de Gil Vasques, o traidor? Ainda me no disseste qual destino lhe deu o Mestre! Me e senhora, tambm lhe pedi por elas. Causavam tanto d! Me e filha, qual podia ser a sua culpa da traio do marido e do pai?! A filha, a bem dizer uma criana, linda como os arcanjos e como as princesas dos contos, que sorte miseranda a sua, se a deixassem ao desamparo! Se a vsseis a tremer de pavor, olhos afogados de lgrimas, numa dor de alma pela me e por si, vs prpria, senhora, com esse vosso corao de santa, muito mais do que eu, haveis de ter d dela. Mas o que pedistes ao Mestre em favor delas? Me disse numa tremura de voz, dobrando o joelho, beijando-lhe as mos eu pedi-lhe que as deixasse acolher caridade e ao corao benfazejo de certa dama ilustre, me tambm como a esposa de Gil Vasques. Qual? Aquela por quem eu me julguei autorizado a responder ao Mestre, porque melhor do que ningum a conhecia. Filho, no sei adivinhar! Vs, minha me! Eu! exclamou, erguendo-se. Vs, santa protetora que ledes na minha alma. Nem eu tinha outra que pudesse e soubesse engrandecer e completar a tarefa protetora comeada por mim! Ruy, confiaste de mais! E o Mestre o que disse? Concedeu que eu viesse pedir-vos amparo para aquelas duas desditosas damas e, se vs me ouvsseis, me e senhora, na vossa casa lhes dssemos abrigo. Filho, pode ser perigo por essa mcula de que elas no tm culpa! Me, no oponhais escrpulos vos s piedosas intenes do vosso corao. Pode trazer-me preocupaes, por ti e por ela... Essa filho do traidor que tu disseste linda como os arcanjos e como as princesas dos contos! Me insistiu, beijando-lhe as mos mas com que amargura e desalmada crueza, bem o entendeis, senhora, podereis querer vs que eu fosse agora dizer a essas infortunadas: O Mestre, o homem de guerra, concedeu que vos dessem amparo, porm, minha me, aquela de quem eu vos falei confiante, alma de santa para o bem, corao cheio de amor por mim, essa no quer receber-vos; tem escrpulos, essa no quer apiedar-se de vs! Me e filha, ide para a romagem das ruas, a ver se tem d de vs a ral que vos odeia. Se quer repartir convosco a sua misria e a sua fome, ainda que a vossa linda filha, D. Maria de Mendona, haja de perder-se nas mos brutais de besteiros e galeotes! Ruy de Vasconcelos iludiu-se e mentiu-vos! Senhoras, mentiu-vos o cavaleiro fidalgo, que ainda no tinha manchas na sua vida e nunca ainda teve medo de morrer pela honra do seu nome! Numa agitao que a fazia tremer de receio pelos seus amargurados pressentimentos de me, numa hesitao torturadora da sua vontade, D. Dulce ouvira aquelas arrebatadas alegaes do filho, sem nimo para o interromper e cheia de medo pelas verdades que o seu corao ansiava dizer- lhe. E, todavia, t-la-iam enchido de santo orgulho aquelas palavras de Ruy, em que a sua grande alma transparecia brilhante, se no a estivesse oprimindo a suspeita de que o juvenil sonhador vinha enfeitiado pela rara formosura de que lhe falara com tanto, entusiasmo, o triste experimentado de malogrados amores! Filho, no mentirs, nem o meu corao h de faltar ao que dele esperavas, por muito que lhe custe e agora receie dar auxlio s tuas promessas. Me, que generosa sois para mim! disse-lhe quase num grito de alma, e outra vez lhe quis beijar as mos de joelhos. Vai busc-las. Senhora, ousei traz-las comigo. Me e filha vos guardam na sala de entrada. Vamos l, filho! Ampara-me. Foram. Foi uma entrevista comovedora. D. Maria de Mendona, a sua companheira do pao, uma das suas amigas, havia dez anos, abraou-a de joelhos, numa convulso de choro. Ruy no exagerava! disse consigo D. Dulce quando lhe foi dado admirar bem a singular beldade que era Madalena de Mendona O seu olhar doce e casto, mas seduz! Meu Deus, maior perigo para ele e para mim! E quando, cerca de uma hora depois, me e filha tinham ido para os seus aposentos de esmola, D. Dulce, com os olhos toldados de lgrimas, disse baixo ao filho: Ruy, que Deus seja pela tua honra, e a nossa Senhora tenha d do meu corao de me! Senhora, e se Deus no quisesse e a Me de Jesus no houvesse d de vs, bem sei eu como o falsrio buscaria o castigo da sua torpeza na ponta de uma lana castelhana. Rui! repreendeu, pondo o nome do filho na vibrao angustiosa de um grito.
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Tinham passado duas semanas. Deram em paixo absorvente e louca os deslumbramentos de Ruy de Vasconcelos pela radiosa beleza de Madalena. No olhar e nas palavras de um e outro valeram alguns dias por largos meses de fervoroso galanteio. Amavam-se num amor de visionrios, profundo, consumidor, luz de sonho para encher uma vida e nessa mesma luz o fogo para a devorar. Ruy nem parecia o mesmo! O cavaleiro seria incapaz de regatear sua Ptria e ao seu nome o esforo, o sangue, a vida; mas agora, como nunca, teria pena de morrer, porque na sua alma enamorada a imagem de Madalena era como um retbulo de santa miraculosa, que lha tomava inteira, como na moldura de um altar que estivesse alastrado de flores, envolto de perfumes, sob um resplendor de esmeraldas, que algum divino lume houvesse tocado. Muito em segredo e com a interferncia favorecedora de uma velha criada, que fora a ama de Ruy, aprazaram os dois uma entrevista de devaneio, livremente, bem perto um do outro. Ficaram numa nsia perturbadora por aquela hora de enlevo, que podia ser afinal o primeiro lance de perigo para ambos. Era no sobrado do mirante o compartimento onde dormia a velha intermediria; a poucos passos o terrao. Ali lhe faria costas a velhita, coonestando, ao mesmo tempo, com a sua presena aquela entrevista noturna, dado que os pudessem surpreender. Os aposentos de Ruy ficavam distantes da cmara de D. Dulce, que era a nica pessoa que ali os trazia vigiados e receosos. No seria provvel que l percebesse os passos do filho. A cmara de D. Maria de Mendona era contgua de Madalena, mas bem sabia ela como era pesado o sono da me, e no h mulher enamorada que no tenha levezas de borboleta para uma entrevista de amores. Todavia, por maior segurana, lembrou Ruy um estratagema simples, banal, e certamente seguro para tranquilizar os receios da me. Pretextaria ele um encargo de vela, durante a noite toda, na torre de lvaro Pais ou nas Portas de Santa Catarina, os pontos mais ameaados pelo exrcito sitiante, e voltaria pela porta pequena do jardim, mal que fossem onze horas. Levaria a chave sem que ningum o soubesse e entraria acauteladamente quela hora, que naqueles tempos era j noite velha. De mais a mais, tinha o terrao uma escada exterior, que dava para o jardim. E assim o fez, num alvoroo em que toda a sua juventude parecia resumir-se.
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Estava calmosa aquela noite luarenta de Julho. Ainda no eram onze horas quando Madalena conseguiu escapar-se da sua cmara, sem que a me a pressentisse. Numa tremura opressora um saial branco a oculta-lhe as formas esculturais de Vnus pudica, um fio de prolas, restos da sua extinta opulncia, a cingir-lhe no alto da cabea as madeixas de ouro, que em ondas se lhe soltavam sobre os ombros, l ia p ante p para a porta anterior do mirante, a tatear as paredes com as mos pequeninas, brancas, trementes. Nossa Senhora me perdoe e seja por mim! murmurava. Parou um momento no primeiro degrau da estreita escada de pedra que ia para o mirante. Dir-se-ia que lhe causava medo subir. A bater doidamente! pensou, pondo a mo sobre o corao como se o quisesse emudecer To alto, que at ele parece que me quer denunciar! Subiu. A velhita l estava sentada no rebate da porta do terrao, encalmada, tonta de sono, espera dela. Falou-lhe numa tremura de voz. Entrou no terrao vida de ar puro. Vinha do rio, luminoso e grande, uma virao consoladora. Pousou um olhar amoroso nos craveiros e nas rosas dos longos canteiros, guarnecidos de azulejos mouros. Depois abraou num relance de olhos aquele panorama deslumbrador da cidade. Opala enorme a deslizar para os lados do mar pela imensidade de um azul acariciador e calmo, a lua cheia dava um aspeto fantstico de lenda cidade, aos montes que a cingiam, coroados de torres e muralhas; amplido rumorejante do Tejo em que tremeluziam os faris da potente esquadra de Castela. Parecia uma esguia cidade de longas ruas traadas a cordel o acampamento do exrcito sitiante, numa alvura uniforme como de povoao coberta de gelo. Tinham relevo maior os montes da Outra Banda e distinguiam-se bem, no seu contraste de tons, as muralhas e cubelos enegrecidos da velha cerca defensiva, das outras que tinham apenas dois anos, mais brancas ainda porque sobre elas escorriam levadas de luar. De torvo aspeto, atalaia secular, o castelo de Almada recortava-se na alvura daquela noite. Que linda assim esta nossa grande cidade! pensou Madalena Que saudades eu tinha de a ver neste desafogo! E quem sabe que hora de suprema vi ui ura ou de supremo infortnio ser esta na minha vida? Ouviram-se os brados das sentinelas trazidos nos voos da aragem dos lados das torres distantes e do lado do acampamento castelhano. Na lngua de duas nacionalidades em luta, como uivos de um dio sanguinrio, inexcedvel! dio criado por uma ambio inqua de conquista, dio acalentado por uma santa paixo de patriotismo. Madalena estremeceu num arrepio de medo. Tudo aquilo que os seus olhos admiravam num enlevo de pasmo, a paisagem e o cu numa poesia calma e mima grandeza deslumbradora, subitamente se lhe entenebreceu nas vises de alma como se todo aquele mar branco de luar se lhe afigurasse um imenso lenol morturio. Meu Deus! murmurou A guerra a gritar alto nesta delcia de sonho! De uma para outra hora, combates enfurecidos e neles quantos amores acabados, quantas almas de batalhadores que nunca mais voltam? E ele? Jovem de tamanho arrojo de nimo, que dor mortal a minha tambm se ele no voltasse?! A sobe j! avisou a velhita, escutando Eu vou ver. Era realmente Ruy de Vasconcelos. Volvidos instantes entrava no terrao. Sobre a cota de armas um longo manto preto; armado como tinha sado, no disfarce de ir velar para a torre de lvaro Pais onde se receava uma arremetida noturna dos sitiadores. Espelhava-se o luar no ferro polido do bacinete, em cuja cimeira esvoaavam plumas altas. Num louco alvoroo do corao, Madalena envolveu-o todo no seu olhar acariciador e numa agitao de fascinada e num ingnuo orgulho por aquele gal de mscula beleza, recordava de relance o romance do cavaleiro do cisne branco, o descobridor do Santo Graal, o paladino que os profetas tinham anunciado, cercado de anjos de asas brancas como as pombas de Jerusalm, um dos companheiros de Sagramor, um dos cento e cinquenta cavaleiros da Tvola Redonda. As trovas em que este romance de cavalaria se resumia as ouvira ela muitas vezes, criana de nove anos, sua aia sexagenria, nos longos seres do Inverno. E a figura de sonho que a sua imaginao infantil compusera num esboo incompleto, sob a sugesto do conto antigo, a encarnava desvanecidamente naquele requestador que lhes salvara a vida, a ela e me, e era agora o seu primeiro amor. Madalena, h seis horas na nsia deste momento! Meu amor, minha vida! Morreria pela fortuna desses instantes! E beijou-lhe as mos sofregamente, nuns beijos longos, febris. Rui! Levou-a consigo, brandamente, para uma banqueta de pedra entalhada no muro do terrao, entre dois canteiros de roseiras altas em que a aragem embalava uns botes brancos, j crestados pelo sol de Julho, e uma rosas que, hora a hora, se iam esfolhando num empalidecimento de morte. A velhita foi sentar-se discretamente no degrau da porta. Madalena! Que mgoa eu tenho de no saber dizer-te a vida nova que entra em mim com o teu olhar, e que pequeno corao este meu para caber nele a tua imagem em tal arrebatada adorao, que a ti prpria havia de parecer loucura, se a pudesses compreender ou eu soubesse contar-ta! E eu, Ruy? Como eu te quero! um amor maior que todos os outros amores... Ainda maior do que esse que ns sentimos pelas nossas mes! Muito maior! Muito! V l ento que divina ventura no ser para mim ouvir-te, princesa de sonho, daqueles sonhos em que eu idealizava torneios de campeador vitorioso, batalhas ideais em que eu fosse o heri, o triunfador! Ruy, no me lembres esses perigos dos combates, mi que os sonhos de amor numa hora se podem desfazei, apagar-se como s vezes no cu as mais lindas estrel.is se apagam! E tens medo por mim, vida da minha alma? Tenho. Agora o medo maior que eu podia ter! Porque nunca tiveste outro homem que amasses assim! Diz-mo, que dar-me orgulho tamanho como nenhum prncipe triunfador ainda teve igual. s o meu primeiro amor, e se a minha alma a mim prpria me no mente, pelas nossas mes te juro que nenhum outro quero ter. Bendita, bendita seja por essa jura a tua boca anglica, minha celestial beleza! E beijou avidamente as madeixas soltas dos seus cabelos de ouro. Ruy disse-lhe sumidamente, num enlanguescimento de nimo e num tbio protesto da sua casta adolescncia. Minha vida! No temas que eu falte ao juramento feito a minha me. Beijei-te os cabelos como se fossem de irm minha, muito querida, para lhes no roubar o casto perfume, e como se fossem ouro purssimo, que h de ser o teu opulento dote, noiva queridssima da minha alma! Noiva! Deus sabe para que doloroso noivado! E volveu para o acampamento dos sitiantes um olhar de imensa tristeza, enevoado de lgrimas. A seguir-lhe o dolorido olhar, muito inclinado para ela, Ruy surpreendeu-lhe aquela nvoa de choro. Madalena, choras! Por este noivado de sonho, que tantas realidades podem desfazer! disse-lhe quase num soluo. Porqu, amor meu?! Se eu no quero outra noiva, se eu sou capaz de dar a vida pelo nosso primeiro dia de npcias, perdendo-a por quem no-lo pudesse assegurar, rei ou vilo, dado que no fosse um inimigo da nossa terra ou algum que a houvesse trado! Que a houvesse trado! repetiu num timbre de angstia Pois a est porque eu queria alhear-me deste amor e inutilmente o tentei! Aqui tens porque eu choro. Alm disse, apontando o arraial castelhano est entre os que traram a sua terra, como tu disseste, algum que eu no posso detestar porque meu pai! E s tu, cavaleiro leal, que tens o direito de lhe votar dio a ele, s tu, o maior amor da minha vida! V que noivado pode ser o meu, a filha do fidalgo que est por Castela, contigo, o jovem esforado que defende a sua terra! S num sonho... Para morrer por ele! Ouve, Madalena. Disse-o j ao Mestre. A minha espada tanto h de empenhar-se pela santa causa de Portugal, que baste para apagar em volta do teu nome essa mcula que no tua. Batalhando, pondo a vida em risco! Para envolver nos meus deveres de cavaleiro e de Portugus tal glria de batalhador, que chegue tambm larga para o dote remissor da minha noiva. Nas maiores batalhas o mais denodado arrojo; no meu escudo o teu nome e, para mais incendida afoiteza, na minha alma a tua imagem. Mas tudo isso, Ruy, nas batalhas que se podem perder, nas batalhas donde tantos nunca mais voltam! Tenho medo por ti! disse, levando as mos ao rosto Contavam-me em criana umas histrias de batalhas que me causavam pavor! J arrisquei a vida com vontade de a perder, e a morte no quis encontrar-se comigo. Pedirs tu a Deus por mim, linda e pura como os anjos, pedir minha me nas suas oraes de santa, e Deus ser comigo e a mais benfazeja estrela que tenha o cu ser madrinha do nosso noivado, Madalena. No quero ver-te chorar disse-lhe enternecidamente, a cabea descoberta, quase a tocar-lhe a juba dourada dos seus cabelos Sinto no corao, como se fossem contas soltas de um rosrio de tristezas, as prolas do teu choro, vida da minha vida! Podem acobardar-me! No faas delas a nvoa em que se apague esta alvorada das nossas almas noivas! So por ti, meu bem-amado volveu-lhe na msica adorvel da sua voz, trmula, carinhosa, num timbre de cristal. E fez-se de dois beijos sequiosos nos olhos hmidos de Madalena a grata homenagem daquele gal. A velhita dormia profundamente com a cabea de neve pendida para o colo, e nenhuma estrela iria contar me daquele galanteador o segredo perturbante dos seus beijos.
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Ao outro dia, logo de manh cedo (eram madrugadores aqueles nossos avoengos), apareceu o Juiz do Povo em casa de D. Dulce no empenho de falar a Ruy de Vasconcelos. Levaram-no para a cmara do jovem cavaleiro, j ento a acabar de se vestir. Que boas ou ms notcias vos trazem por aqui, senhor Afonso Eanes? Boas e ms. Para mim? Para todos os homens leais de Portugal. Pois dizei-mas, para que eu as saiba primeiro da vossa boca, honrado Juiz do Povo. Comearei pelas boas notcias. Por um fugitivo do arraial castelhano, que esta madrugada se apresentou nas Portas de Santa Catarina, soubemos que Nuno lvares tem andado em correrias pelo Alentejo contra os Castelhanos. Bem sucedidas? Quase todas, segundo afirma o fugitivo. Tomou Assumar por surpresa; foi sobre Badajoz e, com as escassas foras que traz consigo, combateu na raia de Castela. Depois voltou ao Crato, para se opor a uma hoste de Castelhanos que daqui foi no propsito de o derrotar. Daqui, quereis dizer da hoste sitiante? Assim . Hoste numerosa para esmagar os poucos do novo Conde de Ourm. Mas se essa nova inclus entre as boas que trazeis, certo no foi ento batido Nuno lvares. Tm-lhe receio os de Castela e, pelos modos, julgavam i-lo colher de surpresa; mas assim no foi, louvores a Deus. Nuno lvares juntou as suas foras em vora e de l fugiu a receber o inimigo, que tinha chegado margem de c do Divor. No se atreveram a dar-lhe batalha os de Castela, e h poucos dias regressou ao arraial do rei invasor a hoste que fora ao malogrado cometimento. Grande capito Nuno lvares, por vida minha! Nenhuma alma de maior valor entre os nossos como a desse chefe batalhador de 24 anos! Para os Castelhanos sei eu que no h lana nem esforo que eles mais temam, mormente desde aquela formal derrota que em Abril lhes infligiu na batalha dos Atoleiros. Deus no-lo traga em auxlio de Lisboa, que a maior alma que tem Portugal. Agora a outra boa nova: O Mestre da Ordem de Cristo tomou o castelo de Ourm. Excelente. Mas a verdade que toda a fora da nossa causa se resume, a bem dizer, em Lisboa e Porto, e ai de Portugal, se uma das duas cidades se perder! Dizeis bem. O perigo maior est agora em Lisboa. O Porto l rebateu as hostes galegas do Arcebispo de Santiago, e no me parece que elas tenham vontade de voltar para c do rio Lea. Aqui em Lisboa que est a vida ou a morte de Portugal. As ms notcias que vos trago confirmam esse vosso parecer. Entrou no Tejo esta madrugada mais outra armada castelhana de vinte e uma naus e trs gals. Toram contadas pelas nossas atalaias do rio. Cerco ainda mais apertado, senhor Ruy de Vasconcelos! At aqui estava a armada castelhana desde Santos a Cacilhas; agora tem outra mais para diante, em frente de Cataquefars at Porta da Cruz, de modo que os virotes de bordo podem varar a quem se atrever a passar nas ribeiras da cidade! E a nossa armada intil, varada na praia, cerca de Enxobregas! Dezasseis naus e treze gals, que valia met-las a navegar, se os de Castela tm agora sessenta e uma naus e dezasseis gals, fora uma galeaa e umas poucas de carracas? Pela barra nenhum mantimento poder entrar, por terra nem um bago de trigo! O pouco que veio do Porto est gualdido e as bocas aumentaram! Se Nuno lvares no vem por a fora numa das suas arremetidas de leo, teremos de ir morrer de fome, numa hoste de desesperados, contra o arraial castelhano, ou rendermo-nos estiraados por essas ruas! Perder-se- Lisboa faminta, como loucos de sede se vo perder os defensores do Castelo de Almada. Sabia que estava cercado. Agora pelos homens de armas do tal Pero Sarmiento, adelantado de Castela. O prprio rei castelhano l foi para intimar aos nossos a que se rendessem; mas, por mais ameaas e promessas que lhes fez, ningum se quis entregar. Tem sido uma gloriosa defensa aquela, senhor Ruy de Vasconcelos! Um punhado de homens, e tm sado em arrojadas sortidas contra os sitiadores! E o prisioneiro de mais nomeada que ali fizeram os de Castela foi, logo no princpio, um velho de oitenta anos, foragido que veio para servir o Mestre. Um velho de oitenta anos? Assim como vos digo. E no h em Portugal quem lhe no saiba o nome de triste fama: Diogo Lopes Pacheco. Ah! Sei ento quem . Um dos matadores de D. Ins de Castro, se o foi; um dos validos de el-rei D. Afonso IV, o grande e intrpido rei da batalha do Salado. Dos matadores da linda e mal-aventurada Castro, ele s conseguiu escapar s iras de D. Pedro I. Fugido em Castela, de l veio quando j estava com os ps para a cova! Mas Almada tem de entregar-se, e assistiremos ns daqui sua perda, esperando a nossa! Corta o corao diz-lo, porm esta a triste verdade! Mas ento o castelo j no pode resistir? No pode. Vivem l nos desesperos da sede, piores ainda que os da fome! Tinha o castelo uma cisterna; a estiagem secou-a. Andam l doidos! E o Mestre o que resolve? Que se renda aquele punhado de valentes, visto que nenhum socorro se lhes pode levar. O Mestre sabe bem a desesperana em que eles l esto. Agora at os de Castela levaram para l um engenho de fogo, que no pesar menos de cinco quintais! Mas no poderiam esses pobres sitiados fazer algumas sortidas noite para irem buscar gua? Tudo isso fizeram e ainda mais! Havia fora da alcova um tanque de gua das chuvas, verde, podre, nojosa, onde as mulheres da vila tinham lavado infundices e cueiros, e para onde os Castelhanos, por malvadez, tinham atirado as alimrias mortas. Pois dessa mesma foram buscar para beber, descendo de noite por cordas, ao longo das muralhas! E para trazerem aquele veneno, algumas vezes tiveram de lutar! Era bem um veneno de morte! Ferviam-na, crentes de que assim seria menos perigosa, e com ela amassavam o po. Pois essa mesma os Castelhanos lhe disputavam em combate, ao preo de muito sangue, e essa mesma se acabou! Depois, uma noite, desceram pelos barrocais do monte para ir buscar a gua salgada e turva do rio. Mas logo o souberam os sitiantes, e na seguinte noite lhe armaram uma emboscada, com uns cem homens de armas. Desceram dezassete dos defensores do castelo e caram sobre eles os de Castela. Foi uma breve luta. Tiveram muitos mortos e feridos os Castelhanos, e dos nossos dezassete morreram trs e todos os outros ficaram feridos de dardos e setas. E tudo isto para levarem apenas dois odres meios de gua! Nem um bochecho para cada um dos que l estavam em cima loucos de sede! E mngua de gua l tm morrido alguns! Admira como tantas mincias se sabem aqui, se todas as comunicaes pelo rio esto cortadas! Tudo isto sabe o Mestre porque um valente homem daquela vila, que veio na armada do Porto, se ofereceu para ir a Almada de noite, cortando o rio a nado para os barrocais do Monte. Metendo por entre a armada inimiga! E por entre as esculcas da hoste sitiadora. E com todos estes perigos l atravessou o rio, umas poucas de noites, seis vezes entre ida e volta, com recados do Mestre e informaes da gente do castelo. Que valente esse homem! Filho do povo, senhor Ruy de Vasconcelos. Foi por ele que o Mestre mandou dizer aos do castelo que podiam tratar da honrada capitulao que mereciam. Bateram porta brandamente. Era o velho Gonalo Vasques. A que vindes, meu velhinho? Senhor, para vos dizer que a chegaram agora uns poucos de cavaleiros, no menos de vinte sero eles, e todos muito jovens, que vos desejam falar. Tantos, e assim cedo para qu? Isso que eles me no disseram, meu senhor. Pois ide abrir-lhes a porta da sala de armas, e dizei-lhes que depressa estarei com eles. Eu vou, meu senhor. E eu saio, se me dais licena disse o tanoeiro. Como vos aprouver. Mas antes deixai que vos d uma notcia. Vai melhorando no hospital aquela mulher animosa... J sei. A tia Lourena. Essa mesma. O Condestabre de saias como lhe chamam as outras. Fui a casa dela ver a doida, a quem deu abrigo no seu casebre. Disseram-me que estava mais sossegada; mas que levava horas e horas a chorar e a falar da filhita que morreu. Fiquei pasmado de a ver! Emagrecida pela fome e pelas amarguras, as faces cavadas, os olhos pisados, e mesmo assim linda! Teima em no querer dizer o seu nome; mas v logo a gente que rapariga de boa criao. Aquelas mos no andavam afeitas ao trabalho rude da gente pobre. Ser preciso dar-lhe socorro. Eu pela minha parte farei o que puder. Contai tambm comigo. Aqui tendes o meu primeiro auxlio para essa desventurada disse, dando-lhe uma pequena moeda de ouro. Abenoada seja a vossa esmola e Deus vo-la pague nas muitas venturas que mereceis. Bom ouro este, senhor cavaleiro; mas o do vosso corao de muito melhor quilate. Agora quero ver se a minhamulher tem por l algum vesturio que possa servir desgraadinha. Traz em cima de si uma farrapagem de brocados ricos, ou dos seus melhores tempos, se os teve, ou talvez recebido de esmola! Pois eu falarei dela a minha me, que alguma coisa h de ter a que possa servir pobre enlouquecida. Ah! Isso decerto, e bem empregada esmola ser. Fcil vos h de ser trazer para esta obra de misericrdia o corao benfazejo da minha madrinha e senhora, e ento nenhuma protetora melhor ter aquela triste me, enlouquecida pela morte da filhita. Senhor Ruy de Vasconcelos, at quando quiserdes e mandardes. Talvez at logo, que tenho de ir falar ao Mestre, e com ele vos encontrarei, provavelmente. Com ele conto estar antes do meio-dia quando se houverem reunido em conselho no pao os da Casa dos Vinte e Quatro. E disse isto desvanecido aquele glorioso tanoeiro. Ia Ruy para a sala de armas quando Madalena, furtivamente, lhe saiu ao encontro, muito plida, num alvoroo de receios. Ningum passava ento no longo corredor. Ruy, correis algum perigo?! perguntou-lhe sumidamente, relanceando olhares inquietos para um e outro extremo do corredor. No, meu amor! Porqu? Vi entrar muitos cavaleiros jovens. Casualmente os vi, e sei que esto vossa espera. Nisso no vejo eu o menor perigo para mim. que eu conheo um deles! E o que importa conhec-lo? um jovem assomadio, brigo, galanteador que h dois anos me requestava e perseguia. o meu primo e foi sempre muito acarinhado pelo meu pai, que mo destinava para noivo. Receei que soubesse da minha vinda para aqui e a viesse para vos desafiar! Com tantos a guardarem-lhe as prospias! Mas teve amores convosco? perguntou, bruscamente afogueado, num tratamento cerimonioso. Nunca lhe dei ouvidos, nunca lhe quis escutar palavras de amor. Pela minha me vos afirmo e juro! Chama-se? Anto Gonalves de Mendona. Fico prevenido. Pena foi que h mais tempo vos no lembrasse dar-me aviso desse requestador! Por Deus, sede prudente, se alguma coisa lhe ouvirdes que vos desagrade. promessa que eu no sei fazer respondeu-lhe com secura. Deus meu, que duvidais de mim! Eu vos direi depois. Esperam-me, e agora mais pressa a minha de os ouvir. Deixou-a rudemente. Confrangida por aquela inesperada aspereza, em que o seu instinto de mulher percebia bem porque assomo de cime e de dvida se mudara assim aquele enternecido requestador da vspera, Madalena foi seguindo pelo corredor fora como que estonteada. Movida de temores por ele, num irrefletido impulso de lealdade, ela prpria ingenuamente provocara essa brusca transio que a amargurava. E, sem saber bem para qu, se foi aproximando da porta cerrada da sala de armas.
* * *
Ruy entrou e saudou-os cerimoniosamente. Dos vinte e dois que o esperavam, cavaleiros juvenis entre os dezassete e os vinte e trs anos, alguns notou de relance que lhe eram absolutamente desconhecidos. Veio logo para ele um cavaleiro de preclara nobreza com quem, havia tempo, travara relaes ntimas. Era um rapaz alto, espadado, extraordinariamente magro, de rosto moreno e feio, azulado pela intensa barba rapada; nas mos hercleas uma brenha de cabelos speros, negros. Passava pelo mais destemido e audaz entre os jovens da nobreza do reino. Tinham-lhe posto os outros rapazes a alcunha de. Magrio. Ruy de Vasconcelos disse-lhe na sua voz de estentor perdoai este ousio de que s eu sou o culpado. Aqui vos trago estes meus associados para vos darmos conta do voto de cavalaria que anteontem noite fizemos, juntos na minha casa. Sois dos mais leais e destemidos que tem Lisboa e porque o sois, homem de aventurosa juventude como ns, me pareceu dever aqui vir informar-vos do intento em que estamos, para nos dizerdes se quereis ser dos nossos. Assentai-vos, senhores. E vs, lvaro Coutinho, se em nome de todos falais, podeis abertamente dizer o voto de cavalaria que fizestes. Primeiro deixai que torne conhecidos vossos alguns companheiros meus com quem no tendes tido trato de amizade. E o Magrio foi-lhe fazendo a apresentao de uns nove que estavam na primeira fila. Aqui tendes um jovem de provado nimo e boa linhagem, que em gentilezas de esforo promete resgatar do seu apelido a m sombra que nele ps certo parente seu, muito chegado, que por ter errado caminho se afastou da nossa causa. Este se chama Anto Gonalves de Mendona. Ruy encarou nele duramente e baixou a cabea com singular frieza. O outro correspondeu-lhe de torvo aspeto, empalidecendo. A seguir, o filho de D. Dulce foi falar afetuosamente, a todos os outros, seus conhecidos ou seus amigos. Assentai-vos, senhores meus instou, indicando a todos os escabelos de espalda alta, cobertos de couro cordovs com relevos e pregaria amarela, que estavam em volta de uma longa mesa de cedro No a mesa, a tvola redonda do rei Artur acrescentou, sorrindo mas estou em crer que sereis vs como os companheiros do cavaleiro do cisne branco (*).
[(*) Referncia a uma agremiao lendria de cavaleiros romanescos, chamados da Tvola Redonda. Foi o seu fundador e o seu chefe o rei Artur do pas de Gales, outra figura das lendas e das trovas dos menestris da Idade Mdia. Segundo os romances dos troveiros, o rei Artur no podia morrer. Ficara encantado na ilha de Avalon e ali o guardavam nove feiticeiras.]
Mas com intentos algo diversos acudiu Magrio, muito prazenteiro, sentando-se. E vs volveu-lhe Ruy de Vasconcelos valereis por D. Galaaz, embora nenhum profeta e nenhum feiticeiro Merlim vos houvesse anunciado. Nem ando cercado de anjos como D. Galaaz advertiu o Magrio em tom faceto certamente parque at destes meus ossos esburgados e spera cabeladura teriam medo os prprios meninos da celestial famlia. Riram todos do gracejo; todos, no; Anto de Mendona ficara taciturno. Mas j estou a adivinhar que esse voto de cavalaria disse-lhe Ruy afetuosamente ser para a conquista de algum santo lugar... Os santos lugares da nossa terra de Portugal interrompeu o Magrio calorosamente. E em vez do santo e glorioso Graal(*), que D. Galaaz buscava, ele o mais destemido e puro dos cento e cinquenta da Tvola Redonda...
[(*) Nas lendas da alta Idade Mdia e no segundo ciclo da Tvola Redonda o santo Graal era a taa de esmeralda por onde Jesus bebera com os seus condiscpulos na ceia de quinta-feira santa. Levada pelos anjos para o cu, s ao Mundo seria restituda quando houvesse algum de to extremadas virtudes que merecesse a honra de a tomar sob sua guarda.]
A nossa bandeira com o seu escudo de castelos, as divinas chagas de Jesus e a grande cruz vermelha da Ordem de Cristo. Para chegar conta dos cento e cinquenta do rei Artur muitos nos faltam ainda; mas espero em Deus que ainda mais havemos de ter. E agora vos darei informao do nosso voto. Com grande interesse vos ouvirei. Ontem nos juntmos os presentes, e, com licena do cabido, perante o altar de S. Jorge, em Santa Maria Maior, ali acordmos em formar uma hoste de cavaleiros jovens que, pela sua f, pela sua Ptria e pelas suas damas, se obrigassem a lutar na dianteira de todos, para os mais arrojados feitos e para as mais singulares faanhas. Belo e glorioso pensamento! aplaudiu Ruy Foi vosso, estou a perceb-lo. Agora de ns todos respondeu-lhe o Magrio modestamente De ns todos porque na alma e no corao de cada um foi o voto acolhido fervorosamente e um por um, sobre a cruz das nossas espadas, devotadamente o jurmos cumpri. Ns tornaremos realidade os rimances de cavalaria, que as nossas mes nos contaram e os troveiros peregrinos andam a exalar pelo Mundo nos seus cantares. Ser Nuno lvares o nosso Galaaz de sonho e o Mestre de Avis o nosso rei Artur. No se dir que s em Inglaterra h grande e gloriosa cavalaria. Aqui a teremos tambm em prole da nossa gente leal, dos nossos amores pelas damas que nos quiserem, pelas que. Ns sonharmos nossas e at pelas que nos so ou foram esquivas. Por uma dessas, em mal-aventurados amores, lutarei eu a par dos que mais ousados forem interveio Anto Gonalves de Mendona, arrebatadamente e talvez com algum clandestino propsito. Ruy olhou-o com turbado sobressalto; mas logo se aquietou numa delcia ntima de orgulho. O prprio mal sucedido requestador de Madalena por aquele modo solene confirmava a revelao, momentos antes feita pela filha de Gil de Mendona. Dizem que a boa e aventurosa cavalaria est para acabar continuou o Magrio Estar l fora, onde comeou e teve brilho maior; mas aqui agora comear para outros audaciosos cometimentos. Teremos tambm o nosso tribunal que decida pleitos de amor e a nossa corte de amores com a rainha da beleza, que por maioria de votos elegermos (*).
[(*) Houve cortes de amor e tribunais de amor na Provena e em outros pases da Europa durante a Idade Mdia. E nessas cortes se elegia para rainha a dama de mais esplndida beleza. Ainda hoje nos jogos florais, em Frana e na Espanha, principalmente, se elege para rainha a mais formosa das damas presentes e das suas mos que os poetas laureados vo receber o prmio de homenagem ao seu engenho. ainda um reflexo das velhas tradies de galantaria dos tempos medievais.]
A rainha das mais lindas interveio outra vez Anto de Mendona a conheo eu e, apesar das fundas mgoas que me tem causado, por ela darei meu voto, e mentir como um co judeu ou mouro refece quem disser que tal no . Ruy fez um gesto de impacincia, bem que as palavras do primo de Madalena lhe lisonjeassem as vaidades de gal preferido. Isso no para agora, Anto de Mendona! observou-lhe o Magrio O tribunal de amor que houvermos de formar, recolher os votos pela rainha das beldades, e das mos de quem o for, receberemos o pendo com que havemos de combater, pendo verde, como j acordmos; estandarte de jovens enamorados naquela cor em que a esperana de sonhadores suavemente se representa. Que tambm a cor do mar lembrou Ruy desse mar imenso que nos cinge e requesta a Ptria nos seus beijos de espuma; mar de sonho em que as ondas semelham esquadres de corcis brancos; mar de sonho e de ilhas encantadas como as mouras das nossas fontes; mar onde nasceu a deusa pag dos amores e onde nascem as prolas com que se toucam os cabelos de ouro e se adornam os colos de alabastro. Das mais belas ou das mais feias gracejou o Magrio E olhai que nisto falo por interesse meu. No tive ainda nenhuma dama linda que me quisesse e estou em crer que alguma feiticeira me destinou para paladim de castel abandonada, que seja feia e magra como eu. Talvez como certa inglesa fidalga que eu vi no Porto. ramos de tal arte esburgados e feios os dois, que at as regatonas da cidade lhe deram a alcunha de Magria, e ela e eu nos ficmos com pavor um do outro! Uma ovao hilariante retumbou na velha sala de armas. Perdoai-me vs, Ruy de Vasconcelos, o desconchavo do gracejo e deixai que vos esclarea quanto ao voto singular da nossa hoste. Nenhum agravo de cime, nenhuma contenda por casos de honra ser resolvida em torneio ou luta de duelo, enquanto Portugal carecer do esforo e do sangue de todos os seus leais cavaleiros. Cimes e agravos ho de vingar-se, ou ho de remir-se, a batalhar por causa da Nao. Entre dois ou mais ao desafio, ser julgado vencedor, na vingana ou no desagravo, aquele que maiores faanhas praticar nas hostes de Portugal. Assim o juramos. E assim o vou eu jurar, se me quereis entre vs disse Ruy, erguendo- se com entusiasmo. Queremos, sim, pois aqui viemos para serdes dos nossos acudiu o Magrio, levantando-se tambm. Queremos! repetiram todos, menos Anto Gonalves de Mendona. Mas ningum deu por aquela exceo ofensiva. Ruy de Vasconcelos fora buscar a uma panplia a velha e gloriosa espada com que o seu av batalhara contra os mouros em Espanha. Solenemente, radiante de entusiasmo, ainda mais bela agora a sua mscula figura de heri romanesco, o Vasconcelos, destacando-se naquela austera sala gtica em cujas panplias e trofus se podia ler toda a histria pica de Portugal, beijou o punho da gloriosa espada do Salado e com ela nas mos, religiosamente como um sacerdote com a relquia de um sacrrio, disse numa comovida vibrao: Diante de vs todos, cavaleiros jovens de uma nova cavalaria, votada glria e defesa da nossa terra, honra e ao esplendor das nossas damas; na vossa presena, cavaleiros da aventura, paladins enamorados por quanto h de sublime na paixo da Ptria e de um canto no amor das nossas damas, e sobre a cruz desta velha espada, que foi das primeiras nos campos da Tarifa, naquela maior vitria das Espanhas contra o mais soberbo poder mouro, sobre ela vos juro, pela minha alma de Portugus leal e pela anglica beleza da minha dama, que hei de ser convosco para os maiores feitos e para os maiores sacrifcios, nas mais renhidas lutas, nas mais desigualadas batalhas! Glorioso cavaleiro enamorado, bem-vindo sejais, e na nossa companhia vos recebemos com alvoroo e orgulho por vs, honrado e ilustre Ruy de Vasconcelos, representante da mais preclara e remota nobreza de Lisboa e de Entre-Douro e Minho! disse o Magrio. Benvindo sejais! repetiram num fervor de aclamao todos aqueles jovens sonhadores; todos, menos um, de torvo parecer, olhar duro e hostil. Era Anto de Mendona. Ruy notou-o e empalideceu numa cara de clera. Que seja para maior honra e lustre do vosso braso! disse-lhe afetuosamente um dos seus mais diletos amigos, companheiros da expedio ao Porto. Pela glria da nossa terra primeiro volveu-lhe Ruy numa perturbao violenta. E logo, propositadamente, olhos turvos de rancor a procurarem o olhar enviesado do Mendona, acrescentou com arrebatada veemncia: E com essa glria, pelos meus supremos amores. O da minha me e o da minha dama. Mas por esta, maior encargo ainda, porque h de o meu esforo remir-lhe a mcula, que sem culpa sua caiu sobre o seu apelido fidalgo. Enfiado, numa turbao maior, o Mendona voltou-se para o Magrio e rouquejou-lhe esta pergunta: Vs, que sois a alma guiadora de ns todos, sabei agora se o jovem cavaleiro Ruy de Vasconcelos pelo seu juramento se obrigou a observar todos os preceitos em que ontem concordmos e h pouco lhe resumistes. Respondei por mim acudiu Ruy torvamente, voltado para o Magrio respondei que todas as obrigaes tomei, como se todas conhecesse perfeitamente e uma a uma as houvesse designado no meu juramento. Mesmo alguma que vos tivesse esquecido notar-me. Por essa me obrigo tambm, pois que nenhuma sereis capaz de tomar para vs que no fosse de honra insigne para mim. Honrada palavra, Ruy de Vasconcelos! exclamaram entusiasticamente os que eram seus amigos ou com ele tinham tido convivncia. Uma ento vos esqueceu designardes disse o Mendona voltado sempre para o Magrio e cada vez mais provocante, j com mal ensombrada estranheza de alguns e do prprio a quem se dirigia. Qual?! perguntou o Magrio. Aquela em que nos sujeitamos a declarar o nome da dama dos nossos amores, ainda que fosse para ns somente um amor de sonho, ainda que fosse uma desprezadora do nosso preito. Amor ditoso ou desventurado amor, com obrigao igual. E assim o fizemos. Eu no, bem o sabeis retorquiu o Magrio. Lealmente declarastes que nenhuma tnheis, bem que tambm vos considersseis enamorado de um sonho todo de aventuras e glrias de cavalaria por qualquer dama que de algum fosse ofendida. Isso disse. Eu por mim, com mgoa e lealdade igual, a todos vs declarei a qual dama esquiva, injustamente deprimida por uma culpa que no era sua, votaria os feitos maiores de que fosse capaz. O Magrio encarou-o de rosto avincado; voltaram-se para ele olhares de surpresa. Compreendiam que alguma coisa extraordinria perturbava o nimo daquele companheiro; mas no podiam adivinhar o que fosse, nem com que propsito hostil eram feitas aquelas advertncias, de que s ele se lembrara. No sei entender-vos! disse-lhe lvaro Coutinho. Entendo eu! acudiu Ruy de Vasconcelos, num afogueamento de rancor, sempre voltado para o Magrio Tenho obrigao de revelar o nome da minha dama. Submeto-me; um sacrifcio, uma quebra de propsito que h dias tinha feito: mas cumprirei o preceito, senhores e companheiros meus. E aprumando-se, numa soberba atitude, disse lentamente: A dama a quem eu quero e me quer, anglica dominadora da minha alma, com tal imenso amor estremecida, que vivo da luz do seu olhar e buscaria a morte, se para mim nalguma hora se apagasse, to nova que ainda apenas lhe alvoreceu a sua primavera de mulher j de tal modo desditosa, que das suas lgrimas nasceu numa hora o santo amor que lhe tenho. Na minha casa vive sob a guarda protetora da minha me. Naquele silncio profundo de vinte homens subjugados pela avidez daquela revelao, rouquejou alto a voz de Anto de Mendona: H dois dias o soube. H mais o sabia o Mestre e com ele o Juiz do Povo e dezenas de homens da plebe retorquiu Ruy, sem se voltar para o seu interlocutor. Mas no o sabiam os outros e mais intensa foi a surpresa que estavam a prever naquela revelao. Afrontada pelo crime do pai, um bandeado com os de Castela, fugida do seu lar fidalgo, ao desamparo; das ameaas da plebe a defendi e com licena do Mestre a trouxe para esta casa com a sua me para que ambas se acolhessem ao amparo da minha me. D. Madalena de Mendona, filha de Gil Vasques de Mendona ao servio do rei castelhano por traio Ptria. Todos os olhares se voltaram para a fisionomia desfigurada de Mendona. Essa contava eu que fosse! regougou. E nada nos dissestes, quando nos dispusemos a vir aqui! disse-lhe asperamente o Magrio. Queria eu prprio vir buscar a certeza. E agora que a encontrei, posso dizer alto ao requestador de Madalena de Mendona que a dama por quem eu hei de lutar, remindo por ela a culpa do pai. Ao Mestre prometi que em feitos de armas lhe pagaria os direitos do favor que me fizera, concedendo-me que desse abrigo a essa dama. Que a plebe difamara, sabendo-a aqui replicou o Mendona num desvairo de rancor. A plebe sabe o homem de honra que eu sou e a santa e honesta me que eu tenho! retorquiu o Vasconcelos num tom altaneiro, cravando nele um olhar relampejante de dio ponta da lana acrescentou, voltando- se para o Magrio afiancei ao Mestre que havia de conquistar tal dote de noivado para Madalena de Mendona, que chegasse para tornar esquecido o aviltamento do pai. meu tio. Vede como falais! Toda a traio Ptria um aviltamento, e lutar contra ela, entre os seus inimigos, ainda aviltamento de maior infmia. esta a verdade das coisas e so estas as palavras que eu mantenho e em qualquer parte repelirei, seja diante de quem for! Pois ento provai essas bazfias! rouquejou o Mendona de mo na espada, indo na sua direo Cavaleiro, provai-as. A isso vos emprazo! E a isso vos hei de eu responder! Madalena de Mendona talvez nunca seja minha pelo seu querer, mas tambm nunca ser vossa porque no vos consinto eu! Deveis aos nossos companheiros o agradecimento de eu vos no mandar pr fora daqui pelos meus cavalarios. Miservel! bramiu o Mendona numa cegueira de raiva, tirando a espada. Cavaleiro, que faltais aos vossos deveres, quebrando o juramento feito! admoestou o Magrio,. Segurando-lhe a espada Connosco jurastes que os desagravos de amor e de pontos de honra s em batalha se tinham de pleitear, tendo-se por vencedor o que mais se arriscasse, honrando e defendendo melhor a nossa terra. No lhe faz falta a vida de um homem replicou-lhe a espumejar dio e numa tentativa intil para libertar a espada. Tende-vos, Anto de Mendona! disse-lhe o Magrio Para rebater esses lobos de Castela, que nos querem matar a Ptria no demais o sangue que todos lhe devemos. Pois desligai-me do juramento e expulsai-me da vossa companhia regougou numa cegueira maior de clera Hei de ver se um farsante de amores levanta para mim a velha espada do av. Guardai a bazfia e o desafio para quando estiverdes com Ruy de Vasconcelos num campo de batalha recomendou-lhe o Magrio, indignado Nem tendes o direito de ver agravo em que outro jovem, cavaleiro ilustre, tenha amores honestos com a dama que vos no quer a vs. Eu por mim vos declaro, meus amigos, que teria vergonha, a mais atormentadora vergonha, de alardear cimes por mulher que me no quisesse. Nem mesmo por aquela que, h dois anos, fugiu do Pao e ningum soube para onde, enjeitando-os por outro? interrogou o Mendona nuns estremees de raiva. Por essa menos ainda do que por qualquer outra replicou-lhe o Vasconcelos, turbando-se Desprezei-a; no a persegui como vs perseguis Madalena de Mendona, que vos rejeita e quer ser, e h de ser minha noiva. Voto a Deus que no o ser nunca! Nunca! volveu-lhe, rouquejando, no olhar uma expresso de sanguinrio furor Senhor lvaro Coutinho disse solenemente para o Magrio dai-me por desligado da vossa pequena hoste de cavaleiros enamorados. Quero livres a alma e a espada! Ao nosso lado respondeu-lhe ele com altiva severidade vossos cimes, bons ou maus, os podereis pleitear nos campos de batalha com honra vossa e em servio de Portugal. Tarda-me o desforo. Eu sozinho irei para onde fordes, se a Deus no aprouver que a minha espada v, sem delongas, at onde a minha vontade anseia chegar. Num arranque de fria, olhar incendido, as linhas do rosto em violentas contraes, Ruy de Vasconcelos disse para o Magrio: Pela amizade com que me tendes honrado, senhor lvaro Coutinho, vos peo que desligueis da nossa comunidade ao nobre sobrinho de Gil Vasques de Mendona, aquele famoso corteso da rainha combora, agora bandeado por Castela. Vilanaz! regougou o Mendona, indo para ele. Retiveram-no. Senhores! verberou lvaro Coutinho vexam-me essas afrontas de palavras, indignas de quem sois! Desligai-o insistiu convulsivamente Ruy de Vasconcelos desligai- o! Por minha parte vos considero desobrigado de quanto jurastes, senhor Anto Gonalves de Mendona. Dizei vs agora, irmos e companheiros meus pelo voto jurado, qual parecer o vosso? Que se tenha por desobrigado como dissestes respondeu um deles. E todos, com pequena variante de forma, deram igual parecer. Obrigado, senhores acudiu Anto Gonalves de Mendona, no rosto a mscara de uma sinistra palidez, a voz a roufenhar-lhe, perturbada. Sentia a exautorao acabrunhadora daquele acordo. Mais vos devo agora, senhores meus disse-lhes Ruy de Vasconcelos Maiores encargos tomo para convosco. Para qualquer hora e para qualquer recanto da cidade vos emprazo a cruzardes a vossa com a minha espada disse diante dele o Mendona, aprumando-se numa arrogncia de desafio. Quando vos aprouver. Mas antes que essa hora chegue, corre-me o dever de desagravar esta casa, mandando subir um cavalario que vos acompanhe porta. Ah! Poltranaz! bramiu o Mendona, indo para ele, de adaga em punho. O Magrio tomou-lhe a frente e fez-lhe vergar o brao sob a sua pesada mo de atleta. Esta a casa de uma das mais nobres e leais famlias deste reino! admoestou lvaro Coutinho. Gonalo Vasques! chamou Ruy, indo para a porta Um cavalario que suba para... Com uma palidez de morte, numa tremura convulsiva, afogados de lgrimas os seus lindos olhos de celestial meiguice, Madalena anteps-se-lhe suplicante. Por quem sois!... Pode ouvir vossa me! Tinha escutado tudo em longos minutos de ansiedade, dobrada contra a porta, numa tremura de febre, numa irresoluo de pavor. Afinal, daquela mesma angstia lhe veio o nimo com que os seus tmidos dezassete anos no podiam contar e, numa vertigem, como alucinada, se arrojou a fazer o que em outro lance menos grave lhe havia de parecer esforo impossvel do seu corao enamorado. Senhora! No deveis estar aqui! volveu-lhe Ruy de Vasconcelos com amargura de surpresa. Perdoai... Por tanto vos querer! soluou. Ainda contido por lvaro Coutinho, o Mendona agitou-se numa agitao de dio inexcedvel, clamando: Madalena de Mendona, por vs, ou ele ou eu! Homem de prole, vede que uma dama! disse-lhe o Magrio asperamente. Justia de Deus seria que eu matasse replicou-lhe desfigurado. Ruy, no lhe ds ouvidos! segredava de mos postas, numa splica de imensa amargura, aquela pobre Madalena, cuja peregrina beleza produzira uma impresso de deslumbramento naquele grupo de sonhadores. Senhor Ruy de Vasconcelos disse lvaro Coutinho solenemente desejo pedir-vos um favor. Dizei, mandai volveu-lhe numa perturbao enorme. Permiti-me que seja eu quem acompanhe o senhor A mo de Mendona at porta desta casa. Como se a vossa fosse, e por vs somente, honra e timbre de cavaleiro. O Magrio tomou do brao de Anto de Mendona, cada vez mais desfigurado. Quase porta da sala o primo de Madalena volveu-se de sbito: Amanh, ao romper da alva nas terras ermas de Santo Anto, por este dio de morte! Por Madalena de Mendona rouquejou o desafiado e l serei convosco. Rui! murmurou a filha do traidor numa convulso mortificadora de medo.
* * *
Mal o provocador saiu da sala, todos os cavaleiros pediram a Ruy de Vasconcelos a honra de lhes permitir que apresentassem ali as suas homenagens a Madalena. Nem eles podiam sonhar sequer no drama torturador que alanceava a alma daquela infortunada mulher, to cedo levada para o caminho lgubre de um calvrio. Coragem, meu amor! segredou-lhe Ruy quando foi solicitar-lhe a permisso da etiqueta. No sei se posso! murmurou Tua me em sabendo! E eu, Ruy? Eu, que tudo sei! Confia em mim, vida da minha alma! disse to baixo, que s ela o podia ouvir. E logo foi para os jovens cavaleiros, agrupados a um extremo da sala: Muito apraz a D. Madalena de Mendona a honra de vos conhecer, companheiros meus, que sois a flor e a gentileza da boa e ilustre cavalaria da nossa terra. Desculpai-lhe a turbao. To nova, como vedes, era de esperar que este lance profundamente a perturbasse. Desculpas s ns as devemos pedir, se esta nossa homenagem lhe for molesta. De nenhum modo, senhores meus. O Magrio entrara e logo os outros lhe deram conta do seu propsito. Ruy afastara-se para ir reanimar Madalena cada vez mais plida. Com todo o entusiasmo irei convosco, pois que no mesmo intento vinha pensando respondera lvaro Coutinho. E vs o primeiro dentre ns, como em tudo. Agradecido. E sabei que nunca na minha vida encontrei formosura igual desta dama juvenil! Entretanto, Madalena, a reprimir os soluos, a represar as lgrimas, num confrangimento de alma que fazia d, a mo tremente apoiada ao brao de uma grande cadeira alta de espalda, dizia sumidamente: Ruy, e a tua me! O d e o medo que eu tenho por ela! Pela minha causa! Amanh! Nossa Senhora tenha compaixo de mim! Madalena! segredava-lhe ele com amorvel piedade Tem coragem. A minha espada ser por este amor purssimo, e Deus por ns. O Magrio adiantava-se para ela na frente dos seus irmos de armas. Senhora! disse-lhe, dobrando o joelho num requinte de cavaleirosa gentileza, ao estilo daqueles extraordinrios tempos Deixai que estes homens votados ao culto da beleza e glria e defesa da sua terra, vos prestem homenagem de admiradores vossos e, como rainha que sois pela vossa peregrina beleza, vos beijem a mo. Perdoai... Que vos no saiba agradecer como mereceis a tamanha gratido das vossas palavras balbuciou mim fio de voz dolorida, olhos baixos para que lhos no vissem toldados de lgrimas. Senhora, recebei-nos como rainha de beldades, nessa cadeira como um trono, assentada como as rainhas e ns como vassalos vossos. E nem eles podiam sonhar o contraste esmagador que havia naquelas palavras de supremo preito com as outras de pavor e mgoa que vibravam, como um prego de luto, no corao daquela encantadora dama de dezassete anos. Amanh! Podem matar-mo! Pobre me! A desgraa que para ela veio comigo! Eram assim as palavras de imensa dor que ela ouvia melhor dentro em si e ningum mais podia ali ouvir. A arder em febre, num estonteamento dos sentidos, deixou-se cair na grande cadeira. No era aquiescncia ao pedido lisonjeador de lvaro Coutinho; era receio de que as foras a desamparassem. Senhora, assim. Sois a dama bem-amada de um esforado e leal cavaleiro de Portugal, e somos ns, seus companheiros e admiradores, quem vos aclama rainha das mais belas que temos visto. A mais bela! repetiram os outros, curvando-se. E nenhum reparara em certa dama de cabelos embranquecidos, o rosto plido de doente que, momentos antes, assomara porta e ali se ficara num acabrunhamento de estranheza. Filho, no sabia desta luzida corte na minha sala de armas disse D. Dulce numa tremura de voz, em que a surpresa se irmanava ao despeito. Perdo! Perdo! soluou Madalena, levantando-se, desvairada, de mos postas, e em passos hesitantes, numa crise de choro, tremente como criana espavorida, foi pr-se de joelhos em frente da me de Ruy Minha protetora! E caiu desamparada no cho. Todos se acercaram dela, Ruy primeiro que ningum, num sobressalto de amargura, curvando-se para a levantar nos braos. Filho, estou eu aqui! disse-lhe severamente D. Dulce, curvando-se para aquela pobre desmaiada Ruy, pede por mim desculpa a estes cavaleiros. E logo baixo para ele numa dolorida ironia: Eu velarei pela rainha.
CAPTULO VII UM COMBATE SINGULAR
O encontro fora aprazado para o alvorecer do dia seguinte, nas terras ermas de Santo Anto, um pouco para os lados da Porta do Jogo da Pla, com a espada de batalha e adaga, at que um dos campeadores ficasse mortalmente ferido. Por armas defensivas somente o bacinete sem viseira descida e sem gorjeira, o loudel(*) e os braais.
[(*) Nos fins do sculo XIV era j usado o arns de pernas, como diz Ferno Lopes, ou o arns complido, como diziam os Castelhanos, o qual vinha a ser a cota de armas com os coxotes, grevas e caneleiras, peas que defendiam as coxas, os joelhos e as canelas. Mas ainda estavam em uso os saios e camisas de malha de ferro, as solhas e os loudis, vestimentas de couro revestidas de pequenas lminas de ferro ou ao, no raro sobre-postas como escamas. Tambm havia o loudel de pele ou estofo enchumaado de algodo ou estopa. Davam-lhe os Franceses o nome de jaqueta e chamavam-lhe os nossos jaqueta e os Espanhis chaqueta.]
Fora isto combinado de tarde no adro da S, entre lvaro Coutinho e outro do grupo dos Namorados, testemunhas e mantenedores por parte de Ruy de Vasconcelos, e dois cavaleiros de prole, escolhidos por Anto de Mendona para seus apadrinhadores. Ruy e as suas testemunhas juntar-se-iam ao p das hortas de Valverde, logo que fossem duas horas da madrugada. Madalena passara o dia numa tortura de alma horrorosa, agravada ainda pelo propsito mortificador de ocultar a D. Dulce o perigo de morte em que estava o filho. Escondida na sua cmara, de joelhos diante de uma imagem pequenina da Senhora das Dores, levara horas numa canseira de choro, que parecia ceg-la, e numa convulso de soluos como arrancos do corao, a espedaar-se de mgoas. Orava em splicas, que se lhe truncavam na garganta, dizendo rezas que lhe tremiam nos lbios, fazendo loucas promessas, que lhe seria impossvel cumprir. Uma alucinao de dor. E quanto maior era o fervor da sua f, mais intensa a esperana no amparo da me de Jesus, simbolizada naquela imagem pequenina de Me, alanceada na sua dor suprema de Mulher, mais a sua oprimidora imaginao lhe afigurava lances de trgico desenlace, em que ele, o seu primeiro amor, morria s mos do outro, trespassado pela sua espada, a relampejar dios! E a me de Ruy pensava que inexcedvel angstia a dessa pobre senhora, e que legtimo desafogo no seria o seu, a clamar maldies contra quem lhe pagara em luto, no maior luto pela maior perda, a carinhosa graa com que as recebera na sua casa, a ela e me, a filha e a esposa de um traidor, que toda a cidade odiava! Chegou a noite e o tormento cresceu. Andava a fugir, a esquivar-se de D. Dulce e da prpria me, acabrunhada de vergonha pela revelao daqueles amores, que em poucos dias se tornaram doidos, de fascinao irresistvel, em audcias e arrebatamentos como se fossem antigos! Afinal no pde mais. A febre recrudescera violentssima. A me foi dar com ela na cama, vestida, amarfanhada nas roupas, ardendo em febre! Filha, que desvario o teu! Assim desfigurada! Numa tremura de febre! Diz-me o que te amargura. Que foi? Conta-me tudo, filha! Mgoas, se as tens, todas as que tiveres, minha querida! Eu serei por ti, eu estarei sempre contigo. Nunca tive amor maior na minha vida, nem igual a este que eu tenho por ti. Nunca! No tenho, no quero mais ningum. Abre-me o teu corao, filha! Beijou-a enternecidamente. Valha-me Nossa Senhora! O teu rosto queima! Mas nem eu atino... Me, nos vos d preocupaes interrompeu-a sumidamente, puxando-lhe as mos para si, beijando-lhas sofregamente. Estou a adivinhar, Madalena! Encheu-te de vergonha que D. Dulce viesse a saber dos teus amores com o filho, to de repente comeados, e oprime-te a ideia de no poderes ser sua esposa. Mas loucura tua, filha. Amores de honesto pensamento nunca mancharam ningum. O teu sangue de tanta nobreza como o de Ruy de Vasconcelos. Algum o tornou odiado! atalhou, soluando Me, perdoai-me! No era nisto que ela pensava, mas nesta explicao supunha ocultar a verdadeira causa daquela sua mgoa enorme. Mas, filha, qual culpa tens tu dos erros de algum? Erros, traies, manchas, at na famlia dos reis, at nos mais gloriosos brases, e no sei que, por esses crimes ou por essas mculas, se tornassem de afronta os amores honestos daqueles que no os cometeram! Olha o Mestre de Avis, bastardo de um rei, filho de uma mulher plebeia, e o povo j diz que o h de fazer seu rei. No te mortifiques assim por culpas que no so tuas. Assim mortificas-me tambm. As mgoas da tua alma sinto-as e sofro-as eu tambm, Madalena! No escondas de mim o teu corao. No tens no Mundo quem mais te queira. Nem ele, filha, nem ele! Me e D. Dulce? Disse-me que ia falar com o filho e com ele se foi encerrar na sua cmara. Se alguma coisa lhe disseram, se lhe teriam ido dar notcia do desafio pensou, confrangida. Queixou-se-me D. Dulce da sua enfermidade, agora a mortific-la mais. Por minha causa! Pela minha causa! soluou. Jesus! Que desvario o teu! Porque h de ser pela tua causa? S porque percebeu os amores do filho por ti? Somos mais desditosas e mais pobres que as esfarrapadas das ruas! Filha, vales tu o mais opulento dote. Me, sofro muito! disse num gemido, sentando-se na cama, de repente Nem podeis sonhar como eu padeo! Mas diz-mo, filha da minha alma; isto o que eu encarecidamente te peo. Pela minha vida, pelo teu amor, por quanto mais prezares. Desafoga comigo, sim! disse-lhe acarinhando-a, beijando-lhe os olhos rasos de choro Tu bem sabes que no tens ningum com quem mais deves contar. Me, sim respondeu-lhe em soluos Cerrai bem aquela porta, fechai-a, me da minha alma, para que ningum nos possa ouvir. Madalena, tamanho recato porqu? Assustas-me! E torturou-a a suspeita de algum segredo que fosse de mcula para a honra da filha. Foi fechar a porta por dentro, numa opresso de medo. Voltou e disse com dolorida ansiedade: Filha, depressa! instou numa tremura de voz Quero ouvir-te e tenho medo! Medo, vs?! disse com estranheza Vs, que nada sabeis! E ento eu, que tudo sei, vede que medo no h de ser o meu?! Amarguras-me nessa demora! Vamos, dize; seja o que for, que ainda hei de ter lgrimas para chorar o teu infortnio. Me, minha querida me, tamanho infortnio! soluou, abraando-a. Filha! De vergonha, de perdio? Para morrer de mgoa! Perdeu-se nesse amor! concluiu sumidamente, numa aflio de d e de vergonha. Me, pode lev-lo a morte, e D. Dulce no querer nunca perdoar-me, se lhe matarem o filho. No te entendo, Madalena! Matar-lho quem?! Meu primo Anto de Mendona. De manh o desafiou, aqui mesmo nesta casa, na sala de armas, e para a madrugada se emprazaram! Me, vede que aflio a minha, que dor mortal para a pobre me que nos deu amparo, se o matar um parente nosso, pela minha causa! E da minha dor, do que ela pode ser, nem eu sei falar-vos, me! No sei! Apertou-a muito para si, numa tremura de criana, as lgrimas em fio contra o rosto da me, o corao a pulsar-lhe numa violncia de terror. Filha, Deus ser por ele, e a nossa Senhora ter d de ti! Pedir-lho-emos ambas. Mas nem podeis sonhar como eu lhe quero! Amor de poucos dias j tamanho! Suspeitveis destes amores, mas no podeis adivinhar o que eles so! Ningum o podia adivinhar! De to grande ventura, que nem a vida chegar para sonh-la ou para tamanho sofrer, que s com a morte se acabe! Criana! Minha pobre criana, como tu dizes essas coisas loucas! Olha c, Madalena. E D. Dulce desconfiar ou sabe j desse desafio? No tive nimo de lho dizer! Pobre me se o sabe, e que loucura de dor se lho matarem! E eu? E eu? Nossa Senhora tenha piedade de mim! No h de querer Deus que seja assim, filha... Mas no estejas nessa mortificao. No posso! No h vontade que possa ir contra o corao, e o meu est a adivinhar-me umas coisas, que at tenho medo de dizer! Daqui a algumas horas ser! Tenho em mim o sonho do que essa batalha pode ser. Falaram um ao outro com um dio de morte, que nasceu em minutos e parecia de muitos anos, to sbito e tamanho como estes meus amores! Vejo e sinto todos esses pavores de morte! Tenho nos ouvidos o rudo das espadas que se cruzam, aquele rudo que eu ouvi uma vez de noite, em frente da nossa casa! Mas neste sonho de amarguras ainda pior, assim como se fosse uivo de morte o tinir daquelas espadas! Afogou-se-lhe a voz numa golfada de soluos. Ento, Madalena! Tudo isso afinal so coisas mortificadoras que a tua cabea est inventando. Se at os meus olhos me esto enganando para mais ainda me mortificarem! Estou a v-lo atravessado pela espada desse que do meu sangue! Cado, muito branco, olhos cerrados, morto! E uns homens que o trazem numas andas para esta casa! A me, coitadinha, de joelhos a gritar contra quem lhe trouxe a sua maior desgraa na perda do filho. Contra ns! Contra mim! Me da minha alma, contra mim! rouquejou, aconchegando- se-lhe ao peito como uma criana tolhida de pavor. Jesus! Que doidejar de martrio, filha! Me, queria dizer-lhe adeus... Antes que ele partisse. Deixai. Esperemos aqui a rezar, iremos ambas quando se perceber que ele vai sair. No mo negueis. Eu bem sei que tendes d de mim, nem h me que tanto queira a uma filha como vs me quereis; no creio que haja, e isto vos peo, era uma esmola para mim. Cingira-a nos braos, beijava-lhe os cabelos. Sim, filha respondeu-lhe enternecidamente O que tu quiseres. Para a boa e para a m fortuna, como sempre fui, a tua maior amiga, com a tua vida presa minha, porque para mim, Madalena, o nico amor tens sido tu. Eu sei, eu sei, minha linda santa! disse a beij-la. Bateram brandamente porta. Madalena ergueu-se de joelhos na cama, numa agitao aflitiva, no rosto uma palidez de terror. Quem bate? perguntou D. Maria de Mendona. Dulce respondeu uma voz magoada. Nossa Senhora me d animo! murmurou Madalena, encostando-se ao cabeal do leito. D. Maria de Mendona fora abrir a porta. Venho saber da vossa filha disse a me de Ruy. Pois bem-vinda sejais, senhora e protetora nossa volveu-lhe D. Maria numa tremura de voz Ali a tendes com os seus achaques de outro tempo. Ah! Sim; no sabia que era padecimento antigo. Estava preocupado. O meu filho saiu agora. Saiu j! murmurou Madalena num estremeo de medo. Eu tinha-o visto entrar para os vossos aposentos acudiu D. Maria, disfarando. Precisava de lhe dizer umas coisas de confidncia. No sabe ainda do desafio! pensou Madalena. Mas agora que ele saiu, no quis deitar-me sem vir ver como estava a nossa doentinha. Avizinhou-se do leito de Madalena. Ento? Doena que no para dar preocupao, no assim? Mal-estar, nem eu sei porqu. Coisa de nada, senhora minha respondeu-lhe arrastadamente, num fio de voz enrouquecida. Antes assim. At me parece que adivinhei logo a causa disse, esboando um plido sorriso, artificioso e frio Era natural que muito vos perturbasse o alvoroo da aclamao. E voltando-se para D. Maria de Mendona, acrescentou com o mesmo sorriso: Haveis de saber j; certamente o sabeis. O qu, D. Dulce?! No vos percebo! Pois que o no sabeis, sempre vos direi que nem todas as rainhas so desprendidas de vaidades do Mundo como a vossa linda filha. No vos entendo. Esta manh, na minha sala de armas, a proclamaram rainha das belas no sei quantos cavaleiros jovens, que vieram convidar meu filho para uma hoste de namorados e de aventurosa cavalaria. Meu Jesus, piedade! suplicou dentro de alma a torturada Madalena. Esta noite ou amanh vos hei de falar de assunto grave, e ento vos direi miudamente o que eu vi e o meu filho h instantes me confessou. Agora no. Ruy contou-me que sobre a madrugada se esperava um assalto dos Castelhanos. Parece que um fugitivo do arraial inimigo trouxe de tarde a denncia do cometimento. Todos os cavaleiros e homens de armas tiveram ordem para estar de vela durante a noite nos muros e adarves das torres. Engano para lhe ocultar a verdade! pensou Madalena com o corao num sobressalto opressor. E vs numa inquietao por essa m nova! disse-lhe arrastadamente D. Maria, de olhos postos na filha. Inquietaes no faltam! Mas que remdio seno encher-me de nimo para as suportar? Ruy tem deveres de honra a cumprir; Deus me livre de lhe quebrar o nimo com os meus receios e os meus choros. Do que eu tenho mais medo da sua temeridade para cometimentos de aventura, ideados dos romances de tresloucada cavalaria. Mas medo que o meu corao lhe oculta, tomando desafogo na minha f e no amparo que espero da Senhora Me de Jesus, aquela das maiores dores disse comovidamente, apontando a pequenina imagem do oratrio Rezo-lhe e guardo para ela as minhas lgrimas de me, que so as contas porque eu lhe rezo. Quereis vs ajudar- me? Com toda a nossa vontade. Senhora, sim aquiesceu Madalena timidamente Se ela sonhasse! pensou. Pois muito da minha alma vos agradeo disse D. Dulce. Foi para o oratrio e ps-se a acender os dois pequenos crios que o ladeavam. Tremia. Madalena, num esforo supremo, tentava descer do leito. Tem nimo, filha segredou-lhe a me, ajudando-a a descer. D. Dulce ajoelhou-se no genuflexrio. Ao lado dela, muito aconchegadas uma outra, me e filha ajoelharam, mortificadas. De olhos pregados na imagem daquela Me a que tinham morto o Filho, olhos num xtase de devoo e num pasmo de terror, sob a sua nvoa de lgrimas, Madalena represava os soluos com as mos postas altura dos lbios. Ave-maria, cheia de graa, o Senhor seja convosco, bendita sejais entre mulheres, bendito seja o fruto do vosso ventre, Jesus... rezava D. Dulce. As outras iam dizendo com ela sumidamente. Assim at ao fim. Me... Como isto... Custa! segredou Madalena. Mais duas ave-marias e D. Dulce disse alto, em voz mortificada, a sua splica e a dedicatria daquelas rezas. Senhora dos que sofrem, Me protetora dos que choram as suas dores maiores, Senhora de misericordioso amor de infinita piedade, sede pelos que defendem os seus lares e a sua terra e defendei-me vs, pelo vosso Jesus, a vida daquele filho, que eu tenho em perigo de... Interrompeu-a um grito convulsivo de angstia. Madalena cara desmaiada no colo da me. Veio para ela D. Dulce comovidamente e tateou-lhe as fontes. A arder em febre! Foi porta, chamou. Acudiram logo duas criadas. Levantaram aquela pobre atribulada e a levaram para a cama. Momentos depois D. Dulce mandava-as sair.
* * *
Madalena voltou a si, mas, de instante a instante, mais febril, entrou numa agitao de delrio. Eu mandava chamar o fsico, se no soubesse que isto apenas enfermidade de corao enamorado disse baixo D. Dulce para a me de Madalena Aos perigos inquietadores que pode trazer para vs e para mim, para ela mais talvez do que para ningum, a esses os no pode evitar nenhum mdico. Nem ns, embora seja somente um mal do corao, infelizmente em poucos dias adiantado e grave! Previa-o e receava-o! D. Maria de Mendona entendia bem o tom de amargura destas palavras e oprimiu-se, afogueada. De olhos cerrados, em estremecimentos nervosos, os seios num arquejar violento, Madalena comeou a dizer umas palavras enrouquecidas, que mal se percebiam. Receosa e confrangida de d por aquela filha que era tudo para ela, D. Maria de Mendona debruou-se muito para lhe compor as roupas, para lhe escutar melhor as palavras e, provavelmente, para ver se evitava que D. Dulce ouvisse alguma inquietadora revelao. Mas Madalena disse num grito seco e dolorido: Rui! No vs para esse combate de morte! Valha-me Nossa Senhora! murmurou a me Filha! Filha! chamou como se aquilo fosse um sono de que as suas palavras a pudessem despertar. Est em delrio. Mas ento j ela sabia do combate que se espera! disse D. Dulce, aproximando-se muito do leito. No vs... Rejeita o desafio... Anto Gonalves pode matar-te! Um desafio! D. Maria de Mendona, que sabeis vs para me explicardes as palavras da vossa filha? perguntou-lhe asperamente, num sobressalto opressor. Bem vedes... Que a pobrezinha delira respondeu, perturbada, arrastando as palavras Filha! Filha! disse a chamar, inclinando-se mais para ela. Pareceis interessada em que eu no a oua! observou-lhe D. Dulce com estranheza, uma suspeita mortificadora a golpear-lhe o seu grande corao de me. Eu, D. Dulce!... Senhora... Nenhum interesse. Por tua me, pelo nosso amor, Ruy, no vs! disse ainda numa tremura de voz, repassada de lgrimas No deixeis que v... Senhora D. Dulce, no deixeis sair vosso filho... Vai a um combate de desafio... Com o meu primo!... Senhora, no deixeis, que vos podem matar! E bracejava loucamente, o peito a levantar-lhe as roupas da cama, num ondear aflitivo, as lgrimas em fio daqueles olhos cerrados de adormecida. A tremer, numa palidez de morta, com uma sequido de que s era capaz no egosmo do seu amor maternal, D. Dulce acercou-se mais da esposa de Gil Vasques de Mendona. Sabeis, e sabia-o vossa filha, e nem uma palavra para mim! Mentiu ele e menteis vs calando-vos! A verdade toda, claramente dita por vs, D. Maria de Mendona! A verdade que me deveis! Que desafio? Com quem? Com meu sobrinho Anto de Mendona respondeu acabrunhada, de olhos baixos, trementes. Por cimes? Por cimes. Julga-se com mais direito aos amores da vossa filha? Senhora, que faltais ao vosso prprio corao! Talvez a esta hora enlutado! O meu corao! E quem aqui se importou com ele?! Desafio para onde? Para quando? perguntou j a custo. Cansava numas sufocaes de cardaca. Onde, no sei... Mas ouvi que seria para esta madrugada. Tenho tempo. Algum h de saber para onde ele foi disse com indefinvel amargura, desfigurada Tempo... Para ir tambm... Para lhe levar... O meu corao morto... Como ele me trouxe para casa... Os seus amores... De perdio. Deu uns passos hesitantes para a porta; mas as sufocaes saltearam-na com maior rudeza, arroxeou-se, levou as mos ao corao e, a voltear entontecida, foi cair num escabelo, com a boca escancarada numa nsia de ar. D. Maria de Mendona correu aflita para ela, gritando que viessem acudir-lhe. As criadas entraram, surpreendidas. Senhora, perdoai, que no foi culpa minha! soluou Madalena, outra vez em delrio. Ide cham-lo... O meu filho! rouquejava D. Dulce Para eu lhe dizer... E levantou-se, hirta, numa sufocao maior.
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Vinha a romper a madrugada. Ruy esperava com os seus padrinhos na clareira de um olival, dentro das terras ermas que ficavam entre a Porta de S. Anto e a Porta do Jogo da Pla. lvaro Coutinho disse o filho de D. Dulce, tomando o Magrio de parte desejo pedir-vos um piedoso servio de amigo. O que mandardes. Se a boa fortuna me abandonar, no mandeis que me levem para a minha casa. Diz-me o corao que tal no h de ser preciso. Mas pode ser. Um dos dois h de ficar mortalmente ferido; poderei ser eu. Mandai-me para o hospital de sangue das Portas de Santa Catarina, se ainda ficar com vida. Para a minha casa, no. Quero evitar a minha me essa surpresa de morte. Depois, ide l e no lhe deis a notcia seno quando lhe tiverdes preparado o nimo para a receber. Que fui ferido numa escaramua, dizei-lhe, e fiquei recolhido no hospital. Que ser possvel que me salvem. E quando j no houver remdio seno contar-lhe toda a verdade, dizei-lhe ento que sois confidente de dois pedidos meus, feitos numa splica ao seu bondoso corao de me. Que me perdoe a dor que lhe dou, e que no deixe ao abandono Madalena de Mendona. E a essa, lvaro Coutinho, contai-lhe o que se passar... Podeis asseverar-lhe que a sua imagem fica no meu corao morto, assim como se fosse o corpo de uma santa que a terra no consome dentro do seu caixo apodrecido. Dizei-lho, e por tamanho favor vos beijo a cruz desta valente espada. Curvou-se e beijou-lhe o punho da espada. Estava profundamente comovido. Homens daquela tmpera no choram nunca nos lances em que o esforo e a vida se pem em risco. Lgrimas de pesar e de saudade naquela previso de morte, se algumas tinha, eram das que ningum v porque s o corao as pode chorar. Heis de ser vencedor disse-lhe o Magrio, abraando-o fraternalmente hei de ter-vos comigo na defesa da nossa terra, na hoste dos Namorados, nos dias das maiores batalhas; porm, se Deus tal no permitir, pela minha f vos juro que todas as vossas vontades sero cumpridas. A chega Anto de Mendona, com os seus veio avisar a outra testemunha.
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Adversrios e testemunhas juraram com solenidade sobre a cruz das espadas, cumprir lealmente os seus deveres de honra e observar com fidelidade os preceitos da boa cavalaria, como homens de prole que eram. Para juiz de campo fora unanimemente escolhido o nobre e valoroso lvaro Coutinho; era ele quem tinha de mandar comear o combate. Colocaram-se os adversrios frente a frente, as testemunhas direita e esquerda dos seus respetivos apadrinhados, a vinte passos de distncia deles, rosto a rosto, espadas desembainhadas, de pontas firmadas no cho, prontos a combater, na sua qualidade de mantenedores, por qualquer deslealdade, ofensa ou desaire contra os seus apaniguados. Estais aqui para lutar pela vossa dama, vs que sois cavaleiros da nobreza destes reinos. Que seja convosco a vontade de Deus. Combatei disse lvaro Coutinho. Os contendores saudaram-se com as espadas, mas os relmpagos de dio com que os seus olhares se buscaram, desmentiam rudemente aquela cortesia espetaculosa das armas, artifcio de uma hipocrisia convencional, em que o ao mentia, disfarando impacincias de quem lhe dava calor e vida, na tmpera dos seus dios. Por Madalena de Mendona, dama dos meus afortunados amores! disse alto Ruy de Vasconcelos, numa vibrao altiva e firme. E logo num brado que parecia um uivo agoirento, Anto de Mendona replicou: Por Madalena de Mendona, dama dos meus desventurados amores! E foram um para o outro impetuosamente, lminas estendidas, olhos cravados na garganta indefesa um do outro como para ensinarem s espadas o caminho fcil da morte. Estavam sem camal e sem gorjeira. Mas ambos desviaram o golpe habilmente, e ento cruzaram as espadas, invetivando-se com rancor mortal. Para no mais a perseguirdes! bramiu Ruy de Vasconcelos. Para que nunca seja vossa! regougou o Mendona. As espadas serpenteavam no ar sinistramente, numa vertiginosa fria de golpes. s vezes as lminas resvalavam pelas cotas.de ferro e pelos braais, produzindo um rudo seco e spero, a lembrar o grito enrouquecido de uma ave. O fito era a garganta, j que tinham o corao escondido no seu arcaboio de placas de ferro. Mas os golpes eram bem parados. As cutiladas cabea valeriam um desperdcio louco de esforo. A espada embotar-se-ia na cimeira do bacinete, se no se quebrasse contra ele. Mendona vibrou uma estocada ao brao direito do Vasconcelos, a procurar- lhe a parte menos defendida pelas lminas do braal. As armaduras no eram ainda to completas, nem de to segura resistncia, como as que vieram a usar-se no sculo XV. Ruy desviou-lhe a espada com vertiginosa energia, volteou-lha com a sua e fez-lha saltar da mo. Mendona tornou-se mais plido, recuou uns passos e arrancou a adaga da bainha. Agora para acabar! disse o Vasconcelos com serena intrepidez, arrojando ao cho a sua espada vencedora pela minha noiva! exclamou, empunhando a adaga rapidamente. Para morrerdes por ela! rouquejou o Mendona com a adaga a lampejar-lhe na mo convulsiva. Seria para a garganta do adversrio o seu primeiro golpe. Ruy compreendeu. Disse-lho num relmpago o olhar felino do rival; confirmava-lho a altura a que ele erguera a adaga. Mendona venceu de um salto, como de tigre enraivecido, os sete passos que o separavam do preferido de Madalena. Mas o brao esquerdo de Vasconcelos estendeu-se para ele num mpeto violento, os msculos como fibras de bronze de uma clava antiga, e conteve-lhe o arranque, cingindo-lhe a garganta com a mo indomvel, os dedos aferrados como garras. No estonteamento da sufocao, Mendona vibrou-lhe um golpe intil ao peito. A ponta da adaga resvalou-lhe por entre as placas de ferro, quebrando- se como um pedao de vidro. Num supremo esforo, olhos esbugalhados pela sufocao, raiados de sangue, a boca entreaberta, a espumejar desesperos, Mendona fincou-lhe o joelho contra o ventre para o afastar de si. Inutilmente. Ruy era um dos mais possantes rapazes do seu tempo e, em vez de recuar, filou-lhe a garganta com maior violncia. Mendona deu um rugido roufenho e, numa nsia de esforo roou pela face do Vasconcelos a lmina quebrada da adaga. Morres ento clamou Ruy de Vasconcelos, cindindo-se a ele como um atleta de circo. E levou-o a terra debaixo de si. Deram um baque soturno as costas de ferro do cavaleiro vencido. Ruy ps-lhe o joelho em cima do peito e a ponta da adaga contra a garganta. Com a mo esquerda oprimia-lhe contra o solo o brao que ele ainda tinha armado com a adaga quebrada. Mendona enclavinhava a mo esquerda, num esforo de estonteado contra ao peito do adversrio. Requestador desprezado, venci-te! disse Ruy concedo-te a vida para outro desafio maior, num campo de batalha contra Castela. O vencido regougou um insulto que se no pode escrever, por gravemente ofensivo da honra de Vasconcelos como enamorado, e com a mo que tinha livre conseguiu bater-lhe na face. Morre enfim, vilanaz! gritou, convulsivo, cravando-lhe a ponta da adaga no pescoo e erguendo-se de repente. Ergueu-se porque lhe repugnava aquele desenlace do combate. Apesar do seu dio ao insultador, seria incapaz de lhe cravar a adaga segunda vez e mais a fundo. O Mendona soltou um gemido rouquejante, contorceu-se e cerrou os olhos; duas golfadas de sangue enegrecido se lhe alastraram lentamente pelas placas de ferro do arns. Senhores cavaleiros disse Ruy de Vasconcelos para os assistentes est acabada esta contenda de morte. Deus vo-la perdoe! acudiu solenemente o juiz do combate, acercando-se de Anto de Mendona. Todos os outros correram para junto do vencido. De joelhos em terra, muito debruado para ele, lvaro Coutinho tateava-lhe o pulso e escostara-lhe o ouvido boca. Creio que o ferimento pode ser de morte; mas ainda lhe sinto a respirao. Levemo-lo ao hospital disse com ansiedade um dos padrinhos do ferido. Ns mesmos, ns todos lembrou lvaro Coutinho Se nenhuma dvida haveis quanto lealdade deste combate disse para as testemunhas do Mendona e como seus mantenedores nada tendes a reclamar de ns, devotadamente vos ajudaremos. Nenhuma dvida. Nada temos a reclamar de vs. Pois levemo-lo depressa. Iam com ele nos braos a caminho do hospital de sangue da Porta de Santa. Catarina. Ali lhe fariam o primeiro curativo e de l o tinham de transportar para o hospital maior da cidade. Plena manh. Uma aleluia de luz e de cnticos por cima da pobre cidade infortunada e por aqueles montes e encostas, que fechavam o horizonte de Lisboa, para alm das muralhas. Ouviam-se as ltimas vibraes das trombetas na alvorada do arraial castelhano. Lentamente, cabisbaixo, Ruy seguia atrs daquele trgico acompanhamento de quatro homens, distanciado deles por algumas dezenas de passos. Um pouco alm da torre de lvaro Pais vinha em sentido oposto uma liteira de mos (andas), seguida por dois servos armados. Na frente um monge peregrino, de barbas brancas. Assim que descobriu aquele estranho grupo de homens fidalgos com outro nos braos, o monge teve um estremecimento de receio e tomaram sombrio aspeto as suas faces de singular palidez. Voltou atrs rapidamente e mandou aos jovens da liteira que voltassem. Ento uma cabea branca de mulher assomou portinhola. Mendo, porque voltamos?! perguntou numa voz sumida, repassada de mgoa. Para ali no provvel... Voltem para trs! repetiu aos jovens da liteira. Mas a dama de cabelos brancos olhara para cima e vira aqueles homens que desciam, trazendo outro nos braos. Os primeiros lampejos do sol nascente punham um vivo resplendor nos seus bacinetes emplumados. No! No! mandou num grito de angstia Mendo, ampara-me, quero sair! disse numa tremura de voz, sumidamente, entreabrindo a portinhola da liteira. O monge aproximou-se, acabrunhado. Dulce, voltemos para trs! pediu-lhe quase em segredo. ele que vem ali nos braos dos outros? o que tu supes... E eu, e eu tambm! soluou, comeando a tremer Jesus da minha alma! J aqui vem! Num mpeto como de louca se desprendeu dos braos de Mendo e, dobrada para diante como se levasse ao ombro o peso da maior cruz pelo Calvrio de mais escarpada subida, avanou uns passos. Senhores cavaleiros, quem levais a? A me de Ruy de Vasconcelos! disse lvaro Coutinho, surpreendido. Por piedade, deixai-me ver... Se Ruy de Vasconcelos! Senhora, no respondeu-lhe lvaro Coutinho, parando e fazendo com que os outros parassem. A cota do Magrio vinha tingida de sangue. Era ele que, numa posio contrafeita, segurava o ombro direito e a cabea do ferido, descoberta, numa lividez horrvel. Vosso filho, senhora, a vem atrs. Deixai-nos seguir. Trata-se de um ferimento que talvez mortal. E foram descendo lentamente. D. Dulce caiu de joelhos em estremees de horror, numa profunda impresso de piedade por aquele desventurado que ia ali por morto. Mendo amparou-a carinhosamente. De olhos fitos nas manchas de sangue negro que ficaram na rua, D. Dulce soluou, de mos postas: Pobre me a sua, se ainda vive! Nossa Senhora lho salve! Dulce disse-lhe Mendo Ruy vem a! Homens de armas e maltrapilhos do povo que passavam iam parando a inquirir o que sucedera. Minha me, minha santa, vs aqui! exclamou Ruy, numa surpresa de mgoa, a beijar-lhe as mos e a querer levant-la nos braos. A dor que me deste, Ruy! Por essa cidade, ao acaso, a buscar-te! Me, perdoai! Dulce! interrompeu Mendo, em voz quase segredada Est-se a juntar gente. Retiremo-nos daqui. Sim, sim. Filho, ampara-me. Agora posso menos. E enquanto a me se lhe amparava ao ombro, foi ele saudando o tio a meia voz, na preocupao de lhe manter o incgnito. Filho foi-lhe dizendo ela sumidamente at chegar liteira temos coisas graves de que tratar. Mal agourados amores assim comeados! Deus me faa a esmola de no deixar que tu leves para o dote do noivado a mortalha desse que feriste de morte. Depois, depois falais interveio Mendo, instando com a irm para que entrasse na liteira. Entrou. Os jovens levantaram os varais nas alas de couro. Para casa mandou Ruy. Ele e o monge foram seguindo poucos passos atrs. Tio, perdoai, e dizei-me: Sabeis se alguma coisa sucedeu a Madalena? No a vi, mas disseram-me que estava de cama, queimada de febre, numa tortura de delrio. O meu pobre amor! disse, confrangido. Ruy, ias matando tua me! Deste-lhe nalgumas horas a mais longa e intensa dor da sua vida! Tio, este combate era inevitvel. Fui vilmente insultado; seria o ltimo dos poltres, se no matasse o insultador ou no morresse s mos dele. Compreendo. Era o teu dever; no serei eu quem te acuse por lhe no teres faltado. Chegaram ao palcio de Santo Eli. Na sala de entrada D. Dulce disse ao filho: Vai repousar. Eu tenho de ir ver se o meu corao pode ter descanso, e se a nossa Senhora me recebe as oraes que eu lhe devo por ti, e me ouve outras por esse que... Sabes se ele ainda tem me? Madalena disse-me que ele vivia com a me. Tenho ento de a ajudar a ela nas splicas a quem lho pode salvar, se ainda a morte o no levou. Eu te mandarei chamar para tratarmos de coisas que interessam nossa honra e de mais algum. Quando mandardes, senhora volveu-lhe, apreensivo. Sentia naquele aviso uma fria severidade que o oprimia. Compreendeu claramente que se tratava dos seus amores com Madalena.
CAPTULO VIII ALMAS AMARGURADAS
Maria de Mendona no se afastara em toda a noite do quarto da filha, sempre a arder em febre, numa agitao de pesadelos. Sobre a madrugada, Madalena ficou-se num quebramento de modorra e a me adormeceu a chorar, sentada num escabelo, a cabea repousada no cabeal da filha. Acordaria, era seu intento acordar antes que a manh rompesse, para ficar espera de notcias que chegassem a respeito de Ruy, evitando assim que alguma nova de fnebre desgraa viesse ferir de surpresa aquela pobre enamorada. Sabia que D. Dulce tinha ido para os seus aposentos um pouco mais aliviada das sufocaes e mais recobrada de nimo, mas nem sequer podia sonhar que ela houvesse tido alento para sair em busca do filho. Jesus da minha alma, o que ser para ns ambas pensara, de olhos cravados na filha o dia de amanh, se o luto entrar nesta casa? Atirar-nos- o para a rua como uns trapos que fazem asco e vaguearemos por a, famintas, desprezveis, mais desgraadas que as mendigas de pior infortnio! Ho de cobrir-nos de afrontas; a ral odeia-nos; h de voltar contra ns os desesperos da sua fome e do seu padecer. Desditosa filha! Desditosa! E foi neste tormento de receios, a pensar naquela madrugada de trgicos prenncios, que j no tardava e em que ela havia de ser, naquela casa, a maior madrugadora; foi nesta angstia que os olhos se lhe cerraram num torpor invencvel de todas as foras. Mas o dia alvoreceu, o sol surgiu radioso sobre a cidade amargurada, e a madrugadora no despertou. Nem ela, nem a filha, a chorar de olhos cerrados, a sofrer naquele sono de tortura.
* * *
Bateram porta brandamente. Nenhuma delas ouviu. Segunda vez com mais fora. D. Maria de Mendona despertou ento num arrepio de medo. Valha-me Nossa Senhora! Quem ser? E ficou de p, hesitante, numa tremura de receio. Bateram outra vez. Foi para a porta, p ante p, no fosse a filha despertar para alguma horrorosa realidade. Ia num estonteamento de ideias doidas, o corao como se lhe quisesse fugir do peito, a voz represada na garganta. Encostou-se porta. Quem bate? perguntou baixo, rouquejando, num esforo doloroso. Senhora disseram de fora perdoai. Venho trazer-vos uma notcia. No vos sobressalteis. Era uma voz de mulher. Uma notcia! Me de Jesus, valei-nos! Entreabriu a porta brandamente, a tremer. Madalena tinha despertado numa agitao mais violenta, sacudida por um sonho brutal, ainda em turbaes de delrio, na imperfeita conscincia da sua situao. Me! At vs fugis de mim! e sentou-se na cama, de repente. Filha... A vou respondeu-lhe, passando para l da porta e puxando-a para si. O senhor Ruy j voltou! disse-lhe a criada que viera bater. Mos nos olhos, numa impacincia nervosa como se quisesse rasgar a nvoa de lgrimas que lhos turvara, e num supremo esforo da vontade para ver se podia compreender o que se passava, Madalena soluou: Me! Deixais-me! para me no dizerdes a verdade! Mas... Vou eu sab-la... No posso! No posso! E debruou-se para o cabeal a chorar. Entretanto, a criada tinha informado que Ruy chegara so e salvo e lhe ordenara que viesse dar-lhe aviso e pedir-lhe permisso para vir falar-lhe. Filha, minha querida filha! exclamou D. Maria, entrando e cerrando a porta. Mataram-no! disse Madalena num gemido que parecia um arranco de alma, pondo-se de joelhos, anglica figura de uma inexcedida angstia, trmula esttua de suprema dor, numa semi-nudez escultural. Filha, no! gritou a me convulsivamente, abraando-se nela, a cobri-la de beijos Voltou so e salvo! Nossa Senhora ouviu-te; teve d de ti, meu amor, e no seu d se apiedou tambm de mim! Num olhar de pasmo, a cingir a me a si fervorosamente, Madalena disse-lhe em murmrios, com a face muito encostada face dela: Me da minha alma! No pode ser engano para mim, no pode. Tanto me quereis e tanta pena tendes de mim, que no ereis capaz de iludir, ainda que fosse para o meu bem. Minha pobre loucazinha! Se era engano que eu pudesse fingir assim! Olha, repara bem. Esta alegria no se finge. Sim, sim, perdoai-me! Por tantas mgoas que eu tive, at esta ventura me pareceu engano de sonho! Mas agora no, minha santa! At Nossa Senhora quis que viesse da vossa boca para mim, me que tanto tendes sofrido, essa boa nova, que entra na minha alma como se fosse uma aleluia! E a beij-la com louco fervor e um carinho infantil, solicitou-lhe: Me, ajudai-me a vestir... Mas eu posso. Filha, ests muito abatida. Deu-me sade a vossa boa nova. Heis de ver que posso. Muito devagar, como se eu fosse uma velhinha, amparada por vs, para ir ali janela ver o dia, o sol, que est a querer entrar aqui, todo cheio de ouro, prncipe de encanto, que vem dar-nos parabns. Minha louquinha! Ajudai-me. Se eu no puder, se a febre me no despregar, voltarei ento para aqui. O dia h de estar lindo, este bem-aventurado dia! O louco do meu corao havia de ach-lo agora formoso, o mais lindo de quantos eu tenho visto, ainda que viesse todo ele toldado de negrumes. E s para ver o sol que tu queres levantar-te? perguntou-lhe, sorrindo. E para o ver a ele, se a minha querida me, a maior amiga que eu tenho, tanto se compadecer de mim, que mo consinta. Pois sim, filha. Ele prprio mandou pedir para me falar. Bendito Deus! Iremos ambas, sim? Depois de tamanha noite de amarguras como se ele houvesse ressuscitado! A me ajudou-a a vestir. Estava muito extenuada e aquela sua coragem do corao e dos nervos pouco poderia durar. E estou eu a ajudar-te nesta imprudncia! Tremes como um vime! do sobressalto. No vos lembrais de quando eu era pequenita? Punha-me toda a tremer quando vs me levavas a ver o que a minha mente sonhava, ainda mais lindo que a realidade. Isso dizes tu, mas eu conheo que a febre ainda te no largou e com a febre que tu tremes! Pois deix-la volveu-lhe de gracejo pior foi quando o corao tremia, e agora ele que no faz caso da febre e h de mand-la embora como quem despede uma visita impertinente. Assim seja, mas estou com receio disto! Pronto, minha adorada me. Est vestida a rainha. Agora at tenho vontade de rir daquela aclamao, que tanto me oprimiu! D. Maria de Mendona apagou a grande lmpada. Madalena sentou-se, extenuada, no escabelo, ao p do leito. Me, o sol! Deixai-o entrar. Tenho saudades dele. Eu vou, descansa. Abriu de par em par as portas da alta janela de ogiva. Um jorro de luz dourada inundou a cmara. Bendita luz! exclamou Madalena Luz para um noivado de sonho pensou Ouro divino para um dote de noiva! Sol, assim tu me quisesses dotar! Senhora minha chamou de fora a criada que trouxera a boa nova. Entrai disse D. Maria de Mendona. Santo dia, senhoras minhas! saudou a serva. Santo dia seja para ns todos volveu-lhe a me de Madalena. O senhor Ruy, meu amo, pede-vos o favor de o ouvirdes. Est a esperar-vos na saletazita aqui em frente e muito vos roga que no tardeis, porque em breve ter de ir falar com a senhora D. Dulce. Ide dizer-lhe que vou j. A criada saiu e D. Maria de Mendona voltou-se para a filha, sorridente: Tens nimo? Me, ainda que fosse preciso ir de rastos! respondeu, beijando-lhe a mo e amparando-se a ela, enternecidamente. E depois? ia perguntando D. Maria de Mendona de si para si Pobre criana, quem sabe o que ser o teu dia de amanh?
* * *
Ruy acabara de receber a resposta. Esperava com impacincia. Queria que D. Maria de Mendona lhe desse informaes completas a respeito de Madalena, e estava no propsito de pedir que lhe permitisse v-la, ao menos da porta do seu aposento. Sabia j que ela estava levantada. Sentiu passos lentos e encaminhou-se para a porta. D. Maria entrou com a filha amparada a si. Quebrando os rigores da etiqueta do tempo, numa surpresa perturbadora, de imenso jbilo, Ruy deu uns passos atrs, como deslumbrado. Vive Deus, que vos traz aqui, dama e senhora minha, rainha anglica, de beldades! Rui! murmurou ela a tremer, encostando-se mais me, de maior rubor as rosetas da febre na sua alvura de alabastro, cheios de lgrimas os seus olhos estonteadores, daquelas consoladoras lgrimas que so como um divino orvalho em que as mais intensas mgoas se desfazem. Senhora, perdoai! disse Ruy, curvando-se diante de D. Maria de Mendona No pode j haver disfarces neste profundo e honesto amor. vossa filha a noiva da minha alma; respondem pela segurana do noivado, em face do Mundo, seja quando for, a minha honra e a minha vida. Creio em vs respondeu-lhe mas no poder o vosso corao sozinho vencer infortnios e injustias do Mundo! Bem vos compreendo, senhora, e peo licena para vos repetir: O esforo ajudar o corao. Vossa me espera-vos veio dizer a aia Marta Vicente. Eu vou. Senhora D. Maria de Mendona disse-lhe, curvando-se. E a seguir, de joelho dobrado, diante de Madalena, tomou-lhe a mo e beijou- lha levemente. Rainha de sonho, rainha da minha alma! murmurou enternecidamente.
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Na sua antecmara, D. Dulce mandara sentar o filho ao p de si. Ruy, escuta-me. No vou falar-te da noite de amarguras que passei por ti. Minha santa! Me apenas, com o defeito de todas as mes que muito querem aos filhos e no vivem seno por eles. Isto me basta. Defeito lhe chamei, pois que, at por este amor assim somos injustas para outras mes e detestamos outros amores. Tive ontem momentos Deus mo perdoe! em que cheguei a sentir alguma coisa que parecia rancor a algum que digno de d e a mim me tem merecido carinhosa simpatia! Senhora minha, estou a entender-vos com mgoa minha! Rancor que foi desvario daquela tamanha dor que eu sentia! Ias morrer por ela. Aqui tens a minha fraqueza. Mas no vale a pena falar-te do que padeci, nem foi para isso que te chamei. Importa s honradas tradies desta casa, honestidade de Madalena de Mendona e ao teu prprio nome que, sem demora, se tome resoluo a respeito de um assunto grave. Os teus amores por essa menina caminharam depressa, chegaram em poucos dias a uns excessos de enfeitiamento que no so vulgares e podem tornar-se desonesta injria. Me e senhora! Pela vossa vida e pela minha honra... Filho, no faas juras por esse enlouquecimento de amor! Muitos se tm quebrado. Pergunta-o ao teu tio Mendo. O cavaleiro honroso que tu s sei eu que de boa f jurava; podia, porm, faltar-lhe o enlouquecido enamorado, e tu s, ao mesmo tempo, o cavaleiro incapaz de faltar aos seus deveres de fidalgo e o louco perdido de amores por ela. No me oponhas sonhos a essas tantas realidades que o Mundo conhece. Escuta-me serenamente. Vem de ilustre sangue essa menina de quem te enamoraste; creio firmemente nos teus castos escrpulos, l-se-lhe a bondade no olhar; nenhuma de mais cativante formosura que eu ainda visse, nenhuma, e no foram lisonjeadores esses jovens cavaleiros que nesta casa a aclamaram rainha de beldades. digna de ti, filho, firmemente o creio. Mas j o Mundo o no entende assim. O Mundo! Com que fundamento, me e senhora minha? Ouve. Quero eu lembrar-to, j que tu pareces esquecido do que h pouco tempo me disseste, quando me pedias lhe desse guarida nesta casa. Para o Mundo, para a gente do povo, a odiada filha de um traidor, que agravou a sua infmia vindo com os invasores da sua terra, para lutar contra os nossos, abastardando os brases da sua cota de cavaleiro portugus com os outros da nobreza de um rei estrangeiro. E em que pode Madalena ser culpada dessa infmia? A gente do povo no sabe distinguir essas coisas, e para essa gente no seno a filha de um traidor. Tu prprio o sabes melhor do que eu. Nuno lvares, flor dos cavaleiros, a mais valente espada que h hoje em Portugal, tem irmos bandeados com o rei de Castela, e o povo adora-o como se ele fosse um santo e resplandecente cavaleiro, igual ao do Santo Graal dos rimances e trovas, quase igual ao S. Jorge de Inglaterra. Ruy, eu sei. Mas Nuno lvares, tu o disseste, a mais valente espada de Portugal, e haver trs meses, aqui festejou Lisboa a batalha que ele venceu aos Castelhanos. J no pode cair sobre o seu loudel de batalhador vitorioso a mcula dos irmos traidores. Me, farei eu tambm que sobre a minha cota de armas no possa cair a infmia de Gil Vasques de Mendona. J estava a esperar que me repetisses por outras palavras o que prometeste ao Mestre e me disseste a mim. Mas ouve l: no se provocam batalhas como se provocam duelos, e esse de hoje no podes tu contar para o dote da noiva, nem para desviar de ti os dios injustos da plebe contra a filha do traidor. Nem o aceitar o Mestre em guisa de abonao para noivado. Feriste de morte um cavaleiro, que todos julgavam leal, e ser menos um Deus tal no permita! entre os poucos leais que tem Portugal. Far falta. Esse desvairado combate h de ser a esta hora sabido por toda a cidade e dar fama de escndalo a esses amores com a filha do Mendona. Maior dio contra ele, tamanho que chegue para o repartirem comigo, filho! Ruy sentia a profunda verdade destas palavras e j se no atrevia a opor-lhe devaneadoras alegaes de namorado. Aquela era a razovel previso dos acontecimentos. Dizia-lho a sua prpria conscincia. O que esperas tu que a m-vontade e o dio inventem contra esses amores de to arrebatados excessos? E dos meus escrpulos o que podem supor tendo-a aqui na minha casa to em intimidade comigo? Senhora, quem se atrever? No te assomes em farroncaria de cavaleiro andante. As ms aparncias infamam tanto como as ruins aes. Me, onde quereis chegar?! disse, erguendo-se, de rosto avincado, extremamente plido. Mandei que te assentasses! No tempo ainda de te levantares; tenho mais que te dizer, sem ser preciso que mo perguntes. Senhora, perdoai volveu-lhe, acabrunhado por aquela spera admoestao com que no contava Amargurou-me a suspeita de que o vosso intento fosse negar amparo a essas infortunadas mulheres. No ser negar-lho, mas afast-las desta casa por honra sua e minha. Pela nossa bastaria. Uma crueldade, senhora! Mas o que entendias tu, dom cavaleiro enamorado? Ias com a tua espada retalhar as lnguas danadas que a ousassem caluniar a ela, caluniando- me a mim? Mandavas lanar prego pela cidade, afirmando a tua honesta lealdade de cavaleiro e o voto de esperar com o noivado at que se desse batalha em que, a poder de esforo, resgatasses do nome da noiva o infamado apelido do pai? Repara bem que se ririam de ti at os menos incrdulos da cidade. Me, no vos mereo essa desdenhosa suposio! Magoa-me imensamente mais que todas as possveis injrias da plebe! Quase me julgais um louco truanesco! No julgo, filho. Seria eu a ltima pessoa a fazer semelhante suposio. O que eu quis foi mostrar-te o que podia haver de risvel em alegar gente caluniadora umas coisas, em que ela no havia de acreditar porque no as saberia compreender. Quereis ento, senhora, que Madalena e a me saiam desta casa?! disse, oprimido Que vo para a rua? Com todos os seus bens sequestrados, a ral odienta que lhes d esmola, se no preferir arrast-las pela rua para espiarem o crime do traidor! Ou que as v eu defender da arraia e da soldadesca brutal e lhes d abrigo em qualquer casa de aluguel para que digam ento, com melhores fundamentos, que pelo benefcio comprei eu o direito de chamar-lhe minha?! Agora a injustia e a ofensa para mim, Ruy! disse, erguendo-se a tremer Para mim nessas loucas palavras! Perdoo-tas, perdoo, porque entendo e sinto a amargura com que as disseste. Apesar de tudo, fazem-me pena tu e ela! Depressa me negaste a lisonjeadora santidade com que s vezes te aprazia engrandecer-me! Agora at me supunhas capaz de uma crueldade, que ainda seria maior pela vileza do propsito do que pelo desapego de toda a humana caridade! Senhora, nenhum intento de vos magoar, mas se falou de mais esta surpresa de amargura que me causastes, dai-me por arrependido e considerai- me digno do vosso, perdo Adivinhasse eu, me e senhora minha, qual era o vosso intento e, por Deus, que vos no molestaria agora com este desafogo. O que queres dizer, Ruy? Senhora, no voltaria. Deixavas-te matar! Entendo. Para no chegar dor e vergonha de mandar abrir as portas desta casa para daqui serem expulsas, como importunas mendigas, duas damas de nobreza, a quem eu, pela minha honra de cavaleiro e pelo vosso corao de me, prometi defesa e guarida, porque no tm lar, nem po nem amparo de ningum! Mas saio eu acudiu amargamente para que o meu filho no falte sua promessa de cavaleiro e para que o Mundo me no suponha desonesta protetora de uns amores que podem ser de m fama! Valha-nos Deus, filho, que nem tu me queres entender, nem eu j posso merecer-te a confiana de outros tempos melhores! E no tenho porque me surpreender! Era isto o que o meu corao receava e previa! S no podia adivinhar que fosse to cedo! Pacincia, filho disse-lhe com um gesto de resignada amargura Ouve o resto, que me no deixaste dizer, e faz depois o que entenderes, e quiseres como homem livre que s. No me faltar em Lisboa casa de parentes que me receba, se for eu quem deva sair. Me e senhora! rouquejou, convulsivo. Ouve. No por um propsito de desprezo que eu desejo afastar daqui essas desventuradas senhoras. Devias t-lo percebido; decerto o percebeste; mas no quiseste poupar-me ao dissabor de te ouvir injustas alegaes de namorado, que teimosamente fecha os olhos realidade. O meu d por elas no as abandonaria porta da rua; iria com elas. Eu mandaria procurar casa que fosse condigna da sua condio, dar-lhes-ia a minha aia, dos nossos criados os que lhes fossem necessrios e mais lealmente as pudessem defender e servir, e dos nossos rendimentos quanto fosse preciso para viverem como quem foram. Bem vs, Ruy, que no era desampar-las fome nas ruas, entre os dios da ral e as brutalidades da soldadesca! S tu o podias supor, meu filho! Defendidos por este modo os meus escrpulos e os crditos desta casa, a ti pertenceria, como homem de honra que s, defenderes dos dizeres do Mundo a honesta fama dessa que pretendes para noiva. Defend-la, abstendo- te de intimidades suspeitas, at que pudesses conseguir licena do Mestre para a tornares tua esposa. Em tudo isto, filho, bem vs, nem sequer a minha sombra se atravessaria no teu caminho. Ao teu encontro s as lgrimas que eu chorasse de alegria pela tua felicidade e pela tua glria... Ou as outras... Que nem terias de agradecer-me... Porque no as poderias ver! Sentou-se, afogada em soluos. Me, tinhas razo! disse comovidamente, ajoelhando em frente dela Perdoai que um momento duvidasse do vosso corao de santa. Turbaram-me as amarguras, e fui rudemente injusto. Aceitai-me a contradio no esquecimento de quanto disse. Filho, no precisas de mo pedir. Tudo se far como mandardes. Abenoai-nos, a ela e a mim. Deus vos abenoe como eu vos abenoo. Com que fervor de alma vos agradeo! disse, beijando-lhe a mo branca e trmula, que ela lhe poisara na cabea, carinhosamente, abenoando- o Completarei eu os vossos honestos escrpulos. Serei doravante para Madalena um tmido requestador, exposto aos olhos do Mundo. Irei pedir a Afonso Eanes que d guarida na sua casa, a expensas vossas, quelas duas infortunadas mulheres. Excelente coisa seria e at eu prpria lho peo. Em casa desse honrado homem do povo ficariam honestamente abrigadas. E seguramente defendidas, pois que no tem Lisboa plebeu de mais alto prestgio e de mais acatada autoridade entre a gente do seu sangue. Mas talvez seja sacrifcio para ele e para elas. A casa de Afonso Eanes pareceu-me acanhada. D. Maria de Mendona e a filha no poderiam viver l nas condies em que foram criadas. Que remdio seno aceit-la tal como ? Pois seja assim, filho. Vai dizer a D. Maria que lhe peo o favor de vir falar-me. Que traga consigo Madalena e que me desculpem de no ir eu ter com elas. Estou muito quebrada de foras e seria sacrifcio ir l. Mas, nem me lembrava! Madalena estava de cama, a arder em febre; no poder vir. Pode. J se levantou. Eu vi-a. Pois ento vai. preciso primeiro ouvi-las. Creio bem que nenhumas dvidas ho de opor-vos. Entretanto, posso eu ir procurar Afonso Eanes para lhe fazer o pedido e trazer-vo-lo c. E de caminho irei ter com o Mestre, a quem preciso de expor o que esta madrugada se passou. Oxal que ele te perdoe a desgraa desse desvairado combate. Vai.
* * *
Ruy fez o pedido a D. Maria de Mendona e a Madalena, e em poucas palavras de confidncia as ps ao facto do assunto, resumindo os escrpulos de honestidade que impunham aquela resoluo da me, e instando para que aceitassem confiadamente o novo abrigo que desejavam dar-lhes. Prometeram-lho e foram ambas para os aposentos de D. Dulce. Ruy preparava-se para sair quando um criado veio dizer-lhe que o mestre tanoeiro Afonso Eanes tinha chegado e mandava pedir licena para lhe falar. Ainda bem. Que entre j. Acompanhai-o aqui. O tanoeiro entrou. Benvindo sejais, senhor Afonso Eanes. Estava para vos ir procurar. Pois bom foi ento que eu viesse e com boas notcias para vs. Boas notcias para mim?! Dizei-as. Logo de manh cedo se soube na cidade do vosso combate com Anto de Mendona e do ferimento mortal que vs lhe fizestes. Sabeis se morreu? H coisa de duas horas ainda no tinha falecido. O Mestre teve logo quem o fosse informar do caso e ficou muito assomado e em grande irritao contra vs. Listava eu presente e olhai que no foi pequena a minha surpresa! Protestava o Mestre que havia de pr cobro s brigas que alarmavam a cidade e roubavam defensores nossa causa, quando chegou aquele cavaleiro, alto como um pinheiro, forte e cabeludo como um toiro... lvaro Gonalves Coutinho o Magrio. Esse. S por tal alcunha o conhecia. Percebi que o Mestre o havia em grande estimao e com ele se afastou a conversar muito irmmente. lvaro Coutinho foi meu padrinho no combate desta madrugada. E depois do combate ainda melhor padrinho, pois de tal arte falou com o Mestre, e to dedicadamente por vs lhe contou as coisas, que logo as iras do senhor D. Joo de todo se acabaram. O prprio Mestre nos disse, a mim e aos da Casa dos Vinte e Quatro, que o Magrio lhe contara como as coisas se tinham passado e, pelo que dele ouvira, se julgava juiz do feito, como se ele prprio o tivesse presenciado, tanta era a f que punha nas palavras daquele leal homem de bem, a quem chamou espelho de cavaleiros. E de valentes. No se engana o Mestre. E depois? Declarou sua senhoria que por justificado vos dava daquele combate e com maior lustre para os vossos dotes de cavaleiro enamorado. Que pela vossa honra tnheis combatido leal e generosamente, e em mais alta conta vos passava a ter entre os destemidos e preclaros homens da nobreza do reino. Regalei-me de ouvir estas palavras justiceiras do Mestre, e logo me dispus a vir trazer-vo-las. E olhai que sem mira nas alvssaras. Que vos eu dou j num abrao de profunda gratido, honrado Afonso Eanes! E agora deixai que vos pea um grande favor. Mandai, senhor Ruy de Vasconcelos. Receio que seja coisa de sacrifcio para vs! Seja o que for, meu ilustre cavaleiro. tambm pedido da minha me. Bastaria que fosse vosso. Dizei francamente, e contai comigo para quanto for do vosso agrado e eu puder. Ruy exps-lhe os escrpulos da me, a situao melindrosa das duas senhoras e o propsito em que estava de fazer de Madalena a sua esposa no dia em que a sua alma e a sua espada houvessem contribudo gloriosamente para a defesa da Ptria. O tanoeiro ouviu-o comovidamente, mas no era difcil perceber-se-lhe uma certa expresso de enleio e de pesar. Por minha me e pela honrada memria do meu pai e senhor, que Deus tenha consigo, vos afirmo, senhor Afonso Eanes que a vossa casa no irei seno quando mo permitirdes e na vossa companhia h de ser. E ningum com autoridade igual vossa para explicar ao povo os meus leais intentos e para as defenderdes a elas dos dios caluniadores da arraia-mida. Que me dizeis, senhor Afonso Eanes? Que da minha casa podeis dispor como se a vossa fosse e que l ho de ter amorvel acolhimento essas damas que protegeis, e a mim para as servir e defender dedicadamente; mas sabeis que uma casa acanhada de gente rstica em que ho de viver constrangidas e mal acomodadas senhoras, que em to diferentes condies viveram e em opulentos palcios se criaram. No digais tal, meu honrado amigo. Nas circunstncias presentes, nenhum palcio de Lisboa valeria para abrigo dessas desventuradas damas o que vale a vossa honesta casa de caudilho do povo. este o servio de mais alto apreo que eu podia pedir-vos e que vs podeis prestar-me. Agradeo-vo- lo de toda a minha alma e aperto nas minhas essas mos gloriosas de mesteiral, que tem sido uma das mais poderosas foras da revoluo contra os traidores e contra as ambies do monarca de Castela. E apertou-lhas com enternecida gratido. Obrigado, meu valente cavaleiro. O caso est decidido pela minha parte. Na minha casa sero recebidas essas damas com as honras que merecem, qualquer que seja o nosso pesar pela rudeza e mesquinhez da hospedagem. Mas bem vedes que dever meu ir dar conta disto ao Mestre, pois que para aqui vieram com a sua permisso. Certamente. As suas circunstncias so excecionais. Daqui irei convosco e, depois de falardes ao Mestre, lhe irei eu apresentar as minhas desculpas pelo triste acontecimento desta madrugada. Fazei-me ento um favor. Dizei. Guardai para depois a vossa ida ao pao de Apar S. Martinho. Eu vou j e c virei com a resposta. A respeito do que houver, aqui falaremos nossa vontade. Pode muito bem ser que depois tenhais de juntar s desculpas pelo combate desta madrugada os agradecimentos pela sua anuncia e favor ao nosso propsito, que ir talvez alm do que ns esperamos. Pois que assim o desejais, ide vs e aqui vos ficarei esperando. No tardarei, se encontrar o Mestre, como creio. At j, senhor Ruy de Vasconcelos. Deus vos traga depressa, meu grande amigo.
* * *
Ruy esteve esperando que D. Maria de Mendona e Madalena sassem dos aposentos de D. Dulce. No foi longa a demora. Voltaram de l comovidas, olhos afogueados de chorar. Senhoras minhas disse-lhes, indo ao seu encontro pareceis mortificadas! Vossa me tem razo e foi generosa para ns respondeu D. Maria Foram de reconhecimento as lgrimas que ns chormos. A mortificao vem do nosso infortnio e j ia connosco para os aposentos da vossa me e senhora. Uma santa, uma generosa santa! acudiu Madalena enternecidamente. Senhoras, a minha promessa no se quebrar nunca, por mais que a m fortuna se empenhe em nos separar. O meu brao, o meu esforo, a minha alma para vos defender e velar por vs. Fora desta casa, seja onde for, a no ser que a vida me falte ou a gloriosa causa da nossa terra me leve para longe de vs, serei o mais fervoroso mantenedor do vosso honesto nome. Por este noivado das nossas almas, Madalena, por ele ser o santo direito e o maior dever de proteger-vos, enquanto por outro amor de santa origem, este que eu tenho nossa terra, a minha lana e a minha espada no houverem conquistado direito de maior honra: o de chamar-vos minha esposa! Madalena ps toda a gratido da sua alma no olhar acariciador, de anglica suavidade, com que buscou o olhar dele. Muito vos devemos, senhor Ruy de Vasconcelos disse-lhe D. Maria de Mendona O mais que podamos dever-vos! Com a vida, este generoso amparo em que a vossa honra de cavaleiro se empenha em defender a nossa. Podemos sair quando entenderdes que tempo. Aguardo uma resposta e, se vier como espero, noite ser a sada. Como quiserdes volveu, baixando-lhe a cabea com uma grande expresso de afeto. Rui! murmurou Madalena, ficando um pouco atrs da me. E naquele nome tal inteno de amor, como se num monosslabo se pudesse resumir todo o poema de sonho de uma alma, que o jovem paladino lhe volveu perturbado, numa tremura de voz quase velada: Minha vida!
* * *
O Juiz do Povo, aquele tanoeiro pico, iniquamente apagado na Histria, chegou num alvoroo de jbilo. Boa nova, meu amigo e senhor! disse do fundo da escada para Ruy de Vasconcelos, que da janela o tinha visto entrar Um grande corao o do nosso Mestre! Bons olhos os seus para conhecerem homens e honrada conscincia para os galardoar! Estou a perceber que vos acolheu bem o pedido? O melhor acolhimento que eu podia esperar! Mandou que fosse levantado o sequestro ao palcio do traidor e dele vos faz paga em prmio dos vossos servios, para dele dispordes como quiserdes. uma distino gratssima, que eu tenho no maior apreo, mas preferia que fosse restitudo a essa pobre senhora, que nenhuma culpa tem da traio do marido. Pois restitui-lho vs, que lho podeis restituir e com esse intento vos d o Mestre. Bem vedes que o povo mido no sabe distinguir certas coisas e no levaria a bem que se fizesse paga de exceo filha de um renegado de to vilssimo feito, tendo sido confiscados ou transferidos para a posse dos fidalgos leais os bens dos outros traidores de menos afronta para ns. Assim, por paga do prmio aos vossos assinalados servios, o povo achar justa a resoluo do Mestre, pois que toda a gente sabe como tendes exposto a vida na defesa da nossa terra. preciso que o povo no tenha nunca a sombra sequer de uma suspeita a respeito do nimo leal e justiceiro do Mestre. No dia em que a tivesse, a nossa causa estaria perdida, pois que valem muitssimo as lanas dos cavaleiros leais, que so poucos, mas nada podem sem as bestas e as chuas do povolu, que a nossa fora maior. Acertadamente falais como sempre, senhor Afonso Eanes. Farei a restituio desse palcio, que por nenhum preo quereria para mim, e ser ele para a minha noiva, o primeiro quinho do seu dote. Antes, porm, que o v agradecer ao Mestre, a vs o agradeo, meu honrado amigo. O vosso nimo o ganhou; agradecereis a quem vos fez valer. Vs. Eu quase entrei nisso como Pilatos no Credo. Estou a perceber como as coisas se passaram. Falastes vs da paga com pedidos de quem pede um alto favor para si. No nego que o Mestre se inclinasse benevolamente ao meu respeito; mas o que eu sei que no podia esquecer-se de quem era o homem que lhe fazia o pedido. Quem ps o Mestre frente do povo fostes vs e quem levou o povo para uma cega e devota obedincia ao Mestre foram as vossas palavras e a resoluo do vosso nimo naquelas cortes do alpendre de S. Domingos, em que houve um s brado poderoso o do povo, movido por vs (*).
[(*) As antigas cortes constituam-se com os representantes do Clero, da Nobreza e do Povo. Eram os trs braos, ou os trs Estados da Nao. Nas primeiras cortes da monarquia s o Clero e a Nobreza tinham representao. Levou mais de um sculo a conquista da representao popular, por intermdio dos procuradores dos concelhos (municpios), organizados no reinado de D. Afonso III. Foi em Leiria que pela primeira vez se reuniram cortes com os eleitos do Povo O terceiro estado (1254).]
No posso, nem desejo passar de mestre tanoeiro que no quis nem quer ser vassalo de el-rei de Castela. O mais favor vosso de amigo, que muito vos agradeo. A revoluo fizeste-la vs, condestvel do povo, como ele prprio vos chama. Dizeres de pessoas da minha condio volveu-lhe modestamente O que importa agora, senhor Ruy de Vasconcelos, que me digais quando essas damas saem, pois desejo-as acompanhar e dispor as coisas para que fiquem l defendidas de qualquer arremesso da arraia-mida. noite parece-me melhor. noite o qu? perguntou D. Dulce, que, momentos antes, chegara porta. Foi para ela o filho amoravelmente e deu-lhe conta da concesso do Mestre, obtida pelo tanoeiro. Contai-me por isso entre as pessoas que mais do corao vos agradecem disse-lhe D. Dulce com extremada amabilidade Entendo que D. Maria de Mendona e a filha devem sair daqui, no de noite como quem foge para mudar de abrigo a ocultas, mas luz do dia como quem volta honestamente posse do seu lar. Protegidas por ti, Ruy, acompanhadas por mim, e pelas pessoas da minha confiana que eu ponho ao seu servio. Me e senhora! disse-lhe o filho comovidamente. Agora tenho razes especiais para desejar que assim se faa. Deu-mas h pouco a tua noiva na dor com que me sups afrontada pelos seus amores por ti. preciso que todos saibam porque elas saem, para onde vo e quais honestos escrpulos as levam daqui. Ningum ousar supor que vo expulsas desta casa, porque hei de ir eu acompanhar a prometida noiva do meu filho. Me, a santa que sois! A me que eu sempre fui que . E no seu alvoroo de surpresa, mal podia Ruy de Vasconcelos adivinhar que palavras simples e que lgrimas adorveis de Madalena tinham sugerido ao corao da austera fidalga aquele requinte de amorvel generosidade. A informao a respeito da gratido do Mestre de Avis mais ainda lhe engrandecera e afervorara o bendito propsito. Vai agora dar-lhes a boa nova. Se me dais licena, madrinha e senhora minha... disse o tanoeiro, despedindo-se. Como quiserdes, e cada vez mais vossa esta casa. Senhora, honra e favor para se no esquecer nunca! Agora, senhor Ruy de Vasconcelos, se fordes ter com o Mestre... L irei dentro em pouco. Ento com ele nos encontraremos e l me direis a hora a que vo, para eu vos esperar no palcio das Portas da Cruz (*).
[(*) Aquelas portas eram das muralhas novas da cidade, abaixo do Postigo do Arcebispo e a curta distncia do Tejo. A designao das portas valia apenas uma referncia de local em relao s antigas edificaes que lhe ficavam na vizinhana.]
Me e senhora, o vosso afilhado tinha tido a inteno de nos acompanhar, mas agora, como sabe que vs ides tambm... Pois por eu ir lhe peo que nos acompanhe. Homem assim leal e honrado, ser bom que o veja o povo com essas damas e muito me apraz t-lo ao meu lado. No tendes porque me agradecer disse, voltando-se para ele De sangue real o Mestre e no tem amigo maior do que vs nem quem mais o honre. Demorai-vos um instante, afilhado. Ruy, vai dar-lhe a notcia, e vem c dizer ao senhor Juiz do Povo a que hora havemos de sair. Ruy foi logo para os aposentos de D. Maria de Mendona. D. Dulce ficou falando com o glorioso mecnico. a verdade conhecida por todos dizia-lhe ela, continuando a conversa a respeito dos altos servios do tanoeiro ao bastardo do rei justiceiro e de Teresa Loureno O povo tanto vos quer a vs como ao prprio Mestre. Talvez por sermos ambos mestres, madrinha e senhora minha volveu-lhe Afonso Eanes neste gracejo de homem modesto Mas a grandssima diferena est em que a sua senhoria Mestre dos cavaleiros da Ordem de S. Bento de Avis, e eu dos aprendizes de tanoeiro da minha loja. Ruy voltou. No queriam marcar hora; que a marcsseis vs, me e senhora. Afinal com elas combinei que fosse de tarde, para evitar a torreira do sol. Vs estais de acordo? Estou. No vos quero demorar mais, senhor Afonso Eanes, e aqui vos esperaremos. Aqui terei a honra de vir procurar-vos, madrinha e senhora minha. Ia o prestigioso tanoeiro a sair, quando D. Maria de Mendona entrava com a filha. Senhor Afonso Eanes, Deus d a vossa mulher e aos vossos filhos a paga do benefcio com que nos ajudastes. Senhora, eu no fiz mais do que lembrar um caso de justia, assim como quem d um recado. J sabemos como foi respondeu e porque o soubemos, para sempre nos havemos de lembrar de vs agradecidamente. Para vs, D. Dulce, para vs s de joelhos disse comovidamente, indo para ela. Assim, beijando-vos a mo protetora de santa, como vosso filho vos chama disse-lhe Madalena com adorvel meiguice, beijando-lhe a mo a chorar. D. Dulce inclinou-se para ela e beijou-a. Foi um beijo misericordioso que o jovem paladino sentiu no corao.
* * *
Pelas quatro horas saam para o velho palcio dos Mendonas. Na frente, Ruy de Vasconcelos dando a direita sua futura noiva; a seguir, entre D. Dulce direita e o Juiz do Povo esquerda, a esposa do renegado que traiu a Ptria. A larga distncia duas antigas criadas e um criado velho de D. Dulce, que iam provisoriamente para o servio de D. Maria de Mendona. Vou com saudades da tua casa; linda e alegre; estavas l tu! ia dizendo Madalena ao noivo num fiozito de voz A minha muito antiga. Tem salas aonde eu nunca fui! Para mim h de ser como um palcio de encantamentos porque l estars tu, Madalena! Dizem que foi a casa de um mouro de grandes riquezas quando aquele stio ficava muito fora da cidade! Conheo essa tradio. Conta-se que foi sobre as runas da casa sarracena que se edificou o pao dos teus avoengos, vai para trezentos anos. noite faz-me pavor! Em pequena tinha sonhos de pesadelo! Via mouros que me levavam por um caminho debaixo do cho! Eram sonhos por causa dos contos de mouros penados e de mouras encantadas, que uma criada velha do meu pai me dizia aos seres. Agora a encantada ser uma linda rapariga crist gracejou H de ir certo cavaleiro, que ns conhecemos, quebrar-lhe um dia o encanto para a tornar sua esposa. Deus ajude esse cavaleiro volveu, sorrindo. O pior que o pobre cavaleiro tem o dever de honra de no entrar l seno de companhia, enquanto o encantamento se no tiver quebrado. E nem sequer lhe ser dado beijar disse muito baixo, num murmrio de voz a dama que perdidamente adora! As almas noivas sempre se encontram aonde o sonho as leva respondeu-lhe num fio de voz que tremia e numa doura de olhar que estonteava. E, toda afogueada, acrescentou num ciciar de palavras, que s ele podia ouvir: Os beijos voam das janelas como as borboletas; pousam onde querem pousar como elas. Encontram-se como as pombas no ar. Tinham chegado. Era realmente um edifcio velhssimo, de torvo aspeto, em que uns lanos e vestgios de construo moura contrastavam com a pesada arquitetura da reconstruo, que vinha j dos meados do sculo XIII. Um homem da confiana de Afonso Eanes abriu o porto chapeado, de grandes argoles de bronze. Vrios curiosos, que de longe tinham acompanhado aquela gente fidalga, farejando caso singular, pararam em frente do porto, dali a pouco cerrado para eles. A mulher e a filha de um dos maiores traidores que tem tido Portugal! comentava uma mulher idosa. Conheo-as como aos dedos das minhas mos. O que admira que o Mestre todo se tora por elas! Ora, o Juiz do Povo est na mesma! Olhai como ele ia todo ancho ao p da abelha-mestra! E o galo pimpo, ao lado da rapariga, com a asa de rastos! Eu j ouvi que por causa dele, que leal nossa terra e tem febras de seiscentos demos, que s por causa dele, cavaleiro destemido, que o Mestre e Afonso Eanes do amparo quelas desgarradas. E tal amparo, que at lhe fazem restituio daquele pao! Afonso Eanes j me contou como o caso tinha sido. O pao foi dado ao rapaz em prmio dos seus feitos, e vai ele deu-o quela carinha de anjo com quem tem o casamento tratado. Sim, sim! acudiu o nosso conhecido sapateiro Bernardo, maliciosamente, pondo num assobio o comentrio gaiato do caso Noivos de avena, ser por causa da avena que os mudam de casa! No estejais a pr maldade em coisa de que nada sabeis! repreendeu o que se ufanava de viver na intimidade do Juiz do Povo Afonso Eanes tudo me contou pelos midos. Aquela menina sai de casa de D. Dulce para no dar que falar s ruins lnguas badaleiras como a vossa. E o jovem cavaleiro prometeu no entrar nunca sozinho naquela casa. Ora, de noite at nos conventos de freiras tm entrado! Os vaganaus como vs sois... Mas o filho de D. Dulce no se compara. Se por ser fidalgo que se no compara recalcitrou o casmurro maldizente podeis limpar a mo parede pelo remoque. Tomara eu tantas libras de ouro ingls como deles podiam trazer no gorro o enfeite de Loureno da Cunha, primeiro marido da rainha boneja, e como delas deviam de encobrir o rosto com o vu aafroado. No tenho nada com esses dizeres. Falo de um jovem, que um dos mais destemidos da nobreza leal e a quem na sua honra ningum tem nada que abocanhar. Mas olhai l interveio uma mulher nova Ento o Mestre h de dar licena para esse belo cavaleiro casar com a filha de um tredo de m alma, bem que ela tenha o mais lindo palminho de cara que eu ainda vi em Lisboa?! Dar, pois que a filha no tem culpa da vileza do pai, como o senhor Nuno lvares no tem culpa da traio dos irmos, bandeados por Castela. E para alm disso, contou-me o nosso Juiz que Ruy de Vasconcelos fez voto de no pedir licena ao Mestre para casar, seno depois de ter praticado um grande feito em campo de batalha. No sei se entendeis bem? No l muito bem! acudiu o refilo de m lngua, o famoso Bernardo Pingueiro. Pois no tem muito que perceber. Com o seu feito em servio da nossa terra far ele o dote maior da noiva, para que o povo lhe no leve em mal a ela a infamao do pai. Isso vos ter dito Afonso Eanes retorquiu-lhe o Bernardo pois que do vosso bestunto no sairia sem ajuda, ainda que estivsseis dez anos a discorrer. Sois um asno chapado replicou-lhe o outro a embespinhar-se, voltando-lhe as costas de repente Ora a seca do tolo! disse para as mulheres Eu sei tudo. Levou meia hora a contar-mo o nosso honrado Afonso Eanes. O voto do rapaz foi tal como vos disse. E ainda sei mais. Formou-se a uma companhia de fidalgos jovens, de sangue na guelra, e logo aclamaram rainha das belas aquela noiva. E para que essa companhia? perguntou uma rapariga. Para batalhar pela nossa terra e para morrer pelos seus amores. Foi o voto que fizeram. Toma Tom, que vais para S! comentou uma velha chocarreira. Para conquistarem glrias e coraes acrescentou o informador. Coraes! repetiu a rapariga ingenuamente. No te fies em cantigas, rapariga disse-lhe o Bernardo, fazendo-lhe tagats Ho de ser galos doidos, de crista emproada e espores dourados. Pobres das franganotas perseguidas por eles, sempre com a asa de rojo! Irra, que burro teimoso! rouquejou, insultante, o amigo de Afonso Eanes, afastando-se. Pois sim, mas c os da nossa condio disse a rapariga que no so capazes de idearem essas coisas! No te desconsoles, pequena volveu-lhe o tunante com ademanes cmicos Arranjo eu tambm uma hoste de andorinhes, de capa rota, com votos de amor, e pela minha f que te aclamarei rainha das moreninhas da Alfama. V, esteja quieto! E mesmo nas desavergonhadas barbas dos casteles, com chua e escudo, te aclamaria eu pela minha dama. Arreda! Ora o demo do escariote rucilho e sem dentes! gritou-lhe entre ofendida e escarninha. Mas com os mesmos ares cmicos, de mo na cintura, o chocarreiro prosseguiu: Senhora D. Ausenda, troveiro sou para vos cantar e cavaleiro de ida para mandar os meus arautos ponte levadia do vosso castelo do Beco das Galinheiras, no gro-condado da Alfama, a fim de reptarem vossos adoradores, a um por um ou s parelhas, para lia de campo aberto ou estacada. Pero se jueren hombres de Castilla, caracoles! Que ni Dios vendr por ellos. Riram perdidamente e at a prpria rapariga riu dos gatimanhos e do mascavado castelhano do farsista. Schiu! avisou um mesteiral A vem Afonso Eanes. Viva o Juiz do Povo! clamaram dezenas de vozes. Vinde comigo disse-lhes Afonso Eanes Parece de ofensa este juntamento de gente pasmada diante daquele pao, que desde hoje deixou de ser o solar de um fidalgo traidor, para se tornar pertena e galardo de um jovem cavaleiro a quem o Mestre honra e estima como quem , pelo muito que vale! Eu vos afiano; e, se preciso fosse, o defenderia contra quem quer que para ele arremetesse. Vinde. Para aonde quiserdes. Para aonde mandardes. Como se o Mestre fosse. Mais ainda, porque sois mais nosso. O Condestabre da arraia-mida. E l foram de roldo atrs do prestigioso tanoeiro, que era uma das mais soberbas figuras daquele extraordinrio perodo da Histria portuguesa.
CAPTULO IX A BANDEIRA DOS NAMORADOS
No dia seguinte quele em que D. Maria de Mendona e a filha voltaram ao pao abandonado dos Mendonas, apareceram logo de manh uns grandes grupos de cavaleiros fidalgos, todos juvenis, em frente do velho solar medievo. Destacava-se de todos aqueles jovens um de alta estatura, magro, espadado, feio, de mos cabeludas. Era lvaro Coutinho, o Magrio. Pareciam guardar algum e no esperaram muito. Ruy de Vasconcelos assomou embocadura de uma rua que vinha dos lados de S. Vicente. Foram todos para ele em chusma, jovialmente, com o Magrio frente. Ora viva quem a flor do esquadro dos enamorados, noivo da rainha ias belas disse-lhe, prazenteiro, o lvaro Coutinho. Perdoai a demora. Nenhuma demora que nos fizesse dano. E depois, ns que chegmos mais cedo do que a hora ontem aprazada. Para o pedido de mistrio que me no quisestes revelar! Diante da vossa dama o ides saber. Certo a avisastes? Avisei; ficou muito enleada. que tambm as rainhas se perturbam com as homenagens que merecem. Vamos l, se vos apraz. Vamos. Ah! Mas primeiro deixai que vos d apresentao de trs novos companheiros. Apresentou-lhe os recentes iniciados, fidalgos tambm juvenis. Como vedes, a nossa ordem aumenta. que, apesar de todas as calamidades destes nossos tempos, o nmero dos amorosos cada vez maior! Explica-se acrescentou, sorrindo Tm lindos olhos enfeitiadores as damas de Lisboa. Sem ofensa para as de Entre-Douro e Minho, que eu tive a fortuna de admirar e achei encantadoras acudiu Ruy calorosamente. E mais para as da Beira e do Alentejo lembrou um, mais prximo. No esquecendo as lindas raparigas do meu Algarve acudiu outro So morenas de olhos mouros por quem a gente se enfeitia e perde. No mas deixeis esquecidas. Decerto que no respondeu lvaro Coutinho, sorrindo Reparai. ramos h quinze dias menos de vinte e j somos quarenta e cinco! E porque as h lindas em todas as comarcas do reino e ns, Portugueses, somos do nosso natural amorosos, aqui tendes, meu querido Ruy, a razo deste meu vaticnio. Daqui a umas semanas teremos o dobro de homens e no haver sala no pao da nossa rainha em que possamos caber juntos. Vamos l concluiu, pondo-lhe o brao pelo ombro. Ruy bateu ao porto do palcio. Vieram logo abrir. Eram esperados. Ao topo da grande escada antiga os guardava D. Maria de Mendona e lhes deu gentil acolhimento. Ao lado dela Madalena, num enleio adorvel, muito afogueada. Foram conduzidos para a vasta sala de armas dos Mendonas, antigo salo mouro de janelas estreitas com colunelos floreados, e de silhares altos de preciosos azulejos. Com os rendilhados de pedra amarelecida, em puro estilo rabe, e com os silhares a representarem trechos de Meca de Bagdade, lances da vida de Maom e combates dos califas gloriosos, contrastavam os trofus de pendes com a cruz de Cristo ou com umas ingnuas imagens de Jesus e da Virgem, e as panplias de espadas largas e retilneas, a sobrepujarem altos escudos com grandes cruzes vermelhas e verdes, floreteadas, de antigos freires de Tomar e de Avis (*).
[(*) Das ordens militares que Portugal teve na Idade Mdia, comunidades de guerreiros monges, que por algum tempo foram a mais brilhante escola de guerra e o mais slido poder militar do Pas, as de maior renome eram ento a de Cristo, que substituir a extinta ordem dos Templrios, e a de S. Bento. A primeira tinha a sua sede principal em Tomar, e a segunda em Avis.]
A meio da sala cadeiras largas e altas de cedro com grosseiras esculturas, e a um e a outro lado tamboretes de madeira dourada e estofo desmerecido, de veneranda longevidade. D. Maria honrava-os com inexcedvel delicadeza. Ficaram de p, apesar de todas os pedidos da dona da casa. Ruy procurou um lugar modesto ao p de um dos cavaleiros com quem tinha maior intimidade, um tal Vasco Eanes da Costa, rapaz de vinte e trs anos e de preclara linhagem, notvel pela sua musculatura de atleta, pelo gnio aventureiro e por vrias proezas do seu pulso de fenomenal rijeza. Ficaram os dois de p no desvo de uma arcaria, ao fundo da qual pendia um velho pano marroquino, de seda e ouro, em guisa de reposteiro de alguma porta que totalmente encobria. lvaro Coutinho adiantou-se frente de duas filas de iniciados, aqueles que o tinham sido depois da reunio em casa de Ruy, e apresentou-os a um por um a D. Maria e filha. Estes companheiros meus, senhora minha disse o Magrio para Madalena como ns votados defensa da nossa terra e aos maiores feitos em honra das nossas damas, muito comigo instaram para que vos trouxesse aqui. Vm dar preito vossa realeza entre as mais belas damas que tem Lisboa, e da fervorosa admirao com que de vs lhes falmos do eles agora manifesto testemunho. Aceitai-lhes o preito, senhora. Madalena levantou-se, perturbada, num constrangi-, mento de modstia. Um a um, solenemente, como homens daqueles tempos num pas onde a juventude fidalga e sonhadora parecia ressurgir os requintes da velha cavalaria, dando realidade aos amores romanescos da Provena e s lendas galantes da Tvola-Redonda, os apresentados foram beijar, de joelho dobrado, a mo branca, escultural, da noiva de Ruy de Vasconcelos. Por fim, curvando-se diante dela, lvaro Coutinho disse-lhe: Senhora, por todos ns, deixai que vos faa um pedido. Senhor cavaleiro, dizei. Carece de uma bandeira a companhia dos Namorados. Da cor do mar, que grande alentador de sonhos, e da cor em que a gente nova figura a esperana dos seus amores sonhados. E sobre essa cor, senhora rainha de belas, as letras de umas palavras em que o nosso voto de Portugueses e de namorados se resuma. Tem de vir das vossas mos essa bandeira, para que a levemos nossa primeira batalha campal. E primor seria que no-la bordasse a mais linda namorada. Senhor, to generosas palavras favorecedoras! Receio no saber... Por algum, muito nosso, porque muito vos quer, soubemos que admiravelmente e com rara presteza bordastes a fio de ouro, por certo voto do vosso corao, o frontal de seda de um altar. Assim foi confirmou, perturbada, buscando no olhar o seu bem- amado inconfidente Mas foi para um altar pequenino, recatado. Pois seja a bandeira outra promessa vossa. Fazei de conta que para outro altar, por outro milagre, e pela santa causa da nossa terra, para voar alto como as nossas almas. E, com os olhos nela, no maior fragor das batalhas, um de ns ler nas letras que vs lhe bordardes o mais belo e orgulhoso sonho do seu noivado. Volveram todos um olhar em busca de Ruy de Vasconcelos, a quem Vasco Eanes chamara a ateno para qualquer rumor estranho por detrs do velho pano marroquino. Senhor, sim respondeu Madalena. Pois bendita e gloriosa promessa seja ento a vossa. Por todos ns, fervorosamente vos agradeo disse, beijando-lhe a mo Poucas palavras bastam, senhora minha, volta de certa imagem pequenina da Virgem (*), em pintura de Itlia, que eu hei de ter a honra de vos trazer. Estas palavras: Pela nossa terra e pelas nossas damas.
[(*) Estava muito nas ideias da poca e vinha j de outros sculos aquela devoo das imagens de santos apostas aos pendes, bandeiras e estandartes. O estandarte de D. Nuno lvares Pereira era esquartelado por uma grande cruz e tinha as imagens de Jesus crucificado e da Virgem, de S. Joo, de Santo Antnio, de S. Jorge e de S. Tiago. Umas pequeninas imagens estas das bandeiras; algumas pintadas na prpria seda da insgnia, outras presas a cercaduras bordadas.]
Em duas semanas, vo-la terei bordada, pois que s essas palavras lhe quereis. Senhora, Deus vos pague, e que seja para o melhor servio de Portugal e para a nossa maior glria essa bandeira, que das vossas mos hemos de receber. E todos, entusiasticamente, lhe foram agradecer a gentileza. Parecia que algum estava falando perto daquela porta dizia baixo Vasco Eanes para Ruy de Vasconcelos. Engano vosso havia de ser. Com franqueza vos digo que no tinha ainda visto semelhante porta, e no para admirar, pois que toda ela se encobre com aquele velho pano marroquino. E se no fosse o rudo que eu ouvi, e as vozes sumidas... Eu nada ouvi, talvez por ter a ateno voltada para o que dizia lvaro Coutinho. Ou antes porque foi na ocasio em que Nuno da Cunha vos estava segredando no sei qu. Sim... Mas o certo que, se me no avisais, nunca eu teria sonhado sequer com semelhante porta! Baixa, estreita, toda chapeada como se fosse a porta de uma priso numa torre!... Pois seja como for, deixai, que daqui a pouco hei de eu saber de D. Maria de Mendona para onde essa porta d comunicao. A fila dos que se despediam ia j no fim e Vasco Eanes da Costa afastou-se de Ruy para ir despedir-se tambm. O filho de D. Dulce foi acompanhar at ao porto todos aqueles seus companheiros. Esperai vs aqui uns instantes disse para Vasco Eanes Pequena demora terei. A que vos aprouver. Subiu e foi ter com D. Maria, que ainda estava na sala de armas com a filha. Agora venho eu agradecer-vos a gentileza, rainha das belas, rainha santa da minha alma! disse para Madalena, beijando-lhe a mo. E vs o meu valido volveu-lhe a sorrir. Senhora minha disse a D. Maria concedei-me que, por simples curiosidade, vos pea um esclarecimento. Todos os que eu souber dar-vos. Ruy falou-lhe do rumor de vozes abafadas que o seu amigo Vasco Eanes tinha notado do lado da porta encoberta. Lembrei-me que algum dos vossos servos estivesse escutando por detrs daquele pano; mas vi que no estava l ningum! O meu amigo disse- me ter-lhe parecido que ouvira passadas cavas e vozes sumidas. Em boa verdade eu nada ouvi. Engano havia de ser respondeu D. Maria numa perturbao em que Ruy no reparou Nunca no meu tempo se abriu aquela porta. Uma criada velha, que j morreu, contava uma histria de certa moura que por ali se sumira com um xerife negro de Marrocos com quem tinha amores, a que o pai se opunha por dio famlia do negro. Dizia-se que ele e ela ali tinham ficado emparedados e que ainda, em certas noites, se ouvia soluar, dando ais e clamando palavras que se no entendiam! A mim mo contou uma vez a criada velha e nunca mais aqui entrei seno hoje! Fazia-me pavor esta sala! disse Madalena ingenuamente, num arrepio de nervos. Contos de gente velha, em que eu nunca me fiei, mas a verdade que sentia um certo horror em aqui vir de noite! comentou D. Maria. E no sabeis ento, senhora minha, aonde a porta vai dar? Ao certo no sei, pois que nunca minha vista foi aberta. O meu marido que uma vez me disse que no tempo do av ali tinham ido, mas que logo, a uma vintena de passos, esbarraram com um muro em runas. Sem encontrarem o xerife negro e a sua bem-amada, os aflitos emparedados que passaram sculos a soluar amarguras por horas mortas da noite! gracejou o Vasconcelos Pois muitos vos agradeo o conto da velhita, vossa criada, e daqui o vou j dizer ao meu amigo Vasco Eanes para o convencer de que sonhou acordado. Hei de rir com ele desse caso que o deixou suspeitoso, nem eu vos sei dizer de qu! Despediu-se, desceu. Reproduziu o conto a Vasco Eanes, dizendo-lho a rir. Pois sim, seja o que for, mas o que eu vos afirmo que no estava o sonhar teimava o jovem atleta, que de um murro abria o toutio a um homem ou deitava a terra um bezerro Levantei o pano disfaradamente, encostei-me porta, e ouvi umas vozes sumidas. S se eram do xerife negro e da sua malfadada moura volveu-lhe Ruy de gracejo. No vale a pena falar mais em tal disse-lhe secamente A teima podia azedar-se, e eu no quero perder um amigo por coisa de to pouca valia e com a qual nada tenho. Ficai com o vosso conto, que eu c vou com a minha teima. Homem de Deus, o caso no para tanto! At logo, ou at amanh como bons amigos. At logo seja, e no falaremos mais no caso. Est dito, Vasco Eanes. E se quiserdes aparecer l por casa, com muito prazer vos agradecerei. Talvez logo. Adeus. Vasco desceu para os lados do rio; Ruy tomou para os lados de S. Vicente.
* * *
Dias depois Mendo Rodrigues, o antigo cavaleiro, o misterioso peregrino da Palestina, chegara apreensivo ao pao de D. Dulce como se fosse portador de ms notcias. Mandou chamar o sobrinho e meteu-se com ele numa salazita, porta fechada. Tive hoje a m hora de encontrar esse nojento homem que se chama Joo Loureno da Cunha! O primeiro marido de Leonor Teles! Dos dois maridos da loba o mais atraioado e o mais asqueroso. Ele! No o supunha c! Duvidaria que lhe houvessem aceitado os servios, se eu prprio o no tivesse encontrado! Por assinalados feitos que ele a praticasse, a vergonha de o receberem seria a mesma! Adivinha-lhe a gente por debaixo do bacinete aquelas pontas douradas com que ele enfeitava a gorra para alardear na corte de Castela, com desavergonhamento de bobo, a sua m sorte de marido. Mas isto o que menos vale. Quando o encontrei, ia comigo certo frade que sabe os segredos da minha vida e os dele. Falou ao frade e a mim me no conheceu. Um pouco se afastou com ele e soube depois que lhe esteve dando graves notcias de perigos. De perigos para a nossa causa?! Sim, de perigos para Lisboa e para Portugal! O frade confiou-me as ms notcias que o bandalho fidalgo lhe deu, mas pediu-me que por agora as guardasse em recato e me limitasse a diz-las a quem pudesse acautelar o Mestre, sem levantar grande alvoroto de maiores desesperos para essa pobre peonagem, que vai para os muros e para as torres a cair de fome, com as mulheres e os filhos em casa a roerem as razes secas das ervas com que h dois meses se banqueteiam ou a enganarem a fome, bebendo gua podre, que dia e noite os envenena. Uma horrorosa misria, que nos vencer primeiro que a hoste de Castela, se Deus no tiver d de ns! Talvez no tenha, que ainda temos c ciganagem de m conscincia e pior corao! Mas o que o frade soube vem de m fonte empeonhada e seria uma imprudncia entender as coisas letra e tomar j conta de verdades seguras umas suspeitas que saram daquela boca sem escrpulos dever estar acautelado contra os mais estranhos casos, sem divulgar pela gente mida, que em tudo cr, boatos que podem ser calnias. Um deles, no acudiu com turbada veemncia Nesse acredito eu piamente, que tudo posso e devo acreditar de mais perverso e de mais torpe ambio, por parte dessa que foi rainha e boneja, vergonha de todas as esposas. Leonor Teles. No tinhas que errar. Sei agora quanto ela tem feito depois que daqui me afastei. Chamou o genro no seu auxlio contra a revoluo do povo, chamou-o para invadirem Portugal, a terra onde a loba nasceu, mas logo se desaveio com ele e com a filha, como era de esperar; procurou ento parciais com as suas torpes blandcias de Messalina e conspirou contra Castela como conspirou contra Portugal. Cansou-se de tanta perfdia o real invasor, seu genro, e afinal a mandou prender e levar para Castela (*).
[(*) Averiguou-se que D. Leonor Teles e o Conde de Trastmara, primo do rei de Castela, tinham uma conspirao ajustada contra o monarca invasor. Teria saudades do trono a rainha viva, e desvairado por ela, o conde haveria sonhado talvez com uma coroa real. Seria ento o terceiro marido de Leonor Teles, com o primeiro ainda vivo! Supe-se que a conspirao no hesitaria diante de um regicdio.]
Est l encerrada em no sei que mosteiro de monjas, e de l mesmo ir tramando a ocultas. o primeiro marido quem o diz, o primeiro e o mais digno dela! Se puder, fugir para vir entregar-se ao primeiro aventureiro que se ponha ao servio das suas ambies. Vir para tentar o Mestre, que foi um dos iludidos que ela ia enfeitiando. Como quis enfeitiar Nuno lvares, pajem e escudeiro seu de austera honestidade. Como enfeitiou outros acudiu Mendo Rodrigues amargamente outros que tinham obrigao de conhecer o Mundo e por ela se perderam! Quando ela podia enfeitiar. Resistem ao tempo os seus amaldioados encantos. Mais do que o mrmore das esttuas. Ouvi que ainda era de estonteadora beleza. Aquelas mulheres assim no envelhecem! E se viesse lanar-se nos braos do Mestre com as falsas e pungidoras lgrimas que ela sabe chorar, o cunhado bastardo, o Defensor do Reino, hesitaria em mand-la pr fora do seu pao de Regedor do Reino ou da sua tenda de batalhador. Coisa que no seria para grandes estranhezas. Nem vs sabeis ainda que certos homens de Lisboa, alguns que levantaram a revoluo, o prprio lvaro Pais, pensaram em cas-la com o Mestre e neste sentido se empenharam! No sabia! Por Deus, que seria essa a suprema infmia de Portugal! Ento antes derrotados pela gente de Castela. Antes! J vi agonizar um leo; sente-se admirao e d. Mas o co medroso, a arrastar-se na lama para lamber os ps que o fazem ganir, no pode causar seno desprezo. Tal detestvel pensamento o justificavam no empenho de apaziguar o Reino, pois que ainda se no tinha por certa a invaso dos Castelhanos. Por tal preo, ignbil paz! Mas se Leonor Teles voltar de Castela e algum desta terra tiver o impudor de a receber como receberam o primeiro marido, algum homem haver que lhe faa a ela o que o Mestre fez ao conde galego. Ruy, pela minha f o juro! Tio e senhor, tal no digais! Ningum seria agora capaz de lhe dar aqui, nem sequer de esmola, o canto de um lar. No sei, Ruy, no sei! Andam numerosos traidores de c na hoste do rei castelhano, mas suponho que ainda alguns ficaram a. Joo Loureno da Cunha o deu a entender ao carmelita, meu amigo. No disse nomes, no mencionou indcios seguros, mas deu a perceber que os havia! E talvez aqui mesmo em Lisboa, lidando convosco, os fidalgos leais, iludindo-vos como falsos amigos vossos, no fingimento de defender com igual devoo a causa que vs defendeis! Tio, custa a crer! Talvez at ele prprio, o que deu aviso da suspeita, ele mesmo, se lhe chegarem ao preo... manha velha fingirem-se escrupulosos aqueles que mais empenhados andam no encobrimento da sua conscincia de ciganos e do seu corao de ladolhos. Pelos modos, el-rei de Castela promete sedutoras recompensas ciganagem brasonada e no lhe faltam punhados de ouro para mercadejar traidores! Seja como for, v se tens algum mais chegado ao Mestre, que o ponha de sobreaviso para estar precatado. Ainda se no sabe de certeza donde a traio vir, mas suspeita-se que, de uma para outra hora, aqui mesmo em Lisboa, pode surdir! Pessoa muito chegada ao Mestre, e a quem eu possa falar abertamente em tal assunto, s de uma sei. Qual? Afonso Eanes. O Juiz do Povo, o glorioso tanoeiro, como tu dizes?! Est bem. Seja esse. Mas repara ento. Eu no quero sobre mim nem a sombra de uma suspeita de denunciante. No se fala em Joo Loureno da Cunha. Desconfia- se, h rumores de que alguma traio se esteja urdindo dentro da cidade. Mais nada. O Mestre que esteja precavido e ponha em gente de provada lealdade o encargo das rodas e sobre-roldas (*). E vs, os rapazes da companhia dos Namorados, comeai a cumprir o vosso voto, vigiando de dia e de noite os muros e as portas da cidade, como coisa vossa de segredo.
[(*) Rondas das torres e muralhas.]
Tio e senhor, isso hemos de fazer devotadamente. Entretanto, eu levarei o carmelita, meu amigo, a sondar bem Joo Loureno da Cunha e a instig-lo a ir declarar abertamente ao Mestre quanto sabe de perigo para Lisboa e para a causa de Portugal. Vai falar quanto antes a Afonso Eanes. Sem nenhuma demora, pois daqui vou j a casa dele. O Mestre foi avisado pelo tanoeiro, naqueles termos vagos que j conhecemos. Quase duas semanas depois, um jovem cavaleiro, Ruy Freire, pde saber alguns pormenores do trama traioeiro e foi diz-los ao Mestre, de quem era dileto, por ser filho de D. Nuno Freire, que teve o mestrado da Ordem de Cristo e fora aio daquele bastardo de D. Pedro I e de Teresa Loureno, ao tempo em que ele era criana. (*)
[(*) O Ferno Lopes, Crnica de El-rei D. Joo I, captulo CXXXVIII. Homem de claro esprito e honrada conscincia, Ferno Lopes escreveu cinquenta anos depois daqueles acontecimentos e pde, portanto, ouvir o testemunho dos que eram jovens naquela agitada poca. E como foi o cronista-mor do reino, teve sua disposio os mais ratos e preciosos documentos oficiais.]
* * *
No dia 14 de Agosto de manh, Ruy de Vasconcelos avisou lvaro Coutinho de que a bandeira dos Namorados tinha j concludos os seus dizeres em letras de fio de ouro. Foi uma notcia de grande alvoroo para os rapazes, e logo se combinaram para irem receber a bandeira, todos reunidos solenemente por volta da tarde. Assim foi. Cerca das 3 horas, mais de cinquenta fidalgos jovens (porque j tinha havido mais adeses), de bacinetes emplumados e cotas de armas, caminhavam unidos para o vetusto palcio dos Mendonas. Seguia-os uma turbamulta da plebe, de curiosos na estranheza e na incompreenso daquele inesperado espetculo. Mortificados, famintos, e ainda podiam ter curiosidades e entusiasmos! Estavam j afeitos quelas miserandas condies. E l ia com eles o sapateiro gracejador e tunante, o beberrana certo na vanguarda das scias, presente sempre em todos os juntamentos, como desfrutador que se divertia, divertindo os outros. E vo a casa da famlia do tredo? perguntava uma linheira. Pois est bem de ver que vo afirmou outra. Sempre esta gente de fidalganas tem ideias que fazem dar volta mioleira de quem os no entende! observou uma toucinheira do mercado do Rossio. Figas, que no os percebe a gente! acudiu uma hortaliceira de Valverde Pois andam esses galos novos na prospia de batalhar pela nossa terra, na dianteira de todos, e vo buscar a sua bandeira a casa de um traidor? O demo os entenda, nemja eu! Ora eu vos vou pr aqui tudo em pratos limpos interveio o Bernardo solenemente e mais no sou letrado, nem doutor como Joo das Regras. Se vindes com chocarrices, calai-vos l com elas! atalhou, espevitada, uma gordalhua, criada de um cnego da S. Por minha f que no, querida Bentinha do Menino Deus. Tirante o latim, que s mastiguei em rapazote para ajudar missa, no vesso de escorropichar a galheta do vinho, tirante essa lngua de matracas, em que vos no posso falar, ides ver que pareo um chantre na gravidade do meu aranzel. Escutai. A donzela daquele palcio, a filha de um traidor, , como j decerto sabeis, a prometida noiva de um daqueles namorados e foi por eles todos aclamada rainha das belas. Andai c, rainha, que vos quero ver! interrompeu, escarninha, a hortaliceira. Schiu! Attendite. Aquilo rainha que eles trazem l na sua mioleira. Maluqueiras de cavalaria que vm nos contos. Mas se fosse eu quem aclamasse rainha, c, para o meu uso, certa rapariga que eu sei, no haveria regatonas do Rossio e da Ribeira que se no largassem logo a berrar: Aquilo bebedeira do Bernardo Pingueiro. Pois naqueles meninos, o caso estranho galanteio de rimance e de cavalaria andante! O Mundo assim desigual e retorcido como os chifres de um carneiro! filosofou, de mo na ilharga. E ao outro, o noivo, no se lhe d disso? perguntou a criada do cnego Tantos galitos junto na mesma capoeira! Est bem de ver que no d. Tambm vs, Bentinha de olhos negros e covinha no queixo, tambm vs podeis ser rainha das cuvilheiras eclesisticas no pensamento de todos os reverendos cnegos da S, a hoste que se engalfinha em Belzebu, a resmungar latim, como aqueles se querem engalfinhar nos casteles, a lamberem nos beios o nome da sua amada, e nem por tal motivo... Risos da multido. Mau! Mau! interrompeu, embespinhada, a rechonchuda Benta do Menino Deus. Queria eu dizer na minha que, nem por vos terem no pensamento, como rainha das clrigas, quantos senhores cnegos h na S, nem por isto com tal realeza parece afrontado o vosso cnego e amo, bem que seja o mais carinhoso do cabido, naquela idade em que o bicho do caruncho mais ri o corao e menos prstimo d madeira. Novas risadas. Ide para o diabo que vos oia e vos retalhe essa lngua danada! gritou sacudidamente a Bentinha, voltando-lhe as costas e afastando-se. m sina minha! exclamou o sapateiro numa cmica tristeza Tm birra comigo as raparigas, muito principalmente as que esto ao servio do cabido! Os da companhia dos Namorados tinham entrado j no palcio dos Mendonas. Mas l vai o resto para vs, pios ouvintes continuou o Bernardo Aqueles frangos de espores dourados pediram sua rainha lhes bordasse a ouro na bandeira o voto dos seus coraes, e agora l vo receb-la. E foi a p at porta da rainha aquele esquadro de asa tufada, porque nesta nobre cidade de Lisboa os poucos ginetes existentes trazem a pele furada pelos ossos, mas esto na birra de se no deixarem morrer antes de ns. Porqu, mestre Bernardo? perguntou um mecnico, por entre as risadas dos curiosos. Porque no querem tirar aos ces a herana dos seus canelos, que ns seramos capazes de lhes roer, se eles morressem primeiro. Revoaram novas risadas. Ns, modo de falar emendou o gracioso C por mim, enquanto o vinho durar, perdem os casteles o seu tempo. A fome no entra comigo. E se entrar, afogo-a e no me rendo! O Juiz do Povo! A vem Afonso Eanes! E traz cara de caso! Abriram-lhe passagem. Guarde-vos Deus, boa gente disse o tanoeiro, de rosto avincado. E a vs ainda mais, mestre Afonso Eanes. Entraram para ali uns fidalgos jovens? perguntou, indicando o palcio. H instantes para l entraram. Ide para os muros e portas, vs os que tendes posto marcado. Desconfia-se de novo assalto? No desconfiar; mostrar-lhes a eles que os esperamos. E foi apressadamente para casa dos Mendonas. V, v, arraia-mida! disse o sapateiro, galhofando atrs da multido Das ameias dos muros e quadrelas, ao menos podereis ver que sobras ficaram do jantar dos casteles, bem comidos, bem folgados, e bem bebidos, lobos os trinquem! Ningum lhe ouviu a truanice. Uma voz de mulher ia gritando na frente: Deus seja connosco, e ns pela nossa terra! Para que sempre viva entre as naes!
* * *
Fora enternecedor o momento da entrega da bandeira, dada a Magrio pelas mos pequeninas de Madalena, numa tremura de emoo. Tinham lgrimas os olhos de celestial bondade daquela rainha de belas. Pois se tambm os olhos dos rapazes estavam rasos de gua! O Magrio disse alto, comovidamente, o moto da bandeira e. Todos o repetiram com devotado fervor: Pela nossa terra e pelas nossas damas! Neste lance entrara um homem que vestia uma armadura toda negra; repuxada contra a gorjeira pelo canal do bacinete uma barba longa e alva e sobre o arns um escapulrio branco de monge. Jovens cavaleiros! disse-lhes solenemente Um velho, que foi batalhador, vos abenoa em nome de Portugal antigo e convosco se apraza para vos seguir primeira batalha campal que se lutar nesta nossa terra contra o povo de Castela. Foi um momento de estonteadora surpresa. Para D. Maria e Madalena um lance de apavorada estranheza. Tinham-se erguido a tremer, procurando num relancear de olhos o olhar de Ruy, sereno, impassvel, como se nenhum sobressalto lhe houvesse causado aquela entrada. Dizei-nos quem sois? pediu lvaro Coutinho. Um monge e um cavaleiro. O nome vos no posso dizer, mas pela minha lealdade poder responder um de vs. Eu acudiu Ruy de Vasconcelos, adiantando-se comovido e solene eu, que pela minha honra e pela minha dama vos juro aqui que este cavaleiro tem uma alma grande e leal, e valente batalhador foi. J pela nossa terra. Monge peregrino! disse um, crendo reconhec-lo pelas compridas barbas brancas. O que chegou da Terra Santa! esclareceu outro. Algum que no quer revelar o seu nome atalhou Ruy de Vasconcelos algum que eu vos afirmo lealssimo. E tanto nos basta acudiu logo lvaro Coutinho. Certamente que sim confirmaram uns poucos. Agora deixai que eu vos beije essa pequenina imagem da vossa bandeira e essas letras em que est o voto pela nossa terra pediu o misterioso cavaleiro. Senhor, aqui a tendes disse o Magrio, estendendo nas suas grandes mos cabeludas o retngulo de seda franjado de ouro, em cujo centro estava emoldurada por uma cercadura de flores bordadas, a imagem da Senhora da Conceio, pintada em cetim e havia mais de meio sculo trazida de Itlia por um cavaleiro de aventura, parente de lvaro Coutinho. O velho beijou a imagem com religioso fervor, depois as letras que diziam Pela nossa terra. A estas no as devo beijar pois que s foram de perdio os meus maiores amores! E apontava as letras do outro dizer do lema votivo: Pelas nossas damas. Mas vou beijar as mos da rainha de quem as bordou. E foi. Entretanto Magrio chamou a ateno dos companheiros para o primor da cercadura bordada, que era para eles uma surpresa. Que lindas florzitas de madressilva aqui imitadas! E a madressilva quer dizer constncia para sempre explicou um dos jovens Para amar, para combater. Lindo pensamento foi e formosas mos as bordaram! Senhor Ruy de Vasconcelos, senhoras, perdoai disse do limiar da porta o Juiz do Povo Trago para vs um recado urgente do Mestre. Ns sairemos acudiu lvaro Coutinho se outra coisa vs no mandardes, senhoras minhas. Senhor Ruy de Vasconcelos disse o tanoeiro em nome do Mestre pedi aos vossos companheiros que fiquem, pois para todos eles o recado que trago, bem que tenha encargo de segredo. Todos alvoroadamente declararam que ficavam. Ouvindo que se tratava de assunto reservado, D. Maria e a filha despediram-se por entre homenagens dos jovens cavaleiros e retiraram-se. O velho campeador seguiu-as.
* * *
Sempre suspeitoso da tal porta encoberta, Vasco Eanes da Costa, mal ouviu declarar ao Juiz do Povo que se tratava de um segredo, que todos ali deviam guardar, props logo, sem declarar porqu, que se juntassem para um dos extremos da sala, de modo que bem ouvissem o recado sem haver necessidade de altear a voz. Ruy percebeu-lhe a desconfiana e sorriu. A rijeza da caturreira ainda lhe excede a rijeza do pulso! comentou de si para si. Mas todos concordaram com a proposta e l se foram apinhando ao topo da sala. Senhores cavaleiros disse o tanoeiro a meia voz no chega o tempo para rodeios. Empeonhado, talvez por conluiados seus, que da sua lealdade duvidaram, a escabujar com dores que lhe queimavam as entranhas, Joo Loureno da Cunha, esse que foi primeiro marido de D. Leonor Teles, esta manh mandou chamar certo frade carmelita para que o ouvisse de confisso em artigos de morte. E confessou-lhe, atendei bem, senhores, confessou que estava urdido na cidade um trama de traio por conta de el-rei de Castela! Traio de quem?! perguntou o Magrio. De D. Pedro de Castro, filho do Conde de Arraiolos, lvaro Pires de Castro, a quem Deus l tem. E com ele todos os seus cavaleiros e homens de guerra. Aqui nenhum h que seja da sua gente disse com desafogo lvaro Coutinho. Nenhum! Nenhum! repetiram cinquenta vozes. D. Pedro vendeu-nos pelo muito ouro e prata que el-rei de Castela mandou oferecer-lhe acrescentou Afonso Eanes Isto confessou Joo Loureno da Cunha, talvez desavindo com quem o empeonhou, por desacordo no preo daquela desalmada infmia! O frade no quis absolver Joo Loureno, sem ele tudo isto dizer ao Mestre. O moribundo acedeu, e logo foram chamar o senhor D. Joo para o ir ouvir. Foi, e ele tudo lhe declarou. O Mestre h pouco chegou de casa de Joo Loureno, e tudo est a precaver para a defesa da cidade, debaixo de todo o segredo. A mim me encarregou de vir ter convosco, pois aqui lhe disse que haveria de encontrar- vos. E qual propsito punham nessa traio? perguntou o Magrio, torvamente. Abrir a porta de Santo Antnio aos homens de armas de Castela e dar- lhes a mo para a escalada do muro de Santo Andr. Enfim, entregar-lhes a cidade, quem nem a fome, nem o poder das armas e da hoste de Castela ainda puderam render! O cigano vilssimo! rouquejou o Magrio. Mas, por Deus, que a traio foi descoberta e no hesitar o Mestre em mandar para o brasido de uma fogueira esse co traioeiro, e quantos com ele se vendiam ao rei de Castela! Primeiro que o queimassem, deveria ser espicaado pela ral como foi o Andeiro e o bispo castelhano! Isso, e de modo pior! regougaram outros. Senhores cavaleiros, tal no o pensamento do Mestre. seu intento e mandado que nada se declare ao povo para no o sobressaltar mais, e que s aos cavaleiros de mais provada lealdade se confie este segredo e com eles, recatadamente, se apreste a defensa. Prevenidos, nenhum receio podemos ter de surpresas e bom aso haver de mostrar a el-rei de Castela que estamos acautelados e que a cidade se no entrega, por mais dinheiro que ele desbarate na compra de traidores. Os que ficam leais, os que se no vendem, valem sempre pelo dobro daqueles que ele compra. Deixai que os Castelhanos venham afoitamente, muito fiados nos vendidos, e boa hora ser para lhes darmos outra lio de escarmento. Tm j nos seus arraiais a peste negra e esto com pressa de mudar de ares c para dentro da cidade. Pois ns os enxotaremos outra vez. Bom pensamento, em verdade, esse do Mestre; mas o que se faz ento ao traidor refece D. Pedro de Castro e aos seus homens de armas? O chefe dos vendidos ser preso quando chegar a hora que para a traio havia aprazado, e a sua gente cercada nos prprios muros que os Castelhanos ho de querer escalar. L estar outra gente que os receba. E para quando est aprazada a investida do inimigo? perguntou Ruy. Para esta noite. E com que gente podia contar o traidor? Tem ao seu mando para cima de cem lanas e uns seiscentos homens de peonagem, contando os besteiros, e todos eles na sua mor parte Castelhanos, que nos c ficaram desde os tempos de el-rei a quem Deus perdoe. Fizeram uma impresso enorme de raiva estas informaes de Afonso Eanes. Perdia-se a cidade, se no a confisso de Joo Loureno da Cunha! Ele prprio metido na traio, ningum me tira desta ideia, e desavindo afinal com o cigano-mor no tocante ao quinho porque se havia de vender. Certamente confirmou Ruy No crvel que tantas particularidades soubesse do conluio, se no estivesse nele, nem os outros lho teriam exposto, se no contassem com ele pelo seu lado. Havia de ser o preo a causa da desavena, como assisadamente presumis, e no empeonhamento lhe puseram o desfecho. E, por graa de Deus disse o tanoeiro no tanto a tempo que o empeonhamento se no pudesse vingar denunciando-os. Tempos vilssimos estes nossos! comentou lvaro Coutinho Milagre ser que a Nao venha a salvar-se, mudada em outra de melhor fortuna! Oxal! Oxal! Mas ns a ajudaremos a salvar! prometeu calorosamente o Magrio. Dando-lhe para remisso o maior amor das nossas almas sonhadoras e o maior esforo da nossa juventude aventurosa disse Ruy comovidamente. Sim, sim! apoiaram com frenesi todos eles. E isto podeis vs repetir ao Mestre, honrado Juiz do Povo. No preciso dizer-lho, senhor lvaro Coutinho. Tanto convosco, senhores, contava sua senhoria, que at para vs reserva o maior encargo no cometimento desta noite. Pois viva o Mestre de Avis! exclamou o Magrio a conter o seu vozeiro formidvel E por Deus, que no ter de arrepender-se. E todos entusiasticamente disseram baixo como numa prece: Que Deus o guarde e seja por ele! E ns para o ajudar. Quer sua senhoria continuou o tanoeiro que desde esta hora fiqueis precatados, sem dar alvoroo ao povo, ao qual s depois do feito se dir a verdade. E que, mal comece a escurecer, vos vades juntando com as vossas armas de combate, disfaradamente, e a pouco e pouco vos encaminheis para os lados da Porta de Santo Agostinho, da qual, ao toque de alarme, sereis a guarda e a melhor defensa mesta noite santa da Assuno da nossa Senhora. Pois senhor Afonso Eanes, por ns todos agradecei ao Mestre o favor insigne com que lhe aprouve honrar os jovens do esquadro dos Namorados disse o Magrio Boa estreia ter a nossa bandeira e benditos sejam os valentes que morrerem por ela. Benditos sejam! repetiram unnimes, numa ardente devoo de fanticos. O esquadro pequeno, dizei-lhe, mas no se vende, nem se rende. Se os Castelhanos entrarem pela porta que ele vai defender, pode sua senhoria afirmar, sem falsidade, que foi porque os Namorados morreram. Pode! Ide dizer-lho. O nosso pesar que seja por agora a hoste de um punhado de homens. Paladins do amor e do sonho, hoje apenas uns poucos acudiu Ruy arrebatadamente Mas um dia talvez com a nossa alma a Nao inteira! Saram, de bandeira erguida.
* * *
Anoitecera. Afonso Eanes, com um troo de besteiros e gente armada do povo guardava qualquer sinal de alarme dentro de um casaro abandonado, numa travessa muito vizinha da residncia de D. Pedro de Castro. Sabia-se j que l estavam com ele alguns dos conluiados, os de mais subida importncia. A pequena distncia do muro de Santo Andr se tinham reunido, numa cerca do convento prximo, oitenta lanas e duzentos besteiros e pees, prontos a correr muralha logo ao primeiro aviso. Nos outros muros e em todas as torres as guarnies estavam a postos. Passavam as quadrilhas de ronda frequentemente. No pao de Apar S. Martinho, o Mestre esperava de armadura vestida, entre o seu conselho poltico de fidalgos e de mecnicos da Casa dos Vinte e Quatro. Num grande ptio interior, os pajens com as lanas e os escudos dos seus amos, alguns cavalarios com uns pobres cavalos escanzelados e umas muares mo. Nove ao todo, pois que na cidade j no havia seno uns quinze que pudessem servir para levar algum a qualquer ponto distante das fortificaes. Do esquadro apeado dos Namorados fora destacado Ruy de Vasconcelos para ir sondar, disfaradamente, a disposio de nimo da gente de D. Pedro de Castro e observar se no acampamento inimigo havia algum movimento grande de tropas. Ruy percebeu que a gente do traidor estava hesitante e receosa e como que estranhando a demora do chefe. A noite pusera-se escura. A lua nasceria tarde e era para antes da lua nascer que a investida estava aprazada. Ainda assim, a tenussima claridade das estrelas deixaria perceber confusamente o movimento das grandes massas de gente. Correu o sino das 9 horas na S. Uma hora depois, a cidade parecia adormecida. Ouviam-se claramente os brados montonos das sentinelas nas muralhas e os uivos dos ces famintos vagueando pelos monturos onde nada achavam para roer. De sbito, Ruy notou um movimento maior no acampamento dos Castelhanos. Duas enormes manchas escuras se moviam lentamente. Algum de c, na torre sobranceira Porta de Santo Agostinho, acendera uma luz e agitara-a no ar, lentamente, por quatro vezes. o sinal disse consigo Ruy de Vasconcelos No vm dali menos de quatro ou cinco mil homens. Desceu da muralha rapidamente e correu para os seus companheiros. Depressa! J lhes fizeram sinal. Vm para escalada tantos como toda a melhor gente de armas que tem Lisboa. O Era a luz de uma candeia, segundo Ferno Lopes. Estava com os Namorados uma quadrilha de besteiros, homens geis em quem podiam confiar. lvaro Coutinho escolheu trs para irem de corrida levar aviso ao Mestre, ao comandante da gente de armas que estava na cerca do convento e ao Juiz do Povo. Partiram de carreira. O esquadro dos rapazes foi-se embora de corrida para a porta de Santo Agostinho. Na frente o Magrio, levantando alto a bandeira verde dos que se votaram morte pela sua terra e pelas suas damas. Tinham chegado em frente das portas. Eh! Gente vendida! clamou o Magrio no seu vozeiro formidvel Arreda, que vem aqui quem essa porta vai defender contra a traio do vosso chefe. Por Portugal contra Castela! Acudiu o chefe daquele posto, seguido de vinte homens armados, e ladeado por dois maltrapilhos de tochas acesas. Vinha enfiado. No podeis passar! disse-lhe em castelhano. A minha espada no se desonra matando-te, co vendido! vociferou o Magrio. E atirou-lhe tal pontap ao ventre, que o chefe do posto foi cair enrodilhado a uns poucos de passos, dando um grito de dor que parecia o urro de uma fera. Um virote para acabar com esse vilo galego! mandou a um dos besteiros que o acompanhavam Entregai-vos, ou morrereis antes que os Castelhanos cheguem! gritou num tom formidvel para os homens de armas daquela guarda Armas abaixo! Numa cobardia de surpresa baixaram os piques e desarmaram as bestas, atirando-as ao cho. Ouvia-se um rudo cavo como dos passos de milhares de homens do lado de fora da muralha. Senhor Ruy de Vasconcelos, ide vs s seteiras com estes besteiros. Derribai-os da escalada gritou o Magrio. Ruy correu para o muro frente de quinze besteiros. A escabujar nas lajes fronteiras porta, o chefe do posto expirou num arranque. Um dos besteiros tinha-lhe cravado um virote no peito. Estais preso, ral de vilanagem! bramiu o Magrio, transpondo o grande arco de abbada, a vinte passos da porta de enormes ferrolhos de bronze e largas chapas de ferro. Ns no queremos ser por Castela! alegou um velho da guarda. Afonso Eanes chegou, aodado. Est preso D. Pedro de Castro e nove dos parciais que encontrmos com ele. Sentiu-se tropel de muita gente. Eram homens de guerra que vinham da cerca do convento e iam subindo para as muralhas. Ficai vs aqui como chefe, Vasco Eanes disse-lhe o Magrio Eu subo torre para ter mo na ciganagem. Voltarei quando a Porta for atacada. Ides sozinho? No; vou com a nossa bandeira para a erguer l espera do sol. E foi. Eh! Gentes! Que fazeis aqui de braos cruzados? Esperamos nosso amo e chefe, D. Pedro de Castro. O chefe o Mestre. D. Pedro est preso por traidor vendido a Castela. V, por Portugal, disparai esses virotes sobre aquela multido de inimigos ou eu vos baldeio daqui, a um por um, sobre eles. Vamos! Pela honrada terra de Portugal, azmolas galegas que o cigano-mor tinha vendidas. Depressa! J! Acabrunhados de vergonha, retesaram as bestas e trinta virotes esfuziaram contra a massa escura dos Castelhanos, j numa algazarra espantosa. Assim, para serdes como os outros que se no vendem, por mais que a fome os aperte e a misria entre com eles. Disparados ao acaso, os virotes dos Castelhanos esvoaavam por entre as seteiras ou batiam contra os muros como um bando de aves estonteadas. Na torre caram quatro homens feridos, um deles varado do peito s costas. E o Magrio a descoberto, e com serena intrepidez, sobre o degrau de um ngulo da torre, com o estandarte dos Namorados erguido ao alto, a exceder pelo dobro aquela estatura de gigante. Ruy chegara ao lano do muro contguo Porta, quando j umas filhas de Castelhanos estavam encostando as escadas de assalto at meia altura das ameias e pediam para cima que lhe deitassem cordas com que mais facilmente as alteassem, firmando-as. O jovem cavaleiro mandou desarmar as trs sentinelas que havia naquele lano e com doze besteiros se debruou do muro, ele prprio armado tambm com uma besta grande de garrucha. Em dois ou trs minutos se estorciam em baixo, em gritos doloridos, os homens que seguravam uma das escadas, a que j estava mais alta. Colhidos de surpresa, tomados de medo, considerando-se trados por aqueles de quem esperavam auxlio, os Castelhanos das primeiras filas enovelaram-se estonteados, bramindo pragas e obscenidades contra os chamorros que tinham atraioado a venda. Duas escadas foram a terra, abandonadas. Mas algum, um chefe certamente da altiva nobreza das Espanhas lhes falava, incitando-os a voltar escalada. Logo uma chuva de virotes veio bater contra a muralha e enquanto uns fingiam reerguer a primeira escada, fazendo uma grande gritaria, para iludir os besteiros portugueses, outros, muito abaixo daquele lano do muro, sem alarde e sem fogachos, em profundo silncio, tentavam levantar outra escada. Santiago y Castilla! clamavam aqueles que pretendiam enganar os de cima. E mistura as mais pitorescas pragas e os mais sonorosos insultos que tinham Leo e Castela, o Arago e a Andaluzia. Tinham subido muralha mais besteiros e homens de armas e caiu sobre os Castelhanos uma verdadeira chuva de virotes, dardos e pedras. Estrugiram nos ares pragas enfurecidas em quase todos os dialetos dos antigos reinos de Espanha e at ameaas mirabolantes no francs da Gasconha, pois que na coluna dos assaltantes vinha um troo de Gasces, daquela hoste de dois mil Franceses de aventura que tinha acompanhado o exrcito de Castela. Bramiam ameaas, praguejavam, mas os gemidos e gritos dos feridos ouviam- se alto, apesar da algazarra dos farronqueiros. Esto a recuar! disse alto Ruy de Vasconcelos, apontando a densa massa escura que se ia afastando. Vinha nascendo a lua e j se distinguiam melhor as coisas; a paisagem destacava-se, branquejava o ferro brunido, tinha brilho o ao das lanas, o vulto dos cavaleiros recortava-se, parecia maior na melanclica penumbra; alvejavam as pedras novas das torres e das muralhas, moviam-se no cho, ao longo dos muros, as sombras esguias dos homens de armas. At se percebiam as dezenas de atacantes que tinham ficado estendidos ao fundo das muralhas, os que se arrastavam feridos para fugir do alcance dos virotes e das pedras, e os que a peonagem levava em braos, quase agonizantes. Sumidamente vibrou um grito de alarme e de desespero: A subirem por ali!... Os de Castela! Efetivamente uns poucos de homens de capacetes emplumados saltavam para dentro por entre as ameias, numa reentrncia do muro, a baixo do lano onde os assaltantes tinham feito as primeiras tentativas. Temos a cidade perdida! rouquejou um besteiro. A mim, homens de Portugal! gritou Ruy de Vasconcelos. E correu de lana em riste para os mais audazes daquela escalada bem sucedida. Seguiram de carreira atrs dele quinze besteiros e outros tantos homens de piques. Estavam subindo mais assaltantes, protegidos por cerca de trinta que j tinham saltado para dentro. Disparai sobre eles! mandou Ruy aos besteiros. Sibilaram quinze virotes e trs dos atacantes foram a terra feridos no rosto, porque traziam a viseira levantada. Outros virotes se partiram, como se fossem de vidro, contra os arneses dos Gasces. Seis besteiros que se debrucem daquelas ameias para deitarem a terra os que sobem. Correram uns poucos a debruar-se das ameias para disparar de revs contra os assaltantes; mas, entretanto, mais cinco tinham j saltado para dentro e com os outros avanavam para a gente de Vasconcelos. Um deles, soberba figura de fidalgo campeador, vinha na frente, incitando os companheiros. Vamos enfiar nas lanas estes pigmeus chamorros! gritou arrogante, no seu francs de gasco, e desceu a viseira. Homens d Portugal, v contra estes farfantes de Frana! replicou o Vasconcelos. Ouviam-se j, numa vibrao frentica, os sinos de todas as igrejas e de todas as torres das muralhas dando o sinal de rebate. Havemos de lev-los salgados para os nossos ces de Gasconha! berrou o bazofiador, avanando mais. Reboaram gritos do lado de fora da muralha. Gritos em francs gasco de dois que os besteiros tinham ferido, quando j estavam empoleirados nas ameias. Ruy tinha avanado intrepidamente para o caudilho gigante. Por esta gloriosa terra de Portugal, farfanto francs! E arremeteu para ele s lanadas. O Gasco defendia-se e atacava admiravelmente. Entretanto, os homens dos piques, com as nicas defensas do bacinete sem camal e de um frgil escudo, recuavam perante a bravura impetuosa dos Franceses, fortemente protegidos pelas armaduras. Apesar da sua luta desesperada com o chefe Gasco, Vasconcelos percebeu que os seus recuavam e que j uns tinham ido a terra golpeados. Tende-vos! gritou-lhes, atirando fora a haste da lana curta que se acabava de quebrar contra o peito de ferro do adversrio Tende-vos! repetiu, arrancando da espada Pela honra desta abenoada terra que nos querem tirar! Mas a pobre gente bisonha recuou mais diante da fria da arremetida e Ruy estava j isolado entre seis ou sete dos atacantes e ia perdendo terreno naquele combate desigualssimo. Foi retrocedendo para o lado das ameias, por forma que s os tivesse pela frente e de flanco. Rende-te! Rende-te! bradavam-lhe os Gasces. Nunca! volveu-lhes num grito de rancor convulsivo. Morrers a espetado como um sapo! E fica sabendo que Lisboa ser tomada pelos bares da Gasconha. Por traio, e nem assim rouquejou o Vasconcelos, defendendo-se com febril energia. Os besteiros no se tinham podido aguentar junto das ameias para deitarem a terra os que vinham subindo, e mais uma dezena de Franceses saltara para dentro do muro. Uma lana golpeara o brao esquerdo do jovem cavaleiro entre o braal e o punho quebrado da manopla. Ruy confrangeu-se numa impresso de dor violenta, mas logo, tomado de mais furioso arranque, vibrou uma srie de golpes aos trs adversrios que tinha mais prximos de si. Um deles foi a terra com um golpe fundo no pescoo, pois que a gorjeira mal fechada lho no podia defender. Por minha terra e pela minha dama! bradou, lembrando enternecidamente o moto da bandeira dos Namorados, que talvez nunca mais tornasse a ver. Nem a bandeira nem aquela rainha de beldades que a bordara e cuja imagem queridssima trazia dentro da alma como em santo relicrio. Ouviam-se para cima uns gritos de guerra que o encheram de orgulho. Portugal e S. Jorge! Morrerei, ao menos, mais perto dos meus! pensou, sem um momento deixar de combater. Mas a batalha era extenuadora e pela ferida dolorosssima do brao lhe golfava o sangue e se lhe iam apoucando as foras. Sentia-se o rudo de espadas batendo em armaduras, revoavam imprecaes de desespero e de dor, vinha de cima o rumor cavo de muitos passos. Pela nossa terra e pelas nossas damas! Era a voz do Magrio. O Vasconcelos sentiu um consolo imenso, maior febre de lutar, mais intensa nsia de viver. Rende-te! insistiu o colosso, apertando com ele Sou eu o chefe dos Gasces. De focinhos para o cho, trangalhadanas da Gasconha! trovejou o vozeiro do Magrio, j a dois passos deles. E o gigante foi derribado de borco sobre as lajes da muralha. A sua brilhante armadura de relevos e arabescos dourados produzira nas pedras um rudo sonoro e spero. Os Namorados traziam agora o troo dos Gasces diante de si. Vasco Eanes da Costa, o pulso de ferro, o arranca pinheiros como alguns lhe chamavam, vinha ao lado do Magrio e logo se debruou para o chefe Gasco. Vais de salto para onde vieste de escada disse-lhe, tomando-o pelos braos. E assim o foi arrastando at junto das ameias. Os rapazes levavam os Gasces contra o muro, mas num supremo esforo e com graves perdas de sangue. Aqueles Gasces no eram homens que se rendessem aos primeiros reveses. Ruy, a nossa bandeira! disse o Magrio enternecidamente Estais ferido! Dois homens para ampararem este cavaleiro gritou para um troo de peonagem que viera atrs deles. A trinta passos para baixo, a briga tomara propores medonhas. J muitos dos Gasces estavam feridos ou mortos, mas tambm sete dos Namorados e nove besteiros e homens de armas tinham ido a terra golpeados e agonizavam ao abandono. Num maior esforo, Vasco Eanes levantara nos braos o caudilho Gasco, quase examine em consequncia de violentas sufocaes.
Vais dentro da tua armadura amolgada, javardo gasco! D l notcias nossas aos teus amigos de Castela. E baldeou-o da muralha abaixo. Tinham chegado cirurgies e enfermeiros da ambulncia postada s Portas de Santa Catarina. Os homens da ambulncia fizeram o primeiro curativo a Ruy de Vasconcelos. Vencemos ns! Vencemos! bradavam os Namorados e os besteiros, seus auxiliares. E voltaram com trs prisioneiros, dizendo alto o moto da bandeira verde: Pela nossa terra e pelas nossas damas! Cumpriu-se a jura; est sagrado o moto! dizia o Vasconcelos enternecidamente para o Magrio enquanto o cirurgio acabava de lhe atar a ligadura. E para alguns foi jura de morte! observou-lhe lvaro Coutinho. O Mestre chegava frente da sua comitiva de fidalgos e de mecnicos. Ao lado dele Afonso Eanes. lvaro Coutinho disse o bastardo de D. Pedro I e de Teresa Loureno os Namorados ganharam o feito desta noite. Mestre, aqui tendes o primeiro de todos no cometimento volveu- lhe, indicando Ruy de Vasconcelos. Ferimento grave? perguntou o Mestre, acercando-se dele afetuosamente. Senhor, dez ou quinze dias de brao ao peito respondeu-lhe numa voz que fraquejava e mais nada. Mais talvez, e de cama, que j estais a arder em febre acudiu um dos cirurgies. Pois que Deus vos d razo, Ruy de Vasconcelos, visto que sois alto exemplo de cavaleiros leais acudiu o Mestre. Chegou o troo dos Namorados. lvaro Coutinho foi pr-se frente deles de bandeira erguida. Senhor, vencemos! clamou um deles para o Regedor do Reino. E defendeu-se Lisboa! acudiu outro. E honrastes a vossa bandeira nova, que doravante fica sendo um glorioso pendo nesta guerra santa em que andamos empenhados disse- lhes o Mestre calorosamente. Batizou-se de noite, Senhor, esta nossa bandeira alegou o Magrio e veio a lua pela sua madrinha. Com esta luz branca de sonho murmurou Ruy num quebramento de foras, olhos marejados de lgrimas fitos na bandeira. Senhor, este jovem cavaleiro disse o cirurgio para o Mestre no pode ficar aqui. Perder o alento, por mais que o nimo lhe teime em ficar. Tragam umas andas para o conduzir. Senhor, deixai que v a cavalo, se aqui prximo houver algum. Naquele em que eu vim podeis ir vs. Senhor, insigne favor o vosso! Mas vede bem se podeis. Senhor, posso. A perda de sangue foi avultada, mas sem armadura como estou e agora a cavalo... Sempre ser com sacrifcio vosso acudiu o cirurgio mormente se a febre apertar convosco. Mas irei eu tambm. O Mestre acercou-se mais do Vasconcelos e disse-lhe a meia voz afetuosamente: Assim que estiverdes curado, tratar-se- do vosso casamento com Madalena de Mendona... Se, como espero em Deus, a cidade repelir de si os de Castela. Mestre e Senhor! murmurou num afogueamento de jbilo. E o vosso padrinho serei eu. Senhor! Que tamanha honra!
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O esquadro dos Namorados quis acompanhar a casa o seu intrpido companheiro. L vos irei ver, Ruy de Vasconcelos disse-lhe o Mestre. Viva o senhor D. Joo, Mestre de Avis! aclamaram fervorosamente os jovens cavaleiros, desvanecidos por aquela distino concedida a um dos seus. O povo repetiu o brado como se fosse um prego triunfal, e pelas muralhas fora os homens de armas, lhe foram dando uma repercusso que parecia interminvel. Puseram-se a caminho os cavaleiros da bandeira verde. Na frente, montando o cavalo em que o Mestre viera do pao, o filho heroico de D. Dulce. Ia ao lado dele Afonso Eanes. Estava a cidade alagada de luar. Via-se como se fosse de dia. O povo abria passagem, comovidamente, quele punhado de sonhadores de grande alma e indomvel coragem. Vivam os Namorados! Os valentes! Abenoadas mes as vossas! clamou a nossa conhecida regateira, a tia Lourena. E mais a vossa bandeira de amores acrescentou enternecidamente uma linda dama das Linheiras. E a pavonear a bandeira, a toda a altura dos seus braos enormes, para que ela voasse na aragem daquela madrugada luarenta, o Magrio dizia jovialmente: Perdeu el-rei de Castela o seu mercado de ciganos e demos ns uma trepa nos farronqueiros da Gasconha!
CAPTULO X CU DE LUTO
A rija tmpera de Ruy de Vasconcelos desmentira com espanto de toda a gente o prognstico pessimista do cirurgio Teve uma ligeira febre durante o dia 15, mas logo sobre a madrugada de 16 se lhe despegou totalmente, e no houve pedidos que o retivessem na cama. O apetite era admirvel e a disposio de nimo excelente. O ferimento ia tomando um aspeto animador e prometia cura completa dentro de quinze ou vinte dias. da carnadura rija que ele tem e do sangue bonssimo que Deus lhe deu explicava o cirurgio, sofrivelmente embaraado com o malogro do seu prognstico. No fosse o brao ao peito e uma leve palidez, e ningum seria capaz de adivinhar o rude ferimento que lhe tinham feito. Logo no dia 16, o Mestre o foi visitar, felicitando D. Dulce por aquele destemido filho. Afonso Eanes, o Magrio, Vasco Eanes e os rapazes do estandarte verde, esses ento tinham l ido frequentes vezes. No dia 16 levantou-se logo de madrugada no alvoroto deste plano: combinar- se com o seu velho Gonalo e sair de noite, s escondidas da me, para ir pagar a Madalena a visita que ela e D. Maria lhe tinham feito na antevspera. Pelas 11 horas apareceu-lhe o glorioso tanoeiro. Melhor como pareceis, senhor Ruy? Ora, at parece que me d Deus mais fora no brao direito para que o outro me no faa falta respondeu-lhe a rir Se fosse canhoto que era o demnio; mas assim bem posso j voltar aos muros, se os Gasces e os Castelhanos tiverem vontade de tornar escalada ou aparecerem mais traidores para lhes dar as mos. Para os ajudar c dentro no sei; mas para eles j foram mais dois dos nossos! Dois dos nossos! Quem? Afonso Anriques, que esta madrugada fugiu para o arraial inimigo, enganando Joo Rodrigues de S com o qual fora a passeio e a quem levou o cavalo. Escumalha hedionda, vilssima ral da gente fidalga! disse Ruy numa cara de nojo. E no foi s esse. Do hospital desapareceu ontem noite o maior e talvez o nico inimigo vosso! Qual?! Anto Gonalves de Mendona. Ele! Mas ento no foi longo o tratamento! Ainda no estava curado. Ainda bem que o ferimento no era mortal como supunham. Tinha-me esquecido desse homem! Mas sabem se fugiu para o arraial castelhano? De certeza no, porm desconfia-se, pois que muito o ia visitar, h coisa de quinze dias para c, um criado de Afonso Anriques, e este mesmo l esteve ontem de tarde a falar em segredo com ele. Apenas suspeitas, afinal! No percebo bem como ele poderia fugir, estando ainda por curar e decerto muito quebrado de foras! Talvez com a ajuda do tal criado, e de noite, pelo lado do rio, as gals castelhanas esto muito prximas de terra e em qualquer batel o poderiam levar. Se no est dentro da cidade! lembrou apreensivo Tenho-o por homem sem nenhuns escrpulos, capaz de alguma torpe vingana! Lembrara-lhe qualquer possvel cilada para infamar Madalena. Vingana contra vs? Contra mim, cobardemente, afrontando a filha de D. Maria de Mondona! Por essa no vos preocupais. Dois homens destemidos, em quem muito confio, esto l para as defender, e esses no deixaro entrar pessoa que no seja desta casa ou da minha. H disfarces e a casa grande... De janelas baixas para o lado da cerca. At estou a estranhar que de l no viesse ainda nenhum recado! Ontem mandaram c duas vezes. Pois descansai, que por l irei daqui a pouco. Muito vos agradeo. Bateram porta. Est ali um criado da senhora D. Maria de Mendona, que vem saber das vossas melhoras, meu senhor e amo. Ainda bem disse jubilosamente para o tanoeiro. Deu criada o recado de agradecimento com a afirmao das suas grandes e progressivas melhoras. Ficou ainda por instantes a conversar com Afonso Eanes. Apareceu ento porta, muito alvoroado, o velho Gonalo Vasques. Senhor Ruy, o Mestre vem outra vez visitar-vos e agora entrou para a sala grande aonde vossa me e a minha senhora o foi receber! Eu vou. Vinde tambm, senhor Afonso Eanes. Sei bem quanto apraz ao Mestre ver-vos ao p de si.
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Conversavam. O Mestre referia-se com mgoa situao da cidade. Mas h de querer Deus que a todos os males se d remdio, e outros maiores oprimam os inimigos da nossa terra. Que j comearam para eles como se fosse um castigo do cu! Senhor, de nada sabia! disse Ruy, disfarando neste dizer a interrogao que se no atrevia a fazer-lhe. Nem admira. Eu mesmo s h coisa de uma hora o soube por um trnsfuga do arraial castelhano. Vo para l grandes esmorecimentos, pois que, apesar de todas as recomendaes e ameaas, j a prpria peonagem de el-rei de Castela sabe apavorada qual flagelo a est dizimando. Entrou mais com eles a peste negra. Est l desde Julho. Senhor! exclamou D. Dulce que desgraa tremenda, se para c lavrasse, agravando a tamanha misria que vai pela cidade! No h de querer Deus que tal suceda volveu-lhe Pelo arraial de el-rei de Castela que ela vai lavrando como um fogo de morte, que os traz horrorizados. Conforme os dizeres do trnsfuga, j no anda s com a peonagem. Ateou-se mais desde que entrou Agosto e parece que so muitos os grandes senhores que para Sintra e Alenquer tm levado mortos. Senhor, porque os levaro para esses stios, embora seja por Deus que daqui os afastem?! perguntou D. Dulce respeitosamente. O Castelhano que veio entregar-se em muito breves palavras mo explicou. Aos da peonagem os lanam ao rio ou enterram em fundos coves; mas gente nobre, aos grandes das duas Castelas, das Astrias, de Leo e da Galiza, a esses os levam para Sintra e Alenquer, e l ficam esperando nos seus atades que chegue a hora de os transportarem para os seus opulentos solares e castelos, onde os esto guardando jazidas de mrmore e de pedra lavrada. O Castelhano alguns me. Nomeou de que mandei tomar nota e me ficaram de memria. Disse-me que para. Aqueles stios tinham j levado os cadveres de D. Pedro Fernandez de Velasco, do almirante Tovar, dos manchais Pedro Ruiz Sarmiento e Ferno Alvarez de Toledo, de D. Pedro Nunez de Lara, do comendador-mor de Castela D. Pedro Ruiz Sandoval, do mestre de Santiago D. Pedro Fernandez Cabeza de Vaca e de Ruy Gonzalez de Mexia. Estes so dos maiores que a peste j matou. Senhor, Deus, que tudo podem empestar! lamentou D. Dulce. A uns os cozem e salgam; a outros os abrem, enchem de sal e pem ao sol dentro dos atades, para os levarem mirrados, quando houverem de voltar a Castela. Parece que vo a caminho muito para duzentos os que por todo o arraial morrem em cada dia. Jesus! J que a nossa aliada, a Inglaterra, nos tarda com auxlio, vem a peste por aliada nossa de mais perto e com maior presteza! Que de uma hora para outra poder ser tambm contra ns! observou D. Dulce. Como Deus quiser e mandar, mas ento se acabar o cerco a ferro e fogo. E reparando que o sol esmorecia nos vitrais das janelas e punha no pavimento uns lvidos reflexos, como se estivesse a apagar-se, o Mestre com um pouco de gracejo disse para Afonso Eanes: Vede l, senhor Juiz do Povo, se a peste castelhana tambm j chegou a esse afogueado sol com que o dia comeou. O tanoeiro aproximou-se de uma das janelas. Parece que vamos ter grande volta de tempo! Mas estranho! No vejo nuvens no cu e o sol est a sumir-se! Assim disse o Mestre, j ao p do tanoeiro Escurece! Me de Jesus, a fazer-se noite! E os sinos a darem as badaladas do meio-dia! Ruy lembrou o que uma vez ouvira acerca dos eclipses do sol ao velho astrlogo, que havia anos predissera o grande futuro de Nuno lvares, e mais era ele ento uma criana. Jovem bem do seu tempo, o Vasconcelos resumiu o fenmeno como a astrologia o entendera e aproveitara para as suas artimanhas de adivinhao. E na Idade Mdia era aquela a suprema cincia e a maravilhosa arte que sabia ler no cu como em livro aberto de divinos mistrios, os astros figurando caracteres de uma linguagem, que s os magos e astrlogos sabiam entender. As estrelas diziam a sorte das criaturas e os destinos das naes. Ou se tratasse de um rei, cercado de esplendores, ou de um mendigo coberto de farrapos; de um imprio na plenitude do poder e da glria ou de uma aldeia mesquinha, perdida nas bravezas da serra; os astros diziam tudo, o futuro fosse de quem fosse; mas s os astrlogos, malucos de ingnua crena ou farsantes de gananciosa ambio, s eles sabiam entender e explicar os avisos que apareciam no cu. Crendice de superstio ou embuste de ganhes velhacos, era remotssima e de grandes crditos a tradio daquela cincia adivinhadora. Nasceu do olhar sonhador dos pastores caldeus e nas mos dos mgicos egpcios se foi mudando, sem eles prprios darem por isso, numa cincia de investigao, de arrojada investigao dos fenmenos celestes. Desta evoluo proveio a astronomia, como de um ninho rstico de penhascos pode erguer-se e voar uma guia novia para as maiores alturas e para a mais intensa luz. A Idade Mdia reacendeu o culto da astrologia com todo aquele fervor religioso e aquela impetuosa energia, ardente e semi-brbara, que punha em tudo, no amor e no dio, na f e nas torpezas, nas abnegaes e nas ignomnias, na sua galanteria heroica ou na sua desalmada ferocidade. Reacendeu-o, mas logo o subtraiu a influio lendria dos deuses pagos, para lhe dar vassalagem na corte do cu catlico apostlico-romano. E para os tenebrosos destinos nenhum cartaz-aviso de mais trgica significao de que um eclipse de sol ou um cometa de cauda. Ora aqui est porque, apesar de todas as suas explicaes de homem corajoso, Ruy no conseguiu serenar o nimo espavorido da me. Ficou-se numa lividez assustadora, de mos postas, a soluar rezas, cheios de lgrimas aqueles seus olhos magoados. Mas o terror j por toda a casa se desvairava em clamores de piedade e em choros altos de aflio. Corriam em todas as direes numa alucinao de loucura as criadas e os servos antigos como crianas estonteadas de medo. O velho Gonalo Vasques assomou porta a tremer. Senhora! Faz-se noite ao meio-dia! disse, gaguejando. Mas j o alvoroto nas ruas era enorme. Sentia-se o tropel das multides a redemoinharem pelas ruas na vertigem de fugir, nem elas sabiam de qu e para onde! Ouviam-se, numa vibrao alanceadora, os gritos pungitivos das mulheres e das crianas. At o cu nos desampara! percebia-se que iam dizendo na rua amarguradamente. Luzes! Tragam luzes! mandava o jovem Vasconcelos porta da sala. Intil mandado. As criadas vieram de roldo pela porta dentro em clamores, em splicas de misericrdia, e foram cair de joelhos ao p de D. Dulce. At se ouviam os sinos a dobrar! Por momentos, cabisbaixo, o Mestre sacudiu de si, numa cara de nimo, toda aquela sugesto de pavores supersticiosos, e disse alto, com serena firmeza, para Afonso Eanes: preciso ir realentar o povo e ter mo nos nossos homens de armas dos muros e das torres. Sinal de castigo celeste, se o , no ser para ns, que estamos pela boa causa, seno para os nossos inimigos, que vieram para nos matar Portugal. Ficai confiante na misericrdia de Deus, senhora minha disse para D. Dulce Vinde vs, Afonso Eanes. Mestre, deixai que vos acompanhe solicitou Ruy. No podeis, no deveis respondeu-lhe, j no limiar da porta. Para dar conselho ao povo nem as pernas me fraquejam, nem a voz me falta alegou, mas o Mestre j tinha sado. E da tua me e dos nossos te esqueceste, filho! Vs no estais no caso dessa gente crdula que anda a apavorada e pode desamparar os muros e a defensa da cidade. Assim enfraquecido! Mas faz o que quiseres. Adivinho as preocupaes que te levam daqui. Pela Nao, que a bem dizer est dentro de Lisboa... Depois por Madalena. Senhora, perdoai e deixai-me ir. Deus v contigo disse sumidamente.
* * *
No chegou a durar oito minutos o ofuscamento da luz solar, mas a penumbra, que para os olhos dos espavoridos parecia ter negrumes de noite caliginosa, essa durou um pouco mais, por causa do fenmeno a que os modernos astrnomos do o nome de sombras ondulantes. O Mestre comeou a sua tarefa de apaziguador de nimos, mal que transps a porta do palcio de D. Dulce. Gentes, escutai! ia gritando turbamulta Castigo de Deus ser esta escuridade, no para ns, mas para os cercadores de Castela, catlicos cismticos do antipapa de Avinho (*).
[(*) Havia ento dois papas; um em Roma e outro na cidade de Avinho Urbano IV e Clemente VII. Este era o papa dissidente, o pontfice cismtico. E Castela tinha-o reconhecido por legtimo chefe da Igreja Catlica. Os Portugueses ficaram fiis ao outro de Roma.]
E assim, como astuto poltico, ia aproveitando a oportunidade de robustecer a coragem e o sentimento patritico do povo, deixando-lhe entrever que a proteo divina favorecia a causa de Portugal. Senhor, o sol foge-nos como os tredos tm fugido! volveu-lhe chorosa uma esfarrapada com o filhito ao colo, louco de medo. Mulher, tambm lhes fugiu a eles, tambm se enegreceu para eles com dobrado castigo, pois que, vai em dois meses, l tm a peste negra a matar- lhes a melhor gente. E ns aqui a fome negra! replicou um velho. Gentes! exclamou a nossa conhecida tia Lourena, intervindo com nimo varonil acreditai nas palavras do Mestre, que mais sabe dessas coisas a dormir que ns outros acordados, e deixai-vos de alanzoar parvoeiras. Pois nele cremos e nele confiamos, depois de Deus e da sua Me Maria Santssima. Dizeis bem e ficai assossegados acudiu o Juiz do Povo, aproveitando o realento dos espritos para abrir caminho por entre o povo. Foram indo para diante. As mesmas lstimas, terrores iguais e o Mestre na necessidade de repetir idnticas palavras de acalmao e de estmulo patritico. As igrejas estavam com os altares iluminados cheios de gente que soluava preces. No Rossio um mar revolto de povo em clamores de angstia. Foi difcil tarefa seren-lo. Ali o Mestre teve outro argumento para exaltar os nimos. Deu-lho o prprio sol, j com um largo disco de luz dourada a brilhar por cima da cidade. Era um sinal de que o sinistro aviso de clera celeste no era para Lisboa. E naquela altura o auxiliou valiosamente o velho astrlogo Pedro Afonso, que por ali andara a dizer palavras de boa profecia, que ningum lhe queria ouvir. Valeu-lhe o prestgio do Mestre naquela conjuntura, e l o deixou recomendando ao povo que o escutasse. D. Joo seguiu rapidamente para as Portas de Santa Catarina. Lembrara-lhe que dos Castelhanos alguns de mais ousadia e menos crendice poderiam aproveitar a consternao da cidade para uma investida de surpresa. As suas arremetidas eram mais frequentes por aquele lado da linha de fortificaes. Entretanto, o astrlogo, de guedelhas sobre os ombros, contra o uso em Portugal, e garnacha preta cingida ao seu corpo alquebrado de velho, explicava com largos gestos qual sentido devia dar-se quele anncio do cu. Este sol que est no signo de Lo e foi criz (*) ao pino do meio-dia, perdendo a sua clara luz vem a significar grande mortandade no povo de Castela.
[(*) Vocbulo antigo indicando ofuscamento que amedronta; eclipse.]
Desta vez ouviu bem o povo. O sol reaparecia numa aleluia de ouro. Pois que Deus mande o castigo para esses que a esto a cercar-nos com o fito de nos roubar a terra que nossa gritou a tia Lourena Portugal dos Portugueses, e nunca do rei castelo! Por Deus, nunca! bradaram milhares de vozes na vibrao de uma s alma.
* * *
Eram infundados os receios do Mestre. No acampamento dos sitiantes o pavor ainda fora maior, para que pudessem pensar num assalto, que o terror supersticioso do povo tornaria talvez fcil e de bom xito. Para alguns de Castela o acabrunhamento de nimo chegara a umas alucinaes de medo louco. Estava j o sol em pleno resplendor e ainda a gritaria e o rebolio dos espavoridos eram estonteadores, enormes. Vimos este de 1905 numa pequena povoao da beira-mar, para alm do grande pinhal de Leiria. Foi muito sensvel o escurecimento e, embora no fosse total, produziu uma estranha impresso de frio e de tristeza. Houve uns momentos em que todos os aspetos da paisagem tomaram um tom lvido que fazia esmorecer. As aves agitavam-se num mal-estar evidente. A Lisboa do sculo XVI tinha visto em 1379 um eclipse total do sol, e portanto, de maior pavor que o de 1384, mas o seu estado de alma nos angustiados dias de Agosto deste ano havia de engrandecer-lhe pelo dobro as impresses de terror supersticioso. Para os olhos daqueles amargurados teria negrumes de agouro trgico. Devemos gentileza do Sr. Frederico Oom, ilustre subdiretor do Observatrio Astronmico da Tapada da Ajuda, os esclarecimentos acerca do dia, hora e fases do eclipse de 1384. To supersticiosos como os Portugueses, e afinal como todos os outros povos da Europa medieval, ainda os mais cultos, os Castelhanos tinham motivos especiais para maior terror e mais facilmente acreditar num aviso de clera celeste. Com os melhores guerreiros de quase toda a Espanha e um corpo auxiliar de aventureiros de Frana, dos mais ilustres e dos mais bravos da Gasconha e do Bearne, com o triplo da gente de armas que tinha Lisboa e a mais soberba esquadra que ainda entrara no Tejo depois das Cruzadas, e s em reveses se tinha assinalado para eles aquele mal agourado cerco. E para mais aflitiva depresso moral e mais aterradora suspeita de que at o cu lhes era adverso, aquele flagelo hediondo e lgubre da peste, que j lhes tinha morto os mais brilhantes e os mais famosos dos seus caudilhos e tanta gente como se houvessem perdido uma porfiada batalha. Agora sobre esse acampamento por onde a peste negra vagueava, aquele cu de sbito enegrecera como se as mos omnipotentes, as mos de Deus, o houvessem velado de crepes! Estava o Mestre em frente do postigo interior das Portas de Santa Catarina, quando lhe apareceu Ruy de Vasconcelos no seu andar vagaroso de convalescente. Sois imprudente! disse-lhe. Senhor, o dever era sair. No me faltam as foras; embora um pouco mais quebradas. Para dar alento a gente espavorida a voz bastava, e ela poderia combater, se tal fosse preciso. De cercos antigos tenho ouvido que at os enfermos fugiam dos hospitais para se arrastarem aos muros de defesa, quando era mais bravio o assalto dos sitiadores. Senhor, nada pode valer o que fiz. Pois bem; dais honroso exemplo. Quando vos aprouver, voltareis a casa. Mestre! veio dizer o anadel-mor dos besteiros. um arauto com o pendo real de Castela, seguido de um cavaleiro com bandeira branca, pede para vos entregar uma mensagem de el-rei. Ide receb-lo com escolta e aqui mo trazei de olhos vendados. Senhor, sem nenhuma delonga volveu-lhe o anadel, retirando-se. No consigo atinar com o que possa querer de mim el-rei de Castela disse para Afonso Eanes. Talvez proposta de trgua por causa da peste lembrou o Juiz do Povo. No lha dou acudiu secamente Que volte el-rei para Castela, se tem medo da peste. Tambm ns temos c dentro a fome e a sede, e ainda no fomos pedir trguas. Veio o cirurgio do hospital de sangue, ali estabelecido a duzentos passos das portas, num casaro que fora albergaria de forasteiros e ficava contguo a uma ermida em runas. Apresentou-se ao Mestre e deu-lhe conta dos doentes que tinha. Depois lhe pediu uns momentos de confidncia e com ele se afastou para junto das runas da ermida. Senhor, ontem se deu um caso que tenho conservado em segredo. s portas veio apresentar-se fugido um Castelhano que pedia guarida, entregando as suas armas. Deram-lhe acolhimento, e mau foi que lho dessem! Porqu? Porque vinha atacado de peste, no com um daqueles achaques lentos, que levam uma ou duas semanas a decidir, mas dos que matam num dia! E depois? Dizei mandou o Mestre numa grande inquietao de nimo. Mal que o receberam, se comeou a sentir nauseado, a tremer de frio, a cambalear, e assim mo foram levar ao hospital. Logo me sobressaltei com aquele doente, que j vinha com os olhos toldados de sangue e o rosto a desfigurar-se-lhe e a fazer-se negro. Levei-o comigo para uma barraca de madeira que tinha ali ao lado do hospital com barricas de alcatro, e ali mandei que lhe fizessem a cama. Observei-o sozinho, atentamente. Tinha tumores nos sovacos, ardia em febre, estavam a inchar-se-lhe os beios e a lngua. Estava com a peste?! Senhor, estava! Horas depois, entrava com ele um delrio louco, um desespero como se o estivessem queimando as chamas do inferno! Dizei o resto. Direi o resto em vida! A ningum contei as aflies que me estavam mortificando! Se a peste viesse dar as mos fome, Lisboa teria de entregar- se, e ficaria perdida a causa de Portugal! No quis ali ningum comigo. Disse ao enfermeiro que se tratava de um homem envenenado com uma peonha mortal, cujos efeitos queria observar. No era preciso que me acompanhasse, faltando aos outros doentes. E depois? Lancei fogo s barricas de alcatro. O Castelhano agonizava, apodrecido. Eram altas horas da madrugada. Estavam adormecidos no hospital; s as sentinelas velavam. Iam para dar alarme: evitei-o, alegando que o fogo pegara por descuido meu e no valia a pena alvorotar ningum, pois era til que a barraca ardesse, visto que a peonha que tinham dado ao Castelhano de todo o apodrecera e seria funesto lev-lo dali. De nada sabia! observou o Mestre com spera estranheza. Senhor, foi propsito meu no dar importncia ao caso, para que se no levantassem desconfianas de alvoroto. Na cidade j se sabe que a peste est nos arraiais dos Castelhanos e no faltaria quem suspeitasse da minha bem intencionada falsidade... Sim... Fizestes bem. E parece-vos que haver perigo de c entrar por causa dessa imprudncia? Senhor, talvez no. O que importa agora evitar que se d guarida a qualquer outro. Mandei receber um parlamentrio de el-rei de Castela e aqui o espero. Logo se perceber que vem j tocado do horroroso flagelo. Irei eu v-lo primeiro, se mo consentirdes. No sero precisas tantas cautelas, doutor Domingos Afonso. Senhor, at por traio vos podem meter a peste c dentro, mandando em disfarces de parlamentrio quem j a traga consigo, bem que ainda muito incubada. Isso me parece demasiada desconfiana, senhor fsico da Universidade de Salamanca! volveu-lhe o Mestre, sorrindo. Domingos Afonso fora estudar medicina e cirurgia na Universidade de Salamanca no ano anterior quele em que Joo das Regras fora cursar direito, para a Universidade de Bolonha. Salamanca tinha ento a mais famosa das universidades de Espanha e muitos jovens portugueses ali se tinham doutorado. Senhor veio dizer o anadel-mor ali est a dentro das portas, entre a minha escolta, a p e vendado, o mensageiro de el-rei de Castela. Trazei-mo. Ali no adrozito daquela ermida o ouvirei. No quero entrar em negociaes de mistrio com D. Joo de Castela. O anadel retirou-se. Ruy de Vasconcelos chamou alto o Mestre e vs, Afonso Eanes, honrado Juiz do Povo, acercai-vos para saberdes tambm da mensagem de el- rei de Castela. Os dois vieram e foram com o Mestre para o adrozito da ermida em runas. Na preocupao dos seus receios de profissional, o doutor Domingos Afonso escapara-se socapa e l fora ver o parlamentrio, a quem observou e fez diversas perguntas no puro castelhano que aprendera em Salamanca. Por este no vir perigo concluiu de si para si, aps aquele brevssimo exame S se a traz muito embuchada consigo. Trouxeram o mensageiro presena de D. Joo. Antes de lhe entregar a carta, o escudeiro disse alto os ttulos de quem o enviava: Del sefior D. Joan el primero, Rey de Castitta, de Leon, de Toledo, de Gallizia, de Sevilla, de Cordoba, de Murcia, de Jaen, de Algeciras, Senor de Soria, de Viscaya y de Molina, Rey herdero de Portugal y del Algarbe. D. Joo acudiu logo de m sombra: De todos esses reinos e grandes terras ser rei D. Joo I de Castela, menos de Portugal e Algarve, porque no o h de querer Deus e no o queremos ns. Disto vos no esqueais, escudeiro. A carta de el-rei. O mensageiro entregou-lha, curvando-se. O Mestre quebrou o selo de cera e desatou as fitas que envolviam o rolo de pergaminho da mensagem real. Leu. Atrs dele Estvo Afonso Eanes e Ruy de Vasconcelos. Em frente do Mestre, a dez passos, ao lado do anadel-mor de besteiros, o parlamentrio de Castela, de elmo emplumado e, por cima da sua armadura resplandecente de Toledo, um curto loudel de damasco vermelho com os brases reais de Leo e Castela, bordados a ouro e prata. O Mestre acabava de ler. Dizei a el-rei de Castela que nem Lisboa se entrega, nem Portugal aceita a regncia de qualquer estrangeiro em nome da senhora D. Beatriz, rainha de Castela. Eu por mim serei o Regedor e o Defensor do Reino, enquanto o povo, o clero e os fidalgos leais de Portugal quiserem que o seja. E mais lhe dizei que tal resposta lhe no mando por escrito para vos no dar demora aqui, visto que vindes de um arraial infestado de peste. Afirmai-lhe que foi paga de exceo receber-vos, sabendo, como sei, que o flagelo negro est assolando o seu acampamento real e cobrindo de luto as mais ilustres famlias do seu reino. Tendes a vossa misso cumprida. Mais no tenho a dizer-vos. Anadel-mor, conduzi para fora dos muros o mensageiro de el-rei de Castela.
* * *
O Mestre seguira para baixo com o pequeno grupo de fidalgos que o tinham acompanhado e despedira-se de Ruy de Vasconcelos, recomendando-lhe que se recolhesse a casa. Prometeu-lho, mas em conscincia lhe fez a promessa com a restrio de ir primeiro a casa de Madalena. Afonso Eanes ficara com ele para o acompanhar ao palcio dos Mendonas. Tinham dado uns passos apenas, quando avistaram o velho Gonalves Vasques, acompanhado por um homem corpulento do povo. O meu aio naquela azfama para aqui! exclamou Ruy num sobressalto resultante de vagos pressentimentos. E com ele um dos homens que eu tinha de guarda ao... No concluiu. O plebeu de atltica estatura adiantara-se para ele nuns grandes passos, que o septuagenrio no podia seguir. Mestre Afonso Eanes, as senhoras desapareceram! disse numa voz oprimida, a poucos passos dele. Desapareceram? repetiu Ruy, lugubremente plido, num grito enrouquecido, tocado de angstia, lento como se cada slaba daquela palavra trouxesse o peso de um supremo infortnio e o pedao de uma coisa imensa na derrocada do seu maior sonho. Isso h de ser desvario vosso! acudiu o tanoeiro numa hesitao perturbadora de incredulidade e de d. Mas dizei tudo, tudo a claro! rouquejou o Vasconcelos, tomando febrilmente o brao do plebeu, que era o mais possante dos mecnicos de Lisboa. Uma grande infelicidade, meu amo e senhor! disse, ofegante, num compungimento de alma, o pobre do Gonalo Vasques. Mas como soubestes que desapareceram? perguntou Afonso Eanes. Foram os criados que deram pela falta das senhoras, mal que o sol tornou a descobrir. Mas teriam ido espavoridas para algum aposento oculto do palcio lembrou sacudidamente o Vasconcelos. Corremos tudo e ningum as viu! Sairiam? Ningum saiu de casa. Deixaram l entrar algum suspeito? perguntou Afonso Eanes. Ningum l entrou! Aqui tendes a infmia que eu previa! disse Ruy em repeles de clera, voltando-se para o Juiz do Povo Vingou-se o vilo ignbil de Anto de Mendona. Entrou l de noite, ocultou-se por l... Levou-as durante os momentos de pavor do eclipse... E essa gente bronca no viu nem percebeu nada! Tolhidos de terror como os outros! Vamos l, senhor Afonso Eanes. Quero compreender como isso foi. A vida inteira para o encontrar, e mat-lo- ei, seja onde for, como algum que tudo perdeu mata o ladro que tudo lhe roubou. Ainda que fosse nos degraus de um altar! Estava desfigurado, fazia gestos violentos de enlouquecido desespero. Acalmai-vos, senhor Ruy de Vasconcelos. aconselhar impossveis, mestre Afonso Eanes. Vamos, ou vou eu sozinho, j que no estando l Madalena, o meu voto por si prprio se quebrou. Eu vou tambm volveu Eanes, pondo-se ao lado dele. Levo o inferno dentro em mim! regougava, dando uns largos passos, que o tanoeiro dificilmente podia acompanhar Vai a minha vida mudar-se noutra, horrorosamente diferente! Perdoai, mas eu no creio nisso que vs j tomais como desventura certa e segura. Boa piedade vossa por mim. No posso crer. J em tudo creio. Nos piores fingimentos, nas mais hediondas torpezas! Trazia na alma um sonho de mais dourada luz que a desse ardente sol que h pouco se encobriu ia dizendo baixo, doloridamente, para aquele plebeu que era dos seus maiores amigos agora leva mais sombras do que teve o cu por instantes! Sombras talvez para sempre, escurido para no acabar nunca! Tinham chegado em frente do torvo palcio medievo.
CAPTULO XI DOLOROSA SURPRESA
Estavam os criados numa consternao, que mais provinha do pavor supersticioso das suas almas crdulas do que de piedade por aquelas senhoras que se tinham sumido como por feitiaria, naqueles momentos de terror em que o sol se velara ao pino do meio-dia.
A lamuriar, as criadas afianaram a Ruy de Vasconcelos que j umas poucas de vezes tinham corrido as casas todas e nenhum indcio tinham encontrado do paradeiro das senhoras. Em arrepios de pavor, o velho, que para ali tinha ido de casa de D. Dulce, confirmava as declaraes das criadas. Num estonteamento de amargurado e nuns estremees que lhe vinham do corao, torturado de dvidas e de suspeitas, Ruy fazia perguntas sobre perguntas. Ontem ou esta manh notaram aqui alguma pessoa estranha ou suspeitaram que houvesse entrado c algum desconhecido? Unanimemente responderam que ningum tinha entrado e nada suspeito tinham visto. De manh tinham falado com as senhoras; pareceram-lhes alegres; a menina levantara-se a cantar um modilho mouro que a me lhe ensinara, pormenorizou a criada das cmaras de dormir. Da que vem o mal todo! disse, confrangido o criado antigo. Da, de qu? interrogou secamente o jovem cavaleiro. Da senhora D. Maria ter sangue mouro e de haver sido esta casa habitao da mourama, que raa de encantamentos e feitiarias! Tonteiras de velho! retorquiu-lhe asperamente Quando o sol se comeou a encobrir, onde estavam as senhoras? perguntou s criadas. Estavam na casa da costura respondeu a mais idosa e eu com elas. Eu digo tudo como foi. A gente comeou de estranhar o claro do sol, a modo a esmorecer. A luz que entrava c dentro vinha to triste como se fosse de um tocheiro grande nalgum enterro que l houvesse no cu! E no ptio a criao toda num rebolio e a recolher-se assim como se fosse a anoitecer! Os ces puseram-se a uivar l fora e o sol a morrer, a morrer! Fui janela com a Menina. At j fazia frio! O sol era j assim como quem diz uma brasa que se ia apagando e fazendo negra, negra! Deus de misericrdia! Do casaro velho veio uma revoada de corujas e mochos bater contra a janela. Julgavam que era j noite velha! E os sinos a darem as badaladas do meio-dia! Pusemo-nos a rezar numa agonia. Ouvimos gritos na rua, gritos em toda a casa, os ces uivavam mais, como se eles tambm estivessem a chorar. Foi um pavor! Fugimos doida, nem ns sabamos para onde! A Menina nuns soluos que cortavam o corao, e a chamar por vs, amo e senhor meu, como se naquela hora lhe pudsseis acudir! Depois? Vamos! Senti uns passos vagarosos, assim como de quem no tinha medo, e umas vozes que vinham daquela grande sala onde esto armaduras! A sala de armas. E as senhoras? Aquela sala faz pavor, fugi ento pelo corredor fora, a apalpar as paredes, a gritar, numa loucura de medo, e foi ento que de todo me perdi das senhoras! (*).
[(*) Nenhuma estranheza nos devem causar aqueles pavores de gente supersticiosa dos fins do sculo XIV. Quatrocentos anos depois ainda era preciso encarregar os procos de precaverem o nimo dos seus paroquianos para que no os tolhesse de pavor o espetculo assombroso de um prximo eclipse de sol.]
Mas Antnio Mendes disse, apontando o criado antigo contou que ouviu aqui um grito abafado, que lhe pareceu ser da Menina, e logo uma restolhada de passos na dita sala. verdade isto? perguntou o Vasconcelos ao velho criado. , meu senhor! E to poltro, velho tmido como uma criana, que nem vos atrevestes a ir ver o que era! Fui l, meu senhor, assim que o sol descobriu e no vi seno um tamborete derribado e um saio de malha de ferro cado no cho. Dizem que aparecem ali mouros encantados! acrescentou, acabrunhado, numa expresso de terror supersticioso. Vou l eu disse Ruy para Afonso Eanes Quero ver se compreendo o que este velho tonto no soube compreender! Deitou pelo corredor fora, como enlouquecido. A porta oculta de que Vasco Eanes suspeitava! ia pensando Mas por ali quem?! E para qu?! Abriu a porta da sala numa cara violenta. Correu para o pano marroquino que ocultava a outra porta pequena de chaparia de ferro e ferrolho de bronze, como se fosse de um castelo. Deu um puxo ao velho reposteiro, que se lhe estiraou na mo. Olhai que se vos pode agravar o ferimento do outro brao lembrou- lhe Afonso Eanes, que viera atrs dele. Foi por aqui! rouquejou Mas o ferrolho estava corrido deste lado e algum houve ento c de dentro que abriu a porta. Quem? perguntou sumidamente ao seu corao alanceado Elas prprias, talvez... A me? interrogou ainda numa dor de alma indefinvel, com esta suspeita a enroscar- se-lhe no corao e a matar-lho como se fosse uma serpente enorme a instilar- lhe o veneno dos supremos desesperos Mestre Afonso Eanes, hemos de abrir esta porta. Deixai, que vou eu experimentar se a posso abrir. Experimentou. Estava fechada do outro lado. S arrancando-lhe a chaparia para depois a escavacar a machado ou consumi-la a fogo. Seja como for, preciso abri-la volveu-lhe lugubremente E dai conhecimento ao Mestre deste caso, que pode ser de perigo para a cidade. Vou mandar que me tragam aqui dois ferreiros. No, no! Isso daria grande alvoroto na cidade. Tenho a esses homens que estavam de guarda a esta casa. Um deles serralheiro. Esses ho de bastar. Sim, esses. E com certo recato para no dar alarme, que mais venha atribular o nimo do povo. Se mo permitis, darei ordem para daqui no sair ningum. Mandai o que entenderdes. Eu fico de guarda a esta porta maldita. Vs no podeis. Tudo posso, tudo agora devo poder! A culpa toda minha. A minha penitncia h de ser de morte. Corre-se este ferrolho de bronze e ningum aqui poder entrar enquanto no viermos derrubar a porta. Correu o ferrolho. Isto no dar mais largura que a de dois homens a par. Daqui quatro ou cinco homens resolutos fazem frente a trezentos, que se tivessem encafuado por a dentro. Basto eu, e que me tomem o lugar quando a vida me faltar. Estou a perceber que suspeitais daqui alguma traio! Suspeito. Mas de quem? Do miservel Anto Gonalves, combinado com o pai de Madalena. J temos visto como do arraial inimigo facilmente se tm combinado com alguns traidores de c. Entrando por esta porta para se apossarem da cidade?! Para espalharem o pavor entre o povo, auxiliando algum novo assalto de surpresa, pela calada da noite. E para que tinham de levar ento essas duas pobres senhoras? Essa ter sido a vingana infame de Anto Gonalves contra mim! rouquejou, torvo de clera Para que Madalena seja dele, compreendeis, mestre Afonso Eanes? disse numa convulso de dio, olhos marejados, fitos no mecnico Para que seja dele a minha malograda noiva, entendeis? E dando a vitria ao Castelhano, ele o Portugus de hedionda alma, dando-lha por uma traio que os meus amores tornaram fcil, viria para a cidade vencida alardear a sua ventura de amante e roer de rastos, como um sabujo, o osso de el-rei de Castela! Mas hei de eu ter morrido primeiro, aqui, atravessado nesta porta! Mandai chamar os vossos homens, mandai aviso ao Mestre. A esse s eu mesmo lhe hei de ir dar conta disto, e em segredo h de ser. Quanto a vs, aqui no sois necessrio. L-se bem no vosso rosto o muito que sofreis. H de estar em grande preocupao a vossa me e senhora. O dever ficar. Por favor, mandai recado a minha me, dizendo-lhe que me no espere. Aqui vir mortificada! Embora, aqui hei de ficar. Por ela e pelos meus pobres sonhos mortos, vos juro! Pois seja como quereis. Voltarei depressa. O tanoeiro a sair e as lgrimas a saltarem-lhe dos olhos. Homem, podes agora chorar como as crianas e como as mulheres! disse de si para si, sumidamente No! No! Seria grotesco chorar nesta hora! E logo num grito rouquejante: dio! O mais entranhado e profundo dio a esse infame roubador! Duas vezes j atravessado no meu caminho! Boa fortuna h de ser a dele para que eu o no encontre!
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Um quarto de hora depois revoava pela sala de armas o rudo, ora cavo, ora vibrante, de umas fortes pancadas que faziam tremer as velhas panplias, os loriges (saios grandes de malha de ferro), os capelos e as gorjeiras dos primeiros tempos da monarquia.
Um serralheiro despregava lentamente a chaparia da porta; dois homens com alavancas procuravam deslocar os gonzos; um outro, encostado a um grande machado de mateiro esperava ocasio de golpear a madeira a descoberto. Atrs deles, a poucos passos, Ruy de Vasconcelos, de olhos cravados na porta, num torvo emudecimento, de instante a instante em estremees como de epiltico. Ao seu lado, cabisbaixo, silencioso, o Juiz do Povo. Ningum mais naquela casa soturna cuja grande porta de entrada o tanoeiro aferrolhara por dentro. Como se fosse a porta do inferno que eu tenho comigo! pensava Ruy, de momento para momento mais desfigurado. ? Uma doida aventura! murmurou o tanoeiro tristemente. Me de misericrdia, que mo enlouqueceram! soluou D. Dulce, caindo sobre um tamborete. Tom Joo disse Eanes para o serralheiro se quereis, vinde comigo. Para aonde quiserdes, mestre Afonso Eanes. Ide ento buscar outra luz. Senhora disse, aproximando-se de D. Dulce ficai descansada, que eu seguirei vosso filho. Mas fazei-me agora o favor de vos afastardes daqui. Deixai-me ficar. Aqui esperarei que ele volte. Senhora, ento como for da vossa vontade. O serralheiro voltou com uma candeia grande de dois bicos. Afonso Eanes tomou duas lanas de uma panplia, uma para ele e outra para o serralheiro. Vamos ns tambm disse o do machado, indicando os outros dois das alavancas. Vs, no acudiu Afonso Eanes Ficai de guarda aqui. Um que v chamar os cinco besteiros que esto porta da rua e guardareis todos esta passagem. A qualquer rudo suspeito, dai sinal de alarme e, dos que primeiro acudirem, algum que v logo dar aviso ao Mestre. Assim se h de fazer respondeu o mais velho dos trs. D. Dulce erguera-se com supremo esforo e fora numa tremura convulsiva para a cadeira maior, junto da grande mesa de cedro. Ouviu como estonteada todas aquelas recomendaes de Afonso Eanes. Pareciam-lhe palavras de estranho e lgubre sentido num sonho de pesadelo. Encostou a cabea s mos para que no vissem como ela chorava. Ardia em febre.
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Passaram duas horas de suplcio para aquela pobre me. Os homens de guarda porta falavam baixo. De bestas armadas, os cinco chamados por ordem do Juiz do Povo esperavam em fila em frente da porta escancarada. O homem do machado estava encostado a uma ombreira, um outro como esculca fora postar-se a uns vinte passos para alm deles, escuta no corredor mergulhado em sombras. Tardam! disse o do machado. E, dando uns passos para o corredor, perguntou: Nada ouvis? Nenhum rumor! respondeu o que estava de vedeta. J tinham tempo de chegar Outra Banda, ainda que o caminho, ou que demo este escaninho negro, fosse dar l, por baixo do rio! Dizem que isto foi casa do tempo dos mouros! explicou baixo um dos que trabalhara com alavanca Uma vez ouvi eu contar que tinha havido aqui mouros e mouras encantadas! Histrias da vida! No foram mouros que sumiram por ali as tais duas damas que estavam c! A gente bem percebe as coisas. Caminhos debaixo do cho j eu tenho ouvido falar de uns poucos em Lisboa, at na alcova do Castelo: mas o pai daquela linda rapariga que enfeitiou o Vasconcelos. Schiu! Olhai se a me, que para ali est amarfanhada, vos pode ouvir! No ouve. Dizei mais baixo, mas dizei o resto. O pai da rapariga est com os casteles, passou-se, vendeu-se, e o que o Vasconcelos e o Juiz do Povo receiam que ele viesse buscar a mulher e a filha e por aqui volte com os de Castela para nos tomar a cidade, se isso caminho que v dar ao rio ou a stio por onde os cercadores possam andar sua vontade. Por isso eles foram-se por esse cacifo dentro. Ora aqui tendes o que . Mas por aqui s se c viessem a dois, e bastariam quatro ou cinco homens resolutos com bestas e lanas para os ir chacinando, mal que eles assomassem. Reparai. L est a me do rapaz a engrilar para aqui a ver se percebe alguma novidade. H de estar cansada de esperar. E de chorar, que a gente bem percebe que tem chorado s escondidas. E no tardar que nos pergunte, pela quinta ou sexta vez, se no temos ouvido passos. D. Dulce levantara-se. Tinha os olhos encovados, pareciam mais fundas as rugas das faces. Meu dito, meu feito bichanou o que tinha acabado de falar. Dava cinquenta dobras disse numa tremura de voz, indo para eles dava-as a quem me quisesse acompanhar para ir ter com o meu filho. E ficar-lhe-ia em tamanha obrigao como se lhe no houvesse dado nada. Senhora, nem preciso tanto dinheiro. Vou eu, se vs quereis. Algum entrara na sala. Mestre Afonso Eanes! exclamou com alvoroo um dos besteiros. D. Dulce voltou-se num movimento febril e foi para ele entontecida. Rui?! Era uma pergunta como um grito, uma palavra em que vibravam todas as fibras do seu corao de me. Senhora, sede tranquila. Cheguei, pouco depois do vosso filho, ao cabo desse caminho oculto. E ele, onde ficou? Foi presena do Mestre. E no veio ter comigo! O Mestre to turbado o viu, to gasto de foras, que lhe deu ordem formal de voltar ao vosso palcio, e pelo seu fsico o mandou acompanhar l. Senhor Afonso Eanes, por piedade no me enganeis! Senhora minha, pela boa fortuna da nossa terra vos juro, e no tenho agora jura maior para a minha alma. O cirurgio achou que o ferimento um pouco se lhe agravara, e da febre que lhe encontrou sabeis vs, senhora, e sei eu a causa. Febre de perigo, dizei? Febre grande, que em alguns dias h de passar, por Deus o creio. Vou ter com ele. Dos criados desta casa algum que v comigo. Senhora, serei eu, se tal honra me quereis dar. Mas depressa. Dai-me uns instantes para dizer um recado queles homens. Sim... A demora que for precisa. Podeis retirar-vos, meus amigos e muito vos agradeo o auxlio que me destes. Ao sol-fosco aparecei na minha casa. H trabalhos que se agradecem, ainda que seja dever pag-los. Mestre Afonso, no preciso. Mas vede l se no haver perigo em deixar esta porta sem algum de guarda a ela! Eanes compreendeu o receio expresso nestas palavras. Era dever seu dissip- lo para que, ao cabo de algumas horas, se no volvesse em suspeita e alarme da cidade. Nenhum perigo disse-lhes A coisa de cem passos desse corredor h uma estreita escada que d para um caminho debaixo do cho. Vai ter borda do rio, muito para c de Enxobregas e l se lhe disfara a embocadura entre as runas de um casinhoto, meio oculto por silvedos. Ningum encontramos. Quem por ali entrou no voltar. L ficaram a entulhar-lhe a entrada, e l o guarda a gente de armas de duas gals. Podeis retirar-vos descansados. Senhor Afonso Eanes interveio D. Dulce dizei-lhes que, pelo meu filho e por mim, muito lhes agradeo o que fizeram e de outro modo lhes darei agradecimento maior pela vossa mo, senhor Juiz do Povo. Os mesteirais e besteiros entenderam bem a espcie de agradecimento a que D. Dulce fizera referncia e disseram-lhe umas jubilosas palavras de reconhecimento. Madrinha e senhora minha, mandai-me. Vamos disse-lhe, apoiando-se ao brao robusto do tanoeiro.
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Aquele meu pobre filho! ia-lhe dizendo, oprimida Mas quem supe ele que lhe levou a noiva? Anto Gonalves de Mendona... O rival que ele feriu no duelo e todos julgavam morte? Era de m alma, escapou e, ainda mal curado, fugiu do hospital. Anto de Mendona? repetiu D. Dulce com imensa amargura. Conluiado com o tio, que est, como sabeis, com os sitiadores. Tem encontrado artes, malas-artes, de se entender de l com alguns viles, fidalgos de c. Perdoai, senhora minha. E Anto levaria Madalena para se vingar de Ruy e fazer dela a sua esposa... Ou a... No concluiu a frase. E o traidor-mor viria no intento de sondar o caminho para traio maior e para levar a esposa. isto o que o vosso filho supe e o que eu acho provvel; que ao certo nada se pode afianar. E dentro daquela casa no haveria quem os ajudasse? A prpria mulher do traidor? Talvez, senhora minha. Madalena atraioaria esses amores de enfeitiamento como o pai atraioou a nossa terra? Estou a crer que a levaram fora. E isso credes porqu?! Porque boca do caminho oculto se encontrou quebrado no cho um colarzito de prolas com uma cruzita toda cravejada de rubis. O vosso filho logo o reconheceu. Era de Madalena. Trazia-o sempre. Muitas vezes lho vi. Mas podia ter cado e quebrar-se casualmente. Dizeis bem, senhora, e assim teria sido, se outros indcios se no houvessem encontrado. Quais?! Bordaduras esfrangalhadas de um vestido de dama, bordaduras (*) com umas ndoas de sangue, bem vivas ainda, e no cho fundas pegadas de uns chapins pequeninos de senhora, sem dvida nenhuma, mas a indicarem que procurara resistir para que dali no a levassem. E em frente das pegadas dos chapins outras grandes de homens, que se houvessem firmado bem no cho para arrastar algum consigo.
[(*) As bordaduras a fio de seda ou a fio de ouro estavam muito em uso na Europa medieva, desde o tempo das Cruzadas. Os bordados agulha vinham da alta antiguidade egpcia, e nos fins do sculo XI estavam em muito apreo os que eram feitos a ponto de Veneza.]
E chegaram boca desse caminho escondido, sem ningum ter dado por eles?! Trs ou quatro homens facilmente se disfaravam e metiam num batel, talvez j ontem noite. O stio ermo e no estava guardado. S muito para c que esto as nossas gals, e essas varadas na praia. Suposies, somente suposies! S o que no suposio, Deus da minha alma, que me desvairaram o filho e agora mo perderam! Senhora, no digais tanto! Perderam, sim. Eu bem o conheo, mestre Afonso Eanes. Tinha-lhe amor enlouquecido, talvez de enfeitiado, e ir em busca da morte para matar o outro, ou para morrer por ela. H mes que leem claro no corao dos filhos, outras que lhes adivinham as desgraas, e o meu corao logo no comeo desses mal-aventurados amores lhes adivinhou o infortnio! Senhora, eu creio bem que o vosso filho por nenhum desalento de amor ser capaz de faltar s suas promessas de cavaleiro e sua alma de Portugus. No faltar, isso creio eu; mas faltar-me- a mim, indo alm do que deve sua honra e sua terra, para que a morte se no esquea dele. Quis-me parecer que o deixei convencido de que a sua prometida noiva o no atraioou, e era esta suspeita o que mais o mortificava. Das suas palavras percebi que se lhe mudou em dio maior a dor de cime que ameaava enlouquec-lo. O dio tambm faz loucuras. Tem um exemplo na famlia. Talvez nunca mais encontre essa que era o seu maior amor!... E que encontrasse? Esposa ou suspeita amante do outro, ser para ele a noiva que morreu. Ai de mim por ele! disse num soluo. Tinham chegado em frente do palcio. D. Dulce estremeceu. Parece que vou entrar numa casa onde algum morreu! disse sumidamente A sua felicidade e a minha!
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Depois de ter obrigado Ruy a meter-se na cama, invocando as recomendaes do Mestre para autorizar o seu mandado, o cirurgio fizera-lhe o curativo ao ferimento, que um pouco se lhe agravara com os esforos violentos daquele dia, e para lhe acalmar a excitao febril dera-lhe uma beberagem, em que entrava uma forte dose de dormideiras. Esperou que adormecesse e saiu, deixando-o muito recomendado ao velho Gonalo Vasques, que o ficou velando sentado cabeceira do leito. Tinha sado minutos antes de D. Dulce chegar. A oprimida senhora correu logo para a cmara do filho, seguida por Afonso Eanes. Est pior? perguntou da porta, convulsivamente, e como se tivesse medo de entrar. Senhora minha, adormeceu disse-lhe o velho, de p Deu-lhe o fsico um remdio para dormir. D. Dulce acercou-se da cabeceira do leito. Ruy tinha uma respirao torturada. Notou-lhe extraordinria palidez. Senhor Afonso Eanes disse, voltando-se para o Juiz do Povo no prendais agora o vosso tempo connosco. E por tudo quanto vos devemos, ele e eu, sereis sempre a pessoa mais gratamente lembrada na minha alma. O tanoeiro respondeu-lhe em modestas palavras de devoo pessoal, e retirou-se. Meu irmo? perguntou D. Dulce ao velho aio. Saiu tambm quando o sol se encobria e ainda no voltou. Podeis retirar-vos. Eu ficarei aqui. O fsico prometeu voltar? Antes do sol-posto me disse que voltaria. Est bem. Eu chamarei, se de vs precisar. Gonalo Vasques dobrou-se, reverente, e saiu. D. Dulce inclinou-se ento carinhosamente para o filho e beijou-o num desafogo amorvel. Meu pobre enfeitiado! Que m sina de amores a tua! pensou Perderam-te, e de mim hs de fugir para morreres na loucura da tua dor! Chorava. Comps-lhe as roupas brandamente. Sobressaltou-se. Ruy tinha na mo direita, contra o peito, o colarzito quebrado de Madalena. O que tu mais sofregamente guardas! E talvez tenham sido maiores do que essas prolas e mil vezes mais as lgrimas que eu tenho chorado por ti, filho! Sem contar as outras que eu no sei ainda como ho de ser! E ficou-se de olhos cravados na cruzita cravejada de rubis, a lembrar-lhe gotas de sangue que se houvessem cristalizado. Cobriu-lhe o peito e foi ajoelhar-se diante de um oratoriozito da Senhora das Dores, que havia na cmara sobre um contador precioso de talha dourada. Esperaria que ele despertasse, enquanto os seus olhos punham aos ps da Me de Jesus a conta das suas rezas nas contas grandes das suas lgrimas. No chegou a durar duas horas aquele sono de pesadelo. Acordou num sobressalto de sonho. Levou boca, enternecidamente, a cruzita de rubis, murmurando: Cruz pequenina do meu tamanho calvrio! Foi no seu colo... Alvo como os arminhos das rainhas e como a plumagem do cisne branco do cavaleiro de Santo Graal... Que te dei o primeiro beijo! No reparou na me, que orava, chorando to sumidamente, que mais se lhe podia ouvir o corao do que o murmrio das rezas.
CAPTULO XII A LOUCA
Ao cabo de cinco dias, o ferimento de Vasconcelos estava completamente curado. O da alma, esse que de dia para dia mais se agravava e talvez nunca tivesse cura. Os rapazes do esquadro dos Namorados tinham ido visit-lo vrias vezes. As adeses tinham sido importantes; o nmero dos filiados aumentava consideravelmente, e das provncias j tinham recebido mensagens de alguns jovens de famlias fidalgas, pedindo a admisso na hoste do estandarte verde como por l lhe chamavam j. Em uma das suas recentes visitas, o Magrio dissera-lhe: Se Lisboa puder aguentar-se at que Nuno lvares chegue, e nos no desamparar Deus, viro a ter os Namorados o tresdobro de lanas e, na primeira batalha campal que houver, vereis que j podemos formar uma ala, uma arrojada ala em que haveis de ser dos primeiros. Para morrer volveu-lhe Ruy tristemente. No digais tal. Para glria vossa e da nossa terra que h de ser. Pois por ela ser. Para mim j no pode haver seno metade do moto da nossa bandeira, o primeiro Pela nossa terra. Outro hei de ter, mas esse, todo dio, vai s comigo e s o meu corao o h de sentir. Quem sabe l, Ruy de Vasconcelos? Quem vos pode afirmar que certo o que supondes? Talvez as coisas vo to depressa, que s terras de Castela tenhamos de ir buscar vossa dama; para tal podeis contar comigo e com outros mais dos nossos. Boa inteno de amigo para se agradecer como eu vos agradeo. Iria eu encontr-la ento j esposa ou amante do vilo bandalho! disse numa violenta cara de clera Antes h de querer Deus que eu o encontre a ele. Assim os Castelhanos arremetam outra vez contra a cidade! Irei sobre ele, ainda que na sua tenda real lhe d abrigo D. Joo de Castela. E assim se fechar a nossa conta, a minha e a dele! De outro modo h de ser, bem o creio. Deixai que o tempo vos cure, que para os males do corao s vezes o melhor remdio disse-lhe afetuosamente, no empenho de o acalmar De outros amores sois digno e outros vos ho de merecer. Foram os segundos de m fortuna; no quero outros. Na fila dos Namorados ir um s campeador desterrado do pas dos sonhos, vivo de alma, um desengano ainda preso ao Mundo por uma santa devoo a sua me e sua terra; eu, lvaro Coutinho. Eu s, assim entre vs todos! Pois ns veremos que tal no h de suceder objetou-lhe o Magrio Se no fosse o respeito que tenho pelas vossas mgoas, respeito piedoso como se as sentisse um irmo meu, muito dileto, dir-vos-ia que da nossa hoste a nica exceo, o nico namorado falso, hei de ser eu, sempre eu, cavaleiro de gr fealdade, por quem nenhuma formosa dama se prende e s uma cegonha inglesa, da comitiva do Duque de Lencastre, teve o capricho de namorar-se. Porm a essa no a quis, porque, em conscincia vos afiano, ainda era mais feia do que eu! Sorriram os outros que tinham ido com ele. Ruy no sorriu, bem que lhe perdoasse o gracejo pela boa inteno evidente de lhe revigorar alentos, pondo-o assim a ele, jovem esbelto, de radioso prestgio, em contraste consigo, o paladino de uma hoste de namorados, a quem as mulheres bonitas rejeitavam desdenhosas. Mas perdoai o gracejo, que em bom propsito foi dito, e aparecei l por aquela vossa casa. Despediu-se. Sem que do olhar se lhe dissipasse a lgubre tristeza e o rosto um momento perdesse as duras linhas que o dio vincara, Ruy abraou-o com sincero afeto.
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Havia sado frequentes vezes o filho de D. Dulce e tinha longas demoras por fora. Ningum em casa sabia por onde nem porqu. Uma vez, casualmente, o viu Afonso Eanes num armeiro notvel, o mais estimado em Lisboa. Entrou, falou-lhe e notou que o armeiro logo de afogadilho levou para dentro um bacinete e um escudo, em que estava trabalhando. Nenhuma significao especial deu a este pormenor, realmente insignificante. Ficou-lhe, todavia, a impresso de que o bacinete e o escudo eram pretos, como s por exceo os usavam aqueles que se presumiam desenganados do Mundo, ou tinham feito voto de buscar a morte em torneio ou em batalha campal. Ouvira contar alguns destes raros casos, sucedidos nas Cruzadas. Talvez para ele! pensou o tanoeiro E da, para outro qualquer poder ser. Se o armeiro assim pressurosamente ocultava aquelas peas de armadura era porque para isso tinha recomendao, e absteve-se de qualquer pergunta ao amargurado filho de D. Dulce. Falaram da situao da cidade e afinal Ruy perguntou-lhe: E de Nuno lvares que sabe o Mestre? Que o jovem vencedor dos Atoleiros deve ter sado da fronteira do Alentejo para vir em socorro de Lisboa. Se for a tempo, se Lisboa puder resistir, se a fome deixar que resista e a peste dos Castelhanos no entrar c primeiro do que eles! No h de querer Deus que tal suceda volveu-lhe Afonso Eanes. E do arraial de el-rei de Castela o que sabeis? Que vo por l grandes desalentos e desesperos. A mortandade cada vez maior; a peste negra dizima-os! No descansam na faina de fazer atades os carpinteiros que o rei Castelhano mandou para Sintra e Alenquer! Bem sei; l que fazem a salga da gente nobre da Espanha, apodrecida pela peste. Contou ontem um fugido das naus de el-rei que vo j em mais de quatro mil os que tm morrido e que uma boa parte da peonagem anda na faina de abrir covais para os seus. Deram em coveiros esses soberbos invasores! Pois oxal que a peste enjeite um que eu sei e mo no salguem l, para que eu tenha o gosto de me encontrar com ele. Pela voz torva, rouquejante, em que disse isto, logo o Juiz do Povo percebeu para quem era a referncia. A esse, ainda que a peste o matasse, o no salgariam para o levar, porque no de Castela volveu-lhe Afonso Eanes. Dobradamente mais vil e torpe que os viles de l! acudiu Ruy numa contrao de dio. Com razo o dizeis, senhor Ruy de Vasconcelos. Agora dai-me licena que vos deixe para ir a certa incumbncia de caridade, em que ponho a minha maior devoo. Convosco sairei tambm. Saram juntos.
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Vou a casa daquela velha regatona, que vale o mais destemido dos nossos homens de guerra ia-lhe dizendo Afonso Eanes. J sei ento quem . Aquela tia Lourena... Que foi ferida. Dela me recordo perfeitamente. Levo-lhe aqui escondidos uns pedaos de po duro de bagao que ainda l tenho em casa. Coitada! H quatro dias que no come seno as ervas ressequidas dos muros e o musgo das oliveiras mortas. Ela e uma pobrezinha enlouquecida, que por caridade acolheu no seu casebre. Esta manh, mo vieram contar. Uma tamanha misria de cortar o corao! Pois se mo consentis, irei tambm convosco visitar essa valente mulher, e da minha casa mandarei que lhe levem algum socorro. Ento bem-vindo sejais e grande consolo dareis quela animosa defensora de Lisboa E ser prmio do que ela tem feito o auxlio que lhe derdes. Vontade tinha eu de Vo-lo pedir, e com tal propsito entrei na loja do armeiro, mas tive receio de que vos parecesse impertinncia. Avultadas esmolas tendes vs dado j pobreza da cidade. Minha me bem mais. Pois sim, ela e vs. Que afinal, se fossem a querer acudir a toda essa gente ao desamparo, nem as tulhas e as bolsas de todos os fidalgos de Lisboa chegariam para um dia de fartura a tantos mil famintos que tem a cidade. Na tulha da minha casa sei eu que j no h trigo para uma semana. E nas outras dos mais ricos o mesmo h de ser. Mas desse pouco alguns punhados hemos de ter para a tia Lourena. Deus vos pagar e em boa hora vindes.
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Tinham chegado ao casebre daquela regatona, a quem a populaa chamava o Condestabre das mulheres. Veio abrir a prpria tia Lourena. Plida, emagrecida, olheiras fundas de quem velara as noites chorando, parecia que nalgumas semanas se lhe aumentara a velhice como se houvessem decorrido longos anos! E, todavia, o mesmo ar resoluto, a mesma excecional energia no olhar, nas palavras, no msculo aprumo do seu arcaboio de lutadora! Depois de umas saudaes de surpresa, a regatona retomou o seu feitio de desassombrada franqueza. Isto o casinhoto de uma velha que j no tem em que possa ganhar a vida. Desculpai a trapagem e os cacarus. Mas sabei, mestre Afonso Eanes, e vs tambm, meu guapo fidalgo, sabei que mesmo assim, tal como , o defenderei dos casteles, se o demo houver de meter c dentro ces gadelhudos, que m peste mate por tanta misria que tm feito passar nossa pobre gente! Agora, perdoai o aranzel, e mandai no que entenderdes que vos posso servir. Viemos por vos fazer uma visita de homenagem, tia Lourena. A mim, Santo Antnio do Menino Deus! A vs, que to devotadamente haveis servido a nossa causa, ajudando a defender Lisboa. Ah! Por tal intento muito vo-la agradeo, porm olhai que nem valia a pena chegardes at aqui. A obrigao de todos os que tm nimo para arremeter com esses malvados que a esto para roubar a terra que Deus nos deu. No fao nenhum milagre. O corao puxa por mim, as febras so rijas e o sangue bravio. Nem todas as mulheres assim podem ser, mas cada qual faz o que pode e quem das minhas ganas, temos a umas boas dzias delas; mal parecia que se ficasse a fiar na roca enquanto os homens arriscam a vida. Mas vs como nenhuma outra! disse-lhe Ruy, numa voz arrastada de entristecido Eu sei com que admirvel coragem derramastes o vosso sangue, tia Lourena. Sangue da ral, mal pecado que chegasse para afogar essa maldita gentiaga que a veio para nos oprimir! No chega, mas ainda c tenho mais para quando for preciso, bem que seja agora sangue pior, pois que feito de ervas, que os burros enjeitariam torcendo o focinho, se ainda houvesse burros para o lado de c dos casteles! A t Ruy abriu um sorriso naquela sua boca ensombrada de pesares. Pois tambm por causa da misria em que viveis que ns c vimos. Boa vai ela! Sabeis ento!... Algum vos foi contar, mestre Afonso Eanes? E aqui vos trago um pedao de po. Pois pelo amor de Deus seja e pela boa fortuna da vossa mulher e mais da vossa filha. Ele vos tome em conta essa esmola. No lhe chameis assim, mulher de Deus, pois que tal no . Quinho que eu trago que deveis dizer; quinho que nem merece falar-se nele. Ao pao real e mesa do Mestre o iria pedir para vs, que a muito mais tendes direito. Mas tal no preciso, pois que de vs se condoeu o senhor Ruy de Vasconcelos, e da sua casa vos mandar algum trigo com que faais o po. Ah! Meu glorioso fidalgo, isso que para se agradecer de mos postas, no por mim, que j estou acostumada ao mau trato; mas pela desgraadinha que a tenho a mirrar-se-me! Uma linda arveolazita, que foi criada em palcios, mimosa e farta, e j de todo enjoou o musgo das oliveiras e as ervas secas dos muros. E como sabeis vs que foi criada em palcios?! perguntou-lhe Ruy, no vislumbre de uma suspeita, que logo enjeitou por absurda. Meu senhor, assim linda e formosa logo se percebe que no flor rasteira, medrada ao Deus dar, para todo o vento, como as outras dos montes e das charnecas! Isso sim! At pelos farrapos com que eu a encontrei se via logo que era de gente fidalga. Eram farrapos de brocado e de veludo! Mas ela prpria o d a entender nas suas palavras desvairadas, quando a loucura lhe d maior rebate. E porque enlouqueceu? Por amores talvez? Pelo seu grande amor de me. Morreu-lhe nos braos uma filha pequenina que tinha. Foi mesmo em frente do adro da S que eu topei com ela na sua dor de me enlouquecida! Vai para trs meses que isto foi. Era noite velha, mas o luar era tanto, que at as lgrimas se lhe viam em fio a carem daqueles lindos olhos que o nosso Senhor lhe deu! Grande mistrio haver ento na vida dessa desventurada dama! disse o Vasconcelos. E sem saber porqu, o oprimia agora a lembrana de uns mal-afortunados amores, os primeiros que teve e aos quais por vrias vezes aludira, como sabemos. De sbito, algum abriu de repente a porta estreita e carunchenta, que dava para a cozinha do casebre, e uma singular figura de mulher, aconchegada em trapos, mulher nova de extrema palidez, cabelos desprendidos, revoltos, assomou como se fosse a imagem da amargura numa viso de lenda. Me Lourena! Vamos por essas ruas pedir esmola! solicitou em voz sumida e dolente, encostando a sua bela cabea mortificada decrpita ombreira, enegrecida de fumo Tenho fome! soluou. E afoguearam-se de lgrimas os seus lindos olhos espavoridos, numa cegueira de enlouquecimento. Em mais ningum reparou como se mais ningum tivesse percebido ali. Coitadinha! Disse a tia Lourena, indo para ela compungida No preciso pedir esmola segredou-lhe, tomando-lhe as mos-e acarinhando-a J temos po. Lembraram-se de ns, minha querida Menina. E ps-lhe nas mos um pedao de po que Afonso Eanes lhe trouxera. A desditosa levou-o boca numa avidez que parecia insacivel. Que tendes, senhor? perguntou sumidamente o tanoeiro, reparando inquieto na palidez e na dolorosa perturbao do jovem cavaleiro. Vm as mgoas umas aps outras! respondeu-lhe baixo numa tremura de voz Aquela desventurada foi dama da Rainha segredou-lhe quando eu era pajem apenas. Se eu podia sonhar esta amargura. Ou eu estou mais louco do que ela! No quiseram que eu morresse de fome! disse adentanhando o po com sofreguides de irracional. E logo, numa crise de lgrimas, entregando a Lourena o pedao que lhe ficara: E foi de fome que a minha pequenina morreu! Nossa Senhora a tem l consigo entre os seus lindos anjos disse-lhe a tia Lourena Agora todas das preocupaes tm de ser para vs. Olhai, aqui esto as pessoas que tiveram d de ns. Leonor no tinha ainda reparado neles. Volveu para Afonso Eanes um doce olhar de resignao, a contrastar com o desvario que, momentos antes, lhe transparecia no rosto. E foi para o tanoeiro o seu primeiro olhar calmo e lcido, porque o filho de D. Dulce um pouco se encobriu, acabrunhado, por detrs dele. Foi esse quem nos trouxe o po indicou Lourena um bom e honrado homem do povo. Mas ali est tambm um jovem cavaleiro, que veio aqui para nos socorrer. Leonor foi de mos postas para o tanoeiro, num andar hesitante e nuns passos que se torciam. Nossa Senhora seja por vs! disse-lhes, tremendo. Curvando-se profundamente comovido, como se numa sala do pao cumprimentasse alguma ilustre dama da corte e no naquele casebre miserando uma pobre enlouquecida, embrulhada em trapos, Afonso Eanes deixou a descoberto o perturbado filho de D. Dulce. A infortunada ps nele um olhar de pavor e todo o seu corpo se agitou numa tremura convulsiva. Ruy de Vasconcelos! disse num grito de alma, agudo e trgico, expresso suprema de uma enorme surpresa e de uma imensa dor, assim como se fosse o grito selvtico de alguma ave ferida de morte ou a vibrao de um cristal espedaado. Leonor de Gusmo! rouquejou Ruy com um gesto, que era talvez o comentrio incoerente de uma confrangida piedade e de uma atormentada repulso. De mos no peito, a tremerem como se fossem de criana e enclavinhadas como garras, Leonor buscou o amparo da tia Lourena. E de joelhos, abraada nela, em golfadas de soluos, disse num timbre de angstia, arrepiador e lgubre: O meu primeiro amor! O primeiro, me Lourena! Uma traio, uma violncia do outro! Eu no o atraioava. No! No! Tamanho amor, tamanho!... E no era dele... disse alanceada, a sumir a voz no era dele a pequenina... Que morreu de fome! Num estonteamento de surpresa por aquele extraordinrio lance, que nem sonhado poderia inventar, a velha regateira puxava-a para si piedosamente, a dizer-lhe palavras de resignao, que vinham a escorrer lgrimas. Afonso Eanes sabia vagamente de uns amores de m fortuna que Ruy tivera com uma dama do pao. Depois, havia mais de dois anos, nos tempos revoltos que vieram com a morte do rei Fernando, ouvira falar por alto no sbito desaparecimento de certa fidalga nova e formosa, de quem nunca mais houvera notcia. Homem do povo, alma iniciadora da revoluo, pouco importavam ento ao glorioso tanoeiro os dramas e os escndalos do pao, pois que, no escndalo afrontoso da rainha combora e no enorme drama de uma Nacionalidade em perigo, todos os outros se sumiam como apagadas miniaturas. Agora entendia e ligava a essa desventurada o caso esquecido daquela dama desaparecida, e aos primeiros amores de Ruy de Vasconcelos este lance de um drama pungidor, que parecia um pesadelo de sonho. Eu saio, Mestre Afonso Eanes! disse-lhe baixo o Vasconcelos numa voz que se lhe estrangulava. Uns instantes mais de piedade solicitou-lhe o Juiz do Povo, quase em segredo. No posso com esta amargura rediviva sobre o corao que outra espedaou! alegou-lhe sumidamente. Entretanto, nos braos da regateira como uma criana encolhida de medo, Leonor soluava-lhe confidncias, a espaos truncadas pelos desvairamentos da sua loucura intermitente de resignada. Minha querida Menina dizia-lhe a tia Lourena num intuito benfazejo nem que fosse vossa a culpa, Deus Nosso Senhor vos negaria perdo pelos tamanhos infortnios que tendes padecido! S ele me no perdoar! No sabe que foi a Rainha quem ajudou a perder-me! No sabe! No perdoa! Sufocou-se e logo lhe voltou o desvario. Afastou-se da velha bruscamente e num olhar de terror por alguma coisa que s ela via, o gesto largo, numa atitude trgica, foi dizendo com vertiginosa rapidez em golfadas palavras: A Rainha no trono... El-rei doente. Pobre enganado, pobre rei! Sorri para o Conde galego a real adltera. Depois, para o outro. Para o outro, enviesando um olhar... Para Leonor de Gusmo... Aquela que eu fui! O Rei morreu a deitar golfadas de sangue... Ralado de cimes, ralado de vergonha! Pobre rei! Pobre marido! Bocas suspeitas dizem pelos recantos do pao que el-rei foi empeonhado... Para acabar mais depressa! Esto a amortalh-lo. Numa alcova do pao a Rainha viva beija o Andeiro... Na sala grande, dentro do caixo, que vo levar para a igreja de S. Francisco, el-rei apodrece! Leonor de Gusmo passou... Viu, deitou um grito de horror... E de vergonha! A rainha turvou-se... Desprendeu-se dos braos do galego valido. Vingou-se a loba real! Quando foi das exquias do rei, Leonor de Gusmo foi dada por traio ao outro. Leonor, ao outro, qual? perguntou Ruy numa estranha vibrao, indo lentamente para ela como algum no aturdimento de um sonho desesperador. Ento Gonalves disse-lhe sem olhar para ele, como se estivesse a responder a algum distante. E tem uma vida s esse ladro de mulheres!... rouquejou o Vasconcelos numa alucinao de clera Por traio de Leonor Teles, no assim? perguntou-lhe. Adormeceram-na, levaram-na, perderam-na! disse numa onda convulsiva de soluos Foi me, fugiu, embrulhada em trapos, a pedir esmola... Uma pequenina nos braos! Me Lourena, a que morreu de fome naquela tamanha noite em que me acudistes! E foi para ela, numa crise de choro, de braos abertos, o andar arrastado e trpego de uma octogenria. Como se toda aquela viso evocadora se houvesse sumido na levada de lgrimas dos seus olhos. S ele me no perdoa! O meu primeiro amor! O segundo... E o ltimo foi o da pequenina. O ltimo! Senhor cavaleiro, tende d suplicou a chorar aquela velha extraordinria, que se tornara caudilho das mulheres batalhadoras de Lisboa. Leonor! exclamou o Vasconcelos numa tremura de pajem novio, como cinco anos antes nas salas do pao de Apar S. Martinho Algum que de vs duvidou disse-lhe, dobrando o joelho pede agora lhe perdoeis a suspeita em que vos teve! Rui! Ruy! soluou. E pela santa alma da sua me vos jura nesta hora que sereis vingada. Beijou-lhe a mo. Leonor agitou-se numa convulso nervosa. Apartados para sempre desse caminho onde para ambos se fez noite cerrada, irm de lgubre destino, chorai pelo que algum dia fomos, que eu j no tenho corao que no seja para este imenso d por vs e para um dio imenso por ele. Noivo da minha alma noutro tempo que se acabou! gemeu num arranque de saudade. E tombou, desfalecida, nos braos da regateira. Tinha perdido os sentidos. A tia Lourena levantou-a nos braos musculosos como se ela tivesse a leveza de uma pomba morta e levou-a para a sua camazita de farrapos no cubculo sem luz que lhe servia de quarto. Os dois ficaram esperando. Vede que hora de infernal angstia esta minha hora! disse Ruy para o tanoeiro Como se as outras no bastassem! E, todavia, bendita hora para serdes misericordioso e justo volveu- lhe Afonso Eanes, comovidamente. Para dar-lhe amparo de irmo, certo ser. Por favor ide saber se voltou a si ou se haver necessidade de ir chamar um fsico para a ver. O tanoeiro bateu brandamente porta do tabique e logo lhe veio falar a tia Lourena. No vos preocupeis disse-lhe tranquilizando-o Tem daqueles desmaios, mas de pouca dura, louvores a Deus. Volta a si e fica-se depois num sono de pesadelo, que s vezes dura horas. Foi o que lhe aconteceu agora. Mas voltou a si? Voltou, mal que a deitei. Coitadinha! Abraou-me a chorar e logo se ficou to adormecida, que nem parece a mesma! Dormir de doente, dormir de cansada por tanto sofrer que . Mestre Afonso Eanes chamou Ruy. Dizei. Dai a essa benfazeja criatura segredou-lhe estas moedas para quanto ela carecer e for possvel comprar nesta pobre cidade faminta. E ps-lhe na mo trs dobras p-terra (1*) e alguns reais brancos.(2*)
[(*) 1- Moedas cunhadas no reinado de D. Fernando. Chamavam-lhes p-terra porque no cunho a figura do rei vinha a corpo inteiro, apeado, contrastando assim com outras, anteriores, em que o rei era figurado a cavalo. 2- Baixa moeda de estanho e cobre.]
De minha casa lhe mandarei tudo o que for possvel e, entretanto, procuraremos ns, para ela e para a sua protetora, outro melhor abrigo. Est encontrado volveu-lhe o tanoeiro consoladoramente Na minha casa ser, se quiserdes. Grande corao o vosso, meu honrado amigo! disse-lhe, abraando- o. O tanoeiro foi ter com Lourena e deu-lhe o dinheiro com a modstia quase humilde de quem solicita um favor. Daquele nobre senhor, no assim? perguntou-lhe a velha com enternecido alvoroo. Para Leonor de Gusmo interveio Ruy como se fosse do honrado e glorioso Juiz do Povo. Para que no se oprima e envergonhe por esse dinheiro. Bendito seja, bendito! exclamou a regateira, beijando o cunho de uma das moedas Bendito seja por ela, que eu por mim c irei vivendo enquanto pelos muros se no mirram de todo as ervas. Para ambas retificou o jovem cavaleiro. E amanh c virei eu buscar as duas para lhes dar pousada na minha casa. Tambm muito vos agradeo por ela. Andava a ter medo de a deixar aqui ao desamparo, coitadinha! Sim, porque nossinos dando alarme para corrermos para os muros, j me no posso ficar aqui; fujo para onde os homens vo lutar e morrer, e os virotes de Castela sei eu j que entram bem nas minhas carnes de velha. Numa hora pode ser de vez. Tendes uma alma heroica de mulher e um corao de santa! Merc das vossas palavras, meu senhor. Homenagem que mereceis. Pois se alguma coisa entendeis que mereo, rogai vs no meu nome ao Mestre que atire com a nossa gente contra os casteles para se acabar com isto de vez. E a velha Lourena l ir com a sua ala de saias, chua na mo, para golpear esses lobos de Castela, que esto a uivar em redor da cidade. Perdoai o ousio, e Deus v convosco e vos pague a caridosa benfeitoria, senhor fidalgo e honrado Juiz do Povo. E assim, neste feitio desassombrado e cho, em que transpareciam nitidamente a sua forte alma de lutadora e o seu generoso corao de mulher, se despediu daqueles dois homens de to diversa condio, irmanados pela mesma devoo de patriotas e por igual esforo de nimo.
CAPTULO XIII A LTIMA INVESTIDA
O dia seguinte, ainda no era sol fora, saiu Afonso Eanes da sua casa com um servo seu, antigo mouro saloio, e tomou para o casebre da tia Lourena. A regateira j tinha aviso para os esperar. O tanoeiro cumpria a promessa da vspera. Levaria para sua casa a desventurada Leonor e aquela que misericordiosamente lhe dera abrigo. Pelo caminho ia Afonso Eanes pensando nas condies angustiosas da cidade, naquela situao horrorosa de um povo faminto, que teria de capitular, ao desamparo de qualquer oportuno auxlio. E o reino, tirando o Porto e uma dzia de povoaes maiores pensava todo na sujeio dos Castelhanos ou dos traidores Portugueses que esto por Castela! Nuno lvares talvez no chegue a tempo! Um assalto de quinze ou dezoito mil Castelhanos e Franceses, e no ser com oitenta ou cem homens de prole e a peonagem esfaimada e rota, que Lisboa lhes poder resistir. E aqui, dentro da cidade tomada, se enterrar para sempre este pequeno reino com tanto esforo criado! Doutro modo, s se for por um milagre de Deus, a ajudar outro milagre que venha do sangue da nossa gente! Deitou para trs de arremesso o capelo do seu saio de gr. Atormentavam-no aquelas esmorecedoras previses. At me parece de mau agouro esta quietao dos Castelhanos! H quatro dias nem uma escaramua s portas de Santa Catarina ou dos lados do rio! S se a peste entrou mais com eles e andam agora mais esmorecidos. E esta pobre cidade adormecida como se no tivesse dobrados perigos de morte em volta dos seus muros! Encontrou logo dois lgubres desmentidos. Lisboa, com a sua gente de maior infortnio, j tinha despertado. A fome e as mgoas davam-lhe a sua trgica alvorada primeiro que o sol. Bandos de criancitas semi-nuas vagueavam j pelas ruas, pedindo esmola, ou esperando a chorar que se abrissem as portas das casas onde ainda podia haver a opulncia de uns pedaos duros de po negro de bagao. Ao dobrar uma esquina, quatro pequenitos correram para ele, e de mos postas, ajoelhando a chorar, lhe pediram esmola numas palavras que as mes lhes tinham ensinado e eles ainda mal sabiam dizer, de pequeninos que eram. O Juiz do Povo levantou-os, fez-lhes carcias e disse ao servo mouro que os guiasse a casa para lhes darem l alguma coisa. E que voltasse depressa. Mas ainda os pequenos no iam distantes, e logo outra cena pungidora se lhe deparou. Uma procisso de penitncia, exclusivamente de mulheres. Esposas que tinham os maridos feridos nos hospitais, vivas que tinham deixado em casa os filhos rodos de fome, mulheres juvenis numa viuvez da alma pelos noivos mortos nos muros e s portas da cidade, defendendo-a. Uma ladainha dolente, rezas numa enternecedora melopeia de soluos. Iam para a Senhora da Escada, que era, naqueles dias trgicos, a Senhora de mais incendida devoo para as mulheres de Lisboa. Afonso Eanes apressou o passo, confrangido. E o sol l vinha a romper, por entre as suas magnificncias de oiro rutilante na mesma triunfal indiferena por essa terra de to lancinantes dores e de tamanho infortnio, onde para tantas almas seria sempre noite cerrada e lgubre, por mais luz que ele trouxesse.
* * *
A tia Lourena esperava-o porta. Santo dia, mestre Afonso Eanes disse-lhe mal que o avistou. Para ns todos seja. E a desventurada? Levou a noite toda numa grande inquietao, nuns ais abafados e num choro que ela queria encobrir; mas eu estava a sentir-lho como se fosse de uma filha minha. J sabe que vai mudar de casa? Logo ontem de tarde lho disse, quando a vi numa daquelas suas horas em que o juzo lhe volta, assim como se nunca o tivesse perdido! Disse-me que estava com vergonha de ir dar a saber a sua desgraa a pessoas que talvez no quisessem crer na traio que a perdeu. Em minha casa ningum lhe falar em tal. E fez-me muitas perguntas a respeito... Daquele jovem cavaleiro que veio aqui. E olhai c, j est erguida? Vestida com os seus trapos de seda e a dormitar em cima do almadraque(*) de estopa, que foi a coisa melhor que eu tive para lhe dar.
[(*) Enxerga de palha. Tambm assim se denominavam os colches e os coxins das casas ricas.]
Pois vamos ento l dentro busc-la. Mas no foi, porque o surpreendeu a gritaria dos mareantes e galeotes da Ribeira. E logo na ruazita prxima uns alvissareiros correndo, nuns clamores de alarme: Gentes, arriba! Arriba, que vm aproando Ribeira as gals de Castela! Um pouco enfiado pela surpresa, o tanoeiro correu para a escada exterior do eirado de uma casa prxima, desabitada e em runas. Subiu rapidamente. Dali via-se bem a Ribeira e a praia onde as gals portuguesas estavam varadas, por no haver guarnies para as trazer no rio, opondo-as numerosa frota das gals castelhanas. O sol subia, doirando a cidade, e nas guas vivas da mar que enchia, vinte gals inimigas vinham arrancando rio acima. Percebia-se bem a chusma dos homens de armas amontoados nos pequenos castelos e no convs baixo das gals, metendo de proa para aonde estavam as de Portugal, imobilizadas na areia. E nos flancos da frota um enxame de batis com gente armada, provavelmente os batis das sessenta naus atracadas em frente de Santos. At se distinguiam os fidalgos pelo resplendor das armaduras, pelos pendes multicores, pela arrogante plumagem dos bacinetes. Vm tomar-nos as gals! pensou Afonso Eanes. Desceu rapidamente. E da, senhor Juiz do Povo? So os lobos gadelhudos de Castela? So. Ide vs com o meu servo mouro, que no pode tardar. Eu vou avisar o Mestre. E deitou de corrida para o pao do Limoeiro.
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No, pois aqui que eu me no fico dizia consigo a tia Lourena Vou ver se ela adormeceu, e a nossa Senhora que vele por ela. A minha chua no h de ficar ao canto da lareira enquanto esses malditos javardos vm s focinhadas contra a cidade. Foi para dentro. Leonor dormia profundamente. Nossa Senhora seja contigo, que tanto tens padecido! E at a dormir chora! disse comovidamente, reparando em duas lgrimas, soltas das plpebras cerradas de Leonor de Gusmo. Saiu do cubculo p ante p e foi a um recanto da lareira buscar a chua, longa haste de tojo com uma ascuma de ferro como as lanas curtas. Vamos l, rapariga, que temos hoje bailado com os danadores de Castela disse de galhofa para a chua Eia, como esto j a badalar os sinos da S! Correu porta. J no eram s os sinos de Santa Maria, mas os de todas as igrejas da cidade e as sinetas das muralhas e de quantas ermidas tinha Lisboa. Vamos l ver se arrebanho a minha ala de saias. No era preciso. Mais de sessenta mulheres, armadas de chuas ou com arregaadas de pedras, vinham de corrida gritando, numa gesticulao violenta. Eram das ruas altas da cidade. Eh! Mulheres de Deus! exclamou a tia Lourena, indo ao encontro delas Assim que eu gosto de vos ver, animadas! E em jejum, raparigas? Desde ontem disse uma. Pois pudera acudiu outra. Em os sinos badalando assim, parece que fica a gente cheia e farta como no tempo em que havia po! (*)
[(*) Refere-se ao repicar dos sinos dando sinal de alarme para que a gente vlida corresse aos muros e portas da cidade.]
D-nos a febre no sangue explicou a tia Lourena e a febre tambm sustenta. Os casteles s portas de Santa Catarina! gritou um homem que vinha correndo de cima E ouvi que tambm apareceram muitos para outros lados da cidade! Pois vamos l para as portas de Santa Catarina a dar-lhes os bons dias resolveu a regateira Mas vede-me primeiro se a vem alguma criatura caridosa, que me queira ficar em casa a tomar conta de uma doentinha que eu ali tenho. Aqui est esta, que anda doente e mal pode consigo disse uma rapariga desempenada e forte, apresentando uma mulher de cabelos brancos, ressequida, as faces da cor do pergaminho antigo. Quereis ficar, que vos agradeo eu e vos pagar Deus? perguntou- lhe a tia Lourena. Se nisso vos dou aprazimento, fico volveu-lhe em voz dolorida. uma obra de caridade para eu ir descansada. E fez-lhe umas breves recomendaes. Olhai os sinos que esto a chamar por ns! disse uma das mais impacientes. Vamos j respondeu-lhe a regateira Sabei que mais os estou eu sentindo no corao que nos ouvidos. V, mulheres! S. Jorge e Portugal! E cada uma far de conta que defende a sua casa e os seus filhos. Viva a tia Lourena! Viva a nossa capit! Para as portas de Santa Catarina, mulheres! gritou a regateira. Mas do lado de baixo da rua um barqueiro velho clamava: Correi Ribeira, que est l o poder maior de Castela! Querem tirar-nos as gals, as nossas! J se aferraram a uma! Pois seja l para a Ribeira clamou a tia Lourena Calai-vos l, velhinhos, que ns c vamos para eles disse de mo espalmada no ar, voltada para as torres da S. E l foram todas de golfada pela rua abaixo.
* * *
Resumamos ns agora o plano dos Castelhanos, segundo a sincera informao desse grande e adorvel cronista que foi Ferno Lopes, patriarca dos historiadores portugueses. No podendo levar a cidade de vencida, el-rei de Castela planeou tomar-lhe as gals, varadas ento na praia fronteira s Portas do Aougue. Seria cometimento para levantar os nimos da gente castelhana, a quem a intrpida constncia da cidade e, muito mais ainda, os horrores da peste, tinham amortecido a coragem. No o diz Ferno Lopes, mas parece plausvel que fosse este o objetivo de D. Joo de Castela. A el-rei pesava-lhe despegar-se dos arredores de Lisboa e no faltava j da alta nobreza quem o instasse para levantar o cerco. O prprio prncipe Carlos de Navarra lho aconselhava insistentemente. Compreende-se que o bom xito do feito o apresamento das gals levando o esmorecimento aos sitiados, daria ao rei um argumento triunfal contra os pedidos daqueles que pediam o levantamento do cerco. E, provavelmente, lhe haveria de ter parecido cometimento fcil e de segura realizao, vista a grande superioridade naval da sua armada. E tanto que, num conselho em que o plano se estudou e resolveu, lhe propuseram os alcaides e patres das suas gals, como faanha rpida, a queima das gals de Lisboa e el-rei lhes rejeitou o alvitre, pois queria para aumento do seu poder aqueles navios como coisa sua, adstrita herana da coroa de Portugal. Assentou-se ento neste plano: Que durante a noite de 26, cautelosamente, sem rudo que desse alarme aos sitiados, se fossem metendo a bordo das gals quantos besteiros e homens de armas elas pudessem conter, depois de reduzida a tripulao de galeotes. Que em todos os grandes batis da armada se fizesse o mesmo, para acompanhar as gals e que as naus, apercebidas para combater, dessem apoio frota de ataque. Ao romper da manh, com guas vivas e a mar a encher, as gals e batis meteriam rio acima para a investida. Entretanto, o conde de Mayorga, frente de um forte corpo de tropas, talvez no menos de cinco mil homens, atacaria as portas de Santa Catarina at Cataquefars para dividir os esforos dos sitiados. Para a Ribeira destacaria um troo de homens que ajudassem a arremetida dos outros das gals. Vamos ns agora ver como este plano se executa e a gente de Lisboa se defende.
* * *
Mal recebeu aviso de Afonso Eanes, o Mestre mandou chamar a sua gente de prole e armou-se. Vestiu a cota de armas com a cruz floreteada da Ordem de Avis, os braais, cingiu a espada de combate e a adaga, entregou a um pajem o bacinete, a outro a lana e subiu de afogadilho ao eirado do pao donde a amplido do Tejo se descobria perfeitamente. J ento as gals castelhanas e os grandes batis arrancavam de proa contra a Ribeira. Desceu rapidamente a estreita escada de mrmore grosseiro, em que as sapatas ferradas e as rosetas dos acicates dourados faziam um rudo estridente, e foi montar o negro corcel de batalhador. No esperaria por ningum. Iria com os cavaleiros que j tinham chegado, quase todos eles a p, porque em toda a cidade j no havia seno vinte cavalos de batalha. Entre os poucos cavaleiros de preclara linhagem que ainda no tinham chegado, notou que um deles era Ruy de Vasconcelos. Muito me admira! disse baixo ao Juiz do Povo Quereis ver que adoeceu de amores! acrescentou, pondo o bacinete e tomando a lana das mos do pajem. Senhor, certo no tardar respondeu-lhe Afonso Eanes. Ides vos l ter disse para os cavaleiros a p e, fazendo sinal para o seguirem aos catorze que estavam a cavalo, deitou a galope para a Ribeira na direo das tercenas. J duas gals inimigas tinham aferrado duas das nossas, e dos batis, muito prximos da praia, os besteiros castelhanos crivavam de virotes o arcaboio dos navios portugueses, pondo em risco de vida os poucos galeotes que as guardavam e tornando difcil que algum se lhes metesse dentro para as defender. E a investida com uma gritaria ensurdecedora de fanfarronadas, de insultos, de obscenidades, como se neste desafogo tivessem j o antegozo da vitria! Os galeotes portugueses faziam esforos desesperados para rebater os atacantes; muitos, porm, j feridos, mal podiam aguentar-se dentro dos navios. E do lano da muralha, por cima da Porta do Aougue, dos terraos, dos mirantes, dos quintais altos da pinha de casaria, quase empoleirada no monte do Castelo, a populaa bramia cleras inteis. E a gente aqui presa! gritava a tia Lourena, do alto do muro, agitando a chua no ar Pois vai mesmo daqui pedrada sobre esses gadelhudos. V, mulheres, para cima deles, mas tende cuidado no vades ferir os nossos pobres galeotes. Mo firme e certeira e gana contra os das gadelhas! E foi ela quem atirou a primeira pedra com tal pulso e destra pontaria, que deitou a terra um besteiro inimigo, que mais se aproximada do muro a fazer- lhe gestos de provocao insultuosa. Mas o Mestre chegou, mandou abrir a porta que dava para a tercena e atrs dele, em brados de aclamao, correram para a Ribeira, com a ala ia tia Lourena, cerca de trezentos homens armados e uma centria de besteiros com o anadel-mor. Era tempo. Com os seus virotes e dardos esbraseados, a gente dos batis varejava a curta distncia os defensores dos navios encalhados, e j a gal castelhana de Vasco Martins de Meira tinha arpoado e segura a gal de que era patro Ferno Nunes Homem, comendador da Ordem de Avis. Tambm era esta a nica em maior perigo de se perder, apesar do heroico esforo com que a sua gente a defendia; e, excedendo a todos, o Castelhano Alfonso Gutierres de Padilla, que havia tempo se passara, tornando-se parcial do Mestre de Avis. Outra que estava sendo rudemente investida por duas gals castelhanas a de Afonso Furtado essa com bom xito se defendia, porque, estando varada de travs com uma das bordadas para o rio, mandara o patro que fora de peso, com toda a sua gente sobre a outra borda, a fizessem adornar para o lado da cidade e deste modo lhes servia de trincheira o costado volvido para o Tejo e de parapeito a respetiva amurada. O Meira da gal castelhana, com o rosto golpeado por quatro virotes, tinha- se de p j sobreposse, mas ainda lutava, e foi ao enristar a lana para um supremo esforo que um dardo esbraseado lhe entrou por debaixo do brao. Aquele era de morte. O Meira levantou os braos numa agonia que o desfigurara e tombou da proa da gal sobre a areia hmida, embebendo-se nela com a sua pesada armadura, como se no derradeiro alento quisesse ser o seu prprio coveiro. O Mestre andava pela Ribeira dirigindo a defesa contra a gente dos batis, que a espaos fazia tentativas de desembarque. E com os fidalgos e a peonagem que D. Joo opunha aos batis, l estava a tia Lourena com as suas mulheres de armas. Machados de arrombar! gritou um galeote ferido Ou dali nos levam aquela nossa gal. Machados de arrombar! bradaram homens e mulheres para os que estavam nas seteiras da muralha Baldeai-vos c para baixo. Para fazer em lenha aquela gal maldita, que vai arrastar consigo a outra, a nossa! Mas enquanto os machados no chegam se perde a gal! bramiu Joo Rodrigues de S, o famoso S das gals. E saindo da sua, que ainda no fora atacada, deitou a correr para a que estava j com os Castelhanos dentro, numa batalha doida de alucinados. Apenas quis trazer consigo um homem. J pela proa da gal, segurou nos dentes a haste da lana e marinhou como se fosse um embarcadio. E assim que firmou o p na tolda, investiu de lana em riste contra a chusma dos inimigos, num arranque leonino. Houve um rebolio louco a bordo. De cima do muro a populaa via-o bem e aclamava-o febrilmente. Os Castelhanos disparavam-lhe insultos e dardos, mas a lana do S das gals levava-os diante de si, num mpeto de assombro, como se da ascuma de ao fuzilassem relmpagos fulminadores. Era a empreitada pica de um batalhador de lenda! Assegurada a defesa contra a gente dos batis, o Mestre, a conter a algazarra dos mais expansivos e as imprudncias dos mais destemidos, metera o cavalo na gua at aos peitos, muito na dianteira de todos, gravemente exposto. Alguns de Castela teriam percebido quem ele era, outros o adivinharam. A grande cruz de Avis da sua cota de armas era quase uma denncia, e o caso foi que para ele convergiram os tiros dos besteiros castelhanos. Subitamente, a tia Lourena gritou para os que estavam empenhados na luta contra as tripulaes dos batis: O Mestre! A sumir-se na gua! Afoga-se! clamou outra. Talvez o ferissem de morte aqueles malditos! lembrou a velha regateira, metendo-se gua. Houve uns momentos de desnimo e muitos ficaram num estonteamento de mgoa. Por instantes se lhe no descobriu ao de cima daquelas guas, em que o sol se espelhava, seno a cimeira do bacinete e as plumas adejando como as asas de alguma ave marinha. Mas de repente, num impulso que s mulheres se afigurou miraculoso, o bacinete do Mestre emergiu de chofre e todos viram o rosto de D. Joo e em todos se fixou o seu olhar dominador. No o mataram! disseram as mulheres num grito de jbilo. Vamos todos para ele! exclamou a tia Lourena. Tende-vos! mandou D. Joo, com admirvel serenidade de nimo, a gua a dar-lhe pelo pescoo. Sob uma impresso de ansiedade e de pasmo, viram ento que o Mestre vinha avanando para a praia. Acorreram para ele alguns homens de armas. Senhor, estais ferido? No. Olhai os batis de Castela que com mais audcia vm para aqui! avisou. Viva o Mestre, o Defensor da nossa terra! exclamou a arraia-mida. No desperdiceis tempo em vozearias recomendou, j todo a descoberto, apoiado rija haste da sua lana. De uns poucos de batis que abicavam praia revoaram brados de afrontoso desafio e com estridor formidvel o famoso grito de guerra da gente inimiga: Santiago y Castilla! Gentes, v! O nosso brado e apertai com eles! No os deixeis pr p em terra gritou o Mestre na sua voz de comando, j na praia, a cota de armas a escorrer gua, os coxotes e os sapatos de ferro sujos de limos. S. Jorge e Portugal! clamaram centenas de vozes. Uma chuva de virotes e uma saraivada de pedras caram sobre as tripulaes dos batis que mais se tinham aproximado da praia. V, mulheres, mais pedras sobre eles! incitava a regateira velha. E a cada grito de Santiago y Castilla opunha a tia Lourena este seu repto de patriota: E mais o demo que vos leve, canzoada gadelhuda! Mulheres, olhai que de Castela nem os santos! A! excitava o Mestre Mais com eles, que j lhes tendes ferido muitos. Efetivamente as tripulaes dos batis castelhanos tinham tido j avultadas perdas, pois que os besteiros e a gente da plebe, empoleirados nas gals encalhadas e um tanto no resguardo dos castelos de popa como por detrs de uma trincheira, muito ao seu salvo visavam os atacantes por forma que raras pedras e virotes se perdiam. Com tal energia se manteve a defesa, que os batis se fizeram ao largo; os remadores num esforo desesperado, as guarnies a ulularem bravatas e ameaas pueris. Pois sim comentava a regateira ide alanzoando, mas o caso que vos pondes ao largo.
Tinham ido buscar uma mula para o Mestre montar e, enquanto esperava por ela, singelamente contou a um dos seus fidalgos como lhe sucedera afundar- se. Um viroto lhe ferira o cavalo; endoidecido pela dor, o animal nadara de repente, sem obedecer ao freio, mas a ferida era de morte e em pouco o sentira estrebuchar entre os joelhos. Segurara contra si a haste da lana e logo se destribou, auxiliando-se com as mos nos joelhos para se aliviar do peso das grevas. Depois, firmando o couto da lana numa cascalheira do fundo, que afortunadamente encontrara, se pudera erguer ao lume de gua e assim fora tomando p. A batalha continuava com acesa fria do outro lado da praia, no s contra a gal portuguesa que estava de travs, tombada sobre a areia, mas, principalmente, dentro da outra que fora aferrada pela do Meira e a sua gente abordara e tinha quase tomada quando Rodrigues de S l entrou. O Mestre montou na muar que um cavalario lhe trouxera da cidade numa arrancada. Daquele lado o combate fora favorvel sua gente; mas era ali ainda o posto de maior perigo por ser o local da praia aonde mais facilmente os batis podiam aproar. Um desembarque dos quatrocentos ou quinhentos homens de luta que traziam a bordo bem podia valer o bom xito do cometimento inimigo e a perda inevitvel das gals de Portugal. Ia o Mestre para acudir ao navio em perigo com um reforo de besteiros, quando chegou esbaforido um pajem de armas, que vinha trazer-lhe informaes. De onde vindes e que notcias trazeis? perguntou-lhe D. Joo, numa impacincia de receios. Da gal que os Castelhanos tinham tomado. E da? Dizei depressa! De l expulsou os Castelhanos aquele vosso cavaleiro, a quem o povo chama o S das Gals. Correndo sobre eles, entrou j na outra gal de Castela. Pois grande nova me trazeis! disse-lhe, num alvoroo de jbilo. Senhor Mestre, mas vem com a boa nova outra que de mgoa. Dizei. Est-se a esvair em sangue Joo Rodrigues de S, tantos so os ferimentos que lhe tm feito naquela sua arremetida! disse com pesar. Pois vamos l ajud-lo ou acabar a sua tarefa. Ia meter a mula a trote, quando dos lados da cidade veio para ele um cavaleiro desfilada. Mestre e Infante disse o cavaleiro, sofreando o cavalo de repente. Vs, Ruy de Vasconcelos! Voltou-se para o anadel-mor dos besteiros e disse-lhe rapidamente que fosse com o seu troo de gente a socorrer o S das Gals. L seria com ele em breve. E logo, a meia voz, para o Vasconcelos: Tanto haveis tardado, que cheguei a supor-vos enfermo! Mestre, vinha a buscar-vos quando, em grande gritaria, uma multido, correndo, avisava que o povo de Castela estavam atacando as portas de Santa Catarina e que outra hoste mais numerosa se acercava da torre de lvaro Pais. Soube que para l tinham ido os meus companheiros do esquadro dos Namorados e para l corri, crendo que o perigo seria ali maior. E era? Mestre, no. Breve foi a escaramua com os de Castela e h pouco desceram como se o seu propsito fosse atacar as estacarias da Ribeira. Aqui venho trazer-vos aviso, e dali vm chegando os meus companheiros. Est bem respondeu-lhe o Mestre, sorrindo Razo de honra havia de ser a vossa para no estardes aqui de princpio. E alongou o olhar para onde Ruy lhe indicara. Vinham j para aqum das portas, em filas cerradas, a p, os cavaleiros do esquadro dos Namorados. Na frente destacava-se bem a figura do Magrio com o pendo verde, a haste aprumada, a esvoaar alto na aragem da manh. Pois agora ide para os vossos companheiros e com eles acorrei estacaria. Mestre, para l vamos e, pela minha f, que por ali no ho de entrar os de Castela enquanto Deus nos der vida para combater. Deitou o cavalo a trote para a frente dos Namorados. Percebia-se o rudo da investida nas estacarias da Ribeira; revoavam alto,, de parte a parte, os reptos de afronta e o brado pelos santos padroeiros de Portugal e de Castela. O Mestre fizera recomendaes a um dos seus capites para que se no desguarnecesse e desacautelasse aquela orla da praia e meteu a trote para o lado da gal castelhana do Meira. Na arremetida de aferrar a nossa de Ferno Homem, o navio inimigo chegara a roar a proa pela areia e outra se prendera para a levar consigo, desencalhando-se fora de remos. Mas dera-se o feito em revs. Da gal aferrada varrera Joo de S a chusma que a tivera pela sua presa e agora a levava de vencida, j dentro do prprio navio inimigo e com meia dzia de homens atrs de si, como se fosse um batalhador romanesco. A escorrer sangue, numa palidez cadavrica, sem bacinete, o rosto arregoado, o S chegara quase ao castelo da popa da gal inimiga, abrindo uma lgubre clareira na tripulao, que o terror fora amontoando r. A ello! gritou um Castelhano, tomando alento. Santiago y Castilla! bradaram setenta vozes. S. Jorge e Portugal! replicou o heri num grito enrouquecido. Mas tinham chegado do outro extremo da praia os besteiros do anadel-mor, e trinta virotes que foram cravar-se de revs naquela pinha de Castelhanos. Vibraram gritos de dor e imprecaes de desespero. Alguns se atiraram gua numa alucinao de pavor por aquele ataque, absolutamente inesperado. Joo de S! chamou o Mestre, de p nos estribos, a uma dezena de passos da gal Cavaleiro de gloriosa alma, sois o nosso orgulho! Iluminou-se de sbito o olhar amortecido do heri. Tinha-lhe conhecido a voz. Mestre! disse num supremo esforo A minha vida pela nossa terra. Saram-lhe sumidas, numa trgica intonao, estas ltimas palavras. Deu uns passos para diante como para uma nova arremetida, mas a vista desvairou-se-lhe, os joelhos dobraram-se-lhe, e o batalhador de lenda caiu exausto, com a mo ainda enclavinhada no punho da espada. Acudiu-lhe o pajem de armas e dos inimigos ningum ousou arremeter para ele, como se um grande terror os houvesse imobilizado. A gal roagava pela praia dentro puxada pela outra a que se aferrara e qual o povolu tinha amarrado cabos e ia arrastando, para que a dos Castelhanos viesse com ela. Homens e mulheres puxavam os cabos com aporfiado esforo. E para mais espavorida surpresa dos Castelhanos, com este arrastar sinistro do navio, trela da outra gal pelo areal dentro, coincidia uma segunda batida dada pelos nossos besteiros. No tiveram nimo para mais. Atiraram-se abaixo pela borda fora como enlouquecidos. Muitos foram feridos na fuga e alguns se afogaram. Revoou pela praia uma atroadora gritaria de triunfo e o mulherio combatente veio de roldo para junto da gal apresada, enorme tumba de muitos mortos. Esta c fica pelas custas! gritava a tia Lourena E hemos de lhe dar varejo, pois que l ter dentro algumas cdeas do almoo desses ladres, que vieram para nos roubar a terra. As outras aplaudiram freneticamente em brados febris. Entretanto, de bordo da gal castelhana vinham trs galeotes e um pajem de armas trazendo nos braos Joo de S. Acudi estacada! veio clamando um esfarrapado, que levara uma lanada no rosto. Correram muitos para l. O Mestre chegou as puas dos acicates aos ilhais da muar e deitou desfilada para a estacaria da Ribeira. Vamos ns l, atrs do Mestre! gritou uma das mulheres combatentes. Esperai l, que, entrementes se reza um credo, para ele iremos disse- lhe a tia Lourena com os seus ares de capitoa. Estava ento a descer da gal tomada o corpo desfalecido de Joo de S, retalhado de golpes, a escorrer sangue. A tia Lourena ajoelhou na areia esbraseada de sol. E todo o mulherio da sua hoste ajoelhou enternecidamente. Destemido cavaleiro de Portugal! invocou a regateira Nossa Senhora vos d vida, homem de prole, que assim honrastes e defendestes a nossa terra! men! entoaram as outras como num cantocho das suas almas tocadas de piedade e de mgoa. Os galeotes passaram com o heri para o levarem ao hospital. A tia Lourena ergueu-se de repente e exclamou: Mulheres! Acorramos estacada, que no ho de faltar l pedras contra os javardos de Castela. Soltaram os brados de guerra como gritos agudos de aves selvticas e partiram de carreira. Entretanto, do rio vinham vozes altas dos Castelhanos, clamando: Ala! Ao largo, que vai minguando a mar!
* * *
As foras do conde de Mayorga tinham descido das portas de Santa Catarina para a Ribeira, depois de umas escaramuas em que os da cidade facilmente os rebateram. O intento era apenas sobressaltar e dividir a gente dos sitiados, evitando que a maioria dos homens de armas deixasse os muros e as portas para ir ajudar os que defendiam as gals. Na estacada, atacando os nossos de revs, que os cinco ou seis mil homens do conde podiam auxiliar com eficcia os esforos dos seus que vinham a bordo da armada para tomar os navios portugueses. E contra este poderoso reforo seria quase certa a derrota do nosso punhado de homens, se os batis e as gals s no houvessem j feito ao largo com os seus dois mil homens de desembarque. Todavia, a batalha estava travada com enfurecido ardor e soberbia do conde repugnava uma retirada logo s primeiras investidas, que os chamorros tinham repelido intrepidamente. Quem sabe at se, alguns dos traidores portugueses que vinham com ele, lhe no teriam lisonjeado a vaidade, lembrando-lhe a empresa de entrar na cidade por aquele lado? O caso era que, nas suas arremetidas, os Castelhanos redobravam de fria medida que o ardor e a intensidade de defensa iam sendo maiores. De parte a parte com maior rancor os improprios e com mais fervoroso entusiasmo a invocao dos santos batalhadores, seus patronos, e da ptria pela qual jogavam a vida. Os jovens cavaleiros do pendo verde faziam prodgios, expondo-se temerariamente. Empoleirado num barroto da estacada, o Magrio agitava a signa dos Namorados, desafiando os de Castela a que lha viessem tomar. Ruy batia-se como se fosse um enlouquecido. Ao lado dele, bacinete sobre os longos cabelos brancos, arns curto sobre um burel de monge, um velho de compridas barbas lutava tambm. Era Mendo Rodrigues. De repente vibraram para trs da estacada uns gritos doloridos de mulher e rumorejaram vozes feminis numa expresso de surpresa. Os combatentes no ouviram e, ainda que ouvissem, no poderiam atend- los, pois que a batalha recrudescia violentamente. O Mestre havia chegado e animava os besteiros e a peonagem de farroupilhas. Maravilhava a energia daqueles homens, que andavam a cair de fome! Num arremesso maior, os Namorados treparam ao troo da estacaria para uma sortida de desvairados. Jovens, menos alardo de valentias! recomendou o Mestre na sua voz dominadora, de p nos estribos. Eles podiam l ouvi-lo? Nem sequer tinham dado pela chegada desse a quem o povo chamava o Messias de Lisboa. Para aqui, Anto Gonalves! bramiu Ruy de Vasconcelos, de olhos fitos num cavaleiro que andava a incitar o esquadro dos mouriscos de Andaluzia a galgarem com os seus ginetes, geis, nervosos, de ardente sangue, por cima daquela estacaria, que no chegava a dar pelos ombros a um homem de me estatura. Para aqui, para mim, ral dos traidores, cobarde ladro de mulheres! gritou-lhe ainda numa voz convulsiva, spera e rouca, suprema expresso do dio inexcedvel que o turbava, desfigurando-o. Um virote contra aquela boca mandou Anto Gonalves aos besteiros. E logo para os mouriscos: V, ginetes de um salto para tomarmos aquilo! Deixa os mouros, poltranaz vilssimo! Vem tu, homem para homem, cachorro que te vendeste ao rei castelhano. Uma chuva de virotes foi bater no bacinete e na cota de armas do infortunado jovem. Nenhum, porm, logrou feri-lo. Jovem, tende-vos! gritou o Mestre. Ruy, que uma loucura! admoestou Mendo Rodrigues, procurando cont-lo. Tio, deixai-me! Est a fugir-me! Mouriscos, vamos! Aquele dom cavaleiro quer morrer por desenganos de amor gritava Anto Gonalves. Numa alucinao de clera, Ruy saltou para fora da estacaria de espada erguida. A mim! Para mim s! gritou-lhe Anto Gonalves, vergonha de poltres! Uma mulher nova, que momentos antes se havia aproximado da estacada, desprendendo-se dos braos da tia Lourena, recurvou as mos brancas, nervosas, no topo agudo de duas estacas de pinho e alteou o corpo como se tambm quisesse saltar. Namorados! gritou o Magrio Pelo mais valente dos nossos! E todos eles saltaram fora da estacada. Loucos! Loucos! rouquejava o Mestre, de rosto avincado. Entretanto, de olhar fito no Gonalves, soltos, revoltos os seus cabelos de madona, o seio a arquejar sob os farrapos de damasco, a mulher juvenil gritava para as outras mulheres que tentavam desvi-la dali: Deixai-me. Aquele! Aquele! E cada vez alteava mais o busto com uma energia nervosa, que lhe dava foras excecionais. A cavalaria dos ginetes da Andaluzia fora de arrancada para o troo dos Namorados, frente dos quais Ruy de Vasconcelos avanava com arrogncia leonina. Esto perdidos aqueles loucos! disse consigo o Mestre de Avis, entre desesperado e pesaroso Besteiros! gritou Sobre aqueles mouriscos os vossos virotes! Mulheres, pedrada contra aqueles chamuscados! gritou a tia Lourena Querida Menina, qual ele, o bilhostre? perguntou desventurada. Aquele! respondeu, apontando-o com a sua mo de fidalga, mimosa, escultural. Uma forte coluna dos Castelhanos corria a reforar os ginetes da Andaluzia. Os Namorados batiam-se como lees, rodeados pelo enorme esquadro inimigo, de turbantes com cimeiras pontiagudas de ferro e albornozes brancos adejando como asas. Requestador infeliz! gritou o Gonalves, metendo o seu morzelo espanhol direito a Ruy de Vasconcelos Madalena ser minha! Primeiro te matarei eu, vilanaz! replicou-lhe, abrindo caminho a golpes de espada. Os mouriscos apertavam com eles numa algazarra de brados, que lembravam uivos de feras. De repente um calhau bateu na boca de Anto Gonalves, que, como quase todos os cavaleiros portugueses, trazia bacinete sem cara, conforme o dizer de Ferno Lopes. E logo um virote ao acaso se lhe foi cravar na face. A dor violentssima entonteceu-o; desequilibrou-se e foi a terra, sem poder falar. Menina, aquele j no torna a morder disse a tia Lourena para Leonor. Rui! No o vejo! Esto de volta dele aqueles lobos tostados a ladrar! respondeu-lhe a tia Lourena. Tinham chegado mais besteiros estacada, iam pelos ares nuvens de virotes; centenas de pedras, arremessadas pelas mulheres, voavam contra os mouriscos. Os Namorados defendiam-se com admirvel intrepidez, mas agora, na desigualdade de um para vinte, eram forados a recuar contra a estacada. Do lado dos Castelhanos uma voz espavorida gritara: As gals vo rio abaixo! E outras vozes de timoratos acrescentaram: Vo fugindo! Estes dizeres vieram repetidos por muitas bocas e foi ento que o conde de Mayorga mandou tocar as trombetas, dando o sinal de retirar. J com enormes perdas, os mouriscos foram sacudidos pela doida suspeita de que estavam cortados, e meteram para a retaguarda numa desfilada fantstica, enovelando consigo uma parte das outras tropas castelhanas.
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Vencemos ns! Vencemos ns! bradavam os da Ribeira. Pela nossa Ptria e pelas nossas damas! clamava o Magrio, agitando o pendo verde dos Namorados, entre os quais havia nove gravemente feridos, trs deles com ferimentos de morte. Namorado vivo disse-lhe sumidamente Ruy de Vasconcelos pela nossa Ptria somente. E de si para si: E foge-me ainda aquele bandalho da minha raa! Mas da estacada as mulheres tinham acudido aflitivamente a algum que a tia Lourena, de joelhos no areal, amparava nos braos. Era Leonor de Gusmo. Um virote dos Castelhanos em retirada viera cravar- se-lhe num ombro. Coitadinha da minha querida Menina! lamentava a regateira com os olhos rasos de lgrimas. No choreis por mim, me Lourena. E logo, sumidamente, com os olhos nela: Bendito sangue, se for... Para ele ter maior d de mim. Valha-me Nossa Senhora! Eu podia l sonhar que a Menina havia de ir de casa, por a abaixo! Tia Lourena avisou uma das mulheres olhai que est a velar-se. Com ela j de caminho para o hospital e eu com ela disse numa grande mortificao Ajudai-me. Mais trs a levantaram nos braos, carinhosamente. O esquadro dos Namorados passava. Ruy de Vasconcelos reparou naquela mulher de formas gentis, que a velha regateira e mais trs mulheres levavam nos braos desmaiada, e reconheceu quem era. Apartou-se dos seus e foi para elas tristemente surpreendido. Em poucas palavras lhe resumiu a tia Lourena o que tinha sucedido. Levai-a para casa de Afonso Eanes, que muito conto com a sua boa vontade em lhe dar amparo e gasalhado. Eu depressa mandarei l o fsico da minha casa ou outro que primeiro tenha a fortuna de encontrar. E foi meter-se nas filas do seu esquadro. Aquela pobre dama, linda e desventurada, que o vilanaz perdeu! pensava em estremees de raiva Mas o amor que eu lhe tive para sempre se apagou. Para sempre! E num confrangimento de alma se lembrou de Madalena, a sua malograda noiva de celestial beleza. Por essa o amor maior da sua vida, o que se no podia apagar, por mais que o corao se lhe espedaasse e a onda vermelha do dio lhe alagasse a vida! Como se fosse uma estrela de suave fulgor no recanto azul de um cu caliginoso, lmpada de ouro de miraculosa luz por cima de um altar profanado, ermo, a desfazer-se em escombros.
* * *
O Infante bastardo, defensor do reino e Messias do povo, falava ao esquadro dos Namorados, que lhe fora prestar homenagem. Palavras speras de reprimenda pela sua bravura indisciplinada, e louvores enternecidos para aqueles nimos juvenis, que eram uma das supremas esperanas da Ptria. Entretanto, o mulherio da hoste da tia Lourena tinha invadido a gal castelhana em busca de despojos com que matasse a fome. Encontraram alguns pes duros e celhas de peixe salgado. Mas outra coisa acharam, que foi de jubilosa surpresa. Em ferros, no fundo do poro, foram dar com alguns portugueses, prisioneiros do combate de Sortelha e entre os papis dos Castelhanos se lhes depararam vrias cartas de Sevilha para alguns dos tripulantes. Leu-as um frade dominicano que entrara com elas. Em Castela contava-se com a tomada de Lisboa como coisa segura e at se faziam encomendas e pedidos aos supostos triunfadores. Um desses pedidos levantou clamores de indignao e protestos frementes. Pediam algumas pessoas de Sevilha que lhes levassem jovens chamorras que eram boas servidoras (*).
[(*) Citao do cronista Ferno Lopes.]
Assim como quem dissesse raparigas da terra dos chamorros para serem l criadas e serviais, como cativas, como escravas brancas de baixo preo. Ora os farfantes! comentava uma das mais loquazes Pois deixai estar, que ns, as chamorras, vos iremos servindo de avena, a sacudir o p aos vossos namorados e aos vossos maridos. At essas delambidas de l queriam servas de Lisboa! Pois l tereis notcia da barreia que ns demos hoje vossa gente. E h de querer Deus que no seja a ltima, pois que tm bom pulso os servidores de c! Riram as outras do gracejo e o frade, j filado a um soberbo naco de presunto andaluz, o melhor trofu dos despojos inimigos, sorria das indignaes daquelas filhas de Eva, que por momentos tinham esquecido a fome para ouvir o que as cartas diziam.
* * *
O Mestre andava a ver os feridos, a dizer palavras consoladoras a uns, a fazer promessas de galardo aos que sabia mais assinalados na luta daquele dia e a tomar providncias para que os socorros cirrgicos se lhes no demorassem. E pela cidade faminta, onde a gua envenenava e as ervas j escasseavam, o sol espargia dadivoso o ouro magnfico da sua luz e revoavam as vibraes triunfais no arranque febril de todos os coraes e no repique louco de todos os sinos.
CAPTULO XIV PLANO FRUSTRADO
Trs dias depois, ao anoitecer, apareceram na torre maior do Castelo de Palmeia uns grandes fogachos, que a princpio amedrontaram a gente supersticiosa da cidade. Do terrao do pao do Limoeiro tambm se viram bem e o Mestre disse logo, com um claro de f a iluminar-lhe o rosto, subitamente prazenteiro: Sinal ser para ns e de boa nova acerca de Nuno lvares, que j com pesar me estava tardando! No se enganou o Mestre. De madrugada, um batel que atravessou o Tejo dos lados de Aldegalega, trouxe a bordo e desembarcou abaixo de Sacavm, um pajem de armas, que Nuno lvares mandara de Palmeia com recado para D. Joo. O jovem paladino abandonara a sua spera campanha do Alentejo, eriada de perigos e dificuldades, para vir de arrancada aproximar-se de Lisboa. Era pequena a hoste com que sara de vora, porm, tal como era, ali estava para ajudar os defensores de Lisboa. Mas antes de intentar a travessia do Tejo, fora das vistas da armada castelhana, iria atacar Almada para limpar de inimigos aquele lado do rio. Isto soube-se logo e a cidade teve to jubiloso alvoroo como se a chegada do ilustre bastardo do Prior do Hospital, frente do seu punhado de homens de armas, valesse a vinda de um poderoso exrcito aliado ou a boa nova de uma grande batalha vencida. Quem primeiro deu a notcia a Ruy de Vasconcelos foi Afonso Eanes, que chegava com ela do pao na ocasio em que o filho de D. Dulce ia a casa dele saber do estado de Leonor. Tenho duas boas notcias para vos dar disse-lhe o tanoeiro. Dizei volveu-lhe o mancebo com aquela profunda tristeza que nunca mais o abandonara, desde que lhe tinham levado Madalena. O fsico-mor veio esta manh ver aquela desventurada dama e achou que o ferimento no tinha gravidade. Ainda bem. E a tia Lourena, que l est sempre ao lado dela, contou-me que a pobrezinha j no tinha os rebates de enlouquecimento que dantes, hora a hora, a desvairavam. Louvores a Deus! Agora a outra boa nova: O senhor Nuno lvares j est em Palmeia e esta manh fez uma arremetida de reconhecimento contra os Castelhanos que senhoreiam Almada. Por informaes recebidas de um Portugus que se arrependeu da sua traio e fugiu dos arraiais de el-rei de Castela ontem de noite, sabe-se que a chegada do senhor Nuno lvares deixou de muito m sombra as pessoas da comitiva real. Conta-se que o prprio monarca dissera aos grandes da sua intimidade: uma lana e uma espada que valem por duas mil. Avaliou-o muito por baixo el-rei de Castela. Ele ver que vale muito mais esse que nos Atoleiros venceu a primeira batalha campal desta guerra. No porque a lana e a espada de Nuno lvares sejam diferentes das outras lanas e das outras espadas, seno porque a alma daquele batalhador no tem outra igual aqui. Por isso estou, bem que no hesite em tambm contar com a vossa. Merc de amigo. minha a tomaram para si o dio e o cime, e estou a ver qu ma perdem! Tal no h de acontecer, senhor Ruy de Vasconcelos. Tenho eu esperana de que ainda voltar para vs, pura como era, essa a quem tanto quereis. E quero ainda, por mal dos meus pecados! Mas no vos empenheis em dar-me iluses que eu nem j seria capaz de sonhar, por muito que me quisesse iludir. Para vingar e para morrer que esta minha vida se destina. Para vingar-me no mesmo lance em que a Ptria se vingar, e para morrer pelo sonho desfeito, se antes no for preciso que morra por esta nossa oprimida terra. Credo! Tal no ser. No vejo outro desfecho, pois que, abaixo da minha devoo de Portugus pela sua bandeira, nenhum outro amor igual posso nem quero. Tudo o tempo h de mudar. H mudanas com que o tempo no pode! Madalena estar em poder do pai, que como estar em poder desse vilanaz de Anto Gonalves, de quem ser esposa, se a esta hora no j sua amante rouquejou, torcendo as mos uma contra a outra violentamente. Esposa talvez, senhor e amigo, pois que outra afronta se oporia ela, bem o creio, ainda que a me e o pai de todo a desamparassem; mas se o , se em to pouco tempo a lograram obrigar a tal sacrifcio, bem possvel ento que no tarde em ser viva. Porqu, dizei?! Porque uma pedra britou a cara a Anto Gonalves. Arremessou-a a tia Lourena e ela prpria o viu cair em terra. No seria coisa para o matar. Mas o Portugus, de quem vos falei e de l veio, nomeou ao Mestre os principais homens que o rei de Castela tinha perdido no combate de sbado, e entre esses tais indicou Anto Gonalves. O qu! Morto da pedrada de uma mulher? Foi j levado para Almada por causa do seu estado grave. O trnsfuga que deu estas informaes conhecia-o bem e ouviu dizer a um dos cirurgies castelhanos que, pelo choque da pedrada e por causa de um virote que lhe atravessou a face e golpeou a lngua, lhe veio cabea uma febre que supunham de morte. Ora, os cirurgies! Tantas vezes se enganam e dizem coisas impossveis, que ningum pode tomar por seguro o que eles a cada passo afianam. Oxal que desta vez tambm falhem! Oxal, dizeis?! Teria imenso pesar e um horroroso desespero se soubesse que uma pedrada e um virote tinham arredado de mim, para sempre, esse verdugo de mulheres. A sua vida a quero eu para lha tirar num desforo de homem fidalgo, de que ele seria incapaz. E logo, como se uma sbita ideia o dominasse, lhe perguntou: Seria possvel que eu falasse a esse traidor arrependido, que tantas informaes trouxe ao Mestre? Nada mais fcil, pois que esse homem o tenho eu minha conta como Juiz do Povo. Assim que foi observado pelo fsico-mor e se reconheceu que no estava empestado, logo o Mestre ordenou que mo entregassem. Aonde lhe poderei ir falar? Na cadeia da cidade onde o mandei o tivessem vigiado. Podia tornar-se a arrepender e fugir para l no intento de referir o que houvesse visto aqui. Dais ento licena que eu v l para lhe fazer umas perguntas? E terei eu a honra de vos acompanhar. Tanto melhor.
* * *
No cubculo do carcereiro, ao nvel do ptio interior da cadeia, Ruy de Vasconcelos interrogava um homem novo com traje de escudeiro serventurio e aspeto de quem no tinha vivido a vida rude e inclemente da plebe. A poucos passos, de p em frente da porta, ficara o Juiz do Povo. reis ento escudeiro desse nobre cavaleiro que se bandeou com os de Castela? Senhor, era e pelo muito que lhe devia me fui tambm com ele para terras de Castela vai em dois anos, afastando-me desta, que era a da minha me, Deus a tenha consigo. Tantas vezes ouvi que Portugal viria a tocar de herana senhora Infanta, rainha de Castela e ao rei seu marido e que tal no contendia com o ser a gente ou deixar de ser Portugus, tanto isto ouvi, que me no deu remorso acompanhar meu amo e senhor, a quem muito devia desde pequenino e quase diria mesmo antes de nascer, pois que a minha me era uma pobre de Cristo, que na casa do fidalgo fora muitas vezes matar a fome. E ento agora vos arrependestes? J o andava h tempo, ds que vi as coisas diferentes do que me tinham dito! E s ontem noite vos decidistes a fugir para c? S ontem de noite, pois que de manh falecera meu amo e senhor. Faleceu de qu? De um golpe de espada que lhe deu certo cavaleiro jovem, na batalha de sbado, e ouvi que isto foi do lado de fora de uma estacada que h na Ribeira. Ruy afogueou-se. Dizei-me agora quais homens de prole desta nossa terra conheceis l no arraial de D. Joo de Castela. Senhor, quase todos os que l esto. Mas a um mais que a todos, pois era o maior amigo do meu amo e senhor. Quem? Um que se chama Gil Vasques de Mendona. Esse?! E no destes f de que algum da sua famlia estivesse l com ele? Senhor, dei, mas s h pouco mais de uma semana que eu l vi a esposa desse fidalgo e a filha, de tal rara beleza que foi maravilha para as damas da senhora Infanta, rainha de Castela, e para os grandes fidalgos que esto com el-rei. Ruy volveu um longo olhar entristecido para o Juiz do Povo. A elas as conhecia eu bem aqui de Lisboa. A dama ficou sendo a estrela mais linda, entre quantas damas da sua corte a rainha portuguesa dos Castelhanos trouxe consigo. E quando foi que primeiramente as vistes? Logo no dia seguinte quele em que o sol se apagou. E logo com as damas da senhora infanta D. Beatriz, rainha de Castela? No, meu senhor. Com as damas da rainha s h quatro dias foi que eu a vi. Quando o pai a pde roubar aqui de Lisboa, por no sei qual caminho encoberto e de segredo, ouvi que ia mais morta do que viva. Junto do pai, entre as damas da rainha, admirada pelos grandes de Castela e de Gasconha dizia-lhe com um grande travo de amargura certo devia de estar leda e prazenteira. Senhor, no. Bem se percebia que estava ali por obedincia. Muito desmaiada, os seus olhos pisados pareciam dizer que tinham chorado muito. Ningum sabia l porqu, mas olhai que tanto se admiravam daquela sua formosura como da sua tamanha tristeza. Eu vi-a bem, meu senhor. Muitos carinhos lhe fazia a senhora Rainha, ainda muito mais nova do que ela, como haveis de saber... Sei rouquejou, como se este monosslabo fosse o desafogo de um soluo. O preso no lhe notou aquela amargurada perturbao e continuou: Pois nem com os afagos da Rainha se lhe mudou a tamanha noite de tristezas que trazia no olhar! verdade que tambm a senhora D. Beatriz a mais entristecida menina que eu tenho visto! Por l se dizia que at a prpria Rainha a pedira ao pai para sua dama. No passaria de boato mas o certo que l a vi nos outros dias, sempre com ela como se muito se entendessem as suas almas, cheias de tristeza. Profundamente impressionado com estas notcias do preso, Ruy ficou por instantes emudecido, de olhar vago, como se fosse atrs de um sonho. De sbito sacudiu os ombros e disse-lhe bruscamente: Anto Gonalves parente muito chegado de D. Madalena. Sabeis? Primos direitos, ouvi eu contar que eram. A filha de Gil Vasques havia de ter sentido grande pesar pelo desastre desse homem. Era natural que tivesse disse numa voz abafada, que parecia tremer. A isso no vos sei eu dar resposta volveu-lhe o preso, pondo no Vasconcelos um olhar de estranheza Sois talvez parente de Anto Gonalves, senhor cavaleiro? No! replicou asperamente Dessa ignomnia me livrou Deus! Alguma vez ouvistes que o pai de D. Madalena estivesse no intento de casar a filha com Anto Gonalves? Senhor, nunca em tal ouvi falar, e s uma vez o vi ao p dela, que nem para ele erguia os olhos. Est bem. Por essas respostas vos darei todo o amparo que for possvel. Favor pelo qual muito vos ficarei agradecido. Pero Domingues, aqui tendes pelas vossas informaes disse dando- lhe umas moedas de prata. Senhor cavaleiro, aqui vos recebo o vosso dinheiro, pois que s comigo trouxe algumas moedas castelhanas, que ningum me aceitaria c em paga de uma sede de gua que fosse. No que vs quiserdes me podeis mandar como a criado vosso. Talvez um dia seja. Resgatai lealmente a traio que fizestes a esta nossa terra. Senhor, por acompanhar o amo a quem tanto devia foi que eu fui para Castela, como j vos disse, e no sabia ento as voltas que as coisas tinham de dar! Meu amo dizia que era pela senhora infanta de Portugal, rainha herdeira da coroa do seu pai, e contra os parciais de D. Leonor Teles. Eu sabia l, meu senhor, de que lado estavam aqueles que maior mal podiam fazer nossa terra?! Os que foram para Castela e com o povo do rei castelhano invadiram Portugal, esses foram os que maior mal lhe fizeram, como os filhos malditos, aparceirados com bandoleiros para matarem sua prpria me a Ptria. Senhor, eu no passava de um escudeiro sem nobreza e nunca peguei numa espada ou numa lana contra a nossa gente! alegou, comovido. Pois pela vossa terra o podeis e deveis fazer, agora que ela precisa de todos os seus neste perigo de morte em que est. Senhor, homem de armas serei quando quiserem que o seja. Pela alma da minha me vos juro. Eu tomarei para mim o encargo de vos tornar fcil o cumprimento dessa jura. Aqui viro buscar-vos, dentro de poucos dias. Fez sinal a Afonso Eanes para mandar chamar o carcereiro. Minutos depois saa da cadeia com o tanoeiro. Vinha menos acabrunhado. Dir-se-ia que um consolo ntimo lhe estava rarefazendo no rosto as enormes sombras de tristeza que lho traziam desfigurado; assim como, em certas noites de Inverno, as nuvens de imenso negrume um pouco se rarefazem, sob a luz branca e fria do luar, que , todavia, a mais acariciadora luz dos sonhos.
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Vede agora, senhor Ruy de Vasconcelos, como eu estava adivinhando a verdade! ia-lhe dizendo pelo caminho mestre Afonso Eanes. Uma parte da verdade, que me foi alvio consolador. Sinceramente vos confesso. J podeis tomar para vs o mote completo do pendo verde dos Namorados:
Pela vossa terra e pela vossa dama
Madalena est em poder do pai e nos arraiais castelhanos. Em tal pesar que a todos d na vista. Tristeza por vs, mortificada porque vos tem amor. Logo se entende. O pai pode obrig-la a casar com o vilanaz do sobrinho. Isso dizeis, porque j vos esqueceu a informao de Pero Domingues. Anto Gonalves estava desenganado, e morrer, se no morreu j. s vezes parece que o diabo se compraz em fazer milagres ao seu modo, salvando essa ral de homens como aquele! E agora at eu desejo ardentemente esse milagre do diabo para ter depois o prazer inexcedvel de o desafiar, sem que ele se possa afastar da minha lana ou do gume da minha espada. Mas dado que o infame falea, no faltaro fidalgos de Castela que fiquem a cobi-la para esposa. A peste anda com eles; no tero nimo para tratar noivados. A peste que ma pode matar tambm! Se est com a Rainha, se sua dama, como Pero Domingues deu a entender, ento andar mais resguardada da pestilncia que os fidalgos das hostes reais. E se a levarem para Castela, talvez Deus permita que possais ir busc-la, dado que a nossa gente haja de l entrar. Estais sonhando acordado, mestre Afonso Eanes! No era coisa de milagre que os nossos no tenham j feito, desde os tempos do senhor rei D. Afonso Henriques. Bem sei, mas a poucas lguas para alm da raia. E agora porque milagre, com um punhado de homens de armas para ir sobre essa grande hoste que tem o rei invasor, levando-a de batida at ao corao de Castela?! Eu iria, fosse como fosse, outros iriam tambm; mas o mais seguro ser ir busc-la ao arraial do rei castelhano. Isso agora que eu julgo pior sonho, e perdoai a ousadia de vos dizer! Veremos, mestre Afonso Eanes. Talvez encontre quem no ponha dvida em seguir-me neste sonho. Que pode apressar a perda da cidade, senhor Ruy de Vasconcelos. E agora, meu senhor e amigo, perder Lisboa seria perder Portugal, sem nenhum remdio. Nenhum! Quarenta ou cinquenta homens de bom nimo para morrer, bastariam pela calada da noite. E se l ficassem, no era por eles faltarem que Lisboa se perdia. Se fossem de bom nimo, ento muito grande e grave seria a sua falta. Aqui teremos em pouco os homens de armas de Nuno lvares, e ele valendo por muitos. Mas veremos, e deixai-me sonhar. At de tarde ou at amanh, se os Castelhanos no quiserem que nos juntemos antes. Ides j para vossa casa? No; vou daqui a casa do Magrio saber notcias dos meus companheiros que ficaram feridos naquele rude combate de sbado. O tanoeiro afastou-se dele, dizendo consigo: Vai com o seu louco intento para o outro, um temerrio, e sero capazes de alguma grande loucura os dois e todas aquelas cabecinhas de vento que andam a idear glrias e amores. Ser dever de lealdade e ao benfazeja para eles prprios ir pr o Mestre de sobreaviso. Ele saber como h de tomar as suas precaues, sem dar a perceber que foi prevenido. E tomou apressadamente para o pao do Limoeiro.
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O Magrio estava em casa. Ruy contou-lhe abertamente as informaes que tinha colhido a respeito de Madalena. Pois iremos l tir-la numa arrancada, em qualquer das noites que indicardes disse-lhe com a mais admirvel singeleza deste Mundo. Alma romanesca de cavaleiro andante, naquela poca em que a lenda cavaleirosa se apagava nos prprios pases onde fora criada com mais enlouquecido amor, como na Alemanha, na Inglaterra e na Frana, aquele feio paladino, um gasco pela palavra e um espartano pela intrepidez, morria por qualquer arrojo aventuroso, sem lhe importar muito em que trgica insensatez podia desfechar. Oh! Que seria para mim a suprema ventura! acudiu Ruy calorosamente, tomando-lhe as mos e abraando-o num mpeto de jbilo Ainda que eu l ficasse, morrendo por ela! E eu convosco. Eu, primeiro que ningum, nem aceito o vosso generoso auxlio, sem a condio de ser para mim o cometimento de maior risco e para vs somente o de prestardes apoio. Sim, isso depois se veria na balbrdia da batalha disse-lhe, sorrindo. Que grande e destemido homem sois. E feio, louvores a Deus, pois que assim me dado lutar pelas damas dos meus amigos, mngua de alguma que aos seus encantos lograsse acorrentar-me o nimo. Mas deixemos de gracejos e apreciemos o cometimento. Vossa dama est ento com a Rainha? Assim mo deu a entender o preso. Ouvi que a Rainha e as suas damas tinham tomado pousada no convento das monjas de Santos. Assim o disseram os que de l tm fugido. Mas eu irei sab-lo do preso que me informou. O tal Pero Domingues de quem me falastes. pena que de algum modo se no possa prevenir vossa dama. Talvez possa. Ento bastar falar a uns tantos dos nossos de mais desamor pele. O pior ser no termos por onde nos deixem sair de noite! Temos, sim. Um dos nossos tem sua guarda o postigo da torre de lvaro Pais. No to estreito que no deixe passar um homem a cavalo e por onde um passar facilmente podero segui-lo vinte ou trinta, e depois o Mestre que nos perdoe e a Nao que conte connosco para outros feitos, se a Santo Antnio da S aprouver que voltemos cidade. E encontraremos companheiros nossos que nos queiram ajudar? Todos os do esquadro dos Namorados, iria jur-lo. E quem lhes h de pedir esse sacrifcio, que pode ser de morte? Eu, que fui o da lembrana. Mas nem ser preciso pedir-lho. Bastar que eu lhes d conta do nosso intento para que muitos deles se disponham a seguir-nos. E quando tencionais falar-lhes em tal? Dentro em pouco ser, pois estamos aprazados para aqui nos juntarmos e j no podem tardar. Esperarei ento. Viro muitos? Vinte e trs dos sessenta e quatro que j somos. Ainda poucos! No para essa empresa de amor, para essa os vinte e trs chegam, mas para os grandes cometimentos em prole da nossa terra. O meu desejo seria que tantos fssemos, que chegssemos para formar ala numa qualquer batalha em que a sorte de Portugal se houvesse de decidir. L hemos de chegar, meu querido Ruy. Sessenta e quatro s em Lisboa. Na hoste de Nuno lvares alguns jovens ho de vir que desejem ser dos Namorados pelo corao e pelo esforo. Do Porto e de todo o Norte conto eu com algumas dezenas deles e de toda a Estremadura, do Alentejo e Algarve muitos querero ser dos nossos. Assim Lisboa veja pelas costas os sitiadores, assim a gente os escorrace daqui e, por Deus, que em pouco chegaremos a ser alguns centos. Jovens namorados, muitos h de ter e tem a nossa terra, e em eles sendo de sangue limpo e de nimo destemido, pouco importar que no venham de godos ilustres ou no tenham braso de grande e remota nobreza. Certamente. Aos de menos preclara linhagem no faltar ocasio de engrandecer, servindo e honrando a Ptria, e os que nenhuma tiverem, plebeus que sejam, grande e singular braso podem conquistar agora na santa guerra em que andamos empenhados. Salvar a Nao, no deixar que no-la esmague o estrangeiro de Castela, golpear na batalha essas mos que vieram c para nos rasgar uma bandeira que tem mais de dois sculos, to honrada e santa cruzada ser como as outras contra o mouro e o turco. Para os nossos coraes ainda maior. Sim, maior! apoiou o Magrio calorosamente.
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Um quarto de hora depois entravam os vinte e trs que tinham combinado reunir-se em casa do Magrio. Encheram-lha. Cautelosamente, o dono da casa foi correr o ferrolho da pesada porta da sala. Juntavam-se ali queles rapazes para discutir mincias da sua agremiao e acordar no tocante ao ingresso de alguns mancebos de honrada origem; porm sem nenhuns pergaminhos nobilirquicos. Naquele extraordinrio ciclo de uma democracia que o sentimento da Ptria afervorava, at por aquele modo se ia democratizando essa pequena ordem de cavalaria dos Namorados, qual nenhum monarca organizara e nenhum pontfice dera consagrao. Aquela tinha votos de amor, ao passo que as outras impunham votos de castidade aos seus freires. J que a traio Ptria tanto havia rareado as fileiras da velha nobreza com que Portugal poderia contar, outra nova se havia de ir criando ao servio da Nao ameaada de morte, naquela excecional conjuntura da vida portuguesa. Todas aquelas cabeas devaneadoras e todas aquelas almas de radiosa juventude encheram de vida buliosa e de ideais fulgores a velha e sombria sala do palcio em que o Magrio habitava. Antes de entrarmos no assunto que vos traz aqui disse-lhes o famoso cavaleiro que era seu caudilho tenho uma informao de segredo a confiar-vos. Podeis dizer acudiu logo um com alvoroo, de curiosidade. Certo prometeis no a divulgar, pois que, do segredo com que a guardares depender o bom ou mau xito do empreendimento de que vou falar-vos. Ainda mais impressionadora curiosidade em todos eles por aquelas palavras. Pelos meus votos de Namorado e pela minha honra de cavaleiro, vos prometo disse solenemente o atltico fidalgo de Tavira, Vasco Eanes da Costa. E eu como vs acudiu o trasmontano Pero de Magalhes. E ns todos! disseram os mais prximos do Magrio. Todos! prometeram os outros. Pois bem. Sabei que Ruy de Vasconcelos teve informao de que a sua dama, levada pelo traidor do pai para o arraial de el-rei de Castela, est no convento das monjas de Santos com a senhora infanta D. Beatriz, esposa do rei nosso inimigo. Sabe-se que fora para ali a levaram e l vive oprimida, bem que muito amorvel acolhimento lhe tenha dado essa excelsa dama, que de Portugal pelo sangue e de Castela pela sua coroa de rainha. Ruy de Vasconcelos est no propsito de ir busc-la de surpresa, e eu na deciso de ir com ele, levando os homens de guerra que tenho ao meu servio. E eu convosco disse Vasco Eanes, calorosamente. E todos eles, a um por um, afirmaram a mesma solidariedade de resoluo. O Magrio ps em Ruy de Vasconcelos um olhar jubiloso por aquela confirmao das suas previses. Muito vos agradeo, destemidos cavaleiros e os meus honrados irmos de armas disse-lhes o filho de D. Dulce, comovidamente Comigo podeis contar para tudo quanto eu for capaz em servio vosso. Nada haveis porque agradecer-nos objetou Vasco Eanes Temos de nos ajudar uns aos outros, e para alm do mais, a essa dama ns prprios aclamamos rainha das belas, rainha nossa de namorados, e as bordaduras do nosso pendo de batalha pelas suas mos gentis foram feitas. Iremos resgat-la desse dourado cativeiro como vassalos e admiradores seus, ajudando um dos mais esforados e ilustres dos nossos companheiros. No h porque hesitar e nenhum de ns certamente hesita. Nenhum! Nenhum! clamaram todos numa vibrao entusistica. E nenhuma daquelas cabeas sonhadoras podia pensar na grandeza temerria e certamente trgica daquela enorme loucura! O Mestre t-los-ia mandado prender ali mesmo, se pudesse ouvir os desvarios daquela juventude tresvariada pela febre romanesca da cavalaria aventurosa, precisamente quando em outros pases essa louca excitao medieva ia j a declinar. Mas nenhum deles um momento sequer refletiu nos desmesurados perigos do cometimento e logo passaram a combinar mincias para a execuo do plano. Um dos mais considerados prometia entregar as chaves do postigo da torre de lvaro Pais e comprar as sentinelas, para no darem alarme nem conta do feito s rondas que passassem. Ia tudo s mil maravilhas e logo instaram os mais impacientes para que naquela mesma noite, pelo quarto de modorra, fosse para o convento de Santos com os necessrios rodeios, pelas veredas dos montes, de modo que mais facilmente se esquivassem aos vigias do exrcito inimigo. O caso era cair de surpresa sobre a guarda do convento, espalhar o terror na gente estremunhada do arraial e persuadi-la de que era uma investida de toda a gente de armas da cidade. Na confuso e no estonteamento da surpresa, enquanto vinte com os seus escudeiros e pajens arremetessem s lanadas e espada contra os que mais nimo houvessem recobrado, Ruy, o Magrio e Vasco Eanes entrariam no convento, arrancariam de l Madalena e com ela deitariam desfilada para a cidade, avisando os mantenedores para retirarem pelas quebradas e caminhos mais escuros. Se fosse preciso, se pelo escuro da noite os cavaleiros de Castela ousassem persegui-los, ao postigo o defenderiam eles tenazmente at que a cidade despertasse ao alarme da luta. Estava tudo disposto e assente. Para aquelas cabeas juvenis nenhum plano mais seguro e de melhor xito! Trocavam impresses num alvoroo jubiloso, fantasiavam faanhas, ideavam glrias e alguns at lembravam a possibilidade de trazer tambm a rainha portuguesa, quando um bater pressuroso porta da sala os despertou daqueles devaneios. Quem bate a?! perguntou o Magrio torvamente. Agora chegou e vos quer falar sua senhoria o senhor Mestre e Defensor do Reino! responderam numa voz cheia de perturbao. Entreolharam-se surpreendidos e um pouco empalideceram de surpresa aqueles galos loucos, que tinham acabado de resolver, como a coisa mais fcil deste Mundo, o plano de maior audcia que ainda estouvados briges tinham podido conceber. O Mestre aqui!: disse o Magrio, indo para a porta. Puxou de repente o ferrolho, e D. Joo assomou logo de sorriso nos lbios. Mestre e senhor, esta vossa casa vindes honrar! disse lvaro Coutinho, curvando-se. Aqui venho para vos dar uma nova e para vos confiar um encargo de honra. Merc, mandai! O Mestre veio at meio da sala, pondo em todos um olhar perscrutador. Com ele vinham apenas o arcebispo de Braga, o batalhador que j conhecemos, o doutor Joo das Regras, o anadel-mor dos besteiros e dois pajens. Coado pelos vitrais de uma alta janela, o sol iluminava de vivas cores a figura austera do Mestre. Todos, a um por um, vieram saud-lo e para todos teve afetuosas palavras de apreo. Convosco que eu no contava aqui! disse D. Joo para Ruy de Vasconcelos Mas ainda bem que estais, pois que ao meu intento sois tambm preciso pelo nimo sisudo e pelo esforo inexcedido. Senhor, grande e generosa so as vossas palavras. Tinha perguntado pelos meus cavaleiros enamorados, pois que nenhum hoje me aparecera, e ningum a princpio me soube dar notcias deles! Afinal um dos meus pajens me foi levar a boa nova de que um grande nmero viera para vossa casa, lvaro Coutinho. O Mestre punha nestas palavras uma leve ironia de gracejo, que os Namorados estavam sentindo com perturbada surpresa. No alcanavam perceber-lhe o intento. Tinha de sair para estes lados e logo me resolvi a entrar aqui para que, sem delongas, eu prprio vos desse conhecimento do encargo que vou confiar-vos. Embora os meus deveres de chefe e os perigos em que est a causa que defendemos, me deem taciturno aspeto de homem idoso, homem novo sou, para que me no praza aparecer entre a juventude, por muito sonhadora que seja como a vossa, leais e destemidos Namorados. E por isso aqui vim, e quase seria capaz de jurar que foi para devaneios de cavalaria aventurosa que viestes aqui juntar-vos. Mestre e senhor volveu-lhe o Magrio, afogueando-se para a conversa e desafogo de gente jovem aqui nos juntmos, por no termos agora cometimento em que tivssemos de entrar, em servio vosso e da nossa terra. Por essa, principalmente, por essa, que do esforo de todos est carecendo, para que as hostes de Castela no logrem torn-la sua. Por esta cidade, em que Portugal se resume agora, por ela, depois de Deus, que todos ns devemos empenhar toda a f da nossa alma e o amor maior dos nossos coraes. No por desvairamentos de temerria cavalaria, seno por defend- la de um jugo estranho, que seria a morte de Portugal e a perptua vergonha do nosso nome. Tambm ns temos um sonho, abenoado sonho, mas esse de todos, velhos e jovens, homens de prole ou esfarrapados da plebe, sonho refletido e justo, que no vem de novelas de cavalaria andante e pode tornar- se realidade pelo supremo esforo da nossa vontade. Vs o sabeis, e vs o tendes no primeiro moto da vossa bandeira de campeadores e no mais santo voto da vossa alma de Portugueses. Salvar a Ptria, tir-la da herana de el-rei de Castela para a erguer maior e mais gloriosamente diante do Mundo. O sonho este. A palavra do Mestre, que a princpio os enchera de acabrunhado espanto, porque parecia a censura benvola de quem tudo adivinhara ou tudo sabia, tal dominadora e calorosa vibrao tinha agora, que lhes mudou o retraimento em comovida exaltao. Mestre e senhor! exclamou Ruy de Vasconcelos Perdoai aos Namorados o seu sonho de outros amores, mas o vosso tambm o deles, o mais santo, o maior, o que est no primeiro dizer do seu pendo de batalhadores, e por ele ho de morrer, se todo o seu esforo no for bastante para anular a herana da rainha de Castela e erguer Portugal at onde vs entenderdes que deve erguer-se. D. Joo comovia-se A alma do infante cavaleiro, juventude sonhadora como a deles, agitava-se jubilosa sob a mscara de disfarce do homem poltico. As palavras daquele jovem de admirvel intrepidez, ardentes e sinceras, a sarem- lhe dos lbios numa golfada convulsiva, tinham um poder de sugesto enternecedora, como hoje se diria. Eu sei, Ruy de Vasconcelos! disse-lhe D. Joo, simulando severidade de nimo. Mestre, e nisto falo eu por todos. Por todos! confirmaram os outros, calorosamente. Isso esperava de vs, e porque em tais sentimentos confiava e sabia quanto valeis, aqui vim para vos dar encargo digno de quem sois. Senhor, o que mandardes. Vou mandar meter ao rio as nossas gals. preciso que subam at Sacavm e ali sustentem a passagem da hoste de Nuno lvares, que vem a trazer-nos o grande auxlio da sua lana vitoriosa e dos seus esforados homens de armas. Para evitar que os navios ligeiros de Castela cheguem at l e com o seu maior poder levem de vencida as nossas gals, importa que a bordo delas estejam homens de excecional valia de nimo, para darem maior alma aos outros. Sois vs os que prefiro para tal defensa. Mestre e senhor, para tudo! acudiu o Magrio. Para tudo! apoiaram os outros num grito de entusiasmo. Mandai, senhor! disse-lhe Ruy de Vasconcelos Ou contra o prprio arraial inimigo, se quereis pr em prova o primeiro moto do nosso pendo. No preciso! volveu-lhes serenamente Nas gals ser de maior servio e de menos louca empresa o vosso corao intrpido. Depois ser o resto, depois. Mandai aviso aos restantes do vosso esquadro que faltam aqui e ide vs j para junto das gals que esta noite, ao encher da mar, iro rio acima. Mestre, dai-nos s o tempo que baste para irmos pr nossas armas de combate. Decerto. Ao pr do sol vos irei ver Ribeira. Como se algum o tivesse prevenido do nosso intento pensava Ruy de Vasconcelos ou ele prprio tudo houvesse escutado. No podiam adivinhar como, por lealdade patritica, o tanoeiro Afonso Eanes havia levado ao Mestre o aviso de segredo a respeito do projeto que julgara surpreender duas horas antes, em conversa com o seu grande e desvairado amigo, Ruy de Vasconcelos. A si prprio o prometera o honrado Juiz do Povo, para evitar uma trgica temeridade, cujas consequncias podiam ser funestssimas para os prprios destinos da Ptria. Ah! disse o Mestre, ao p da porta, como recordando-se Ia j esquecido da nova que vos prometera. Fugindo peste, el-rei de Castela ontem noite se passou para a vila de Almada e para l o acompanhou a senhora Infanta de Portugal, rainha de Castela, com todas as suas damas. Entreolharam-se os Namorados com uma grande expresso de espanto. Ruy baixou o olhar amargurado. Agora cada vez era mais fugidia a esperana de buscar a sua malograda noiva. Parece que a Rainha foi para l enferma e no receio de estar tambm atacada de peste acrescentou o Mestre, observando-lhe a perturbao. Confrangeu-se a alma do infortunado Vasconcelos. Com um sorriso afetuoso, o Defensor do Reino deu-lhes a despedida e saiu. Meu Deus, para derradeira tortura s faltava agora que a morte ma levasse! disse de si para si o Vasconcelos esmorecida mente.
CAPTULO XV A DESPEDIDA
O aviso confidencial que Afonso Eanes levara ao Mestre acerca de qualquer aventura dos Namorados, aviso vago e de simples suspeita por umas palavras de Ruy de Vasconcelos, inspirara a D. Joo aquele ardil bem intencionado. O caso das gals era apenas um pretexto, um estratagema para segurar o esforo temerrio dos jovens aventureiros. Mas no invento do ardil achara o Mestre a noo de um plano a seguir, logo que as gals estivessem suficientemente preparadas para a defesa do rio, acima de Sacavm, e fossem oportunidade apropriada para se efetuar a passagem da hoste de Nuno lvares Pereira. Muito propositadamente, para ir moendo tempo, no desencalhe e nos aprestos das gals se gastaram dois dias. E o esquadro dos Namorados l esteve de noite e de dia acampado na Ribeira como sua guarda. Nem era preciso afinal manter o estratagema por causa dos rapazes. O Mestre soubera mud-los, falando ao seu corao de patriotas e, ainda que os no houvesse chamado razo e ao dever, eles prprios desistiriam do louco intento, mal soubessem, como souberam, da transferncia da Rainha com as suas damas de Santos para Almada. Ainda Joo das Regras manifestou ao Mestre o receio de que os rapazes pudessem idear loucura maior, assim que se rissem a bordo das gals; mas de tal insubmisso e desvario os no sups capaz o grande bastardo de el-rei D. Pedro. Seria transpor as raias da mais doida aventura ir arremeter contra Almada dentro de meia dzia de gals mal guardadas, tendo a certeza de que lhas meteriam a pique as sessenta e duas naus e vinte gals de Castela com os seus quatro mil tripulantes e homens de guerra. Seria a desvairada arremetida de um contra setenta.
* * *
O rei de Castela fez ainda nova tentativa para alcanar do Mestre um armistcio, aveno como lhe chama Ferno Lopes; mas o defensor de Lisboa energicamente lhe rejeitou a proposta. Conta o nosso glorioso cronista que, s perguntas do rei de Castela a respeito da resposta dada pelo chefe dos chamorros, o mensageiro lhe dissera: Dai-o ao demo, senhor, que nunca em ele outra razo pude achar de quantas coisas lhe falei, nem outra resposta que respondesse, salvo no, no, no! E no s o despachou desta forma, mas em conselho com os seus capites de maior representao e com os mecnicos da Casa dos Vinte e Quatro deliberou dispor para mais demorada resistncia todos os meios de defesa que a pobre cidade faminta e j oprimida de sede, ainda lhe poderia dar. Tal no foi preciso, por fortuna dos sitiados. Parece que o bom conselho dos prudentes e o pavor da peste lograram enfim quebrar a soberba teimosia do rei de Castela, e mov-lo a buscar no afastamento de Lisboa a trgua que os chamorros lhe no queriam conceder. Vencia afinal o voto insistente do infante D. Carlos de Navarra, talvez por causa da doena da Rainha, que a 2 de Setembro manifestara sintomas de empestada. Deram os vigias e atalaias das torres por certos movimentos do exrcito sitiante, e logo pela cidade se espalhou com febril alvoroo que dos lados de Santos j os Castelhanos estavam retirando. Os sinos repetiram a nova em repiques festivos, e os homens de armas, o povolu, os esfarrapados e as mulheres correram para as portas das muralhas, numa nsia belicosa de ir saldar as contas do cerco num combate final. O Mestre soube logo daquele alvoroo, e saiu do pao no temor de alguma ida funesta. que podia ser um movimento de concentrao, para alguma investida a qualquer ponto mais fraco da cidade, aquele deslocamento de foras que o povo supunha o comeo de uma marcha de retirada. O Mestre lembrou-se logo dos Namorados e mandou a um dos seus capites que fosse dar-lhes ordem terminante para no abandonarem as gals. A bordo delas deviam de estar precavidos para qualquer investida da armada inimiga. Ia j na rua Nova quando um anadel de besteiros veio de corrida para ele. Mestre e senhor! Que h? Est o povolu todo s portas de Santa Catarina, e quer por fora que o deixem ir para ir contra o arraial dos Castelhanos. No saem, que no quero eu! disse, de rosto avincado, metendo o cavalo a galope para a ladeira que ia dar s portas de Santa Catarina. J ali se ouvia distintamente a vozearia convulsiva da multido. Uma galopada mais e logo esbarrou com as primeiras ondas da populaa. Frades em filas com as mais variadas armas, esfarrapados bramindo impacincias, bandos de mulheres em gritos como uivos.
O Mestre! O Mestre! exclamaram os que primeiro o viram. E todo aquele mar revolto um pouco se acalmou. Que tendes e quereis? perguntou-lhes numa voz dominadora. Senhor Infante e Mestre disse um mesteiral pedimos que nos mandem abrir as portas para irmos dar as nossas despedidas aos casteles. Heis de ir quando eu entender proveitoso que vades respondeu-lhe com firme energia. Mas no bem que eles se vo escapulindo, sem que a cidade se vingue do tanto mal que esses ces lhe tm feito replicou o mesteiral. frente da sua hoste de mulheres, todas elas com arregaadas de pedras ou molhos de lenha debaixo do brao, a tia Lourena interveio respeitosamente acercando-se do Messias de Lisboa. Senhor Infante, senhor Mestre, deixai que o povo saia a vingar as tantas misrias e o tanto mal que tem padecido. E ns, as mulheres, Mestre e senhor, o mar de lgrimas que temos chorado. Pelo voto de todos fui escolhido para vosso Defensor... E nenhum outro queremos! interrompeu a regateira num arrebatamento entusistico. Nenhum outro! clamou a multido. Pois que o sou, o mando meu! disse o Mestre com benevolente energia. Mestre, mandais vs e ns pedimos! instou a regateira. Gentes, o que pedis? Que nos deixeis-ir l matar a fome e mat-los. Se vo retirar ao seu salvo, ho de queimar primeiro a fartura que tm, e ento antes ns lha vamos tomar. E para lhes deitar fogo ao arraial aqui trazemos a lenha. Deita-se fogo a tudo aquilo! clamaram outras. E acaba-se com a peste que eles l tm no choco. Isso desvario! Quem vos afiana que eles vo retirar e que no ardil contra ns isso que vos parece retirada? O Mestre antes queria impor-se-lhes pela persuaso do que por alguma dura energia do seu mando, e neste propsito conciliador os ia ouvindo. Era aquele o seu povo e tinha sido ele a vida, a fora, a esperana da Nao ameaada de morte. Bem sabia que s por um milagre de constncia e de intrepidez, feito por aqueles esfaimados, por aqueles rotos, por aquelas mulheres de to admirvel abnegao, que tocava as raias da heroicidade, Lisboa se pudera manter diante do poder formidvel de Castela. E Lisboa era naquela conjuntura o corao e o crebro de Portugal. Compreendendo e sentindo isto, o Mestre comprazia-se em prestar a grata homenagem da sua benevolncia quela soberania de farroupilhas, multido faminta que no regateava Ptria o seu sangue vermelho de plebeus! Mestre, deixai solicitaram muitos. E logo, muito para a frente, revoaram gritos rouquejantes de ameaa da gente que tumultuava ao p das portas. Gentes, arredai-vos! Aquela porta a vou eu guardar. A plebe abriu-lhe caminho respeitosamente, e numa galopada o Mestre chegou junto das portas, cuja guarda de besteiros e homens de lanas comeava a oprimir-se diante da populaa irrequieta.
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Conta Ferno Lopes que D. Joo ali se manteve por largo tempo, contendo os assomadios. No deixou sair a multido, no consentiu que as portas fossem abertas e por elas se efetuasse um reconhecimento ao arraial inimigo; mas, para dar desafogo s impacincias da multido, permitiu que por outra porta menos exposta aos ataques dos Castelhanos e mais arredada das maiores foras do arraial inimigo as de Santo Anto num extremo quase ermo da cidade, sassem para observar o movimento dos sitiantes uns vinte e tantos cavaleiros que ali tinha montados nuns esfaimados corcis e muares. Foi a turbamulta atrs deles e pelos adarves do muro se aglomerou, seguindo em olhares impacientes aquele punhado de temerrios, que arrancara das estreitas portas de Santo Anto para sondar as intenes dos sitiantes. O Mestre subira quadrela de Santa Catarina. Dali poderia observar um pouco a marcha daqueles cavaleiros de aventura. Ora se lhe escondiam vista nas pregas do terreno acidentado, ora os divisava em galopadas pelas clareiras dos olivedos nas speras encostas. Por instantes os perdeu de vista. Estou a desconfiar que o povo foi adivinho e que os Castelhanos vo realmente em retirada! disse para o anadel-mor. Desceu e foi outra vez montar a cavalo. Ferno Rodrigues disse para o Comendador de Juromenha, que tinha ento o comando da guarda do posto de Santa Catarina por aqui ningum sai, sem que eu esteja convosco. Vou torre de lvaro Pais para ver o que feito dos nossos cavaleiros que saram. Senhor Mestre, podeis ir confiado na minha obedincia. Por aqui ningum sair, pois que estas portas a ningum se ho de abrir enquanto vivo for. Est bem. E deitou numa galopada para o stio onde hoje o Largo de S. Roque. Apeou- se e subiu torre de lvaro Pais. Mas ele a chegar ao p das ameias e a estrondear de l de um outeiro o brado de alarme dos Castelhanos, chamando s armas, gritando o seu prego de guerra. E logo o toque vibrante de muitas trombetas, num tocar mal seguro, truncado, como se estivessem gaguejando a surpresa dos tocadores. Deram por eles! disse o Mestre Mas tantas trombetas como se para ali, por detrs daquele outeiro, estivesse toda a hoste de el-rei de Castela! acrescentou apreensivo. E o que ele no podia saber ento era que para aquele lado se concentrara a maior parte do exrcito sitiante, no seu primeiro movimento de retirada. D. Joo de Castela cedera ao conselho dos prudentes e evidncia do perigo, mas custava-lhe a despegar-se dos arredores de Lisboa, que as suas tropas tinham assolado. Ainda aquela demora ali, no tanto por esperar a chegada da Rainha enferma e o prstito de cadveres dos grandes de Espanha trazidos de Sintra, como por homenagem ao seu orgulho de rei e de Espanhol. No fosse parecer que fugia. Em breve o Mestre viu os seus cavaleiros retirando desfilada, na direo das portas de Santa Catarina, pois que para a de Santo Anto lho impediam mais de mil cavaleiros de Castela, que os vinham perseguindo de lana em riste. Desceu rapidamente ao terreiro da torre, montou de um salto e numa breve desfilada chegou ao p das famosas portas da cidade. A mim, homens de guerra! gritou aos grupos de gente armada que ali estacionava. Juntou-os em frente da porta numa formatura concentrada, que dava o aspeto de uma cunha. Com todos os vossos besteiros para os muros ordenou ao anadel- mor. Vibrava alto do lado de l da muralha a algaraviada dos cavaleiros de Castela e os brados convulsos dos cavaleiros portugueses, pedindo auxlio. Ferno Rodrigues, mandai abrir essas portas e ide com a vossa gente a dar amparo a esses vinte cavaleiros nossos, se tantos so ainda, que os Castelhanos vm perseguindo. Abriram as grandes portas chapeadas de ferro e o Comendador de Juromenha saiu com cerca de trezentos homens. Era tempo. Quase encostados s muralhas, com os cavalos a espumejarem suor, os vinte mal podiam j defender-se das primeiras filas da cavalaria inimiga. Corria pelas muralhas fora, como um rastilho de dios,, gritaria fremente dos homens de armas e da populaa que subira s seteiras. De Santo Anto refluam ondas de povo esbravejando. A hoste de mulheres da tia Lourena correra tambm para os muros com as suas arregaadas de pedras. O Mestre contava com uma investida em forma. Enganava-se. Apenas uns seiscentos cavaleiros se tinham aproximado daquela parte da muralha. A pequena hoste de Ferno Rodrigues avanou intrepidamente e a uns trezentos passos da porta tomou uma formatura semelhante dos quadrados modernos. As primeiras filas puseram joelho em terra com os piques apoiados no solo, tal como tinham feito, cerca de cinco meses antes, na batalha dos Atoleiros, os fidalgos e a peonagem de Nuno lvares. Choviam das muralhas sobre os cavaleiros inimigos os virotes e garruchas dos besteiros e com no menos eficcia as pedras arremessadas pelas mulheres. J com algumas perdas de homens e cavalos, os Castelhanos desistiram da investida e meteram a galope para os lados de Santo Anto. O mulherio fez-lhes dos muros uma assuada estonteadora e a hoste de Ferno Rodrigues recolheu, trazendo de rastos os cavalos dos inimigos que tinham cado feridos ou mortos em volta do seu cerrado. Gentes! gritou a tia Lourena, indicando os nove cavalos que traziam de rastos Temos aougue com carne fresca. Cavalos de Castela ruins ho de ser para o nosso dente, mas quem tem fome cardos come. Olhai, se o Mestre der licena, repartem-se em quinhes, irmmente; mas primeiro para quem tiver criancinhas e doentes. E dali a pouco a multido faminta esquartejava os cavalos, cantando a trova revolucionria:
Esta es Lisboa presada: Miradla e deijadla, Se quizieredes carnero, Qual dieron al Andero.
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Aquela refrega foi a despedida de um cerco em que Lisboa padeceu misrias imensamente maiores que nos outros, muito mais breves, de 1373 e 1382. Aquele durava havia aproximadamente cinco meses, depois que fora completamente fechado, e sete meses desde que tinham comeado as hostilidades dos lados do Lumiar. Em terra, vinte e cinco mil Castelhanos e aventureiros ilustres de Frana (os de Gasconha e do Bearne), no Tejo sessenta e duas naus e vinte gals com outros navios ligeiros e, provavelmente, uns quatro ou cinco mil homens a bordo; mas Lisboa no se rendera, antes brasonou com aquele feito a primeira grande pgina pica da sua histria, para um dia servir de prlogo maior odisseia das civilizaes modernas.
CAPTULO XVI O PRSTITO DE CASTELA
Por alta madrugada, de 3 para 4 daquele trgico ms de Setembro, os vigias das torres deram sinal de alarme e os sinos tocaram a rebate. Ouvia-se um cavo tropel dos lados de Santo Anto como de muitos cavalos e um rudo de carros que fossem rodando lentamente pelos caminhos. E logo, de sbito, se afogueou todo o horizonte e uns grandes rolos de fumo, que a brisa do mar rasgava nos ares, vieram esfrangalhar-se contra os altos adarves das torres. Uma enorme faixa de labaredas ondeou sinistramente por aqueles outeiros e quebradas, a subir de Santos at Santo Anto e de l at em frente do monte da Graa. Sentia-se o estalido das madeiras a desfazerem-se em, carvo, divisavam-se pedaos de pano a voejar chamejantes, milhares de falhas, como enxames de abelhas rubras, morrendo nos ares. Os casteles deitaram fogo aos seus arraiais! bradavam os da torre de lvaro Pais. Ou se lhes pegou por descuido lembrou algum. Qual! Aquilo foi deitado por todo o arraial a um tempo! Temos as fogueiras do S. Joo em Setembro! J que em Junho ningum as pde acender c na cidade. Assim o Mestre nos deixasse ir saltar aquelas fogueiras! Mas o caso que esses ces gadelhudos nos deixam! Para voltarem mais danados ser que eles nos deixam agora! Vinha clareando a manh e as labaredas cada vez mais altas. O Mestre chegou s portas de Santa Catarina e ordenou que Ferno Rodrigues sasse com a sua gente de armas em observao para os lados de Santos. Foi, e com ele saiu uma multido de curiosos. Os palanques e barraces reais da encosta de Santos estavam j reduzidos a brasido. No mosteiro encontraram muitos doentes, uns agonizantes, outros a arrastarem-se pelos corredores e pelas escadas abaixo num pavor louco, numa nsia enorme de fugir. Apesar do dio intenso que tinham a Castela e do seu natural impulso de vindicta, os homens de armas e o populacho obedeceram s intimaes de Ferno Rodrigues para no cevarem nos pobres doentes as frias vingadoras que, sem a prestigiosa autoridade daquele chefe, seriam de horrenda atrocidade, conforme as tradies e os hbitos barbarescos da guerra daqueles tempos. A multido voltou cidade sem nenhuns despojos. Apenas um ou outro trazia como insignificantes relquias alguma lana abandonada ou alguma espada perdida. Na vspera, o Mestre dera ordem para que duas gals subissem o rio e lanassem ferro para cima de Enxobregas. % Protegeriam assim quaisquer batis que viessem da Outra Banda com bandeira portuguesa e vigiariam os movimentos dos sitiantes por aquele lado, dando aviso de qualquer suspeita de concentrao de foras. Dez gals ficariam de atalaia em frente da Ribeira. O Mestre dispunha os navios da sua pequena armada para cobrirem e defenderem a travessia da hoste de Nuno Alvares, se a sua passagem fosse possvel na madrugada do dia seguinte. A bordo das duas gals que tinha subido para cima de Enxobregas estavam nove dos Namorados e, entre eles, Ruy de Vasconcelos, o Magrio e Vasco Eanes. Alta madrugada, tinham sido despertados pelos vigias dos navios. Estavam a arder alguns grupos de barracas do acampamento castelhano, dos lados de S. Vicente e da Penha. No sabiam se era incndio casual ou propositado e, neste caso, com que fim; mas logo os patres das duas gals resolveram que imediatamente largasse para a Ribeira um batel em que um dos fidalgos fosse levar a notcia ao Mestre. Ofereceu-se para ir um dos Namorados, que no ainda nosso conhecido. O mensageiro embarcou e partiu. A madrugada rompia com uma intensa lucidez. Percebia-se j no rio o movimento de algumas foras inimigas, afastando-se do acampamento em chamas. Daquele lado da cidade, o arraial era formado de pequenos ncleos de barracas onde se abrigavam foras diminutas. A maior parte do exrcito sitiante estivera do lado de Santos at Santo Anto, com o seu flanco direito apoiado na esquadra. Seria de convenincia que trs ou quatro homens de nimo fossem a terra para ir observar cautelosamente o que se passa deste lado da cidade props o Magrio ao patro da gal em que estava. E para que seria isso bom? perguntou o patro, homem idoso e de bons servios, que era ali o chefe superior das duas gals. Para se poderem mandar ao Mestre informaes completas. Quem nos pode dizer aqui o que houve no arraial inimigo? Se aquele fogo foi casual ou tem algum fim que desconhecemos? E quem se aventura a esse risco? perguntou o patro. Eu respondeu o proponente. E eu acudiu Ruy de Vasconcelos. E eu tambm disse Vasco Eanes. E outros Namorados se iam oferecer, mas o patro atalhou logo: E mais nenhum, que no quero a responsabilidade de enfraquecer a guarnio desta gal. Vo os trs e no se desacautelem, se no querem ficar por l. Ns chegamos respondeu o Magrio. Estava radiante. O seu sangue de aventureiro puxava-o dali para fora. Nem a proposta tivera outro intento que no fosse procurar alguma aventura em que, por uma hora ao menos, se livrasse daquela vida inativa e montona de bordo, que o estava aborrecendo mortalmente. Meteram-se os trs num batel a dois remos e em dois minutos chegaram praia. Apre! exclamou o Magrio, resfolgando ruidosamente Foi como se sasse de um poo onde me faltava o ar! Agora, meus queridos cavaleiros andantes disse de gracejo, indicando as pernas contar apenas com estes magros corcis, visto que no temos outros. Mas importa ser cauteloso como esculcas, ter olhar astuto de raposa e orelhas finas de lebre. Vamos l. O que eu queria era apanhar-me em terra, que o demo da gal at me cheirava a ratos. Vou eu adiante, que sou prtico destes stios props Ruy de Vasconcelos. Est dito. Por todas as razes, adiante volveu-lhe o Magrio E se for preciso arrancar algum pinheiro que estorve ou mover algum penedo para o pr onde nos apraza, aqui levamos os pulsos de Vasco Eanes. E a rir, regaladamente, como se fosse para o mais suave divertimento do Mundo, acrescentou: Ruy, sabei que j lhe vi deitar a terra um bezerro de trs anos com uma punhada, que valia por trinta das nossas. Atravessaram o areal, meteram por carreiros e azinhagas a pequena distncia dos abarracamentos, j quase em cinzas. E os sinos de S. Vicente a tocarem a rebate! Mas porqu, se j se no topa aqui nem a sombra de um Castelhano! S se a dana l para o outro lado da cidade lembrou Vasco Eanes. Pois se for volveu-lhe o Magrio l iremos para bailar, e o Mestre que nos perdoe e o patro da gal que passe por l muito bem. Olhai que j ides esquecido do vosso propsito da prudncia observou-lhe Vasco Eanes de brincadeira. Prudncia enquanto bastar que espreitemos e ouamos; mas no caso de haver bailado grande, a minha espada no dama que se fique embiocada a ver como as outras danam. Ruy no dizia palavra. A alma voara-lhe para longe dali. Meteram pelo aceirozito de um pinhal alto e denso, empoleirado numa spera encosta. Mais cuidado agora recomendou baixo o Vasconcelos Ao cabo deste pinhal h uns barrocais sobranceiros ao caminho que vai para Torres Vedras. Escutai! avisou o Magrio, moderando o vozeiro e os passos Os sinos agora esto repicando como se fosse em manh de aleluia! Ento qualquer coisa boa aconteceu aos nossos! disse Vasco Eanes. Talvez dessem alguma trepa nos Castelhanos. E se assim , pela minha vida, que nunca perdoarei ao Mestre a lembrana de nos meter naquela capoeira das gals, em guisa de galos velhos que podiam estragar a semeadura do quintal. Schiu! preveniu da frente o Vasconcelos Ouvi passos ali para diante. Vamos indo. Agora um tropel de cavalos! Que relincham, talvez to satisfeitos como eu quando me vi em terra gracejou o Magrio sumidamente. Vou morto por saber o que houve! disse Vasco Eanes. Foram caminhando. J percebiam bem as vozes da gente que ia no caminho e a chiadeira montona dos carros de bois. So de Castelhanos aquelas vozes observou Ruy. Quereis vs ver que vo mudar de ares? comentou o Magrio naquele feitio jocoso que retomou desde que lograra safar-se da gal. Tinham-se ocultado por detrs de uma penedia que limitava o pinhal e ficava a cavaleiro de uma ribanceira sobre a estrada antiga, irregular, de escassa largura, ladeada de silvedos e muros baixos de pedra solta, extremando vinhedos, que os sitiantes j tinham vindimado. Era a estrada para Torres Vedras. Tinha passado para a frente de galopada um grande esquadro dos ginetes mouriscos de Andaluzia. Agora estavam passando lentamente carros de bois e liteiras de varais com os doentes e feridos. As bagagens iam j para diante em longas rcuas de muares. Retiram! segredou o Magrio Ah! Que se aqui estivessem todos os nossos! Seria dos Namorados a vitria final. So os doentes e os feridos disse Vasco Eanes L deitaram dois para trs do silvado; provavelmente morreram naquele carro parado. Safam-se os malditos, e ho de deixar Portugal empestado! observou o Magrio quase em segredo. Olhai agora aquela liteira que parou. Tiram de dentro um homem todo ensanguentado. Um ferido que morreu. L o baldearam para alm daquele muro. Se ali ir Anto Gonalves! pensou Ruy de Vasconcelos numa cara de dio Ainda que fosse emendou mentalmente Para o matar, s quando ele se puder defender. Repugnava-lhe que o seu imenso dio at numa ideia se pudesse confundir com a cobarde cilada de um homicida. Depois comeou a passar um prstito estranho e lgubre como no havia memria de outro semelhante na retirada de um exrcito. Pajens, escudeiros e homens de armas com os brases das cotas de armas velados de preto em sinal de pesado luto, ladeavam, muito cingidos a ela, uma extensa fila de muares, que levavam a dorso caixes morturios, cobertos de pendes com panos fnebres. Eram pendes de damasco e cetim, brasonados a ouro e matiz, signas de guerra dos grandes de Castela e dos fidalgos da Navarra, da Gasconha e do Bearne, que tinham falecido de peste ou de ferimentos em combate. Dos mais soberbos brases e dos mais altivos nomes da velha nobreza das Espanhas. Os pajens levavam brandes acesos. Alguns choravam. Os grandes que morreram! disse o Magrio. Ho de ser esses que salgaram e secaram em Sintra observou Vasco Eanes. Retiram tambm! disse o Vasconcelos, tocado por um sentimento de generosa piedade Vo para os soberbos jazigos das catedrais e dos seus velhos palcios de Castela. Os outros talvez c voltem. Esses nunca mais. o prstito de Castela! E l mais para diante se lhe juntar o outro dos que foram salgados em Alenquer. O dos nossos no seria muito menor, se os tirassem das sepulturas de Lisboa disse gravemente o Magrio. E as lgrimas das mes, das vivas, dos rfos acudiu o Vasconcelos, tristemente chegariam para lhes encherem os covais. A trote moderado passaram, a dois e dois, umas poucas de dezenas de cavaleiros castelhanos. E to esmorecidos vo notou Vasco Eanes que se o Mestre tivesse trezentos cavalos como tem s vinte... Teve emendou o Magrio Agora nem isso. Pois se tivesse os trezentos, mudava-se-lhe a esta gente a retirada em desbarato, e nem os seus fidalgos mortos voltariam a Castela. Reparai agora. Aqueles ho de ser cavaleiros da Gasconha e do Bearne disse o Magrio, indicando umas longas filas, a dois e dois, que vinham a passo Conhecem-se bem pelos altos pendes e pelas armaduras explicou. Levaram uns largos minutos a passar. De vez em quando, reprimiam a impacincia dos cavalos e voltavam-se para trs como para observar uma fila extensa de liteiras, a uns mil passos distanciada deles. Seguiram largando a trote. Em breve, do fundo da ribanceira, comearam a surdir com estranha lentido as liteiras, trazidas por muares possantes com magnficos jaezes. A primeira, de obra leve de talha dourada, com cortinas de cetim franjadas de prata, tinha no topo do tejadilho dois anjos de ingnua escultura, segurando ao alto uma coroa real. A Rainha e as suas damas, talvez! rouquejou sumidamente Ruy de Vasconcelos, empalidecendo. No se enganava. Na liteira dourada ia enferma D. Beatriz de Portugal, a mal- aventurada rainha de Castela. Esposa de doze anos trazia-a no colo, carinhosamente, uma das aias de Toledo. Ladeavam aquela liteira real pajens de dalmticas bordadas a ouro e prata com os castelos e lees herldicos da mais altiva nao das Espanhas. Muito achegados a ela, um direita e outro esquerda, montados em ndias muares, o fsico-mor da corte e o capelo do rei. Uma voz de mulher disse de dentro da liteira umas sumidas palavras ao fsico- mor, que as ouviu muito debruado para a portinhola e logo mandou aos jovens e aos pajens: Parai. A Rainha carece de socorros. Apeou-se rapidamente, entregou a mula a um cavalario, tirou dos alforges uma caixa de prata, abriu-a, escolheu um frasco entre vrios que l trazia, levantou o fecho dourado da portinhola e pelo estribo pendente, formando dois degraus, subiu e entrou na liteira. As outras liteiras tinham ficado em fila. Ao longe, numa curva da estrada, um grande esquadro de cavaleiros juvenis da Espanha e de aventureiros franceses do Bearne e da Gasconha parara esperando. Provavelmente a Rainha piorou disse baixo o Magrio. Que bom lance para irmos buscar essa infanta que nossa disse Vasco Eanes pondo em fuga esses pajens e abatendo as prospias daqueles cavaleiros de alm. Somos trs, sem lanas e sem cavalos observou-lhe o Magrio com um estranho brilho no olhar. No emudecimento de quem sonha nalgum passado de saudades e de amarguras, Ruy parecia absolutamente alheio ao que os seus companheiros estavam dizendo. Ali, em qual? perguntara mentalmente. Entretanto, de todas as liteiras se tinham apeado as damas para irem ver o estado da Rainha. Algumas envelhecidas senhoras da alta nobreza de Castela, outras peregrinas belezas juvenis de Toledo e de Sevilha. Da quarta liteira apeara-se uma dama de cabelos embranquecidos e fundos vestgios de sofrimento no rosto ainda belo, a lembrar o tipo das formosuras mouras da Pennsula. Deu a mo e amparou a si, carinhosamente, a uma dama gentil, esplndida juventude com uma alvura de aucena e uma suave tristeza de santa. De sbito, Ruy de Vasconcelos levantou-se do esconderijo numa cara de alucinado e numa ternura de pajem novio. Madalena! murmurou, espantosamente plido. E antes que os dois companheiros houvessem reparado naquela excitao de surpresa, deitou desvairadamente pela ribanceira abaixo. Rui! chamou o Magrio, estupefacto, erguendo a espada. Como se enlouquecesse! exclamou tristemente Vasco Eanes, arrancando tambm da espada e descendo de carreira. Foram uns segundos apenas, mas de to violentas e opressoras impresses, que encheriam horas enormes em qualquer drama agitador da alma humana. A descida abrupta daquele jovem produzira uma enorme alucinao de pavor nas damas e uma irresoluo de pasmo na criadagem e nos pajens. Com ares espavoridos, nuns gritos aflitivos, as damas tinham fugido para ao p da liteira real, numa palidez de terror, numa tremura de crianas, os seios a arquejarem violentamente. Madalena! Linda noiva da minha alma! exclamou o filho de D. Dulce, tomando-a nos braos e beijando-a nas faces como se j no houvesse loucura de que no fosse capaz. Ruy, que te perdes! soluou ela numa doura de submisso e num confrangimento de medo. Lvida, convulsiva, quebrando as hesitaes que um momento a tinham imobilizado e emudecido, D. Maria de Mendona inclinou-se para o temerrio enamorado e disse-lhe a tremer: Tendes de fugir, ou levai-nos! Era j alto o alarido dos criados pedindo socorro e frementes os brados de uma dezena de pajens e escudeiros, que vinham para o Vasconcelos de lanas em riste ou de espadas ameaadoras. Ao lado deles fazia uma chiada medonha de alarme o bobo real, o grotesco Annequim, com a sua gorra de lhama de prata, emplumada de penas de faiso, uma gorjeira de guizos dourados e um saio de cores berrantes. Na cidade o conheciam bem todos os cavaleiros do Mestre de Avis, pois que o bufo, antes de comear o cerco e estando el-rei de Castela em Santarm, propusera de gracejo vir a Lisboa desafiar o Mexias para o deprimir nas chocarrices do seu repto. Achou-lhe graa o conde de Mayorga e aplaudiu-lhe a lembrana. O bobo veio como parlamentrio e falou ao Mestre, defendido pelas imunidades que tinham os parlamentrios. Fora uma cruel afronta. Correu o Magrio, para os pajens e escudeiros a tomar-lhes o passo com a sua enorme espada. Eh! L jovens fedelhos de Castela! Se vos atreveis, fao de vs uma enfiada de cabozes! Os escudeiros e os pajens recuaram, enfiados, diante daquela bisarma de homem. Tu, truo bilhostre disse, agarrando o Annequim pela gorja e levantando-o no ar toma a paga daquela tua mensagem de escrnio. E atirou-o fora com dois tremendos pontaps, que o fizeram ir de ventas ao cho, a ganir como um cachorro medroso. Mas da retaguarda, avisados pelos gritos de alarme, dezenas de cavaleiros castelhanos e franceses tinham deitado a galope. Amor da minha alma, que vo matar-te! soluou Madalena, abraando-se nele. Por ti ser, se for! volveu-lhe. Senhor, salvai-vos, ou levai-nos daqui! solicitou outra vez D. Maria de Mendona num espasmo de terror. Sim, levai-as. Ajudai-me! gritou aos seus dois companheiros Pela nossa terra e pela minha dama! gritou, repetindo com leve modificao o moto da bandeira verde dos Namorados. Aqui para vos defender, Ruy de Vasconcelos! gritou o Magrio. Pelo nosso moto! disse-lhe Vasco Eanes, a poucos passos dele, de face para o lado do caminho donde vinha a galopada. Ruy tomara as duas damas pela mo no intuito de as ajudar a subir para um socalco da ribanceira. Dali subiria ao pinhal por uma estreita vereda, batida na terra argilosa pelos ps descalos dos pastores e pelo calado grosseiro dos jovens do monte de uma quinta de fidalgos, circunvizinha do pinhal. O terreno favorecia aqueles arrojados aventureiros. Os corcis dos inimigos no eram galgos que trepassem a ribanceira, nem pelas baixas do pinhal, denso e bravio, poderiam investir facilmente com aqueles temerrios. Abatida pelas mortificaes, numa grande debilidade, a arder em febre, oprimida de susto, Madalena mal podia arrastar-se, e Ruy teve de a levar nos braos, a poder de esforo, at meio do socalco, firmando o passo em pegadas que lhe serviam de degraus. D. Maria seguia-os, atribulada. O marido estava na hoste de el-rei, e o requestador que trara a Ptria ia muito para a frente, com os feridos e os doentes, ainda em perigo de vida. Mas foi preciso parar porque Madalena desmaiara. Pelo caminho, atravancado de liteiras, os cavaleiros s podiam avanar a um de fundo. Os dois da frente, Gasces de soberbo aspeto, gritaram uma bravata atroadora, e logo o primeiro enrista a lana contra Vasco Eanes. O outro procurava ladear por entre duas liteiras para investir de flanco ou pelas costas o possante guerreiro que lhes fazia rosto. Eh! Braganto (*) de Gasconha, que tens homem para ti! clamou-lhe Vasco Eanes, opondo ao golpe da lana o arns que lhe defendia o arcaboio de atleta.
[(*) No sentido de ser um aventureiro libertino.]
Contava com a sua fora excecional e com aqueles msculos de ferro, que eram o assombro de todos os seus companheiros. A haste da lana do Gasco quebrou-se com a violncia do choque. Vasco Eanes aguentara-se, com a perna direita retesada para trs como a servir-lhe de espeque. E logo, enquanto o Gasco oscilava na sela, deu um salto para a frente e cravou nos peitos do cavalo a adaga que empunhava na mo esquerda. O animal foi a terra arquejante, tocando com a testeira de ferro (*) no peito de Vasco Eanes.
[(*) Pea de armadura que defendia a cabea dos cavalos de batalha.]
Gasco, a p como eu! Ladeou pela esquerda e foi para o cavaleiro derrubado. Na precipitao de se destribar, por tal modo o Gasco se desequilibrou, que foi abaixo para o mesmo lado em que o cavalo caiu, ficando debaixo dele, numa agonia lancinante. Agora outro! gritou o jovem algarvio. No era preciso o repto, porque a lana do segundo Gasco, errando o golpe que lhe dirigira ao rosto, sem viseira que lho defendesse, deu-lhe em cheio no bacinete, fazendo-o recuar, estonteado. A este tempo estava o Magrio rebatendo diante da sua formidvel espada um grupo mais audaz de escudeiros e pajens, mas j para a frente chegara aviso daquele conflito e os Gasces e Bearneses que iam como batedores voltavam para trs a galope desfechado.
Vasco Eanes lograra segurar-se de p, graas sua longa espada, que fincara no cho para se apoiar durante instantes de estonteamento. O Gasco apertava com ele e alguns dos outros, que se lhe seguiam, tinham metido por entre as liteiras, vista a impossibilidade de passar para a frente de outro modo. Numa tremura de pavor, dando gritos e chorando, confrangidas, as damas castelhanas tinham fugido ainda mais para a frente, j para alm da liteira real, que o fsico mandara encostar esquerda do caminho para seguir como fosse possvel. Muito acabrunhados de medo, porque a primeira impresso foi de que estavam sendo atacados pelas avanadas da hoste de Lisboa, os jovens das outras liteiras, os menos timoratos, iam seguindo o movimento daquela em que ia a rainha; algumas, porm, estavam imobilizadas no meio da estrada porque os condutores tinham fugido. Era agora gravssimo o lance em que se viam comprometidos os nossos trs aventureiros. Vasco Eanes ia j recuando para a ribanceira porque eram trs os cavaleiros franceses que o acometiam de frente e de flanco; a poucos passos do Algarvio, o Magrio, no j a conter os escudeiros e os pajens, mas a defender-se de um grupo de bearneses que viera da frente desfilada; grupos de cavaleiros castelhanos, metidos pelos vinhedos e carreiros marginais da estrada, corriam a rebater a investida e a defender as damas da corte. Ruy viu tudo isto de relance numa cara de remorso. De joelho em terra com a sua pobre noiva nos braos, ali estava numa inatividade humilhadora de pajem adolescente, enquanto os seus dois valentes companheiros expunham a vida e iam talvez perd-la por causa de um louco arrebatamento seu. Vibrando por entre o estridor das armas, a tropeada dos cavalos e a vozearia de Castelhanos e Franceses, ouvia-se distintamente a voz formidvel do Magrio: Pela nossa terra! E, j ferido, ia recuando tambm para o lado da ribanceira a resfolgar como um leo embravecido, o espadago a escorrer sangue e j meio embotado nos peitos de ferro do inimigo. Pela nossa terra! repetiu num grito Vasco Eanes, tambm j ferido no rosto e no brao. Senhora, nimo; velai por ela! disse Ruy convulsivamente, pousando nos braos de D. Maria de Mendona o corpo inerte da filha. Arrancou da espada e correu para baixo, bradando: Namorados! Pela nossa terra e pela minha dama! Foi um mpeto leonino, que logo um pouco desafrontou os seus dois companheiros e deu oportunidade a que se agrupassem, opondo mais enrgica resistncia. Um jovem de liteira, empoleirado no tronco de uma oliveira morta, qual trepara, apavorado, anunciou que vinham j de carreira muitos pees. Eram os besteiros das avanadas do exrcito real, que marchavam a cerca de um quarto de lgua atrs dos esquadres, na cauda do prstito. Em cima, no socalco da ribanceira, de joelhos, olhos afogados de lgrimas, D. Maria chamava a si a filha e agitava-a nos braos, numa tremura aflitiva. Filha! Filha da minha alma!... nimo!... Para fugirmos! Ruy fazia prodgios de bravura, a rivalizar e j a exceder os seus intrpidos companheiros, a quem o cansao e a perda de sangue um pouco iam j quebrando aquela admirvel intrepidez, que nos primeiros arranques parecera indomvel. Trs cavaleiros inimigos estavam em terra e dois deles feridos de morte. De repente, a espada do Vasconcelos quebrou-se contra as grevas de um Bearns. O ao estilhaou numa vibrao aguda e seca a lembrar o grito de morte de uma ave selvagem. Ruy enfiou. Ouvira a voz suplicante de Madalena, chamando por ele. De relance, baixou-se para apanhar a lana quebrada de um inimigo agonizante e com ela se defendeu ainda uns instantes, intrepidamente. Ruy, temos de subir! disse o Magrio, mima, voz j um pouco enfraquecida Enquanto podemos. Eu ainda vos posso ajudar acudiu Vasco Eanes, cujos ferimentos no tinham gravidade. Mas em cima, do socalco, vibraram trementes dois gritos aflitivos como de duas almas que se espedaassem. Por piedade! A minha filha! Rui! Num movimento arrebatado, o Vasconcelos voltou-se. J pelo carreiro da ribanceira iam besteiros de Castela e dois deles tinham deitado as mos s pobres senhoras, tolhidas de pavor. Companheiros, para cima! gritou, aturdido, galgando de salto as primeiras pegadas que iam dar ao socalco a cinquenta passos acima. Por minha... No pde concluir o moto. O virote de uma besta dos Castelhanos fora cravar-se-lhe no pescoo, e caiu de bruos, a golfar sangue. Quatro besteiros levavam quase de rastos D. Maria de Mendona e a filha, em tal pavor, que nem j podiam gritar. E logo, como se fosse alcateia de lobos a farejar a presa, o bando dos besteiros desceu para se apoderar daquele que parecia mortalmente ferido. Num supremo esforo Vasco Eanes conseguira dar a mo esquerda ao Magrio para o ajudar a subir e com a direita ensarilhava aquela formidvel espada, a que a sua fora herclea dava uma agilidade prodigiosa. O seu propsito era alcanar a ribanceira por onde os cavaleiros no poderiam segui- lo. Vasco Eanes, o nosso Ruy caiu! avisou amarguradamente o Magrio. A este tempo j os besteiros tinham levantado o corpo do Vasconcelos, que no dava sinal de vida. No est morto disse um deles. Leva-se. Mas quatro homens de armas, de bacinetes emplumados e cotas de armas de cavaleiros fidalgos, tinham aparecido na extrema alta do pinhal. Ali... Os nossos! disse um deles. Pela nossa terra e pelas nossas damas! bradaram os de cima, correndo para os companheiros, de espadas erguidas. Eh! Ral de castelhanos! clamou um deles, investindo com os besteiros. A ns, Namorados! gritou Vasco Eanes com todo o alento da sua alma. Tinha-os adivinhado naquele brado de guerra, que no podia ser de outros. E enquanto, a meio da ribanceira, um deles dispersava s estocadas os besteiros que se tinham apossado de Ruy de Vasconcelos, os outros, em baixo, protegiam a retirada do Magrio e de Vasco Eanes. preciso sair daqui avisou rapidamente um dos recm-chegados Foi uma loucura! Supondo que tudo aquilo fosse ardil para um ataque em forma das foras de Lisboa contra o exrcito em marcha, os cavaleiros franceses e castelhanos desistiram da perseguio, e uma parte deles se concentrou retaguarda das liteiras, j todas em movimento para a frente, e outra parte retirou a galope a levar aviso ao grosso da hoste. Os besteiros, esses tinham fugido como coras, mas os primeiros que tinham descido levaram consigo a desventurada Madalena e a sua me.
* * *
Subiram os do esquadro dos Namorados e meteram-se ao pinhal, levando nos braos o Vasconcelos, que ainda no tinha voltado a si. Ningum do inimigo os perseguiu, talvez pela suspeita de que no pinhal outros houvessem preparado alguma emboscada. Iam profundamente entristecidos. Todos eles percebiam que era gravssimo e podia ser de morte aquele ferimento do seu brilhante companheiro. J por duas vezes tinham procurado estancar-lhe o sangue e afinal lhe tinham improvisado uma ligadura. Ali acabaramos, se no visseis! ia dizendo Vasco Eanes, depois de lhes ter resumido o que sucedera. Samos com ordem de vos procurar e levar para bordo sem delongas. A vossa demora causava preocupao e o patro da gal est com receio de que o Mestre o venha a saber. Isso se h de evitar com auxlio vosso disse sumidamente o Magrio, muito amparado a um daqueles companheiros que lhe tinham acudido. Ia ferido no brao esquerdo e numa perna. Dizei vs a todos pediu-lhe que fomos apanhados de surpresa na extrema do pinhal... E no tivemos remdio seno combater. O que vos parea melhor... Contanto que o Mestre no saiba, nem ele nem outrem... O motivo porque foi esta briga. O nosso pobre Ruy! J falta pouco para chegarmos praia. Para o hospital disse Vasco Eanes ou para casa da me que ns o devemos levar! E logo muito baixo: Cuidado quando ele voltar a si. No lhe digais de chofre que levaram Madalena. Avisai em segredo esses que o trazem. Pudesse eu ter visto que as levavam, e de bom grado as defenderia, ainda que a vida me ficasse l. Meu Deus! disse baixo para o outro, Gil Eanes da Costa, indicando o Vasconcelos Se o virote que o feriu estaria ervado?! (*)
[(*) Era costume ervar as garrochas, os virotes ou virotes das bestas com ervas venenosas e, principalmente, com helleborus foetidus, a que chamavam ervabesteira ou dos besteiros. A besta foi a arma de mais mortferos efeitos nos ltimos sculos da Idade Mdia pois feria e matava de longe.]
Ruy deu sinal de si, descerrou os olhos lentamente, e murmurou um nome, que por duas vezes foi truncado por golfadas de sangue. Madalena! disse a dizer mais claramente. Ide tranquilo disse-lhe, carinhosamente, um deles Aqui vos levam os vossos companheiros, como irmos vossos. Tornou a cerrar os olhos e no falou mais. Tremeluziam lgrimas, a desprenderem-se-lhe das coisas humanas, vibravam ento mais intensamente os sinos da cidade em repiques triunfais.
* * *
O rei de Castela fora prevenido do sucedido e mandara numerosa peonagem para flanquear o exrcito e observar o terreno de um e outro lado da estrada. Tardia precauo; ningum tinham encontrado. Era lenta a marcha. Na frente, o prstito de Castela maiores vagares impunha naquela retirada. O sol, j por cima das montanhas, tinha fulgores de apoteose que se espelhavam nas armadura magnficas dos grandes de Castela e dos fidalgos de aventura da Gasconha e do Bearne. Iam acabrunhados os soberbos invasores e, mais talvez do que nenhum, porque era um doente, aquele poderoso rei das Espanhas (*).
[(*) O Arago e a Navarra constituam ainda Estados independentes. Granada era um reino muulmano de tradies brilhantes, com o qual as armas espanholas ainda isoladamente se no atreviam; era aquele o derradeiro domnio poltico dos mouros na Pennsula.]
E quando, num alteamento da estrada a colear o dorso de uma colina, mal se viam j as torres da cidade a esfumar-se no horizonte, el-rei sofreou o seu soberbo alazo de jaezes rutilantes e, voltando-se para o lado da insubmissa capital do pas que julgava seu, disse num gesto teatral, erguida no ar a destra ameaadora, os olhos rasos de lgrimas: Lisboa, tanta graa me faa Deus, que ainda te eu veja lavrada do ferro dos arados!
CAPTULO XVII A VINDA DE NUNO LVARES
O ms de Setembro quase se passou em procisses de penitncia e em festas de igreja, num fervor piedoso de ao de graas pela constncia heroica do povo de Lisboa, em tantos trabalhos e misrias durante aquele cerco, do qual providencialmente se vira livre. A mais comovedora das procisses penitenciais foi logo no dia 6, quer dizer, no dia seguinte quele em que o exrcito de Castela se afastou de Lisboa. A procisso saiu da S para o mosteiro da Trindade, que ficava ento muito chegado ao lano da muralha, entre as portas de Santa Catarina e a torre de lvaro Pais. Iam todos descalos, desde o bispo com o seu pontifical magnificente e do Mestre com o seu manto branco de freire de Avis, at ral esfrangalhada que padecera mais fome durante o cerco. E naquela penitncia igualitria, as damas que tinham uma preclara estirpe de condes, prncipes godos at s mulheres sem avoengos, rsticas sem apelidos e sem sapatos, as que tinham combatido nas muralhas, ombro a ombro com os homens de armas, essas cujos ps, sempre nus, j se no podiam magoar na terraa das ruas nem ferir nos calhaus soltos das caladas. Os sinos dobravam pelos que tinham morrido nas misrias e nas lutas do cerco. Entre as penitentes de mais insigne hierarquia e de mais angustiada devoo, dava nas vistas de todos e punha d em todos os coraes certa dama de cabelos embranquecidos, a soluar rezas com os olhos afogados de lgrimas, numa trgica palidez o seu rosto ainda formoso. Iam ao seu lado, comovidamente, como para lhe serem amparo, um monge de longas barbas e um aio antigo, de trmulo andar e arcaboio dobrado. A penitente chamava-se D. Dulce de Vasconcelos. Na vspera lhe tinham levado para casa o filho gravemente ferido. Estava em perigo de vida. Era por ele que ia rezando aflita, com os olhos a escorrerem em choro e os seus ps nus de fidalga a escorrerem sangue. Para que a Me de Jesus se lhe apiedasse dele e lho salvasse. Entrou a procisso na igreja daqueles padres que mais tinham ajudado a defesa da cidade, e D. Dulce, quase a arrastar-se, j no pde ir alm do ltimo degrau do templo. O terreiro em frente estava apinhado de gente que no pudera entrar. Tinha subido ao plpito um padre da ordem de S. Francisco. Mestre Rodrigo de Sintra lhe chama Ferno Lopes. Misericordiam fecit nobiscum gritou o frade numa voz cava e pungidora. E logo traduziu em vulgar aquele tema do sermo: Grande misericrdia fez Deus connosco. Foi longamente erudita a pregao do franciscano, mas D. Dulce mal pde ouvir metade do exrdio. As foras de todo lhe faltaram, e Mendo Rodrigues teve de chamar os jovens da liteira brasonada com o escudo herldico dos Vasconcelos. E quase desmaiada a levaram para o seu velho palcio, onde entrara um das maiores dores humanas que uma mulher pode sentir. A sua dor de me pelo filho em perigo de morrer. Que a outra maior, de suprema angstia, que a mais nenhuma se compara, seria a de o ver levar morto para essa ausncia que se no acaba nunca.
* * *
Dias depois chegou ao pao de Apar S. Martinho um escudeiro portugus, que estivera prisioneiro dos Castelhanos, logo desde o comeo do cerco e em Torres Vedras lograra fugir-lhes. Contava que o exrcito inimigo ocupava a vila e todos os seus arredores e j tinha uma parte avanada das suas foras a caminho de Santarm. Mas a notcia mais importante que ele trazia era a de estar el-rei de Castela enfermo em Torres e a Rainha ainda em perigo de vida, por causa da peste que a salteara em Santos com carcter benigno, mas depois se lhe agravara durante a jornada. Alm destas informaes, que podiam tornar-se pblicas, trazia o escudeiro outras de carcter reservado e de observao pessoal, que s em particular queria comunicar ao Mestre. Seria preciso que esperasse, pois que o infante bastardo estava ento nos seus aposentos com o doutor Joo das Regras e o Juiz do Povo. No foi longa a demora. Afonso Eanes saa atrs de Joo das Regras, mas a poucos passos o chamou o Mestre como se alguma coisa lhe houvesse lembrado. Foi com ele para o vo de uma janela. Dai-me c uma informao, que de todo me ia esquecendo pedir-vos por causa destas tantas coisas de gravidade em que preciso pensar. Ruy de Vasconcelos como est? Ainda bastante mal, Mestre e senhor! Pequenas melhoras; o fsico ainda a torcer o nariz quando por ele lhe pergunto. Mas no d esperanas de o salvar? Isso d, porm muito fugidias e em palavras to sumidas, que eu por mim at mais me oprimo quando sucede ouvir-lhas dizer, pois que o seu rosto como que lhas est desmentindo. E a pobre me? S dele se afastou no dia da procisso de penitncia, em que a vossa senhoria tambm ia. Com uma dor de alma que a todos faz d, mas, coitada da pobre senhora, ainda com uma grande esperana a segur-la ao p do filho! O ferimento foi muito mais grave do que os outros companheiros julgavam! Tenho de tomar maiores, cautelas com o nimo louco desses amores! Trs dos mais destemidos e dos mais leais dos meus cavaleiros feridos na tal cilada em que eu no creio! Gil Eanes se curou e o outro depressa estar curado. Referia-se ao Magrio. Bem sei, mas podiam ficar prisioneiros ou mortos naquele seu louco feito de desobedientes. Saber, Mestre, s sei o que eles contaram. Ruy de Vasconcelos ainda no pode falar e mal consegue rouquejar uma vez por outra, quando a febre mais aperta com ele, o nome da me... E outro nome... Que eu sei, mestre Afonso Eanes. O nome de certa peregrina dama que ia acompanhando a Rainha de Castela. Por ela seria o feito; razes de sobra tenho eu para o afirmar. Na hoste de Castela tambm h traidores que fogem para c e esses tais muito informam para ganhar as boas graas de quem lhes possa fazer favor. Mas eu sou de segredo acrescentou, sorrindo e ningum por mim saber o modo como os meus cavaleiros amorosos se iam perdendo temerariamente. Que talvez lho diga a ele um dia sozinho, e que Deus faa o favor de lhe dar vida para me ouvir. Ficar no recato deles e no meu esse caso de desobedincia por amores, na conjuntura em que a Nao carece de todo o esforo dos seus homens para se no perder! Nenhum escrevedor de contos poder revel-lo a quem vier depois de ns. Feito assim temerrio me tinha pedido licena para intentar com a sua hoste o meu grande amigo e dileto irmo Nuno lvares, e daqui lhe neguei a permisso que me solicitava com os maiores pedidos. E era para honra de Portugal e proveito desta nossa causa que ele me fazia o pedido! Estava a referir-se aos pedidos que Nuno lvares lhe mandara fazer no dia 5 para o autorizar a transpor o Tejo com a sua hoste sob a proteo das gals, e ir da margem de c a investir de flanco o exrcito inimigo em retirada. Era tresloucado arrojo continuou o Mestre ir com dois ou trs mil homens de guerra e uma centena de cavalos sobre um exrcito, que no levaria ainda menos de dezoito mil com poderosa cavalaria! Pois a outra dos nossos loucos Namorados ainda foi pior! Enfim, o desvairo j l vai e tudo se h de esquecer, pois em Deus espero que Ruy de Vasconcelos seja connosco em outras conjunturas graves, que talvez no tardem muito. At depois, mestre Afonso Eanes. Dizei a D. Dulce que em dia prximo l irei levar-lhe os meus votos pelas melhoras do filho. Assim lho direi, Mestre e senhor. E tambm amigo vosso. Que vos no esquea este ttulo com que me ufano, senhor Juiz do leal povo de Lisboa. No se atreve a diz-lo a boca, Senhor, mas quem mais o diz e lembra o corao. Um tanoeiro como eu no deve nem sequer esquecer que o seu maior amigo o filho de um rei. Certo que o sou, Afonso Eanes disse-lhe a sorrir, pondo-lhe a mo no ombro Mas tambm eu me no esqueo que pela minha me sou muito da vossa condio. E ainda que assim no fosse, homens como sois s por afronta se podiam comparar a esses de gloriosos avoengos, que para o rei estrangeiro se passaram ou venderam como ciganos ou pelo seu maior interesse mudaram de bandeira como renegados viles que so. Agradecido, amigo e senhor meu! disse comovido, beijando-lhe a mo arrebatadamente. Juiz do Povo, que vos enganais! volveu-lhe de gracejo e num estremecimento de surpresa. Senhor, no. Em nome do povo foi que vos beijei a mo e um dia, breve ele vos dir que o seu juiz se no enganou. Boa inteno de amigo que foi replicou-lhe, abraando-o num alvoroo que o afogueara. Eu o contarei ao povo e ele doutro modo vos dir a vs, senhor Infante. Curvou-se e saiu. Instantes depois, o Mestre estava em conferncia porta fechada com o escudeiro fugido de Torres. Quando o trnsfuga saiu, D. Joo dizia consigo: Outro a confirmar o que eu j sabia! Ruy e os dois loucos que iam com ele chegaram a ter a dama por sua! E de um lado, para a frente, duzentos cavaleiros de Frana e de Castela, do outro lado no menos seriam, afiana o escudeiro, e toda a hoste em marcha! Loucos! Loucos! Muito debaixo da sua mo misericordiosa os teve Deus! Mas, enfim, boa notcia me trouxe o escudeiro para eu dar ao jovem Vasconcelos quando ele melhorar. E ficou por momentos a refletir encostado ao peitoril da esguia janela gtica. O sol iluminava alegremente as montanhas da Outra Banda e fazia cintilar as vagas miudinhas do rio, arrepiado por uma brisa spera da barra. O pior a outra nova do escudeiro. El-rei de Castela no desiste da herana e est no propsito de ir buscar s Espanhas maior poder de homens para voltar! Pois se me no faltarem os homens leais de Portugal, c o hei de receber, e de vez ficar arrumado o negcio da herana e o pleito de vida ou de morte em que est Portugal. Pouco depois chegava o Arcebispo de Braga. O Mestre confiou-lhe uma parte das informaes que o escudeiro Joo Aires lhe trouxera. Entre as que j conhecemos, esta outra, que tinha importncia. s rcuas de muares que para Torres tinham levado os caixes, os atades como diz Ferno Lopes, com os mortos ilustres, salgados em Sintra, juntaram-se outras, no menores com os despojos fnebres dos que estavam depositados em Alenquer. No eram somente grandes nas Espanhas aqueles mortos, seno tambm os mais experimentados capites que tinha Castela. O prprio rei confessara com os olhos rasos de gua, diante de muitos e at de Joo Aires, que lhe faziam falta para quando chegasse a hora de acabar a contenda no desbarato dos rebeldes chamorros. Pois tanto melhor, e por tal fortuna para ns, maiores louvores a Deus volveu-lhe o Arcebispo Quando voltar com os seus capites novios, Mestre, aqui estaremos ns para lhe ensinar como as batalhas se ganham de c e se perdem de l, e bom mestre j eles sabem que o ho de ter em Nuno lvares, se de todo no houvessem esquecido a valente sabatina dos Atoleiros. E dizia esta farroncaria a sorrir aquele prncipe da igreja metropolita de Braga, caudilho e condestvel de quantos frades e clrigos briges tinha Lisboa.
* * *
Estava a entrar Outubro e chegara a notcia de que o rei de Castela deixara poderosamente reforadas as guarnies de Alenquer, Torres, Santarm e outras povoaes muralhadas que tinha por si. Dizia-se mais que ia ir para Santarm com os restos do seu exrcito. Parecia finda aquela campanha de 1384. Em cinco anos era a quarta na guerra com os Castelhanos e tudo estava indicado que no seria a ltima! Apesar das guarnies castelhanas de Almada, de Sintra, e das outras de Alenquer e Torres, a pequena distncia de Lisboa, aquela invaso abortara; mas as condies materiais da capital em pouco tinham melhorado. A ral ainda passava fome. Os arredores tinham sido devastados pelos sitiantes, e por mar nem um bago de trigo nem uma pitada de farinha poderiam trazer pobre cidade, porque as naus e gals de Castela bloqueavam a barra e oprimiam Lisboa desde o Rasteio at Santos e dali, numa linha ameaadora, at Almada, com a bandeira castelhana a flutuar alta no seu castelo secular. Nas suas impacincias de caudilho inativo, Nuno lvares mandava da Outra Branda (praia do Montijo), por alta madrugada ou pela calada da noite, emissrios seus com pedidos ao Mestre para lhe consentir que passasse o rio com a sua hoste; mas nos pequenos batis os emissrios voltavam com recados dilatrios ou vagas promessas de D. Joo. O Mestre hesitava em deixar Almada livre dos receios que lhe causava a gente de armas do jovem vencedor dos Atoleiros, forte na sua posio formidvel de Palmeia, e tinha em muita dvida o bom xito de uma travessia de dois ou trs mil homens a to pequena distncia da poderosa armada inimiga, cujos navios ligeiros podiam subir rapidamente at Sacavm, sem que lho conseguissem impedir com seguro xito as nossas poucas e mal guarnecidas gals. Mas o leo juvenil sentia-se opresso no cerro acastelado de Palmeia, e resolveu ir para Lisboa a falar ao Mestre no tocante a essa futura campanha, que todos entendiam inevitvel e previam prxima. E apesar de quantos rogos lhe fez o seu devotado escudeiro Vasco Martins do Outeiro, desceu de Palmeia para ir meter-se num batel, era j noite adiantada (30 de Setembro). Saiu o escudeiro com aquele jovem paladino que sabia vencer batalhas, mas no raras vezes tambm cometia loucuras de temeridade na febre do seu irrequieto sangue e nos sonhos deslumbradores da sua f religiosa, mstica e assoberbadora. E pelo caminho lhe foi reiterando as splicas e fundamentando-as em certo sonho horroroso que tivera. E j na praia instava ainda como apavorado: Senhor Nuno lvares, eu por favor vos peo que no entreis nesse batel para irdes a Lisboa! E porqu, amigo meu? perguntou-lhe, sorrindo, enquanto os remadores iam empurrando o batel para a gua no silncio daquela noite calma de Setembro. Senhor e amigo meu, por causa daquele pesadelo de que j vos falei. Ora, sonhos! Tambm eu j sonhei que estava numa grande batalha real e que, em menos de meia hora, a nossa gente comigo desbaratava a maior hoste que ainda algum dia aqui viera de Castela! Vede l se em to pouco tempo havia de estar acabado to grande feito! S se a nossa Senhora estivesse por ns e S. Jorge a batalhar connosco. Ou os Castelhanos fugissem intimidados como borregos. Mas olhai que os sonhos maus so a mor parte das vezes os que nos saem certos. Os meus sempre assim foram! E este de agora tinha coisas certas! Que saamos de Palmeia e eu convosco, que entrvamos num batel como este, o cu todo cravejado de estrelas pequenas, mas de sumida claridade como est agora. Que da armada de Castela nos tinham percebido e de l viera uma chusma de gals contra ns e nos tomara o batel. E vs, ferido e prisioneiro, e eu em tamanha angstia por vs, que todo o meu intento era matar-me! Pois vou eu desfazer-vos o sonho. Irei s com os meus pajens de armas e esses dois trombeteiros que a vm. Vs ficareis para desmentir o mau agouro. Senhor, tal no querereis, porque eu convosco desejo ir, seja para qual perigo for! Mas agora o no consinto eu. Dentro do batel sereis ave de mau agouro, meu querido Vasco Martins. Heis de ficar. Dais-me por isso uma grande mgoa, senhor e amigo! Embora. Acabar quando vos c chegar a notcia de que cheguei a Lisboa so e salvo. Podemos largar j, senhor avisou o mestre do batel. Vamos ento. Vasco Martins, olhai de madrugada para o castelo de Lisboa. E se l vires ao cimo da torre albarr trs fachos acesos, ficai seguro de que l estou eu, e igreja dos freires de Palmeia ide a dar graas pela minha boa viagem. E saltou lesto para o batel aquele heri de vinte e quatro anos, que j tinha em volta de si uma lenda popular como os velhos heris de eras remotssimas. Imobilizado na praia, o corao numa amargura de receios por aquele jovem temerrio, Vasco Martins ia acompanhando com o olhar entristecido aquele vultozito negro do barco a sumir-se na alvura confusa das espumas. Mestre, de voga arrancada para baixo! mandou Nuno lvares. Senhor, mas em vez de atravessar para Lisboa, iremos cair na boca do lobo! observou-lhe o mestre do batel a duvidar do que ouvira Daqui se divisam j as luzes das naus e gals de Castela, que mais tm subido para dentro do rio! Bem sei, mestre. Mas para l mesmo que meu intento ir. Mas, senhor, bem que eles l estejam mal acautelados e pegados no sono, pois que j vai alm de meia-noite, as vigias que l ho de ter bondaro para pr tudo em alarme. Metem-nos o barco no fundo ou nos apresam a todos! Tendes grande apego vida mestre! V, remadores, mais pulso, e para baixo que . Obedeceram, estarrecidos, mas no se atreviam a julgar enlouquecido aquele jovem de tamanho prestgio, cuja espada fazia milagres como se lha iluminasse uma estrela bem-fadada e todo o favor do cu lhe houvesse marcado o destino. Homem criado no mar, hs de saber nadar, no assim, mestre? perguntou-lhe baixo Nuno lvares. Senhor, sei, e tanto como eu esses quatro que a vo aos remos. Pois quando vires que o barco vai em perigo, atirai-vos gua, e Deus se amercear de ns todos. Estavam j muito prximos dos vultos negros das naus. Por entre elas, mestre ordenou baixo Nuno lvares Quero ver como esto apercebidos, j que falta aqui el-rei de Castela para as passar em revista. Iam confrangidos, numa tremura de apavorados, os tripulantes do barquito. Cedamos agora a palavra ao velho cronista Ferno Lopes: Os das naus, quando isto viram, comearam de se alvoroar, bradando todos: Armas, armas! E uns saltavam aos batis, e outros vinham borda, no sabendo que era aquilo. Continuemos agora ns, sem abandonar as indicaes histricas do cronista. O barquito meteu por entre os grandes navios, a bordo dos quais ia uma barafunda espantosa. Alguns, supondo talvez que seria batel dos navios mais afastados da armada, perguntavam da amurada, numa grande estranheza, quem vinha e insistiam pela senha de reconhecimento. Nuno lvares, o dos Atoleiros! respondeu a voz alta e serena do batalhador, de p popa do barco S. Jorge e Portugal! a senha para a vida e para a morte! Homens, tangei as vossas trombetas! mandou aos dois trombeteiros Tangei-as para acordardes bem esses dorminhes de Castela. preciso dizer-lhes que vamos ns aqui. Veio um vendaval de ameaas palavrosas de cima das naus, mas j as duas trombetas vibravam alto, estridentes, como se fossem para uma alvorada triunfal. E numas arrancadas de susto, pondo a alma nos pulsos, os remadores meteram o batel por entre as linhas das naus, sob caches de espuma, com rapidez vertiginosa, como se fosse um peixe sobrenatural dos contos fabulosos. Enorme barafunda a bordo, uma vozearia de insultos e de pragas naquela viva e pitoresca linguagem que tem a gente espanhola! Ainda uns batis tentaram perseguir o outro dos Portugueses, mas logo desistiram ou porque o nosso arrancava j no rumo da cidade, ou talvez pela sugesto de temor com que o nome de Nuno lvares dominava o nimo do povo rstico de Castela. E, todavia, s a Histria sabe e pode dizer a perda enorme e talvez irreparvel que seria para os insubmissos chamorros o aprisionamento ou a morte daquele rapaz de vinte e quatro anos, que expunha a vida como se ela fosse um brinquedo pueril ou como se uma promessa do cu lha houvesse algum dia assegurado! Com as voltas no rio, Nuno lvares chegou j de madrugada Ribeira e logo ali foi acolhido com assombro pelos vigias da praia, que a princpio o no tinham reconhecido e estiveram quase a repuls-lo, suspeitosos de que fosse algum traidor no projeto de os surpreender. Mas, por fortuna, um dos vigias o conhecia bem do tempo do segundo cerco de Lisboa e logo completamente dissipou as suspeitas dos outros. Deixai, que bem D. Nuno lvares, o maior nimo e a mais rija espada que tem Portugal! Em boa hora o traz Deus cidade. O campeador saltou em terra e logo os vigias e a ronda que chegara da Porta do Aougue comearam a vitori-lo freneticamente. Viva D. Nuno lvares! O jovem capito dos Atoleiros. O destemido do outro cerco da cidade! E velozmente, de boca em boca, at s sentinelas dos muros, esta nova de alvoroo a voejar jubilosamente como se fosse o prego de uma alvorada gloriosa. Nuno lvares que est a! Foi Nuno lvares que chegou, atravessando ao som de trombetas por entre a armada dos casteles! pormenorizavam os que na praia tinham j ouvido contar o arrojo aos pajens e aos trombeteiros. E todos estes dizeres iam penetrando na cidade, correndo de rua em rua na voz dos madrugadores, acordando de sobressalto os adormecidos, fazendo escancarar as adufas, pondo um rumor alto nos terreiros, trazendo para as portas da Ribeira uma multido de povolu na nsia de rever aquele jovem batalhador, que lhe dava a imagem e o smbolo de uma Ptria remoada e forte com que as almas da plebe andavam sonhando. Todos queriam saud-lo de perto, vitori-lo e rev-lo bem, no receio de que ali, subitamente, se lhe sumisse ou a estrela de alva lho levasse como a certo cavaleiro de um remoto conto de prodgios, que todos os velhos sabiam de cor. E naquela receo, simples e glorificadora, ao vencedor dos Atoleiros, que havia largos meses no tinham visto, lhe foram tomando o tempo at que a madrugada clareou mais e as estrelas, como lmpadas, se foram apagando no cu. As mulheres rodeavam-no carinhosamente, e na sua alma devaneadora o supunham ver com as semelhanas de um arcanjo triunfador, que Deus houvesse mandado para acudir ao pobre Portugal amargurado e quase reduzido s duas altivas cidades de Lisboa e Porto. Esta iluso supersticiosa, que todas elas sentiam e nenhuma ousava dizer, como que se lhes volvia em realidade material nos fulgores daquele bacinete emplumado que ele trazia, naqueles seus olhos azuis de luz vaga e suave, que pareciam mergulhados numa atmosfera de sonho e de msticos ideais, naquele aprumo viril de paladino triunfador que nunca duvidara de si. Parecia-lhes o recm-chegado de um pas de lenda cujas fronteiras se extremassem nas estrelas. Menos idealistas, os homens viam nele o mais destemido dos seus caudilhos e alguns se iam ficando a contemplar a bandeira que um dos pajens tinha erguido. a sua bandeira das batalhas! explicava um velho aos galeotes novios Olhai esta grande cruz vermelha ao meio, de alto a baixo, de ls a ls, e deste lado, entre os braos da cruz, do lado de cima o Senhor crucificado e beira dele Nossa Senhora e o discpulo S. Joo. E aqui, do lado de baixo, nas outras duas quadrelas, os santos batalhadores de joelhos S. Jorge e S. Tiago. E em outro grupo o pajem que tinha ao ombro um montante, quase da altura de um homem, esclarecia que ao seu senhor D. Nuno mandara o Castelhano Pedro Sarmiento aquele espado em gages de desafio para a batalha de vora e agora o trazia sempre consigo o jovem cavaleiro, para com aquela boa e rija folha de Toledo honrar e responder ao repto, combatendo os casteles em defesa de Portugal. Tinha passado mais de meia hora quando trouxeram da cidade para Nuno lvares uma possante muar, lindamente ajaezada. O paladino montou e entrou em Lisboa tomando para a rua Nova (aproximadamente na mesma direo da moderna rua dos Capelistas), dali seguiria direito ao Rossio para ir em devoo capela da nossa Senhora da Escada, que era ento, como j tivemos ocasio de dizer, a Senhora dileta dos Lisboetas. Tinha de ir lentamente. O povo tomava-lhe o passo num frenesi louco de entusiasmo. Na rua Nova, a mais faustuosa de todas as ruas de Lisboa, damas juvenis se debruavam das janelas para o vitoriar. Entretanto, na multido, iam-se memorando as faanhas e gentilezas do recm-chegado. Acolheu-se ao alpendre de uma casa grande, numa reentrncia da rua, um grupo de conversadores, avessos aos encontres da multido e mais dispostos a desenferrujar a lngua, contando casos, do que irem na onda dos curiosos, pondo em risco as carnes e os ossos. Ali poderiam conversar tranquilamente. Ouamo-los ns. das proezas de Nuno lvares que esto falando. E h trs anos, quando foi do cerco de Elvas, tinha entrado por Castela, se o irmo mais velho e el-rei D. Fernando no tm mo nele! E nesse mesmo ano foi que ele mandou desafiar para combate de morte o filho do Mestre dos cavaleiros de Santiago. Foi, sim, mas tambm dessa vez o rei e o irmo Pedro lvares lhe no consentiram que fosse lutar com o castelo. Bom sangue de Portugus antigo lhe anda a referver naquelas veias! E no segundo cerco de h dois anos? Esse foi tambm de grande padecimento para esta nossa terra! verdade que sim. A arrancada que ele fez ento pelas Portas de Santa Catarina! E foi dar consigo ribeira de Alcntara para fazer uma espera gente da armada de Castela, que desembarcavam para nos roubar. Deu-lhes uma boa esfrega, louvado Deus! Ah! Mas na volta, ali em Santos, que esteve perdido! Vieram duzentos da armada contra os vinte e quatro de cavalo e os vinte e tantos de p que ele levara consigo. Trinta que foram. Pois foram; mas alguns tinham ficado feridos e j no podiam combater. Aquilo que foi um aperto! Os nossos acobardaram-se e Nuno lvares investiu sozinho contra os duzentos, numa tamanha fria, que parecia um toiro enlouquecido! Quebra-se-lhe a lana e arranca da espada. Os casteles a fazerem-lhe cerco, a apertarem com ele, e aquele valente, que parecia ter em si todas as destemidas almas de Portugal, a ensarilhar a espada e a derrub-los, que era um louvar a Deus. Foi anto que lhe mataram o cavalo. E foi esse o maior perigo! Tinha-lhe ficado um acicate preso cilha do animal; porm, mesmo assim, se defendia para acabar ali como quem era. E os outros que fugiram a verem-no de longe, os bandalhos! J o no podiam ver. Estava sumido na multido dos casteles, a ladrarem-lhe pragas e a cerrarem mais sobre ele o cerco das suas lanas e espades. Os que fugiram interveio, afogueado, um dos Ouvintes esses fugiram porque um deles gritou que de todas os lados nos vinham cercando os da armada, depois tiveram remorso da sua fraqueza e, com o clrigo Vasqueanes do Couto, de besta em punho, foram socorrer Nuno lvares e ao seu lado lutaram. Eu era desses. Mas sabei tambm que afinal, com Nuno lvares adiante de ns a p, de lana em riste, rompemos o cerco e de arrancada levamos os casteles at praia. Parecia que os demos levavam asas nos ps, e foi de cambulhada que eles se escapuliram para os batis! E l se foram como galinhas chocas para as suas capoeiras embreadas, que como quem diz, para as suas naus e gals. Setenta eram elas, que as contei eu quando entraram no rio e bem me lembro que foi pelos comeos de Abril que elas entraram. E por meados de Agosto que foi o feito de Santos. Coisas so essas que nunca a gente esquece, ainda que hajam passado muitos anos, quanto mais ao cabo de dois, feitos h um ms. Pois sabei l interveio um velho, que fora jovem cavalario do pao no tempo de el-rei D. Fernando que tambm de Nuno lvares eu tenho algo que contar. Dizei, dizei instaram. Ouvi l! No meio do ano que passou fomos daqui para Elvas a levar ao rei de Castela a noivazinha que lhe tinham contratado. Maldito contrato foi! Maldito, que por ele vieram ainda mores desgraas para esta nossa terra! Dizeis bem, mas o que no tem remdio remediado est, e agora resgatar a poder de sangue o mal que outros fizeram. A noiva de onze anos l ia, coitadinha, com a loba da me e a melhor fidalguia de Portugal. E el-rei? Esse no foi. Tinha ficado doente ali em Almada; a deitar golfadas de sangue, a vida por um fio. Desgraado rei e ainda mais desgraado marido! A Nao no lhe podia querer bem e a mulher nunca lho quis! Mas, como eu ia dizendo, aquela senhora infanta D. Beatriz l foi por essas terras fora. Triste como a noite, a rapariga real! E em cada sol-posto, de pousada, e em cada manh de partida, cada vez mais longe de Lisboa, percebia a gente que os seus olhos mais tinham chorado as mgoas que a ningum dizia. Eu a acompanhava, eu via-a. E sempre ao p da Rainha aleivosa, o amante Galego, o Andeiro, que o Mestre depois matou! S por isso ele merece que o faam rei. Enfim, chegamos margem de c do rio Caia e ali pusemos arraial, no longe dos muros de Eivas. Armou-se uma grande tenda de campo. Nela seria o banquete real para festejar aquela noivazinha, que levava em dote para o rei castelo, com a cora do pai, se de el-rei era filha, esta nossa terra de Portugal e a ns todos para vassalos do marido. Assim no h de querer Deus que seja! Nem ele, nem ns! disse calorosamente o narrador mas assim foi que esteve para ser por culpa de muitos fidalgos e por contrato e combinao em que o povo no foi ouvido! Mas agora que chega o caso de Nuno lvares. Veio o rei dos casteles dos lados de Badalhouce com a sua corte, de tal luzimento que fazia inveja ao sol!. E mal avistou a rainha de c, Flor de altura e vergonha de mulheres honestas, logo se apeou e foi para ela, tomando mo as rdeas da mula em que ela vinha e levando-a assim para em frente da tenda grande, em que se ia dar o banquete. Cavalario como eu, real cavalario aquele soberano de Castela e Leo, gente da ral, porqu?! Por galante cavaleiro seria acudiu uma mulher que estivera escutando ou porque j Leonor Teles o houvesse enfeitiado. No, certo no, mulher de Deus! Com a noiva tamanina, filha da combora, ia o dote cobiado pelos reis de Castela, e a mo que segurava a rdea daquela mula um dia viria a segurar as rdeas do governo desta Nao, que fora de armas ainda no fora tomada. A est o que era. Bem sabia el- rei que prenda de criatura era a me da senhora Infanta, mas o dote era de estontear e por tal lhe depressou a sua homenagem como se em cima da mula fosse ali a santa rainha D. Isabel, que foi exemplo de mulheres casadas! Velhacarias do rei castelo, mas adiante. Entraram na tenda de campo el-rei com a linda boneja pela mo. A infantazinha ia triste e sumida ao p da me. Foi de novelo por ali dentro aquela fidalgaria toda com as suas damas, donzis, pajens e escudeiros, e mal a rainha e el-rei se assentaram mesa logo cada qual buscou lugar que mais lhe aprouvesse, em guisa de pegureiros que dos cercos houvessem chegado famintos. Atrs de todos entrou Nuno lvares com outro jovem da sua idade e da sua condio. Ia assim como quem fosse amotinado e vergonhoso. Nenhum lugar lhe tinham deixado os outros, e vai ele anto todo se curvou e disse para o companheiro, por modo que todos o ouvissem: No somos de prole para ter lugar ali! Pois maior honra para nos; porm ides ver que outros vo ficar sem lugar e ho de comer em terra. Com o rumor de tanta gente e a algaraviada das conversas poucos teriam dado tento destes dizeres. Eu ouvi, pois que me tinham mandado ali para dar ajuda aos outros, que iam servir aquela gente. E no ramos de mais. Mas tambm Iria Gonalves, me de Nuno lvares, que tinha ido como cuvilheira da senhora Infanta, tambm essa ouviu e ps os olhos no filho, muito velada e receosa. Vai anto Nuno lvares acercou-se da mesa dos fidalgos jovens de Castela e a eles lhes disse num trovo de voz: A minha prole no troco pela vossa e muito honrado fico saindo; mas o vosso banquete o heis de comer no cho! Deitou aquela sua mo, que maneja uma lana grande como se fosse um canio, deitou-a com ganas de homem faanhudo a um p da mesa e ela, e quanto em cima tinha, tudo foi bater em terra! Anda-me assim! aplaudiu uma das ouvintes. Aquele que um jovem desenganado! comentou um mesteiral. Boas febras do lado da me! disse uma velhita. E mais do lado do pai, que no podia ser casado. Deixai l, que temos a um par de bastardos, que valem a olhos fechados metade de Portugal. O senhor Mestre e o senhor Nuno lvares! E as mes de um e de outro muito pendem c para a nossa condio disse uma padeira, batendo com as mos espalmadas no peito, orgulhosamente. Mas deixai l contar o resto interrompeu um mesteiral. Dizei o resto pediu um alfageme velho.(*)
[(*) Alfageme era o barbeiro e tambm o que fabricava, consertava e polia espadas, lanas e adagas. Alguns exerciam cumulativamente os dois ofcios.]
O mais foi que, nem eu sei porqu, toda aquela fidalgaria se encolheu, a fingir que no entendia o desafio! continuou o narrador Ficaram todos de p, assim a modos pasmados daquele ousio. A pobre Iria Gonalves deu um grito de pavor no receio de que logo ali lhe matassem o filho; e o Mestre, que l estava tambm, ainda chegou a dizer numa tremura de voz: Nuno lvares! Mas ele ia j a sair e ento se voltou de arremesso para os fidalgos jovens de Castela: Quem do meu feito se haja por ofendido, a mim me encontrar daqui fora, e quem eu sou o sabeis todos vs. E saiu. El-rei estava enfiado; a real combora parecia de cera, mas os seus olhos deitavam lume. S a infanta menina que ia ser rainha parecia estar num sonho, alheia a tudo aquilo, com o choro a luzir-lhe nos olhos, tristes como a noite. Foi o rei castelo quem primeiro deu desculpa a Nuno lvares, considerando aquele feito como sinal de desvairo ou cime do jovem cavaleiro por alguns dos de Castela. Boas engolideiras tem o rei castelo comentou um dos ouvintes que de tal guisa desculpou o caso! E o banquete l foi por diante, ledo e farto, bem falazado, e bem comido. Ora, pudera no! E Nuno lvares? Todo aquele dia se ficou por ali prximo, a ver se algum o buscava, e, como nenhum tal fizesse, com os seus pajens, escudeiros e jovens fugiu para as terras do Minho. E depois voltou para c acrescentou o alfageme e em toda a parte aparece, tal como o nosso Santo Antnio de Lisboa! Zurziu os casteles do Alentejo, que o enxame de mais povo que tem Portugal, veio investir com eles em Almada e aqui o temos agora para algum outro feito maior. Reparai como repicam os sinos de S. Domingos! disse a velhita que tambm os sinos esto com a tanta alegria que a gente sentiu de ver c o nosso batalhador bem-querido e bem-fadado, benza-o Deus! E vamos indo para cima a ver quando ele sai da missa, ou aqui nos ficaremos pegados a falazar pelo dia adiante props o antigo cavalario do pao. Concordaram, e todo o grupo que se aninhara no recanto do alpendre, a contar casos do heri, seguiu para o Rossio grande.
* * *
O frade celebrante acabara a missa e descia os degraus do altar da Senhora da Escada. Nuno lvares erguera-se. Mulheres disse alto uma velha de voz dominadora trs ave- marias a Nossa Senhora para que Ela seja em todos os dias a divina guarda do senhor Conde D. Nuno lvares, em bem da nossa terra e da sua glria. Sentiu-se um rumorejar de jubilosa aquiescncia. A proponente era a nossa conhecida tia Lourena. Ao p dela, de rosto embiocado, estava ajoelhada uma mulher nova. Era Leonor de Gusmo. Nuno lvares ajoelhou, comovido. A regateira rezava alto, na sua voz mscula, a parte evocadora da orao; a parte rogativa, a Santa Maria como o povo lhe chamava, era entoada por todas as mulheres numa triste melopeia. E pelas melhoras de Ruy rezaremos ss, ns ambas segredou-lhe Leonor, mal acabaram de dizer a terceira ave-maria. Todas que h de ser, que lho vou eu pedir volveu-lhe baixo. E logo no seu vozeiro solicitou: Mais uma ave-maria por caridade, para que a nossa bendita Senhora e Me d melhoras a certo jovem cavaleiro, destemido defensor desta cidade, que pelos casteles foi ferido e s portas da morte tem estado e estar, se lhe no acudir a divina misericrdia. Eu muito vos peo, mulheres de Deus. Algumas sabiam, ou presumiram quem era, e logo murmuraram o nome de Ruy de Vasconcelos. Feita aquela piedosa reza, todas elas se ergueram e foram em fila pia da gua-benta para se benzerem ali, aspergindo-se umas s outras. Nuno lvares saiu. O terreiro estava apinhado de gente. Montava a mula que um pajem lhe trouxe pela rdea, quando uma voz lhe clamou febrilmente. Viva quem a maior alma e a melhor lana que tem Portugal ao lado do Mestre! Viva! clamaram centenas de pessoas, que se enovelaram para verem melhor o heri. E a repercutir-se de onda para onda, naquele mar irrequieto de gente, o brado glorificador foi altear-se com mais intensa vibrao no Rossio grande, j apinhado de madrugadores. Ascendendo desafrontado pela crista dos montes, o sol punha fulgores radiantes no bacinete e no peito polido do jovem campeador quase envolto em nimbos de sonho e de lenda. J montado, Nuno lvares tomou das mos do pajem de armas o seu pendo branco recamado de imagens, e ergueu-o. Iria com ele por entre o povo at ao pao do Limoeiro, deixando-o voejar alto na aragem daquela manh glorificadora. Mil pessoas como se tivessem uma s na alma romperam em gritos trementes de saudao, olhos rasos de gua naquele pedao de damasco, a simbolizar o paladino de miraculoso esforo. Senhor D. Nuno! disse a tia Lourena, acercando-se dele frente de um magote das suas mulheres batalhadoras. Dizei volveu-lhe afetuosamente. Deixai que em louvor da vossa me, bendita me que tal filho deu ao Mundo, ns, as mulheres, beijemos a vossa bandeira. So estas da minha hoste que iam aos muros da cidade, como os homens, para combater os negregados de Castela. A sorrir, o leo dos Atoleiros inclinou para elas o seu pendo de batalha. Beijaram-no fervorosamente, a duas e duas, na orla franjada a ouro. Olhai c disse Nuno lvares para a velha Lourena enquanto as outras iam beijando o pendo Por qual jovem cavaleiro pedistes vs aquela ave-maria? Pelo valoroso Ruy de Vasconcelos, filho de D. Dulce Rodrigues de Vasconcelos. Ah! Que a esse bem o conheo eu! Pois por esse foi a inteno. Ferido dissestes que estava? Em perigo de vida, e daqui me vou a saber dele. Pois dizei l a D. Dulce que muito lhe desejo as melhoras do filho e em pouco l irei saber dele, e levar-lhe a ela as minhas homenagens. Senhor, sim, o vosso recado l ser entregue. Nuno levantou o pendo e deu um sinal aos trombeteiros, que logo abriram caminho, tocando as longas trompas reluzentas. Ai, mulheres dizia a tia Lourena aquele o anjo da guarda desta terra, tal qual esse arcanjo que ali tm os frades, todo de armadura doirada e espada de fogo! A bendita imagem do senhor S. Graviel acudiu uma linheira nova, estropeando o nome do arcanjo Gabriel, que os escultores antigos representavam de capacete emplumado, couraa dourada, no ar, fulminadora, a espada flamejante. E a esganar debaixo dos seus benditos borzeguins de ouro a excomungada pescoceira de Belzebu acrescentou outra, benzendo-se. Que isso mesmo o que Nuno lvares ainda h de fazer um dia ao leo gadelhudo de Castelha. E adeus, que eu tenho de ir agora saber de um ferido que est muito mal. Sim, me Lourena, vamos disse-lhe Leonor na sua voz dolorida, como se vibrasse nela um timbre de mgoas que no tinham fim. Afastaram-se as duas e l foram a caminho do velho palcio de D. Dulce. Aquela embiocada a tal que enlouqueceu? perguntou uma rapariga a uma velha que era muito da tia Lourena. , sim. A vida dela dava um conto de fazer chorar as pedras! Mas agora j no faz desatinos! Coitadinha! Quis Nossa Senhora que ela melhorasse, e foi talvez nas tantas lgrimas que tem chorado que a loucura se lhe afogou! Que a sua loucura nunca foi de toda a hora e daquelas que no tm cura. No foi ela que ficou ferida na estacaria da Ribeira? Foi, sim, mas dessa ferida em poucos dias se curou. A pior a outra, j antiga, que ela tem no corao, que essa talvez nunca tenha cura! E foram seguindo com outras para o terreiro de Apar S. Martinho.
* * *
O Mestre de Avis j estava prevenido da chegada de Nuno lvares. Logo ao romper da manh o fora avisar o anadel dos besteiros que estavam na guarda das Portas do Aougue. Esperava-o com fraternal alvoroo. Bem sabia que tinha naquele seu irmo de armas a melhor lana e a maior alma de Portugal, como o povo dizia. As suas excecionais virtudes e os seus altos mritos em muito lhe resgatavam as temeridades de cavaleiro andante, j um pouco deslocado do seu tempo, e os arrebatamentos de sonhador mstico nas incongruncias da sua condio de batalhador. A f religiosa era realmente a suprema fora na alma crente de Nuno lvares e o sonho a suprema poesia do seu corao de patriota. Como os grandes homens de guerra de todos os tempos, Nuno lvares acreditava no seu destino; mas para ele o destino vinha do cu na vontade de Deus. Como Napoleo, quatro sculos depois, o vencedor dos Atoleiros tinha tambm a sua estrela; mas esta era a estella mater dos msticos e dos ascetas, a estrela feita do olhar doce e piedoso da Me de Jesus. O Mestre sabia compreender aquele jovem, quase da sua idade, e estimava-o como um poder prestigioso de que se no pode prescindir e como um irmo dileto cuja ausncia nos enche de saudade. Irmo de armas dissemos j que era. Irmanava-os o esforo, ainda que no os germanassem os coraes. Pela causa da mesma Ptria lidavam, tinham idntico ideal poltico, era a terra portuguesa o lar sagrado de ambos, e to irmos os fizera o acaso do nascimento e uma coincidncia de circunstncias, que at ambos eram bastardos e a mesma armadura infantil com que o Mestre recebera a sua iniciao de cavaleiro aos doze anos, servira tambm ao pequeno Nuno lvares, pajem da rainha D. Leonor Teles, que pelas suas prprias mos lhe cingiu a espada de cavaleiro. Ao lado do homem poltico e do astuto e refletido diplomata que devia de ser e era o filho natural de Teresa Loureno nas suas condies de chefe de um estado, convinha e era um poder de estmulo e de prestgio a alma imaculada e crente e o nimo intemerato e rtilo daquele bastardo de Iria Gonalves. O prprio Mestre assim o entenderia, e eis aqui porque ele o estava esperando no pao do Limoeiro com aquele fraternal alvoroo, perdoando-lhe a insubmissa e temerria impacincia que o trazia a Lisboa. Que j no era a primeira insubmisso nem seria, provavelmente, a ltima. E assim que o jovem natural do Alentejo entrou no terreiro do Pao, logo o Mestre desceu a grande escadaria exterior para ir ao seu encontro. Foi uma receo enternecedora. Amigo e irmo meu! disse-lhe o Mestre, abraando-o fervorosamente e beijando-o na face. Mestre e amigo meu! exclamou D. Nuno, apertando-o contra si, comovidamente. E logo dobrou o joelho e tentou beijar-lhe a mo como se ele j fosse rei. O Mestre escusou-se insistentemente a semelhante homenagem e procurava ergu-lo, chamando-lhe irmo e o seu igual. E at vs, Nuno lvares, muito mais fizestes do que eu, aqui encerrado. A mo vos devem de beijar a vs, que vencestes uma batalha, e por tal vos devo eu quantas graas me for dado conceder-vos em nome da Nao. A insistncia de Nuno lvares venceu afinal, e como a um soberano lhe beijou a mo. A ambos os vitoriaram ento os fidalgos, com os olhos rasos de gua, e como eles o povolu, que enchia o terreiro. Depois, o Mestre subiu com ele e l foram os dois conferenciar acerca do que importava fazer naquela conjuntura de enormes dificuldades e gravssimos perigos, pois que os recursos do Pas eram pobrssimos em homens de guerra, em navios, em dinheiro e at em armas. Nem com algum socorro que viesse de Inglaterra se poderia reunir armada que valesse metade da que tinha Castela, nem exrcito que pudesse lutar com os Castelhanos, se no em perigosa desigualdade de nmero, tal como j sucedera nos Atoleiros.
* * *
Minutos antes, no pao de D. Dulce, uma velha heroica da ral, a tia Lourena, subia a grande escada antiga para ir saber notcias de Ruy de Vasconcelos. Ao fundo da escadaria, num recanto escuro, ficara uma mulher que no quisera subir. Ningum lhe poderia ver o rosto, que fora encantador e era ainda formoso, e ningum lograria adivinhar em que tremura do corao e em que silencioso choro ela estava ali esperando. Assim, como pedinte envergonhada espera de uma esmola, aquela que fora dama da rainha e enlevo dos gals da corte, quatro anos antes! Veio falar regateira o velhinho Gonalves Vasques. Ah! Sois vs disse, reconhecendo-a, porque ela ia l todos os dias. Venho minha devoo. O senhor Ruy, vosso amo? Poucas melhoras, se algumas tem! respondeu-lhe tristemente Parece que no quer Deus ouvir-nos, nem quela amargurada me e senhora minha, que tanto tem padecido pelo filho! J hoje eu rezei por ele, eu e outras, depois da missa das almas no altar da nossa Senhora da Escada, e a ela assistiu o senhor Nuno lvares. Nuno lvares! Ento ele est agora em Lisboa?! Chegou c esta madrugada. No sabia! E no admira. A tristeza encheu esta casa e no h cabea nem corao para pensar noutra coisa e senti-la, que no seja na doena daquele nosso querido e mal-aventurado fidalgo! Pois Nossa Senhora nos oua a todos e vos melhore. Eu trazia um recadinho do senhor Nuno lvares para a nobre senhora desta casa. Ningum a arranca de ao p do filho. S no dia da grande procisso de penitncia quis sair, pois tamanha devoo e esperana era a sua, que lhe pareceu traria de l a sade daquele filho! Pois ento dai-lhe vs o recado, que tanto monta como dar-lho eu. Sim, dou; dizei. O senhor Nuno lvares manda-lhe o seu voto pelas melhoras do filho e prometeu vir c brevemente para prestar sua homenagem nobre senhora. Est bem, e muito obrigado por ela. Ide descansada, que o recado lhe ser entregue. A tia Lourena desceu. Leonor veio logo ao seu encontro, numa aflitiva impacincia. Me Lourena, dizei pediu-lhe sumidamente Piorou? No; louvores a Deus. Vo as melhoras indo devagar, muito devagar para o que a me e ns desejvamos respondeu-lhe com intenso d. E logo saram.
CAPTULO XVIII REI ELEITO
Estamos a 2 de Outubro. Era de manh cedo e j o Mestre e Nuno lvares ficavam em nova conferncia acerca dos negcios do reino e das precaues para uma outra guerra, que se podia considerar inevitvel. O glorioso jovem do Alentejo conseguira que o Mestre perfilhasse, como de exclusiva iniciativa sua, alguns alvitres que lhe havia proposto. Entre outros, o de receber juramento de preito e menagem aos fidalgos de qualquer categoria, cavaleiros e escudeiros, que ainda o no tivessem prestado, como tinham feito os de Entre Douro e Minho. Assim os seguraria melhor e com maior e mais devotada lealdade adstritos sua autoridade, quase soberana, de Regedor e Defensor do reino, ou regente como hoje se diria. E to de alma tomou D. Joo este conselho, que logo naquela mesma manh, mal o sol despontava, ouviu o parecer do doutor Joo das Regras e, com o seu voto de aplauso, mandou aviso aos fidalgos e cavaleiros para o acompanharem do pao ao alpendre de S. Domingos onde era preciso se tratassem assuntos urgentes do Reino. Marcou-lhes o meio-dia para a reunio no pao. E ao Juiz do Povo o mandou chamar para vir sem delongas falar-lhe ao Limoeiro. Mas o emissrio do Mestre encontrou o tanoeiro logo ao adro da S. Vinha j no propsito de falar a D. Joo. Ora bem-vindo seja o honrado Juiz do Povo de Lisboa. Senhor, agradecido, e muita glria queira Deus conceder ao ilustre Regedor e Defensor destes Reinos. Assim cedo vos mandei chamar para um caso de subida importncia. Mestre, dizei e mandai. Quero agradecer ao povo de Lisboa o muito nimo e constncia com que defendeu a cidade, os donativos e emprstimos que por amor da Nao tm feito os de mais teres, para acudirmos s despesas da guerra e, enfim, o muito que todos se tm esforado por salvar Portugal. Sou pela Nao, como seu procurador bastante e principal devedor, e quero fazer o ajuste das contas diante do povo de Lisboa, e tratar da paga que se lhe pode e deve dar e do mais que a Ptria ainda tem de lhe pedir. O tanoeiro sorriu com um claro de jbilo no olhar, como se aquele propsito do Mestre viesse ao encontro de algum plano seu. Mandai-me avisar j os da Casa dos Vinte e Quatro para que convidem todos os homens dos ofcios e mesteres a irem juntar-se consigo e com os fidalgos e cavaleiros da cidade, meia hora depois do meio-dia, no alpendre de S. Domingos, onde muito me apraz v-los e falar-lhes. E, a sorrir para ele, acrescentou: Ali se fizeram as nossas cortes de gente humilde em que to graves coisas se decidiram, e vs, mestre Afonso Eanes, o sabeis melhor do que ningum, pois l fostes a alma e a vontade que me fez Regedor destes Reinos. E por fortuna de Portugal me deu Deus nimo para aquela ousadia de vos tomar as rdeas do cavalo para que vos no fosseis de Lisboa volveu- lhe tambm sorrindo. Iria para buscar auxlio em Inglaterra. Que tanto podia tardar, que chegasse fora de tempo cidade, j vencida e talvez j queimada pela gente de Castela! Da minha sorte decidistes vs, Afonso Eanes, e muito vos devo e deve Portugal, pois que bem se podia dizer que a vida da Nao estava em Lisboa. Sem as vossas palavras de homem leal, e a vossa rija vontade de homem de espada, que tambm sois, nem o povo se decidiria a tomar deliberao pela sua prpria causa, nem eu podia ficar sem ter confiana no povo. Lembro-me bem de quanto se passou disse, pondo-lhe a mo no ombro A poder de boas e calorosas palavras, movestes os mais indecisos e de mo na espada fizestes calar os que de mim duvidavam. Mestre e senhor, o corao estava a dizer-me que reis vs o chefe de que o povo precisava, para que as espadas dos Castelhanos o no levassem diante de si como rebanho de carneiros sem zagal. O meu corao fez o seu dever e j est visto que no errou.
Veremos, veremos! Ainda agora a jornada vai nas suas primeiras horas e ningum pode adivinhar o que ho de ser as outras! Mas ide-me depressa fazer o aviso e mandai deitar bando para que da cidade v l quem quiser. Mestre, o aviso est feito. O aviso feito?! Como assim, se eu vos no posso crer adivinhador do meu propsito, ainda h uns instantes tomado?! Mestre, eu j tinha falado ontem noite aos da Casa dos Vinte e Quatro para nos juntarmos em S. Domingos com o povo e dali nos fomos para este pao. Para qu, mestre Eanes? Para que o povo da cidade aqui viessem agradecer-vos a vossa honrada tutoria como de pai e o vosso bendito esforo, a fazer lembrar de m sombra a cobardia de certos reis. O povo ainda se no esqueceu de outro, que de Lisboa fugiu para Santarm, levando oculta debaixo do seu manto real a espada que fazia falta na cidade, de todo abandonada aos seus inimigos de Castela (*).
[(*) Era referncia a el-rei D. Fernando, que na desastrosa invaso de 1373 fugira de Lisboa para Santarm, deixando a cidade ao desamparo e sem socorro contra as arrogncias e a selvajaria destruidora dos invasores.]
O Mestre afogueou-se. O tanoeiro percebeu, e acudiu logo pelo resgate da irreverente evocao: Perdoai, senhor, porque vosso irmo era o rei que abandonou esta cidade, por vs com tamanha dedicao e grandeza de nimo h pouco ainda defendida com glria vossa e honra de ns todos. Sim, sim... guas passadas, mestre Afonso Eanes. Ide-me vs l para S. Domingos a receber o povo como seu juiz e dizei-lhe agora que sou eu quem o vai visitar e lhe quer dizer quanto lhe deve o Regedor do Reino e o mais que ainda ser preciso fazer para ver se, com a ajuda de Deus, podemos salvar Portugal. Ide, que l naquele alpendre onde as mores causas se tm decidido, sois vs o maior. E, voltado para Nuno lvares, acrescentou, sorrindo: J o povo lhe tem chamado o seu condestabre (*).
[(*) a forma arcaica de condestvel, categoria militar criada e definida em Portugal no reinado de D. Fernando.]
Um dia, que no tardar, haveremos outro novo Condestvel para o Reino, jovem glorioso que todos conhecem. Ia jurar que o nosso Juiz do Povo certo adivinhou j quem h de ser. Mestre e senhor, nem preciso adivinhar. Est no vosso e no corao de todos. Para o mando, abaixo de vs disse calorosamente a Nao no v outro que no seja o senhor D. Nuno lvares Pereira, Conde de Ourm. O tanoeiro dissera isto solenemente, tratando o jovem campeador por um ttulo que o povo ainda se no costumara a dar-lhe. Era ttulo recente. O Mestre agraciara-o com ele em 1 de Julho, daquele ano, em prmio dos seus assinalados feitos nas longas e porfiadas campanhas do Alentejo e com o ttulo lhe dera os bens que tinham sido do amante e valido de D. Leonor Teles, o famoso Galego Joo Fernandes Andeiro, assassinado no desvo de uma janela daquele mesmo pao do Limoeiro. Por ser recente e talvez por ser o ttulo que o Andeiro tivera por favor de el- rei D. Fernando e a pedidos provveis da rainha adltera, e mais talvez pelo odioso precedente, repugnaria plebe substituir pela designao do condado aquele nome radioso de Nuno lvares, que de ls a ls de Portugal, em toda a Espanha e na prpria Inglaterra soava j como se cada uma das suas letras fosse a nota pica de um clarim de batalha. D. Nuno afogueou-se. Aquele louvor, claro e cho, na boca do mesteiral afeito a dizer as mais duras verdades aos grandes e privilegiados, valia mais, tinha mais envaidecedora significao e era menos suspeito do que se, por iguais palavras, lho dissesse o Mestre, seu amigo de infncia e o seu irmo de armas. Agradeceu-lho comovidamente, pondo nele com afetuoso desafogo os seus olhos azuis de sonhador. Eanes despediu-se e disse ao Mestre com particular inteno: O povo de Lisboa aguardar vossa real senhoria. O Mestre estremeceu. Dava-lhe o tratamento a que s tinham direito os reis. L estarei com o povo hora que vos disse.
* * *
E mal sonha ele a grande e justiceira hora que vai ter em S. Domingos! ia o tanoeiro dizendo de si para si a caminho do Rossio grande, o olhar num imenso fulgor de jbilo Que pesar por aquele desventurado Ruy no poder assistir! O seu corao entenderia o meu. Assim que chegou ao Rossio, tomou logo apressadamente para o edifcio prprio que tinham os seus colegas da Casa dos Vinte e Quatro. A casa daqueles deputados, artfices eleitos pelos seus pares, era de modestssimo aspeto e ficava do lado oriental do Rossio, a uma dzia de passos, a bem dizer, do convento de S. Domingos. A mediania da casa contrastava profundamente com a alta preponderncia social da corporao (*).
[(*) Naquela poca, excecionalmente democrtica, foi tal a preponderncia dessa coletividade de mesteirais, que ficou de tradio e ainda, h vinte ou trinta anos, era corrente entre a nossa gente das provncias mais aferradamente tradicionalista, esta expresso indicadora do prestgio e influncia pessoal de algum de baixa condio: Aquele da Casa dos Vinte e Quatro!]
Afonso Eanes entrou e subiu para a casa maior, a sala do conselho. Estavam reunidos os mecnicos; esperavam-no evidentemente. E da, mestre Afonso Eanes? perguntou o mais idoso, calafate da Ribeira Vamos l ao Mestre? No; vem ele c. Ele! A esta casa? Ao alpendre de S. Domingos com os seus prelados e nobres e cavaleiros para se entender com o povo l numas coisas do seu corao e do seu ofcio de Regedor do Reino. E resumiu-lhes em brevssimas palavras as intenes de D. Joo. E ento ns? L iremos para outra vez. H de querer Deus que no faltem ocasies. E vai da pe-se agora de lado aquele vosso propsito? Quem fala em tal! Para diante com ele que . E agora ainda melhor, porque haver mais povo e ali, a cu aberto e fora do pao, parece que tem a gente a lngua mais desemperrada e o corao mais boca. Mas olhai c, mestre Leonardo e vs todos, bons e honrados mesteirais da Casa dos Vinte e Quatro, no tocante ao nosso segredo bico fechado e nem pio, que para depois termos mais alma na voz e mais aprazimento com a surpresa dos fidalgos e com o alvoroo do povo. H de a gente fazer de conta que so ali as cortes, naquela alpendrada de S. Domingos. J que h tanto se no convocam por mandado de reis, ns as convocamos, ns os dos ofcios, pela nossa conta e risco, e desta vez, bem o creio, com mais proveito e para maior justia que algumas das antigas de que h memria. Pois assim ser apoiou o mestre Leonardo. Homens, olhai que o povo tem subido! J no vai atrs de prelados e ricos-homens como rebanhos de borregos, nem j pertena de gente privilegiada, dentro do seu pedao de cho cativo, como foi no tempo dos nossos primeiros reis. Em tudo algum. Outro poder com o qual h duzentos anos certo se no contava. Ganhou-se custa de resignao, de sacrifcios, de amarguras, de contendas, de sangue; mas foram os nossos maiores que ajudaram tambm a formar a Nao e obtiveram dos reis os forais dos concelhos e, pela sua valia, a entrada dos seus procuradores em cortes. Estavam os mesteirais a ouvi-lo numa tremura de comoo. Sentiam na alma as palavras calorosas de sugestivo orgulho e de justiceira verdade, daquele mesteiral glorioso de Lisboa. J a gente sabe de quem vem continuou Afonso Eanes Tambm somos filhos de algo. O meu terceiro av, tanoeiro como eu, foi da peonagem de Portugal que pelejou contra a mourama das Espanhas e de Marrocos em certa grande batalha, que se chamou das Navas de Tolosa (*).
[(*) A batalha das Navas de Tolosa (1212), das maiores e mais sanguinolentas da Idade Mdia, pode considerar-se por si uma cruzada da Pennsula, como, no sculo seguinte, a outra do Salado. Todas as principais foras dos mouros da Espanha se tinham reunido a um potentssimo exrcito expedicionrio, vindo de Marrocos. Contra este poder formidvel se congregaram as hostes de Castela e de outros Estados cristos da Pennsula, com excluso do reino leons, que preferiu continuar as suas hostilidades na fronteira de Portugal! At de Frana chegaram auxiliares para opor quela invaso temerosa. Apesar da guerra que tinha da gente leonesa, Portugal mandou tambm uma pequena hoste para aquela cruzada, e essa quase toda de infantaria, peonagem. O poder mouro foi desbaratado, e a infantaria de c, a plebe da hoste, tais prodgios fez, que em muito contribuiu para aquele desbarato, que salvou a Pennsula e talvez uma parte da Frana.]
Em socorro de Castela, ouvi eu contar a um frade antigo acudiu mestre Leonardo. De toda a cristandade das Espanhas e de Frana que foi, consoante certa velha crnica existente no convento de S. Francisco. Leu-ma um tio meu, que frade daquela casa. E sabei que, se os fidalgos com razo se ufanam da batalha do Salado, em que os cavaleiros de Portugal se assinalaram, ns, os do povo, muito nos podemos orgulhar da outra de Navas, em que a peonagem portuguesa fez coisas de assombro! Assim o diz a tal crnica velha que eu ouvi ler. Bem falado, mestre Eanes! aplaudiu o velho calafate entusiasticamente. Boas e honradas palavras! disseram os outros, envaidecidos nas suas prospias de plebeus e mesteirais preponderantes. Contam os velhos prosseguiu o tanoeiro contam de o ouvir dizer, que a certas cortes que se reuniram em Leiria, nos tempos do senhor rei D. Afonso, terceiro do nome, pela primeira vez foram chamados os procuradores dos concelhos, que como se dissssemos os procuradores do povo, e l se juntaram com os prelados e fidalgos. Pois daqui a duas horas se ho de reunir outras cortes, que no tm antecedentes e sem nenhum cerimonial as heis de ver. Nem bancos marcados (*), nem procuradores a falarem pelo povo, porm o prprio povo pela sua conta e todos de p, alto e baixo, filhos de reis e filhos de britadores de pedra, e cada um para dizer o que no seu corao sentir. Assim, certo nunca houve nenhumas cortes nesta nossa cerra!
[(*) Nas antigas cortes os procuradores dos concelhos, deputados do povo, tinham bancos numerados segundo a importncia, antiguidade e regalias do concelho que representavam.]
Honrada coisa h de ser, por vida minha! comentou o mestre Leonardo Mas olhai que se corre o perigo de algum desmando do mulherio e da arraia-mida. Tal no receeis. Ali no haver que diferenar mulheres e arraia-mida; haver povo, o povo de Lisboa, e esse no se desmandou nunca diante do Mestre. E que algum houvesse para tal, que eu saberia ter mo nele. J sabem que, para conter onzeneiros e assomadios, nem preciso da minha vara de juiz. J no estranham o punho de uma espada estas mos calejadas no cabo da enx. Mas nem vale agora perder tempo com tais receios; pelo povo de Lisboa fico eu e ficais vs. Sim, sim! De tal modo h de ser! apoiaram todos. Est bem. Tnheis falado ao povo para se nos juntar em S. Domingos, por volta do meio-dia, no assim? A quantos eram do nosso conhecimento e encontrmos lhes fizemos o pedido respondeu o mestre Leonardo E todos ficaram de vir. Antes do meio-dia, como se combinou? Antes, e alguns prometeram trazer outros consigo. A esta hora iria jurar que j no haver na cidade pessoa que desse juntamento no saiba. Um frade de S. Domingos me disse a mim que havia de mandar tanger os sinos para chamar ainda mais povo. Ho de tanger todos os sinos, que disso vou eu tratar, antes que chegue a hora de l estarmos. Muitos curiosos certamente vos tinham de ter perguntado o fim do juntamento? Todos a quem nisso falvamos, e a todos respondamos que era para irmos ao pao do Limoeiro dar os agradecimentos ao Mestre. Do resto nem palavra. Pois agora ainda coisa maior h de ser e com mais luzimento.
* * *
A igreja de S. Domingos era ento, como hoje na sua feio moderna, um dos mais sumptuosos templos de Lisboa. O convento dos frades que naquele tempo se reduzia a uma singela e humilde edificao, a contrastar com a igreja de esguios colunelos gticos, altas janelas de vitrais e extravagantes ornamentaes esculturadas, numa profanada reconfuso de arcanjos e stiros, de centauros escandalosamente nus e demnios grotesca-, mente hediondos. Era assim o estilo arquitetnico dos templos medievos, apesar da altivez monumental das suas linhas e da grandeza melanclica das suas naves, mergulhadas numa penumbra de misticismo sonhador, que apenas as luzes dos altares ou algum raio de sol, atravs dos vitrais de figuras bblicas, um pouco logravam rasgar. O mosteiro, de janelas estreitas como seteiras, tinha um s pavimento, a que servia de fronteira uma larga alpendrada sobre o terreiro, contguo grande praa irregular que era ento o Rossio. Do lado do oriente se lhe avizinhavam as hortas mirradas e os pomares mortos da baixa Mouraria, e do norte quase se extremava com os primeiros hortejos de Valverde, revolvidos durante os primeiros tempos do cerco por mos de famintos que buscavam os talos e as razes secas de hortalia. Diante daquela alpendrada de altiva histria esperara inutilmente o alfaiate Ferno Vasques frente de uma multido revolta, que el-rei D. Fernando viesse dar conta ao povo, como prometera, do propsito infamador que lhe atribuam, qual era o de casar escandalosamente com D. Leonor Teles, esposa legtima de Joo Loureno da Cunha. O rei faltou, fugiu de Lisboa para Santarm e o ignominioso casamento fez-se no Porto, na igreja de Lea do Bailio. A esttua de carne tentadora e entranhas de tigre logrou depois vingar-se do atrevido plebeu, que ousara ter vergonha e pudor por conta do rei enfeitiado. Aquela revolta de 1371 pagou-a com a vida o intrpido Ferno Vasques. Ele e outros homens principais do motim. Leonor Teles no esquecia; aquele alfaiate fora o malogrado zelador da honra e da fama de uma coroa que ela conspurcava. Mas os Castelhanos largaram o cerco de Lisboa, o de 1373, todo crueldades e assolaes, o rei voltou com ela de Santarm, onde cobardemente se tinham aninhado, e pouco depois o dio vingativo da real adltera saciava-se, conseguindo que o segundo marido infamado entregasse ao carrasco os maiorais da revolta. Foram enforcados; mas para Ferno Vasques, porque tinha sido o mais audaz, o caudilho da multido protestante, para esse houve uma fnebre distino. Antes de o enforcarem, deceparam-lhe as mos. Foi para o cepo ainda mal restabelecido de um ferimento grave, que lhe tinham feito os Castelhanos numa das suas arremetidas maiores pela rua Nova acima. Provara o alfaiate decepado que, se tinha boca para dizer alto duras verdades de plebeu honesto, tambm lhe no faltava rijo pulso de lutador para rebater os inimigos da Ptria. Depois, como j sabemos, foi naquele Frum da alpendrada de S. Domingos que se fez a revoluo redentora contra o herdeiro castelhano, e se abriram os maiores destinos da terra portuguesa. E foi Afonso Eanes uma das principais figuras daquele movimento, que mais tarde havemos de ver a qual pico desenlace pde chegar.
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Mal passava das onze horas e j o terreiro de S. Domingos estava apinhado de povo, a transbordar at ao Rossio. Na alpendrada, Eanes e os da Casa dos Vinte e Quatro conversavam com dois velhos frades dominicanos. Parecia que estavam combinando alguma coisa de alvoroo. Um dos frades encerrou a palestra com esta promessa: Ficai na certeza, mestre Eanes, de que essa hora de justia h de ter o luzimento e a solenidade que merece. Heis de ver como no vosso intento vos ajudamos. Nisso creio e de todo o corao vos agradeo, senhor Frei Joo do Nome de Deus. Os frades retiraram-se. Estava-se numa impacincia em que os minutos parecem longos como horas. Tinham um triste aspeto os trajos daquela populaa, homens e mulheres vestidos de gr e burel pardo ou de almfega de luto pelos que lhes tinham morrido no cerco. Alguns tons de cores vivas apenas nas saias de valenciana e nos saiotezinhos de jovens garridas. Os carapuos escuros e os chapeires ingleses ( inglesa) punham manchas ainda mais soturnas naquele imenso quadro, a que servia de fundo o velho pao gtico do almirante. Mas a mobilidade da multido, sacudida e irrequieta, o alvoroo das fisionomias, numa expresso de insofrida curiosidade, e a loquacidade vibrante e pitoresca das mulheres, vivamente contrastavam com o aspeto sombrio dos trajos. Era enfim meio-dia. Anunciavam-no as badaladas das torres; de sbito, a multido emudeceu. Os homens descobriram-se reverentemente e toda aquela gente, de mos postas, rezou trs ave-marias num rumorejar intenso como de carvalheiras que uma aragem forte de repente houvesse agitado. Benzeram-se, saudaram-se. Santo dia, e para bom fim no-lo d Deus diziam as mulheres. E todos os sinos da cidade desataram em repiques festivos como se fosse um dia santificado aquele calmo e doce dia de Outubro, cheio de sol. Um velho de samarra de burel, corda de esparto a cingir-lha na cintura, cabeo e capuz recamado de conchas, veio atravessando por entre a multido, a pedir mansamente que lhe abrissem caminho. S c faltaria este pelegrino com o seu bordo e as concheias! observou uma rapariga. E as suas barbas mais brancas do que uma estriga de linho bem curado! disse outra. As conchas so do santo rio Jordo onde Nosso Senhor recebeu o seu divino bautizo explicou uma velha. Mas j o vi eu a lutar numa gal contra os casteles como qualquer dos melhores cavaleiros! acudiu um galeote. Fidalgo ser e cavaleiro de outros temos que ande na remisso dos seus pecados alvitrou a velha J eu conheci um, Deus lhe perdoe, que, por amores de pecado e morte de homem, fugiu para a Terra Santa e de l voltou, sem nunca deixar o burel e o bordo. E nunca a ningum quis dizer quem era! Morreu ermito entre os fraguedos da serra de Sintra! S eu sabia quem ele era. Deus o tenha consigo! Pois deste um dia se vir a saber quem ou quem foi. Teve boa pousada no pao de D. Dulce de Vasconcelos e por l se deixou ficar. A tia Lourena talvez saiba quem ele . Vai muito a casa dessa tal dona. Ide perguntar-lho. No estou agora para isso. H de vir a saber-se, sem que a gente ande por a a indagar quem vem a ser esse monge barbudo, que, pelos modos, no peco para arremeter nas lutas. E com estas e outras conversas se iam entretendo para que lhes no parecesse to longa a demora. Mas porque espera Afonso Eanes? perguntavam os mais impacientes. Ele e os Vinte e Quatro!? Pois se este juntamento foi para irmos ao Mestre a dar-lhe os nossos agradecimentos, porque ficamos aqui pasmados? Agora ouvi dizer interveio um alfageme que j no a gente que vai dar os agradecimentos ao Mestre; porm ele quem aqui vem para nos falar e agradecer, e por tal modo o esto esperando os dos Vinte e Quatro e mais o nosso juiz. Aquele alfageme era mais rapador de barbas que armeiro e, na sua tendncia histrica de alvissareiro e rebuscador de novidades, mantinha galhardamente as tradies da sua classe, as nicas talvez com maior tenacidade mantidas ainda neste nosso tempo. Sabia as coisas primeiro que o resto do Mundo, parecia farej-las quando no as podia colher de fonte segura, e at tinha a arte insigne de contar como notcias recentes as que todo o Mundo j supunha velhas. Mas aquela nova, que ainda no era sabida de muitos, encheu de consolo e de ingnuo desvanecimento as almas dos seus ouvintes, gente rstica na esperana de um novo destino, de que o Mestre seria o penhor e o smbolo. Vem c ento! H de saber-lhe bem vir a este stio falar ao povo. Aqui foi que, em boa hora, o almos para nosso Defensor e Regedor do Reino. O nosso Mexias que Deus nos mandou! disse a velha carinhosamente. Messias, mulher de Deus, Messias para redimir a Nao emendou o alfageme, uma das ilustraes da sua classe, por erudio vria que apanhava de ouvido aos cnegos da S, os seus fregueses de mais alto coturno.
* * *
Veio dos lados da S uma vibrao intensa de trombetas. A multido remoinhou comovidamente e um rudo alto de vozes esvoaou por todo o terreiro at ao Rossio. Olhai que o Mestre! Certo ser ele! L est j frente dos mesteirais o nosso Afonso Eanes. E eles com a sua bandeira e as suas varas vermelhas. Vo sair ao encontro do Mestre. Vinha de mais perto a vibrao das trombetas, respondiam-lhe as torres de S. Martinho e da S em loucos repiques; mas os gritos dos vivas estrugiam frementes, esfuziando nos ares por entre o arrudo festivo daquela hora. Repicaram tambm os sinos de S. Domingos e as grandes portas antigas da igreja foram abertas de par em par. A comunidade comeou a sair processionalmente, de cruz alada. O Juiz do Povo e os da Casa dos Vinte e Quatro tinham ido ao encontro do Mestre. pequena a distncia entre o pao do Limoeiro e S, Domingos e por isso o Mestre vinha a p, e como ele todos os da sua comitiva. Avultavam no squito de D. Joo, por categoria e renome, o arcebispo de Braga; D. Loureno; D. Joo, bispo de Lisboa; D. Paio de Meira, bispo de Silves; o conde D. Gonalo; o prior da Ordem do Hospital; D. Frei lvaro Gonalves; Nuno lvares Pereira, o do Alentejo; Diogo Lopes Pacheco, senhor de Ferreira, e o doutor Joo das Regras. No importa aqui levar mais longe a designao dos outros fidalgos cavaleiros, escudeiros de prole e pajens de armas que vinham com o Defensor do Reino. Os feixes de plumas dos bacinetes, as cotas de armas, e os laudis bordados, divisas e brases de vivas cores com refulgncias de fio de ouro e prata, davam aspeto triunfal comitiva do infante bastardo, sangue de rei caldeado com o da mulher plebeia que fora sua me. Foi um deslumbramento para as almas sinceras da plebe aquele cortejo quase real. Envaideciam-se por esse homem eminente, que era, por assim dizer, o filho dileto do seu corao de patriotas. Mal o cortejo assomou ao terreiro, logo a multido se remexeu febrilmente para ver bem, para ver melhor os dois homens que trazia figurados na alma como dois paladinos de lenda, numa viso miraculosa de sonho. E em pouco estrondearam vivas comovidos, febris e soberbos como se valessem ali por um alardo de guerra e por uma aclamao de triunfo. Viva o Mestre! O Messias de Lisboa! E mais de Portugal, que por ele ser livre! Em boa hora ficou! E em boa hora venha! Viva! Viva! E com ele o senhor D. Nuno lvares! A mais forte lana e a maior alma que tm consigo o Mestre e o povo! gritou a tia Lourena, bracejando frente das mulheres. Entretanto, o Mestre recebia as homenagens dos representantes da Cmara, do Juiz do Povo, dos homens da Casa dos Vinte e Quatro e dos frades dominicanos. Depois encaminhou-se para o alpendre com os prelados, os fidalgos do seu conselho e os letrados. E logo aps eles Afonso Eanes com aqueles homens dos ofcios, que constituam um como conselho de Estado plebeu, prestigioso e preponderante. Era como se a populao, a arraia-mida, consubstanciada naqueles seus representantes, entrasse tambm com as classes privilegiadas nesse modestssimo recinto, j to assinaladamente famoso nos anais de Lisboa. A revoluo nascera e alentara-se ali, entre aqueles pilares de enegrecidas cantarias e sob aquele teto de velho castanho, Frum pobrssimo sem colunatas monumentais e sem esttuas magnificentes, como o outro de Roma, truncado agora entre as runas da metrpole de uma grande e pujante civilizao antiga. Quem podia saber ento se daquela alpendrada, que nenhum vestgio deixou na moderna Lisboa, no sairia tambm, com a revoluo de uma nacionalidade, a alvorada pica de um soberbo dia na Histria de outra grande civilizao?
* * *
Subia o Mestre os degraus do alpendre e Afonso Eanes a dizer de si para si: como se fosse a subir os degraus do trono! Calaram-se os sinos de S. Domingos, mal que a comunidade voltou igreja. O Mestre fez um sinal ao Juiz do Povo. Eanes compreendeu-o e foi logo para a entrada do alpendre. Do mais alto degrau fez um gesto de preveno s cinco ou seis mil pessoas que o podiam ver. Povo, escutai, que vai falar-nos o senhor Mestre de A vis, nosso Regedor e Defensor. Escutai, escutai, que vai falar-nos o Mestre! clamaram os das ltimas filas do terreiro, avisando a multido que ficava para trs, at o pao do almirante. O mar de gente ondeou opresso; houve ainda um rumor como de floresta que uma nortada aoitasse; mas, poucos momentos volvidas, aquelas ondas de povo imobilizavam-se numa emudecida mansido e apenas se percebia o tenussimo rumorejar de milhares de pessoas respirando num alvoroo de surpresa. Levemente plido, o Mestre tomou o lugar em que estivera o Juiz do Povo e comeou comovidamente numa vibrao alta, sonorosa, que ia acarinhar os ouvidos e os coraes da plebe. E os mais distantes, os que no podiam ouvi-lo, de olhos cravados nele, tentavam adivinhar-lhe o sentido das palavras, lendo-lho na expresso do rosto. Gentes! Sois o povo honrado e leal da mor cidade que tem Portugal e com esforada coragem e resignao heroica vos encontrei sempre comigo para a defenderdes do poder de Castela. Bem sabeis vs que defender Lisboa o mesmo era defender a Nao; Portugal aqui tinha a alma e a vida. Boa conta destes de leais Portugueses, lutando e sofrendo e assim com generoso nimo me pagastes o cargo, que por vs e a pedidos vossas tomei, quando j comigo tinha entrado o desalento de ver tanta gente ilustre bandeada por Castela e tantas vilas e castelos com bandeira e menagem pelo rei estrangeiro. Ento me vi decidido a partir do reino, que tantos julgavam perdido e eu supunha numa agonia de morte, sem remdio. Era engano meu. Quem tinha a verdade no corao reis vs, bem que dos vossos alguns tivessem tambm muito desfalecido na esperana de que Portugal se salvasse. Salvo no est ainda, mas agora creio que a maior agonia ter passado. Outra vir, porm, com perigo de morte, e essa nos poder levar a Ptria, se ns faltarmos ao que ainda lhe devemos e Deus nos desamparar por tal criminosa falta. Aqui vim para vos agradecer e louvar e o tanto que fizestes ajudando-me, e para que livremente me faleis de corao aberto, no tocante ao vosso nimo para os outros maiores sacrifcios de haveres e de sangue. Mestre! gritou a tia Lourena, j nas primeiras filas dos ouvintes Quantos sacrifcios vs mandardes que se faam e de quantos Portugal precisar para no ser de el-rei de Castela! Tal qual assim! Boa palavra de mulher a dizer o que todos ns trazemos no corao! E todos apoiavam estes dizeres calorosamente, numa singeleza de forma enternecedora. Mas da comitiva do Mestre alguns houve que se turvariam, como se aquele voto os houvesse contrariado. D. Joo esperou que o sussurro se acalmasse. Para alm do terreiro alguns iam resumindo as palavras do Mestre e a resposta da tia Lourena, elucidando assim aqueles que nada tinham podido ouvir. Isso esperava de vs continuou o bastardo serenamente, mas numa voz ainda mais vibrante e com uns grandes fulgores de jbilo no olhar Muito se tem sofrido e muito ainda se h de sofrer, para que a Nao se veja salva dos tamanhos perigos que a esto cercando. Toda a verdade que entendo e sinto vos hei de dizer aqui, para que ningum se iluda e cada um v para diante, sabendo e pensando bem os encargos que toma. El-rei de Castela est ainda em Portugal com os seus cavaleiros e pees das Espanhas, da Gasconha e de outras terras de Frana. So dois os poderes que contra ns vieram e ho de voltar e somos ns to poucos e empobrecidos que, embora el-rei de Inglaterra nos d algum socorro, sempre h de ser pequeno, para acudir ao muito que nos falta e para opor aos muitos que sobre ns ho de vir. Para mais nos apoucar as foras e estreitar a terra, esto Portugueses de grandes haveres com os de Castela e so por eles, estrangeiros e traidores, setenta e uma vilas e castelos, reduzindo Portugal a menos de metade do que era quando todos o julgavam pequeno! Para fazer frente s armadas e s hostes com que a contenda se h de resolver, ser preciso que deis mais sangue e maior tributo das vossas migalhas. Depois, para vencer e despejar daqui a multido armada dos estrangeiros e dos traidores, cada um de ns pela sua terra contra cinco ou seis que lha querem roubar e envilecer, ser preciso um milagre de Deus feito pelo esforo do vosso brao e das vossas almas. Pensai e dizei-me como a irmo vosso, se para tanto vos sentis resolutos. Mestre acudiu outra vez a velha batalhadora est pensado e dito. Mais sangue e mais fome, s por no sermos de Castela, e seja pelo amor de Deus e por este tamanho amor que a gente tem nossa terra. Milhares de frases tocadas de santa devoo revoaram de ls a ls no terreiro, aclamando aquela menagem do povo, sem o cerimonial da outra dos cavaleiros e alcaides dos castelos e sem o juramento dos Santos Evangelhos. Amm disse o Mestre Povo temos ns e ele um brao com que Portugal pode contar. Agora dizei se para maiores encargos me desejais convosco ou se outro quereis escolher que melhor vos mande a deferida. Nenhum outro! Nenhum que tanto valha! gritaram muitas vozes. Nenhum! Pois pela minha f que, ou Deus me falta, ou eu hei de ser o Regedor que vos merea e o Defensor que vos mereceis. Senhor, perdoai, mas para o que valeis pouco! gritou Afonso Eanes, aprumando, no ltimo degrau, em frente do Mestre, a sua bela e pujante figura de plebeu. D. Joo afogueou-se. Gentes! clamou o Juiz do Povo para a multido surpreendida Em nome de todos deixai que eu fale pelos vossos coraes, irmos do meu. Falai! Falai! J no h porque hesitar. Os letrados que averiguem da herana da senhora infanta que rainha de Castela. Mas para que a herana tenha validade preciso que Portugal se faa castelhano, e isso que ns no queremos, por mais homens de armas que de l venham o por mais traidores que de c se afastem. Gentes, dizei se assim no , e se o meu corao errou por no sentir o vosso. No queremos! Bem o dissestes: no queremos! No e no! Como se uma spera ventania subitamente houvesse sacudido toda a gente e a multido tivesse uma s alma a vibrar pelo mesmo santo amor, toda aquela floresta humana ramalhou violentamente e todas as bocas se abriram para a mesma comovida afirmao. Mais se tinham perturbado agora os fidalgos, trs ou quatro, que a princpio apenas se tinham turvado, contrariados. Pela sua fortuna ningum reparara neles. Pois que assim o queremos acudiu o Juiz do Povo entusiasticamente a herana real a damos ns por nula, e da coroa de Portugal, que ainda no tem dono, pode a Nao dispor! Pode. de ver que pode. Gentes, e ns, o povo, alguma boa parte somos da Nao para termos voto nas doaes e partilhas do Reino, com tanto direito e to grande dever como para lhe dar os braos, o sangue e at um quinho mais das nossas migalhas. Onde tivemos direito e fora para fazer do senhor Mestre de Avis o Regedor destes reinos, com mais razo pela nossa parte, podemos mudar o regedor em rei. Retumbou nos ares uma exploso de aclamaes frementes. Entrava aquela audcia tanto no corao de todos, que nem lhes deu surpresa. Real! Real! Pelo senhor Mestre de Avis, rei e defensor nosso! Um pouco enfiado, o Mestre procurava Nuno lvares num olhar turbado como a buscar o voto daquela grande alma e daquela soberba espada. O jovem batalhador respondeu-lhe no seu mais afetuoso olhar, a valer uma altiva e fervorosa aclamao. Mas os fidalgos de maior prospia fizeram rosto carrancudo quele atrevimento da populaa, que lhes parecia escandalosa violao dos direitos e privilgios da sua classe. Dantes eram os prelados e eles quem nas cortes representava os primeiros votos e o maior poder. Afonso Eanes notou e percebeu a transfigurao. Enquanto esperava que a vozearia das aclamaes o deixasse rematar a sua fala ao Mestre, foi ideando a forma de aplanar os remordimentos daquelas prospias, sem humilhao do povo e com proveito da causa patritica. Senhor exclamou o famoso tanoeiro, aproveitando moa aberta daquele vendaval de brados entusisticos, a vibrarem o jbilo das almas a arderem na febre daquele sangue rubro e forte da populaa. Juiz do Povo! atalhou o Mestre na sua voz cheia, dominadora, levemente comovida Muito agradeo o galardo que o bom e leal povo de Lisboa me d nas suas aclamaes; porm dever meu recordar-vos que s em cortes se pode alar novo rei, quando outro falte, que para tal tenha direito de herana. Regedor e Defensor do Reino continuo a ser. Quem para esse cargo vos elegeu foi o povo e aqui mesmo fez a escolha. Agora, ainda com maior direito, vos pode alar ao trono, pois que vs e ele defenderam Portugal a dentro dos muros de Lisboa. Falta o voto do reino objetou-lhe D. Joo. Senhor, a Nao, por ora, a bem dizer, se reduz a Lisboa e Porto. Falta ouvir os poderes do Estado que tm representao em cortes. Com o meu maior respeito vos lembro que a um desses poderes muito o diminuiu a traio, e no ser fcil que maioria dos seus representantes os mandeis ouvir nos arraiais de Castela. Agora o poder maior, Senhor, filho de rei e irmo do povo, esse que traz pela sua cota de armas um pedao de burel com remendos em guisa de insgnias, esse que padeceu mais fome e derramou mais sangue e vos quer para rei. De muito vale o seu voto e no meu corao o guardo com amorvel gratido, mas para breve h de a nobreza leal deste reinos prestar-me sua menagem como a Regedor do Estado, e em cortes, que no tardaro a reunir- se, os votos do clero, dos homens de prole e do povo pelos seus procuradores de cada concelho, diro quem h de ser erguido rei. Senhor, ouvi ento o clero e a nobreza. O voto do povo vai daqui adiantadamente para as cortes e nem precisa de ir amparado a procuradores; pois to alto saiu de todos os coraes que, onde quer que as cortes se renam, l se h de ouvir mais sincero, com mais desafrontada verdade que nunca. Senhor, mais do que nunca! Dos vossos nobres cavaleiros heis de receber menagem. Pois a do povo a tendes vs j, bem que no seja uso receber-lha, nem sobre os Santos Evangelhos precise de jur-la. Pelo povo de Lisboa, por ele aqui vo-la dou, Senhor, e com ela contai para que Portugal seja dos Portugueses e nunca outra bandeira diferente da nossa ponha sombra nos seus lares. Preito e menagem sem prazo. Para a vida e para a morte! E a multido, at ali atenta, silenciosa, num supremo esforo de vontade para no quebrar o encanto de ouvir como o tanoeiro, seu juiz, sabia dizer o que eles tinham no corao e no poderiam exprimir daquele modo, outra vez se alvorotou em frmitos de entusiasmo. Sim! Sim! Assim . Para a vida e para a morte! a menagem dos nossos coraes! Mais segura que a outra dos castelos! Senhor, aqui tendes menagem disse o tanoeiro como os reis de coroa herdada raras vezes teriam recebido outra igual (*). Para o povo, de hoje em diante, o rei sois vs. Se as cortes outra coisa pudessem votar, o povo seria por vs contra elas.
[(*) A menagem, forma ampliadora do preito, era o acto solene de vassalagem em que os nobres senhores da nao e os altos representantes do Estado tomavam perante o soberano o compromisso e o encargo jurado de o servir, lealmente e com inteira obedincia, conforme os seus direitos, imunidades e privilgios, na paz ou na guerra, por si ou pelo seus dependentes, em qualquer lugar ou dentro dos seus castelos, terras e senhorios.]
Quem vos chamou Messias de Lisboa gritou algum agora vos chamar rei de Portugal. Foi a tia Lourena quem isto clamou e todo o mulherio lhe foi repetindo o dizer freneticamente. Real, real, pelo Mestre de Avis nosso rei! clamaram por ali fora em vibraes atroadoras. Senhor, perdoai dizia o tanoeiro a meia voz para o Mestre. Era ento esta a surpresa de que me tnheis falado, mestre Eanes! Esta era a justia que se vos devia volveu-lhe, dobrando o joelho Senhor! disse, beijando-lhe a mo Eu agora pelos tantos milhares de homens que a esto a aclamar-vos.
* * *
Ainda houve umas breves discusses em que tomaram parte os fidalgos; mas pouco depois o Mestre, rei eleito da plebe, seguia para o pao do Limoeiro com a sua luzente comitiva. Nuno lvares ia radiante. Nem todos assim. Dois fidalgos da comitiva se tinham deixado ficar para trs. Eram daqueles a quem a manifestao popular mais perturbara. Iam falando em voz baixa e com as cautelas de quem faz confidncias. Mal ir ao Mestre por estar dando to grandes voadeiras ral insolente! o sangue da me a lev-lo para baixo! Nas cortes se h de ver quem vence e se a Nao quer pelo seu rei quem tanto desce para se irmanar com a gentalha das ruas. Que talvez nem seja preciso esperar pelas cortes disse o outro, quase por entre dentes, torvamente H coisa mais segura e mais breve que o voto das cortes. Ao rei da arraia-mida no durar muito o reinado, apesar da boa vontade dos seus vassalos esfarrapados. Esse tanoeiro falador, que tanto se emproa e a tanto se atreve, est a pedir o fim que teve aquele outro vilo atrevido... O alfaiate Ferno Vasques. Anda a escumalha a querer subir e este, que faz tonis, j tem chegado muito mais alto do que o outro, que talhava saias e ponteava calas. Entretanto, muito para trs da comitiva, com o seu magote de mulheres, numa grande e expansiva alegria, a velha Lourena ia dizendo em tom galhofeiro: Ora graas s cabaas, que o povinho c da nossa condio j elegeu um rei, e se os casteles o no vararem, bom e glorioso rei ser, e talvez tudo isto haja de ter uma grande mudana, mulheres de Deus! c um sonho do meu corao, e vs l, que ainda sois novas, heis de ver se o meu corao se enganou. E vs, tia Lourena, isso heis de ver tambm, louvado Deus. Hum! Oh raparigas, em se entrando na ladeira dos sessenta, j se no caminha seno a descer, e ainda que a gente queira parar, no pode e l vai de escantilho para baixo. Ora, umas poucas conheo eu que vo j para cima dos noventa, e no parece que a morte queira entrar com elas. Pois sim, sim. Mas reparai como os sinos cantam, e em vez de irmos a falazar de coisas tristes, vamos l acompanhando os vivas dessa gente que alou a rei o Mestre de Avis. E na vozearia atroadora das aclamaes se embeberam, como num coro enorme, os gritos patriticos da tia Lourena e do seu mulherio batalhador.
CAPTULO XIX MENAGENS DE CAVALEIROS E DE AMARGURADOS
Tinham passado quatro dias. Em casa de D. Dulce de Vasconcelos no podiam entrar os fervores e os entusiasmos em que estava Lisboa, desde aquela memorvel reunio do terreiro de S. Domingos. A tristeza como que a isolava da cidade; as mgoas cerravam-lhe as portas a todos os jbilos e a todas as agitaes do grande drama em que a capital vivia. Da extraordinria manifestao do dia 2, s o velho escudeiro soubera por umas breves informaes do monge, que dela casualmente houvera conhecimento naquele mesmo dia e com o povo se misturara como sabemos. E, todavia, Ruy tinha tido melhoras de bom indcio desde o primeiro dia do ms. Lentas, mas sucessivas melhoras. Menos intensa febre, a razo mais clara, mais inteligveis as palavras que a espaos dizia sumidamente, e nisto as mais acentuadas melhoras, pois que chegara a estar como que emudecido, rouquejando apenas umas coisas inarticuladas, que nem davam sequer monosslabos. Lia-se no rosto do fsico assistente a anunciadora satisfao por aquelas melhoras; mas as suas palavras, cautelosamente vagas e como para conter exageradas esperanas, deixavam perceber que o perigo de morte ainda no tinha passado. Prometera, todavia, que, a continuarem assim as melhoras, em trs ou quatro dias consentiria que algum dos seus amigos o fosse ver, mas com a promessa formal de lhe no falar. Quis, porm, a m fortuna que o tenussimo consolo por aquelas melhoras logo tristemente se ensombrasse com a doena de D. Dulce, agravamento dos males antigos nas suas fadigas de enfermeira, em longas noites veladas cabeceira daquele doente, imensamente amado. E para a sua precoce velhice de valetudinria maior mal ainda na dor moral, inexcedvel, do seu corao de me, j por outras amarguras antigas to profundamente ferido, que dele, em qualquer instante, de surpresa, lhe podia vir a morte. E, mesmo assim, no queria D. Dulce abandonar a cabeceira do filho e s no dia 2 noite, quando de todo lhe faltaram as foras, acedeu aos pedidos e recomendaes do irmo, e do fsico. Levaram-na em braos para os seus aposentos e ali ficou de cama, entregue aos cuidados da sua aia e de uma criada, por expressa determinao do prprio assistente. Que no a deixassem nunca sozinha, recomendara. Ficariam ento com o pobre Ruy, para se revezarem, o velhinho Gonalo Vasques, que j mal podia consigo, coitado, e Mendo Rodrigues, que era naquela casa a nica pessoa que totalmente se no despreocupava dos factos exteriores, especialmente dos que tinham carcter poltico. No dia 4, a tia Lourena foi saber de Ruy como era de costume e deixou ao fundo da escada, como de outras vezes, aquela mulher delicada e jovem, que noutro tempo se chamava no paco D. Leonor de Gusmo. Mendo Rodrigues estava naquela manh cabeceira do sobrinho e foi Gonalo Vasques quem falou famosa regateira. Contou-lhe as melhoras de Ruy, que encheram de alegria a intrpida mulher, falou-lhe consternado da doena de D. Dulce e, a propsito da falta de boas servas a quem se confiassem doentes, lhe pediu indagasse de alguma mulher que tivesse prtica de velar doentes e fosse carinhosa e de bom trato. Merc seria, se lhe encontrasse alguma, pois logo naquela casa seria recebida para ficar e ter boa paga. A Lourena disse-lhe que de nenhuma tinha conhecimento, mas que de muito boa vontade iria fazer a indagao e no dia seguinte voltaria com a resposta. Desceu a escada e, quando Leonor vinha para ela numa impacincia mortificadora, atirou-lhe a boa notcia como quem atira um beijo. Melhor, melhor, filha de Deus! Ouviu-nos Nossa Senhora, e pediu por ele ao seu Filho Jesus! Me Lourena, o tamanho consolo que eu sinto! segredou-lhe quase num soluo. E pelo caminho lhe foi dizendo: amor para se resignar e sofrer sem nenhuma esperana este meu, que nem as maiores desgraas puderam matar! Ir servindo para a remisso de uma grande culpa que no foi minha! Amor de irm, j que ele, no seu d por mim, vos disse que seria como irmo meu! E a encaminhar-se para casa de Afonso Eanes, onde ainda estavam como pessoas de famlia, lhe falou Lourena nas ms notcias a respeito de D. Dulce. Recebeu a notcia com sobressalto, afogueando-se muito e logo no rosto e no olhar lhe transluziu a mgoa por aquele novo infortnio. H de fazer falta ao filho! disse-lhe, comovida No creio que possa haver melhores e mais carinhosas enfermeiras do que as mes para os filhos. E ento aquela, que bebe os ares pelo seu! Coitada da pobre me! O que ela se no ter ralado separada do filho! Para maior sofrimento seu! Estavam j em frente da casa de Afonso Eanes. A mulher do tanoeiro falou- lhes do murozito do quintal, beira do poo, e assim se interrompeu a conversa a respeito de D. Dulce.
* * *
Voltemos ns ao velho pao das imediaes de Santo Eli. Subamos e entremos por ali dentro como pela nossa casa. Mendo Rodrigues sai da cmara de Ruy e o velho Vasques vai ao seu encontro. Repousa, adormeceu profundamente. Ficou l a olhar por ele a tia Tomsia. Faz-lhe l falta a me. Aquilo no tarefa para servas broncas da laia daquela. J eu pedi que me indagassem de alguma criatura que fosse mais azada e carinhosa para me ajudar a velar por aquele meu desventurado senhor. Assim aparea alguma de jeito. Ficaram de me trazer a resposta amanh. E da minha irm e senhora D. Dulce, o que soubestes? O fsico saiu de l h pouco. Esperei-o para lhe falar. E ele que disse? Que as foras daquela santa estavam muito abatidas e aquele seu corao muito ralado de mgoas. Pelos modos, a febre ainda lhe no despegou, bem que seja menor do que foi esta madrugada. A minha pobre Dulce! O fsico disse-me que o seu pior mal lhe vem do corao, mas a aia contou-me que, depois da madrugada, a senhora tinha tido menos sufocaes e dormia aos pedaos; porm sempre com o filho na ideia, at quando est adormecida, pois que dele fala sonhando. Meu velhinho, tem pacincia com estas canseiras. So de boa mente e entraram na conta das maiores devoes da minha alma. Bem sei; mas j no podes com tantas noites veladas. Aos poucos me vou deixando dormir no escabelo grande, e assim as noites me parecem mais pequenas. Sim, sim, como tu que os homens vo sendo raros! Olha, eu quero ver se chego ao pao. Os homens de nobreza vo dar preito e menagem ao Mestre... Rei, senhor Mendo Rodrigues, conforme vs mesmo me dissestes. Dos maiores reis, ser, de toda a Nao h de ser, se contra o poder de Castela formos ns os vencedores; mas por agora rei somente no corao do povo de Lisboa. Quantos ter havido que o foram por nascimento e nem essa menagem do corao do povo teriam tido sinceramente. Alguns. Mas olha c: eu quero l chegar para dar ao Mestre o preito e menagem pelo meu sobrinho. como se ele prprio fosse. E mais tambm por certo destemido cavaleiro de outro tempo, honrado e leal Portugus: por vs, senhor Mendo Rodrigues. Esse, Gonalo Vasques, deslustrou-se por malfadados amores disse- lhe com uma grande tristeza cheia de saudade e de mgoa e h muito acabou amortalhado num burel de monge. Monge que luta como o antigo cavaleiro lutava... E para isso voltou em hora tal, que no h esforo que se possa perder, nem sangue que seja de mais. Mas, voltando ao caso, entendes que eu posso ir ao pao do Limoeiro, sem que faa aqui falta? Senhor, podeis. E sem preocupao deveis ir, que me vou eu ali para dentro e l estarei de guarda ao vosso sobrinho, assim como se fosse um pai cabeceira do filho, com perdo vosso e dele. Com agradecimento para durar sempre que , meu querido Gonalo Vasques. Tenho para mim que a demora ser pequena e depressa hei de voltar. Deus v convosco. E se a gente da minha condio houvesse de prestar menagem, muito vos pediria que tambm por este velho a dsseis l ao Mestre, ao Rei. Quem j no tem para dar braos que levantem uma espada ou arremessem uma lana, d o corao, que para os reis alguma valia h de ter. Como o teu, o valor sempre grande, seja para quem for. At daqui a pouco, meu querido Gonalo Vasques.
* * *
Tinha sido aquele o dia aprazado para o juramento solene de preito e menagem ao Mestre. Quando Mendo Rodrigues, com o seu hbito de monge peregrino, entrou no terreiro do pao de Apar de S. Martinho ou do Limoeiro, estavam j pelo corredores que davam para a antiga sala do trono todos os fidalgos cavaleiros e escudeiros de prole, que lealmente eram pela Nao e tinham residncia em Lisboa e o seu termo. Todas as provncias ali tinham representantes; uns que antes do cerco tinham acorrido cidade, outros que tinham vindo da armada do Porto, sendo a maioria destes dos senhores solarengos nas terras de Entre Douro e Minho. E da sua hoste aquartelada em Palmeia mandara vir Nuno lvares alguns dos principais cavaleiros. No topo da escadaria grande tinham ficado os homens bons da cidade, como ainda se dizia. Os da cmara, os da Casa dos Vinte e Quatro e, com as suas altas prerrogativas, o Juiz do Povo, a lembrar um pouco o lord-mayor de Londres, figura primacial do povo, o alto representante da City, quase como um soberano dentro do vetusto pao municipal de Guildhall (*).
[(*) Alguns foram homens de ofcio, outros eram filhos dos mesteirais da mais humilde origem.]
O Pao no estava defeso a ningum. Mendo Rodrigues subiu e ficou por instantes a falar com Afonso Eanes. O Mestre j est recebendo as menagens? Ainda no, venerando monge. Importa observar aqui que muita gente supunha algum grande e tormentoso mistrio sob o burel daquele monge que tinha uma fisionomia admiravelmente distinta e se batera como um paladino ilustre no ltimo perodo do cerco; mas ningum ainda reconhecera nele o altivo e preclaro cavaleiro da corte, que ele fora onze anos antes. Do fidalgo Mendo Rodrigues, ensanguentado num conflito pessoal, fugido da corte e do Pas, todos se tinham esquecido porque todos tinham tido por segura a notcia da sua morte. A velhice precoce e de amargurada transfigurao completamente lhe guardava o mistrio. O monge sem nome lhe chamavam porque a algum dissera que o havia perdido ou dele se esquecera. A poca, agitada e revolta pelo drama trgico em que a Nao se debatia, no era de molde a favorecer a insistncia das curiosidades individuais. Entretanto, os mais tenazes no descobrimento da vida alheia tinham chegado a fantasiar que o monge seria algum cavaleiro de aventura dos que andavam correndo terras, e da Palestina teria vindo, trazendo famlia Vasconcelos alguma relquia e as ltimas vontades do outro que morrera. Era at esta a verso que no pao tinham dado ao Mestre. Sabeis se ainda haverei tempo de ir falar com esse que vs fizestes rei, antes que a sua senhoria comece a receber as menagens? Isso vos no sei eu dizer. H pouco ouvi que o Mestre estava encerrado com os do seu conselho da clerezia e da nobreza e mais o doutor Joo das Regras, assentando no que se havia preciso de fazer para reunir as cortes o mais cedo possvel. J se diz onde intento reuni-las? Em Coimbra ouvi eu que seria. Nisto um pajem abriu a porta da sala grande e anunciou alto: Sua senhoria, o Mestre de Avis, Regedor e Defensor destes reinos, por graa de Deus, pelos votos do clero e da nobreza e pela vontade do povo, manda que venhais entrando, segundo vossas procedncias, para lhes dardes preito e menagem. Ficarei ento para o fim disse consigo Mendo Rodrigues. E um dos da Casa dos Vinte e Quatro, mais mordido de curiosidade, cochichava para os outros: Que demo de negcio ter pressa de tratar com o Mestre este monge sem nome, que ainda ningum me soube dizer de que lados surdiu e quem venha a ser?! No fosse a casa em que est, e muito havia eu de pr suspeitas em tal criatura! Ora, deixai l o pobre velho, que, se no fosse bem arreigado a esta nossa terra, no viria c para arriscar a pele como j arriscou. Afonso Eanes talvez saiba. muito da casa dos Vasconcelos. Pois se o sabe, no larga o segredo do bico. J o experimentei, e ficou- se que nem um pato mudo.
* * *
Entremos na larga sala de arcaria alta sobre pilares de lavores gticos e esguias janelas de ogiva com vitrais de quadros bblicos, aquelas ingnuas pinturas de vivo e inaltervel colorido cujo segredo se perdeu. Era aquela a sala do trono, tal como a deixara a rainha Leonor Teles, na sua fuga para Alenquer, em meados de Dezembro de 1383. No topo, em frente das grandes portas de pregaria reluzente, sob um dossel de damasco lavrado e de franjas de ouro, duas cadeiras de carvalho, de espalda alta e lavores de talha dourada, representando baldaquinos, santos e monarcas, anjos e profetas, como se cada espalda fosse miniatura da frontaria de alguma catedral gtica. Eram aquelas as duas cadeiras do trono; a que ficara vaga pela morte do mais funesto rei e infortunado homem que Portugal ainda tivera e a outra, abandonada revoluo pela mulher torpe e cruel, conspiradora e barreg real, que D. Joo I de Castela tinha presa entre as monjas de um convento de Castela. Assentavam sobre um estrado coberto de alcatifas mouriscas de Granada. Em volta daquela sala nua e de sombria austeridade, argolas de bronze, cravadas ma parede de espao a espao, amparando grandes tochas semigastas. Por ordem do Mestre tinham posto a alguns passos do estrado e em frente dele uma ampla mesa de cedro com chaparia de prata e um escabelo alto, o nico da sala. Nele se sentou o Messias de Lisboa, de costas para o trono. Em cima da mesa estava um livro de pergaminho velho com lindas iluminuras, todo escrito em caracteres gticos. Era o dos Santos Evangelhos, aberto na pgina em que uma iluminura de cores vivas e emaranhados ornatos a ouro e prata representava o lance trgico do Calvrio. Pediremos agora ao cronista insigne, ressurgidor daqueles homens e daqueles tempos no drama histrico da sua obra admirvel, que nos d na sua linguagem vivamente singela, de grato sabor arcaico, o resumo deste acto oficial. Depois de se referir s pessoas ali reunidas, Ferno Lopes diz assim: Os quais juntamente, e cada um por si, juraram aos Santos Evangelhos, corporalmente tangidos e fizeram preito e menagem ao Mestre, como ao seu senhor, de o servir e o ajudar com todas as suas foras, assim contra el-rei de Castela, como contra qualquer outro que lhe algum nojo fazer quisesse, e lhe beijaram a mo por senhor deles, do corao e obra, outros fingidos e no de vontade, como depois se mostrou, e ele prometeu e jurou de guardar todos os seus privilgios e liberdades e que havia de manter o reino em direito e justia. Os vereadores da cmara, o Juiz do Povo e os da Casa dos Vinte e Quatro prestaram por forma diversa o seu juramento de fidelidade. Depois o Mestre levantou-se e disse para os do povo: Homens bons deste concelho de Lisboa, vs, leal e devotado Juiz do Povo e honrados mesteirais da Casa dos Vinte e Quatro; agora me apraz dar- vos cargo de irdes dizer ao povo que, pela minha livre e boa vontade como Regedor do Reino e com o voto dos prelados, ricos-homens, fidalgos cavaleiros e letrados do meu conselho, lhe vou conceder por carta rgia e mandar pr em registo de escritura pblica, os favores e os muitos privilgios e isenes que ele merece, acrescentando assim as outras que h pouco tempo lhe fiz. Era esta a surpresa com que D. Joo pagava a outra dos mesteirais da Casa dos Vinte e Quatro e do Juiz do Povo, quatro dias antes, em S. Domingos. Estavam os mecnicos num alvoroo de jbilo e numa impacincia de curiosidade por saber que privilgios e isenes o Mestre concedia ao povo. E mais que todos eles, com maior surpresa e mais intenso consolo, o honrado Afonso Eanes. Orgulhava-se por aquele chefe e quase rei consagrado, que era, a bem dizer, um filho da sua rija vontade de revolucionrio e da sua grande alma de patriota. O Mestre chamou um dos letrados que estavam ao lado de Joo das Regras e mandou-lhe ler a carta rgia que em conselho fora rascunhada pelo chanceler. O letrado leu com lentido solene: D. Joo, filho do muito nobre rei D. Pedro, mestre da cavalaria da Ordem de Avis, Defensor e Regedor dos reinos de Portugal e do Algarve. Considerando como a muito nobre cidade de Lisboa a maior e a mais principal de todos os ditos reinos, e como os moradores dela a defenderam contra el-rei D. Henrique e el-rei D. Joo de Castela, ao tempo em que as suas frotas e homens de armas vieram sobre ela, e quando D. Leonor, mulher que se dizia de el-rei D. Fernando, a quis sujeitar ao jugo de Castela, assim como a estes reinos; e considerando mais que tudo isto fizeram custa do seu sangue e haveres e muitos servios nos tm prestado e prestaram aos reis de quem provimos.... No fatigaremos o leitor com a longa lista dos privilgios e isenes enumerados neste diploma oficial, naquela forma pesada e cheia de fastidiosas repeties, que foram sempre as caractersticas desta espcie de documentos. Bastar uma breve indicao para se fazer ideia da rede de arrastar que era j o sistema tributrio daqueles tempos. Ficaram os habitantes de Lisboa, dentro do seu municpio e em todo o Pas, com privilgio de iseno dos tributos denominados portagem, usagem, costumagem, alcavala, mealharia, aougagem, relego, jugadas do po e o vinho, salaio (imposto sobre o po cozido), lombo (tributo de um lombo por cada porco exposto venda), Anadava e outros cuja origem e espcie se no podem hoje determinar (*).
[(*) A portagem, usagem e costumagem eram direitos e impostos locais de vria espcie e elasticidade; alcavala denominava-se o imposto pago em dinheiro pela carne levada ao mercado ou aos aougues e tambm, segundo Viterbo, se chamava assim o direito pago pelos vassalos ao patrimnio real, segundo os gados ou fazendas que possuam. A mealharia era o imposto municipal pago pelo lugar pblico em que se expunha alguma coisa venda. O relego seria o tributo especial que o vassalo pagava ao senhorio direto das terras ou coroa pelo vinho da sua colheita.]
Uma variedade estonteadora com que o pobre povo andava acabrunhado! E com estes privilgios de iseno tributria, ainda outros concedia o Mestre cidade de Lisboa como ampliao dos seus foros e regalias. Quando o letrado acabou de ler a carta rgia, estavam os mesteirais da Casa dos Vinte e Quatro do povo e o seu Juiz com os olhos rasos de gua. Aquilo era um bendito alvio para a gente faminta da cidade, um prmio aos que tinham perdido com a guerra uma boa parte dos seus recursos ou tinham ficado sem trabalho e sem granjeio de vida; era para todos os da capital um galardo enobrecedor. No fossem as regras da pragmtica, e de boa vontade teriam fugido da sala numa carreira doida, para irem gritar ao povo o prego daquela gente. Senhor! disse-lhe Afonso Eanes, indo para o Mestre comovidamente Pelo povo da vossa leal cidade vos beijo a mo como a legtimo soberano da sua escolha. Graa de rei justiceiro e benfazejo foi a vossa. No seu corao a registar o povo e em melhor guarda e mais firme escritura ficar do que em qualquer tombo da chancelaria real. Rei de boa memria sereis, e como a filho seu, muito querido e muito ilustre, Lisboa ser convosco para a vida e para a morte. Senhor rei, pelo povo que eu aqui represento, vos beijo esta generosa mo. E beijou-a. Outras maiores regalias merece e h de ter Lisboa. E vs, Afonso Eanes, como Juiz do Povo que sois e pelo vosso cargo seu procurador perante quem tiver o governo do Reino, lembrai e proponde o mais que souberdes e eu possa fazer-vos com aprazimento dos da vossa classe. Senhor, eu sei que o povo muito desejava derribado esse velho castelo, que parece o padrasto ameaador da cidade, o ninho alto e forte donde os falces reais podem algum dia vir roubar s pessoas humildes os seus direitos e privilgios. Ouviu-se um surdo rumor de vozes como de desaprovao. Eram dos cavaleiros fidalgos. Pouco importava que as palavras murmuradas se no percebessem; o torvo aspeto dos fidalgos dizia mais que as palavras. Achavam insuportvel audcia aquela proposta do Juiz do Povo. Hbil poltico e avaliador perspicaz dos homens e do seu tempo, D. Joo acalmou com um relancear de olhos o nimo turbado dos nobres e respondeu serenamente ao tanoeiro: Agora, senhor Juiz do Povo, como filho da mesma Ptria, nossa gloriosa me, e como irmos na mesma crena e no mesmo propsito, bem que em diversas condies, no nos dado recear outros falces daninhos que no sejam os de Castela, e esses muito mais querem roubar-nos do que direitos e privilgios de uma classe; mas os nossos direitos e privilgios de nao. Senhor, assim acudiu Eanes, percebendo o intuito conciliador do Mestre e ningum do povo desconhece e tem em menos apreo os outros braos de honrado sangue com que a Nao se h de defender... Vs sois fiador e juiz dos direitos e servios de uns e outros; porm, olhai, Senhor, que h morrer e viver; levar a morte os que hoje irmmente so por esta nossa terra, e uns certos perigos ho de ficar! No foi o Castelo que salvou Lisboa, melhor do que eu o sabeis vs; mas nalguma hora poder servir para apavorar a gente de menos avaliamento que tem a cidade, e os castelos duram sculos, enquanto ns, os irmos de agora, s algumas dezenas de anos poderemos durar. Perdoai, Senhor, mas quisestes vs que eu vos dissesse os desejos do povo, e assim lealmente vos disse. As palavras do tanoeiro tinham acalmado um pouco os nimos dos fidalgos, de relance o percebera o Mestre de Avis. Est bem. Visto que o Castelo pertence ao patrimnio real, que meu cargo reger, e a ele se no prendem quaisquer direitos ou privilgios de preclara nobreza destes reinos, razo de ofensa no haver em que eu o mande derrubar na parte em que mais possa ameaar um dia o povo de Lisboa e menos valha para a defesa da cidade. Dava deste modo uma soluo conciliadora e guardava para si o direito e a latitude da execuo, conforme a oportunidade das circunstncias. O homem poltico superintenderia nas concesses do rei popular, durante os mais belos e gloriosos tempos da democracia que ainda teve Portugal. Os mesteirais beijaram-lhe a mo e saram nuns arrebatamentos de alegria e de legtima vaidade, que mal podiam disfarar. O povo de Portugal levara mais de dois sculos para conquistar, dia a dia, numa lentido resignada e numa tenacidade inquebrantvel, os seus foros municipais e a sua representao em cortes. Embora algumas vezes violenta e de carcter local, esta conquista fora principalmente pacfica, a poder de firmeza e de sagacidade, com uma estratgia admirvel dentro de cada concelho, de cada comarca ou no Reino todo, espiando as horas de desfalecimento de qualquer dos trs poderes que o avassalavam o da coroa, o do clero e o da nobreza pondo a sua fora como a espada de Brenno na balana das cobias, das rivalidades e dos dios que por tantas vezes trouxeram desavindos e em luta esses poderes; comprando a troco de abnegaes e de sacrifcios de sangue a concesso de mais algumas linhas nos seus forais e de mais alguns dizeres nos seus privilgios. Assim foi criando o seu direito escrito, as suas imunidades locais e a categoria de terceiro poder do Estado, abaixo do poder real. Ningum hoje pode avaliar bem o drama de desespero e de sofrimentos, de heroicidades e de constncia, que simbolizam os brases das nossas vilas concelhias e os pedaos de pergaminho dos seus remotos forais (*).
[(*) O foral era a carta rgia em que se consignavam os direitos, isenes, privilgios e usos locais das grandes e pequenas povoaes, concedidos ou aceitos e reconhecidos pelo rei. A carta de foral considerava-se uma espcie de carta constitucional dos municpios, especial, para cada um, sem nenhuma sujeio a normas igualitrias. Por algumas analogias entre eles, agrupou Alexandre Herculano os forais portugueses em trs categorias; mas poucos haveria absolutamente iguais.]
Pois aquele povo de Lisboa, ao mesmo tempo que defendia a cidade com glria sua e da Ptria, conquistava em meses uma preponderncia poltica e social como nunca tivera e talvez se possa afirmar que nunca mais voltou a ter!
* * *
Mendo Rodrigues entrou na sala mal que os mesteirais saram. Fez impresso a sua extraordinria figura, que naquele meio parecia antiga. Mestre e senhor! disse gravemente diante de D. Joo. Monge, dizei volveu-lhe o Mestre, pondo nele um olhar de estranheza. O fidalgo cavaleiro Ruy de Vasconcelos no pde vir dar-vos seu preito e menagem. Ainda est em perigo. Sei, mas a mim me vieram dizer que tinha melhoras. Senhor, algumas. E por ele, como se o seu corao estivesse no meu e a minha boca falasse pela sua, aqui venho eu para jurar. Monge! Vs? Porqu? Quem sois, que j uma vez me negastes o vosso nome! Senhor, isso um dia se h de saber. J mostrei que sou dos vossos porque vs sois pela Nao, e tanto bastar para que no tenhais suspeitas de mim. O mais pouco vale, e vs perdoareis que esse mais vos no diga ainda. No se pode quebrar em homenagem aos homens, ainda que sejam como vs, que tanto valeis, as promessas que se fizeram a Deus. A mim me vieram dizer que ereis parente chegado de Dulce. Amigo leal daquela casa e to sabedor do pensar e sentir daquela famlia, que, por assim ser, aqui venho jurar-vos o preito e menagem de Ruy de Vasconcelos, entre os mais devotados e os mais leais, senhor Mestre de Avis. No era preciso; mas vosso juramento vos aceito por ele. Sei que lhe sois querido e de vs me falou ele por modo a desvanecer suspeitas, respondendo com a sua palavra de cavaleiro pela lealdade do monge peregrino que no diz o nome. Como se o houvesse esquecido, ou como se fosse o nome de um morto que viesse a Lisboa, nestes angustiados tempos representar um Portugal antigo, que a vossa juventude j no chegou a conhecer. Pois que assim , jurai. E com as mos sobre o livro aberto dos Evangelhos, o monge disse a frmula completa do preito e menagem como quem por mais de uma vez a houvesse jurado. Pelo fidalgo cavaleiro Ruy de Vasconcelos o juro e por este juramento respondo perante Deus e os homens. Ele o ratificar perante vs, senhor Mestre, ou neste pao, mal tenha sade para aqui vir, ou na primeira batalha em que se possa combater, a par dos primeiros entre os vossos. Monge, pagais-lhe com igual moeda. Ele empenhou a sua palavra de cavaleiro por vs. E eu agora jurei de alma por ele. Mestre e rei, Deus convosco e com a Nao a glria do vosso nome disse, curvando-se, e saiu. No terreiro era atroadora a gritaria da plebe. O Juiz e os mesteirais tinham acabado de contar tudo o que o Mestre mandara pr na carta rgia e o mais que lhes prometera. Coitada da pobre gente! Era como se fosse de um sonho aquela notcia de tantas promessas juntas: de um raro e mentido sonho se no fosse a palavra honrada do seu Juiz e as caras de pscoas dos Vinte e Quatro.
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Assim que chegou ,a casa, Mendo Rodrigues foi logo cmara do sobrinho. L estava com ele o bom do Gonalo Vasques. Fez-lhe um sinal e o velho veio para o lado da porta, muito de manso, cautelosamente. E da? perguntou-lhe Mendo sumidamente. Vo as coisas indo a bom caminho segredou-lhe. Mendo puxou-o afetuosamente para o lado de fora da porta. Tem descansado, est menos inquieto, no assim? Dormiu um grande sono. Esteve a querer falar comigo, mas eu no deixei porque lhe podia fazer mal. Ps os olhos muito fitos em mim, aqueles seus entristecidos olhos em que luziam lgrimas, disse-me umas poucas de palavras e, com as minhas mos nas suas, ainda a escaldarem de febre, se ficou outra vez adormecido. E eu, de olhos nele, a sonhar, to acordado como estou agora, a sonhar com o tempo, que j parece antigo, em que ele era pequenino e eu o ajudava a adormecer, dizendo-lhe os contos que aprendi de pequeno! Tinham um timbre de magoada saudade estas palavras evocadoras do velho. Mas olhai, senhor Mendo, que duas coisas se lhe no tiram do sentido! E era delas que ele me queria falar e ainda umas palavras me disse naquela sua voz sumida de fraqueza e to dolorida, que parece feita de mgoas! Perguntou pela me? Ah! Isso foi logo, mal que abriu os olhos e eu disse-lhe que estava com os seus ataques do costume, porm sem coisa de maior preocupao. E ele? Ficou-se a olhar para mim assim como se quisesse ler-me no rosto a verdade das minhas palavras, porm logo perguntou se os Castelhanos j tinham sado para fora do Reino e se havia chegado alguma nova daquela linda que lhe levaram. O amor que ele lhe tem! Dei-lhe a resposta que me pareceu melhor, e os olhos arrasaram-se-lhe de gua. Foi ento que eu lhe pedi que no falasse mais e foi dali a instantes que ele se ficou outra vez adormecido. Meu senhor, aquilo amor para no acabar seno com ele! Nisso tambm eu creio, meu velho amigo. aquele dos amores que ficam para sempre, ainda que o corao se tenha espedaado por eles, assim como se fossem um claro de luar sobre um altar derribado, entre as runas de um templo ermo. Eu sei! Eu sei! Mas quando um homem tem sade e foras para se aguentar com essas mgoas... E aquele, Deus sabe quando voltar a ser o homem que foi! Deus o permitir, Gonalo Vasques. Seria uma grande perda para ns, se o no permitisse, e faltaria nossa terra uma das suas almas de maior dedicao e uma das melhores lanas para a sua defesa. Ah! Isso o podemos ns jurar! acudiu o velho com fervoroso desvanecimento como se falasse de um filho seu. Eu vou ver minha irm e voltarei depressa. Ficai vs, que no tardarei a vir render-vos. Quando vos aprouver. Nisto, sobre a obrigao que eu tenho, a devoo muito maior. Muito! E foi para dentro a enxugar os olhos e a dizer consigo: S eu sei quantas vezes maior!
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J noite cerrada apareceu a tia Lourena para falar ao Gonalo Yasques. Trazia consigo uma pobre monja daquelas que em certos conventos no tinham votos nem sequer noviciado, porque eram como serventurias das outras e s vezes saam da clausura para esmolar por casas honestas, como sucedia, especialmente, nas ordens que tinham voto de pobreza e se denominavam mendicantes. Consentiam-lhes o hbito da Ordem, mas no traziam toalha em volta do rosto como as freiras, nem escapulrio nas confrarias que o tinham. Algumas, por voto seu de penitncia ou por maior recato, usavam uma espcie de bloco da mesma fazenda do hbito, de modo que lhes cingia a cabea e de tal maneira lhes emoldurava o rosto, que dele apenas se via uma parte entre as sobrancelhas e a boca. Para algumas era esta condio de serventuria uma espcie de penitncia votiva das muitas que havia naqueles tempos, entre as quais a mais horrorosamente desumana e trgica, sendo ao mesmo tempo a mais imunda, era a das emparedadas (*).
[(*) Fr. Joaquim de Santa Rosa de Viterbo d no seu Elucidrio uma larga notcia a respeito daquela monstruosidade fantica da baixa Idade Mdia. Basta-nos aqui este curioso trecho: Foram mulheres varonis, que, desenganadas inteiramente do Mundo, se sepultavam em vida numa estreita cela, cuja porta no mesmo ponto da entrada, se fechava com pedra e cal, e s por morte da inclusa se abria, para ser levada sepultura. No lugar da porta, e ao mesmo tempo de a tapar, ficava s uma pequena fresta por onde se lhe ministrava o indispensvel alimento necessrio para a vida, que poucas vezes passava de po e gua, etc.. Houve-as em todo o Pas desde o sculo XII ao sculo XV.]
O velho Vasques veio casa de entrada falar com a Lourena. A monja ficou- se afastada deles, timidamente, no recanto de uma janela. Arranjei o que vs me pedistes. Sim? Ainda bem! aquela monja serventuria do mosteiro das franciscanas. Conheo-a de vista e dela me deram muito boas informaes. Eu era quem ia levar o pescado ao convento e algum l deixava sem paga quelas pobrezinhas de Cristo. Ser criatura de boa caridade? Isso me afianaram que . Pois se der boa conta de si, a soldada ser das maiores. No quer soldada. Vem s pelo voto que fez, e por isso serventuria das freiras, que lhe deram licena para esta obra de caridade. mulher nova ou j idosa? Ainda nova... Parece que teve um erro de amores na sua vida e assim o anda a querer remir neste Mundo, na esperana de que Deus lho perdoe. Tem muita prtica de tratar pessoas doentes. Est bem, e muito vos agradeo. Tende pacincia de esperar aqui uns instantes, que eu vou ver se posso falar senhora. Bem que me tenha dado autorizao para decidir estas coisas da casa, no desejo tomar qualquer resoluo sem a ouvir. consulta de pouca demora. Ah! Escutai c uma coisa que me ia esquecendo. Ajudar em tudo o que for preciso, mas era da senhora D. Dulce que ela mais desejava ser enfermeira. Pois sim, sim, tudo isso se combinar. Foi para dentro a arrastar os passos e a Lourena aproximou-se da monja com quem esteve a falar em voz baixa. Poucos minutos volvidos e voltava o Gonalo Vasques. A Lourena foi logo para ele. A senhora quer, e at estima que seja uma pessoa assim de boa caridade crist pelo voto do seu corao. Ora pois, e ainda bem. Assim Deus queira que vos no seja precisa c por muito tempo, que sinal de se terem ido embora as doenas, e grande alegria ser para as freiras, que l ho de estar a suspirar pela sua irm serventuria. Foi buscar a monja e apresentou-a ao velho. O Vasques encarou muito com ela e falou-lhe por alguns minutos. Parecia muito nova, humilde e recatada, pois que no despregara os olhos do cho. Nas poucas falas que ela lhe deu notou o velho que tinha uma voz docemente carinhosa, um pouco velada e tremente, e isto o atribuiu ele a natural acanhamento de pessoa desconhecida, naquela casa grande, fidalga, absolutamente estranha para ela. Ficou decidido que a monja seria, principalmente, a enfermeira de D. Dulce, e a tia Lourena despediu-se muito ufana com os calorosos agradecimentos do Gonalo Vasques.
* * *
Passaram dois dias. Todos naquela casa estavam satisfeitos com a caridosa serventuria, e D. Dulce, apesar das torturas da sua doena, sentia certo consolo ouvindo a voz acariciadora da monja. Que tambm s ela de relance lhe vira bem os olhos, uns lindos olhos mortificados com uma suave expresso de resignada. Uma vez somente entrara na cmara de Ruy, muito constrangida, com um recado de D. Dulce para o irmo. Ao entardecer daquele dia, quase ao sol-posto, chegou um pajem com um recado que Gonalo Vasques teve de ir receber. Para os estranhos e at para os prprios criados, Mendo era apenas um amigo misterioso daquela famlia, na hospedagem ntima do seu velho palcio. O velho afogueou-se com o recado e assim que despediu o pajem foi ter com o tio de Ruy. Recado de quem? perguntou-lhe Mendo Rodrigues. Do senhor D. Nuno. Para qu? Mandando perguntar se podia vir aqui saber da senhora D. Dulce e ver o nosso querido doente, se isto for possvel. Mas ainda hoje? Dentro em pouco, pois que esta noite haver de atravessar para a Outra Banda, a juntar-se com a sua hoste em Palmeia. E que respondestes? Que a senhora D. Dulce continuava de cama e que o meu amo, bem que algumas melhoras tenha tido, ainda estava em perigo; porm que nesta casa havia um velho servidor para lhe agradecer em nome dos nossos queridos doentes a tamanha honra da sua visita. Certamente assim devias de responder. Hei de eu aparecer-lhe tambm, mas eu sou aqui o hspede, e as honras da casa sers tu, meu velho amigo, quem lhas h de prestar. Quanto a Nuno lvares ir ver meu sobrinho, isso me d algum receio. Pode causar-lhe alvoroo que venha a fazer-lhe mal. S se o avisarmos da visita com certos rodeios, a experiment-lo, e pedirmos a D. Nuno que lhe no fale em assuntos da guerra e na aclamao do Mestre. Sim, dizes bem, isso se h de fazer, e ainda tenho receio dessa visita! Ontem de manh vieram c uns poucos de Namorados com o sentido de o ver e a um deles, um arganaz... Um cedro alto... O Magrio, como lhe chamam os outros. Esse foi a quem eu fiz o pedido de entrar s, mas depois de prevenir meu amo e do tal cavaleiro me prometer que pouco lhe diria. E assim foi. Ruy conheceu-o logo, no assim? Logo, com uma grande alegria e umas grandes lgrimas a bailarem-lhe nos olhos. dos Namorados aquele com quem mais e melhor se liga. Foi at esse quem o acompanhou naquela arrancada doida em que o meu sobrinho ia perdendo a vida... E Deus sabe ainda... Ruy ficou muito turbado? Estava eu a temer que muito se abalasse com a visita, porm tal no sucedeu, por felicidade. Eles tinham c vindo muitas vezes... Bem sei. Mas nenhum o fora ver, porque eu, a escudar-me com as recomendaes do fsico, nunca lho quis consentir. E ontem, esse tal Magrio honradamente cumpriu a sua promessa. A demora no foi alm de uns instantes e s lhe disse meia dzia de palavras. Pois ento mais tranquilo fico. Irs tu receber D. Nuno; irei eu depois falar-lhe, e algum ficar a tomar conta em Ruy no pouco tempo em que ambos estivermos afastados dele. Senhor, assim ser bem.
CAPTULO XX UMA VISITA DE NUNO LVARES
Entrava pelas janelas aquele sol de Outubro com o seu resplendor suave de ouro antigo. Ia j a desmaiar para os lados do mar. Vibrou alta a sineta do porto. J prevenidos, os jovens do monte logo o foram abrir de par em par. O Gonalo Vasques desceu a tremer os ltimos degraus da escadaria nobre. Um pouco a tremura da sua velhice, mas muito mais a outra daquela comoo imensa que todos os crentes e patriotas de alma sonhadora sentiam sempre diante do jovem lidador, suprema esperana da Nao. Nuno lvares entrou, seguido de um escudeiro e de dois pajens. Vinha como havia de partir, mal que a noite cerrasse e desta vez sem a farroncaria temerria de se ir meter por entre a esquadra castelhana. Senhor conde e glorioso cavaleiro! disse o velho, curvando o joelho como se estivesse diante de um prncipe de conto ou de um santo l muito do calendrio da sua alma Perdoai que seja este humilde amigo quem aqui venha a receber-vos. Velho, bem vos conheo, eu e bem sei quem sois disse-lhe Nuno lvares afetuosamente Aqui vos tm os vossos ilustres amos como se mais um fosse da sua famlia. O monge que tem sido hspede da vossa ama e senhora, est c? Senhor conde, est. Dignai-vos subir e antes deixai que vos beije a mo. Vs, um velho! Senhor, aos prncipes, ainda que sejam meninos, at os velhos, dobrados para a cova, lhes vo beijar a mo. Isso aos prncipes e aos santos. Velho Portugus acudiu Gonalo Vasques, numa tremura de maior comoo velho que muito quer sua terra, para mim sois prncipe de cavaleiros e batalhadores e s vezes me lembrais certo rei Artur de Inglaterra de quem falam os contos antigos. Deixai que vo-la beije, e perdoai. Tomou-lhe a mo de surpresa e beijou-lha com os olhos rasos de lgrimas. E tambm sabem os Castelhanos o que ela vale! Tem ganhado muitos combates e a primeira batalha venceu, aquela dos Atoleiros. Enternecidamente, Nuno lvares apertou aquela mo engelhada que tremia na sua. Vamos a ver vosso amo. Subiram. Ao cimo da escada, Mendo Rodrigues esperava-o. Senhor D. Nuno, ilustre Conde de Ourm disse-lhe o monge nobre senhora desta casa muito lhe est pesando faltar aqui a receber-vos. E a mim, venerando monge, sinceramente me penaliza que, por doena da excelente senhora, me no seja dado prestar-lhe homenagem que merece pela sua alta nobreza e admirveis virtudes. Isto vos rogo lhe digais, e ainda mal que me no seja possvel maior demora em Lisboa, para que me fosse dado vir dizer-lho em outra melhor ocasio. Gonalo Vasques fora adiante correr o reposteiro da sala de armas onde um criado j tinha posto as tochas acesas nos argoles das paredes. Em nome de D. Dulce, o monge convidou o conde a entrar naquela sala. Era um testemunho de honrado apreo a que nenhum fidalgo daquele tempo devia escusar-se. Ser breve a minha demora disse Nuno lvares entrando pois que o meu fim agora ver Ruy de Vasconcelos, esforado jovem que eu conheci no Pao e tenho em boa conta de amigo. Depressa o vereis, senhor conde. Tinham ficado a dar-lhe os remdios quando eu sa da sua cmara, para vir tambm prestar-vos homenagem como ao maior Portugus destes atribulados tempos. Merc das vossas palavras. O primeiro o Mestre. Pelo cargo, eu sei. Pela alma, vs. E ofereceu-lhe a cadeira da espalda alta, que era ali a cadeira de honra. D. Nuno sentou-se por instantes. O monge insistiu em ficar de p diante dele. Se dais licena, senhor conde, peo a este honrado aio nos v saber se o senhor Ruy de Vasconcelos j est prevenido para vos receber. Sim, mas que no tenham preocupao pela minha causa. Mendo afastou-se um pouco para fazer um pedido a Gonalo Vasques, fez- lho em voz alta, mas logo acrescentou baixo: No venhas sem o ver em boa disposio de nimo. E voltou para em frente de Nuno lvares. Ouvi, senhor conde, que esta noite partireis para a vossa hoste. Assim . No me apraz esta vida quieta da cidade, sabendo que no Alentejo e por todo o reino ainda enxameiam Castelhanos com os traidores seus parciais. Segundo ouvi, quase todo o reino est em poder deles! Portugal por agora se resume em meia dzia de castelos. Pois por isso o meu voto e o meu desejo maior era ir de Palmeia com a minha hoste e ir de arrancada a Cho do coice bater a alcateia dos lobos reais, que devem estar a sair de Santarm para irem repousar nas suas serranias de Castela. E voltarem depois com mais fria e em maior bando. J no poderiam voltar, se lhes sassemos ao caminho para dar acabamento contenda. Era de uma vez. Senhor conde, seria cometimento de grande proveito e glria, porm de muito arriscada temeridade, permiti que vos diga. E vs, senhor conde, quantos tereis na vossa hoste? Mil e duzentos homens. Bem pouca gente, ainda que todos se pudessem parecer convosco e tivessem bravezas de lees. Pois sim, mas o Mestre iria tambm com a sua hoste. O pior ser que daqui a dias j seja tarde para uma arrancada bem sucedida. A mim me disseram que el-rei de Castela teria ainda consigo no menos de trs mil lanas, soberbos ginetes e uns doze mil homens de peonagem (*).
[(*) A lana, como unidade de agrupamento, representava nos exrcitos medievos quatro ou cinco homens de peonagem. Algumas vezes apenas trs nos pases de menos poder militar ou em circunstncias especiais. Dizer uma lana o mesmo valia que indicar um combatente fidalgo, cavaleiro ou escudeiro a cavalo, e s por exceo o homem de armas da cavalaria plebeia, a dos cavaleiros vilos dos municpios, auxiliar da outra.]
Bem; seja disse Nuno lvares, erguendo-se Quinze mil homens. A est. E o Mestre e vs juntamente, quantos podereis levar? Trezentas lanas do Mestre com mil e quinhentos de peonagem; eu duzentas e tantas lanas e novecentos pees que tenho em Palmeia. Senhor conde, perdoai, que isto apenas falar de quem muito toma a peito as coisas da sua terra; mas a teramos uns trs mil dos nossos com uns quinhentos cavalos, se tantos, para os catorze ou quinze mil Castelhanos e Franceses que ainda ter reunido consigo el-el de Castela. Um contra cinco, e cinco dos melhores homens de armas que tm as Espanhas e a Gasconha, segundo dizem os entendidos. Nuno lvares fitou-o com estranheza. Um contra cinco fomos nos Atoleiros e foi nossa a vitria! Em Cho do coice defenderiam eles o seu rei. Tinham de lutar com desvairada bravura. Vo muito esbandalhados e esmorecidos, contam os que de l tm vindo. Aos melhores e mais experimentados capites que tinham os levam eles nos atades em cima de azmolas. uma verdadeira romaria de mortos. Nada mais me atrevo a dizer-vos, senhor conde, seno que talvez Deus fosse por vs para vos dar razo. Esbandalhar aquela hoste numa algarada, sumi-la na terra que eles queriam tornar sua, e trazer para Lisboa as suas bandeiras reais, as signas e pendes dos nobres senhores das Espanhas, da Gasconha e do Bearne! E como despojo, no as baixelas de ouro e prata daquele rei e daqueles. Senhores, seno os atades em que vo salgados os mais soberbos mortos de Castela! Falara num arrebatamento de alma, afogueando-se, fazendo uns gestos largos; tinha deslumbramentos de visionrio o seu olhar de sonhador. Estou em crer, senhor D. Nuno, que o Mestre e rei, que j assim se lhe pode chamar, na sua prudncia de chefe e com as responsabilidades do seu cargo, hesitar em deixar Lisboa sem gente de armas, tendo alguns milhares de Castelhanos em Almada, em Sintra, em Alenquer, em Torres, a bem dizer s portas da cidade, e a no Tejo ainda outros milhares deles, na mais poderosa armada que ainda c mandou Castela.- Nuno lvares compreendeu e sentiu a lucidez e a boa razo destas palavras do monge a dizerem-lhe sem rodeios o que o Mestre se abstivera de lhe expor, talvez para lhe no ir a crena numa vitria prxima ou, mais ainda, para lhe no irritar o nimo, incitando-o a qualquer insubmissa temeridade. Alma aventurosa e cndida de paladino romanesco, cavaleiro andante de sonho a visionar prodgios, com as austeridades de um asceta e a cega devoo de um santo, Nuno lvares era um irascvel como todos os impulsivos, um insubmisso quando sentia contrariada a sua crena de protegido do cu, um alucinado de espantosa bravura quando tinha nos olhos a viso de um milagre no seu favor ou quando a atmosfera dos combates lhe embriagava os sentidos e lhe queimava o sangue, numa febre devoradora de glria e de sacrifcios. Com as suas bravezas de leo e as suas ingnuas mansides de pomba, com todos os desequilbrios e contrastes psicolgicos dos homens extraordinrios, era, todavia, nos campos de batalha mais reflexivo que nos remansos da corte, e foi, sem nenhuma dvida, no seu tempo o chefe de mais lcida intuio das coisas da guerra que Portugal teve. Trazia em si a inspirao adivinhadora de quanto os seus vinte e quatro anos no tinham podido aprender, nem ainda tinham visto. A batalha dos Atoleiros provou-o. Encontraremos depois outras provas ainda maiores e de concludente confirmao. O que Nuno lvares no quis dizer ao monge foi que o astuto do Mestre, com a sua cautelosa habilidade de homem poltico, se lhe fingira sabedor de que el-rei de Castela ainda por algum tempo continuaria em Santarm. O que lhe no disse foi que D. Joo lhe opusera temerria insistncia a promessa dilatria de se lhe ir juntar com a sua hoste em Palmeia, mal que tivesse tudo disposto para deixar a cidade em segurana e pelo seus esculcas houvesse informao de que os invasores tinham enfim abandonado a formidvel posio de Santarm. Indicando muito ao de leve o plano pelo qual Nuno lvares insistia, Ferno Lopes resume assim o hbil estratagema de D. Joo: O Mestre entonce respondeu que lhe prazia muito, e que para tal obra ele queria ser seu companheiro, e que porm se tornasse ele para Palmela e que o guardasse ali: e que se passaria alm com os mais que pudesse e dali partiriam a ir buscar el- rei e lutar com ele.... Compreende-se o ardil. Fingindo aceitar-lhe o plano, segurava-o melhor, e mandando-o para Palmeia com a promessa de ir ter com ele para irem juntos ao feito arrojado, evitava que Nuno lvares fosse insubmisso com os seus mil e tantos homens para um desbarato quase certo.
* * *
Gonalo Vasques, demorado por um pequeno incidente na cmara de Ruy, voltara sala e dissera que o seu amo podia j receber o senhor conde. Nuno lvares tinha reparado em certa armadura que estava coberta com panos de d. Por que tem luto aquele arns? Contaram-me, contou-mo este honrado velho disse Mendo Rodrigues, indicando o Gonalo Vasques que foi por ter morrido o cavaleiro que usava lev-lo para a guerra. Era o irmo querido da senhora desta casa. Mendo Rodrigues, eu sei. Grande cavaleiro era, rijo batalhador, ao que ouvi, e bem desgraado foi! Conheceste-lo, senhor conde? No pao o conheci, era eu ainda muito jovem, e j pouco me lembro dele. H quem suponha que fostes vs, monge, quem nas longes terras por aonde ele peregrinava lhe recebestes as ltimas vontades. E no se engana quem tal supe. S eu sei como o cavaleiro que foi Mendo Rodrigues morreu de dor! Conde e senhor meu! disse porta, dando-lhe passagem Eu j me ia esquecendo um aviso, um pedido. Dizei. O fsico tem recomendado muito que por agora se fale o menos possvel com o senhor Ruy de Vasconcelos. J sei. Descansai. Pela minha parte se no h de faltar a tal recomendao. Seguiram pelo corredor. O escudeiro e os dois pajens que tinham acompanhado Nuno lvares estavam no vestbulo esperando. Chegaram porta da cmara e Gonalo Vasques correu a cortina brandamente. Entraram de manso. Ruy tinha fitos na porta os olhos mortificados, aos quais a febre e o alvoroo davam agora um brilho intenso. Ao fundo da cmara, muito na penumbra, junto de um genuflexrio, a monja serventuria) que trouxera os remdios pedidos pelo fsico um quarto de hora antes, ficara na nsia de saber como se passaria a entrevista entre D. Nuno e o pobre namorado. D. Dulce dera-lhe o encargo de ficar ali. Nuno lvares adiantou-se comovidamente para o catre de Ruy, olhos marejados de lgrimas postos naquele rosto esmaecido, emoldurado agora numa barba crescida e inculta, que at por estar fora do uso portugus daquela poca lhe dava um aspeto ainda mais triste e comovedor. Ruy de Vasconcelos disse-lhe o conde enternecidamente aqui venho para certificar-me pelos meus prprios olhos das melhoras que me diziam terdes. Procurou-lhe a mo e apertou-lha afetuosamente. D. Nuno... Benvindo sejais! disse-lhe Ruy sumidamente, com os olhos rasos de lgrimas. Vejo que tendes melhoras, louvores a Deus! Cavaleiro jovem, que tendes sido dos mais leais e destemidos da nossa terra, a Me de Jesus fique na vossa guarda e vos d sade para ns vos tornarmos a ver onde haveis ser dos primeiros... Na maior... Batalha... Em que tudo se decida disse-lhe Ruy numa tremura de comoo. Paladim do esquadro dos Namorados, como j sei que sois... Pela nossa terra acudiu o Vasconcelos num murmrio, dizendo esta primeira parte do moto do estandarte verde que Madalena bordara. No faleis, no deveis falar. Adeus! Batalhador... Glorioso... Adeus! Nuno lvares debruou-se para ele e beijou-o na testa com fervorosa piedade fraternal. E os... Homens de Castela? Retiram, e, quando voltarem, sereis vs connosco para os vencermos, que nas minhas oraes o hei de rogar Virgem, minha padroeira. Ruy de Vasconcelos, adeus, adeus! At batalha real que hemos de ter um dia. E atravessou direito porta. Foram com ele, para o acompanhar at rua, Mendo Rodrigues e Gonalo Vasques. E l da penumbra da cmara, a espreit-lo, arquejante, a monja serventuria murmurou doloridamente: Est chorando! Pela outra h de ser que ele chora!
CAPTULO XXI O DRAMA DE UMA NOITE
Por volta das 11 horas, j noite velha naqueles tempos, em que a gente morigerada se deitava das 8 para as 9, o pobre do Gonalo Vasques, a quem pertencera velar at madrugada, estava cabeceira de Ruy num confrangimento de dores. Eram da sua gota a adivinhar-lhe o Inverno que estava porta. Mendo quisera substitu-lo, mas na sua dedicao pirrnica, o velhinho insistira em ficar e, s depois de muito instado, prometera ir chamar o irmo de D. Dulce, se as dores o torturassem mais. A monja serventuria estava na cmara de D. Dulce para velar por ela. Mas pelas 9 horas, numa trgua de sufocaes, como adormecidas as dores do corao, e num grande alvio moral por saber das melhoras do filho e do apreo fraternal com que D. Nuno o honrara, D. Dulce sentiu que podia repousar e lhe chegaria enfim o sono reparador de tantas noites angustiadamente passadas. Olhai, Joana fora este o nome dado pela monja parece-me que poderei dormir. Nossa Senhora o permita, que bem precisais de descanso disse-lhe na sua voz docemente acariciadora. Pois ento ide vs tambm deitar-vos, que tanta lida tendes tido e j contais umas poucas de noites mal dormidas. Senhora, o meu voto de penitncia esse. Cansar o corpo em proveito dos que sofrem, para que Deus me tenha d da alma. Pois sim, mas agora muito convm que aproveiteis esta aberta de tratos para o repouso de que tanto haveis de precisar. Na minha idade custam menos as fadigas. Bem sei. Mas tambm se quebram as foras e tambm a gente se cansa. Olhai que tambm por mim que eu desejo o vosso repouso. Far-me-eis muita falta se ficsseis doente. Convosco nesta casa estou mais tranquila pelo meu filho; ides ver como ele passa e a toda a hora eu saberei o seu estado, como se eu prpria o estivesse vendo. Ides v-lo com os vossos olhos de mulher e ningum como vs me sabe contar o que viu, ningum o sabe dizer melhor em palavras com que o meu corao se console! Olhai que um alvio para mim. Provavelmente no sabeis, no podeis avaliar bem o que as mes padecem quando tm um filho em perigo de vida. Fao ideia, senhora! disse-lhe numa voz que parecia arrastar-se por um calvrio de saudades, a escorrer lgrimas. Como vs dissestes isso! notou D. Dulce com estranheza. Foi porque me lembrou certa me, ainda jovem, que eu vi com uma filhita nos braos, a morrer-lhe de fome. Pequenino? Muito pequenina. Devia de ser dor para matar ou para enlouquecer essa pobre me. Ouvi que enlouqueceu. Mas quando os filhos so j grandes, como aquele meu, a dor h de ser maior. Maior! Senhora, que vos estais mortificando com essas lembranas! O vosso filho parece livre de perigo. Em pouco tempo estar bom para tornar a ser o que o senhor D. Nuno lhe disse ao despedir-se. O que foi que Nuno lvares lhe disse despedida, que ainda mo no tnheis contado?! S me dissestes que o beijara. Por esquecimento meu vos no disse. Chamou-lhe paladim e orgulho do esquadro dos Namorados, e dele se despediu at o dia de uma batalha real com os de Castela. Pois, minha querida, a est o medo maior do meu corao. Por aqueles de quem venho e por esta infortunada terra, me nossa para se no esquecer nunca, o dever de alma ser deix-lo ir, afogar o corao para lhe dizer que v, para que ele lhe no sinta os receios; mas dessa batalha que Nuno lvares espera muitos haver que nunca mais voltem! E desses um pode ser ele! Antes Deus me leve primeiro; antes! E isto lhe peo eu de todo o meu corao em cada dia. Senhora... Que vos afligis disse-lhe piedosamente como se o mesmo receio a mortificasse tambm. Ficaram por instantes silenciosas; o olhar melancolicamente posto na lmpada a bruxulear. Ide ver se adormeceis instou D. Dulce. Ali, naquele recosto do costume, dormirei bem. Mas vestida? Pronta para o que seja preciso. Pois j que assim o quereis disse-lhe com os olhos meio cerrados ide alguma vez saber do meu filho, quando quer que acordardes... E se houver coisa de preocupao... Chamai-me... Sim? Senhora, sim. E logo de si para si, a ver como ela adormecia: Por seres me dele como se tambm fosses minha me. Passaram minutos. D. Dulce dormia profundamente. A monja foi espreitar a uma porta lateral, que estava aberta. Dava para o compartimento em que a aia dormia. Tambm adormecida disse de si para si a serventuria penitente Ouvir, se D. Dulce acordar. Foi para a outra sala e saiu p ante p.
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Senhor Gonalo Vasques bem se v que estais mortificado de dores e a tremer com frio dizia-lhe a monja, quase em segredo para no sobressaltar Ruy, ainda num dormitar inquieto. O frio o menos. do sangue velho, que j no tem calor para esta vida que se gastou. Das noites perdidas que . Ide descansar ali prximo, naquela alcova, em melhor agasalho. Eu no tenho sono e aqui ficarei de vigia. Em sendo preciso, irei chamar-vos. Vs, no. Se o soubesse minha ama e senhora, talvez me levasse a mal que vos aceitasse o oferecimento! Ela prpria foi quem me aqui mandou para ver como o filho estava. Pode no parecer bem... alegou o velho num quebramento do seu propsito. Coitado, tinha tanto frio como se estivesse curtindo sezes. No porque estivesse desabrida aquela noite de Outubro, mas porque os seus setenta anos se lhe tinham enregelado mais com as noites veladas. Com d dele e para o convencer, a monja disse-lhe esta mentira: Ainda no vai longe o tempo em que eu ia tratar dos feridos ao hospital e l estavam outras por caridade, e ningum achou que parecesse mal. Pois sim, ento, pois sim disse-lhe, transigindo com amorvel reconhecimento Fraquezas de velho! Ficai ento vs um bocado, enquanto eu vou ver se este meu sangue toma calor. Mas olhai que com a condio de chamardes, mal que ele acorde. Sim, chamarei; ide descansado. Ele agora parece que vai a sossegar. No vos parece tambm? Agora mais sossegado que h instantes. Bem parece que dorme. Pois ento Deus vos pague a caridade que me fazeis, e at daqui a pouco. At quando quiserdes volveu-lhe num alvoroo que o velho no percebeu. Gonalo Vasques ainda relanceou para o doente um olhar de paternal carinho, e l se encaminhou para a alcova arrastando os trambolhos das pernas.
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Esteve a monja desventurada a contempl-lo por largos minutos, numa evocao de sonho pelo passado e numa crise de lgrimas, silenciosamente choradas, por esse tempo que j no podia voltar. Bendita hora esta! disse consigo Bendita para este desafogo de te ver. Perdoaste-me chamando-me tua irm, mas j no s, j no podes ser o noivo de sonho que eu tive, naquele primeiro amor que outros infamaram, por traio da real combora. No podes! Fui doutro, me de uma pequenina que no era tua filha, e no podes, no deves! E eu nunca te atraioei, nunca! E a minha alma ficou pura da mcula sem remdio, que j no pode seno merecer-te d, a esmola do teu d! E por esta esmola, Ruy, bem hajas!
Acercou-se-lhe mais do catre e beijou ao de leve a mo que ele tinha fora da roupa. Deus te melhore, Deus te d a ventura que mereces, e to cedo seja, que me no falte a vida para saber que vives ditoso. Murmurou isto de rosto avincado, numa expresso dolorida, e foi para o genuflexrio no passo incerto de algum estonteado. Ajoelhou. Orava com o fervor das grandes amarguradas que por este vale de lgrimas muito amaram e sofreram. E sob as oraes que os lbios murmuravam caa a levada convulsa dos seus choros. Era por ele que rezava. As lgrimas por ela, pelo que fora, pelo que era. E se os pequeninos que a morte nos leva so anjos que vo para vs, Senhora, por aquela pequenina que me morreu, fruto desta minha desgraa sem remdio, por ela, Me de Jesus, vos rogo tambm que deis vida e ventura a este jovem, que foi o meu primeiro amor e honra e esperana desta pobre terra, to atormentada de inimigos e traidores! Senhora, sede por ele! Atendei- me. No me desprezeis tambm vs! Ouviu um rumor de palavras rouquejantes, veladas. Jesus, se acordou! disse, erguendo-se num sobressalto. Adiantou-se para o catre, muito de manso, como se fosse me no receio de acordar o filho pequenino. Mas sempre buscando as manchas de maior sombra para que ele no pudesse dar por ela. Encostou-se cabeceira do catre. Tem os olhos cerrados disse consigo, espreitando-o Estaria talvez sonhando. Ouviu outro rumorejar de palavras truncadas, e de tal modo desfeitas nos lbios, que se lhe no podiam entender. Ainda na labutao do sonho. E pela outra ser que ele sonha! Nuno lvares! murmurou Ruy, de olhos cerrados, agitando-se Nesta batalha real... Os Namorados... Aqui os tendes... Pela nossa terra... Metade do moto deste pendo verde... O nosso. A metade porque eu pelejo. No com outra mulher que ele sonha! pensou num consolo de egosmo A visita de Nuno lvares ficou-lhe na alma, est ideando batalhas o belo pajem que eu amei... Que eu amo! Orgulho de fidalgos, flor de cavaleiros, que eu algum tempo sonhei que ele ! E eu perdi porque me perderam! Abeirou-se mais da almadraquexa (1), numa solicitao de alma irresistvel para o ver melhor. O Cabeal, travesseira. Portugal e S. Jorge! rouquejou Ruy, agitando-se outra vez Senhor rei, vencemos ns... Esta batalha real! Os Namorados na ala da vanguarda! Os Namorados, senhor... Na Ala dos mais valentes! Meu Deus, que faz mal esta labutao! Era um bem acord-lo. Mas eu no, eu tenho medo! Agora... Nuno lvares... Sobre Castela... E pela minha dama. A outra! disse de si para si num confrangimento do corao Era de esperar. Doida que eu sou! A mulher que outros perderam j no pode ser seno a irm, caridosamente perdoada; fingida monja serventuria para lhe sacrificar a vida, se ele no tivesse vergonha de lhe aceitar o sacrifcio. Mais nada! Mais nada! E pareceu-lhe que estas palavras, apenas pensadas, lhe tinham sado dos lbios, numa repercusso alta pela cmara como um grito louco de amargura, e iam ecoando por aquele velho palcio como se fossem o prego enorme da sua desgraa. Madalena! exclamou o sonhador Esposa do outro... A tudo cedeste! A monja inclinou-se mais para ele, numa alucinao do seu esprito atormentado. Para ouvir melhor, para no perder uma palavra daquele sonho pela outra. Volto para ti, Leonor... O meu primeiro amor... A minha pobre irm! Como desvairada, a sentir o deslumbramento de uma acariciadora esperana, que em outro, momento de serena reflexo enjeitaria revoltada contra si prpria, ela a sonhar tambm um sonho louco, tanto se inclinou para ele que sentia no rosto aquela respirao angustiada. Volto para ti... Para morrer. Reza-me a orao do nosso amor perdido... Somos dois nufragos... A mesma onda nos mata. No! No! murmurou ela num desvairamento. E os seus lbios tocaram os do sonhador, num beijo to leve como se fosse o roar de uma asa branca de borboleta. Mas logo, num estremeo de pudor, se afastou bruscamente e caiu de joelhos ao p do catre. Me de Jesus, no me deixeis outra vez enlouquecer! Naquele instante de desvario nem pde ouvir os passos que se arrastavam pelo corredor, brandos, incertos, nem podia ver a mo branca e afilada que apanhara o reposteiro depois de ter levantado cautelosamente o fecho da porta. Estava toda ela no aturdimento e na cegueira daquele instante. Soluava encostada ao catre, a cabea entre as mos, num ardor de febre. E ele no seu pesadelo: Leonor! Leonor! Tambm tu me desamparas! Ruy, no! disse como a responder-lhe. E tomando-lhe a mo, que ele deixara tombar para a borda do catre, beijou- lha fervorosamente. Para morrer por ti, se a minha vida quisesses! Se ma quiseres! Ento uma figura mortificada de mulher, com um pasmo de olhar que parecia demncia, roupagens em desalinho, cabelos brancos soltos sobre os ombros, acercou-se dela em passos vacilantes como de octogenria, e disse-lhe baixo, a tremer, pousando-lhe a mo no ombro: Que mulher sois ento?! Voltando-se ainda ajoelhada, numa convulso de terror, a fingida serventuria ps em D. Dulce um olhar espavorido. E a primeira ideia que lhe lampejou no crebro entontecido foi que ela haveria suspeitado do seu disfarce e tudo dispusera para aquela surpresa. O que Leonor no podia adivinhar era que a me de Ruy, despertada de um pesadelo em que vira o filho agonizante, sozinho; abandonado de todos, a clamar por ela, se erguera num supremo esforo, com a energia fenomenal que do as grandes dores morais, e sem chamar ningum, sem pensar em mais ningum, envolvida nas primeiras roupas que encontrara mo, viera num desvairamento, arrastando-se ofegante, para ver o filho. Senhora, perdo! Tende d. Perdoai! suplicou-lhe de mos postas, as palavras a torcerem-se-lhe na tremura dos lbios. D. Dulce relanceava olhares para o filho, como a certificar-se de que o seu pesadelo fora apenas uma opressora mentira. Que mulher sois? Quem vieram meter-me em casa? Respondei para sairdes! Senhora, por piedade, mais baixo, que 0 podeis despertar! Vosso filho falava sonhando e eu sou... Mas tremeis de frio, faz-vos mal estardes aqui! disse, erguendo-se a custo. Tantos contra este meu corao! Senhora! disse-lhe carinhosamente, a reprimir soluos Vamos daqui. Eu vos irei amparando e tudo vos hei de confessar... Antes que me expulseis da vossa casa. Para o deixar sozinho? disse-lhe amargamente, envolvendo-a num olhar de estranheza. Suspeitas vagas, encontradas e at insensatas, se lhe atropelavam no crebro, aturdindo-a. O vosso filho est melhor e eu chamo ali Gonalo Vasques. O pobre velhinho j no podia mais. Mas afastemo-nos daqui para que o vosso filho no oua. Amparou-a nos braos, piedosamente, e foi-se afastando do catre com ela. No me repulseis, sem saberdes quem sou... A triste desventurada que eu sou! Assentai-vos aqui disse-lhe ao p de um escabelo, a poucos passos do genuflexrio Eu chamo Gonalo Vasques. Depois vos irei amparando para a vossa cmara segredou-lhe, acarinhando-a docemente At l, como se fosse uma filha a amparar a me doente, a santa me doente que vs sois. Em poucos momentos vos contarei tudo, e ento sereis a ama que pe fora da sua casa... Uma serventuria que lhe deu escndalo. Aquele pesado sono do meu filho inquieta-me! Senhora, assim est h muito tempo adormecido, e daquela turbao dos sonhos agora me parece acalmado. Eu vou chamar Gonalo Vasques. Mas, senhora, fazei-me o piedoso favor de nada lhe contardes. Pelas minhas recomendaes que ele foi repousar. Sim, depressa, ide respondeu-lhe No posso atinar quem seja! pensava. O velho tinha-se deitado vestido e levantou-se assim que Leonor o chamou. A fingida serventuria preveniu-o da vinda de D. Dulce e pediu-lhe que de nada lhe falasse, pois que j de tudo lhe tinha dado conta. Cheio de estranheza e de receio por aquela inexplicvel imprudncia da sua ama e senhora, como ele lhe chamava, o velho foi saud-la um pouco acobardado de nimo pela sua ausncia daquele posto de devoo. Notou-lhe o rosto mais desfigurado e os olhos mais sumidos e mortificou-se por v-la com uns rebates de sufocao. D. Dulce respondeu-lhe em duas ou trs palavras, sem nenhum azedume, e encostou-se misteriosa serventuria. Vamos. Mais junto da sua cama... Para o ver. Amparando-a, mais trmula do que ela, Leonor passou rente do catre de Ruy, agora num sono tranquilo e profundo. Nossa Senhora tenha d de ti, filho! suplicou mentalmente. Adeus, e agora talvez para nunca mais te ver! disse consigo Leonor, pondo nele os seus olhos rasos de lgrimas. No corredor D. Dulce teve uma sufocao maior. Por minha causa, senhora! disse-lhe Leonor, encostando-a muito a si para que ela lhe no casse nos braos. Isso... No... volveu-lhe a custo No foi... Por vossa causa.
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Estavam as duas sozinhas naquela cmara, que uma lmpada de prata esclarecia tenuemente com a sua luz doirada e branca. D. Dulce sentada em cima da cama, recostada a um grande cabeal de frouxel, feito de propsito para ela; Leonor, de mos cruzadas sobre o peito, quase encostada ao catre. A falsa monja contara o que fora e o que era. D. Dulce, num incidente da conversa, revelara-lhe o angustioso pesadelo que a levara a ir cmara do filho, com louca imprudncia. Via-se bem que ambas tinham chorado. Aqui tendes, senhora minha, quem foi e quem a pobre de tamanha desventura, que vos trouxeram para casa no fingimento de monja serventuria e fostes surpreender a beijar a mo do vosso filho. Em desconto de tanta desgraa, dai-me o vosso perdo, se podeis. Pela sade e pela boa fortuna do vosso filho vos peo. Perderam-me e, ainda para maior infortnio, me caluniaram dando por volvel namorada a miseranda vtima de uma traio no pao! Se at vosso filho acreditou e eu... Tinha-lhe um amor puro, tamanho... Que foi o maior da minha vida! Mas bem sabeis j que ele me perdoou, chamando-me sua irm. Mandai embora a serventuria, e se alguma soldada mereceu, dai-lha, por tanto maior valor que nenhum dinheiro a pudesse igualar, dai-lha, senhora, no vosso perdo. Dou, sim respondeu-lhe comovidamente, inclinando-se mais para ela Leonor de Gusmo, quem podia adivinhar-vos aqui?! Senhora, o consolo que me dais! Deus vos pague nas tantas venturas e glria que o vosso filho merece! H de ser j madrugada e pouco poder demorar a manh. A serventuria sair para nunca mais voltar, para nunca mais o tornar a ver. Leonor! Ainda enlouquecida, depois que a minha pequenina me morreu de fome nos braos, teve Nossa Senhora d de mim e melhorou-me. Enlouquecimento foi tambm este de aqui vir, mas ser o ltimo, por Deus o espero, senhora. Mas pedia-vos eu que por uns dias espersseis, at ver se eu melhorava mais. Sois alvio consolador para mim, Leonor de Gusmo. Muito da alma aqui vos teria comigo para sempre, mas, bem o compreendeis, desde que sei quem sois, no pareceria honesto que vos tivesse aqui. Senhora, nem eu queria! E tenho pena e d de me afastar de vs! Entendem-se bem dois coraes que muito padeceram. O meu padecendo ainda nesta amargura que no tem remdio! E o meu nos receios pelo dia de amanh. Olhai que no hei de esquecer-me de vs, onde quer que estejais, e irei ver-vos sempre que mo consintam estes meus ataques. Senhora, como sois piedosa! disse, tomando-lhe a mo e beijando- lha Mas no sei se poder ser! A serventuria podia aqui estar enquanto no a houvessem reconhecido; mas a mulher que foi Leonor de Gusmo, essa tem de sumir-se. No pode ficar onde quer que saibam quem ela . A mim me dissestes, h pouco ainda, que tnheis pousada de favor em casa de Afonso Eanes. E a verdade vos disse. L me receberam caridosamente, a pedido do vosso filho, porm ento ainda a minha pobre cabea tresvairava. Mas daquela casa s Afonso Eanes sabe quem sou, quem fui; a famlia no. Voltareis para l certamente. No devo, senhora. No meu empenho de vir para vos ajudar ou ao vosso filho, enquanto o disfarce no fosse percebido, a ele tambm o enganmos, aquela minha misericordiosa protetora que tem sido a velha Lourena e eu. Ela, dizendo a Afonso Eanes que nos mosteiros das monjas franciscanas tinha eu uma parenta que me queria para si; eu, declarando-lhe que para l queria ir naquele mesmo dia em que o engano se combinou. E para aqui viestes ento! A Lourena estava por tudo quanto vs quissseis, no assim? Por tudo como se fosse me indulgente. Mas para onde ireis ento?! Haveis de voltar para o casinhoto miserando de que me falastes? Nem eu sei ainda, senhora minha! Talvez faa o engano certo e v pedir abrigo a qualquer comunidade de monjas em que me queiram como serva. Isso no, Leonor! Tal vos peo eu que no faais. Eu posso pedir que vos recebam nalgum convento onde vos tratem como pessoa que tem direito a viver estimada, embora se guarde o segredo desse vosso nome. Senhora, hei de ver, mas para o agradecimento de tanta generosidade que eu no tenho de esperar e aqui vos afiano disse, beijando-lhe outra vez as mos a chorar Que o melhor ser sumir-me enquanto a morte no chega. Desvario vosso, Leonor! Desvario, senhora! que ainda no reparastes bem na desgraada que eu sou. Perderam-me e at na minha perdio me caluniaram! At esse que foi o maior amor da minha vida! Fui quase noiva, e j no posso ser seno isto que sou! Fui me, e a minha filhinha morreu-me! Sumida de todos que eu devo de esperar que a vida se me acabe! E ajoelhou-se contra o catre a soluar. No, no h de ser assim! acudiu D. Dulce num impulso de d Heis de estar aqui ainda uns dias e quando eu puder mais... Combinaremos o que se h de fazer. Ruy chamou-vos irm, deixai que eu vos chame filha, e ainda mal que, por causa do Mundo, haveis de ser uma filha que precisa de viver oculta e de quem eu tenho de afastar-me. Procurou-lhe as mos para a levantar e cingir a si. Leonor ergueu-se, abriu-lhe os braos e beijou-lhe os cabelos fervorosamente, numa crise de lgrimas. Por aquela me que Deus h tanto me levou soluava santa que de mim vos compadeceis, benditos sejam os vossos cabelos brancos! E s lhe no disse que naqueles beijos ia tambm uma enternecida homenagem, a maior talvez, mortificada me de Ruy de Vasconcelos. Mas ficais aqui mais uns dias, at que eu possa combinar convosco o que se h de fazer, prometeis? Senhora, sim. Leonor! exclamou numa aflio As sufocaes... Voltam! Amparou-a nos braos em requintes de carinhos, ajudando-a por modo que lhe tornasse a respirao menos difcil. Ho de passar-vos breve dizia-lhe Nossa Senhora h de ter d. E, por felicidade, foram muito menos violentas do que as outras, quando voltara do quarto do filho; mas ficou em grande abatimento e numa transpirao copiosa. Faz-vos mal falar mais dizia Leonor, aconchegando-lhe as roupas e ajeitando cabeal Vou dar-vos o remdio e agora preciso repousar, dormir por essa manh adiante, a manh que eu j vejo luzir disse, volvendo um olhar para a janela, um quase nada entreaberta, para que o ar no faltasse doente.
* * *
Adormeceu, mas foi sono de curta durao. s 7 horas j estava acordada. Leonor dormitara sentada ao p dela. Instou D. Dulce com a sua desvelada enfermeira para que se fosse deitar: respondeu-lhe que no era preciso porque j tinha dormido bastante. A aia levantara-se e viera receber as ordens de D. Dulce. Disse-lhe que fosse saber de Ruy e depois ento iria olhar pelas coisas da casa. Pouco depois, Marta voltava com a boa nova de que Ruy tinha passado tranquilamente e levara a madrugada de um sono. Bendita Me de Jesus! exclamou D. Dulce de mos postas, volvendo para Leonor um olhar de intenso jbilo. Bendita seja! disse-lhe ela, baixando os olhos rasos de gua. Est bem, minha querida Marta, agora ide-me olhar por essa gente e por essa casa. Ah! O nosso monge? Estava no quarto do meu filho? No estava, senhora minha. Mas ouvi dizer que, logo de madrugada, se erguera e havia mais de meia hora fora falar a um homem que vinha procurar o senhor Ruy. Est bem; est bem- Marta saiu. As melhoras daquele filho so as minhas maiores melhoras disse para Leonor. Compreendo, senhora. J soube o que era esse amor assim! volveu- lhe sumidamente. Instantes depois, Gonalo Vasques perguntava porta se a senhora estava acordada. Era Leonor quem lhe falava. Est melhor, louvores a Deus. Pois ento dizei-lhe vs que o monge, nosso hspede, muito deseja saber se lhe pode falar. Eu vou saber. Foi e voltou com resposta afirmativa. Componde-me estas roupas, minha filha. Aquele monge disse-lhe, baixando a voz tambm no o que parece. Preciso receb-lo aqui... Como se fosse um irmo meu. Um venerando velho que infunde tanto respeito como simpatia! Parece que tambm muito haver padecido. Muito. Eu retiro-me, senhora. No; deixai ver. Pode no ser coisa de segredo. Senhora minha, dais licena? perguntou Mendo porta. Podeis entrar disse-lhe D. Dulce na sua voz enrouquecida. Leonor afastou-se para o vo da janela. O monge entrou e falou a D. Dulce, mantendo o seu disfarce. Vosso filho melhor e vs tambm, por favor de Deus. Um pouco melhor. Assentai-vos. Senhora, no posso. Tenho de sair j a levar informaes ao Mestre; mas um encargo tomei para vs e no quis retard-lo. Coisa particular que seja de segredo? Mendo relanceou um olhar para a monja e respondeu: Coisa que todas as pessoas desta casa podem saber. Coisa que me causou estranheza acrescentou, baixo para ela. Dizei ento. Acabo de estar com um campino de Santarm que aqui veio de propsito e, ao que ele prprio me disse, bem pago para trazer esta carta para vs e esta outra para vosso filho. Ambas vo-las entrego disse, dando-lhas para as mos O homem deu-me interessantes informaes a respeito de el- rei de Castela e da sua corte e gente de armas, j nas disposies de irem para as suas terras. Ainda bem. Vo, mas para tornar com maior poder. E estas cartas quem as manda? perguntou D. Dulce, remirando os pedaos de pergaminho, enrolados e atados com fitas, que uns pedaos grossos de cera e resina uniam e seguravam como lacre do melhor deste nosso tempo. No me disse o portador de quem eram, ou por no querer ou porque realmente o no sabia, e s me contou que um pajem da prpria senhora infanta D. Beatriz, rainha de Castela, o fora convidar recatadamente para as trazer, e boa paga lhe dera. Da senhora infanta de Portugal, rainha de Castela! exclamou D. Dulce num alvoroo de surpresa Muito bem me conheceu e muito a conhecia eu do pao. Mas um pajem dela com uma carta para mim e outra para o meu filho! Para qu ou porqu?! Eu com a senhora rainha de Castela nada tenho, nada quero ter. Agora vos peo o faavor de abrirdes esta que para mim e de a lerdes para sabermos se alguma coisa diz que possa pr suspeita de deslealdade em algum desta casa. Deu-lha para a mo. E at desejo que a leveis ao Mestre, se alguma coisa trouxer que ele deva de saber. O portador poder contar o que viu e eu nem a sombra sequer de uma desconfiana quero em volta de mim e dos meus! Monja, vinde ouvir chamou, voltando-se para a janela.
Leonor aproximou-se com um pressentimento, que ela prpria considerava louco e teria vergonha de revelar, mas que afinal lhe sobressaltava o cotao tristemente. Mendo estava plenamente de acordo com os escrpulos da irm pois que naquele tempo de tantos traidores, de to descarados enredos polticos e tal mercancia de conscincias, no bastava ser leal, mas importava tambm parec-lo, para que as suspeitas no manchassem os que tinham de ser lio e estmulo para os mais desalentados e no levassem s turbas mais um incentivo a desesperos e esmorecimentos. Quebrou os fechos de cera, desatou e desdobrou o pergaminho e com avidez de curiosidade foi procurar a assinatura. No da senhora Infanta! disse Tem aqui apenas um nome assinado: Madalena. Madalena! disse D. Dulce, relanceando um olhar para Leonor. Estava de olhos baixos, muito plida. E mais j no pde ver-lhe o estremeo violento que a desventurada teve quando o monge leu aquele nome. Era o mesmo de quem Ruy falara no seu sonho. J entendo de quem disse D. Dulce para o monge e ento no vos demoreis para a ler. Depois ser. O seu intento era poupar pobre Leonor o sacrifcio de a ouvir ler. Sem perceber o intento piedoso com que a irm queria retardar a leitura d carta, Mendo objetou-lhe: Bem que seja longa, em menos de um quarto de hora se l, e no tanta a minha urgncia de sair, que me cause transtorno ler-vo-la agora. D. Dulce ainda procurou dar-lhe aviso num olhar, mas o monge no reparou e leu: Senhora minha e muito presada benfeitora. Perdoai-me e tende piedade de mim pelo tanto que tenho padecido e padeo por este amor de m fortuna que tem sido o meu. Nem podeis sonhar, senhora minha, a tortura horrorosa da minha alma nesta corte onde todos me estimam e parece que tudo me falta, menos a dor que veio comigo e j se no acaba, por mais lgrimas que eu chore para que elas me afoguem ou para que a nossa Senhora tenha d de mim! Mas no quis a minha desgraa que esta dor bastasse, e logo veio outra maior que a de todas as mgoas e saudades com que da violentamente me trouxeram! A mim me vieram dizer que o vosso filho tinha ficado gravemente ferido na arremetida em que me quis salvar deste cativeiro. Senhora, que horror de tormento em tantos dias e em tantas noites, desde que isto me disseram! Noites em que a minha alma teve sonhos de morte, na maior amargura desta viuvez, na qual o meu sonho de noiva para sempre se perdeu! E ningum que me trouxesse uma nova de consolo ou uma notcia de verdade ainda que fosse pior que o sonho! Alfim, senhora, a Rainha entendeu a minha amargura e teve d de mim. Com a sua proteo que esse mensageiro a veio com esta carta para vs e a outra para o vosso filho, porque em Deus espero que ele a possa ler. Mendo voltou a lauda do pergaminho. D. Dulce, que no tinha desfitado Leonor, avaliava bem a tortura moral daquela maior infortunada e aproveitou a interrupo para lhe dizer: Monja, se quereis retirar-vos... Senhora, deixai... Sairei depois respondeu-lhe a fingir uma tranquilidade de nimo, que a voz dolorida estava desmentindo. O monge levantou para ela um longo olhar de estranheza. Fizera-lhe impresso aquele tom de mgoa da serventuria, como se fosse a msica dolente de uma alma que estivesse sentindo as palavras da carta. Salvo se mandais que saia acudiu Leonor. Isso no. Como isto coisa de nenhum interesse para vs... O meu corao tem sempre um interesse de d por todos os que por este Mundo vivem infortunados. Ento, meu venerando monge disse D. Dulce, confrangida fazei- me o favor de lerdes o mais que a vem. Mendo relanceou um olhar de maior surpresa para a monja e continuou a ler: Santa me de um noivo de sonho que eu tive, fazei de conta que estou a de joelhos diante de vs e de mos postas a pedir-vos, pelo tamanho amor que tendes a esse vosso filho, a esmola de algumas palavras em que me digais como ele est. Sejam como forem, senhora. A alegria ou a dor que me trouxerem, a receberei eu no meu corao pelo dobro do que elas disserem. E no julgueis que nesta splica ainda pode ir alguma ousada esperana. Nenhuma. Anoiteceu j sobre esta minha juventude. noite para no ter fim! O sonho da noiva finou-se e vai boiando como se fosse uma flor morta sobre a levada de lgrimas que os meus olhos choravam. O que eu no desejava, o que eu no queria, era que se volvesse em remorso meu a saudade de uns dias, que j parecem distantes e j nunca mais voltam! E tal remorso viria para mim com o infortnio ou com a perda do vosso glorioso filho por causa de uns amores, que ho de viver comigo para sempre, mas que ele tem o direito de julgar acabados. Onde quer que viva, serei sempre como certas monjas emparedadas, de que eu ouvia falar com horror. O Mundo ser estreito e frio em volta de mim, por mais largueza que tenha a felicidade dos outros e por mais carinhoso sol que os meus olhos vejam no cu. Como a cela funerria daquelas desenganadas que nada esperam! Senhora, perdoai e mandai-me a esmola de algumas palavras vossas. Eu sei bem como sois misericordiosa e fico esperando por elas ansiosamente. Pela minha me e por mim vos beijo as mos, e ambas daqui pedimos a Deus que em boa fortuna vos pague os tantos benefcios que vos devemos Madalena. Fazia d o rosto mortificado de Leonor. Estavam cheios de choro os olhos de D. Dulce. Era de piedade por aquelas duas mulheres novas de to diverso destino: a que escrevera a carta e essa que a ouvira ler. O portador dessa carta ficou de voltar? perguntou ao monge. Disse-me que ao fim da tarde voltaria e mesmo de noite se meteria a caminho. Pois ento se lhe dar a resposta. A demora que hei de ter no ser longa disse-lhe Mendo e muito a tempo voltarei para vo-la escrever, senhora minha. Sim, eu mal podia.
* * *
Leonor de Gusmo, que m fortuna a vossa, at nisto que uma casualidade enredou assim! Como se despertasse de um pesadelo, a serventuria foi para ela numa convulso de soluos. Perdoai, senhora da minha alma, mas tenho de faltar minha promessa! vossa promessa! No posso ficar. No posso! Leonor, mas vede que nenhuma culpa tenho disto! Eu bem quis ver se evitava... No podia adivinhar... Senhora, por amor de Deus vos no desculpeis, pois que no h culpa seno da minha m fortuna. Senhora, como essa amargurada que vos escreveu, tambm eu vos peo uma esmola de d. Deixai-me sair e perdoai que vos deixe. Mas sair para onde? Seja para onde for. Para me sumir. Mas olhai c, minha filha disse-lhe carinhosamente, puxando-a mais para si. No me trateis assim, que me faz remorso ouvir-vos, porque eu tenho de sair, porque eu no posso j ser a enjeitada do Mundo que o vosso corao misericordioso quer perfilhar. Oh! Meu Deus, mas como tudo parece apostado a amargurar-me! Senhora, bem vedes que no posso ficar! O vosso corao h de compreender o meu. No vos amargureis por mim, de joelhos vos peo. At ser um bem para vs que eu saia. Maior tormento seria o vosso, se eu ficasse. Eu que sou no Mundo a emparedada de que fala a noiva do vosso filho. Sepultada em vida para morrer de p, sem ningum ver como esta desgraada acaba, sem ningum que no sejam as pedras de um muro para chorarem por mim. Leonor, que desvairamento o vosso! Senhora, se aqui ficasse, amanh, depois, seria pior! No mo leveis a mal; dever sair. Endoidecia outra vez, endoidecia, que bem o sinto! Chega a ser esmola deixar-me sair. Minha filha, na vossa vontade no posso eu mandar; mas deixais-me grande mgoa, at pela culpa que no tive... A culpa foi toda minha, que vim aqui mortificar-vos na louca ideia de vos ajudar ao peso da vossa cruz de me. No posso; perdoai! O meu corao mentiu-me. Fraquejou, senhora minha; est cansado de sofrer. Mas o vosso filho melhorou, vs tambm; que nenhuma falta vos faa. Deixai, deixai! Prometei que no ficais ressentida contra mim. Eu, porqu! Pesarosa que eu fico, Leonor! Isso passa. Ho de vir os dias de boa fortuna, os dias de glria para o vosso filho, at da noiva distante Nossa Senhora h de ter d, e a emparedada no Mundo serei eu. E no quereis que se mande aviso velha Lourena para ir convosco, ou a Afonso Eanes? Ao menos que algum daqui vos acompanhe disse-lhe num constrangimento de mgoa. Senhora, nenhum aviso; irei s e no tenhais preocupao por mim. Andei sozinha por essas ruas, naquela noite em que a minha pequenina morreu. E s da sua morte eu tive medo! Senhora da minha alma disse convulsivamente, ajoelhando-se-lhe em frente do catre tantas horas vos d Deus de boa fortuna para vs e para o vosso filho como de lgrimas eu tenho chorado, ainda que seja maior a conta de outras que eu levo comigo. Ergueu-se, debruou-se para ela. E beijou-lhe as mos fervorosamente. D. Dulce abraou-a e beijou-lhe a face numa tremura de comoo. Adeus! rouquejou. Leonor, que a nossa Senhora vos abenoe e v convosco. E no quereis que eu saiba de vs? Nunca mais vos tornarei a ver? Senhora, s Deus o sabe! Correu para a porta num estonteamento de mortificada. Atravessou o corredor e passou em frente da cmara de Ruy. Deus te salve, e Deus te leve para a noiva que mereces! disse num estrangulamento de voz Cavaleiro enamorado, boa glria seja contigo! Desceu a grande escada a tremer. E l foi a trambolhar pela rua fora naquela rtila manh de Outubro.
SEGUNDA PARTE A EPOPIA
CAPTULO I OITO MESES DEPOIS
Estamos em meados de junho de 1385. To agitados por grandes acontecimentos polticos foram os meses decorridos desde aquela manh de outubro, em que Leonor de Gusmo saiu do palcio de D. Dulce, num estonteamento de amargura, que no podemos deixar de resumir aqui os factos justificadores da situao em que vamos encontrar o pas e algumas individualidades preponderantes, que so j do nosso conhecimento. A 14 de outubro, el-rei de Castela passara a fronteira, entre aquele tresmalhado exrcito que no pudera tomar Lisboa. Com o seu admirvel poder evocador, Ferno Lopes d-nos numa dzia de linhas, de singelo e dramtico esboo, todo o quadro sugestivo daquela retirada. Referindo-se vanguarda dos mortos naquele prstito funerrio, escreveu: Eles iam todos diante sem mistura de outra gente de armas e cada um levava o seu senhor no seu atade coberto de d, posto em cima de uma azmola, e ao redor dela todos de p, vestidos de grande luto, e detrs os de cavalo, que o acompanhavam na vida, com a bandeira das suas armas. Logo outros acerca dele, e assim, iam todos juntos um perante outro, por grande espao de caminho, a qual procisso era triste e dorida de ver. El-Rei de Castela ia detrs com as suas companhas assaz de bem anojado... Para l da fronteira afastaram-se as mesnadas(*) e os atades cada uma para as suas terras e cada um para as jazidas das suas capelas solarengas ou das catedrais da sua terra natal.
[(*) Os contingentes de homens de armas e de peonagem dos grandes senhores e fidalgos, na maior parte ao soldo do rei.]
De Ciudad Rodrigo, em fins de outubro, escreveu el-rei de Castela uma carta cidade de Leo, dando-lhe conta do apertado cerco em que tivera Lisboa e das razes porque se vira forado a levanta-lo. Indica-lhe o grande nmero de vilas e castelos que tem por si em Portugal (nada menos de 71) e pormenoriza que naqueles lugares deixou guarnies castelhanas. Mais de nove mil homens de Castela, afora os parciais portugueses da rainha D. Beatriz. Notava-lhe el-rei que, no espao de oito ou dez lguas em volta de Lisboa, no havia castelo nem vila importante que no fosse por ele, e prometia-lhe que, depois de trocadas as suas tropas e reunidas outras, voltaria a Portugal no prximo vero, para acabar aquela demanda que tinha comeado. E com este orgulho otimista se referia famosa demanda, en la cual, con la merced de Dios, hai muito poco de acabar segun el estado en que queda... Queria isto dizer claramente que el-rei de Castela se ia preparar para outra invaso, e no estio de 1385 contava ter arrumada a fcil conquista da herana da sua esposa. Entretanto, sempre era bom alcanar o patrocnio celeste, e a 19 de novembro l estava el-rei em Santa Maria de Guadalupe, aonde fora em piedosa romagem com D. Beatriz de Portugal, a esposa de onze anos, que ele tutelava. L foram para rendir gracias nuestra Senora de haberles librado de la epidemia, y implorar su protecion para la siguiente conipana. A 24 o Mestre de Avis fora de arrancada contra a guarnio castelhana do castelo de Sintra; mas a fortaleza, empoleirada em abrutas penedias, no se tomava de arremesso, e o empreendimento malogrou-se. Quatro dias depois a esquadra castelhana levantava o bloqueio e desaparecia do Tejo. Era oportunidade favorvel para atacar os castelhanos que guarneciam a vila e o castelo de Almada. E com to boa vontade o aproveitou o Mestre, que a guarnio capitulou.
Para limpar de invasores as terras vizinhas de Lisboa, partiu o Mestre com outra expedio sobre Alenquer, que tambm capitulou. Veio uma revs parcial ensombra estes cometimentos bem sucedidos. Pondo cerco aos castelhanos que guarneciam Torres Vedras, o mestre da ordem de cristo e o prior da ordem do Hospital (*) foram vencidos numa impetuosa sortida dos sitiados e ficaram prisioneiros.
[(*) Ordem militar dos cavaleiros chamados hospitaleiros. Tivera assinalada origem nas ordens do Santo Sepulcro e de S. Joo de Jerusalm, fundadas na Palestina, e de onde derivou a dos cavaleiros da ilha de Malta.]
Foi ento cerca-la D. Joo I com as maiores foras de que podia dispor. Entretanto, passado j a oportunidade de pr em prtica o seu temerrio plano de ir ao encontro do exrcito castelhano em retirada, Nuno lvares cansara-se de esperar em Palmela que o Mestre chegasse com a gente de armas de Lisboa, e partira com a sua hoste para uma nova campanha no Alentejo. Apoderou-se de Portei e foi cercar Vila Viosa, que se lhe no rendeu. Entrara o ano de 1385. Nuno lvares viera a Lisboa e fora com um troo de homens de armas ajudar o Mestre no cerco de Torres. Algum do lado dos portugueses conspirava ali contra o Mestre, algum da nobreza; mas a conspirao descobriu-se a tempo, malogrou-se, e os chefes do abominvel conclui foram presos e justificados. Torres no capitulava, e o Mestre largou do cerco para ir a Coimbra reunir as cortes. Por esse tempo os partidrios da filha de D. Leonor Teles, rainha de Castela, conseguiam outra vez que Alenquer se voltasse contra o Mestre. Em Coimbra a receo ao Messias de Lisboa foi entusistica e com arrebatamentos de enternecimento filial como nenhum rei ainda teria visto ali. Houve uma aleluia doida de jbilos quando a procisso dos patriotas de Coimbra, com o clero frente, de cruz alada, foi ao encontro do Mestre, a uma lgua da cidade, uma avultada lgua de caminho por onde enxameava gente de todas as condies. E as mulheres com mais afincado enternecimento e mais calorosa expanso de entusiasmo por aquele chefe que defendera Lisboa e por aquele paladino de lenda que vinha ao lado dele e trazia cinta a espada que mais se temia em Castela Nuno lvares. At s crianas aclamavam os dois na sugestiva comoo daquele lance! Antes que as cortes decidissem o caso da sucesso ao trono e os legistas esmiuassem a questo de direito, j os beires de Coimbra tinham confirmado em brados febris de aclamao a realeza que o povo de Lisboa, meses antes, outorgara ao Mestre no famoso comcio do largo de S. Domingos. Foi demorada a discurso em cortes; os legistas falaram demasiado, mas Joo das Regras, valendo mais que todos eles, sustentou magistralmente a questo de direito em favor do Mestre, e a vontade insubmissa de Nuno lvares, arrastando consigo a juventude fidalga, consolidou-lhe o triunfo. Tambm ali havia oposio, e por parte de Martim Vasques da Cunha, representante da nobreza com assento no 8. banco, foi de verdadeiro obstrucionismo, como hoje se diria, o seu teimoso propsito de esmiuar legitimidades. Chegou mesmo a referir-se ao Mestre, sua vida pblica e s suas condies sociais com tal audacioso desassombro, que talvez causasse estranheza nos parlamentos mais livres do nosso tempo!
* * *
Merecem o resumo de algumas linhas aquelas extraordinrias cortes, que levaram largo tempo a discutir uma coisa que o povo de Lisboa j tinha resolvido e, com ele, a parte da nao firmemente portuguesa. Bem sabemos j como em S. Domingos o Mestre de Avis foi aclamado rei pelo terceiro estado; o Porto no ficou em desacordo com a capital e o povo de Coimbra, quando foi em procisso esperar o Regedor do Reino, tambm fervorosamente o aclamou como reinante, sem que lhe importasse o que viriam a decidir o alto clero e a nobreza nas cortes convocadas. Refere Ferno Lopes que os da procisso bradavam pelo caminho alegremente: Portugal! Portugal! Por el-rei D Joo, em boa hora venha o nosso rei. Que lhe importavam arraia mida os ajustes feitos em Salvaterra em abril de 1383, as juras e menagens dos fidalgos a D. Beatriz e ao marido, um ms depois em Badajoz, ou a controvertida legitimidade dos filhos de D. Ignez de Castro? Para o povo, que no queria ser de Castela, s havia um portugus com direito a ser rei de Portugal. Era aquele, o Mestre de Avis. No fundamentalmente por ser um filho de D. Pedro I, como era o falecido monarca D. Fernando ou como eram os dois infantes nascidos dos amores com Ignez de Castro; mas por ter sido ele o defensor da ptria e o chefe do povo na conjuntura em que Portugal esteva a pique de se perder. Para o corao patritico das multides, a bastardia, na sua pior aceo, estava do lado daqueles que se presumiam herdeiros. D. Beatriz era a esposa do rei estrangeiro que invadira Portugal para o tornar vassalo seu, e aos dois filhos de D. Ignez de Casiro os considerava o povo uns desnacionalizados. Tinham entrado mo armada no seu pas, um deles com o rei Henrique de Castela, o outro, numa parceria criminosa, com os castelhanos de D. Joo i, em desalmada hostilidade contra os seus compatriotas. No havia direito hereditrio que pudesse resgatar perante a alma portuguesa a m f e a iniquidade do rei estrangeiro, nem a rebeldia odiosa dos dois filhos dessa infortunada amante, que D. Pedro I levantara da sepultura para uma coroao teatralmente trgica. A alma do povo compreendeu a funesta e ingrata iniquidade que seria antepor os contestveis direitos dos pretendentes que estavam em Castela aos outros que o Mestre ganhara, lutando pela causa santa da nao. As cortes teriam afinal de sancionar o voto das multides para no perder Portugal. Como o terceiro estado, uma parte do clero e da nobreza levara para a assembleia constituinte do pao de Alcova de Coimbra a previso dos largos destinos nacionais que o Mestre simbolizava. A assembleia organizou-se com uma pequena parte do alto clero, em que entravam um arcebispo e seis bispos, com mais de cinquenta representantes da nobreza e da alta magistratura e com cinquenta procuradores das vilas e cidades fieis de Portugal. Os Vasques da Beira opuseram-se com incendida pertincia eleio do Mestre, no por abastardamento de sentimentos patriticos, mas um pouco talvez por causa das suas antigas relaes de amizade com um dos filhos de D. Ignez de Castro e, mais, provavelmente, pelas suas prospias de homens preponderantes, num empenho de oposio pessoal a D. Nuno lvares Pereira e aos seus parciais, defensores inabalveis da candidatura de D. Joo. Voluntariosos, assomadios, de indomvel orgulho, provvel que um pouco os mordesse o cime pelo valimento, que tinha Nuno lvares e lhes desse estmulo para aquela contenda obstrucionista a sobranceira firmeza com que o jovem vencedor dos Atoleiros mantinha as suas opinies. E tanto esta hiptese aceitvel, que se no fora o interveno conciliadora do Mestre, a discusso entre as duas parcialidades fidalgas desfecharia num conflito deplorvel de batalhadores. Pouco faltou. Joo das Regras empenhou devotadamente todo o seu talento de letrado e todas as suas argcias de aumentador em prol do Mestre de Avis. Ningum ousara ali defender os direitos da herana de D. Beatriz e do marido, mas o famoso causdico, um pouco talvez por amor da arte, porfiadamente os rebateu, demonstrando a nulidade do segundo casamento de D. Leonor Teles e, portanto, a condio ilegtima de D. Beatriz e alegando o perjrio com que D. Joo de Castela quebrou e anulou os encargos tomados em Salvaterra e em Badajoz. Mas contra os supostos direitos hereditrios dos filhos de D. Ignez de Castro, acanhadamente mantidos pelos Vasques da Beira, foi que o Dr. Joo das Regras ps em ao todo o seu arsenal de argumentador. Discutiu o suposto casamento clandestino da amante de D. Pedro, a sua legalidade dado que se tivesse realizado, e legitimidade dos filhos como herdeiros, leu cartas pontifcias, evocou testemunhos jurados e gastou nisto largas sesses, pondo os miolos em gua aos Vasques e em fervuras de impacincia o sangue insubmisso de Nuno lvares. Entretanto, o argumento de efeito seguro para os repulsar da herana da coroa estava afinal dentro deste facto pblico e incontestvel um e outro, D. Diniz e D. Joo, tinham entrado mo afinada no seu pas, acompanhando os invasores castelhanos. Pouco valia dirimir as razoes pessoais porque tinham vindo c. Foi, porm, a torva atitude do batalhador Nuno lvares que mais quebrou a teimosia dos soberbos fidalgos beires, e afinal se decidiu que o Mestre fosse aclamado rei. Foram levar-lhe a notcia oficial da deciso e nesse lance apresentou D. Joo admiravelmente o seu papel de homem poltico. Esquivava-se modestamente quela investidura de to alto encargo. Com igual dedicao e fervor continuaria a empenhar-se na defesa do reino, simples cavaleiro como at ali prometia; pois que, se como chefe tivesse de ficar vencido nalguma decisiva batalha, menor desdouro seria para a nao e de menos alarde para Castela que o fosse na sua qualidade de Mestre de Avis do que levando consigo a coroa de Portugal.. Alegou os seus votos de cavaleiro professo a impedirem-no de contrair matrimnio como cumpria a um monarca, e aconselhou os delegados das cortes a que pusessem de parte a questo da coroa e deliberassem com urgncia no tocante aos recursos extraordinrios para manter a guerra. Pois tiveram as cortes de lhe vencer os escrpulos e de instar com ele para aceitar a coroa! Era sem dvida nenhuma aquele batalhador de vinte sete anos um hbil diplomata e um grande ator de alta comdia poltica, to necessria s vezes nas conjunturas mais trgicas de uma nacionalidade. A aclamao fez-se a 6 de abril nos paos da Alcova de Coimbra. As cortes votaram o alteamento das sisas para fazer face aos encargos da guerra, e o novo rei atendeu e deu validade aos captulos(*) apresentados pelos procuradores do povo.
[(*) Captulos chamavam-se s propostas, pedidos, queixas ou reclamaes apresentadas s cortes. O rei respondia ou no a esses captulos, e atendia-os ou deixava de os atender conforme a sua vontade.]
Os de Lisboa, esses ento obtiveram quase tudo quanto pediram, assinalando uma alta preponderncia como o terceiro estado nunca at ali tivera. Os procuradores da cidade bem sabiam j o muito que podiam esperar da grata e amorvel dedicao do novo monarca. Logo em 10 de abril se tornara pblica uma carta rgia, que bem o mais soberbo e glorioso atestado dos heroicos servios prestados pela capital e do galardo magnnimo, com que o rei os premiou. El-Rei, ouvidas as cortes, da sua prpria autoridade, liberdade, livre vontade e poder absoluto, lhe d, aprova, outorga e confirmo todos os privilgios, liberdades, bons usos, foros e costumes que os seus antecessores lhe tinham concedido e mais as graas, prmios, doaes, liberdades e privilgios que os seus procuradores tinham pedido nos captulos propostos s cortes. Era uma largussima ampliao das concesses e doaes que tinha feito aos habitantes de Lisboa e o seu termo em 6 de outubro do ano anterior, j por ns resumidas. Apontaremos apenas as novas concesses que temos por mais altiva afirmao da soberania popular e das imunidades municipais. Dava cidade, pelas suas autoridades prprias, jurisdio em certos casos, at ali exclusivamente sujeitos autoridade do almirante ou de capito-mor das gals. Jurisdio perptua nos conda dos de Alverca o, Barcarena e nos reguengos.(*) Aplicava as isenes e privilgios dos lisbonenses queles que tivessem vindo para defesa da cidade e nela fixaram moradia. Para eles e os seus descendentes.
[(*)Terras do patrimnio real. Reguengueiros eram os que pagavam tributos coroa pelo usufruto dessas terras.]
Aceitava que os selos pblicos estivessem sempre confiados a pessoa da escolha do rei, mas que fosse natural de Lisboa. Assegurava cidade o direito consuetudinrio de eleger anualmente os juzes do seu foro, pois que este costume fora postergado no reinado anterior. Concedia aos moradores de Lisboa, que fossem portugueses, o uso das suas armas em qualquer lugar do pas, e defendia que em qualquer parte do reino lhas tomassem as justias. Deferiu que as chaves das portas da cidade fossem confiadas aos representantes do municpio, dispondo que dois homens bons escolha dos muncipes as tivessem sob sua guarda numa arca da casa da cmara. (*)
[(*) Havia trs chaves para cada porta das muralhas, uma ficava em poder do alcaide, delegado do rei, e as outras duas na arca da cmara. Dali as levavam ao amanhecer para abrir as portas e para l voltavam logo. noite tornavam-nas a levar para fechar as portas e reconduziam-nas para a casa da cmara. Isto, claro, em condies normais.]
Prometia que os serventurios da rainha D. Leonor Teles no seriam reintegrados nos empregos da cidade, que em outro tempo tivessem exercido. Que no haveria couteiros nem proibio de caa no termo de Lisboa. Que nada resolveria quanto s coisas da guerra em que o reino estava empenhado, sem ouvir conselho e tomar acordo com os representantes da cidade, pois que neste empenho tinha sido ela a primeira. Que poria cobro aos abusos dos fidalgos e cavaleiros no to cante sua hospedagem na capital, pois que alguns arbitrariamente dispunham, como de propriedade sua, das casas, roupas e mantimentos dos moradores a quem tocava dar-lhes pousada; mas que o municpio se obrigaria a preparar albergues para os que viessem a Lisboa receber os seus dinheiros. Mantinha cidade o direito de escolher os procuradores e advogados que lhe cumpria eleger, ficando a escolha subordinada confirmao rgia. Anularia o privilgio concedido por el-rei D. Fernando aos estrangeiros residentes, para terem cnsules com o cargo de juzes seus privativos, afrontando assim a jurisdio e os direitos da cidade. Dava privilgio aos oficiais da coroa, que fossem ou tivessem sido juzes, almotacs, corregedores ou vereadores do concelho, e aos seus filhos e netos, para que no fossem postos a tormento por castigo, seno nos casos em que o deviam ser os fidalgos, visto que pelo foro antigo de Lisboa os cavaleiros da cidade tinham honras iguais aos infanes. (*)
[(*) Os infanes constituam nos primeiros tempos da monarquia uma classe privilegiada abaixo dos ricos homens, que assim se dominavam os de mais enobrecida linhagem.]
O Rei juraria manter ao povo os seus direitos, fazer-lhe justia, guardar-lhe os foros e costumes, e conservar-lhe todas estas graas, direitos e prerrogativas. E depois destas concesses, que representavam outras tantas conquistas do terceiro estado, ainda D. Joo I alargou consideravelmente o termo de Lisboa, incluindo nele as vilas de Sintra, Alenquer e Torres Vedras. Tambm se no esqueceu da leal e valorosa cooperao do Porto e das heroicas provaes de Almada, e a uma e outra deu graas de honroso galardo.
* * *
D. Joo I nomeou Condestvel e o seu Mordomo-mor (*) ao jovem vencedor dos Atoleiros e deu provimento definitivo a outros cargos do estado.
[(*) Condestvel e Mordomo-mor Eram os dois mais altos cargos do estado no exrcito e na corte.]
Joo das Regras continuaria a ser chanceler-mor do reino, em substituio de Loureno Anes Fogaa, que fora numa embaixada a Inglaterra, para l tratar de obter socorros militares e o estreitamento da aliana entre os dois estados. Agora esse que fora Mestre de Avis tinha de ir defender nos campos de batalha, com a bandeira de Portugal, a coroa que as multides e as cortes lhe tinham dado. Dias depois, por meados de abril, o rei de Castela, j em Crdova, depois da longa enfermidade que o retivera em Sevilha, ordenava que a armada voltasse a bloquear Lisboa e que a hoste do arcebispo de Toledo invadisse a Beira, ao mesmo passo que a hoste real ia contra Elvas para a cercar. Pela sua parte os homens da Galiza outra vez tinham invadido o Minho e era preciso ir rebate-los de l. Sem ter ainda conhecimento dos aprestos para a invaso da Beira e do Alentejo, o novo rei partiu para o Porto. O Condestvel precedera-o. Era l que ele tinha a esposa e foi naquela cidade que o monarca lhe fez doao do condado de Barcelos, para o juntar ao outro de Ourem. Foi um coisa vertiginosa aquela campanha de Nuno lvares contra as foras da Galiza e os parciais portugueses de D. Beatriz. Tomou os castelos de Neiva, Darque, Viana, Cerveira, Caminha e Mono; depois por ordem do rei, retrocedeu para tomar Braga, e com o monarca foi bater o castelo de Guimares, que se lhes entregou em maio. Dias depois tomavam o castelo de Ponte-do-Lima.
* * *
Voltemos ao pao de D. Dulce. Logo em fins de outubro teve o filho uma recada gravssima, que outra vez o ps em perigo de vida. O ferimento da garganta inflamara-se-lhe e tomou to mau aspeto, que o fsico chegou a prevenir a pobre me do fnebre desenlace com que contava. A febre era violentssima, uma febre maligna como a diagnosticava a medicina daquele tempo. Ao cabo de longos dias de tortura para ele, e mais decerto para a me, a doena deu volta, como o fsico dizia, e as boas esperanas voltaram. A convalescena foi longussima e Ruy soube da partida do Mestre e dos seus companheiros do esquadro dos Namorados para o cerco de Torres e depois para as cortes de Coimbra. Soube-o com profunda e indefinvel tristeza de alma. Mas no podia ir. No lhe dariam as foras para as longas jornadas e, menos ainda, para voltear nos ares a sua pesada lana. Fazia d. Tinham-se lhe cavado os olhos e as faces e sobre a palidez baa do rosto como que se derramava o claro febril do seu olhar entristecido. Esperarei, disse um dia com amarga resignao ao tio Mendo esperarei que Deus me de alento e ento irei resgatar este muito tempo perdido. Em meados de junho, j mais refeito de foras, mais a prumo aquele corpo que lhe andara dobrado como se fosse de velho, soubera Ruy do xito brilhante da campanha do Minho por uma larga carta em que o Magrio lhe referia as audcias felizes dos Namorados, cada vez em maior nmero, mas ainda sem constiturem hoste independente e distinta das outras, como era desejo de todos. Parte com a hoste del-rei, outra parte com o Condestvel, e assim andamos espalhados com grande desgosto de todos ns, meu querido Ruy dizia-lhe lvaro Coutinho. Um dia ser, talvez muito breve comentou o convalescente h de ser hoste que se no confunda com outra qualquer e, tantos hemos de ser, que nalguma grande batalha haveremos de formar ala que d nome e de alguma glria seja para esta nossa terra. Hei de eu ir fazer o pedido a El-Rei e ao Condestvel. Antes a Nuno lvares talvez, que tem mais sonhos e mais corao jovem que o rei. Ainda sou capaz de ir ter com eles ao Minho. Mais uns dias e vou.
* * *
A tia Lourena ia de vez em quando a casa de D. Dulce para saber dela e do filho. Se ia de manh cedo, era quase sempre o velho Gonalo Vasques quem lhe falava, ao vezo de saber notcias; mas, se ia mais tarde, a ilustre dona do pao mandava-a entrar para os seus aposentos e ficava-se a conversar com ela por largo tempo. s vezes era a respeito da desventurada Leonor de Gusmo que as duas mais conversavam. Desde que sara daquela casa nunca ningum mais soubera dela, apesar das constantes indagaes que D. Dulce mandara fazer e das reiteradas pesquizas que a intrpida regateira tinha feito pela sua devoo particular. Naquele dia, era pelo S. Joo, a Lourena foi l por volta das 11 horas e ento no esperou que D. Dulce a mandasse entrar para conversarem, pediu ela para lhe falar. A ilustre senhora mandou-a logo conduzir para a saletazita de costura. Deus vos salve, senhora minha. E a vs, senhora Lourena. Vindes com cara de caso! De dois casos que , minha nobre senhora. Querem ver que destes vs com o paradeiro da infortunada? Dar no dei, mas estou na suspeita de que posso dar. Pois assentai-vos a e dizei. J me no inclino a crer que a desgraadinha, to linda e to mimosa, mal empregada! Se tivesse deitado ao rio para morrer! Disso tambm eu me lembrei com grande mgoa da minha alma, pois seria o maior pecado da sua vida! -No, senhora minha; agora j no para a que vai o meu sentido. Quis Deus que ontem noite me fosse l dar ao casinhoto o hortelo velho decerto convento de monjas, que ao depois vos direi. O velhote vinha cheio de mgoa e de queixas contra as madres, que o tinham despedido, e, como era meu conhecido antigo, l me surdiu para desabafar comigo. Palavra puxa palavra, as palavras so como as cerejas, e com a m vontade que trazia ao mosteiro, e mormente abadessa, o homenzinho comeou a descoser-se a respeito das coisas que l se tm passado. E deu-vos alguma nova de D. Leonor, estou j adivinhar! No foi bem assim, senhora minha. Notcia certa no me deu nenhuma; mas eu ajudei-o disfaradamente a despejar o saco, e o velho falou-me de uma linda jovem que pra l tinha entrado, vai em oito meses, muito chorosa e mortificada. Ele por acaso a viu entrar e, bem que no saiba dar sinais certos, pois que s reparou que era jovem e bonita, alguma coisa disse que me fez desconfiar... Que fosse aquela desditosa dama? Isso mesmo foi o que eu logo pus na minha ida. E o dia? Disso que o velho se no recorda. Que foi em outubro que ele tem bem na ida. E nunca mais a tornou a ver? Nunca mais. A ordem muito apertada de rigores. Criaturinha que l entre para se entregar ao nosso Senhor, nunca ningum mais, que no sejam as outras monjas, lhe pe a vista em riba! Basta que eu vos diga, senhora minha, e isto me contou o velho como se fosse o segredo maior de mosteiro, que at l tm um nicho em certa parede oculta onde em tempo esteve uma emparedada. L com o seu desgosto e com aquela espinha de o terem mandado embora atravessada no corao, o velho ps tudo em pratos limpos. Admira que o tivessem despedido, sabendo ele de tudo isso! Mas as madres que no sabiam que ele tinha dado casualmente com o tal nicho de meter gente. Santo nome de Deus, que at faz arrepiar! Eu j tinha ouvido dizer o que era, e uma vez fui ver o nicho daquele Fr. Joo que estava emparedado numa barroca, do lado de fora das portas de Santa Catarina. Havia l uma casinha de pedra e vai o santo frade, que viera de Jerusalm, onde pelos modos j tinha estado emparedado, foi ali meter-se e pediu que lha tapassem toda a pedra e cal e s no alto da porta lhe deixassem aberta uma fresta por onde lhe entrasse o ar e lhe pudessem meter l pra dentro o po e a gua! Credo! uma sepultura posta a pino para algum morrer aos poucos, de p! E era da tal fresta que ele falava gente que l ia pela sua devoo. At l foi um dia ouvi-lo o Mestre de Avis, agora o nosso rei. Haveis de ter ouvido falar. Ouvi... Creio que ouvi respondeu-lhe como quem est a pensar nalguma coisa inquietadora. Lembrara-lhe a carta em que Magdalena se considerava uma emparedada no mundo e, associada a esta lembrana, agora se recordava do modo como Leonor notara aquela comparao e a tomara para si. Quem sabe? perguntara sua prpria alma, oprimida de d. Nos conventos das freiras tambm h emparedadas, ou houve continuou a tia Lourena. Uma mulherzinha do Porto, que era muito minha vizinha, contou-me uma vez, que sabia de algumas que l tinha havido como fama de santas. Mas olhai c: o velho disse-vos que estava alguma monja emparedada nesse tal convento? Disse-me que no estava l nenhuma, que ele tivesse percebido. Senhora, perdoai, mas porque mo perguntais? Por uns receios s meus, em que no vale a pena falar. J entendo. Receios de que a pobrezinha, to amargurada do mundo afinal se quisesse l sepultar em vida? Sim, talvez isso. Eu tratarei de ver se posso procurar o Senhor Bispo ou pedir a quem no meu nome lhe fale, para se evitar algum desvairo daquela mortificada dama, dado que se trate de D. Leonor, como creio. E eu agora, como se j tivesse a certeza! Fez-me muito d e tomei-lhe amizade. S Deus sabe o que eu tenho chorado por ela! E nada mais sabeis? Senhora, sei o outro caso em que vos queria falar. E esse tambm a respeito de D. Leonor ou dalgum desta casa? Minha nobre Senhora, disse-lhe numa sbita mudana de rosto, um intenso fulgor de jbilo nos seus olhos de plpebras engelhadas este agora caso de outra laia; a respeito de ns iodos, pois que da nossa terra se trata! Estou a perceber que ainda nada heis ouvido acerca dele! No sei a que vs quereis referir, volveu-lhe alvoroada nem a mim me vieram contar nada de novo! Querem ver que algum desastre sucedeu na guerra do Minho? disse sem lhe ter notado a expresso radiante do olhar. Isso sim, senhora minha! Ps-se Deus do nosso lado, e a alma da nossa gente est merecendo bem que o nosso Senhor lhe d boa fortuna. Agora foram os beires que deram uma esfrega mestra nos negregados de Castela Estava o povo todo alvoroado no Rocio a ouvir um escudeiro jovem, que esta manh chegou de Trancoso com mensagem do fidalgo Martim Vasques da Cunha para os vereadores e para os da Casa dos Vinte e Quatro. Tambm venceram a sua batalha os fidalgos da Beira e, pelo que o dito escudeiro conta, foi uma batalha desenganada a que eles venceram! Bom S. Joo trouxeram eles nossa terra e com maior gana ho deste ano saltar as fogueiras os rapazes e as meninas beiroas! E os casteles gadelhudos perdoai me esta gana com que eu deles falo, apanharam aquela tosquia depois de maro! Foi para seu castigo! Contava o escudeiro, estava a conta-lo ao mestre Afonso Eanes, contava que os malvados tinham deitado fogo a Celorico e Viseu, a fora o mais de roubalheira e desonestidades que eu ouvi muito por alto! Talvez ainda o senhor Ruy no saiba desta boa nova? Provavelmente no sabe, porque ainda hoje no saiu, mas vou eu levar lhe a notcia. Pois ide, ide, senhora minha, que o vosso filho um dos que tm mais alma para dar a esta nossa terra. Ficai com Deus e perdoai alguma palavra que fosse de menos respeito para vs. No foi com m inteno. Isso sei eu bem. As mulheres da minha ral trazem o corao muito ao p da boca, e dizem as palavras sem irem embiocadas, po po, queijo queijo, e chamam s coisas pelos seus nomes. E eu c por mim, em se tratando daqueles malditos casteles, at a lngua me parece espada contra eles! Bem sei, bem sei volveu-lhe a sorrir. Ide com Deus e aparecei para combinarmos o que se h de fazer para encontrar o paradeiro de D. Leonor. Ide com a melhor vontade do meu corao! Minha nobre senhora, amanh voltarei c, se Deus Nosso Senhor quiser. Pois sim. At amanh.
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Ruy estava na sala de armas com o tio Mendo e o Gonalo Vasques. Ora vai o tio ver se eu ainda no tenho foras para brandir nos ares, por meia hora seguida, esta lana grande com que o meu av se fartou de golpear mouros na batalha do Salado. E arrancou a da panplia. Grande batalha foi e boa e desinteressada glria ganharam l os nossos, ajudando a salvar da invaso moura todos os reinos das Espanhas memorou Mendo Rodrigues. Das maiores, segundo contam dizia Ruy a sopesar a lana. E o Gonalo Vasques, de olhos nele, a sorrir, com um grande enlevo paternal. Que a outra das veigas de Santarm, contra o poder do Miramolim de Marrocos, no tempo do senhor D. Sancho i, no foi menos terrvel recordou Mendo Rodrigues e nessa esteve o bisav da tua me, j homem idoso de noventa anos como aquele grande cavaleiro de Beja... Que foi Gonalo Mendes da Maia, no tempo do senhor rei D. Afonso Henriques acudiu Ruy, floreando a lana formidvel. J a aguento bem. Falta experimentar se serei capaz de fazer o mesmo com a armadura vestida. Para que batalhas se est ento preparando o meu dom cavaleiro da hoste dos Namorados? perguntou da porta D. Dulce com um plido sorriso. Minha me! disse indo para ela enternecidamente. Estava a experimentar foras explicou, beijando-lhe a mo. Ainda cedo, Ruy. O fsico j me disse que s daqui a duas ou trs semanas poders ir juntar-te hoste do senhor D. Joo i. Ensombrou-se-lhe o rosto de tristeza e logo, por disfarce, acrescentou: Falavam de batalhas antigas; eu ouvi ali da porta. E j agora, que da guerra que mais se fala, at eu venho trazer-vos noticia de uma batalha, no de h sculos, mas to nova, que j deste ms e talvez da semana que passou. No Minho? perguntou Ruy com alvoroo. No, na Beira foi que ela se deu e muito perto de Trancoso. E quem venceu? Venceram os nossos. -Me e senhora minha, como soubestes vs de tal batalha, e quem nos diz que no seja algum boato falso?! Algum o ouviu a pessoa que de l veio, no decerto para nos trazer uma falsa notcia. Um criado apareceu porta e disse: Senhor Ruy, meu amo, mestre Afonso Eanes chegou e muito deseja falar-vos em companhia de um desconhecido, que se diz escudeiro do nobre senhor de Trancoso. Pois que entre para aqui com esse escudeiro, se do vosso agrado, Me e senhora. Decerto que . E vais ter agora quem te conte bem o mais que eu te no sabia dizer.
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Afonso Eanes entrara com o escudeiro, jovem de vinte anos, pertencente a uma honrada famlia de Trancoso. Breves saudaes, a apresentao do recm-chegado em meia dzia de palavras, e logo o Juiz do Povo exps o intento com que viera. Quis parecer-me disse para Ruy de Vasconcelos que muito vos havia de aprazar ouvir contar uma honrada batalha que os da Beira, h poucos dias, venceram a gente de Castela, e por tal pensar foi que pedi a este senhor escudeiro o favor de me acompanhar vossa presena, para que ele vos dissesse como o feito se praticou. Com o maior aprazimento do meu corao ouvirei as vossas notcias, senhor escudeiro, e muito vos agradeo a lembrana de aqui vires com tal agradvel mensageiro, mestre Afonso Eanes, honrado Juiz do Povo. D. Dulce sentara-se no escabelo alto de espalda e os homens em escabelos rasos, em volta da grande mesa. O escudeiro, beiro moreno, esbelto, de rija musculatura, figura atraente de lutador aventuroso, pediu licena ilustre senhora para ficar de p e foi resumindo por esta forma, com sugestivo desvanecimento, a proeza dos beires, seus conterrneos: Senhora minha, perdoai se no souber contar bem como o feito se deu naquela comarca da Beira e bem nas vizinhanas daquela terra de Trancoso onde eu nasci e minha, me morreu. Mal chegou este ms do S. Joo, soubemos ns que os de Castela tinham entrado na Beira pelos lados de Almeida, que est por eles, e tudo vinham devastando, sem piedade para ningum. Eram homens de prole com a sua peonagem esses que D. Pedro Tenrio, arcebispo de Toledo, convocara e em Ciudad Rodrigo se juntaram para aquela investida. De quatrocentas lanas, distintos cavaleiros, duzentos ginetes e dois mil besteiros e pees, soubemos que era a hoste que vinha ao mando de um tal Castanheda, fidalgo de grandes ousadias e de farroncas ainda maiores que os feitos. Isto afora outra gente de menor valia, que os vinha acompanhando para os roubos e devastaes. Por m fortuna da minha comarca, andavam desavindos e pareciam inimigos de figadal rancor os dois mais poderosos e valentes senhores daquelas terras. Eram eles Gonalo Vasques Coutinho, alcaide-mor de Trancoso, e Martim Vasques da Cunha, senhor de Linhares. Nem um nem outro se queria descer do seus ressentimentos, e por tal desavena se no juntavam para ir tomar o passo aos de Castela, pois que a um deles havia de pertencer o mando da hoste e nenhum dos dois queria ser o segundo. Vieram ento chegando pessoas espavoridas dos lados de Pinhel e Viseu, e o que essa pobre gente contava dava horror! Os campos estavam arrasados, as aldeias desertas, as searas a arder, tudo roubado, igrejas, solares, casebres, e a cidade de Viseu a sumir-se nas suas prprias cinzas! Meu Deus, que horror de guerra! exclamou D. Dulce num confrangimento de d. Essa hoste do Castanheda no passava afinal de um bando de malfeitores! disse Ruy de Vasconcelos num impulso de rancor. Dos piores malfeitores, senhor cavaleiro! confirmou o narrador. De tal empedernida crueza e danado nimo, que violavam mulheres e matavam pobres velhos inofensivos, s para fartarem o dio que nos tm por este grande crime de no querermos Portugal sujeito a el-rei de Castela! E aos que eram de famlias nobres ou homens novos e fortes do povo os tomavam por cativos, no sentido de vender os fidalgos pelo preo do resgate, e tornar servos seus os outros de condio humilde! E por causa de uma desavena entre dois homens da mesma raa e da mesma terra, se deixava o passo livre a esses salteadores de balses fidalgos! comentou Ruy com profunda repulso. Assim foi por desgraa nossa! E ao desamparo uma to antiga e ilustre cidade como Viseu! L houve ainda quem a defendesse e da S fizesse uma torre de menagem para a derradeira luta; mas o templo ficou alagado de sangue, os altares foram roubados e a cidade entregou-se quase reduzida a cinzas! Alfim quis Deus que os dois desavindos senhores da Beira viessem a entender-se como homens de honra e leais portugueses. Talvez na mgoa e no remorso de verem assim devastada e em tais horrores a terra que os dois podiam e deviam defender? disse Ruy. Assim o creio tambm. O que os fugitivos de Viseu e das pobres aldeias mortas, tresmalhados e a monte pelas vizinhanas de Linhares e Trancoso, vinham contar confrangia de d e queimava de vergonha e desespero! Mas sabei que o nobre alcaide de Ferreira Daves, Joo Fernandes Pacheco, muito fez e muito de alma se empenhou para que melhor e mais facilmente se entendessem e perdoassem Gonalo Vasques Coutinho e Martim Vasques da Cunha. E ento, o de mais alta prospia e maior poder, que era Martim Vasques, rejeitou o mando que lhe cabia e quis que fosse dado ao outro, seu inimigo da vspera! Mais assim se enobreceu! Falou tarde, mas falou alto, o seu corao de homem leal! disse Ruy calorosamente. Depois era ver como os dois andavam ao desafio em qual havia de empregar maiores esforos e pr mais alma no resgate e no desforo daquela funesta invaso! De afogadilho e como era possvel, se juntaram umas trezentas lanas e uma multido de peonagem mal armada, lavradores bisonhos muitos deles. Ao todo uns dois mil para rebater a hoste de Castanheda! Soube-se ento que os de Castela, avisados de que havia enfim algum que fosse contra eles, se iam meter nas suas terras para pr a salvo os avultados roubos que levavam. Da nossa parte se resolveu que lhes fssemos ao caminho cortar a retirada. E como se no queria faltar s boas regras da cavalaria, nem que a algum parecesse que s de surpresa nos atreveramos a ir combatei os, a Joo de Castanheda foi mandado um. Escudeiro com cartel de desafio para lutar em campo aberto. Castanheda recebeu o desafiador com os seus alardes de farfante e com ares de generosidade, a fingir-se paladim como os dos antigos romances de cavalaria andante, ao escudeiro mandou dar de alvssaras o seu mais soberbo cavalo. Simulava assim que muito lhe aprazia lutar connosco, mas a verdade que os seus no ajudavam o fingimento, pois estavam na impacincia de pr os despojos da ladroeira a bom recato. O escudeiro aceitou a oferta com um riso de escrnio, dizendo-lhe que pelo caminho rebentaria o cavalo de presente para chegar mais cedo com a boa nova, de modo que a batalha no se demorasse e os roubadores e incendirios topassem enfim diante de si homens de armas com quem todas as contas se ajustassem. Boa e destemida resposta a desse escudeiro! disse Ruy entusiasticamente. Estimaria conhec-lo. Diante de vs o tendes. O escudeiro desafiador era eu. Pois por amigo meu vos desejo acudiu, erguendo se e indo para ele e por tal destemido desafio vos abrao. Abraaram se com fervoroso entusiasmo. Dizei-nos agora como foi a batalha, de que h pouco ainda ouvi falar muito por alto. Em busca deles saimos de Trancoso, e numa veiga, cerca de certa ermida da invocao de S. Marcos, os espermos. Ao cabo de pouco tempo os descobrimos com as suas rcuas de setecentas azmolas, ajoujadas de despojos das grandes povoaes e aldeias roubadas. Percebia-se bem que no estavam com grande vontade de vir sobre ns, e muito cozidos de um lado ribeira que chamavam das Frechas e do outro lomba de um monte, se nos queriam escapar manhosamente. Estavam com receio de perder as rcuas de azmolas observou Ruy. Por isso era, e no por falta de nimo, que se nos queriam escapar, pois bem sabamos ns que vinham ali homens de armas com larga experiencia de guerra e fidalgos cavaleiros de boa fama. A nossa gente tinha-se formado em cerrado (*) para melhor resistir excelente cavalaria que eles traziam, e as trs centenas de cavaleiros que tnhamos, ali se apearam para que todos lutassem de p em terra, com as lanas de conto fincado no cho. Dizem que assim foi nos Atoleiros e assim era preciso que fosse ali, para opor aquele sedeiro de lanas e chuas s arrancadas da sua poderosa cavalaria.
[(*) Formao militar em quadradura ou quadrado] E para os esforarmos a combater ou a fugir vergonhosamente para as suas terras de Castela, nos fomos acercando mais da ermida no intento de lhes tomar o passo. Enfim se decidiram. E vendo que os nossos estavam todos apeados, os seus quatrocentos cavaleiros de lanas se apearam tambm. Mas ainda lhes ficaram para as maiores arremetidas os duzentos da cavalaria dos ginetes. E foram destes as primeiras arrancadas de fria bravia, no contra os que pelas suas armaduras se via bem que eram homens de armas, mas contra aqueles que, de barretes e saios de burel, sem peitoral de ferro e sem braais, chuas e foices em vez de lanas, lhes pareceram arraia bisonha dos campos. E era. Coitados dos pobres lavradores e ganhes de jorna, que nunca tinham visto um combate! Em alaridos e apupos, as trombetas a darem o sinal da arrancada, os pendes a esvoaarem no ar, os bacinetes de plumas e os arneses polidos a reluzirem ao sol, os duzentos ginetes com tal soberbia largaram desfilada sobre os rsticos das chuas e foices, que logo os tresmalharam espavoridos e foram chacinando na fuga. Ficou o cerrado roto! Assim como se um lano de muro se tivesse esbarrondado naquela quadrela feita dos nossos peitos. Maus princpios! notou Ruy. Maus. Mas enquanto os ginetes iam sobre os bisonhos que fugiam, o cerrado fazia o que no podem fazer as muralhas das cidades. O boqueiro fechava-se e os homens de armas ali ficavam firmes e animosos para vencer os trs a quatro mil de Castela ou para l morrerem pela nossa terra. Eram muitos os bisonhos? Cerca de dois mil seriam. E os que ficaram? Trezentos bem armados de lanas e uns restos da peonagem bisonha. Contra trs ou quatro mil, s por um milagre de esforo podiam vencer! Pois fez-se o milagre, senhor cavaleiro! E olhai que foi ao custo de muitas vidas dos inimigos que ele se fez naquela encarniada luta, que durou desde manh at boca da noite! Soberbo feito esse dos trezentos homens dai mas beires! Dos bisonhos que ficaram nem vale a pena fazer a conta. Dos fugidos alguns voltaram, mas eram os trezentos que lhes davam alma a eles. Por fim os castelhanos j batalhavam como enlouquecidos. Enchia os de desespero aquele cerrado que se no rendia. Da nossa parte era para ficar ali ou p-los a eles em fuga. Estavam bem juntos os coraes e os braos, e at parecia que uma s alma gritava dali: S. Jorge e Portugal! E aps este brado, cada companha a gritar o apelido do seu chefe como se fosse um prego de guerra. Cunha! Vasques! Coutinho! E eles sobre ns, a bradar: Santiago y Castilla! Benditas horas as desse glorioso dia! exclamou Ruy num arrebatamento de entusiasmo, numa vibrao sugestiva, que agitava o corao dos dois velhos e punham enternecidas lgrimas nos olhos magoados de D. Dulce. Caam varados, a escabujar em volta do cerrado os que de l vinham com mais alma e maior nomeada. Eu vi ir a terra os mais ilustres e assinalados dos seus chefes, os de mais alta prospia, os que traziam brases dourados nas suas cotas de armas. Nem as quatrocentas lanas fidalgas nem os virotes dos seus mil besteiros puderam derrubar aquelas pequenas muralhas de homens. Enfim o sol sumia-se, e deles, os que menos obrigaes de fidalguia tinham para ali morrer, como o sol se nos sumiram, fugindo! Ficaram no nosso poder os despojos que traziam e, de muito mais subida valia, a pobre gente que eles levavam cativa. De quantos deles tinham nomeada s ali colhemos vivo o capito dos ginetes Pedro Suares de Quinhones, que foi quem nos deu informao de quantos eram eles ao todo e dos mais insignes que ali morreram. Assim foi aquela batalha de Trancoso e assim lhe chamamos ns os da Beira. No sei se algum achar demasiada honra chamar-lhe batalha, pois que era pequeno o nmero dos que ali lutaram. Tal nome lhe fica bem pela grandeza do esforo. Valentes homens de armas so os de Castela para que se no tenha por assinalado feito essa vitria dos trezentos contra mais de trs mil. Batalha de onze horas sem descanso e os de Castela com a morte de to experimentados capites que, por eles, se pode dizer que valeram a perda de muitos milhares de homens. Com razo o dizeis. Das vossas palavras se entende que tambm vs fostes dos trezentos. Desses fui, senhor cavaleiro, e com tal ajuda de Deus, que s de leve uma lana inimiga me feriu neste brao. Me e senhora, muito seria do meu agrado que este valente escudeiro aqui fosse connosco nos dias de demora que houver de ter em Lisboa. Filho, por mim e por ti lhe oferece a pousada da nossa casa. Senhora minha, tamanha honra! disse o escudeiro, curvando-se reverente. De muito mais sereis merecedor volveu lhe D. Dulce afetuosamente. Quando contais pr vos a caminho da vossa Beira? perguntou-lhe Ruy. Uns dias espero demorar-me em Lisboa, pois me no parece urgente voltar a minha casa. No creio que to cedo tornem veiga de Trancoso os castelhanos de D. Pedro Tenrio, arcebispo de Toledo. Nisso tambm eu creio disse-lhe Ruy sorrindo, como se naqueles seus deslumbramentos de homem de guerra um pouco se lhe tivessem amortecido as mgoas dos seus mal aventurados amores.
CAPTULO II O MENSAGEIRO DOS NAMORADOS
O escudeiro de Trancoso deixou-se ficar em Lisboa e, a pedidos de Ruy, se conservou na carinhosa hospedagem do pao dos Vasconcelos. Era ele at um dos companheiros diletos do jovem cavaleiro nos seus passeios de exerccio para enrijar e adestrar os msculos, emperrados e enfraquecidos pela demorada doena. Por sua parte D. Dulce andava cada vez mais afervorada na devoo caridosa de encontrar o paradeiro da infortunada Leonor. No era empresa fcil. Dado mesmo que tivesse ido acolher-se ao mosteiro, a que a velha Lourena fizera aluso e depois lhe designara, e tudo levava a crer que fosse, grandes e pacientes diligncias era preciso fazer, movendo influncias preponderantes, para obter das monjas a confirmao daquela suspeita. A regra do mosteiro tinha excecionais severidades e os segredos e mistrios daquela clausura eram afincadamente guardados e com inquebrantvel tenacidade defendidos da gente profana.
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Chegara notcia de que o rei de Castela retirara do cerco de Elvas. Com as suas hostes e em Ciudad Rodrigo estava concentrando todas as foras de Castela para uma nova e maior invaso de Portugal. E at se afirmava que o prncipe herdeiro de Navarra ajudaria o cometimento com a sua hoste, e que de Gasconha e do Bearne esperava el rei de Castela avultados reforos de fidalgos campeadores, de insigne estirpe, com os seus cavaleiros vassalos e escudeiros excelentemente armados. Entretanto, para Portugal o socorro que os seus aliados ingleses lhe tinham mandado com destino nova campanha era em verdade muito pequeno, certamente por causa das dissees internas e da guerra que, h largos anos, a Inglaterra mantinha com a Frana. (*)
[(*)As sanguinolentas e longussimas campanhas que toem na histria a designao geral de Guerra dos cem anos.]
Pela Pscoa tinham chegado ao Tejo, apesar do bloqueio, uma nau e uma barca de Inglaterra com duzentos daqueles famosos frecheiros ingleses que traziam consigo a tradio altiva das batalhas de Crcy e de Poiters (1346 1356) em que os franceses tinham sido vencidos pelas hostes britnicas de Eduardo III e do seu filho o Prncipe de Gales, conhecido na histria pelo Prncipe Negro por ser preta a sua armadura de batalhador. E com aquele diminuto reforo de homens viera tambm uma importante carregao de vveres e de algum armamento, lanas principalmente. Dez gals castelhanas tentaram opor-se entrada dos navios ingleses, mas foram repelidas depois de um breve combate. Entretanto, no Minho, o Mestre e o Condestvel supuseram que el-rei de Castela estaria no propsito de empreender a invaso pelo Alentejo, e apressadamente vieram com as suas hostes pelo caminho do Porto a Coimbra. Desta cidade seguiram para tomar e Torres-Novas, no intento de ir marchando pelo vale do Tejo at Goleg. Ali atravessariam o rio para irem tomar o passo aos invasores. Em um dos seus largos passeios, Ruy de Vasconcelos tomara relaes com um velho cavaleiro francs de aventura, que viera com os ingleses e esperava oportunidade de ir juntar-se ao exrcito portugus em operaes. Chamava-se Joo de Monferrat. Falava o ingls e um pouco a lngua castelhana, que lhe tornava fcil o convvio com os portugueses. As antigas relaes comerciais com Inglaterra, a aliana poltica dos dois pases, mais ntima desde o tratado de 1378, e principalmente a camaradagem entre os guerreiros de Portugal e os ingleses do Duque de Cambridge, durante a campanha de 1381, tinham tornado conhecida a lngua inglesa, especialmente entre os mercadores e embarcadios e alguns cavaleiros da corte de D. Fernando, que mais tinham estado em contato com os capites do Duque, um pretendente coroa de Castela. Ruy entrara naquela campanha, mas era ento um cavaleiro novio da comitiva de uns dos seus ilustres parentes, e raras vezes tivera convivncia cora os ingleses para que lhes ficasse entendendo a lngua. Percebia apenas uma outra palavra, mas conhecia bem o castelhano e um pouco sabia falar o francs da Provena, como alguns lhe chamavam. Era esta ainda a doce linguagem dos troveiros enamorados, em que por todos os pases latinos se tinham contado os rimances e as canes das maiores aventuras de amor e dos mais assinalados feitos da cavalaria andante. Se era at a que mais aparentada parecia com a lngua portuguesa. Assim no foi difcil a Ruy de Vasconcelos entender-se com o ilustre cavaleiro Monferrat, a quem o nosso Ferno Lopes mudou o nome para Monferrara. O aventuroso Monferrat fora tambm apaixonado cultor da poesia provenal como bom gasco que era.
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Iria longe o simples resumo do que foi a Provena nos tempos medievos com os seus poetas de aventura. No cabe aqui esse grande e peregrino captulo da literatura e da civilizao nos famosos sculos da Europa cavaleiresca. Mas dentro da ao deste romance alguma coisas temos que se relaciona com esse pas de trovadores e no ser, portanto, divagao intil bosquejar nalgumas dezenas de linhas o muitssimo que poderia dizer se acerca da influncia provenal na Europa latina. Sob um cu de lcido azul, acarinhada pelas brisas do Mediterrneo e pelos perfumes dos seus laranjais em flor, muito vizinha das cumeadas brancas dos Alpes e desse ninho de flores em que Nice nasceu para a sua interminvel primavera, a Provena foi a terra santa da poesia e do sonho, desde os perodos trgicos da baixa Idade Mdia at aos primeiros alvores dessa madrugada soberba em que a alma europeia se agitou no pesadelo da sua devoradora f e na febre das suas insaciveis aspiraes. Estado suserano do velho reino de Aries, depois adstrito ao condado de Barcelona, mais tarde condado autnomo e ainda depois um estado minsculo da dinastia de Anjou, o pas provenal encheu a Europa de poesia e de sonho e ajudou a criar na alma latina essa viso resplandecente donde irradiaram os primeiros clares da Renascena. Na sua bomia de menestris, cantores e improvisadores errantes, vagueando de castelo em castelo e de pas em pas, e na sua odisseia de trovadores de aventura, a memorarem em verso os supremos amores, as mais encantadoras lendas e os mais altivos feitos, os lricos de Provena fizeram a cruzada romanesca da sua poesia devaneadora e puseram em volta da mulher, como doce idealidade, o fervor das almas rudes como um culto. Sobre a epopeia cavaleiresca, amorosa e trgica, fulgia o suave luar das suas almas sonhadoras e na melodia dos seus cantares levavam a todos os pases europeus a lenda, a histria, as esparsas ambies da conscincia humana, a voejarem para novos destinos. Atravs de uma longa noite este fulgor de consolo, um ideal de generosidade, uma aspirao de benemerente confraternidade, que a civilizao no deve esquecer. Acolhidos em toda a parte como bem-vindos mensageiros da alegria e do sonho, nos paos dos reis, nos solares e castelos dos bares feudais e at nos mosteiros de monjas; aceitos como idealistas e como galhofeiros jograis mesa dos nobres e no convvio das cortes, no raras vezes falou nas suas canes o corao torturado da plebe, e foram eles tambm os propagandistas de uma evoluo social, que os despostas e os privilegiados s tarde alcanaram perceber. Tal dominadora influncia tiveram, que os prprios batalhadores e at os prprios reis se fizeram troveiros. Quando os grandes senhores os quiseram repulsar de si, por audazes forasteiros e atrevidos idealizadores, a sua cruzada estava feita. Os trovadores, tantos deles cavaleiros fidalgos tinham uma categoria distinta, muito acima do menestrel, cantador assalariado, entre comediante e bufo, a quem os reis e os senhores toleravam ousadias pujentes, por entre esgares cmicos nos sales e cantares libertinos nas orgias. Joo Froissart, o grande cronista francs, foi um menestrel. Poeta medocre e cantador de aventurosa fortuna, viveu das boas graas e dos dadivosos favores de Filipa de Hainaut, rainha de Inglaterra. E tanto se afez ao parasitismo de menestrel, que at nos cinquenta anos que levou a escrever as suas crnicas se deixou sugestionar pelas opinies dos seus sucessivos protetores, desde Roberto de Naumur, irmo da rainha de Inglaterra, a Joan na de Brabante; desde o senhor de Chimai (Gui de Blois) a Aubert de Baviera. Sujeitara a sua pena de cronista a uma servido quase igual do seu alade de menestrel.
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Ruy levou Monferrat ao pao de Santo-Eloy, apresentou o a D. Dulce e, ao fim de dois ou trs dias, era o gasco uma das pessoas mais afetuosamente recebidas naquela casa. Em uma das radiosas manhs daqueles fins de junho, estava Monferrat a contar na sala de armas as sete grandes batalhas em que tinha entrado, quando Gonalo Vasques apareceu muito alvoroado. Que trazeis de novo, meu querido velhinho?-perguntou-lhe Ruy de Vasconcelos. Est ali aquele cavaleiro-fidalgo dos Namorados, que muito amigo vosso e o maior de todos. lvaro Goutinho? Esse logo me pareceu que era. O mais alto de quantos eu conheo! E disse-me que vinha de Alenquer a trazer-vos recado dos vossos companheiros. De Alenquer! Por vida minha, que nisso provavelmente vos enganastes, meu Gonalo Vasques. Bem podia ser, meu senhor; porm Alenquer foi que eu lhe ouvi bem claramente. Pois a tempo estamos de tirar essa dvida. Eu vou j ter com ele. Ide l dizer-lho. Gonalo Vasques fez um gesto de homenagem e saiu. Senhor Joo de Monferrat, desculpai-me. Trata-se de um grande e valoroso amigo meu, daquele esquadro de Namorados, gente jovem, aventurosa e sonhadora, de quem j vos falei. Aqui vos hei de trazer para o conhecerdes. Com o meu maior aprazimento respondeu-lhe em castelhano. Ia Ruy a voltar-se, quando porta assomou a singular figura do Magrio. Pela nossa terra e pelas nossas damas! disse no seu vozeiro, sem ter reparado no cavaleiro francs. Oh! Meu querido lvaro! Exclamou Ruy indo para ele de braos abertos. Flor e glorioso lume de cavaleiros! disse-lhe ele, abraando o ferverosamente. Mas reparou de relance no francs e logo acrescentou baixo: Demo de olhos os meus, que no deram por aquele desconhecido e entrei assim estouvadamente! No tem dvida. Eu j vos dou a saber quem ele disse-lhe a meia voz. E encaminhou-se com o Magrio para o velho estrangeiro. Nobre e honrado cavaleiro Joo de Monferrat, este o grande amigo de quem j vos falei, preclaro sangue da nobreza destes reinos, dos maiores nimos e das melhores espadas que tem Portugal. Muita honra e agrado me d conhecer-vos, senhor fidalgo cavaleiro disse-lhe em castelhano o aventuroso batalhador. lvaro Continho, continuou Ruy concluindo a apresentao estais diante de um experimentado guerreiro, que tem lutado em famosas batalhas. Francs da nao, fidalgo e cavaleiro de honradas aventuras, aqui veio de Inglaterra para nos ajudar na defesa desta nossa terra de Portugal. Senhor cavaleiro, disse o Magrio para o gasco em boa hora nos trazeis o auxlio da vossa lana e do vosso esforo. Que para maior glria do vosso nome venha a ser to valioso apoio, e muita honra ser a minha tendo- vos por amigo e por exemplo. Apertaram as mos afetuosamente e dali a instantes j os trs conversavam desafogadamente, sem preocupaes de etiqueta, como se o velho Monferrat fosse um ntimo e um jovem devaneador como eles. Podeis falar-lhe ao modo de Provena dizia Ruy a Monferrat, indicando-lhe o Magrio pois de ns portugueses quem mais sabe de cr trovas e rimances provenais, de amor e de cavalaria. Aprendi esse modo de falar explicou o Magrio com certo troveiro de Provena que, na sua vida de aventuras, foi dar cidade do Porto e por l se ficou enamorado de uma menina de boa linhagem, que os pais aferrolharam num convento por causa dele. Canta como um rouxinol amoroso e , ao mesmo tempo, to destro e gentil homem de espada como se tivesse sido ele tambm um dos cavaleiros da Tvola Redonda! Ainda h um ms o encontrei no Porto a cantar saudades e a envelhecer de mgoas, em farrapos o seu manto branco de menestrel, alade a tiracolo e espada cinta, para morrer de amores cantando ou para cair trespassado por algum virote s portas do invento onde lhe aprisionaram a dona da sua alma. Chama-se Frederico Marival. Ainda eu hei de ser um dia aventureiro assim, quando esta terra de Portugal, j no precisar de quem lhe defenda a bandeira. E tambm de alade a tiracolo? perguntou-lhe Ruy sorrindo. No, isso no. Ah! Que seria um alade dependurado de um cedro. Com a espada ser que eu hei de tanger meus rimances. Cantados? Dessa me livrar Deus! volveu-lhe galhofeiro. No que eu j experimentei os meus cantares e no quero que os ces da Europa tenham as aflies que tiveram os de entre Minho e Douro, que se largaram a ganir e a uivar como se estivessem a ouvir as trombetas de Jeric. O gasco ria perdidamente. O Magrio falara em castelhano e Monferrat entendera-o perfeitamente. At o Vasconcelos riu, a despeito dos seus pesares de amor. Est bem, meu futuro dom cavaleiro andante, mas olhai que neste prazer de vos ouvir, de todo me esqueci de vos pedir notcias dos nossos Namorados e o favor de me dizerdes porque milagre vos tenho aqui e me anunciam que vindes de Alenquer! Tal qual. De l cheguei h pouco mais de uma hora e la tem o nosso Rei o arraial da sua hoste. E eu a julgar-vos para os lados de Santarm, a golpear s lanadas os homens de armas de Castela e os traidores de c! Pois visto que no sabeis a razo porque eu venho de Alenquer, escutai, que em poucas palavras vou pr-vos ao corrente de tudo. De mais serei ento aqui e dai licena que me retire disse o gasco. S se vos apraz sair, respondeu-lhe Ruy, continuando a falar em castelhano pois me parece que de nenhuma coisa de confidncia ir tratar este meu amigo. Em coisas vou falar que todos podem ouvir, mormente vs, senhor meu e venerando cavaleiro, que sois por ns e em pouco havereis de lutar ao nosso lado. At vos dar interesse saber o que se tem passado no tocante guerra. Pois que assim , de muito bom agrado ficarei para vos ouvir. Sentaram-se em volta da grande mesa. Provavelmente j sabeis disse o Magrio para o Vasconcelos o mais Importante do que se fez na guerra do Minho, que tive-mos h pouco. Sei. Aqui chegou notcia de todos os principais cometimentos e deles falei a este venervel companheiro nosso informou indicando Monferrat. Pois ento muito menos ser o que tenho para vos dizer, j Estava a hoste real em Braga e o Condestvel com os seus repeles de ir para uma nova arremetida pela Galiza dentro, quando, spito, nos chegou a nova de que el-rei de Castela entrara outra vez em Portugal pelos lados de Elvas, que j estava cercando. Entra-nos agora a invaso pelo Alentejo, pensou El-Rei D. Joo, e foi isto o que ns todos pensmos. Logo, pressurosos, nos fomos para o Porto, e de l para Coimbra, em jornadas com que a pobre da peonagem mal podia aguentar-se. E de l para tomar, e a seguir sobre Torres-Novas, que estava por Castela e foi tomada; depois seguimos pela borda do Tejo para irmos passar o vau de Santa Iria-Pequena, quase nas barbas dos castelhanos, que, desde o ano que passou, se tinham ficado aninhados em Santarm. Passou-se o rio, topmos com uma avanada de castelhanos, que pusemos em fuga, e s em Mugem soubemos que el-rei de Castela havia j levantado o cerco de Elvas e em Ciudad Rodrigo estava reunindo todo o seu poder de homens de armas para com ele nos entrar pela Beira. Pois eu s c sabia observou Ruy que os castelhanos tinham levantado o cerco de Elvas e que a nossa hoste real havia passado em Coimbra, para ir dar a Santarm. Assim foi como vos disse. E mal daquele intento soubemos, logo nos tornmos para traz e fomos assentar arraial em terras de Alenquer. Ontem de madrugada l chegmos e ali se espera que mais alguma gente de armas se nos rena. Qual nmero de homens ter toda a hoste dEl-Rei? perguntou Montferrat. Eu vos digo. Homens de luta, mais no sero por agora que uns quatro mil. Escasso nmero para defender um reino! observou o gasco. E cavaleiros, quantos? Pouco mais talvez de mil e quatrocentos. Falta-vos a maior fora com que as batalhas se vencem, bem que eu j visse o Prncipe Negro ganhar uma grande batalha por causa dos seus arqueiros. Em poucas horas tinham dizimado a bela e soberba cavalaria de Frana! Mas esse tinha consigo uma poderosa hoste de cavaleiros e muito numerosa peonagem para lhe segurarem a vitria. Ns temos f acudiu o Magrio que em pouco se nos possam juntar mais uns dois a trs mil, ao menos de peonagem. Uma grande parte do Reino est pela rainha de Castela, e no se podem juntar para uma batalha todos os nossos homens de armas, sem deixar as fronteiras em perigo e ao desamparo. E aqui est porque a hoste real assim pequena. A peonagem, segundo ouvi, bisonha e mal armada. Observou Montferrat. E afinal, ao todo, uns seis ou sete mil! Com que poder entrar el- rei de Castela? O ano passado c veio com bem mais de trinta mil homens. E s aqui, a cercar Lisboa, teve vinte e cinco mil, no contando os da armada, e a cidade aguentou-se. Gloriosa faanha foi, por vida minha, mas combater nos muros e torres de uma cidade muita diferena faz de batalhar em campo aberto. Se el-rei de Castela voltar agora com poder igual ao do ano passado, a teremos um dos vossos para cada quatro ou cinco dos valorosos homens de guerra que tem Castela. Os boatos que chegaram a Alenquer davam a entender que o poder castelhano seria agora muito maior, e com os de Castela muitos de Navarra; gasces e bearneses ainda talvez em maior nmero que o ano passado. Pois trinta mil somente, vamos que sejam, e muito ser Deus pelo Reino e vs por ele, para que tenham alma e esforo que baste a rebater to desigual poder! voltou-lhe o gasco. Nos Atoleiros tambm foi um contra cinco dos de Castela e D. Nuno lvares Pereira venceu alegou o Vasconcelos. Em Trancoso, foi j neste ms, trezentos de lanas com insignificante peonagem, lutaram longas horas com mais de trs mil e foram os nossos que venceram. Bons antecedentes so esses, por vida minha; mas raras vezes se vence com tal desigualdade, quando de um e outro lado h quem saiba mandar e os homens de guerra tm alma para morrer pela sua bandeira. Enfim, eu no vos digo isto para vos apoucar o nimo nem porque essas informaes me deem esmorecimento. Irei para aonde os vossos forem. Em batalhas tenho visto muitas surpresas; verei mais uma, e oxal que seja das maiores. Que ainda se no sabe informou o Magrio se o nosso Rei querer arriscar-se a uma batalha com to diminuto poder. H i quem seja de parecer que o mais seguro seria esperar os castelhanos nos muros de Lisboa e s lhe dar batalha em campo aberto, quando tivessem chegado mais auxlios de Inglaterra. Ento alguns meses haveis de esperar. A Inglaterra traz a sua gente de armas muito dividida por causa da guerra de Frana e, por agora, o socorro certo que tendes so esses duzentos arqueiros e essas armas que a chegaram h dois meses. Eu sou de parecer que se d batalha disse Ruy. E eu acudiu o Magrio e todos os do esquadro dos Namorados.. J maior, no assim? perguntou Ruy com devotado interesse. Ora! Nem sois capaz de adivinhar quantos mais! O Norte deu-nos muitos e agora, em Alenquer, ainda nos chegaram mais do Alentejo e do Algarve. Da Beira bastantes nos mandaram dizer que podamos contar com eles. Mas quantos, dizei? instou o Vasconcelos. Cento e quarenta lanas de gente jovem, cavaleiros namorados todos eles. Menos eu, acudiu, voltando-se para o gasco menos eu, que tenho na minha sina amar ou ser amado por inglesas, e algum dia terei de ir a Inglaterra buscar alguma que seja do meu gosto e do mau gosto dela. Foi um velho astrlogo judeu do Porto quem leu esta minha sina de amores em no sei que desvairada estrela, que ele lobrigou dos lados de Inglaterra. Se at chegou a vaticinar-me que eu havia de ser cavaleiro andante em cata de mulheres feias! A princpio me quis parecer que seria profecia de escrnio e estive vai no vai para o esganar; porm depois me lembrou que o bisbrria do judeu estaria bbedo, e l o deixei em paz. O que ele tem uma filha linda como as estrelas, e se no lemos de ir do Porto para vir dar gasalhado aos castelhanos, por aquela estrela que eu tambm me fazia astrlogo. Sois ditoso com esse vosso feitio e no vos ralam preocupaes e mgoas de amor como a outros, pobres loucos que andaram atrs de um sonho, como crianas atrs de uma borboleta, e afinal por ele ho de morrer! Homem venturoso sois disse-lhe Ruy. Homem feio que eu sou, benza me Deus. Montferrat ria com desafogado regalo. Mas, voltando aos nossos Namorados: Olhai que do j uma linda hoste, em que eu me no meto na conta, e dentro em pouco daro j para uma formosa ala. Ideie-vos uma grande batalha que os nossos vencessem e em que os jovens da bandeira verde formassem uma das alas! Costaneira se chamava dantes, porm ala fica melhor, tratando-se de gente jovem. E as damas de todas essas nossas terras, donzelas com os olhos cobiosos de amor e a cabecita cheia de sonhos, a falarem na Ala dos Namorados e todas elas a invejarem para si um quinho naquele mote da bandeira verde: Pelas nossas damas. O que a vai de sonho, meu querido lvaro! disse lhe o Vasconcelos num travo de amargura. Pois vereis que h de ser assim. J entre os nossos se combinou pedir a El-Rei ou ao Condestvel que, na primeira batalha, nos deem a vanguarda, ou sequer a honra de formarmos ns ossinhos uma ala. J se v, com um cavaleiro de menos verdura de anos para nos mandar. E porque assim foi decidido pela Ala dos Namorados, j lhe vou chamando assim, que eu aqui venho em guisa do mensageiro, para de tal vos fazer ciente e saber por todos os nossos se estais recobrados de foras para serdes connosco na primeira batalha que houver. Para a primeira batalha que haja respondeu-lhe calorosamente. Quando voltais a Alenquer? Amanh ser, depois de saber com que peonagem a cidade poder reforar a hoste real. Est bem. Irei convosco. E eu, se mo permitirdes acudiu Montferrat. Com muita honra para ns, senhor cavaleiro disse-lhe o Magrio. Creio que iro tambm alguns cavaleiros e frecheiros ingleses. E sabei que vou com pena? De qu, senhor cavaleiro? De uns vinte anos que tive, amorosos e aventureiros. Iria pedir um lugar na vossa ala. Mas assim, para vencer convosco ou para morrer seguindo- vos, s me ser dado estar to perto de vs, que a vossa juventude valorosa me d o sonho da minha. Honrada lio h de ser a vossa para ns, ilustre batalhador de Gasconha, e como leais companheiros e amigos amanh nos partiremos para Alenquer disse-lhe o Magrio. Valente cavaleiro sei j que o sois. Boa estrela v connosco e que ela seja anunciadora de glria para a vossa terra portuguesa. At amanh, querendo Deus. Por volta das 11 horas aqui estarei ou onde mandardes que vos espere. Aqui vos peo que seja, se a ambos no causar desprazimento voltardes aqui disse Ruy. Da melhor vontade acudiu Montferrat. Por mim nem vale a pena falar. Em nenhum lugar de Lisboa estaria com maior regalo da minha alma do que nesta vossa rasa, Ruy de Vasconcelos. Eu vos direi depois a razo do meu pedido. Cavaleiro Montferrat! Disse o Magrio, despedindo-se e abraando-o. Como se fssemos velhos amigos, e perdoai me algumas palavras de gracejo, que por desenfadamento aqui disse diante de vs- Velho sou, mas olhai que muito bem me sabe lidar com gente jovem e v-la folgar, gil como eu fui. E como sei j que destemidos sois, vs os do esquadro dos Namorados, boa e sonhadora cavalaria como a da Tvola Redonda pois que dele me tem falado o nosso nobre amigo Ruy de Vasconcelos, ainda maior prazer o meu em conviver convosco. Senhor, por tanta paga, grande obrigao de amigos a nossa! disse Ruy. At amanh disse o Magrio. Nobre cavaleiro. lvaro Coutinho disse da Porta D. Dulce, com um sorriso afetuoso, que era disfarce de amargos receios. A mim me disseram que vnheis por mensageiro dos Namorados e logo o meu corao adivinhou que seria para me levardes o filho. Ainda que para isto seja a vossa mensagem, no quis que desta casa vos fsseis sem convosco falar, ao menos, para vos per doar que mo leveis. Dona e senhora minha, desculpava-se o Magrio um pouco perturbado por maior pecado havereis de perdoar-me, pois que, neste nosso falar de coisas da guerra, se foi espaando a homenagem que era dever e desejo meu ir prestar-vos. Pela mensagem que eu aqui estou e pelo grande apreo em que vos tenho como valoroso cavaleiro e devotado amigo do meu filho. Senhora minha, grande considerao para mim nessas vossas palavras; mas no me culpeis porque o vosso filho haver de afastar-se desta casa. E dever seu, e a ningum posso culpar. No aqui que se defende agora o Reino e o Rei. Cada qual tem de cumprir o seu dever. At as mes, no estorvando que os filhos partam, antes dizendo-lhes de olhos enxutos que vo para acudir a outra me, que de ns todos, primeiro que nenhuma: a nao. E a essa a no podem salvar as nossas lgrimas. Numa grande surpresa por esta interveno da me, Ruy no lhe percebia o intento; mas compreendia-lhe perfeitamente o sacrifcio velado naquelas palavras de abnegao, que s ele sabia interpretar e sentir pelo quanto valiam de amorvel devoo. Vibravam-lhe na alma com um timbre de amarguras, que os estranhos no podiam ouvir, e vinham a escorrer lgrimas, que a ningum mais era dado ver. Estou a entender que adivinhei o fim da mensagem continuou esboando um glido sorriso. Pois em boa hora seja que mo leveis e honrada e leal companhia ter, indo convosco. Agora vos direi, senhor lvaro Coutinho, que de muito aprazimento seria para mim ver-vos nossa mesa e nesta casa como se a vossa fosse para a honrardes. Senhora, por muito honrado e agradecido me julgo, mas amanh, muito antes do meio dia, conto partir para o arraial de Alenquer. Amanh j! disse turbando-se. Pois que a vossa hospedagem aqui seja ento pelo tempo que tiverdes livre at amanh. Vosso favor recebo com insigne distino e por ele vos beijo as mos, ilustre senhora minha. O Magrio dobrou o joelho como se fosse diante de uma rainha, e beijou-lhe e mo. No seu penoso disfarce, D. Dulce disse em castelhano umas palavras obsequiadoras a Montferrat, com quem j naquela manh linha falado. C vos espero a ambos para o nosso jantar de hoje, senhores cavaleiros disse lhes num cumprimento de despedida.
CAPTULO III A PARTIDA
Na vspera, o carairo-mor de Lisboa, Ferno Rodrigues de Sequeira, afirmara ao Magrio que, dali a dois dias, estaria no acampamento de Alenquer com os homens de lana e a peonagem que era possvel juntar e meter a caminho, sem deixar indefesa a cidade e o concelho. E que isto mesmo podia ele afirmar a El-Rei. Tambm o chefe do contingente ingls lhe afianou que no mesmo dia havia de partir com os frecheiros e homens de lana que se tinham demorado em Lisboa. Assim ficava concluda a misso oficial do Magrio, e do seu encargo de mensageiro dos Namorados j ns sabemos como ele se desempenhara. Com tal xito, que at podia levar aos rapazes aquele seu dileto e arrojado companheiro, por to largo tempo ausente com pesar de todos eles. Bem sabia o alvoroo louco em que iam ficar e, para os ter prevenidos, lhes mandou adiante, logo de madrugada, muito em segredo, um escudeiro seu com um aviso da boa nova. Montferrat e lvaro Coutinho tinham jantado e ceado em casa de D. Dulce e de madrugada saram ambos no propsito de dispor umas coisas para a jornada. A famlia do Magrio estava ento para uma quinta sua da provncia. A hora da partida seria mais cedo do que a princpio tinham combinado, para assim evitarem a maior torreira do sol. Partiriam s 7 horas, e pouco depois das n horas, a trote largo, teriam vencido as oitos lguas at Alenquer.
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Naquela casa s uma pessoa no pudera dormir D. Dulce teve uma noite de inquietao a pobre me, e todos os seus antigos padecimentos se lhe agravaram. Alta madrugada, ainda antes de terem sado o Montferrat e o Magrio, levantou-se numas tremuras convulsivas, as lgrimas a correrem-lhe em fio pelas faces. Valha-me Nossa Senhora! Eu dantes no era assim! Tinha mais nimo. Quebraram-mo as doenas e as amarguras dizia consigo. E este meu pobre corao cada vez mais acobardado! O medo que ele tem de outras dores maiores! E eu quero e hei de ter nimo para lhe encobrir as fraquezas, linda que ele depois me mate. Estava vestida; foi para o aratrio; rezou febrilmente, olhos afogados de choro postos na imagem da Me de Jesus com o filho morto nos braos, naquela hora de suprema angstia, que foi decerto a de maior dor no lance trgico do Calvrio. Interrompeu se num instante de desalento e sentou-se no estiado do oratrio. E tem de ser, e assim havia de ter sido sempre! murmurou quase afogada em soluos. As mais infelizes ainda no so as mes que podem perder os filhos; so as outras que no os devem chorar seno sozinhas, ocultamente, para que ningum saiba que choram e para que nem eles prprios as vejam chorar. Como eu! Como eu agora, Me de misericrdia! Ps as mos e ergueu-se outra vez de joelhos num fervor de splica. Me, vs no Calvrio pudestes chorar pelo vosso filho morto, sem que vossa dor importasse quem podia ver-vos. Agora o meu vai talvez para a morte e eu tenho de fingir que me no di v-lo partir! Para no afrontar com as minhas lgrimas o braso do meu solar e para que eu no parea mais cobarde do que as outras mes que j perderam os filhos na defesa da sua terra. Senhora, ao menos nimo para este fingimento at ao fim, e dai lhe a ele em amparo o d que tiverdes de mim. Levantou-se e foi buscar a um contador de cedro com embutidos de prata certa carta de pergaminho, cujo timbre de cera ningum ainda quebrara. Agora tempo de lha entregar disse consigo. Sabendo que no foi preferido por outro, ter mais apego vida e no ir malbaratar pelos desesperos de uma vingana o esforo que for preciso ao seu nome e honra da sua terra O namorado no levar o cavaleiro a doidas aventuras de morte.
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Montferrat e lvaro Coutinho j tinham voltado. Vinham de bacinete e arns. Era precauo justificada. No raro as avanadas da gente castelhana que ocupava Santarm se adiantavam at s proximidades de Alenquer. No ptio do palcio os cavalarios esperavam com os cavalos mo. Na sala de entrada os pajens e escudeiros guardavam o momento da partida. Vinha subindo o sol, um belo e rtilo sol daqueles fins de junho. D. Dulce tinha dito ao Gonalo Vasques que fosse chamar o filho e viesse com ele. Ruy estava j pronto e foi. D. Dulce esperava-o nos seus aposentos. Me e senhora, dais licena? perguntou da porta, metendo debaixo do brao o bacinete de plumas negras. Filho, entra. Mas logo lhe reparou no arns todo preto e na plumagem do bacinete. Porqu mau agouro, filho, vais tu partir com essa estranha armadura, como se fosses algum descrido paladim de romance?! perguntou lhe numa tremura de voz, o rosto a desfigurar-se-lhe cada vez mais. Me, porque entre os N-morados esta a cor que melhor cabe a quem teve uma noiva, e se lhe perdeu. Vais ento como um campeador entristecido para te juntares a esses jovens, teus companheiros, assim como se levasses o intento de lhe agoirentar o corao por conta das tuas mgoas! J vejo que melhor e mais generoso nimo o meu. Me, dizei-me porqu?! Porque dentro da minha alma h maior negrume que no peito desse arns e nas plumas desse elmo, e v que te falo de olhos enxutos, para que as minhas lgrimas te no mortifiquem e para que ningum suponha que houve em Portugal uma me to esquecida das suas tradies de famlia, que se ficou a chorar o filho, cavaleiro fidalgo, jovem batalhador, preso ao mote de uma bandeira e votado vida de uma nao. Olha que o d pintado nessa armadura ainda de maior fraqueza do que seriam as lgrimas nos meus olhos de mulher! E se eu no quero que as mulheres esfarrapadas, a quem levam os filhos, tenham vergonha da minha fraqueza, no queiras tu tambm, Ruy de Vasconcelos, que os mesteirais e os rtos sem peito de ferro, e s Deus sabe quantos deles amargurados como tu, tenham o direito de estranhar que vista armadura de enlutado quem vai para salvar a sua terra. Me e senhora, dizeis bem; volveu-lhe numa comoo perturbadora mas este negrume vem da minha alma, s meu, e quer dizer que nos dois motes que tem a bandeira verde dos Namorados s um me cabe, o primeiro. Pela nossa terra diz e por ela serei apar dos que mais fizerem, enquanto a vida me durar. Pois esse mote o escolhi eu tambm para mim e por ele te hei de ver partir como se fosses apenas para uma caada de falcoeiros. Mas, diz-me c, porque no j para ti o segundo mote da lua bandeira? Me, no pode ser! Pelas nossas damas diz o voto jurado, e a dama que eu tinha, ou j de mim se esqueceu ou doutro ser na corte de Castela. Ento, se por isso, passa pelos olhos esta carta que eu recebi de Toledo e esta outra, que veio para ti, quando estavas enfermo a vers que no fostes esquecido. Recebeu-lhas num alvoroo de surpresa. De Magdalena as duas? Sim, ambas. Essa para ti a guardei no propsito de s ta entregar quando te visse de nimo seguro para a leres. A minha, que a segunda que dela recebo, antes de ontem aqui ma veio trazer, escondidamente, um besteiro dos nossos, que l estava cativo E como alcanou libertar-se e chegar at c?! A mim me disse que foi com a proteo da Rainha que se pode escapar, e que para c trazer essa carta lhe tinham dado boa paga. A Rainha?! Sim. Vai para a tua cmara, l as duas, e despe essa armadura de mau agouro. Meia hora ser de sobra e, entretanto, vou eu falar com os teus dois companheiros, para que a demora lhes no parea grande. Vai. O teu tio Mendo provvel que esteja com eles. Creio que sim respondeu-lhe j para sair, as cartas a tremerem-lhe nas mos. Olha c. A despedida tem de ficar feita disse-lhe a sufocar-se. melhor agora. Filho, adeus! Ruy curvou se enternecidamente e beijou-lhe a mo. E ela com as mos abertas sobre a cabea do filho para uma carinhosa bno, aquelas mos brancas de rainha, que ele no via tremer, disse-lhe num esforo heroico da vontade, para que a sua pieguice de me se no trasse: Eu te abenoo, filho! Deus faa boa esta minha bno para glria e salvao da nossa terra, e seja pela tua vida, Ruy de Vasconcelos! Me, santa me da minha alma, que seja vosso amparo a Me de Jesus! murmurou, beijando-a com fervorosa devoo. E a mim me d vida para te eu ver na volta, filho! Beijou-o na face, mas ento o propsito de fria coragem fraquejou-lhe e tanto se lhe alteou do peito uma onda maior de amargura, que lhe chegou aos olhos desfeita em lgrimas como as ondas do mar se desfazem em espumas. No faas reparo, filho, e no contes a ningum esta fraqueza de mulher. Destas bagas se fazem as letras de um mote que eu trago no corao, e que no nenhum dos dois da tua bandeira de namorado. O tempo foge. Vai ler essas cartas. Estamos despedidos, fi lho. Vai. Ruy beijou-lhe outra vez as mos, queimadas da febre, e saiu precipitadamente para no fraquejar tambm. Vamos, mulher! disse consigo D. Dulce numa ironia de amargurada. Faz de conta que um filho de outra que tu vais ver partir para a guerra. Olhos bem secos. Chega bem para chorar este grande dia de junho. E os outros, os outros que ho de ir passando, Deus sabe quantos!... E para que outra dor maior de uma saudade que se no acabar seno comigo?! Enxugou os olhos e saiu, to desfigurada que fazia d.
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Na sala de armas estavam com lvaro Coutinho e Joo Montferrat, o Monge que no dizia o nome, Afonso Eanes, que tinha chegado momentos antes, e a um canto, sumido, na humildade da sua dedicao, o velhinho Gonalo Vasques. Oprimia-se o bom do aio com pena do seu querido Ruy, que assim com esta atrevida familiaridade que ele o tratava nas conversas que ningum podia ouvir, entre o seu corao e a sua alma. H quarenta e cinco anos recordava o Gonalo Vasques lie lbios cerrados me fui eu para essas terras de Castela cata da mourama; era rapaz, c deixava me velhinha e irmos, e pouco me custou ir. Agora...Bem certo que os velhos s vezes se fazem mulherengos, ou ser ento porque mais custa ficar! D. Dulce entrara com a aia e ficou-se a conversar com o Juiz do Povo, simulando uma frieza de nimo que a ningum iludia. E com as rugas de amargura, entre as quais tremiam uns lbios embranquecidos, supunha ela que fingia os vincos de um sorriso. Coitadinha! Dissera de si para si o Gonalo Vasques, de olhos nela. Com aquele rosto de desenterrada e aqueles olhos que esto mesmo a pedir a esmola de os deixarem chorar, e a crer que engana a gente! Minutos depois entrava Ruy. A carta de Magdalena tivera o condo de o transfigurar. Iluminara-se lhe a fisionomia em fulgores de juventude forte e aventurosa; via-se lhe no olhar a expresso triunfal de um gal profundamente amado. Substitura j pela armadura dos seus tempos ditosos aquela outra negra, que havia largos meses, num esmorecimento de alma, tinha mandado fazer. Perdoai a demora disse desculpando-se. Filho, assim melhor vais e no sers como cavaleiro de noite agoirenta entre os jovens teus companheiros. Agora essas tuas garridas plumas ho de dizer bem com o estandarte verde dos Na morados. No vos parece tambm assim? perguntou em castelhano, voltando-se para o gasco e para o Magrio. Senhora, muito bem o dizeis respondeu-lhe Montferrat. Fazia-me pesar que ele fosse com aquela armadura negra, de d, para essa hoste onde no h olhos para ver seno as cores com que se figuram esperanas de amor e sonhos de gloriosa fortuna. E, de si para si, com os olhos nele: Como aquelas cartas o mudaram! Parece agora outro, e ainda bem. Creio que vai sendo tarde lembrou Ruy. Em boas trotadas volveu o Magrio cedo chegaremos veiga de Alenquer. Melhor ser que evitem as horas de maior calma disse D. Dulce numa secura de voz artificiosa, que tremia. Filho, adeus! acrescentou indo para ele. Dou-te a minha bno e Deus seja pela tua vida, que pelo teu esforo fico eu. Ruy beijou lhe a mo e notou como ela estremeceu, tornando-se ainda mais tristemente branca. Honrado Juiz do Povo, meu grande amigo, at volta disse-lhe abraando-o. volta acrescentou baixo se a nao se no perder! Mas eu vou tambm pra baixo convosco acudiu o tanoeiro numa comoo que o enrouquecia. D. Dulce recebia as despedidas de Montferrat e do Magrio. Meu venerado Monge disse Ruy, tomando lhe a mo e beijando-lha. Mendo curvou-se para ele enternecidamente e segredou-lhe: L serei contigo. A tua me est num disfarce que a mortifica. Ruy, afasta-te daqui sem maior detena. Ruy foi dizer umas palavras afetuosas a Marta Vicente e correu de braos abertos para o seu velho aio. Gonalo Vasques, at vinda. Velhinho, foram os teus braos o melhor bero que eu tive. Senhor Ruy... Vossa me est com os olhos em ns! soluou baixo, e beijou-lhe a tremer a cruz verde da sua cota de armas D-lhe tu nimo quando a vires chorar por mim segredou e diz-lhe que havemos de vencer e serei eu dos Namorados que ho de voltar. Sim, sim, meu queri... Mas eu vou tambm pra baixo convosco. Estavam as despedidas feitas. Desceram a grande escada. Em baixo, em alas, os pajens e escudeiros dos trs batalhadores. A um e outro lado do porto nobre, aberto de par em par, os criados com uma grande expresso de pesar. Os cavalarios j tinham levado os cavalos do ptio para o terreiro. Deus da minha alma! Parece que vai a gente num enterro! disse consigo o Gonalo Vasques, confrangendo se com uns pensamentos de mau agouro. J fora do porto, Ruy apertou as mos do glorioso tanoeiro. L heis de ter convosco a arraia mida disse-lhe Afonso Eanes. O Vasconcelos foi abraar outra vez o Gonalo Vasques. Ento, meu querido Gonalo, que isso?! Aludia s lgrimas que o velho tinha nos olhos. So as que eu trazia comigo escondidas, para que a vossa me no desse por elas volveu-lhe. Montaram a cavalo. A tia Lourena apareceu no terreiro frente de um grupo de mulheres e de curiosos. Moas, ali tendes dois galos batalhadores. Galos contra Castela; pombos arrulhadores para as lindas raparigas fidalgas da nossa terra. E adiantando-se para eles, bradou: Nobres cavaleiros! L ir a ver-Vos a gente mida, com a sua farrapagem em guisa de cota de armas e o seu mote no peito: Pela nossa terra. E por ela, senhores, que o povo tal qual um namorado como vs. Ruy e o Magrio fizeram velha um gesto de afetuosa despedida e meteram a trote para fora do terreiro. Moas, dai-lhes um viva. Vivam os Namorados! gritaram as raparigas numa voz calorosa e aguda como vibraes de um clarim. E l em cima, na sala de armas, D. Dulce, a soluar no escabelo de espalda alta, o irmo ao p dela, animando-a carinhosamente. Ouvira bem a tropeada dos cavalos e o grito vibrante das mulheres novas. Mendo, agora que chorar.
CAPTULO IV PROMESSA DEL-REI
Alenquer estava outra vez pela rainha herdeira, ou como se dissssemos por Castela. Era alcaide da vila, um casmurro parcial de D. Beatriz, fidalgo de Galiza, que no reinado de D. Fernando viera para o servio de Portugal. Chamava-se Vasco Pires de Cames. Naqueles tempos singulares, de extremadas lealdades, que iam at heroicidade, e de torpssima versatilidade, que chegava at ao descaramento da venda e infmia da traio, o ideal da ptria no tinha para todos igual significao e era vulgar que se apelidassem traidores os que defendiam uma nao, se tinham faltado menagem a um prncipe, ou se considerassem leais os que serviam estranhos interesses dinsticos, sob color de no quebrar o seu juramento de vassalos. E por este modo, e at por um simples estmulo de cavalaria aventurosa, se encontravam batalhadores fidalgos, de diversa procedncia, de raas e nacionalidades antagnicas, ao servio de uma nao inimiga da sua, ou como campeadores de um rei em guerra aberta com aquele a quem tinham jurado vassalagem. Em Portugal como em Castela, na Frana como na Itlia e na Alemanha. Assim se explica o facto daquele gasco Montferrat estar com os portugueses, ao mesmo passo que a Gasconha dava ao rei de Castela, contra Portugal, o poderoso auxlio dos seus brilhantes homens de armas. Batalhadores por amor da arte e pelo simples prazer das aventuras, havia muitos assim naqueles tempos. Vasco Pires nem se intimidou com a chegada da hoste real, nem cedeu intimao para entregar aos portugueses a vila e o castelo. Fechou se no seu recinto de muralhas e resistiu. Tambm El-Rei se no importou muito com a temeridade do alcaide, e estabeleceu o acampamento real distante da vila, ao fundo dos hortejos da veiga. Ali guardaria que se lhe reunissem as foras de Lisboa e o seu termo, as outras que esperava do Alentejo, e depois se poria em marcha para ir ao encontro dos invasores.
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Ainda no era 11 horas quando os nossos trs cavaleiros comearam a avistar o acampamento real, com as suas tendas garridas da gente fidalga e dezenas de pendes e bandeiras multicores e esvoaarem na aragem quente daquela manh. A caminhada tinha sido um encanto por entre deliciosos trechos de paisagem, a um e outro lado da velha e mal cuidada estrada. Os vinhedos davam um lindo esmalte s lombas dos montes, coroados pelos moinhos mourisca, de altas velas brancas a lembrarem grandes azas. rvores pequeninas estavam j engalanadas de frutos, que o sol de junho comeara a amadurecer. As cerejeiras, essas pendiam avergadas pelos seus formosos cachos a lembrarem contas grandes, vermelhas como rubis. Ondeavam os triges cor de oiro, tocados pela aragem; nos tapetes nas planuras branquejam boninas e pelas rvores altas os melros assobiavam o seu estribilho de bomios, enquanto no recato nos silvedos, mais prximo dos regatos, rouxinis devaneadores gorjeavam o poema dos seus amores e dos seus sonhos, numa suave msica de enlevo, que nenhum maestro inventaria melhor e nenhuma cristalina garganta de mulher seria capaz de imitar. E mais passara por ali a guerra em arrancadas assoladoras, na campanha do ano anterior, e j, de dias a dias, naquele ano, quando chegavam quela planura as algaradas dos castelhanos que tinham ficado aninhados nas escarpas de Sintra ou iam descoberta os outros de Alenquer, entremeados com os portugueses bandeados por Castela. Os nossos trs cavaleiros um pouco tinham sofreado os cavalos para melhor admirar as belezas da paisagem. Lindo pas o vosso! ia dizendo o velho Montferrat para Ruy de Vasconcelos. Terra de flores como nas mais formosas planuras da minha Gasconha; sol carinhoso, todo oiro como no cu azul de Itlia; pas de perfumes e encantos como aquele pas bem-dito da Provena onde os meus dezoitos anos sonharam e tiveram amores! Boa terra esta, por vida minha, para idear canes e amores, jovens cavaleiros da hoste dos Namorados! E tal como , para a gente lhe querer, assim no-la pretendem para si el- rei de Castela e os seus grandes fidalgos de todas as Espanhas volveu-lhe Ruy calorosamente. Mas, por Deus, ilustre Joo de Montferrat, que os sonhadores e namorados tambm. So batalhadores, e se a contenda no puderem ganhar, ho de morrer por ela, que por esta linda terra e que so os nossos maiores desvelos, e por ela o mote principal da nossa bandeira. Os maiores amores! acudiu o Magrio entusiasticamente Ergueu se de sbito uma nuvem de poeira ao longe, num grande torcicolo do caminho, e ouviu-se a tropeada de muitos cavalos. Num agitado alvoroo, o Magrio ps-se em p nos estribos. Percebiam-se j muitas plumas brancas, como bandos de pombas num vo. Rui! gritou lvaro Coutinho comovidamente: Os Namorados! Sim, eles, com a nossa bandeira verde! rouquejou o Vasconcelos num grande enternecimento de saudade, olhos rasos de lgrimas. E sem se lembrarem j de Montferrat, meteram os dois a galope desfechado para os outros, mais de cem que vinham a trote largo. Pela nossa terra! gritou o Magrio no seu vozeiro retumbante. E pelas nossas damas! respondeu-lhe caloroso, esporeando o cavalo, aquele Hrcules algarvio que era Vasco Eanes da Costa. Ruy de Vasconcelos! aclamaram dezenas de vozes. Em boa hora vindes! Flr de cavaleiros! Orgulho e lio de ns todos! Foi uma coisa enternecedora aquele encontro. Todos os que j conheciam o Vasconcelos se iam acercando dele, a um por um, para lhe dizer palavras afetuosas. Os outros, os recm alistados na hoste, esses o saudavam fraternalmente. J sabeis ento que eu vinha e adivinho j quem vos mandou dizer gracejou Ruy pondo o olhar no Magrio. Pois est bem de ver que fui eu. E bom foi que nos mandasse dizer acudiu Vasco Eanes. A Ala dos Namorados, ns j lhe vamos chamando assim por conta da primeira batalha em que entrarmos; a nossa ala devia-vos este preito, pois de ns todos vs sois o que tendes maiores feitos. Os maiores! confirmaram uns poucos. Favores de boa amizade, que tudo engrandecem respondeu-lhes com singela modstia. El-Rei e o senhor Condestvel que tinham de estranhar esta vossa... Qual! atalhou Vasco Eanes. El-Rei muito de vontade nos concedeu a licena que ns lhe fomos pedir e logo tomou oportunidade de vos fazer os louvores que mereceis. Quanto ao senhor Condestvel, connosco viria tambm, se ontem no fosse para o Alentejo, para nos trazer mais cavaleiros e mais peonagem.
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Feita a apresentao de Joo de Montferrat, todo aquele brilhante esquadro juvenil se meteu a caminho para o acampamento Somos j muitos! disse Ruy para Vasco Eanes. E faltam aqui sete que ficaram feridos nas ltimas duas escaramuas com os da vila, e trinta que foram com as duzentas lanas de escolta que El- Rei mandou com o senhor Condestvel at Mugem e de l devem estar j de volta. E de l para diante? Vai o Conde D. Nuno s com as suas trezentas lanas e respeitava peonagem. De el-rei de Castela o que se sabe? Chegaram boatos de que ia entrar breve pela Beira com tom o seu poder, o maior que ainda ps em campo. Pois em boa hora seja para ns a sua entrada, que estou ansioso por ver a nossa ala, como lhe chamais, numa batalha real em que a contenda se decida. E eu, e ns todos. Linda e valente ala h de ser, e a mim me no quero meter na conta interveio o Magrio. Mas nessa conta vos metemos ns. Pois seja como quereis, mas o que decerto no adivinhais o pesar que eu j estou sentindo por alguma coisa de encanto que nessa almejada batalha nos h de faltar. No adivinho. Dizei vs o que h de faltar, senhor dom profeta. Dois grandes palanques, tais como nas justas e torneios, e neles, para nos verem, quantas lindas damas tem Portugal e Castela, o Bearne e a Gasconha. No vos contentaria que fossem as da nossa terra somente? Disse-lhe outro a sorrir. No. As outras tambm, para verem como ns pelejvamos com os seus namorados. Ainda que pudesse ter realidade isso que imaginais, uma dama certo havia de faltar disse o Vasconcelos melancolicamente. A vossa, a que vos levaram, a rainha das belas, que os Namorados aclamaram. H de ver a minha alma no fragor maior da batalha. E dela alguma coisa tendes sabido? Tenho. El-Rei est a esperar-nos veio avisar um dos que iam na frente.
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Entraram na veiga enfileirando-se. Belo esquadro aquele, de plumas brancas como um luar de sonho e de estandarte verde como smbolo de amor primaveril. Efetivamente, D. Joo I esperava os a poucos passos da sua modestssima tenda real, a p, frente dos seus fidalgos, tendo direita aquele prncipe da igreja que ns j conhecemos, o arcebispo batalhador, D. Loureno. Em magotes pelo arraial, toda a peonagem disponvel daquele pequeno exrcito, cujo efetivo total no daria hoje para uma brigada mobilizada dos exrcitos de agora. D. Joo recebeu com afeto quase paternal as homenagens que lhe foi prestar Ruy de Vasconcelos. Depois Montferrat esteve a falar com uns cavaleiros ingleses que j estavam no arraial, e Ruy teve uma conferncia particular com um dos seus nobres parentes, homem ainda novo, mas de grandes crditos e de boa fama de experimentado no mando da gente de guerra. Era conhecido pela sua admirvel intrepidez, nunca abatida em arremetidas de temerrio arrojo. A meio da tarde chegaram as duzentas lanas que tinham acompanhado a Mugem a hoste do Condestvel.
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Com autorizao de lvaro Pereira, marechal da hoste, (o marichal como ento se dizia) os Namorados reuniram-se naquela tarde em certo casaro velho, celeiro abandonado, que ficava retaguarda, a poucos passos do arraial. Tinham de discutir um caso importante para eles, embora aos experimentados de menos verduras juvenis se afigurasse coisa prematura e quase pueril. Eis o caso: Tratava-se de quem tinham de escolher para ir pedir a El-Rei a promessa de com eles formar uma ala de batalha, ou costaneira, como ainda diziam os velhos na sua tecnologia militar j antiquada, e quem para o mando deveriam propor, que para tal encargo merecesse a inteira confiana de El-Rei. Por alvitre do Magrio e de Vasco Eanes, todos eles votaram entusiasticamente que a misso e o mando fossem para Ruy de Vasconcelos. Generosa favor e honra insigne a vossa, disse-lhes comovidamente mas eu no; eu de modo nenhum! No deveis escusar-vos! No podeis! E direito nosso escolher-vos. Isso , e por muito honrado me dou com a escolha. Mas olhai que, se eu tiver o mando, no querer El-Rei que o nosso esquadro forme por si s uma das alas na primeira batalha em que entrarmos. No querer porqu, se em to grande apreo vos tem pelos vossos feitos e destemido nimo? Assim ! Assim ! confirmaram muitas vozes. Assim ser, replicou o Vasconcelos mas olhai que para chefe m fama criei naquele duro lance da estacada da Ribeira, que alguns de vs conheceis, e ainda pior no outro daquele dia em que os castelhanos retiraram do cerco de Lisboa. Isso ter j esquecido a El-Rei. So coisas do tempo do Mestre de Avis objetou o Magrio num certo tom de gracejo. Pois, meus amigos, no meu nimo confiar talvez a sua real senhoria, volveu-lhes sorrindo mas na minha cabea que eu sei que ele no confia. Ainda esta manh mo deu a entender, bem que muitas palavras de favor me tivesse concedido. Parece-me que ainda o estou a ouvir, e olhai que o conceito para ns todos: Pela possa lana iria eu pr as mos no fogo, a vossa e a dos vossos companheiros; mas pelas vossas cabeas de namorados, Deus me livrar de tal! E logo acrescentou de gracejo: Para arremetidas vos tenho por lees novos da minha hoste; porm para em vs confiar a sorte de uma batalha, andais muito na lua dos namorados e tendes o corao a mandar mais do que a cabea para a levar consigo. Mais palavra, menos palavra, isto foi o que El-rei me disse, e j vedes que nos no dariam a honra de um lugar distinto, em que ficssemos entregues a ns mesmos, e muito menos se fosse eu o chefe. S para formarmos ala nalguma batalha nos reinos da lua, acrescentou sorrindo pois l que ns temos o juzo, conforme o conceito de El-Rei. E olhai que o mesmo sei eu que ele j tinha dito ao meu primo Mem Rodrigues. As razoes do Vasconcelos tinham calado no nimo de todos. Quem h de ser pois, no de tal madureza danos que parea o av da ala, mas de tais crditos de sisudez, que no duvide El-Rei entregar-lhe a tutoria das nossas cabeas de vento? perguntou o Magrio, entre solene e gracejador. Se Mem Rodrigues quisesse, visto a sua fama de homem sisudo e sem dama que lhe d volta ao juzo... lembrou Vasco Eanes. Assim ele quisesse, e estava achado o chefe para refrear os ginetes rinches dos Namorados acudiu o Magrio com regalada jovialidade. E to del-rei como , ele prprio lhe poderia fazer o pedido por todos ns lembrou Vasco Eanes. Certamente e bom padrinho seria aprovou o Magrio. E vs o que dizeis, Ruy de Vasconcelos? Que daqui o vou j consultar e depressa voltarei com a resposta. Assim ser bem. Todos aprovaram e Ruy saiu. Depois l na batalha disse um dos mais jovens, ainda sem ponta de barba lia de ser o que Deus quiser e o nosso corao mandar, e tanto hemos de fazer, que at o prprio Mem Rodrigues no ter remdio seno parecer tambm um namorado jovem. Riram da farroncaria do novio e muito lha aplaudiram os mais estouvados daquele esquadro singular, que faria honra aos tempos longnquos da cavalaria devaneadora.
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Ruy voltou com a sua misso excelentemente cumprida e, o que mais era ainda, com o prprio Mem Rodrigues ao seu lado. Os rapazes fizeram uma receo entusistica ao fidalgo ilustre, a quem El Rei prezava pela admirvel lucidez do conselho e pela serena intrepidez do nimo. Tinha a calma reflexo de um velho e pouco ia alm da primeira juventude. Mem Rodrigues agradeceu-lhes modestamente a honra da escolha e a homenagem do recebimento e afirmou-lhes que do melhor grado iria fazer o pedido a El-Rei, pondo porm uma condio. Mandai como chefe disse o Magrio com assentimento de todos. Proponho simplesmente, propor que , propor como vosso irmo de armas, que outra coisa no sou ainda. Para que eu tenha o direito de apresentar o vosso pedido a El-Rei, fazer-lho tomando-o pelo meu e compartilhando por vs responsabilidades, que podem ser de extremada gravidade em qualquer batalha real em que haja de decidir-se a sorte de Portugal, ser preciso que pela vossa juventude aventurosa responda palavra jurada de nobres cavaleiros que sois. Heis de jurar-me pela vossa bandeira e pelo vosso nome, como se em presena de Deus o jursseis, que na batalha em que formardes ala, escrupulosamente obedecereis s ordens que eu tiver dEl-Rei, evitando rompantes de cavalaria que possam prejudicar a santa causa de ns todos. Decidi, e dizei o que decidirdes. Entre olharam-se num relancear de consulta. Como se os tivesse entendido claramente, o Magrio falou em nome de todos. Jurar pela nossa bandeira e pelo nosso nome o mesmo ser que jurar por tudo o que for dever de lealdade para a nossa conscincia. A Ala dos Namorados estar convosco para obedecer-vos e com a sua bandeira para acabar onde quer que a batalha fique perdida para a nossa terra. Mandai tudo o que for esforo e valer sacrifcio, ainda que previsto e certo sacrifcio da prprio vida. Pelo primeiro mote da sua bandeira a ala tem um s corao e uma s vontade, e dentro dela a alma responde pela juventude de todos, os mais novios e os de mais sonhos. A ala morrer onde a Portugal for preciso que ela acabe. Creio que isto o que todos ns sentimos e queremos! Todos! Todos! exclamaram unanimes. Deixai que vos lembre uma coisa, que preciso aclarar, para que o juramento que houvermos de fazer agora no v quebrar o outro com que uns aos outros nos juntmos disse Ruy. Como um s corpo a ala obedecer ao seu chefe, mas ressalva o direito dos votos pessoais e cada qual dar conta dos seus a quem tiver o mando de todos. O chefe decidir quais votos se podem cumprir livremente, sem limite de ocasio e quais nos ser dado realizar, somente quando a vitria for por ns ou a derrota for para os nossos. Assim tem de ser. Assim queremos que seja. Em batalha campal continuou Ruy de Vasconcelos o voto de todos, que no primeiro juramento se compreende, que a ala fique, ainda que a hoste real haja de retirar ou de se render cercada. Ficar para morrer e morrer para se no entregar. E eu com a ala acudiu calorosamente Mem Rodrigues de Vasconcelos numa vibrao comovida. Os rapazes vitoriaram-nos a ambos com um fervor arrebatado, o sangue a afoguear-lhes o rosto, o corao a esvoaar-lhes no peito, um fulgor de febre nos olhos cheios de lgrimas. E ser esta, senhor Mem Rodrigues, meu nobre e honrado primo continuou Ruy a nica desobedincia da Ala dos Namora dos, prevista, certa, lealmente confessada. Vede vs agora e dizei se, em tais condies, nos aceitais o juramento de obedincia. Aceito. Pois glorioso chefe teremos exclamou o Magrio entusiasticamente. Todos o apoiaram em palavras calorosa homenagem a Mem Rodrigues. Ento podemos jurar disse Ruy. Todos uma! E agora sobre a cruz da espada de quem nos h de mandar props o Magrio. J o no entendo preciso. Falou a vossa alma e eu senti que falou a verdade. Esta noite me entenderei com El-Rei e amanh cedo sabereis a sua resposta. Fizeram-lhe o que hoje se diria uma ovao. sada cruzaram-se os dichotes alegres daquelas aventurosas juventudes, que juravam morrer com a mesma despreocupao de nimo com que poderiam combinar uma batida aos javardos nas brenhas da serra mais prxima. No vos dizia eu que Mem Rodrigues ainda havia de parecer um namorado, tal como ns? A o tendes j mudado e com o seu voto em favor do nosso. Isto dizia para Vasco Eanes aquele novio que j tivemos ocasio de ouvir. De dezassete anos incompletos, olhar ingnuo de adolescente, figurinha gentil de gal fidalgo, mais parecia o pajem, donzel de alguma castel de lenda do que um campeador votado ao sacrifcio da vida. E no seu feitio gracejador, o Magrio a dizer ao Ruy de Vasconcelos: E h de El-Rei ver, e custa dos castelhanos ser, como as nossas cabeas de vento lhe ajudam a segurar a coroa.
* * *
Ao outro dia de manh, mal que o sol rompeu, todos os cavaleiros e escudeiros fidalgos se foram reunir, como era costume, em frente da tenda real, para saudar D. Joo I e receber-lhe as ordens. Os Namorados foram dos primeiros. Iam com a ideia de saber o que se teria passado entre o Rei e Mem Rodrigues. A um lado da tenda real, encimada por uma bandeira branca em que sobressaa a cruz verde, floreteada, da ordem de Avis, uma fila de trombeteiros guardava o aparecimento del-rei. Vestiam cotas de damasco com bordaduras de prata, como as tinham usado no tempo do rei D. Fernando, e empunhavam alto longas trompas de prata, as famosas trompas do reinado de D. Pedro I. Para uma extrema do arraial se juntara muito peonagem a ver como os nossos besteiros e alguns arqueiros ingleses faziam barreira, ou, como hoje diramos, exerccio ao alvo, que ali se reduzia a uns barrotes velhos, cravados em fileira no solo. Contra eles disparavam frechas, virotes e virotes com os arcos, as bestas de roldana ou de pol e as de garrucha. Causava pasmo aos nossos a pontaria certeira e a mo firme dos frecheiros ingleses. E tanto como esta justeza de pontaria, os admirava a rapidez dos tiros, pois que um arqueiro destro podia disparar dez frechas durante o tempo que um besteiro levava a arre*! Messar trs ou quatro virotes. Volvidos instantes, apareceu El-Rei com o Arcebispo de Braga, e atrs deles o Marechal da hoste e Mem Rodrigues de Vasconcelos. Todos os cavaleiros fidalgos e escudeiros o vieram saudar a um por um. As trompas vibravam com agudo estridor. Acabada aquela homenagem, El Rei deu ordem a Mem Rodrigues para se juntar aos Namorados e trazer-lhos sua presena em formatura. Assim se cumpriu, e poucos minutos depois avanavam todos eles em quatro filas, frente o chefe e sua direita o Magrio com o estandarte verde, que a Rainha das belas bordara. Vinham radiantes os rapazes, certamente porque Mem Rodrigues alguma boa nova lhes dera. Fizeram alto a dez passos do rei. A mim me veio pedir Mem Rodrigues disse-lhes D. Joo com afetuosa singeleza, quase paternal lhe fizesse vlido o cargo do vosso chefe, pois que para tal o haveis escolhido, e por favor vos desse a promessa de formardes ala na primeira batalha que tivesse de se lutar em campo aberto contra o poder de Castela. Jovens de grande verdura danos, sonhadores de aventurosas cavalarias, sois vs todos, mas tambm de leal corao e arrojo de nimo j provados. Ao chefe que escolhestes o tenho eu no mais alto apreo e vos dou por vlido; responder ele pela vossa juventude, em alguns inexperiente e em todos vs de temerria condio. Pela galhardia do vosso esforo respondo eu e com ela pode contar Portugal. Sereis uma das alas da minha hoste na primeira batalha. Est feita a promessa. E toda aquela pequena coluna de valentes devaneadores estremeceu e todas aquelas almas vibraram em brados frementes de aclamao ao rei. E com tal entusiasmo febril foi aquele preito de reconhecimento, de tamanho rudo, que de todos os lados do arraial acudiu gente num alvoroo de curiosidade. At os frecheiros ingleses largaram o seu exrcito para saber o que era aquilo. Real! Real! Por D. Joo I, nosso glorioso rei! bradava o Magrio no seu vozeiro triunfal, agitando na atmosfera doirada aquela manh de junho o estandarte verde da nova ala. E todos, num aprumo encantador, o sol a beijar os de frente como numa apoteose de lenda, foram desfilando por diante do monarca, repetindo alto, como se fosse um grito de guerra, o primeiro mote da sua bandeira. Pela nossa terra! Pela nossa terra! E os outros cavaleiros fidalgos e escudeiros que tinham estado ali como espetadores, alguns j encanecidos nos combates, lhes aluam caminho aclamando-os: Ala dos Namorados! Ala do estandarte verde! Boa glria vos d Deus e carinhoso sol vos ilumine na primeira batalha em que entrardes. E caridosa terra nos cubra neste cho de Portugal, se a ala tiver de morrer vencida! disse-lhes alto, comovidamente Ruy de Vasconcelos.
* * *
Entre a peonagem comentava-se o caso um pouco de chistes em dizeres pitorescos, muito no uso do povo; mas sem uma sombra sequer de m f, antes com um certo enternecimento fraternal! Vamos ter uma ala de franganotes de crista emproada dizia um besteiro j durzio. Pois bom poleiro lhes dar El-Rei e ns todos, se diante dos grande poder dos casteles eles cantarem como cantaram agora. Que alguns deles nem sequer ainda so franganotes, pois no passam de franganitos. No; olhai que vo ali alguns que so j frangos de souto. (*)
[(*) Era uma expresso antiga que designava que j no eram pintos nem precisavam de acolher se debaixo das azas da galinha e iam procurar sustento pelos soutos (prados) e campos, afastados da me.]
E da acudiu um homem de armas ainda novo l diz o ditado: Mais vale um cavalo de trs anos que um burro de vinte. Pois sim, sim replicou o besteiro velho mas largassem lhes de Castela as damas do pao, as mais bonitas e as mais novas, e l se nos iria de aza de rojo a linda Ala dos Namorados. De sbito vibraram trombetas ao longe. Ou l! Sero das pessoas ali de Alenquer? Chegava ao mesmo tempo um cavaleiro desfilada, coberto de p. Era um escudeiro de Ferno Rodrigues de Sequeira, carairo-mor de Lisboa, que vinha trazer aviso a El-Rei de que estavam chegando as lanas e a peonagem do concelho da cidade. No era caso para alvoroo, a no ser entre a peonagem. D. Joo I sabia que os de Lisboa deviam chegar naquele dia e o Marechal da hoste j tinha tomado as suas disposies para o acomodamento daquele reforo. Juntou-se muita gente para ver chegar a hoste dos alfacinhas como alguns diziam de brincadeira. As trombetas vibravam j muito perto e a poeirada que se erguia do caminho estava indicando a aproximao de avultado nmero de pessoas. Ouviu-se uma vozearia enorme de aclamaes e de dizeres alegres, trocados entre os que vinham cegando e aqueles que os tinham ido esperar. O carairo-mor adiantara-se e viera falar com El-Rei ao terreiro da sua tenda onde lhe faziam companhia os homens fidalgos. Que gente vem convosco ao todo? perguntou-lhe D. Joo I. Senhor, bem pouca, se contarmos s os que veem suficientemente armados. Cem lanas de cavaleiros e trezentos besteiros e homens de boa peonagem. Bem pouca, sem dvida! Ameaada pela gente castelhana de Sintra e de Santarm e com uma armada inimiga na barra e dentro do rio, (*) Lisboa e todo ao seu termo precisavam de ficar com muito mais gente de armas, e l lhe deixei o tresdobro de peonagem bem provida e experimentada respondeu o Sequeira.
[(*) Segundo o historiador espanhol Ayala, era uma esquadra de 46 naus e 12 gals.] Mas, senhor, atrs desses com quem muito podeis contar para empreendimentos de guerra, veem mais umas centenas da arraia-mida, sem bacinetes, sem laudis, porm gente de chuas e de rijos punhos, que de alguma coisa valer ajudando os outros. Est bem, carairo-mor de Lisboa. Amanh nos hemos de pr em marcha para irmos saber por qual passo nos vir surdir a hoste real de Castela. A um galeote de Galiza, que h dois dias fugiu da sua gal para a cidade, ouvi eu, ainda ontem, que at da armada vo desembarcar homens de armas para virem aumentar o poder com que est para entrar ou j entrou el-rei de Castela. Conta o galeote que voz constante a bordo que o soberano de Castela trar para cima de quarenta mil da melhor gente das Espanhas, da Gasconha e do Bearns, e mais no sei que engenhos novos de guerra de que o galego ouviu falar aos capites das naus. Pois Deus ser por ns, respondeu D. Joo serenamente e ns contra todo esse poder. O galego ouviu dizer que os tais engenhos vomitam fogo de repente, assim como relmpagos de uma trovoada! Pois a Senhora Santa Brbara ser por ns. E que lanam grandes pedras. Isso tambm as catapultas e as mantas, e ainda ningum morreu de susto. Truenos lhes chamou o galeote de Galiza. Parece que ouviu este nome a um dos capites e logo a explicao de que assim chamavam aos tais engenhos por troarem alto como troves. Porm na sua linguagem galega tambm o galeote lhes dava o nome de trons. Nada falta ento ao tal engenho para amedrontar os pobres chamorros! disse o Rei de gracejo. Relmpago, trovo e raio. E para fingimento de ventania as palavras farronqueiras dos grandes senhores das Espanhas e da Gasconha! Pois no fugiremos ns a esse temporal desfeito e daqui ire-mos observar de que lado ele vem. A gente do povo soube dessa informao? Espalhou se logo, meu senhor, mas parece que a gente mida se no intimidou muito com esta nova, pois que muitos esfarrapados se ofereceram e pediram para acompanhar a hoste com as suas chuas e at mulheres fizeram igual pedido. Senhor Rei, se dais licena... solicitou em castelhano o velho cavaleiro gasco, j nosso conhecido. Dizei, Joo de Montferrat. Eu estive, senhor, na batalha de Crcy, em que o rei Eduardo III de Inglaterra desbaratou Filipe de Valois, rei de Frana. Bem que j tenham passado trinta e nove anos, a memria dos trinta que eu tinha ento no deixou esquecer ainda o que foi aquela terrvel batalha, em que se viu por terra a mais bela e galharda cavalaria de Frana. Senhor, a essa batalha levaram os ingleses umas tantas das tais mquinas de guerra que vomitam fogo e fazem rudo como troves. Aos primeiros tiros a peonagem francesa um pouco se amedrontou; mas os cavaleiros, na fria da arremetida, mal deram pela novidade, e quem alcanou aquela tamanha vitria do rei ingls no foram os tais novos engenhos, porm os cavaleiros apeados e trs mil e quinhentos frecheiros que Eduardo UI l tinha. Estes, sim; onde punham os olhos, punham as frechas, e derrubaram a flor da cavalaria de Frana. Esses tons, que dizem trazer el-rei de Castela, muito se ho de parecer com os de Crcy, que faziam muita bulha e pouco dano. Mas venceu quem os levava observou-lhe o Rei, baixando a voz. Como sem eles podiam vencer os de Frana, se no se apressam tanto a dar batalha quase ao cair do dia, e tm menos prospias e leviandades de cavalaria intil. Senhor, a mim me quer parecer que de algum proveito seria ir dizendo estas coisas aos da vossa hoste, mormente peonagem, para que no os venha colher de surpresa o espalhafato bulhento dos tais trons. Tambm a mim me parece bem o alvitre e por tal vos agradeo. Posso afianar a vossa real senhoria que os tais engenhos nada importaram para o resultado da batalha. Eu vi deitar fogo a um; deu um ronco medonho, fez uma fumaceira que cegava, e afinal l atirou com um pedregulho redondo, a uma distncia de sete centos ou oitocentos passos, ao acaso, contra umas sebes. Depois daquele tiro, que tinha levado um quarto de hora a preparar, ningum mais quis saber do tal monstro roncador. E proveitoso saber-se isso, e boa lembrana tivestes, Joo de Montferrat. Mem de Vasconcelos, disse alto, sorrindo os vossos Namorados que se incumbam de contar pelo arraial isto que ouviram ao ilustre e assinalado cavaleiro Joo de Montferrat. Que o contem e como rapazes que so, ao mesmo tempo se no esqueam de mofar dos trons de Castela. E vs l que dizeis, Ruy de Vasconcelos? Eu digo, senhor, que a ala os ir tomar onde quer que eles apaream, se vs lho consentirdes. Consinto e fica a promessa feita. Quanto mais depressa fizerem calar os tais roncadores, tanto maior proveito para ns, por causa da peonagem mida, que quem mais se pode assustar com a ronca. Ouviu-se uma enorme algazarra. Era dos besteiros trocistas a vitoriarem de brincadeira a multido auxiliar da arraia-mida, que no trazia bacinetes nem laudis,(*) porque no os havia em Lisboa que chegassem para esses legionrios pelintras com o seu uniforme de trapos.
[(*) Em Portugal, como em Castela, os homens vlidos e de alguns haveres eram obrigados a ter sua custa o seu prprio armamento, que variava segundo as posses de cada um. Mas as calamidades da guerra tinham sido to frequentes e de tal modo empobrecedoras, que nem mesmo os remediados dispunham do armamento completo com que deviam entrar em campanha.]
Se at entre os mais favorecidos a variedade e a velharia dos armamentos eram curiosas! Capelinas ou capelos de ferro comidos da ferrugem de oitenta ou cem anos, solhas esfrangalhadas que tinham ido ao Salado, ascumas remotssimas que tinham estado em Navas de Tolosa. Viva a Ala dos rtos! clamavam os trocistas. Os guerreiros de ventres ao sol!
CAPTULO V AO ENCONTRO DOS INVASORES
No dia seguinte de madrugada a hoste real arrasou as tranqueiras do acampamento, levantou as tendas e ps se a caminho para ir ficar a Valada. A uma lgua de Alenquer afastou-se Diogo Machado, tomando para a Beira com cartas e recados do Rei para os fidalgos que tinham vencido a batalha de Trancoso. Instava com eles D. Joo para que no tardassem a juntar-se ao exrcito real com a sua melhor gente de armas, visto que, sozinhos e entregues s suas foras, lhes no seria possvel rebater o poder do rei castelhano. Uma alegre marcha aquela at Valada. O Rei ia conversando com o Marechal e os seus conselheiros mais chegados, a respeito das foras que lhe seria possvel reunir numa batalha campal. Para chegar a seis mil e quinhentos ou sete mil, que fossem realmente homens de armas, seria preciso que o Condestvel viesse do Alentejo com mais de trs mil. Com a farrapagem auxiliar, dois ou trs mil homens mal armados, no poderei contar muito para as primeiras arrancadas de uma batalha. A larga distncia para a frente do Rei, os cabecinhas de vento dos Namorados iam devaneando delcias e pedindo contos de cavalaria novelesca ao velho Montferrat, que parecia remoado ao p dos rapazes e com eles se comprazia, sempre caloroso palrador como bom e legtimo gasco. Os fantasistas morriam pelo ouvir e Montferrat tinha histrias para vinte jornadas de sol a sol. Contou-lhes as lendas dos cavaleiros do rei Artur, o rei louro do pas de Gales, que vivera havia mais de oito sculos e fora o conquistador da Esccia, da Irlanda, das Orcadias, da Jutlndia, da Dinamarca, da Noruega e da Islndia. E l ia explicando aos mais novatos como a princpio a ordem da Tvola Redonda apenas tinha doze cavaleiros, que se reuniam em volta de uma tvola ou mesa redonda, com fraternal igualdade. Muito se ufanam os de Inglaterra por esta remota e famosa cavalaria, bem que muita coisa de fbula e de inveno novelesca ande ao de cima de algum fundo de verdade. Pois, senhor Joo de Montferrat disse lhe o Magrio ficai sabendo que estou com as minhas ccegas de arranjar uma Ordem-assim, e doze bastavam. Mas isso h de ser, se for, l para quando os castelos voltarem sua terra com os trons encravados e a gorja entupida. Doze de Portugal por pano de amostra e para que l na Inglaterra vissem que tambm de cavalarias algo entendemos. No precisais de outra amostra melhor volveu lhe o gasco do que esta vossa Ala dos Namorados. To linda coisa, que at parece tirada de algum romance que nunca ningum tivesse lido! E a tal da Tvola Redonda perguntou um dos mais jovens, no deixou fama de amores e de belas enamoradas? Se deixou! Quantas naqueles tempos em que as feiticeiras eram lindas e faziam encantamentos como Viviana e Morgana, e as princesas eram de sonho como Branca Flor e Grislia! Vamos ns agora ouvir o que diz a arraia mida da hoste. Os que no traziam armamento regular e, quando muito, uma antiga coura de sola sobre a trapagem, e estes eram, ainda assim os mais distintos, vinham na cauda do pequenino exrcito, na reguarda como se dizia na tecnologia militar daquela poca. E atrs deles o mulherio de aventura, apesar de todas as proibies e de todas as severidades, principalmente quando estava presente o austero Condestvel. Em Portugal como em Castela e em outros pases, e ainda, com muito maior desaforo, nas campanhas dos primeiros anos do sculo passado. Mas ali no vinham s aventureiras, seno tambm mes para acompanhar de perto os filhos juvenis e esposas de mais nimo para acudir aos maridos, pois que os exrcitos daquele tempo no tinham organizados os servios de socorro aos feridos. E entre elas, algumas que tinham sido da hoste da tia Lourena no ltimo cerco de Lisboa. E quem animava o dilogo, dando-lhe o relevo dos seus chistes, era o Bernardo Pingueiro, aquele sapateiro tunante, j muito nosso conhecido. Vinha delicioso. Um saio constelado de remendos, umas calas de bifa (1*) a esfiamparem-se-lhe; cinta um longo espeto, a que ele chamava o seu estoque, e na cabea, muito cado para a nuca, um capelo ferrugento, que tinha apanhado em Lisboa na feira das ladras. (2*).
[(*) 1 - Tecido de l. 2 A feira de Lisboa chamada assim at ao tempo de D. Afonso II, depois feira das ladras, e no decorrer do tempo feira da ladra como hoje conhecida a famosa feira de velharias.]
E os seus olhos, cada vez mais piscos, a enviesarem-se-lhe para o nariz, cada vez mais rubro. Tinha uns rijos cinquenta anos, apesar de batidos por trinta e cinco de formidveis bebedeiras. Era a mais extraordinria figura da Ala dos rotos. Iam a rodear uma encosta, quando veio ordem para meia hora de descanso. Pararam e ficaram em grupos, vontade. O Bernardo comeou ento a implicar com as mulheres para gudio dos seus companheiros e colegas. Oh mulheres! suspirou o chocarreiro. Olhai como vou com pena de vs. Ora essa! Pena de qu? De ainda vos ver de joelhos a rezar senhora Santa Brbara, mal julgardes que sejam de trovoada os roncos desses trons que os casteles trazem consigo! Rezar? Isso rezais vs! H de parecer que tendes azas nos ps, e l nos deixareis onde quer que for! Os homens riam; elas que no gostavam do gracejo. Animado pelo riso dos companheiros, o Bernardo insistiu. Eles de l a largarem o pum dos trons, e vs de c, mais amarelitas que os crios, ah! Pernas para que vos quero, numa chiadeira de ratas, a chamardes pelo Juiz do Povo, que vos acuda. Eh! Eh! Calai vos a, que sois sempre o mesmo, remendo de uma figa! Ora, deixai o l. No se faz caso. Toda a gente sabe quem o Bernardo Pingueiro. Quem foi, que deveis dizer. Para continuar a ser pingueiro faltou-lhe a pingo, ds que os malditos casteles arrasaram as lindas vinhas que tinha Lisboa e o seu termo. Por isso aqui vindes no fingimento de irdes para a guerra. Ao cheiro das vindimas que ele vem acudiu outra. E mais do vinho velho das adegas beiroas lembrou uma terceira. O mais deslavado sapateiro que ainda teve a confraria de S. Chrispim! O Bernardo das momices! Ai, compadre, disse-lhe um colega boa a fizestes! Assanhastes o vespeiro, e olhai que j vos no largam. E o marau do sapateiro num riso sorna de ctico: Deixai-as l chiar. De lngua venceriam elas o poder todo do rei de Castela e mais do rei de Frana e mais do xarife mouro de Marrocos. Calai-vos l, truo de uma figa! clamou uma das mais abespinhadas. E ele, baixo para o compadre, num piscar de olhos malicioso: Ides ver o vespeiro ainda mais assanhado. E logo alto no seu tom de galhofa: Pois ficai sabendo que o Bernardo Pingueiro deu em Bernardo Batalhador, e heis de ver-lhe a galhardia, quando os trona dos casteles se largarem a arrotar o fogo que trazem no bucho. Heis de ver-me, acrescentou comicamente, floreando o espeto no ar eu vos juro, assim, a esbarrigar casteles com este meu estoque de Condestabre dos sapateiros. Dou um furo no rei castelo, se adregar topai-o a jeito. Eh! L! exclamou uma delas. Poucas brincadeiras com o demo do espeto! Oh criaturas frgeis! Tudo vos assusta e a isto vos aventurais! A vs, cachopas e donas de mantu de estopa, a vs que ningum, nem eu, nem mesmo o senhor S. Jorge, nem mesmo o Santiago de Castela, a vs ningum vos h de pr os olhos em riba, assim que eles e ns comearmos, zs, paz, arreda que te espeto, e os bacinetes a toarem que nem caldeiras velhas, e as lanas bumba, e as espadas traz, traz, traz, e os trons bum! Bum! Bum! E os virotes a zunirem pelo ar e os homens a carem aos cachos e a regueirada do sangue a referver na terra como o vinho mosto nas cubas! Filhas da nossa me Eva, costeletas do pai Ado que ningum mais vos torna a ver a sombra, porque heis de ento fugir como galgas. Que digo eu? Como lebres que h de ser. Foi medonho o berreiro de indignao do mulherio contra o Bernardo. E o descarado a rir perdidamente. Se as palavras fossem frechas, estas mulheres dos meus pecados seriam piores que os frecheiros ingleses. Pois aquietai vos l, que vou fazer-vos um grande favor. Povo! aclamou para os homens com solenidade grotesca. Sabei que muito me apraz nomear mais uma ala nesta nossa hoste, e essa nova ala proponho que v atrs da outra dos Namorados e desta nossa, chamada dos rotos. Esta agora, pelo seu nimo e leveza de ps, ser chamada a ala das lebres. E apontou com gesto soberano para os grupos de mulheres. Ora! Foi desafio para nova arremetida de palavras deprimidoras e pretexto para uma galhofa doida da parte dos homens. Veio ordem do Marechal para continuar a marcha. Foram seguindo e, quando j estavam vista de Valada, receberam preveno para avanar precavidos contra qualquer investida de surpresa da gente castelhana que guarnecia Santarm.
* * *
Foi noite mal dormida aquela no acampamento de Valada. Dali seguiram, passando o rio a vau. Estiveram nas cercanias de Santarm a ver se os castelhanos se saam com alguma arremetida; mas eles fizeram se desentendidos, e a hoste avanou ento para a herdade de Ruy Pereira, onde acampou. No dia imediato marchou at Torre da Cardiga e ao outro foi ficar em Abrantes. Era excelente posio para guardar o caminho da fronteira a Lisboa e dali retirar pelo vale do Tejo ou tomar rapidamente para o vale do Mondego, se a invaso fosse realmente pela Beira Alta. Demais a mais, correra o boato de que o prncipe D. Carlos de Navarra invadiria tambm Portugal com uma hoste sua, mas no se sabia ainda por qual ponto da fronteira. Dias depois chegava da Beira um escudeiro com informaes graves para El- Rei. Era aquele mesmo Afonso Rodrigues Baticela, que levara a Lisboa a notcia da batalha de Trancoso. D. Joo I recebeu o em audincia confidencial. O rei de Castela entrara com formidvel poder, assolando tudo a ferro e fogo. Tomara o castelo de Celorico e mandara deitar fogo a igrejinha de S. Marcos, junto da qual o povo do Arcebispo de Toledo tinham sido desbaratadas no ms anterior. Saqueavam e punham em cinzas as povoaes, profanavam os templos, faziam crueldades hediondas, de atrocssima selvageria, violando mulheres, a quem depois cortavam a lngua, decepando as mos s criancitas e aos velhos inermes! Senhor informou ainda o escudeiro e tudo isto fazem com desalmada fria, dizendo que para lhes pagarmos ns o que eles sofreram no cerco de Lisboa e para ajustar as contas de sangue da derrota que tiveram nos Atoleiros, e mais das aes que perderam no Minho e, ainda mais, do desbarato de Trancoso e, do desaire do cerco de Elvas, em que Gil Fernandes os deixou escarmentados! Vo por aquelas ribeiras do Mondego abaixo em ferocidades de lobos danados! Ns tomaremos o passo a essa alcateia! disse D. Joo I de rosto avincado. Nenhuma resistncia lhes puderam ento opor os homes da Beira? Senhor, em campo aberto seria impossvel tomar-lhes o passo com trs centos de lanas, se tantas, e os lavradores bisonhos e mal armados, que l se podiam juntar. Vinte vezes mais lanas trazem eles, segundo confessam, e tanta cavalaria e peonagem de boas armas, que nem todos os homens da Beira reunidos poderiam ter mo neles. Foram sobre Viseu? Senhor, dela no quiseram agora saber e l seguiram numa arrancada de toiros bravios! Para aonde? A um, que os lavradores apanharam estropeado o obrigmos ns a falar, e esse disse que iam sobre Coimbra, para de l vos irem desfazer o trono em Lisboa. Ns lhes iremos pr embargos no caminho. E esse castelhano no disse ao certo que pessoas trazia a hoste real? Disse que no seriam menos de seis mil lanas, muitos ginetes mourisca, cavaleiros e escudeiros de Gasconha e do Bearne no menos de dois ou trs mil, e peonagem tanta, que acima seria de vinte mil, afora a gente das grandes bagagens que traziam, que essa vem tambm armada e andar por dez ou doze mil homens. Se o prisioneiro nos no mentiu, el-rei de Castela vem apercebido para grande demora e com aprestos para se aclamar em Lisboa. Para se aclamar! Que aprestos? A coroa, o manto e o antigo cetro dos reis castelhanos. Isso havia de ser embuste do prisioneiro para mostrar que de tudo vos informava. Provavelmente lhe tinham metido medo? Ameaaram-no de tortura at morrer, se no dissesse tudo quanto sabia, e que em segura priso seria guardado at se averiguarem as verdades ou as mentiras que tivesse dito. Com o mento fincado sobre os punhos cerrados, El-Rei ficou por instantes emudecido, de olhar baixo como se estivesse a pensar. Assim uns instantes apenas. Sacudiu os ombros de repente e ergueu a cabea num movimento de firme altivez. Nada informou o prisioneiro acerca de certos engenhos novos de guerra, que el-rei de Castela mandara fazer para c vir? Senhor, informou. Disse que eram grandes engenhos, todos de ferro, e que dentro de cada um. Cabiam bolas de pedra que os pulsos de um homem possante mal poderiam erguer do cho. Disse que em Toledo tinham experimentado um deles, metendo-lhe dentro uma saca de l, cheia de certos grandes negros que do fogo com tal violncia, que tudo atiram adiante de si, mais longe que o viroto da melhor besta, fazendo estrondo como de trovo e tamanha fumaceira como se fosse de uma meda a arder! Um dos dezasseis que eles trazem, o tal que foi experimentado, conta o prisioneiro que deitou a mais de quinhentos passos uma pesada bola de pedra, que foi derrubar um muro da altura de dois homens. E aquilo num abrir e fechar de olhos! D. Joo refletia de testa enrugada e maxilares cerrados. Agora no se tratava j de um simples boato de que seria fcil mofar; agora afirmava-se um facto com pormenores que podiam ser de esmorecimento. Levantou se e perguntou-lhe sacudidamente: Escudeiro, a algum da minha hoste contastes j isso que me tendes dito? Senhor... Perdoai... No sabia! tartamudeou perturbado. Respondei claro. A algum o contastes? Senhor, a um grande amigo que a tenho algumas coisas disse por alto, mas logo lhe pedi que de tal no falasse a ningum enquanto vossa real senhoria no o soubesse. Quem esse vosso amigo? Senhor, ao jovem cavaleiro Ruy de Vasconcelos foi que eu o disse. No est mal parado o segredo. Mas daqui ireis j procurar esse vosso confidente para, em particular e no meu nome, lhe dizerdes que, pelo bem da nossa causa, a ningum deve confiar o que vs lhe contastes, seno depois que houvermos batalha com os de Castela. Senhor, sim. Nem ele, nem vs, como se nada soubsseis. E se por algum alvissareiro vierem informaes iguais, heis de vs nega-las, que assim vos mando e assim bem que seja. Ide depressa. O Baticela dobrou o joelho e beijou-lhe a mo, ainda afogueado e numa perturbao que lhe no era fcil disfarar.
* * *
El Rei mandou logo convocar os homens do seu conselho distado para dali a uma hora. Efetivamente, no prazo marcado ali estavam todos com ele na sala nobre da sua pousada, num dos mais antigos e enobreci dos solares de Abrantes. El Rei apresentou a questo da defesa do pas, que foi calorosamente discutida. Os pareceres dividiam-se quanto parte estratgica e, especialmente, no tocante ao que hoje chamaramos o teatro das operaes. Uns entendiam que em Lisboa se deviam concentrar as foras principais do reino e ali guardar que chegassem os prometidos socorros de Inglaterra. Outros eram de opinio que se fosse cortar a retirada aos invasores, caindo lhes de improviso pela retaguarda. Outro era o propsito del-rei. Ao primeiro parecer o rejeitava agora, quase com remorso, pois que por causa dele o Condestvel partira para o Alentejo com manifesta mgoa e mal disposto de nimo. Agora estava D. Joo I pelo voto de Nuno lvares, e sentia bem a razo com que ele se opusera aquele alvitre da defesa concentrada em Lisboa, espera dos socorros de Inglaterra. Todas as informaes recebidas deixavam perceber que chegariam demasiado tarde e ao atar das feridas, como o Condestvel dissera no tempestuoso conselho de guerra que se reunira em Alem quer. Tendo por muito falvel e de aventuroso perigo o segundo parecer, El Rei exps abertamente a resoluo em que estava. Mandaria dizer ao Condestvel que viesse juntar se lhe com a sua hoste, e marcharia com todas as foras reunidas a tomar o passo ao rei de Castela. A alguns se afigurou demasiado audacioso este plano, e mais no sabiam ainda ao certo, como El Rei, que formidvel poder trazia o monarca invasor; o Dr. Gil Docem interveio na discusso com slidos argumentos e dominadora eloquncia, e logo transigiram os mais aferrados ao plano de uma defesa circunscrita s muralhas de Lisboa. Sorridente, num consolo ntimo por aquela vitria do seu projeto, El Rei logo ali confiou a Joo Afonso de Santarm, um dos membros daquele conselho, a misso de partir imediatamente para o Alentejo a dizer ao Condestvel que viesse sem detena com os seus homens de armas, e juntos iriam ao encontro dos castelhanos, pela forma que em conselho se combinasse. O Santarm pouca demora teve, e voltou cedo. Com a resposta que ele no parecia vir satisfeito. A primeira pessoa que encontrou em Abrantes com quem pudesse abrir-se desafogadamente foi o octogenrio Diogo Lopes Pacheco e com ele se entendeu antes de ir falar a El Rei. Venho desconsolado com a resposta de Nuno lvares! No quer vir juntar-se hoste real?! Coisa pior o que ele tem no sentido! Encontrei o assomadio e muito contra ns, os do conselho del-rei, mormente contra aqueles que deram voto para que em Lisboa se fossem esperar os auxlios de Inglaterra, ou a passo e passo nos fssemos defendendo do poder invasor, sem arriscar batalha. Mas agora, que El-Rei est determinado a ir tomar o caminho ao povo de Castela, parece que Nuno lvares tinha motivo para ficar satisfeito com o recado que lhe levastes! Pois respondeu-me altivamente, e a todos os do conselho os jogou o seu remoque. O recado de tal sobranaria, que no o quero eu dizer El-Rei, tal como ele mo deu. Foi assim, e deste modo se mandou pr por escrita para eu o ter de cor, sem nenhuma diferena de palavras, que lhe alterasse o sentido: Dizei a El-Rei, meu senhor, que eu no sou homem de muitos conselhos, e pois que j uma vez esteve resolvido entre ele e eu que se no deixasse passar el rei de Castela e lhe dessemos batalha, no estou disposto a mudar de propsito nem a dar um passo atrs, por mais conselhos que lhe l deem e por maiores que sejam as arengas dos doutores que traz consigo. Mas dizei-lhe tambm que lhe peo o favor de me deixar ir sozinho dar batalha aos de Castela com estes poucos e bons portugueses que tenho comigo Todavia, se a sua real senhoria quiser ir juntar-se comigo, sem perder tempo a ouvir conselhos, que de tal me avise e em tomar, para onde vou partir, o guardarei coma minha hoste. Vede agora se eu devo dar este recado assim a El-Rei! Certo no deveis. Qualquer esfriamento da boa amizade entre El-Rei e o Condestvel seria agora de grande mal para a nao. Nem a hoste real pode dar batalha ao poder que se diz trazer el-rei de Castela, sem levar consigo a gente de Nuno lvares, e ele a valer mais do que todos os seus homens de guerra, pois, sobre ser o primeiro deste nosso tempo que venceu batalha campal aos castelhanos, tambm o portugus que tem agora nas Espanhas mais alta fama e mais temor infunde aos nossos inimigos. Assim , e bem o sabemos todos, mas atendei a que tambm so um perigo para todos ns as suas temeridades de homem arrebatado! Com os trs mil homens escassos que tem consigo, que batalha havia de ele dar aos trinta e cinco ou quarenta mil com que entrou o rei de Castela, segundo j me disseram?! Era desastre certo, a no ser que lutasse por ele os santos que traz na sua bandeira. Pois sim; valeria bem uma loucura, mas olhai que loucura ainda maior seria que a hoste real fosse batalhar sem aqueles trs mil, que valem pelo triplo, trazidos luta por tal assinalado capito. Sabei que, se bem contarmos quantos homens aqui temos regularmente armados e capazes de entrar em batalha, no chegaremos a encontrar mais de quatro ml. Para vencer com to pequeno poder s se topssemos os trinta e cinco ou quarenta mil de Castela a dormir a sesta. Mas ento qual recado vos parece que eu leve a El-rei! Dizei-lhe que o Condestvel lhe pede o favor de o no desviar do seu propsito de ir dar batalha; que vai pr-se em marcha para tomar, e dali ir tomar o passo aos invasores sobre o caminho para Lisboa; mas que em tomar guardar as ordens da sua real senhoria. Assim tirareis ao recado essa dureza de altivez, que , principalmente, podeis cr-lo, contra os do conselho que no foram do parecer de Nuno lvares em Alenquer. Pois assim ser, para bem de todos concordou o Santarm. Foi logo dali ter com o Rei, e deu lhe o recado como fora combinado. D. Joo I tambm tinha sangue assomadio, mas era, principalmente, um chefe e um homem poltico admiravelmente perspicaz; sabia dominar se para dominar os homens seus cooperadores; compreendia nitidamente a gravidade dos perigos em que estava o pas e no era alma vangloriosa e pequena para sacrificar s suas prospias de soberania e de mando supremo, nem sequer a longa e carinhosa amizade aquele seu irmo de armas, a maior figura pica em volta do seu trono, quanto mais os sagrados interesses da nao. Ouviu o recado sem que uma sombra sequer de despeito lhe turbasse o rosto. Num alarde de jbilo, que era o disfarce teatral com que podia desvanecer no esprito dos seus conselheiros a m impresso daquele recado insubmisso, apesar de atenuado pelo Santarm, logo incumbiu a Ferno lvares de Almeida a misso de ir imediatamente ao encontro do Condestvel, para instar com ele pelo regresso a Abrantes ou para o guardar em tomar, onde se lhe iria reunir a fim de se combinar a batalha, em que ambos agora estavam empenhados. O jovem batalhador recebeu o recado de nimo prazenteiro e mandou responder a El Rei que ia partir sem demora para tomar, onde formaria a vanguarda da hoste real, cobrindo-lhe a marcha, e ali jubilosamente o guardaria. Estava satisfeito o seu empenho de chefe militar e de paladino aventuroso, e de algum modo as suas vaidades de homem poltico, porque as tinha de rija intransigncia, apesar de todas as suas raras virtudes e excecionais qualidades, assim ficavam altivamente desagravadas. Para Abrantes no iria. Era ele quem tinha de vencer naquela batalha poltica. Convencera-se de que alguns do conselho de estado lhe contrariavam os planos com o propsito de o apoucar em discusses em que ele era autoridade primacial pela categoria dos seus feitos, e doera-lhe profundamente que o Rei, seu amigo e o seu devedor, se inclinasse para esses de muitas palavras e pouqussimas obras. Chegou mesmo a supor-se ingratamente deprimido junto do trono. Sabia-lhe agora bem aquela vitria. El-Rei que fosse agora ter com ele, arrastando consigo os fidalgos e os doutores do seu conselho, principalmente o raposo bolonhs, como ele chamava ao Dr. Joo das Regras, formado na Universidade de Bolonha, como j sabemos. Dar-se-ia enfim a batalha contra a qual eles tinham votado em Alenquer, e era ele, na frente, quem os puxava a todos para o lance que podia ser decisivo. No dia seguinte aquele em que Ferno lvares de Almeida lhe trouxe a resposta do Condestvel, marchava El-Rei com a sua hoste para tomar. Tinha-se espalhado que iam ao encontro de Nuno lvares e to dos sentiram em si uma nova alma, sem que lhes importasse indagar se eram mais ou menos de trs mil homens de guerra esses que o vencedor dos Atoleiros tinha consigo. E os da Ala dos Namorados, esses ento iam radiantes. Com aquele chefe jovem, arrojado, devaneador, todo embevecido nas lendas novelescas da Tvola Redonda e do Santo Graal, paladino que sabia vencer batalhas, mas tambm idealista para sonhar milagres de esforo, com ele que os rapazes se tinham de entender bem e no haveria voto denodado que esse Condestvel de vinte e cinco anos lhes no autorizasse.
CAPTULO VI NOTCIAS DE LONGE
Logo no dia imediato aquele em que as tropas reais se juntaram em tomar com as do Condestvel determinou sua real senhoria que nas vrzeas se fizesse alardo de todas as foras da hoste. Era uma espcie de revista ou parada geral, como hoje se diria. D. Joo e Nuno lvares queriam avaliar por si prprios as foras totais com que podiam contar e agrupar as grandes unidades de batalha, coisa embaraosa e demorada com a ttica rudimentar daqueles tempos e com a frouxa coeso e difcil mobilidade de tropas coletcias, reunidas pressa aos primeiros rebates da guerra. Foram-se juntando as tropas longamente por aquelas ridentes vrzeas que tem o valezito do Nabo. O Condestvel, o Marechal, o prprio Rei as iam guiando na formatura e na marcha daqueles tempos, que hoje nos havia de parecer tumulturia e de esmorecedora irregularidade. Meteu-se em ordem a primeira linha de batalha ou primeiro que devia constituir a vanguarda. Eram seiscentos homens de lanas, a cavalo, tendo por armas defensivas bacinetes de camal, nem iodos eles com viseira ou cara, cotas e loudis, arneses de pernas, braais e manoplas.(*) Alguns ainda traziam as antigas solhas (lminas de ferro), e os fraldes de malha de ao que de fendiam o ventre e as coxas.
[(*)Luvas feitas de pequenas laminas de ferro articuladas]
As suas armas ofensivas; alm da lana e da espada de folha estreita e retilnea como um estoque, eram a hacha (*) e o machado com que decepavam a peonagem ou golpeavam os cavaleiros pelas junturas das diferentes peas da armadura.
[(*) A hacha era um machado de combate com o cabo revestido de ferro e uma larga e grossa folha de ao com o gume em forma de meia lua. Tambm davam o nome de hacha a umas pesadas maas de ferro ou de chumbo com uma bola de ferro ou de bronze na extremidade para derrubar e amolgar as armaduras.]
Nesta primeira linha se enfileiravam, distanciados dos lanceiros de plebeia origem, os fidalgos e os escudeiros nobres com os seus balses e signas herldicas. Atrs deles, em fileiras, numa coluna irregular, os pajens e simples escudeiros dos cavaleiros nobres e a peonagem com os besteiros e frecheiros na frente. Era a infantaria daquela poca com as suas ligeiras armas defensivas, o bacinete sem camal, a solha e a espaldeira, que nem todos tinham. Na frente desta coluna, a que os velhos guerreiros chamariam ainda dianteira, estavam os trombeteiros. Com o Condestvel ia a cavalo o escudeiro que lhe levava erguida a devota bandeira, seguido de outros escudeiros em corcis engalanados, como escolta. Sendo regra que a cada lana, como unidade de agrupamento, correspondessem trs ou quatro homens de guerra, aquela coluna teria menos de trs mil combatentes. Na direita e um pouco retaguarda, a Ala dos Namorados com a sua bandeira verde. frente Mem Rodrigues de Vasconcelos. Duzentas lanas apenas. Na ala esquerda, comandada por Anto Vasques de Almada, havia cem de lanas, incluindo vinte e cinco cavaleiros ingleses e alguns voluntrios estrangeiros, entre os quais Joo de Monteferrat, e pouco mais de um cento de frecheiros de Inglaterra. A segunda linha, destinada ao comando direto do Rei e a formar a reserva na primeira batalha a travar, tinha seiscentas e cinquenta lanas e dois mil e quatrocentos homens de peonagem, incluindo os besteiros. O seu efetivo teria de aumentar, em homens de lana principalmente, logo que chegasse o reforo esperado da Beira, provavelmente pequeno por causa da passagem assoladora do exrcito invasor e das previses de uma segunda invaso pelas tropas do Prncipe de Navarra. Na frente daquela segunda linha, como porta-bandeira, um dos Cunhas da Beira, e Lopo Vasques, a substituir o irmo ausente, Gil Vasques, no cargo de alferes-mor, que era nas batalhas antigas quem levava a bandeira real, e com ele a escolta de honra dos escudeiros del-rei. retaguarda dos besteiros e da peonagem de ventres ao sol, como escreveu Ferno Lopes, dos rotos para quem no tinham chegado os peitos de ferro e os bacinetes, concentrara-se rumorosa a multido dos no combatentes, pajens, serventurios, cavalarios, azeineis, carreiros, magarefes e outra gente necessria aos servios do exrcito. Os aventureiros curiosos e as mulheres da soldadesca, algumas delas batalhadoras do cerco de Lisboa, na hoste da tia Lourena, ficaram a larga distncia, por detrs dos muros e por entre os olivedos ou pelas ribanceiras a cavaleiro da Vrzea, admirando o espetculo. O povolu da vila e das aldeias vizinhas, esse amontoava-se para os lados da ponte do Nabo e por toda a encosta do velho castelo dos Templrios, onde tremulava a bandeira dos freires da ordem de cristo, brilhantes sucessores dos Cavaleiros do Templo. Naquela paisagem soberanamente linda e sob aquele sol de agosto, imenso candelabro de oiro numa apoteose de sonho, esse alardo comovedor de seis mil e quatrocentos homens de guerra, aquela maior fora com que podia contar uma nao pequena que no queria morrer! E aquela hora talvez, l pelos campos de Leiria, outro belo trecho da paisagem portuguesa, a hoste invasora estaria tambm fazendo alardo faustuoso do seu poder cinco vezes maior.
* * *
Nos agrupamentos das mulheres o corao falava com enternecido fervor e os olhos tinham neblinas de lgrimas, daquelas neblinas em que as piores vises se engrandecem e os mais belos sonhos se amortalham. Coitados deles, quando forem na batalha com esses malditos de Castela, que trazem consigo o poder do mundo! E as mes, as pobrezinhas! Quem sabe a conta das que nunca mais ho de ver os filhos?! lembrou uma velhita, figura esguia de marfim amarelecido com o seu toucado de neve na brancura dos cabelos. Deixai que as noivas, acudiu enternecidamente uma recm-casada, ainda nova deixai que essas s vezes choram com tamanha dor, que nem a das mes talvez seja maior! Se Nossa Senhora no pedir por eles disse outra e Deus no der a cada um a alma de quatro ou cinco, ai, mulheres, que no sei ento o que ser deles e de ns! E de toda a nossa terra nas mos desses excomungados que int tm outro Papa diferente do nosso, ou o demo em figura de Papa! O Senhor me perdoe, se nisto peco! acrescentou benzendo-se piedosamente, de olhos postos na igreja do Senhor Jesus dos Freires. E pelos modos veem por a fora como lobos danados esses malditos! J me contaram que os negregados trazem consigo umas dornas de ferro que deitam fogo!... O fogo do inferno com que o demo, seu patrono, os h de estorricar, m peste d com eles! E que esses tais engenhos de Belab atiram de si tamanhos pedregulhos, que por cada vez podem matar vinte ou trinta criaturas! Credo, Me santssima! No o digais a quem tal no souber. Pois olhai que eles j o sabem e ainda nenhum bebeu o flego espavorido! Mas dizei-me c, mulher de Deus: s faro tal matana dessa pobre gente que no anda toda vestidas de ferro? Contaram-me que mesmo aos cavaleiros, todos dentro do seu casulo de ferro, os britam e pem em migalhas como se os arneses fossem de vidro! Divino Jesus! Deus tal no havia de consentir! E pensar a gente que esse inferna daqueles almas do diabo, num abrir e fechar de olhos nos pode esmagar a flor da nossa hoste aquele galhardo Condestabre, que parece o anjo da guarda da nossa terra, o Senhor me perdoe, se nisto lhe fao ofensa!... E mais aquela gente jovem da Ala dos Namorados, um regalo dos olhos para a gente os ver! Oh mulheres, mas se Deus quisesse que eles vencessem, todos eles, os Namorados e os rtos, os que tm braso e os que no da nossa gente?!... Tamanha glria que nem Portugal havia do caber em si de envaidado! Pois isso mesmo havemos de pedir a Nossa Senhora, ns lis mulheres, e fazer-lhe os votos dos nossos coraes com tamanha devoo e tanta penitncia, que os Chamorros ho de vencer os outros. Olhai! Olhai! Avisaram da frente da multido. Tangem as trombetas e vo a desfazer o alardo. Efetivamente a formatura desfazia-se. A parada acabara. Enquanto os rapazes da ala gentil fazem caracolar os corcis pela vrzea fora, to despreocupadamente como se estivessem apenas nas vsperas de um torneio ou de um jogo de canas na Correiloura de Lisboa, o Rei, de parte com Nuno lvares, dizia-lhe baixo: Nuno, seis mil e quatrocentos somente para batalhar! E com algum socorro que nos chegue da Beira, ainda menos talvez de *te mil! Muito espero em Deus, mas ainda que Ele seja por ns, muito lhe havemos ns de merecer pelo nosso esforo para que Portugal se no perca! Rei e amigo, creio que assim h de ser, tal como se cada um de ns trouxesse em si as almas de quantos, em mais de dois sculos, ergueram Portugal e morreram por ele. E os seus olhos azuis de sonhador, incendidos numa grande f patritica, toda envolvida no misticismo da sua f catlica, co mo que voavam da bandeira castel dos freires cavaleiros para a bandeira real de D. Joo e vinham enfim pousar o voo no seu pendo constelado de imagens como um relicrio.
* * *
Pouco depois do alardo, deliberou Nuno lvares mandar sair do arraial um escudeiro da sua confiana e de provado arrojo, para ir com quatro homens de armas de cavalaria ligeira (ginetes) at s proximidades de Leiria observar a hoste de Castela, avaliar-lhe os efetivos, e notar como assentavam arraial e o tinham vigiado. Uma patrulha de esclarecedores se diria hoje. Mas o escudeiro ainda ia com outra misso. Levava a el-rei de Castela um recado escrito, em que o Condestvel intimava o monarca invasor a retirar de Portugal sob pena de lhe darem batalha, em que o juzo de Deus tivesse de decidir pela boa ou m fortuna de cada um. Com as aparncias de uma intimao ingenuamente pueril e quase risvel, e com o seu feitio tradicionalista de cartel de desafio, como nos grandes tempos da cavalaria aventurosa, aquele recado escrito no era essencialmente uma fanfarronada romanesca, mas um pretexto ardiloso para o escudeiro poder entrar no arraial inimigo ou justificar a sua aproximao dele, protegido pelas pragmticas guerreiras do tempo. D. Nuno bem sabia que o rei no ia desistir do seu propsito diante de uma alegao de meia dzia de palavras e de uma intil ameaa em trs linhas de um pergaminho. Para batalhar e decidir a contenda a ferro e fogo que ele juntara o maior poder militar das Espanhas e atravessara a Beira at Coimbra e de l para Leiria como um tufo esmagador. Dias depois voltou o escudeiro com a resposta do rei de Castela. Resposta escrita com alegaes em favor da sua causa e uma arrogante promessa de entregar justia de Deus o seu pleito e decidi-lo na batalha que vinha procurar. Extraordinrio prestgio tinha Nuno lvares nas Espanhas para que lhe desse a honra insigne de uma resposta com alegaes e promessas aquele poderoso monarca, aliado do rei de Frana! Demais a mais, no tocante s suas prospias e aos seus interesses polticos, de nenhum portugus tinha el-rei de Castela mais humilhadoras razes de queixa do que daquele cavaleiro bastar do, que fora e era o brao direito do Mestre de Avis, o seu amigo e partidrio de maior valia, a lana quase miraculosa daquele Portugal insubmisso, que j lhe vencera duas batalhas. O escudeiro chegou com a resposta, precisamente quando a hoste dispersava de uma segunda revista de parada. E com o recado do rei estrangeiro lhe trazia tambm informaes graves, que no queria confiar-lhes diante de outras pessoas. Pela sua parte o Condestvel, assim que o viu, logo se afastou de todos os seus e foi ter com ele para o ouvir. O recado escrito no o podia surpreender. Com aquela recusa contava ele e s lhe causou admirao que viesse num tom quase conciliador, expondo os seus direitos de herdeiro e resumindo promessas de monarca generoso para galardoar Nuno lvares se ele abandonasse a causa de Portugal. As informaes vocais que eram acabrunhadoras, e seriam de desalento para qualquer outro homem de menos arrojado ani mo e de menos sonhadora f. Contou-lhe o escudeiro que vira a disperso de um alardo da hoste real, e os cavaleiros e a peonagem enchiam os campos de Leiria! Seriam bem mais de trinta mil homens! As bagagens atravancavam os arredores e, com elas, ainda uns dez ou doze mil homens que no entravam na formao da hoste, mas tambm vinham armados e ajudariam matana final, mal que fosse por eles a vitria. Calculava um total de quarenta e cinco a quarenta e seis mil homens a todo o exrcito. D. Nuno fingiu no acreditar, mas logo lhe foi impondo severamente a obrigao de no repetir no arraial aquela avaliao, que tinha por errada e causaria desalentos pobre peonagem ignorante, sempre inclinada a exagerar todos os perigos. O escudeiro no deixou sem defesa os seus crditos de observador perspicaz e logo lhe props uma prova abonatria do seu clculo. S para ns ambos. Dizei. No olival de alm da ponte, os companheiros que daqui levei guardam a ocasio de vos apresentar certo escudeiro portugus que estava em Leiria com o amo, fidalgo nosso bandeado por Castela. Fugiu de l? Senhor, no. Foi pelos meus companheiros feito prisioneiro numa aldeiazita dos montes de Leiria, onde o pilharam. Talvez porque ali andasse caa de amores ou porque para ali o levasse um intento de rapina, pois que a hoste castelhana tudo por aqueles stios tem posto a saque. E da? Esse prisioneiro esteve muitos meses em Castela, veio de l com o rei; tudo viu e sabe, e tudo vos dir para que lhe perdoem. Est bem. Vou eu ouvi-lo, eu sozinho, e olhai bem que ningum da vossa boca o venha a saber. Senhor Condestvel, pela vossa bandeira e pela minha honra vos juro. D. Nuno foi sozinho direito ao olival e l lhe apresentaram o prisioneiro aqueles dos ginetes que tinham acompanhado o seu enviado ao rei de Castela. Sujeitou-o logo a um breve interrogatrio, a que o prisioneiro respondeu desassombradamente. Que gente de armas e peonagem de guerra traz el-rei de Castela? Mais de trinta e trs mil homens, pois se lhe juntaram aos que trouxe de Castela os muitos que vieram das naus e gals que esto em frente de Lisboa e gente de Alenquer e Santarm. Ento menos do que eu supunha! E mais de doze mil que no entram na hoste, mas entraro na chacina como tm entrado na rapinagem. Boa cavalaria fidalga, os maiores senhores das Espanhas e muitos de Frana. Lanas umas oito mil. De cavalaria ligeira de ginetes mais de dois mil castelhana e mourisca. De Frana quantos supondes? Dois mil de Gasgonha e do Bearns, ouvi que eram. E uns engenhos de fogo que dizem trazer el-rei; pudestes v-los? Senhor, vi. So dezasseis bisarmas de ferro, de boca escancarada como os balseiros do Alentejo. As zorras, em que vem cada trom (*) com o seu estrado, estafam trs juntas de bois, as rodas abrem regos fundos nos caminhos, e s a quatro juntas se arrancam das ladeiras!
[(*) Os raros exemplares dos primeiros trons que se encontram nos museus militares tm o aspeto de morteiros sem munhes.]
Melhor, melhor assim! Fico sabendo. So aventesmas de grande ronca e pequeno dano. Sejam, porm, como forem, sob pena de morte vos probo que de tal faleis com algum ou digais o nmero dos nossos inimigos que esto em Leiria. Vede bem: sois um prisioneiro; tenho sobre vs direito de vida ou de morte e, alm do mais, porque em rapinas de povoados foi que vos prenderam, por tal vos posso mandar decepar as mos. Senhor, o que vs mandardes que eu diga respondeu enfiado e num grande quebramento de nimo. Do que fiz estou arrependido e contrito. Pois boa paga vos darei, em vez da morte por ladro de povoados, se em presena da sua real senhoria, o senhor rei de Portugal, e de todos os seus cavaleiros fidalgos e conselheiros disserdes o contrrio do que a mim me contastes. Mandai me o que quereis que eu diga. Que a hoste del-rei de Castela muito mais pequena do que ns aqui julgamos, e que a sua gente vem mal unida e de m vontade e, pelo que tendes visto aqui, mais valero dez de c do que trinta daquela gente. Senhor D. Nuno, tudo isso que mandais o hei de eu dizer firmemente. Ficai sabendo que deste modo bom servio de resgate ser o vosso para esta terra de Portugal, que tnheis atraioado. Senhor Condestvel, por acompanhar meu amo foi que eu tal fiz, assim como fizeram tantos outros escudeiros e at os dos vossos ilustres irmos, o senhor D. Pedro, que ora mestre da ordem de Calatrava, e o senhor D. Diogo lvares Pereira. Irmos pela minha me; agora, porm, como se fossem inimigos meus, porque ao servio de outra causa e de outra terra puseram o corao e as lanas disse-lhe afogueado. Segui-me. Foi dali com ele presena del-rei, que estava na grande vrzea rodeado pelos do seu conselho, incluindo os doutores, e por todos os principais cavaleiros fidalgos que tinham assistido ao alardo daquele dia. D. Joo gracejava. Vede que at os nossos preclaros doutores em leis esto de nimo feito para trocar a gorra pelo bacinete, a loba negra pelo arns, a pena por uma lana. Senhor, este vosso reino to poucos tem para o defenderem do tamanho poder que sobre ele veio, respondeu-lhe Joo das Regras sorrindo-que at os que estudaram para combater com a lngua tm agora de lutar com a lana. Todos festejaram muito o dito do doutor-chanceler. Foi ento que o Condestvel chegou com o escudeiro aprisionado nos arrabaldes de Leiria. O pobre diabo disse a El-Rei tudo o que D. Nuno lhe indicara, mas tanto quis ser agradvel a quem podia dispor-lhe da vida, que ps na mentira de boa inteno uma grande sombra de inverosimilhana, afirmando que mais valeriam cinquenta daqueles, que de toda a sua alma estavam ali para defender Portugal, do que mil dos que de m vontade trazia consigo o rei de Castela. O primeiro a sorrir, num sorriso incrdulo que fez turbar o Condestvel, foi o astuto Joo das Regras, o raposo bolonhs como Nuno lvares lhe chamava. Tambm El Rei no podia acreditar; mas naquela conjuntura era de boa poltica e de til estratgia fingir que acreditava. A verso correria de boca em boca e daria maiores alentos aos quatro mil e tantos da arraia combatente, fora principal da sua pequenssima hoste. Depois o interrogou D. Joo acerca das razes porque se fora bandear com os de Castela. O escudeiro repetiu a alegao que fizera ao Condestvel e disse o nome do amo a quem servia. Ao ouvi-lo, El-Rei procurou com o olhar os da Ala dos Namorados e notou que Ruy de Vasconcelos mudara de cor. J o Vasco Eanes, o Magrio, e outros que estavam no segredo dos amores do filho de D. Dulce, tinham olhado para ele. A esse cavaleiro servia continuou o escudeiro e mais ao sobrinho que vem com ele, um a quem l chamam o cavaleiro mudo, porque no cerco de Lisboa de tal modo o feriram na boca e o ferimento se lhe agravou, que tiveram os fsicos de lhe cortar um pedao da lngua, para que da podrido dela lhe no viesse a morte. Entre os Namorados dezenas de vozes murmuraram o nome de Anto Gonalves, o rival e odiento inimigo de Ruy de Vasconcelos. Era agora diversa a perturbao do namorado de Magdalena, mas era tambm imensamente maior. Ao pai daquela noiva de sonho talvez no tivesse nimo de o matar, ainda que com ele se defrontasse peito a peito, mas ao rival odioso, a esse lhe no daria quartel. Ainda que ele me vena, dizia consigo j no terei o nojo Ir morrer ouvindo daquela boca o nome adorado de Madalena! El-Rei mandou retirar o informador, e Ruy foi dali pedir licena ao Condestvel para interrogar o escudeiro aprisionado acerca do pai daquela que tivera por noiva, e do outro a quem chamavam o cavaleiro-mudo. D. Nuno concedeu-lha em palavras afetuosas de amigo e admirador.
* * *
Apartado com o escudeiro para uma alamedazita, muito avizinhada do rio, Ruy de Vasconcelos fizera-lhe vrias perguntas a respeito do pai de Magdalena e do fidalgo Anto Gonalves. Estiveram ento para casar essa menina com o cavaleiro-mudo? E em Torres ou em Santarm os teria mandado casar el-rei, a pedidos do meu amo e senhor, assim como se fosse casamento em artigos de morte, se no lho impedissem os pedidos da Rainha, que muito se afeioara a D. Magdalena e tanto lhe quer como se fosse sua irm. E depois em Castela? Foi ento que o ferimento do senhor Anto Gonalves se agravou, e contaram-me que tantas foram os pedidos da Rainha, que el-rei de Castela deliberou espaar o casamento para mais afortunada ocasio. O fidalgo melhorou a poder de tempo, mas, pelos modos, tantas eram as lgrimas e as splicas da pobre menina, que a senhora D. Beatriz ainda obteve do seu marido o adiamento do noivado para quando voltassem com esta guerra decidida. Ouvi que O. Joo I de Castela prometera ao meu amo o condado de Ourem e ao senhor Anto Gonalves outro condado, e todos os bens de uma famlia nobre de c, em paga de dote para o seu noivado. No vos disseram que famlia? S me contaram que era uma famlia que tem pao aqui em Lisboa e grandes terras e coutos na comarca de entre Minho e Douro. Escudeiro, adivinhei eu qual . Mas por Deus, que hei de tolher o dote do noivado ao mudo! E por agradecimento do favor prometido foi que Anto Gonalves fez por escrito um voto a el-rei de Castela. Qual? O de ir pr-lhe aos ps a coroa de rei de Avis, que assim por escrnio chamam em Castela ao senhor rei de Portugal, se ele consigo a trouxesse para a batalha real que tivessem de lutar. Esse voto lho hei de eu torcer. Mas, dizei me c: E verdade que el-rei de Castela traz consigo o antigo cetro de Castela? A o disseram j. A pura verdade. Com os meus olhos o vi. todo de ouro e cristal. E dizem que ainda mais vale e de maior apreo que um grande oratrio de prata lavrada e de lindas imagens que o rei traz para as suas devoes. Mas Anto Gonalves ainda fez outro voto escrito, que foi lido a el-rei, porm desse vos no posso eu falar. No podeis porqu?! Porque contende com uma informao que eu jurei no daria a ningum. Juramento para ele? No, senhor cavaleiro. Juramento j hoje feito. O senhor Condestvel autorizou-me a perguntar-vos quanto me interessasse, e s me pediu que, pela minha honra, lhe afirmasse no dizer qualquer coisa relativa hoste de Castela, que das Vossas informaes pudesse colher. Por minha honra lho afiancei, e ele ento me deu sobre vs direitos iguais aos seus. Mas foi a ele, senhor cavaleiro, que eu fiz o juramento! A ele! Pois seja como for. Pelo vosso juramento vos dou o meu de guardar segredo acerca do que me disserdes da hoste de Castela. Pelo meu nome vos juro e por esta jura vos defenderei, seja contra quem for, e vos prometo o prmio de dez dobras de ouro.
Era tentador para um escudeiro que no trazia consigo um ceitil e se via assim dispensado de guardar para aquele amigo do Condestvel a parte mnima do segredo que jurara manter. Senhor cavaleiro, pelo vosso juramento e por saber quem sois, vos direi o segundo voto de Anto Gonalves. Dizei sem nenhum receio. Em Ciudad-Rodrigo se soube que havia c uma companhia de cavaleiros namorados com a sua bandeira. J quando foi do cerco de Lisboa se falava nos arraiais castelhanos do arrojo desses namorados, alguns dos quais tinham ousado sair ao encontro da hoste de Castela em retirada. Ao meu amo ouvi dizer uma vez que esses jovens batalhadores em tempo tinham aclamado pela sua rainha de sonho, por ser Tambm rainha de belas, aquela dama e senhora minha D. Magdalena, bondosa como as santas e linda como as estrelas. Assim foi. E sem mentira vos digo que no ser somente rainha das belas de Portugal, pois que em Castela. E mais tm fama as beldades de Toledo e Sevilha, nenhuma outra vi de mais encantos! O voto de Anto Gonalves? Dizei-mo. A el-rei prometeu que tomaria sua conta os engenhos novos de fogo com que eles veem mais envaidados e seguros de vencer... J sei: os trons. Esses, para com eles espedaar os franges loucos da tal hoste dos Namorados. Perdoai, se vs sois desses. Sou; dizei mais. Que ele prprio mandaria deitar fogo aos trons, e aos Namorados que ficassem de p os iria derrubar com o seu esquadro e tomar-lhes a bandeira para el-rei... Senhor cavaleiro, o mais me custa a mim dizer-vo-lo, e muito vos peo que de tal me desobrigueis. Seja o que for, dizei! instou numa turbao de clera. Receio ofender-vos! Quero; mando eu que o digais. Pois, por cumprir vosso mandado, vos direi. Que a bandeira dos Namorados seria para el-rei mandar pr porta da sua cmara real em guisa de surro em que limpasse os ps. Escudeiro, preciosa informao a vossa! rouquejou, a reprimir as ondas de dio em que o corao parecia afogar-se lhe. Antes da noite havereis na vossas mos o dobro das moedas que vos prometi. Talvez que as vossas revelaes de algum modo concorram para que el rei de Castela perca a herana e o vilanaz de Anto Gonalves tenha de engolir os votos que fez e morrer por eles! Escudeiro, connosco heis de ir ao campo da primeira batalha para verdes quem leva a bandeira dos Namorados e que homens eles so para defender a coroa do rei de Avis. Vinte dobras de oiro pela notcia dos votos, e obrigado.
* * *
Desconfiado das informaes do prisioneiro acerca dos castelhanos, D. Joo I muito peia calada imitou o Condestvel, e tambm mandou com recado seu ao rei de Castela um emissrio da sua confiana, o escudeiro Gonalo Anes Peixoto. Recado em certos pontos semelhante ao de D. Nuno e com o mesmo fim. O monarca inimigo respondeu que lhe requeria, por Deus e pelo apstolo S. Tiago, lhe no pusesse mais estorvos ao seu direito de herdeiro; mas que, se era preciso batalhar para defender sua causa, muito prazer teria em ir busca-lo para lhe dar batalha. O Peixoto voltou logo com uma resposta, que a ningum podia causar estranheza; mas trouxe tambm informaes da sua prpria observao, que absolutamente desmentiam a peta otimista inventada pelo Condestvel para que o escudeiro aprisionado a tornasse pblica. Eram esmorecedores os pormenores contados pelo Peixoto em audincia confidencial com o Rei. Vinham com os quarenta e tantos mil homens da hoste os mais poderosos senhores e altivos fidalgos da Espanha, da Gasconha e do Bearne e at um cavaleiro velho, que era camareiro do rei de Frana e j tinha assistido a muitas batalhas, sendo as principais contra os ingleses. O Rei imps-lhe absoluto segredo, e logo deu ordem para a sua hoste seguir na madrugada do dia seguinte direita a Ourem, levando a disposio com que devia entrar em batalha. As foras do Condestvel formando o corpo avanado, as alas como flanqueadores, a coluna do Rei como corpo principal.
CAPTULO VII O VOTO DOS NAMORADOS
No sbado, 12 daquele ms de agosto, a hoste portuguesa levantou do seu acampamento, entre a Atouguia das Cabras e Ourem, e marchou para Porto de Ms. Assim se ia aproximando do exrcito de Castela, j em Leiria. Rejeitara-se a defensiva-passiva, como se diz na moderna tecnologia militar, e o minsculo exrcito portugus, que no daria hoje para duas brigadas em mobilizao, l ia ao encontro dos invasores para se lhes atravessar no caminho de Lisboa. O domingo foi de repouso na pequena vila, muito aconchegada ao seu lindo castelo mouro, nas abas da serra do Alqueido, e muito ufana pelas tradies picas do seu primeiro alcaide, aquele D. Fuas Roupinho, envolto em lendas, guerreiro e falcoeiro insigne, que mereceu um famoso milagre a Nossa Senhora da Nazar; batalhador-audaz e almirante de gals, que deu nos mouros a primeira sova naval que lhe deram portugueses com a primeira esquadra que teve Portugal. A marcha da vspera tinha sido de cinco extensas lguas pelo caminho spero das montanhas e sob a ao de um calor asfixiante, as cabeas esbraseadas pelos bacinetes, a infantaria menos, miservel acabrunhada pelas solhas revestidas de lminas de ferro* a escaldarem batidas pelo sol. Na madrugada daquele domingo houve parada geral, como hoje se diria, para a missa da hoste. Levantava-se o sol por cima das cumeadas da serrania, quando o celebrante levantava a Hstia nas mos erguidas para a imagem de um cristo agonizante. Mal a missa acabou, o Condestvel ps-se frente de um troo de cem lanas e foi para os lados de Leiria descoberta. Era uma avanada de explorao e reconhecimento, para ver se o inimigo j tinha sado do seu arraial no vale entre os riozitos Liz e Lena, quase reduzidos a ribeiros naquelas alturas de agosto. Aquelas cem lanas tinham sido tiradas exclusivamente das foras da vanguarda; da primeira linha de batalha tinham ficado intactas as duas alas. Num alvoroo de impacincias e nos devaneios prprios da sua romanesca juventude, que sabia de cr as trovas amorosas da Provena e as epopeias e novelas contadas aos seres, os Namorados conversavam em grupos, acaloradamente, no terreiro da vila. Alguns deles, trovadores tambm, diziam canes votadas s suas damas e sua terra. Das adufas, recatadamente, ou dos degraus de um alto cruzeiro antigo, aconchegadas umas s outras como bando de pombas assustadias, as raparigas no despegavam os olhos deles. Era aquela a fina flor da juventude cavaleirosa do pequeno Portugal, ainda numa crise de morte, da qual s poderiam salva-lo, por um milagre de esforo e de boa fortuna, os seis mil e tantos companheiros daqueles rapazes. Olhai que so bonitas estas raparigas da alcaidaria que foi de D. Fuas disse um tal Lobeira, ainda simples escudeiro. Eu j fiz com que duas fugissem acudiu o Magrio no seu feitio de gracejador. Foi olhar para elas! Fugiram como ovelhas tresmalhadas que tivessem visto luzir o olhar de um lobo escanzelado! Haveis de confessar que fao uma triste figura nesta companhia de namorados! Eu bem quero honrar a ala, mas so elas que me no querem ajudar. Esperai pela dama de Inglaterra, que por sina vossa heis de amar gracejou vasco Eanes. Alto l, dom Sanso algarvio! A sina que a feiticeira de Abrantes me adivinhou ou leu na palma das mos, muito se conforma com o vaticnio do astrlogo judeu do Porto, porm no foi bem isso que dizeis. Que seria amado por certa dama inglesa, eis a sina, e isto no quer dizer que eu tambm lhe tenha amor. Bem percebeis que, se ela for feia como eu, no sendo destino meu ama-la, que me importar que beba os ares por mim? Dir-lhe-ei que no h artigo do tratado de aliana e boa amizade com a Inglaterra que obrigue os portugueses feios como eu a amar as inglesas feias como ela. Riram. Soubesse eu que os castelhanos traziam damas que nos vissem, e aqui vos juro que j no ia para eles seno de baciente de cara, para elas no verem a outra que Deus me deu. Mais estrdulas risadas. Se at estou com receio de que El-Rei venha a casar! Essa agora! Receio de qu? De que me nomeie estafermo-mor do pao para afastar os requestadores das cuvilheiras e meter medo aos senhores infantes emperriados. Maior galhofa e mais desafogada risota. E quem podia adivinhar naquela hora quantos deles tornariam a rir assim? Olhai, a vem o nosso Ruy disse Vasco Eanes. Esteve a falar de parte com Mem Rodrigues... O sisudo tutor dos Namorados interrompeu o Magrio de brincadeira. Talvez nos venha dar alguma boa nova. Ruy de Vasconcelos, disse lvaro Coutinho, indo para ele aqui se julga que alguma nova trazeis para ns. E tanto julgaram certo, que foi quase adivinhar respondeu Ruy. Estive a pedir a Mem Rodrigues me desse licena pura vos propor um voto, que tenha de ser de toda a ala e a ningum mais se dir. E ele? Deu licena. Sem saber que voto era?! Era dever dizer-lho e com promessa de segredo lho disse. Pois ento quando e onde quiserdes vos ouviremos propor o voto, que eu por mim j tomo e juro, sem saber o que disse o Magrio. Aqui no pode ser. Daqui a meia hora ser, ali num pinhal que fica na baixa da serra. Ningum mais nos poder ouvir. L estaremos todos. Todos. Mas convm que vamos aos poucos, para no aguar curiosidades. Assim se far. E agora vos posso dar umas notcias de longe e de diversa origem. Uma a ouvi a Mem Rodrigues, que lha trouxe de Lisboa um mensageiro da Casa dos Vinte e Quatro, chegado esta madrugada com uma carta para El-Rei. A outra a soube eu h pouco daquele escudeiro que foi aprisionado nos arrabaldes de Leiria. E so de segredo? No; pode toda a gente sabe-las. Pois que assim , dizei-as. Sabei que o povo de Lisboa se juntou no Rocio, em frente dos paos da cmara, e ali resolveu que se fizessem preces e penitencias para que Deus nos d a vitria. Parece que os letrados e telogos muito sensatamente aproveitaram aquela devoo contrita para aconselhar a gente menos esclarecida a que deixasse costumes antigos de m origem ou de mau fim, e que este seria o preito mais bem aceito no cu. E o povo, coitado, na sua ansia de que lhe no matem Portugal e no desampare Deus esta pequena hoste, que toda a sua maior fora, tudo prometeu cumprir. Pois ento ns ajudaremos o povo e faremos tambm os nossos votos disse calorosamente Vasco Eanes. Mas agora sabei que tambm em Castela se implora o auxlio de Deus, embora seja inqua a sua causa e tamanho o poder com que entraram c para a sustentar! Pois no querer Deus ser por eles, bem que l tenham consigo a Santiago, que grande pena foi ter nascido castelo disse o Magrio entre grave e jocoso. Mas escutai o resto do que me contou o escudeiro. Olhai que de lstima e um pouco me toca pela porta. Em Avila, as donas e donzelas da corte, sob a vigilncia do Arcebispo de Toledo, so obrigadas a rezar dia e noite, revezando se, para que Deus d boa fortuna hoste invasora! Tenho f que Deus far ouvidos de mercador, e ns decidiremos a contenda pela nossa conta e risco. Mas o que para lamentar que fosse uma infanta de Portugal quem mandasse fazer aquelas preces e aquelas rezas contra a sua terra! Rainha de Castela, talvez entenda que assim procede bem, e que, se os seus vassalos vencessem, ns, os seus irmos de raa, ficaramos resignados, e Portugal, o solar grande da herana, ficaria sendo o que dantes era! Nisso sair ela me comentou Lobeira. Pois heis de ver que perdem as oraes e a cera observou o Magrio com um certo ar delicioso de fanfarro. Mas olhai c, Ruy de Vasconcelos, disse Vasco Eanes j que de uma portuguesa e rainha se falou, perdoai que vos pergunte se a vossa dama D. Magdalena ainda estar com a senhora infanta D. Beatriz, como ouvi, e se teremos o desgosto de saber que essa rainha das belas, que os primeiros Namorados aclamaram, tambm obrigada a orar em Avila pela derrota da nossa ala e pela perda e vergonha de Portugal. Tal, felizmente, no suceder, e disso vos ia falar. Em Lisboa, no prprio dia em que fui para o arraial de Alenquer, me foi entregue uma carta reservada da minha dama. Dizia-me que por mim e por esta nossa terra morreria fiel e que neste voto da sua alma fervorosamente pediu Rainha, sua amiga e protetora, lhe fizesse o favor de a deixar recolher a um mosteiro, que a sua real senhoria escolhesse e tivesse por seguro, e ali guardaria que a vontade del-rei e do pai misericordiosamente se mudasse no seu favor, pois tinha noivo escolhido e outro no quereria, por maior que fosse poder contra ela empenhado. E a Rainha? perguntou Vasco Eanes. Prometeu mandai a para um mosteiro da sua escolha, mal que el-rei entrasse em Portugal. No sabeis ainda que mosteiro a Rainha escolheu perguntou o Magrio enjeitando completamente o tom faceto em que at ali falara. No sei ainda. Porqu? Porque a iria ento l buscar a nossa ala, se Deus nos favorecesse no propsito de meter os castelhanos pela sua terra dentro. Gracejais, lvaro Coutinho? perguntou o Vasconcelos, afogueando- se turbado. Pela minha honra e pela nossa bandeira vos afirmo a sinceridade das minhas palavras. A ala, ou alguns de ns. Boa e honrada cavalaria andante seria essa. Comigo contai. E comigo acudiu Vasco Eanes. E quase todos eles se ofereceram, Muito vos agradeo a todos respondeu lentamente o Vasconcelos, como se estivesse refletindo naquela ideia romanesca do Magrio, que, pouco antes, lhe dera a impresso de um louco alvitre por gracejo. Mas dado que tal pudesse acontecer, bem compreendeis que no havia de ser feito de arrancada, em que toda a ala se fosse de c; mas cautelosa empresa de disfarce, para se conseguir o intento e, assim mesmo, com risco certo de vida. Mas isto por agora como ir atrs de um sonho! Primeiro temos de ver como Portugal se despeja e limpa de invasores de Castela. Isso primeiro que tudo confirmou o Magrio. Est bem. Agora vamos indo aos poucos para alm daquela encosta do castelo. Sim, iremos como quiserdes. lvaro Coutinho, e vs l Vasco Eanes, vinde frente comigo.
* * *
Foram reunir-se no pinhal que ficava num covo da serra. Sabei dizia-lhes o jovem Vasconcelos que o traidor infamssimo que Anto Gonalves fez a el-rei de Castela dois votos escritos. Um foi que lhe levaria a coroa do rei de Avis, se ele a tivesse no seu arraial; o outro foi que tomaria o encargo dos trons e com eles espedaaria os Namorados. Que se acautele o bandalho e mais o seu rei estrangeiro, pois bem pode ser que o feitio se mude contra o feiticeiro bramiu Vasco Martins de Melo, o jovem. Mas ainda mais afrontoso fim tem o segundo voto do vilanaz! Prometeu que a nossa bandeira, a nossa, reparai bem, nos havia de tomar, para a ir pr aos ps do rei e pedir-lhe que dela fizesse pisadouro porta da sua tenda ou da sua cmara do pao real! Lama da nossa raa o poltranaz! rouquejou o Magrio. Reboaram vozes convulsivas de ameaa, de insulto, de revolta e indignao. Deixai l o sevandija com as suas infmias! gritou Ruy de Vasconcelos. Escutai! Escutai! Foi-se acalmando o rudo alto das vozes e j se no ouvia seno um leve sussurro de palavras quase segredadas, como se fosse um bulir de folhas em floresta por onde alguma lufada de vento tempestuoso tivesse passado. O voto que vos proponho este: A Ala dos Namorados promete fazer calor os trons roncadores que traz el rei de Castela, mal que eles apaream diante da hoste de Portugal. Tirar-lhes a voz trovejante e o poder destruidor com que o rei invasor intenta amedrontar a nossa gente e o infame Anto Gonalves prometeu espedaar os Namorados. Pelos mudos como ele ficou. Assim o prometemos e juramos um por todos! clamou o Magrio com arrebatado entusiasmo. Um por todos! confirmaram calorosamente. Ma a ala no pode ir toda de arrancada para golpear s lanadas o povo que vierem guardando os trons. Tem um posto de batalha que no deve deixar abandonado, e ento me parece bem que hoje mesmo se tirem sorte quarenta para cumprirem esta parte do voto. Quarenta e mais um, que no entra na conta do sorteio. Eu, que pedi consentimento para esta empresa e respondo por ela. Dizei se assim o quereis. Todos, seria o nosso desejo, respondeu o Magrio porm j que tal no deve ser, assim seja como propondes. Assim seja! apoiaram unanimes. Agora a segunda parte do voto da ala. A mais nobre e a mais santa. A ala morrer como um s homem, na mesma vontade e com a mesma alma, pela sua bandeira de amor e de sonho. Os ltimos que ficarem quando a ala estiver vencida, esses retalharo a bandeira a golpes de adaga, para que no seja nunca pisada pelo rei estrangeiro. Para que o no seja nunca! bradaram num grito de alma, soberbamente pico. Pela nossa terra e pelas nossas damas! gritou comovidamente um dos mais jovens. E pelas nossas mes acrescentou Ruy de Vasconcelos enternecidamente, como se tivesse diante dos olhos a imagem da sua. E por tudo quanto na nossas almas houver de mais santo! gritou Vasco Eanes. Est ento feito o voto solene de toda a ala. Votos particulares, que a este no causem dano ou no possam prejudicar a hoste, cada qual levar consigo os que entender. Eu tenho um que vou dizer-vos, e outro que guardarei comigo. Hei de decepar a mo com que Anto Gonalves escreveu a sua promessa contra ns. E eu hei de prender el-rei de Castela, ou sequer pr-lhe a mo na gorja disse Vasco Martins, o jovem. E eu, primeiro que ningum, hei de ferir de lana um cavaleiro dos mais assinalados de Castela prometeu Gonalo Eanes de Castelo de Vide. E eu hei de derrubar a bandeira real de Castela gritou Loureno Martins de Avelar. Pois eu por mim vos prometo disse Vasco Eanes que essa bandeira a hei de ir pr aos ps del-rei de Portugal, mal que me seja dado acercar-me dela. Para que a sua real senhoria lhe faa o que o vilanaz de Anto Gonalves prometeu fazer nossa. J receoso daqueles arrebatamentos, que ele prprio fora o primeiro a incitar, Ruy de Vasconcelos acudiu a modera-los, lembrando os deveres da coletividade e as responsabilidades da ala no seu posto de batalha. Cuidado! Cuidado! Olhai que se aqui estivesse Mem Rodrigues, certo se arrependeria da concesso que me fez. Notai que havemos de ser todos a ala direita da hoste no campo de batalha, e de pouco valeriam denodos votados, se no ajudssemos a vencer a batalha com tanto afinco e esforo como os outros cavaleiros del-rei. Pois certamente que sim apoiou o Magrio. Os votos que eu vos propus sero de ajuda para vencer. Fazendo calar os trons, evitaremos que a nossa peonagem bisonha se desalente espavorida; e para morrer pela nossa bandeira certo hemos de opor extremado esforo investida dos inimigos, dando exemplo e alento aos que mais cedo franquearem. Os votos de cada um alegou Gonalo de Castel de Vide s se ho de cumprir quando a batalha estiver bem figurada para ns, se a Deus aprouver que a venamos. O meu, porm, pode ser logo ao primeiro encontro, sem quebra dos deveres da ala. Est bem rematou o jovem Vasconcelos. Vamos agora ao sorteio dos quarenta. Vendai-me e ponde aqui ao p de mim, em monte, as vossas adagas. Misturam se, misturo-as eu depois que me vendardes, e a eito, a uma e uma, as irei tirando at quarenta. E lvaro Coutinho as ir indicando pelos firmais, brases ou timbres que tiverem, e a cada qual as restituir. Concordaram e assim o fizeram. No chegou a levar meia hora aquele sorteio singular. Ficaram num alvoroo louco os sorteados. Depois combinaram voltar vila por grupos, como tinham vindo. Em um dos grupos Martim Afonso de Sousa disse a rir para um dos amigos: Eu tambm tenho um voto, mas no para se dizer alto e a todos. Se a batalha se vencer, e eu dela sair a salvo, prometo ir fazer uma quarentena de suave penitncia no mosteiro de Rio Tinto. Velhaco! Todos sabem que nova ainda e bela a Dona Abadessa das monjas, e muito as ms-lnguas tm falado de certos amores vossos e dela. -Lnguas danadas as que isso dizem!-volveu-lhe maliciosamente. Em tal no acrediteis, para no deitardes maldade na quarentena. Os doces do mosteiro so um regalo e a Dona Abadessa uma excelente senhora, que eu conheo desde pequenino. No fim de contas aquele Martim Afonso era o maior tunante e o galo mais louco da ala, embora no fosse dos mais novos.
* * *
Estavam a entrar na vila, quando dos lados de Leiria chegava o Condestvel com os seus cavaleiros. No tinha encontrado o menor indcio da sada dos castelhanos do seu arraial no vale do Liz. Afastara se do caminho trilhado, correra charnetas e aldeias, a um e outro lado da estrada de Leiria e no encontrara a sombra sequer de um castelhano. O Rei esperava-o. Se no se nos escaparam para Coimbra, disse-lhe D. Nuno que esto ainda bem encurralados em Leiria ou nos querem armar alguma cilada. Contra esta suspeita me acautelei, no deixando que a minha escassa cavalaria se metesse pelas baixas e pinhais mais avizinhados da povoao. Na volta subi charneca alta sobre o caminho de Alcobaa e pareceu-me que para ali iriamos bem. Nos campos de Leiria, para alm do monte do Castelo, quereriam eles que eu fosse dar. L facilmente nos fariam em postas os muitos mil cavaleiros que dizem ter. Agora me parece que o melhor ser irmos todos daqui busca-los. Sim, a fazer-lhes espera no caminho para Lisboa. E amanh vspera da Senhora de Agosto. Pois na sua honra seja esse nosso dia. Disponde tudo para que antemanh a vossa hoste nos v tomar o campo em que temos de espera- los. A minha ir com pouca demora, seguindo a vossa. Deram-se as ordens de preveno e tudo se disps para a marcha do dia seguinte.
CAPTULO VIII NOITE DE SONHO
Entretanto chegara ao acampamento um aventureiro singular, que perguntava por lvaro Coutinho no seu portugus de contrabando. Era uma estranha figura de idealista e de bomio. Gorra de plumas a desfazerem se de velhas, donairosamente posto um manto que fora branco e vinha a esfiampar-se, arrabil(*) a tiracolo, um co grande, magro e triste, por companheiro. Tinha j alguns cabelos brancos na barba loura e fina.
[(*) Instrumento de cordas, de duas cordas geralmente, como o ganibri dos mauritanos. Copiado certamente do alade dos mouros, o arrabil foi talvez o predecessor da guitarra em Portugal.]
Correram a chamar o Magrio, e foi espanto para todos o desafogo com que o gigantesco batalhador o recebeu de braos abertos. Era o trovador provenal de que lvaro Coutinho j tinha falado a Ruy de Vasconcelos e ao gasco Montferrat; aquele que ficara no Porto enamorado, a idear esperanas loucas e a cantar amores de sonho por certa damazinha, a quem os pais tinham encerrado num mosteiro. Era Frederico Marival. E c deitastes de to longe, meu querido troveiro! disse-lhe o Magrio no escasso idioma de Provena que aprendera com ele. Com estes meus amores at morte! volveu-lhe Marival no seu mau portugus de ouvido, indicando o arrabil e mais este escudeiro fiel. Era o co, a olhar para ele num enternecido olhar de humildade. E a dama dos vossos cantares? De l ma levaram e sumiram! respondeu com os olhos rasos de gua. Ouvi ento falar muito de certos namorados que tendes aqui para batalhar, e meti-me a caminho como se fosse um mendigo para vir ver como se batem os amorosos de c e para na minhas trovas cantar os seus feitos, pois me disseram l que tambm vs, lvaro Coutinho, reis desses que tm uma bandeira verde, segundo ouvi. Com esta cara que vedes, namorado tambm, por conta das namoradas dos outros disse-lhe rindo. Mas no sei como no castes nas mos dos de Castela! Na tarde de ontem fui ter a uma povoao a que chamam Leiria. Estavam eles a experimentar os seus engenhos de fogo e nenhum caso fizeram de mim. Fortuna minha foi que assim fosse. De noite consegui escapar-me para os lados de um grande campo que ia dar a uns pinhais, e por l me fiquei escondido at que a manh chegou. Depois me deitei a caminhar toa. Foram lguas o que andei sem rumo certo! Por fim l fui dar a umas casas decerto povoado a que chamam Aljubarrota, e ali me disseram que a hoste de Portugal a viria encontrar aqui, e todos os sinais me deram para eu c poder chegar. Pois meu hspede ficareis sendo e com os Namorados vos podeis ir amanh, para irmos em busca dos castelhanos. Agora vinde da, para eu vos tornar conhecido dos meus companheiros. Ala de galos requestadores e paladins desta nova Tvola Redonda, bem merecem que os seus amores efeitos os canteis vs, troveiro amoroso de Provena. Deles alguns h que so tambm trovadores, como foi o nosso rei D. Diniz, mas dos nossos feitos no ficaria bem que fossem eles os cantores. E para o mundo os saber, melhor ser que os digam os vossos versos na carinhosa linguagem de Provena. E, pondo lhe o brao pelo ombro, o levou consigo para o apresentar aos Namorados.
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Uma noite quente e enlanguescera, boa para sonhar de olhos, abertos e a alma em voos entre aquele cu azul, suave e doce, e a serrania tocada de luar como se as mouras encantadas por aquelas brenhas tivessem feito por ali o estendal da sua roupagem de fantasmas. Toda aquela paisagem tinha um aspeto evocador de acariciadoras idealidades e de lendas antigas. O crescente da lua vestia o Castelo com a sua luz branca e como que lhe dava o aspeto de um emir gigante dos tempos do Miramolim, de amplo albornoz de l branca de Smirna sobre um arns reluzente de Damasco. Encalmados, numa impacincia febril, os rapazes no podiam dormir e pelas ruas estreitas da vila se foram escapulindo para a encosta do Castelo. Pelas poucas horas que faltavam para meter a caminho, ali se passaria bem a noite sob o estreito lenol do luar, naquela noite evocadora. Levaram consigo o trovador provenal e por l se estiraram espera que o sono chegasse. Eu por mim j me contentava com qualquer moura que se quisesse desencantar vendo me, dizia o Magrio galhofando. E lembraram me as mouras por aquela talhada de lua que parece o crescente de um estandarte mourisco. E as estrelas, pequeninas, sumidas, esto a lembrar-me olhos de donzelas que ali se pusessem espreita para ver quando a ala adormece disse um dos imberbes, troveiro ainda novio. E mal nos apanharem a dormir talvez elas chorem por esses que tiverem a sina de no tornar a ver os seus amores. Um corvo tresnoitado corcou lugubremente em baixo, dos lados do pinhal. Pois sim acudiu o Magrio. Dorme l, compadre corvo, e se andas cata de festim, no te fiques a nessa tua cantiga quizilenta. Dorme e vem amanh connosco. Daqui te fao testamento desta ratinhada carne que trazem os meus ossos. Frederico Marival, para no ouvirmos aquele negregado corvo, contai-nos aqui novelas de amor ou algum rimance de cavaleiros errantes. Melhor seria volveu-lhe o provenal que vs, os Namorados, alguma batalha dos vossos me contsseis, para eu vo-la pr amanh numa trova. Pois boa lembrana tivestes. Contar-vos-emos ento a mais bela batalha campal deste nosso tempo, a do nosso cavaleiro Galaaz. (*)
[(*)Galaaz ou Galahad, era um dos heris das lendas romanescas da cavalaria medieval pertencentes s histrias do ciclo Arturiano e da Tvola Redonda. Era considerado o cavaleiro mais puro e por isso foi o nico capaz de efetivamente encontrar o Graal objeto principal da demanda de todos os cavaleiros. Pela sua pureza, Galaaz considerado uma encarnao de Jesus na forma de cavaleiro] Mem de S, vs que estivestes no feito dos Atoleiros, contai-o l para que o fique sabendo e ponha nos seus cantares este honrado troveiro de Provena. O S no se fez rogado. Era um rapaz de vinte anos, expansivo. Caloroso, a alma no olhar e no gesto. Foi a batalha a uma quarta-feira, 6 de abril do ano passado; quarta-feira de trevas por sinal. Dias antes tnhamos ns chegado vila de Extremoz e quem nos mandava era Nuno lvares, esse que hoje Conde e Condestvel. Dos lados de uma povoao chamada Crato estava uma hoste de castelhanos e portugueses, parciais da rainha de Castela. Mil lanas de gente fidalga, corcis e ginetes possantes, e mais de quatro mil homens de boa peonagem. Vinham ao mando do Mestre de Alcntara e tinham pelos seus chefes principais o Almirante Tovar, o Adelantado de Andaluzia, o Conde de Niebla e Pedro Afonso Sotomaior. Havia do nosso lado alguns que andavam receosos daquele poder. Mas Nuno lvares l estava com a sua ideia firme de avanar de arremetida para os que se tinham ficado no Crato. Antes de se pr a caminho, fez alardo da sua hoste no rocio da vila de Estremoz. Um pequeno punhado de homens! Trezentos a cavalo, cem besteiros e mil, se tantos, de gente bisonha das herdades e montados do Alentejo. E dos trezentos a cavalo, s uns cento e oitenta levavam bacinetes. Os outros no os tinham; as gorras que lhes defendessem a cabea contra as espadas, as lanas e as hachas dos castelhanos! Aquele alardo ainda mais quebrou o nimo dos menos temerrios: Se com aquilo, com aqueles mil e quatrocentos, se tinham de ir bater os cinco ouseis mil soberbos homens de guerra que eram os de Castela para os lados do Crato! Mas com a sua f e o seu esforo, para Nuno lvares nenhum poder havia que lhe fizesse medo! frente daquela sua pequena hoste fugiu de Extremoz, porem logo notara que a peonagem mais bisonha no ia de boa vontade. Mandou ento fazer alto beira de um regato e a todos ns falou com o corao nas mos, como se costuma dizer. Suponho ter aqui alguma gente receosa de que esses de Castela, que vamos a buscar, sejam umas poucas de vezes mais do que ns somos, comeou a dizer-nos. Pois assim receosos os no quero eu levar comigo. Para a minha hoste me no servem esses tais; porem olhai que se no enganam na conta dos que vamos combater. Ho de ser quatro ou cinco dos de l contra cada um dos nossos, se comigo forem todos os que tenho aqui. Deixa-lo. Eu por mim no volto atrs. Maior glria para ns e para a nossa terra, se os vencermos, e menos honra e soberbia para eles, se nos vencerem a ns. Agora, esses que esto aqui de nimo encolhido, que vo com Deus. Eu irei para diante com os que me ficarem. Quem tiver alma para me seguir, que passe desse regato para c; os medrosos que se fiquem do lado de l. Assim extremados, j eu sei quem tenho para ir rebater os de Castela, ou para ficar l pelas custas da contenda. Ficaram alguns? perguntou Magrio, aproveitando a pausa feita pelo narrador. Louvores a Deus, nem um! Abalmos de corao resoluto e, quando amos a meia lgua de uma povoao chamada Caraira, num stio a que chamam os Atoleiros, demos vista da hoste inimiga. S a soberba gente de cavalaria que eles traziam dava duas vezes o dobro dos cavaleiros que ns tnhamos! Entendeu Nuno lvares que seria derrota certa dar-lhe batalha de cavalaria com to poucos, deixando extremada a peonagem inexperiente, que era a nossa fora maior, e boa ideia foi a sua de mandar pr p em terra a iodos os nossos cavaleiros, para lutarem ao lado dos pees. Formmos um cerrado; No meio Nuno lvares com a sua devota bandeira. E, enquanto os de Castela se no decidiam a vir sobre ns, Nuno lvares ajoelhou para orar, e todos uma ajoelhmos com ele; rostos para a campanha em cada uma das quatro faces do cerrado, os contos das lanas bem firmes no cho. De spito uma algazarra de trombetas do lado deles, um trovo no tropel de mil cavalos que deitam desfilada sobre ns; um novelo de poeira que vem cegar-nos, e este brado de cinco ou seis mil vozes, que todos ns sentimos no corao: Santiago y Castilla! S. Jorge e Portugal! Gritou Nuno lvares, e toda aquela quadrela de homens lhe repetiu o grito, assim como se a alma do maior fosse a alma de todos dentro do cerrado! To unidos, que at sentamos a bandeira a esvoaar na aragem daquela manh de abril, e to afincados aquele cho da nossa terra, que a onda dos castelhanos veio quebrar-se contra ns e bateu para traz quase desfeita. Uns vinham cair atravessados pelo ferro das lanas e chuas das primeiras filas e a outros os derribavam a distncia os dardos e os virotes dos nossos besteiros. Mais de cem tinham cado do lado deles. Pelos bacinetes de plumas e pelas cotas de armas bem percebamos ns os que eram da nobreza de Castela. Outra arremetida, outra carga, outro desbarato! Parecia de rocha viva aquele muro dos nossos peitos! J alguns deles fugiam. A cavalo! mandou Nuno lvares. E ento fomos ns os que carregmos sobre aquela arrogante nobreza, que nos fugia a unhas de cavalo, e contra a peonagem espavorida e desacompanhada dos seus chefes. Estava a batalha vencida. E tinha a gente vontade de chorar de orgulho uns pelos outros! Gloriosa batalha pequenina para se contar disse o provenal. Dos nossos Namorados creio que temos aqui uns quinze ou dezasseis que estiveram nos Atoleiros informou-lhe o Magrio. A nossa ala tem tido homens seus em todas as batalhas maiores desta guerra, bem que como esquadro s se tivesse formado no cerco de Lisboa, vai j para um ano. Mas olhai, acudiu um dos que tinham estado na batalha olhai que se no disse quem foram os principais de Castela que ali acabaram ou saram feridos. Pois dizei-os l. Dos mortos os mais assinalados eram o Mestre de Alcntara, o Adelantado de Sevilha e natural de Andaluzia. Gonzalo Daza e Joo de Lerma. Dos feridos, o Conde de Niebla, da maior nobreza das Espanhas, o Almirante Tovar, o Mestre de S. Tiago, Gonzales de Grialva e o Prior da ordem do Hospital, irmo de Nuno lvares.
* * *
A conversa esmorecia. Alguns tinham j adormecido. Ruy de Vasconcelos, em que pensais vs, de olhos nas estrelas? Pareceis emudecido! disse-lhe o Magrio. Estou a ver se posso ler nelas, como os astrlogos, o destino e a sina da nossa gente e da nossa terra. O destino de amanh ou o de algum dia? O do sculo em que a nossa gerao jovem ainda poder entrar sem cabelos brancos. Sim, daqui a dezasseis anos. Quem sabe l? Ser Portugal, sempre assim, a pequena terra de poucos homens que hoje? No tem para onde alargar as voadeiras. De um lado Castela, de tal poder, que j no pequena maravilha aguentar-lhe a gente as arremetidas; e do outro lado, o mar. S se qualquer deusa dos gentios, e pela Ala dos Namorados devia de ser Vnus, deusa do amor, s se cila nos protegesse e levasse a descobrir alguma grande ilha, das muitas que os antigos diziam encantadas nesse mar distante, que eles chamavam da noite. Quem sabe? Olhai que so atrevidos os nossos galeotes e pilotos. Vede como eles vo dar consigo l para os mares de Inglaterra! E de alguns se fala que encontraram certas ilhas, a que chamavam Afortunadas. (*)
[(*) Parece que nos meados daquele sculo e durante o reinado de D. Afonso IV, e fizeram tentativas de descobrimentos martimos para os lados de frica, no rumo das Canrias.]
Ai, ai, que estamos a sonhar acordados! disse-lhe o Magrio gracejando. H de ser encantamento dessa feiticeira lua, que se nos vai sumindo por aqueles pinhais dalm. Aquela comadre dos namorados e entende que deve apagar agora a lampadrio para ver se ns adormecemos. Isto j deve de ir para a meia noite disse bocejando. Olhai como tantos dos nossos adormeceram j, regaladamente, com os ossos em cima deste cho pedregoso, que nem criancinhas em almadraquinho de penugem de aves! No chegar a madrugada sem que algum deles sonhe que el-rei de Castela j vai derrotado pelo seu reino dentro, com os seus paves de Gasconha todos desazados e o leo castelhano de cauda de rojo e plo arrepiado, a rosnar contra ns. Riu bocejando, os olhos a fecharem-se-lhe lentamente. At o meu troveiro provenal j se deixou dormir! Esse estar sonhando cantares e amores. Pois eu ainda vou sonhar coisa melhor. Que vamos bater com os ossos contra a moirama de Africa... Por j no haver castelhanos que se atrevam connosco... E que terei enfim, uns lindos amores cor de alfarroba do Algarve... No serralho... Do sulto de Marrocos... Descendente do grande Miramolim... At amanh... disse sumidamente. Boa estrela.... Nos acompanhe. E pouco depois todos eles estavam adormecidos. A lua sumira-se. O velado fulgor das estrelas punha uma doce penumbra naquela soberba paisagem. Dos lados da serra, sacudidos pela fome, os lobos uivavam a espaos, ao faro daquela gente silenciosa. Enganavam-se. No era ali que tinha de ser o seu trgico banquete. De espao a espao, as sentinelas do arraial e os esculcas distantes soltavam os seus brados de alerta.
CAPTULO IX ALJUBARROTA
Ainda era escuro e j os trombeteiros do Condestvel estavam dando o sinal de alvorada. E logo um grande borborinho por aquela veiga de Porto de Ms. Levantou-se toda a gente da vila num alvoroo cheio de receios. Por todas as adufas transluziam candeias; as ruazitas estreitas iam atulhadas de gente. Abriram-se de par em par as portas da igreja matriz, iluminaram-se os altares e para l foram as mulheres rezar pela boa fortuna daquele punhado de aventurados, que iam talvez morrer pela terra portuguesa. Quantos deles estavam ali que no poderiam ver a madrugada do dia seguinte, se os castelhanos se desencurralassem de Leiria? Na sua tenda mandara o Condestvel armar um altar. Confessou-se, ouviu missa e comungou, e com eles os seus de mais afervorada devoo. Vieram de afogadilho da ladeira do Castelo os da ala jovem. As alas iam subordinadas ao Condestvel e tinham de partir com ele. Os rapazes tinham de ir vestir as armaduras. Contavam sonhos, diziam chistes, galreavam infantilidades. Eu at sonhei que tinha casado disse a rir lvaro Eanes de Sarnache, que era o indigitado para levar a bandeira da ala. E eu, que j tinha meninos em Marrocos e uma sogra moira, mais feia do que eu, sultana velha de no sei quantos sultes galhofou o Magrio por entre as risadas dos companheiros. Do lado do alpendre de uma casita baixa, o Lobeira tomara entre as mos uma cabecita de rapariga gentil e dizia-lhe requestador: Deixa-me dar te um beijo, boquita de cereja. Um s por esta sede que eu trago deles. Olha, sem maldade, para o levar comigo. Quem sabe se este o ltimo ser que eu te d, minha rolazinha? Assim. E deu lhe um beijo cantado e longo. Na rua, estreita como um corredor, os que iam passando ouviram. Pelo chilreio, aquele que der o beijo h de ser da ala gracejou o Magrio. E talvez fosse voto que ele fez! Acrescentou com uns ares cmicos de venerao, Alguns dos mais tunantes, mal vestiram a armadura, foram-se logo para os lados do riozito. Iam ouvir o passaredo madrugador. Foi com eles Frederico Marival. Escutai como os pssaros cantam, senhor trovador de Proena. So tambm menestris enamorados. bela esta vossa terra portuguesa! disse calorosamente o Marival Agora entendo eu porque em tempos antigos tantos trovadores e menestris da Provena aqui vieram refugiar-se e por aqui ficaram ideando trovas, ensonando canes e amando as mulheres de lindos olhos que tem Portugal. Assim o ouvi contar aos velhos da minha terra. E ns aqui tambm muitos jograis e trovadores temos tido ao modo dos de Provena, Pajens, cavaleiros, condes, infantes e at reis trovadores! disse-lhe o Lobeira entusiasticamente. El Rei D. Afonso IV, o do Salado, dizem que o foi acudiu um deles. El-Rei D. Diniz era cantares de amor como nenhum! Quase como o rei D. Afonso, o Sabio, de Castela, seu av materno! elucidou o Lobeira. Cantava os amores e gozava-os comentou o Magrio a rir. Na ala temos ns uns poucos de troveiros. Ruy de Vasconcelos tem posto em trovas os pesares e as saudades dos seus amores. Outros tm cantado as nossas faanhas antigas. Mas os grandes tempos dos trovadores e menestris de Provena j l vo h muito! disse Marival tristemente. Por c ainda muito se ufanam de o ser esses que sabem a arte de trovar. E nos paos reais tiveram os nossos reis menestris a soldo; jograis lhe chamavam. Discretearam ainda por minutos a cerca da leda arte, da gaia cincia, e daquela poesia cantada, que foi aconchegando numa comunidade de espritos e de coraes, raas e povos, adversos interesses e fronteiras distantes, pondo sobre as mais trgicas e convulsivas noites da Idade Mdia um suave luar de idealidades generosas e de amorveis sonhos. Na volta para o acampamento, Marival entoou uma das mais belas canes da velha poesia de Provena e o Lobeira cantou uma linda serranilha de el-rei D. Diniz.
* * *
Vinha rompendo a manh, quente e abafadia. Ps-se a caminho a vanguarda com as alas. Iriam tomar posio sobre a estrada de Leiria a Alcobaa, o caminho direto at Lisboa. Montado numa possante muar de emprstimo, o provenal ia cantando uma languida trova do seu pas. Para alm da veiga do Porto de Ms o caminho direito charneca era um horror. As guas do ltimo inverno tinham escavado barrocas a um e outro lado. Mas no era longo aquele caminho assim. Em pouco entraram em cho mais igual, embora de mato bravio, que as soalheiras de julho e agosto tinham ressequido. Urzes altas e moitas de tojo rasteiro se enredavam por ali fora, ocultando depresses e arregoamentos do terreno. Marchavam lentamente. Na frente de todos ia o Condestvel. O seu olhar experiente de batalhador reconheceria de momento a posio melhor em que tinham de esperar os de Castela, sobre o caminho de Lisboa, de rosto contra Leiria. Teriam andado meia lgua, quando uma mulher idosa, de chua ao ombro, criatura de forte arcaboio, veio por um atalho, apressadamente, direita aos Namorados. Senhor Ruy de Vasconcelos? chamou num vozeiro msculo. De Lisboa vos trago notcias e recados da vossa Me e senhora minha, D. Dulce. Ruy conheceu-a logo. Voltou o cavalo e foi para ela. Era a tia Lourena, aquela a quem a arraia mida da capital chamara a capitoa e o condestabre das mulheres, durante o ltimo cerco. Vs por aqui! verdade, meu senhor. Mau foi que me acostumasse a ser homem contra os ces gadelhudos de Castela. De vossa Me me fui despedir e dela vos trago recados cheios de saudade. No vos pareceu mais enferma, no? Reza por vs, e l est resignada espera do dia em que l voltareis vencedores. E foi pra ver como isto se decide que eu deitei at c, e mais umas companheiras minhas do tempo do cerco. Ontem ficmos sonegadamente numa aldeia ao p de Porto de Ms, e hoje aqui vimos atrs da Ala dos rotos, que como j chamam os gracejadores nossa arraia-mida. Mas, por favor, no digais nada ao senhor Condestabre. Ele no quer mulheres atrs da hoste, e mandaria que nos corressem de c para fora. E isto o que ns no queremos. Ficai descansada. Por vs lhe pediria eu, se ele de tal soubesse. Muito agradecida, meu senhor. Isto de eu aqui vir devoo. No quero que Deus me leve sem eu ver uma batalha real, e se os nossos ficarem bem, hei de ser eu quem primeiro h de levar a boa nova a Lisboa e senhora vossa Me. Perdoai e que a nossa Senhora da Vitoria vai vossa companhia. At depois disse-lhe metendo o cavalo a trote para ganhar a distncia em que se atrasara da ala. De onde em onde, aprumavam-se esguios, naquela chapada bravia, uns pinheiritos novos. Lenha j ns aqui temos para assar em postas os bois que veem puxando os trons roncadores gracejou o Magrio. No coruto de um pinheiro mais alto e mais distante, um donairoso melro assobiou o seu estribilho de bomio madrugador. Ora viva l, namorado amigo, jogral de bico amarelo galhofou o Lobeira, fazendo-lhe um gesto de saudao. Est a assobiar pela sua dama, o tunante! acudiu o Magrio. Bisneto ser de alguma velha melra do tempo do senhor rei D. Diniz. Pois que venha cantar-nos a alvorada de amanh, se os castelhanos vierem hoje ver-nos e os engenhos trovejantes nos no espedaarem, como deseja sua senhoria el-rei de Castela e o tredo vilanaz de Anto Gonalves. Meus amigos, disse um dos rapazes quem hoje acordou mais cedo fui eu, e de passeio deitei at beira do riozito Lena. L, sim, debaixo daquelas rvores que era ouvir a cantoria do passaredo. Cantavam as vsperas da senhora de Agosto, pois que amanh o seu dia acudiu um mais devoto. Alto! Saiam da! bradaram da vanguarda. Que ? Alto porqu? Foi o Condestvel quem mandou.
* * *
Nuno lvares escolhera a posio em que a pequena hoste devia esperar o exrcito inimigo. Parecera-lhe aquela a melhor para uma batalha defensiva. Tinha um spero e forte relevo sobre a baixa do Lena e para os lados de Aljubarrota se estreitava consideravelmente, formando uma garganta, sobranceira ch agreste da charneca. Dominava a estrada para Alcobaa e, portanto, a nica direta para Lisboa. Por ali teria de desembocar a hoste de Castela para ir tomar a explanada de Aljubarrota e seguir contra a capital. Cingido de um e outro lado, a pequena distncia, por dois ribeiros, afluentes do escasso rio Lena, aquele empolamento do terreno lembrava uma grande cunha com a base para o lado da estrada de Leiria e o gume sobre a ch bravia. Meseta (pequena mesa) lhe chamou Ximenes de Sandoval, cerca de quinhentos anos depois. Na estao das chuvas os dois ribeiros seriam como fossos aquticos daquela posio; mas naquele ms apenas representariam valias esbarrocadas e quase enxutas. Os intensos calores de julho, e agosto os haveriam reduzido a regatos, que uma criana de oito ou nove anos facilmente poderia transpor com uns fios de gua dormente por cimo dos artelhos. Em cima daquele planaltozito deviam ficar bem juntos, como nos terraplenos de uma fortaleza, os seis mil e quinhentos combatentes que iam opor-se aos trinta e trs mil do rei de Castela. No contamos para um e outro exrcito os auxiliares de menos valia e os no combatentes que traziam. Uns doze mil do lado dos castelhanos; talvez dois mil do lado dos portugueses. Detidamente examinado o terreno, o Condestvel mandou avanar a sua hoste e logo tomou as disposies necessrias para uma ocupao defensiva, que o tornasse menos acessvel s arremetidas da cavalaria inimiga, numerosa e formidvel. Presume-se que dos ingleses auxiliares, uns duzentos se tantos, algum lembrou a convenincia de fazer uma ligeira estacada, talvez para o cercado (curral) das bagagens e dos no combatentes. Aceito o alvitre, homens de machados teriam ido s extremas da charneca deitar a baixo os pinheiros pequenos para a estacaria. A distncia de Porto de Ms at ali era de uma lgua escassa e por isso, apesar da lentido da marcha por causa das bagagens, a hoste do Rei chegou quando vinha a nascer o sol.
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Tinham todos tomado as suas posies de rosto para Leiria. O sol! O sol! Como ele vem hoje lindo! At parece que traz mais ouro! exclamou o Lobeira num xtase de poeta. para dourar os nossos arneses de cavaleiros pobres respondeu outro.
E para aquecer os ventres queles da Ala dos rtos disse o Vasco Eanes, indicando para a retaguarda a peonagem dos farroupilhas, que no traziam bacinete, nem solha de chapas de ferro. Coitados! Tambm s se for o sol, que o almoo nenhum calor lhes dar. Nem a eles nem a ns interveio o Magrio. E se aqueles birbantes dos castelhanos no jejuam como ns, ento at nisso os favorece o demo! disse Vasco Eanes. E talvez no favorea, acudiu o Magrio de galhofa. Com a fome que eu j estou, at seria capaz de manducar em cru as alcatras dos bois que vierem puxando os seus truenos, e com maior gana os hei de atacar. Jovens, veio avisar um escudeiro dos Namorados sabei que El- Rei est armando cavaleiros os escudeiros de armas que lhe propem esses que, pela sua qualidade e bons servios, os vo apadrinhar. Pois vamos ns la tambm com alguns escudeiros da nossa ala disse Ruy de Vasconcelos. A vs, Afonso Rodrigues, vos proponho eu, disse para o Baticela, aquele escudeiro beiro que levou a Lisboa a notcia da batalha de Trancoso e o Vasconcelos teve em casa como seu hspede. Grande e honrado favor me fazeis e por ela vos beijo as mos. E eu vou apadrinhar o nosso beijocador disse o Magrio. Alm de no ter nada de peco, da ala o que furta beijos com mais denodo e os da mais bem cantados. Jovem, no vos turbeis como se vos levantassem algum falso testemunho. Eu ouvi aquele beijo que deu honra ala, e notei depois que a rapariga roubada tinha um palminho de cara de fazer apetite a um franciscano. Beijos assim quebram o jejum; mas tal no direi eu a El-Rei, mormente se com ele estiver o senhor Arcebispo de Braga, o mais glorioso homem que tem dado a Lourinh. (*)
[(*) D. Loureno Vicente, o famoso prelado batalhador, era natural da Lourinh.]
E pior seria respondeu lhe o brejeiro com uns ares de ingenuidade agarotada se o disssseis era presena do senhor Condestvel! Esse ento, se o soubesse, nem para escudeiro vos queria! Riram do caso, e l foram uns poucos apadrinhar os escudeiros de melhores antecedentes que havia na ala. Naquela conjuntura no os podia El-Rei fazer cavaleiros com o longo e ostentoso cerimonial da boa cavalaria. Ali apenas podia ser e foi uma resumidssima formalidade. Tocava-lhes com a lmina da espada no ombro, tiles de joelho em terra; exortava-os a empenhar todo o seu esforo e a prpria vida em defesa da ptria, cuja sorte se iria talvez decidir ali, recordava-lhes o dever de lealdade que tinham de guardar ao rei e bandeira, dever que eles juravam cumprir, e logo os declarava cavaleiros. Deste modo foram armados trinta e oito em trs grupos.
* * *
Resumia-se em bem pouco a investidura dos cavaleiros nos campos de batalha. Fora destas circunstncias, estava sujeita a umas regras e pragmticas de grande solenidade e tinha um largo cerimonial de preparao. Em condies normais, o donzel, filho de um homem de prole, estava nas circunstncias de ser investido na categoria de escudeiro de armas logo desde os quatorze anos. Alguns o foram com menos idade, como D. Joo, Mestre de Avis, e Nuno lvares Pereira. O donzel era levado para diante de um altar com as suas vestes de pureza, um crio aceso na mo, acompanhado pelos pais, pelas damas da corte ou do solar, e pelos seus apadrinhadores. Um padre abenoava a espada que destinavam ao nefito e solenemente lha entregava. Depois os padrinhos punham-lhe as esporas de prata e as madrinhas cingiam- lhe a espada e lhe vestiam algumas ligeiras peas da armadura. E assim ficava escudeiro de armas, diretamente subordinado ao rei, ou ao rico-homem, senhor nobre, a quem se votara servir. Por benemritos servios, por algum assinalado feito ou por simples paga de galardo, podiam-lhe dar a investidura de cavaleiro, algumas vezes o prprio soberano ou o mestre de uma ordem de cavalaria e, na maior parte dos casos, qualquer outro fidalgo que j tivesse o grau de cavaleiro. O nefito preparava se para este ato em jejuns e oraes purificadoras. Confessava se, recebia a eucaristia e velava as armas durante uma noite, orando. E neste breve noviciado de iniciao o acompanhavam os apadrinhadores e um ou alguns sacerdotes. Concludas estas devoes penitenciais, o levavam perante um altar com a espada suspensa ao pescoo por uma charpa. Ali a desprendia ele e entregava ao padre consagrante, que lha abenoava e restitua. O escudeiro ia ento ajoelhar-se diante do rei, ou daquele que pela sua categoria e direito prprio o podia armar cavaleiro. Respondendo por negativas formais ao breve interrogatrio de suspeies que lhe fazia o investidor a respeito dos seus propsitos de abnegao, de honrado esforo e devotados servios f crist, o nefito jurava solenemente sobre a espada nua do rei ou do cavaleiro interrogante, manter e servir a religio de cristo, custa da prpria vida, proteger os indefesos e as mulheres, defender e sustentar desinteressada e lealmente as mais brilhantes e generosas tradies da enobrecida cavalaria em que ia ser admitido. Aceito este voto jurado, os cavaleiros seus apadrinhadores, e quase sempre as nobres damas e donzelas da corte ou do palcio solarengo, lhe vestiam ento as diferentes peas da armadura. Era s vezes a senhora da mais alta qualificao quem lhe cingia a espada e eram as damas ou os padrinhos que lhe substituam as esporas de prata de escudeiro pelas outras douradas, que eram distintivo dos cavaleiros fidalgos. O novo cavaleiro curvava-se diante do investidor, e este, de p, por trs vezes lhe assentava de prancha a espada sobre o ombro ou sobre a nuca, dizendo- lhe: Em nome de Deus, de S. Jorge e de S. Miguel, vos fao cavaleiro: sede honrado, intrpido e leal. E depois tocava-lhe na face com a palma da mo. Simbolizava isto a derradeira injria que ele devia sofrer sem tomar esforo. Esta solenidade terminava quase sempre num torneio ou em corridas de cavalaria, em que o iniciado floreava a sua percia de homem de armas e as suas gentilezas de cavaleiro. Esta era, a largos traos, a regra e o cerimonial a que podemos chamar clssico. As variantes, que no eram pequenas, provinham de circunstncias diversas, conforme os pases, a ocasio e as condies especiais de quem conferia ou recebia a investidura.
* * *
Eram 10 horas. O sol estava uma brasa; os bacinetes e os arneses escaldavam. Passavam bandos de pssaros a fugir para a frescura dos pinhais distantes, e ondulava nos ares uma poeira fulva como se o sol a tivesse sacudido da sua resplandecente juba. El-Rei foi vanguarda ter com o Condestvel. D. Nuno andava a animar a sua gente e a recomendar a todos que recebessem as arremetidas de ps bem fincados no cho e lanas bem firmes debaixo do brao para vararem os peitos dos cavalos, enquanto os besteiros e os frecheiros ingleses, de frente e de revs, crivassem de frechas e virotes os cavaleiros e a peonagem que viesse deps eles. E agora j falava nos trons gente plebeia da sua hoste para a deixar de sobreaviso. Roncas de Castela que eles so. No tenhais medo. So engenhos de fazer bulha e fumo para assustar mulheres. Maior e mais certeiro dano fazem os virotes dos besteiros de Castela, e ainda ningum fugiu deles. Nem vos receeis da multido que eles trazem. Muitos milhares deles so serventurios, azemis, gente de carriagem. Aqui tenho entre vs alguns que foram comigo nos Atoleiros. Eramos l um contra cinco e ningum teve medo. Deus foi por ns e de tal modo vencemos, que era espanto ver como eles fugiam! Aqui h de querer Nosso Senhor que o mesmo suceda. Ponde a alma com ele e os olhos nesta nossa bandeira, e bom nimo de portugueses ser o vosso para os baterdes daqui para fora como a javardos bravios. Os pees humildes ouviam-no enternecidamente, num pasmo de devoo religiosa, como se fosse um santo a falar lhes, daqueles santos batalhadores que vestiam armadura. E lembravam-se do S. Jorge da bandeira daquele jovem Condestvel, que j sabia bem o que era vencer uma batalha. Viva o nosso Condestabre! A melhor lana que tem Portugal! bradaram num enrouquecimento de comoo, olhos rasos de gua. El-Rei chegou. Estou admirado por faltarem aqui os da Beira! disse D. Joo baixo para Nuno lvares. Depois de receberem o vosso recado! notou o Condestvel. Vem ali Diogo Lopes, pergunta-lhe vs, Senhor, pelo filho e pelos seus vizinhos da Beira, a ver o que ele vos responde. Diogo Lopes Pacheco, um dos acusados pelo assassnio crudelssimo de Ignez de Castro, era um octogenrio acabrunhado pelos desgostos do tempo em que andou homiziado e com a vida a preo. A energia moral que era nele indomvel. Insistira em vir com a hoste, apesar da escusa que lhe dava El-Rei. Diogo Lopes, disse-lhe D. Joo I que me dizeis vs dos homens da Beira? Dos outros vos no sei falar, senhor Rei, porm, se Joo Fernandes Pacheco bem meu filho, rei e senhor, ele vir pela sua honra e dever, ou eu c. Ficarei por ele. Pois mais certo ser ento contar convosco. E, como para atenuar a mgoa do velho, acrescentou logo: Ou l pela Beira estaro j em luta com a hoste do Infante de Navarra, se certo que ele vem de reforo a el rei de Castela? Tardam! disse o Condestvel, de olhar cravado no caminho de Leiria- Talvez ainda no queiram desencurralar-se de l lembrou o Rei. De sbito se ouviram trombetas dos lados do caminho de Porto de Ms. Sero eles? Mas daquele lado! S se for algum troo de castelhanos para nos armar cilada! Homens! gritou o Condestvel para a sua gente. Firmeza de nimo, e seja o que for. Sentiu-se mais perto uma tropeada de cavalos, e na orla da charneca, pelo caminho de Porto de Ms, esvoaou um balso fidalgo. Pelas cores que tem, aquele ser o pendo do vosso filho, senhor Diogo Lopes! gritou Afonso Rodrigues Baticela. S. Jorge e Portugal! gritaram do esquadro que vinha de galopada pela charneca dentro. Eram sessenta cavaleiros de lanas com os cavalos brancos de escuma. Atrs deles arrastavam se esbaforidos, estropeados, uns cem homens de peonagem, muitos deles sem bacinete nem peito de ferro, varapaus ferrados e foices ao ombro. Os da Beira somos e aqui nos tendes! gritava na frente Joo Fernandes Pacheco. Senhor, o corao no me enganava! disse ao Rei o velho Diogo Lopes com os olhos rasos de lgrimas. Milhares de vozes repetiram o prego de guerra que os beires tinham soltado. Bem vindos sejam os da Beira! clamaram da hoste real. E mais os seus fidalgos, que derrotaram os castelhanos em Trancoso bradaram os da Ala dos Namorados. Entraram os beires no campo da hoste. Os pees vinham arrasados e muitos tinham ficado para traz, estiraados pelo caminho. Em boa hora vindes, amigos beires! disse o Bernardo Pingueiro aos que foram incorporar se na Ala dos rotos. Mas muito estrompados, louvado Deus! Vinte lguas, entre dia e noite, desde ontem de madrugada! disse um deles a resfolegar penosamente, o rosto a esbagoar suor, o peito da solha negro da poeira. E milagre foi c deitarmos! Pois em boa ocasio chegais, mas se vindes ao cheiro do almoo, oh irmos, ficais a aguar! Aqui todos ns estamos em jejum natural. E logo baixo, de troa para outro: Menos eu, que pelo caminho vim a comer dois punhados de amoras dos silvados. E foi comer e beber. O sumo era vermelho como o nosso vinho da encosta de Almofala. Enganei as saudades que dele trazia. E daqui a pouco estaremos assados e estorricados, que nem carapaus midos, debaixo deste sol de brasas! Entretanto, o Joo Fernandes Pacheco dizia abraando o pai: E vs aqui tambm! Ento, mesmo assim velho, onde havia eu de estar? Isto dever de todos. E indicando o Rei, que estava ento falando com os Cunhas (Martim Vasques e Gil Vasques) e com Egas Coelho, os fidalgos da batalha de Trancoso, o octogenrio acrescentou com encantadora simplicidade: Filho, que havemos ns de fazer, seno ajudar este homem a defender este reino! Foram para junto do Rei e Joo Fernandes contou-lhe a marcha de arrancada que tinham feito para chegar a tempo. Do corao da Beira para Coimbra, dali a tomar, a Ourem, a Porto de Ms e de l, com a peonagem quase esmorecida, os ps em sangue, e metade dos que trouxera, estropeados pelo caminho. Senhor, amos caindo em poder dos castelhanos! informava o Pacheco. Adiantava-me para uns oiteiros no intento de ver se a batalha se haveria j travado e seria para os lados de Leiria, quando demos f de ginetes mourisca, que andavam por ali como em reconhecimento daqueles stios. Tambm eles nos divisaram e como que pareciam surpreendidos. Vieram avanando a passo, enquanto uns poucos deles deitaram para traz desfilada, certamente para levar a notcia do encontro. Muito ao longe se levantou uma tamanha nuvem de poeira, que tudo encobria em guisa de nvoa! Para l se sumiram os que tinham partido desfilada. Depois, uma aragem desfez aquela nuvem e eu vi a grande multido que subia aos cabeos, atulhava o caminho e vinha galgando os oiteiros, enxameando pelos pinhais, transbordando pelas baixas fora, assim como se fosse a cheia de um grande rio! Era a hoste de Castela! disse El-Rei. Senhor, outra coisa no podia ser! O sol, a surgir, j se lhes espelhava nos bacinetes e nas pontas das lanas. Ento devem estar chegando. Veem muito vagarosamente e, de vez em quando, param esperando uns pelos outros. Os caminhos trilhados no chegam para tal multido! Mal que isto vi, voltei para a nossa gente rdea solta, e para aqui viemos. Pois bons companheiros nossos heis de ser vs, os da Beira. J c tinha os do cerco de Lisboa, alguns dos Atoleiros, alguns que venceram no Minho; boa conta nos faz esse punhado de homens que desbarataram os castelhanos em Trancoso. Punhado de homens, bem o dizeis, Rei e senhor. No podamos trazer mais, sem deixar ao desamparo de gente de guerra todas aquelas terras da Beira, j ameaadas pela hoste de D. Carlos de Navarra. Eu sei. Coisa semelhante me sucedeu entre Douro e Minho. Foi escasso o nmero dos que de l trouxe, para no deixar aquelas terras desguarnecidas. Descontai agora a gente que se no podia tirar das muitas vilas que ainda esto por D. Beatriz, e Santarm entre as de mais povo, e aqui tendes porque eu trago comigo pouco mais de metade da gente que teve o senhor D. Afonso Henriques na batalha de Ourique, vai em trezentos anos. Chegou o velho Montferrat. Senhor, venho fazer-vos uma profecia. Tende por certo que esta batalha a heis de vencer vs. Em cima deste pequeno outeiro os vossos homens esto resolutos; so muralhas de sangue que mais valem s vezes que as outras de pedra. Movem-se para aonde convm que se movam. Tenho entrado em sete batalhas campais, esta ser a oitava, e nunca vi homens de to alegre parecer, sendo to poucos espera dos muitos com quem ho de lutar. Dizem gracejos os esfarrapados da peonagem e aqueles rapazes da Ala dos Namorados fariam inveja ao rei Artur e aos seus cavaleiros de novela. Senhor, s se de todo vos desamparasse Deus, perdereis a batalha que esperais. Em Deus confio e, se a profecia sair certa, boas alvssaras vos hei de dar. Senhor, se a morte, invejosa de tamanha graa, volveu-lhe o gasco se no opuser a que eu as receba. O Condestvel veio da vanguarda num alvoroo de jbilo. J se percebe a tropeada distante dos cavalos, e para a extrema do caminho, at onde os olhos podem alcanar, se levantam nuvens altas de p Rei e senhor, enfim a hoste de Castela que chega! Pois grande vspera ter este ano em Portugal a Senhora da Vitria. Conde, vamos l ver como eles aparecem. Meteu o cavalo a par do mulo em que o Condestvel andava montado e foram para a vanguarda. Daquela parte mais alta do outeiro descobria-se melhor um largo trecho da estrada. Os Namorados fizeram aos dois uma aclamao entusistica. As nuvens de poeira avanavam um pouco mais, mas de repente imobilizaram-se na baixa da estrada, cerca de meia lgua do ribeiro da Calvaria. Parece que pararam! disse o Condestvel numa desafogada impacincia. O Rei estava de olhos fitos no caminho. Um dos escudeiros de D. Nuno veio dizer-lhe que, do lado oposto ala esquerda, a coisa de um quarto de lgua, nos barrocais de um pinhal se divisavam uns vultos de mulheres. O Condestvel, cheio de estranheza, foi ver. Faziam acenos. K j uns trs ou quatro Namorados tinham vindo da direita para as observar. Os arqueiros ingleses faziam-lhes de c momices agaiatadas. Contiveram-se assim que o Condestvel chegou. Mulheres de aventura e m nota ho de ser, disse Nuno lvares de rosto avincado mas, por Deus, que se os castelhanos se demoram, dali as mando escorraar. Senhor Condestvel, uma daquelas mulheres sei eu que vale pelo mais destemido homem. uma velha que a minha me recebia na sua casa e eu muito conheo do cerco de Lisboa, onde pelejou contra os de Castela e uma vez foi gravemente ferida. Est bem, Ruy de Vasconcelos. Isso me basta saber. Ruy ainda lhe contou outros pormenores a respeito da tia Lourena. Entretanto, na frente, o Rei notava com estranheza que o exrcito inimigo no avanava. Os vagares com que eles vm! Mas, como se o quisessem desmentir, surgiram fortes esquadres de ginetes mourisca, em galopadas pelas ladeiras, a larga distncia da estrada, para um e outro lado. Era j meio dia. O sol queimava. Ora graas que chegam! Ide dizer ao senhor Condestvel que esto avanando disse El-Rei para um dos escudeiros. Os ginetes inimigos vieram de carreira para a frente do caminho e para um e outro flanco se espalharam chusmas numerosas de besteiros, uns dois mil talvez. Agora essas lanas bem firmes, depressas os virotes e as frechas e alma resoluta, homens de Portugal! gritou D. Joo. Ouviu se um rumor soturno de vozes, cortado pelo rudo de armas que se moviam. guardava-se a investida. O Condestvel chegou da retaguarda. Est cada qual no seu lugar disse ao Rei. Ano serem os da cavalaria mourisca, os outros estacaram ali na baixa. Enchem-na de ls a ls, a perder de vista! observou o Arcebispo de Braga. Era um dos do estado maior do Rei aquele prelado combatente. Sob a sua armadura de campeador a roqueta prelatcia, na cimeira do bacinete, em vez de plumas, uma pequena imagem da Virgem, de prata dourada. A seu lado, um clrigo de sobrepeliz com uma alta cruz de prata. Melhor! Melhor! disse D. Nuno, volvendo para o cu os seus olhos azuis de mstico sonhar. S aquela cavalaria de ginetes notou Montferrat e mais numerosa que toda essa que tendes aqui, senhor Rei. Fiai da gente apeada o melhor da vossa batalha, como os ingleses em Crcy e Poitiers. Em Crcy, senhor Rei, vi eu menos de trinta mil ingleses pondo em desbarato setenta mil da hoste de el-rei de Frana, Filipe de Valois. Foi tambm no ms de agosto e quase ao fim do dia. Tinham boa ordem, excelentes arqueiros e quem os mandasse bem esses que ali venceram. Era de pouco mais do dobro a hoste de Frana, objetou-lhe o Rei a meia voz e aqui os de Castela ho de ser cinco vezes os nossos! Grande desigualdade, por vida minha! Muito maior ainda que em certa batalha que eu ouvi contar aos velhos de Flandres cheios de orgulho por ela. Por traz de um canal, vinte mil flamengos venceram 47000 franceses de Roberto de Artois. Mas, por tudo isto, vos aconselho, Senhor, que pelejeis de p em terra, bem firmes aqui, tomando a lio daquelas batalhas. Temos lio de casa, messire Joo de Montferrat acudiu o Condestvel. Nos Atoleiros mandei apear todos os meus cavaleiros e aqui o mesmo ser, que assim o decidiu El Rei comigo. E se vencermos, o feito valer mais que esses dois de que vs falastes. Como vejo ainda a cavalo todos os fidalgos da hoste... A seu tempo ho de pr p em terra, explicou-lhe o Rei afetuosamente pois que, por quantas informaes eu tive, bem sabia j que eles trazem talvez oito vezes tantos homens de armas a cavalo como eu aqui tenho, que no passam de mil e setecentos. Percebeu-se um movimento de surpresa e uma certa hesitao nas avanadas inimigas, mal descobriram bem a pinha de homens que ocupava o outeiro. E ali se ficam! exclamou o Condestvel numa impacincia nervosa. Andam ento aqueles gafanhotos amouriscados aos saltos a fazerem- nos negaas de longe! disse o Arcebispo com o seu feitio jovial, apontando os esquadres dos ginetes. Evidentemente as primeiras colunas dos castelhanos guardavam qualquer resoluo superior. Entretanto, mais de mil ginetes galopavam para alm do ribeiro da Calvaria, sobre a esquerda dos portugueses, e foram ladeando ao largo, na direo da chapada de Aljubarrota. Iam reconhecer o terreno, provavelmente. Pouco depois voltavam para traz desfilada, e as primeiras massas da hoste comearam a deslocar-se para a sua direita e foram subindo lentamente, a um quarto de lgua para alm do ribeiro. Viam-se bem do cimo do outeirozito. Escapam-se-nos! rouquejou o Condestvel, gesticulando num assomo de desespero. Ou vo tomar-nos o caminho de Lisboa, ao largo e pelo seguro! lembrou o Arcebispo. No podemos ficar aqui pasmados. Temos de ir sobre eles! disse impetuosamente D. Nuno. Deixai ver, deixai ver se lhe percebemos o intento volveu-lhe o Rei serenamente. Vamos para a retaguarda observar o caminho que seguem. E foram rapidamente para o lado da charneca.
* * *
O pesar do demo, que se nos vo embora sem lutar! disse algum na arraia da peonagem. que iro primeiro jantar a Aljubarrota. Isto h de passar j do meio dia. boa hora. Voltaro depois de jantar, e ainda nos apanham em jejum! dissera com o seu feitio jocoso o Bernardo Pingueiro. Afastam-se de ns! exclamou Ruy de Vasconcelos para o Magrio. Ou ento levam o intento de nos investir pela retaguarda, mais desafogados na charneca. Pois olhai que no outro o seu intento! Ou, como trazem tanta cavalaria, lembrou Vasco Eanes talvez queiram seguir sobre Lisboa, pondo sete ou oito mil de cavalo na sua retaguarda, a esperarem que nos mudemos daqui para irmos na sua perseguio. Ali na chapada de Aljubarrota, ou na baixa de Alcobaa, no seria maravilha que os seus tantos milhares de cavaleiros derrotassem os nossos poucos de acavalo e toda a peonagem nos esbandalhassem. E a gente de p ainda mais que a de cavalo! indicou o Lobeira. Vo encher a charneca de ls a ls! Era um espetculo assoberbador para os escassos sete mil combatentes do rei de Avis aquele da multido armada, descrevendo lentamente com as suas colunas irregulares, e profundas, uma grande curva para os lados da planura de Aljubarrota, semi velados a espao por nuvens de poeira, densas e altas. E todavia, ainda gracejavam e riam os pobres chamorros em jejum, encurralado naquele outeirozito, reduto sagrado de uma bandeira em que a alma da ptria esvoaava palpitante! Vinha desfilando de longe a massa enorme dos no combatentes, entre alas dobradas de besteiros e esquadres de ginetes. E com eles setecentas carretas, rcuas interminveis de azmolas carregadas e oito mil cabeas de gado para sustento da hoste. Eram deliciosos os comentrios dos rotos. Gentes, olhai que eles trazem mais bois e carneiros do que ns temos aqui de homens armados! E aqueles, pelas armas, contam-se pelo dobro. Cada boi duas lanas acudiu o Bernardo Pingueiro. Mas fazem mal esses asnos castelos neste alardo nossa reveria. Com a fome com que a gente est, depressa nos vamos esquecer de tanta cavalaria, e somos capazes de vencer a batalha s para nos atirarmos aos bois. Um boi pra cada um e ainda podamos levar carne pra Lisboa! Eu no matava o meu; escarranchava- me nele e assim entraria na cidade, a levar-lhe a nova da vitria. Olhai! Aquelas bisarmas em cima de carros! Sero os trons? Isso sim! Daqui se est a perceber que so caldeires explicou o sapateiro. Ali que eles fazem a batelada, o bazulaque (*) para aquela canzoada toda.
[(*) Guisado do fgado e bife de vaca.]
Mas os tais trons que a gente ainda no viu! Vi-os eu. J l vo pra diante. Cada zorra a quatro juntas de bois com os trons em riba! Mas no se viam bem por causa do p e dos muitos de acavalo que iam em volta deles. E aquela capelinha que j l vai adiante! Capelinha?! Sim. Em cima de um carro de mulas. Talvez seja do rei deles para as suas devoes. E foi ao p da capelinha que divisei umas poucas de andas. (*)
[(*) Liteiras de varais.]
A essas as vi eu. Talvez levem damas. Reparai agora, l adiante, naquelas tantas plumas da fidalgaria deles! Parecem bandos de pssaros de muitas cores, a voar! E os pendes e as bandeiras! Tantos, que chegavam bem para cobrir a Rua Nova de Lisboa! E a luzir neles o oiro e a prata, que at faz encandear a vista! No, com o sol que est, o que mais luz so aquelas ricas armaduras que eles trazem. Quando ali passaram em frente, at os olhos se doam de tamanho brilho! C os nossos, vista daqueles, ainda fazem menos vista que os nossos trapos ao p da armadura del-rei! Logo, com o sangue, que se h de notar quem faz mais vista.
* * *
Assim que El-Rei viu completo o movimento torneante dos castelhanos e a sua primeira linha a tomar formatura na charneca, de rosto para a gargama do outeiro, a pouco mais de um quarto de lgua de distncia, percebeu logo que o intento deles seria atacar a posio do lado da planura. Tinham evitado um ataque de frente pelo terreno de maior relevo e aspereza e buscavam aquele, plano e fcil, onde a sua poderosa cavalaria mais desafogadamente se podia desenvolver. Cortavam assim o caminho de Lisboa aos portugueses e ficavam em condies de impor-lhes uma derrota inevitvel, se cassem na louca temeridade de abandonar o seu cerrado. El-Rei mandou fazer uma mudana de frente, movimento perigoso naquela conjuntura, se a primeira linha inimiga imediatamente os investisse. Fez-se cautelosamente. A hoste do Rei abriu ao centro uma clareira por onde as bagagens e a peonagem dos rtos foi rapidamente ocupar a primitiva frente. Depois a antiga vanguarda e as alas convergiram para a nova frente por aquele caminho interior. Efetuado este movimento, a gente do Rei fechou a clareira aberta ao centro, constituindo outra vez a segunda linha de batalha. A garganta daquele empolamento do terreno, cingida pelas (.luas linhas sinuosas dos ribeiros, reduzidos a uns fios de gua, mas com os leitos um pouco embarracados pelo ltimo inverno, no se podia prestar a uma frente de ataque superior a trs mil passos. Todavia a cavalaria ligeira e os besteiros facilmente conseguiram transpor aqueles obstculos e a investida de frente podia conjugar-se com ataques de flanco e pela retaguarda, intentados pelos ginetes e pela peonagem. Os de Castela podiam atacar de frente, em cunha, embebendo-se pelo outeiro dentro; seria uma enorme cunha de quinze ou dezoito mil homens com uma base de desenvolvimento de quase meia lgua e um gume em que a extremidade fosse representada por trezentos a quatrocentos cavalos. Sem delongas na investida, o desastre dos portugueses seria inevitvel, sobretudo durante a mudana de frente, e ento os castelhanos resgatariam o erro temerrio da sua marcha de flanco, apenas justificvel por saberem, como decerto sabiam, de qual escassa cavalaria dispunha o rei de Portugal.
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Tudo p em terra! mandou D. Joo. E ao Marechal recomendou fosse ordenar a melhor defesa do terreno onde se tinham ido acolher agora os no combatentes e as bagagens, por efeito daquela mudana de frente. Ruy, que vos parece a volta dos castelhanos e qual intento lhes supondes? perguntou-lhe o Magrio. Parece-me que frente que tnhamos a no podiam facilmente investir de rosto os cavaleiros de Castela por aquele terreno alto e de ribanceira. Agora, deste lado, a entrada que defendemos est mais exposta s arremetidas dos seus cavaleiros, que tm ali para diante cho plano por onde se desafoguem, se o souberem aproveitar. Se os trons alguma coisa valem, mesmo da planura nos podem enfiar os pedregulhos por esse portelo dentro contra a pinha de homens que somos aqui. Se eu fosse de Castela e alguma coisa mandasse, punha os trons ali na ch, de boca para ns, e quando eles tivessem assustado mais a peonagem de c, atirava aqui para cima o enxame de besteiros que eles trazem. Sero quase dez vezes os que ns aqui temos. E aquela tanta e soberba cavalaria que tm ficava de p nos estribos a ver como ns nos defendamos? No. Cercava-nos por essa terra ch que temos em volta e, quando nos fosse indispensvel retirar, caam eles sobre ns, a quatro ou cinco para cada um de c, e era derrota certa. Mas sou portugus, estou por Portugal, e como nosso voto r propsito vencer ou acabar aqui, melhor esta disposio que temos agora. Pela retaguarda no ser fcil nem seguro retirar, e quando nos virmos perdidos, o melhor caminho ser arremeter por este portelo fora, numa arrancada para morrer mais depressa. E ser intento deles cercar-nos? No sei, mas desconfio que veem mal mandados e, pelo quo vejo, me parece que trazem pouca ordem. Fizeram o melhor que podiam fazer no seu proveito, no nos atacando de rosto do lado de Leiria e tomando para aquela largura de campo onde podem mover-se mais sua vontade. Ali Nilo eles que nos cortam o caminho de Lisboa e no ns a eles. Por ali iro avanando direitos ao seu fim, ainda que daqui os rebatssemos, e, nesta charneca ou na baixa de Alcobaa, a sua cavalaria nos conteria, embora daqui sassemos para os perseguir. Por maiores que fossem as nossas faanhas, chegariam a Lisboa primeiro do que ns, e l tinham a armada para lhes dar apoio. Diacho! Estamos em mau passo! comentou o Magrio. Mas estamos em boa disposio para nos aguentarmos aqui. Devemos contar primeiro coma nossa alma para suprir a pequenez do nmero; depois com a soberbia desdenhosa daqueles homens, que alguma loucura podero fazer no nosso proveito, fora de nos desprezarem. E l continuam parados, de costas para Aljubarrota, como se estivessem agora a tomar conselho e no trouxessem resoluo segura! Talvez esperando que toda aquela carrearem e gente de acompanhar se lhes v passando para a retaguarda. Se ns em vez de mil e setecentos de cavalo tivssemos trs ou quatro mil... E, mesmo assim, menos da tera parte da cavalaria que eles tm... Poderamos ir daqui numa arremetida pr tudo aquilo num novelo. Que somos poucos o sabem eles perfeitamente e pelo saberem se atreveram a dar a volta, buscando o melhor campo. Estou a ver que ainda no para hoje a batalha! E aqui ficaremos espera do que eles resolvem! Reparai. Esto a meter para a frente as filas dos ginetes. E outros l vo de galopada ali para o caminho de Porto de Ms. E mais esquadres para este lado de c! Ento nos vo pr cerco! Tm cavalaria que chegue para tudo o que eles quiserem. Ento ainda bem, que se vai decidir isto com o sol alto, para eles verem bem como aqui se morre. De fome, se nos cercarem objetou um deles. Decorreu ainda meia hora de incertezas e impacincias. Afinal daquela massa enorme de guerreiros, que enchia a planura de ls a ls, destacaram-se cinco cavaleiros. Um deles trazia uma bandeirola branca de parlamentrio. Adeus! exclamou o Magrio retomando a sua feio jocosa. A nos veem pedir desculpa da demora e oferecer-nos trguas para eles jantarem.
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Os cavaleiros que vinham parlamentar aproximaram-se da vanguarda portuguesa, at ficarem ao alcance de voz, e um deles gritou em portugus: Eu, Diogo lvares Pereira, irmo do vosso Condestvel D. Nuno, aqui venho requerer-vos lhe deis notcia de que muito lhe peo me venha ver e falar Foi reconhecei o um dos cavaleiros portugueses das primeiras filas da vanguarda. E a esse declarou Diogo lvares Pereira que os seus companheiros eram D. Pedro Lopes de Ayala, cavaleiro fidalgo e chanceler-mor del-rei de Castela, D. Diogo Hernandez, marechal da hoste, e dois nobres senhores de Gasconha, que vinham somente para conhecer o homem de soberba fama que era o Condestvel D. Nuno. Mais acima, El-Rei viu e reconheceu o irmo do Condestvel, e ele prprio lhe deu aviso do pedido. Ide precatado recomendou-lhe. Um companheiro me basta respondeu D. Nuno. E foi falar-lhes, levando apenas um dos seus cavaleiros. Demorada e de pueril discusso aquela entrevista. Nuno lvares a todas as alegaes e a todas as farroncarias e astuciosas propostas opunha a sua inabalvel esperana em Deus. E s insistentes exortaes do irmo respondeu com severa frieza e por fim com dura repulso. Tinha percebido bem o estratagema que vinha escondido naquelas desvairadas propostas, espantosamente insensatas em semelhante conjuntura. O que eles queriam era tatear lhe o nimo e observar de perto a posio, as foras e o aspeto da hoste portuguesa. Para isto ia com eles aquele experimentado estadista e homem de guerra que era Ayala, um dos mais cultos e rtilos espritos que tinha ento Castela. Era este quem mais desviava o olhar para a rampazita do outeiro, em busca de aspetos que lhe dessem impresso segura a respeito daquela posio e dos seus defensores. E sabe Deus com que pesar de no poder ir por ali dentro para ver tudo muito ao seu salvo. Quando j no tinham mais que sondar, nem mais lhes era dado ver, retiraram-se. O Condestvel voltou a sorrir. O Rei esperava-o. Esto com receio. A fingir que tinham d de ns e me queriam mudar para si, ali vieram ver como os Chamorros estavam de alma e de foras. Foi para isto que eles c vieram. E mais para escolher a poria por onde tero de entrar volveu-lhe o Rei sorrindo. Ficai certo que nos temem, bem que um deles me dissesse que os seus eram dez vezes mais que os nossos. Tanto no direi. Isso foi farronca para nos amedrontar. Mas est aqui ao p de ns alguma coisa que para eles vale o tresdobro da gente que temos O qu, senhor? O vosso nome, D. Nuno e, como ele, esses dois nomes que eles no podem esquecer: Atoleiros e Trancoso. E o vosso, Rei e chefe maior da hoste!
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Ainda umas largas horas de espera naquela afogueada tarde de agosto! Um doente e um irresoluto, D. Joo de Castela hesitava entre os prudentes conselhos dos poucos homens experimentados que tinha ao seu lado e os mpetos insofridos dos jovens cavaleiros de Castela e de Frana, a instarem por uma arremetida imediata contra os chamorros, soberbamente desdenhados por eles. Lopez de Aila, um experimentado da batalha de Najera, lembrava lhe confidencialmente os perigos da investida, vista a m ordem em que estava o seu exrcito e a disposio resoluta dos portugueses no seu cerrado defensivo. E para melhor persuadir o rei a seguir-lhe o conselho, punha em ao todos os seus estratagemas de diplomata e toda a sua imaginao de novelista, chegando a inventar que em volta do campo portugus havia barrancos da altura de um homem, que os pees no podiam galgar, e arroios de dez a doze braas de altura que nenhuma cavalaria ousaria transpor! E como ainda isto lhe parecesse pouco, lhe observara que ainda vinha pelo caminho uma parte da peonagem mais cansada. Podia ao seu salvo inventar a mais fantstica topografia do campo de batalha, sem que o rei o pudesse contradizer. D. Joo viera numas andas, a arder em febre. Nada vira e agora nem tinha alento sequer para ir observar o terreno e a sua hoste, como faria qualquer chefe medianamente cauteloso. Dbil, taciturno, de poucas falas, o jovem monarca, um ano mais novo que o de Portugal, punha olhares vagos de hesitante em volta de si, e no tomava resoluo!
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O sol est aqui est a sumir-se, dizia o Magrio para os rapazes e aqueles desalmados no atam nem desatam! Ainda se esta espera no fosse em jejum! So capazes de nos enganar com aquele aparato dos ginetes, e escapulirem-se nos! lembrou o Lobeira. E o que eles no podiam adivinhar era o que se estava ento passando no conselho de guerra, convocado por el-rei de Castela para resolver afinal as suas mortificadoras hesitaes. Ayala expusera lucidamente quanto vira e observara, afirmando que a hoste portuguesa no esperava nem queria outra coisa seno entrar em batalha. E era ele quem mais insistia pelo adiamento da luta, propondo que esperassem no terreno plano de Aljubarrota, ou que os portugueses arrancassem daquela posio, mal vissem que os de Castela os ficavam esperando, ou que, por temor e por falta de mantimentos para mais de um dia, pela calada da noite se pusessem em fuga, deixando livre aos castelhanos o caminho direto para Lisboa. E, em defesa deste parecer, continuou a exagerar eloquentemente os obstculos do terreno, alegando a impossibilidade de desenvolver as longas alas do exrcito, para que dessem apoio vanguarda no seu ataque de frente. Todos os conselheiros de maior experiencia e mais refletido nimo foram deste parecer, e alguns at exageravam o cansao da peonagem, alis injustificvel, pois que fora de pouco mais de duas lguas a marcha para ali, e em Leiria tinham tido um descanso de dois dias. No faltou tambm quem notasse a inconvenincia de travar batalha quase ao fim do dia. Entrou tambm na discusso um velho cavaleiro do rei de Frana, Joo de Ria, muito da intimidade de el rei de Castela. Era homem de autoridade pelos anos, pela categoria e pela experiencia. Entrara em muitas batalhas contra os mouros de alm-mar e contra os ingleses. Com estes se batera em Crcy e Poitiers, e destas duas batalhas tirou lio para demonstrar aos impacientes que a vitria mais dependia da boa ordenana das tropas do que do grande nmero delas. Os ingleses do rei Eduardo de Inglaterra e do Prncipe Negro, alegou, tinham vencido pela sua excelente ordem de batalha e no porque fossem em maior nmero que os de Frana. Disse que as fogosas impacincias dos cavaleiros franceses tinham levado o rei de Frana a travar batalha quase ao fim do dia, e das suas desdenhosas temeridades resultara o enorme desastre da hoste francesa em Crcy, duas vezes maior que a do rei Eduardo. Tempo perdido e palavras ao vento. Quando os valentes de Gasconha e os cavaleiros novios de Castela viram que o rei ia tomar o parecer dos prudentes, de tal modo se julgaram afrontados que, em voz alta, deram ao adiamento da batalha o significado de cobardia e vergonha sem remdio para to poderoso exrcito. Um inexperiente e um irresoluto, agora ainda de mais quebradia vontade, queimado pelas febres que o traziam abatido, o rei deixou-se levar pelas bravatas dos inscientes e dos farronqueiros e afinal se decidiu por eles. A fanfarronada vingou. Tinha de ser. No dizem as crnicas o olhar de mgoa que Lopez de Ayala teria posto no rosto do velho Joo de Ria.
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To longas demoras tinha havido, que chegaram para aquele arrastado conselho de guerra e para armar a grande tenda do rei e as outras para o seu estado maior, donzis, pajens e escudeiros, e para as enormes bagagens reais. Ainda que muita peonagem viesse atrasada pelo caminho, como alegava Lopez de Ayala, o tempo das irresolues teria dado para andar trs lguas em passo de mulher, e de Leiria ali apenas havia umas duas lguas e meia (13 quilmetros e meio pela estrada moderna). No haveria muito mais de meia hora de sol quando os ginetes do Mestre de Alcntara, at ali em espaventosas correrias mourisca pelos flancos e retaguarda dos portugueses, comearam a apertar mais o seu semicrculo em volta do outeirozito. Vibraram intensamente as trombetas de Castela, centenas delas, dando o sinal da batalha, Senhor, enfim! disse o Condestvel para o Rei. Agora que , e boas vsperas vai ter Santa Maria de Agosto. Deus seja por ns todos e pela nossa bandeira. Apeou-se e despediu se do Rei, correndo para a vanguarda. Trombeteiros, vamos! Tangei-as bem alto; no vo dalm supor que estamos aqui encolhidos de medo. Homens, alma para derrotar ou para morrer depressa, que este pr do sol tem de ser hoje de vida ou de morte para Portugal. Os rapazes da Ala dos Namorados tinham-se enfileirado numa impacincia febril, a sua bandeira verde a esvoaar brandamente na aragem daquele cair da tarde. Na retaguarda o Mestre, apeado tambm, de lana na mo, falava calorosamente sua gente, levando ao seu lado o Dr. Joo das Regras, de bacinete e arns, braais, coxotes e manoplas como um lidador de batalhas. Mantenha-vos Deus, senhor Rei, e nossa terra convosco! dizia-lhe comovidamente a soldadesca rota. O Arcebispo de Braga andava de um para outro lado exortando os guerreiros em nome de Deus, a roqueta por cima do arns, como j sabemos, na cimeira do bacinete a pequenina imagem dourada da Me de Jesus. Levava diante de si um clrigo de cruz alada. Era aquele o ajudante de campo do famoso prelado. Indicava D. Loureno Vicente as indulgncias concedidas pelo Papa Urbano VI queles que combatessem os cismticos, e os castelhanos, dizia-lhes, eram dobrados inimigos por serem cismticos do anti-papa Clemente e por quererem tirar a Portugal a independncia que ele ganhara custa de muito sangue e esforo. Irmos meus, quando fordes com eles, dizei repetidas vezes: Et Verbum caro fatum est. A gente mida no sabia latim e um besteiro do Condestvel traduziu de brincadeira para os outros: Caro feito vai ser este na verdade. Um tio clrigo que eu tive, disse-me uma vez que o latim se punha na nossa linguagem de traz para diante. Mas quando o Arcebispo chegou Ala dos rtos e lhes repetiu o latim, quem fez aos camaradas a traduo de mais chiste, mal que D. Loureno voltou costas, foi o Bernardo Pingueiro. Quereis saber o que o tal latim quer dizer? V, v l, depressa que o sarrabulho no tarda. Ento l vai: Et Verbum, est de ver; caro fatum est, que temos de fazer boa cara, mesmo em jejum, pois que este o facto. Achais palavras de mais? Pois ficai l sabendo que o latim lngua de sola e vira, que precisa de encspias para lhe caber dentro o nosso portugus.
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A vanguarda parou outra vez! disse o Condestvel a Mem Rodrigues, que viera da sua ala para lhe falar no voto dos Namorados. Como se estivesse a esperar alguma coisa! Heis de ver que naqueles vagares nos chega a noite primeiro do que eles! E acerca do que vos falei, o que resolveis, senhor Condestvel? Deixai ver se os trons aparecem e ento ser o que eles Sedem. Ali tendes a resposta acrescentou apontando para a direita do exrcito castelhano. A sua vanguarda enorme de 1600 lanceiros da soberba cavalaria fidalga, apoiada por seis mil pees, de bestas e lanas, movera-se lentamente, abrindo no flanco esquerdo uma clareira por onde vinham assomando em linha os dezasseis trons sobre zorras, a trs juntas de bois cada uma. As linhas avanadas tornaram a fazer alto e as zorras dos trons, seguidas de um esquadro, avanaram vagarosamente at distncia de dois tiros de besta do outeiro. Ali pararam e a peonagem tirou os bois e levou-os para traz, a larga distncia para que no se assotassem com os tiros. J no temos mais de meia hora de sol e eles com aqueles tropeos! disse freneticamente o Condestvel. Pois esses Namorados, que tiraram sorte para o feito, que montem e partam, se virem que o dano de assustar. Mem Rodrigues retirou-se. V, um pouco mais para diante, devagar, lanas firmes debaixo do brao mandou o Condestvel. Os detrs, que no puderem alcanar o inimigo com as ascumas, que aguentem bem os da frente, se o combate os fizer recuar. Vibrou ento nos ares um brando fremente. Era o mote dos Namorados que reboava no timbre de cento e oitenta vozes jovens, naquele entardecer de agosto, que podia iluminar o enterro de uma nacionalidade ou a epopeia maior de um povo. De sbito chamejaram dois trons na vanguarda dos castelhanos, um pouco sobre a sua esquerda. Uma fumaceira espessa e escura toldou os ares, a seguir a uns estampidos que deram a impresso de um abalo de terra. E imediatamente dois escudeiros da vanguarda de Nuno lvares caram espedaados, um ao p do outro, e um arqueiro ingls foi partido pelo meio. Eram as primeiras vtimas dos truenos castelhanos, daqueles formidveis troves com que eles contavam apavorar a gente portuguesa. Efetivamente, a primeira impresso foi de pavor, principalmente na peonagem da vanguarda, que se desordenou profundamente. Os trons! Os trons! Espedaam-nos aqui! disse um pajem, a recuar amedrontado. E dos barrocais que ficavam para os lados do ribeiro da Cavalaria revoaram gritos aflitivos de mulheres. Da frente veio na aragem uma algazarra festiva dos castelhanos! Mas truenos! Mas truenos! Mas os corcis e os ginetes da sua primeira linha, de narinas dilatadas, olhos espavoridos, em corcovos febris, numa tremura nervosa, enovelaram-se contra a extrema direita, produzindo uma enorme confuso, que lhes tornou impossvel o arranque da carga, Gentes, firmes! S. Jorge e Portugal! gritava o Condestvel na frente de todos, a p, alando a devota bandeira, havia instantes arrancada das mos do seu escudeiro. O que ele queria era reanimar a peonagem, que punha nele uns olhares de pasmo e de supersticioso terror. E logo um dos seus cavaleiros mais experimentados gritou para os rsticos: No vos amedronteis. Livrou-nos Deus desses dois escudeiros, que no eram dignos de aqui vir, pois tinham crime de morte de homem numa igreja. Foi castigo de Deus, era s para eles. Ns hemos de morrer pela Nao e por El-Rei, pouco importa como acudiu o Condestvel. Vencedores dos Atoleiros, sede como ento fostes! Da Ala dos Namorados j se tinham destacado de arrancada sobre o flanco esquerdo da vanguarda inimiga os quarenta sorte para o cumprimento do voto. Eram os nicos portugueses que estavam a cavalo. De lana em riste, deitaram desfilada. Na frente ia Ruy de Vasconcelos, bradando: Pela nossa terra! E os que ficaram clamavam comovidamente: Namorados! Deus seja por vs! Aqueles que no tm medo dos trons e l vo para eles! Outro relmpago, outra densa fumarada, um estrondo de abalar, mas da hoste portuguesa no caiu ningum. A vanguarda portuguesa avanara uns passos lentamente, Nuno lvares na frente, agitando a sua bandeira das campanhas do Alentejo e do Minho. Ao ribombo do terceiro tiro dos trons sucedera uma gritaria enorme de lado dos castelhanos Foi voto de morte o voto daqueles Namorado! dizia um dos fidalgos da vanguarda portuguesa. Sumiram-se! No voltam c! O Condestvel mandara fazer alto, espera que a avanada inimiga, ainda numa grande confuso, arrancasse para ele.
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Entretanto, Ruy chegara com os seus quarento at junto da peonagem que guarnecia os trons. S. Jorge e Portugal! bradou, investindo com eles. Caram uns poucos trespassados de lanadas e os outros recuaram surpreendidos, abandonando os truenos. Convergiram ento contra aqueles temerrios mais de duzentos cavaleiros, e na frente deles um de plumas vermelhas no bacinete e no escudo esta divisa em portugus: Por Magdalena de Mendona. Trazia bacinete de cara, (viseira cada) mas Ruy no precisava de lhe ver o rosto. O mote do escudo dizia-lhe bem quem era. Graa de Deus, que te encontro, vilanaz! gritou, arremetendo para ele de lana enristado. Ento Gonalves soltou uns rugidos rouquejantes, uns gritos inarticulados, e lanaram-se um contra o outro desesperadamente, enquanto os quarenta se batiam com admirvel intrepidez contra o numeroso esquadro inimigo. Mudo, arranca uma palavra dessa alma danada! bradava o Vasconcelos, apertando com ele. E o outro, de p nos estribos, respondeu-lhe num regougar de fera, estendendo a lana, com mpeto enfurecido, para lha cravar na garganta. O Vasconcelos percebeu-lhe o intento e evitou o golpe torcendo-se no selim e levantando-lhe a lana com a haste da sua. Por Magdalena de Mendona, a minha dama, a minha noiva., que hs de morrer aqui! A ala que siga! gritou algum em castelhano, num tom spero de comando. A vanguarda j est investindo com os chamorros do rei de Avis! gritou outro tambm em castelhano. Sentia-se o rudo cavo, enorme, de muitos cavalos a galope, a vibrao convulsiva dos brados de alarde. O combate singular entre Ruy e Vasconcelos e Anto Gonalves recrudescia com mais desvairada fria. Mais pra mim, ladro de mulheres! rebramia o Vasconcelos. O outro deu uns gritos informes, que pareciam uivos de um dio imenso de morte. Mas os Namorados que no podiam aguentar o choque do esquadro. Tinham j cinco mortos e oito feridos. Rui! gritou Vasco Eanes. Esto investindo com os nossos e fazemos l falta! Deixa-me! rouquejou o Vasconcelos, arremetendo com mais fria para o seu odiado rival. Por Dios, que sigan esos de nuestra ala! gritaram muito da retaguarda. Uma parte do esquadro castelhano foi-se embora logo para a direita. Anto Gonalves! gritou em portugus um cavaleiro que chegava a trote do lado do inimigo. Os nossos l vo frente de todos. preciso ir ter com eles. Mas naquele mesmo momento o cavalo de Anto Gonalves caa varado por uma lanada que o Vasconcelos tinha enristado ao peito do adversrio e o corcel recebeu no pescoo, quando se empinava esporeado. O emudecido foi a terra. Ruy atirou o seu cavalo para diante, no intento de continuar o duelo, mas uns poucos de castelhanos se lhe opuseram, defendendo o fidalgo cado. Ruy, pela nossa gente, que lhe fazemos falta! disse-lhe, j ao lado dele, Vasco Eanes, deitando-lhe a mo de atleta testeira de ferro do cavalo, para lho deter. Ainda num turbamento de dio, o Vasconcelos procurou num olhar o outro cavaleiro portugus que chegara. Era um homem idoso. Trazia levantada a cara do bacinete. Viam-se-lhe bem as barbas grisalhas. Reconheceu o. Era o pai de. Magdalena. Por vossa linda filha, Gil Vasques de Mendona, eu vos prometo que hei de tornar a ver esse vilanaz de Anto Gonalves! Vamos, Namorados! E deitaram desfilada para a hoste portuguesa. Dos quarenta iam s vinte e nove, e desses alguns com ferimentos de gravidade.
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A vanguarda dos castelhanos, com as suas linhas de mil e seiscentas lanas de cavaleiros (quase tantos como os de toda a hoste portuguesa) e os seus seis mil lanceiros e besteiros apeados, avanara numa soberba arrancada. As alas que tinham ficado um pouco atrasadas; a direita (uns trs mil homens) por causa do pouco desafogo do terreno; a esquerda (com outra tanta fora) em consequncia do embarao que lhe causara a linha dos trons sobre as suas enormes zorras, que afinal abandonaram porque o sol ia a sumir-se e era preciso decidir a batalha, numa investida, antes que a noite chegasse. E, alm do mais, o terceiro trom tinha rebentado, espedaando uns poucos de homens, e por isso ainda de melhor vontade os deixaram emudecidos. Vinham na avanada, por farfantice de arrojo, os portugueses parciais de D. Beatriz, e com eles, de cotas de armas rutilantes, muitos dos mais altivos fidalgos das Espanhas, da Gasconha e do Bearne, que para ali se tinham reunido, abandonando a peonagem das suas alas. Entre os mais ilustres de Portugal, o Conde de Maiorca (ttulo dado pelo rei de Castela) D. Joo Afonso Telo, irmo de D. Leonor Teles e os dois irmos de Nuno lvares, Diogo lvares e D. Pedro lvares, que fora elevado dignidade de Mestre da ordem de Calatrava. Vendo que a hoste do rei de Avis os esperava com os seus cavaleiros apeados, mandou D. Joo Telo suspender a arremetida e encurtar as lanas para combater o inimigo apeado. Deu uma certa demora aquele trabalho de cortar ou quebrar uma parte da haste s compridas lanas que traziam para lutar contra homens a cavalo. Mas assim que um grande nmero as teve encurtadas, novamente as trombetas deram o sinal de arremeter, e foram todos eles sobre a gente do Condestvel com soberbo arranque, seguidos de uma parte da peonagem, numa apupada estonteadora aos chamorros. Centos de besteiros iam nos flancos e atrs das linhas dos fidalgos atacantes. A elos! A elos, los chamorros del-rei de Avis! A vanguarda portuguesa sustentou o embate com admirvel intrepidez. Na frente dela, o Condestvel fazia prodgios de esforo. De uma parte e doutra, ferindo e matando com louca ferocidade, soltavam o seu prego de guerra em gritos convulsivos, que s vezes pareciam latidos de lobos enraivecidos. Santiago y Castila! S. Jorge e Portugal! D. Joo Telo! gritou por desafio o Condestvel para o irmo de D. Leonor Teles, um dos primeiros e mais audazes frente da nobreza de Castela e de Frana. Condestvel! respondeu-lhe D. Joo Afonso Telo. Agora se decidir a contenda! E as fileiras da gente fidalga, cada vez mais profundas, contra as seiscentas lanas e os dois mil pees de Nuno lvares! Com os seus tiros de revs eram os arqueiros ingleses e os nossos besteiros os que mais seguro destroo faziam nas filas dos fidalgos inimigos e, principalmente, na massa tumulturia da sua peonagem. Vendo que as suas alas se iam fazendo ficadias, como diz Ferno Lopes, toda a nobreza jovem das Espanhas, da Gasconha e do Bearne veio da retaguarda para a investida, deixando as alas e o corpo principal ainda em mais estonteadora confuso. E deste modo, a primeira coluna de ataque, a enorme cunha contra o outeiro, compreenderia ento qua.se toda a gente fidalga da hoste, formando talvez uma massa no inferior a doze mil homens, sem contar os dois mil dos ginetes mourisca. Foi nesta conjuntura que Ruy chegou com os seus at junto do Condestvel, por entre as enternecidas aclamaes de toda a Ala dos Namorados, numa nsia de lutar que s a vontade inabalvel de Mem Rodrigues podia conter. Mas a coluna do Condestvel j no podia com o tamanho esforo daquele turbilho de homens, e rompeu-se. Franceses e castelhanos golfaram ento por aquela brecha dentro numa algazarra estonteante, em desafios de escrnio e em clamores soberbos de vitria. A batalha parecia perdida para os pobres chamorros. Em arremessos leoninos, com a sua bandeira dos Atoleiros cingida ao peito e a lana a relampejar nos ares, espelhando os rubros fulgores daqueles sol que se sumia moribundo, o Condestvel procurara morrer. Ala dos Namorados, a eles! trovejou a voz de Mem Rodrigues. Pela nossa terra e pelas nossas damas! gritaram. E toda a ala fez uma converso para se opor a que o inimigo chegasse at segunda linha da hoste. A ala de Anto Vasques fez um movimento idntico. Para a retaguarda, de lana erguida, num soberbo desespero, o Rei gritava frente dos seus homens de armas: Avante! Avante! S. Jorge e Portugal! Gentes! O vosso rei aqui est convosco, para vencer ou para ficar! E logo da estrema retaguarda, onde estavam encurralados os no combatentes, guardados pela arraia de ventres ao sol, reboaram gritos de pavor. Estamos cortados! Estavam sendo investidos pelos ginetes de D. Gonzalo Nunez de Guzman, Mestre dos cavaleiros de Alcntara. Era a segunda investida pela retaguarda. V-se que os ginetes galgavam bem os temorosos arroios. Minutos de torva angstia! Se a Ptria ia morrer ali semelhana daquele sol de ouro fulvo que se estava sumindo, como um claro mortio de brandes no final de um enterro?
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Combate formidvel de um quarto de hora, numa alucinao de vaidade dos que se consideravam j triunfantes e numa loucura de desespero desses que previam a agonia de Portugal, sem nenhum remdio, naquele lance desastroso. Na luta quase corpo a corpo, os castelhanos e os franceses deitaram fora as lanas, porque os embaraavam, e continuaram a batalha com as suas espadas estreitas (estroques) e as hachas de armas de ferro e de bronze, clavas formidveis com que os elmos se amolgavam e os crnios se faziam em pedaos. A muralha de peitos dos chamorros tinha por ali dentro uma profunda brecha aberta. Homens, para morrer! gritava o Condestvel com a jaqueta de l, que trazia sobre o arns, toda manchada de sangue, em relmpagos de fria leonina o seu olhar de mstico sonhador. Portugueses, toda a nossa alma nisto! bradava o Rei, quase ao p dele, a brandir a lana numa heroica arremetida. Nuno lvares, enquanto houver sangue! Por Deus, que se h de aqui sepultar Portugal, se no pudermos vencer! Senhor Rei, assim h de ser, ou aqui ficaremos todos! respondeu-lhe convulsivamente. E os coveiros connosco. Cruzavam-se os desafios e vinham dos jovens fidalgos de Castela e dos gasces retos de escrnio, bazfias de brutal ofensa. Farfantes de Gasconha, pra aqui! Para verdes como os Namorados morrem! bramiu Ruy de Vasconcelos, num frmito de clera. Pela garganta do outeiro j se no podia passar seno por cima de um estrado de cadveres. Apunhalavam-se no cho, em rugidos como arrancos, os que tinham ido a terra com as espadas partidas, aferrados num arranque de dio, lvidos, sangrentos, mos enclavinhadas no punho das adagas. Dera o combate numa alucinao horrorosa de duelos. Eram j enormes as perda do Namorados. Alguns tinham morrido abraados, a rouquejar o mote da bandeira, a murmurar um suave nome de mulher naquele sonho de morte. Em tal medonha confuso e no aturdimento dos golpes, das imprecaes e dos gemidos, ningum reparara em certo cavaleiro de capelo de ferro e saio de malha, como usavam meio sculo antes os guerreiros cristos. Chegara a galope desfechado. Vinha coberto de poeira; o cavalo caiu-lhe arquejante. Entrou na batalha procurando os Namorados. Pela nossa terra! Pelo velho Portugal! clamou. E a longa barba de neve, a ondear-lhe sobre o peito, dava-lhe o aspeto de uma apario de sonho. Ruy de Vasconcelos! Aqui me tens para morrer ao p de ti. Tio Mendo! E s lanadas aos castelhanos, o velho respondeu-lhe: Represento aqui o Portugal antigo de Cerneja e de Navas de Tolosa. Chamorros, entregai-vos! gritou o Conde D. Pedro, filho do Marqus de Vilhena, bisneto do rei D. Jaime de Arago, um dos chefes da vanguarda. Castelhano! Aqui ningum se entrega! bramiu Ruy de Vasconcelos, arremetendo para ele. E com um golpe a fundo o prostrou morto. Olhai a bandeira! recomendou o Vasconcelos aos seus mais prximos. Anto Gonalves vir cumprir o voto. Na falta de Mem Rodrigues, que tinham levado em braos com ferimentos gravssimos, Ruy era agora de facto o comandante dos Namorados. Vieram sobre eles, num mpeto, os gasces, e na sua frente o velho Joo de Ria, enviado do rei de Frana, o almirante D. Juan Fernandez Tovar, o mariscai (marechal) Diego Gomez Sarmiento e o senhor de Aljofrin. O Almirante intimou-os a renderem-se. Daqui s se rende quem morre! gritou o jovem Vasconcelos, indo para eles. E todos os rapazes da ala, metade apenas dos que tinham vindo para ali, alguns deles ainda de p a sobre posse, desfigurados e a escorrer sangue, todos eles como se tivessem uma s alma, bradaram o mote da sua bandeira: Pela nossa terra e pelas nossas damas! Recrudescia a luta. E por entre os castelhanos e gasces um guerreiro passou empurrando-os e regougando uns sons inarticulados. Era Anto Gonalves. Vive Deus! gritou Ruy de Vasconcelos. Namorados, mais perto essa bandeira para acabarmos a defende-la. Vem latindo para ela um traidor! Mas El Rei, fazendo prodgios de bravura, que Froissart memora na sua crnica, repelira esmorecidos os inimigos que mais se tinham internado, dera tempo ao Condestvel para reformar a sua peonagem enovelada, e vinha agora em socorro dos Namorados, cujas perdas, como j dissemos, eram enormes. O Condestvel investiu tambm com maior denodo frente dos seus homens de armas e os inimigos comearam a recuar num movimento revolto de desalento. Um fidalgo castelhano de agigantada estatura, D. lvaro Gonzalez de Sandoval, veio de arrancada para El-Rei. D. Joo levantou, contra ele a sua hacha para o deitar ao cho, mas o Sandoval conseguiu aparar-lhe a pancada e, deitando lhe as mos possantes hacha, com tal fora lha arrancou, que o fez cair ao cho de joelhos. Mataram El-Rei! gritou um pajem. Ainda no! rouquejou o Rei, levantando-se, ajudado por Martim Gonalves de Macedo. Ento o Sandoval, que acabava de derrubar ura fidalgo portugus, voltou com a hacha erguida para D. Joo. El-Rei aparou-lhe o golpe e arrancou-lha das mos. Sandoval caiu ento golpeado por um dos Namorados, Vasco Eanes, casualmente aproximado dele no revoltear da luta. Los cabalos! Los cabalos! gritaram alguns dos castelhanos, correndo para fora do outeiro. E quase todos eles foram ento de corrida para os pajens e escudeiros, que tinham ficado com os cavalos rdea. J no era para carregar; era para ir dali. Vo de fugida! gritaram alguns dos nossos. Bem-dito Deus, que os fizemos fugir! Deixaram ali no cho uma bandeira de Castela! avisaram da frente. As alas inteis e sem comando, dobradas contra o corpo principal, vendo aquela abalada confusa, imaginaram que fosse desbarato o que era somente um sangrento revs e, numa alucinao de terror pnico, deram gritos de alarme e de fuga, e elas ambas se enrodilharam, apavorando os quinze mil homens de guerra do corpo principal, que no faziam ideia precisa do que se passava. Como em todas as batalhas perdidas e em todos os exrcitos do mundo, aquele refluxo de espavoridos, produziu um pavor invencvel e a debandada fez de tudo aquilo, cavalaria ilustre das Espanhas e da Frana, plebe armada, criadagem, palafreneiros, azemis, carrejes, um mar revolto de gente estonteada. O prprio rei, que tinha assistido primeira fase da batalha montado numa mula, amparado pelos seus pajens, afogueado de febre, abatido de foras, esse mesmo j tinha fugido tambm! Dera-lhe o seu cavalo e ajudara o a montar o dedicado mordomo mor, D. Pedro Gonzales Mendoza, senhor de Buitrago. Insistira o rei com ele para que no voltasse a batalha e se pusesse tambm em fuga, mas o Mendoza respondera-lhe heroicamente: Senhor, ide vs. Eu fico. No quero que as mulheres de Guadalajara me acusem l de lhes ter abandonado os filhos e os maridos que trouxe comigo. Rei, morrerei com eles, e Deus v convosco e tenha d de Castela!
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Esta est ganha disse Mendo Rodrigues para a reduzidssima Ala dos Namorados. Jovens, bem-ditas mes as vossas porque to grande esforo pusestes nesta vitria! Ouviu-se um alarido e rumor de luta para a retaguarda. Eram os ginetes andaluzes de Nunez de Guzman, que outra vez atacavam a peonagem das bagagens e a Ala dos rotos. O Condestvel correu para l, a dirigir a luta. Namorados, disse o Rei acercando-se grande feito o vosso, por vida minha! Agora a cavalo, para atirar dali para fora s lanadas essa multido revolia de Castela. Senhor, isso amos pedir disse lhe Ruy de Vasconcelos. Tudo a cavalo! mandou El Rei. Todos os homens fidalgos montaram. Os Namorados primeiro que ningum. Ide! disse lhes D. Joo. Anto Vasques de Almada, os vossos tambm, e os ingleses para varejarem com as suas frechas a peonagem ficadia. Ala dos Namorados! gritou o noivo de Magdalena. Pela nossa terra e pelas nossas damas! E pela rainha das belas disse o Magrio para o jovem Vasconcelos, sorrindo e alteando mais a bandeira, que o lvaro Eanes de Sarnache tivera de largar-lhe por estar gravemente ferido. E todos eles, noventa apenas dos cento e oitenta que tinham sido, noventa que ainda podiam combater, deitaram desfilada, repetindo alto, entusiasticamente, o mote da bandeira. Gloriosa juventude! exclamou o Rei, seguindo os num olhar humedecido de lgrimas. Atrs deles foram-se a galope cerca de novecentos cavaleiros, e atrs destes, correndo, cem arqueiros ingleses, trezentos besteiros portugueses e pouco depois a peonagem de nfima condio, a Ala dos rtos. Senhor, veio dizer o Condestvel a El-Rei outra vez foram repelidos os ginetes mouriscos e os freires do Mestre de Alcntara. (*)
[(*) Segundo os documentos do alistamento feito para aquela campanha, el rei de Castela trazia mouros corredores de Murcia, das fronteiras de Granada e de vrias terras de Andaluzia. E indicao que se encontra no livro A batalha de Aljubarrota, do general Ximenes de Sandoval.]
Cruzaram se os olhares daqueles dois irmos de armas, ligados desde crianas por uma amizade que de muito valera nos destinos de Portugal. O Rei abraou-o ferverosamente. Nuno! disse-lhe baixo que tamanha tarde e que soberba hora esta! Tamanha como os dois sculos que Portugal tem de vida entre as naes! E por baixo das cotas, escorrendo sangue, aqueles dois coraes, dos maiores que ainda teve a nossa raa, sentiram-se mais chegados do que nunca e compreenderam se como em nenhum outro instante da sua vida, como nunca mais depois daquele crepsculo pico de Aljubarrota, que havia de entrar na histria como aurora prodigiosa de dois sculos, que eles dali no podiam ver, que ningum ali podiam sonhar. A batalha real, como depois lhe chamavam, porque nela entraram os reis dos dois povos em luta, essa estava decidida. A matana que ainda no tinha terminado e iria talvez pela noite dentro at o outro dia, numa srie trgica de pequenos combates e de enfurecidas perseguies. Nenhuma batalha to breve e de to largos destinos histricos registam os fastos militares da Pennsula. Durou meia hora. A mais soberba meia hora que Portugal tem tido at hoje nos seus oitenta anos de histria. A meia hora que nos levou para os destinos do mundo como vanguarda homrica de uma civilizao que fez a terra maior. Se aquela batalha se perdesse para ns, Portugal teria por estreito coval aquele outeiro em que a batalha se travou e decidiu, e na histria das raas aventurosas faltaria um captulo enorme de dois sculos, feito de nomes portugueses sobre os mapas de um mundo, que os contemporneos de Aljubarrota nem sequer poderiam sonhar. Naquele cu onde o sol se sumira, se as estrelas falassem ouse nelas os batalhadores vitoriosos soubessem ler aquelas verdades de vaticnio que os mgicos e os astrlogos fingiam entender, nalguma delas poderiam encontrar tais profecias de assombro, que a si prprios, envaidecidamente, se julgassem os semideuses geradores de uma lenda.
CAPTULO X O CETRO DEL-REI DE CASTELA
Logo primeira galopada o Vasconcelos dissera para o Magrio: Assim eu encontre agora o vilo de Anto Gonalves, que se me sumiu! Ao demo dou a minha sorte! Exclamou Vasco Martins, o jovem. Esqueceu me o voto e estou a ver que el rei de Castela j est longe! Pois assim mesmo irei at o prender ou sequer lhe pr a mo em cima, para me ele dizer que tais lhe pareceram este. Chamorros. Namorados, adeus! At quando Deus quiser... Ou ate nunca mais! Falai de mim s lindas jovens que tem Lisboa. E meteu o corcel desfilada para a frente, por entre a algarada espantosa daquela hoste que se esbandalhava n um estonteamento de medo. Mais nas cercanias de Aljubarrota, a debandada era espantosa. Atropelavam-se os vencidos numa desorientao medonha e numa nsia doida de fugir. Bramiam pragas, gemiam queixumes, enovelavam-se uns contra os outros, perguntando roucamente em que direo teria fugido o rei, indagando para que lado seria mais seguro retirar. Alguns fidalgos tinham ficado para morrer na defesa daquela pobre gente, como prometera o Mendonza, mordomo mor do rei. Muitos, porm, saltavam para os primeiros cavalos que encontravam ao acaso e partiam rdea solta. Da peonagem, os primeiros que fugiram tinham deitado fora os bacinetes e os peitos de ferro para irem mais leves. Outros lhes seguiram o exemplo, mas a gente amontoada era tanta, que at para fugir se encontravam em desesperadas dificuldades, como se estivessem dentro de um edifcio a desabar, minado por um incndio, com as portas atravancadas. Dos feridos que ningum se lembrava. Em quase todas as batalhas daqueles tempos os deixavam ao abandono; nem ali havia socorros cirrgicos com que lhes acudissem. Por vezes os gemidos e as splicas de piedade vibravam mais intensamente nos ires como uma voz enorme, feita das angstias de trs mil almas; mas logo se quebrava esmorecida, a sufocar-se em estertores, abalada pela gritaria dos que iam fugir e pelos brados de dio dos que vinham vingar- se. Quem ali casse naquela charneca tinha de morrer, O sol desaparecera havia minutos. Caa sobre aquele campo lastrado de destroos, balses, lanas, armaduras, cadveres, a claridade branda de um afogueado crepsculo cor de sangue. Mas ainda se distinguiam bem a distncia os vultos e as bandeiras. Mo animosa e j segura daquela vitria, tangera as Ave-marias na igreja matriz de Aljubarrota. Que vibrao enternecedora de sino para os que venciam e que toada dolente de funeral para os vencidos, que ainda podiam ouvi-la na derradeira agonia, a lembrar-lhes a Ptria distante onde os sinos tinham tambm uma voz assim nas suas cidades e aldeias de Castela, da Gasconha, do Bearne! Depois, decerto as mesmas mos, fizeram vibrar um repique festivo, que vinha esvoaar na aragem por aquela charneca onde se pleitearam e puseram em risco de morte os destino de uma nao. Como os repiques dos noivados e como os repiques no batizado dos pequenitos, e quantos noivos e quantos pais a ouvi-los ali na sua derradeira agonia sobre as amarfanhadas urzes da charneca? De sbito, reboou dos lados do outeiro a falacia e o tropel dos cavaleiros portugueses e dos arqueiros de Inglaterra, o rudo e as imprecaes de algum que ainda combatia. E dos lados de Aljubarrota uma multido de gente armada, gritando o prego de guerra Portugal e S. Jorge! e o outro, ainda pior, dos seus dios de raa. Eram os homens dos coutos de Alcobaa e os serventurios briges do famoso convento dos bernardos, que tinham estado espreita do desenlace da contenda e vinham agora para a chacina final. Como se receassem que a noite chegasse mais cedo, traziam fogachos de palha e archotes acesos. Ento que foi pavor naquela multido de estrangeiros, em debandada como um rebanho assustadio e espera de vez para fugir. No se resumem nem cabem aqui os milhares de gritos que se chocaram pelo ares no francs da Gasconha e do Bearne e nos vrios dialetos da Espanha. Tinha de ser de maior carnagem a batalha da noite, alastrada por aqueles caminhos, por aqueles montes, pelas veredas dos pinhais, pelos algueires das charnecas, pelas ruazitas de estrumeira das aldeias e aldeolas, ningum sabia com que extenso de lguas e a que distncia do outeiro onde a batalha real comeara e se decidira! Est bem bradara Ruy aos seus Namorados, indicando-lhes o local onde se via a grimpa dourada da tenda del-rei de Castela. Temos ali quem parece esperar; cavaleiros com os quais ser honra combater. Efetivamente, em frente da barraca e das bagagens preciosas do rei, estavam a cavalo mais talvez de duzentos fidalgos franceses e castelhanos. V. Aproveitemos estes instantes de claridade. Sobre eles. S. Jorge e Portugal! Os noventa repetiram unanimes: S. Jorge e Portugal! E logo de l, com heroica altivez, num grito supremo: San Tiago y Castilla! Cirrapor nuestra bandera. Estava com a bandeira real cingida a si, U. Pedro Lopes de Ayala o chanceler mor, o poeta, o cronista, um dos mais ilustres homens polticos da Espanha. Para a defender como anos antes na batalha de Najera defendera contra os ingleses e os castelhanos de Henrique de Trastamara, el pendon de la banda, at que ficou prisioneiro. E entre os outros ilustres de Castela, Conzalez de Mendoza, o adelantado Diego Manrique, o mariscai Sarmiento e o senhor de Aljofrin. Do grupo de franceses, gasces e bearneses, os mais distintos ali eram messire Joo de Ria, o velho batalhador de Poitiers Geoffrey de Partenay, o Sire de Lanach e os senhores de Mortan e de Brignoles. Dos parciais da rainha D. Beatriz, apenas ali estavam dois. Alguns tinham conseguido escapar se, mas a quase totalidade deles morrera intrepidamente na frente da vanguarda castelhana, durante a primeira fase de batalha. Pela nossa terra e pelas nossas damas! bradaram os Namorados, investindo de lana em riste. Mas vendo que os adversrios estavam sem lanas, Ruy mandou que deitassem as suas fora e combatessem espada ou com a hacha, como lhes aprouvesse. Foi um torneio de morte e de pouca durao. Escurecia. Rendei-vos! Responderam-lhes em soberbos gritos de repulsa os de Castela e os de Frana. J tinham cado muitos de um e outro lado a golpes de hacha e espada. O Namorado que fizera voto de levar a El Rei a bandeira real de Castela arremetera denodadamente para Lopes de Ayala, mas fora a terra ferido por um dos dois cavaleiros portugueses que se tinham bandeado por Castela e ali tinham ficado. Ruy acudiu pelo companheiro ferido e s ento reparou no cavaleiro de plumas vermelhas que defendera Ayala. Era o emudecido Anto Gonalves. Agora de vez para acabar: ou tu ou eu! disse-lhe num rugido de clera. Por Magdalena de Mendona! clamou atirando com o cavalo para ele, e descarregou-lhe de alto, em p nos estribos, uma pancada formidvel com a sua hacha de ferro. Com o bacinete amolgado, descido at aos olhos, o sangue a correr-lhe pela gorjeira, Anto Gonalves caiu do cavalo abaixo soltando um grito bao, enrouquecido, em que nenhuma palavra se articulara. Enfim, ral de traidores! exclamou o Vasconcelos de olhos cravados nele, j a escabujar entre as urzes. Ficas na terra que atraioaste e essa mesma te h de repulsar de si, para que os lobos se empeonhem contigo, devorando- te. Ladro de mulheres, por Magdalena de Mendona e por Leonor de Gusmo, a morres! J o no podia ouvir. Ruy lembrou se do voto que fizera de lhe decepar a mo com que ele escrevera a promessa de fazer da bandeira dos Namora dos um surro em que o rei de Castela limpasse os ps. Ia para se apear, mas conteve o a sua grande e generosa alma. No! No! Faltarei ao voto. Est morto! Mas j os virotes dos besteiros portugueses e as frechas dos arqueiros ingleses esfuziavam para ali, e o Sire do Bearne e Joo de Ria caram mortalmente feridos. Dai o nosso brado ou viro ferir-nos pelas costas. S. Jorge e Portugal! O Mendoza j tinha cumprido a sua promessa. As mulheres de Guadalajara no podiam acusa-lo de lhes ter abandonada os maridos e os filhos. Estava morto. A peonagem portuguesa aflura de roldo para as bagagens. O Magrio, apeou se para tomar a bandeira do Sire de Lanach. Vasco Eanes lanou-se a braos ao Ayala, quase desarmado; para o aprisionar. Entretanto chegava um troo de cavaleiros com Anto Vasques. Como em Najera, Lopes de Ayala defendera com desesperada heroicidade a bandeira real de Castela e ali a perdia como na outra batalha, e por amor del- rei ficava prisioneiro. Vendo no cho a bandeira real, que o chanceler de Castela, quase sufocado entre os braos do atleta do Algarve, deixara cair das mos, o Vasques apeou- se de salto, levantou-a, saltou para cima do cavalo e largou desfilada. J no h que fazer aqui disse Ruy de Vasconcelos. Estes tinham ficado para morrer. As trombetas do acampamento real faziam o toque de alardo para que todas as tropas se fossem ali reunir. O Condestvel havia percebido grandes massas de cavalaria dos lados da estrada de Leiria e prevenia se para alguma possvel surpresa. O Mestre de Alcntara tinha quase intatos os seus dois mil e duzentos freires e ginetes e estava cobrindo a fuga dos cavaleiros dispersos e de uma parte da peonagem. Iam os Namorados a meter esporas aos cavalos quando Ruy, ento um pouco afastado dos outros, ouviu uma voz dolorida a dizer palavras que no pudera perceber, mas que eram em portugus. Abalai. Eu irei depressa disse o Vasconcelos para os seus. Os sessenta e oito que restavam da ala deitaram a galope. O Vasques Eanes levava o Ayala prisioneiro, o Magrio empunhava a bandeira do Sire de Lanach, dois outros Namorados levavam pendes dos senhores de Gasconha, o Lobeira o balso do filho do Marqus de Vilhena, bisneto do rei de Arago. Ruy ficara escutando. Fora decerto um ferido quem falara, talvez um agonizante, homem de Portugal, ao que lhe parecera; fosse quem fosse, a no ter expirado, tornaria a falar. Sentia curiosidade de saber quem era. Esperou. Eram ainda muitos os que davam gemidos estertorosos, dizendo palavras em castelhano e em francs. Vinham de longe gritos convulsivos de dio e de desespero, o rudo de pequenos combates; a algumas centenas de passos, ao p das imensas bagagens do exrcito, lutava-se. Cavaleiros de Portugal... Por piedade... Escutai! disse uma voz sumida, que parecia vir de ao p da tenda real. Ruy apeou-se. Um cavaleiro de Portugal aqui est para vos ouvir disse alto. Depressa!... Que morro! suplicou a mesma voz dolorida, a sumir-se mais. J mal se diferenavam os vultos. A noite chegara. Ruy com o cavalo rdea, foi ao encontro daquela voz que se apagava. porta da grande tenda do rei de Castela viu um homem estendido, um cavaleiro de luzento armadura. Dobrou-se para ele. Aqui tendes um cavaleiro de Portugal. Quem sois? Morro... Arrependido!... Deus me perdoe!... Pedi ao Rei... Que me d perdo... E deixe que voltem a Portugal... Soluou. A voz velava-se-lhe. Entrava com ele a derradeira agonia. Ruy debruou-se mais para ver se o reconhecia. Que deixe voltar quem? Minha mulher... A minha filha...que esto... No mosteiro... Tordesilas.,. Gil Vasques de Mendona! exclamou o Vasconcelos comovidamente. Perdoai-me... Cavaleiro... De Portu... Gal... Perdoai... O que fiz... Contra a nossa... Terra! Ah! Deus... Seja... A voz parou lhe estrangulada, e no ltimo arranco o peito alteou-lhe o reluzente arns, laivado de sangue. Deus se amercie de ti, que traste a ptria e foste a causa das maiores amarguras da minha vida! E assim, nestas palavras, o Memento daquele morto. Desafogado de uma ligeira nuvem acobreada, o crescente esplendido da lua derramava agora uns brandos fulgores sobre aquele campo de morte. Pela tua linda filha te dou o meu perdo e Deus seja o teu misericordioso juiz Apareceu diante do rei o bravo Anto Vasques com a bandeira real de Castela... Ia para montar a cavalo, quando reparou em certo objeto resplandecente, cado no cho a poucos passos do cadver do pai de Magdalena. Coisa talvez que ele procurava salvar pensou. Foi para a apanhar, quando um troo de besteiros portugueses e de esfarrapados, com ramos de pinheiro acesos, chegou de roldo, numa algazarra brutal.
* * *
No acampamento portugus o Condestvel andava rodando nos postos de vigilncia e os esculcas, para evitar que os pudessem colher desprecavidos a cavalaria ligeira dos castelhanos, que se via e sentia l para baixo, na estrada de Leiria. El-Rei sentara-se no lano baixo de um muro de pedra solta; enleado de silvas, antigo, provavelmente resto de algum cerrado feito pelos pastores de Aljubarrota para guarida do gado nas noites calmosas do estio. Sentia-se quebrado de foras. Fora um dos maiores lutadores. E ainda maior abatimento fsico pelo jejum de devoo e pelo drama ntimo, enorme, de receios e de responsabilidades, num sacrifcio de disfarces para que ningum lhos percebesse, durante aquele imenso dia da histria e da sua alma, cujo desfecho ainda, de instantes a instantes, lhe parecia um milagre ou um sonho estonteador. A um e outro lado do Rei, de p, encostados ao muro, ainda de armaduras vestidas, o Arcebispo de Braga com a cara entrapada e a roqueta alagada de sangue, o Dr. Joo das Regras, que fora tambm um intrpido batalhador, o velho Diogo Lopes Pacheco, o marechal lvaro Pereira, e outros fidalgos e clrigos da sua comitiva. Chegavam ali os gemidos dos feridos portugueses, amontoados no curral das bagagens, mudado em grosseiro hospital de sangue. Amanh, logo de madrugada hemos de levantar os nossos mortos para o separar dos outros. O arraial ser onde el-rei de Castela esteve, e aqui nos ficaremos trs dias, ao uso antigo, para que a ningum reste dvida a respeito do completo desbarato do inimigo. Para onde fugiria D. Joo I de Castela? Senhor, disse lhe Joo das Regras creio que nenhum de ns o sabe; mas provvel que o do campo nos tragam algum prisioneiro que vos possa dizer. Sim, isso me parece bem. E vs c, meu reverendo Arcebispo, como vos sentis? Senhor, com um gilvaz a mais e uma orelha de menos respondeu o primaz com o seu feitio humorstico. Arde-me, senhor Rei, mas serve lhe de balsamo este consolo que eu sinto de ter aberto o toitio ao castelo refece que me fez a mim o que S. Pedro fez a Maltus. Pagou o feito. Apanhou do primaz de Braga uma estocada como nenhum dos meus colegas de Castela, nem o de Toledo, nem o de Santiago de Compostela, ainda talvez deram na sua vida. Apanhou e ficou, para no ir alanzoar o feito entre os farronqueiros, seus manos e compadres. Riu El Rei e riram todos destes dizeres pitorescos do prelado. Veio ento um dos cavaleiros da vanguarda participar a D. Joo I que tinham trazido prisioneiros e estavam sob guarda os fidalgos portugueses D. Pedro de Castro e Vasco Pires de Cames. Pois ento foram esses dos poucos de c, bandeados por Castela, que lograram fugir morte! Os outros, tirante a sua traio, foram, ao menos, portugueses no esforo com que lutaram e morreram. Sentia se um tropel de cavalos a curta distncia e logo uma algazarra de vozes juvenis e este brado, j famoso naquele dia: Pela nossa terra e pelas nossas damas! So os nossos lees novos! disse o rei sorrindo. Atiravam se para a morte loucamente! Mas antes que os Namorados chegassem, apareceu diante do rei o bravo Anto Vasques com a bandeira real de Castela, pendente dos ombros em guisa de manto. Eram grandes danadores os portugueses daqueles tempos; mais expansivos que os de hoje, celebravam os seus jbilos danando e, o Anto Vasques, numa alegria doida, comeou de bailar como diz Ferno Lopes. Vinham com o Vasques quatro pajens de brandes acesos. De olhos pregados na altiva bandeira, que tinha unidos os escudos de Castela e Portugal, a ouro e prata sobre campo verde, em relevo de ouro os lees e castelos herldicos do mais poderoso estado das Espanha<; de olhos fitos naquela soberba insgnia, que a chamazita dos brandes fazia rutilar, E! Rei sorria complacente, ouvindo os dizeres folies do Almada. No tinha D. Joo I porque admirar se. El Rei D. Pedro, seu pai, o Cr, o Justiceiro, algumas vezes bailou pelas ruas de Lisboa, folgando com o povo. Tomai, senhor, esta bandeira do mor inimigo que no mundo tnheis disse afinal o Vasques, pondo-lhe a bandeira sobre os joelhos. Nisto os Namorados chegaram em frente do Rei. Essa bandeira a tnhamos ns tomado, alegou o Magrio mas honradas mos vo-la trouxeram, senhor Rei. Para engrandecer o muito que essa vale, aqui vos trago eu a landeira do mais altivo senhor da nobreza de Frana. E ps no cho a bandeira de guerra do Sire do Bearne. E outros vieram, a um por um, pr lhe no cho os pendes fidalgos que tinham encontrado ao p da tenda real. Vinha atrs de todos o atltico Vasco Eanes, e esse apareceu afinal diante de D. Joo I com uma certa solenidade teatral. Agora, Senhor, aqui tendes como prisioneiro um castelhano que valentemente defendia essa bandeira. Chama se D. Pedro Lopez de Ayala e nada menos que o chanceler-mor de el-rei de Castela. Estava de olhos baixos, afogueado, o poeta de Los Desenganos, esse que foi o restaurador das boas letras de Castela e o mais ilustre dos cronistas que teve a Espanha. El-Rei levantou se e Joo das Regras foi para o prisioneiro no propsito de lhe prestar homenagem. D. Joo disse a Ayala: Bem que o meu inimigo sejais, sei o que valeis e muito me apraz honrar-vos pela lealdade com que defendestes a bandeira do vosso rei e da vossa terra. Era o meu dever respondeu em castelhano. A minha m fortuna fez que no pudesse morrer por ela, como na batalha de Najera me no foi dado acabar defendendo-a, e agora me vejo prisioneiro dos vossos, como naquela derrota me vi prisioneiro dos ingleses.
Agora talvez com mais alguma diferena, porque se vos h de tomar em conta o que sois. (*)
[(*) Ayala estivera por muito tempo preso na Torre de Londres.] Vasco Eanes. Podeis levar o vosso prisioneiro, e por muito recomendado vos dou. Mandai que lhe prestem honroso gasalhado. E vs c, lvaro Cominho, contai-me essa arrancada que me trouxe to preciosos trofeus. O Magrio resumiu-lhe calorosamente o combate contra os que tinham ficado para morrer. Grandes homens sois, apesar de to jovens! Mas Ruy de Vasconcelos, o que foi feito dele?! Morreu?! Senhor, at h coisa de um quarto de hora, no. Ficou-se atrs, dizendo-nos que viria depressa. E agora em verdade vos digo que me parece tardar, pois que j na vinda para aqui algum tanto nos demormos! Ento ide ver o que foi feito dele, que muito grande mgoa e perda seria perd-lo a ele. Boa justia lhe fazeis, Rei e Senhor. Bem bastavam j os tantos que da vossa ala morreram esta tarde! E h pouco ainda, Senhor! Mas eu vou j em busca de Ruy de Vasconcelos. Ide, sim, depressa. Olhai, uma procisso! disse o Arcebispo de Braga, apontando uma multido que vinha atravessando a charneca, trazendo archotes e brandes acesos. Mas se eu no estou sonhando, ou as ribeiradas de sangue, que perdi me no enfraqueceram o juzo, so mulheres essas criaturas que ali veem! Mulheres certamente, confirmou o Marechal mas talvez sejam de Aljubarrota. E frente delas vem um cavaleiro, que traz plumas como as dos Namorados. O Magrio esgalgou-se mais para ver melhor, e gritou num desafogo de jbilo: Senhor, vem ali Ruy de Vasconcelos! No se tinha enganado. Instantes depois chegava o jovem paladino Vasconcelos, trazendo enrolado na mo esquerda um largo cabeo. Atrs dele a tia Lourena com um braado de pendes. Ruy apresentou a ao Rei, lembrando os atos de intrepidez que ela praticara no ltimo cerco de Lisboa e a inteno com que viera da capital. Pois estava a pensar que tereis vindo ao faro dos despojos disse o Rei a sorrir. Senhor, por a tenho visto que muita gentiaga se est enchendo. Eu no, meu Senhor. Eu e mais quatro que ficaram ali em baixo com o mulherio de Aljubarrota, esperando por mim; eu e essas quatro no fizemos outra coisa seno andar na apanha deste braado de pendes, que os de Castela deixaram semeados a pela charneca fora. S no levantmos os muitos que amos topando emporcalhados de sangue e esfrangalhados nas urzes e nos tojeiros. (*)
[(*) Nos exrcitos medievais cada grande senhor ou fidalgo ilustre trazia o seu pendo e os seus balses brasonados, e de Castela e Frana teriam estado na batalha mais de sessenta ou setenta, desses que podiam erguer pendes frente dos seus homens de armas.] Foi para os vir trazer a vossa real senhoria que ns os apanhmos. Muito vos deve o povo e a nao e certo no houve ainda em Portugal rei como vs sois. D. Joo I disse-lhe umas palavras de agradecimento, sorrindo. Voltando-se para Ruy de Vasconcelos, perguntou-lhe de gracejo: E vs que me trazeis? Senhor, alguma coisa que no valer para vs muito menos do que essa bandeira real. Oh! Que me aguais a curiosidade! Ah! J sei! disse apontando os arminhos que o Vasconcelos trazia enrolados. J sei. Esse cabeo do manto de que el-rei de Castela se esqueceu. Rei e senhor, coisa de muito mais valia. E a desenrolar o cabeo de arminho, acrescentou: O cetro antigo dos mais ilustres e soberbos monarcas que tem tido Castela. Rei vitorioso, este de oiro e cristal, o deponho eu na vossas mos. Este que, pela sua passada grandeza e altivez, vale todas as mais nobres espadas da hoste desbaratada. O Rei afogueou-se de orgulho e todos ali tiveram um estremeo de surpresa de tal modo comovedora, que lhes arrasou os olhos de gua. E esqueceu-se dele e trazia-o para os campos de batalha el-rei de Castela! exclamou D. Joo I, a remira-lo deslumbrado. Senhor, tamanho poder trazia, que julgou certa a vitria. Crendo talvez que fugiramos espavoridos, ns os chamorros, e que enfim lograria entrar em Lisboa, para tomar conta da herana, trouxe consigo as insgnias da sua realeza para o beija-mo solene no vosso pao de Apar S. Martinho e para o Te Deum magnificente em Santa Maria Maior. Assim o suponho, Senhor. O sol de Lisboa faria brilhar mais nas suas mos de triunfador o ouro e o cristal desse cetro. Mas Deus permitiu, e a nossa alma quis, que outro sol, o de Aljubarrota, antes iluminasse a vossa aspada de batalhador. Louvado Deus e abenoada alma! Julgais certo e explicais bem o achado estranho deste cetro num campo de batalha! disse-lhe o Rei afetuosamente. Ficai seguro de que nunca hei de esquecer a tamanha valia desta oferta. Ruy agradeceu. Ali mesmo, diante do Rei, os Namorados o vieram abraar num enternecido impulso de orgulho por aquele companheiro.
* * *
Foi de trgicos horrores aquela noite lcida e calma. Ainda havia agonizantes; ouviam-se bem os gemidos, s a espaos abafados pelo rudo de alguma luta distante entre os bandos dos fugitivos e a gente armada das aldeias e das aldeolas que vinha chegando s proximidades de Aljubarrota, trazida no alvoroo daquela agitadora notcia, que para todos os lados irradiara velocssima, como se uma voz prodgios a fosse espalhando aos voos por todos aqueles arredores. De vez em quando atravessavam a charneca, relinchando pavores, numa galopada doida, cavalos soltos que se despenhavam pelos barrocais das montanhas vizinhas. Pelas onze horas a lua sumiu-se. Sobre a madrugada todos esses rudos esmoreceram; mas os corvos vinham da ramaria alta dos pinheiros, s revoadas, crocitando, sfregos daquele banquete enorme. E pelas lombas dos montes distantes, ao faro de sangue e em repeles de fome, os lobos latiam sinistramente. S os faziam calar, de espao a espao, e s os retinham medrosos os brados altos das sentinelas do acampamento real. Veio a madrugada, clara, tpida, cantada pela passaredo nos ramos das rvores mais afastadas. As trombetas deram ento o sinal de despertar para os poucos talvez que tinham adormecido naquela noite de profundas emoes. O arraial foi mudado para as vizinhanas de Aljubarrota. El-rei ficaria ali os trs dias do uso antigo para confirmar a batalha vitoriosa e o desbarato formal dos vencidos. Abrigar-se-ia na tenda magnificente do rei de Castela. Tinham trazido mais prisioneiros e mais trofeus; alguns de subida riqueza, como eram quase todos os que provinham das bagagens reais. Mas o tesouro de maior valia era a capela volante do monarca vencido. Retbulos antigos com douraduras e pinturas gticas, cruzes e lanternas de prata lavrada, um oratrio grande de prata com imagens e ornatos admiravelmente cinzelados, obra prima do estilo florentino, e uma Bblia em carateres gticos, a capa com guarnies de metal, castelos e lees, escudos herldicos) e flores de Liz.
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A charneca infundia horror, mas numa viso de sonhadores os olhos da nossa gente viam por cima daquele planalto lgubre alguma coisa de sublime consolo, e de santo orgulho, que em cada alma se refletia como numa faceta de cristal se podem refletir os fulgores altos de uma estrela. Portugal salvara-se ali, e quem sabia l para que novos destinos? Logo ao romper do sol, e que lindo sol de apoteose o daquela manh, a hoste formou para ouvir missa em louvor de Santa Maria de Agosto, Santa Maria da Vitria para eles. Foi soberba aquela meia hora, a recordar a outra em que a batalha se venceu! O oratrio de prata dos despojos estava aberto sobre o altar de campanha, a prata refulgia sob os primeiros lampejos daquele sol nascente, a lembrar uma enorme custdia de ouro sobre um trono que se perdia de vista pela imensidade do seu dossel azul; a ladearam a capela, enfeixados ao alto, os pendes, os estandartes e as bandeiras de Castela, de Leo, das Astrias, do Arago, da Galiza, da Gasconha e do Bearne. Missa em ao de graas pela ltima batalha romntica dos tempos medievais. Aquela batalha em que os Namorados com a sua cavalaria apeada e a plebe com a sua infantaria rota colaboraram no prlogo de outro romance do esforo humano, imensamente maior, numa aventura de sculos pelo mundo.
TERCEIRA PARTE NOIVA IMACULADA
CAPTULO I A ESCOLTA DOS TROFUS
Depois daquela missa ao nascer do sol do dia 15 de Agosto, El-rei concedeu que os Namorados fossem extremar os cadveres dos seus companheiros. Eram muitos. Pobres noivas, pobres namoradas! E dos sessenta e dois que estavam feridos quantos ainda que nunca mais tornariam a formar na ala, reduzida agora a quarenta e trs rapazes vlidos para outra batalha? El-rei percorria o campo. J na vspera andara pelas imediaes do outeiro com um Castelhano dos que ficaram prisioneiros, a tomar conhecimento dos grandes senhores de Castela que ali tinham acabado. Agora ainda maior tarefa; mas como o seu guia da vspera os no conhecia a todos e, menos ainda, aos de Gaisconha e do Bearne, mandou El-rei pedir a Lopez de Ayala que lhe servisse de esclarecedor naquele fnebre arrolamento. Ayala acedeu, acabrunhado, e, ao p do Rei, os foi indicando com os olhos afogados de lgrimas, medida que a soldadesca Os ia afastando dos outros mortos sem cotas brasonadas e sem bacinetes emplumados. El almirante de Castilla, D. Juan Hernandez de Tovar; El hijo del Marques de Villena, visnieto legtimo dEl-rey D. Jayrne de Aragon; D. Juan, senor de Aguillar e de Castaneda; Diego Gomez Manrique, adelantado mayor de Castilla; Diego Gomez Sarmiento, mariscai de Castilla; Pero Gonzalez Camilo, outro mariscai de Castilla; Juan Ortiz de Las Cuevas; Alvar Gonzalez Sandoval e Ferrand, su hermano; D. Pedro Gonzalez de Mendonza, mayordomo-mayor dEl-rey; Juan Perez do Godoy; D. Juan Ramirez dArellano e Diego Garcia de Toledo. E assim, por ali fora, a longos intervalos, maneira que os ia reconhecendo, naquela tarefa atormentadora, a que no podia esquivar-se. Depois o reconhecimento dos fidalgos bearneses e gasces. Uma longussima enumerao, que se no pode reproduzir aqui. E Ayala no sabia indicar seno algumas dezenas dos mais ilustres.
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Os Namorados tinham separado os seus mortos. Choravam como mulheres aqueles rapazes, que na vspera tinham sido como lees. Falta Vasco Martins, o jovem! Esse ter morrido pelo seu voto entre a onda dos fugitivos que foram de guarda ao rei de Castela disse Ruy de Vasconcelos. Entretanto, despedido Ayala, forado arrolador dos ilustres mortos, El-rei disse para o Condestvel: Os Portugueses parciais de Castela a ficaram quase todos estendidos! Os meus dois irmos com eles! acudiu Nuno lvares tristemente. Mas os Gasces e os Bearneses, esses a esto tambm quase todos mortos. Chega a parecer assombro esta brava batalha de meia hora em que tanta gente morreu! Senhor volveu-lhe o Condestvel grande favor do cu foi este que nos deu tamanha vitria! E agora vos peo me deixeis eu ir em romaria de penitncia a Ourm, enquanto vs aqui esperais. Foi um voto que fiz. Sim, ide. Eu tambm depois irei cumprir o meu voto em Guimares. E ali, se vos no opuserdes, senhor Rei, ali naquele outeirozito onde vencemos, um dia mandarei erguer uma ermida ao nosso grande patrono, S. Jorge. Boa devoo a vossa, Condestvel. Tambm eu hei de mandar edificar nestes stios um mosteiro em louvor da nossa Senhora da Vitria, desta vitria que mal se podia sonhar. Padro ser que no deixe esquecer esta batalha. Dali a uma hora, o Condestvel partia para Ourm em romaria de penitncia. Vai ver o seu condado comentavam alguns da plebe. Ou ir dar sepultura escusa aos irmos que a morreram segredavam outros.
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Naquele mesmo dia indicou o Rei quais dos homens ilustres da sua hoste tinham de ter sepultura em sagrado na vila de Alcobaa. Entre esses o velho Gasco Joo de Montferrat, a quem a acha de armas do possante lvaro de Sandoval estoirara o bacinete e deitara a terra morto. O Rei mandou chamar Ruy de Vasconcelos. Vou mandar minha leal cidade de Lisboa as bandeiras e pendes que pudemos colher aqui. De guarda bandeira real de Castela ir Anto Vasques de Almada e o irmo Joo Vaz; s outras de justia que as levem os vossos da Ala dos Namorados. Senhor, por todos eles e at pelos tantos que j no podem ir, vos beijo a mo reconhecidamente. honra insigne. honra devida. No se venceria a batalha, se no fosse a ala, e muito ajudaram a venc-la os tantos que morreram. Agora, Senhor, consenti que vos pea um piedoso favor. Dizei qual. Que nos deixeis ir sepultar em Alcobaa esses malogrados jovens que perdemos. Sim, deixo. Mas onde vosso intento sepult-los? Senhor, alguns dos nossos iro pedir ao Dom Abade do mosteiro de Alcobaa que no-los deixe sepultar nos claustros. Todos? Senhor, todos. uma devota homenagem dos que lhe sobreviveram. Naquele tamanho convento os claustros so grandes e a terra sagrada chegar para os cobrir a todos. Assim as noivas e as namoradas ficaro sabendo em que recanto de Portugal jazem essas juventudes mortas. Dizeis bem. Assinalada sepultura merecem esses jovens de to extremada valentia. Eu mesmo vou mandar fazer o pedido ao Dom Abade. Senhor, ainda maior favor! E mandou.
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Naquela noite os Namorados velaram as filas dos seus mortos. Alguns deles sem sombra de barba; os restantes tinham vinte e quatro anos! Guardavam-nos para que os corvos no viessem dos pinhais e os lobos no descessem dos montes para lhos devorar. Ao outro dia de manh seria o enterro. Ofereceram-se os da Ala dos esfarrapados para os levar a braos, deitados sobre fortes ramos de pinheiro. Os outros Namorados vlidos no chegavam para os levar. Organizou-se o prstito. Na frente oito a cavalo, atrs da longa fila dos fretros os restantes, tambm a cavalo. Fazia d. E l iam no recosto dos ramos, a braos da peonagem de ventres ao sol, desfigurados, sangrentos, com os seus bacinetes de plumas, o seu arns com a cruz de S. Jorge, e talvez represado nos lbios, como se as palavras se pudessem congelar, o nome de uma mulher, juvenil como eles, pelo seu derradeiro moto de amor. Mendo Rodrigues foi tambm com o seu estranho capelo de ferro e o antiquado saio de malha que trouxera da sala de armas de D. Dulce. A tia Lourena, com as suas quatro mulheres que a tinham acompanhado de Lisboa, l ia atrs do prstito, carpideira sincera daquelas tantas juventudes perdidas. Quando chegaram ao mosteiro j l encontraram um Namorado, que os tinha precedido. Mas esse tambm morto. Um quarto de hora antes o tinham levado para l uns criados do convento. Tinham-no encontrado na estrada, ao p de dois mortos. Viram que era um Portugus e trouxeram-no para a igreja do mosteiro. Os frades logo pela cruz de S. Jorge que trazia no arns reconheceram que devia ser da hoste real; mas no sabiam explicar como fora dar a mais de duas lguas do campo de batalha. Estava crivado de lanadas e tinham-lhe decepado a mo direita. Foi Ruy quem enternecidamente contou aos frades o propsito denodado de Vasco Martins, o jovem. Fizera voto de aprisionar o rei de Castela, ou, pelo menos, pr-lhe a mo, e fora sozinho atrs dele, embebendo-se na multido de cavaleiros do squito real. T-lo-iam reconhecido logo, caram sobre ele para o matar, ter-se-ia defendido como um leo, porque era homem para isso; mas a mo decepada como que estava a indicar que ele a ousara pr na pessoa do rei. Derribado, moribundo, bem podia presumir-se que lhe cortassem ento aquela mo audaz. Quando os frades acabaram a encomendao dos mortos e os desceram aos covais do claustro, Ruy disse para o Magrio com os olhos rasos de gua: S lhes faltaram as lgrimas das mes e das damas que eles amaram e que os amavam! E para quantos deles apenas amores de sonho?
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Um grupo de mulheres de Aljubarrota percorria o campo de batalha. Servia- lhes de guia o Bernardo Pingueiro, da confraria de S. Crispim. Pago impenitente, muito mais adorava ao deus gentlico dos borrachos que ao santo patrono dos sapateiros. Na noite da vspera apanhara uma bebedeira monstruosa com o vinho que os Castelhanos traziam em odres, e naquela manh, apesar de muito mais aliviado, ainda mantinha brilhantemente a sua alcunha de Pingueiro. Uma robusta mulher, alta e musculosa, de m catadura, prottipo de virago, vinha a par do sapateiro falando por todas, com ares fanfarres. Bom arranjozinho heis de ter feito com os despojos dessa canzoada! Muita coisa toa e rica ho de ter apanhado os da vossa laia. Comigo vos enganais, senhora Brites de Almeida disse o Bernardo, de olhos mortios, a voz muito rosnada. Padeira de Aljubarrota com muita honra disse-lhe ela, batendo com os punhos cerrados no peito. Com muita honra e pozinho fresco gracejou o sapateiro Mas ficai sabendo que no apanhei seno ontem uma bebedeirazinha mansa para quebrar o jejum, e reveria da batalha vencida foi eu que a tomei. J me disseram que outros tm achado coisas de prata e ouro e pendes e no sei que mais. Pois por S. Crispim vos juro que eu no achei seno dois odres de uma azmola castelhana que se foi abaixo e este bacinete rico de trs plumas que me estais vendo na cabea. Disseram-me que era de um grande senhor do Bearne. Seria, mas daqui o hei de eu levar para Lisboa. De l vim eu com os esfarrapados, e como no havia bacinetes para todos, trouxe na cabea o meu gorro velhinho e esfiampado. Tinha sido uma deixa de certo ingls, muito mais pingueiro do que eu. As mulheres riram, menos a padeira, que ps nele um duro olhar de desprezo. Mas ontem continuou o Bernardo quando a batalha comeou de aquecer veio um raio de um virote castelo e levou-me o coruto do gorro. E muitos louvores a S. Crispim por se me no ter espetado no toitio. Teria morrido em jejum e sem j me lembrar da ltima escudela de vinho que tinha emborcado! Porm, agora, vede o espalhafato que eu fao com este bacinete francs, apesar do meu saio esfrangalhado e das minhas calas de bifa com mais buracos do que um pombal. Grande galhofa das mulheres, exceto de Brites de Almeida. Ao menos, dos queixos para riba, dou ares de grande senhor do Bearne. Cavaleiro de Maio hei de eu ser para o ano que vem, se mo permitir S. Crispim, e como cavaleiro de Lisboa me haveis de considerar infano de Portugal. Mas se continuar no meu ofcio, farei antes deste bacinete inimigo um caoilo para demolhar sola e dependuro as plumas para chamarem o mosquedo, que por este tempo do ano me no larga o nariz. Grande dizedor de bobices que vs sois, pelo visto! disse-lhe a padeira no seu vozeiro spero Mas no foi para vos ouvir chocarrices que ns aqui viemos, seno para ver os tais estafermos de ferro que do troves. Ah! Os trons. Vamos l v-los. E de si para si: Este demo desta padeira, com umas barbichas como as do Herodes de azulejo da igreja de S. Domingos, no d a ningum um arzinho da sua graa e parece que alguma irm do imperador Carlos Magno, que neste Mundo ficasse com dez pares de Frana atrs de si. Chegara linha dos trons. Tinham ficado como os Castelhanos os abandonaram sobre as grandes zorras chapeadas. Aqui os tendes. Trovejaram, mas no deitaram raios que prestassem. Aquele, alm, estoirou para trs, e l tem ao p quatro casteles que ps em fanicos. Parecem sapos de boca aberta! disse a Brites de Almeida, esgazeando os olhos para os trons. Cheios de vinho, os quinze que esto inteiros, levavam um ror de almudes! Era s entupir-lhe este buraco disse, apontando o ouvido da pea. E no mataram ningum estas aventesmas de ferro? perguntou a Brites de Almeida. Deram s trs tiros, que eu ouvisse, e logo foram abandonados. Mataram dois escudeiros e um ingls. Reles bisarmas! Muitas mil vezes menos ferro tem a p com que meto o po no forno e com ela matei eu sete castelos ontem, antes das Trindades como quem mata uma ninhada de ratos. Logo sete?! perguntou o Bernardo a sorrir. J vos disse. Sete que se me tinham ido esconder na casa do forno. Feridos, esbarrigados de medo... J quase a darem a alma ao Criador volveu-lhe de troa. Vivos! rouquejou a Brites de Almeida, afogueando-se Mais vivos do que vs, que estais a cerrar os olhos de pingueiro, mestre remendo de Lisboa! Muito se engana quem preocupa! disse, indo para ele Sabei que j tinha duas mortes de homem, cara a cara. Acredito, acredito! acudiu o Bernardo, recuando H mulheres desenganadas e com mais fora que um macho, salvo seja! Mas olhai que no tinha reparado bem em vs, e a conta de sete, l em Lisboa, conta de mentira certa. Sete namoradas, sete batalhas, sete que fugiram e at eu tenho mentido aos meus fregueses, dizendo-lhes que levei sete dias a fazer uns borzeguins. Ms tudo neste Mundo tem suas excees, valentssima padeira! J que me estais com dichotes de bobice sabei que ponho pouco em vos mostrar quanto posso, torcendo o pescoo a um verdizela como vs enquanto o demo esfrega um olho. Avermelhara-se de clera e tinha ferocidades o seu duro olhar. O Bernardo, j um pouco receoso, ensaiou para ela um sorriso de boa paz e concordncia de opinies. Ora! Ora! No vale assanhar. Nem todos so para tudo. Um cardume de ratos tenho eu na loja, e nunca fui capaz de matar sete de uma assentada. E riu num riso esganiado, aos pulinhos. No me estejais a arreganhar os dentes de mofa! rouquejou a Brites de Almeida. Olhai que vos estrafego, se quereis fazer pouco dela! avisou outra, tambm j um pouco abespinhada. Oh! Mulheres de Deus! Mas eu no arreganhei nada! Ria de mim mesmo. Porm se quereis que tenha medo pelos sete que morreram, tenho, est dito que tenho e aqui vos deixo em paz! Isso ainda bobice para escarnecer de mim? rouquejou a virago, deitando-lhe a mo plumeira do bacinete. Eu tenho l vontade de fazer bobices! Deixo-vos em paz, mas no me desplumeis o bacinete do Bearne! Nisto passava uma quadrilha de ronda e o Bernardo, ganhando nimo, desprendeu-se das mos da Brites de Almeida num supremo esforo. Apre! E a esgueirar-se para ao p da ronda lhe ia fazendo figas a ela. Que tal est a gigantona de Aljubarrota! Ento no me queria ela segurar pela crista?! disse para os da ronda, apontando-lhe a cimeira do bacinete E l me ficou com uma das minhas plumas, aquela padeirona que matou sete castelos com a p do forno. Deixa estar, remendo, que se torno a apanhar-te a jeito, levas uma coa que te h de ficar de emenda! ameaou, de punho fechado, a Brites de Almeida Tiro-te as ganas de beber! Dessa te hei de eu livrar volveu-lhe o sapateiro rir, mas sempre muito chegado aos homens da ronda. Aquilo mulher faanhuda! Onde deita os gadanhos, filou! Reparai naquelas sobrancelhas cabeludas! As ventas so dois rons ao par! Pelas barbichas parece da Gasconha! Riu e riram com ele os da ronda. A Brites de Almeida j o no podia ouvir. Ia frente das companheiras de regresso a Aljubarrota.
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Eram mais de 10 horas. Os Namorados tinham voltado de Alcobaa. Mendo chamou o sobrinho de parte. Olha que eu vou amanh contigo para Lisboa. Pois ainda bem, tio e senhor meu. Antes, porm, quero ir ter com El-rei para lhe dizer quem sou. Ontem me falou de vs, e pareceu-me que j tinha quase a certeza de quem sois Embora. Chegou a ocasio de lho dizer. S por esquecimento de El-rei ter deixado de vos mandar chamar. Vou agora l, antes que me chame. E foi para a tenda real. Vendo Ruy de Vasconcelos sozinho, a tia Lourena acenou-se-lhe, prazenteira: Meu fidalgo e senhor, venho saber se quereis algum recado para vossa me, pois que na madrugada de amanh nos poremos a caminho, eu e as minhas companheiras. Os meus recados eu prprio lhos levarei, pois que amanh vou tambm. Ora ainda bem! A grande alegria que ela vai ter! Pois perdoai a confiana e l terei o gosto de vos ver, se Deus for servido que eu l chegue. Podeis ir numa das carretas que a deixaram os Castelhanos. No faltam agora muares para as puxar. Ah! Isso grande favor seria, pois que as minhas pernas j no prestam para caminhada tamanha. E se a carreta chegasse para as quatro que vieram comigo... Chega. Eu mandarei quem vo-la ir guiando. Deus vos pague, meu senhor. E agora perdoai, se eu mal pergunto: dos Namorados s ides vs? Vo todos os que puderem ir. Vamos de guarda s bandeiras e aos pendes que os inimigos perderam. Manda-os El-rei de oferta cidade de Lisboa. Meu senhor, isso ento que vai ser uma alegria doida na cidade. E ningum lhe mandar para l a notcia, antes que l chegueis vs, os Namorados? Mandam, sim, ou antes mandaram. El-rei ordenou que esta madrugada um escudeiro seu se metesse a caminho com uma carta sua para os vereadores do concelho, dando-lhes a bo nova desta batalha e o aviso de que oferecia cidade as bandeiras e os pendes dos vencidos, em lembrana do muito que Lisboa sofreu e corajosamente pelejou no ltimo cerco. Sem a devoo heroica da cidade, os Castelhanos t-la-iam tomado, e esta batalha seria impossvel. Entende por isto El-rei que Lisboa tem direito a um grande quinho destes trofus. Bem pode dizer-se que, em parte, os ganhou h um ano. Quem me dera chegar ao dia de l entrarmos! Mas depois continuou, baixando a voz l terei de voltar labutao de buscar algum que se nos sumiu! Algum que se nos sumiu! Algum de grande desventura, que muito amor vos teve e tinha ainda, coitadinha! Ah! Sim! D. Leonor de Gusmo. No me recordava agora! Que vossa me e senhora tambm tinha tomado a peito descobrir onde era o-paradeiro daquela formosa dama de to desgraada sorte. Bem pode ser que j lhe dissessem onde ela se foi sumir. No sabia que a minha me tambm estava nesse empenho, e nem sequer me disseram nada do desaparecimento de D. Leonor! A minha doena, a rpida partida para a hoste de El-rei... A Lourena deu-lhe ento em breves palavras o resumo do que sucedera com Leonor. Pois, pela minha parte, muito vos agradeo e louvo esse piedoso encargo que tomastes. uma grande desventurada, a quem eu sinceramente amei nos seus dias de boa fortuna, que outro, traioeiramente, turbou e perdeu. Est vingada. Matei aquele Anto Gonalves, a quem vs feristes com uma pedra na batalha da Ribeira, segundo me contaram. Bem me recordo. Mandei-lhe um calhau que chegava para dois. E bem vi que se foi logo abaixo, o traidor! Esse e outro ferimento o puseram morte e por eles tiveram de lhe cortar a lngua. S podia dar uns gritos enrouquecidos. Chamavam-lhe o cavaleiro mudo. Ontem, ao anoitecer, foi que eu o matei em combate leal, que ele no merecia. Pois que o demo lhe d l nas profundas do inferno outra lngua com que ele lhe conte a sorte que tiveram na batalha os traidores da sua laia, danados Judas desta terra, a venderem-na pelas benesses do rei castelo. Ruy viu sair o tio Mendo da tenda real e logo se despediu de Lourena. At amanh. E contai com tudo o que eu puder no vosso benefcio. Estais idosa, cansada; muito do meu grado vos darei abrigo na minha casa. Senhor cavaleiro, Deus vos d tanta boa fortuna que mereceis e eu vos desejo. Por agora ainda me sinto com foras para andar na labutao da vida em que me criei; mas as boas promessas tanto se agradecem como as boas obras... E bem pode ser que um dia a velha Lourena tenha de ir pedir abrigo ao mais destemido cavaleiro da Ala dos Namorados. De onde eu estive ontem via-se bem como vs e os vossos lutavam. O meu senhor, Deus seja convosco e que o dia de entrarmos em Lisboa chegue cedo.
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Ruy foi ter com o tio. El-rei tinha apenas uma desconfiana de quem eu era, creio que por uns dizeres de certo escudeiro velho do pao. De mim, da minha vida na corte, mal se lembrava. Nem admira porque era ento muito jovem. Ficou agora sabendo alguma coisa, que h quatro anos seria um segredo para me perder. Falou-se de Leonor Teles, e ento me deu sua real senhoria uma notcia de que ningum ainda me tinha falado! A respeito dessa que foi rainha? Sim, a respeito dela. O genro h mais de um ano a mandou presa para Tordesilhas e l a tem reclusa num mosteiro. Em Tordesilhas! Isso no sabia eu! Contaram-me que tinha sido levada presa para Castela, por ordem do rei... Por suspeita de conspirar contra ele e contra a prpria filha! Mas no sabia mais! Pois m nova me trazeis, tio e senhor meu! M nova porqu?! Que pode importar-te a recluso de Leonor Teles? Tio, soube ontem noite que era num mosteiro de Tordesilhas que Madalena se tinha recolhido com a me. E referiu-lhe o lance com o pai de Madalena na noite antecedente. Agora percebo. Tens razo. para inquietar. Se ainda como foi, essa que tudo isto ia perdendo e tudo afugentou do seu trono de combora, ento tens razo para recear que a tua prometida noiva esteja muito chegada a essa mulher vilmente perversa. O seu olhar queima as flores de mais suave perfume, as suas palavras corrompem; valem perdio igual as suas afeies e os seus dios. Compraz-se em arrastar para o seu lameiro as cndidas mulheres que no podem ser como ela, e odeia com o dio maior da sua alma quantas se atrevem a corar daquela ignomnia e no querem ser o que ela foi. irm, a Maria Teles, a perdeu, no tanto pelo cime de a ver esposa de um infante, como pelo dio de a ver honesta como ela nunca foi. Podia contestar- se a legitimidade do infante, filho de Ins de Castro e marido de Maria Teles; contra a honra da irm que nenhumas suspeitas havia. Inventou-as ela e fez do infante ciumento, ou talvez apenas seu cmplice, um matador com as cruezas brutais de um cavalario! Tens razo, Ruy; Madalena estar em perigo, se a combora vive com ela sob os mesmos tetos. Tio, e como hei de eu livr-la desse perigo, arranc-la de Castela, traz- la para mim?! Muda-se-me em tortura a notcia consoladora que ontem ouvi. Anto Gonalves est ali morto, mas o outro perigo l est longe, talvez ao p dela, sem ningum que se lhe oponha! sina minha! No ser talvez o que eu suponho. possvel que Leonor Teles esteja em recluso especial. Em rapaz jornadeei muito por Castela; conheo Tordesilhas; passei l duas semanas, e lembro-me de ter visto nessa vila dois mosteiros de monjas. Bem pode ser que Madalena e a me no fossem para aquele em que encerraram Leonor Teles. Havemos de ter modo de o saber. No te mortifiques. Eu pensarei nisso por ti e em Lisboa te darei o meu parecer. Se for preciso, iremos busc-la, e podes contar comigo. Tio, seria a minha suprema ventura! Vem para aqui lvaro Coutinho com outros avisou Eu retiro-me. Em Lisboa se combinar tudo, e a tua me que me perdoe, se eu for o teu cmplice nalguma aventura de cavalaria aventureira. Apartou-se dele.
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Ruy de Vasconcelos disse-lhe o Magrio que linda cano inventou este meu amigo provenal a respeito da nossa ala na batalha! Havemos de logo ouvi-la. um regalo! Menos ainda do que vs mereceis volveu-lhe Marival, modestamente. Eis de ouvi-la, Ruy de Vasconcelos, e ento sabereis que no a louvei por favor de amigo acudiu o Magrio At nos compara aos da Tvola Redonda, aos paladinos do rei Artur, e a vs, Ruy, ao cavaleiro do cisne branco. Foi uma bela batalha disse o Provenal e no sei de rimance que outra conte, assim to enleada de amores e com to heroica juventude de namorados, formando ala, a vossa ala, que foi a bem dizer quem decidiu a batalha. Hei de pr minha trova este ttulo na linguagem de Provena: Rimance da Ala dos Namorados de Aljubarrota. E hemos de ns aprend-la a cantar para a dizermos s nossas damas alvitrou um deles entusiasticamente. E para tambm a cantarmos nas outras batalhas em que houvermos de lutar lembrou o Magrio. Tivesse eu tempo, e iria a Porto de Ms ensinar o rimance quela rapariga linda, a quem furtei um beijo disse o gaiato do Lobeira. Que ia levando mais tempo do que o nosso amigo Marival a cantar a sua trova! gracejou o Magrio. Mas vai a gente ensin-las s damazinhas lindas de Lisboa. s que tm olhos negros, que so as de que eu mais gosto. Ides tambm connosco para Lisboa? perguntou Ruy ao trovador de Provena. Graas ao meu amigo lvaro Coutinho, irei tambm. J agora, andarei com os Namorados, enquanto vs deixardes. Pois que namorado sois tambm disse-lhe o Magrio. Envelhecido namorado e de mal-aventurada fortuna, a gastar a vida sonhando! volveu-lhe tristemente. E naquela noite os corvos e os lobos, por algumas horas emudecidos, contendo a sua avidez de famintos, esperaram que os Namorados cantassem a trova do Provenal e adormecessem sonhando. E s por altas horas, sumido o luar, mais afoitos por aquele silncio trgico do acampamento, ousaram descer para o seu lgubre festim.
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Ainda vinha longe o sol e j o esquadro que restava da ala semimorta estava a cavalo com os seus pajens e escudeiros. Comandava-os Ruy de Vasconcelos; levava a bandeira o Magrio. Atrs deles, Mendo Rodrigues e o trovador de Provena. Iam numa carreta a bandeira e os pendes do rei de Castela; e em duas carretas maiores os pendes e balses menos esfarrapados dos grandes senhores. Dos desacreditados trons, ningum fizera caso. Era sucata que ficava a benefcio dos ferreiros daquelas cercanias. Foi uma deplorvel incompreenso do que valiam como trofus. Toda a gente do acampamento estava a p. Por diante do Rei, porta da grande e magnfica tenda de campanha do monarca fugido, o esquadro dos Namorados desfilou em continncia, como hoje se diria. Depois dele, escudeiros e pajens a cavalo passaram tambm, ladeando as carretas. Meteram pelo caminho de Alcobaa. Namorados, boa fortuna! diziam os outros cavaleiros, saudando-os. E viva quem mais ajudou a vencer a batalha! gritou em guisa de aclamao triunfal a peonagem dos esfarrapados. Em grupos pelas orlas daquele declivoso caminho, as mulheres de Aljubarrota diziam-lhes enternecidamente: Benditas mes as vossas, Namorados! Venturosas noivas as que vs tiverdes! Olhai, rolas trigueirinhas! disse um dos mais jovens Daqui vos mando num voo a vintena de beijos que desejaria dar-vos em ao de graas. E atirou-lhos nas pontas dos dedos. Credo! A fome de beijos que eles levam! comentou uma velhota Ai das mes, l em Lisboa, se no trazem as filhas bem guardadas! At volta! At um dia! gritavam os rapazes. Era uma frmula banal de despedida. Eles bem sabiam que no era para ali que tinham de voltar de Lisboa. Olhai que tem Aljubarrota bem bonitas carinhas! notava para outro o gaiato do Lobeira. Dali a instantes j se no viam a meio da ladeira seno uns noveles espessos de poeira, levantados pelo trote dos cavalos e pelo rodar das carretas.
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Cinco dias depois, cobertos de p, os cavalos brancos de espuma, estavam j a curta distncia da grande cidade os cavaleiros da escolta dos trofus. Subitamente, de uma volta alta do caminho, descobriram com jubilosa surpresa umas longas filas de gente, que vinha descendo pelo declive da encosta fronteira. Distinguia-se bem na frente a bandeira da cidade, ladeada por homens de armas, depois um plio e brandes acesos; percebiam-se as rutilaes de uma mitra debaixo do plio, a brancura das sobrepelizes, os hbitos dos frades e, a fechar aquele quadro de cenografia, opulento de colorido, inundado de sol, uma enorme multido de gente de todas as categorias. Parece uma procisso! disse o Magrio para Ruy de Vasconcelos. Procisso de triunfo que vem ao nosso encontro! gritou o Lobeira num arrebatamento. Os rapazes aceleraram o trote. Vivam os Namorados! gritou a multido. E um homem de voz dominadora gritou na frente de todos, agitando no ar a bandeira da cidade: Ala de Aljubarrota, bem-vinda sejais! Era Afonso Eanes, o Juiz do Povo, o glorioso tanoeiro, quem assim saudava os rapazes. Foi um encontro comovedor. Os homens de ofcio da Casa dos Vinte e Quatro, deputados e procuradores do povo, agitavam nos ares as suas varas vermelhas, encimadas pelo braso de prata da cidade, como se aquelas insgnias da sua representao oficial fossem lanas de batalhadores num alardo triunfal. Depois adiantou-se o Bispo, debaixo do plio. Os Namorados apearam-se e receberam de joelhos a bno do prelado. Em seguida os vereadores e os vinte e quatro beijaram, a um por um, com religiosa devoo, a bandeira verde da ala insigne, e aps eles as mulheres, chorando. Volvidos instantes, Afonso Eanes foi abraar Ruy de Vasconcelos. Meu glorioso cavaleiro, vossa me est ali, ao cimo da encosta, numa liteira. Quis tambm vir esperar-vos. A minha santa me! Vou j beijar-lhe as mos. Mas antes deixai autorizao para nos darem as bandeiras e os pendes. Queremos dar a volta cidade com eles, pelo caminho por onde h um ano os Castelhanos retiraram do cerco, e descer depois a Santos, onde o rei vencido teve o seu arraial. Dos navios da armada castelhana, que ainda a esto no rio, ho de ver-se bem essas bandeiras e esses pendes. Pois sim. Eu digo j ao senhor lvaro Coutinho para vo-las mandar entregar. A bandeira real de Castela, essa a traz consigo Anto Vasques de Almada. Foi diz-lo ao Magrio e meteu pela ladeira acima. Namoradas juvenis, de famlias fidalgas, tinham vindo tambm quela receo. Algumas encontraram lbios frementes de requestadores que lhes beijassem as mos; muitas se ficaram chorando numa viuvez de alma, de trgica amargura. Os seus diletos no estavam ali; no voltariam nunca.
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Escarranchado numa forte muar de sela, o Gonalo Vasques fazia guarda de honra liteira em que estava D. Dulce, num desvio do caminho, que duas velhas amoreiras, enormes, carinhosamente sombreavam. A poucos passos, a p, dois jovens de acompanhar. Senhora minha, que ele a vem! exclamou o velhinho numa tremura. E logo fez sinal a um dos criados para o ajudar a apear-se. Aquele! indicou o velho, abrindo a portinhola da liteira. Filho! Filho! disse D. Dulce num grito de alma, de braos abertos para ele. Ruy apeou-se de salto e foi para ela enternecidamente. A minha estremecida me! exclamou, abraando-a, beijando-lhe as mos e os cabelos. Que horror de sonhos e que pavor de receios os meus! Ainda a batalha se no tinha dado e j uns boatos de maldade a mortificarem a cidade, espalhados talvez pelos prprios de Castela que ainda esto a no rio! Que tinham sido desbaratados, que l tinham morrido todos! Pois foi aos deles que isso mesmo sucedeu. E diz-me: ser verdade, como por a se disse mal chegou o mensageiro de El-rei com a carta para a cidade, ser certo que dos Namorados morreram muitos? Muitos! Filho, as pobres mes desses que l ficaram! Meu senhor! veio dizer-lhe Gonalo Vasques, morro por lhe falar, e sabe Deus com que pena de lhe ii.io poder chamar o seu menino, como noutros tempos. Viva o meu grande amigo, o meu querido velhinho! volveu-lhe Ruy, carinhosamente, abraando-o. J se c sabe tudo, meu senhor! Grandes feitos! Bendito sangue! Foi logo a tia Lourena, de corrida pela ladeira acima a chamar: Minha nobre senhora! Tendes a, nesse vosso filho, a maior alma dos Namorados. E foi dizendo de enfiada, no seu vozeiro ofegante, naquele feitio pitoresco e sincero que j lhe conhecemos, as maiores proezas que vira em Aljubarrota. Mas um escudeiro veio pedir a Ruy de Vasconcelos que descesse, pois que j estava organizada a procisso pelo triunfo. Vou j. Me, at logo. E teu tio, Ruy?! perguntou-lhe, baixo. Vem a tambm, de perfeita sade. Atrasou-se a conversar com um troveiro provenal, que eu vos hei de levar l a casa para lhe ouvirdes cantar o rimance da nossa ala. Montou a cavalo e desceu.
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A procisso comeou a desfilar. O povo ia numa alegria doida. Entre a arraia- mida, a tia Lourena contando sua gente o moto intrpido como se tinham batidos os esfarrapados de Lisboa. E um escudeiro de Pinhel, que estava ao servio de um dos Namorados, ia mostrando ao povo um belo falco real, de corrente de prata no p, que tinha apanhado num dos pinhais circunvizinhos do campo de batalha. O rei que fugiu um grande amador de caadas explicou o escudeiro tem muitos falcoeiros, e este, pelos modos, era o seu falco mais estimado e na sua tenda o tinha muito donairoso. De l havia de ser que ele lhe fugiu. Para imitar o dono chasqueou um maltrapilho. Deu uma longa volta aquela extraordinria procisso e, quando comeou a descer a encosta de Santos, em frente da armada castelhana, Afonso Eanes levantou a toda a altura dos seus braos possantes a bandeira real de Castela. Os pendes dos grandes senhores das Espanhas, de Gasconha e do Bearne foram erguidos por entre apupos da multido e logo abatidos de rojo aos gritos de S. Jorge e Portugal. Os Castelhanos da armada viam bem aquilo. Algumas naus e gals estavam to prximas da praia, que se l tivessem trons a bordo, como alguns escritores imaginaram, facilmente os poderiam disparar, de modo que os pelouros pusessem em debandada aquela multido que humilhava Castela. Mas os Castelhanos limitaram-se a responder alga, irra dos apupos com gestos e gritos de insulto. Felizmente para os castos ouvidos, os sinos da cidade e as sinetas das muralhas, cortando os ares com a vibrao dos seus repiques, num frenesi louco, abafaram completamente a vozearia das afrontas. O sol, decorador supremo, punha os seus esplendores de apoteose sobre aquela procisso de triunfo. E s uma hora depois chegaram S, onde um franciscano, grande telogo e famoso orador, ia subir ao plpito para pregar o sermo congratulatrio da vitria.
CAPTULO II PLANO DE AVENTURAS
Tinham passado trs dias. Um escudeiro do Condestvel chegara de Santarm com uma carta para Ruy de Vasconcelos. Trazia notcia de alvoroo, pois que logo o jovem caudilho dos Namorados mandou sair dois escudeiros com aviso para os companheiros se reunirem no alpendre de S. Domingos, por volta das 3 horas da tarde. E a seguir foi aos aposentos do tio Mendo. Encontrou-o de palestra com o trovador provenal, a quem muito se afeioara desde as jornadas de regresso a Lisboa. Era pessoa de confiana aquele aventureiro poeta, e o que Ruy queria dizer ao tio no era coisa de segredo que o hspede no pudesse ouvir. Tio Mendo, veio uma carta do Condestvel para mim. Traz alguma m notcia? Traz-me a notcia de que El-rei saiu de Santarm para o Minho em romaria Senhora de Oliveira de Guimares, e que ele Condestvel vai para o Alentejo e entrar por Castela, se as coisas lhe parecerem asadas para isso. Tio, antes fosse para Riba Douro, em terras de Castela! Ah! Sim volveu-lhe, sorrindo Para tu ires com os teus Namorados tomar Tordesilhas? Nunca Deus me desse maiores trabalhos. Pois todos os caminhos levam a Roma, e das margens do Tejo castelhano no seria coisa de espanto deitar at s montanhas do Douro leons. Mas nem isto ser preciso. Eu j falei com este nosso amigo disse, indicando Marival e temos um trao de aventura, que pode ser talvez a loucura final da minha velhice. Enfim, ser para te salvar a noiva, e no h sacrifcio que no mereas pela honra insigne que ds nossa famlia e pelo assinalado esforo com que tens servido a nossa terra. Mas conta-me l ento porque que o Condestvel te manda a ti essa notcia. S para te dizer que vai para a fronteira do Alentejo e de l ir por Castela dentro, assim que tenha ocasio, s para isto no me parece que seja. No , tio Mendo. Esta nova que ele me d serve s para justificar o convite que me faz. Quer que vs com ele, estou a adivinhar? Assim . Com autorizao que teve de El-rei me convida a ir para l com os meus companheiros que esto aqui em Lisboa... Restos daquela gloriosa ala que ia ficando toda em Aljubarrota! interrompeu Mendo Rodrigues. Quarenta e cinco so os que a temos. Convida-te ento a ires com eles para a sua hoste e depois, se Deus quiser, para as terras de Castela? E tu que lhe respondes? Que aceito o convite. Ainda esta tarde hei de ouvir o voto dos meus companheiros e com eles tenho a certeza de contar. E amanh de madrugada partir o mensageiro com a resposta, e ns no dia seguinte iremos a caminho de Santarm. L lhe lembrarei o honroso feito que seria ir bater a hoste do infante de Navarra, se acaso ainda no saiu da Beira. E assim te irias aproximando do velho reino de Leo, e de salto, ao modo dos fossados (*) do tempo do nosso primeiro rei, darias contigo e com os teus a tomar Tordesilhas para de l tirares a tua noiva. Vede, meu prezado Frederico Marival disse para o trovador, esboando um sorriso vede se o rei Artur teve nos seus da Tvola Redonda cavaleiros que mais sonhassem do que estes meus patrcios da Ala dos Namorados!
[(*) Fossados denominavam-se as invases militares, breves, feitas no territrio dos Mouros durante os primeiros tempos da monarquia.]
Eu que nem os podia sonhar assim nestes nossos tempos! respondeu Marival. Nem eu, que sa daqui h doze anos, julgando isto uma nao moribunda, que ainda h um ms me parecia a dois passos de se perder! Agora, no. O que eu vi em Aljubarrota pareceu-me a ressurreio de uma grande raa e eu prprio, amargurado e descrido, como que subitamente mudei e sinto-me menos acabrunhado de mgoas! To outro, que at me apraz meter-me em aventuras por conta deste nosso querido Namorado! Pois, meu Ruy, a mim me quer parecer que se vo dispondo as coisas bem, e aqui, neste nosso engenhoso troveiro e em mim, ters os esculcas que te ho de ir observar a terra inimiga. Tio, no entendo bem! Eu te explico. Para poder cumprir a promessa que te fiz, entendi-me com este nosso amigo e tudo est j combinado. Ele conhece bem Castela e j esteve em Valhadolid e em Tordesilhas; eu tambm, e sei falar o castelhano desembaraadamente. Ora imagina que um belo dia nos iremos daqui os dois, ele como trovador errante e eu com o meu capuz, com o bordo e o meu burel de peregrino da Terra Santa. E assim, no fingimento de nos havermos encontrado casualmente pelo caminho, iremos dar a Tordesilhas e pedir pousada no mosteiro onde est a tua noiva. coisa natural e que h de ter sucedido muitas vezes. Quem havia de l suspeitar de um troveiro aventuroso, errante de terra em terra, e de um velho peregrino, que sabe dizer mil coisas certas da Terra Santa no castelhano que eles falam? Oh! Que seria uma abenoada aventura para eu saber notcias seguras de Madalena; porm com grande risco para vs. J estou adivinhando o que ests com vontade de me observar. Se l desconfiassem que amos de Portugal, logo os dois nos poderamos tornar suspeitos. Tambm disto nos havamos lembrado e de acordo resolvemos meter-nos em Castela para Tordesilhas e Valhadolid e, fazendo um grande rodeio, iremos tomar caminho como se vissemos de Frana. Messire Frederico Marival diria que tinha sado de Avinho, sede do anti-papa Clemente VII, que os Castelhanos reconheceram, e vinha de visita s povoaes de mais nomeada em Castela e comigo se encontrara em Navarra. Eu contaria que era Asturiano e dos Santos lugares voltava com promessa de visitar o famoso mosteiro de Tordesilhas. Assim, neste fingimento, que no afronta nem causa dano a ningum, seguro que nos dariam bom e confiado acolhimento. Corri j por terras de Espanha informou Marival e nunca me negaram pousada e bom acolhimento nos paos e nos castelos dos fidalgos, nos conventos dos frades e at em mosteiros de monjas. E com mais facilidade talvez a um peregrino da Terra Santa acudiu Mendo a sorrir se no tiverem suspeita de que chamorro encoberto. Tio, e depois? perguntou Ruy num alvoroo de apaixonado. Saberamos da tua noiva e observaramos quanto fosse necessrio para entender como de l a poderamos tirar. Se fosse possvel, ns somente. E se o no fosse, um de ns viria dar-te aviso onde quer que estivesses, e l irias ento buscar a noiva encantada. Diz-me agora o teu parecer. Tio, o que eu sei e posso dizer que o estratagema assim me parece excelente e que virei a dever-vos, a ambos, a maior ventura da minha vida! Nem tanto, nem tanto, meu querido Ruy. A vila tem muralhas, h de ter gente de armas, o mosteiro estar bem guardado, e no ser fcil que ns, os dois, possamos arrancar de l a tua noiva, sem a expor a perigos de morte connosco. Mas ficaremos sabendo como o feito se poder levar a cabo, e seremos ns os guias para ti e para os teus, que te quiserem acompanhar. E isso j muito e de to rara dedicao, que nem eu sei como hei de agradecer-vo-lo. O feito h de ser teu e dos teus. E ser essa a mais galante aventura dos Namorados de Aljubarrota disse o Provenal. Mas por agora nada disto contes ainda aos teus companheiros recomendou-lhe o tio. Nem uma palavra sequer, at que chegue a ocasio de lhes fazer o pedido. Est bem. Ns, os dois, iremos tambm convosco at fronteira e de l nos afastaremos ento. Tio, entendeis que preciso guardar segredo para a minha me? Decerto. Para essa primeiro que para ningum. No me perdoaria, se soubesse, ou sequer pudesse sonhar, o que eu aqui te disse. Falo-lhe ento numa ordem de El-rei para nos irmos juntar hoste do Condestvel. Conheo-a bem. Entender que vou cumprir os meus deveres de cavaleiro e de portugus, e resignar-se-. Deus sabe com que mgoa e com que lgrimas, que tu no poders ver! Fica ento assente o que te disse, e tudo teremos preparado para partir amanh, se os teus companheiros estiverem de acordo. Esto. Podia jur-lo.
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De tarde, os Namorados estavam reunidos no alpendre de S. Domingos. Ruy leu-lhes a carta do Condestvel. Iremos como se tivssemos uma s alma e uma s vontade! respondeu o Magrio por todos eles. Para onde o Condestvel mandar e onde vs quiserdes, Ruy de Vasconcelos disse calorosamente Vasco Eanes. Todos! Todos! confirmaram. Pois isso mesmo lhe vou j responder. E vai a bandeira e seremos na hoste um corpo parte, como em Aljubarrota. Enquanto houver um que represente a ala e possa levantar e defender a bandeira. Assim h de ser. Ento, amanh, ao romper da madrugada props o Vasconcelos. Amanh a caminho. Pela nossa terra e pelas nossas damas! disseram num brado de alma. E afastaram-se com to expansivo jbilo como se tivessem aprazado um sarau ou umas cavalhadas na Corredoura. Ruy foi dar conta ao tio dos resultados desta breve conferncia com tal entusistico desfecho. Ento, com esses rapazes, at podias ir buscar a tua noiva s cidades de Sevilha, de Mrcia, ou de Toledo, nas prprias barbas do rei disse-lhe Mendo Rodrigues de gracejo E a propsito do rei de Castela, deixa-me dar-te uma notcia que eu h pouco ouvi. Sabe-se j em toda a cidade, creio que por um prisioneiro portugus fugido das naus castelhanas, que o rei vencido foi dar a Santarm por alta noite, logo no dia da batalha, e de l veio num batel rio abaixo para acolher-se armada que a tem. Que esteve quase dois dias a bordo da nau de Pedro Afan e no dia dezassete se meteu ao mar para Sevilha numa gal. Rei de nimo fraco, tal como el-rei D. Fernando! Este de Castela ainda, ao menos, teve coragem para assistir batalha, enquanto ela foi regular. A escassa meia hora que o foi. Mas diz-se tambm e, provavelmente, informao da mesma origem, que D. Joo de Castela chegou armada de rosto velado, a soluar como uma mulher e completamente vestido de d, como se fosse dele todo o luto que foi cobrir Castela! Pois ento, a Santarm iremos saber como ele l chegou e em Castela havemos de ouvir por quanto tempo guardou el-rei o seu luto. Para o qual a vossa ala concorreu como ningum. Agora vem comigo para irmos dar aviso tua me. preciso encobrir-lhe o intento e terei eu de fingir que vou para ser o teu prudente conselheiro e desvelado guia, quando a verdade que sou eu o cmplice aventureiro dos teus amores! Mas muito do corao e para bom fim esta piedosa falsidade. Para que eu no venha a morrer de desnimo por estes amores, at agora to malfadados! Sinto consolo no servio que te vou prestar. De muito mais s digno. Vamos l! Foi entrevista breve de meia hora. sada, Mendo Rodrigues disse para o sobrinho: Venho com remorsos! Sentia a mgoa que a tua me fingia no sentir, e muito mais me custou esta meia hora que a outra de Aljubarrota!
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Ao outro dia, de madrugada, os Namorados partiram para Santarm, acompanhados de Mendo Rodrigues e do troveiro provenal. Foi uma alegre jornada de rapazes. Por ali fora em gracejos, em devaneios, em cantares, rememorando proezas e fantasiando aventuras. Dois dias de caminho e entravam em Santarm. Nas suas impacincias de batalhador, o Condestvel j se tinha metido a caminho para vora. Iriam os rapazes ter com ele e marchariam logo no dia seguinte. Naquela tarde se lhes juntaram alguns dos da ala, que j estavam quase curados dos ferimentos recebidos em Aljubarrota. Conversou-se a respeito da guerra, como era natural, e veio a ponto falar da fuga do rei. Se quereis saber o estado de lstima em que chegou disse um dos Namorados que de Aljubarrota viera para Santarm posso eu contar-vos o que h dias ouvi a um Castelhano, que os nossos aprisionaram aqui e era escudeiro de el-rei de Castela. Pois contai l. O tal escudeiro veio sempre na companhia de el-rei e do jovem da cmara real. Tudo presenciou e s daqui no pde acompanhar seu amo e senhor para a barra de Lisboa porque na calada de Artamarma lhe caiu o cavalo e, indo ao cho com ele, se feriu muito na cabea e se lhe torceu um p, de tal maneira, que no pde ir para a Ribeira. O rei, pelos modos, estava com grande pressa de se ver a bordo da sua armada. Apertado para contar como as coisas se tinham passado e receoso de que o matassem, se teimasse em nada dizer, o escudeiro tudo contou do que tinha presenciado e ouvira. Eu vos vou resumir, e heis de ficar pasmados dos desalentos daquele rei vencido, poucos dias antes to arrogante como se trouxesse atrs de si o maior poder do Mundo! Por todo o caminho viera el-rei aos soluos e a arrepelar as barbas e os cabelos! Mal entrou em casa do alcaide castelhano que tinha aqui ficado, se largou a chorar, clamando que era o pior rei e o mais desventurado homem que tinham as Espanhas. E andava como louco, aos ais e ora encostava os punhos s paredes chorando, ora cobria o rosto com as mos, dizendo que de si mesmo sentia vergonha. Observou-lhe o alcaide, para lhe dar alento, que no fora to grande o desastre, que lhe no houvesse ficado ainda poder de sobra para voltar em busca do desforo. E para o mover lhe lembrou o exemplo do pai, vencido pelos Ingleses. Pior foi lembrar-lhe isto o alcaide, porque em grandes clamores lhe retorquiu que no o comparasse ao pai, vencido pelo Prncipe de Gales e pela flor da cavalaria inglesa, a mais insigne da cristandade. O pai fora derrotado por esse admirvel capito, a quem chamaram o Prncipe Negro, e por esses homens de armas que j tinham desbaratado as hostes de Frana, aprisionando-lhes o prprio rei. E ele? Afinal desbaratado pelo rei de Avis, que nada valia no Mundo, e por um punhado de chamorros de reles condio. Ainda que a todos os tivesse amarrados diante de si e a um por um os pudesse degolar, ainda assim se no julgaria desafrontado. Teve-nos tanto mo de semear comentou o Magrio, rindo e em vez de nos procurar, fugiu-nos! Chora e arrepela-se ento que nem velha carpideira montezinha! Pois l iremos ns oferecer-nos degola. E ainda no sabeis tudo! Jurou que havia de andar vestido de d e em cortes mandaria que fosse geral o luto de todos em Castela. Est bem, e queira Deus disse o Lobeira que ainda nos seja dado ir l carregar-lhe o luto. Olhai c perguntou Ruy ao informador o que foi feito daquela tanta gente que se aprisionou em Aljubarrota? Cerca de cinco mil. Esto a quase todos, e tanto embarao causam, que j El-rei deixou ordem para mandarem pr os mais humildes a caminho das suas terras. So tantos, que os levam l abaixo ao rio a beber, presos uns aos outros como rcuas de mulas! Mas entre os grados est a o chanceler-mor de Castela... D. Pedro Lopes de Ayala disse Ruy de Vasconcelos Poeta e campeador. Defendeu com insigne esforo a bandeira real. Esse . Chanceler-mor e alcaide honorrio de Toledo. Ouvi, que j na batalha de Najera em que o rei D. Henrique II de Castela, pai desse que ns desbaratmos em Aljubarrota, foi vencido pelos Ingleses, esse Ayala defendera tambm destemidamente a bandeira real, mas ficara tambm prisioneiro. Parece que o levaram para Londres, onde esteve preso por largo tempo. Ento sina dele! disse Vasco Eanes. Mas agora, segundo o que me disseram, parece que El-rei lhe concede licena para se resgatar. E olhai que d riso ouvir as palavras que esse Ayala de tamanhos merecimentos imaginou para desculpar a derrota da sua gente! Fao ideia! disse o Vasconcelos, a sorrir. Que vinham fatigados. Depois do largo descanso de Leiria, uma pequena marcha de duas lguas! comentou o Vasconcelos. Em jejum. Tambm ns. Que havia grandes valas no campo e dois ribeiros com a fundura de dez a doze braas. Essas duas mentiras so de marca maior! Essas s para contar aos Castelhanos que nunca vieram a Portugal! Com doze braas o ribeiro da Calvria! Nem que ns tivssemos levado para Aljubarrota o Tejo atrs de ns. Mas para nos atacar a peonagem, a cavalaria dos ginetes no teve medo das tais valas nem se incomodou muito com os caudalosos ribeiros! Que a hoste castelhana estava mortificada pela sede. Com dois ribeiros assim, j era vontade de sofrer securas! Que o campo no tinha enxurra onde as alas se desenvolvessem. Pois foram eles que o escolheram. S se esperavam que ns os fssemos levando pela mo at onde eles muito bem a salvo nos pudessem derrotar! Eu ri-me e perdoei-lhe estas patranhas em favor ao seu rei e aos seus companheiros de m fortuna. verdade: e para onde mandou El-rei os despojos da batalha? A Bblia da capela real, algumas pratas e os caldeires foram para os frades de Alcobaa; o cetro e um relicrio ouvi que os deu ao Condestvel; os retbulos mandou que se guardassem para um grande mosteiro que ele fez promessa de erigir naqueles stios, em louvor da nossa Senhora da Vitria. Para Nossa Senhora da Oliveira de Guimares levou ento o precioso oratrio de prata do rei de Castela. E os famosos trons, los truenos roncadores? L se deixaram em proveito dos ferreiros daqueles lugares. Pois no tivesse eu ido para Lisboa disse Ruy de Vasconcelos e haveria pedido a El-rei que os mandasse levar para os ter no ptio grande do pao do Limoeiro como trofus. Levariam quinze dias a chegar a Lisboa, aqueles estafermos. Embora. Eram, depois das bandeiras, os mais preciosos trofus. E com igual interesse se deviam de guardar os magnficos arneses dos grandes senhores de Espanha, da Gasconha e do Bearne. Pois ningum em tal pensou! A peonagem apanhou alguns e de galhofa os trazia por cima dos seus trapos! A um sapateiro beberro de Lisboa vi eu com um bacinete resplandecente, que seria talvez o do Sire do Bearne. Fossem eles os vencedores e havamos de ver com que sofreguido teriam guardado os nossos despojos! comentou o Vasconcelos com revoltado pesar.
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Na madrugada do dia seguinte, os Namorados partiram para vora. Iam agora cinquenta e dois com os que se lhes tinham juntado em Santarm. Dos que tinham ficado feridos em Aljubarrota, mais de vinte tinham falecido e ainda uns trinta e tantos estavam em tratamento na enfermaria dos frades de Alcobaa. Entre eles Mem Rodrigues. Alguns ficariam inutilizados e invlidos. Em vora j no encontraram o Condestvel. Tinha sado com a sua hoste para Estremoz. Um escudeiro de Nuno lvares ficara com uma carta para Ruy de Vasconcelos. Dizia-lhe que ia para Estremoz e seguiria para Elvas com mil lanas e dois mil de peonagem. Que at fronteira, cerca de Badajoz, esperava juntar mais alguma gente de peonagem e ali os guardaria, para entrarem por Castela. Recomendava-lhes que no divulgassem esse intento de invadir o territrio castelhano, no por causa do inimigo, a quem lealmente havia de prevenir do cometimento; mas porque El-rei lhe dera apenas o encargo de tomar os castelos e povoaes que ainda estavam pelo rei de Castela, para c da fronteira, e no queria que se fizesse alardo daquele seu propsito, pois podia o monarca tom-lo como premeditada desobedincia. certo ento que vamos entrar em Castela! disse Ruy de si para si, cheio de jbilo Eu o moverei ento a deixar-me ir, sob qualquer pretexto, para os lados da fronteira em que mais me aproxime de Tordesilhas. Foi resumir a carta ao tio Mendo, sob promessa de confidncia. Est bem. Ento em Estremoz nos afastaremos de ti, eu e Marival, e l iremos a Tordesilhas saber da tua noiva e combinar o modo de a tirar de l. Se no a tiverem j levado para a corte, que no sei se estar agora em Toledo, se em Sevilha! J por muitas vezes tem estado em Valhadolid e para a ento pouco mais haveria que andar. Ah! Tio, era muito mais difcil, seno impossvel tir-la de l! objetou-lhe tristemente Eu iria, fosse como fosse. Cumpriria o meu voto morrendo por ela; mas no teria o direito de pedir aos meus companheiros que se fossem expor a uma morte certa contra os centos de homens de armas que el-rei h de ter consigo. E pedir-lho afinal por causa destes meus amores de m fortuna! Pois para sabermos o que ser possvel fazer que eu e o Provenal nos vamos meter nesta aventura. Agora preciso combinar para aonde te havemos de mandar ou trazer notcia do que virmos e soubermos. E daqui a quantos dias supondes vs que ser possvel mandar algum a Elvas com as vossas notcias? Ou um dos dois com elas, que ser o mais seguro. Entre ida e volta, no menos de vinte e quatro dias a esfalfar cavalos. Que longo tempo! E Nuno lvares estar no propsito de entrar muito por Castela dentro? Tal no creio eu. Tem trs mil homens certos; v que se lhe juntem mais uns dois mil de peonagem, e levar ento quatro ou cinco mil, mas desses s pouco mais de dois mil experimentados. No gente com que se v de algarada at ao corao de Castela, ainda que as foras maiores dos nossos inimigos se tenham reunido para os lados de Leo e Galiza, por saberem que El-rei de Portugal foi com a sua hoste para o Minho e constar que o duque de Lencastre vir com uma armada inglesa e uma poderosa hoste sobre a Galiza. Para validar a sua pretendida herana coroa de Castela, no assim? Em seu proveito, claramente. Mas onde te parece ento que devemos trazer-te as notcias que houver? A Elvas me parece que ser o melhor. Deixarei ali o meu escudeiro de mais confiana, para me levar qualquer aviso onde quer que eu esteja. Se ele souber onde esto. H de saber, pois que, de dias a dias, lhe mandarei notcias minhas por qualquer outro escudeiro. Est bem. Fica assim combinado, e que Deus nos d boa fortuna.
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Em Estremoz, Mendo Rodrigues e o troveiro de Provena separaram-se do esquadro dos Namorados. Ruy e os seus seguiram direitos a Eivas. Encontraram a hoste do Condestvel acampada nas margens do Caia. Estava-se em 1 de Outubro. No dia seguinte, Nuno lvares atravessou o Guadiana e foi acampar nas cercanias de Badajoz, fechada a sete chaves e com a populao acabrunhada de pavor. Parara ali perto o vencedor dos Atoleiros, o prodigioso Condestvel de Aljubarrota. Sabiam-no l dentro. Ora graas que j temos Badalhouce vista! disse o Magrio no seu tom faceto. E l bem sabem que homem o Condestvel observou Vasco Eanes. E que ele quem aqui vem. Demnio! disse o Lobeira Era bom mandar dizer s meninas de Badalhouce que tambm esto aqui os Namorados. Talvez elas gostassem de o saber, embora os pais, os manos e os seus requestadores nos crivassem de insultos, de chamorros para riba, e nos fizessem carrancas feias. Ora observou um que era natural de Elvas que importavam as carrancas deles, se as carinhas delas, quase todas lindas, do fome de beijos, e por muito que a gente as beije, ainda se fica a chorar por mais. Acharam graa ao dito; exprimia perfeitamente o ideal de quase todos eles. E no vos vades sem resposta acudiu logo o Lobeira que a fome de beijos que eu tenho agora muito maior que a outra que eu senti no dia de Aljubarrota. E por essa informao que me dais, palavra que estou daqui a olhar para os muros de Badalhouce como no dia 14 de Agosto, ainda em jejum, me pus a olhar para os bois de Don Juan, por la gracia de Dis, Rey de Castilla, de Leon, de Portugal, de Toledo, de Gallizia, de Sevtlla, de Cordoba, de Murcia, de Jaen, del Algarbe, de Algeziras, senor de Lara, de Viscaya y de Molina. Apre, que j no tenho flego para mais! Os rapazes acharam graa a este remate e quele castelhano, dito pelo Lobeira com uma certa fanfarronada deliciosamente cmica. Sabiam bem que eram aqueles os ttulos oficiais de que usava o malogrado herdeiro da coroa de Portugal. Mas olhai c, e agora sem gracejo, se ns pedssemos ao Condestvel que tomasse Badalhouce de escalada? lembrou um dos imberbes. Deixai-vos disso! advertiu outro mais ponderado Nuno lvares mandaria prender por louco esse que lhe fosse com tal pedido. Para uma escalada faltam as escadas e para lhe pr cerco no trazemos nem gente que chegue, nem engenhos para lhe bater os muros. Olhai indicou o Lobeira ali vai o escudeiro que o Condestvel mandou de Estremoz a Badalhouce com aviso de que ia entrar em Castela. Tal como se fosse repto para uma justa de cavalaria fidalga! Foi para eles no imaginarem que era seu intento entrar-lhes em casa encolhidamente.
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No dia seguinte, uns homens da peonagem, que andavam ao faro de despojos e tinham ido dar a mais de trs lguas do acampamento, deitaram a mo a dois frades que vinham de jornada, e trouxeram-nos presos para o arraial. Tomou conta deles um anadel dos besteiros e sujeitou a um interrogatrio os valdevinos que tinham apanhado os frades. Causou-lhe estranheza um dos apresadores, por trazer um bacinete magnfico emplumado, como nem o Condestvel nem o Rei tinham outro assim! Contrastava a opulncia do bacinete com a trapagem do vesturio. Ouvi l disse o anadel, reparando muito no nariz rubro e no olhar mortio do homem quem demo sois, que vos desconheo?! Sou o sapateiro Bernardo, a quem as desavergonhadas das regateiras de Lisboa, algumas delas mais bbadas do que eu, puseram a alcunha de Pingueiro. Mas no reis da hoste do senhor Condestvel no dia de Aljubarrota? Estive-lhe nas costaneiras, atrs da Ala dos Namorados. Eu era da Ala dos esfarrapados. Brigmos como dizem que brigam os lees e, se no estamos em jejum natural, no escapava um castelo para levar a conta dos outros ao rei que se escapou. A conter o riso, num artifcio inbil de severidade, o anadel perguntou: Mas porque artes do demo vindes aqui, sendo da peonagem de Lisboa, pertencente hoste real?! Eu vos digo, senhor anadel. Foi viso que me ficou. O demnio foi provar! Logo da primeira batalha, a primeira em que tinha entrado em dias da minha vida, me sa bem! Tomei-lhe o gosto e resolvi comigo experimentar outra. E da? Como foi que passastes para esta hoste? Foi em Santarm que me passei para gente mida do senhor Condestvel. L pr Minho que eu no queria ir. No gosto do vinho de l; muito azedo. O do Alentejo j eu conhecia bem; de rachar calhaus! E ao de Castela o provei na noite da batalha e, pela minha f, senhor anadel, que era pinga real! Ora aqui tendes porque me passei. Mas primeiro, e em jejum fui pedir licena ao senhor Condestabre para vir com ele, e logo me concedeu que viesse. Os outros riam; o anadel mordia os beios para no rir tambm. Est bem; ide l para o vosso arraial. E fazendo adejar a plumeira do bacinete, que a padeira Brites de Almeida lhe ia depenando, o Bernardo Pingueiro foi-se dali com os companheiros da scia. Palavrinha que disse a verdade afirmava aos outros Sa-me bem e estou com vontade de experimentar outra batalha e beber mais vinho castelo, bebido na me, que como quem diz nas cubas de Castela. Anda a gente com a pele em risco, mas isto um regabofe. Em Aljubarrota tomei este bacinete que vedes e parece de um rei; tomei um arns, que uma pea de tal luzimento, que se pode a gente ver a ele como se fosse um cristalino de Veneza; tomei dois odres e bebi-os, que foi um regalo, louvorzinhos a Deus, e agora convosco prendi dois frades. Mas l o tal arns que vs no trazeis! disse-lhe um. S se pode aguentar em dias de geada e com um espeque nas traseiras. Mas olhai, mestre Bernardo: porque dissestes vs ao anadel que em Santarm tnheis ido fazer um pedido ao Condestabre ainda em jejum?! Em jejum, para qu? Para ir fresco do miolo. E ficai sabendo que, antes de ir ter com ele, levei meia hora a mastigar folhas de loureiro! Essa agora! Pois pudera no! Se lhe aparecesse l a cheirar ao sarro da vasilha, era capaz de me mandar embora, corrido a pontaps por qualquer dos seus cavalarios. Assim cheirei-lhe a louro, e de louro que se fez a coroa dos grandes capites, segundo rezam as histrias. Cheirei-lhe coroa que ele merece e logo me atendeu. Foi uma risota doida, e i seguiram para o arraial da peonagem.
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Espalhou-se logo pelo acampamento a notcia acerca dos dois frades aprisionados. Estavam os fidalgos da hoste em frente da tenda do Condestvel, em volta dele, ouvindo-o, quando o anadel veio apresentar os reverendos e contou onde e como tinham sido presos. Donde vnheis? perguntou Nuno lvares ao mais idoso dos dois, falando-lhe em castelhano. Do reino de Leo respondeu na sua lngua. De qual convento? Daquele que a nossa ordem tem em Tordesilhas. Ruy era dos que estavam presentes e teve um alvoroo de surpresa. Aquele nome tinha agora para ele uma grande e preocupadora significao. E a que vnheis para estes stios? Em misso do geral da ordem para os nossos irmos de Mrida. Sabeis onde est ao presente el-rei de Castela? Ouvimos que para Valhadolid convocara as cortes da Nao. Mais nada sabemos a respeito de el-rei. Era inverosmil, mas o Condestvel tinha requintadas benevolncias para todos os religiosos e com aquela resposta se satisfez. Pois ide com Deus a cumprir livremente o encargo que vos deram. E logo, voltando-se para o anadel: Acompanhai-os at longe do arraial, para que lhes no falte ao respeito algum desabusado da peonagem. Com caras de pscoas, os dois frades fizeram umas grandes mesuras ao Condestvel e retiraram-se atrs do anadel. J se julgavam escapos dos mais horrorosos quartos de hora de susto que ainda tinham tido na sua vida. Ruy de Vasconcelos afastou-se logo da roda, disfaradamente, e foi sair-lhes ao caminho, j fora do arraial. Os reverendos acabrunharam-se com receio de alguma reconsiderao do Condestvel; mas o jovem Vasconcelos facilmente os tranquilizou, dizendo- lhes em castelhano algumas palavras de boa paz. Desejava fazer-vos um pedido. Dizei volveu-lhe o mais idoso, afogueando-se e pondo nele um olhar de estranheza. Certo sabeis de um convento de monjas de Tordesilhas, onde ouvi que estava reclusa essa que foi rainha e se chama Leonor Teles. Muito bem a conhecemos e at eu mesmo algumas vezes tenho ido ao mosteiro substituir o capelo no encargo das confisses. Podeis ento dizer-me, e este o pedido que vos desejo fazer, se nesse mosteiro ento outras damas de Portugal, sem ser essa que foi rainha? H coisa de trs semanas, duas vi l que da vossa terra eram e l se tinham recolhido por ordem da Rainha. Me e filha, no assim? perguntou calorosamente. Isso mesmo so respondeu-lhe o frade um pouco surpreendido A filha muito jovem, e muito linda, senhor cavaleiro. talvez algum parente delas pensou ou antes algum requestador infeliz da filha de D. Maria. No sabeis ento se h trs semanas para c teriam sado do mosteiro? No sei. Mas logo acrescentou com a sua ronha fradesca: A senhora rainha D. Beatriz foi h pouco de visita ao mosteiro e ouvi que de l sara levando consigo duas damas de Portugal, que tem em muito apreo. No sei se seriam essas por quem vos interessais. O rosto do jovem cavaleiro empalideceu e tomou uma expresso de amargo desalento. Fitando-o em cheio e percebendo-lhe a perturbao, o frade disse de si para si: Ento o requestador de quem ouvi falar. Mas porque lhe desagradaria que a Rainha a levasse consigo? Deus vos pague o favor das vossas palavras agradeceu o Vasconcelos. E comigo vai o pesar de vos no poder dar informao melhor. Mas sempre vos direi que, segundo ouvi, a formosa menina fora em Toledo o pasmo e o encanto de todos. Afirmaram-me que tinha noivo prometido. E no vos disseram quem? Disseram-me que era um certo fidalgo portugus que estava em Castela e a quem tinham posto a alcunha de cavaleiro mudo, porque, em consequncia de certos ferimentos, havia perdido a fala. Frade, j no pode ser esse! Por ter morrido, senhor cavaleiro, pelo ter chamado Deus sua divina presena?! Porque o mataram em Aljubarrota. Matei-o eu. Matei-o em combate leal e legtimo desforo pela minha terra e pela minha dama. Assim, a poder de sangue, se encerrou a conta das ofensas e das traies que ele vilmente fizera minha noiva e sua Ptria. Mat-lo-ia, ainda que o houvesse de ir buscar aos degraus de um altar ou ao estrado de um trono. O frade teve uma arrepio de terror e, dobrando-se muito, de braos cruzados sobre o peito, disse humildemente: Altos juzos de Deus! Mandais alguma coisa mais destes vossos servos? Ide em paz respondeu o Vasconcelos. Os dois frades afastaram-se logo com admirvel ligeireza como se levassem asas nas sandlias. S por vergonha que no deitaram a correr como raposas espavoridas, e s Deus sabe com que regalo de alma eles viram palmilhada a primeira fadigosa lgua que os separava dos chamorros. De olhos no cho, caminhando lento, Ruy ia dizendo de si para si, amarguradamente: Se a Rainha a levou consigo, ento ser este meu sonho de agora o ltimo que se desfaz. O ltimo! E acabar com ele esta pobre alma, to rudemente mortificada. O tributo que devia minha Ptria e ao meu nome, est pago. J no haver glrias nem vaidades de cavaleiro que cheguem para me encher o corao. Nenhumas!
CAPTULO III UM GLORIOSO DIA
A hoste do Condestvel avanou lentamente em busca de algum que lhe fizesse frente. No dia 3 de Outubro ficou em Almendral; no dia 4 acantonou- se, como se diria hoje, na aldeia de La Parra. E foi ali que os nossos descobriram gente de armas que se lhes pudesse opor. Ora graas! exclamou o Magrio na roda dos Namorados Aparece enfim algum para bailar connosco. Viva Deus, que andava j ralado de saudades por estes nuestros hermanos de Castilla. E logo, reparando no rosto melanclico de Ruy de Vasconcelos: Caudilho, ento que isso, que nos andais outra vez entristecido?! Se pela vossa dama essa tristeza, aqui tendes os da ala e mandai, que eles sero por vs e por ela onde quer que for. Ns todos! Ns todos! Deixai-nos dar outra esfrega nesses farfantes de Castela continuou o Magrio e contai depois connosco para vo-la irmos buscar, ainda que seja ao alcar de Toledo, nas barbas do prprio rei das duas Castelas e de Leo e de Galiza e de Sevilha e de Jaen e de Mrcia... E dos Atoleiros e de Trancoso e de Aljubarrota, e do mais que se lhe h de acrescentar em guisa de et etecetera. O Vasconcelos sorriu tristemente desta farroncaria jocosa. Trazia-o mortificado o receio de que Madalena j no estivesse em Tordesilhas e a houvesse a Rainha levado para a corte. Mas, ao mesmo tempo, lhe dera consolo por aquela fanfarronada que, a ser preciso, poderia contar com o gnio aventuroso dos seus companheiros. Se a misso do tio Mendo e do Provenal fosse bem sucedida, j no teria de pedir acanhadamente a cooperao daqueles camaradas seus, no temor de que eles o tomassem por vanglorioso devaneador com a pretenso louca de os levar atrs de si para uma aventura de morte, ao servio dos seus amores. Depois daquela bravata, calorosamente aplaudida, o pedido a fazer-lhes seria a coisa mais simples deste Mundo. Bastaria indicar-lhes a oportunidade da promessa, to singela e espontaneamente feita, pois que nem o prprio Magrio conhecia o plano combinado em Lisboa entre Mendo Rodrigues e o sobrinho. Nem sequer o podia sonhar; mas a qualquer plano com tal objetivo o julgaria exequvel aquele brilhante cavaleiro de aventura. Diziam-no claramente as suas palavras de promessa, que os outros apoiaram com entusistica unanimidade. O que vs agora podeis fazer, Ruy de Vasconcelos, com aprazimento e louvor de ns todos, era o ir rogar ao Condestvel que nos deixasse dar uma batida queles lobinhos de Castela, que esto a uivar de longe. E apontava uns troos de homens de armas que tinham aparecido a mais de meia lgua da aldeia e se tinham ficado hesitantes. Pelos pendes e pelas lanas altas dos homens a cavalo se percebia que havia de ser gente fidalga. Eram trezentos cavaleiros da ordem militar de Alcntara, ao mando do novo mestre, Martim Anes Barbuda. Fora ele quem viera substituir no mestrado a D. Gonalo Nunez de Guzman, transferido para o mestrado da ordem de Calatrava. O Barbuda era dos Portugueses que estavam em Castela em defesa da herana da rainha D. Beatriz e ao vesso das benesses do rei castelhano. Sim, vou respondeu Vasconcelos. Os rapazes fizeram-lhe uma ovao. Foi e o Condestvel acedeu. Tinham ido ao encontro do propsito em que ele estava de mandar fazer o que hoje se chamaria um reconhecimento ofensivo. Os Namorados saltaram para os cavalos numa alegria expansiva, focada de encantadoras infantilidades. Lindo, lindo dizia o Lobeira era ns sozinhos vencermos uma batalha! Vamos l dar-lhes as boas-vindas e pedir-lhes que no estejam com acanhamento de nos fazer a sua visita. Toda a hoste estava j em armas para ficar esperando o resultado do reconhecimento. Ruy foi numa galopada receber as ordens do Condestvel, volveu noutra a pr-se frente do esquadro, e mandou meter a galope, a bandeira a par dele, nas mos do Magrio, como estandarte invicto. Foi uma arrancada brilhante, mas desesperadoramente improfcua. Evidentemente os trezentos cavaleiros de Alcntara no queriam lutar. Que todos os diabos os devem, que no querem esperar por ns bramiu o Magrio. E parece que levam asas nas ancas dos cavalos! Foram correndo sobre eles, desafiando-os, mas apenas umas dezenas da retaguarda escaramuaram por instantes, e esses mesmos logo deitaram desfilada. Voltaram pesarosos os rapazes e quase envergonhados pela fuga dos outros. Dando conta do reconhecimento, Ruy dizia ao Condestvel: So na verdade cavaleiros de Alcntara, e bem claramente se percebe que vieram apenas para nos vigiar e dar f das nossas foras, e no para combater. No sero eles a vanguarda de alguma hoste? Corremos sobre eles at mais de duas lguas e no descobrimos indcio nenhum de outra gente de guerra. Talvez a estejam esperando de longe. Pois iremos ns para diante a encurtar-lhes o caminho respondeu Nuno lvares.
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Em 5, a hoste avanou para Zafra. Depois seguiu de Fuente del Mestre para Villagarcia, aldeia protegida por um castelo senhorial. E por aqui andamos seguidos de longe por esses galgos de Alcntara, que nem sequer para ladrar servem! dizia um dos Namorados Parece que no h Castelhanos em Castela! Vamos a ver agora se aqueles ali do castelo nos no deixam embaraados acudiu outro. Isto vai senido pior que ir a Roma e no ver o Papa! gracejou o Magrio. Tinham feito alto a pequena distncia da aldeia. O Vasconcelos veio da retaguarda, de ter falado com o Condestvel. V a galope para intimarmos a gente daquele castelo a entregar-se. Deitaram por ali fora. Foi uma acometida frustrada. Por uma ladeira ngreme, onde dificilmente os cavaleiros podiam carregar sobre eles, os homens de armas do castelo fugiam. M peste os mate, que nos deixam voltar a Portugal envergonhados! Vinte lguas por Castela dentro e afinal umas reles escaramuas, que nem s regateiras de Lisboa dariam honra!
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Os de Villagarcia receberam a hoste com demonstraes lisonjeadoras e confraternizaram com ela. Trs carinhas de jovens bonitas por junto! observou o Lobeira, depois de ter corrido a aldeia de ls a ls Que demnio! Aparecessem ao menos as Castelhanas bonitas, j que nos no aparecem os Castelhanos! Nada; para Toledo ou para Sevilha que ns havamos de marchar. Contava um tio meu, grande frecheiro, que as mulheres de Toledo tm carinhas de enfeitiar, mas que as de Sevilha queimam o corao gente s com os seus lindos olhos, grandes e negros. Por este engodo ramos ns capazes de tomar qualquer daquelas duas cidades, e que elas nos fossem enfeitiando por l, ainda que depois nos queimassem vivos. Entretanto, l para o extremo da aldeia, porta de uma adega, o Bernardo Pingueiro, com o seu bacinete bearns debaixo do brao, dizia maravilhas do vinho de Castela a dois pasmados ancios de Villagarcia. pinga que parece feita do sangue dos vossos lees, dos tais que as bandeiras do vosso rei trazem figurados! Eu nunca os vi seno pintados, mas ouvi uma vez a um judeu de Ceuta, residente em Lisboa, ouvi-lhe dizer que os lees sopram mais que um toiro grande. Pois sabei que, em eu bebendo vinho de Castela, fico mais soprador que um leo. Os ancios de Yillagarcia acreditaram respeitosamente. E o dono da adega, que sabia bem a conta dos pichis que o Bernardo j tinha bebido, suplicou mentalmente ao orago do lugar que lhe pusesse dali para fora aquele chamorro, capaz de algum desatino mal que o vinho lhe comeasse a trabalhar na mioleira. Mas o sapateiro batalhador no se despegava dali e a sede que ele tinha no acabava, por mais pichis que emborcasse. Como era de esperar, o calor comeou a afogue-lo e o Bernardo desatou a soprar. Os ancios no tinham tomado letra as frias leoninas de que ele lhes falara; mas se no acreditavam nas suas manifestaes pelo sopro, comeavam agora a recear que o famoso vencedor de Aljubarrota chegasse a algum extremo de violncia corporal, por qualquer capricho ou embirrao de brio. Belo capacete de cavaleiro o vosso! disse-lhe um deles no intuito lisonjeiro de lhe aplacar o sopro e de se pr dali para fora na primeira aberta Nunca vi outro assim! de Frana e tomei-o em batalha real. Desconfia-se que foi do grande Carlos Magno ou, quando menos, de algum dos seus dozes pares. Do grande Roldo de Rocesvalles ou do prprio Ferrabraz de Alexandria, de qualquer dos dois. Mais uma tarraada do vosso disse para o dono da adega, indicando-lhe um dos tonis. O homem fez-se verde e os ancios sentiram-se mal seguros ali. Duvido que dois lees juntos pensava um dos velhotes fossem capazes de beber tanta gua como de vinho tem emborcado este chamorro. E os dois assustados velhotes trocaram um olhar de alarme e disseram, quase ao mesmo tempo, umas palavras de despedida para se escapulirem. No vos vades, que vos quero aqui! intimou o Bernardo, indo para eles Sempre vos hei de contar como foi que eu tomei o cetro de el-rei D. Joo de c. Com seiscentos trons! exclamou ainda mais afogueado uma terra quente esta vossa de Villagarcia! Aqui na adega, e parece que estou boca de um forno! E soprou com maior violncia. Os ancios at se velaram. Era embriaguez que podia dar em tragdia. E eles sabiam l quem era aquele escalda-favais de bacinete de prncipe e bofes de toiro. Veio livr-los daquele aperto, mas para receios maiores, a vibrao de uma trombeta de guerra, tocada para alm das lombas de um outeiro. Foi um alvoroo. As trombetas do Condestvel deram o sinal de alarme. Pois ficar o conto e o resto para depois da batalha disse o Bernardo, despedindo-se de olho cpido para o pichei onde o vinho vermelho continuava a espumejar.
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Agora ser, louvores a Deus! dizia-se entre os fidalgos. Pois ainda desta vez se enganavam. Quem descia da lomba do outeiro no era uma hoste para batalhar; era um arauto castelhano, portador talvez de alguma mensagem ou de algum cartel de desafio. O Condestvel apeou-se, sentou-se num grosseiro banco de madeira e mandou receber o arauto com as formalidades em uso. O recm-chegado apresentou-se-lhe, sobraando um molho de varas. Todos os cavaleiros presentes entendiam o simbolismo daquelas varas, muito conhecido desde os mais afastados tempos da Idade Mdia. Aquilo era um desafio e cada vara representava um desafiador. O arauto curvava-se, guardando permisso de falar. Dizei a que vindes mandou Nuno lvares com risonha serenidade. Como em terras de Castela com as vossas hostes sois entrado mo armada, aqui me ordenaram viesse a desafiar-vos, senhor Condestvel, e vos entregasse estas varas em nome de cada nobre senhor dos que me c mandaram. Aceito o desafio e as varas respondeu D. Nuno com singular expresso de jbilo Andei vinte lguas por-terras de Castela para vir ao encontro desses nobres senhores. Nomeai-os para eu ficar sabendo a quem tenho de dar o agradecimento e o troco. Ireis vs recebendo as varas disse para um dos seus pajens. Por el distinguido senor D. Pedro Moniz de Godoy, Mestre de Santiago. E passou a primeira e a maior vara para as mos do pajem. Por el muy noble senor D. Gonzalo Nunez de Guzman, Mestre de Calatrava. E entregou outra vara ao pajem. Por el muy noble Conde e senor de Niebla, D. Juan Alfonso de Guzman. E assim foi dizendo nomes ilustres e entregando varas. Era mais: o conde de Medina Coeli, D. Gasto de la Cerda; o Barbuda, Mestre de Alcntara; D. Pedro Ponce de Leon, senhor de Marchena, e D. Alfonso Hernandez de Cordoba, senhor de Aguiar, e por ltimo at os homens honrados da Casa dos Vinte e Quatro, de Sevilha, que viriam tambm a tomar-lhes o caminho com a gente da comarca e o pendo da cidade. Boa nobreza das Espanhas nomeastes. Boa para maior glria de quem a vencer disse o Condestvel, sorrindo Pois heis de l dizer-lhe que muito me apraz saber a quem tenho de agradecer a batalha e zurzir com as varas do desafio, se ainda tiver Deus no meu favor como em Atoleiros e Aljubarrota. Afianai-lhes l que, por mim, Nuno lvares Pereira, Condestvel de Portugal, e por todos os meus, lhes mando as boas-vindas, de que j nos pesava a tardana, e a qualquer parte os iremos buscar, para ver se a firmeza das suas lanas vale a arrogncia das suas varas. No assim, senhores cavaleiros? Mais de cem vozes responderam numa afirmao calorosa e unnime, que fez iluminar de jbilo os olhos sonhadores do Condestvel. Agora, por essa boa nova, justo que vos d alvssaras. E mandou-lhe dar cem dobras. O arauto aceitou, pasmado. Tambm era dos costumes do tempo dar alvssaras e presentes aos pajens ou escudeiros que levavam mensagens de guerra ou recados de desafio, mas aquela era uma ddiva principesca. Ainda o arauto no tinha metido as dobras na escarcela e j as aclamaes ao Condestvel revoavam frenticas e iam repercutir-se por aqueles montes fora como um prego formidvel de guerra. Boas alvssaras teve o arauto! dizia o Bernardo Pingueiro aos da sua laia, assim que por toda a hoste constou o punhado de dinheiro que o Condestvel mandara dar ao mensageiro dos desafiadores Cem dobras bom dinheiro , mas eles pagaro as varas e as dobras com lngua de palmo. E c vai entrar em dana pela minha conta este famoso bacinete de no sei que sire do Bearne ou da Gasconha, que estendeu o pernil na chacina de Aljubarrota.
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Uma longa marcha aquela da hoste do Condestvel. Primeiro de Villagarcia para o Norte, descendo ao longo de um afluente do Guadiana. Depois de Magacela para Villanueva de la Serena, ladeando Medelin, em busca de um vau seguro no Guadiana. Entre Magacela e Villanueva houve uma ligeira escaramua com a gente do Barbuda. Na margem direita do Guadiana a planura extremava-se em montes abruptos de granito e de prfiro e em contrafortes da Serena, talhados em socalcos. A jusante da foz do ribeiro de Matachel, em frente da povoao de Valverde de Mrida, o Condestvel parou com a sua gente. Por ali vadearia o rio. Os esculcas trouxeram-lhe aviso de ter avistado grandes foras inimigas, que durante a noite se tinham concentrado nas posies altas de uma e outra margem. Querem cercar-nos! disse o Condestvel Pois em boa hora seja. Aos nossos muros de homens primeiro ho de eles derrib-los que rend-los. Com a diferena de que estes muros assim no esperam como os dos castelos, e vo para eles. Creio bem observou Ruy de Vasconcelos que esto juntando os homens de armas que vos mandaram desafiar e, quando estiverem todos reunidos, a os teremos sobre ns por um e outro lado do rio. E ns sobre eles acudiu o Condestvel porque esse rio o havemos de ns passar. E certo aqui vm com assentimento do seu rei lembrou Gonalo de Castel-Vide e talvez com o seu patrocnio, a ver se nossa custa se desforram da batalha real que vencemos. Pois deixai que lhe havemos ns de pr alto o preo do sangue para essa desforra. No viriam c sem licena do seu rei as trs grandes Ordens de cavalaria que tem Castela, nem dois to poderosos senhores como o conde de Medina Coeli e o conde de Niebla. E com eles a sua peonagem e mais a das comarcas de Andaluzia disse o Vasconcelos. E das outras mais prximas acrescentou o Condestvel. El-rei, est a perceber-se, no quer correr os riscos de outra batalha, e manda-nos procuradores seus para ultimarem as contas de 14 de Agosto observou o Vasconcelos, sorrindo. Pois boas contas lhes havemos de fazer, em Deus o espero respondeu o Condestvel com a firme convico de um predestinado.
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Desde madrugada, a larga distncia do rio e ao abrigo dos montes, se estavam concentrando as hostes dos desafiadores, vindas da Mancha, de Jaen, de Sevilha e Crdova e at do Arago. Cinco ou seis vezes mais gente do que tinha a pequena hoste do Condestvel. Nuno lvares mandou fazer alardo e apurou-se que, com as suas escassas mil lanas, tinha uma peonagem abaixo de cinco mil homens, pois que alguns centos deles lhe tinham ficado doentes, feridos e estropeados pelo caminho. J com o sol alto, manh adiantada, comearam a descobrir na planura, de um e outro lado, grandes esquadres apendoados e, pelas encostas e socalcos das montanhas, massas profundas de peonagem, armada de bestas, lanas e piques. Temos outra Aljubarrota ou coisa ainda pior! disse Ruy baixo para o Magrio As cautelas e prudncias do Barbuda, que j antes de ontem no trazia consigo menos de trs a quatro mil homens, bem estavam mostrando o seu intento de ganhar tempo espera de maiores foras. J no querem batalha seno pelo seguro, vindo para ns com quatro ou cinco vezes mais homens do que esses que a temos. E vo apertando o cerco! Ns somos os javardos; eles os monteadores volveu-lhe o Magrio. Aqui, sem o outeiro de Aljubarrota; quer dizer os javardos sem fojo, e ns para eles, sem os esperar, que esta a vontade do Condestvel e a nossa. E a nossa, dizeis bem. Vo ter boa lida os Namorados, e s Deus sabe quantos ho de ficar da ala! Se algum ficar! disse o Vasconcelos com uma tristeza ntima, que lhe vinha das saudades de Madalena, instantes a instantes amoravelmente evocada. Olhai para alm, companheiros! disse o Bernardo numa das filas da peonagem, apontando os cabeos granticos de outro lado do Guadiana Aqueles so os castelos grandes dos casteles que nos mandaram as varas. D neles o sol de chapa e ficam dourados e espelhemos que nem o meu bacinete do Sire do Bearne. E fez ondear a plumagem com uma certa altivez cmica. Oh! Mestre Bernardo, dizei-me c o que quer dizer isso de Sire? Eu, bem, bem ao certo, no sei; mas o que eu ouvi dizer a um lngua de trapos de um arqueiro ingrs, que um pouco aldrabava j a nossa lngua, foi que era ttulo de senhor, maioral, e que o cal Bearne era um condado l para os lados de Frana. E ficai sabendo que o dito ingrs que me deu esta explicao, ainda gostava mais de vinho do que eu! Em Aljubarrota tomei eu dois odres castelhanos, e bebi-os, louvores a Deus! Mas o malvado do vermelhusco ingrs tomou cinco, e creio que tambm os bebeu, pois que ao segundo dia j andava de gatas pelo arraial e o falar dele parecia o rosnar de canzarro velho. Grande risota, mas a verdade que as foras inimigas aumentavam de hora para hora. Gentes, reparai naqueles cardumes de castelos! avisou o Bernardo Este cerrado que aqui formamos est a lembrar-me, comparado com aquela tanta gente, uma searazita de lavrador pobre no meio de um daqueles grandes descampados do Alentejo.
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Os trombeteiros deram o sinal de preveno para marchar. O cerrado (quadrado) concentrou-se. O Condestvel veio ao meio dele para falar a todos. Esperai o auxlio de Deus e contai convosco, tal como se esta hoste fosse um s homem com uma s alma. So muitos? Maior glria se os vencermos e menor honra para eles se nos vencerem. Muitos eram tambm nos Atoleiros e fomos ns que os vencemos. Muitssimos eram em Aljubarrota e fomos ns que os desbaratmos. Eu no volto a Portugal vencido. Nem me entrego. Facilmente busca a morte quem se no quer render. Eu no me rendo. Nem ns! Nem ns! gritaram milhares de vozes entusiasticamente. Pois que Deus seja connosco, e vamos ns para eles! E deitou o cavalo para a frente da hoste, por entre as aclamaes frementes daquele punhado de expedicionrios, cuja infantaria mal daria hoje para constituir uma brigada em p de guerra. Marcharam para o vau, que ficava a cerca de lgua e meia. Na frente, o Condestvel com o alferes da bandeira, Diogo Gil; a seguir o esquadro que restava da Ala dos Namorados e o quadrado com a sua frente, alas e retaguarda, de cavaleiros, escudeiros, besteiros e vria peonagem. Quando desembocaram em frente do vau, j com milhares de inimigos a cortarem-lhes a retirada, o espetculo que tinham diante dos olhos era para esmorecer homens de menos aventurado arrojo. Pela escarpa de socalcos do monte fronteiro, talvez oito ou dez mil pees de ascumas e bacinetes reluzentes, como se cada trplice fileira naqueles degraus enormes fosse a muralha viva de uma cidadela gigantesca, em lanos pelo monte acima, para impedir o passo a quem vadeasse o rio. Em baixo, a flor da cavalaria monstica das ordens de Santiago e de Calatrava com D. Pedro Moniz e Gonalo Nunez de Guzman e mais os lanceiros fidalgos do conde de Medina Coeli e dos senhores de Marchena e de Aguillar. Muito prximas do rio, quase emboscadas, numerosas companhias de besteiros. Do outro lado do Guadiana, pela retaguarda, com a sua cavalaria de Alcntara, o Barbuda e mais o conde de Niebla, os ginetes da Andaluzia e a peonagem das terras manchegas e andaluzas com os da Casa dos Vinte e Quatro de Sevilha, de bandeira alada. Aqueles socalcos do monte sempre ho de ser mais levados do demo para subir que as escadinhas da Mouraria, l na minha terra de Lisboa! disse o Bernardo Pingueiro, a fingir que ria, mas j muito seriamente embaraado com os perigos do lance Ao menos em Aljubarrota no teve a gente que subir! E em voz baixa, quase rosnada: Aqui me est a parecer que largo o sangue e no apanho vinho! Mau! Para estes lados j chove! Chove! Estais a sonhar, mestre Bernardo! Chovem dardos e virotes desses negregados castelos! Efetivamente, sobre a frente e na retaguarda da coluna, j tinham cado algumas dezenas de homens feridos pelos virotes dos besteiros, emboscados a um e outro lado do rio. O Condestvel tomou a sua bandeira das mos do alferes e agitou-a no ar. Senhor Condestvel veio dizer-lhe Ruy de Vasconcelos os que restam da Ala dos Namorados pedem que os deixeis ir dar a primeira investida queles cavaleiros de Calatrava. Sim, ide. Eu irei tomar o monte. Pela nossa terra e pelas nossas damas! gritou o Vasconcelos. E o esquadro dos rapazes, com a sua bandeira verde a flutuar alto, transps o vau e rompeu os de Calatrava, cinco vezes mais numerosos. Foi um arranque soberbo! Estava travada na outra margem uma enfurecida luta. Uma companhia de cavaleiros fidalgos destacou do quadrado em auxlio dos Namorados. J l vo os galos pimpes comentava o Bernardo, agora muito menos jocoso Ns c seremos para abrir aquela pinha de casteles disse, pondo um olhar turbado no formidvel cerro da margem fronteira. Santiago y Castilla clamavam da frente. Santiago y Castilla bradavam da retaguarda. S. Jorge e Portugal! gritou o Condestvel, de p nos estribos Homens de Portugal, para diante! lvaro Gonalves gritou para o novo Prior da Ordem do Hospital, que era o comandante da retaguarda tende- vos contra esses da e passai o mais cedo que puderdes. E, a repetir o prego de guerra, avanou para o vau com a vanguarda e os lados do quadrado. Um troo de besteiros tomou de carreira a outra margem, para cobrir a passagem da hoste. Andavam j pelos ares os rudos medonhos da batalha. Preges de guerra, vozes de incitamento, insultos de desafio, vibraes estridentes de armas chocando-se, rumores cavos de galopadas. Tamanho rudo, que era impossvel ouvir os gemidos dos agonizantes, a poucos passos dos que avanavam. O quadrado ia investir o cerro. Na frente, a p, de bandeira na mo esquerda, Nuno lvares, com assombroso denodo, a sua alma de paladino e de crente a levar consigo aquele punhado de fanticos dessa religio humana que se chama o sentimento da Ptria. Birbones! Chamorros! insultavam em cima dos socalcos os Castelhanos da peonagem. Ora os mariolas! ainda pde gracejar o Bernardo, fazendo das tripas corao Somos ns que os temos tosquiado e so eles que nos chamam chamorros! Vamos l ento a trepar essa escadaria s marradas. E nisto se lhe esgotou a veia cmica. Os da frente j tinham esbandalhado as fileiras inimigas do socalco. Ali no havia retirada fcil para os nossos. Era ir para a frente, antes que os Castelhanos fechassem contra eles o seu crculo de ferro, entre aqueles montes granticos a lembrarem muralhas e cubelos de uma cidadela de ciclopes e as duas margens do rio. Foi uma investida leonina at l acima. E quem primeiro l chegou foi o Condestvel com dois teros da vanguarda. A peonagem inimiga tresmalhava- se pelas veredas fora numa fuga desabalada. Era gente bisonha, lavradores e jornaleiros das comarcas carairias. Mas, em baixo, a retaguarda da hoste portuguesa estava sendo valentemente investida por toda a hoste do Barbuda e do conde de Niebla, e comeava a fraquejar. Na planura, os Namorados e os seus auxiliares vinham j recuando sobre o quadrado, com graves perdas, acabrunhados por aquela massa imponente de cavalaria, que era constituda, principalmente, pelos de Calatarva e de Santiago, as duas mais potentes Ordens de cavalaria que tinham as Espanhas. Os rapazes batalhavam doidamente, gritando o mote da sua bandeira. Truncado, roto, o quadrado fazia prodgios, mas o tufo de ferro e sangue j tinha atirado com ele contra o primeiro socalco do cerro, que a vanguarda fora tomando aos lanos at ao cimo. O Condestvel veio de repelo para baixo. Percebia que o prego de guerra dos seus comeava a ter frouxides de esmorecimento, embora de vez em quando, vibrasse alto, mas j num timbre de desespero, como num grito de raiva e de dor irremedivel. V, homens de Portugal, aqui me tendes para lutar ao vosso lado! Assim, para l com toda a nossa alma. Por Deus e pela nossa terra, que hemos de vencer! E repartindo com eles a f heroica da sua alma de crente e de patriota, na frente das primeiras filas, de lana em riste, os arrancou do sop do monte em que se tinham apoiado, metendo-os contra o mar embravecido de homens, que ululava em volta daquele quadrado quase em pedaos, como se fosse uma nau semi-espedaada a investir com as ondas revoltas que a houvessem atirado contra os fraguedos de um cabo! E na frente, meio sumido entre a multido emplumada e brilhante dos cavaleiros de Santiago e de Calatrava, o minsculo esquadro dos Namorados. Mas afinal o prprio esquadro veio cair sobre a pequena coluna, a recuar outra vez contra a barreira do socalco, a despeito do seu desesperado esforo. Trs mil, no podiam aguentar, a peito descoberto, dez ou doze mil que acometiam agora com maior fria, j na soberbia de se julgarem vencedores. Tende-vos! Um esforo mais, enquanto eu vou l acima para trazer os mais bradara o Condestvel. Subiu, mas altura do segundo socalco, o virote disparado por um dos besteiros castelhanos, que tinham voltado da primeira debanda, feriu-lhe um p. No era ferimento grave, mas j no podia subir com a mesma presteza. Ia a pequena distncia do cabeo quando ouviu de cima este grito convulsivo de aviso: Mais castelhanos dando volta pelos montes! Teve um confrangimento de alma. Compreendeu que tinha a batalha quase perdida. Meu Deus! Meu Deus! No me desampareis agora! Entregou a lana ao pajem que o seguira sempre e ladeou por entre os afloramentos da penedia. Ajoelhou de mos postas como o asceta mortificado no recato da sua gruta. O pajem ficou pasmado. Seria possvel que Nuno lvares, o cavaleiro sem pavor, tivesse um assomo de medo naquela conjuntura de morte?! Espreitou. Nuno lvares beijava fervorosamente o medalho-relicrio, tomado em Aljubarrota da capela volante do rei de Castela. Depois, olhos cravados no cu, orava. A fazer uma suprema splica ou talvez uma dessas promessas que mudam e transfiguram a vida de um homem? Entretanto, no alto do cerro e em baixo naquela espcie de esplanada por onde a cavalaria castelhana carregava em galopadas o quadrado j quase envolvido, os brados de desespero, de angustiado desespero para morrer, igualavam pela intensa vibrao os preges arrogantes de vitria da hoste de Castela. Aqui ningum se entrega! Aqui ningum se rende! gritavam em baixo. E ouvia-se o brado fremente do moto dos Namorados, repetido por trs ou quatro dezenas de vozes, num timbre claro e agudo de gente jovem. Cavaleiros e peonagem dalm, por aquela chapada da serra! clamou no cabeo do monte o esforado Ruy Gonalves. O Condestvel?! O senhor Condestvel?! Quem o viu? perguntavam. Ningum sabia responder entre o milhar de oprimidos que guarnecia o viso do monte. Mas em baixo a estranheza era imensamente maior e de mais intensa angstia. Ele que no volta porque o mataram! E outros, rouquejando: Isto agora perdio para morrer aqui! Desfez-se Aljubarrota! regougava um, a chorar de raiva. E o boato de que o Condestvel estava morto esvoaou por cima daquele quadrado, que parecia irremediavelmente perdido, como se fosse uma ave negra de trgico vaticnio. Pois agora morrer com ele! gritou Ruy de Vasconcelos, embebendo na multido inimiga as escassas fileiras dos Namorados. Era pavoroso o estrado dos mortos em redor do quadrado e dentro! Os feridos ao desamparo escabujavam em charcos de sangue, nuns gemidos lancinantes, oprimidos nos seus arcaboios de ferro. Ruy Gonalves descera em busca do caudilho insubstituvel e fora dar com ele no seu xtase de asceta. Est tudo perdido! Vo encurralar-nos aqui gritou-lhe, entre angustiado e surpreso. Aguardai um pouco... Amigo; a minha orao vai acabar... E a batalha se decidir breve! Sem bacinete, o arns amolgado, o rosto a escorrer sangue, Gonalo de Castel-Vide subia em procura do chefe. Foi dar com Nuno lvares ainda de joelhos. Perdemo-nos todos! E vs rezais, Condestvel! gritou-lhe sem se poder conter Faltam l em baixo a vossa alma e a vossa lana! Est feita a promessa volveu-lhe Nuno lvares serenamente, acordando daquele arroubamento de iluminado ainda num pasmo de assombro a expresso dos seus olhos azuis de sonhador O milagre se far! Vamos acabar a batalha. Ergueu-se de salto aquela singular figura de heri, de visionrio, de crente. Ruy Gonalves, vinde, e vs tambm, Gonalo de Castel-Vide. Tomara a lana das mos do pajem. Mas dalm, das lombas da montanha, vem uma multido de inimigos, e quis-me parecer que vinham tambm cavaleiros de Santiago, para nos encerrarem aqui! avisou o Gonalves. Pois ide para cima e tende l mo neles, enquanto eu no volto para ser convosco.
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Entretanto, em baixo, cada vez mais espedaado e mais oprimido, o quadrado combatia j sobreposse e os Namorados tinham recuado outra vez. Estamos perdidos! gritou numa nsia de dor um dos da peonagem, caindo com um virote cravado no rosto. O quadrado agitou-se convulsivamente como se aquele grito de um s fosse a expresso de todas as suas almas. Ofegante, quase extenuado na frente dos seus, Ruy de Vasconcelos disse baixo para o Magrio: Faz-se aqui o eclipse daquele sol de Aljubarrota, que foi de pouca dura! Parecia que estas palavras, quase segredadas, vinham a escorrer lgrimas. Minha pobre Madalena pensou, amargurado Agora para nunca mais! E logo alto, rouquejando: Namorados! Para outra arrancada, a acabar! Pela nossa terra! bradaram. O voto morrer! disse no seu vozeiro o Magrio, alteando mais a bandeira verde, j muito esburacada pelos virotes. Punham as lanas em riste e iam largar as rdeas aos cavalos, quando uma voz de singular estridncia, que penetrou por entre todos os rudos da batalha, vibrando da meia encosta do cerro como se fosse um clarim prodigioso a dar o sinal de alguma arrancada vitoriosa: S. Jorge e Portugal! E logo trs milhares de vozes de gente que reconheceu aquela ou sentiu e adivinhou no corao, bradaram comovidamente: O Condestvel! O Condestvel! Ento agora ningum parte sem ele! rouquejou o Vasconcelos. E os gritos de jubilosa surpresa pareciam soluados como em lances supremos as grandes alegrias soluam e choram. No tinha morrido. E que houvesse tido medo nem os moribundos do quadrado, j numa compreenso nublosa da vida, seriam capazes de o supor. Homens de Portugal! Aqui me tendes! clamou, todo ele radiando f como se fosse o paladino de alguma lenda miraculosa. Montou a cavalo e volteou no ar a bandeira devota dos Atoleiros e de Aljubarrota. E a sua alma de heri abraou-se naquele instante em todas as almas, acendeu uma intensa esperana de vitria em todos os coraes, dentro daquele quadrado que se enrodilhava j roto. Homens, segui-me! Cada um para cinco! Para vencerdes ou acabardes comigo! Na sugesto pica destas palavras, um frmito de entusiasmo a sacudir-lhe os nervos, a coluna mutilada foi atrs dele num arranque leonino. Nuno lvares na frente, com toda a f sonhadora da sua alma e todo o arrojo de assombro da sua juventude heroica, abriu clareiras a golpes daquela formidvel lana, que ele prprio talvez supunha miraculosa. Foi uma soberba investida! S. Jorge e Portugal! El Condestable Nuno Alvarez! gritou algum do exrcito inimigo. Houve ento um rebolio de estonteadora surpresa do lado de l, porque tambm entre os Castelhanos se havia espalhado que o Condestvel de Portugal tinha cado morto. E como se tivesse uma nova alma, a peonagem portuguesa arremetia com admirvel bravura contra as massas cerradas dos pees de Sevilha, de Crdoba, de Jaen e da Mancha de Arago, como diz Ferno Lopes. Era gente novia aquela da hoste castelhana, em grande parte inexperiente, homens arrebanhados das cidades, dos campos, das montanhas para aquela campanha de defesa e desforo. Atrs dos bandos dos besteiros e da cavalaria fidalga, j a ceder terreno, apavorou-os a fria daquela avanada dos chamorros, com que no contavam, porque a vitria lhes parecia segura, e para a frente os caudilhos e os cavaleiros monges a tinham proclamado em altas vozes. E assim, o mpeto da investida, a surpresa dela, tanto maior quanto era j convencimento geral que a batalha estava ganha e o fragor medonho da luta contra os esquadres a esbandalharem-se, encheram de enorme terror toda aquela gente de frouxa conceo, pondo-lhe nos ouvidos, como se fosse um dobre trgico de sinos colossais, o nome fatdico de Aljubarrota. Tresmalharam-se ento numa fuga doida por aquelas planuras fora. Os de Calatrava e Santiago enovelavam-se, j quase esmorecidos, florestas de lanas que um tufo desarreigava, arremessando-as para longe, amontoadas. Um cavaleiro de Santiago tinha ido desfilada chamar as foras que tinham rodeado o monte para ir atacar de espalda a hoste portuguesa. O Mestre de Santiago, D. Pedro Moniz, chefe supremo da hoste, acudiu num desespero a segurar os cavaleiros em debandada, expondo-se intrepidamente. Mas um dos nossos deu-lhe uma lanada no cavalo, que foi abaixo, ferido de morte. E logo outro cavaleiro portugus o matou, abrindo-lhe o bacinete e o crnio com a acha de armas. Mestre de Santiago! Morres pela vara que mandaste! Foi Ruy de Vasconcelos quem o derribou. A adia de Vasco Eanes completou o feito. Ia para fugir o escudeiro que trazia o estandarte de D. Pedro Moniz, mas o Vasconcelos atirou o cavalo para ele em dois saltos e cravou-lhe a lana de ilharga, abaixo da cintura, onde no havia pea de armadura que o defendesse. O homem abriu os braos, retesou-se nos estribos e foi a terra. O Vasconcelos tomou-lhe o estandarte que ele largara das mos. Namorados! gritou Aqui est alguma coisa que vale muito mais do que o molho de varas do desafio. Vozes da gente castelhana clamaram alto que o Mestre de Santiago estava morto. Deu ento o desalento em terror pnico. Debalde o Barbuda, Portugus parcial da rainha de Castela, e o Guzman, conde de Niebla, quiseram ter mo na sua gente. Ningum queria j combater e todos procuravam fugir, antes que a noite chegasse, porque o sol estava a sumir-se. Por aquela hora tinha comeado a chacina medonha de 14 de Agosto. Vinha de todos os lados um rumor alto de vozes apavoradas e o rudo de um tropel vertiginoso de milhares de cavalos. Outro pr do sob como o de Aljubarrota! disse Ruy de Vasconcelos para o Magrio. Pois cheguei a supor que estaramos vencidos e mortos antes que ele se sumisse! respondeu-lhe lvaro Coutinho. E mal podiam eles adivinhar que o crepsculo daquela tarde de Outubro era outro radioso amanhecer para a grande Histria do seu Pas.
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O Condestvel mandou que os cavaleiros deitassem desfilada sobre os fugitivos. Foram todos. Na planura e no monte s ficou a massa principal da peonagem. Em frente, por cima das chamins da aldeia de Valverde de Mrida uns farrapos de fumo ascendiam lentamente nos ares. E subiam do campo, numa dolorida orquestrao, os gritos de pavor dos feridos ao desamparo. Ora graas s cabaas! dizia o Bernardo Pingueiro, j volvido sua tineta humorstica Nunca vi a morte tanto na minha vizinhana, e estive por um triz a perder o meu bacinete que foi do Sire do Bearne, que Deus haja! Em Aljubarrota tomei dois odres, mas olhai que h duas horas estive muito desconfiado que desta vez eram os casteles que me tomavam esta rica pele... Para fazer pandeiros ou tambores! gracejou outro. Qual! Para dois odres em escambo dos outros. E estes, em boa hora o diga, iam j bem curtidos e bem tomados do sarro.
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Comeava a escurecer. Do lado de Valverde chegaram dois cavaleiros a toda a brida. Um de traje estranho: gorro desbotado com uma velha pluma e uma capa esfiampada. O outro, um escudeiro, vestia armadura. Reteve-os uma quadrilha de besteiros, que guardava a distncia o arraial da peonagem. Quem vive? perguntaram-lhe de bestas armadas. O glorioso Condestvel de Portugal respondeu-lhe o que trazia armadura. O escudeiro ofegava e tinha no rosto a expresso de homem oprimido de receio. O outro, profundamente perturbado, relanceava olhares para o campo onde a verdadeira claridade crepuscular apenas deixava entrever, como atravs de neblinas, os destroos enormes da batalha. Quem sois ento que desse lado vindes?! Eu sou escudeiro do senhor Ruy de Vasconcelos, da Ala dos Namorados. Em Elvas estive por mandado seu e aqui venho com este troveiro de Provena, que traz recado de urgncia para o meu amo e senhor. Pois podeis passar e esperar. Foi ento alm a batalha! disse o Provenal no seu portugus afrancesado. Isso j eu tinha percebido volveu-lhe o escudeiro. E logo para o chefe dos besteiros: Dizei-me como foi a batalha. A pior batalha, e assim vos posso dizer, pois estive nos Atoleiros e em Aljubarrota. Chegmos a estar perdidos; mas enfim, quis Deus que vencssemos, e os nossos cavaleiros l foram em perseguio dos fugitivos. Deus louvado! exclamou o escudeiro resfolegando jubilosamente H dois dias nos partimos de Elvas a mata-cavalos, metendo por atalhos para chegar mais depressa contou Em Eivas, por um recado do meu amo, levado por outro escudeiro, soube eu que a hoste ficara num lugar chamado Magacela. Para l deitmos, pedindo informaes pelo caminho no fingimento de sermos mensageiros de uma hoste de cavaleiros gasces que amos para desafiar o Condestvel. Em Magacela nos ensinaram o caminho para Mrida, onde chegmos ao fim da tarde com os cavalos sem j se poderem ter em p. L comprmos outros e de l fomos para aquela povoao. Indicou Valverde. Mas a menos de uma lgua daqui comemos a ouvir um rudo grande e uma estropeada de cavalos. Eram os casteles que fugiam. Mas ali em Valverde vos podiam dar notcia da batalha, pois de l a viam e sentiam. No deram. Estavam todos os moradores encerrados nas suas casas e pareciam receosos de ns. Apenas um velho, mais afoito, nos disse da janela: A para diante foi a batalha; ide l v-la. O escudeiro fez uma pausa e logo perguntou: Dizei-me se dos Namorados morreram alguns. Ouvi que tinham morrido bastantes. Eles tambm iam doida contra a soberba cavalaria dos freires de Santiago e de Calatrava!... E do meu amo e senhor, Ruy de Vasconcelos, nada sabeis? Conhecei- lo? Ora se conheo! Mas s o vi quando foi da primeira arrancada contra os de Castela. Valha-me Deus! disse, voltando-se para o trovador. Marival percebeu-lhe o receio e confrangeu-se. O escudeiro disse ento ao chefe dos besteiros: Pois se deixais, iremos indo l para diante a ver se algum me sabe dar mais alguma notcia dele. Se no morreu, ou no ficou ferido, ento certo foi com os outros em perseguio dos de Castela. Mas ide, podeis ir.
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Passava j das oito da noite quando o Condestvel regressou com os seus cavaleiros. Tinham perseguido o inimigo at lgua e meia do campo de batalha O. Estavam cansados daquela tarde tormentosa, e ainda mais extenuados pela opresso moral do que pela braveza da luta. As duas horas que se passaram entre a tomada do monte e o desfecho da batalha, tinham sido de enorme mortificao moral, principalmente para o Condestvel. Ali se poderia perder completamente a tarefa de Aljubarrota e com ela a Ptria, se aquela batalha se perdesse. Estava j armada a tenda do Condestvel. De brandes acesos, os seus pajens esperavam-no. Tinham-se apeado todos os fidalgos e vieram em comitiva acompanh-lo por entre profundas ala de peonagem em aclamaes frenticas ao heri. Dezenas de archotes punham clares vermelhos sobre aquele campo onde talvez mais de trs mil batalhadores dormiam o sono interminvel da morte. Em frente sua tenda, Nuno lvares Pereira recebia as saudaes dos nobres cavaleiros. Senhor Condestvel! disse-lhe Ruy de Vasconcelos Esta no foi como a outra batalha e reis; porm no valeu menos. No vos podemos trazer uma bandeira real como a que se tomou em Aljubarrota mas aqui vos trago, em nome dos que ainda restam da Ala dos Namorados, este estandarte do Mestre de Santiago o chefe e caudilho maior da hoste que vencestes. E deitou-lho aos ps. Que ns vencemos e os Namorados na dianteira de todos volveu-lhe D. Nuno comovidamente.
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Uns instantes depois, o Provenal abraou Ruy de Vasconcelos felicitando-o calorosamente. Apartaram-se os dois para um recanto do arraial. E o meu tio Mendo? perguntou-lhe. Em Tordesilhas o deixei perfeitamente bem e com hospedagem no prprio mosteiro das monjas. E D. Madalena de Mendona? Excelente e j prevenida. E a tudo disposta? Num alvoroo, que s com sacrifcio consegue disfarar. Est l tambm a que foi rainha? Tambm, mas vosso tio Mendo guardar a encantadora noiva. Parece-vos ento... Que podemos ir l busc-la, mas oxal que no seja certo... O qu? O boato de que a rainha D. Beatriz l tornaria de visita ao mosteiro. Ser um estorvo grande; porm no vos inquieteis, que j para esse caso estamos prevenidos, vosso tio e eu. E agora deixai que outra vez vos abrace e d parabns por aquela anglica noiva que tendes e mereceis. Com o maior prazer da minha alma vos agradeo! disse calorosamente, abrindo-lhe os braos Trazeis-me boas e consoladoras notcias neste dia glorioso que eu no hei de esquecer nunca! Nunca! Abraaram-se fervorosamente. Vistes ento Madalena? Por duas vezes. Uma noiva de sonho! Razo tiveram os Namorados para a eleger rainha das belas. E desses que a elegeram, quantos que nunca mais a podem ver?! disse tristemente. Uma hora depois dormiam todos no arraial, menos as sentinelas. Tinham acendido fogueiras, porque a noite esfriara muito. E a poucos passos dos que ainda podiam sonhar, os outros de Castela e Portugal que j no tinham visto amanhecer, vencidos e vencedores que a morte ali deixara deitados numa tranquilidade de neutros. Havia de ter sido cheia de sonhos encantadores aquela noite para o mais brilhante campeador dos Namorados naquela batalha de Valverde.
CAPTULO IV PARA TORDESILHAS
Logo ao romper da manh o Provenal voltou a conversar com Ruy de Vasconcelos acerca da planeada expedio a Tordesilhas. Conversa confidencial, muito recatada de ouvidos indiscretos. Pareceu-vos ento que era possvel entrar no mosteiro e tir-la de l sem grandes violncias e algum ruidoso desacato? Assim nos pareceu, ao vosso tio e a mim. Estando ele l dentro como est, muito poder ajudar a empresa. Meu tio conheceu muito D. Leonor Teles, e creio que foi um dos mais favorecidos requestadores que ela teve antes de casar com aquele Joo Loureno da Cunha, de quem j vos falei. O Provenal sorriu maliciosamente. Si, el de los cuernitos de oro disse no seu castelhano, que nos abstemos de traduzir. Depois, por uma traio de malvadez que deu num lance de morte, meu tio ficou odiando profundamente essa mulher perversa, que foi rainha de Portugal por vergonha nossa. O meu tio atribuiu-lhe a ideia infernal daquela traio e, provavelmente, se no enganou, porque de tudo ela era capaz. Receio agora que Leonor Teles reconhea meu tio e o denuncie, ou que ele, nalgum arrebatamento do seu dio sem trguas, se lhe d a conhecer violentamente. Foi imensamente desgraado, sofreu muito e dela proveio, sem dvida, todo o seu infortnio de sangue, de remorso, de lgrimas. A mim me prometeu que se no daria a conhecer; mas em qualquer assomo de clera ou por qualquer circunstncia, com que nem ele nem eu podamos contar, se pode esquecer da promessa. Creio que tal no suceder. D. Leonor Teles est muito afastada na sua cela, muito metida consigo, segundo lhe ouvi a de, a propsito da vossa noiva. Parece que s uma vez a viu de relance, durante os dois dias que eu l me demorei. Pois oxal que assim seja. Agora dizei-me: Partindo da raia de Eivas, por exemplo, em cavalos de bom sangue e com outros de reserva para substituir os estropeados, sem delongas e s com o indispensvel repouso, quantos dias vos parece que levaremos a l chegar? Desse modo respondeu lentamente quer-me parecer... Que em nove ou dez dias estaremos l. De Estremoz para Tordesilhas gastmos doze dias, mas tivemos de fazer muitos rodeios; eu para Elvas gastei treze, mas vinha um pouco a Deus e ventura. Est bem. Subiremos para o Norte, seguindo pela fronteira de Portugal e meteremos por Miranda do Douro para l. No ouvistes dizer se a corte estava em Valhadolid? Ouvi que estava. Parece que o rei, sempre de luto por causa de Aljubarrota, convocou as cortes da nao para l se reunirem, e dizia-se que era para dar conta do desastre e mandar que o luto fosse geral. Pois agora j tem outro desastre a contar e maior luto por ele. No foi batalha real, nem ser nunca de tanta fama como a outra; porm, o desbarato foi completo. Mas acresce o risco da empresa com essa impertinente vizinhana da corte! Enfim, seja como for. Dizei-me: em Tordesilhas h muita gente de armas de el-rei? Precisamos de contar com ela. Tem l boa gente de armas. Em certa taberna, aonde eu fui colher informaes, encontrei muitos homens de uma companhia de ginetes e outros de uma quadrilha de besteiros. Com as minhas astuciosas curiosidades de estrangeiro peregrino e graas ao agrado que lhes causou a minha condio de trovador errante, logrei saber que a companhia de ginetes teria noventa homens, e de besteiros e outra peonagem regular haveria no menos de duzentos. Percebo. Esto de guarda a Leonor Teles, no v ela fugir de l para conspirar outra vez contra o genro. Cerca de trezentos homens com que preciso contar. E quantos supondes que podereis levar dos vossos Namorados? Ontem morreram e ficaram feridos vinte e dois. Da ala restam aqui trinta e um vlidos, contando comigo. Se todos quisessem ir... No tenho o direito de contar com todos, mas irei sem me importar o nmero dos que vo comigo. coisa de que eu no desisto. Iria sozinho para l ficar. Tal no ser preciso. E mais se h de fazer por astcia do que viva fora. A vila tem boas muralhas. Mas com os trinta o cometimento seria seguro. Por alta hora da noite, doze ou quinze bastariam para vigiar os casares onde dormem os da companhia dos ginetes, dez para rebater a peonagem que aparecesse, cinco para guardar o mosteiro e fazer-vos costas, quando houverdes de ir com a vossa noiva. Os casares onde se aquartelam os dos ginetes ficam muito nas vizinhanas do mosteiro e por isso no seria necessrio que os vossos ficassem muito espalhados. E depois, dado que tudo se descobrisse e houvesse alarme, tal a vossa fama de Aljubarrota, que bastaria um de vs bradar que reis a Ala dos Namorados para que o espanto vos abrisse caminho a todos, antes que chegassem os homens de armas de Valhadolid, que fica a umas cinco lguas. Eu bem ouvi as coisas extraordinrias que a respeito da vossa ala contava l a soldadesca. Coisas de maravilha, que pareciam tiradas dos romances de cavalaria de outros tempos! Diziam-nas com rancor, por entre insultos de farronca, mas o caso era que as diziam assim como se estivessem falando de um caso, no de h dois meses, mas de h dois sculos! Imaginai agora que os da companhia dos ginetes estiveram na batalha de Agosto e suponde o assombro com que eles no ouviriam de surpresa, j to dentro de Castela, o prego de guerra da Ala dos Namorados! E, muito mais ainda, se l souberem ento deste desbarato aqui, dentro das prprias terras de Castela. Grande favor vos devo e assinalado servio o vosso! Nem vale a pena falar em tal. Vede agora se ides combinar as coisas com os vossos companheiros. cedo ainda, e bem me pesa que o seja! Sei que o Condestvel est no intento de voltar j a Portugal, seguindo para Eivas. Quando l chegarmos, daqui a uns dias, falarei ento aos meus companheiros e irei pedir licena a D. Nuno para nos metermos a caminho. A tendes o que a mim me parece de maior dificuldade. O qu? A permisso do Condestvel. Servimo-lo dedicadamente nesta sua aventura, ns os da Ala; trata-se de uma empresa que no de desdouro. Creio bem que nos no negar licena para um apartamento, que poder durar vinte e tantos a trinta dias. Eu por mim me julgo no direito de lha pedir. Mas s vinte e tantos dias! Isso apenas tempo para chegar e voltar. E o vosso noivado? Em qualquer igrejazita alde, por essa raia de Portugal, se far o casamento. Ah!... De uma coisa me esqueci... Dizei-me: sabeis se Madalena anda de luto? Uma vez as vi juntas na vspera de sair de l, vossa dama e a me, e no trajavam de d. Ento certamente no sabem ainda que Gil Vasques foi morto. Disse-me vosso tio que D. Madalena estava na suposio de que o pai houvesse ficado prisioneiro, como sucedeu ao chanceler-mor do reino e a mais alguns fidalgos de Castela. Tinha pedido ao meu tio que, por enquanto, lhe no contasse o que sucedera. A mim me disse ele que no a quisera dissuadir daquela suposio. Ainda bem. Decara da tenda do Condestvel, os trombetas da hoste tocaram para entrar em alardo. Ruy teve de afastar-se de Marival.
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No eram ainda 6 horas daquela manh de 17 de Outubro. Nuno lvares determinara que a hoste se pusesse em marcha depois das 9. Antes se iriam sepultar os cavaleiros portugueses de mais preclara origem. Uns coves para todos os que no eram do esquadro dos Namorados. Os destes foram enterrados parte pelos seus prprios companheiros. Ainda no eram 9 horas e j a hoste ia em marcha. Parou a duas lguas de Mrida, desceu ao longo do Guadiana para a fronteira portuguesa e a 20 estava em Eivas, concluda aquela campanha de dezoito dias em que Valverde foi o corolrio de Aljubarrota, conforme o dizer do general Ximenez de Sandoval. Agora que ocasio de falar na empresa aos meus companheiros disse Ruy para o Provenal Depois irei fazer o pedido ao Condestvel.
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Um dos Namorados era de Eivas, de famlia fidalga e abastada. Convidou os companheiros para seus hspedes. H pouco mais de dois meses disse-lhe singelamente, com uma certa tristeza de saudade podamos encher o terreiro dos paos reais de Apar S. Martinho; agora cabemos todos nesta casa! Pouco larga, bem o sei, mas estais aqui como se a vossa fosse e ns todos como irmos. Ruy quis primeiro consultar o Magrio antes de falar aos outros. Tinham ficado aos quatro e cinco em cada compartimento e na sala maior, mudada em camarata, se alojaram catorze. No aposento do Vasconcelos estavam mais trs, aqueles com quem tinha maior intimidade. Assim que dois deles saram, Ruy chamou o Magrio e exps-lhe o seu plano. Oh, isso ento negcio arrumado disse-lhe entusiasticamente J uma vez o dissemos e prometemos; aqui no h quem volte com a palavra atrs. Pois sim, mas dever que eu lealmente lhes exponha os riscos em que os vou meter. Isso ofend-los, sejam quais forem; prometemos, vamos. Mas, ao menos, quero eu fazer-lhes o pedido. Tambm escusado. Promessas de homens de honra no se cumprem a pedido; cumprem-se por dever. Para lhes dizer que temos de ir, porque vs quereis que vamos, basta eu. Ide vs aproveitar o tempo fazendo o pedido ao Condestvel. Preferia ir fazer-lho depois. Alguns poder haver que no possam partir e tenham de ficar, embora muito contra sua vontade. Pois que assim o quereis, assim se far. Mas olhai que podeis ir afoitamente dizer a Nuno lvares que todo o resto da ala quer ir convosco. Mas seja como vossa vontade. Esperai. Eu voltarei depressa. Saiu e a todos os foi chamando para a sala grande que servia de camarata. Mal os viu reunidos, fechou a porta por dentro e falou-lhes. Sabei que chegou a ocasio de ir buscar a nossa rainha das belas, aclamada pelos primeiros Namorados. J uma vez, no h muito tempo, se prometeu que iramos busc-la sua recluso de Tordesilhas, quando fosse preciso e o seu prometido noivo, Ruy de Vasconcelos, o quisesse. preciso agora, sem delongas, ir tir-la do mosteiro. A nossa carruagem est sempre prestes a ir disse Vasco Eanes, sorrindo e no meio quarto de hora veste armas um Namorado, pula para cima de um cavalo e larga desfilada. Se chegou a ocasio de ir buscar a nossa rainha, que pelas suas mos bordou a nossa bandeira, j toda esburacada dos virotes e dardos de Castela e um tudo nada comida da cor pelo sol de Aljubarrota e por aquele de Valverde, de menos ardor que o outro, mas no menos claro; vamos l e traremos a noiva do mais esforado e ilustre cavaleiro da ala. Est bem disse o Magrio numa grande expresso de jbilo Sabe- se que em Tordesilhas no haver menos de trezentos homens de cavalaria e de peonagem. Melhor acudiu o Vasco Eanes. Vamos todos; chegamos bem disse outro. Todos! repetiram os que ainda se no tinham manifestado. Pois grande prazer me dais falando assim disse o Magrio Era o que eu esperava e foi o que h instantes afirmei a Ruy de Vasconcelos. Temos agora uma coisa que s para ns e ficar sendo segredo para o prprio Vasconcelos. Onde quer que a rainha se casar, sero padrinhos dois dos nossos sorte, tocar por madrinha da noiva a nossa esfarrapada bandeira que ainda l tem a imagem peregrina da nossa Senhora e tornaremos a aclamar a rainha mesmo nas barbas dos Castelhanos. Pois assim ser apoiou entusiasticamente Vasco Eanes. Est dito e como se fosse jurado! disse o de Eivas. E no se convidam os Castelhanos para a festa da boda gracejou outro por sabermos que esto de luto pesado. E a minha pena acudiu o Lobeira nem vs sonhais o que ! Dizei, que talvez se lhe d remdio. que no seja tempo da madressilva em flor. Se fosse, levaramos uns punhados delas da nossa terra portuguesa para l coroarmos a rainha. Era lindo, era. A madressilva quer dizer constncia para sempre e foi a flor que ela bordou na bandeira dos Namorados relembrou o Lobeira. Est, pois, resolvido concluiu o Magrio Vamos todos? Todos responderam. Ruy queria vir fazer-vos o pedido; fui eu quem no consentiu que ele viesse. As nossas promessas cumprem-se sem ser preciso que nos venham pedir o seu cumprimento, em guisa de favor. Assim ! Assim h de ser! confirmaram todos em plena unanimidade. Ficai ento precavidos. Ao primeiro aviso, abafamos. Ainda que seja para as ilhas encantadas do Mar da Noite (*) ou para o cabo do Mundo disse o Lobeira, sorrindo.
[(*) Mar da Noite, ou Mar das Trevas, era a designao lendria dada pelos rabes ao Atlntico para alm do Cabo Bojador, que outra lei dava como limite do mar navegvel.]
Ou para ir tomar Ceuta ao Mouro escuro de Marrocos acudiu outro de gracejo. Est bem disse o Magrio, pondo ponto aos devaneios Vou confirmar a Ruy de Vasconcelos o que h pouco lhe afiancei, e ele que v ento pedir ao Condestvel a permisso para nos metermos a caminho. E que lha pea em nome de ns todos. De todos! repetiram. Agora reparai. Importa ao bom sucedimento da empresa que se guarde segredo a respeito do nosso intento. Segredo seja para quem for. Guarda-se afirmaram. E diremos que vamos Beira com encargo de confidncia, por mandado do Condestvel. Concordaram todos e o Magrio saiu. Em se sabendo ao certo quando partimos, mando logo arranjar farnis para ns todos disse o de Eivas, hospedeiro dos trinta. Entretanto o Magrio dizia a Ruy de Vasconcelos: O resto da ala vai. Podeis ir fazer o pedido para vs e em nome de todos.
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Ruy entrou para os aposentos do Condestvel, em casa do alcaide de Eivas, onde ficara hospedado. Pedira o Vasconcelos para falar em particular a Nuno lvares e o insigne batalhador afetuosamente o mandou entrar para a sua prpria cmara de dormir. Ruy exps-lhe o projeto, depois de lhe indicar os antecedentes dos seus amores com Madalena de Mendona. O Condestvel refletia e foi respondendo lentamente: empresa de grande risco, porm no est acima do esforo de que haveis dado provas. Ponde, porm, cautelas ao vosso arrojo, seno por vs mesmos, pela Nao, qual podem fazer falta trinta e um cavaleiros dos melhores de Portugal. A guerra no se acabou. Vai continuar. Aqui me esperava uma carta de El-rei, dizendo-me que fosse depressa juntar-me com ele para irmos tomar Chaves e outras vilas fortes do Norte, que ainda tm voz por Castela. Tomo sobre mim pesadas responsabilidades! Se esta aventura for de mau desfecho, senhor D. Nuno, algum dos nossos dir que fostes enganado pelas nossas promessas. No! No! Toda a verdade ,se dir, se for preciso diz-la. E eu primeiro que ningum. Preciso de uma promessa vossa. Senhor, mandai. Que pela vossa honra vos oporeis a qualquer desacato de escndalo ou de violncia no mosteiro. Senhor Condestvel, pela minha honra e por todos os da ala vos afirmo que nenhum escndalo nem desacato se far no mosteiro, nem haver violncias que no sejam em defesa prpria ou da minha noiva. Est bem. Qual demora esperais ter? Queremos ver se em vinte e tantos dias aqui estamos de volta. Para aqui no ser, que talvez a esse tempo j eu esteja para o Norte. Deixai aviso e iremos para onde vs mandardes. Bem est assim. Tomarei perante El-rei a responsabilidade da licena que vos dou. To grande e denodado esforo foi o de vs todos em Aljubarrota e agora comigo em Valverde no sei se ainda maior, e vs, Ruy de Vasconcelos, to distintamente entre os vossos, que muito mereceis esta licena de exceo e pelo vosso honesto intento vo-la concedo. Senhor Condestvel, dais-me nesta licena o galardo maior que podia merecer-vos! disse-lhe numa grata comoo Tenho sido at agora o mais fervoroso dos vossos admiradores, porque sois para mim a maior alma de heri que tem Portugal. Agora ficarei sendo dos vossos amigos para a vida e para a morte, e daqueles que maior favor vos deve. E por amigo vos quero e pelo vosso admirador me podeis contar. Quando vos convm sair? Na madrugada de amanh. Longa marcha tereis. Daqui at ao Douro, por cercanias de Miranda, marcharemos de dia e de noite. o estiro maior. De l para Tordesilhas caminharemos de noite para no fazer escusado alarme e maior demora hemos de ter por ir com dobradas cautelas. Tendes divulgado por a essa vossa empresa? S h pouco a souberam os meus companheiros e todos prometeram guardar segredo a respeito do cometimento. Mas com que fim direis que vos afastais da hoste? Diremos que vamos Beira com encargo vosso de confidncia, se este disfarce nos autorizais. Sim, autorizo. Podeis at dar a entender que por encargo de guerra. Deus vos perdoar a falsidade de honrada inteno. Pois ide, e que sejais bem sucedidos. Por mim e por todos muito do corao vos agradeo a concesso e as boas e generosas palavras. Deixai agora que vos faa outro pedido, que j me ia esquecendo, e este s por mim. Dizei. Que me concedais os dias que cheguem para ir a Lisboa levar a minha noiva e deix-la em casa da minha me. Sim; est concedido. E para tal vos dou a mais outros vinte dias. Insigne favor, senhor Condestvel! disse, radiante de jbilo. Despediu-se. Nuno lvares abraou-o como se fosse um irmo seu.
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Saiu num agitao febril. Parecia-lhe que os minutos eram longos como os dias grandes de Maio. Os rapazes esperavam-no. Deu-lhes a nova da licena a todos eles reunidos na sala grande, porta fechada, e abraou-os um por um enternecidamente. A hora? perguntou o de Eivas. Ao nascer da lua. Que foi sempre boa madrinha de namorados. Estou a adivinhar o que mais vos pesa agora, ditoso noivo disse-lhe o Magrio. O qu? Que Deus no tivesse dado asas de pomba Ala dos Namorados, para deitarmos todos daqui num voo at Tordesilhas. Riram do gracejo numa consoladora despreocupao daqueles cabecinhas de vento, como havia mais de um ano lhes chamara o Mestre de Avis. Mas tambm cabecinhas picas, s quais Portugal devia uma parte do esforo que o salvara, glorificando-o. Ruy saiu com o Magrio para irem falar ao trovador provenal dando-lhe conta do que estava resolvido.
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Meus amigos, quando chegar para ns a vez de tambm sermos noivos? disse o Lobeira, sorrindo. Sim, quando chegar? acudiu outro dos mais novos Com este noivado que vamos ajudar, ficai sabendo que j no terei noite que no seja de sonhos com a minha dama de cabelos e olhos negros! E eu at vou j sonhando acordado volveu-lhe o Lobeira A minha tem olhos verdes da cor da nossa bandeira. Desafio Castela, as duas Castelas, Leo e Navarra e mais as Astrias e a Galiza... No vos esquea a Gasconha e o Bearne galhofou outro dos mais jovens. E os pimpes de Frana tambm, a que me deem notcias de outros olhos verdes assim lindos como os dela. Olhem os galitos da ala erguendo a crista e a quererem bater asas para cantar, como se fossem galos feitos! escarneceu um que tinha apenas vinte e quatro anos. Ora vejam o galaro antigo! troou o Lobeira. Para cantar alto e arrastar a asa replicou j no brincadeira ter mais quatro ou seis anos. Para assar no forno que faz grande diferena retorquiu o Lobeira Ficam durzios. Pois aqui est quem o mais jovem da roda dezasseis anos para os Santos e j lhe tarda o noivado com a sua dama de quinze, que j lhe ficou na rua Nova de Lisboa. Riram e dispararam-lhe aluses de brinquedo verdura dos anos. Ficai sabendo que o pedao de tolo do meu corao, a pensar que a noiva para ele, at me est bailando no peito! Ento avisai-o do engano, no v ele fugir-vos para a rua Nova. Ai, mas isto de ficar sempre namorado, a ver casar os outros, h de ter fim! Os que restarem da ala tm de acabar casados. Certamente. E a ala desfaz-se. No se h de pr na bandeira o Conjugo vbis do matrimnio, nem seria honesto chamar Ala dos Namorados a uma ala de casados. Seria para as donzelas uma ala desasada. Eu c, pelo meu voto, sou porque a ala se disperse na volta e v cada um furtar a sua noiva. Eh! Doidinho-mor! E quem no tiver noiva certa, que traga de Tordesilhas uma novia bonitinha e de boa famlia. As novias podem casar e a mim de Castela s me desagradam os Castelhanos. Entrou o Magrio. Ui! Que fazeis mais rudo que um bando de gralhas a adivinhar temporal. Noivado, noivado que ns estamos a adivinhar. E o vosso, lvaro Coutinho? perguntou-lhe o Lobeira para o ouvir O vosso quando ser? Quando no sei eu, mas com quem j vos posso dizer. Pois vamos a ouvir. Dizei. Com a mais feia ilhoa que tiver a Inglaterra. da minha sina. Vibraram risos de galhofa. Mas quebrai a sina! lembrou o Lobeira. Dizeis bem. Talvez a v quebrar agora, se D. Leonor Teles tiver consigo alguma aia solteirona e menos feia do que eu, que pretenda voltar a Portugal com um marido para lavar e durar. Teve uma ovao de risota.
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Alta madrugada, a lua a subir serenamente como prola enorme que fosse boiando por um lago azul, e o resto da Ala dos Namorados a sair de Elvas e a meter a trote largo pelo caminho que ia para a Beira. Com os trinta e um iam o Provenal e quase outros tantos pajens e escudeiros, acompanhando aquele pequeno esquadro de aventura. O Magrio na frente com a bandeira. Nos altos, para repousar, cantavam todos eles a trova em que Marival celebrava os Namorados de Aljubarrota. Jornadas largas e rpidas, em galopadas vertiginosas, ao longo da fronteira por terras de Portugal. Depois j em Castela, as marchas de noite e por fora das povoaes, para no causar alarme que lhes pudesse comprometer o intento. E agora? perguntou o Vasconcelos ao Provenal, na marcha noturna em que iam j muito alm da fronteira. Mais trs lguas de rodeio e sobre a madrugada nos poderemos meter a uma grande baixa de rvoredo bravo e matagal. Uma lgua em roda no h povoados. S perto, numa encosta, se encontra um casaro em runas. Ali poderemos ficar at hora da noite que se aprazar. Conheceis bem o stio? Ali fomos uma vez, vosso tio e eu. E com ele deixei combinado que para l vos havia de guiar. ento perto de Tordesilhas? A uma grande lgua.
CAPTULO V RECEIOS
No real mosteiro de Tordesilhas havia, como em outros de Portugal e Espanha, uns aposentos especiais, muito afastados das celas das monjas, para hospedagem dos soberanos e a sua comitiva, e ainda uns compartimentos destinados s damas que ali se acolhiam para uma recluso temporria, sem encargo de obedincia a todas as regras da comunidade. Tambm aquele, como outros mosteiros da Pennsula, algumas vezes fora priso disfarada para altas damas comprometidas por desvairados amores, ou sequestradas da vida profana por interesses de famlia ilegtima e inconfessveis, e no raras vezes por convenincias polticas e supremo arbtrio dos reis. Era este o caso da prfida D. Leonor Teles, encerrada ali por ter conspirado contra o genro, mal sucedido herdeiro da coroa de Portugal. Quando era preciso, os mosteiros tornavam-se bastilhas, sob a invocao vaga, e misteriosa, da razo de Estado, e algumas vezes sem se invocar outra coisa que no fosse a vontade absoluta do soberano. Naquele mosteiro de Tordesilhas havia uns aposentos para hospedagem da famlia real e das damas da rainha, recanto opulento a contrastar com as relativas humildades do viver conventual. Era numa cmara das que estavam destinadas s damas da rainha que D. Maria de Mendona e a filha tinham sido aposentadas. Estas j ns sabemos que se tinham encerrado ali por escolha de D. Beatriz de Portugal, a quem Madalena solicitara o favor de a deixar recolher a um convento, at que os sucessos da guerra viessem decidir do seu destino de noiva. Sabemos tambm que a vontade inabalvel do pai era cas-la com o primo Amto Gonalves, o cavaleiro mudo, e que este propsito era firmemente patrocinado pelo rei de Castela. A rainha, muito afeioada a Madalena desde os ltimos tempos do cerco de Lisboa, um pouco tentou defend-la daquele casamento, repugnante para a mal-aventurada menina; mas a vontade do rei era neste ponto intransigente e D. Beatriz, esposa ainda criana, to menina que apenas tinha feito 13 anos naqueles fins de 1385, dobrava-se timidamente ao querer do marido e s se atrevia a fazer-lhe pedidos como se fossem splicas de uma tutelada infantil. O mais a que se atreveu, durante a ausncia do marido, foi conceder-lhe a recluso por ela solicitada, e esta mesma s depois de ouvida a opinio do arcebispo de Toledo, que ficara como seu preceptor. Rainha assim juvenil carecia de tutela. O que D. Beatriz no adivinhou foi que Madalena lhe fazia aquele pedido, no somente para mais livre e recatado desafogo das suas mgoas, que seriam para desdns e suspeitosa estranheza da corte, mas tambm, e talvez com mais sincero fundamento, para se esquivar ao encargo de orar todos os dias e todas as noites, em comunidade com as outras damas, para que Deus protegesse a causa do rei invasor. A determinao das rezas fora imposta em nome da soberana: mas Madalena bem percebera que a pobre rainhazita obedecera aos conselhos, como preceitos de tutoria, do arcebispo de Toledo. Mas fosse de quem fosse a ordem, pela boa fortuna dos invasores de Portugal e pela glria daqueles que podiam matar-lhe o noivo que trazia retratado na alma, o outro que era da sua escolha; para tal sacrlega petio que ela no teria oraes que lhe no subissem do corao aos lbios mudadas em prece fervorosa pela vitria dos que defendiam Portugal. Aqui est porque, na opresso de todos os seus sonhos pelo futuro, a linda namorada de Ruy de Vasconcelos saiu de vila, para aonde a rainha e a corte tinham ido de Toledo, sob a vigilncia do arcebispo, e foi para o encerro de Tordesilhas num to grande alvio do corao que chegava a parecer jbilo.
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Naquela manh em que os Namorados no estariam talvez a grande distncia de Tordesilhas, Mendo Rodrigues conseguira pela segunda vez falar a ss com Madalena nos aposentos reais. D. Maria de Mendona fora para o coro com as monjas, levando-lhes a falsa desculpa de que a filha no podia ir por se ter sentido incomodada. Com o seu aspeto venerando, as suas longas barbas, o seu rosto mortificado e aquele burel e sandlias de monge peregrino com que ele realmente viera dos Lugares Santos, Mendo Rodrigues conseguira das monjas uma piedosa hospedagem, que ao segundo dia era j intimidade, sem a mnima sombra de suspeita. Contando a sua fingida histria de monge, dissera que tinha ido de promessa Terra Santa e de l voltava trazendo relquias para alguns mosteiros de Castela, entre os quais aquele, pelo qual tinha particular devoo. E contara isto no castelhano que sabia falar correntemente, logrando conquistar as boas graas das monjas de mais idade e mais acendrada devoo. Que precisava de uns largos dias de repouso alegara-lhes e que no dia da partida entregaria ento a melhor relquia, uma que trazia de promessa para aquele mosteiro. Disseram-lhe logo que se demorasse os dias que lhe aprouvesse, e no havia solicitudes de piedosa devoo com que lhe no realassem as comodidades da hospedagem. Quem menos se importava com ele eram as monjas novas e, principalmente, as novias, sonhando gals que no podiam ver, e recordando com saudades as lindas canes daquele trovador de Provena, que viera com o monge e uma tarde estivera cantando no ptio grande uns belos rimances de cavalaria andante e de castels namoradas, para elas ouvirem.
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Receais ento que a rainha aqui volte de visita? perguntou Mendo Rodrigues num murmrio de voz, muito inclinado para Madalena. Agora muito receio tenho de que ela volte! Dizei-me porqu? Porque pode vir para me levar consigo. Se ela prpria, h um ms como me dissestes, aqui veio para vos trazer o boato de que Anto Gonalves havia ficado prisioneiro em Aljubarrota, com outros, com que fim havia de querer levar-vos agora consigo? Para me ter ao p de si naquela corte que a entristece e onde (tantos a olham como estrangeira, que s vale pelo dote de herana... Que afinal est mal parado e j custou ao marido uma formidvel derrota. Por isso lhe no querem bem as soberbas damas, do pao e lhe chamam pelas costas a nina chamorra. E ela sabe? Percebe, desconfia, sente que lhe no querem bem. talvez na corte quem menos manda! a rainha menina de quem todas as damas de maior prospia querem ser tutoras. At pelos corredores do pao ousam dizer que no filha de El-rei, que Deus haja! E nisso talvez no a caluniem disse consigo Mendo Rodrigues. E logo para ela: Deve ento sentir-se mal na corte e sofrer com essa realeza que tem coroas de espinhos? Desabafava comigo, sempre cheia de medo que o sonhasse o rei ou o arcebispo de Toledo. Nem vos sei dizer as muitas lgrimas que ela chorou, abraada a mim, a contar-me a dor de alma que teve quando a me a veio trazer ao rei e se viu longe da sua terra! Teria d dela quem lhe ouvisse contar as mgoas que padeceu, enquanto os seus vassalos de Castela estavam cercando e oprimindo aquela cidade de Lisboa onde nascera e se criara. Poderia ter-se esquivado a acompanhar o rei. No ficava mal a uma dama juvenil como ela ter medo dos trabalhos e pavores da guerra. Quis, mas o marido mandou e teve que lhe obedecer. Para Portugal a levaram na suposio de que a cidade mais facilmente se entregaria sabendo-a ali. Foi ela prpria quem mo disse. E como Lisboa se no entregava, estou a adivinhar que maiores foram para ela as antipatias da corte. Maiores! Percebi-as eu e sentia-as ela. E ento agora, com a herana talvez perdida para sempre em Aljubarrota, maior frieza e m vontade para ela? No podeis imaginar a consternao em que aqui me apareceu! Chorava como as outras da sua idade podem chorar no sendo rainhas como ela! De pesar! De medo. Vinha toda de luto, mas o que ela trazia no corao era receio. De luto, sim, isso ouvi eu j. Disse-me que foi como el-rei lhe apareceu. Pesado luto, e ele num choro de desespero como se fosse mulher e a arrepelar-se como se fosse um louco! Que no era a perda de uma batalha o que mais lhe doa, lhe dissera el- rei; mas ser vencido por um bando de chamorros. E disto lhe vinha grande vergonha e lstima. Todavia, em vila, como j dissestes, a rainha mandou que todas suas damas, dia e noite, orassem para que Deus desse a-vitria aos de Castela contra os que defendiam a sua terra! No foi ela, coitadinha. Mandou pela sua boca de rainha menina, como lhe chamam, mandou por ela a vontade temerosa do arcebispo de Toledo. Se me no deixassem retirar para este mosteiro, as oraes que dissesse alto, havia de o meu corao vot-las a Deus em favor dos nossos contra os outros por quem elas pediam. melhor vos ouviu Deus, minha filha, pois que a batalha, como j vos contei, apesar do assombroso esforo dos nossos, chega a parecer um milagre! E tambm j me contastes que o vosso sobrinho Ruy foi l dos que mais batalharam e com maior valor ajudaram a venc-la. Foi; vi eu. Ele e os seus companheiros da Ala dos Namorados como lees! Meu Deus! Com risco de vida! Morreram muitos da ala, e olhai que, de tanto se afoitar, nem eu sei como ele tambm no ficou l. O noivo da minha alma! disse num confrangimento E eu aqui a rezar tanto por ele, com tamanho medo! A pedir a Nossa Senhora que mo salvasse, mandando-lhe um anjo seu que lhe fosse guia. Ouviu-vos. L teve consigo a prpria Me de Jesus naquela pequenina imagem da bandeira, que as vossas! Mos bordaram e deram aos Namorados. E agora, senhor Mendo Rodrigues?! Ainda vos no mandou notcias aquele vosso amigo troveiro de Provena? No tinha que as mandar. Vir ele mesmo traz-las em companhia do vosso noivo. Outra vez para tamanho perigo! O medo que eu tenho por ele! Tamanha nsia de o ver! Tamanho receio de que mo matem! Quem sabe se o troveiro l pde chegar? Quem sabe se ter havido outra batalha... De morte para ele?! Levou as mos ao rosto, numa tremura de pavor e numa convulso de choro. Minha filha! disse-lhe Mendo Rodrigues carinhosamente No vos mortifiqueis com esses infundados receios. Ainda no tarde para eles chegarem. H tantos dias! A jornada longa. H duas noites os ruins sonhos que eu tenho tido! Ningum pode fiar-se neles. Por cada um que acerta quantos de louca falsidade?! Meu pai a aparecer-me aqui com o outro, o emudecido que me causa horror! Vi-o eu em Aljubarrota. Dava uns gritos roucos a lembrarem latidos de lobo! Jesus meu! Antes morrer! E no sonho, meu pai e o rei a quererem por fora que nos casassem aqui, na igreja do mosteiro! Desse perigo vos livrou Deus. Mas se ele ficou prisioneiro, pode fugir, podem resgat-lo! Mas os mortos no fogem. Morreu?! O vosso noivo o matou. Estremeceu; duvidava. No ficou ento cativo como vos parece que est meu pai? -Anto Gonalves caiu naquele cativeiro que no tem resgate e do qual nunca mais se volta. Deus ento lhe perdoe. E o meu pai, se ele poder remir-se? Apesar de todas as mgoas que me causou, no lhe quero mal, no lho posso querer. Desse, nada sei ao certo acudiu, contrafeito. E logo, de si para si: Deus me perdoe esta falsidade de boa inteno. Ruy talvez saiba dar-me notcias dele. E hei de eu pedir-lhe de joelhos que se esquea dos agravos que dele recebeu e lhe d proteo. H de ter envelhecido mais. Ter decerto padecido muito! Nossa Senhora seja por ele! Apareceu D. Maria de Mendona; vinha desfigurada. Me, minha querida me, que tendes?! No nos quer deixar a desventura, filha! Por amor de Deus, dizei o que h? Querem ver que se soube de alguma desgraa para ele! Para ns, talvez! Chegou um pajem da rainha com aviso de que esta tarde aqui viria pousar e nos levaria a ambas consigo. Me, a mim no! soluou a abraar-se nela A mim, no! Morre quem quer morrer, e h de Deus perdoar a quem tinha razo para morrer. Filha, que loucuras dizes! exclamou D. Maria, relanceando um olhar para a porta, no receio de que algum pudesse ter ouvido. Senhoras minhas disse-lhes baixo Mendo Rodrigues no temais que a rainha chegue. Ficarei eu, se for preciso, para vos proteger a sada. Nisto, do lado do caminho que cingia os muros altos da cerca, uma voz possante, de timbre suave, fez vibrar nos ares um rimance de amor na carinhosa linguagem de Provena. O Provenal! exclamou num alvoroo de alegria o velho peregrino. A voz do troveiro vosso amigo acudiu Madalena numa comoo jubilosa. Certo ele . Dai-me licena que vos deixe, senhoras minhas; vou j saber notcias e aqui vo-las hei de trazer antes que a tarde chegue.
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Tudo bem e tudo j combinado informava o Provenal, num recanto do caminho, j a larga distncia do mosteiro. Quantos Namorados? Trinta e um com o vosso sobrinho e quase outros tantos pajens e escudeiros. gente para muito; porm melhor ser que tudo se faa sem grande rudo e derramamento de sangue. No vou ter com eles agora. Podiam ver-me os espreitadores da terra e seguir-me-iam com estranheza e teimosia de curiosos. Ide vs dizer-lhes que de c est tudo prevenido; porm, as dificuldades podem aumentar. Recebeu-se aviso de que a rainha viria de Valhadolid em visita ao mosteiro, no intento de levar consigo a me e a filha. Demnio, grande embarao esse! E chegar hoje? Colhi informaes; com interesse de bom castelhano as pedi madre superiora, e soube que antes da noite contavam com ela c. E trar numerosa escolta de homens de armas? No mosteiro esto preparando aposentos para doze homens, cavaleiros, escudeiros e pajens. Ento por to pouco no h que temer. Presume-se que traga alguma gente de ginetes, como costume. Uns cinquenta me contaram que tinham vindo com ela, quando foi da sua ltima visita ao mosteiro. Com os que j a tm, rija e desigual batalha podem ter os Namorados! Cada um deles contra quatro ou cinco dos ginetes, afora a peonagem, que d o dobro de todos eles! A essas desigualdades, e com adversrios de maior valia j eles esto afeitos e ainda h instantes mo dissestes vs dando-me notcia da batalha de Valverde. Mas era bem para todos que o feito mais se levasse a cabo por surpresa e astcia do que por cometimento farronqueiro de escusadas cavalarias. L dentro eu disporei tudo para a fuga. Combinai o que importa fazer para colher a gente de armas de surpresa, ou, melhor ainda, guard-la desprecavida, sem alvoroto que lhe d alarme e nos possa dificultar a sada. Vs pelas vossas condies de trovador provenal em toda a parte sois bem recebido e escutado, e muito podereis saber a respeito da gente de armas que chegar e dos lugares certos onde por noite velha os poderemos ter guardados e seguros. Alguma coisa sei j quanto a esse ponto; mas deixai que tudo hei de indagar at que chegue a hora da partida. Bem vedes que se no trata somente de uma atrevida algarada de aventura, mas de tirar daqui duas damas e lev-las a bom recato e sem perigos para elas. Batalha s por extrema necessidade e em tal conjuntura que j as duas damas estejam a salvo. Pois assim se far como entendeis. Ide l dizer-lho por favor de amigo. E mal que cerre a noite, eu vos esperarei ali, quela esquina do muro da cerca, para um e outro ficarmos sabendo como tudo est disposto. Pois ento at ao fechar da noite. At l, e grande amigo temos em vs, meu querido poeta da Provena.
CAPTULO VI D. PELAYO MUNOZ
Ainda no eram duas horas da tarde. O Provenal e o Magrio tinham sado ambos do casaro em runas onde os Namorados tinham metido os cavalos e eles prprios se tinham ocultado. Vinham os dois procurando carreiros por onde o matagal era menos bravio; depois meteram para o rvoredo mais espesso daquele fundo ermo. Conversavam. bom que eu v convosco dizia-lhe o Magrio Do que viermos a saber, levais vs informao a Mendo Rodrigues e trago eu notcias a Ruy de Vasconcelos. Ser muito bom, se vos no denunciardes e tiverdes prudncia para no provocar alguma rixa. Hei de ter, vereis. No sou homem para tomar as coisas to a srio que morra por elas, mas tambm de boa feio para galhofar com o prximo a quem eu tenha pior gana. Heis de ver como eu mantenho o meu fingimento de Gasco que ficou prisioneiro em Aljubarrota e logrou fugir, buscando as terras de Castela. H de parecer-lhes pouco provvel que visseis dar aqui. Tambm fcil dizer que fui levado por um fidalgo de Riba Douro, que me fez cativo, e do seu solar me escapei. Fica assim a mentira mais bem engendrada. E depois, com o que eu sei de castelhano e galego de mistura com o que vs no Porto me haveis ensinado de provenal, devo dar o fingimento de um Gasco que veio para Castela no ano passado, para o cerco de Lisboa, e na convivncia de Castelhanos alguma coisa aprendeu da sua lngua. Esta gorra de plumas e este saio velho de mangas perdidas muito ho de ajudar o fingimento do Gasco que vem fugido. E depois, se for preciso lutar? Trago um rijo laudel por baixo do meu saio velhinho, e, antes que cerre a noite, virei aqui a este fojo dos Namorados vestir as armas e virei com elas como os outros. Eu vou direito a uma grande taberna onde se juntam s tardes muitos homens dos ginetes e avultado nmero de besteiros. O vinho desprende-lhes a lngua e l que ouvi-los. E oferece-lhes a gente o vinho que chegue para eles dizerem quanto nos convenha saber. Eu, por exemplo, nas minhas condies de grande senhor da Gasconha... Que esteve prisioneiro, no vos esqueais atalhou o Provenal, sorrindo. Mas que por baixo do fraldo de malha de ferro podia trazer uma escarcela bem provida de ouro. Podia ser. E olhai c: se vos pedirem midas informaes da batalha, o que direis? Conto-a como eu soube em Santarm que eles a contam e mais seguro ficar o meu disfarce. At me est a regalar a chocarrice de os embaar. Ser bom sondar primeiro se l est algum que houvesse entrado na batalha. Pois sim. E tambm me parece mais acertado que no entremos juntos na taberna. Vou eu primeiro; depois entrais vs. E ento eu, que tenho corrido terras e sou muito vosso vizinho da Gasconha, finjo conhecer-vos e este caso h de enternecer os bebedores. Sim; ser desse modo. O pior a chegada da rainha com o seu troo de cavaleiros. Ns nos haveremos com eles, se for preciso. Tudo se h de fazer, e at eu tenho uma surpresa., engendrada por mim, para antes da fuga dos noivos. Surpresa?! Vede l no seja alguma temeridade de pouco xito! Eu vos afirmo que tudo ir pelo seguro, ou pelo feito l ficaremos todos, menos os noivos e quem houver de ir sua guarda. Est bem. Pois ento vamos indo, que temos uma estirada lgua at l. Apartamo-nos ento? Quando estivermos a meio quarto de lgua da vila. Meteram para a estrada.
* * *
Estava atulhada de fregueses a famosa taberna dos Leones de oro de Castilla, assim chamada porque tinha por cima da ampla porta, entre padieiras de granito, duas tabuletas de ferro, pendentes com os dois bichos herldicos das duas Castelas, pintados a vermelho torrado, com as jubas e as caudas douradas. Falava-se alto l dentro, ria-se em gargalhadas formidveis, cantava-se, diziam- se pragas de picaresco sabor; fazia-se uma algazarra ensurdecedora. E os jovens da taberna, que era tambm hospedaria do andar nobre, no tinham mos a medir. Nem eles, nem duas guapas meninas de jubas negras e olhos perturbadores, que eram o chamariz da casa e muitssimo excediam como reclamo aos dois lees rompantes da porta com as suas fauces escancaradas, vermelhas como o vinho da terra. A soldadesca j no reparava muito na focinheira arrogante dos bichos e achava deliciosamente vermelhos os lbios das duas raparigas, as mais esbeltas de Tordesilhas. A soldadesca e at os chefes, que tambm estes ali iam, bem que a maior parte das vezes fossem encafuar em certo compartimento reservado, que ficava ao fundo do longo casaro de abbada e era destinado aos envergonhados de sangue limpo e goelas secas. Quando o Provenal entrou, toda aquela barulheira esmoreceu. Conheciam- no pelo traje, pelo seu tipo inconfundvel e, principalmente, pelas trovas e cantares com que alegrara Tordesilhas nos dois dias que ali estivera, havia j umas trs semanas. Fizeram-lhe uma receo calorosa com aquela expansibilidade arrebatada e vibrante, que foi sempre uma das caractersticas do povo espanhol. O Provenal contou-lhes uma aventura sua de patranha pelas terras do norte do Douro, para explicar deste modo a sua larga ausncia. E, para justificar o regresso a Tordesilhas, disse-lhes que fora direito a Valhadolid e, como l soubera que a rainha estava para vir ao mosteiro, logo se metera a caminho no empenho de ver a receo festiva que lhe faziam e consagrar-lhe a homenagem de uma cano de boas-vindas e de augrio pelas futuras glrias de Castela. No se entusiasmaram com a homenagem. A rainha menina era afinal uma patrcia dos chamorros e ali estavam trinta ou quarenta que tinham sido dos ginetes de D. Gonzalo Nunez de Guzman, Mestre de Alcntara, no dia 14 de Agosto, e mais dois ou trs besteiros que se tinham escapado de Valverde. Marival percebeu a frieza, mas fingiu no dar por tal e continuou: A mim me disseram que haveria aqui grandes festejos. Pois grande mentira vos pregaram acudiu logo um dos palavrosos No pode ser, e se tal acreditastes porque no sabeis que el-rei e a Nao esto de luto pesado e que nas cortes reunidas h pouco, l mesmo em Valhadolid, se determinou o luto geral. Pois no sabia! disse o Provenal com admirvel ingenuidade Mas luto por alguma pessoa da real famlia? No, no! volveu-lhe o outro, secamente. E no se podem reproduzir aqui as descargas de palavres insultuosos e de rancorosa obscenidade que de todos os lados estrondearam contra os chamorros vencedores. Atrado por aquele berreiro pico, desceu do primeiro andar um empavesado figuro, de olhar olmpico e de papo arqueado como um galo no seu poleiro. El capitan! avisaram os que primeiro deram por ele. Mas a algazarra prosseguia ensurdecedora contra os. Chamorros de Aljubarrota, e at os mais iracundos desacatavam o prprio Deus pelo seu escandaloso compadrio com os bisbrrias del Mestre y reisuelo de Avis. O prprio Marival chegou a ter medo da tempestade que provocara no intento de apanhar informaes. L havemos de voltar prometeu alto, solenemente, de mo na espada, roncando as palavras, o recm-chegado a quem tinham chamado el capitan Pela Virgem e por todos os santos da corte do cu, vos prometo que em pouco voltaremos a Lisboa para a deixar arrasada. Nova Troia ser, e sobre as suas runas ho de relinchar triunfantes os nossos valentes ginetes! Estrondeou um berreiro louco de aplausos. Os chamorros, cativos como escravos mouros, viro puxar s noras de Castela continuou el capitan para dar repouso aos mulos e aos bois, nossos conterrneos. Nesta altura o fervor belicoso dos circunstantes esfriou um pouco. Os exaltados acharam infeliz aquele final de frase. Mas o fanfarro no era homem que esmorecesse por tal desagrado e acrescentou logo para aquecer os nimos: As filhas dos chamorros para serventes nossas, e nas campinas dessa terra insignificante heis de ver pastando os toiros magros e os rocins escanzelados de todas as Espanhas. E de Aljubarrota que havemos de fazer, capitan? perguntou, afogueado, um da companhia dos ginetes. Hemos de salgar esse cho nojento, para que nem as ortigas l nasam, nem as cabras l encontrem p de erva com que matar a fome. O delrio dos aplausos foi estonteador. Esta bravata de ameaas tinha tal cunho pitoresco em castelhano e era de to engraado exagero, que o Provenal, temendo o perigo de rir para fora, riu para dentro. No porque desconhecesse as altivas glrias de Castela, os feitas brilhantes daquela raa em que a estatura alta dos heris punha na sombra as figuras cmicas dos farronqueiros; mas porque era aquele blasonador um dos mais extraordinrios farfantes que ainda tinha ouvido na sua vida de aventureiro. A estupenda fanfarronada daquele tila dos ginetes, felizmente terica, produzira tamanho efeito na soldadesca e tal rabiosa febre de aventuras, que desataram todos a ter mais sede e a pedir mais vinho. Mas vede l como se armam as mentirolas! disse o Provenal, assim que os apanhou mais calmos Quem teve o intento de; me enganar at chegou a dizer-me que a Rainha viria de Valhadolid com luzida comitiva e um grande troo de ginetes. Redonda mentira! regougou o capito, de peito arqueado e cofiando a barba, como se fosse ele o prprio lendrio Cid Campeador Vm somente quatro cavaleiros de prole, com um dos quais hei de ter a honra de cear l em cima disse, indicando o pavimento superior e mais cinquenta ou sessenta ginetes, que vo ficar no quartel onde esto os meus. Mais nada, e tudo ficar em sossego como se no tivesse chegado a Rainha- menina. Sempre haveis de ter mais algumas preocupaes, senhor capito. Estais enganado. Tudo como dantes. Eu hei de cear como um frade e dormir como um cochino. Bah! E acariciou o ventre s mos ambas. Ento, pelo que entendo, ficaro a guardar o mosteiro os outros ginetes que vm acompanhando a Rainha. Qual! Qual! Entendeis errado. No costume pr mais vigias ao mosteiro. Os que vm podero dormir a sono solto. As duas quadrilhas de besteiros, que guardam a porta grande e a cerca do convento, chegam e sobram. E, l dentro, as monjas bastam para acompanhar a Rainha-menina, se acaso tiver medo. Fechadas as portas do mosteiro, nem as borboletas l podem entrar! E depois, ainda que surgisse do cho a bandalheira dos chamorros, com o seu rei de Avis e o seu Condestabre santanrio, e todos eles se pusessem s marradas nas portas para levarem essa Rainha que intentam deserdar por Deus que no entrariam l! E entretanto, l estaria eu com os meus ginetes, para os pr de c para fora a coices de cavalo, pois naquele sangue no quero eu emporcalhar as lanas e as espadas da minha gente. Nesta bravata esfuziavam hiprboles de tal chiste e ressonncia de tal vangloriosa soberbia, naquela mscula e vibrante linguagem castelhana, opulenta de sonoridades e deliciosas onomatopeias, que o Provenal esteve a pique de se desmanchar a rir, enquanto a soldadesca aplaudia com a mais pitoresca e estonteadora variedade de exclamaes e conceitos que ainda um estrangeiro ouvira nas Espanhas. Mas a verdade era que o troveiro havia conseguido saber em breves minutos quanto lhe convinha para confirmar informaes anteriores e o que de mais importante, para o caso do rapto, precisava de ouvir no tocante gente de guerra. Tudo parecia ajustar-se admiravelmente ao propsito dos Namorados. Com que ento D. Pelayo disse-lhe o Provenal por disfarce de tal modo est guardado o mosteiro que, no querendo as monjas, ningum l poder entrar? Ni Dios! respondeu com soberana altivez, sacudindo a cabea e abaulando o papo, a mo enclavinhada no punho da sua temerosa espada E se isto assim no for que o meu sangue andaluz se mude em gua de tisanas e deixe eu de ser D. Pelayo Munoz de Leon y Bullones. Este nome de sonorosa prospia retumbou na taberna por entre o desvanecimento da soldadesca; tal como se cada slaba fosse a nota pujante de uma trombeta de guerra. E foi precisamente naquele momento teatral que o Magrio entrou, com grande estranheza e assombro da tropa, das muchachas e do prprio D. Pelayo, que logo levou a mo espada. Estranheza pela sua estatura agigantada, por aquela fealdade rara e pela altivez insolente do seu todo. Nunca ningum ali vira outro assim, e todos perceberam logo que era estrangeiro. Para evitar alguma farroncada de D. Pelayo, provocadora de outra igual ou maior do Magrio, com prejuzo funesto do plano para aquela noite, Marival exclamou logo, de braos abertos para ele: Olhem quem ele ! O mais destemido cavaleiro da Gasconha, messire Pierre Gonsart. Deu-lhe ao acaso este nome de um cavaleiro gasco que em tempos conhecera, e sucedeu acertar com um dos ilustres gasces que batalharam em Aljubarrota. O Magrio abraou-o com fervor e jubilosa surpresa de amigo ntimo, que h muito no via e ali se lhe deparava por um capricho da fortuna. Fingiram bem os dois. Em poucas palavras, na sua mixrdia de mau castelhano, lhe resumiu a sua vida de trabalhos e aventuras desde que no ano anterior viera para Castela. Aludiu brevemente ao cerco de Lisboa e referiu-se s suas desventuras na batalha real em que ficara prisioneiro. Depois contou como fora levado por um fidalgo chamorro dos lados do Douro e em meia dzia de palavras esboou a sua audaciosa fuga, ao cabo de dois meses de afrontoso cativeiro. Mudara-se em avidez de curiosidade e benvola simpatia a estranheza hostil dos circunstantes. Era aquele homem, alto como os ciprestes, um cavaleiro de Frana, aliado e companheiro dos vencidos de Castela, e tanto bastou para aquela sbita mudana. Logo D. Pelayo pediu ao Provenal que lhe fizesse a apresentao ao ilustre cavaleiro da Gasconha. O trovador acedeu solenemente com o riso quase a estoirar-lhe na boca. Messire Pierre Gonsart, gentil-homem da Gasconha, aqui tenho a honra de vos apresentar o nobre cavaleiro de Andaluzia D. Pelayo de Munoz e... No lhe ocorria o resto. D. Pelayo Munoz de Leon y Bullones acudiu o apresentado oitavo neto do mais preclaro e remoto prncipe das Astrias, primo carnal do adelantado mayor de Castela, chefe de ginetes do glorioso Guzman, que salvou em Aljubarrota a honra das Espanhas. Aqui me tendes em Tordesilhas com a honrosa comandncia de um esquadro dos reais ginetes. E a empavesar-se com ntima delcia do Magrio e consolado orgulho da soldadesca, o Leon y Bullones rematou: Dos mesmos invencveis ginetes que atropelaram os matagais de Aljubarrota e transpuseram com ligeireza de galgos e fria de lees os barrocais profundos e as montanhas speras daquele hediondo campo de batalha! E tossiu grosso, encrespando a bigodeira. A carregar as hiprboles por conta das suas prospias, a carreg-las atrevidamente diante de quem tinha entrado na batalha, o Bullones dava a medida da sua audcia enfatuada: mas em boa verdade j ns sabemos que os dois mil ginetes do Mestre de Alcntara no tinham sido desbaratados e at ficaram de plena liberdade de ao, ajudando a arrebanhar os fugitivos e os extraviados, fora do campo de batalha: Quanto aos obstculos e acidentes do campo, o Munoz reproduzia em escala muito maior as alegaes do seu prprio rei na sua carta cidade de Mrcia, como que para atenuar um pouco o efeito moral do desastre. E os farfantes que me fizeram cativo a chamarem pequeno outeiro a esse abrupto monte a que se acolheram medrosos! Esses birbantes mentem como mouros! exclamou D. Pelayo Medrosos e mijados quando os meus ginetes lhe arremeteram o coio. Pois muito folgo de vos conhecer e grande honra me deu a fortuna, guiando-me at aqui, nobre e invicto D. Pelayo. Fomos ento companheiros naquela maldita batalha, companheiros que se no conheciam e nem sequer podiam avistar! Ah! D. Pelayo, que se no fosse aquele monte, um ninho de guia, em que a cainada chamorra se foi esconder encolhida de medo!... Se eu no hei de saber como ele era! Trs vezes o subi! Os ginetes do meu esquadro com as barrigas de rastos e a deitarem os bofes pela boca fora! Pois maravilha foi a dos vossos ginetes, D. Pelayo! A mim e aos meus gasces nos pareceu que s cabras l poderiam trepar, e mais tnhamos corcis, o meu, por exemplo, que tinham galgado as escarpas dos Pirenus como se fossem gatos bravios! O Munoz sorriu e disse logo consigo, desdenhoso: Para fanfarronadas, sem ps nem cabea, estes gasces deitam a barra adiante aos chamorros! E os rios que eles tinham s ilhargas?! lembrou o falso Gonsart. A quem o dizeis! acudiu D. Pelayo A um deles s os meus ginetes o puderam passar a nado. E mais era em meados de Agosto! Cheguei a desconfiar que, por cobardia, os chamorros para ali houvessem extravasado uma parte das guas do Tejo! Do nosso, pois que os rios de considerao que eles l tm so todos de nascena castelhana! Sorriam para dentro os soldados que tinham estado em Aljubarrota, mas achavam meritrias aquelas patranhas, que eles prprios tinham propalado embora em muito menores propores e com menos altivo arreganho. Pois sabei, honrado senhor e valente Bullones, que os embusteiros chamorros m peste de gente! chamam ribeiros a esses rios que vs passastes a nado com os vossos ginetes naquele negregado dia de Agosto! Porm, no vos indigneis; no valem um gesto sequer da vossa clera esses bilhostres que mentem mais do que do por amor de Deus. Pesar foi, deixai que vos diga, pesar de funestas consequncias, que os vossos esquadrones de invencveis ginetes se no houvessem lembrado de investir com eles, enquanto ns outros, quase sepultados na temerosa cava, o mato acima da garganta, tnhamos de ceder, vencidos! D. Pelayo Munoz sentiu-se um pouco entalado nas suas embfias, mas no era homem que desse o brao a torcer. Nisso pensmos respondeu de papo mas j no era possvel ter mo nos que fugiam, e a esses os protegemos com esforada dedicao, salvando de morte inevitvel, durante trs dias e trs noites, mais do dobro daqueles que os chamorros chacinaram. Valeu este feito por uma a$ginalada vitria! E ningum ousou pr-se na nossa frente. Ningum! Est de ver: na frente que ia fugindo observou-lhe secamente o fingido Gasco. claro. E foi por esse lado que ningum se atreveu a aparecer-nos. Nem a sombra de um chamorro... A no ser a sombra dos chamorros que fugiam. Para diante? Claro est. No fosse o d que me faziam aqueles pobrezitos de Castela e alguns dos vossos de Gasconha, que se tinham desencaminhado, e por Deus e por todos os santos da corte celestial, que os meus esquadres dos ginetes teriam dado logo ali outra batalha e t-la-iam vencido, mesmo de noite. Ou nunca mais as mulheres de Andaluzia ouviriam falar de D. Pelayo Munoz. Isto, no castelhano roncador daquele Leon y Bullones, era uma delcia de desfrute. Mas o Provenal estava outra vez a pique de se perder de riso e o Magrio muito em perigo de perder as estribeiras. Comeavam a exalt-lo aquelas escandalosas fanfarronadas do Munoz. Assim, senhor Gasco, perfeitamente compreendeis, que, se ali algum teve medo, no foram os meus ginetes, a melhor cavalaria das Espanhas e de toda a cristandade, por conseguinte, sem ofensa para ningum. Medo tiveram de ns outros esses chamorros que se ficaram encolhidos com o seu rei, o seu Condestable e uns tais chichelos namorados naquela soberba montanha, que valia bem uma plaza fuerte. E nunca mais vistes os tais Namorados, nobre capito D. Pelayo? perguntou o Provenal. Nunca mais, por fortuna deles e desventura minha! volveu-lhe, enfunando o peito e pondo a mo no punho da espada Que os visse um dia, e pelos dois lees de Castela vos afiano e por todas as mulheres formosas que tem a Andaluzia vos juro nesta hora que, frente dos meus enfurecidos ginetes metade deles bastavam lhes faria tal desbarato de morte, que nenhum ficasse para rezar pelas almas dos outros, nem o mar de lgrimas das suas noivas e namoradas chegasse para lavar o sangue das nossas espadas.
Dios mio! La sangre de vuestras espadas! repetiu o Magrio, dando frase castelhana a sua fingida pronncia de francs. Quis simular ingnuo assombro, mas o olhar estava a denunci-lo em relmpagos de raiva. Caretas, para amedrontar meninos mamadores que eles ousavam fazer aos meus destemidos ginetes. Entretanto, da parte dos ouvintes a inferneira dos aplausos era enorme, e o Munoz gozava aquela ruidosa ovao de crista erguida e papo tufado como um galo vitorioso. Receoso pelo Magrio, o Provenal tocou-lhe no brao e num volver de olhos o procurou serenar. Ao mesmo tempo um dos besteiros segredava a D. Pelayo: Reparai que este Gasco anda tosquiado ao modo dos chamorros! Os outros que eu vi traziam os cabelos crescidos. O Munoz franziu o nariz, indcio seguro de elaborao maior no seu crebro de gran-capitan. Cavaleiro disse dirigindo-se ao Magrio agora me deu na vista o vosso cabelo tosquiado rente, como usam os chamorros! No vos admireis respondeu-lhe o Magrio, j mais calmo de nimo Cativo deles, por vingana me tosquiaram. E em tal consentistes?! Estava manietado entre vinte, de lanas ameaadoras para mim. Pois em tal no consentiria eu, ainda que fossem duzentos e me houvessem amarrado de ps e mos. Morreria estoirado de raiva, mas em vida me no tosquiavam eles. Eram os tais Namorados! alegou o simulado Gonsart. Pior ainda! Por esses nem um plo, enquanto o corao me no houvesse finado! Eu podia l voltar a Castela de tal modo que algum, o prprio rei, me pudesse tambm dar o nome de chamorro! Jamais! Jamais! Era como se em mim tivessem tosquiado dez geraes de avoengos famosos! D. Pelayo, olhai que ningum pode afianar essas coisas com tal afoiteza! Reparai que no era coisa impossvel. E quantas vezes se no torna realidade aquilo mesmo que supnhamos loucura da nossa mente enfermia? No! No! Pois eu por mim vos digo que tudo julgo possvel, tanto o que tenho visto no Mundo! Ainda que fosse um to desvairado conto, como dizerem-me agora que esses odiosos aventureiros da Ala dos Namorados tinham vindo a Tordesilhas! Creio que assim se chama esta povoao... Por todo o sangue dos santos mrtires de Marrocos! interrompeu o Munoz, rindo de mofa S se o apstolo de Santo Iago trasse Castela e os seus ginetes, para trazer c esses fraldiqueiros e defend-los! E, mesmo assim, prudente seria que primeiro nos adormecesse, a mim e ao meu esquadro! Pois ser como dizeis; mas ficai certo de que, se eles viessem, no seria com outro propsito que no fosse o de tosquiar, tornando chamorro, o mais ilustre representante dos Bullones em Tordesilhas. Gracejais, senhor Gasco! Gracejais para assim desvanecerdes essa afronta que vos fizeram! Deus me livre de tal! Estou j resignado com esta afronta, como lhe chamais, e nunca ousaria gracejar convosco, senhor de Leon y Bullones. Daria um punhado de moedas de ouro a quem me dissesse onde os poderia encontrar a cem lguas daqui! gritou o capito. Pois afortunado seria quem vo-las ganhasse. Os meus cabelos iria eu oferecer a Santiago de Compostela, se o nosso bendito patrono me empurrasse para c esses bisbrrias que vos tosquiaram, depois de terem chacinado grande nmero dos vossos gasces e bearneses! Ouviam-se toques de trombeta como se viessem de larga distncia. Toda a soldadesca alvoroada correu de tropel para a larga porta da taberna. H de ser a Rainha! H de ser ela, a Rainha-menina! Cavaleiro da Gasconha! disse D. Pelayo com ares de gro-senhor Tenho l em cima pousada larga que ponho ao vosso dispor. Esta noite hei de ter por companheiro ceia o capito dos ginetes que vm com a Rainha- menina. o nobre D. Ramon Gonzalez Cabeza de Vaca. Estais convidado. Ceareis connosco. Podemos entreter um bom pedao da noite jogando. Com o maior agradecimento, D. Pelayo, mas tenho umas coisas a tratar com este meu amigo de Provena, e talvez me no seja possvel aceitar a honra do vosso convite. Mal havia de parecer que vos aparecesse fora de horas. Por tal escrpulo no deixeis de vir. Estou acostumado a deitar-me tarde e, em me apegando ao jogo dos dados, sou capaz de passar uma noite em claro. Mau ser isso! disse consigo, o Provenal. E vinde os dois. Acompanhai o vosso amigo de Gasconha, senhor troveiro de Provena. Cantareis os vossos rimances; ser noitada cheia. O Provenal agradeceu, preocupado. Agora tenho de ir apresentar-me Rainha. At noite. No falteis. E saiu magnificamente empavonado.
* * *
Vinha j de muito perto a vibrao das trombetas. Sentia-se o sussurro da gente apinhada em frente do mosteiro das monjas. Na taberna nem as duas raparigas tinham ficado. Tinham ido para em frente da porta. Esta agora s pelo demnio! disse o Provenal para o Magrio, quase em segredo. Deixai, que melhor assim. J sabemos que D. Pelayo est disposto a deitar-se tarde e no h remdio seno vir acompanh-lo, para que a noite lhe seja mais agradvel. Assim se defender melhor a nossa empresa e terei eu o gosto de levar para Portugal as guedelhas desse farfante, desdouro dos valentes e enobrecidos cavaleiros que tem Castela. Por quem sois, lvaro Coutinho! No vos ponhais a idear aventuras que podem ter mau fim! Heis de ver que tudo isto h de acabar mais a rir que s lanadas. Eu bem receava que viesses aqui! E no era preciso, pois j tinha sabido quanto era necessrio ao vosso intento. S no sabeis que teremos juntos os dois maiorais dos ginetes, e to mo, que at havemos de cear e jogar com eles! Mas descansai, que o meu gracejo s h de comear quando entendermos que os noivos esto a salvo. A no ser que receeis por vs... Nenhum receio por mim. Irei aonde fordes. Vive Deus! Agora gostei eu de vos ouvir. Mas olhai que o casamento que se no pode fazer no mosteiro, como tnheis ideado. pena! Teria assim maior significao; mas sei que no posso contar com a anuncia de Ruy e do tio, e desisto. Do que eu no desisto de levar as guedelhas de D. Pelayo Munoz de Leon y Bullones. Levo-as por conta das tremendas mentiras e nunca sonhadas insolncias que tive a pacincia de lhe ouvir na minha falsa qualidade de Gasco. L com ps de l e calados como furtadores de galinhas que os Namorados no ho de sair daqui. Mas no me fiqueis de m sombra, meu devotado amigo. Tudo h de correr na paz do Senhor, e at vs haveis de rir perdidamente por esse caminho fora. Hei de repartir convosco uma madeixazinha da guedelha do Munoz. Vamos l ver agora a chegada da Rainha-menina e admirar os ginetes de Valhadolid. Saram. O Marival ia taciturno. Agourava mal daquela jactanciosa extravagncia do Magrio.
CAPTULO VII AS DUAS RAINHAS
D. Beatriz dispensou a guarda de honra dos ginetes e, assim que se viu liberta da receo carinhosa das monjas, foi logo cela de D. Leonor Teles em companhia da camareira-mor. Visita de cerimoniosa compaixo, foi breve e, compreende-se que o fosse. Ainda a bem dizer criana, mulher de treze anos, mas j duramente experimentada nas amarguras daquela sua artificiosa realeza, D. Beatriz sabia bem o quinho de vergonhas e o quinho de lgrimas que devia quela destronada, impdica e perversa. Dera-lhe pela maternidade um dote de ignomnias e pela Ptria um trgico presente de noivado, numa herana litigiosa, a escorrer sangue e aos baldes pelos campos de batalha. Mas era, apesar de tudo, sua me. Impunha-se-lhe o dever piedoso de ir v-la, embora fosse para l afogueada de vergonha e arrastando consigo a sombra enorme da sua tutelada realeza. Nenhum cronista seu coevo pde surpreender e nenhum confessor das suas recatadas amarguras quis dizer o drama alanceador que se agitou naquela alma juvenil. E havia de ter sido sombrio, enorme, e quem sabe em quantos dias desesperador? Logo do bero a dvida afrontosa da sua legitimidade a refletir as torpezas da rainha combora; desde a primeira infncia joguete poltico das ambies versteis do pai, noiva de conto ora prometida, ora negada, quando a sua boca infantil ainda mal sabia dizer os nomes e os ttulos do prometido esposo. E nos paos reais, encharcados de torpezas e respingados de sangue, nenhum amor grande e puro a que a sua alma, inexperiente do Mundo, pudesse acolher-se! A me, uma loba ciosa e trgica, sem tempo que chegasse para lhe acalentar o bero; o pai, rei e marido infamado, mal podia sorrir-lhe sem que o corao se confrangesse numa tortura de dvidas e num inferno de desesperos, que foram talvez o drama supremo da sua vida. E assim, friamente a largaram de si como pequena mercadoria de escambo, mandando-a para o tlamo de um rei que tinha idade para ser seu pai e precisava de ser o seu tutor. Rainha de onze anos, isolada e talvez oprimida entre as soberbias de uma corte estrangeira, despatriada que levava em dote a promessa de morte da sua prpria Nacionalidade, a sombra da me subiu com ela ao trono, a manchar- lhe os arminhos e os brocados de ouro com que os seus pequeninos ombros mal podiam. E para o marido tutor no passaria afinal de uma pupila, que tinha atrs da sua figurinha de mulher uma ambio de dois sculos a quebrar nas linhas de um contrato nupcial quantas lanas e-quantas espadas tinham feito pelos campos de batalha a edificao gloriosa da Ptria portuguesa. A dela! Quantas vezes, do estrado magnificente do trono, no soberbo alcar de Toledo, a receber a homenagem teatral dos grandes de Castela, a pobre reyna- chicuela, no suporia atrs de si a figura odiada e trgica de Leonor Teles, no seu manto manchas de sangue do conde galego assassinado num desvo de janela do Limoeiro e no sorriso corteso dos fidalgos, netos de remotos dinastas, um esgar de escrnio pelo seu bero e pela sua coroa? Aquela coroa mortificadora em que s ela sabia que os diamantes eram feitos de lgrimas das mes portuguesas e os rubis do mais heroico sangue que tinha Portugal! Sempre estrangeira, para os vassalos do marido pela terra em que nascera, e para os de c pela Nao em que era rainha, a pobre tutelada tinha o seu calvrio moral sobre as alcatifas do trono, entre os dourados lees herldicos de Castela. E toda esta atormentada adolescncia a devia ela exclusivamente, quela destronada, a quem o alfaiate Ferno Vasques, frente de uma revolta da plebe, chamara alguma coisa mais rude que Messalina, a que el-rei de Castela, juiz de uma conspirao provada, dera uma cela por calaboio. Mas era afinal sua me. Fora v-la. A brevidade da visita estava no direito do seu corao amargurado e impunha-se pela presena de uma terceira pessoa.
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Ainda no era sol posto quando D. Beatriz de Portugal saiu dos aposentos da me. A camareira-mor tinha visto lgrimas nos olhos de uma e outra, durante o quarto de hora que demorou a visita. O que a camareira no sabia era se as lgrimas de Leonor seriam de tardia contrio, e se as da filha tinham sido daquele d dos ofendidos, que talvez para quem o recebe a mais amarga forma das expiaes morais. Sozinhas as duas, sem algum a ouvi-las que representasse o mundo alheio sua tortura ntima, quem pode imaginar em que repeles de orgulho revolto, em que nsia de queixumes e em que convulses de choro no teria passado aquele quarto de hora bastante para dar o drama enorme de duas almas de to diversa histria e de to afastado destino? D. Beatriz era esperada pela madre superiora e com ela e a camareira se dirigiu para a capela real a cumprir uma penitncia da sua especial devoo. Mas antes de descer a grande escadaria de mrmore, lembrou-se de Madalena, que apenas tinha visto de relance, durante a breve cerimnia da receo, e mandou-lhe aviso de que, ao cabo de uma hora, estaria nos seus aposentos e l a esperaria para lhe falar de um assunto de importncia. Entretanto, Mendo Rodrigues, sempre no seu disfarce de peregrino asturiano, mandara solicitar de D. Leonor Teles o favor de o receber para lhe apresentar a oferta de uma relquia, pois teria de partir por da madrugada de regresso sua terra natal. A viva de el-rei D. Fernando tinha visto apenas uma vez o velho peregrino dos Lugares Santos; mas ouvira falar muito dele s monjas com quem tinha mais intimidade e por elas sabia que era homem com largo conhecimento do Mundo, de bondosa alma e esclarecidas palavras. Aquele pedido pareceu-lhe homenagem sua abandonada realeza, ingnua homenagem de quem, provavelmente, lhe no conhecia bem o passado. Sentiu-se lisonjeada; a clausura ainda lhe no pudera amortecer a espetaculosa vaidade de outros tempos, e logo lhe concedeu que a fosse visitar.
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Esmorecia melancolicamente o plido sol daquele dia de Outubro. Uma serventuria introduzira o peregrino de longas barbas de neve na cela que servira de saleta a essa mulher de enfeitiadora beleza, a quem os fidalgos romanescos tinham dado o cognome de Flor de Altura e os monarcas de mais altiva estirpe tinham chamado parenta sua. O velho estava mais desmaiado e tinha mais fundo no rosto o vinco das suas amarguras. At no artificioso sorriso de resignado havia agora uma expresso de trgico sofrimento. Leonor Teles ficara sozinha com ele. Pela grade estreita da janela um claro do sol moribundo iluminava em cheio, como numa cena do teatro moderno, aquela singular figura de mulher, ainda gentil na sobrevivente realeza da sua formosura, esttua de carne prodigiosamente bela, em que parecia no ter deixado mcula o lobo de quantas abjees tornaram hedionda a sua repugnante figura histrica! Tocada pelo sol a sumir-se, a juba dos seus cabelos fulvos tinha fulgores de diadema. Com os seus ares de rainha, a viva de D. Fernando, o Formoso, e de Joo Loureno da Cunha, o dos emblemas de ouro, mandou sentar o peregrino. Senhora, sois rainhas Eu fico de p. Assim ser melhor para o que vos tenho a dizer. Leonor Teles estranhou a dureza de expresso daquele velho, que lhe tinham indicado como exemplo de piedosa bondade e de humilde resignao crist. Vindes ento oferecer-me alguma das santas relquias que me disseram trazeis de Jerusalm? Nem s de Jerusalm, senhora rainha. H mais calvrios no Mundo, mas ficaram na sombra da sua prpria humildade. Monge, no vos entendi bem! volveu-lhe, pondo nele um olhar turvado de suspeita. Queria dizer-vos, senhora, que abaixo do Glgota de Jerusalm, imensamente abaixo, tanto que nem deles se pode avistar o cu, h outros pelo Mundo onde apenas foram crucificadas criaturas humanas, de to singular infortnio que a ningum salvaram porque a si prprias se no podiam redimir! Desses abandonados do cu ainda nalguns ficou a dor pregada na sua cruz, a gotejar lgrimas que ningum sente, suor de sangue que o Mundo no v! A morte, senhora rainha, no quis despregar esses crucificados e esqueceu-se deles! Num repelo de orgulho e numa vaga expresso de receios, nem ela sabia bem de qu, a no serem da sua prpria conscincia atravancada de espectros, Leonor Teles ergueu-se, cravando no velho um olhar toldado de clera. Dei-vos entrada aqui, a pedido vosso, para me trazerdes uma oferta de certa relquia! A que vem esse vosso conto, de que nada entendo?! A explicar-vos, senhora, de que diversa origem so as relquias que eu trouxe de longe. Mas nessas palavras de to escurecido sentido, nesse castelhano arrastado que falais! No andam em romagens de penitncia seno os que pecaram, e o remorso multido os sentidos e escurece as palavras. Faz tardia a lngua dos velhos e o seu falar arrasta-se para dizer as coisas como as pernas se arrastam para lhes irem aguentando a romagem. E o seu olhar altivo, penetrante como o gume de ao de uma adaga, punha um comentrio assustador naquelas palavras rouquejantes, soturnas, a lembrarem um surdo revoltear de vento represado entre penhascos. Em poucas palavras podeis responder. Sede breve. Senhora, acalmai-vos e esperai, benevolente. Tem a sua histria a relquia singular que eu venho oferecer-vos. Em poucas palavras, depressa. Dizei. E sentou-se com impacincia nervosa como se alguma coisa de vago temor a estivesse oprimindo. No desfitava o monge. Parecia que os seus olhos procuravam descobrir-lhe a alma atravs do grosseiro burel do hbito. Vai para dois anos encontrei na Palestina outro peregrino como eu, miserando infortunado como eu era, de corao despedaado como eu ia. Tinha envelhecido antes de tempo como eu envelheci, trazia consigo um remorso de atormentado, igual ao meu. Rainha, a desgraa fizera-nos irmos; ramos ambos filhos seus. Uma coisa nos diferenou para sempre. A morte condoeu-se dele e eu fiquei arrastando pelo Mundo a minha cruz! Na hora da agonia, a voz a rouquejar-lhe na garganta e a afogar-se-lhe em soluos, disse- me: Fui cavaleiro numa terra vizinha da tua; era homem fidalgo, batalhador de honrado nome, que por loucos amores se perdeu. Toma destes meus andrajos uma relquia profana que eu trago recatada comigo e leva-a para onde quer que vs, at ao dia em que voltares tua terra das Espanhas; mas quando l chegares e as foras to consintam, vai entreg-la a algum, que justo a leve consigo para a sua jazida real. Vamos! Que relquia? disse, erguendo-se outra vez num repelo de clera, mas agora tambm numa tremura de vago pavor. Aqui vo-la trago nestes dois pedaos de velho pergaminho volveu o peregrino serenamente, tirando-os debaixo da corda de esparto que lhos apertava cintura Aqui uma pequena madeixa de cabelos arruivados, e este dizer: Da mulher que eu loucamente amei e me perdeu. -Acabai! ordenou-lhe num grito convulsivo. Senhora, pouco falta... Neste outro, um p, como se fosse de uma flor ressequida, talvez morta sobre o seio de neve de alguma infortunada mulher. Dizem assim as poucas linhas deste pergaminho: Arrancada do seio de D. Branca de Castro, dama do pao, pelo amante que a matou, enlouquecido de cimes. Embusteiro ou louco! bramiu a tremer, indo para ele, desfigurada Aqui viestes escarnecer-me, vilo cobarde! Rainha, no! replicou, cravando nela um olhar dominador. Relquias santas pedistes para me oferecer, velho embusteiro. Santas, se ainda forem capazes de um milagre de contrio. E para mim, porqu?! Quem te mandou aqui, monge impostor? O outro que morreu. Mentes, vilanaz! Judas, por quantos dinheiros te compraram os meus inimigos para vires aqui a afrontar-me? Afrontar-vos em qu, se eu no disse ainda de quem eram estes cabelos fulvos! Nem j o dirs seno entre os que te ho de aoitar e levar forca, vilssimo enganador. Chamo! Algum vir desafrontar a rainha rouquejou, dando uns passos rpidos para a porta. No podes, Leonor! disse Mendo em portugus, atravessando-se diante dela No podes, porque no quero eu! Lvida, tremente, num entontecimento de terror, as mos como garras enclavinhadas no peito, Leonor Teles recuou diante daquele velho, que falava como s um certo homem poderia falar-lhe, se todas as informaes o no houvessem dado por morto. Enchem-te de terror as minhas palavras e duvidas que os mortos voltem! Voltam. Aqui tens um que todos em Portugal supunham morto. E no chamars ningum, porque tua filha est neste mosteiro e eu diria alto que fui o teu requestador mais afortunado, um ano antes do teu casamento com Joo Loureno da Cunha e ainda uns dias antes dos teus amores com o rei que enfeitiaste e perdeste. J no s rainha. Sabem quem foste e quem s. Se queres, chama. Abrirei eu aquela porta, se mandares, e chamars pelos vassalos da rainha de Castela, tua filha. Eu contarei com que trgico direito aqui vim. Queimar-se-o, por maior vergonha ainda, as faces daquela pobre criana para quem mudaste em coroa de espinhos o seu diadema de rainha. A retroceder em passos curtos, hesitantes, num desvario de febre, Leonor Teles foi cair de joelhos contra um escabelo raso, as mos nos olhos como criana espavorida, o peito nuns estremees violentos. O monge foi-se lentamente acercando dela. No duvides. O namorado que tinha trinta e oito anos quando a tua juventude o preferiu a outros; esse que, trs anos depois, foi pela tua causa o matador de Branca de Castro, envelheceu cedo, em doze anos com as devastaes de trinta! No duvides. O morto voltou. Mendo Rodrigues sou eu, Leonor Teles, escuta bem: eu! Flor de Altura., como te chamavam os requestadores do pao, tu pouco mudaste nessa juventude que parece no ter fim! que a conta das tuas perversidades no entra na outra dos teus anos! Mata-me, se para isso vieste! disse-lhe torvamente, erguendo-se num impulso de revolta. Matei uma vez, e h doze anos que trago o corao afogado em lgrimas de remorso. Tu s diferente! Foste a causadora do meu crime, caluniando; promoveste a morte da tua honesta irm, levantando-lhe uma aleivosia; mataste o rei, infamando-o; quiseste matar Portugal, traindo-o, e nem sequer uma lgrima de contrio nesses olhos, que s talvez saibam chorar de raiva! De raiva, agora sim, cobarde matador! Cobarde, considerao tua, e nisto, ao menos ainda pareces a rainha que em Portugal odeiam e em Castela com imenso nojo desprezam. Sou uma mulher, e s tu a ral dos poltres, vindo aqui traioeiramente afrontar-me. Vamos! desafiou, indo para ele num soberbo movimento de orgulho Facilmente se mata uma mulher! Vs? No fujo de ti. Vamos, sem escrpulos. Velho, trazes essas mos experimentadas na outra e vacilas! No deixes o feito incompleto nessa poltronice de insultador. No; no quero! No posso! Seria igualar-te a essa que tu caluniaste, e a ti ningum te pode caluniar por muito que diga de ti! Pois chamarei quem venha ouvir-te. Eu no! Eu no! E correu para a porta como louca, em arrancos de soluos. Mendo Rodrigues atravessou-se-lhe na porta. Mulher, olha que est a tua filha! a rainha de uma Nao que talvez a despreze por ti, numa corte de soberbas prospias, que decerto a desdenha pela tua causa. a filha de Leonor Teles. No lhe ponhas mais alto o calvrio do seu trono, nem lhe arranques mais lgrimas para a sua coroa soberana. De olhar desvairado, a orgulhosa destronada ps as mos e caiu de joelhos, numa tremura de medo, os lbios desbotados a balbuciarem palavras que s ela ouvia. Ao menos, um vislumbre de piedade no teu corao de me, mulher que tanto desceste. Loba, refugia-te nesse amor, que pode vir a ser, perante a misericrdia infinita de Deus, a nica remisso da tua vida hedionda. Eu saio. Eu deixo-te. Trazia este encargo de desafogo, para tu saberes com que horroroso padecer se arrastou at aqui esse desventurado que supunhas morto. Deixo-te as minhas relquias, Flor de Altura. Aqueles cabelos de ouro fulvo que eram h dezassete anos o teu mais belo diadema, e esse p de uma flor morta arrancada ao seio de algum que a tua perversidade matou pelas minhas mos. Santas relquias, se ainda nalguma hora da tua vida puderes chorar sobre elas. Eu irei sumir-me at que a morte se lembre de mim. Morrer comigo o segredo de uma das tuas maiores perversidades. Que Deus te perdoe, se puder; eu no posso. Eu no! Mendo Rodrigues! soluou, num quebrantamento de todo o seu orgulho e de todos os seus dios. Mendo ps naquela rainha humilhada, loba que chorava de rojo, um olhar em que relampejavam as cleras do seu dio. O sol sumira-se. Como que trazia sugestes de piedade aquela penumbra crepuscular que enchia a cela. Choras! disse-lhe Se essas so na tua vida as primeiras lgrimas sem mentira e sem ardil, oferece-as memria de Branca de Castro e que Deus as veja e tas receba. Sairei daqui como entrei, no mesmo disfarce de humildade. Podes denunciar-me, se quiseres. Mendo Rodrigues, piedade! Outra vez te prometo que guardarei o segredo desta hora, e o outro, ainda pior, do sangrento infortnio que o mundo soube apenas de relance e logo esqueceu, sem lhe conhecer a causa. Fao deste segredo um legado de d para a infanta tua filha, aquela pobre soberana de treze anos, que deve ter sentido em volta do trono o mar de lgrimas e o mar de sangue em que a sua herana naufragou. Para ela o d que tu no podes merecer. O morto no voltar mais. Assim os outros no voltem para te oprimir e sufocar aqui na estreita priso desta cela. E se tens sede de vingana, se queres que emudea para sempre a boca audaz que veio aqui dizer-te duras palavras de verdade, denuncia-me como teu compatriota, e vers quantas adagas de inimigos se ho de cravar no meu corpo, aqui mesmo diante dos teus olhos, rainha de outro tempo! No! No! protestou, arquejante. Se pelo receio de que eu falte minha promessa que isso dizes, no te prives desse prazer de vingana. Eu no quebrarei o meu segredo, porque eu nunca tive medo de morrer. Bateram porta brandamente. Enxugai os olhos, senhora, e erguei-vos. Rainha, eu vou abrir. E foi. Eram duas velhas monjas que vinham saber se D. Leonor Teles queria que a acompanhassem ao coro para as suas devoes do costume. No era difcil perceber que a rainha chorara e entenderam as duas, l no antegozo de o divulgar, que o choro teria sido de contrio, e que a mulher de pecaminosa vida haveria recebido de corao arrependido os santos conselhos daquele monge peregrino das Astrias.
* * *
Apesar de acabrunhado por aquela hora de luta moral, violentssima, Mendo Rodrigues saiu do mosteiro. Daria volta pelo muro da cerca para ir esperar o Provenal e saber o que definitivamente se aprazara. Escurecera. Marival no tardou, mas trazia consigo o Magrio e mais dois homens de chapeires e ferragoulos. A distncia perceberam o vulto do monge e pararam conversando. Um deles se afastou dos outros e veio direito a Mendo Rodrigues. Era o Provenal. A poucos passos ainda se conheciam bem as pessoas e Marival reconheceu logo o tio de Ruy. Senhor D. Mendo, ali esto alguns dos vossos para combinarmos o resto disse-lhe baixo, apontando os outros. Olharam os dois em volta de si para ver se algum se aproximava. Ningum. Daquele lado da cerca o stio era ermo, todo cingido pela grande sombra de uma alameda de rvores antigas. E da? Alguns embaraos? Nenhum que se possa prever e com o qual no houvssemos j contado. O mais difcil seria abrir a porta dos muros da vila aos que vm a cavalo, surpreendendo os vigias e amordaando a guarda, mas isso mesmo est j combinado e j c temos dentro de Tordesilhas quem nos h de ajudar. Quem? Aqueles respondeu, apontando os trs Vosso sobrinho, lvaro Coutinho e Vasco Eanes. O Magrio ainda no seu disfarce de Gasco que ficou prisioneiro em Aljubarrota e se evadiu de Portugal; vosso sobrinho e Vasco Eanes entraram ao sol-posto, antes que as portas se fechassem, disfarados com carapuos e cobrejes castelhanos. Vieram com eles mais quatro da ala e dois escudeiros, tambm sob disfarce, e esses ficaram sonegados nas imediaes das portas para observarem os homens da guarda. grande a guarda? Pequena. Quinze homens so os que ns vimos. Julgam-se muito seguros; a vila est fora de mo para correrias carairias. Ergueram a ponte levadia e ficaram, provavelmente, muito descansados. So capazes de dormir a sono solto. Pois ali pela cerca auxiliarei eu aqueles que tiverem de entrar no mosteiro. Quanto menos alarme, tanto mais seguro cometimento. Certamente. Mas se quereis, vamos para alm ou vou eu cham-los para aqui. Vamos ns ter com eles. Ali estaremos mais no escuro. Foram.
CAPTULO VIII GRAVES REVELAES
s nove horas as monjas estavam j recolhidas nas suas celas e poucas talvez ainda acordadas. A prpria vila parecia j adormecida. Apenas numa taberna se jogava porta fechada. A povoao era pacfica, de gente morigerada, e o uso do tempo era deitar cedo para levantar ao romper da madrugada. Mas nos aposentos reais do mosteiro umas poucas de pessoas estavam ainda acordadas. A rainha D. Beatriz conversava na sua cmara, havia cerca de uma hora, com Madalena de Mendona. A me de Madalena ficara na sua cmara, rezando. A velha camareira-mor da Rainha-menina, que j s 8 horas andava a pender de sono, fora deitar-se por ordem da sua real ama. Qualquer das cuvilheiras dissera-lhe D. Beatriz a iria ajudar a despir, quando quer que o sono lhe chegasse. Como ali no mosteiro um pouco se quebravam os escrpulos da pragmtica e das etiquetas do pao, etiquetas que chegavam a tocar as raias de uma opresso ridcula, a camareira-mor no estranhou a concesso nem se deteve a lembrar a pragmtica. Morta por dormir andava ela e poucos instantes depois estava profundamente adormecida. A prpria Rainha fechou por dentro a porta que dava comunicao para a outra cmara onde a velha e altiva dama dormia. Precisava desafogar com aquela sua amiga dileta. Falavam baixo, muito chegadas uma outra. Conversa de amarguras teria sido, porque ambas tinham uma expresso de mortificadas e ambas choraram. El-rei quer! disse D. Beatriz E s para os meus pedidos se no dobra a sua vontade, que os outros torcem como se fosse um vime! Senhora minha, mas agora que o outro morreu, porque estranha crueldade quer el-rei tirar-me daqui e levar-me para a corte como se eu fosse uma das suas vassalas? disse Madalena numa voz de angustiada que fazia d. Os infortnios da guerra tm-no enfurecido contra os que so da nossa terra. Da nossa! Tambm eu lhe chamo ainda minha, e ningum de l me quer a mim! Soube, para alm do mais, el-rei, no sei quem lho disse, que o noivo do teu corao era um desses de mais bravio lutar naquela tamanha batalha que se perdeu... Que el-rei perdeu e no h splicas que o demovam do seu propsito. Pois, senhora da minha alma, muito me doem as amarguras do vosso corao, desde menina mortificado; muito podeis como rainha, muito vos devo pela vossa afeio... Como se fosses irm minha, muito querida interrompeu enternecidamente daquelas irms a quem tudo se confia, at os queixumes que ningum mais h de ouvir, at as lgrimas que se choram dentro de alma, que nenhum estranho as possa adivinhar! Eu sei, Senhora, e bem vistes j com que mgoa vos ouvi o segredo desses vossos pesares, que a mais ningum deixais perceber. Mais do que pesares, minha querida Madalena! Martrio o nome que tm. Sem esperana e cada vez maiores. Senhora, tudo isso entendo, mas perdoai. Daqui me no ho de levar, porque eu daqui no quero ir. Noiva serei como viva, mas daqui me no hei de afastar. Mas olha c, Madalena disse-lhe, puxando-a para si e beijando-a A ordem de el-rei tem de se cumprir. Outros a vm para a fazer executar, ainda que eu a isso me quisesse opor. Levar-te-iam, violentamente, e para que assim no sucedesse foi que eu pedi a el-rei me deixasse trazer-te aos meus pedidos e emendar a permisso que eu te dera e o meu marido e senhor to asperamente me censurou. No me ds o tamanho desgosto de te ver levar daqui fora. Tem tu d de mim. Tu, ao menos! Por esse desgosto de me verdes levar fora vos no receeis, senhora minha. Outro ser o vosso d por mim e Deus mo perdoar. So largas as portas deste mosteiro para poderem levar daqui a quem no quer sair; mas as janelas destes aposentos so altas e mais depressa a noiva chegar l abaixo. Depois, nem valia a pena enterr-la. Era atiraram com ela para o rio. O Douro a levaria sua terra portuguesa. Madalena! Madalena! exclamou, confrangida, abraando-a numa tremura de medo Entendi o teu sentido! Que horror de pecados! Senhora, nisto a vontade do meu corao ser ainda mais firme do que a vontade de el-rei. Mas olha, Madalena, tu desvairas! Que notcias e que certeza podes ter de que o teu escolhido ainda pensa em ti? As mais seguras, Senhora! E aqui encerrada, a guerra nas fronteiras, que fortuna havia de ser a tua neste mosteiro, diferente da que terias comigo na corte, minha irm pela mesma terra, amiga queridssima para chorarmos juntas as nossas mgoas de segredo? Para chorar, Senhora, aqui seria melhor. E afinal, Madalena, para qu? Para esperares nesta clausura que um dia, por acaso, te fosse possvel fugir para o ires buscar a ele? Ou para que ele viesse buscar-me aqui. Aqui! S se tivesses alguma santa por ti. Ou alguma rainha, que de mim se apiedasse acudiu num alvoroo febril, beijando-lhe a mo de surpresa. Oh! Madalena! volveu-lhe a Rainha tristemente, puxando-lhe as mos para si Se eu j te disse que nada posso, e tu bem o sabes! Senhora murmurou num fio de voz bastaria que vs quissseis receber e guardar um segredo meu, como eu para todos hei de guardar os do vosso corao mortificado, que ainda no disse a ningum. Mas olha que te no entendo! murmurou, levantando-se num movimento de estranheza e de receio, nem ela sabia bem de qu. Madalena ergueu-se tambm. Prometeis guardar-mo e fingirdes que nada sabeis, ao menos at que rompa o dia de amanh? De madrugada voltaremos a Valhadolid. Pois que seja ento at hora da madrugada em que haveis de partir. Em que havemos de partir, Madalena, pois que tu sairs tambm. a ordem de el-rei. Sim, Rainha e senhora minha, at umas horas depois que eu haja sado disse-lhe, a tremer. Ah! Ento reconsideraste, minha querida Madalena! Fazes-me o que eu te pedi por causa de el-rei, no assim? Senhora, fazei-me vs a promessa solicitou, perturbada. Pois sim, diz-ma outra vez. E numa tremura de voz, muito velada, hesitante como se j estivesse arrependida de indicar a confidncia, repetiu-lhe: Que pela vossa palavra de Rainha prometeis no contar a ningum, at que nasa o sol de amanh, o segredo que eu vou confiar-vos por esta muita amizade que vos tenho. Mas pela vossa palavra de Rainha, no! disse-lhe, emendando num entontecimento de comoo Antes a promessa pela vossa alma carinhosa de amiga minha, da minha irm pela terra em que ambas nascemos. Antes, Senhora! Por Deus, que me d estranheza esse pedido! Mas teu, Madalena, e tanto me basta. Prometo, e pela salvao da minha alma te juro que guardarei o teu segredo. Senhora, que Deus vos pague em venturas o consolo que me dais nesta jura! Diz. A mim me ho de levar daqui esta noite, Senhora! disse-lhe a tremer. Madalena! exclamou, fazendo-se muito plida Isso desvario teu! Senhora, no . Doa-me o corao enganar-vos, sair daqui sem vos dizer! Mas eu no posso acreditar! Olha bem para mim. Algum sonho, desses que a nossa alma sonha acordada, te veio turbar a razo! Quem ousaria levar- te daqui? Senhora, o meu noivo. Mais enlouquecido do que tu, porque o prendiam, porque o matavam. Mas desvario teu! Se podia ser?! Se um homem s... Com outros como ele! volveu-lhe convulsivamente, cada vez mais arrependida e cheia de pavor por aquela ingnua revelao. E voam por cima dos muros de Tordesilhas, para virem buscar-te aqui e levam-te de c por entre as nuvens para que os no vejam os homens de armas que a esto?! Minha pobre enlouquecida! Senhora, enlouquecida s se vs no quiserdes cumprir a vossa jura! disse-lhe, oprimida, pondo nela os olhos rasos de lgrimas. Mas se assim fosse, ento o teu pedido haveria sido uma traio para mim e a jura teria eu de a quebrar! Rainha e senhora, que vos no perdoaria Deus acudiu, de mos postas, numa lividez de espavorida. Eu no posso, no devo faltar aos meus deveres para el-rei, e sou Rainha de Castela. Desabafando comigo as vossas mgoas, vs me chamastes vossa irm, a vossa nica amiga. Que pode valer para el-rei a fuga de uma pobre mulher, e que traio seria para Castela que um namorado aqui viesse buscar a sua noiva?! Afronta seria para o meu reino que inimigos seus a viessem! A Rainha de Castela atraioaria seu marido e o seu reino sabendo-o no fingimento de tudo ignorar! Quem o soube, Senhora, no foi a Rainha; foi a Infanta D. Beatriz de Portugal, amiga como irm de Madalena de Mendona, confidente dos seus pesares. A primeira e a maior traio seria para mim! disse-lhe a reprimir a onda de soluos que a afogava Senhora Infanta de Portugal suplicou, ajoelhando e tomando-lhe as mos guardai da Rainha de Castela o segredo que eu disse minha maior amiga e ela pela sua alma jurou guardar! Nossa Senhora me valha, que no devo nem posso cumprir a jura! E foi por essa amizade vossa, que dizeis tamanha, por este remorso do corao que eu tinha de vos deixar, decerto para sempre, sem vos beijar na despedida, foi por isto, a confiar cegamente na vossa alma, que eu vos pedi a jura! A tua amiga, Madalena, a ningum dir o que soube; mas a Rainha pode ter resolvido sair j para Valhadolid e mandar que os seus homens de armas se aprestem a partir, sem nenhuma delonga. Madalena ergueu-se num repelo convulsivo. A pobre Rainha-menina tremia tanto como ela. E eu, atravessando-me diante de vs, posso dizer-vos: Senhora Infanta de Portugal, minha amiga, minha irm, no deixeis que a Rainha de Castela mande chamar os seus homens de armas! Esto a os que ho de levar-me, e esses no sabem fugir. Ser uma aventura de morte! Mais sangue, senhora Infanta, maior luto para os vossos de Portugal e para os vassalos da Rainha, por causa de uma pobre noiva que nenhum mal lhes fez. D. Beatriz chorava. O seu corao mortificado transigia num impulso de d e numa fraqueza de medo. Deu uns passos vacilantes e deixou-se cair numa cadeira de espalda, a soluar baixo, reprimindo-se. Madalena correu para ela e outra vez se ajoelhou, beijando-lhe as mos. Pelo muito que tendes sofrido, perdo! Morreria eu, se o matassem, e vs, eu sei, tereis d de mim. El-rei entender que eu fui sabedora. H de supor Castela que eu vim proteger aqui, deslealmente, essa ousada aventura! murmurou, chorando. Senhora, no. Eu despeo-me de vs, como quem se afasta para sempre, mas a Rainha vai repousar como se nada soubesse. Perdoai-me. Bem vedes, Senhora, que s poderia causar estranheza que eu viesse contar Rainha um segredo de tamanho perigo. E se houver arrudo, briga que encha de alarme a povoao, queres tu, Madalena, que eu finja tambm que nada ouo e percebo?! Senhora, ento sede bem a Rainha de Castela e mandai prender-me, se eu ainda aqui estiver, e eu vos prometo que esta confidncia morrer comigo antes que cheguemos a Valhadolid. Deus tenha piedade de mim! Madalena, juras-me que no para mover traio a el-rei ou para afronta ao seu poder que a vm ou a esto esses ajudadores do teu noivo? Pela sua prpria vida, que eu tenho em maior apreo que a minha, vos juro diante de Deus. E como podes tu jurar assim por essa gente, que nem sabes talvez quem seja? perguntou-lhe numa estranheza tocada de suspeitas. Senhora, so cavaleiros fidalgos de Portugal os que a esto. Muitos, para te levarem? A mim me disse quem o podia saber que eram os que restavam daquela Ala dos Namorados, de que vs prpria me falastes aqui, no ms passado. Desses me tinha falado el-rei, nesses, com entranhado dio, falavam em Valhadolid alguns cavaleiros que puderam voltar da batalha real. Parece que j neste ms estiveram tambm noutra batalha, que foi em Valverde de Mrida. Desta mandaram notcia a el-rei a semana passada! Maior ofensa no cometimento por serem eles! E agora que no posso crer na tua jura, nem cumprir a minha! disse, levantando-se, cada vez mais velada e mais trmula. No podeis por serem eles! De tal audcia como dizem... Mais ho de querer que levar-te! Outro intento ser o seu, simulando que vm somente para ajudar o teu noivo! So cumpridores dos seus votos, e o que fizeram agora sei eu que foi unicamente para daqui me levarem. Meu Deus, no bastava ainda o que eu tenho padecido! Isso, Madalena, isso, por mais que tu digas, uma grande ofensa a el-rei e ao seu reino. E eu sou a Rainha! Tenho muito d de ti, mas preciso chamar algum. Os homens de armas que venham! Madalena abraou-se a ela de joelhos. Senhora, por piedade, no! O meu noivo aqui vir jurar-vos que mais nada intentam do que levar-me daqui! No faleis alto, Senhora, que a vossa camareira pode ouvir! Deixa-me! disse, repelindo-a. Ento me atraioais e sois contra mim! soluou, erguendo-se com nervosa energia Vou abrir eu aquela porta e, se chamardes, Deus ser ento por quem lho merecer. Correu para a porta que dava para uma antessala e abriu-a. Apareceu por detrs dela a veneranda figura de Mendo Rodrigues. Estais tardando, senhora! disse para Madalena. A juvenil rainha tremia num pavor de enlouquecimento, quebrada de todo o alento, a voz afogada na garganta, na impossibilidade absoluta de tomar qualquer resoluo. Fiz uma loucura! disse Madalena com rapidez febril, numa sufocao A Rainha sabe... Quer chamar! Senhora Infanta de Portugal invocou o velho numa voz abafada, adiantando-se respeitosamente Nada receeis por vs. Infanta portuguesa, heis de ser acatada, como se fosse aqui o pao do senhor rei D. Fernando, a quem Deus perdoe. Os homens da nossa terra que a esto nada mais pretendem do que levar esta dama. Por eles vos juro, senhora! Sois ento um fingido peregrino de Castela! disse D. Beatriz num pasmo de surpresa. Sou um velho cavaleiro de Portugal, que lealmente serviu o seu rei, e no jurou nem juraria prestar-vos menagem como Rainha de Portugal depois que vos fizeram Rainha de Castela. Os homens que a vieram so fidalgos jovens, provados nos perigos, cavaleiros que em nenhum caso atentariam contra uma dama. As monjas dormem tranquilamente e as vossas cuvilheiras esto fechadas nas suas cmaras. Houve quem surpreendesse e amordaasse os guardas daquela porta da vila por onde se pode voltar a Portugal. A ponte levadia desceu-se e os cavaleiros de aventura entraram. Pouco importa que vos diga de que modo puderam entrar. A vila adormecida no deu por eles. Est vigiado o quartel dos ginetes. Por qualquer alarme ser certa a luta. E ou todos ficamos c, ou a noiva enclausurada sair connosco. Mendo acercou-se mais dela e, dobrando-se, reverente, disse-lhe baixo, com afeto paternal, comovidamente: Defender-vos-ia, Senhora, a custo da prpria vida, se algum aqui fosse capaz de vos desacatar. Tenho razes de alma para o fazer! Num aturdimento dos sentidos, a rainha olhou para ele sem o compreender e, como se as foras lhe faltassem, caiu num escabelo. Senhora Infanta, permiti que venha prestar-vos homenagem meu sobrinho Ruy de Vasconcelos, da mais gloriosa ala de Aljubarrota, e como a filha de Portugal vos digo este nome. D. Beatriz estremeceu. Cobria o rosto com as mos ocultando lgrimas. Era este o desafogo daquela pobre soberana de treze anos, mulher sobreposse, na sua maioridade de amarguras. Alguns dos Namorados tinham entrado na cerca do mosteiro por uma porta escusa, que Mendo Rodrigues lhes abrira. Foram oito os que entraram e foi- lhes fcil surpreender e amordaar os nove besteiros que tinham a sua casa de guarda ao fundo da cerca. Quatro tinham j subido pela escada dos aposentos reais. O fingido monge apossara-se por astcia das chaves de todas as portas exteriores daqueles aposentos. Mendo Rodrigues saiu da antecmara real e foi chamar o sobrinho. D. Beatriz soluava baixo. Madalena acarinhava-a de joelhos. Vir a saber el-rei como isto foi murmurava num desalento infantil. Senhora, perdoai! Perdoai, mas a culpa foi toda minha, que no soube guardar do vosso corao de amiga o segredo que foi loucura dizer Rainha de Castela. Ruy entrou com Mendo Rodrigues. J no trazia o cobrejo de disfarce com que ocultara a sua armadura de cavaleiro. Madalena ps as mos contra o peito num movimento de supremo jbilo como se quisesse abafar algum grito do corao enlouquecido, e envolveu-o no seu olhar repassado de lgrimas, daquele choro que s se chora nas horas de inexcedida ventura. Senhora Infanta de Portugal disse o Vasconcelos, curvando-se como um corteso por mim e pelos fidalgos cavaleiros da Ala dos Namorados, a vs sado e depressa homenagem como dama que sois da mais alta hierarquia da nossa terra portuguesa. Senhora Rainha segredou-lhe Madalena numa tremura de santo e amorvel orgulho por aquele heri o meu noivo. Senhora Infanta de Portugal, minha amiga e a minha irm como dizeis, deixai que ele vos beije a mo. Madalena!... soluou baixo No posso, no devo. Senhora! disse Ruy, acercando-se mais e dobrando o joelho Pede a honra de vos beijar a mo quem se presa de ser inimigo formal de el-rei de Castela e nunca se dobraria diante da Rainha de altivo trono que sois nesta terra estrangeira. Madalena tomou brandamente a mo de Beatriz. O Vasconcelos esperava de joelho no cho. Ruy disse-lhe Madalena esta foi a mo carinhosa e amiga que eu tive em terras de Castela. Senhora Infanta de Portugal, Deus seja por vs e vos d a grande fortuna que mereceis, fora da herana que a nossa gente no quer nem pode reconhecer-vos. Beijou-lhe a mo. D. Beatriz estremeceu. Ruy ergueu-se e recuou uns passos. A Ala dos Namorados vai sair de Tordesilhas. A Rainha de Castela pode mandar que os seus homens de armas corram na sua perseguio. A ala no voltar as costas, porque no sabe fugir. Mas Ruy de Vasconcelos ousa pedir senhora Infanta que no deixe falar a Rainha antes que Madalena de Mendona tenha tido tempo de transpor as portas que do pra o caminho de Portugal. Meia hora chegar. Pelos Namorados, e pela minha honra vos juro que a ala ficar atrs da noiva roubada, esperando os homens de armas que a juvenil esposa de el-rei de Castela houver de mandar-lhe por desforo. Senhora, falai solicitou-lhe Madalena, muito debruada para ela. A Rainha no mandar os seus homens de armas contra vs respondeu-lhe sumidamente, numa voz que vinha afogada de lgrimas A Rainha nada sabe... Ir repousar... Senhora, Deus fique ento convosco disse-lhe o Vasconcelos comovidamente, retirando-se com o tio para a salazita contgua. D. Beatriz percebeu que se tinham afastado e logo em soluos, que a sufocavam, disse a Madalena: A Rainha ficar chorando. E amanh voltar para o ermo da sua corte estrangeira... Mais sozinha que nunca... Porque at tu lhe faltas, Madalena! Senhora, dai o vosso perdo noiva que de vs se afasta suplicou, abraando-se nela. Sim... A nossa Senhora te d bom futuro, noiva querida e linda, e de mim haja d pelo tanto que tenho padecido! Vai... E adeus para sempre! Levo comigo a vossa imagem soluou para no a esquecer nunca! Tem d da Rainha, quando de mim te lembrares, Madalena! Senhora, sim disse-lhe, beijando-lhe as mos fervorosamente. Adeus! Madalena correu para fora como entontecida. Deus sabe se eu no iria tambm com a maior alegria da minha alma! dizia consigo D. Beatriz, num confrangimento de pavor pelo futuro E nem l me tinham de querer! Ho de ter-me dio por essa coroa... De martrio, feita de ouro! E ficou-se a chorar.
* * *
Filha, que demora e que imprudncia a tua! disse-lhe a me numa tremura de receios. D. Maria de Mendona nem tivera nimo de ir cmara real despedir-se. Olhai que no tarda a hora em que a ronda ir correr os muros e as portas veio avisar o Provenal Era tempo de irmos, para no confiar demasiadamente no desleixo de vigilncia em que est a vila. Vamos, sim concordou Ruy Mas l fora devagar, para que se no v pensar que fugimos. No seria prudente vigiar a Rainha? perguntou baixo Mendo Rodrigues Ficarei eu at dar tempo que leves para fora das portas a tua noiva e a me. A Infanta no faltar sua promessa. Nem os seus desprecavidos homens de armas teriam tempo de chegar antes que elas tenham sado as portas. Tio, seria risco intil ficar. Foi tomar o brao de Madalena. Mendo acompanhou D. Maria de Mendona. Desceram silenciosamente a escada que dava para o jardim da cerca. Como tu tremes, meu amor! segredou-lhe Ruy. Tem nimo. Chegamos bem para te defender. Mas com a tua vida em perigo, e disso que eu tenho medo! balbuciou, muito chegada a ele como criana oprimida de susto.
CAPTULO IX O RAPTO DE UMA NOIVA
Resumamos como os Namorados tinham entrado em Tordesilhas. Ao sol-posto, antes de se fecharem as portas da vila, seis deles, sorte, tinham vindo com Ruy de Vasconcelos, a p entre a gente que voltava dos campos, com o disfarce j indicado em outro captulo; os arneses encobertos, as espadas muito cingidas ao corpo, verticalmente, o capuz gualteiro aconchegado ao rosto. E a pequena distncia uns dos outros, separados para no causarem desconfianas. Se um deles se tornasse suspeito, se o retivessem os da guarda, os outros acudiriam, e, desembaraando-se dos ferragoulos, forariam a entrada a um dos dois escudeiros que vinham atrs tambm disfarados, daria sinal com uma trompa de caa para os que estavam emboscados, j a cavalo e prontos a desfechar a toda a brida para se completar ento o empreendimento viva fora. No foi preciso. A to larga distncia da fronteira e to arredados do teatro das operaes, os chefes militares que havia em Tordesilhas tinham deixado afrouxar completamente todas as precaues de guerra. Na sua vida remansosa, os moradores dormiam a noite a sono solto. As ltimas hostilidades tinham sido longe dali. Pela fronteira do Guadiana a breve campanha de invaso do Condestvel; pela raia de Serpa uma audaciosa entrada dos Vasques da Beira, que assolaram com os seus quinhentos homens as comarcas de Aronche, Cortijana e Arancena e afinal derrotaram umas tropas de Castela, que vinham para os rebater. Naqueles fins de 1385, a grande concentrao de foras da hoste real estava-se fazendo na Galiza com receio de uma invaso inglesa pela baa de Vigo. O duque de Lencastre no desistia das suas pretenses ao trono de Castela e sabia bem que podia contar com a cooperao dos Portugueses. De modo que, assim afastada do teatro das hostilidades e a cinco lguas de uma forte guarnio militar como era a de Valhadolid, compreende-se bem que a gente de Tordesilhas estivesse desprecavida. Nem em sonhos de pesadelo poderiam sequer imaginar aquela atrevida algarada dos Namorados para o rapto de uma noiva.
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Dentro da vila, os escudeiros e quatro Namorados ficaram disfaradamente pelas imediaes da porta por onde tinham entrado. Ruy e mais dois tinham ido para uma alameda que o Provenal lhes havia indicado. Ali esperariam por ele. Era a alameda que ficava a pequena distncia da cerca do mosteiro. Sabemos j que estiveram reunidos com Mendo Rodrigues e que este lhes deu as ltimas indicaes do plano, designando a entrada no mosteiro por uma porta pequena da cerca, que ele prprio iria abrir-lhes. Perto da meia-noite, as sentinelas dormitavam e as guardas dormiam a sono solto. Era o momento prprio para abafar a guarda da porta da muralha por onde os outros deviam entrar, pois que j a essa hora tinham de achar-se a menos de meio quarto de lgua, esperando. Munidos de cordas e mordaa, p ante p pelo muro, os dois escudeiros lograram acercar-se da sentinela entontecida de sono e um abraou-a pelas costas enquanto o outro lhe deitou as mos garganta. No o mataram porque tinham recebido ordem de Ruy de Vasconcelos para no empregar as armas seno nalgum lance de perigo. O pobre soldado bisonho ficou tolhido de medo e foi coisa fcil amorda-lo e prend-lo com as cordas a uma das ameias do muro. Entretanto, em baixo, o Vasconcelos, o Magrio, Vasco Eanes e mais dois tinham entrado na casa da guarda e, com igual facilidade, surpreenderam os besteiros que estavam dormindo a sono solto. A alguns os amordaaram ainda mal despertos, e a outros, de sono mais leve, que logo acordaram e se dispunham a resistir, os ameaaram de morte. E tanto a surpresa os encheu de terror, que ficaram num completo esmorecimento de nimo e, sem nenhuma resistncia, se deixaram amarrar. Nem eles podiam sequer perceber porque mgico poder estavam ali dentro aqueles audaciosos chamorros. Puseram-lhes mordaas e fecharam por fora a porta da casa da guarda. Correram ento a descer a ponte levadia com o menor rudo possvel. O Provenal tinha ficado a distncia, observando, para dar aviso da aproximao de qualquer ronda. Depois abriram os portes, correndo os enormes ferrolhos e rebentando-lhes os fechos. As chaves estavam em poder de D. Pelayo Munoz. Os vinte e quatro da ala estavam j esperando, a menos de meio tiro de besta. Correu para eles o Magrio a dizer-lhe que podiam entrar. Apearam-se e foram entrando a um por um, de cavalos mo, para evitar tropel que pudesse alarmar a vila. Os escudeiros ficariam de guarda s portas. Eram eles que traziam os cavalos para os que j l estavam dentro e para as duas damas. Catorze dos Namorados, que o Provenal guiava, foram postar-se na retaguarda do quartel dos ginetes, e dez se destacaram para a alameda vizinha do mosteiro. Comearam ento a ladrar furiosamente os ces de guarda do palacete solarengo. Est-lhes a dar o faro de Aljubarrota, queles excomungados! dizia para outro o Lobeira, gracejando. Do mais que se passou j ns dissemos.
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Quando a noiva j estava fora dos muros da cerca, o Magrio foi apresentar- lhe as suas homenagens. Senhora minha, a ala sada a rainha das belas, que em Lisboa aclamou, e pe aos vossos ps os seus mais fervorosos votos. Assim reduzida, a ala acabar e ser este o seu ltimo feito de aventura. Senhora, que vo convosco os anjos vossos irmos. Ficais, senhor lvaro Coutinho?! perguntou-lhe numa comovida estranheza. No tencionava ficar... Mas preciso conter aqui os madrugadores de Tordesilhas e dar tempo a que no possam ir vossa perseguio os ginetes de Castela. Madalena seguir com alguns dos nossos acudiu Ruy Eu tenho de ficar com os que tanto se arriscaram por mim. Isso no ficais, que no queremos nem o consentimos ns. Falo em nome de todos. lvaro Coutinho, seria desdouro para mim! No percais tempo. O vosso dever agora ir com estas damas para as defenderdes. J no careceis de mostrardes que sois homem destemido. Ns l iremos ter, quando vos julgarmos a trs ou quatro lguas daqui. Agora, adeus, e at ento, se puder ser. Vede se fazeis alguma imprudncia observou-lhe. Coisa de nada. Fazer madrugar os de Tordesilhas, j que ns passmos a noite em claro, e deix-los na certeza de que no foram salteadores os que vieram buscar a noiva de Ruy de Vasconcelos, mas companheiros seus da Ala dos Namorados. At logo. Ruy teve de transigir com imensa satisfao de Madalena. Minutos depois, um grupo de cavaleiros saa da vila por aquelas portas de que se tinham apossado os mais belos paladinos de aventura que teve ento a Pennsula. Formavam esse grupo Mendo Rodrigues, Ruy de Vasconcelos, quatro dos seus da ala e dois escudeiros. Entre eles, em cavalos de sela, Madalena e a me. Numa casa baixa, a um recanto da fachada principal do mosteiro, a guarda maior dos besteiros dormia tranquilamente.
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O Magrio disse aos que tinham ficado na alameda: Vinde comigo para vos juntardes aos catorze que esto vigiando o quartel dos ginetes. Foram, e l os encontraram silenciosos e impacientes. O Provenal estava com eles. O Magrio chamou-o de parte. Vamos l ver se o Munoz de Leon y Bullones j acabou de cear. Quero ganhar-lhe a aposta das guedelhas. A outra da vida lha dispenso eu, salvo se ele teimar muito. Quereis vir? Vou. Tende pacincia; esperai aqui uns instantes mais, que eu no tardo disse o Magrio aos outros.
CAPTULO X A DESPEDIDA
Na salazita da hospedaria D. Pelayo Munoz estava ainda mesa com o seu colega D. Ramon Cabeza de Vaca, nobre comandante dos ginetes da escolta real. Este Cabeza de Vaca era sobrinho de um chefe notvel que tinha morrido no ltimo cerco de Lisboa. Cearam regularmente; beberam com denodo pico e ficaram a caturrar, espera dos parceiros para o jogo, sem dar pelas horas que fugiam. Os criados e as raparigas tinham ido deitar-se. Num quarto prximo, o dono da hospedaria deitara-se vestido para acudir de pronto a qualquer chamada do espetaculoso D. Pelayo. Sou eu quem tal verdade te afirma, Ramon. Contra minha vontade, e por no seguirem os meus conselhos, deixaram os ginetes de tomar numas tantas galopadas aquela plaza fuerte de Aljubarrota. E o Munoz tossiu grosso, deu uma punhada formidvel em cima da mesa e prosseguiu: Por todos os lindos olhos de mulheres que tem Andaluzia, aqui te juro que os poucos chamorros sobreviventes estariam j de cabelos crescidos, crescidos e brancos de desgosto! Ento se inundaria de sangue a migalha do nosso planeta em que, por graa de Deus e de ns outros, tem vivido este povozito, que no vale dois plos da cauda do velho leo de Castela. E D. Pelayo Munoz passou a mo pela barba, solenemente. Mas o vinho de Tordesilhas quebrara-lhe muito a expresso altiva do olhar, e por mais que ele fizesse por acender nas pupilas a soberana ferocidade dos lees herldicos da tabuleta, os olhos insubmissos abatiam-se-lhe dengosos, como se no tivessem compreendido a significao daquelas palavras formidveis. O Cabeza de Vaca estava pior que o Munoz. Os olhos dele cerravam-se-lhe a espaos, de plpebras engelhadas. Olhai c, Munoz meu disse-lhe, arrastando muito as palavras, que lhe gorgolejavam, enrouquecidas Dizei-me se em Valverde de Mrida teriam feito grande falta quatrocentos ou quinhentos dos nossos ginetes. Homem, duzentos bastavam, se a contenda foi como se diz. Duzentos, no mais, compadre Cabeza de Vaca. Estivera eu l e, pelos meus formidveis avs, te prometo e juro que voltaria a Tordesilhas com o prprio Condestvel preso ao rabo do meu ginete, mais branco do que os pncaros de Sierra Nevada. E s outras caudas de todos os ginetes do meu esquadro, amarrados tambm, quantos dos tais Namorados houvessem sobrevivido. E mand-los- ia depois de presente a Valhadolid, para guadeiros da povoao e varredores do real palcio. Fica-te com esta, Ramon. Por todas juntas e por cada uma das onze mil virgens em particular, aqui o juro, amigo Cabeza de Vaca. Mas ainda para esta farronca os olhos lhe faltaram escandalosamente, numa expresso mansa como se fossem de perdigueiro velho. Acreditas, Ramon? perguntou, esticando os punhos. Acredito roufenhou o outro, perdido de sono. O que lhes vale a eles o medo que tm de se despegar para estes lados. Com os nossos ginetes, era vitria para muito escasso tempo. Em vinte ou trinta minutos, estariam a chorar pelas mes e pelas namoradas. Que dizes, Cabeza de Vaca? Digo que sim, Munoz. Homem, olha que este vinho de Tordesilhas faz securas! observou, dando estalos com a lngua Quero cuspir, e no posso! A mim, no. A mim no me faz securas. de famlia. Os Bullones cuspiram sempre, e por mais vinho que bebessem e por maiores perigos e terrores que Deus lhes pusesse diante dos olhos, para lhes experimentar o nimo. Securas e sono! rosnou o Cabeza de Vaca O tal Gasco que tu conheces, j c no vem! Munoz vou-me deitar. Homem, espera um pouquito. Irs deitar-te quando eu sair para rondar as portas das muralhas. Tinha feito teno de no ir, mas, j que no temos jogo, vou. Sozinho? Homem, que dvida! Nem era preciso rondar. Aqui em Tordesilhas, s se entrassem as estrelas, e essas mesmas por serem fmeas e por galanteio de ns outros. Mas faz-me bem um passeio depois da ceia. Irei. Ora o trangalhadanas do tal Gasco! Falta como um co mouro! Tenho pena que o no vejas. mais alto que a torre maior de Valhadolid, mas pareceu-me de nimo encolhido como qualquer pajem novio. Mentem muito os tais gasces! Mas para faanhas... Puf! Um olho dariam eles ao diabo para nos chegarem aos calcanhares! No achas, Cabeza de Vaca? Acho respondeu D. Ramon por entre dentes. J se no livram da m fama de terem sido os culpados daquela borracheira de Aljubarrota acrescentou Munoz com um grande gesto de lstima. Ouviu relinchos e o rudo de cavalos escarvando o cho; sobressaltou-se, ergueu-*e. Ramon, escuta! Parece que saram pr rua os ginetes dos nossos esquadres! O outro levantou a cabea, que encostara aos punhos, firmados na mesa. Cabeza de Vaca, os ginetes relincham! volveu-lhe Munoz, um pouco turbado porque j acordaram... Com a cantoria dos galos. Vamo-nos ns deitar, Pelayo e deix-los relinchar. E bocejou, preguioso. Mas aquilo percebe-se que na rua! observou D. Pelayo. Correu janela a escutar. O Cabeza de Vaca debruara-se mais para cima da mesa e adormecera. Munoz deitou a cabea de fora da janela e percebeu dois vultos. Quem vem l? perguntou, rouquejando. Um cavaleiro de Gasconha responderam-lhe em pssimo castelhano O maior admirador do muito nobre e valente D. Pelayo Munoz de Leon y Bollones. Ah! Sois vs, o Gasco tosquiado que faltou ceia! gracejou, debruando-se mais, j refeito de nimo. Eu sou como dizeis, e aqui venho com o nosso honrado troveiro de Provena a pedir-vos desculpa da falta. Eu vou mandar abrir a porta. Vinde antes vs c abaixo, D. Pelayo. No nos podemos demorar, pois nos ficaram guardando damas a quem no devemos faltar. Podereis vir connosco, vs que sois a flor da cavalaria galanteadora de Castela. Vinde e pelo caminho vos daremos uma surpresa. Pois vou. Deso j. Sempre os Bullones gostaram de surpresas. Retirou-se da janela e foi cingir a espada e pr o manto aos ombros, relanceando olhares de desdm pra o Cabeza de Vaca, j a ressonar em cima da mesa, estrepitosamente. Parece uma ronca de porco cevado! comentou Mais nasceu para frade que para guerreiro, este Cabeza de Vaca! Deixa-te para a ficar, que s o desdouro dos ginetes de Castela e do teu tio, que Deus haja. E desceu a escada com a rapidez de que era capaz depois de uma longa e pesada ceia. Entretanto, em baixo, o Provenal dissera baixo ao Magrio: Olhai, no v isto parecer uma traio! A outro qualquer cavaleiro, como os tem Castela, faria eu um desafio formal e lutaramos lealmente. A este farfante, no. Amesquinha os nobres e destemidos campeadores da sua terra. Este vai de chacota. D. Pelayo abriu a porta da travessa. Rpido e aventuroso como quem sois, ilustre Bullones! disse-lhe o Magrio. As aventuras foram sempre o meu forte respondeu, fechando a porta por fora. Sim? Pois ides ver a delcia de aventura a que vamos levar-vos. Haveis de rir perdidamente, quando ouvirdes a uma das damas a quem vamos fazer companhia, certo disparatado sonho que ela teve h duas noites e nos contou h pouco mais de duas horas. Sonho de amores? Convosco, D. Pelayo, porm em circunstncias muito extraordinrias! Imaginai que se julgou numa entrevista como no seu prprio jardim, alta noite, quando, como por encantamento, surgiram para a roubar, nem podeis pensar em quem? Os vinte ou trinta nobres de Gasconha que escaparam aos chamorros volveu-lhe o Munoz de mofa. Qual! Coisa de muito mais graa e desconchavo. Os Namorados chamorros que sobraram de Valverde de Mrida. Oh! Oh! Quem dera ento que isso no fosse um sonho! Pois o final ainda mais doido! Sonhou que esses atrevidos vos tinham vencido e de escrnio vos tosquiaram, para ficardes como eles. Isso devagar! Isso nem sonhado, cavaleiro de Gasconha! Loucuras de sonhos, senhor D. Pelayo Munoz interveio o Provenal. Mas s vezes notou o Magrio quer o diabo que os sonhos mais loucos sejam exatamente os que vm a sair verdadeiros! Qu! Pois credes?! interrogou o Munoz, encrespando as sobrancelhas, espessas como fartos bigodes. A vosso respeito, decerto no. Deus me livrasse de tal! Mas vamos indo daqui. singular! observou D. Pelayo, parando de ouvido escuta Outra vez relinchos de cavalos! E agora um rumor surdo de vozes! H de ser engano vosso. Vamos indo. Mais uma dezena de passos e entraram no terreiro que ficava por detrs do quartel dos ginetes. O Bullones recuou, esfregando os olhos, como se duvidasse do que via. Apesar da tenussima claridade das estrelas, percebia-se bem o pequeno esquadro dos Namorados, nos seus corcis de combate. Sem minha ordem... Os reais ginetes! tartamudeou o Munoz com o nariz clssico dos Bullones a passar do tom malagueta para o amarelo-cera. a realidade daquele sonho de que eu vos falei, farfante primaz das Espanhas! disse o Magrio, pondo-lhe sobre o ombro direito a sua mo possante, capaz de o fazer ir a terra. D. Pelayo sentiu-lha e turbou-se. Se abrires a boca, ainda que seja para apelidares os Bullones teus avoengos, ficas aqui espetado como um sapo! Traio! Traio rouquejou baixo o gro-capito. Castigo a um farfanto que . Os teus lees dormem e aqueles so os Namorados Chamorros, os daquela ala de Aljubarrota, que tu no quiseste bater com o teu esquadro. Namorados disse alteando a voz aqui tendes pelo nosso prisioneiro D. Pelayo Munoz de Leon y Bullones. E de mofa acentuou muito o Munhoz e o Bulhones. Caracoles! exclamaram os rapazes de brincadeira e quase em coro. Malvados! regougou D. Pelayo num estremeo. No te mexas, Bullones! Olha que vais a terra, como se tivesses em cima dos ombros as garras do leo castelhano. E logo alto para os outros: Havemos de lev-lo a Portugal e l lhe tosquiaremos a guedelha, bem que seja fora do tempo, at para a tosquia dos lees. Ouviu-se um sussurro de aprovao. Prefiro morrer! protestou o Bullones. No morrers. Vais montar a cavalo e ters por escolta a cavalaria jovem dos chamorros. Sede generoso, lvaro Coutinho pediu-lhe o Provenal No ponhais mcula nesta bela e audaciosa empresa, que no tem outra melhor nos romances de cavalaria. Pela minha amizade vos peo. E por ela tendes o direito de ser atendido volveu-lhe o Magrio, depois de uns segundos de reflexo Dizeis bem. Ide ento avisar os nossos. Eu aqui guardarei D. Pelayo. Num pasmo de entontecimento, sem poder cair em si, o fanfarro rangia os dentes, talvez de susto. O Provenal foi falar aos Namorados e todos concordaram afinal em que se no levasse para a tosquia o espalhafatoso Munoz. Tiveste bom padrinho, D. Pelayo. Vamos deixar-te, livre, mas ficars sabendo tu, para o contares aos teus ginetes, que os Namorados vieram aqui buscar certa dama noiva da sua terra, que estava encerrada no mosteiro real. E aos moradores de Tordesilhas dirs que os Chamorros Namorados no quiseram levar desta terra nem mesmo as tuas guedelhas. A guerra continua. Se tiveres alma para te desforares deste chasco, vai procurar-me onde quer que se haja de batalhar. Por mim quando quiseres. Manda-me algum mensageiro e serei contigo onde tu aprazares. Eu chamo-me lvaro Gonalves Coutinho. O Munoz ficara-se num pasmo atnito de imbecilizado. No sabia compreender como podia ter sido aquela audcia. Escudeiro, o meu cavalo! gritou o Magrio. E na fileira dos Namorados, o Lobeira gracejava: Escutai como cantam os galos de Tordesilhas espera que rompa a manh. E ns cantaremos tambm acudiu outro. Mas aqueles mariolas de c j esto casados moura redarguiu-lhe o Lobeira, suspirando com uns gestos gaiatos E ns vamos ir sem um roubo de beijos, ao menos, feito s novias claritas e s outras raparigas de Tordesilhas! O Magrio e o Provenal estavam a cavalo. D. Pelayo Munoz, ide acordar os vossos ginetes disse-lhe lvaro Coutinho, mofando Ns sairemos a passo para que nos possais alcanar. Reparai bem. Vamos daqui apenas vinte e seis dos Namorados com alguns pajens e escudeiros. Dizei-o aos vossos ginetes para os animardes. At daqui a alguns momentos ou at quando quiserdes. O Munoz deu um rugido de fera liberta, levou a mo ao punho da espada e correu para o quartel em brados de alarme. Ala dos Namorados! clamou o Magrio, tomando a bandeira das mos de Vasco Eanes A caminho; devagar. Pela nossa terra e pelas nossas damas! E todos em coro foram repetindo aquele moto que despertava Tordesilhas. s portas por onde os noivos tinham sado, os escudeiros esperavam a cavalo e incorporaram-se no pequeno esquadro. A meio quarto de lgua j se ouviam os toques de alarme dos sinos e das trombetas. Viam-se tremeluzir luzes pelos muros e pelas janelas altas de Tordesilhas. Sempre devagar, ainda mais devagar recomendou o Magrio de p nos estribos at ver se eles vm sobre ns. Mas na vila a surpresa de terror estonteara todos os espritos e quebrara todas as energias. Limitaram-se a correr aos muros preparando a defesa, sem saber quantos eram aqueles audaciosos e talvez na suspeita de que fossem eles as avanadas da hoste do Condestvel. Bullones estava delicioso nos seus rugidos de desespero leonino, a encrespar as barbas e a brandir nos ares a soberba durindana desfeiteada. Por Santa Maria de Valhadolid e por quantos Bullones tm assombrado Castela, que iria eu s contra eles, se no fora o d de deixar Tordesilhas ao desamparo! bramiu de olhos injetados. E teve um ataque de tosse pica.
CAPTULO XI TERRA DE PORTUGAL
Trs lguas a passo, e nem sequer tropel longnquo dos ginetes do Munoz! Era manh clara; vinha rompendo o sol. J no deitam c disse o Magrio L vem o teu lampadrio de ouro, santa bandeira! exclamou, erguendo-a mais. Fizeram alto, saudaram-na com as lanas comovidamente, e entoaram a trova que o Provenal compusera em louvor de Aljubarrota. Agora, amigos, rdea solta! gritou o Magrio. E aquele belo esquadro de devaneadores deitou por ali fora numa desfilada romanesca. Era j noite quando encontraram os noivos e a sua pequena comitiva. Iam j oprimidos de receio pela demora.
* * *
Tinham seguido pela margem esquerda do Douro, evitando as grandes povoaes. Ao cabo de trs fatigantes jornadas, de dia e de noite, entraram pela raia de Miranda. Ao outro dia celebrava-se na pequenina igreja de uma aldeolazita trasmontana o casamento de Ruy de Vasconcelos com Madalena de Mendona. O velho proco tinha oposto escrpulos ao casamento assim de afogadilho, mas Ruy resumiu-lhe lealmente a histria dos seus amores e os Namorados, trs de entre eles, fidalgos ilustres daquela provncia, deram pelos noivos a abonao da sua palavra jurada.
Nem seria preciso tanto. O velho padre era homem apaixonadamente dedicado causa de Portugal e a simples solitao daquela ala gloriosssima de Aljubarrota, Chegaria talvez para lhe vencer todos os escrpulos e desconfianas. O casamento foi de manh cedo, ao nascer do sol. Comeavam a fumegar as chamins do povoado; estavam brancos de geada os telhados da igreja e os cabeos dos montes. Assistiram os que restavam da ala, com a sua bandeira esfarrapada pelos virotes e desbotada pelo sol. Apenas trinta e enchiam a navezita. Foram padrinhos Mendo Rodrigues e lvaro Coutinho; D. Maria de Mendona era uma das madrinhas, a outra foi a Senhora da bandeira, aquela pequenina imagem antiga que o Magrio oferecera em 1384. Tocou por madrinha, como ainda hoje se diz. Foi uma coisa comovedora. Tinha lgrimas de enternecido jbilo aquela noiva, cada vez mais linda. A me chorava como tantas vezes choramos nalguma hora de suprema ventura. Madalena fez promessa de bordar a ouro um manto novo para a Senhora da Boa Fortuna, padroeira da aldeiazita. Parece que j estou a ouvir o primeiro beijo destes casados segredou para outro o cabecinha de vento do Lobeira. Chilreado como o que tu roubaste a certa rapariga de Porto de Ms acudiu o outro, sorrindo. Ora! disse-lhe quase ao ouvido De Badajoz at Valverde de Mrida roubei eu mais de trs dzias de beijos a trs carinhas de castelhanas, que eram de beijar e chorar por mais. sada, o Vasco Eanes disse, apontando os telhados brancos da igreja: At esta velhinha se vestiu de noiva! E acabou em casamenteira a nossa Ala dos Namorados! acudiu, pesaroso, o lvaro Coutinho. No dia seguinte, as despedidas. O esquadro minsculo iria para o Porto a juntar-se hoste do Condestvel. Ruy partiria para Lisboa com a esposa, D. Maria e o tio Mendo. Vinte dias depois, no velho palcio de Vasconcelos, a Santo Eli, D. Dulce abraava com igual fervor o filho queridssimo e a sua encantadora nora e ao fundo da escada nobre, o velhinho Gonalo Vasques gaguejava umas palavras de infantil jovialidade, com os olhos rasos de gua.
* * *
Foi um ms de encantos, com fulgores e enfloramentos de Abril, aquele Novembro de 1385 para os apaixonados noivos do palcio de Santo Eli. Como alheios a tudo no Mundo de sonho que para si tinham criado em xtases de inexcedido amor, nem o sol que eles viam e sentiam era como o dos outros, nem para os seus lbios famintos de beijos tinha frialdades agrestes aquele melanclico esmorecer do Outono. Traziam na alma uma primavera lucilante e clida, com alvoradas brias de luz e noites alagadas de luar! Ela ainda mais linda que dantes; ele trovador enamorado como nunca. Mas naquele viver paradisaco, de febre e de sonho, em que a imaginao, quase omnipotente, cria nas suas visualidades e arroubamentos alguma coisa de maior prodgio que as mais belas realidades do Mundo; naquela vida intensa e absorvente, os dias passavam breves como horas escassas e Novembro acabou de surpresa para eles. E por sinal uma entristecida surpresa. Terminava a licena que o Condestvel tinha concedido ao noivo afortunado e era dever partir. A hoste do Condestvel juntara-se de El-rei. A guerra continuava e as foras principais do Pas iam concentrar-se em Trs-os- Montes para cercar a vila forte de Chaves, ainda em poder dos partidrios de D. Beatriz, e cada vez mais arrogante com o apoio que lhe davam os homens de armas de Castela. Reclamava mais sangue a liquidao do dote da rainha juvenil, e para segurar melhor a coroa na sua cabea de triunfador era preciso que D. Joo I de Portugal conquistasse uma parte, ainda importante, da sua pequena monarquia. Nos primeiros dias de Dezembro, Ruy de Vasconcelos partia para Trs-Os- Montes. Pode imaginar-se a amargura da separao e a dor enorme de Madalena. Para as longas noites daquele Dezembro a tortura das saudades e a outra, ainda maior, dos receios por essa ausncia, que podia ser para sempre! Aquela guerra era de sanguinrio enfurecimento e de implacveis dios. Ir para ela era como ir para lgubres jornadas pelo caminho da morte. A 25 de Dezembro comeava o cerco de Chaves. Naquele dia, com o corao confrangido de saudades, duas mulheres choravam amargamente no palcio de Santo Eli. D. Dulce e Madalena. Foi assim a sua consoada naquele ano de tamanhas glrias para a Ptria e de to efmera ventura para a rainha, dos Namorados. que tambm as mulheres do um pesado tributo para a guerra. O tributo das suas lgrimas para esse longo mar de sangue, esparso no Mundo pelos dios dos homens e pelas inquas ambies dos estados.
CAPTULO XII A EMPAREDADA
Em Janeiro soubera D. Dulce, por intermdio do Bispo de Lisboa, em que convento da cidade se fora asilar aquela grande amargurada que era D. Leonor de Gusmo. A desditosa fizera o seu dito certo. Era uma emparedada. Confrangida de d por ela, a piedosa me de Ruy de Vasconcelos solicitou e obteve autorizao para ir ao convento falar pobre inclusa, que assim designavam tambm as emparedadas. Foi l, acompanhada somente pela sua antiga aia. Daquele enorme infortnio nem uma palavra sequer dissera a Madalena. Receberam-na com as mais cautelosas reservas, e a prpria abadessa a foi acompanhar ao claustro pequeno, em que havia dois cubculos para emparedadas. Antes, porm, lhe tinham exigido promessa jurada de no procurar dissuadir a inclusa de continuar naquela purificadora penitncia. A aia ficara esperando no locutrio. D. Dulce sentiu uma singular impresso de horror quando a abadessa lhe apontou o encerro embebido na parede, a um recanto sombrio do claustro. Nunca ali chegava o sol, por mais opulncias de luz que derramasse pelos telhados altos do convento! Mergulhado sempre numa lbrega penumbra, aquele claustro pequeno parecia o ptio estreito de uma bastilha. No recanto da emparedada havia sempre uma triste escassez de luz como se estivesse para anoitecer, ainda que o dia fosse alto e o cu tivesse esplndidas rutilaes de ouro. E para agravar mais as amarguras daquela penitncia, at o ambiente humedecido parecia chorar! Ao meio do terreirozito central uma bica soluava de alto a melopeia das suas guas. Numa tremura de pavor infantil, D. Dulce inclinou-se para a abadessa e disse- lhe baixo: Madre, pela divina Me de Jesus, desligai-me da promessa que vos fiz! Senhora, no posso... No devo! Olhai que, pelo tanto que tem sofrido, a misericrdia de Deus lhe haver perdoado as culpas, que nem afinal foram dela. Dizei-me se a desditosa fez j algum voto? Aquele; o mais duro de todos. Desligai-me ento da promessa jurada e deixai ver se posso convenc-la a sair dali. No insistais, senhora! Sei bem que esta vossa comunidade tem voto de pobreza, mas, para maior amparo de outras monjas que venham pedir-vos abrigo neste mosteiro, oferecia eu, em resgate da promessa que vos fiz, quanto fosse preciso para aumentar as celas e acudir runa em que vi uma parte desta remota edificao. A abadessa refletia de olhos no cho. Tanta era a pobreza da comunidade e to apoucados os piedosos donativos depois que as guerras tinham empobrecido o Pas, que at uma parte da igreja ameaava derruir-se e no havia recursos com que evitar o desastre. Cem dobras de ouro que fosse preciso gastar disse D. Dulce. Metade chegaria para impedir que venham abaixo a abbada e o arco da capela-mor. Tem padecido muito aquela desventurada! Deixai que eu a convena a despegar-se dali. Eu sei que se tm feito deixas e legados a emparedadas. Pois seria para o vosso mosteiro o que eu de todo o corao lhe poderia dar a ela. Pois que Deus nos perdoe pela boa inteno respondeu a abadessa num murmrio de voz e dizei-lhe, senhora, o que entenderdes de consolo para ela e para favor desta desamparada comunidade. Deixo-vos, e ali vos esperarei porta deste claustro. Madre, que Deus vos aceite essa tamanha obra de misericrdia. Ela est prevenida desta minha visita? Est. Mostrou-vos estranheza? Disse-me sumidamente que vos falaria; mas que no tardsseis muitos dias. E porque dizia ela isso?! Porque est na esperana de que Deus em pouco a leve para si. Talvez por se sentir doente e enfraquecida? Disseram-me que muitas vezes rejeita o po que lhe levam. Para acabar mais depressa! disse D. Dulce numa violenta opresso de alma. E de si para si, no ntimo do seu corao, sinceramente crente: Meu divino Jesus, se vs podeis querer que isso assim seja! Chamai por ela. Eu esperarei onde vos disse. E retirou-se lentamente. O horror que isto disse consigo D. Dulce, aproximando-se daquele encerro que valia uma sepultura. Leonor de Gusmo chamou numa tremura de voz, pondo na alta fresta de um palmo de largura os seus olhos rasos de lgrimas. No lhe respondeu. Deus meu, se ter morrido de fome como a filhita lhe morreu?! Chamou outra vez, numa angstia, pondo naquele nome a vibrao de um grito e o intenso fervor de uma splica. Apesar da tnue claridade daquele recanto, viu brilhar na fresta os lindos olhos de Leonor de Gusmo. Brilho intenso que se lhe acendia na febre de longos meses, dia a dia mais devoradora. Leonor, que desventura! soluou, notando-lhe as faces encovadas, emurchecidas, num amarelecimento como o da terra que o sol ressequiu e o vento espalhou pelos caminhos. Senhora minha! volveu-lhe sumidamente, num soluo Vindes despedida. Venho para vos pedir tudo, at pela memria da vossa filhinha, que Deus levou para si... O qu, senhora? perguntou por entre arrancos de uma tosse spera, a espedaar-lhe o peito. Que me deis o consolo de vos ver sair daqui. tarde! Agora s para mudar de cova... Leonor, como se a minhafilha fsseis... Outra como filha mereceis. Aquela que se julgava emparedada... Na corte de Castela. No, no! por vs que eu aqui venho, para mudardes de abrigo. Agora... S para mudar de cova repetiu. No credes ento no d que eu tenho de vs! Senhora, creio e bendigo o vosso nome. Aqui tenho pedido a Deus pela vossa felicidade... E pela boa fortuna do... O vosso filho. Cansava; a voz sumia-se-lhe, enrouquecida. H tempo... H meses... Aqui vieram pedir-me as monjas velhinhas que rezasse tambm... Em ao de graas... Por uma grande batalha... Que a nossa gente vencera... E por alma dos Portugueses que l tinham morrido. Depois ainda houve outra batalha em Castela. Perguntei se tinham morrido muitos... E disseram-me que de certa... Ala dos mais jovens... Muitos tinham sido mortos. Apertou-se-me o corao... Perdoai, senhora minha. No estareis agora aqui... Se o vosso filho... Vos tivesse faltado. Melhorou... Estava l. Era o que o meu corao depois me dizia. Deu em adivinho... O mal-aventurado! Ainda bem que o vosso filho voltou. Foi Deus por ele, e daquelas duas batalhas voltou so e salvo disse numa opresso de d. Pedi depois a uma das velhinhas que me contasse... O que se dizia da batalha... E ela contou-mo, falando muito de uma ala a que chamavam dos Namorados... Adivinhei logo que o vosso filho... Havia de ser dessa ala. Ainda ontem sonhei... At aqui dentro a gente sonha!... Sobre a banqueta de madeira... Em que aos poucos se dorme!... Sonhei que via o casamento dele... Com aquela noiva que lhe levaram! Sufocou-se num ataque violento de tosse. Que horror de tosse e com que resignado amor ela ainda o recorda! pensou D. Dulce. E logo, carinhosamente, mais encostada quela porta empedrada por onde s a morte poderia entrar. Minha pobrezinha, como sofreis! para ir... Mais depressa. Leonor! Que enlouquecimento o vosso! No vos merecia o desapego em que me deixastes, sem nenhuma notcia vossa! Senhora, sofri as maiores dores da alma... Que uma mulher pode ter! Lembrai-vos bem... Tive um grande amor de sonho... E perderam-mo! Tive um imenso amor de me... E a filha da minha desgraa... Morreu-me de fome! Quis servir-vos numa devoo humilde... E dei-vos maiores amarguras! No tinha mais que esperar! Se havia de ir afogar-me no rio, entendi que mais d teria Deus de mim... Se eu buscasse a morte nesta clausura maior. Chorou num choro convulsivo. No, no faleis assim... Que no podeis. Agora s uma palavra, e essa encarecidamente vo-la peo... Por todos os que mais tendes amado. Ficareis neste mosteiro, virei eu c ver-vos sempre que puder, estareis aqui como quem sois. Deixai que eu isto pea; auxiliai-me vs com uma simples palavra de consentimento, e amanh viro arrancar as pedras desta porta. Amanh? rouquejou Sim... Amanh... Que venham tirar daqui a emparedada de maior desgraa... Que ainda ter tido esta terra! Nossa Senhora vos d em resignao o pago deste consolo tamanho que eu sinto, filha adotiva do meu corao! Amanh cedo voltarei e ento saireis desse horror! Senhora misericordiosa, adeus. Amanh ser. Vou agora pedir que vos mandem algum alimento. Sim... Deixai-me agora uma nova... Para eu saber se o meu corao adivinhou tudo. Qual, minha filha?! Aquela noiva... Que me fez d... Aquela que se julgava emparedada... No pao real de Castela... Voltou? Amanh... Vos contarei... Tudo disse-lhe D. Dulce a custo, arrastando as palavras numas hesitaes de d. Tudo! Bem percebo... Senhora da minha alma! O meu sonho foi certo. Ainda bem que foi! Consola-me que seja ditoso... Algum que eu muito... E, a reprimir um ataque de tosse, se despediu com amargurado esforo. Senhora, at amanh. D. Dulce disse-lhe ainda umas palavras de carinhosa piedade e afastou-se a tremer, numa grande emoo de d. A abadessa esperava-a. Foram as duas para a casa do cartrio. Naquele mesmo dia se obteriam umas licenas indispensveis e na manh seguinte voltaria D. Dulce para assistir ao desemparedamento de Leonor, trazendo consigo a escritura dos donativos para os consertos do mosteiro e para o dote da reclusa. Despediu-se, pedindo encarecidamente que, sem delongas, mandassem algum alimento pobre emparedada(*).
[(*) A Inquisio tambm teve emparedados; mas ali o emparedamento era uma das mais monstruosas variedades de tortura que ela inventara ou tinha adotado, excedendo a fecunda atrocidade de quantos tiranos ficaram na Histria. A incluso inquisitorial era logo para morrer de p, nas agonias desesperadoras da asfixia. A inquisio de Lisboa foi instalada com a secretaria, os seus arquivos, os seus tribunais, os seus crceres e o seu inferno de torturas nos antigos paos dos Estos, que foram residncia de prncipes e de embaixadores. Naquele mesmo local se edificou o teatro de D. Maria II. Quando se fizeram as obras desta edificao monumental ainda ali se encontraram esqueletos nos nichos dos emparedados. Nem as mais lgubres tragdias de Shakespeare, nem os mais pungentes dramas do corao humano, agora ali fingidos no palco, valeriam sequer um plido arremedo das outras que os trgicos do Santo Ofcio levaram dois sculos a idear e a pr em cena com aquela suprema realidade de dor e de sangue que os seus prprios arquivos registam. Cada processo um drama atrocssimo, e assim dezenas de miliares deles!]
* * *
No dia seguinte, voltou D. Dulce ao mosteiro com a escritura, o seu primeiro donativo em dobras de ouro e o corao num alvoroo de caridade por aquela assombrosa desventurada, que fora o primeiro amor do seu filho. Logo a abadessa lhe veio falar, mas com tal entristecido parecer, que se lhe confrangeu o corao. Senhora, no quis Deus que o vosso desejo fosse cumprido! Depressa, dizei! De manh cedo a foram chamar para lhe dar alimento. No respondeu, por mais que a chamassem! Vieram dizer-mo. Fui l; uma das novias subiu a um banco para a ver pela fresta alta. Estava como morta. Podia ter perdido os sentidos lembrou D. Dulce num desalento de alma. Isso me lembrou e mandei logo chamar quem esbarrondasse as pedras da porta. J no havia outra coisa a fazer-lhe seno ir abrir-lhe a campa. Estava morta! D. Dulce caiu de joelhos, numa convulso de choro. Tomara uma grande e misericordiosa amizade quela mulher de tamanho infortnio! Quis assistir e assistiu ao enterro daquela que fora uma das mais belas damas do Pao. Retirou-se, deixando o donativo que prometera para as obras do mosteiro. Entrou em casa numa mortificao de saudade e de d. Com aquela adorvel meiguice que era o supremo encanto da sua rara formosura, Madalena estranhou-lhe a palidez e os olhos ainda hmidos de lgrimas. Minha filha, de pesar por algum de m fortuna que muito sofreu e amou. Morreu? Sim, morreu! Velhinha? No. De pouco mais idade que vs. Pois, mesmo sem a conhecer, tambm a mim me faz d. E s hoje o soubestes? Venho do seu enterro na igreja de um convento. Era monja? Era emparedada. Depois, depois vos contarei o vale de lgrimas que este Mundo foi para ela. Tomou-a para si brandamente e beijou-a. Um triste conto de amarguras, que nem agora ser bom dizer-vo-lo, minha querida filha. No seria bom porqu, minha santa? Havia de entristecer-vos, e bem vos bastam as saudades, esposa sinceramente amada. Tantas saudades! disse-lhe, abraando-a. A outra que morreu, dama formosa do Pao, nunca teve marido e perderam-na! Dois grandes amores lhe encheram a vida. A um lho afogou a desgraa; ao outro, por uma filhinha pequenina, lho levou a morte! Filha pequenina... Morta! disse com um estranho confrangimento, empalidecendo H de ser a dor maior da nossa alma! Maior que nenhuma outra! E inclinando-se muito para D. Dulce, com enternecido desafogo lhe segredou alguma coisa de alvoroo que lhe enrubescia o rosto e acendeu uns fulgores de jbilo nos olhos, ainda belos, da envelhecida fidalga. Pois mandai-lho vs dizer lembrou a me de Ruy, abrindo num sorriso a carinhosa alvorada que subitamente lhe enchera o corao Ou ns ambas. Assim acudiu Madalena a sorrir As duas, para ele sentir melhor a boa nova. Dizem que as avozinhas so duas vezes mes. E beijou-a com uma infantilidade encantadora.
CAPTULO XIII A INVESTIDURA DE UM CAVALEIRO
Em fins de Abril, Chaves capitulava; em Maio, Bragana. O rei de Avis, como ainda lhe chamavam os Castelhanos, tinha de ir assim conquistando as terras carairias onde a bandeira da unio luso-castelhana, esboo dessa unio ibrica, profundamente detestada pela grande maioria da Nao, ainda no fora abatida pela pica lufada que se levantara de Aljubarrota. Em Maio, nova entrada dos Portugueses em Castela. Ciudad Rodrigo entrega- se, mas Cria resiste afincadamente a um porfiado cerco. No tinha ainda a ressurgida monarquia recursos que bastassem para as campanhas ofensivas em territrio estranho e os sitiantes de Cria, sem o dispendioso material necessrio para um cerco em regra, padecendo fome como se fossem eles os sitiados, tiveram de retirar para as suas terras, dizimados pelos assaltos inteis e pelas epidemias dos acampamentos. O Condestvel ansiava por batalhas campais; era, porm, outro agora o propsito dos Castelhanos. Encerravam-se nos seus castelos e praas fortes, preparavam a fome dos invasores, e deixavam-nos enfraquecer na demorada luta dos cercos. O prprio rei de Castela resumia o plano adotado numa carta que de Valhadolid escreveu para a cidade de Mrcia. Era seu intento ejemplo de lo hecho por otros reys de Espana y Francia, prolongar la guerra sin presentar batalla, para que los invasores se fuesen gastando e consumiendo. Em fins de Junho, desfeita a hoste, cada mesnada e cada contingente dos conselhos recolhe s suas terras; El-rei volta em romaria a Guimares e o Condestvel vai em romagem, primeiro a Santa Maria do Meio, na Sert, e depois a Ourm. Dali partiria para o Alentejo esse que foi a mais singular e prodigiosa figura de paladino que ainda teve Portugal. Dividiram-se as trs ou quatro dezenas de rapazes que ainda restavam da ala pica de Aljubarrota. Com Ruy de Vasconcelos vieram uns poucos, incluindo o Magrio. Nos primeiro dias de Agosto, Madalena tinha uma filhita. Uma semana depois, era solenemente batizada em Santa Maria Maior. Puseram-lhe o nome da av. Assistiram cerimnia quatro Namorados. O Magrio foi padrinho. Ruy, um rapazito que se quer segredou-lhe com a sua habitual jovialidade Um rapaz para ser por esses tempos fora o namorado de alguma outra ala que recorde a nossa, quando j estivermos de ps para a cova.
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A guerra ia-se arrastando com largas intermitncias, mas no tinha fim. Naquele ano de 1386 o Duque de Lencastre, esposo da infanta D. Constana, filha de D. Pedro, o Cruel, de Castela, saa de Inglaterra para a Galiza com uma frota de 180 navios e 5000 homens de desembarque. Ia manter pelas armas os direitos da sua mulher ao trono de Castela. Entrou na Corunha, fez o desembarque muito ao seu salvo, e em pouco tempo se apoderou de Santiago e de outras povoaes importantes. Tinha muitos partidrios na Galiza por causa da sua mulher, como o rei de Castela os tivera em Portugal por causa da Infanta D. Beatriz. No 1. de Novembro, o duque de Lencastre e D. Joo I de Portugal tinham uma larga entrevista na Ponte do Mouro, entre Mono e Melgao. Na tenda real, aquela que fora tomada em Aljubarrota, combinaram os dois uma estreita aliana ofensiva e defensiva; e o casamento de D. Filipa, filha da primeira esposa do Duque, com o monarca portugus. D. Joo dar-lhe-ia o auxlio da sua gente de guerra para bater os de Castela, que, pela sua parte, estavam esperando o Duque de Bourbon com reforos de Frana. Em troca fez-lhe Lencastre a promessa platnica de quebrar nas suas mos, assim que fosse rei de Castela, as velhas pretenses dos seus arrogantes vizinhos e ceder-lhe Tui e outras povoaes importantes do territrio galaico, no vale do Minho. Em Fevereiro de 1387 efetuava-se no Porto o casamento de D. Filipa de Lencastre com D. Joo I, e em princpios de Abril as hostes aliadas de Inglaterra e Portugal transpunham a fronteira de Castela por Alcanizes. D. Joo I de Portugal pudera reunir uns nove mil homens para aquela invaso. As foras de Lencastre que eram j insignificantes. As epidemias e os desregramentos tinham reduzido a mil e duzentos homens os cinco mil desembarcados na Corunha. Cercaram e tomaram Benavente e outros lugares fortes, travaram escaramuas em campo aberto, mas nenhuma hoste real lhes ofereceu batalha. As onze letras de Aljubarrota vibravam alto por ali dentro como se fossem trombetas de guerra de um exrcito de trinta mil homens! Os de Castela preferiam as arremetidas pelas fronteiras mais desguarnecidas de homens de guerra. A gente do Mestre de Calatrava respondia tomada de Benavente com a tomada de Campo Maior. Sem recursos de abastecimento e com os inimigos encurralados nos seus castelos e povoaes muralhadas, rodos pela fome e dizimados pelas doenas epidmicas, as poucas tropas inglesas tiveram de retirar, atravessando o Douro, acima de Zamora. Depois de um combate na Aldeia del Obispo, reentraram os nossos em Portugal por Almeida. Estava concluda aquela breve e intil campanha. Perdido o sonho de uma monarquia inglesa na Espanha, entendeu o Duque de Lencastre que o prmio de consolao seria levantar no mais soberbo trono da Pennsula uma filha sua. D. Catarina de Lencastre, irm da rainha de Portugal, seria esposa de Henrique de Castela, herdeiro presuntivo da coroa. E assim foi. Antes dos esponsais, a soldadesca do Duque atravessou Castela com salvo-conduto para voltar ao seu Pas. Mas a guerra entre Portugueses e Castelhanos, essa no terminava. Ainda havia de durar largos anos em arremetidas recprocas pelas fronteiras, em cercos e assaltos de efmero renome, com horrorosas depredaes num e noutro pas. Batalhas mais nenhuma. Os de Castela estavam amarrados ao plano adotado pelo seu rei D. Joo I, falecido em Outubro de 1390. Badajoz foi tomada pelos Portugueses, Salvatierra e Tui por duas vezes. Como em 1385, Viseu foi posta a saque e incendiada. Enfim, no princpio de Junho de 1400 contratava-se em Segvia uma trgua de dez anos. Era o eplogo daquelas porfiadas guerras de trinta e dois anos. E no era ainda a consolidao da paz! O tratado definitivo s se fez nos fins de Outubro de 1411 e s em 1431 foi ratificado em Medina del Campo. S ento o rei Carlos II de Castela reconheceu os direitos polticos da dinastia de Avis! Custou! Apesar de todos os seus desastres, Castela levou quarenta e sete anos a convencer-se de que um contrato nupcial de dinastas no podia anular os trezentos anos de histria de uma nao. Era preciso reconhecer enfim aquele soberano e santo direito que os Chamorros tinham de ficar Portugueses dentro da sua terra de Portugal. Ia comear agora nos fastos do Mundo o grande ciclo da gerao de Aljubarrota.
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Quando o tratado se assinou, tinha j cabelos brancos aquele rei que fora o Messias de Lisboa. Os rapazes imberbes da Ala dos Namorados, esses eram j cavaleiros de provada experincia e amadurecida idade. Teria enfim chegado um largo perodo de repouso, se outra ala de sonhadores no viesse para substituir aquela do estandarte da cor do mar, j no caminho da velhice. Dos sobreviventes daquele eterno dia de 1385 o mais novo tinha 43 anos. Dos velhos que neste romance conhecemos, um s teimara em viver, apesar de quantos infortnios lhe tinham alanceado a alma. Era Mendo Rodrigues. Mirrado, trpego, a mmia e a sombra do que fora, mas vivia. D. Dulce e D. Maria de Mendona, o tanoeiro Afonso Eanes, o Gonalo Vasques e a tia Lourena tinham falecido durante os ltimos vinte anos. Em 1405 D. Leonor Teles morrera no seu encerro de Tordesilhas, lembrada somente pelos que tinham o direito de a odiar. Deixemos os mortos em paz e vamos procurar os vivos que mais nos podem interessar. Entremos no velho pao de Santo Eli. Estava-se a 14 de Agosto de 1411. Abriram-se de par em par as portas seculares e os criados vestem os seus melhores trajos; entram ali damas da maior nobreza de Lisboa, fidalgos da mais altiva estirpe com a sua comitiva de escudeiros, pajens e donzis. Em tudo e em todos uns grandes ares de festa. No terreiro, em frente, magotes de mendigos de curiosos esperam pasmados; os alvissareiros para dar f de quem entra, os esfarrapados na esperana de alguma esmola generosa em que esse dia piedosamente se comemore. Subamos com a inquiridora audcia de um reprter, para indagar a razo daquele aspeto festivo. na soberba sala de armas que se faz a receo solene. Da Ala dos Namorados esto ali alguns que j tm filhas senhoras. De vrias referncias dos convidados se depreende que vo dar a investidura solene de escudeiro de armas a um filho de Ruy de Vasconcelos, que na vspera fizera catorze anos. Do casamento de D. Madalena havia duas filhas, j senhoras, ambas muito mais velhas que o rapazito e uma delas, a que nascera em 1386, j casada havia trs anos com um fidalgo do Minho. lvaro se chama o nefito. Fora seu padrinho o aventureiro Magrio, de quem havia largos anos se no sabia o paradeiro. Nem dele nem de Vasco Eanes da Costa, que com outros cavaleiros, mais dez, tinham partido do Porto para acudir ao apelo de certas damas inglesas, ofendidas por algumas grosserias de fidalgos seus compatriotas. Fora uma aventura de cavalaria andante, que a imaginao do povo j tinha envolvido no luar prodigioso das lendas. Afianava-se que tinha sido brilhante e de radioso triunfo para os nossos aventureiros o torneio de desforo das damas afrontadas. Todos os que voltaram deram envaidecida notcia da faanha e falavam com assombro da galhardia audaz do Magrio e de Vasco Eanes no famoso torneio de Londres. Movidos pelo seu gnio aventureiro nem todos voltaram. Dizia-se que os dois, j muito nossos conhecidos da Ala dos Namorados, tinham ido correr aventuras pela Flandres e Alemanha.
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Ruy tinha ido buscar o tio Mendo. Era ele quem havia de apadrinhar o novo escudeiro. Entretanto descerrara-se o altar, erguido de propsito no topo da sala de armas. Os pajens acenderam os crios e um padre senil, de alva e estola, ajoelhou em face daquele altar improvisado. Ao p da me, ainda formosa, e das duas irms, lindas como fora a me, lvaro de Vasconcelos com as suas vestes de pureza, saio justo de linho, alvo como a toalha do altar e como a plumagem dos cisnes, esperava que o seu apadrinhador chegasse. Em volta dele, as donas e donzelas da mais assinalada nobreza; donzis e escudeiros sem penugem de barba, figuras gentis de uma grande gerao de adolescentes. Apareceu porta, amparado ao sobrinho, a figura singular de Mendo Rodrigues, o cavaleiro monge de oitenta anos. Do rosto amarelecido e queimado, como as esttuas dos profetas na portada das catedrais gticas, desciam-lhe a ondear sobre o peito as barbas brancas de neve. Deram por ele num estremecimento de comoo e foram todos ao seu encontro. Beijou-lhe a mo o novio da cavalaria tradicional e ajoelhou-se diante dele. Deus te abenoe, jovem, para honra dos teus e glria maior da nossa terra disse, inclinando-se para ele enternecidamente. Depois D. Madalena entregou ao velho uma espada curta, pendente de uma charpa. Com as mos numa tremura de octogenrio, Mendo dependurou a espada ao pescoo do donzel. Encaminharam-se para o altar. O nefito desprendeu a espada da charpa, a tremer de comoo, e apresentou-a ao sacerdote, ajoelhando. O padre abenoou-lha e passou-a s mos de Mendo Rodrigues. lvaro de Vasconcelos, aqui vo-la restituo para ganhardes com ela as esporas doiradas de cavaleiro disse-lhe numa voz cansada e tremente A do teu pai ajudou a salvar Portugal no cerco de Lisboa e a ergu-lo coberto de glria na batalha de Aljubarrota. Jovem, que pela honra do teu nome e pela santa bandeira da nossa terra, a tua pequena espada venha a espelhar o brilho da outra, que h de ser o teu maior patrimnio onde quer que for preciso manter altas as tradies da terra portuguesa. O donzel volveu-lhe sumidamente com a voz a tremer-lhe nos lbios, numa perturbao muito comovedora: Tio e senhor, assim ser, e pela minha alma e na presena de Deus vos prometo. Escudeiro de armas, Deus seja por ti. Beija as mos da tua pobre me e senhora, essas mos carinhosas que vo cingir-te a espada, smbolo de um dever entre os dois maiores amores humanos o das nossas mes e o da nossa terra. Bateu-lhe com a palma da mo na face, brandamente. Senhora, cingide-lha disse para D. Madalena. E foi a chorar que lha cingiu, sabe Deus com que nsia de quebrar o cerimonial para apertar o filho contra o peito e cobrir-lhe de beijos aquele rosto que a solenidade da investidura tinha feito desmaiar. O pai, profundamente comovido, vestiu-lhe o arns; das senhoras presentes, as mais jovens afivelaram-lhe os braais e foram as suas lindas irms que lhe puseram as esporas de prata. Nobres senhoras, e vs, senhores, deixai que entre um antigo da Ala dos Namorados disse da porta algum num vozeiro muito conhecido de Ruy de Vasconcelos. lvaro Coutinho! exclamou, indo para ele de braos abertos Dom cavaleiro desaparecido, em boa hora vindes! Abraaram-se. Estavam j ao p deles, numa grande emoo de surpresa, os quatro convidados que tinham sido da ala. Cumprimentos breves para no demorar a apresentao do recm-chegado. Vasco Eanes? Andou a correr Mundo comigo. No tardar c seno algumas horas. Fizeram-se as apresentaes. O vosso filho, o meu afilhado disse alegremente o Magrio Escudeiro de armas, j sei. Disseram-mo ali fora os criados. E j tenho um neto pequenino informou o Vasconcelos, sorrindo. Santo Deus, que muito tempo corrido! A Ala dos Namorados j tem netos! E mais alguns cabelos brancos gracejou o Vasconcelos. E so j avs as noivas daquele tempo! disse-lhe do lado a Madalena. S se os netos o jurarem, senhora minha, pois que os meus olhos no querem cr-lo volveu-lhe o Magrio, galanteador. lvaro Coutinho, espelho de cavaleiros destemidos, honrai vs o meu escudeiro de armas, pondo-lhe o bacinete. J estava para vos pedir respondeu, jubiloso Mas, perdoai a ousadia, senhora minha disse para Madalena e permiti que lembre a falta de mais uma madrinha para este gentil escudeiro, fiel retrato de outro com quem tomei conhecimento h uns bons vinte e sete anos. Madrinha! repetiu ela tristemente, supondo que o Magrio aludia a D. Dulce. Sim, senhora minha. Aquela bandeira velhinha, que as vossas mos bordaram e foi connosco a Aljubarrota, a Valverde de Mrida e ao noivado de Tordesilhas. Olhai, est ali, recatada, por detrs daquele altar. Pois deixai ento que eu v busc-la, para que seja ela a padroeira do vosso escudeirinho. Com muito gosto aquiesceu D. Madalena. Tenho saudades dela. H de conhecer-me ainda. E foi busc-la enternecidamente. Tinha-se esfiampado mais e o tempo mais ainda lhe mudara a cor; era um santo farrapo desbotado. Ergueu-a de alto por cima do escudeiro de armas. A tua gloriosa madrinha, lvaro de Vasconcelos. Para a lembrares um dia, quando fores de outra ala maior, noutro Portugal de mais alta fortuna do que o nosso era antes de Aljubarrota. E assim como a imagem de um altar, por muito pequenina que seja, ou uma relquia das nossas mes, por insignificante valor que tenha, nos lembram a religio em que nos crimos e o mais santo amor que tivemos, assim este pedao de seda em farrapos te deve recordar, lvaro de Vasconcelos, a maior glria que ainda teve o nosso esforo e o mais sagrado amor que ainda houve nesta terra! Inclinou mais a bandeira e o adolescente, numa tremura de enternecido, ajoelhou e beijou devotadamente os farrapos da bandeira. lvaro de Vasconcelos, faz hoje vinte e seis anos que foi Aljubarrota! Deus permita que em outro assinalado feito hajas de ganhar as tuas esporas de cavaleiro. Impresso comovedora, enorme. As senhoras e os que foram da ala tinham os olhos rasos de gua. Um frmito heroico sacudia a musculatura daqueles homens.
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Anoitecera. Vasco Eanes j estava presente. Chegara de tarde e assistira ao banquete de gala, depois de um torneio de escudeiros jovens no terreiro do palcio. A pedido das damas, o Magrio estivera contando os pormenores do famoso e j lendrio torneio dos Portugueses em Londres. Dos Doze de Inglaterra, como se ficou denominando aquela tradio, talvez o ltimo romance vivido da cavalaria andante. Fomos gentilmente favorecidos pelas ilustres damas que desafrontamos e, bem que duas delas no tivessem muito porque se ofender, pois eram desenganadamente feias, a todas prestmos homenagem pelas suas condies e fidalga origem, como bons galanteadores de Portugal. Duas me acarinharam a mim, com insigne favor e me lavaram as mos em gua de cheiro! Entendi que isto me faziam por ter sido eu quem derrubara o cavaleiro que mais as tinha desdenhado, um dos mais altos senhores da corte inglesa. Se foram as mais lindas... acudiu D. Madalena, sorrindo. E o velhaco do Vasco Eanes segredou o quer que fosse a Ruy de Vasconcelos. Eram as duas mais feias! respondeu o Magrio Com um delicioso gesto cmico de pesar Irms minhas tinham de parecer, se no fossem mais louras que o sol e mais brancas do que a neve. Todos os seus favores lhe agradeci de olhos baixos. Acanhamento vosso lembrou Ruy por afetuoso gracejo. Medo meu de me julgar formoso a poder de reparar nelas. Mas no julgueis vs, senhoras minhas, que todas eram assim. L as vi eu lindas como arcanjos; porm essas nem para mim olhavam. Era a sina que eu tinha! E assim como de Portugal me tinha abalado por j no haver guerra que prestasse, tambm de Londres fui para Flandres e Alemanha por no ter j ali aventuras que me prendessem. Nem vos sei dizer a conta dos desafios que Vasco Eanes e eu mandmos e recebemos, nem os combates em que entrmos! E sempre de to boa fortuna contra os homens como de igual desventura com as damas! Estou a entender que voltais solteiro disse-lhes um dos antigos Namorados. Tal como fui, e mais dei comigo em Itlia onde as damas so de enfeitiar e primam em amorveis generosidades. Deixarei, porm, estes lances da minha m fortuna para vos dizer coisas de envaidamento que ouvi por l. Sabei que muito se fala agora da nossa terra como de Nao jovem para grandes destinos! H anos havia l por fora muita gente que punha em dvida o nosso feito de Aljubarrota, e uns diziam que tinham sido ali mais de vinte mil dos nossos contra menos de trinta mil de Castela; outros inventavam que os arqueiros ingleses, muitos centos deles, que tinham vencido a batalha. O feito de seis mil e quinhentos contra os trinta e quatro mil de Castela o que a eles lhes custava a engolir. Em Londres tive de rasgar a pele s lanadas a um mentiroso, que dava a batalha vencida por setecentos ou mil arqueiros ingleses. Mas no Brabante encontrei um velho francs, que fora menestrel e era cronista, e esse me leu a narrao da batalha como lha tinham contado e ele a ps por escrita. Tem coisas falsas, mas justia nos faz. A respeito de nomes de c que o Francs errou quase todos, logo a comear pelo da batalha, a quem ele chama de Yuberothe. Custou-me a desencantar neste embrulhado nome o nosso de Aljubarrota! Ele a perguntar-me se eu tambm tinha estado na grande batalha de Yuberothe, e eu de olhos pasmados nele e quase a supor-lhe intentos de jogral escarninho, a quem, pela sua velhice, me no fosse dado castigar! Riram.
CAPTULO XIV O SONHO DE UMA ODISSEIA
Escutai agora uma nova que me fez voltar mais cedo a Portugal. Ides talvez cair das nuvens. Pois aqui nos tendes espera da surpresa, meu querido lvaro Goutinho disse-lhe Ruy. Estive com o nosso Vasco Eanes na cidade de Veneza, maior, mais poderosa, mais rica do que Gnova. Uma bela e opulenta cidade de marinheiros e de mercantes! Muito me admirou o seu poder e as suas riquezas, bem que por vrias vezes ouvisse falar aos tantos Genoveses que vivem em Lisboa. (*)
[(*)O Das colnias estrangeiras, ento residentes em Lisboa, a dos mercadores e artistas genoveses era a mais numerosa. J antes da guerra com Castela as relaes comerciais da capital com a Flandres e a Itlia eram de tal valia que, por algumas vezes, estiveram no Tejo quinhentos navios mercantes daquelas nacionalidades.]
Fizeram-me inveja pela nossa terra, as potentes armadas de gals que o povo de Veneza trazem nos mares! Por elas se tem feito opulenta e temida, pois na terra italiana pouco mais do que uma cidade! Se esta nossa Lisboa pudesse imit-la... Se um dia Portugal tivesse tambm poder semelhante no mar! Mas isto no passa de sonho, bem que algum feito grande esteja na mente de El-rei e do seus conselheiros. No adivinho qual! acudiu Ruy com estranheza. Pois em Veneza se desconfia que El-rei est no propsito de algum assinalado cometimento por mar! Por tal se no deu ainda! objetou-lhe o Vasconcelos. No ser ento verdade que El-rei, de h trs anos para c, tenha mandado fazer muitas naus e gals, aqui, em Lisboa e Porto? Sim, isso verdade! respondeu Ruy lentamente. E no haja aumentado muito a chusma dos galeotes e do troo do mar? Tambm disso ouvi falar! E no ouvistes que muitas lanas e arneses mandara El-rei comprar a Inglaterra e a Flandres? De tal que ns no sabamos! disse o antigo carairo-mor de Lisboa. Pois tudo isto se sabe em Veneza, que por todas as naes tem agentes secretos e espies! E ento para qu todos esses aprestos?! perguntou o Vasconcelos. Isso que eles ainda l no sabem e pelo no saberem se deitam a adivinhar. Uns dizem que intentar El-rei a conquista do reino mouro de Granada, outros, que ser propsito seu ir tomar a Siclia, e ainda outros que talvez seja para ir contra o Condado de Holanda. Pois se at alguns, de mais desvairada imaginao, chegaram a desconfiar que tais aprestos navais seriam para ir contra Veneza, em razo das muitas riquezas que lhe chegam dos lados do Oriente e de l do cabo do Mundo! Talvez todas essas coisas no passem de castelos no ar, mas o certo que nos julgam seguros contra Castela e capazes de tornar agora Portugal maior para o lado dos mares! disse-lhe Ruy calorosamente A tendes o milagre que fez Aljubarrota! E olhai que no tudo. Por muitas vezes conversei com certo judeu mercador que viveu alguns anos em Lisboa e agora o mais rico de Veneza. homem de muito saber; fez longas viagens por terras de Mauritnia e do Oriente; e no sonhais sequer as maravilhas que ele viu e me contou! Um dia me esteve mostrando um grande pergaminho em que tinha o Mundo pintado, segundo um tal Marco Polo, viajante de Veneza que h longos anos faleceu.(*)
[(*) Tinha falecido em 1323. Fez a viagem por terra ao Extremo Oriente onde viveu largos anos. Foi o maior viajante da Idade Mdia e um dos maiores de todos os tempos.]
Eu pouco logrei entend-lo, e s me ficou de memria que a tal pintura do Mundo dava ideia de metade de uma lua cheia e que pouco abaixo de Marrocos estava o mar pintado de preto e lhe chamava o judeu o Mar da Noite. Pois foi ele quem me disse que j em tempo antigo certos mouros de Lisboa tinham navegado em busca daquele mar, e que cerca dele ficavam as ilhas Afortunadas que os nossos encontraram nos tempos do senhor rei D. Afonso IV. Em vez de ir sobre Granada ou sobre Veneza me observou o judeu melhor faria o vosso rei se fosse contra Marrocos, que l tem ao p da porta com as riquezas de Ceuta e o tal Mar da Noite, que eu no acredito impossvel de navegar. E com os olhos esgazeados para mim e os dedos recurvados sobre a pintura do tal mar, que parecia uma nuvem negra a cobrir metade de uma grande lua, terminou assim: Cavaleiro, quem sabe a que outro cabo do Mundo ir ter este mar?. Meteu-me outro sonho no corao o velho judeu e senti-me namorado de outro moto! Cavaleiro no j andante, mas navegador para a cruzada do Mar da Noite? disse o Vasconcelos com um sorriso, a fingir que a sua prpria alma no estava tambm j tocada pela irradiao daquele sonho. Seja para o que for, porm de mais grandeza que andar a escaramuar com quem j no quer dar-nos batalha. Aqui tendes porque vim, trazendo na alma a metade do moto do tempo em que ramos jovens. Hei de ir envelhecendo a sonhar! Como eu, como tantos dos nossos acudiu o Vasconcelos entusiasticamente E quando temos alma e fora para no adormecer com o sonho, por Deus que neste sonhar que se acalentam as grandes glrias e as grandes naes. Assim, levando o sonho diante de ns, muito se pode intentar, como faz hoje vinte e seis anos! Ora ainda bem que estais comigo! E se for preciso, forma-se uma ala de navegadores, e os velhotes da outra que h tantos anos se desfez, iro acabar no fundo dos mares como acabaram em Aljubarrota esses que jazem no claustro maior do mosteiro de Alcobaa. E assim terminou, com esta viso de uma odisseia, aquele sero de picos devaneios, numa grande e amorvel saudade evocadora.
* * *
Passaram quatro anos. Os aprestos militares feitos em Portugal tinham sobressaltado uns poucos de Estados da Europa. Castela receava e mandou a Lisboa um embaixador para sondar os desgnios de El-rei e pedir-lhe que novamente jurasse a paz. D. Joo disse-lhe palavras tranquilizadoras e fez-lhe a vontade. Depois uma embaixada do Arago com suspeitas idnticas por causa do seu domnio na Siclia, e uma outra do rei mouro de Granada, por temer que fossem contra ele aqueles ruidosos preparativos militares, to desconformes com a pequenez do reino. Mas no ficava por aqui a fantasia dos noveleiros. Uns inventaram que a expedio seria para se ir apoderar da Siclia; outros que para uma nova cruzada Terra Santa ou para se apossar da Holanda, e at correu insistentemente que para a conquista da Normandia, uma das mais belas provncias da Frana, que eram todos aqueles espantosos aprestos. Era a alma da Nao a sonhar desvairados destinos depois do milagre pico de Aljubarrota. E a diplomacia astuta do Rei deixava criar e crescer estes boatos desorientadores com que a fantasia do povo se ia embalando. Convinham-lhe. O verdadeiro objetivo da expedio s o sabiam, combinados no mesmo segredo, El-Rei, a Rainha, os Infantes, um deles, D. Henrique, mais afervorado no cometimento que os dois irmos j homens; o Condestvel, consagrador indispensvel da empresa, e alguns do conselho de Estado e da intimidade do Rei. E para melhor sustentar o disfarce se engendrou uma alta comdia diplomtica, em que a soberana da Holanda se depressau a representar o papel fundamental, recebendo com aspereza um duro protesto de fingimento do Rei de Portugal contra as rapinas dos corsrios holandeses. Foi ento um judeu negro, israelita queimado pelo sol africano, troveiro e criado da rainha D. Filipa, foi ele quem atirou para o redemoinho dos boatos contraditrios, a inteno verdica do empreendimento, indicando-a numas trovas de feitio proftico. Seria um balo de ensaio, como se diria hoje, para avaliar o efeito daquele propsito, de que ainda ningum se lembrara? Seria; mas foi neste boato precisamente que a Nao quis acreditar. que ningum podia adivinhar o prodigioso destino que estava por detrs desse cometimento inferior conquista da Normandia, da Holanda ou da Siclia.
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Entrou a Primavera e veio com ela a peste. Ningum se deixou esmorecer por ela. O sonho, xtase enervador dos decados, , nas raas crentes e impulsivas, uma soberba e miraculosa fora. Fosse para onde fosse, Portugal tinha de embarcar. Era o seu destino. O crepsculo de Aljubarrota ia mudar-se em manh de uma nova era. A 10 de Julho chegava ao Porto, com a gente de guerra de Trs-os-Montes, da Beira e de Entre Douro e Minho, a armada do Infante D. Henrique e do Conde de Barcelos, seu irmo bastardo, j vivo da filha nica do Condestvel. O Infante D. Pedro foi noutra armada at fora da barra esperar o irmo. Tinha sido ele quem superintendera nos alistamentos da gente de guerra da Estremadura, Alentejo e Algarve. De velas empavesadas, bandeiras e balses herldicos esvoaando ao vento, as trombetas a vibrarem orgulhosamente o seu alardo de guerra, a soldadesca de librs garridas, com as cores distintivas dos seus chefes, e o sol alto e rtilo de Julho a lampejar no ferro brunido das armaduras, as duas esquadras entraram soberbamente at em frente do Rasteio e ali atracaram, ningum sabe porque sugesto de algum misterioso destino! Com aquela viso nos olhos, quem podia l pensar no luto com que a peste ia vestindo a gente de Lisboa? Se nem os prprios enlutados sabiam chorar! Pelo Mundo fora que era a sina.
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Mas a prpria Rainha fora tocada pelo flagelo. Estava em Odivelas com os primeiros rebates da peste. Seria um grande pesar para todos que a morte levasse aquela senhora de austeras virtudes, me e educadora de primorosa lio. Embora. A alma da Ptria ensaiava o seu voo de guia e as guias no choram, nem h crepes de nenhuma dor em que se lhes enleie a envergadura. Desfalecida no seu leito, a Rainha inglesa pensava na planeada expedio. Ouviu gemer o vento. De que lado? Aquilo, vento certeiro do Norte responderam-lhe. Bom vento para sair no rumo daquela empresa. E j com o corao a adivinhar-lhe a morte, a Rainha mandou que lhe trouxessem as trs espadas que mandara fazer para os filhos, os trs infantes j homens D. Duarte, D. Pedro e D. Henrique e das suas mos trementes lhas receberam eles, de joelhos beira daquele catre real, que ia mudar-se em leito funerrio. A Idade Mdia estava tambm moribunda, e dessa cavalaria romntica e sonhadora que exalara at ao fanatismo o culto da mulher endeusando-a, era Portugal, naquele derradeiro ciclo, a terra maternal e alma consagradora. Para a cruzada marroquina, a Rainha moribunda, filha dessa raa que ideou a lenda do rei Artur de Gales, armava do seu leito de morte aqueles filhos seus, vergnteas dessa rvore soberba que o Messias batalhador de Lisboa plantara na charneca ensanguentada de Aljubarrota.
CAPTULO XV A PRIMEIRA CONQUISTA
Dobravam os sinos do mosteiro de Odivelas. A Rainha morrera. Querida e venerada por todos, o choro e o luto no podiam ser em Portugal uma hipocrisia imposta pela pragmtica real. No eram. Mas um vento de sonho, de maior poder que o aquilo favorecedor, levava para longe as almas guiadoras da Nao remoada, e naquele lance de aventura j no havia dor que chegasse para trajar de luto a pgina em branco de uma nova Histria. Despiram-se os trajes de d, cingiu-se ao peito o ferro brunido dos arneses e, como numa aleluia, aps um dia de paixo, as bandeiras e os pendes subiram aos topes dos mastros da armada que atravancava o Tejo. Embarcar, partir, transmudar em voadeiras as velas dos navios, em constelaes de eterno fulgor, para uma civilizao mais alta num Mundo maior, os faris das armadas, era a sina e o destino histrico daquela Raa. A peste uivava nas ruas estreitas e nos bairros em que havia maior enxame de gente, o sol sumira-se num eclipse igual ao de 1384, mas o estado de alma era outro e ningum acreditou no vaticnio lgubre daquele ofuscamento de luz (*).
[(*) Foi em 7 de Julho aquele eclipse de 1415. No era total em Lisboa e comeou ao romper do dia.]
Da extinta Ala dos Namorados quantos haveria para embarcar naquela armada? Ruy de Vasconcelos, o Magrio e Vasco Eanes tiveram o cuidado de o indagar. Eram ainda vinte e trs, metade deles j com os cabelos brancos a denunciarem a passagem do seu meio sculo de vida. Na praia do Rasteio se fizeram as ltimas despedidas. Estava coberta de gente. Madalena foi tambm. Aquela armada levava-lhe o marido e o filho. Foi ento que o Rasteio comeou a ser prata das lgrimas, como longos anos depois lhe chamou um marinheiro cronista. E de lgrimas era ainda um sculo mais tarde, quando os sinos de Lisboa, num dobre de avena, tangiam dolorosamente pelos que partiam. Nos batis da armada muitos expedicionrios vieram a terra. O Magrio acompanhou Ruy de Vasconcelos e o afilhado. No vos amargureis, senhora minha disse lvaro Coutinho para Madalena Isto h de ser ida pela volta. Estavam-se j as espadas a enferrujar. Os Castelhanos ficaram arrumados, e como os Mouros j nos no querem visitar, vamos ns pagar-lhes sua casa marroquina as muitas visitas que durante sculos nos fizeram. Era piedoso intuito do Magrio amortecer nestes dizeres despreocupados a amargura que estava lendo nos olhos da envelhecida noiva de 1385. Senhora minha, que remdio agora seno trazerdes vs, as namoradas de h trinta anos, umas bnos de boa fortuna para estes avelhentados da ala jovem que se acabou? Sentimos todos que isto precisa de ser maior, e os ruos de Aljubarrota disse, apontando para os seus cabelos brancos tm de acompanhar por a fora os jovens como o vosso filho, namorados de outra ala, que talvez um dia venha a ser de navegantes. Seria vergonha que ficssemos, ns os que apenas comemos a ser velhos, quando ali, a bordo, est um fidalgo que ningum chamou e ningum queria levar, porque j fez noventa anos. Era aos quinze anos escudeiro de armas na batalha do Salado, e vai! O vosso marido tem cinquenta e dois e o vosso filho dezoito. Senhora minha, no choreis. A Nao precisa de ns, e as velas daqueles navios so asas com que a nossa bandeira pode voar, Deus sabe, senhora, at onde! Assim ser... Assim... volveu-lhe, afogada em soluos Ruy, adeus! Filho da minha alma! Nossa Senhora v convosco! Levantaram ferro os duzentos e quarenta navios da armada, gals, naus, fustas, navios de combate construdos nos estaleiros de Lisboa e do Porto, embarcaes de transporte fretadas na Galiza, na Biscaia, na Inglaterra, na Alemanha, e em Gnova. Levavam milhares de embarcadios e vinte mil homens de guerra. Nunca talvez das Espanhas sara uma frota de cristos assim poderosa. Aquela era a primeira cruzada martima desse escasso povo, que mal tinha um milho de almas e trinta anos antes apenas tivera seis mil e quinhentos homens para lhe vencerem a mais gloriosa e a mais santa das suas batalhas! Como as outras esposas e as outras mes, Madalena ficara na praia. A armada descia um pouco para o mar, mas ainda no sairia a barra naquele dia. Ruy e o filho, com os outros que tinham sido da ala imortal, iam na diviso da grande esquadra que era diretamente comandada pelo Infante D. Henrique. Percebia-se bem qual era. Os pendes e a libr dos vintaneiros e soldados tinham as cores distintivas do chefe branco, preto e verde. O que Madalena ignorava era que o grupo dos antigos Namorados se alistara naquela diviso da armada por saber que D. Henrique pedira e obtivera do pai o favor de ser o primeiro a desembarcar e acometer. Iam no ar, como asas esguias, as velas latinas das fustas, levantavam turbilhes de espuma os remos longos das gals, enfunava-se o pano das naus; o ao resplandecia sob o fogo doirado do sol e os balses voavam altos, como bandos de aves marinhas de alguma estranha fauna. Foi no dia de S. Tiago que todo aquele poder se meteu ao mar. Para Granada, para a Holanda, para a Normandia, para Siclia? Para aonde quer que fosse, at volta. Era aquele o primeiro embarque da alma portuguesa para uma histria maior nos destinos do Mundo. E foi talvez de ento, que em cada lar de Portugal, ao cerrar da noite, depois da ceia, se comeou a rezar piedosamente um Padre Nosso e uma ave-maria pelos que andavam sobre as guas do mar.
* * *
Era para o sul que eles navegavam. Seria, ento para tomar Granada ou para conquistar a Siclia? No era. A frota entrou na ampla baa de Lagos e ali souberam todos que iam tomar ao Mouro de Marrocos a cidade mais culta e mais opulenta que tinha o imprio mauritano. Contra Ceuta que era o cometimento. Chave do Estreito, golilha moura na garganta do Mediterrneo, onde o Turco ia aparecer ovante, Ceuta era ento, pelas riquezas e pelo esplendor, a Veneza de frica, como pelos encantos da paisagem, planuras marchetadas de pomares, colinas cingidas de vinhedos, era tambm irm de Granada. Dali viera a perdio da monarquia visigoda, dali as invases temerosas da Pennsula e do meio-dia da Frana, torrentes colossais de soldados e de sectrios, que transbordavam sobre Gibraltar, o cais muulmano das Espanhas, e tudo alagavam. E assim durante mais de seis sculos, bem que do mar de sangue das batalhas emergisse a grande e rtila civilizao dos califados rabes. Lida aos soldados a bula de indulgncias da Santa Cruzada, a frota navegou para o Estreito, depois de uma arribada a Faro. A cidade moura de Algeciras apavorou-se, e Gibraltar, moura tambm, preparou-se para uma vigorosa defesa. Depois de ter recebido mantimentos em Tarifa, porto da Espanha crist, a armada surgia a 12 de Agosto diante de Ceuta. J de sobreaviso, Salat-ben- Salat, governador da cidade, tinha chamado no seu auxlio as tribos guerreiras, os tigres brancos dos aduares e das montanhas sertanejas. A cidade, abroquelada de formidveis torres e muralhas, tinha l dentro uma sinistra multido de homens de guerra. Travaram-se escaramuas nas praias, mas o ataque em forma no se pde efetuar ento. Ao desabrigo, num ancoradouro pouco seguro, aoitado por um levante rijo de temporal, a esquadra teve de levantar ferro e sair para ir abrigar-se em Algeciras. Ainda pouco experimentados no mar, os nossos mestres e a maruja das naus no puderam aguentar-se com o vento e as correntes e foram dar com elas a Mlaga. Parecia mal agourada aquela primeira aventura, e no faltou quem esmorecesse. Estavam pouco afeitos s bravezas do mar. Alguns propuseram que se optasse pela conquista de Gibraltar; outros que se voltasse a Portugal. O maior nmero instava pelo feito planeado, seguindo o propsito inabalvel do Rei, dos Infantes e do envelhecido Condestvel. Afinal, a 20 de Agosto, a armada tornava a surgir em Ceuta, ento desoprimida de receios e sem uma grande parte dos seus tigres auxiliares, j regressados ao serto. A simular-se tranquila, a cidade iluminou-se naquela noite. Acendia as luzes para o seu prprio funeral. Ao amanhecer do outro dia se fez o desembarque, e logo ali se travou encarniada luta. O mouro de Marrocos foi sempre um batalhador de arrebatada bravura e na cidade ainda ficara uma forte guarnio. Nas primeiras arremetidas, sobre a praia lambida de ondas, um sudans de retinto negrume, fundibulrio atltico, de toda a mourama se destacava, derribando os homens de arcaboio de ferro com os seixos enormes que a sua funda de Hrcules fazia zumbir nos ares. Valia por muitos e era ali ele s, como se fosse uma estranha figura mstica, o combatente de mais temerosa intrepidez para os Portugueses. Dir-se-ia o gigante vindo de alguma fabulosa caverna daquele Atlntico Tenebroso, que as lendas rabes tinham cercado de pavores para alm da costa ocidental de Marrocos. Varou-lhe o peito nu a lana de Vasco Martins de Albuquerque, e o colosso foi a terra. Ento mais bravia arrancada dos Portugueses, e os Mouros comearam a recuar, enovelados. Na frente da sua hoste, com denodada bravura, o Infante D. Henrique apertou mais com eles. Cederam de nimo espavorido e fugiram para as portas de Almira, abertas para lhes dar entrada e abrigo. Entrou de roldo com eles a vanguarda do Infante. J tinham desembarcado tambm o povo de armas dos Infantes D. Duarte e D. Pedro e do Conde de Barcelos, bastardo do Rei. Arrombaram a machado outra porta da cidade. Nas ruas estreitas e nos terreiros dos bazares e das mesquitas, o combate volvera-se em nevrose de desespero para os Mouros vencidos. Muitos tinham logrado fugir pelas portas que davam para o serto e Salat-ben-Salat com eles; muitos, porm, ainda ficaram para morrer. O saque era da pragmtica guerreira do tempo, ainda que fosse crist a cidade vencida, quanto mais ali, ao impulso de um dio imenso que vinha da religio, da raa, e das chacinas histricas de seiscentos anos. A mortandade dos vencidos foi maior que a dos Castelhanos em Aljubarrota; enorme o esplio daquele emprio mercantil, que na opulncia precedera Veneza. Pisavam brocados de ouro e alcatifas de palcios magnificentes e punham ao pescoo colares de prolas e de corais os homens broncos da peonagem, filhos dos esfarrapados picos de Aljubarrota. Da soberba alcova, donde se viam bem as terras de Espanha, toda a guarnio fugira. Quando os Mouros voltaram do serto, num arranque de saudade e numa tardia resoluo de combater, entoando cnticos de guerra, j na torre albarr do castelo flutuava, sacudida pelas lufadas do serto, a bandeira de Lisboa, erguida ali pelo alferes da cidade, Joo Vaz de Almada. Escaramuaram inutilmente. Era j tarde para reaver a cidade perdida. Mudou-se logo em templo cristo a mesquita maior, sob a invocao da nossa Senhora de frica, simbolizada numa imagem que o Rei trouxera a bordo de Lisboa. E tanto em Portugal se acrisolara o culto da mulher, que at para o Rei e para o Condestvel era a divina mulher de Nazar a sua padroeira dileta. O mosteiro da Batalha tinha a invocao de Santa Maria da Vitria e o mosteiro do Carmo, havia vinte e cinco anos inaugurado por Nuno lvares, fora consagrado a Nossa Senhora do Vencimento. Depois da sagrao, a solenidade brilhante da cavalaria romanesca. Os Infantes pediram ao Rei que os armasse cavaleiros. Mereciam-no. Tinham sido egrgios batalhadores e dignos filhos do envelhecido leo de Aljubarrota. Depois tocou aos Infantes a vez de armarem cavaleiros os novos das suas hostes. Os Namorados tinham vindo com D. Henrique e foi a ele que Ruy de Vasconcelos pediu lhe desse ao filho a investidura de cavaleiro. Foi uma coisa comovedora. Em frmitos de comoo, os ruos da ala jovem de 1385, como dizia o Magrio, tinham os olhos rasos de gua. Eram juventudes apagadas daquela eterna data. E no minarete da mesquita dois sinos, que os piratas mouros tinham trazido de Lagos como trofus e os Portugueses tinham guindado para l, repicavam festivamente. Para os vencedores uma vibrao de gritos triunfais; mas para os vencidos, a caminho dos aduares distantes, num esmorecimento de alma, era uma voz de amarguras, como se aquele bronze dos nazarenos pudesse soluar as mgoas e as saudades que eles levavam! Estavam agora imensamente mais fceis para a Espanha a expulso do mouro dos rochedos de Gibraltar e a conquista da terra paradisaca de Granada. E o que a Europa nem sequer ainda podia sonhar era que por aquela parte da frica misteriosa se abrira o caminho prodigioso de uma nova civilizao. Naquele feito de um dia apenas, fazia-se a gnese de uma Renascena que a cronologia ligou a outro facto histrico,(*) mas que ali realmente alvoreceu.
[(*) A tomada de Constantinopla pelos Turcos em 1453]
CAPTULO XVI OS DERRADEIROS DA ALA
Nos ltimos dias de Agosto comeava o reembarque do exrcito para voltar para Portugal. Em Ceuta ficava uma forte guarnio. Na praia, o grupo dos Namorados esperava a sua vez para embarcar. Olhai que o senhor Infante D. Henrique traz algum grande cometimento de segredo! disse o Magrio para Ruy de Vasconcelos. Por que o supondes?! Porque em dois dias seguidos esteve encerrado com certo mercador judeu e mais dois escravos negros. Tive curiosidade de indagar porque seria, e disseram-me que os dois negros eram escravos do judeu e vinham a ser de uma tribo a que chamam azenegues. Pelos modos, o judeu muito costuma jornadear para os lados da costa donde se v o Mar Tenebroso. Heis de ver que o senhor Infante quer embarcar Portugal e que ainda ns outros, os ruos da Ala dos Namorados, teremos de andar cata das ilhas encantadas, da terra do fogo e do reino dos gigantes, at ir dar com os ossos a esse cabo do Mundo donde vm os melhores brocados, as mais lindas prolas, as pedrarias de maior brilho! Pois se assim for volveu-lhe o Vasconcelos entusiasticamente para isso mesmo ainda temos ns, os ruos de Aljubarrota, o primeiro moto da nossa bandeira velhinha de namorados. E eu dou mais um para fidalgo- navegador disse, apontando o filho. Nisto chegaram dois criados de Ruy com uma arca. V; ide com isso para bordo e que no fique l de modo que se suma. O vosso tesouro com os despojos do saque? perguntou de gracejo um fidalgo conhecido pelos ditos mordazes. O mais opulento tesouro dos envelhecidos Namorados retorquiu- lhe o Vasconcelos. Brocados de ouro, rubis, diamantes? Despojo de maior valor! Foi nos palmares de Ceuta que fizemos o saque. Vai esta. Arca cheia de palmas. Essa agora! objetou-lhe com um sorriso de incrdulo. Podeis ver acudiu o Vasconcelos, mandando abrir a arca. Estava cheia de grandes ramos de palmeira. J sei. Para as festas do dia de Pscoa na nossa terra disse-lhe o gracejador a duvidar do juzo do Vasconcelos. Para uma devoo piedosa, antes do dia de finados, estas palmas da nossa primeira conquista pelos mares. Foi promessa dos que ainda restam de certa ala jovem que h trinta anos acabou. Disse-lho comovidamente com os olhos rasos de gua. O gracejador afastou- se. Pouco depois os Namorados estavam a bordo. E a 2 de Setembro a armada largava para Portugal.
* * *
No dia 7 de Setembro de 1415, onze cavaleiros da nobreza do reino, quase todos eles j grisalhos, apeavam-se no terreiro do convento de Alcobaa, o maior e o mais opulento dos que tinha Portugal. Pediram licena para falar ao Dom Abade. Foram recebidos, e momentos depois iam ajoelhar na grande e altiva igreja dos monges Bernardos. Ouviam missa pelas almas dos tantos que a sua ala perdera na batalha real. Dali foram como em piedosa procisso ao grande claustro onde se tinham sepultado os seus companheiros em 1335. Levava cada um no brao um feixe de palmas, daquelas palmas africanas que tinham trazido de Ceuta. Na frente de todos, o Vasconcelos com a bandeira desbotada e em farrapos, a bandeira verde dos seus herosmos e dos seus amores, asa esgarada de uma guia que voara alto e ovante, desde os muros de Lisboa aos dois maiores campos de batalha da guerra contra Castela. Espalharam-se pelo claustro e foram ajoelhando e cobrindo de palmas as pedras das sepulturas. Depois o Vasconcelos, de p, disse alto numa tremura de comoo: Aceitai-nos esta homenagem, mortos da ala jovem de Aljubarrota! Destes a vida como heris pela vida da nossa terra, e Portugal salvou-se e Portugal j maior! Escutai bem: j maior! Da sua primeira conquista, ns, os velhos da ala, no trouxemos outro saque nem quisemos trazer para vs seno estas palmas, que vos eram devidas, mal-afortunados da ala jovem em que ramos todos irmos. Foi na onda do vosso sangue juvenil que se afogou a inqua ambio de Castela, e foi essa onda que nos levou para Ceuta, e quem sabe ainda at aonde, pobres Namorados a quem a morte no deixou noivar! Santa memria a vossa! disse numa tremura maior em que as palavras tinham um arranque de soluos. E aqueles envelhecidos guerreiros, arrogantes como lees, choravam como crianas. No dia seguinte foram para Aljubarrota. O que eles recordaram com envaidecida saudade por aquela charneca fora! Ainda se encontravam ossadas a branquejar por entre as urzes bravias, ferros partidos de lanas, arneses carcomidos de ferrugem. Subiram ao outeirozito que os Chamorros tinham tornado Sinai redentor de uma Nacionalidade. J l estava a pequenina igreja votiva do Condestvel, aquele templozinho rstico da evocao de S. Jorge, com a sua torrezita ameada, a simbolizar o feito. O que a fantasia lhes sonhou ali, como se dali se pudesse ver o Mundo! Olhos enganadores os meus! disse o Magrio Agora at me parece que daqui se avista o mar e que se descobre a bandeira de Lisboa sobre a torre maior do castelo de Ceuta! Era apenas a viso dos ltimos trinta anos. A outra, de um futuro imensamente maior, pela amplido de dois sculos, essa deix-los-ia num xtase de assombro, se naquela hora a pudessem ver. Nem sequer sonh-la, por mais desvairado que o sonho fosse. Mas tanto um dia a histria havia de altear aquele outeiro, que dali se descobrissem as escarpas do promontrio de Sagres o Atlntico misterioso que ia dar Amrica e aos gelos do Plo Norte; o Cabo dos confins da frica na extrema do Mar Tenebroso, o mar lendrio da ndia, o mar bblico de Suez, as amplides do Oceano Pacfico, os mares do Japo e da China; todos esses longos caminhos por onde os filhos e os netos dos Chamorros de Aljubarrota tinham de navegar imensamente mais que os Fencios e os Cartagineses, ir alm dos trinta mil soldados de Alexandre com os dois mil de Albuquerque, descobrir a metade que faltava ao Mundo medievo e traar por essas remotas fronteiras um imprio igual ao da morta Roma dos Csares. Mas se ali algum daqueles Namorados velhos tal pudesse adivinhar sonhando, os outros teriam piedade dele como o de um rematado louco. De tarde foram para o mosteiro de Santa Maria da Vitria da Batalha, ainda incompleto. Era o grande templo votivo do rei de Avis. Estava edificado no stio denominado Apar da Canoeira, a curta distncia do outeirozito de S. Jorge. Diante do prtico de puro estilo ogival, um encanto de linhas e ornatos singelamente belos, os ruos da ala pararam numa emoo que lhes punha lgrimas nos olhos. Pedra branca, de uma brancura que lembra aqueles ossos esparsos na charneca! disse o Magrio. E reparai acudiu o Vasconcelos reparai naquela janela alta e linda, naqueles colunelos gentis, na altivez e donaire dos botarus! Digno padro da batalha! Falam, cantam como troveiros de sonho, num cantar que a minha alma ouve e entende, todas estas pedras brancas, a recordarem o manto de um cavaleiro de Avis. Esfarrapada velhinha, sada esta linda igreja que tambm ali se ergueu por ti disse o Magrio, inclinando para o cho os trapos desbotados da bandeira. Entraram. Ali ainda mais profunda emoo. O sol a declinar batia em cheio na alta janela rendilhada e alastrava, atravs dos vitrais de cores, pela nave central, de majestosa simplicidade, uns suaves fulgores como de ris, em quem a prpura e o ouro tivessem uma preponderncia evocadora. Sente a gente necessidade de ajoelhar, mal entra aquela porta! observou o Magrio comovidamente. Mereciam bem que as trouxessem para aqui aquelas ossadas do claustro de Alcobaa disse Vasconcelos. Mereciam. Espalhou-se entre os pedreiros e lavrantes da obra que estavam ali uns fidalgos que tinham sido da Ala dos Namorados, e logo muitos deles largaram o trabalho para os ver. Alguns tinham sido soldados jovens em Aljubarrota, outros eram filhos de veteranos da hoste real. Deus vos acompanhe, senhores cavaleiros disse alto o mais velho, num tom de saudao que lhe tremia nos lbios De ns outros alguns h aqui que foram convosco na batalha real e, pela nossa f, que ainda no tornmos a ver jovens de mais destemido nimo. Num alvoroo de enternecimento e de orgulho, os velhos da ala foram para eles e agradeceram-lhes. Com que ento disse-lhes o Magrio ajudastes a vencer a batalha e agora ajudais a erguer-lhe este santo padro? Trabalha a gente nisto com dobrada alma e at nos regala ouvir cantar a pedra que vamos afeioando respondeu o mais idoso dos lavrantes um cantar que os nossos coraes entendem bem! A sada, j sol-posto, todos os outros operrios tinham tambm despegado do trabalho e todos eles se foram juntando no terreiro da igreja. Homens jovens disse o velho lavrante para os colegas novios foi assim por esta hora que se salvou a nossa terra! E vo ali alguns da ala que mais batalhou nesta hora. Num fervor de devoo patritica todos aqueles rsticos enfarinhados de p branco da pedra, levantaram fervorosos vivas aos envelhecidos Namorados.
CAPTULO XVII EPLOGO
O filho de Ruy de Vasconcelos, armado cavaleiro pelo Infante D. Henrique na mesquita maior de Ceuta, volvida em igreja da nossa Senhora de frica, ficara ao servio daquele glorioso filho do rei de Aljubarrota. J tinha amores o jovem cavaleiro; era, porm, de outra ala de namorados diferente daquela que o pai ilustrara. Podia levar no seu balso o mesmo apaixonado moto bordado pela me no estandarte verde da ala juvenil de 1385, mas agora para outra campanha imensa, de geraes sucessivas, pelos mares das lendas, para um mundo de sonho. J tinha Portugal navegadores em busca de uma ptria maior, colaboradores de uma tamanha histria, que havia de intercalar-se nos fastos do Mundo. A Renascena convencional ainda estava distante; mas a outra, a nossa por direito de primogenitura, ia j vela pelos mares, a bordo das caravelas e barinis do Infante D. Henrique. Estavam j descobertos os arquiplagos da Madeira e dos Aores, trechos preciosos de um novo Portugal. Fr. Gonalo Velho, cavaleiro professo de preclara estirpe, comendador do castelo de Almourol, o maior navegador daquele ciclo inicial, j tinha avistado a Terra Alta da costa africana do Ocidente, para alm da qual a velha geografia fizera uma noite misteriosa de trs mil anos de lendas. lvaro de Vasconcelos navegara com ele. Davam em navegadores os filhos dos Namorados. No tardaria muitos anos que o sonho entrasse tambm na alma do povo, para que fossem embarcadios, pilotos, cartgrafos os netos da peonagem esfarrapada de 1385. No dia de Todos-os-Santos de 1421, um carmelita velhinho, corpo mirrado de asceta, de amarelecida alvura como um santo antigo de marfim, agonizava numa cela do mosteiro da nossa Senhora do Vencimento do Carmo. Fora poderoso e imensamente rico; repartira os bens, alheara-se dos seus ttulos de nobreza, trocara a cota de armas por um escapulrio, a lana por um bordo professara. Chamava-se agora Fr. Nuno de Santa Maria aquele que fora Condestvel, Conde de Ourm, de Barcelos, e de Arraiolos, o mais prodigioso heri da guerra da independncia, a mais extraordinria figura que tinha dado a nossa Raa (*).
[(*)No Convento do Carmo se guardava o cetro do rei de Castela tomado em 1385. O Rei oferecera-o ao Condestvel e este doara-o comunidade do seu convento por escritura, em que se preceituavam as solenidades com que o deviam mostrar ao povo. Provavelmente ficou sepultado entre as runas do mosteiro por ocasio do terramoto de 1755.]
Ainda chegaram a horas de ver como ele morria alguns velhos gloriosos do seu tempo. El-rei e dois Namorados de cabelos de neve: Ruy de Vasconcelos e o Magrio, j numa decrepitude que os avizinhava do tmulo. Aquela morte ps de luto a Nao unnime. O povo j o tinha canonizado e chamava-lhe o Santo Condestabre. Pudera. Tinha na religio da Ptria os grandes milagres dos Atoleiros, de Aljubarrota e de Valverde. Depois a sepultura mudou-se-lhe em altar; fazia-lhe o povo romagens, levava- lhe esmolas de azeite para a lmpada, sempre acesa por cima do seu tmulo, e no dia de S. Joo, o dia em que ele nascera, as raparigas entravam na igreja bailando. Iam cantar de joelhos as trovas memoradoras do heri e desfolhar flores sobre a jazida daquele prodigioso taumaturgo de Aljubarrota e de Valverde de Mrida.
* * *
Conta-se que no conselho de Estado em que se props a empresa de Ceuta, um dos velhos conselheiros, gracejador ao modo da poca, dissera para os colegas, de cabelos brancos como ele: Ruos de Aljubarrota, alm. Alm era Ceuta. A imensa repercusso que teve aquela palavra! Alm foi depois a frica de ls- a-ls, o caminho da Amrica, o caminho da ndia, o caminho do Plo. Um velho colossal, outro ruo, Albuquerque repetiu aquele pico alm, e Portugal foi dar consigo aos mares da China e s costas ridentes do Nippon. Daquelas letras se fez o moto da mais gloriosa Nao pequena que teve a Renascena, e em voos de guia o foi repetindo a alma portuguesa at cansar. Se ns ainda o soubssemos dizer na nsia de outro sonho mais sereno e fecundamente modesto! Alm, para as culminaes de uma civilizao maior do que a nossa; alm para darmos a este velho pas de oitocentos anos, ns todos, ala moderna de outros ideais, namorados de outros amores, um poder moral e uma honesta prosperidade, que fossem o suave realce daquele espantoso passado! Do amor e do sonho, poesia suprema da nossa Raa, veio aquele Portugal que parece um mito remotssimo, to extraordinrio foi! Nem houve ainda grande empreendimento humano que no nascesse de um sonho, no desses que se aviventam de quimeras e subitamente se desfazem como as miragens; mas das outras radiosas crislidas donde rompem, voando, os mais belos destinos dos povos. O que fomos incentivo de sobra para o que podemos e devemos ser. Baixas e perdidas nacionalidades as que no trazem na alma o culto de algum ideal entre os dourados nimbos de um sonho. A lmpada que fulgiu sobre o tmulo do Condestvel foi apagada muito antes que as convulses de um terramoto derrussem as ogivas da nossa Senhora do Carmo. Mandou-as apagar um dos Filipes de Espanha. Portugal naufragava no Mundo e tinha cado exangue num serto esbraseado de Marrocos. Pareceu ao rei estrangeiro que naquela chamazita devota, em honra do Santo de Aljubarrota., se apagaria tambm a alma da Nao. Tardio desforo aquele e profunda cegueira de homem! Sobre um altar de ouro, inacessvel aos dspotas, uma chama ressurgidora, tamanha que ainda hoje ilumina oitocentos anos de histria, acalentava o corao da Ptria semimorta, e tanto calor lhe deu, que a ps de p para novos alentos. Altar feito de um poema que no tem igual nos fastos modernos; chama erguida na alma genial de um homem que, pelo amor sua terra, foi o maior Portugus de todos os tempos. Era o santo dos Lusadas, canonizado pela Nao como o outro de Aljubarrota. Sonhadores e cavaleiros, um e outro; mas da imensa Ala dos Namorados que esta terra tem tido, de mais intensos amores e o que mais milagre fez no Mundo, porque dia a dia ele sozinho nos ressurge glorificado, foi o outro, o poeta, o orago dos Lusadas.