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Hartog, François - Tempo e Patrimônio

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Tempo e Patrimnio
VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 22, n 36: p.261-273, Jul/Dez 2006
Tempo e Patrimnio
*
Temporality and Patrimony
**
FRANOIS HARTOG
cole des Hautes tudes en Sciences Sociales
54, boulevard Raspail, 75006 Paris
webmestre@ehess.fr
RESUMO O artigo discute a redefinio da memria e do patrimnio
dentro do novo regime de historicidade que o Ocidente vive aps a Queda
do Muro de Berlim (1989). Estas palavras-chave so tratadas como indcios,
sintomas, de nossa relao com o tempo, como testemunhas da crise
da ordem presente do tempo. O problema abordado: um novo regime de
historicidade, centrado sobre o presente, estaria se formulando? Para o
autor, ocorreu um crescimento rpido da categoria do presente e se imps
a evidncia de um presente onipresente, que ele nomeia presentismo,
onde se vive entre a amnsia e a vontade de nada esquecer.
Palavras-chave memria, patrimnio, histria
ABSTRACT This article discusses the redefinition of memory and patri-
mony within the new regime of historicity set in motion in the West after
the fall of the Berlin Wall (1989). These keywords are treated as indicators
or symptoms of our relation with time, as witnesses of the crises of the
present order of time. The question that is approached is the following: is
* Artigo recebido em 04/08/2005. Autor convidado.
** Traduo: Jos Carlos Reis/Departamento de Histria/UFMG
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a new regime of historicity, one based on the present, taking shape? In the
authors view, the category of present has grown rather fast and imposed an
omnipotent present, which he names presentism. This condition causes
one to be torn between amnesia and the desire not to forget.
Key words Memory, Patrimony, Historicity
Historiador da histria, entendida como uma forma da histria inte-
lectual, eu pouco a pouco fiz minha a constatao de Michel de Certeau,
que lembrava, no final dos anos 1980, que sem dvida, a objetivao do
passado, h trs sculos, tinha feito do tempo o impensado de uma dis-
ciplina, que no cessava de utiliz-lo como um instrumento taxinmico.
1

O tempo tornou-se to habitual para o historiador, que ele o naturalizou
ou instrumentalizou. Ele impensado, no porque seria impensvel, mas
porque no o pensamos ou, mais simplesmente, no se pensa nele . His-
toriador atento ao meu tempo, eu, assim como muitos outros, observei o
crescimento rpido da categoria do presente at que se imps a evidncia
de um presente onipresente. o que nomeio aqui presentismo.
Poderamos abordar melhor este fenmeno? Qual o seu alcance?
Que sentido atribuir-lhe? Por exemplo, no quadro da histria profissional
francesa, a apario de uma histria se reivindicando, a partir dos anos
1980, como histria do tempo presente acompanhou este movimento. s
demandas mltiplas da histria contempornea ou muito contempornea,
a profisso foi solicitada, algumas vezes intimada a responder. Presente
em diferentes frentes, esta histria se achou posta sob os projetores da
atualidade judiciria, quando dos processos por crimes contra a humani-
dade, que tm por caracterstica primeira de se haver com a temporalidade
indita do imprescritvel.
Para conduzir esta pesquisa, a noo de regime de historicidade me
pareceu operatria. Eu a tinha apresentado rapidamente uma primeira vez
em 1983, para dar conta de um aspecto, o mais interessante, para mim,
das proposies do antroplogo americano Marshall Sahlins, mas ela tinha
naquele momento chamado pouco a ateno: a minha pouco mais do que
a dos outros.
2
Seria necessrio outros tempos! Retomando as reflexes de
Claude Lvi-Strauss sobre as sociedades quentes e as sociedades frias,
Sahlins procurava apreender a forma de histria que tinha sido prpria s
1 DE CERTEAU, Michel. Histoire et Psychanalyse entre science et ficition, Paris : Gallimard, 1987, p. 89. Voir Jean
LEDUC. Les Historiens et le Temps. Conceptions, problematiques, ecritures. Paris : Ed. du Seuil, 1999.
2 HARTOG, Franois. Marshall Sahlins et lanthropologie de lhistoire. In: Annalles ESC, n 6. Paris: EHESS, 1983,
p. 1256-1263.
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ilhas do Pacfico. Tendo por assim dizer deixado a expresso de lado, sem
a elaborar mais, eu a reencontrei, no mais nos povos autctones do pas-
sado, mas no presente e aqui; mais exatamente, aps 1989, ela se imps
quase dela mesma como uma das formas de interrogar uma conjuntura,
onde a questo do tempo tornava-se uma questo forte, um problema: uma
obsesso algumas vezes.
No intervalo, eu me familiarizei com as categorias meta-histricas da
experincia e da espera (ou expectativa), tais como foram trabalhadas
pelo historiador alemo Reinhart Koselleck, com vistas a elaborar uma se-
mntica dos tempos histricos. Interrogando as experincias temporais da
histria, ele pesquisava como em cada presente, as dimenses temporais
do passado e do futuro tinham sido postas em relao.
3
justamente a
que era interessante investigar, levando em conta as tenses existentes
entre campo de exerccio (experincia NT) e horizonte de espera
e estando atento aos modos de articulao do presente, do passado e do
futuro. A noo de regime de historicidade podia assim se beneficiar de
um dilogo entre (fosse por meu intermdio) de Sahlins com Koselleck: da
antropologia com a histria.
Um colquio, concebido pelo helenista Marcel Detienne, comparatista
convicto, foi a ocasio de retom-la e trabalh-la em comum com um an-
troplogo, Grard Lenclud. Era uma forma de prosseguir, deslocando um
pouco, o dilogo, intermitente, mas recorrente, menos intenso, algumas
vezes, mas jamais abandonado, entre antropologia e histria, que Claude
Lvi-Strauss tinha aberto em 1949. Regime de historicidade, escrevamos
ento, podia se compreender de duas formas. Em uma acepo restrita,
como uma sociedade trata seu passado. Em uma acepo ampla, regime
de historicidade serviria para designar a modalidade de conscincia de
si de uma comunidade humana. Como, para retomar os termos de Lvi-
Strauss, ela reage a um grau de historicidade idntico para todas as
sociedades. Mais precisamente, a noo devia poder fornecer um instru-
mento para comparar tipos de histrias diferentes, mas tambm e mesmo
antes, eu acrescentaria agora, para iluminar modos de relao ao tempo:
formas da experincia do tempo, aqui e l, hoje e ontem. Maneiras de ser no
tempo. Se, do lado da filosofia, a historicidade, da qual Paul Ricoeur traou
a trajetria de Hegel a Heidegger, designa a condio de ser histrico,
4

ou ainda o homem presente a ele mesmo enquanto histria,
5
aqui, ns
seremos mais atentos diversidade dos regimes de historicidade.
3 KOSELLECK, Reinhart. Le futur pass. Paris : EHESS, 1990, p. 307-329.
4 RICOEUR, Paul. La Mmoire, lhistoire, loublie. Paris : Ed. du Seuil, 2000, p.480-498 e Mmoire: approches
historiennes, approche philosophique. In: Le Dbat, n 122, 2002, p.42-44.
5 LYOTARD, Jean-Franois. Les Indiens ne cueillent pas de fleurs. In: Annales ESC, n 20, 1965, p. 65 (artigo sobre
O Pensamento Selvagem, de Claude Lvi-Strauss).
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Enfim, ela me acompanhou quando de minha estada em Berlim, ao
Wissenschaftskollelg, em 1994, quando os restos do Muro no tinham ainda
desaparecido, o centro da cidade era um canteiro de obras, j em curso ou
a fazer, e discutamos j a reconstruo ou no do Castelo real, e as grandes
fachadas arruinadas, metralhadas dos imveis do Leste tornavam visvel um
tempo que, l, tinha escoado de outra forma. Seria evidentemente falso dizer
que ele tinha se congelado. Com seus grandes espaos vazios, baldios, e
suas sombras, Berlim me fazia o efeito de uma cidade para historiadores
onde mais do que em outros lugares podia aflorar o impensado do tempo
(no somente o esquecido, o reprimido, o renegado).
Mais do que qualquer outra cidade da Europa, do mundo, talvez, Berlim
fez trabalhar, ao longo dos anos 1990, milhares de pessoas, dos aterros dos
imigrantes aos grandes arquitetos internacionais. Boa notcia para os urba-
nistas e os jornalistas, ela se tornou um ponto de passagem obrigatrio, at
mesmo da moda, um bom tema, um laboratrio, um lugar de reflexo.
Ela suscitou comentrios inumerveis e mltiplas controvrsias; ela levou
produo de massas de imagens, de palavras e de textos, provavelmente
alguns grandes livros tambm.
6
Sem esquecer os sofrimentos e as desi-
luses trazidas por estas mudanas bruscas. Pois, l, mais ainda do que
alhures, o tempo era um problema, visvel, tangvel, ineludvel. Que relaes
manter com o passado, os passados, claro, mas tambm, e fortemente,
com o futuro? Sem esquecer o presente ou, inversamente, correndo o risco
de ver somente a ele: como, no sentido prprio do termo, o habitar? Que
destruir, que conservar, que reconstruir, que construir e como? So decises
e aes que impem uma relao explcita ao tempo. Quem se cega a tal
ponto que no consegue v-lo?
De um lado e do outro de um muro, que iria pouco a pouco tornar-se
um muro de tempo, procurou-se primeiro apagar o passado. Declarar, como
Hans Scharoun: no se pode ao mesmo tempo construir uma sociedade
nova e reconstruir os prdios antigos, podia valer para os dois lados.
7

Arquiteto famoso, Scharoun, que tinha presidido a comisso de urbanismo
e de arquitetura logo aps a guerra, construiu especialmente o auditrio
da Filarmnica. Cidade emblemtica, lugar de memria, para uma Europa
tomada em seu conjunto, para dizer pouco, entre a amnsia e o dever de
memria, tal Berlim aurora do sculo XXI. L, aos olhos do historiador
que vagueia (flneur) se do ainda a ver fragmentos, restos, marcas de
ordem do tempo diferentes, como se fala de ordens em arquitetura.
6 Por exemplo, GRASS, Gnter. Toute une Histoire. Paris : Seuil, 1997; NOOTEBOOM, Cees. Le Jour des morts.
Arles: Actes Sud, 2001.
7 FRANOIS, Etienne. Reconstruction allemande In: Patrimoine et passions identitaires, sob a presidncia de
Jacques Le Goff. Paris : Fayard, 1998, p.313 (para a citao de Scharoun) e Gabi Dolff-Bonekmper, Les monu-
ments de lhistoire contemporaine a Berlin: ruptures, contradictions et cicatrices In: L`Abus monumental, sob a
presidencia de Rgis Debray. Paris : Fayard, 1999, p. 363-370.
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Assim, formada sobre as margens das ilhas do Grande Pacfico, a noo
chegou a Berlim, ao centro da histria europia moderna.

Ns interrogamos, aqui, o nosso contemporneo a partir destas duas
palavras mestras que so a memria e o patrimnio. Muito solicitadas,
abundantemente comentadas e declinadas de mltiplas formas, estas
palavras-chave no sero mais desdobradas, aqui, por elas mesmas, mas
tratadas unicamente como indcios, sintomas tambm de nossa relao
com o tempo formas diversas de traduzir, refratar, seguir, contrariar a or-
dem do tempo: como testemunham as incertezas ou uma crise da ordem
presente do tempo. Uma questo nos acompanhar: um novo regime de
historicidade, centrado sobre o presente, estaria se formulando?

O que significou, do ponto de vista do tempo, de sua ordem, o movi-
mento de extenso e de universalizao do patrimnio, ao qual ns temos
assistido h um bom quarto de sculo? De qual regime de historicidade a
patrimonializao galopante dos anos 1990, como ns a qualificamos algu-
mas vezes, pode ser a marca? Este gosto pelo passado vinha testemunhar
repentinamente um tipo de nostalgia por um antigo regime de historicidade,
contudo, desde h muito fora de uso? Inversamente, como ele podia ainda
se ajustar a um regime moderno, que tinha posto, h dois sculos, todo
seu fervor de esperana no futuro?
No curso do perodo, o patrimnio se imps como a categoria dominan-
te, englobante, seno devorante, em todo caso, evidente, da vida cultural
e das polticas pblicas. Ns j recenseamos todos os tipos de novos
patrimnios e declinamos novos usos do patrimnio. Na Frana, desde
1983, as Jornadas do Patrimnio atraram cada vez mais visitantes aos
imveis ditos do Patrimnio: mais de onze milhes em setembro de 2002.
Estes resultados, devidamente estabelecidos e proclamados a cada ano
pela mdia, so como um recorde a bater no ano seguinte. As Jornadas do
Patrimnio tm se disseminado por todo o mundo e fala-se hoje, sobretudo
atravs das iniciativas e das convenes da UNESCO, de universalizao
do patrimnio, enquanto que, a cada ano, se alonga a lista dos stios do
patrimnio universal da humanidade.
8
Uma Escola Nacional do Patrimnio,
encarregada de formar os futuros conservadores, funciona desde 1991, em
Paris. Existe, desde 1996, uma Fundao do Patrimnio. Inspirada, em suas
expectativas pelo menos, no National Trust britnico, ela se mostrou muito
discreta, na verdade. Enfim, Entretiens du Patrimoine (Discusses sobre o
8 Consulta no website do Centre du Patrimoine mondial, ele recenceava 730 ao fim de 2002.
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Patrimnio) so organizadas desde 1984 pela Direo do patrimnio no
Ministrio da Cultura. Discute-se tudo o que toca o patrimnio, inclusive,
ultimamente, os seus abusos.
9
Os Lugares de Memria do historiador Pierre Nora chegaram ao
diagnstico de uma patrimonializao da histria da Frana, seno da
Frana mesma, na medida em que a mudana de um regime de memria
a outro nos fazia sair da histria-memria para entrar em uma histria-
patrimnio. Notvel em relao a isto a definio dada na lei de 1993
sobre o patrimnio monumental: nosso patrimnio a memria de nossa
histria e o smbolo de nossa identidade nacional. Passando para o lado da
memria, ele se torna memria da histria e como tal smbolo de identidade.
Memria, patrimnio, histria, identidade, nao se encontram reunidos na
evidncia do estilo direto do legislador.
Nesta nova configurao, o patrimnio se encontra ligado ao territrio e
memria, que operam um e outro como vetores da identidade: a palavra-
chave dos anos 1980. Mas, trata-se menos de uma identidade evidente e
segura dela mesma do que de uma identidade que se confessa inquieta,
arriscando-se de se apagar ou j amplamente esquecida, obliterada, re-
primida: de uma identidade em busca dela mesma, a exumar, a bricoler,
e mesmo a inventar. Nesta acepo, o patrimnio define menos o que se
possui, o que se tem e se circunscreve mais ao que somos, sem sab-lo,
ou mesmo sem ter podido saber. O patrimnio se apresenta ento como
um convite anamnese coletiva. Ao dever da memria, com a sua recente
traduo pblica, o remorso, se teria acrescentado alguma coisa como a
ardente obrigao do patrimnio, com suas exigncias de conservao,
de reabilitao e de comemorao.

Fora do mundo cristo, o caso do Japo sempre chamou a ateno. O
fato de que o pas se dotou, bem rpido, aps a restaurao de Meiji (1868),
de uma legislao de proteo das obras arquiteturais e artsticas antigas,
permitia apreender, mais facilmente do que alhures, as semelhanas e as
diferenas com relao ao conceito europeu de patrimnio.
10
Uma primeira
Diretiva de inventrio de 1871 seguida, em 1897, de uma lei sobre a pre-
servao dos antigos santurios e templos onde introduzida a noo de
tesouro nacional. A palavra tesouro indica que o objeto tira seu valor de
9 Labus monumental, sob a presidncia de Rgis Debray, Paris, Fayard, 1999, en particulier, R. Debray Le monu-
ment ou la transmission comme tragdie , p. 11-32. Il y avait eu dj Tzvetan Todorov, Les abus de la mmoire,
Paris, Arla, 1995.
10 BOURDIER, Marc. Le mythe et lindustrie ou la protection du patrimoine culturel au Japon , Genses, 11, 1993,
p. 82-110.
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seu pano de fundo imaterial (sua origem divina, por exemplo).
11
Interessa-se,
ento, pelo patrimnio religioso (xintosta), sobretudo. Depois, em 1919, vem
se acrescentar a lei sobre a preservao dos stios histricos, pitorescos e
dos monumentos naturais. Enfim, a lei de 1950 sobre a proteo dos bens
culturais d lugar, pela primeira vez, ao patrimnio cultural intangvel.
Deste conjunto legislativo e das prticas patrimoniais que ele codifica, ns
reteremos duas particularidades somente.
Est prevista a reconstruo peridica de certos edifcios religiosos. O
fato de que eles so edificados em madeira no explica tudo, pois a recons-
truo idntica e se faz segundo um calendrio fixado antecipadamente.
em particular o caso do grande santurio dIse. O templo da deusa Ama-
terasu, ancestral mtica da casa imperial, reconstruda de forma idntica
em madeira de cipreste do Japo a cada 20 anos. Instaurada no sculo
VII, o rito continuou at hoje (sem dvida, com perodos de interrupo). A
prxima reconstruo est prevista para 2013. Conta sobretudo a perma-
nncia da forma. O dilema ocidental conservar ou restaurar no existe.
12

Em compensao, um japons que visita Paris ser (mais exatamente teria
sido outrora) chocado pelo esforo desenvolvido para conservar os objetos
e os monumentos histricos contra o desgaste do tempo.
13
De fato, a poltica
cultural japonesa no tinha por primeira preocupao nem a visibilidade
dos objetos nem a manuteno desta visibilidade. Ela repousava sobre
uma outra lgica que era a da atualizao.
o que permite compreender melhor a designao tesouro nacional
vivo, tal como foi especificada na lei de 1950. Esta designao conferida
a um artista ou arteso, no como pessoas, mas somente enquanto ele
detentor de um importante patrimnio cultural intangvel. O ttulo, que
pode recompensar um indivduo ou um grupo, obriga o eleito a transmitir
o seu saber. Ele recebe, para isso, indenizaes. Desta disposio original
fica claro que o objeto ou sua conservao conta menos do que a atualiza-
o de um savoir-faire, que se transmite ao se atualizar. Como o templo de
madeira, a arte tradicional existe na medida em que ela est no ou dentro
do presente. Decorre da que estas noes, to centrais na constituio do
patrimnio do ocidente, de original, de cpia, de autenticidade, no
existem ou no so, em todo caso, portadoras dos mesmos valores no Ja-
po. Seguramente, o passado contava, mas a ordem do tempo operava de
outra forma que na Europa. De um tempo que no era linear, derivava uma
11 FIV, Nicolas. Architecture et patrimoine au Japon : les mots du monument historique , Labus monumental,
op. cit., Paris, Fayard, 1999, p. 333.
12 o ttulo de um texto do arquiteto italiano Camillo Boito, publicado em 1893, onde ele tenta definir uma posio
intermediria entre a representada por Viollet-le-Duc restaurar um edifcio no conserv-lo, consert-lo ou
refaz-lo, mas restabelec-lo de uma forma to completa que pode no ter existido em monento algum (Dic-
tionnaire de larchitecture) e a representada por Ruskin conservar absolutamente, at a ruinificao se for
preciso -, ver Leniaud, op. cit. p. 186-188.
13 OGINO, Masahiro. La logique dactualisation. Le patrimoine au Japon, Ethnologie franaise, XXV, 1995, p.57-63.
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outra figurao da permanncia e uma outra relao com o vestgio. Isto
s um esquema rpido, um simples esboo de um olhar afastado, mas
suficiente para desfazer a evidncia do conceito europeu de patrimnio.

No decorrer destes anos, a vaga patrimonial, em sintonia com a da
memria, portanto, tomou cada vez mais amplitude at tender para este
limite que seria o tudo patrimnio. Assim como se anuncia ou se reclama
memrias de tudo, assim tudo seria patrimnio ou suscetvel de tornar-se.
A mesma inflao parece reinar. A patrimonializao ou a musealizao se
aproximando sempre mais do presente, foi preciso estipular, por exemplo,
que nenhuma obra de arquiteto vivo seria legalmente considerada como
monumento histrico.
14
Isto um indcio muito claro deste presente que
se historiciza, j evocado.
Uma manifestao urbana da incidncia do tema do patrimnio e destes
jogos do tempo se observou nas polticas de reabilitao, renovao, revi-
talizao dos centros urbanos. Deseja-se museificar, mas mantendo vivo,
ou melhor, revitalizar reabilitando. Ter um museu, mas sem o fechamento do
museu: aqui ainda, um museu fora dos muros? Um museu propriamente
de sociedade, seno um museu social. claro, este projeto implicava, ul-
trapassando a noo de monumento histrico, a tomada de conscincia de
que a proteo do patrimnio devia se conceber como um projeto urbano
de conjunto. O que exigiu a passagem da Carta de Atenas, em 1931, de
Veneza, em 1964.
15
Donde este outro paradoxo, hoje, o mais autenticamente
moderno seria o passado histrico, mas posto sob as normas modernas.
No limite, conservamos apenas as fachadas.
E quando este passado faltava, contribuindo para o mal-estar das
periferias ou das cidades-dormitrios, fizeram-no aparecer. Produziu-se
lugares de patrimnio urbano para construir a identidade escolhendo uma
histria, que se torna a histria, a da cidade ou do bairro: histria inventada,
reinventada ou exumada, depois mostrada, em torno da qual se organiza,
em todos os sentidos da palavra, a circulao.
Os patrimnios se multiplicam. Assim, um exemplo entre outros, a lei
relativa Fundao do Patrimnio, preocupada em nada omitir, repertoriou
o patrimnio cultural protegido, o patrimnio cultural de proximidade
(este tecido conjuntivo do territrio nacional), o patrimnio natural
(que compreende a noo de paisagens), o patrimnio vivo (as raas
animais e espcies vegetais), o patrimnio imaterial (com os savoir-faire
tradicionais, as tradies populares, o folclore). O patrimnio gentico j
14 CHOAY, Franoise. Avant-propos Alois Riegl, op. cit. p. 9.
15 A conferncia de Atenas foi convocada por iniciativa da Comisso Internacional para a Cooperao Intelectual da
SDN e do Conselho Internacional dos Museus, voir infra p.
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freqenta a mdia e o patrimnio tico comea a entrar. O ritmo acelerado
da constituio, e mesmo da produo do patrimnio, um pouco por todo
lado no mundo, uma constatao que cada um pde fazer. Uma srie de
cartas internacionais veio assegurar, coordenar e dar forma a este movimen-
to. Mesmo se j existem h muito tempo princpios a seu respeito.
A primeira, a Carta de Atenas para a Restaurao dos Monumentos
histricos, se centrava somente sobre os grandes monumentos e ignorava o
resto. Trinta anos mais tarde, a Carta de Veneza ampliava consideravelmente
os objetivos, pois pretendia levar em conta a Conservao e a Restaurao
dos Monumentos e dos Lugares. O artigo 1 d uma definio muito mais
extensa do monumento histrico: a noo de monumento histrico inclui
a criao arquitetural isolada assim como o stio urbano ou rural que traz o
testemunho de uma civilizao particular, de uma evoluo significativa ou
de um evento histrico. Ele se estende no somente s grandes criaes,
mas tambm s obras modestas que adquiriram com o tempo uma signifi-
cao cultural. O prembulo acentua fortemente a preservao e introduz
a noo de patrimnio comum da humanidade. A Humanidade, que toma
conscincia a cada dia da unidade dos valores humanos, considera [as
obras monumentais dos povos] como um patrimnio comum, e, face s
geraes futuras, se reconhece solidariamente responsvel pela sua preser-
vao. Ela se obriga a transmiti-los em toda a riqueza de sua autenticidade.
O patrimnio constitudo de testemunhos, grandes ou pequenos. Como
em relao a todo testemunho, nossa responsabilidade de saber reco-
nhec-los em sua autenticidade, mas alm disso nossa responsabilidade
se encontra engajada em relao s geraes futuras.
Nesta tomada de conscincia, o resgate dos templos de Abou-Simbel,
em 1959, quando da construo da grande barragem de Assouan teve
um papel importante. Foi uma enorme experincia, muito midiatizada, de
sensibilizao das opinies pblicas. E, maravilha, o passado distante e
as tcnicas modernas pareciam se aliar: o futuro no se instalava sobre as
runas do passado. Ele lhe dava, ao contrrio, a oportunidade de permanecer
visvel no futuro, um tipo de semiforo duplicado. O discurso pronunciado
por Andr Malraux por ocasio desta campanha o testemunha magnifica-
mente: seu apelo pertence histria do esprito no porque preciso salvar
os templos de Nubie, mas porque com ele a primeira civilizao mundial
reivindica publicamente a arte mundial como sua herana indivisvel.
Quanto mais o patrimnio (a noo pelo menos) crescia, mais enfra-
quecia o monumento histrico (a categoria). A lei de 1913 tinha substitudo o
interesse nacional como nico critrio de classificao de um monumento,
[pelo] o interesse pblico do ponto de vista da histria e da arte. O que
representava j um alargamento do campo da noo. Mas, hoje, o privilgio
da definio da histria-memria nacional tem a concorrncia ou con-
testado em nome de memrias parciais, setoriais, particulares (de grupos,
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associaes, empresas, coletividades, etc.), que querem se fazer reconhecer
como legtimas, to legtimas, at mesmo mais legtimas. O Estado-nao
no impe mais os seus valores, mas preserva mais rpido o que, no pre-
sente, imediatamente, mesmo na urgncia, tido como patrimnio pelos
diversos atores sociais.
16
O prprio monumento tende a ser suplantado pelo
memorial: menos monumento do que lugar de memria, onde se esfora
para fazer viver a memria, a mant-la viva e a transmiti-la.
De 1980 a 2000, recenseou-se na Frana 2241 associaes, cujo objeto
declarado o patrimnio ou o habitat (cadre de vie): o pequeno patrim-
nio. Em sua maioria, estas associaes so jovens, nascidas aps 1980.
Dando-se algumas vezes definies muito extensivas do patrimnio, que
no se ajustam necessariamente com as categorias oficiais da adminis-
trao ocupada pelo grande patrimnio, elas tendem a desestabilizar a
mquina administrativa de classificar. Pois, para elas, o valor dos objetos
que elas elegeram reside, parcialmente, no fato de que esto elas mesmas
na origem do seu reconhecimento.
17
Trata-se, em suma, mais de patrimnio
local, associando memria e territrio e de operaes visando a produzir
territrio e continuidade para aqueles que l habitam, hoje. As associaes
do patrimnio mostram a construo de uma memria que no dada,
portanto, no perdida. Elas abrem constituio de um universo simblico.
Tambm o patrimnio no deve ser visto a partir do passado, mas a partir
do presente, como categoria de ao do presente e sobre o presente.
18

Enfim, o patrimnio, ao tornar-se um ramo principal da indstria do turismo,
objeto de investimentos econmicos importantes. Sua valorizao se
insere, ento, diretamente, nos ritmos e temporalidades rpidas da economia
de mercado de hoje, chocando-se e aproximando-se dela.

O sculo XX o que mais invocou o futuro, o que mais construiu e mas-
sacrou em seu nome, o que levou mais longe a produo de uma histria
escrita do ponto de vista do futuro, conforme aos postulados do regime
moderno de historicidade. Mas, ele tambm o sculo que, sobretudo no
seu ltimo tero, deu extenso maior categoria do presente: um presen-
te massivo, invasor, onipresente, que no tem outro horizonte alm dele
mesmo, fabricando cotidianamente o passado e o futuro do qual ele tem
necessidade. Um presente j passado antes de ter completamente chegado.
Mas, desde o fim dos anos 1960, este presente se descobriu inquieto, em
busca de razes, obcecado com a memria. confiana no progresso se
16 O nmero de edifcios protegidos passou de 24 000 em 1960 a 44 709 em 1996.
17 GLEVAREC, Herv et SAEZ, Guy, Le patrimoine saisi par les associations, op. cit. p. 129-193.
18 Ibid. p. 263
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VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 22, n 36: p.261-273, Jul/Dez 2006
substituiu a preocupao de guardar e preservar: preservar o qu e quem?
Este mundo, o nosso, as geraes futuras, ns mesmos.
Da vem este olhar museolgico lanado sobre o que nos cerca. Ns
gostaramos de preparar, a partir de hoje, o museu de amanh e reunir os
arquivos de hoje como se fosse j ontem, tomados que estamos entre a
amnsia e a vontade de nada esquecer. Para quem? Para ns, j. A des-
truio do Muro de Berlim, seguida da sua museificao instantnea foi um
bom exemplo, com a sua imediata mercantilizao. Foram postas venda
imediatamente amostras devidamente marcadas com o selo Original Berlin
Mauer. Se o patrimnio doravante o que define o que ns somos hoje, o
movimento de patrimonializao, este imperativo, tomado ele mesmo na
aura do dever da memria permanecer um trao distintivo do momento
que ns vivemos ou acabamos de viver: uma certa relao ao presente e
uma manifestao do presentismo.
No exame da trajetria do patrimnio, h um componente do qual
ns no ainda conhecemos todo o alcance: a patrimonializao do meio
ambiente. A UNESCO forneceu um bom comeo, pois ela ao mesmo
tempo uma possante caixa de ressonncia e um vasto laboratrio mundial
onde se elabora uma doutrina e se proclama os seus princpios. Em 1972,
a Conferncia geral adotou a Conveno para a Proteo do Patrimnio
Mundial Cultural e Natural. O texto parece no deixar nada fora de sua
perspectiva: o patrimnio mundial, ele cultural e natural. Por que uma
Conveno internacional? Porque, o prembulo parte desta constatao, o
patrimnio universal cada vez mais ameaado de destruio no somen-
te pelas causas tradicionais de degradao, mas ainda pela evoluo da
vida social e econmica que os agrava por fenmenos de alterao ou de
destruio ainda mais temveis. Estas consideraes conduzem tambm
introduo de uma noo nova: a de proteo, que incumbe a toda a
coletividade internacional.
Hoje, a UNESCO desejaria reunir a considerao da diversidade cultural,
a preocupao com a biodiversidade e os esforos com vistas ao desen-
volvimento durvel.
19
O que rene estes trs conceitos e estes trs objetivos
a preocupao ou o imperativo da proteo, ou melhor, da preservao.
Trata-se de proteger o presente ou de preservar o futuro? Trata-se dos dois,
evidente. A questo no , no entanto, necessariamente ociosa. Racio-
cinamos indo do futuro ao presente ou do presente em direo ao futuro?
Ns voltaremos a este ponto.

19 MATSUURA, Kochiro. Eloge du patrimoine culturel immatriel , Le Monde, 11 septembre 2002.
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Franois Hartog
Do ponto de vista da relao ao tempo, de que esta proliferao pa-
trimonial sinal?
Ela sinal de ruptura, seguramente, entre um presente e um passado,
o sentimento vivido da acelerao sendo uma forma de fazer a experincia:
a mudana brusca de um regime de memria para um outro, do qual Pierre
Nora fez o ponto de partida de sua interrogao. O percurso da noo mos-
trou indubitavelmente que o patrimnio jamais se nutriu da continuidade,
mas, ao contrrio, de cortes e da problematizao da ordem do tempo,
com todos os jogos de ausncia e presena, do visvel e do invisvel, que
marcaram e guiaram as incessantes e sempre mutantes formas de produ-
zir semiforos. Comeando pela intruso deste ausente inaugural que foi
Jesus naquilo que se tornou, h muito tempo e por muito tempo, a tradio
ocidental, com a imposio de uma nova ordem do tempo.
O patrimnio uma maneira de viver as rupturas, de reconhec-las e
reduzi-las, referindo-se a elas, elegendo-as, produzindo semiforos. Inscrito
na longa durao da histria ocidental, a noo conheceu diversos esta-
dos, sempre correlatos com tempos fortes de questionamentos da ordem
do tempo. O patrimnio um recurso para o tempo de crise. Se h assim
momentos do patrimnio, seria ilusrio nos fixarmos sobre uma acepo
nica do termo.
Aps as catstrofes do sculo XX, as numerosas rupturas, as fortes
aceleraes to perceptveis na experincia do tempo vivido, nem o sur-
gimento da memria nem o do patrimnio so surpreendentes. A questo
poderia ser: por que foi preciso esperar tanto tempo? Seguramente, porque
a ordem do mundo e do tempo as tornava pouco possveis. Foi necessria
a reunio de toda uma srie de condies, lembradas na abertura desta
travessia pelo tempo. Em compensao, o que distingue o crescimento
patrimonial contemporneo dos precedentes a rapidez de sua extenso, a
multiplicidade de suas manifestaes e seu carter fortemente presentista,
quando o presente tomou uma extenso indita. O memorial preferido ao
monumento ou este ltimo torna-se memorial, o passado atrai mais que a
histria; a presena do passado, a evocao e a emoo predominam sobre
a tomada de distncia e a mediao; enfim, este patrimnio ele mesmo
trabalhado pela acelerao: preciso fazer rpido antes que seja muito tar-
de, antes que a noite caia e o hoje tenha desaparecido completamente.
Que ela se manifeste como demanda, se afirme como dever ou se
reivindique como direito, a memria vale, no mesmo movimento, como
uma resposta ao presentismo e como um sintoma deste ltimo. Assim
tambm para o patrimnio. Mas, com alguma coisa a mais do ponto de
vista da experincia e, finalmente, da ordem do tempo. A patrimonializao
do meio ambiente, que designa a extenso provavelmente a mais massiva
e a mais nova da noo, abre indubitavelmente sobre o futuro ou sobre
novas interaes entre presente e futuro. No samos, ento, do crculo do
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presente, pois a preocupao com o futuro se apresenta mesmo como a
razo de ser deste fenmeno? Salvo que este futuro no mais promessa
ou princpio de esperana, mas ameaa. Tal a reviravolta. Uma ameaa
da qual ns fomos os iniciadores e da qual ns devemos nos reconhecer,
hoje, na falta j de ontem, como os responsveis.
Assim, interrogar o patrimnio e seus regimes de temporalidades nos
conduziu, de maneira inesperada, do passado ao futuro, mas um futuro que
no mais a conquistar ou a realizar sem hesitar e, se preciso for, violen-
tando o presente. Este futuro no mais um horizonte luminoso para o qual
marchamos, mas uma linha de sombra que colocamos em movimento em
direo a ns, enquanto parecemos marcar passo no presente e ruminar
um passado que no passa.

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