CUNHA Daniel O Antropoceno Como Fetichismo Continentes
CUNHA Daniel O Antropoceno Como Fetichismo Continentes
CUNHA Daniel O Antropoceno Como Fetichismo Continentes
Daniel Cunha9
Artigo publicado originalmente em ingls na revista Mediations Journal of the Marxist Literary Group,
Chicago, v. 28, n. 2, Spring 2015, p. 65-77. O autor agradece as sugestes de Cludio R. Duarte, Raphael
F. Alvarenga, Salvatore Engel-di Mauro e dos revisores annimos, sendo dele toda a responsabilidade
pelo texto.
9
Engenheiro Qumico (UFRGS), M. Sc. Cincia Ambiental (UNESCO-IHE), co-editor da revista Sinal de
Menos, assessor ambiental do Ministrio Pblico do Rio Grande do Sul. E-mail: dcunha77@outlook.com.
83
83
Introduo
84
85
10
Modifiquei a traduo.
A traduo brasileira diz entidade que opera automaticamente. Modifiquei de acordo com o original
automatisches Subjekt.
11
86
sobre a relao entre o Antropoceno e a alienao, ou, como desenvolvido pelo Marx
maduro, o fetichismo.12 Esse o ncleo das contradies da poca geolgica
dominada pelo homem. Segundo Marx, a forma de relaes sociais mediada pelo
trabalho do capitalismo adquire vida prpria, independente dos indivduos que
participam de sua constituio, desenvolvendo-se em uma espcie de sistema objetivo
por sobre e contra os indivduos, e progressivamente determina os fins e os meios da
atividade humana. O trabalho alienado constitui uma estrutura social de dominao
abstrata que aliena os laos sociais, no qual o valor de troca, comeando como
condottiere do valor de uso, acaba guerreando por conta prpria (DEBORD, 1997:
33).13 Essa estrutura, porm, no parece ser socialmente constituda, mas natural
(POSTONE, 2014). O valor, cuja forma aparente fenomnica o dinheiro, torna-se em
si mesmo uma forma de organizao social, uma comunidade pervertida. Isso o
contrrio do que se poderia chamar controle social (JAPPE, 2003, 25-86). Um sistema
que se torna quase automtico, para alm do controle consciente dos envolvidos, e
dirigido pela compulso de acumulao infinita como fim em si mesmo, tem
necessariamente como consequncia a perturbao dos ciclos materiais do planeta.
Chamar isso de Antropoceno, porm, claramente impreciso, de um lado, porque
ele o resultado de uma forma historicamente especfica de metabolismo com a
Natureza, e no um ser genrico ontolgico (antropo), e, por outro, porque o
capitalismo constitui uma dominao sem sujeito, ou seja, na qual o sujeito no o
Homem (e nem mesmo uma classe dominante), mas o capital (KURZ, 1993).
importante destacar que o fetichismo no uma mera iluso a ser decifrada, de
maneira que a explorao ambiental e de classe real possa ser apreendida. Como
apontou o prprio Marx, para os produtores... as relaes sociais entre os seus
trabalhos privados aparecem como aquilo que so, isto , como relaes coisificadas
entre pessoas e relaes sociais entre coisas (MARX, 2003: 95)14; o fetichismo da
mercadoria... no est em nossa mente, no modo como percebemos (mal) a realidade,
mas em nossa prpria realidade social (ZIZEK, 2012: 151). por isso que nem mesmo
12
Para uma discusso sobre a continuidade entre os conceitos marxianos de alienao e fetichismo, ver
a introduo de Lucio Colletti (1992) aos escritos de juventude de Marx.
13
Ver tambm Postone (2014) e Jappe (2006: 25-86).
14
A traduo brasileira diz: relaes materiais entre pessoas e relaes sociais entre coisas.
Modifiquei a traduo de acordo com o original: sachliche Verhltnisse der Personen und
gesellschaftliche Verhltnisse der Sachen (grifos meus).
87
toda a evidncia cientfica da crise ecolgica, sempre coletada post festum, parece ser
capaz de parar a dinmica destrutiva do capital, mostrando em grau caricatural a
inutilidade do conhecimento sem uso (DEBORD, 2009). O fato de que agora eles
sabem muito bem o que esto fazendo, mas fazem assim mesmo (ZIZEK, 1996: 14)
no refuta, mas confirma que a forma de relaes sociais est para alm do controle
social, e meramente trocar o nome do Antropoceno (Capitaloceno ou coisa
semelhante) no resolveria as contradies sociais e materiais subjacentes. A
produo social dirigida pelo valor, isto , a produo determinada pela minimizao
do tempo de trabalho socialmente necessrio, resulta em um modo objetivado de
produo material e vida social que podem ser descritos por leis objetivas. Tempo,
espao e tecnologia so objetivados pela lei do valor. Obviamente, os agentes da
valorizao do valor so seres humanos, mas eles realizam a sua atividade social
como mscaras de carter econmicas15, personificaes de relaes econmicas
(MARX, 2003: 110): o capitalista capital personificado e o trabalhador trabalho
personificado. A fetichista e autorreferencial valorizao do valor atravs da
explorao de trabalho (D-M-D), com as suas caractersticas de expanso infinita e
abstrao do contedo material, implica o carter ecologicamente destrutivo do
capitalismo (BURKETT, 1999: 79-98), ou seja, no capitalismo o desenvolvimento das
foras produtivas simultaneamente o desenvolvimento de foras destrutivas (KURZ,
2009: 10). O valor que expande a si mesmo cria um sistema de bola de neve (KURZ,
2009: 218) que no controlado conscientemente, uma fora independente de
qualquer vontade humana (HOLLOWAY, 2013: 142). Nesse contexto, no surpreende
que a perturbao dos ciclos ecolgicos globais seja apresentada como o
Antropoceno, isto , como um conceito alusivo a um processo natural. Que o
homem seja apresentado como uma fora geolgica cega, tal como as erupes
vulcnicas ou as variaes da radiao solar, isso expresso da forma naturalizada ou
fetichizada de relaes sociais que prevalece no capitalismo.
Portanto, as estruturas tcnicas com as quais o Homem leva a cabo o seu metabolismo
com a Natureza so tambm logicamente marcadas pelo fetichismo. Como notou
Marx, a tecnologia revela o modo de proceder do homem para com a natureza, o
15
A traduo brasileira diz papis econmicos. Modificamos de acordo com o original konomischen
Charaktermasken.
88
processo imediato de produo de sua vida, e, assim, elucida as condies de sua vida
social e as concepes mentais que dela decorrem (MARX, 2003: 428). No
capitalismo, os processos de produo no so projetados de acordo com os desejos e
necessidades dos produtores, consideraes ecolgicas ou sociais, mas de acordo com
a lei do valor. Tomando como exemplo os sistemas energticos mundiais, foi
demonstrado que no h restrio tcnica para uma completa transio solar em duas
ou trs dcadas, se considerarmos o valor de uso dos combustveis fsseis e das
energias renovveis (o seu retorno energtico e seus requisitos materiais). Isto ,
tecnicamente vivel usar energia fssil para construir uma infraestrutura solar e
fornecer ao mundo energia em quantidade e qualidade suficientes para o
desenvolvimento humano (SCHWARTZMAN; SCHWARTZMAN, 2011; JACBSON;
DELUCCHI, 2009). Essa transio, que do ponto de vista do valor de uso e da riqueza
material desejvel, necessria e urgente (devido ao aquecimento global) no est
sendo implementada, porque a energia fssil ainda mais adequada para a
acumulao de capital, para a valorizao do valor: o capital foi China explorar fora
de trabalho barata e carvo barato, causando um forte pico nas emisses de carbono
s vsperas de uma emergncia climtica, em uma clara demonstrao de
irracionalidade fetichista (MALM, 2012; CUNHA, 2013). De maneira mais geral, o
ecologista estadunidense Barry Commoner mostrou que, no sculo XX, muitos
produtos sintticos (como fertilizantes e plsticos) foram desenvolvidos e substituram
produtos naturais e biodegradveis. Porm, os novos produtos no eram melhores do
que os antigos; a transio foi implementada apenas porque produzi-los era mais
lucrativo, ainda que eles fossem muito mais poluentes e ambientalmente danosos de
fato, ele mostra que essas novas tecnologias foram o maior fator para o aumento da
poluio nos Estados Unidos, mais do que o aumento da populao ou do consumo
(1971, cap. 8-9).
Obviamente, a lei do valor no determina apenas os produtos finais, mas tambm os
processos de produo, que devem ser constantemente intensificados tanto em
termos de ritmos quanto de eficincia material, se no em termos da extenso da
jornada de trabalho. J em seu tempo, Marx destacou o fanatismo com que o
capitalista procura economizar meios de produo, medida que procuram pelos
resduos da produo para reuso e reciclagem (MARX 2008: 116 e 135-139). Porm,
Daniel Cunha, O Antropoceno como Fetichismo
89
90
Mas, assim como em toda mercadoria no capitalismo, o valor de uso (a reduo das
emisses de carbono) governado pelo valor de troca. A inverso fetichista de valor
de uso e valor de troca, que caracteriza o capitalismo, implica que o objetivo efetivo de
todo o processo de comercializao de emisses acaba sendo o dinheiro e no a
reduo de emisses. Os exemplos empricos so abundantes. Os esquemas de
comercializao no oferecem nenhum incentivo para uma transio tecnolgica de
longo prazo, mas apenas para ganhos financeiros imediatos (tempo dinheiro). Os
offsets, na prtica, permitem aos poluidores adiar a transio tecnolgica, enquanto o
projeto correspondente do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (CDM)
provavelmente gera um efeito de rebote que ir incentivar a aplicao de combustveis
fsseis em pases em desenvolvimento (ANDERSON, 2012). Redues tecnolgicas
fceis, como a queima do metano em aterros sanitrios, permitem a continuao de
emisses por grandes corporaes. Algumas indstrias lucraram mais mitigando as
suas emisses de HFC-23 do que com as mercadorias que produziram, enquanto
geram enormes quantidades de offsets que, mais uma vez, permitem que os
poluidores mantenham as suas emisses (LOHMANN, 2011). E a comparao de
projetos
com
cenrios-base
hipotticos
global
determinado
pelas
91
92
93
Mais uma vez, prefiro o original reiner Automat traduo da edio brasileira (fora de produzir
automaticamente mais-valia).
94
processo sinttico natural mais bsico necessrio para a vida na Terra como a
conhecemos, a fotossntese, no tecnologicamente substituvel, isto , nenhuma
quantidade de valor de troca poderia substitu-la (AYRES, 2007). Alm disso, sintetizar
as complexas interaes e fluxos materiais e energticos que constituem os
ecossistemas de diferentes caractersticas e escalas, com suas histrias naturais
dependentes de trajetrias especficas, uma tarefa nada trivial interaes materiais
e especificidade so exatamente aquilo que o valor de troca abstrai. O que esse tipo de
anlise toma como garantido a prpria forma-mercadoria, com a sua substncia
comum (o valor) que permite a troca entre diferentes recursos materiais em
quantidades definidas, destacados de seus contextos materiais e ecolgicos. Mas
essa abstrao mesma que leva destrutividade.
O sonho implcito pela forma capital de total ausncia de limites, uma
fantasia de liberdade como a total libertao da matria e da natureza. Esse
sonho do capital est se tornando o pesadelo daquilo do que ele se esfora
para se libertar o planeta e seus habitantes (POSTONE, 2014: 445).
Por ltimo, mas no menos importante, o capital tambm est tentando aumentar os
seus lucros explorando a prpria ansiedade causada pela expectativa da catstrofe
ecolgica, como uma extenso da produo de subjetividade pela indstria cultural
(ADORNO; HORKHEIMER, 1985). Por exemplo, os cafs Starbucks oferecem aos seus
clientes um caf que um pouco mais caro, mas afirma que parte do dinheiro vai para
as florestas do Congo, crianas pobres da Guatemala, etc. Dessa maneira, a
conscincia poltica despolitizada, com o que se chama de efeito Starbucks. 17 Isso
tambm pode ser visto na publicidade. Em uma delas, aps cenas mostrando algum
tipo de catstrofe natural no identificada, intercaladas com cenas de um carpinteiro
construindo uma estrutura indefinida de madeira e de mulheres no que parece ser um
desfile de moda, revela-se o verdadeiro contexto: as modelos se dirigem a uma
espcie de Arca de No construda para o carpinteiro, de maneira que possam
sobreviver catstrofe ecolgica. O propsito da propaganda finalmente revelado:
vender desodorante a fragrncia final. O slogan Feliz fim do mundo! explora
17
Zizek,
S.
Catastrophic
But
Not
Serious,
2011
(Vdeo
da
palestra).
Disponvel
em:
95
Axe.
Happy
End
of
the
World!,
2012.
Vdeo
publicitrio.
Disponvel
em:
96
97
Referncias bibliogrficas
A traduo consagrada do Gattunswesen para o portugus ser genrico. Prefiro aqui serespcie, como no ingls species-being, por fazer referncia mais explcita sua dimenso (tambm)
orgnica.
20
BBC. Worlds First Lab-Grown Burger Is Eaten in London, 5 Aug 2013. Disponvel em:
http://www.bbc.com/news/science-environment-23576143. Acesso em jun. 2015.
21
98
99
ETC GROUP. Geopiracy: The Case Against Geoengineering. Manila: ETC Group, 2012.
FOSTER, J.B. A ecologia de Marx. Trad. M. T. Machado. Rio de Janeiro: Civilizao
Brasileira, 2005.
FOSTER, J. B.; CLARK, B.; YORK, R. The Ecological Rift: Capitalisms War On Earth. New
York: Monthly Review Press, 2010.
GRUPO KRISIS. Manifesto contra o trabalho. Trad. H. D. H. Mann e C. R. Duarte. So
Paulo: Conrad, 2003.
GUTIRREZ, M. Making Markets Out of Thin Air: A Case of Capital Involution. Antipode
43 (3), p. 639-61, 2011.
HANSEN, J. Storms of my grandchildren: The Truth about The Coming Catastrophe and
Our Last Chance to Save Humanity. New York: Bloomsbury, 2009.
HOLLOWAY, J. Fissurar o capitalismo. Trad. D. Cunha. So Paulo: Publisher, 2013.
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. A dialtica do esclarecimento. Trad. G. A. de Almeida.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985 (1944).
JACOBSON, M.; DELUCCHI, M. A Path to Sustainable Energy by 2030. Scientific
American, Nov. 2009, p. 58-65.
JAPPE, A. As aventuras da mercadoria. Trad. J. M. Justo. Lisboa: Antgona, 2006.
JEVONS, W. S. The Coal Question: An Inquiry Concerning the Progress of the Nation,
and the Probable Exhaustion of our Coal Mines. Disponvel em:
http://www.econlib.org/library/YPDBooks/Jevons/jvnCQ.html. Acesso em jun.
2015.
KINTISCH, E. Hack the Planet: Sciences Best Hope or Worst Nightmare for Averting
Climate Catastrophe. Hoboken: John Wiley & Sons, 2010.
KURZ, R. Antikonomie und Antipolitik: zur Reformulierung der sozialen Emanzipation
nach dem Ende des Marxismus. Krisis 19: 51-105, 1997. Disponvel em portugus
em http://obeco.planetaclix.pt/rkurz106.htm. Acesso em jun. 2015.
KURZ, R. Dominao sem sujeito. Krisis 13: 17-94, 1993. Disponvel em portugus em
http://obeco.planetaclix.pt/rkurz86.htm. Acesso em jun. 2015.
KURZ, R. Schwarzbuch Kapitalismus. Frankfurt am Main: Eichenborn, 2009 (1999).
LOHMANN, L. The Endless Algebra of Climate Markets. Capitalism, Nature, Socialism 22
(4), p. 93-116, 2011.
100
IPRD, 2011.
SOLOMON, S.; PLATTNER, G-K.; KNUTTI, R.; FRIEDLINGSTEIN, P. Irreversible Climate
Change Due to Carbon Dioxide Emissions. PNAS 106 (6), p. 1704-9, 2009.
STEFFEN, W. ET AL. Planetary Boundaries: Guiding Human Development on a Changing
Planet
Science
347:
6223,
2015.
Disponvel
em:
http://www.sciencemag.org/content/347/6223/1259855. Acesso em jun. 2015.
STERN, N. The Economics of Climate Change: The Stern Review. London: HM Treasury,
2007. Disponvel em: http://mudancasclimaticas.cptec.inpe.br /~rmclima/pdfs/
destaques/sternreview_report_complete.pdf. Acesso em jun. 2015.
102
SWYNGEDOUW, E. Apocalipse Now! Fear and Doomsday Pleasures. Capitalism, Nature,
Socialism 24 (1), p. 9-17, 2013.
ZIZEK, S. Vivendo no fim dos tempos. Trad. M. B. de Medina. So Paulo: Boitempo,
2012.
ZIZEK, S. O espectro da ideologia. In: S. ZIZEK (org.) Um mapa da ideologia. Trad. V.
Ribeiro. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.