The Man The Place
The Man The Place
The Man The Place
UM HOMEM, UM LUGAR
Geografia da vida e Perspectiva ontológica
São Paulo
2010
1
UM HOMEM, UM LUGAR:
Geografia da vida e Perspectiva ontológica
São Paulo
2010
2
Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Catalogação na Publicação
Serviço de Biblioteca e Documentação
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
CCD 304.2
3
Aprovado em:
Banca Examinadora
AGRADECIMENTOS
A Júlio César Suzuki pelo intenso diálogo e pela liberdade a mim ofertados,
sem os quais nada disso se sustentaria.
A Élvio Rodrigues Martins com o qual travei um diálogo que vai muito além
do momento que se encerra.
A Selito SD, que tem a minha gratidão por ter me ouvido nos momentos mais
difíceis da minha busca.
Toda teoria é, pois, embrião de uma utopia. Quando se exclui a utopia, nós nos
empobrecemos imediatamente. O próprio ofício de teorizar pressupõe uma utopia. As
épocas que subestimam a utopia são épocas de empobrecimento intelectual, ético e
estético. O processo de teorização é largamente especulativo e bebe profundamente no
aleatório. E é preciso jogar-se para frente, o que pode parecer suicida.
Milton Santos
(Território e Sociedade, 2004)
Dar um salto no escuro é jogar tudo o que se conhece contra tudo o que ainda não se
sabe. Há a concentração de todas as energias, os sentidos tornam-se hipersensíveis,
gerando um espaço-tempo denso, que se distenderá depois. No entanto, na hora, a
sensação é de tranqüilidade e de segurança, porque se sabe que jogou tudo. O perder é,
então, parte da resposta.
RESUMO
RESUMEN
RÉSUMÉ
Il s’agit d’un travail qui a comme objectif d’étudier les déterminations géographiques
de l’objectivation humaine concernantes aux réalisations des individus, manifestées
relativement dans l’objectivation poétique, exposées critiquement a partir d’une
perspective capable d`y attacher l’homme et le lieu. On y présente, donc, la perspective
ontologique qui, en soutenant le thémaire constitutif de la Géographie de la vie,
privilégie la recherche des relations d’objectivation inhérentes aux réalisations
humaines, parmi lesquelles les artistiques. Ensuite, au niveau d’une analyse
compréhensive, adhérente à la critique expositive, on démontre l’opérationalisation du
thémaire, en utilisant comme véhicule l’idée de l’étude de l’homme dans trois
dimensions: corporalité, individualité, socialité. A partir de cela, on met en relation
objectivatrice un être conscient, de géographicité indivise (Ferreira Gullar), et un
espace spécifique d’existence (Buenos Aires), relation qui produit, de façon co-
participante, des effets esthétiques d’une facture humaine (le Poema Sujo) spéciale. Au
moment où on prend, dans ce travail, la méthode progressive-régressive, on veut
montrer certain équilibre tensif dans le registre ontologique de la genèse de cette
objectivation poétique. Ainsi, dans le domaine de l`analyse, au long du travail, on
explore intensivement la relation flottante de ces sujets-là, avec l’intention de chercher
les déterminations géographiques éclairantes du phénomène esthétique Poema Sujo. À
travers la coupure respectueuse des instances sociopolitique, économique et culturelle,
on arrive à un tableau de tension critico-existentiel. Enfin, on discute cette réalisation
poétique comme un acte dans lequel un poète brésilien, en exile, se tourne vers la
sphère de signification adhérent à l`Argentine passée (1976-1983) pour s’y reprendre
dans l’impulse historique globalisant, en approfondissant l’époque et l’objectivation
poétique même.
SUMÁRIO
REFERÊNCIAS................................................................................................................... 317
12
Introdução:
da negação à explicação
analisado por Fernando Gil (Cf. GIL, Fernando. Mimesis e Negação. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1984. p. 35-87.). Segundo esse autor, na filosofia da consciência (a de Kant e a de Peirce,
principalmente), o que é comumente entendido como representação diz respeito, equivocadamente na
acepção do autor, à conjugação pari passu da simbolização, seguida da semelhança e a ação do
representado (o objeto representado, tomado pela intelecção pura). Esse movimento, continuando, não
considerada a representação como a presença, no sujeito, do teor significativo dum pensamento, duma
imagem, duma recordação, duma percepção. Assim, tem-se a representação como produto do intelecto
puro do sujeito, em que o mundo aparece como aprioristicamente dado como representado. (GIL, op. cit.,
p. 42). Nestes termos, aprofundando a sua análise, no preceito kantiano, a “semelhança” de
representação e de representado e a eficácia do representado vão contra a primazia, na ordem da
vivência, dum significante “construído” pelo sujeito na sua relação com o mundo. Este movimento é
comumente feito na geografia que, na apreensão do espaço geográfico, afirma-se quase uma posição
13
niilista de que tudo é representação (inclusive o espaço geográfico), haja vista que esta já é um a priori
inquestionável. Portanto, a representação (o espaço geográfico) obtém de si mesma (do sujeito) a sua
representatividade (intelecção do espaço geográfico).
3 A Geografia Cultural, por um lado, no entender de Paul Claval (Cf. CLAVAL, Paul. A Geografia Cultural.
2. ed. Florianópolis, SC: Editora da UFSC, 2001. p. 54-55.), apreende, em sua essência, a cultura, e apenas
ela, como discurso revelador das relações homem-natureza. Isto é, a cultura produzida, em sua supra-
organicidade, é o motor transformador da relação do homem com o ambiente. A Geografia Humanista,
por outro lado, no entender de Y-F. Tuan (Cf. TUAN, Yu-Fu. “Humanistic Geography”. In: Annals of the
Association of American Geographers. 66, n. 2, 1976. p. 266-276.), é um campo da Geografia que tenta
compreender, à luz dos “fenômenos geográficos”, o homem e sua própria condição em face do mundo.
Com isso, o caráter de Humanismo, na abordagem da Geografia Humanista, utiliza-se da cultura como
entendida reveladora da relação do homem com o ambiente. Para W. Holzer (Cf. HOLZER, Werther. “O
conceito de Lugar na Geografia Cultural-Humanista: uma contribuição para a geografia contemporânea”
In: GEOgraphia, Ano V, n. 10, 2003. p. 113-123.), no movimento próprio de consistência tanto de
algumas variações em torno da Geografia Cultural quanto da Geografia Humanista, é possível se falar em
Geografia Cultural-Humanista em termos de consolidação desse campo na geografia contemporânea. É
esse autor que, de certa forma, nos autoriza à fazer referência à unicidade da Geografia Cultural e da
Geografia Humanista.
4 Nos Estados Unidos, artigos de D. Pocock (Cf. POCOCK. Douglas “Geography and Literature”. In:
Progress in Human Geography, 12, n. 1, 1988.) e de Y-F. Tuan (Cf. TUAN, Yu-Fu. “Sign and Metaphor”.
In: Annals of the Association of American Geographers, 68, n. 3, 1978a.) evidenciam essa tendência.
Na França, em caminho diferente, mas com simile resultado, Armand Frémont, numa aproximação
geográfica à obra de Gustave Flaubert, estudou o “espaço vivido” dos diferentes personagens
flaubertianos. (Cf. FRÉMONT. Armand. Flaubert géographie. A propos d’un coeur simple. In: Études
Normandes, 1981, n. 1, p 49-64.).
14
que afirma unidirecionalmente que tudo que existe no mundo está para o sujeito que o
idealiza5. Neste caso, e expandindo a interpretação, tem-se o espaço (mundo como
representação) equivalente à intelectualização, dotado de homogeneização e pouca
diversidade. E o segundo, o reendossamento, em seu vínculo mais explícito e diverso,
da supra-organicidade da representação cultural, com raízes na antropologia cultural
norte-americana e que tem como premissa básica a cultura como entidade autônoma às
ações dos sujeitos6. Tem-se, aí, a cultura enquanto entidade macroestruturante das
relações do homem com a região. Por inferência às duas vias, tanto do projeto
schopenhaueriano quanto do projeto antropológico-cultural, a reflexibilidade do
espaço geográfico surge como algo dado. Esses dois projetos incidiram na forma de
abertura dos geógrafos cultural-humanistas em relação à literatura, determinando,
5 “O mundo é minha representação. Esta proposição é uma verdade para todo ser vivo pensante, embora
só o homem chegue a se transformar em conhecimento abstrato e refletido. A partir do momento em que
é capaz de o levar a este estado, pode-se dizer que nasceu nele o espírito filosófico. Possui então a inteira
certeza de não conhecer nem um sol nem uma Terra, mas apenas olhos que vêem este sol, mão que
tocam esta Terra, em uma palavra, sabe que o mundo que o cerca existe apenas como representação, em
sua relação com um ser que percebe, que é o próprio homem. Se existe uma verdade que se possa
afirmar a priori é esta, pois exprime o modo de toda experiência possível e imaginável, conceito muito
mais geral que os de tempo, espaço e causalidade que o implicam.” (Cf. SCHOPENHAUER, Arthur. O
Mundo como Vontade e Representação. Rio de Janeiro: Contraponto, 2001.).
6 Expoentes máximos da teoria supra-orgânica da cultura, Alfred Kroeber e Leslie. A. White nos dizem
respectivamente: “Mil indivíduos não fazem uma sociedade. Eles são uma base potencial de uma
sociedade: mas não são, eles mesmos, que a causam. Na verdade, é o nível sociocultural que faz com que
os homens se comportem da maneira com que se comportam.”. (Alfred L. Kroeber apud James S. Duncan.
“O Supra-Orgânico na Geografia Cultural Americana”, In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeni
[orgs.]. Introdução à Geografia Cultural. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003. p. 68.) (Cf. DUNCAN,
James S. The Superorganic in American Cultural Geography. Annals of the Association of American
Geographers, 70, n. 2, 1980. p. 181-198.) (Cf. KROEBER, Alfred L. The Superorganic. In: The Nature of
Culture. Chicago: University of Chicago Press, 1952. p. 22-51.). “Se o comportamento das pessoas é
determinado pela cultura, o que determina a cultura? A resposta é que ela própria se determina. A
cultura pode ser considerada como um processo sui generis.” (Leslie A. White apud James S. Duncan. O
Supra-Orgânico na Geografia Cultural Americana, op. cit., p. 69.) (Cf. DUNCAN, James S. op. cit., p. 181-
198.) (Cf. WHITE, Leslie A.. The Concept of Cultural System. New York: Columbia Press, 1975. p. 3-4.). O
que se pode depreender sinteticamente da teoria supra-orgânica de Kroeber e White e sua influência na
Geografia Cultural Norte-americana (fala-se em Carl O. Sauer e a Escola de Berkeley), diz respeito à
“tradução” do conceito de “supra-orgânico” (conceito cunhado de Herbert Spencer, o pai do darwinismo
social, e aceito por Kroeber) nesse campo de estudo da ciência geográfica. (Cf. CORRÊA, Roberto Lobato.
Carl Sauer e a Escola de Berkeley – uma apreciação. In: CORRÊA, Roberto Lobato; ROSENDAHL, Zeni
[orgs.]. Matrizes da Geografia Cultural. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2001. p. 25.). A idéia assimilada por
Sauer do conceito de “supra-orgânico” é a de que a sua formulação representaria um protesto ao
reducionismo biológico, imperativo ao pensamento social desde o século XIX. “Em realidade, ao
abandonar o determinismo ambiental, Sauer e seus discípulos acabaram engajados no determinismo
cultural, outra versão do darwinismo social contra o qual Sauer tanto lutara.” (Cf. CORRÊA, Roberto
Lobato. op. cit., p. 27.). Vê-se em parte certa negação do homem em seu aspecto ontológico de não ser
apenas um “mensageiro da cultura”. Elevada a este nível, a cultura independe da realidade.
15
7 Faz-se referência aos seguintes trabalhos: Cf. POCOCK, Douglas. Place and the novelist. In: Transactions
of the Institute of British Geographers, 1981, n. 6, p. 337-47. Cf. LLOYD, W.; SALTER, C. Landscape in
literature. In: Association of American Geographers, Washington, DC, 1977. Cf. LEY, David; SAMUELS,
Michael (orgs.). Humanistic geography: prospects and problems. Chicago, Maaroufa Press, 1978.
8 Cf. BAILLY, Antoine. Distances et espaces: Vingt ans de géographie des representations. In: L’Espace
Géographique, 14, n. 3, 1985, p. 197-205. Cf. HOLZER, Werther. A geografia das representações. In:
HOLZER, Werther. A Geografia Humanista – Sua Trajetória de 1950-1990. Rio de Janeiro, UFRJ, 1992.
p. 468-477. (Dissertação de Mestrado).
16
“Lingüística e Poética”, In: Lingüística e Comunicação. 24. ed. São Paulo: Cultrix, 2007. p. 118-162.).
Para ele a literatura (o texto literário, em seu dizer) é a expressão da função estética da linguagem que
vai ao encontro precisamente da seleção de palavras que organizam uma estrutura que realce os seus
diversos significados. Jakobson expõe a combinação de um esquema comunicacional que demonstra as
funções da linguagem verbal (expressiva, conotativa, referencial, fática, metalingüística e poética) que
diferenciam o texto literário do texto não-literário. Da conformidade entre a combinação e a seleção
resulta a literariedade, isto é, o conjunto de propriedades que caracterizam a linguagem literária.
Portanto, quanto maior for a seleção, e a combinação, mais literário é o texto. Observa-se, então, que, na
vontade de definir a linguagem literária dotada de autonomia estético-discursiva, o conceito de
literariedade, carregado de igual unidirecionalidade, fez-se constante nos estudos dos formalistas russos.
17
atém-se a um dos aspectos recorrentes a esse tipo de análise: ver a poesia prenhe de
características romântico-simbolistas10, produzindo efeitos incipientes à abordagem
pois estes induzem o geógrafo a encontrar a não ser aquilo refletido pelo texto poético.
Vejamos. Primeiro, subjacente na análise, e preso ao conteúdo manifesto da poesia de
Patativa do Assaré, o autor imprime à noção de geograficidade – proposta por Eric
Dardel (1990) – o sentido unidirecional de pertencimento de lugar, extraindo passagens
dos textos do poeta para comprovar essa hipótese. Segundo, atendo-se aos simbolismos
de ordem espacial no texto poético, o geógrafo assume mecanicamente o caráter
autotélico da poesia, resolvendo nela mesma as questões de espaço/representação.
Quais implicações isto tem no posicionamento do geógrafo em relação à poesia?
Seeman, no tocante à geograficidade nos textos poéticos, de maneira implícita e
aproximativa, assenhora-se de princípios básicos da poética romântica11. Agindo nos
subterrâneos da análise, tal poética acaba por direcionar o estudo do geógrafo a uma
leitura que prima tanto pela integração naturalista do “eu” e da “natureza” na
linguagem poética (CARA, 1985, p. 35) quanto pela superposição da afirmação do lugar
(nação, região) e da personalidade literária (CARA, 1985, p. 36). Na primeira
orientação, de maneira análoga para o geógrafo, a poesia de Patativa do Assaré
possibilita à simbologia “sertanejo-sertão” agir como forma de integração do homem
com a natura naturans. Na segunda orientação, por sua vez, o geógrafo dá abertura ao
espraiamento da exaltação do subjetivismo emocional do “eu-lírico” em relação ao
lugar natal, o que, conseqüentemente, o possibilita fazer a conotação de pertencimento
de lugar à geograficidade. O segundo efeito incipiente da abordagem de Seemann, o da
unilaterariedade da recepção do caráter autotélico da poesia – aquele que faz com que
o texto poético chame atenção para si mesmo, direcionando o estudo do geógrafo a
resolver na própria linguagem poética os dilemas concernentes aos conteúdos – é
exemplificado pelo sonho de fusão do homem com a natureza que encontra eco na
paisagem telúrica intrínseca à poesia de Patativa do Assaré. Na verdade, tal tomada de
10 Essas características têm haver com a tomada de posição em face da poesia lírica. Em ver nesta, como
nos diz Emil Staiger, “um retorno ao seio materno [natura naturans], no sentido de que tudo ressurge
naquele estado pretérito do qual emergimos”. (Cf. STAIGER, Emil. Conceitos fundamentais da poética.
3. ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. p. 171.).
11 Com o advento do Romantismo, a poesia não se justifica mais como imitação (o conceito neoclássico da
“mimesis” aristotélica), mas como expressão inspirada de uma alma (o transcendentalismo hegeliano).
Há, atrelado a esse aspecto, o mito literário da exaltação do poeta, do “eu-lírico”, isso feito através da
valorização sentimental da emoção individual. (Cf. BERRIO, Antonio García; FERNÁNDEZ, Tereza
Hernández. Poética: tradição e modernidade. São Paulo: Littera Mundi, 1999.).
21
No estudo Três rios. Três regiões. Três poetas., por meio de uma análise
comparativa e uma linguagem simbolista, é bem clara a predisposição do estudo de M.
F. Souza Neto (1997) a uma leitura geográfica que embute na poesia de três autores
(Cassiano Ricardo, João Cabral de Melo Neto e Thiago de Mello) a idéia de construção
de identidades geográficas, reforçando a idéia de representatividade regional. Tal
análise procura articular semelhanças internas à cada texto poético engendrando um
conjunto de associações imagéticas evocadas pelos autores (rio-desbravador; rio-
retirante; rio-grandioso) como forma de circunscricionar teluricamente a
representatividade regional (“O Tietê de Cassiano Ricardo”, “O Capibaribe de João
Cabral”, “O Amazonas de Thiago de Mello”). Significa dizer que o estudo dá vazão à
idéia de telurismo, no que há de mais primevo nessa noção, quando a paisagem telúrica
corporificada pelos rios influencia no caráter e nos costumes dos habitantes dos
lugares. O estudo deixa-se embrenhar desse sentido, no momento mesmo que é
empurrado, de forma incongruente, para uma linguagem simbolista que restringe o
texto poético a depositário de modelo pré-estabelecido com a mera finalidade de se
tornar um espelho que retém situações (Sudeste progressista, Nordeste seco, Amazônia
majestosa) e personagens (“Tietê”, “Capibaribe”, “Amazonas”) como alegorias de uma
mensagem geográfica. Aderente à análise comparativa e motivado pela linguagem
simbolista, o efeito paralelístico12 da comparação entre poetas de regiões diferentes nos
12 Referimo-nos ao paralelismo. Este é exemplificado por S. Spina, a respeito do trabalho de Teófilo Braga
(Cancioneiro da Vaticana), quando da demonstração feita pelo teórico português de semelhanças
estilísticas manifestadas entre as poéticas galego-portuguesas e as líricas de povos orientais (chineses,
egípcios) dos séculos IV e V a.C. (Cf. SPINA, Segismundo. Na madrugada das formas poéticas. 2. ed.
Cotia-SP: Ateliê Editorial, 2002. p. 69.). O paralelismo em R. Jakobson (1985) é uma equivalência entre
dois termos. Tenta-se, na busca por semelhanças, apagar a desigualdade dos termos, forjando o primado
hierárquico de um deles. “Desde os meus tempos de estudante, fui sensível à organização interna, cada
vez mais evidente, do verso dos recitativos populares russos, notadamente pelo paralelismo que ligava,
do princípio ao fim, versos contíguos. Surpreendia-me ainda mais por esse fato capital não ter
despertado interesse de maior parte dos especialistas em folclore russo. Conhecia-se muito bem esse
tipo de organização conseqüente do texto por dois versos, na versificação bíblica – o próprio termo
‘paralelismo’ foi assimilado há exatamente duzentos anos. Comparava-se com ela a organização em
paralelismo, igualmente regular, da epopéia finlandesa. O paralelismo da poesia russa segue de perto tais
sistemas, apesar de ser mais livre e variado.”. (Cf. JAKOBSON, Roman. “O Paralelismo”, In: JAKOBSON,
Roman; POMORSKA, Krystyna. Diálogos. São Paulo: Cultrix, 1985. p. 101-102; p. 99-108.). Pode-se dizer
22
direciona a vê-los como produtores de uma auto-imagem de região e nação coesas que
aglutinam entorno de si grupos sociais semelhantes, direcionando-os à univocidade do
sentido identitário geográfico. No estudo de Souza Neto é possível demonstrar ainda o
quanto a vinculação entre paisagem telúrica (cerrado, sertão, floresta) e produção de
tipos regionais (bandeirante, sertanejo, ribeirinho) fomenta a identidade geográfica, e o
quanto, esta última, reforça tal vinculação. O que se observa, portanto, subjacente ao
estudo, é a reprodução do discurso de que as semelhanças/diferenças reendossam a
unilateriaridade de imagens há muito tipificadas.
que no paralelismo está implícito o risco do excesso de homogeneização devido o afã de estreitar as
diferenças entre os termos.
13 “A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a
atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual. É um método de libertação interior.
A poesia revela este mundo; cria outro.”. (Cf. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1982. p. 15.). Observa-se, aí, a possibilidade, na poesia, da ludicidade contrapor-se ao mundo-
mercadoria. O risco é agudizar o subjetivismo emocional, remetendo, unilateralmente, a poesia ao
sentido de fuga para o mundo interior, este sendo meio de autodefesa do poeta. (Cf. CARA, Salete de
Almeida. A poesia lírica. São Paulo: Ática, 1985. p. 30.).
23
poetas/cantores populares (Mano Lima, Apolinário Porto Alegre, Lobo da Costa etc.)
em relação ao “mundo-mercadoria”, ajuda o autor a confirmar a hipótese da identidade
geográfica (“Rio Grande”, “Pampa”) consoante ao texto poético. Em extensão,
reconhecido o caráter identitário geográfico, o vínculo com a terra tem sua
reflexibilidade na poesia que reforça o identitarismo regional, numa reafirmação do
subjetivismo emocional e do sentido de autodefesa produzido por este. A poesia reflete,
assim, o movimento de reconhecimento (identidade) de grupos sociais em um
território. Os poetas/cantores populares gauchescos, na análise dos poemas/cantos,
conformariam a identidade do gaúcho pampeiro. A simbolização do ambiente,
promovida pelos poemas/cantos, acabariam por circunstanciar o sentido unilateral de
“poesia como o reino dos sonhos e/ou da imaginação” (HAESBAERT, 2002, p. 146).
Nesses poemas/cantos abordados por Haesbaert, num diálogo com o real, o reino dos
sonhos manifesta-se concretamente nos Centros de Tradições Gaúchas (CTGs) que
expressam, não raro, a identidade que rechaça à presença do movimento de
distanciamento (alteridade) de outros grupos sociais no território. São nestes termos
de quase anulação da alteridade que o identitarismo regional se estabelece. Os
poemas/cantos por mais que evidenciem, também, os laços de solidariedade e a
vivência comunitária conjugados numa linguagem romântica de imagem harmônica do
mundo (do “Pampa Gaúcho”) no texto poético, eles, os poemas/cantos, dão mais
abertura interpretativa ao já comentado telurismo, em seu aspecto primevo, no qual a
relação do habitante com sua terra-natal se dá de maneira apologética.
na verdade, a exposição dos “mergulhos” feitos pelo poeta em “situações” estéticas que
lhes promovem a conformação na “representação do movimento da cidade” (SUZUKI,
2005, p. 127). É neste ponto que se desenrola a última parte da análise do geógrafo. E
qual ponto é este?
14 “A literariedade se caracteriza pela mirada sobre a mensagem por sua própria conta... e a literariedade
se encontra no espaço do texto poético (mesmo se ela se encontra em outra parte), que fica sendo o
objeto privilegiado da investigação poética”. Portanto, a análise do texto poético resolve-se em si mesmo.
(Cf. OSEKI-DÉPRÉ, Inês. A propósito da literariedade. São Paulo: Perspectiva, 1990. p. 24-25.).
15 “O novo papel do poeta – do sujeito lírico – diante da cidade moderna: ao mesmo tempo em que se
acentua sua importância, pelo traço característico e insubstituível de seu olhar, de recorte de mundo,
acentua-se também sua impotência em dar um sentido definitivo àquilo sobre o que está falando e em
dominar o próprio instrumento que usa”. Não acentuamos esse caráter de inadaptabilidade em nosso
estudo. Do contrário, tentamos, através de um equilíbrio tensivo entre poeta e poesia, encontrar a partir
de nossa perspectiva um equacionamento em relação a essa questão. (Cf. CARA, Salete de Almeida. A
poesia lírica. São Paulo: Ática, 1985. p. 45.).
25
conteúdos imanentes para abertura a uma outra perspectiva que possibilite o estudo
das determinações geográficas co-participativas às realizações humanas: as artísticas
algumas delas.
os capítulos
16“Só se sai do pensamento cego e simbólico percebendo o ser espacial singular [particular] que traz o
conjunto de experiências vividas que revelam a espessura do mundo.” (Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice.
Fenomenologia da Percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 274.).
26
17“(…) um estudo verdadeiramente positivo do homem situado deveria ter explicado em primeiro lugar
as noções de homem, de mundo, de ser no mundo e de situação.” (Cf. SARTRE, Jean-Paul. Esbozo de una
teoria de las emociones. Córdoba: Facultad de Filosofia y Humanidades/Universidade Nacional de
Córdoba, 1959. p. 22.).
27
analisamos o quanto o exílio (a etapa final em Buenos Aires), entendido como complexo
de complexo, atua no poeta (Ferreira Gullar), co-participando na fatura individual, no
momento mesmo da eclosão da criação artística (Poema sujo); mas, reconhecido o
caráter autotélico parcial desta última. Aqui, a historicidade-temporalidade, do que é
próprio de cada geograficidade vivenciar os seus tempos dentro do Tempo, remete-nos,
não mais à História como instituição inabalável e detentora de grandes momentos
inquestionáveis, mas à história como princípio rememorativo de geografias vividas
pelos indivíduos, em coexistência, no aprofundamento do vivido no interior de uma
totalidade. As implicações, aí, em termos de análise compreensiva, é que o uso do
tempo pelo homem situado (Ferreira Gullar) é o do tempo relativo necessário para a
realização do subjetivo objetivado (Poema sujo) e que, portanto, é único e diferente,
mesmo na esfera de significados que, em dialética, aprofunda o seu vivido. Nestes
termos, o uso do território da vida também é a medida relativa necessária para a
efetiva elaboração do subjetivo, o que implica ao acontecer uma contigüidade mais
densa (revelada), aderente ao próprio corpo. Porém ainda escassa, haja vista que a
abertura é mínima à comunicação do evento. Vemos isso bem quando, numa singular
passagem de Rabo de Foguete, o poeta (Ferreira Gullar) comunica a outro poeta
(Santiago Kovadloff) a fatura em processo, no que, àquele momento, o espaço de
existência (Buenos Aires) apresenta-se como condição de realidade para a liberação do
processo. Nestes termos, a geografia da vida não é senão o movimento da própria
individualidade que, numa geograficidade em condição de exílio, comunica a outra
individualidade a sua realização no ambiente de comunicação comum, mas diferencial,
em que esta se dá. A escala do acontecer, aí, implica uma tímida revelação. Isto faz com
que o evento (o momento da revelação do ato poetante), pela aproximação entre os
sujeitos, se esparge de maneira intermitente. O evento revelado, inicialmente, não vai
além de outras individualidades (Vinicius de Moraes, Eduardo Galeano) o que muito
tem haver com a realidade tensiva na qual a criação artística fora produzida.
Capítulo 1
Prolegômenos: em torno de uma perspectiva
Milton Santos
(Território e Sociedade, 2004)
Como não fazer o que já está consolidado, já que o vazio nos faz recuar a
todo instante? Como não fazer o que não se quer fazer? As respostas provisórias,
obtivemos no remanso difícil da escrita em dois geógrafos: Milton Santos e Armando
Corrêa da Silva. Respostas instigantes a indagações agônicas: “O processo de teorização
é largamente especulativo e bebe profundamente no aleatório. E é preciso jogar-se para
frente, o que pode parecer suicida” (SANTOS, 2004a, p. 48). “A ruptura é o ato objetivo
ou subjetivo do pôr-se a descontinuidade do espaço e do tempo. Ela implica uma
situação de processo sem referências estáveis, que provoca a sensação de vazio. Este
vazio é um momento de interpenetração de contrários que não se põem como
evidência, mas como o desconhecido” (SILVA, 1986a, p. 147). E o que se desconhece? A
certeza do caminho que apenas vai se transludecer no processo e na sua continuada
reformulação. E o que é especulativo? A própria ruptura que nada mais é que o ato de
negar-conservar-superar, pertencente ao próprio fluxo contraditório das idéias
expostas. A efetivação tanto da certeza quanto da ruptura está na dependência daquela
vontade de filosofar de que nos fala M. Santos (2004a)18 e na conexão desta com a vida
ou com as suas virtualidades. Uma vontade de filosofar que não é virtuosismo, mas
abertura necessária ao diálogo com os diversos saberes e a própria vida na construção
de novos instrumentos para análise do que é proposto. Uma vontade de filosofar que
aqui extrapola até o próprio ”léxico geográfico”, mas que o remonta em outra seara: na
crítica do próprio discurso geográfico, na sua reavaliação não-evidente durante o curso
do trabalho. Não sabemos, de fato, se isto é suicídio. Aceitamos o risco em cometê-lo.
Quase tudo na incerteza do nosso caminho nos soa como uma teima que, por
insistência, as idéias vão se aprofundando, descortinando o vazio e nos empurrando
para frente. O caminho e sua reelaboração somente poderiam ser retomados na
existência. É dela que tomamos o partido no fabrico de materiais onto-epistêmicos. É
dela que retiramos a negação-destruição-reinvenção desses mesmos materiais.
Somente na existência e com as possibilidades aderentes à mesma, esparsas certezas se
transformarão em certezas concretas, ainda que passíveis de serem revistas. Posto isso,
o nosso trabalho assenta-se sob um quadro otimista, mas não cego. A um só tempo,
32
insistimos com ele: 1) numa leitura com poeta e poesia junta, na possibilidade de lhes
engendrar um equilíbrio tensivo ao entendimento do espaço/objetivação; 2) numa
leitura da história como núcleo de rememoração de indivíduos e coletividades; 3) num
contraponto entre ser-espacial<->espaço de existência. Vislumbram-se, daí, universais
concretos retirados do real, com retorno sensível ao mesmo. Mas, tomando de M.
Santos (2000, p. 160), tais constatações são fundadas na história real de um
determinado tempo (o nosso). Nestes termos, a pertinência da utopia, para nós, aqui, é
válida em ser mencionada.
Tudo isto apresentado, é hora de perguntar pela última vez. Para onde
apontam nossas aspirações? Com quais instrumentos nos propomos a conhecer? Que
visão filosófico-metodológica os encandeia?
19 “O método existencialista não terá outro meio senão o ‘vaivém’ (o ir e vir); determinará
progressivamente a biografia (p.ex), aprofundando a época [os espaços de existência], e a época [os
espaços de existência], aprofundando a biografia. Até encontrar um termo provisório na pesquisa
[unidade provisória].” (Cf. SARTRE, Jean-Paul. Questão de Método. São Paulo: Nova Cultural, 1987, p.
170.).
33
mas um princípio organizativo dos mesmos. Sendo assim, nem é tanto por nossa
deficiência teórica aqui reconhecida que fazemos uso de tal operativo; mas, sim, o
usamos para apaziguar os aspectos agônicos das descobertas em face das
aproximações feitas. Cremos que é assim que se dá a sua pertinência. Tal operativo é
controlado e não compromete, a nosso ver, nem a exposição geral da forma-conteúdo
do trabalho nem as mediações intrínsecas a ela.
O uso, parti pris, de formas e conteúdos textuais até certo ponto dissímeis
entre si, necessita de um tratamento especial aos mesmos, no tocante a produzirem a
eficácia necessária dos instrumentos de análise aderentes à análise compreensiva. Esse
jogo de contigüidade surge então para deixar fluir a unidade provisória da relação
entre homem e lugar, produtores, ambos, da objetivação do sujeito (poeta) em uma
forma estética particular (poesia). Assim sendo, reconhecida essa contigüidade tênue
de formas textuais em seu manuseio, optamos por classificar os textos na análise
compreensiva em quatro grupos, vislumbrando neles a possibilidade de maior
consistência à aproximação com a nossa visão filosófico-metotológica. São eles: 1)
textos poíēticos (prosa e poesia, principalmente), nos quais basicamente a autonomia
parcial do mundo poetante é invocada e as dimensões autotélica e emocional são
predominantes. M. Bakhtin (2003, p. 153-154) enxerga basicamente na poesia (a lírica
propriamente dita) um processo de auto-objetivação do homem, com a possibilidade
virtual de sua autonomia em face do mundo da vida. Aí, encaixa-se o livro Poema sujo
(poesia), de Ferreira Gullar; 2) textos biográficos (biografia e memória), nos quais
autor e personagem intercambiam posições no ato de descrição de uma vida, pondo em
evidência, no discurso, os domínios do emocional e do figurativo. L. Arfuch (2002, p.
33), apoiada em Philippe Lejeune, vê na narração da própria vida uma forma de
objetivação da experiência vivida. O livro Rabo de Foguete (memória), de Ferreira
Gullar, salvo o teor romanesco implícito a esse livro, é um exemplo desse tipo de texto;
3) textos de relatos (crônicas e entrevistas), cujo domínio perceptivo é preponderante,
têm, com o seu conteúdo ameno, a capacidade de evocar circunstâncias passadas da
subjetividade objetivada20. L. Konder (2005, p. 46) vê na crônica um tipo de relato
capaz de interessar ao Todo societário justamente pela amenidade com que o
20Fazemos alusão ao termo subjetivo objetivado trabalhado por J-P. Sartre, que chama a atenção para o
subjetivo: este não existe senão para se objetivar, devendo, aí, ser julgado em si mesmo e no mundo pela
sua objetivação, ou seja, a sua realização. (Cf. SARTRE, Jean-Paul. Questão de Método. São Paulo: Nova
Cultural, 1987, p. 154.).
36
Essas duas noções são ativadas, na análise compreensiva, tanto pelo aspecto
ontológico, quanto pelo aspecto epistemológico. Pelo aspecto ontológico, o fato de
irmos ao Ser que participa do mundo da vida, faz perguntas e tenta respondê-las
(Ferreira Gullar) é promover o encontro da geograficidade com a reminiscência, pois,
mediadas pelo corpo que vive, possibilitam a reconstituição de uma historicidade
valorizada não pelo caráter irredutível de verdade que lhe pode ser impresso
37
21 “A memória do corpo, constituída pelo conjunto dos sistemas sensório-motores que o hábito
organizou, é uma memória quase instantânea,para a qual a memória do passado serve de base.”. (Cf.
BÉRGSON, Henri. Memória e Vida. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 92.). E. Bosi (1983), em
comentário sobre a obra de Bérgson, afirma que ação e representação (reconhecida a sua
processualidade) estariam ligadas ao esquema geral corpo-ambiente na produção daquilo que foi
lembrado. (Cf. BOSI, Ecléa. Memória e Sociedade. São Paulo: T.A. Queiroz Editor. 1983. p. 7.).
38
22 “A objetividade, portanto, não pode ser separada da subjetividade, nem mesmo na mais intensa
abstração da análise estética mais geral.”. (Cf. LUKÁCS, Georg. Introdução a uma Estética Marxista:
sobre a categoria da particularidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978a. p. 196.).
23 “(...) a objetivação da essência humana [de suas forças essenciais – corpóreas e mentais], tanto do
ponto de vista teórico quanto prático, é necessária tanto para fazer humano os sentidos do homem,
quanto criar sentido humano correspondente à riqueza inteira do ser humano e natural.”(Cf. MARX, Karl.
Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. p. 110-111.).
24 A sociabilidade para G. Lukács (1978b) tem haver basicamente com as relações de objetivações
mediadas pelo trabalho. Este é entendido como princípio formador e emancipatório do homem, na
linguagem marxista. (Cf. LUKÁCS, Georg. As Bases Ontológicas do Pensamento e da Atividade do Homem.
In: Temas de Ciências Humanas. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1978b. v. 4.). Sobre este
conceito nos diz R. Moreira (2005, p. 95): “A sociabilidade é o todo formado pela integração das esferas
inorgânica, orgânica e social, realizada pelo metabolismo do trabalho e orientada no sentido do salto de
qualidade da história natural da natureza (em que se inclui o homem-natureza) para a história social do
41
processo de hominização. Nestes termos, ele vislumbra que o estudo do objeto estético
não pode existir sem sujeito estético (utilizando a sua fórmula). O filósofo húngaro nos
diz: “A proposição ‘sem sujeito não há objeto’, que na teoria do conhecimento
implicaria num equívoco idealismo, é um dos princípios fundamentais da arte [a
literatura, numa forma específica]” (LUKÁCS, 1978a, p. 196). Isto nos permite fazer
uma primeira aproximação da noção de objetivação ao nosso corpus teórico, isto é,
entender que no interior da associação espaço/objetivação, a literatura e,
especificamente, a poesia, adentra como objeto estético (a criação artística, em si)
surgido da interação entre o ser (homem) e o existir (lugar). Tal objeto estético, mesmo
reconhecida a sua autonomia parcial diante do mundo da vida, é dotado de um caráter
ativo de conteúdo não para alcançar o “espírito transcendental”, mas para expressar a
objetivação do ser no mundo da vida, pois é desse ser que tal objeto advém. Com a
primeira inferência nos afastamos do hegelianismo; com a segunda, nos aproximamos
da análise estética lukacsiana. Mas cabe uma ressalva. G. Lukács (1974) também vê na
arte um premente caráter de reprodução fiel da realidade material do mundo. É certa
herança obtida da teoria do reflexo de V. I. Lênin, para quem a estética do “realismo
socialista” deveria ser a cópia incontestável da realidade pós-revolucionária. É a supra-
determinação de uma concepção de estética (o realismo socialista) normatizando,
unilateralmente, os valores estéticos25.
homem (em que a ‘primeira natureza’ se transfigura em ‘segunda natureza’)”. (Cf. MOREIRA, Ruy.
“Sociabilidade e Espaço: As formas de organização geográfica das sociedades na era da Terceira Revolução
Industrial – um estudo de tendências. In: AGRÁRIA, São Paulo, n. 2, p. 93-108, 2005.).
25 O realismo socialista é institucionalizado enquanto “estética marxista-leninista” em 1934, no Primeiro
Congresso dos Escritores Soviéticos. “O pluralismo até então vigente nas artes é substituído pelo
monolitismo ungido pelo regime [bolchevique] e exigido dos artistas através de métodos policialescos.”
(Cf. FREDERICO, Celso. Marx, Lukács: a arte na perspectiva ontológica. Natal, RN: EdUFRN, 2005. p. 83.).
42
algumas formas estéticas (o romance, o conto). Aceitamos tal caráter não em sua forma
pura de reflexo premente de propedêutica, pois acreditamos que, paradoxalmente, o
homem encontra no próprio mundo da vida – o mundo do cotidiano, o mundo da
inautenticidade da vida – a centelha para sua objetivação por meio da arte. Ela, a arte,
retorna ao homem como elevação sensível da relação dele com o lugar. Ela, a arte,
retorna ao homem como um apelo para este superar os seus limites no território da
vida. O nosso trabalho, resolvido tal impasse, é a busca pela centelha para a objetivação
da poesia nesse território. E como resolver esse impasse?
26 Vázquez, referindo-se especificamente à criação artística (obra de arte), nos diz sobre o subjetivo
objetivado: “O objeto [subjetivo objetivado] não é mera expressão do sujeito [reflexo]; é uma nova
realidade que o transcende... No produto artístico [subjetivo objetivado] não temos a vivência que pré-
existia ao processo prático, ainda sem forma – subentende-se que se trata de uma forma artística –, mas
sim a vivência já formada.” (Cf. VÁZQUEZ, Adolfo Sánchez. Filosofia da práxis. 4. ed. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1977. p. 255.).
43
27Durante quase toda a sua vida, Georg Lukács empreende um esforço de desposar a arte do sentido
ontológico de mero reflexo da realidade. Este esforço, segundo C. Frederico, desde Arte e verdade
objetiva, livro escrito em 1933, é a tentativa de superar a teoria do reflexo de Lênin, ainda presente em
suas primeiras obras da fase marxista. (Cf. FREDERICO, Celso. Marx, Lukács: a arte na perspectiva
ontológica. Natal, RN: EdUFRN, 2005. p. 89.).
44
28 Fazemos referência à profundidade do vivido trabalhada por Sartre que nada mais é do que o conjunto
incessantemente sua vida e que se transforma modificando a natureza (…). Nenhuma presdigitação pode
tirar daí a alienação.”.(Cf. SARTRE, op. cit., p. 117.).
30 “Não é preciso perguntar-se por que o ser é orientado, por que a existência é espacial…” (Cf. MERLEAU-
PONTY, Maurice. Fenomenologia da percepção. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 339.).
45
31 “(...) totalização como processo de revelação dialética, como movimento da História e como esforço
teórico e prático para ‘situar’ um acontecimento, um grupo, um homem.” (Cf. SARTRE, Jean-Paul.
Questão de Método. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 158.).
32 “O Ser Bruto é o ser de indivisão, que não foi submetido à separação (metafísica e científica) entre
sujeito e objeto, alma e corpo, consciência e mundo, percepção e pensamento. Indiviso, o Ser Bruto não é
uma positividade substancial idêntica a si mesma e sim pura diferença interna de que o sensível, a
linguagem e o inteligível são dimensões simultâneas e entrecruzadas... É por diferença que há o próximo
e o distante, fazendo existir o espaço como qualidade ou pura diferenciação de lugares.” (Cf. CHAUÍ,
Marilena. Experiência do Pensamento: Ensaios sobre a obra de Merleau-Ponty. São Paulo: Martins
Fontes, 2002. p. 153-154.).
46
33 “A obra de arte não é efeito das condições dadas, mas respostas a elas, por isso é enraizamento e
afirmar que há no ser, mais do que tudo que é dado, de tudo o que pode proporcionar a matéria de um
inventario ou servir de base a um cálculo qualquer, um princípio misterioso que está em conivência
comigo, que não pode não querer também o que quero, ao menos se o que quero merece efetivamente
ser querido, e quero realmente com todo meu ser.” (Cf. MARCEL, Gabriel. El mistério ontológico:
posicion y aproximaciones concretas. Tucuman: Facultad de Filosofia y Letras/Universidad Nacional de
Tucuman, 1959. p. 33.).
47
35“Daí que a totalidade seja, ontologicamente, um instante e, por tanto, pode ser, metodologicamente,
entendida como um corte, como um artifício em favor do entendimento analítico.” (Cf. SILVEIRA, María
Laura. “Por una epistemologia geográfica” In: BERTONCELLO, Rodolfo; CARLOS, Ana Fani Alessandri.
(comp.). Procesos Territoriales en Argentina y Brasil. Buenos Aires: Instituto de Geografia, Facultad
de Filosofia y Letras, Universidad de Buenos Aires, 2003. p. 22.).
49
É hora, pois, da abertura a uma indagação seminal: “Mas que coisa é homem,
que há sob o nome: uma geografia?”37. Uma interrogação ontológica, actus redundantia,
de um poeta que nos chega às mãos para ativar o sentido empírico do artifício
metodológico dentro do prisma nuclear da associação espaço/objetivação. E que
prisma é esse? Referimo-nos ao estudo do homem em três dimensões que evidenciam
concretamente a relação geograficidade e espaço de existência, bem como às
objetivações (a poesia uma delas) surgidas dessa mesma relação. Trata-se de
aprofundar geograficamente aquela proposição de M. Santos (1996a)38 do estudo do
homem em suas três dimensões: corporeidade, individualidade e socialidade –
36 Cf. HESSEN, Johannes. Teoria do Conhecimento. 7. ed. Coimbra: Armênio Amado, 1980. Em seu
comentário acerca da ‘representação geral que toda pessoa culta tem da filosofia’, W. Dilthey afirma: “O
que primeiramente devemos tentar é descobrir um conteúdo objetivo comum em todos os sistemas
históricos à vista dos quais se forma a representação geral da filosofia” (W. Dilthey apud J. Hessen, 1980,
p. 9). Nega-se este sentido de representatividade homogeneizante da história. Juntamente a ele, nega-se
o sentido da “representação geral” que toda pessoa “culta” tem ou dá à poesia – comumente de tipo ideal
reduzindo-a, obviamente, a modo ideal de uma coisa.
37 Cf. ANDRADE, Carlos Drummond de. Especulações em torno da palavra homem. In: ANDRADE, Carlos
Drummond de. Antologia poética. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 182-185.
38 “Gostaria de sugerir, para começar esta discussão do cotidiano que, por gentileza, os senhores
mediadas que são, aqui, pela geograficidade em seu contato com o espaço de existência
e o processo co-determinativo implícito a esse contato. É isto de fato que funda a
perspectiva ontológica. Feitas as primeiras aproximações, é com ela que, com base no
sujeito que participa da vida dizendo “eu” (Ferreira Gullar), na sua objetivação a partir
de uma forma humana específica (a poesia), vislumbramos a possibilidade de
evidenciar empiricamente o estudo geográfico do homem que está, por sua vez, sob os
auspícios da geografia da vida. Veremos como isso se dá no percurso do trabalho.
base em uma perspectiva ontológica, concretizar essa atitude crítica por meio da razão
e da emoção. Estas, juntas, ajudam a evidenciar o papel da proximidade, no que tange
aos aspectos de maior ou menor inter-relação humana no espaço e sua qualificação
(perto, longe). Uma inter-relação que produz, em graus diversos, as objetivações do
mundo da vida. A geografia da vida se entrosa com o homem se fazendo existente no
espaço e no tempo por meio de suas objetivações (o trabalho, a arte, a ciência etc.).
Neste sentido, algumas questões nos levam a aprofundar o significado de algumas
noções relevantes à compreensão da perspectiva ontológica.
Parece-nos que a vida tem vários sentidos. Aristóteles (1969) a quer como
atividade perfeita tendo como forma perfeita o pensamento. A vida, aí, é
autodeterminação ascensional ao mundo inautêntico da vida humana. Ortega y Gasset a
vê enquanto transitividade. “Vivir es ser fuera de si-realisarse” (ORTEGA Y GASSET,
1945, p. 74), uma objetividade radical inerente à criatividade e às contradições
52
próprias do viver. A vida é, aí, uma “estrutura aberta” a esse viver, completa H. Vaz
(2001, p. 99). Queremos pensar aqui, perto daquele filósofo espanhol, que a vida é um
ato imanente da permanência dinâmica e factual (e não inercial) do homem vivendo e
transformando de forma concreta os seus movimentos espaço-temporais durante a sua
existência histórico-geográfica. Isto é, um ato que situa o homem no mundo,
arrancando-o de sua interioridade inercial e o posicionando dinamicamente no espaço
de existência em sua fatura ao mesmo tempo processual, de suas objetivações (fruto da
relação processual homem-lugar), e sintética, da consubstanciação dos momentos
objetivados (o ato criativo, em si). Neste ponto nos aproximamos de E. Martins (2007,
p. 41; p. 47) quando este diz: “a existência realiza-se em uma História e em uma
Geografia”. Ou seja, é descobrir, com esse geógrafo, que a existência do homem se
realiza na síntese-provisória de momentos (na dinâmica de um Cotidiano específico;
numa História específica, diz ele) que se inscreve no espaço (num Habitat específico;
uma Geografia específica, completa ele). Diríamos, também, uma síntese-sempre-
provisória de momentos co-determinada por aquele último.
39“Supõem que, para que a História fosse realmente ciência, precisaria da existência de algo onticamente
histórico. Pois os fatos denominados históricos não seriam históricos, em que só os chamariam assim, em
virtude de nosso modo necessariamente indireto de observá-los.” (Cf. PUELLES, Antonio Millan.
Ontologia de la existencia historica. 2. ed. Madrid: Rialp, 1955. p. 33.).
53
M. L. Silveira nos fala (2006, p. 86): “Insistimos que a existência, muito mais
do que a distância, parece ser hoje o problema do homem.”. Ela nos chama a um
necessitarismo, tanto racional quanto emocional, à compreensão do homem em sua
realização efetiva no mundo. Apoiada parcialmente em Heidegger, anuncia a existência
como “estar fora de mim, estar no mundo”, que, traduzida para a geografia, encontra o
seu referente, digamos assim, na idéia de situação. “A existência é um conjunto de
situações. Estamos com as coisas, com os outros homens e numa esfera de significados”
(SILVEIRA, 2006, p. 86). Na verdade, de maneira aproximativa, é o ato humano do
sujeito (o homem) em se fazer participante ativo no existir (o lugar). “A existência é o
ser em ato”, nos fala M. Santos (2004b, p. 119). “Da existência há que dizer que não se
pode apreendê-la sem a experiência”, nos avisa L. Lavelle (1953, p. 34). Experiência que
é uma vivência e se dá na esfera de significados, e também na esfera do ainda não-
significado, do desconhecido a se fazer conhecido, e nas quais o homem se realiza (ou
quer se realizar) mediante suas objetivações. O mundo comum a toda essa esfera de
significados, de significações objetivadas, é o mundo do espaço de existência. O mundo
de objetivação e de representação, in processus. Mundo que retém, também, o conjunto
de situações cristalizadas numa materialidade evidente: o prático-inerte de Sartre do
qual nos fala M. L. Silveira (2006, p. 87). Mundo da vida que nos evidencia, então, que as
suas significações objetivadas se revelam tanto pela materialidade (o prático-inerte de
Sartre) quanto pela imaterialidade (o invisível de Merleau-Ponty), projetadas que são
pelo homem no ato de lançar-se para fora. Ato de realizar e viver a vida, em sua plena
contradição. Feitas tais aproximações, fica claro, como quer a autora, que o princípio de
preocupação deve ser mais com a vida e menos com o cenário40. Um princípio que
irremediavelmente nos leva ao reconhecimento do aspecto carnal da vida na sua
relação com o mundo vivo. Falamos do corpo: o núcleo primevo da existência.
relação de objetivação existente entre Ser (homem) e existir (lugar); entre vida e
existência histórico-geográfica. É ele, precipuamente, que mostra que a realização do
mundo passa pela realização dos homens, com base na corporeidade e no pensamento
que se suportam dialeticamente. Uma realização que se dá pela relação intercorpórea
dos homens no conjunto de situações vividas que se movem no meio das coisas
cristalizadas, transformando-as ativamente e imprimindo-lhes novos usos. Essa
realização, entretanto, só é concreta, também, quando mediada pelos lugares. Temos,
aí, o corpo situado do homem situado, realizado no mundo pela mediação concreta dos
lugares. Parafraseando M. Merleau-Ponty (1991)41: o corpo parte do mundo, como seu
habitat (lugar), a um desejo de aproximar-se do outro. Isto é feito para tornar mais real,
mais concreto o mundo das significações objetivadas.
41“O corpo é enigmático: parte do mundo, por certo, mas estranhamente oferecido, como seu hábitat, a
um desejo absoluto de aproximar-se do outro e de unir-se a ele também em seu corpo...”. (Cf. MERLEAU-
PONTY, Maurice. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991. p. 259.).
55
concreto”. Entretanto, qual geógrafo pode ignorar o fato de que o exílio, por exemplo,
por mais que inicialmente seja desorientável, é um encontro inesquecível do homem
com a Terra, e o faz, sob circunstâncias especiais, participante ativo no existir? Um
encontro que não é tranqüilo (até cremos que nunca o seja), mas situa o homem nesse
existir, o espaço concreto, para a realização conflitiva, não apenas telúrica, de suas
objetivações. Qual geógrafo pode ignorar que, no paradoxalmente oposto, na terra-
natal (ao modo comumente entendido até então: sentimento de lugar ou Nação), o
homem não encontra uma destinação social às suas objetivações? Obviamente, aí, não é
reduzir o que é mais valorativo ao autodesenvolvimento humano (o momento da
objetivação, em si) em face do mundo da vida: o enraizamento ou o desenraizamento.
Esta dicotomia não nos interessa à evidência crítica da noção de geograficidade. O que é
importante, então, entender para a valorização do autodesenvolvimento humano?
Interessa-nos entender a medida relativa do “pertencimento do lugar”, o que implica
rever a noção de geograficidade e o que coloca o homem, na relação com o lugar, como
produtor de objetivação, sim!, qualitativa e crítica (em nível de maior ou menor
mobilidade no entorno em meio aos constrangimentos sociopolíticos e econômicos em
vigência; e maior ou menor proximidade com os outros) surgida dessa relação; e não!,
determinista e redutora (bom, ruim; enraizado, desenraizado).
criticamente na vida – ora é mais móvel ora é menos móvel. O ato humano, aí,
sustentado pelo corpo vivo, faz escoar as objetivações (a poesia, uma delas) no espaço
de existência, condição de realidade necessária à autonomia parcial, por exemplo, do
mundo poetante. Esta, talvez, seja a medida relativa com a qual vemos o pertencimento
do lugar e que não diz respeito apenas ao plano da extensão (distância), mas, sim,
também, ao plano da coexistência (co-presença). Como assim?
42 “(...) o espaço denota, em termos de possibilidade, uma ordem de coisas que existem ao mesmo tempo,
consideradas como existentes junto, sem importar sua maneira de existir. E quando muitas coisas são
vistas juntamente, percebe-se a ordem das coisas entre si. Em certo sentido, de acordo com esta teoria, o
espaço é simplesmente o conjunto de coisas ordenadas pelas relações espaciais básicas [disposição,
ordenamento e ordenamento de objetos físicos no espaço]”. (Leibniz apud Lacey, 1972, p. 128). (Cf.
LACEY, M. H. A linguagem do Espaço e do Tempo. São Paulo: Perspectiva, 1972. p. 128.).
57
só vez ser, espaço e tempo” (MOREIRA, 2007, p. 157) é no ato humano promotor da
objetivação (trabalho, em seu enfoque; arte, em nosso enfoque etc.). Repetimos, mais
uma vez, que esta última se realiza a partir da interação do Ser (homem) com o existir
(espaço). Uma realização que é o autodesenvolvimento humano (ato criativo, em si)
consoante com o segundo sentido ontológico da geograficidade: o movimento de auto-
poíēsis (a auto-produção do homem), este, comunicado pelo autor. Esse segundo
sentido, por aproximação, seria, então, aquilo já manifestado por Lukács no tocante a
objetivação (o ato de auto-produção, também), ser ela uma elevação da consciência
humana. Com o geógrafo, estamos próximo, num caminho incipiente, a afirmar, aí, na
geograficidade indivisa (ser, espaço e tempo contidos em seu movimento), a condição
do Ser de ser um ser-espacial, dotado de corpo hominiano que situa intelectiva e
emocionalmente a si no mundo; ser-espacial que inclui no seu processo formativo a
geograficidade como elemento de retomada do próprio fazer histórias (historicidade-
temporalidade) que envolve as coexistências no mergulho à profundidade do vivido;
ser-espacial que interroga e que é chamado a responder, mesmo em silêncio, mesmo no
fracasso.
do ser esse geógrafo nos fala? O que eles significam? Num primeiro momento, há uma
constatação, por parte do autor, de que a “primeira geografia” (a geograficidade) é
resultado da relação homem-meio, na qual fica estabelecida a propriedade geográfica
(socioespacial) dessa primeira geografia. Essa constatação está mais no âmbito da
cognoscibilidade predicativa (ao estilo heideggeriano) que da vivência. A partir de tal
cognoscibilidade, é atribuído à “descrição” o papel de reter o fenomênico na relação
homem-meio: a materialidade evidente que cerca o sujeito (MARTINS, 2007, p. 39;
p.50). A descrição representa o procedimento cognitivo de necessária percepção para
predicar o “geográfico”, de antemão, dos sentidos de localização e distribuição
(MARTINS, 2007, p. 39). Neste outro momento, aí se posta a geograficidade e, parece-
nos, então, surgir com força os adjetivos constituintes da mesma – espaço, tempo,
relação e movimento –, estes, outrossim, que acabam por revelar a geograficidade
enquanto fundamento ontológico do ser (o ser de um ente, na linguagem predicativa de
Heidegger) (o homem), produtor de objetivação (o meio) (MARTINS, 2007, p. 40). O
que nos leva a pensar o autor sobre a geograficidade? Esse geógrafo leva-nos a pensar
que a geograficidade é um compósito de categorias da existência em face do que é
processual na relação homem-meio, até aqui iremos com ele. Contudo, cada momento
da realização (o trabalho, a arte, p. ex.) reflexiona a condição dada pela objetivação
maior (o meio)43, daqui nos afastamos dele. É para onde a sua geograficidade nos
direciona: a essência do ser (e o ente: homem, na linguagem heideggeriana) é
configurada a partir de determinações geográficas (e históricas), e condicionada,
mormente, por elas. O risco, aí, é recairmos, ao modo ratzeliano, na supra-
determinação geográfica sobre o ser. Uma determinação geográfica (social, fisiográfica)
que predica as formas essenciais do ser, na sua localização e na sua distribuição. Ou
seja, na senda do geógrafo, o lugar predica, unilateralmente, a nosso ver, a forma de ser
do sujeito.
43“A essência do ser configurar-se-á a partir de determinações geográficas (e históricas), posto que são
determinações da existência.” (Cf. MARTINS, Élvio Rodrigues. Geografia e Ontologia: o fundamento
geográfico do ser. In: GEOUSP-Espaço e Tempo. São Paulo, n. 21, pp. 33-51, 2007. p. 41.).
59
44“O ser do homem se confundirá com a mundaneidade do meio, em que a dicotomia entre homem-meio
é superada quando tomamos o nosso ser a partir das nossas objetivações, e de nossas objetivações na
construção de nossa subjetividade.” (Cf. MARTINS, Élvio Rodrigues. “Geografia e Ontologia: o fundamento
geográfico do ser”. In: GEOUSP-Espaço e Tempo. São Paulo, n. 21, pp. 33-51, 2007. p. 41.).
60
geográfica. É ir parcialmente por dentro desses conceitos e, logo a seguir, agregar valor
ao espaço de existência.
Esse espaço banal agrega valor ao espaço de existência justamente por nos
trazer a possibilidade do estudo espacial do cotidiano45. A geografia da vida quer ser,
também, esse estudo espacial do cotidiano. Apoiados ainda por M. Santos (1996a), no
tocante a esboço feito sobre a abordagem das três dimensões do homem, ativamos esse
estudo, em nossa perspectiva, a partir de um já anunciado prisma: o estudo geográfico
do homem tomando como base explicativa as dimensões da corporeidade, da
individualidade e da socialidade. Afinal, repetindo, é esse estudo que mostra de forma
concreto-empírica a relação geograficidade e espaço de existência, bem como as
objetivações surgidas dessa mesma relação. Em nosso trabalho, temos como análise
compreensiva a prova ontológica, um ser participante que é capaz de dizer “eu”
(Ferreira Gullar) – homem situado de geograficidade indivisa, ser-espacial na
inexatidão da existência – objetivando-se via criação artística, em espaços de existência
45“Com o papel que a informação e a comunicação alcançaram em todos os aspectos da vida social, o
cotidiano de todas as pessoas assim se enriquece de novas dimensões. Entre estas, ganha relevo a sua
dimensão espacial, ao mesmo tempo em que esse cotidiano enriquecido se impõe como uma espécie de
quinta dimensão do espaço banal, o espaço dos geógrafos.” (Cf. SANTOS, Milton. A Natureza do Espaço:
Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. 1. reimpr. São Paulo: EdUSP, 2004b. p. 321.).
61
há dentro de cada homem situado, de cada homem banal. Homem que existe, então,
para se objetivar, devendo ser julgado, devida ou indevidamente, em si mesmo e no
mundo da vida pelas suas realizações (as estéticas, algumas delas). É o sentido de luta
que, referido anteriormente, engendra à individualidade humana a forma conflitiva de
se defrontar com o que já existe, para a sua reinserção no mundo da vida pelas suas
novas realizações, e, com elas, lhes serem imputados novos julgamentos. “O inevitável
conhecimento da individualidade produz do mesmo modo inevitavelmente uma
coloração do comportamento pleno de sentimento.”, nos fala G. Simmel (2001, p. 379).
Essa plena abertura para o sentir que a individualidade nos traz, afirma a coloração
diversa do comportamento da geograficidade participativa em meio ao conjunto de
situações já estabelecidas. Interpela a vida para se recondicionar ao conjunto de
situações e para restabelecer a possibilidade de um novo subjetivo objetivado (uma
outra teoria, um outro poema, p. ex.). A geograficidade eleva, assim, os diversos graus
de consciência na relação consigo, com o outro e com o coletivo humano.
Mas pensar o mundo da vida sem levar em conta a condição escalar dos
sujeitos no processo de objetivação, no processo de suas realizações, levar-nos-ia à
incompletude do encontro entre geograficidade e espaço de existência. Isto nos força a
uma tentativa de compreensão da tríade do Ser (corporeidade, individualidade,
socialidade), no âmbito da produção do acontecer, que remete tanto às gamas variadas
de ações do sujeito (ou dos sujeitos) no movimento de auto-poíēsis, quanto à
possibilidade de criação de subjetivos objetivados em meio às situações existentes.
Aqui não há outra saída senão nos lançarmos ao dialogo transversal com a variante de
escala geográfica, com uma específica variante, aquela expandida por M. L. Silveira
(2004): a escala do acontecer46. Esta escala revela, para nós, numa transversalidade
inócua, a importância dos eventos, de sua magnitude, na criação de subjetivos
objetivados (a poesia, o conto etc.) e a comunicação destes a outrens, seja num lugar
comum a estes ou distante deles. É com ela, a geógrafa, que, de maneira transversa,
iniciamos esse debate necessário ao entendimento da participação da geograficidade,
em termos de criação de subjetivos objetivados, no espaço de existência.
46Essa escala do acontecer, deixemos claro, é uma escala de ação constituída pela magnitude dos eventos
produzidos pelos diversos sujeitos (homens, instituições, empresas, Estado em diversos níveis etc.)
numa determinada situação (área de ocorrência, nos fala M. Santos. Cf. SANTOS, Milton. A Natureza do
Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. 1. reimpr. São Paulo: EdUSP, 2004b. p. 152.), e que, aí,
produz-se a escala do fenômeno (SANTOS, op. cit., p. 152), do fenômeno realizado que varia com os
tempos dentro do Tempo – as diversas temporalidades envolvidas na objetivação dos sujeitos no existir,
produtoras, aquelas, de maior ou menor extensão. “A noção de escala do acontecer pode assim ser
fundida com a noção de escala geográfica.”, nos diz M. Santos. (SANTOS, op. cit., p. 155).
64
Parece-nos que, até aqui, o temário proposto à geografia da vida nos permite
afirmar que o adensamento da perspectiva ontológica está concluído, ao menos
provisoriamente. Isto nos remete à complexidade dessa perspectiva, haja vista que ela
tem no Ser (homem) e no existir (espaço), numa conjugação dialética, o princípio
norteador para a investigação de relações e processos que consubstanciam as
realizações humanas (suas objetivações) no espaço de existência, e, deste, essas
mesmas realizações recebem uma contrapartida necessária à objetivação: a síntese-
sempre-provisória que é a criação (a criação artística, uma delas) que está a meio
caminho do mundo da vida (realidade empírica) e a meio caminho do mundo da criação
(mundo poetante). Esta criação, por sua vez, remete à presença do ato humano que, em
sua geograficidade participativa, anuncia a sua realização ao espaço total da vida.
Prova ontológica
47“A práxis implica uma demonstração teórica e em uma demonstração prática. A primeira, remete à
consistência do argumento e a segunda à verificação empírica. O trabalho intelectual científico tem essa
característica”. (Cf. SILVA, Armando Corrêa da. De quem é o pedaço? Espaço e Cultura. São Paulo:
Hucitec, 1986a. p. 131-132.).
68
48 “Seguramente aqueles foram os sete anos mais cruéis e infelizes [1976-1983] da vida nacional
Argentina, no século XX. Anos de sangue e chumbo que tornaram quase que inofensivas todas as
ditaduras anteriores que o país padecera, inclusive a do tirano Rosas. O ódio que embalou os militares
contra a guerrilha peronista e marxista envolveu-os num carrossel de matanças, movidas pelos mútuo
desejo de extermínio. Violência desmedida que ultrapassou qualquer parâmetro de possível
racionalidade ou compreensão, merecedora de figurar como um dos piores capítulos da história
universal da infâmia. Até os nossos dias, a ciência política jaz perplexa frente ao que aconteceu no mais
próspero dos países latino-americanos. Um dos aspectos mais chocantes do massacre ocorrido, tratando-
se de uma nação profundamente identificada e inserida na tradição ocidental, foi o fato de que o
genocídio foi levado adiante numa sociedade que se orgulhava da sua cultura e do seu notável padrão
69
fez-se com palavras “sujas” em meio ao mundo “sujo”. Eis a condição de realidade
estabelecida para a fatura poética. Ela encarna, em Buenos Aires, o outro da relação de
objetivação, haja vista que o eu da relação de objetivação é Ferreira Gullar.
civilizatório.” (Cf. SCHILLING, Voltaire. Argentina, ditadura e terror. Porto Alegre: Memorial do Rio
Grande do Sul, Cadernos de História, s/d, n. 14. p. 1-2.).
49 “Eu, pelo contrário [referindo-se aos trabalhos de Victor Hugo e Pierre-Joseph Proudhon sobre o 18
Brumário], demonstro como a luta de classes na França criou circunstâncias e condições que
possibilitaram a um personagem medíocre e grotesco desempenhar um papel de herói.” (Cf. MARX, Karl.
O 18 Brumário e Cartas a Kugelmann. 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002. p. 14.).
50 “Assim, a volta à biografia [os caminhos percorridos pelo autor] mostra-nos os hiatos, as fissuras e os
acidentes ao mesmo tempo que confirma a hipótese (do projeto original) revelando a curva da vida e sua
continuidade... é ao mesmo tempo um vaivém enriquecedor entre o objeto [o sujeito] (que contém toda a
70
época como significações hierarquizadas) e a época (que contém o objeto na sua totalização)” (Cf.
SARTRE, Jean-Paul. Questão de Método. São Paulo: Nova Cultural, 1987. p. 176.).
71
Capítulo 2
A Geografia da vida na tessitura do corpo do poeta*
Maurice Merleau-Ponty
(Fenomenologia da Percepção, 1999)
Ruy Moreira
(Pensar e ser em geografia, 2007)
O ser-espacial e a corporeidade
* Concebemos aqui o poeta como indivíduo real-existente, homem produtor de sua poesia e não somente
como indivíduo formal-discursivo, concedendo à voz lírica sua inventividade (esse poeta concede à voz
lírica, a sua inventividade e a ficcionalidade da mesma). Portanto, uma geograficidade que permeia e é
permeada pelo fazer poético, um liame tênue entre o ir e vir da arte e da vida.
51 Cf. MARCEL, Gabriel. Filosofia della vita. Milano: Fratelli Bocca Editori, 1943. pp. 31-40. Queremos
reter desse filósofo o sentido imanente do mistério ontológico e não o sentido transcendente. Qual seja?
O de retirar o sentido proto-teológico inerente à sua concepção de esperança (o mistério ontológico, em
sua análise), mergulhando-o na vida humana com todo o seu caráter inautêntico.
73
lugaridade)52 ainda não realizadas pelo homem em suas histórias, que são elas todas
humanas.
suas primeiras obras filosóficas (dentre elas o Ser e o Nada). A vivência, aí, para ele, refere-se “ao terreno
em que o indivíduo é perpetuamente inundado por ele mesmo, e suas riquezas e consciência pregam-lhe
a peça de se determinarem a si mesmas através do esquecimento”. (p. 212). O filósofo dá maior
consistência a essa noção quando, a partir de Crítica da Razão Dialética, a vivência passar a ser vista do
ponto da intersubjetividade, ou seja, daquilo que chamou de “espírito objetivo”, “dentro do qual cada
membro de um grupo ou sociedade refere-se a si próprio e aparece para os outros, estabelecendo
relações de interioridade entre pessoas que derivam das mesmas informações ou do mesmo contexto”.
(p. 213). (Cf. SARTRE, Jean-Paul. Itinerário de um pensamento, In: SADER, Emir (org.). Vozes do século:
entrevista da New Left Review. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997a. pp. 207-241.) É certa herança obtida
de J-P. Sartre a partir da leitura da obra de E. Husserl. Este, através de seu método fenomenológico,
propõe uma abordagem através da intuição pura e da descrição dos conteúdos fenomenais das vivências,
dados à consciência com evidência numa visão imanente. (Cf. HUSSERL, Edmund. L’Idée de la
Phänomenologie. Paris: PUF, 1958.).
74
Milton Santos (2004b, p. 80) observa que o homem, mesmo nos dias atuais,
diante de escolhas cada vez mais limitadas, ainda utiliza a corporeidade como
instrumento da ação. De que nos vale tal observação? Ainda que interpostas quaisquer
limitações, tal apontamento vale para reafirmar que é pela corporeidade sempre
mutável de si que o homem participa, primeiramente, da transformação de si e, depois,
das coisas que acontecem no tempo. É o primado de uma ontologia historicizada que se
desvela através da corporeidade e que dá um sentido histórico ao ser-espacial. A
corporeidade, entendida como núcleo incipiente do espaço de existência, força o ser-
espacial a ter uma situação in acto diante da vida, dando-lhe, outrossim, uma
capacidade historicizadora de moldar formas de relação com/no entorno da vida.
Tomando de R. Hollel (apud Li Carrilo, 1968, p. 12), é essa situação que caracteriza o
modo de ser do homem (o nosso ser-espacial) no mundo e que pode nos fazer
compreender o corpo como norteador da relação primeva com outros homens.
54 Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. Signes. Paris: Gallimard, 1960. p. 213. Diz-nos ele: “existir é habitar
(investir) seu próprio corpo [no mundo]”.
55 Os entes aos quais nos referimos são: os outros homens-habitantes, os demais seres vivos, bem como
os objetos criados pela ação humana. A factibilidade circunstancia a facticidade das relações e dos
objetos criados. O fáctico torna as relações e os objetos criados factíveis.
O ente na acepção nominal “ut nomen”, ganha uma feição essencialista. Aí, a essência é o princípio de
atividade e de inteligibilidade das coisas. O ente na acepção participial “ut participium”, derivado de
“participáre” – participar, ganha uma feição existencial. Aí, a existência em ato é o princípio de atividade
e de inteligibilidade das coisas. Na primeira acepção, parte-se da essência para explicar a emergência da
existência. Na segunda acepção, parte-se da facticidade da existência para chegar a essência. (Cf. BLANC,
Mafalda de Faria. Introdução à Ontologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.) (Cf. ZUBIRI, Xavier. Sobre la
Essência. Madrid: Sociedad de Estudios e Publicaciones, 1972.).
76
Não sendo coisa no mundo, mas sim relação com outrem no mundo, os
sentidos unificados à corporeidade – o corpo em movimento – ajudam a entender a
relação de intercorporeidade que envolve o circuito coletivo de inter-relações do
mundo da vida. Essa relação de abertura de corporeidades entre corporeidades, tanto
observada por M. Merleau-Ponty (2006), é que, de certa maneira, ajuda-nos a ver a
relação intercorpórea como um sintético-sempre-provisório da situação espaço-
temporal do ser-espacial, em sua maneira de usar de forma comunal, mas diversificada,
o espaço. Neste sentido, é aos modos habituais que reportamos à valorização da
indissociabilidade dialética do corpo e do pensamento, que, por sua vez, dão
objetivação, via trabalho e/ou arte, à vivência geográfica da existência. Mas para onde
aponta tal afirmação? Aponta para o entendimento de que somos o que somos porque
somos unos in acto no espaço, quando, neste, as idéias marcam a individualidade do
ser-espacial e ambas se suportam dialeticamente na corporeidade encarnada no
mundo da vida para fatura das significações objetivadas.
56“O sensível, carne do mundo, é interioridade e exterioridade, é laço que nos enlaça às coisas enlaçando
nossa mobilidade à delas e nossa visibilidade à delas.” (Cf. CHAUÍ, Marilena. Janela da Alma, Espelho do
Mundo. In: NOVAES, Adauto (org.). O Olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. pp. 31-63.). Eis a
totalização sensível.
79
É J-P. Sartre (1972, p. 53) que nos apresenta ao homem situado. Sobre ele,
nos diz o filósofo: “Duma maneira geral o que interessa é o homem situado, visto que
um estudo aprofundado do homem situado deve explicar em primeiro lugar as noções
de homem, de mundo, de ser no mundo e de situação”. Esta é, junto com o corpo em
movimento, outra abertura para traçar caminhos possíveis de compreensão da
geografia da vida que aqui expomos. Uma geografia da vida que tem no homem situado
a revelação essencial do ser-espacial, que é ele próprio, em fazer de sua existência a
história de sua geograficidade no mundo. A situação é, acima de tudo, entendida como
situação geográfica, pela qual o espaço de existência ganha em profundidade e se
estabiliza temporariamente. Essa situação é o depositário de sentidos apreendidos pela
corporeidade e pelo pensamento racional-emotivo, e, com os quais, o ser-espacial
baseia o modo de ser de sua existência numa existência histórico-geográfica.
O que vem a ser essa ação poíētica do homem situado diante do mundo? A
ação poíētica, no duplo sentido admitido pela poíēsis57, reverte para o homem situado a
tarefa essencial de permanência dinâmica na vida através da criação de objetos, atos e
situações. Ela, a poíēsis, enlaça-se à práxis, aglutinando nesta, outrossim, um sentido de
ação poíētica. É a corporeidade emocionada que medeia o enlaço entre práxis e poíēsis,
entre a reiteração e a criação. É esse enlaço que ameniza os fins prático-imediatos
assumidos, vez outra, pela corporeidade. Uma vivência imediata da consciência que se
transmuta, agora, em vivência corpórea sensível quando, aí, o ser-espacial faz a própria
mediação entre práxis e poíēsis. Aí, a dialética inevitável entre o que é criado e o mundo
da vida nos ajuda a compreender que a esse mundo o homem situado pode chegar
tanto por aquilo que idealiza como formas intuídas e imaginadas pela criação artística
(p.ex.: a criação literária em prosa e verso, a música etc.), possível à vida, quanto pode
chegar pelas apreensões onto-espistêmicas, igualmente criadas, relativas ao mundo. A
dialética assumida, aí, entre poíēsis e práxis, que nos remetem à ação poíētica, é para
servilizar as coisas na existência histórico-geográfica vivenciada, remetendo-lhe
possibilidades e não o contrário.
57 Aqui, assim como na primeira parte deste trabalho, lembramos mais uma vez o duplo sentido da
poíēsis embutido na sua variação grega: o de se revelar criadora de objetos, de atos e de situação e o de
ser expressão artística, ora em verso ora em prosa, nessa base existencial criada pelo homem. (Cf.
LEFEBVRE, Henri. Metamorfose da Filosofia: Poièsis e Metafilosofia. In: Metafilosofia: prolegômenos. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. pp. 363-399.).
82
58Durante quase toda a sua vida, Georg Lukács empreende um esforço de desposar a arte do sentido
epistemológico de mero reflexo da realidade. Este esforço, segundo C. Frederico (2005), desde Arte e
verdade objetiva, livro escrito em 1933, é a tentativa de superar a teoria do reflexo de Lênin, ainda
presente em suas primeiras obras. (Cf. Frederico, Celso. Marx, Lukács: a arte na perspectiva ontológica.
Natal, RN: Editora da UFRN, 2005. p. 89.). Esse filósofo húngaro representa uma vertente de discussão
83
Esse ir e vir entre ação poíētica e mundo da vida é que, por outro lado,
afirma a individualidade do homem situado na criação artística. Criação, esta, que em
muito é uma manifestação do espírito humano, dos valores próprios de humanidade,
que busca a objetivação pela arte, dirigindo o ser-espacial para além da objetividade
aparente própria da “arte pela arte”, tanto em voga em fins do século dezenove e início
do vinte. Fórmula falsa a da “arte pela arte”, nos diz E. Lévinas (2001, p. 45-46), que
situa a arte por cima do real em movimento e que libera o artista de seus deveres de
homem, assegurando-lhe uma nobreza pretensiosa e fácil. Arte que, assim admitida,
hipervaloriza a autonomia em face do mundo da vida agindo de forma semelhante ao
projeto hegeliano da arte como domínio pertencente à ordem espiritual que transcende
a vida terrena.
dentro do marxismo que defende a existência de uma herança hegeliana no pensamento de Marx, e que
assume a aceitação de uma tendência progressiva na história. Talvez, seja neste outro ponto, que não há,
de nossa parte, uma adesão total à sua acepção filosófico-estética. Acreditamos, e é o que tentaremos
mostrar neste trabalho, na geograficidade, geografia vivida em ato, enquanto elemento de reconstituição
do próprio real em movimento que, mesmo no ir e vir da existência histórico-geográfica circunstancia a
retomada de o próprio fazer histórias que envolvem as vivências. Em tais vivências surge a possibilidade
da reminiscência (rememoração) ser o elemento modelador desse mesmo movimento.
84
Pablo Neruda (2004, p. 40-41), à sua maneira, num apelo emotivo marcado
por geograficidade específica, nos direciona ao caminho de uma forma particular de
criação artística que medeia a partilha de espaço com outrem. “O caminho da poesia vai
para fora, pelas ruas e fábricas... está em todos os lugares das lutas humanas, em todos
os combates, em todas as campanhas que anunciam o mundo que renasce...”. A poesia,
ela, é uma forma particular de arte que se anuncia enquanto solo criativo do ser-
espacial e que se pretende unificadora do corpo e do pensamento. Ela estabelece a
tensão unificadora inscrevendo o homem no mundo e mediando o que há de afirmativo
e de negativo nessa presença. A poesia, forma de objetivação específica do ser-espacial,
afora alguns interstícios especulativos59, surge, antes de tudo, da relação do homem
situado com o lugar, o espaço de existência. Dito isto, “a atividade poética busca uma
relação intensa com o ‘mundo-da-vida’”, fala A. Bosi (2000, p. 132), interrogando-o e
concretizando-o em outra seara de possibilidades de vivências quando “a poesia dá voz
à existência simultânea, aos tempos do Tempo, que ela invoca, evoca, provoca”,
completa o autor.
59 Faz-se referência ao modelo estético hegeliano e às vanguardas européias do início do século vinte
(Dadaísmo, Surrealismo, Futurismo e Concretismo). Estas que, por sua vez, primam por certo
transcendentalismo e abstracionismo excessivos.
85
derramá-la”. (Cf. PAZ, Octavio. A outra voz. São Paulo: Siciliano, 1993. p. 143.).
88
teleologia a ser assumida pela arte, é no processo, e não antes deste. É na vivência
sensível da consciência, no corpo emocionado lançado na existência histórico-
geográfica sendo vivida e a viver, que algum caráter teleológico a poesia vai assumir.
Nem antes, nem depois. Outrossim, cabe aos existentes, na dinâmica de recepção da
arte, não utilitarista em si, imprimir quais valores teleológicos serão assumidos. Em tal
dinâmica é que se saberá qual tipo de fazer poético será mais perene. Isto, em menor ou
maior grau, dependerá do confrontamento do poeta e dos demais existentes com o
contexto.
ser-espacial não vive senão para conhecer as medidas exatas e inexatas de suas relação
com/no espaço de existência, é que a perspectiva ontológica faz algum sentido. Este
sentido, por sua vez, é efetivado quando passamos a operar com a fundamentação
recíproca das duas perspectivas: a ontológica e a epistemológica. Esta maneira parece-
nos a mais eficaz ao operativo dessa reciprocidade. De certa forma é, na esteira de M.
Santos (1996b), reconstruindo os modos de fazer (o método) através da vida (isto é, do
Homem vivendo), que tal fundamentação recíproca se tornará concreta.
62 Essa noção se encaixa, assim imaginamos, àquela noção de temporalidade que M. Santos fez alusão em
uma passagem ao tempo vivido pelos homens, pelas empresas e pelas instituições que seriam diferentes
de lugar para lugar. Assim ele se expressa: “A temporalidade deve ser considerada como uma
interpretação particular do tempo social por um grupo ou por um indivíduo.” (Cf. SANTOS, Milton. A
Natureza do Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. 1. reimpr. São Paulo: EdUSP, 2004b. p.
267.). Fernand Braudel, o historiador da longa duração, aquela que marca o tempo das estruturas (o
tempo longo) e escapa às vicissitudes do tempo curto, faz uma ponderação acerca do tempo vivido pelos
homens: “o tempo vivido, o tempo da história do dia a dia tem suas durações partilhadas em tempos
diferentes (...). A linguagem filosófica, na França, fala, a esse respeito, de temporalidades entre as quais o
tempo vivido se divide.” (Cf. BRAUDEL, Fernand. Reflexões sobre a história. São Paulo: Martins Fontes,
1992. p. 354.). Em nosso estudo, de certa forma, são a estas temporalidades a que nos referimos. Mais
exatamente, a uma específica temporalidade de uma evidência empírica do ser-espacial, do homem
situado, qual seja, a temporalidade do poeta Ferreira Gullar, ou a imagem dela.
91
63 Cf. BENJAMIN, Walter. O Narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai Leskov. In: Magia e técnica,
arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994. p. 211.
(Obras escolhidas; v.1). “Mnemosyne, a deusa da reminiscência, era para os gregos a musa da poesia
épica”. Na tradição platônica a reminiscência é entendida como lembrança de uma verdade que,
contemplada pela alma no período de desencarnação, ao tornar à consciência se evidencia como o
fundamento de todo conhecimento humano. Não nos filiamos a essa tradição transcendentalista.
Seguimos de perto, mas com prudência, os conselhos de W. Benjamin (1994) que, ao utilizar a
reminiscência como faculdade que transmite acontecimentos de geração em geração, o sujeito ultrapassa
o dualismo da interioridade e da exterioridade quando na reminiscência é percebida a unidade
provisória de sua vida na corrente vital do seu passado (p. 211-212). Ao corpo cabe a restituição desta
reminiscência no presente, imprimindo neste, novas formas de objetivação humana (novos escritos a
partir da rememoração; construção de espaços de memória para salvaguardar a história presente;
circunscrição de testemunhos em relatórios etc.).
92
A busca pelos liames sutis que unem lembrança ao presente tem como
mediador o corpo que vive. A ação poíētica revelada a partir deste reencontro
transmuta-se através da síntese sensível – a arte (e num plano mais específico, a
poesia) – que é objetivada pela celebração reminiscente da corporeidade conjugada
dialeticamente com o pensamento. O caso de Gullar é emblemático no momento mesmo
que constrói o Poema sujo a partir da rememoração da São Luís do Maranhão da década
de 1940, no exílio, na Buenos Aires da década de 1970. O passado, aí, é possível quando
nos reportamos ao presente e na medida mesma que dotamos um papel nuclear à
64Esse insight de saber que a lembrança vem à tona quando está submersa no corpo nos é demonstrado
por Ecléa Bosi a partir de uma aferição bergsoniana para o seu trabalho. Ela nos diz: “Somos tentados, na
esteira de Bergson, a pensar na etimologia do verbo. ‘Lembrar-se’, em francês se souvenir, significaria um
movimento de ‘vir’ ‘de baixo’: sous-venir, vir à tona o que estava submerso.” (Cf. BOSI, Ecléa. Memória e
Sociedade: lembrança de velhos. São Paulo: T. A. Queiroz, 1983. p. 9).
93
65 No texto, utilizaremos alguns fragmentos extraídos das conversões que obtivemos pessoalmente com
Ferreira Gullar no ano de 2006 (meses de novembro e dezembro). As conversões compõem o APÊNDICE
B – Geografia da vida, conversações com Ferreira Gullar. Este último segue, sinteticamente elaborado no
final do trabalho.
96
66 Símbolos da repressão militar argentina na década de 1970 tanto o Ford Falcon quanto as Patotas
serviram como modalidades básicas da máquina estatal desaparecedora de pessoas. O Ford Falcon,
principalmente o de cor verde, era utilizado basicamente na operação dos seqüestros tanto de
guerrilheiros peronistas, anarquistas ou marxistas quanto de quaisquer pessoas próximas a eles ou que
pudesse dar alguma informação à captura dos mesmos. No informe Nunca Mais... (Cf. SÁBATO, Ernesto
(comp.). Nunca Mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na
Argentina [Conadep], presidida por Ernesto Sábato. [Relatório Sábato].Porto Alegre, RS: L&PM editores,
1984.) não raro os testemunhos evocam a participação desse veículo na operação dos seqüestros: “Então
me levaram à força e me atiraram no chão de um carro, possivelmente um Ford Falcon, e começou a
viagem.” (Norberto Liwsky. Nunca Mais, p. 17); “Os vizinhos dizem que meu irmão foi levantado pelos
ombros por dois sujeitos e introduzido em um Ford Falcon. Essa é a última informação que tive sobre
ele.” (Lucio Ramón Pérez. Nunca Mais, p. 10); “Ao retirarem-se, os responsáveis por esta operação [os
paramilitares] levaram um carro Ford Falcon que eu havia adquirido. Minha mãe foi posta em liberdade,
com os olhos vendados, a duas quadras da minha casa. Meu pai e meu irmão permanecem
desaparecidos.” (Testemunho da filha do seqüestrado desaparecido Roque Núñes. Nunca Mais, p. 13). As
Patotas fazem referência aos paramilitares e militares de baixas patentes, vestidas geralmente como
97
civis, responsáveis pelos seqüestros e pelo transporte até os Centros Clandestinos de Detenção (CCDs) –
um eufemismo para Campos de concentração na Argentina – onde ocorriam as modalidades mais
infames da máquina estatal desaparecedora: a tortura e o processo final de desaparição das pessoas.
Sobre as patotas conta-nos P. Calveiro (2006): “As patotas era o grupo operativo que ‘chupava’, quer
dizer, que realizava a operação de seqüestro dos prisioneiros, feitas na rua, em seu domicilio ou em seu
lugar de trabalho... [Elas] limitavam-se, então, a planejar e a executar uma ação militar correndo o menor
risco possível”. (Cf. CALVEIRO, Pilar. Poder y Desaparición: los campos de concentración en Argentina.
Buenos Aires: Colihue, 2006. p. 34).
67 “Um fator havia contribuído notavelmente a esta deterioração de nosso estilo de vida democrático e, se
tiver que defini-lo em uma só palavra, diria que é demagogia. A demagogia, agitada com fins puramente
eleitorais através de slogans, rótulos e frases feitas, não há mais que nos enfrentarmos em antinomias
estéreis e nos confundirmos profundamente, a ponto tal, que hoje é difícil distinguir onde está o bem e
onde está o mal. Essa demagogia, ademais, por ser complacente, deu origem à corrupção, concebida esta
na mais ampla acepção da palavra, que chegou a generalizar-se em todos os setores do Estado. Essa
corrupção – justamente por ser generalizada – motivou a mudança dos valores tradicionais, que dizer,
subversão [referindo-se às guerrilhas], porque subversão não é nem mais nem menos que isso:
subversão dos valores essenciais do ser nacional... O 24 de março próximo passado [referindo-se à
deposição da presidenta María Estela Martínez de Perón – Isabel/Isabelita Perón – pelas Forças
Armadas] nós homens de armas iniciamos este longo e difícil caminho, e estamos – como disse –
dispostos a mudá-lo com firmeza. Por isso apenas requeremos nestes primeiros momentos,
compreensão. Compreensão pela atitude assumida pelas forças armadas [deposição da presidenta]...
Havendo compreensão, é possível que possamos realizar fatos reais, e é em função desses fatos que
recentemente podemos pedir adesão. Adesão, não às pessoas, mas sim aos fatos concretos. Porquanto
estes fatos significam os limites de aproximação até o objetivo final [eliminação dos “subversivos”]. Por
certo, que a adesão impõe como reciprocidade a participação e, a medida que desejamos adesão aos
fatos, poderemos ir dando gradualmente participação [participação controlada]...” (Cf. Discurso do
general Jorge Rafael Videla, logo após a deposição da presidenta Isabel Perón. In: CLARÍN, Jornal, 25 de
maio de 1976.). “Primeiro vamos matar todos os subversivos. Depois vamos matar seus colaboradores,
depois os simpatizantes e os indecisos. Finalmente, vamos matar os indiferentes.” (Do general argentino
Ibérico Saint Jean governado da província de Buenos Aires) (Cf. GASPARI, Elio. A ditadura encurralada.
São Paulo: Companhia das Letras, 2004. p. 495.) “O apoio da população deve ser total. É por isso que
eliminaremos os neutros e os indiferentes, pois nada deve estar ausente nesta luta.” (Cf. Declaração do
coronel Carlos Gaggiano Tedesco, chefe da zona 232 da província de Misiones. In: LA NACIÓN, Jornal, 10
de janeiro de 1977.). “Em 1977, sendo Tenente de Navio, estando locado na Escola de Mecânica da
Armada [ESMA], com dependências operativas no Primeiro Corpo de Exército, sendo o Senhor o
Comandante em Chefe e em cumprimento de ordens impetradas pelo Poder Executivo cuja titularidade o
Senhor exercia, participei de dois traslados aéreos. O primeiro com presos subversivos abordo de
SKYVAN da Prefeitura Naval e o outro com dezessete terroristas em um ELECTRA da Aviação Naval.
Dizíamos que seriam evacuados a uma prisão do Sul e somente eles deviam ser evacuados. Receberam as
primeiras doses de anestesia, já que receberiam outra maior durante o vôo. Finalmente todos os presos
foram jogados desmaiados às águas do Atlântico do avião em vôo. Pessoalmente nunca pude superar o
choque que me produziu o cumprimento dessa ordem; pois pese estar em plena guerra suja, o método de
execução do inimigo me pareceu pouco ético para ser empregado por militares. Pois será que
encontraria no Senhor o oportuno reconhecimento público de sua responsabilidade nos
fatos?...”(Fragmento de carta do ex-marinheiro argentino Adolfo Scilingo ao ex-ditador Videla – ‘A carta a
Videla’ –, imputando a este à qualidade de mentor intelectual dos “vôos da morte”, os vôos nos quais as
pessoas eram jogadas vivas no mar) (Cf. VERBITSKY, Horacio. El vuelo. 2. ed. Buenos Aires: Editorial
Planeta, 1995. p. 89-90.).
68 No que se refere ao morticínio argentino do período 1976-1983, não há um ponto em comum em
termos de números. Voltaire Schilling (s/d) informa-nos que quando o Processo de Reorganização
Nacional, como se chamava a ditadura militar, deu-se por encerrado em 1983, contabilizou-se o
desaparecimento de mais de 8 mil pessoas de ambos os sexos, estimando-se, ainda, que o total de vítimas
teria alcançado mais de 30 mil civis (Cf. SCHILLING, Voltaire. Argentina, ditadura e terror. Porto
Alegre: Memorial do Rio Grande do Sul, s/d, Cadernos de História, n. 14. p. 1.). Em um artigo de 1978,
98
quer dizer, ainda no período do Processo de Reorganização Nacional (como era chamado entre os
militares o período de 1976-1983), Alain Rouquie (1990) através de um informe atribuído à imprensa do
Departamento de Estado norteamericano nos diz: “só um terço de umas 6 000 pessoas executadas desde
24 de março de 1976 pertencia a ‘organizações subversivas’ [militantes peronistas, marxistas,
anarquistas]. Enquanto os presos políticos, oficiais ou não, só contariam em suas linhas com uns 15% de
membros de movimentos da guerrilha. As demais vítimas da repressão são militantes trabalhadores,
intelectuais, amigos, parentes ou defensores de presos políticos ou de militantes revolucionários” (Cf.
ROUQUIE, Alain. “Reorganizacion nacional y guerra sucia”. In: Autoritarismos y Democracia: estudios
de política argentina. Buenos Aires: Edicial, 1990. p. 296; p. 290-330.). O informe Conadep (Relatório
Sábato) computou cerca de 8. 961 desaparecidos e uma estimativa de 30 mil mortos (Cf. SÁBATO,
Ernesto (comp.). Nunca Mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas
na Argentina [Conadep], presidida por Ernesto Sábato. [Relatório Sábato]. Porto Alegre, RS: L&PM
editores, 1984. p. 8). Nada é exato, pois a prática recorrente de desaparição e incineração de cadáveres
produzida pela ditadura tornou o processo de contagem delicado e penoso. Mas o fato é que os
sucessivos golpes perpetrados pelos militares argentinos implicaram naquilo que comumente a crítica
especializada fala ter sido um dos piores capítulos da história universal da infâmia: o genocídio de seres
humanos na Argentina.
69
A esfera tétrica na qual o povo argentino (ou grande parte de segmentos) deixou-se envolver,
envolveu-se e foi envolvida pela inércia pós-eventos de 1973 (o ano em que a um só tempo ocorrera: 1) o
retorno de Juan Domingo Péron após 18 anos de exílio; 2) o confronto entre peronistas de direita –
direitistas como a Aliança Anticomunista Argentina [AAA ou Triple A] – e de esquerda – esquerdistas
como o grupo guerrilheiro Montoneros – que levara à chamada Batalha de Ezeiza, no dia da volta de
Perón do exílio; 3) a posse e a renúncia do presidente Héctor J. Cámpora e posterior candidatura, posse e
morte de Perón – ocorrida em meados de 1974.) fizera com que o ensaio autoritário, iniciado pelos
chefes militares desde 1966 (Juan Carlos Onganía, Roberto Marcelo Levingston, Alejandro Lanusse),
fosse definitivamente posto em prática à 24 de março de 1976, com a deposição de Isabelita Perón por
uma Junta Militar (general Jorge Rafael Videla, almirante Emilio Eduardo Massera e o brigadeiro Orlando
Ramón Agosti). (Cf. QUIROGA, Hugo, El tiempo del “Processo”: conflictos y coincidencias entre políticos
y militares – 1976-1983. Rosário: Homo Sapiens; Politeia; Editorial Fundación Ross, 2004.) (Cf.
VERBITSKY, Horacio. Ezeiza. Tucumán; Buenos Aires: Editorial Contrapunto, 1985.) (Cf. ROMERO, Luis
Alberto. História contemporânea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006.). Uma
Argentina a meio caminho da cegueira e da descoberta. Em uma observação assaz reveladora das
práticas de desaparição perpetradas pelos militares e da ambiência circunstanciadora de tais práticas, P.
Calveiro (2006) nos diz: “A desaparição, como forma de repressão política, apareceu depois do golpe de
1966. Teve nessa época um caráter esporádico e muitas vezes os executores foram grupos ligados ao
poder. Entretanto, não necessariamente aos organismos destinados à repressão institucional. Esta
modalidade começou a se converter em uso a partir de 1974, durante o governo peronista, pouco depois
da morte de Perón. Nesse momento as desaparições corriam por conta da AAA e o Comando Libertadores
de América, grupos que se podia definir como parapoliciais ou paramilitares... em fevereiro de 1975 por
decreto do poder executivo se deu a ordem de aniquilar a guerrilha. Através do Operativo Independência
se iniciou em Tucumán uma política institucional de desaparição de pessoas, com o silêncio e o
consentimento do governo peronista, da oposição radical e de amplos setores da sociedade. Outros,
como sucedeu-se, não sabiam nada; outros tantos não queriam saber...” (Cf. CALVEIRO, Pilar. Poder y
Desaparición: los campos de concentración en Argentina. Buenos Aires: Colihue, 2006. p. 26-27.). Um
fragmento de L. A. Romero (2006) é ao mesmo tempo elucidativo e interpelativo quanto ao
comportamento ambíguo do grosso da sociedade em relação às práticas militares à época do Processo...
Diz-nos o autor: “O grosso da sociedade, que, no início, condenou os militares por seu fracasso na guerra
[A Guerra das Malvinas], descobriu de uma forma avassaladora aquilo que, até então, preferia ignorar: as
atrocidades da repressão, expostas por uma torrente de denúncias judiciais, pelos meios de comunicação
e, principalmente, pelo relatório cuidadoso preparado pela Comissão Nacional para o Desaparecimento
de Pessoas (Conadep). O texto final desse grupo, constituído pelo governo [de Raúl Alfonsín – 1983-
1989] e presidido pelo escritor Ernesto Sábato, foi amplamente divulgado com o título de Nunca más. Era
absolutamente certo, mesmo para os que queriam justificar os militares. Manifestaram-se na sociedade
algumas confusões e ambigüidades. Eles [os militares] eram culpados por terem feito a guerra das
99
Malvinas, ou apenas por terem-na perdido? Eram culpados por ter torturado, ou apenas quando
torturaram inocentes? Mas a grande maioria os repudiou em massa, se mobilizou e exigiu justiça ampla e
irrestrita, talvez como em Nuremberg. A derrota na guerra das Malvinas, o retumbante fracasso político,
as divisões entre as forças, os próprios questionamentos internos, que afetavam a organização
hierárquica, tudo isso enfraquecia a instituição militar que, entretanto, não tinha sido expulsa do poder.
Como era dito na época, não houvera uma tomada da Bastilha na Argentina. Em pouco tempo, a
solidariedade corporativa dos militares se reconstituiu em torno do que reivindicavam como seu êxito: a
vitória na ‘guerra contra a subversão’. Eles repudiaram a condenação da sociedade, recordaram que sua
ação contou com a complacência generalizada, até mesmo de políticos, que haviam se juntado ao coro
dos detratores, e, no, máximo, estavam dispostos a reconhecer ‘excessos’ próprios de uma ‘guerra suja’”.
(Cf. ROMERO, op. cit., p. 235.).
70 “Em meados de 1974, lentamente, o medo tomou posse dos argentinos. Mas, antes, já havia iniciado
sua luta para dominar o corpo e a alma de milhões de argentinos”. (Cf. MARTINEZ, Tomáz Eloy.
ArgentinAAA. Versus – Página da Utopia. www.versus.jor.br, acessado em 10/03/2008, por Samarone
Carvalho Marinho.).
71 “Entre outras conseqüências – tanto mais graves – da instauração da ditadura, pode escrever, e se
escreve, que a repressão enclausurou o espaço público... Para seguir a linha desta crônica considere-se
suficiente qualificar como públicos os acontecimentos que teriam lugar no âmbito urbano e eram
reproduzidos nos meios de comunicação virtualmente acessíveis.” (Cf. SIGAL, Silvia. La Plaza de Mayo:
una crônica. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006. p. 323.).
100
Há pouco tempo atrás, isto por volta de 1968, um pouco antes da gênese
poética de 1975 e muito antes da trégua em 1998, em nome das vãs filosofias liberal-
cristã e comunista-totalitária, a exportação do autoritarismo72 recrudescia, espalhando-
se mundo adentro. Nos EUA, em abril, Martin Luther King é assassinado. Quebra-
quebra em Chicago se estabelece. O prefeito da cidade disse: “Disparem para matar os
atiradores e para aleijar os saqueadores.” (GASPARI, 2002a, p. 389). No Vaticano, em
julho, o papa Paulo VI divulgava em sua encíclica Humanae vitae a condenação ao uso
de anticoncepcionais. “A Igreja é coerente consigo própria, quando assim considera
lícito o recurso aos períodos infecundos, ao mesmo tempo em que condena sempre
como ilícito o uso dos meios diretamente contrários à fecundação, mesmo que tal uso
seja inspirado em razões que podem aparecer honestas e sérias.” (PAULO VI, 1968, p.
46), disse o papa. Entre repressões e cerceamentos, estudantes, operários e intelectuais
reagem; tentam sacudir o mundo.
72Fazemos alusão ao que Martin Luther King havia declarado em fevereiro de 1968, dois meses antes do
seu assassinato: em ser o seu país, Estados Unidos, “ser o maior exportador de violência do mundo”. (Cf.
GALEANO, Eduardo. De pernas pro ar: a escola do mundo ao avesso. 9. ed. Porto Alegre: L&PM, 2007. p.
122.).
102
mais humana, mais socializante: “Uma tentativa de criar um socialismo sem uma polícia
secreta onipotente, com liberdade para a palavra dita e escrita, com uma opinião
pública cuja existência é reconhecida e levada em consideração, com uma cultura
moderna desenvolvendo-se livremente, e com cidadãos que deixassem de ter medo.”,
explicou certa vez Milan Kundera (apud FUENTES, 2007, p. 129). Em agosto do mesmo
ano foram sufocados pelos tanques soviéticos, anátemas do totalitarismo stalinista em
voga até então. Em Paris, no mês de maio, ao final das histórias de barricadas e greves,
estudantes e operários unissonamente pediam às universidades: “Não queremos que
nos ‘ensinem’ [ao modo tutelar], mas sim exerçam um controle real do ensino a fim de
adquirir uma cultura que vá além do comércio ou da especialização... Jean Rostand, aos
75 anos desceu de seu pedestal, aproximou-se de nós e aceitou nossas teses: ‘Tanto
aluno quanto o professor estão na universidade para aprender!’... Nós queremos formar
profissionais que sirvam aos trabalhadores.” Enganados foram pelo Partido Comunista
(FUENTES, 2008, p. 58-59). No México, em outubro, o ano das Olimpíadas,
manifestantes na Praça de Tlatelolco gritavam ao então presidente Gustavo Díaz Ordaz:
“sal al balcón, hocicón”. O exército e a polícia mexicana atiraram contra os
manifestantes. Oficialmente, 32 cadáveres. O presidente negava: “Eu não matei
ninguém. Onde estão os mortos? Vamos, digam alguma coisa. Falem. Mostrem-me os
corpos!” (FUENTES, 2008, p. 155). Ainda em outubro, golpe militar no Peru. O general
Velasco Alvarado, ambígüo fantoche da CIA, assumia o poder (FRANKLIN, 1995, p. 319).
Nesse ano um outro Kennedy morria, Nixon era eleito e a sangria no Vietnã
continuava. “O Vietnam agora é uma vasta oficina da morte, nos campos da morte... O
Vietnam agora está cheio de arame farpado de homens louros farpados armados
vigiados cercados assustados está cheio de jovens homens louros e cadáveres jovens de
homens louros enganados”, comunicava um poema (GULLAR, 2001, p. 185). Na
Argentina, em março, os sindicatos unem-se na tentativa de minorar os efeitos da
política monetarista do então Ministro da Economia, Krieger Vasena, que punha o
acento na regulação cambial e no congelamento de salários. Paradoxalmente, era um
Estado intervencionista, liberal-conservador, travestido num Estado de bem-estar
social. Em meio a essa imagem altamente deturpada o general Juan Carlos Onganía
apresentava-se como figura conciliadora. Entretanto “era um autoritarista, um
anticomunista obsessivo, um católico pré-conciliar”, asssim, o definiu F. Luna (1995, p.
103
imediato ao Brasil. Tal retorno demoraria mais alguns anos. Enquanto isso, supostas
atividades de perseguição na Argentina restringiam os passos do poeta.
73“Juntamente com a atividade repressiva ilegal realizada dentro dos limites do território nacional
[Argentina], deve-se destacar que as atividades de perseguição não reconheceram limitação de fronteiras
geográficas, contando para isso com a colaboração dos organismos de Segurança de países limítrofes
106
que, com características de reciprocidade, efetuavam prisão de pessoas sem respeitar qualquer ordem
legal, numa violação patente de tratados e convenções internacionais assinados por nosso país sobre o
direito de asilo e refúgio político... Lamentavelmente, o que ocorreu demonstra a existência de um
aparato repressivo tipicamente ‘multinacional’. Sob seu amparo, as forças de repressão estrangeiras
passaram a integrar os chamados ‘Grupos de Tarefa’, dedicando-se a seqüestrar, interrogar sob tortura,
assassinar ou a transferir seus compatriotas aos Centros Clandestinos de Detenção em seus próprios
países.”. (Cf. SÁBATO, Ernesto (comp.). Nunca Mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o
Desaparecimento de Pessoas na Argentina [Conadep], presidida por Ernesto Sábato. [Relatório
Sábato]. Porto Alegre, RS: L&PM editores, 1984. p. 190-191.).
74 Na Argentina, no Brasil e no Uruguai, bem como em outros países da América Latina, a terminologia
subversivo compreendia os membros das organizações armadas (Montoneros, ERP; MR-8; Tupamaros;
etc.) e seus simpatizantes. Referiam-se, basicamente, aos militantes políticos e sindicatos com qualquer
vínculo com a guerrilha ou movimentos de esquerda e de extrema-esquerda.
75 Os escritores Zuenir Ventura e Elio Gaspari haviam intercedido junto ao general Golbery do Couto e
Silva para o retorno tranqüilo do poeta Ferreira Gullar ao Brasil. O Poema sujo, publicado em meados de
1976, chegara às mãos de Golbery através dos dois escritores. O general disse-lhes: “Isso é uma
obscenidade, esse poeta é um pornógrafo! Mas eu não me oponho a ele voltar, não. Por mim, ele pode
voltar, mas tenho que falar com o [João Batista de Oliveira] Figueiredo, chefe do SNI [Serviço Nacional de
Informações]. (Cf. CADERNOS DE LITERATURA BRASILEIRA. Ferreira Gullar. São Paulo: Instituto
Moreira Salles, 1998, n. 6, p. 44.).
107
contaram com um consenso nada desprezível em torno de seu projeto, um dos pontos
centrais era a destruição da subversão.” Afirma ainda H. Quiroga (2004, p. 18), “desde o
começo da ordem autoritária os inimigos foram identificados como subversivos,
populistas, estadistas, corruptos e indecisos.” Assim, o pressentimento de cerco e medo
prenunciado pelo poeta faz sentido, haja vista que a invasão de domicílios, seqüestros
de pessoas e execuções sumárias tornavam-se uma rotina76. Tudo isto criava uma
esfera de significados asfixiante com a qual o poeta teria que se confrontar à criação do
poema.
76 “Em março de 1976 Isabelita foi derrubada e os militares, chefiados pelo general Jorge Videla,
assumiram o poder. Se a repressão já era violenta, agora excedia a todos os limites, com a invasão de
domicílios, seqüestro de pessoas e execuções sumárias.” (Cf. GULLAR, Ferreira. Rabo de foguete: os anos
de exílio. 3. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2003. p. 243.).
77 A anatomia da repressão do Estado autoritário argentino no período de 1976-1983 encontrava
referente material nos Centros Clandestinos de Detenção (CCDs) (ver mapa “Base material da repressão
militar na Argentina” na próxima página). Estes, por sua vez, dispostos fisicamente na quase totalidade
territorial do país, atuavam como núcleos centrais da máquina estatal desaparecedora de pessoas.
Os CCDs começaram a funcionar, de maneira sistemática, logo após o golpe militar de 1976. A partir daí,
segundo P. Calveiro (2006), “a desaparição e o campo de concentração-extermínio deixaram de ser uma
das formas da repressão para se converter em ‘a’ modalidade repressiva do poder, executada de maneira
direta a partir das instituições militares.” (Cf. CALVEIRO, Pilar. Poder y Desaparición: los campos de
concentración en Argentina. Buenos Aires: Colihue, 2006. p. 27). O que antes eram práticas de
interrogatório empreendidas basicamente na cadeia – em práticas abusivas já desde o golpe de 1966 do
general Onganía – passaram a se converter em atividade repressiva sistematizada em torno da máquina
estatal desaparecedora de pessoas. Ernesto Sábato (1984) fala-nos que os antecedentes dessa
sistematização já estavam em prática desde o ano de 1975 em Centros-piloto (Cf. SÁBATO, Ernesto
(comp.). Nunca Mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na
Argentina [Conadep], presidida por Ernesto Sábato. [Relatório Sábato]. Porto Alegre, RS: L&PM
editores, 1984. p. 44). Em termos toponímicos o escritor nos fala da jurisdição do III Corpo de Exército,
localizado tanto na Província de Tucumán quanto na Província de Santiago del Estero, porção norte do
território argentino. Pilar Calveiro remonta, exatamente, à fevereiro de 1975, à San Miguel de Tucumán,
o início da política institucional de desaparição (Cf. CALVEIRO, op. cit., p. 26). Ainda no período da
repressão militar, no ano de 1980, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA produziu um
Informe (Informe sobre a situação dos Direitos Humanos na Argentina) pontuando a disposição
toponímica da política institucional de desaparição. Tais informações foram obtidas através de
denúncias de ex-prisioneiros de CCDs. Em nota, pontuava: “alguns dos lugares mencionados nas
denúncias em que se alega terem pessoas que figuram como desaparecidas, são: Campo de Mayo;
Superintendência de Seguridade Federal; Ponte 12; Base Naval de Mar del Plata; Brigada Guemes; Escola
de Mecânica da Armada; O poço de Arana na cidade de La Plata; Guarda da Infantaria em Palermo;
Regimento militar “La Tablada”; Comissárias de Polícia; e Regimento Militar “La Rivera”, em Córdoba.”
(Capítulo III).
Ainda com base nas informações e testemunhos assinalados, a Comissão, conseguira pontuar os
seguintes centros de detenção: em Buenos Aires, Capital Federal, as prisões de Villa Devoto e Caseros;
em La Plata, a prisão denominda “Unidade 9”; em Olmos, a oeste de La Plata, a prisão local; a prisão de
Magdalena, na Província de Buenos Aires; em Olavarría, cidade pequena à 450 km da Capital Federal, a
prisão Sierra Chica; “La Perla” em Córdoba; carceragem de Coronda, na Província de Santa Fé; em
Resistencia, prisão de mesmo nome, na Província do Chaco; a carceragem local em Santa Rosa, capital da
Província de La Pampa; Prisão de Segurança Máxima de Rawson, na Província de Chubut (Capítulo V). No
109
Brasil
Paraguai
Jujuy
Salta Misiones
Tucuman Chaco
Formosa
Catamarca
Santiago
Corriente
Del Santa Fé
La Rioja Estero
30° S
Córdoba
San Juan
Entre Rios
Uruguai
Mendoza
San
Luis
Capital Federal
Buenos Aires
La Pampa
Chile Neuquen Buenos
Aires
40° S
Número de Centros
Rio Negro
Clandestinos de Detenção
por Província
Chubut 42
11 a 17
6 a 10
1a5
Santa
Cruz
50° S
N
Tierra
del Fuego Islas Malvinas /
(Falklands Islands)
0 250 500
70° O 60° O
entanto, o quadro demonstrativo mais profundo no que diz respeito tanto ao número de centros de
detenção quanto à articulação repressivo-estatal entre eles, é-nos dado pelo Informe da Comissão
Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep). Esse informe nos dá como resultado da
110
presença da máquina desaparecedora, um total de 340 campos de detenção que funcionavam como
etapa final da política de desaparição. Com base nesse informe, bem como na análise da desaparição feita
por C. Martyniuk (Cf. MARTYNIUK, Claudio. ESMA: Fenomenologia de la desaparición. 3. ed. Buenos
Aires: Prometeo, 2004.), acreditamos que o funcionamento técnico-administrativo dos centros de
detenção era profundamente articulado e envolvia diretamente as chefaturas superiores (exército,
aeronáutica e marinha) as diretorias dos CCDs (presídios, delegacias, comissionarias etc.) e a inteligência
de grupos de tarefas (jovens oficiais, suboficiais, policiais e até civis). Um funcionamento que só foi
possível com a articulação territorial entre os CCDs, com o planejamento geral através de ação
sistemática do Estado autoritário e com o emprego de recursos financeiros (captação de recursos via
seqüestros de bens dos detidos, investimentos em segurança via discurso anti-subversivo) e humanos
(paramilitares, parapoliciais etc.). Eram nestes termos que a execução do esquema repressivo
apresentava-se sobre certo primado de efetiva comunicação e mobilidade dos agentes desaparecedores.
Isto fica claro quando analisamos o caso específico dos CCDs presentes na Capital Federal ou naquelas
cidades/distritos que compõe a Grande Buenos Aires (Cf. SÁBATO, Ernesto (comp.). Nunca Mais.
Informe da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina [Conadep],
presidida por Ernesto Sábato. [Relatório Sábato]. Porto Alegre, RS: L&PM editores, 1984. pp. 100-119). A
relação entre alguns centros de detenção acabavam por formar verdadeiros circuitos regionais de
repressão. Em termos figurativos a articulação entre o Pozo de Bánfield (em Lomas de Zamora), o Pozo
de Quilmes e o Posto Vasco (ambos em Quilmes), bem como o Centro de Operações Táticas-COT I
Martinez (em San Isidro), evidenciava a presença do mesmo esquema repressivo posto em prática pelos
mesmos agentes que exerciam alta mobilidade entre um e outro centro de detenção. Este circuito
praticamente era coalescente com o corredor Lanús-Avellaneda-La Plata-Magdalena, onde se localizavam
algumas Brigadas de Investigações (Brigada n. 2-Las Flores-La Plata/Arana-Magdalena). Esses circuitos,
não raro, articulavam-se com os centros de detenção que apresentavam uma logística totalizadora:
administração, almoxarifado, supervisão tática a partir da oficialidade superior (almirantado, contra-
almirantado, capitães, brigadeiros etc.). Referimo-nos basicamente aos centros de detenção da Escola de
Mecânica de Armada (ESMA) e do Campo de Mayo, localizados na Capital Federal, com os quais alguns
CCDs articulavam-se seja para recepção de subversivos seja para o fomento da política total
desaparecedora. Houve casos de atuação integrada de grupos de tarefas de outros CCDs aderentes à
logística da ESMA e do Campo de Mayo. Este foi o caso do pessoal integrado ao CCD “El Atlético”, na
Capital Federal, que era dependente da Força Aérea e do pessoal integrado ao CCD “Base Naval Bahía
Blanca”, na Província de Buenos Aires, que dependia da Marinha. Isto demonstra a
centralidade/intensidade repressora exercida a partir da Capital Federal (observemos o mapa) que, com
planejamento geral e supervisão tática da alta oficialidade, ordenava hierarquicamente as ações de
captura, tortura, assassinato e desaparição dos detidos. Nas regiões de fronteira – Jujuy, Salta, Chaco,
Formosa, Corrientes, Misiones; na fronteira com Bolívia, Paraguai e Brasil; Jujuy, Salta, Catamarca,
Mendoza, Neuquén, Río Negro; na fronteira com o Chile; Entre Rios, na fronteira com o Uruguai –, por sua
vez, os CCDs estavavam subordinados à autoridade militar de sua jurisdição político-administrativo que,
mesmo recebendo ordens da alta oficialidade da Capital Federal, o esquema repressivo, no tocante ao
translado e desaparecimento, seguia os parâmetro da oficialidade regional. Figurativamente, assim se
procederam aos casos em Corrientes, Misiones e Chaco. Neste último as operações repressivas se
coordenaram através da Brigada de Investigações de Resistência (a capital) articulada
jurisdicionalmente com a VII Brigada de Infantaria com sede na cidade de Corrientes, capital da
Província de Corrientes. Ambas as Brigadas abrangiam um corredor ao longo do Rio Paraná que se
estendia até Goya, cidade ao sul de Corrientes e onde funcionava o CCD “Hípico”, em tese para impedir a
entrada ou saída por terra de subversivos pela fronteira com o Paraguai. Em Posadas, capital da
Província de Misiones, os CCDs estabelecidos ali (Esquadrão 8 “Alto Uruguay”, a “Casinha”, dentre
outros) estavam intimamente conectados com os CCDs no Chaco e em Corrientes, todos sob a jurisdição
do II Corpo de Exército Argentino, com sede em Rosário, na Província de Santa Fé. Verificamos, aí, um
circuito regional de repressão altamente articulado funcionando tanto para impedir a saída e a entrada de
subversivos quanto para operacionalizar trocas ilegais de prisioneiros com os países vizinhos (Brasil e
Paraguai, nessa fronteira). Neste item, da troca ilegal de prisioneiros, o Serviço de Inteligência argentino
na Província de Formosa, através dos CCDs “Escolinha” e “RIM 29”, operou de forma coordenada com o
Serviço de Inteligência paraguaio na captura e troca de subversivos. Em termos de geoestrategia os CCDs
situados em Neuquén, Mendoza, Río Negro, Chubut e Jujuy seguem a lógica de combate antisubversivo
operando mutuamente com as Forças Armadas chilena e boliviana. Bem na verdade, isto era uma prática
comum entre os países vizinhos que, por reciprocidade ideológica, agiam conjuntamente na captura, na
tortura e no assassinato de pessoas. Podemos aventar, a partir daí, que não havia apenas um circuito
111
No princípio, até onde a exatidão pode chegar, o poeta nos traz em memória:
regional de repressão funcionando mas, também, pari passu a ele, um circuito internacional de repressão
subvencionado macro-conjunturalmente, em termos de treinamento militar e assistência financeira,
pelos Estados Unidos e atuando, este, para a ação conjunta das Forças Armadas latino-americanas em
detrimento de luta ideológica. Neste ponto, parece-nos que A. Rouquié (1986) nos dá como evidência o
fato de que desde a década de 1950 tanto os treinamentos militares exercidos em bases norteamericanas
no exterior (essencialmente no Panamá; com efetivo militar argentino treinado por norteamericanos no
total de 2.808 militares) quanto a assistência financeira fornecida até 1972 (chegando ao montante de
129,5 milhões de dólares) pelos Estados Unidos, serviram basicamente para que “o exército argentino
aderisse com entusiasmo na década de sessenta na teoria da guerra antisubversiva – levada até suas
últimas conseqüências.” (Cf. ROUQUIÉ, Alain. Poder militar y sociedad politica en la Argentina. v. II.
Buenos Aires: Hyspamérica, 1986. p. 355-356.). Claudio Martyniuk (2004) ajuda-nos a reforçar a
presença desse circuito internacional de repressão, quando, figurativamente, demonstra-nos ações de
militares argentinos atuando em Madrid e París, oferecendo treinamento técnico para seqüestro e
desaparição no combate ao ETA, ações de propaganda da máquina desaparecedora na Grã-Bretanha,
efetivação de seqüestro e vigília de exilados argentinos no Brasil, oferecimento de segurança à família
real na Arábia Saudita, controle de exilados na Venezuela etc. Todas essas ações implicaram
fortalecimento do esquema opressivo que beneficiava toda a logística repressiva (de suboficiais,
passando por grupos de tarefas, e indo até a alta oficialidade) (Cf. MARTYNIUK, Claudio. ESMA:
Fenomenologia de la desaparición. 3. ed. Buenos Aires: Prometeo, 2004. p. 13).
112
78Em 1969 – 1027 denúncias; em 1970 – 1206 denúncias; em 1971 – 788 denúncias; em 1972 – 1081
denúncias; em 1973 – 375 denúncias (estimativa); em 1974 – 67 denúncias; em 1975 – 585 denúncias;
em 1976 – 156 denúncias; em 1977 – 214 denúncias. (Cf. GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada. São
Paulo: Companhia das Letras, 2002a; Cf. GASPARI, Elio. A ditadura escancarada. São Paulo: Companhia
das Letras, 2002b; Cf. GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.).
113
79Temos o seguinte informe no Relatório Sábato: “Lamentavelmente, houve membros do clero que
cometeram ou avalizaram, com sua presença, com seu silêncio e até com palavras justificatórias, estes
mesmo fatos que haviam sido condenados pelo Episcopado Argentino.”. (Cf. SÁBATO, Ernesto (comp.).
Nunca Mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na Argentina
[Conadep], presidida por Ernesto Sábato. [Relatório Sábato]. Porto Alegre, RS: L&PM editores, 1984. p.
185.).
114
instituições, dos monumentos, das virtudes que realizam objetivamente a situação que
ele pretende manter.” (BEAUVOIR, 2005, p. 77), nos diz a filósofa. No caso portenho,
objetivamente, a situação necessária a ser mantida era de uma autoridade que pudesse
garantir os valores da pax romana no seio de um complexo conjunto de significações
que permitissem o consenso às práticas assassinas do Estado autoritário. Essa aliança
entre poder eclesiástico e poder estatal fazia com que a política de desaparecimento de
pessoas, com base material nos CCDs, naturalizasse o direito à morte e desaparição
total dos indivíduos que fossem incapazes de se adaptar à totalidade das relações
sociais. Talvez um dos exemplos mais bizarros coletados pelo Relatório Sábato (1984)
sustente esse nosso argumento da articulação de poderes que, em nome de uma
pretensa civilização e virtude, impõe o princípio de autoridade absoluta sobre os
corpos de outrens. Em termos figurativos, referimo-nos às sucessivas menções no
Relatório da participação do padre Christian Von Wernich que, juntamente com
policiais e suboficiais, participou de algumas etapas do processo desaparecedor
(captura, tortura, assassinato e desaparição de corpos). Tais menções ajudaram, em
muito, a nosso ver, para a conformação de uma esfera tétrica na Buenos Aires daquele
período. Eis um dos relatos que envolveu o citado padre em tais práticas:
No caso brasileiro, dez anos depois de ter deixado o poder (1984), o ex-
presidente Emilio Garrastazú Médici vangloriava-se: “Era uma guerra, depois da qual
foi possível devolver a paz ao Brasil. Eu acabei com o terrorismo neste país. Se não
aceitássemos a guerra, se não agíssemos drasticamente, até hoje teríamos o
terrorismo” (SCARTEZINI, 1985). No caso argentino, em comunicado à nação, o general
Videla justificava a tomada do poder: “Deve ficar claro que os fatos ocorridos em 24 de
março de 1976, não materializam somente a queda de um governo. Significa, pelo
contrário, o término de um ciclo histórico e a abertura de um novo, cuja característica
fundamental estará dada pela tarefa de reorganizar a Nação, empreendida com real
vocação de serviço pelas forças armadas... Para nós, o respeito dos direitos humanos,
não nasce do mandato da Lei nem das declarações internacionais, mas, sim, que são
resultantes de nossa cristã e profunda convicção acerca da preeminente dignidade do
homem como valor fundamental. E é justamente para assegurar a devida proteção dos
direitos naturais do homem, que assumimos o exercício pleno da autoridade; não para
ir contra a liberdade, mas para afirmá-la; não para torcer a justiça; mas sim para impô-
la.” (CLARÍN, 1976).
117
aquela esfera de significados, suspeitamos, à qual não haveria como o poeta não se
remeter, no subterfúgio de sua vivência, à espacialidade do corpo próprio para
principiar a gênese criativa (Poema sujo). Com mobilidade infringida, enclausurada,
restava ao poeta escrever o poema final; operar na solidão e remeter uma ação poíētica
à gênese criativa. Em meio ao disciplinamento prolongado no espaço de existência de
então, viu-se forçado a tomar uma situação in acto diante da vida para, de certa forma,
estabelecer um conjunto de relações e trocas na Buenos Aires daquela década de
setenta. Era o encontro inesquecível do homem com o lugar que, mesmo diante de um
quadro no qual a sua destinação individual e social estava comprometida em face do
medo de desaparecer, circunstanciou uma relação de objetivação nuclear à criação
poética. Essa criação poética, por sua vez, enquanto momento de consubstanciação
entre o ser (o poeta) e o existir (o lugar), passou a existir como o acordo
permanentemente provisório entre o mundo poetante (eu poetante) e o mundo da vida
(eu empírico). Isto possível apenas quando tal acordo surgiu da relação de objetivação
que transmutou o momento da criação em momento de interdependência e
interpelação do território da vida. Assim, quando Gullar se lançou à criação do Poema
sujo foi ao mesmo tempo para liberar São Luís do Maranhão (as vivências passadas do
poeta), a partir da reminiscência corpórea em Buenos Aires (as vivências presentes do
poeta) e para engendrar uma autotelia parcial do mundo poetante em face ao mundo
da vida. Este último aspecto, inerente à objetivação em si, nem isolou a criação artística
da realidade nem refletiu está última de maneira unilateral. Tal aspecto fez-se
necessário para engendrar ao mundo poetante concebido no Poema sujo conteúdos
próprios, passíveis de serem reorganizados teoricamente a cada nova apreensão por
parte de existentes devindos. Reconhecido tais fatos, o poema, no amanhecer de um dia
qualquer portenho, eclodiu:
Por volta de 1943, quando o poeta se dava conta do ser-poeta que eclodiria
de si, a gênese-primeva já despertava do íntimo elã ontológico entre a fatura poética e a
geografia da vida. Rememora o autor:
123
“Talvez tudo isso tenha começado numa tarde quente, em São Luís do
Maranhão, num pequeno quarto da casa do quitandeiro Newton
Ferreira, à rua Celso Magalhães, 9. Eu lia, num volume encardido,
comprado num sebo, um conto [E.T.A] Hoffmann. O quarto era
sombrio mas eu sabia que lá fora a tarde passava espantosamente
iluminada. Interrompi a leitura, tomado subitamente de um
pensamento doloroso: ‘Hoffmann escreveu estes contos que vieram
parar num sebo de São Luís do Maranhão e que nada têm a ver com a
minha vida.’ Olhei de novo aquelas páginas amarelecidas, coberta de
letras que foram um dia a voz viva de um homem. ‘Que sentido tem
fazer literatura?’ – me perguntei, como se me apunhalasse.” (GULLAR,
2006b, p. 160).
confunde-se com a vida de muitas outras pessoas e, em certa medida, com a vida de
minha cidade, de meu país, de minha época.” (GULLAR, 2006b, p. 159). É o poeta
mergulhando no contexto histórico global de seu tempo quando reverte a fatura
poética a outro. Pois “só a carência de outro homem pode oferecer um corpo onde de
novo se faça vida o que o poeta falou.” (GULLAR, 2006b, p. 160-161). Daí o porquê do
ato poetante necessitar da presença do corpo próprio do leitor para sobreviver no
contexto histórico. O Poema sujo, no princípio, é uma criação que diz respeito apenas ao
poeta. Um acontecer solitário produzido sobre condições críticas para a objetivação do
homem situado, mas que revela em si o caminho percorrido pelo poeta na elaboração
da criação artística, da internalização do extra-estético (as vivências do poeta)
transformado, o mesmo, em conteúdo próprio da estética. Um caminho revelador da
interdependência da imaginação em face da realidade vivida. Uma interdependência
necessária à própria sobrevivência do mundo poetante (eu poetante) em relação ao
mundo da vida (eu empírico), mas tendo no corpo emocionado que rememora o liame
que os une.
(...)
Do corpo. Mas que é o corpo?
Meu corpo feito de carne e osso.
Esse osso que não vejo, maxilares, costelas,
flexível armação que me sustenta no espaço
que não me deixa desabar como um saco
vazio
que guarda as vísceras todas
funcionando
como retortas e tubos
fazendo o sangue que faz a carne e o pensamento
e as palavras
e as mentiras
(...)
(GULLAR, 2006a, p. 8)
(...)
e neste caso um dia-dois
o de dentro e o de fora
da sala
um às minhas costa o outro
diante dos olhos
vazando um no outro
através de meu corpo
dias que se vazam agora ambos em pleno coração
de Buenos Aires
às quatro horas desta tarde
de 22 de maio de 1975
(...)
(GULLAR, 2006a, p. 22)
Para o poema que tem a tessitura afirmada pelo corpo antes de qualquer
ação cotidiana (“… um dia-dois/… vazando um no outro/ através de meu corpo/…”),
um sentido ontológico imputativo à fatura poética desvela o necessitarismo de afirmar,
agora, a presença na precariedade da vida naqueles dias que vazavam pelo corpo em
pleno coração da capital argentina (“…/ dias que se vazam agora ambos em pleno
coração/ de Buenos Aires/…”). Em meio a essa precariedade, seja pelo medo da
desaparição corpórea, seja pelo entrevero ideológico, parece-nos que, durante a década
de setenta (mas, também, a década de oitenta), houve, na América Latina, certo
sentimento implícito de partilha entre alguns poetas a respeito do que denominamos
espacialidade do corpo próprio. Além de Gullar, pelo menos dois outros poetas platinos
evidenciaram a necessidade de reafirmação do corpo como a certeza da realização do
ato poetante no mundo sensível. Referimo-nos a Néstor Perlongher, no verso agônico
de Cadáveres (1997a, p. 109-123) e de El cadáver (1997b, p. 42-45), e a Mario
Benedetti, na hibridez estética de Geografías (1991) e Andamios (1996). É certo
sentimento de espacialidade do corpo próprio interposto à razão e à emoção que, nos
129
80 “Que dizer de seu féretro, dos dois milhões/ de pessoas atrás/ a passos lentos/ quando às 20:25 as
rádios paravam/ eu me negando a entrar/ pelo corredor/ meio hesitante?/ como digna?/ Por ele,/ por
seus trejeitos agitados/ de miséria/ entre seu corpo e o corpo jacente/ de Eva, depois roubado,/
depositado em Punta del Este/ ou na Itália/ ou no seio do rio/…”. (Cf. PERLONGHER, Néstor. El Cadáver.
In: PERLONGHER, Néstor. Poemas completos. Buenos Aires: Seix Barral, 1997a. p. 42-43. Cf. Tradução
130
de Josely Vianna Baptista. In: HOLLANDA, Heloísa Buarque de; MONTELEONE, Jorge [Seleção e ensaios
introdutórios]. Puentes/Pontes. Buenos Aires: FCE, 1997b. p. 228-229.).
131
Tem-se, aí, implícito, o apelo do corpo que quer viver, pois a precipitação da
senda desaparecedora estiola a vida – “Bajo las matas/ En los pajonales/ Sobre los
puentes/ En los canales/ Hay Cadáveres”. Cadáveres escrito em 1981, ainda na época
do dito Processo de Reorganização Nacional, destila ao leitor a condição de realidade
convertida em desaparecimento de pessoas, retornando ao poeta argentino uma
elevação crítico-sensível de sua própria abertura participativa no mundo da vida, e que
é concretizada pela fatura poética. Essa condição de realidade incrusta-se parcialmente
no poema através da versificação livre com que os “acontecimentos” são expostos.
Estes, por outro lado, no que é interno a estética, antecedem o signo agônico – “Hay
Cadáveres” –, referente poético da esfera de significados que envolvia a Buenos Aires
daquela época. “En el desierto de los consultorios”, “En lo incesante de ese trámite, de
esse ‘proceso’ en hospitales”, “En el país donde se yuga el molinero”, “En la provincia
donde no se dice la verdad”, “En el campo”, “En la casa”; são alguns avatares poéticos
que antecedem o morticínio estabelecido naqueles anos: “Hay Cadáveres”. Cadáveres
confabulados pelos militares em todos os lugares: consultórios, hospitais, casas, campo
etc. Não raro esses avatares apresentaram-se na escrita de Gullar de forma a afirmar a
vivência da existência diante do cotidiano precarizado pelos desaparecimentos. Uma
presença a meio caminho da relembrança de São Luís do Maranhão e da firmação
corpórea em Buenos Aires. Tal presença irrigava o corpo situado do homem situado
com a inescapável condição inautêntica para a concretude do poema: a presença
fugidia na cidade portenha. É sob esta condição que a escrita poética interpelou a
realidade vivida na cidade-natal e que se colocou esta, àquela época, como vivido
rememorado. Acompanhemos os versos:
(…)
corpo
que pode um sabre rasgar
um caco de vidro
uma navalha
meu corpo cheio de sangue
que o irriga como a um continente
ou a um jardim
circulando por meus braços
por meus dedos
enquanto discuto caminho
lembro relembro
132
(…)
Meu corpo
que deitado na cama vejo
como um objeto no espaço
que mede 1, 70m
e que sou eu: essa coisa
deitada
barriga pernas pés
com cinco dedos cada um (por que
não seis?)
joelhos e tornozelos
para mover-se
sentar-se
levantar-se
81 “La nacionalidad no es solo imaginaria. Se arraiga en su inscripción material sobre los cuerpos.”. (Cf.
SARLO, Beatriz. Tiempo presente: notas sobre el cambio de una cultura. Buenos Aires: Siglo XXI, 2006.
p. 18.).
136
Para nós essa realização do ato poetante, sob condições restritivas para o
acontecer poético, condiz com o afastamento do poeta do lirismo saudosista. A
insistência (no primeiro terço do poema) na inscrição material do corpo parece-nos ter,
então, o intuito de gravar a situação onto-biológica, sob vivência crítica, para trazer à
tona o lirismo objetivo que assimila tal situação revelada na existência histórico-
geográfica. Esta última tem, no seu referente poético, a afirmação do poeta no mundo
vivo que descreve a si para se afirmar de forma reiterativa na vida (“Meu corpo…/ e
que sou eu: essa coisa/ deitada/ barriga pernas pés/ com cinco dedos cada um (por
que/ não seis?)/ joelhos e tornozelos/ para mover-se/ sentar-se/ levantar-se). Tal
reiteração de pronto é acompanhada pelo entorno íntimo que torna o poeta emissor
particular da criação artística que o liga ao mundo da vida. (“Corpo meu corpo corpo/
que tem um nariz assim uma boca/.../ que minha mãe identifica como sendo de seu
filho/ que meu filho identifica/ como sendo de seu pai/ corpo que se pára de funcionar
provoca/ um grave acontecimento na família/”) (GULLAR, 2006a, p. 10). “De algum
modo a atividade artística pretende afirmar a permanência no precário da vida.”
137
(GULLAR, 2006) (Entrevista realizada com Ferreira Gullar, por Samarone Marinho, em
novembro e dezembro de 2006). Esta permanência compõe, igualmente, o existir do
homem situado que, por sua vez, modela o ato poetante a partir do confrontamento
com o real para afirmar a presença corpórea no mundo humano. Essa necessidade real
de identificar a si é transposta para o referente poético agindo, aí, como núcleo próprio
da ratificação da identificação sócio-espacial da corporeidade poetante. Em nossa
leitura, o fragmento a seguir transmite essa necessidade:
(…)
Mas sobretudo meu
corpo
nordestino
mais que isso
maranhense
mais que isso
sanluisense
mais que isso
ferreirense
newtoniense
alzirense
políticas (as últimas ditaduras na América Latina, p. ex), o poeta é capaz de capturar as
experiências estéticas possíveis de serem plasmadas para a criação artística que
retornará como experiência única obtida a partir da relação da realidade com a
consciência. Para nós, essa experiência única é obtida através da relação de objetivação
entre homem e mundo que circunstancia a gênese de subjetivo objetivado. Parece-nos,
não raro, que o múltiplo perspectivismo tonal marca acentuadamente a poética latino-
americana dos anos 1970 e 1980 quando, principalmente na poética brasileira e
platina, os poetas procuram, a partir da hibridez entre imaginação e realidade,
sustentar um discurso crítico-reflexivo capaz de estreitar o valo entre ambas (a
imaginação e a realidade).
82 “Todo escritor honesto admitirá que el desarraigo (el desterro) conduce a una re-visión de sí mismo.”
(Cf. CORTÁZAR, Julio. Argentina: años de alambradas culturales. Buenos Aires: Muchnik, 1984. p. 23.).
140
(…)
tchi tchi
trã trã trã
tara TARÃ TARÃ TARÃ
tchi tchi tchi tchi tchi
TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ TARÃ
medeia a criação artística. “Queria resgatar a vida vivida (um modo talvez de sentir-me
vivo), descer nos labirintos do tempo, talvez quem sabe para encontrar amparo no solo
afetivo da terra natal. Não queria fazer um discurso acerca do passado mas torná-lo
outra vez, matéria viva do poema, da fala, da existência atual.” (GULLAR, 2006, p. viii),
recorda mais uma vez Gullar. É nesta mediação corpórea interposta entre a
geograficidade e o espaço de existência que a manifestação ontocriativa (o poema)
torna-se o solo criativo do homem que quer se situar. A realização do Poema sujo diz
respeito àquele momento de consubstanciação entre Ferreira Gullar e Buenos Aires,
com a verve lírico-existencial voltada para a cidade-natal, no relativo aspecto crítico-
remorativo surgido a partir da profundidade do vivido.
Capítulo 3
O lugar do poeta nos tempos dentro do Tempo
A individualidade é desenvolvimento,
é vir-a-ser converter-se em indivíduo
Agnes Heller
(O Cotidiano e a História, 1992)
A individualidade
Não é um bem que pereça
Milton Santos
(O espaço do cidadão, 1993)
O ser-espacial e a individualidade
83 “Gostaria de sugerir, para começar esta discussão do cotidiano que, por gentileza, os senhores
admitissem comigo que há possibilidade de trabalhar três dimensões do homem: a dimensão da
corporeidade, a dimensão da individualidade e a dimensão da socialidade (…). Há dimensões que não são
objetivas, mas subjetivas; aquelas que têm a ver com a individualidade e que conduzem a considerar os
graus diversos de consciência dos homens: consciência do mundo, consciência do lugar, consciência de
144
si, consciência do outro, consciência de nós. Todas estas formas de consciência têm a ver com a
individualidade e lhe constituem gamas diferentes, tendo também que ver com a transindividualidade,
isto é, com as relações entre indivíduos (…)”. (Cf. SANTOS, Milton. Por uma geografia cidadã: por uma
epistemologia da existência. In: Boletim Gaúcho de Geografia. Porto Alegre, RS, n. 21, Ago. 1996a, pp. 7-
14.).
145
no tempo. Isto com o fim de se tornar organicamente, pela aparência, diferenciado dos
outros indivíduos. Mas, com a fisicidade e para além dela, o indivíduo socioespacial, no
seu espaço-tempo, é uma parte da totalização sensível, que extrapola o universo da
senso-percepção, sempre a se fazer no mundo dos homens tenhamos isso em mente. A
individualidade, pela situação, completa-se no quadro em que o princípio de
individuação aderente, em termos relativos e não unilaterais, ao espaço de existência,
ratifica-se na comunicação entre a parte (individual-no-social) e o todo (social-no-
espacial), e não fora deste. Isto se dá, pela existência, como uma busca ao caminho
essencial para a consolidação da socialidade. Esta última concretizada no âmbito
multiescalar em que cada geograficidade está envolvida com seu espaço-tempo na
apreensão sígnica processual da existência histórico-geográfica.
84Como exposto por J. Habermas (1990a, pp. 192-196) a visão de mundo sobre o indivíduo apresenta-se
em Descartes como uma relação de fixação da individualidade no mundo concebida na relação do sujeito
cognoscente consigo mesmo (p. 192). Ou seja, uma individualidade cindida espaço-temporalmente do
corpo na afirmação da autoconsciência mediada apenas pela razão. Em Fichte, a interpretação do
processo ontológico da individuação concentra-se na gênese do Eu, de como a individualidade pertence a
priori à autoconsciência, de como o Eu coloca a si mesmo como um Eu individual (p. 193). E Kierkegaard
agrava a idéia de que todo indivíduo tem de fazer de si mesmo aquilo que ele é, transformando-a no ato
da aceitação responsável da própria biografia (p. 196). Ou seja, uma individualidade em que o princípio
de auto-escolha para a constituição do Eu independe totalmente das relações com outros e com o
ambiente. (Cf. HABERMAS, Jürgen. Pensamento pós-metafísico: estudos filosóficos. Rio de Janeiro:
Tempo Brasileiro, 1990a.).
146
85Parece ser essa a pertinência da análise de E. Martins (2009, pp. 22-24) no tocante à sua observação a
respeito da tradição antiga na geografia, da ligação entre espaço e matéria (esta, no sentido científico –
daquele do progresso científico). Tal ligação para o geógrafo teria fundas raízes em Descartes, e até antes
em Aristóteles, na idéia de corpo-continente (p. 23). A visão de mundo imperiosa à apreensão do real
teria acento numa perspectiva quantitativa da realidade. Ou seja, o espaço, nessa visão de mundo, teria
materialidade e seria passível de ser visto ou até mesmo ser produzido, enquanto o tempo não teria
materialidade. (Cf. MARTINS, Élvio. “Pensamento geográfico é geografia em pensamento”. In: KATUTA,
Ângela Massumi (et. al.). Geografia e mídia impressa. Londrina-PR: Moriá, 2009. pp. 13-35.). E. Martins
(2007, pp. 35-37) comunica ainda que seria a superposição entre espaço e matéria, e posteriormente
entre materialidade e objetividade, ocorrida de tal herança cartesiana o leitmotif delineador da definição
de espaço geográfico em obras clássicas do pensamento geográfico (A Geografia Política de Ratzel, o
Princípio de geografia humana de La Blache etc.). Assim, dentro do fundamento cartesiano, mas também
kantiano, o espaço, à crítica do geógrafo brasileiro em relação às várias acepções geográficas, seria algo
dotado (se e somente se) de materialidade, um dado corpóreo, visível e, mesmo, tangível (p. 36). (Cf.
MARTINS, Élvio. “Geografia e Ontologia: o fundamento geográfico do ser”. In: GEOUSP-Espaço e Tempo,
São Paulo, n. 21, pp. 33-51, 2007. p. 47.). M. Santos (2002a, pp. 155-163), por sua vez, vem a nos mostrar
que “grande número de autores modernos e clássicos afirma que o espaço é apenas um reflexo da
sociedade, uma tela de fundo onde os fatos sociais se inscrevem à vontade, na medida em que
acontecem” (p. 159). Sintetiza a questão nos remetendo a uma pista de análise do espaço como fato
social que, reconhecido como um elemento de um conjunto social, realiza a dupla função que lhe
assegura a condição de fato histórico que é definido e define esse mesmo conjunto social, um revelador
que permite ser decifrado por aqueles mesmos [os indivíduos] a quem revela (p. 163). (Cf. SANTOS,
Milton. Por uma Geografia Nova: Da Crítica da Geografia a uma Geografia Crítica. São Paulo: EdUSP,
2002a.).
147
pela consciência do indivíduo, das mediações com a realidade geográfica. Esta última,
vista como campo relacional subordinado-subordinante inautêntico (pois o autêntico é
temporário, referendado à uma época, e não age em causa da hipostasia) na
confabulação própria de uma realidade enquanto produto em constante mutação, uma
parte dessa dialética ser <-> existir e não como reflexo da consciência falsa, tanto
comentada por Joseph Gabel (apud Goldmann, 1975), na apreensão do real.
86
Para G. Lukács (1976) a categoria que realiza o salto ontológico da esfera biológica ao mundo dos
homens é o trabalho. Esta última para o autor húngaro constituiria o momento de reprodução do novo em
que é efetuado o momento da passagem da esfera anterior (orgânica-inorgânica) para a gênese do ser
social. Ou seja, o momento em que as forças essenciais do homem (mentais e corporais) conformam a
processualidade concreta da vida pelo desenvolvimento concreto dos signos à construção do mundo dos
homens. “A essência do salto”, explica Lukács (1976, p. 17-18), “é constituída pela ruptura com a
continuidade normal do desenvolvimento e não pelo nascimento repentino ou gradual, ao longo do
tempo, da nova forma de ser”. Assim, pode-se depreender que a constituição do ser social tem na
articulação do mundo dos homens com o conjunto da natureza (da natureza socializada) a seu efetivo
salto ontológico circunstanciado pelo trabalho. (Cf. LUKÁCS, Georg. Per uma Ontologia dell’Essere
Sociale. Roma, Riuniti, 1976. v.1.).
149
mundo que compreende um lugar, um corpo, uma posição, um passado, uma relação
fundamental entre indivíduos. Por isso afirma-se que não existe modo de ser do espaço
(espacialidade), muito menos modo de ser do território (territorialidade), sem a
presença do modo de ser do indivíduo (a individualidade) e, principalmente, o modo de
ser da sociedade (a socialidade), os quais restituem as relações objetivadoras no par
homem situado-espaço de existência ao efetivo uso diferenciado, e produção da
realidade geográfica relacional. Advogar em causa da elisão da individualidade e da
socialidade é dá vazão a algo fantasmagórico. O ser em situação, indivíduo
socioespacial, reconhecido o esquadrinhamento de sua existência histórico-geográfica
e dotado de geograficidade em evidência socioespacial corpórea, faz a mediação entre
os pares “espacialidade-territorialidade” e “individualidade-socialidade” na construção
existencial e relacional de si (ser em situação) e do espaço dos homens.
87 Dentro do sistema conceitual proposto por M. Santos (2004b) (Cf. SANTOS, Milton. A Natureza do
Espaço: Técnica e Tempo, Razão e Emoção. 4. ed. 1. reimpr. São Paulo: EdUSP, 2004b.), e a partir de
nossa interpretação, o espaço é composto de uma materialidade (configuração geográfica) fixada natural
ou artificialmente (sistema de objetos), bem como as maneiras como essa materialidade é representada,
visualizada, usada e animada pela sociedade (sistema de ações). Tem-se, por um lado, um conjunto
imaterial e por outro um conjunto material que, aderente e animado pelo primeiro, constituem um
concepção dialética sobre o espaço geográfico. Na análise de entendimento desse espaço a busca por
qualquer essência se dá à investidura do pensamento na (vivência da) existência. Então, quando Santos
nos fala que a essência do espaço é social (Cf. SANTOS, Milton. Espaço e Método. São Paulo: Nobel,
1985.), ele tanto (nos) afasta do sentido de essencialismo, da busca por uma essência pura, quanto (nos)
aproxima da essência do objeto, o espaço que é social, objetivado pela ação do homem na metamorfose
do espaço geográfico que ocorre através da materialidade evidente em si (configuração geográfica)
fixada natural ou artificialmente (sistemas de objetos), bem como o conjunto imaterial composto pela
sociedade (sistema de ações). A sua ontologia geográfica, do meio, concorre então para (nos) mostrar que
qualquer primado ontológico é inerente ao ser (indivíduo, sociedade) que interroga o existir (espaço)
remetendo, a este, usos e funções diferenciadas a cada momento de apropriação. A nosso ver, na obra de
Santos, é nesse momento de apropriação que a forma geográfica (socioespacial) surge como uma das
principais instâncias da forma de existência do Ser do Ente (utilizando a linguagem heideggeriana): o
homem e a sociedade, onde o primado da pergunta recai. Isto, concorre, outrossim, ao engano de análise
de parte da crítica geográfica em imaginar que o primado ontológico (da pergunta, in redundantìa) recai
sobre o espaço. Logo, a insistência, equivocada a nosso ver, numa tal personificação do espaço; o que
imprime a este um caráter de sujeito. Numa leitura mais apurada da obra do autor, logo ver-se-á que tal
insistência se converterá em refutação mostrada como equívoco crasso.
88 Segundo S. Lessa (2007), para Lukács existem três esferas ontológicas distintas: a inorgânica, cuja
essência é o incessante tornar-se outro mineral; a esfera biológica, cuja essência é o repor o mesmo da
reprodução da vida; e o ser social, que se particulariza pela incessante produção do novo, por meio da
150
Lá atrás, com E. Martins (2007), no início deste trabalho, havíamos dito que
a relação homem-meio, já intensificada-complexificada (o salto ontológico, para nós),
tinha como resultado o estabelecimento da propriedade socioespacial ao homem
situado, a geograficidade. A geograficidade é ato humano, prenhe de ideologia e
política, e vê-se que, na época atual, a afirmação dessas propriedades ocorrem quando
se efetiva continuamente a relação do individual-no-social, pela esfera de significados,
com o social-no-espacial. A geograficidade participativa detona o ato humano como
princípio de formação socioespacial da vida, quando, aí, os graus diversos de
consciência (de si, do outro e do mundo pelos lugares) aparecem com força para a
concreção de tal formação. A geografia vivida em ato, então, é o termo da vivência
socioespacial encarnado no indivíduo se fazendo ser-espacial durante a existência
histórico-geográfica, na efetiva realização contraditória da socialidade. Reporta-se
igualmente, aí, ao indivíduo que vive socioespacialmente a realidade geográfica, uma
cognocisbilidade processual que se dá como expressão da efetiva participação do
mesmo (do indivíduo socioespacial) na fatura do mundo, pelos lugares, com os signos
diversos a ele aderentes.
89 “Consequentemente as coisas podem ser consideradas ou como acidentes internos de nossas mente,
de tal modo que as consideramos quando a questão é sobre alguma faculdade da mente; ou como
espécies das coisas externas, não como existindo realmente, mas apenas como parecendo existir, ou ter
uma existência fora de nós.” (Cf. HOBBES, Thomas. Tratado sobre el cuerpo. Madrid: Editorial Trotta,
2000. p. 94.).
90 “Essa necessidade de existir como consciência de outra coisa que não ela mesma, Husserl a chama de
‘intencionalidade’.” (Cf. SARTRE, Jean-Paul. Situations philosophiques. Paris: Gallimard, 1990. p. 11.).
“O conhecimento ou pura ‘representação’ é apenas uma das formas possíveis da minha consciência ‘de’
tal árvore; posso também amá-la, temê-la, detestá-la e essa separação da consciência por si mesma, que
chamamos de ‘intencionalidade’, vai ao encontro do temor, do ódio e do amor”. (SARTRE, op. cit., p. 11.).
153
91 A propósito desses pontos genéticos delineadores da geografia de Eric Dardel, ver Jean-Marc Besse (Cf.
BESSE, Jean-Marc. Lire Dardel aujourd’hui. In: L’Espace Géographique, 1988, n. 1, pp. 43-46.). Conta-nos
P. C. C. Gomes (1996) que: “As interpretações da obra de Dardel variam segundo o gênero de humanismo
que se pretende valorizar. Certos geógrafos encontram as raízes de uma perspectiva semiológica na
proposição de Dardel de ‘decifrar a Terra como uma escrita’. Outros sublinham a influência de Heidegger
e, portanto, da fenomenologia, que efetivamente teve um papel importante na obra de Dardel: ele foi o
primeiro tradutor de O Ser e o Tempo para o francês. Há ainda geógrafos que se esforçam em valorizar o
encontro entre a geografia e a arte, e a indicar uma ‘geopoética’ no discurso de Dardel.” (p. 313-314). (Cf.
GOMES, Paulo César da Costa. Geografia e Modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.).
92 Em importante carta de Heidegger a Jean Beaufret, de 23 de novembro de 1945 (Cf. HEIDEGGER,
Martin. Über den Humanismus. Frankfurt: Vittorio Klostermann. 1947. Em francês: Cf. HEIDEGGER,
Martin. Lettre sur l’humanisme. Paris: Aubier, 1957. Em português: Cf. HEIDEGGER, Martin. Sobre o
Humanismo. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1967.), o filósofo alemão quer informar o exato sentido
de Dasein, escrevendo: “‘Da-sein’ ist ein Schlüsselwort meines Denkens und daher auch der Anlass zu
grossen Missdeutungen. ‘Da-sein’ bedeutet für mich nicht so sehr ‘me voilà’ sondern, wenn ich es in
einem vielleicht unmöglichen Französisch sagen darf être-le-là. Und le-là ist gleich Alétheia:
Unverborgenheit – Offenheit”. (p. 11). (“‘Da-sein’ é uma palavra-chave do meu pensamento e também dá
lugar a graves erros de interpretação. ‘Da-sein’ não significa tanto para mim ‘me voilà’ [eis-me aí], mas, se
pudesse exprimir-me em um francês sem dúvida impossível: o être-le-là [ser-ele-aí] e o lê-là [ele-aí] é
precisamente Alétheia: desocultamento – abertura.”). Parece-nos que o Dasein, nos termos propostos por
Heidegger, refere-se à busca pela abertura autêntica voltada para o mundo (que em várias conferências e
ensaios do filosófo alemão, é um mundo dominado pela “tecnologia” e pelo “consumo”). Ou seja , o ser-
no-mundo é o Ser expresso pelo Cuidado à vida em face do cotidiano que ameaçado constantemente pela
morte pede ao homem um constante caráter auto-reflexivo para estar (manter-se) no mundo.
93 Hannah Arendt (2002) conta-nos que distintamente do existencialismo francês, o termo “Existenz” (em
alemão) indica na filosofia alemã do pós-guerra (com Scheler, Heidegger e Jaspers), em primeiro lugar,
nada mais do que o ser do homem, independentemente de todas as qualidades e capacidades que
possam ser psicologicamente investigadas. (p. 15). (Cf. ARENDT, Hannah. O que é a filosofia da Existenz?
In: A dignidade da política: ensaios e conferências. 3. ed. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 2002. p. 15-
37). Em Martin Heidegger a especificidade do termo Existenz assim é expresso: “De qualquer modo, esta
realidade, que nada mais faz que devolver para nós mesmos nossa condição de finitude, nos coloca numa
condição tal de expectação que nos vemos diante do absurdo da existência, entendendo-se por existência
[Existenz] aquele movimento de existir para além de nós mesmos [a abertura], ou seja, de sair de nós
mesmos e do núcleo de nossa impotência e impossibilidade, para enfim, nos lançarmos,
irremediavelmente, nos braços da esperança – notável recurso que nos ajuda a vencer o sem-sentido da
existência!” (Cf. HEIDEGGER, Martin. Sein un Zeit, Frankfurt: Vittorio Klostermann, 1977. p. 195ss. Cf.
Em português: HEIDEGGER, Martin. Ser e Tempo. Petrópolis, RJ: Vozes; Bragança Paulista: Editora
154
do homem com a terra natal e que necessita do reencontro daquele com o genius loci da
recôndita cidade mediante a agregação da matéria e do imaginário, do telurismo e da
concretude. Enfim, uma “geografia interior, primitiva, onde a espacialidade original e a
mobilidade profunda do homem desenham direções, traçam caminhos para um outro
mundo…” (DARDEL, 1990, p. 8). Um outro mundo que, na acepção de existência de
Heidegger, se contraporia ao mundo do cotidiano e da impessoalidade. Este último,
conforme a reprovação heideggeriana, um mundo dominado pela tagarelice, pela
curiosidade e pelo equívoco. E é contra esse mundo – configuração de uma existência
dita inautêntica nos termos heideggeriano – que a existência autêntica se firma. É na
dependência desta existência que Dardel solidifica em grande medida a geograficidade,
a geografia vivida em ato (DARDEL, 1990, p. 2).
Universitária São Francisco, 2006. p. 179ss). Existindo para além de si, o Ser do Homem fica
caracterizado como Ser-no-mundo. É, aí, como confirma a filósofa alemã (ARENDT, op. cit., p. 30),
interpretando Heidegger, que a Existenz se faz ser-do-homem no seu elo relacional autêntico com o
mundo.
94 “É na pessoa humana, elemento primário da sociedade, onde tem que se buscar o choque impulsivo do
meio, destinado a traduzir-se em ações voluntárias para expandir as idéias e participar nas obras que
modificaram o aspecto das nações... A sociedade livre se estabelece pela liberdade dada em que seu
desenvolvimento completo a cada pessoa humana, primeira célula fundamental, que se agrega depois e
se associa como o lugar para as demais células da ‘mutante’ humanidade. Em proporção direta a essa
liberdade e a esse desenvolvimento inicial do indivíduo ganham as sociedades em valor e em nobreza:
‘do homem nasce a vontade criadora que constrói e reconstrói o mundo” (Cf. RECLUS, Elisée. El hombre
y la tierra. Barcelona: Casa Editoria Maucci, 1915 (1905-1908). v. 1. 6. v.).
95 “A realidade geográfica, para o homem, é então o lugar onde ele está, os lugares de sua infância, o
ambiente que atrai sua presença (…). Terras que ele pisa ou onde ele trabalha, o horizonte do seu vale, ou
a sua rua, o seu bairro, seus deslocamentos cotidianos através da cidade. A realidade geográfica exige, às
vezes, duramente, o trabalho e o sofrimento dos homens. Ela o restringe e o aprisiona, o ata à ‘gleba’,
horizonte estreito imposto pela vida ou pela sociedade a seus gestos e a seus pensamentos” (Cf. DARDEL,
Eric. L’Homme et la Terre: Nature de la réalité géographique. Paris: CTHS, 1990. p. 46-47.).
155
Observamos até agora que a consciência não é vista como uma relação
individual consigo própria que se basta na realização da subjetividade do ser em ato,
mas como realce do aspecto relacional em que o termo de vivência socioespacial da
vida, a geograficidade, empurra o ser em ato à realização da subjetividade com outra
156
Muitas das coisas que nos são “apresentadas” não são descobertas puras
advindas de uma genialidade pretensiosa. Simplesmente elas nos vêem à tona como
“revelação” reafirmada pelo esforço diário do pensar. A constituição da individualidade,
na forma específica que emoldura o ser – a de sua socioespacialidade efetiva ao estar-
junto no espaço –, permite-nos um esforço de entendimento dessa constituição como
momento de uma realização objetivadora (o trabalho, a arte etc.) no par dialético
homem situado-espaço de existência. Parece-nos que no quadro de reconfiguração
dessa específica individualidade, nos termos aqui abordados, têm-se nas figuras de G.
Simmel (1986; 2001), a partir de sua análise sociológica do indivíduo na cidade; K.
Marx (2007) e M. Stirner (2004), na acepção desses dois filósofos sobre a
individualidade, um ponto de apoio para tal reconfiguração.
mundo físico e de ter acesso à verdade moral, e mais especificamente a fé na ciência, como instância
habilitada a conhecer a natureza e transformá-la para satisfazer às necessidades materiais dos homens.
Negativamente, significa o desencantamento, a denúncia do mito e da superstição, o questionamento da
159
autoridade dogmática e o exame crítico da tradição.” (Cf. ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na
Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 409.). “A atitude crítica própria do Iluminismo
está bem expressa em sua resoluta hostilidade à tradição. Na tradição, o Iluminismo vê uma força hostil
que mantém vivas crenças e preconceitos os quais é obrigação sua destruir. Tradição e erro para eles
coincidiam.” (Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p.
619.).
98 O liberalismo, em sua forma econômica clássica (Smith, Ricardo, os Fisiocratas), tem como princípio
doutrinário o individualismo. Adam Smith (1999, p. 274) em sua Teoria dos Sentimentos Morais
(publicado pela primeira vez em 1759), de certa maneira, apresenta esse princípio da seguinte forma:
“Como costumavam dizer os Estóicos, todo homem é primeiro e principalmente recomendado a seu
próprio cuidado: e todo homem é certamente, em todos os aspectos, mais adequado e capaz de cuidar de
si mesmo do que qualquer outra pessoa.” (Cf. SMITH, Adam. Teoria dos Sentimentos Morais. São Paulo:
Martins Fontes, 1999.). Querendo opor-se às imposições morais e mercadológicas do Estado absolutista
mercantilista, Smith completa seu sistema erigindo um verdadeiro hino ao mercado e ao capitalismo
auto-regulado pela concorrência, a Riqueza das Nações (publicado pela primeira vez em 1776):
transfiguração mater do princípio do individualismo por meio da crença de que a luta pelos interesses
(de consumo) individuais por parte de cada um traria benefícios a todos. Estava em vigência, aí, na tese
smithiana, a expressão teórica da luta da nascente burguesia contra as restrições econômicas imposta
pelo Estado absolutista, e em favor da livre-iniciativa e do livre-mercado. Surgia, daí, a figura do indivíduo
econômico que, ordenado pela metáfora da mão invisível (o mercado), direcionava o desenrolar da
riqueza (e da pobreza) da sociedade liberal. Ou nos próprios termos de A. Smith (1998, p. 31):“Cada
homem é rico ou pobre, segundo o grau em que pode adquirir as necessidades, conveniências e diversões
da vida humana. Mas depois que a divisão do trabalho foi bem implantada, é a uma bem pequena parte
destas que o trabalho do homem proporciona. A maioria delas, ele deve derivar do trabalho de outras
pessoas, e será rico ou pobre, de acordo com a quantidade daquele trabalho que pode comandar, ou que
ele pode adquirir.”. (Cf. SMITH, Adam. Uma Investigação Sobre a Natureza e Causas da Riqueza das
Nações. 6. ed. Rio de Janeiro: Ediouro, 1998.). Portanto, uma vida direcionada à troca permanente de
bens, onde a riqueza ou pobreza estão na capacidade de cada homem (em sua singularidade) trocar bens
e quanto mais especializado for, melhor lugar conquista no processo produtivo.
160
99 Quando Mises fala do individualista sensível (Cf. MISES, Ludwig von. Ação Humana: um tratado de
economia. 2. ed. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1995. p. xvi.) (Cf. MISES, Ludwig von. Liberalismo:
segundo a tradição clássica. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1987. p. 125.) quer no fundo deixar claro
que a supremacia do “homem comum” advinda da filosofia do Iluminismo converteu o gênero humano
num consumidor, num “cidadão regular” (termo de Mises) que é chamado a determinar, em última
análise, pelo absenteísmo do Estado e da sociedade em si, o que deveria ser produzido, em quantidade e
com que finalidade. A busca, aí, é a reafirmação do ideal social pautado no livre-mercado direcionando
todas as ações do individualista sensível. A clareza pétrea com que Mises expõe as idéias sobre o
individualista sensível (ligado ao mundo sensorial) visa senão afirmar o progresso do bem-estar material
do homem e não se refere às necessidades interiores, espirituais e metafísicas. Justifica isso dizendo que
a filosofia liberal busca produzir apenas o bem-estar exterior, porque acredita que o mais profundo no
homem não pode ser tocado por qualquer regulação externa (p. 6). Bem na verdade tem-se instilado, aí, a
produção do ensimesmamento no entorno da vida para retornar no homem mesmo o seu caráter
utilitarista para com esse próprio entorno. Engrossando os argumentos a favor dos princípios liberais
Hayek (Cf. HAYEK, Friedrich Auguste. O caminho da servidão. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1984.)
(Cf. HAYEK, Friedrich Auguste. Individualism and Economic Order. Indiana, USA: Gateway, 1948.)
reafirma a presença desse indivíduo do bem-estar material condicionado que está pelo mercado da
ordem espontânea entre indivíduos, onde o ganho de cada um é derivado da localização econômica
(informação que cada agente retém dentro da ordem socioeconômica) estimulada pelas funções de
produzir, competir e consumir. Esses três verbos alegóricos norteiam as ações dos indivíduos da
“sociedade de mercado” de Hayek. Entretanto, não é a Mises e a Hayek que adveio a vulgarização dos
preceitos liberais, eles são herdeiros diretos de uma filosofia que estimula o primado do individualismo
(a competição na realização da sociedade de mercado) sobreposto ao social, em detrimento da prática
solidária (de relações de interdependência) entre os indivíduos ao ganho individual-social e não
individual-individual. Suspeitamos que a abertura espectral-total para a vulgarização se deu
concomitantemente, pelo menos, por duas frentes: 1) a primeira originária no final da década de 1930
quando W. Lippmann, J. Rueff, E. Eucken, W. Röpke (dentre outros) passaram a defender o
disciplinamento da economia de mercado pelo viés do intervencionismo pontual do Estado (agindo a
favor das multinacionais), da privatização de empresas estatais e da privatização de serviços públicos
essências (saúde, educação etc.); 2) e a segunda, em sua versão financeira, com origens num clube de
banqueiros suíços (dentre eles Franz Heinrich Gunter, idealizador dos famigerados Axiomas de Zurique)
que, logo depois da Segunda Guerra, idealizaram, a partir da financeirização da economia (empiricamente
estabelecida em Wall Street), uma sociedade pletora de competidores onde, de fato, os mais ricos sempre
levariam mais vantagens no auferimento de mais lucro (Cf. GÜNTER, Max. Os Axiomas de Zurique. 18.
ed. Rio de Janeiro: Record, 2007.). É o germe da competição e do consumismo repetidos, ad nauseam, e
levados à última potência. O descolamento entre política e economia é causa filosófica da proposição das
duas frentes. Ou seja, para eles, a política não deve interferir nas análises econômicas e estas não dizem
respeito à política do mundo cotidiano (ao menos de maneira pérfida, é o que nos querem fazer
acreditar). Idealisticamente sustentada tal separação, o econômico descolado do político se converte em
puro tecnicismo para alcançar, num campo social específico, o quadro de generalizações desconexas à
própria realidade a ser interpelada. Assim o neoliberalismo é fruto de tais generalizações e a
despolitização é medida exata de sua fortaleza. Se para Mises o liberalismo é economia aplicada (Cf.
161
MISES, Ludwig von. Liberalismo: segundo a tradição clássica. Rio de Janeiro: Instituto Liberal, 1987.) o
que seria então o neoliberalismo? O neoliberalismo é economia convertida à perversidade.
162
por Élvio Martins em dois semestres (2006 e 2007). As reflexões (tanto do professor quanto do aluno)
advindas de tal disciplina foram transcritas e coligidas em uma coletânea particular do aluno intitulada
Mas que coisa é homem, que há sob o nome: uma geografia? Pela transcrição de uma parte de uma das
aulas, assim estava expresso o pensamento do professor a respeito da cognição subjetiva-objetiva do
espaço: “A geografia não está apenas sujeita à percepção da paisagem. O que está na natureza
apropriada, uma natureza ‘adesiva’ à realidade objetiva. É necessário supor que a geografia também é
constituinte de subjetividade humana. Sendo que o ato de objetivação não surge do nada. O ato,
consciente ou inconsciente, da objetivação da geografia está atrelada ao pensamento, à uma realidade
subjetiva, dotada de ordem espaço-temporal. Portanto, de uma lógica. Sem essa compreensão devida da
geografia pouco se pode fazer para compreender o mundo em sua totalidade. Entender essa cognição é
163
entender a dinâmica existente entre objetividade e subjetividade. Dinâmica que está no plano das
relações que significa uma simultaneidade entre o Ser-sendo e um não-ser do outro, uma relação de co-
determinação e autonegação entre os entes (cria-se, criando; criando se cria).” (MARTINS, 2007)
(informação verbal) (página 31 da coletânea).
101 Tal polêmica segundo Souza (1993) gira em torno do debate travado por Karl Marx (A ideologia
alemã) e Max Stirner (O único e sua propriedade) a respeito da individualidade, dos argumentos de cada
um em defesa de específicas concepções de indivíduo: Stirner à favor do indivíduo como centro, dono e
medida de si mesmo e Marx à favor do indivíduo produtor. (Cf. SOUZA, José Crisóstomo de. A questão da
individualidade. Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1993.).
102 “Todas as formas de governo se fundam no princípio de que todo o direito e todo o poder pertencem à
totalidade do povo. Nenhuma delas deixa de apelar a este princípio, e tanto o déspota como o presidente
ou uma qualquer aristocracia etc., agem e ordenam “em nome do Estado”. Eles possuem o “poder de
Estado”, e é absolutamente indiferente saber se quem exerce esse “poder de Estado” é, se isso fosse
possível, o povo como coletivo de todos os indivíduos... (p. 157). ” “Dono e criador dos meus direitos, não
reconheço qualquer outra fonte de direito que não seja... Eu – nem Deus, nem o Estado, nem a natureza,
nem sequer o homem com os seus “eternos direitos humanos”, nem o direito divino nem o humano. (p.
163).” (Cf. STIRNER, Max. O único e a sua propriedade. Lisboa: Antígona, 2004.). “O que vence é para
Stirner a “hierarquia” que equivale a trajetos rígidos, ligações inquebráveis, a espaços de enclosures
onde apenas se pode entrar e sair, para passar de um para o outro. Em cada um desses espaços, sempre o
mesmo: os que mandam e os que obedecem, os ricos e os pobres, os que ensinam e os que aprendem etc.
etc.” (Cf. MIRANDA, José A. Bragança de. Stirner, o passageiro clandestino da história (pósfacio). In:
STIRNER, Max. O único e a sua propriedade. Lisboa: Antígona, 2004. p. 295-339.).
103 “O objetivo imediato dos comunistas é o mesmo que o de todos os demais partidos proletários:
pelo contrário, não quer se desfazer totalmente dos poderes institucionais (Estado,
Direito, poderes constituintes etc.). Ele quer erigir outro mundo com os poderes
institucionais, para além deles, pelas mãos de outro indivíduo (o proletário), na
conformação de outra estrutura societária (o comunismo de Estado). Tanto um quanto
o outro, cada qual em seus termos, confirmam uma individualidade na autonomia
diante do mundo antigo (aquele, na acepção historista104, das sociedades “naturais” e
“medievais”). O primeiro afirma o “ser singular”, na possibilidade, na recusa da
estrutura prática do mundo, idealizando outra. O segundo afirma o “ser genérico”, na
materialidade, no enfrentamento da estrutura prática do mundo – transformando-a.
Ambos querem assentar a constituição da individualidade em outros parâmetros, da
vida individual ser a afirmação da vida social (socioespacial, para nós).
104 Fazemos referência à corrente filosófica histórica alemã dos últimos decênios do dezenove (Dilthey,
Windelband e Rickert) que tentava resolver os problemas da explicação e da compreensão da realidade
histórica pela causalidade entre os fatos na produção da História. (Cf. ABBAGNANO, Nicola. Dicionário
de Filosofia. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. p. 589.). Contrapondo-se a essa corrente W.
Benjamin (Cf. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito da História. In: Obras Escolhidas: Magia e Técnica,
Arte e Política (vol. 1). São Paulo: Brasiliense, 1994.) revela: “O historicismo [historismus, no original em
alemão] se contenta em estabelecer um nexo causal entre vários momentos da história. Mas nenhum
fato, meramente por ser causa, é só por isso um fato histórico. Ele se transforma em fato histórico
postumamente, graças a acontecimentos que podem estar dele separados por milênios.” (p. 232).
165
Foi A. Heller (1992, p. 65-85)105 quem nos fez pensar que a liberdade do
indivíduo não significa dissolução da socialidade. Pelo contrário, o círculo social de
105“A comunidade é uma unidade estruturada, organizada, de grupos, dispondo de uma hierarquia
homogênea de valores e à qual o indivíduo pertence necessariamente [mesmo idealisticamente não
querendo]; essa necessidade pode decorrer do fato de se “estar lançado” nela ao nascer, caso em que a
comunidade promove posteriormente a formação da individualidade, ou de uma escolha relativamente
autônoma do indivíduo já desenvolvido.” (Cf. HELLER, Ágnes. O Cotidiano e a História. 4. ed. São Paulo:
166
Paz e Terra, 1992. p. 70-71.). “O aumento da liberdade de movimento do indivíduo [em face das antigas
ordens comunitárias que estavam em dissolução] não se deve ao debilitamento da comunidade, pois essa
liberdade já está prefigurada, em proporções bastante variáveis, nas comunidades que funcionam
adequadamente e não se debilitam.” (HELLER, op. cit., p. 73.). “[A problemática na qual ficou mergulhada
o “individualismo burguês” da filosofia liberal foi] em outras palavras: aquela ingênua confiança de que o
indivíduo podia desenvolver-se livremente inclusive fora de qualquer comunidade e de que o interesse
individual é um bom fio condutor para a liberdade individual…” (HELLER, op. cit., p. 77.). “O torna-se
indivíduo na medida em que produz uma síntese em seu Eu, em que transforma conscientemente os
objetivos e aspirações sociais em objetivos e aspirações particulares de si mesmo e em que, desse modo,
‘socializa’ sua particularidade.” (HELLER, op. cit., p. 80.). “A existência coletiva jamais é um fim em si
mesma, assim como não são fins em si mesmos a educação ou o ‘ficar sozinho’.” (HELLER, op. cit., p. 82.).
106 É conhecida a insistência de K. Marx no termo “homens reais”: aqueles concretamente determinados
por suas condições de vida, em contraposição ao “Homem” universal da “filosofia especulativa” de então
167
Nunca somos o mesmo indivíduo pelo fato de, em cada momento, ser
revelado em nossa individualidade um aprendizado dinâmico obtido na vivência da
existência, na socioespacialidade a se revelar nesse processo. A cada instante o ser em
ato se renova. Situa-se de maneiras diferenciadas mediante a constante presença
liberadora e restritiva do existir socioespacial, o espaço de existência. Fazendo alusão à
K. Marx (1969 apud Canevacci, 1981, p. 24), o “social” não pode funcionar como “objeto
prepotente”, pois a evidência cara a esse processo é a individualidade roubada pelo
(Herder, Fichte, Hegel etc.). Por suas próprias palavras, são esses homens “os produtores de suas
representações, idéias etc., pois os homens reais, operantes, do mesmo modo que estão condicionados
por um determinado desenvolvimento de suas forças produtivas e das relações que a elas correspondem
até em suas formações mais vastas.” (Cf. MARX, Karl. El materialismo histórico. In: MARX, Karl.; ENGELS,
Friedrich. Cuestiones de Arte y Literatura. 2. ed. Barcelona: Península, 1975.).
168
esquematismo produtivista que age tanto à abolição do indivíduo tout court no círculo
social (ao modo do império ideológico liberal) quanto à subordinação do indivíduo ao
interesse unilateral de um coletivo (à maneira da atuação da esquerda ortodoxa). O
autodesenvolvimento da individualidade é entendido, aí, não como reificação da
subjetividade na objetividade. Não como a elisão da primeira em relação à segunda.
Mas como momento da afirmação da indivisibilidade do ser do homem (ser, tempo,
espaço) dialeticamente construída na vida social, na produção da socialidade. Esta
sendo a própria partilha transindividual existente entre indivíduos em relação a si e ao
que já fora produzido, e/ou concebido, e/ou representado (o espaço de existência) na
conformação de uma totalidade heterogênea, a realidade geográfica como um todo.
consciência de si) quando este não está mais introduzido ao mundo humano delineado
pelas forças mercadificadas que empobrecem o vínculo do convívio socioespacial,
reduzindo-o a uma única potência humana (a economia, ou o que se tornou um
pensamento hegemônico sobre a mesma). A vinculação do indivíduo com a sociedade,
como nos diz A. Heller (1992, p. 65), é complexizada pela integração social interposta
nessa relação, elevando o caráter comunitário inerente a tal vínculo. Esse aspecto
comunitário, no hoje, assume feições de heterogeneidade quando um amalgama
conflitante das alteridades compõe a constituição socioespacial da individualidade. Esta
não significa um apelo mecanicista da participação do indivíduo no círculo social de
relações socioespaciais, mas o retorno de uma individualidade voltada para o fomento
de uma socialidade mais humana que se dá no reconhecimento de que a
individualidade ocorre numa experiência subjetiva/objetiva que tem como mediação a
partilha de espaço entre indivíduos.
107 S.
Lessa (2007, pp. 85-90) explica-nos que os termos com que Lukács apresenta o mundo dos homens
como um complexo de complexos vem do fato de que a partir das esferas ontológicas (em particular a
esfera do ser social) o gênero humano se complexifica quanto mais desenvolvida for a socialidade. Assim
quanto mais socialmente o gênero humano estiver articulado mais numerosas e intensas, conforme S.
Lessa (op. cit., p. 88), serão as mediações sociais que articulam a vida dos indivíduos com a trajetória
humano-genêrica (a realidade geográfica, para nós). Daí falar no trabalho, na fala, ao modo lukacsiano,
como complexos sociais presentes no mundo dos homens que complexificam a realização do ser em
geral. (Cf. LESSA, Sergio. Para compreender a ontologia de Lukács. 3. ed. Rev. Ampl. Ijuí, RS: Ed. Unijuí,
2007.).
108 Cláudio Guillén (Cf. GUILLÉN, Cláudio. El sol de los desterrados: literatura y exílio. Barcelona:
Quaderns Crema, 1995.), em sua análise histórica do exílio, evidencia-nos que os fenômenos de diáspora,
emigração e desterro têm raízes antigas (remonta ao medievalismo), e acréscimos quantitativos a partir
das grandes navegações que intensificaram a experiência do exílio. O autor utiliza-se de material literário
(Shakespeare, Cervantes, Bénichou, Madame Staël, Benjamin Constant etc) para evidenciar certa
condição exílica que ronda a história humana. Em Said (Cf. SAID, Edward W. Exílio intelectual:
expatriados e marginais. In: Representações do intelectual: As Conferências Reith de 1993. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005.), no que define como tempos pré-modernos, o fenômeno da deportação é
imposto como castigo, banimento, ao indivíduo. Em alusão ao século XX, descreve o exílio como uma
punição requintada, muitas vezes, exclusiva de indivíduos especiais.
171
110 “Eu escrevi este livro em grande parte ainda durante a guerra, sob as condições da contemplação. A
violência que me desterrara impediu-me ao mesmo tempo de conhecê-la plenamente. Eu ainda não me
atribuía a cumplicidade em que incorre todo aquele que, em face do indizível que ocorria coletivamente,
simplesmente fala do individual. Em cada uma das partes, o ponto de partida é o domínio mais
estritamente privado, o do intelectual na emigração.” (Cf. ADORNO, Theodor W. Minima Moralia:
reflexões a partir da vida danificada. 2. ed. São Paulo: Ática, 1993. p. 10.).
111 Na visão de E. Glissant (2005) a errância comporta tanto a virtude de totalidade quanto a virtude de
preservação. A virtude de totalidade nos chega através do sentido de despertar a vontade, o desejo, a
paixão de conhecer o que o filósofo martiniquenho denomina “Todo-o-mundo”(Tout-monde). E a virtude
de preservação nos chega através do sentido de que não há a intenção de conhecer o “Todo-o-mundo”
com o intuito (não mais ao modo colonialista e nem ao modo do turismo de hoje) de dominação e
exploração, implicando ao mesmo um sentido único e totalitário. A errância, ao modo glissantino, é,
portanto, a negação do pensamento único erigido pela intolerância e pelo sectarismo. (Cf. GLISSANT,
Édouard. Introdução a uma poética da diversidade. Juiz de Fora-MG: Editora UFJF, 2005. p. 152-153.).
Então, depreendendo, tem-se o compromisso com o território da vida sendo realizado sob constante
mobilidade geográfica (posto sob ressalva as dinâmicas inerentes aos diversos níveis de escala
geográfica.).
112 “Todo intelectual na emigração, sem exceção, está prejudicado e faz bem em reconhecê-lo, se não
quiser ser cruelmente esclarecido a este respeito por trás das bem trancadas portas de seu respeito por
si próprio. Ele vive num ambiente que lhe permanece necessariamente incompreensível, mesmo se está
familiarizado com as organizações sindicais ou com o trânsito; ele está continuamente em errância.”.(Cf.
ADORNO, op. cit., p. 26.).
176
113É Galvano Della Volpe (1982) que nos mostra como o indivíduo visto de maneira cindida da realidade
contribui para o estabelecimento de uma moral individualista que teria no seio da obra rousseauneana o
seu germe. A filiação dessa moral ao indivíduo abstrato concerne à demonstração rousseauneana do
egotismo sui generis que predomina nos atos e ações desse mesmo indivíduo. (Cf. VOLPE, Galvano Della.
Rousseau e Marx: A Liberdade Igualitária. Lisboa/Porto: Edições 70, 1982. pp. 17-37.). Ou como o
próprio J-J. Rousseau diz: “Quando a força de uma alma expansiva me identifica com o meu semelhante,
eu me sinto, por assim dizer, nele, é para não sofrer que quero que ele não sofra e interesso-me por ele
por amor a mim próprio.” (ROUSSEAU apud VOLPE, op. cit., p. 18.).
177
114 Germán Wettstein (2007; 1989) para comprovar a sua tese de acréscimo cultural aos exilados
uruguaios, argentinos e chilenos na década de 1980, enumera e classifica uma ampla gama de
aprendizagens incorporadas, que, por sua vez, foram registradas a partir de sua própria experiência
enquanto migrante. Desenvolve, aí, um enfoque capaz de demonstrar concretamente os efetivos ganhos
socio-culturais (relativizados, obviamente) concernente ao migrante uruguaio, argentino e chileno. (Cf.
WETTSTEIN, Germán. Entre la Patria Grande y mis Patrias Chicas: ensayos de ida y vuelta.
Montevideo: Cruz del Sur, 2007.) (Cf. DIAZ, Jose Pedro; WETTSTEIN, Germán. Exilio-Inxilio: Dos
enfoques. Montevideo: Instituto Testimonios de las Comarca y del Mundo, 1989.).
179
Se não temos o complexo do exílio como limite à liberdade, logo, com ele,
surge o caminho que libera o indivíduo (força-o à liberação) de sua interioridade,
remetendo-lhe a uma participação ativa, pela sua geograficidade, no mundo que se
quer constantemente resignificar. Sendo assim, as várias temporalidades que se
envolvem na participação ativa ao mundo estão como a compartilhar as mudanças in
processus que acarretarão uma possibilidade outra de inserção na cultura do Tempo de
180
cada lugar. Estes – Tempo e lugar – lhes surgem durante a existência histórico-
geográfica como oferta concreta para sobrevivência e co-existência na realização
relacional de si e dos outros. Em muito a arte, a expressão própria da capacidade
criadora do homem (VÁSQUEZ, 1977), revela ao indivíduo que os atos de criação estão
plenamente situados, a cada tempo, em medida correlativa com o espaço de existência
para reafirmação constante dessa fatura relacional. A medida da realização singular da
individuação é atenuada quando a arte, como quer Simmel (2001), põe-se como
mediação dos conflitos entre indivíduo e sociedade. Quando ela, a arte, repõe o
indivíduo no movimento histórico universal. Uma práxis (ação poíētica) só evidente
quando a complexificação do par indivíduo socioespacial-espaço de existência se dá em
medida relacional na fatura da totalidade heterogênea.
“Sempre que me emociono vou para a rua, fico vagando.”, confidenciou certa
vez Gullar (PAZ; AZEVEDO, 1977, p. 9). A certeza da geografia vivida pelo poeta se dá
com o deambular nas esquinas. Atravessado pela emoção, o indivíduo traz a certeza de
estar no mundo dos objetos quando lança a si próprio à interpelação dos
acontecimentos que dão novos significados ao mundo-matéria. “O homem se expressa
para chegar aos outros, para sair do cativeiro de sua solidão”, E. Sábato (2008, p. 18)
emocionado nos dá o recado. A revelação de si, entre lembranças e atos objetivos,
reafirma a condição humana da abertura à existência espacial, mesmo quando o medo
faz recuar o pensamento no mundo. Por existir a possibilidade de sair de si, remetendo
à superação do psiquismo, é que existe a possibilidade do “eu” se revelar ao “outro”,
por meio de sua geograficidade. Nestes termos, do diálogo entre o “eu” e o “outro”, o
acontecer é revelado, mesmo diante de dissensões. O exílio, uma delas.
Que importa estar exilado, se através do nome uma geografia da vida é feita?
O exílio surge como condição rara para declarar o amor à vida no continente em
ebulição. “Escrevi esse poema [Poema sujo] que era a experiência da vida toda; não era
só um poema do exílio, mas um poema da memória, da perda, da recomposição do
mundo perdido e do amor à vida.”, revela o poeta (GULLAR, 1998, p. 44). É no desterro
que o poeta, em posse da nova poesia em processo, faz ressurgir o apelo de um
indivíduo na afirmação da liberdade de criação. Esta mesma que é a indubitável tensão
entre o ser (homem situado) e o existir (espaço de existência): tensão entre vontade,
escolha, possibilidade e limites impostos e expostos à participação no mundo dos
homens. Gullar sendo um dos seus personagens mais virulentos. Afinal, como certa vez
nos interpelou outro poeta: “Onde estaríamos nós, pobres homens, se não existisse a
terra fiel?” (WALSER, 2003). Em lugar algum, se não na terra dos homens.
183
Uma coisa aprendi no exílio (eu sei que é uma coisa minha) foi o
seguinte: em todas as cidades por onde passava, poste era poste, casa
era casa, parede era parede e na minha terra, não. O poste é o poste da
rua tal, por onde eu passei uma noite, conversando com um amigo; a
casa, é a casa de um conhecido etc. O exílio, na minha opinião, é um
mundo hostil... Um mundo que é matéria só. (GULLAR, 1998, p. 43).
115Em cada país por qual passou o poeta Ferreira Gullar (vide mapa na página seguinte “Os anos do Exílio
de Ferreira Gullar (1969-1977)” os fatos sociopolíticos e estéticos que o circundaram, uma cronologia que
reportasse à criticidade da existência ecoou. A cada momento de permanência do poeta em determinado
país, uma conjuntura político-econômica estava se impondo. Esses processos se lidos de maneira
interdependente poderão dar conta do quadro sumarizante que segue abaixo. Assim os expomos:
Brasil, Cone Sul e EUA/ 1969/ Janeiro: Após baixado Ato Institucional-n.º 5 (AI-5) em dezembro de
1968, Ferreira Gullar cai na clandestinidade. Março: Ferreira Gullar publica o ensaio Vanguarda e
Subdesenvolvimento. Maio: Na Argentina, ocorre o Cordobazo, um movimento popular ocorrido em
Córdoba contra a política econômica do então ministro Krieger Vasena. Uma onda de mobilização social
se prolonga até 1975. Agosto: Com Costa e Silva doente, uma junta militar assume o poder no Brasil.
Outubro: O Congresso elege o general Garrastazu Médici à presidência no Brasil. Novembro: 1) Morre
Carlos Marighella; 2) O ano termina com um crescimento de 9,5% do PIB e a inflação em 20,1%. 1970/
Março: O historiador Caio Prado Júnior é condenado a quatros anos e meio de prisão. Maio: General
Aramburu é morto pelos Montoneros. Junho: Na Argentina, no lugar de Juan Carlos Onganía, o general
Roberto Marcelo Levingston é nomeado pela Junta de Comandantes. Agosto: Segundo grande ano do
Milagre Crescimento de 10, 4% do PIB. Inflação em 19,3%. Setembro: 1) Criados os Destacamentos de
Operações de Informações (DOI); 2) Salvador Allende é eleito presidente do Chile. Outubro: A CIA
manda armas a terroristas chilenos que planejam matar (e matam) o comandante do exército do Chile,
general René Schneider. Dezembro: Saindo de Porto Alegre, Ferreira Gullar atravessa a fronteira em
direção ao Uruguai. 1971/ Janeiro: O general Humberto Mello assume o II Exército, em São Paulo. Sua
ordem é matar. Começam os desaparecimentos na Argentina. Uma pessoa a cada 18 dias. Março: Assume
a presidência da Argentina o tenente general Alejandro Lanusse. Agosto: O Presidente dos Estados
Unidos, Richard Nixon, descola o dólar do padrão-ouro, congela preços e salários por noventa dias, e se
reserva o direito de aplicar uma taxa de 10% sobre as importações. Setembro: Carlos Lamarca é morto.
Dezembro: 1) No Brasil, as denúncias de torturas são 788; 2) A Petrobrás torna-se a segunda maior
distribuidora de derivados de petróleo do país; 3) O ano termina com um crescimento de 11,3% do PIB e
a inflação em 19,5%. 1972/ Março: O “Esquadrão da Morte” mata Ibero Gutiérrez, poeta e militante
estudantil da Federação de Estudantes Universitários do Uruguai (FEUU). Agosto: A Anistia
Internacional divulga um relatório listando os nomes de 472 torturadores e 1081 no Brasil. Novembro:
Nixon é reeleito. Dezembro: No Brasil, o ano termina com um crescimento de 11, 9% do PIB e 15, 7% de
184
Reino Unido
1971 Ex-URSS
1971-1973
França
1971
Peru
1973-1974 Brasil
1969-1970;
1971
África do Sul
1971
Chile Uruguai
1973 1970; 1971
Argentina
1970-1971;
1973-1977
0
0 2.500
2.500 5.000 km
km
ProjeçãoPseudo-Cilíndrica
Projeção Pseudo-Cilíndrica de
de Robinson
Robinson(1963)
(1963)
Meridiano central:
Meridiano central: 0°
0°
185
inflação. Uruguai/1970/ Julho: Os Tupamaros seqüestram Dan Mitrioni, responsável pelo programa de
ajuda prestada pelo governo americano ao uruguaio em assuntos de segurança. Dezembro:
Permanência provisória de Ferreira Gullar no Uruguai. 1971/ Janeiro: Os Tupamaros uruguaios
seqüestram o embaixador inglês. Fevereiro: Ferreira Gullar segue para Moscou onde permanece até
maio de 1973. Junho: Greve Geral de Trabalhadores Têxteis com ocupação de fábricas.
Julho: O Governo de Juan María Bordaberry decreta a ilegalidade da central trabalhadora e pede a
captura de seus dirigentes. Agosto: Decreto do Poder Executivo coloca na ilegalidade 14 organizações
políticas e gremiais, entre elas a Federação de Estudantes Universitários do Uruguai (FEUU). Setembro:
As forças armadas uruguaias assumem o combate aos Tupamaros. A tortura torna-se sistemática. Ex-
URSS/1971-1973: O poeta chega a Moscou em fevereiro. A permanência de Ferreira Gullar, em muito, é
garantida por Luís Carlos Prestes e pelo Partido Comunista Brasileiro (PCB). Estuda economia no
Instituto Marxista-Leninista (atual Instituto Gorbachov). Viagens aos Montes Urais, a Leningrado (atual
São Petesburgo) e a Chelyábinsk. Chile/1973/Maio: Após 2 anos de exílio em Moscou, Ferreira Gullar
chega a Santiago do Chile. Setembro: 1) Golpe militar no Chile. Allende se mata. Pinochet assume, numa
junta militar; 2) Gullar, no Chile, acompanha pela rádio o anúncio do bombardeio à casa presidencial
(Palácio La Moneda). O golpe estava sendo instalado; 3) Ferreira Gullar em um vôo, vai para a Argentina.
Peru/1973-1974/ Outubro de 1973: Por questões familiares, Ferreira Gullar chega a Lima. Junho de
1974: 1) O Governo ditatorial de Velasco Alvarado confisca os meios de comunicação; 2) Retorno de
Ferreira Gullar à Argentina. Argentina/1973/Maio: Termina um ciclo militar na Argentina. Héctor
Cámpora vence as eleições com participação popular. Obtém 49% dos votos. Junho: Juan Domingo Perón
volta ao país depois de quase 18 anos no exílio. Nesse dia, no meio de imensa multidão reunida no
aeroporto de Ezeiza, um enfrentamento entre grupos armados de distintas tendências do peronismo
provocou um massacre. Julho: 1) Héctor Cámpora e o vice-presidente Solano Lima renunciam; 2) Raúl
Lastiri assume o Governo, provisoriamente. Setembro: 1) Realizada novas eleições e a chapa Perón-
Perón, que Perón dividiu com sua esposa Isabel/Isabelita (María Estela Martínez), obteve 62% dos votos;
2) Ferreira Gullar vai para a Argentina. Chega às vésperas do retorno de Juan Domingo Perón ao poder.
Dezembro: O aumento internacional do petróleo encareceu as importações, isto trouxe complicadores
às contas externas e aumentou os custos das empresas. O Mercado Comum Europeu se fechou para as
carnes argentinas. 1974/ Janeiro/Fevereiro: Após ataque do Exército Revolucionário do Povo (ERP)
contra uma guarnição militar na província de Buenos Aires, Perón exige a renúncia de seu governador.
Maio: Por disputa de espaço políticos dentro do peronismo, ocorre enfrentamento entre a Tendência
Revolucionária, de esquerda, e correntes peronistas de direita na Praça de Mayo. Junho: No mundo, os
países de petróleo resolvem não alterar os preços durante o próximo trimestre. Julho: 1) Juan Domingo
Perón morre. Assume sua mulher, Isabel; 2) Ferreira Gullar retorna do Peru para a Argentina. Permanece
até o fim do exílio em 1977. 3) As universidades passam a ser entregues a setores da ultradireita, para
serem depuradas. Agosto: Os Montoneros, a ultra-esquerda peronista, entra na clandestinidade. 1975/
Fevereiro: 1) O Exército convocado pela presidente Isabel Perón, assumiu a tarefa de reprimir a
guerrilha instalada pelos Montoneros e o Exército Revolucionário do Povo (ERP) em Tucumán. O
genocídio estava em andamento. 2) O governo peronista se aproxima do fim. 3) No Reino Unido, o
Partido Conservador inglês elege uma nova líder: Margaret Tchatcher. Março: Inflação galopante,
“corridas” para o dólar, surgimento dos mecanismos de indexação, poucas possibilidades de controle da
conjuntura pelo poder. Abril: Ferreira Gullar publica Dentro da Noite Veloz. Maio: Ferreira Gullar
começa a escrever o Poema sujo. Julho: Começa a ser preparado o golpe contra Isabel Perón. Agosto: O
general Videla, novo comandante-em-chefe espera a crise econômica e a crise política juntas
consumarem o seu fim, preparando a saída de Isabel Perón da presidência. Outubro: No Brasil, Vladimir
Herzog amanhece morto na prisão. Ferreira Gullar termina de escrever o Poema sujo. Novembro: 1)
Começa a ser posta em prática a Operação Condor, envolvendo forças armadas do Brasil, Chile,
Argentina, Uruguai e Paraguai. A captura de “subversivos” começa a ser massiva; 2) Ferreira Gullar lê o
novo trabalho na casa de Augusto Boal, em Buenos Aires, para um grupo de amigos. O poeta Vinícius de
Moraes, que organizara a sessão de leitura, pede uma cópia do texto; por prudência, Gullar decide gravar
o poema numa fita. 1976/ Março: Começa o último ciclo militar na Argentina (1976-1983). Deposta e
presa a presidenta argentina Isabel Perón. Assume uma junta militar (general Jorge Rafael Videla,
almirante Emilio Eduardo Massera e brigadeiro Orlando Ramón Agosti). Abril: José Alfredo Martínez de
Hoz, ministro da economia da Argentina, apresenta seu plano econômico: reduzir as funções do Estado,
sua transformação em “subsidiário” das empresas privadas. Permanece no cargo até 1981, quando da
saída de Videla do poder e nomeação do general Roberto Eduardo Viola. Junho: Sem a presença de
Ferreira Gullar, acontece no Rio de Janeiro o lançamento de Poema sujo. Jornalistas e intelectuais tentam,
junto à cúpula do regime militar brasileiro, obter garantias que o poeta volte ao país sem ser molestado.
186
Outubro: A ditadura nega que haja tortura na Argentina. Novembro: 1) Jimmy Carter é eleito presidente
dos Estados Unidos. Dará apoio aos militares argentinos no tocante ao combate ideológico contra os
“subversivos”; 2) Ferreira Gullar tenta voltar para o Brasil, mas ainda não é chegada a hora do retorno.
Dezembro: A Assembléia Permanente pelos Direitos Humanos (APDH) assina documento denunciando
torturas e desaparecimentos na Argentina. 1977/ Janeiro: A Marinha apresenta proposta de retomada
das Ilhas Malvinas, ocupada desde 1833 pela Inglaterra. Proposta vetada por Videla e Viola. Essa
proposta ressurge com Leopoldo Galtieri (1981-1982) e é levada em prática quando da retomada das
ilhas em abril de 1982. Março: 1) Começa a aparecer cadáveres de presos políticos argentinos no rio da
Prata; 2) Desaparecimento do escritor e jornalista Rodolfo Walsh; 3) Fim do exílio, Ferreira Gullar
retorna ao Brasil.
187
Mas é diante dessa dor humana que a escassez, seja em forma de desterro
seja em forma de mobilidade restringida, faz a defesa crítica da vida individual-social
contra o individualismo iminente, que, diante deste, permite à individualidade
ressurgir imperecível. Trata-se, de ao mesmo tempo, afirmar a dimensão humana da
vida íntima contra uma forma reificatória de indivíduo (o indivíduo econômico) e
afirmar a vida social contrária aos esquematismos de competição, afirmar o indivíduo
em sua sociespacialidade in potencia. Imaginamos que, nessa afirmação, começa-se a
inverter aquele mundo ao avesso que tem como um dos seus pilares a economia
convertida à perversidade. Como nos lembra E. Galeano (2007, p. 8), um mundo ao
avesso que “nos adestra para ver o próximo como uma ameaça e não como uma
promessa, nos reduz à solidão”. Paradoxalmente, é em tempos de escassez que o
testemunho de outro mundo é possível. Dar testemunho de outro país possível, de
outro lugar possível, mesmo diante dos adeuses e dos crimes, é uma forma de
salvaguardar a subjetividade escrupulosa em face do meio social em ebulição. Afinal,
como nos confidencia o poeta F. Gullar (2003, p. 269): “A vida não é o que deveria ter
sido e sim o que foi.”. Uma vida onde a precariedade faz com que a tomada de
consciência crítica do econômico da realidade circundante aos indivíduos não esteja
desatrelada dos fatos políticos que os açambarcam.
116 M. Friedman (1984), na introdução do seu livro-síntese Capitalismo e Liberdade (Cf. FRIEDMAN,
Milton. Capitalismo e liberdade. São Paulo: Abril Cultural, 1984.), assim expõem os seus objetivos: “O
tema principal deste livro é o papel do capitalismo competitivo – a organização da maior parte da
atividade econômica por meio da empresa privada operando num mercado livre – como um sistema de
liberdade econômica e condição necessária à liberdade política.” (p. 13). O que é isso a que Friedman
chama de liberdade econômica e quais os seus efeitos na organização social-política dos indivíduos? A
liberdade para a produção de riqueza material, num âmbito de prosperidade (material) dos indivíduos
sem a gerência do Estado, é a isto que Friedman entende por liberdade. Uma liberdade em que os
indivíduos devem contar com as providências privadas voluntárias ao aumento da riqueza geral da
sociedade capitalista. Uma liberdade em que a competição entre indivíduos, dentro da organização
social-político, se faz intensa a partir da redução do poder do Estado (o Estado liberal é sua expressão).
Quanto a este, na doutrina do economista neoliberal, a(s) sua(s) função(ões) assim é (são) resumida(s):
“sua principal função deve ser a de proteger nossa liberdade [de competição] contra os inimigos
externos e contra nossos próprios compatriotas; preservar a lei e a ordem; reforçar os contratos
privados; promover mercados competitivos.” (p. 12). A ordenação econômica acontece à favor dos usos
individualizados dos indivíduos ao meio social; à favor da maximização do lucro obtida da esfera
competitiva expressa, esta, nas regras determinadas pelo mercado (a deidade desse modo de
organização).
117 Não podemos deixar de mencionar a “planificação” (auto-regulação) fundamentada nos postulados
neoclássicos (Jevons, Menger, Walras) sustentados numa “teorização a priori” (SANTOS, 2004c, p. 71) (Cf.
SANTOS, Milton. Pensando o Espaço do Homem. 5. ed. São Paulo: EdUSP, 2004c.) e “não-histórica”
(GÉLÉDAN; BRÉMOND, 1988, p. 31) (Cf. GÉLÉDAN, Alain; BRÉMOND, Janine. Dicionário das teorias e
mecanismos econômicos. Lisboa: Livros Horizonte, 1988.). Essa escola econômica parte de um modelo
que representaria o modo de funcionamento da economia em situação de concorrência pura e perfeita.
Ou seja, toma como ponto de partida para a análise: 1) um quadro fictício de troca de informação perfeita
entre os indivíduos à manutenção do equilíbrio entre oferta e demanda; 2) uma concorrência
generalizada à manutenção do equilíbrio geral no mercado de bens finais para consumo, dos fatores de
produção (capital, trabalho), e da moeda. Qualquer regulação, mínima que for, agiria em prol da
maximização do lucro e não a favor da ordenação econômica para usos sociais.
189
118 Conta-nos Riffo Perez (2005, p. 152) falando sobre o projeto neoliberal conduzido por um grupo de
economistas chilenos com origens acadêmicas na escola monetarista de Chicago (“Chicago boys”): “Uma
das visões mais importantes compartilhadas pelo grupo foi a avaliação extremamente negativa da antiga
estratégia de desenvolvimento baseado na industrialização substitutiva. Seu principal diagnóstico sobre
as causas de subdesenvolvimento chileno foi que o país sofria de uma excessiva intervenção do Estado e,
portanto, as forças de mercado se encontravam bloqueadas, não conseguindo desdobrar seus efeitos
positivos sobre o crescimento econômico e sobre o conjunto da dinâmica social. Com o resultado lógico
desse diagnóstico, a nova política econômica foi orientada para eliminar qualquer barreira que
impedisse o livre funcionamento das forças do mercado, incluindo a eliminação de todo tipo de controle
de preços, a redução do Estado por meio de privatizações e da progressiva redução do gasto público e,
finalmente, a implantação de uma abertura externa radical.” (Cf. RIFFO PÉREZ, Luis. Os espaços da
globalização: a neoliberalização do território no Chile. In: SILVEIRA, María Laura. Continente em
chamas: globalização e território na América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 145-
176.).
119 L. Riffo Pérez (2005, p. 157) assim nos resume o dinamismo econômico assentado à luz da optica
neoliberal: “As regiões de maior dinamismo no período analisado [1974-1998] situam-se na zona norte
do país, especialmente durante a década de 1990, à luz de um novo auge da mineração de cobre baseado
no desenvolvimento de megaprojetos com participação majoritária de capitais estrangeiros. Em
190
contraposição, dentro das regiões que exibiram os crescimentos mais baixos encontram-se as duas com
maior desenvolvimento relativo depois da RMS [Região Metropolitana de Santiago], as regiões de
Valparaíso e Biobio, que seguem apresentando as maiores dificuldades para se integrar às exigências do
novo modelo econômico.” (Cf. RIFFO PÉREZ, Luis. Os espaços da globalização: a neoliberalização do
território no Chile. In: SILVEIRA, María Laura. Continente em chamas: globalização e território na
América Latina. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2005. p. 145-176.).
191
Não imaginava que a situação fosse tão grave [o poeta Gullar em exílio
no Chile, referindo-se à Santiago do Chile de 1973]. De fato, àquela
altura já quase não se conseguia o que comer, além do que vendiam as
JAP (Juntas de Abastecimento e Preços), sabotadas tanto pelos
produtores de alimentos como pelos comerciantes. Até a escassa carne
de boi, que se obtinha a peso de ouro no mercado negro, não era mais
possível comprar. O frango congelado, que de vez em quando aparecia
em algum mercado, sumiu definitivamente. Só a merluza e as salsichas
feitas com carne de peixe ainda era possível encontrar, com grande
esforço e muita sorte. (GULLAR, 2003, p. 155).
120 No caso do Chile, E. Sader (1984, p. 58-67) conta-nos que a fragilidade da economia chilena a partir de
meados de 1981, no bojo de uma política econômica que exacerbava a especulação direcionando o
consumo a níveis completamente desproporcionais em relação à expansão da produção interna e à
capacidade de obtenção de divisas, fizera com que a reorganização política da oposição (reunindo
setores empresariais dissidentes, classe média despertadas dos sonhos consumistas, quadros políticos
dos partidos de centro, mobilizações populares etc.) começasse a questionar os aspectos significativos da
política neoliberal em vigência no país. (Cf. SADER, Emir. Democracia e ditadura no Chile. São Paulo:
Brasiliense, 1984.). No outro caso, o da Argentina, a oposição às políticas econômicas se fizeram sentir
com a intensificação das greves já em fins de novembro 1980, quando do renascimento da Confederação
Geral do Trabalho – CGT (ABÓS, 1984, p. 75) (Cf. ABÓS, Alvaro. Las organizaciones sindicales y el
poder militar (1976-1983). Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1984.), atravessando o ano
de 1981, até chegar 1982 quando que, numa cartada desesperada à manutenção da ditadura no poder, o
Governo Galtieri concebeu o plano de ocupar (retomar) as ilhas Malvinas em poder da Inglaterra desde
1833. Isto com o intento, sub-reptício e às vezes claro, de amainar as ações da oposição em âmbito
interno (NOVARO; PALERMO, 2007, p. 539-603). (Cf. NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. A ditadura
militar argentina 1976-1983: Do Golpe de Estado à Restauração Democrática. São Paulo: EdUSP,
2007.) L. A. Romero (2006, p. 215-220) assim sintetiza a situação: “Nessa época [referindo as greves de
1980 e 1981, pela CGT e das suas exigências], suas queixas se juntaram às de outros setores, como as dos
estudantes e de alguns grupos de empresários regionais. As greves tornaram-se mais freqüentes e
intensas. Em 30 de março de 1982, a CGT convocou, pela primeira vez desde 1975, uma manifestação na
Plaza de Mayo, que o governo reprimiu com violência. Duas mil pessoas foram detidas em Buenos Aires e
uma foi morta em Mendoza.” (p. 215). “Nesse contexto, foi concebido e lançado o plano de ocupar as ilhas
Malvinas, que surgia como a solução para os muitos problemas do governo” (p. 218). “Em 2 de abril de
1982, após vencer a fraca resistência das poucas tropas britânicas, as Forças Armadas desembarcaram e
ocuparam as Malvinas. O efeito, surpreendente para quase todos, suscitou um grande apoio. As pessoas
se reuniram espontaneamente na Plaza de Mayo e tornaram a fazê-lo, dessa vez em multidões, lá e em
capitais provinciais (…).” (p. 219). “Os dirigentes da CGT, que tinham sido fortemente reprimidos apenas
três dias antes, se preocuparam em diferenciar sua adesão à ação de um eventual apoio ao governo, mas
não era fácil explicar essa distinção. O governo militar tinha obtido uma vitória política cabal ao se
identificar com uma reivindicação da sociedade (…).” (p. 220). (Cf. ROMERO, Luis Alberto. História
contemporânea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.).
193
121 O quadro que mostra a insolvência do governo de María Estela Martínez de Perón (Isabel/Isabelita
Perón) é sintetizado por M. Novaro e V. Palermo (2007, p. 23) da seguinte forma: “A economia havia
permanecido estagnada depois dos efêmeros êxitos iniciais do acordo peronista, e as perspectivas não
eram nada animadoras. O aumento do preço internacional do petróleo e a desvalorização dos alimentos
anunciavam crescentes desequilíbrios na balança comercial. A inflação disparava apesar das tentativas
desesperadas e mais ou menos ortodoxas de controlá-la. Entre março de 1975 e março de 1976, os
preços subiram 566,3%, e para o ano seguinte se prognosticava um aumento de pelo menos 800% (…). O
déficit público acumulado ao longo do ano alcançou um recorde histórico: 12,6% do PIB.” (Cf. NOVARO,
Marcos; PALERMO, Vicente. A ditadura militar argentina 1976-1983: Do Golpe de Estado à
Restauração Democrática. São Paulo: EdUSP, 2007.). P. Gerchunoff e L. Llach (2007, p. 349) confirmam o
quadro de crise econômica, dizendo: “A essa altura (ao longo de 1975) a economia já estava passando da
expansão à recessão. A situação de pagamentos se tornou desesperadora, e a nova equipe econômica
teve que recorrer a um acordo com o FMI [Fundo Monetário Internacional], o primeiro de um governo
peronista, e manter um alto preço do dólar (…). O déficit fiscal já estava totalmente fora de controle,
chegando no início de 1975 a inédita cifra de 12,4% do PIB. Em março, o incremento de preços alcançou
um ritmo tecnicamente hiperinflacionário: pela primeira vez na história, os preços de vários produtos
aumentaram mais de 50% em um só mês. Entretanto o governo de Isabel [Isabelita Perón] não chegou a
anunciar esse registro. O dia 24 se haviam lançado ao poder, uma vez mais, os homens vindos dos
quartéis.” (Cf. GERCHUNOFF, Pablo; LLACH, Lucas. El ciclo de la ilusión y el desencanto: Un siglo de
políticas econômicas argentinas. Buenos Aires: Emecé, 2007.).
122 A. Rouquié (1986) afirma-nos que os grandes produtores agrários foram os primeiros beneficiados
com a nova política econômica. Com a internacionalização da economia promulgada por Martínez de Hoz
(então Ministro da Economia e Finanças), ensejava-se a “reorganização” da economia tomando por base
inversões técnicas à melhoria das atividades agrícolas, relativas, estas, à melhoria do setor agropecuário
voltado ao mercado externo. Para que isso ocorresse como o esperado pela equipe econômica, “o plano
de Martínez de Hoz previa reduzir os gastos do Estado, especialmente no âmbito da educação, das obras
públicas e das empresas nacionalizadas das quais as mais rentáveis seriam vendidas ao setor privado”
(ROUQUIÉ, 1986, p. 305). O quadro neoliberal ganhava contornos definitivos. (Cf. ROUQUIÉ, Alain. Poder
militar y sociedad politica en la Argentina. v. II. Buenos Aires: Hyspamérica, 1986.).
123 A respeito dessa fragilidade da oposição política H. Quiroga (2004, p. 116-117) primeiro nos diz: “A
oposição política se descobre, nos primeiros anos do regime de fato, substituída no cenário nacional pela
194
Essas pequenas histórias recentes dos usos econômicos aos espaços latino-
americanos à passagem dos anos 1960 e 1970 – casos específicos, da Argentina e do
Chile – demonstram-nos, também, ao mesmo tempo de como o espaço geográfico foi
utilizado enquanto “veículo do capital” e “instrumento de desigualdade” social
(SANTOS, 2004c), bem como agudizou-se o processo de clivagem dos indivíduos na
divisão territorial do trabalho, imersos, os mesmos, no uso competitivo do espaço
social da vida. Podemos já falar, aí, da hegemonia de uma visão de mundo onde o
primado de uma relação competitiva entre indivíduos impôs, pela supradeterminação
da instância econômica, uma ordenação funcionalista aos espaços de existência. O que
se verifica, então, é a hegemonia do “funcionalismo da formulação liberal” (SILVA,
1991, p. 76), a favor do valor (na incidência de capital) na determinação do uso dos
espaços. Em tradução, quer-se dizer do quanto o espaço vira, na máquina social
capitalista, terra-mercadoria provedora de ganhos monetários excessivos revertidos a
agentes como transnacionais, empresários, burguesia financeira, experts etc. –
figurações de indivíduos paridos da visão de mundo liberal e, ad nauseam, vulgarizadas
nas análises neoliberais. A máquina amestra o indivíduo para o egoísmo, e a
solidariedade é um delito (GALEANO, 2007b, p. 103). É a esse mundo hostil que um
indivíduo emocionado como Gullar, na escassez, terá que se reportar de maneira crítica
para se fazer indivíduo-outro na socioespacialidade em formação.
Na experiência originária que é o exílio, num enlace crítico-existencial, o
poeta rememora as razões econômicas de um confronto que, no bojo de uma
reconstrução política, os interesses econômicos de alguns indivíduos (o empresariado)
revelaram-se, às vezes, dissonantes dos desejos de cúpulas administrativas (a
ditadura). A interpelação feita pelo poeta Gullar remete-nos, indiretamente, a um pacto
militar-neoliberal nem sempre tranqüilo ao encaixe das economias nacionais às
vontades das políticas econômicas internacionais. Leiamos:
atividade extramilitar das Forças Armadas o que as convertem em uma força política estatal.” (p. 116); e
depois completa: “Agora, a proibição da atividade política no regime militar transtorna a função dos
partidos, perdendo seu papel ativo no sistema político, sem poder atuar como mediadores do direito dos
cidadãos de participar da gestão do poder.” (p. 117). (Cf. QUIROGA, Hugo, El tiempo del “Processo”:
conflictos y coincidencias entre políticos y militares – 1976-1983. Rosário: Homo Sapiens; Politeia;
Editorial Fundación Ross, 2004.).
195
124Essa pugna interna entre o establishment livre-cambista da equipe econômica de Hoz e as pressões de
parte da cúpula militar ao aceleramento da queda da inflação, é muito bem analisada por M. Novaro e V.
Palermo (2007). Esse embate que tinha como ponto conciliatório a abertura comercial, por via de
privatizações e investimentos na modernização da técnica, é substancialmente retratada nas seguintes
passagens: “O modo como se delineou a reforma [econômica] é uma excelente ilustração da complexa
interação entre os objetivos de mudança estrutural de longo prazo e os do esforço antiinflacionário de
curto prazo, assim como, as tensões entre a equipe econômica e as Forças Armadas, e as vias utilizadas
para aplacá-las. Frente ao intervencionismo estatal que arbitrariamente transferia renda entre
poupadores e tomadores de crédito, e entre setores sociais, o propósito declarado inicialmente no plano
de reforma pareceu consistente com as metas ‘refundadoras’ do Processo [Processo de Reorganização
Nacional]: terminar com o subsídio, via regulação estatal, dos empresários ineficientes por parte dos
poupadores, e desenvolver um autêntico mercado de capitais. Não obstante, ao tomarem conhecimento
da proposta da Economia, muitos agentes financeiros se alarmaram: temiam que as entidades maiores e,
sobretudo as estrangeiras, que seguramente inspirariam mais confiança nos poupadores,
monopolizassem a totalidade do mercado. Em um jogo de pressões que se tornaria um padrão constante
do Processo, os homens de negócios apresentaram suas reivindicações, de forma individual, a chefes
militares que se mostravam mais permeáveis do que a equipe econômica.” (p. 288). “Uma vez mais, os
militares exerciam seu poder de veto para dar forma concreta às reformas essenciais do programa
refundador (…). Finalmente, a forma pela qual o ministro [Martínez de Hoz] contornou parcialmente
algumas das restrições que lhe eram impostas reforçou a alta das taxas de juros (…)” (p. 289). “Os
ensaios [da política econômica] nesta frente [da luta antiinflacionária], parciais no começo, haviam dados
resultados decepcionantes, gerando irritação e inquietude entre os militares. Para o ministro, por sua
vez, era irritante o comportamento militar: os militares exigiam que a inflação desaparecesse, mas
estavam muito pouco dispostos a contribuir com as medidas que ele entendia serem necessárias para
consegui-lo [reforma financeira, acompanhada por forte retração monetária].” (p. 291-292). (Cf.
NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. A ditadura militar argentina 1976-1983: Do Golpe de Estado à
Restauração Democrática. São Paulo: EdUSP, 2007.).
196
125 A partir de A. Canitrot (1980) depreendemos que os aspectos rentistas estavam assim assinalados: A
estratégia principal adotada como condução econômica para instaurar uma economia de livre mercado
foi a abertura do mercado interno à competição no mercado externo. Para tanto aquelas atividades
(dentre elas, a agropecuária) capazes de melhor assimilar a mudança técnica no aceleramento da
passagem definitiva do modelo primário-exportador à entrada no modelo de mercado competitivo,
seriam as que maior eficiência teriam no mercado. Na Argentina observou-se que “as empresas, não
individualmente, mas sim como conjunto dentro de uma determinada atividade, gozavam da capacidade
de fixar seus preços. Podiam ajustar preços a custos sem restrições de concorrência.” (CANITROT, 1980,
p. 7). (Cf. CANITROT, Adolfo. Teoria y Practica del Liberalismo. Política Antiinflacionária y Apertura
Económica en la Argentina, 1976-1981. Centro de Estúdios de Estado y Sociedad (CEDES), Buenos
Aires: v. 3, n. 10, 1980.). Essa tendência tornou-se prática com a promulgação dos três objetivos
principais da política econômica proposta por Martínez de Hoz, quais sejam: a liberação dos preços
ajustadas ao tipo de câmbio, congelamento de salários e correções das contas externas a partir de
empréstimos obtidos junto ao FMI (GERCHUNOFF; LLACH, 2007, p. 358). A essência da nova política
econômica estava cada vez mais subordinada a fatores exógenos e os rentistas seriam os maiores
beneficiados. (Cf. GERCHUNOFF, Pablo; LLACH, Lucas. El ciclo de la ilusión y el desencanto: Un siglo de
políticas econômicas argentinas. Buenos Aires: Emecé, 2007.).
198
Parece-nos ficar claro que, nas histórias recentes dos espaços latino-
americanos, os efeitos produzidos pela mercadificação das relações sociopolíticas com
anuanças metafísicas na reconstrução solitária do indivíduo chamam-nos à abertura
para outro projeto de concepção de indivíduo. Um projeto que tem na consciência
crítica a possibilidade de reconstrução relacional do indivíduo circunscrito numa
realidade geográfica dinâmica, de trocas econômicas não utilitaristas ao espaço
geográfico. Um projeto que promova a formação dos indivíduos nas suas histórias, a se
fazerem na presença de objetos herdados e das ações que os remodelam. Interpela-se o
mundo pela crítica ao econômico em vigência. Só assim o econômico, instância inerente
aos espaços sociais da vida, passa a ser visto como correção do pragmatismo
competitivo. Este último utilizando-se do primado da maximização dos lucros para
adequar as formas geográficas a usos exclusivos aos gostos da ordem econômica
neoliberal. Contrário a isso, valoriza-se uma visão de mundo que reconheça o
econômico como uma instância, entre outras instâncias, formadoras da vida do
indivíduo – e não, ele, o Todo societário.
A reformulação desse econômico não prescinde das relações entre
indivíduos que são postas em prol de relações econômicas voltadas para a vida social e
não imersas, tais relações, num contexto no qual a vida econômica volta-se aos esforços
para interesses individualizados. Por trás do apelo do poeta, esconde-se aquela
necessidade vital preceptora das mudanças a serem colocadas em prática à busca de
uma nova concepção de indivíduo em sua relação com o espaço. Que necessidade vital é
essa? A nova “politização da vida” (AGAMBEN, 2007a), que surge como forma de
reivindicação da existência histórico-geográfica em sua socioespacialidade e que
pressupõe o entrelaçamento individual-social corretivo da instância econômica,
colocando-a em prol dos usos econômicos do espaço em âmbito público, e não apenas
individualizados em âmbito privado. Uma nova politização da vida que não deve ser
vista aqui como a abertura para movimentos totalitários (ou o retorno deles), mas sim
diálogos de convergência para a coexistência de diversos “fazeres” políticos, como
reprovação à política dos Estados totalitários e autoritários. Estes mesmos que tanto
primam pelo pensamento único da política: a total politização (totale Politisierung)126
126Na analise de Karl Löwith (1984 apud AGAMBEN, 2007a), a “politização da vida” é vista como o
caráter fundamental da política dos Estados totalitários quando os riscos de uma relação de contigüidade
entre democracia e totalitarismo, põem-se à mostra. Depreendendo do autor, tais riscos para o
aprofundamento dessa contigüidade entre democracia e totalitarismo revelam-se por meio dos discursos
199
nas suas antigas (facismo, nazismo etc.) e novas versões (xenofobismo, neobarbarismo
etc.). A politização da vida é da ordem de todos os indivíduos em sua
socioespacialidade e não apenas a serviço de poucos indivíduos, no desvio personalista
da ação política. No caso, no desvio da ação política para usos econômicos
individualizados dos espaços geográficos. “O destino de todo mundo e a batalha pela
vida. Isto me interessa muito mais do que a coisa estritamente individualista.”
(GULLAR, 2006) (Entrevista realizada com Ferreira Gullar, por Samarone Marinho, em
novembro e dezembro de 2006), avisa-nos o poeta.
Quando na Argentina a abertura política ganhara força após a Guerra das
Malvinas (1982), não foi para atender aos desejos de poucos indivíduos (a cúpula
ditatorial em frangalhos) ansiosos em permanecer no poder, mas para recompor a
moral política do povo argentino tanto quanto agir contra os efeitos nocivos da política
econômica empregada desde o início do Processo de Reorganização Nacional. O que se
viu com a política do Processo foi, segundo L. A. Romero (2006, p. 207), a concentração
econômica em um conjunto de grupos empresariais, nacionais e transnacionais. Essa
concentração se deveu em muito por causa dos regimes de incentivo fiscal ofertados
pelo Estado às empresas mais eficientes ao território (dentre elas a dos setores de
telefonia e de engenharia de estradas), o que contribuiu ao mesmo tempo para o
monopólio do mercado interno por parte dessas empresas (ROMERO, 2006, p. 209) e a
dependência do território argentino de insumos e saberes (SILVEIRA, 2005, p. 185).
Diante desse quadro, começaram a surgir “protagonistas sociais de vários tipos”
(ROMERO, 2006, p. 225), que, à medida que a repressão retrocedia, a politização da
vida para interpelar os problemas econômicos em vigência fazia-se sentir. Uma
necessidade de uma nova política, num apelo ao reexame do econômico da realidade,
de neutralização. Sobre isto citamos o exemplo dos Estados-Nacionais que, na abertura para
totalitarismos num ambiente de aparentes avanços democráticos, a neutralização surgiu como caráter
demarcatório de suas ações. Assim nos diz: “Esta neutralização das diferenças politicamente relevantes e
a deriva de sua decisão se desenvolveram a partir da emancipação do terceiro estado, da formação da
democracia burguesa e da sua transformação em democracia industrial de massa, até o ponto decisivo
em que ora se convertem no seu oposto: em uma total politização (totale Politisierung) de tudo, mesmo
dos âmbitos vitais aparentemente neutros. Assim teve início na Rússia marxista um estado de trabalho
que é mais intensivamente estatal do que jamais tenha ocorrido nos estados dos soberanos absolutos; na
Itália fascista um estado corporativo que regula normativamente, além do trabalho nacional, até mesmo
o Dopolavoro e toda a vida espiritual; e na Alemanha nacional-socialista um estado integralmente
organizado, que politiza através das leis raciais inclusive a vida que tinha sido até então privada”
(LOWITH, 1984 apud AGAMBEN, 2007a, p. 126). (Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano
e a vida nua I. Belo Horizonte, MG: Editora UFMG, 2007a.).
200
obra poética que é a evidência mesma do ato humano na passagem das forças
essenciais em sua singularidade (a personalidade do poeta no ato da realização do
poema), para as forças essenciais na universalidade (a realização poética evidenciada
no contexto objetivo). É nessa passagem que o acontecer, a escrita, se faz subjetivo
objetivado apresentado ao mundo humano.
(…)
Muitos
muitos dias há num dia só
porque as coisas mesmas
os compõem
com sua carne (ou ferro
que nome tenha essa
matéria-tempo
suja ou
não)
os compõem
nos silêncios aparentes ou grossos
(…)
(GULLAR, 2006a, p. 21)
202
sendo ela, a individualidade, apenas uma singularidade, mas abertura permanente para
o humano-genérico que dá razão à própria existência da individualidade, como nos
remete a certa pista A. Heller (1992).
O que tudo isto tem haver com a escrita em revelação? Ora, os momentos de
interiorização assumidos pela consciência crítica remetem, outrossim, a expressão que
a linguagem pode assumir a partir de sua relação com a realidade (geográfica) vivida,
ainda que postos os graus diversos de literariedade e autotelia assumidas em suas
formas prosaísticas e versíficas. O Poema sujo, substrato criativo, demonstra o nível de
participação da consciência do “eu” (eu empírico/eu poetante) à interpelação ao
“mundo humano” (mundo empírico/mundo poetante), quando, nesta relação dialética, a
afirmação da consciência é a expressão própria da vida sendo vivida, mesmo que essa
se dê numa forma crítica de vivência socioespacial – como o exílio em que Ferreira
Gullar estava mergulhado na Argentina dos anos setenta. Revela-se, portanto, em
termos de aproximação, aquela necessidade proferida certa vez por A. C. Moraes (2005,
p. 21) de que, na complexidade do universo da consciência e do movimento dos
sujeitos, não dá para dissociar drasticamente o produtor (o poeta, em nosso estudo), o
produzido (a poesia, aqui em evidência) e o contexto de sua produção (o nosso espaço
de existência). No Poema sujo, tomando de A. Villaça (2006, p. xiv), a consciência vai
instalar “os muitos dias”, pela memória, para compor, através dos “silêncios aparentes”,
a linguagem da poesia. O poema, então, remete à multiplicidade de vozes assumidas
pelo poeta na morada provisória (a Buenos Aires) que lhe permite revisitar, pela
memória, na forma poetante, o lugar-natal (a São Luís do Maranhão). A experiência da
escrita assim se faz revelação da vida do “eu” com o “outro”; o primeiro processo de
transindividualidade, entre particulares, assim é estabelecido.
(…)
muitos
muitos são os dias num só dia
fácil de entender
mas difícil de penetrar
no cerne de cada um desses muitos dias
porque são mais do que parecem
pois
dias outros há
(...)
(GULLAR, 2006a, p. 22)
suas histórias de vida, em meio à história global de seu tempo em marcha. Daí nasce o
poema:
(…)
para que o poema nascesse
um dia
teria
que viver tardes e noites
de exílio em Santiago
do Chile em Moscou
(…)
(GULLAR, 2001, p. 400)
próprias palavras do poeta: “No dia em que escrevi as primeiras cinco páginas do
Poema sujo, no mesmo dia, eu tinha de escrever uma carta para um amigo (Leandro
Konder)… escrevi: ‘Comecei a escrever um poema que terá cerca de cem páginas e que
se chamará Poema sujo’.” (LEAL, 1995, p. 14). É o elo comunicativo sendo afirmado
num contexto em transformação que divisava essa exigência. Pertencimento e negação
estavam em jogo à confabulação da poética.
Inerente a qualquer obra de arte, é esse elo comunicativo que nos faz pensar
na realidade nova que pode surgir dessa relação homem-lugar. Quando um poema vem
ao nosso encontro num livro, podemos analisá-lo como um fenômeno concreto-
sensível, fruto da inter-relação do poeta com o mundo humano, como um fenômeno
relativo a auto-realização (etapa necessária para a posterior subjetivação/objetivação
ao mundo humano), como um fenômeno socioespacial etc. À luz de A. S. Vázquez (1977,
p. 255), a criação artística (a poesia, em nosso trabalho) revelada é uma realidade,
“uma nova realidade” que poderá causar emoção ou não, pois ela tem como meta
seminal, assim imaginamos, o seu anúncio num ambiente comum de comunicação,
mesmo que o evento seja de curta duração. Tal feito poderá situar ou não, por vias
socioculturais, certo indivíduo nesse ambiente, tornando o indivíduo aberto ao mundo
humano; um indivíduo emocionado ao mundo humano. E se assim o indivíduo vai se
conformando, passa a ser inevitável aquela busca infindável de justificativas às
“questões mais dolorosas, mais devastadoras, às questões do coração que pergunta a si
próprio: Onde poderei sentir-me em casa?” (CAMUS, s/d, p. 35). É nessa duvida
existencial, crítica em sua natureza íntima, que Gullar tece a precariedade da escrita
que vai ganhar forma no livro Poema sujo.
Na quebrada do Yuro
Eram 13,30 horas
(em São Paulo
era mais tarde; em Paris anoitecera;
na Ásia o sono era seda)
(…)
Uma greve em Santiago. Chove
na Jamaica. Em Buenos Aires há sol
nas alamedas arborizadas, um general maquina um golpe.
Uma família festeja bodas de prata num trem que se aproxima
de Montevidéu. À beira da estrada
muge um boi da Swift. A Bolsa
no Rio fecha em alta
127 Podemos mencionar os seguintes poemas: Maio 1964 (GULLAR, 2001, p. 169) e o Agosto 1964
(GULLAR, op. cit., p. 170), textos poéticos que extrapolam um fato capital (o golpe militar de 1964),
remotando-o no universo poetante como apelos à vida social que vai se recompondo diariamente; Boato
(GULLAR, op. cit., p. 190), na exposição metalingüística do valor ontológico do poema em face do mundo
em transformação; Ao nível do fogo (GULLAR, op. cit., p. 228-229), no enfrentamento crítico-existencial
pelo eu poetante à afirmação da vida no mundo humano. (Cf. GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. 11. ed. Rio
de Janeiro, 2001.).
128 Fazemos referência a alguns poemas, dentre os quais mencionamos: Primeiros Anos (GULLAR, 2001, p.
298), “auto-exame” que o eu poetante promove em face de um século (o vinte) acometido por intensos
fatos; Bicho urbano (GULLAR, op. cit., p. 327) texto que repõe o eu poetante na labuta da vida citadina; A
espera (GULLAR, op. cit., p. 339), afirmação do “eu” em face acontecimentos políticos. (Cf. GULLAR,
Ferreira. Toda Poesia. 11. ed. Rio de Janeiro, 2001.).
212
ou baixa
Inti Peredo, Benigno, Urbano, Eustáquio, Nato
castigam o avanço
dos rangers.
(…)
Mas a vida onde está?
(…)
(a vida
que se esvai
no estuário do Prata)
(…)
(GULLAR, 2001, pp. 195-202)
129 Em caráter informativo, a depressão Yuro (em espanhol, Quebrada del Churo) que compõe o
complexo de “vales crucenhos” bolivianos, situa-se na Província Vallegrande, à sudeste da Bolívia, a 241
quilômetros do Departamento de Santa Cruz de La Sierra (SUÁREZ, 2008, p. 30). (Cf. SUÁREZ. Roberto
Rodriguez. Arqueologia de uma procura e de uma busca arqueológica: a história do achado dos restos de
Che Guevara. In: FUNARI, Pedro Paulo A.; ZARANKIN, Andrés; REIS, José Alberioni [orgs.]. Arqueologia
da repressão e da resistência: América Latina na era das ditaduras (décadas de 1960-1980). São Paulo:
Annablume; FAPESP, 2008.). Cinco dias antes de sua morte e ocultamento de seu corpo em outubro de
1967, Che Guevara relata-nos a seguinte situação enfrentada em Yuro: “Luego de descansar en la
quebrada, la seguimos una media hora hacia abajo, hasta encontrar outra que se le unia, por la que
subimos, descansando hasta las 15 para huir del sol. A esa hora reiniciamos la marcha, algo más de
media hora; allí estaban los exploradores que habían llegado al final de los cañoncitos sin encontrar agua.
A las 18 abandonamos la quebrada y seguimos por un camino de ganado hasta las 19.30, hora en que no
veia nada y paramos hasta las 3.”. (Cf. GUEVARA, Ernesto “Che”. Diario de Bolívia. Barcelona: Ediciones
B, 1996. pp. 261-262.).
130 A respeito do contexto sociopolítico no qual estava a Bolívia dos anos 1960, R. R. Suárez (2008, p. 32-
33) conta-nos: “A partir de 4 de novembro de 1964 se inicia na Bolívia outro longo período de poderio
militar. As Forças Armadas, regidas pela Doutrina da Segurança Nacional, passam a ocupar o papel
principal. O general de aviação René Barrientos Ortuño encabeça uma campanha para confundir as
massas, visando principalmente aos camponeses (…) A presença militar nos campos se tornou habitual
para seus habitantes. Aos seus olhos, os soldados figuravam como co-participantes do esforço para o
desenvolvimento das zonas rurais historicamente esquecidas. A cumplicidade que se estendia a todas as
instituições favoreceu o general Barrientos que, aproveitando-se das circunstâncias promulgou em 11 de
abril o Pacto Militar-Camponês Anticomunista. Apesar da popularidade gozada pelo presidente nas
zonas rurais, o certo é que se passaram a tomar decisões que atentavam contra as mais recentes
conquistas dos camponeses [recebimento de titulação de terras]. Elementos vinculados a antigos
latifundiários vieram a ocupar cargos de autoridade nessas zonas, e se até então a entrega de títulos de
213
Che Guevara e alguns de seus companheiros de guerrilha (Álvaro Inti Peredo Leigue,
“Inti Peredo”; Dariel Alarcon Ramirez, “Benigno”; Leonardo Tamayo Nuñes, “Urbano”;
“Eustáquio”; “Nato”). É o lugar onde se deu o féretro de um corpo político, de um
indivíduo político acossado num recanto esquecido da Bolívia do fim da década de
sessenta (a Província Vallegrande) – numa hora que se quis exata (“eram 13,30 horas”)
– e que se faz, ainda nos tempos atuais para muitos, efígie de uma vida que “participa
de uma história não-oficial, secreta, que soma a consciência abafada e o corpo
prisioneiro de vontades caladas” (Villaça, 2006: xxi). Vontades caladas dos muitos
indivíduos espalhados pelo mundo a fora (em São Paulo, em Paris, na Ásia, em Santiago,
na Jamaica, em Buenos Aires, em Montevidéu; onde as horas se fazem diferentes após
qualquer fato). Em medidas razoáveis, é onde a vida do poeta Gullar está. Isto em
resposta ao intermezzo poemático “Mas onde a vida está?”. Mesmo entre tantas vidas
que se desvaneceram no Rio da Prata (“a vida/que se esvai/no estuário do Prata”),
acometidas por crimes ditatoriais de toda a natureza, a vida do poeta se coloca a favor
da persistência criadora. É na palavra poética que parte da vida do poeta está! Ou seja,
uma vida não mais em silêncio na escala do corpo próprio, mas que persiste na luta, até
onde pode, revelando a consciência crítica por meio do ato poetante.
Esse ato poetante comunica-nos outra realidade vivida. Mas qual outra
realidade pode ser apreendida das filigranas diversas da palavra poética? Quais fatos
podem ser realçados para, na dialética de vidas, se fechar em espiral o elo comunicativo
entre indivíduos? É pela ordem da consciência crítica que tal resposta é-nos exigida
quando a descoberta individual-socioespacial na realidade vivida remete ao
posicionamento criativo do indivíduo em face desta última. Ou seja: a realização poética
é meio para que o indivíduo torne real a sua passagem do singular contido em si para o
universal contido na realidade vivida, com a qual o mesmo se relaciona. Forma-se o
indivíduo (Gullar, em nossa análise), em sua socioespacialidade em latência, não pela
fatura poética fechada em si mesma, mas pelas relações íntimas e sociais que
contribuem e adensam à constituição da palavra poética retornada ao mundo humano
como a própria abertura interpelativa, em graus diversos, do mesmo. Sabendo disto,
propriedade da terra haiva sido lenta, com Barrientos tudo foi suspenso.” (Cf. SUÁREZ. Roberto
Rodriguez. Arqueologia de uma procura e de uma busca arqueológica: a história do achado dos restos de
Che Guevara. In: FUNARI, Pedro Paulo A.; ZARANKIN, Andrés; REIS, José Alberioni [orgs.]. Arqueologia
da repressão e da resistência: América Latina na era das ditaduras (décadas de 1960-1980). São Paulo:
Annablume; FAPESP, 2008.).
214
(…)
Uma greve em Santiago.
(…)
À beira da estrada
muge um boi da Swift. A Bolsa
no Rio fecha em alta
ou baixa
(…)
A noite é mais veloz nos trópicos
(…)
É mais funda
A noite no sono
do homem na sua carne
de coca
de fome
e dentro do pote uma caneca
de lata velha de ervilha
da Armour Company
(…)
Mas é o dia (com
seus monturos)
pulsando
dentro do chão
como um pulso
apesar da South American Gold and Platinum
é a língua do dia
(…)
é a língua do homem
sob a noite
no leprosário de San Pablo
nas ruínas de Tiahuanaco
nas galerias de chumbo e silicose
da Cerro de Pasco Corporation
(…)
(GULLAR, 2001, pp. 195-202; grifo nosso)
215
131 Manuel Scorza, romancista e poeta peruano, nascido em Lima, em 1928; findo em Madrid após
acidente aéreo, em 1983. Seu romance Redoble por Rancas (Bom dia para os defuntos), publicado pela
primeira vez em 1970, é o primeiro livro da pentalogia que narra, através de um realismo-fantástico, as
antigas lutas dos camponeses indígenas peruanos para recuperar suas terras invadidas por fazendeiros e
transnacionais. Os outros romances que compreendem a pentalogia são: Historia de Garabombo el
Invisible (1972), El jinete insomne (1977), Cantar de Agapito Robles (1977) e La tumba del relâmpago
(1980).
217
132 “Os ranquenhos [o morador de Rancas] pastoreavam quando o trem começou a vomitar
desconhecidos. Os moradores de Ondores, de Junín, de Huayllay, de Vila de Pasco, são gente conhecida.
Mas aqueles sujeitos metidos em jaquetas de couro preto ninguém identificava. Desembarcaram rolos de
arame. Terminaram à uma, almoçaram e começaram a cavar buracos. A cada dez metros enterravam um
poste. Assim nasceu a Cerca.” (p. 28). “Nessa noite, a Cerca dormiu no morro Huiska. Os pastores saíram,
no dia seguinte, com a roupa respingada de risinhos. Quando voltaram, a Cerca já tinha engolido sete
quilômetros” (p. 28). “Nesse entardecer, nesse hipócrita entardecer, sobraram palavras. Pela primeira
vez, a Cerca impediu a volta dos pastores. Para entrar em Rancas, os rebanhos tinham que andar mais
uma légua. Rancas começou a murmurar. Que é que a Cerca queria? Que destino ocultava? Quem
ordenava essa separação? Quem era o dono do alambrado? De onde vinha? Uma sombra que não era o
anoitecer escureceu as caras maltratadas. A altiplanície é dos caminhantes. Nela nunca houve cercados.”
(p. 40). “A planície ficou dividida. A Cerca fechou o pasto. Povoações que antes ficavam a um hora de
viagem, agora distavam cinco.” (p. 42). “Já ninguém ria da Cerca. O medo afugentava os corvos.” (p. 42).
“A Cerca rastejou três quilômetros e enfiou para as terras escuras de Cafepampa.” (p.54). “(…) a Cerca
engolia Cafepampa. Assim nasceu essa cadela, num dia chuvoso, às sete da manhã. Às seis da tarde tinha
uma idade de cinco quilômetros. Pernoitou na fonte Trinidad. No dia seguinte correu até Piscapuquio: ali
celebrou os seus dez quilômetros (…) No terceiro dia, a Cerca cumpriu outros cinco quilômetros (…) No
quinto dia a cerca derrotou os pássaros.” (p. 55). “Nove cerros, cinqüenta pastos, cinco lagoas, quatorze
mananciais, onze cavernas, três rios tão caudalosos que nem no inverno se congelam, cinco povoados,
cinco cemitérios, engoliu a Cerca em quinze dias.” (p. 64). (Cf. SCORZA, Manuel. Bom dia para os
defuntos. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984.).
218
vidas. As “histórias”, pelo contrário, sendo interpeladas pelas poéticas, são vislumbres
de uma intervenção consciente à elaboração de outras possibilidades para colocar mais
uma vez em debate o homem e a sua relação com o espaço geográfico.
Ao afirmarmos em contra-face ao discípulo de Leibniz, Alexander
Baumgarten, que “o poeta é criador de um mundo possível entre outros” (1735 apud
Todorov, 2009, p. 55), quer-se aqui fortalecer a estética como reveladora da
individualidade de cada coisa, da imersão desta num mundo que carece de uma
elucidação vivaz dentro de uma adesão intersubjetiva num elo comunicativo entre
indivíduos (autor-leitor; autores-leitores), à elaboração do conhecimento sensível ao
mundo humano. Logo a estética, como a encaramos, não funciona em causa sui mesmo
que o foro parcial de sua realização se dê na conformação do belo, julgado e analisado,
nos seus próprios âmbitos estruturais de ordem lingüística. O que tomamos como
partido de entendimento da estética engloba sentidos totalizadores da inserção do
homem no âmbito da realização individual-social, como afirmação de uma
sociespacialidade em latência que extrapola o âmbito individual-individual. A estética,
pela arte como uma de suas figurações, situa socioculturalmente o homem. Assim,
dentro desse entendimento de estética, a escrita poética tem a ver com o sentido de
resgatar a subjetividade e pô-la à mostra no contorno real da vida humana, em suas
nuanças sociopolíticas e econômicas, quando o sentido da escrita revelada faz todo
sentido.
A respeito do sentido da escrita, o poeta F. Gullar (2006c, p. 160) é
taxativo: “O poema, ao ser feito, deve mudar alguma coisa, nem que seja o próprio
poeta. Se o poeta, depois de fazer o poema, resta o mesmo que antes, o poema não tem
sentido.” Querendo nos provocar, o autor deixa claro que o poema se vale de certa
urgência à revelação da palavra poética no mundo humano por meio do poeta, quando:
“o poema torna-se desse modo um corpo novo em que o homem se constrói, melhor”
(GULLAR, 2006b, p. 162). As esparsas linhas sobre a realidade enfrentada pelos Rancas
demonstraram que, nos meandros da poética, a linguagem trabalhada por Scorza
aspira, em espiral, o universal do “humano” do indivíduo, na clarividência dos
problemas enfrentados pelo mesmo, quando interpela tais problemas recolhendo, na
obra, o elo de mudança de si, em sua reconstrução, à compreensão do mundo vivido à
sua volta. Essa fala do autor peruano, num elo comunicativo sub-reptício, ressoa como
luminescências incidentais que, aderentes à poética gullariana, revelam o universal
220
latente vivido pelos seres humanos comuns. A escrita, anunciada seja em qualquer
meio social, teria então algum sentido? Dizendo que sim, tenazmente E. Galeano
(2007b, p. 203) nos fala que o ato de escrever é, acima de tudo, uma: “tentativa de por a
salvo, em tempos de infâmia, as vozes que darão testemunho de que aqui estivemos e
assim fomos.”. Talvez seja essa intenção ontológica que esteja submersa nas filigranas
mais profundas dos escritos de Scorza e Gullar, quando os mesmos se fazem elos
comunicativos entre os indivíduos e o contexto global de cada tempo histórico.
221
Capítulo 4
O cotidiano vivido do poeta e a socialidade dos encontros
Alfred Schutz
(Fenomenologia e Relações Sociais, 1979)
O ser-espacial e a socialidade
133“(…) As formas de consciência têm que ver com a individualidade e lhe constituem gamas diferentes,
tendo também que ver com a transindividualidade, isto é, com as relações entre indivíduos; relações que
são uma parte das condições de produção da socialidade, isto é, do fenômeno de estar junto. Esse
fenômeno de estar junto inclui o espaço e é incluído pelo espaço”. (Cf. SANTOS, Milton. Por uma geografia
cidadã: por uma epistemologia da existência. Boletim Gaúcho, Porto Alegre, RS, n. 21, Ago. 1996, p. 7-
14.).
222
134 “O lugar social é equilíbrio em equilíbrio, uma relação de causalidade simples ou complexa, como
M. Sorre (1967, p. 206) certa vez observou que de todas as obras humanas, a
cidade é a que mais rigorosamente sofreu dos conflitos, pelo fato de ser a expressão
mais completa da vida social. O autor quer, nessa assertiva, nos demonstrar que a
cidade é o lugar originário da produção dos mais diversos tipos de socialidades135.
Como nos disse recentemente M. Santos (2004b, p. 319) a cidade é o lugar que, com sua
gama infinita de situações, é a fábrica de relações numerosas, freqüentes e densas.
Relações que têm muito a ver com as percepções múltiplas que cada pessoa ou grupo
tem do tempo e do espaço na constituição de possibilidades diferentes de utilização de
ambos para a produção de relações sociais no lugar social chamado cidade. Com tais
percepções, a experiência geográfica do “nós” na cidade se complexifica. Essa
complexificação remete simultaneamente ao âmbito da materialidade – o campo
material das ações pragmáticas e contingenciais que circundam os indivíduos; eis o
mundo dos objetos geográficos em si – e da imaterialidade – o campo imaterial que diz
respeito as ações poiéticas resignificadoras do campo material; eis o mundo das ações
em si. Ambos, campo material e campo imaterial, compõem o campo objetivo que é a
cidade.
Esse campo objetivo que é a cidade, não é detido como matéria estanque,
algo hipostático, mas sim, tomando de J-P. Sartre (1963), compreendido como
totalização-em-curso (aqui, para nós, o ininterrupto processo de situar grupos e
indivíduos no movimento histórico globalizante na formação socioespacial das cidades
que realizam o mundo), pois o estar-junto entre os indivíduos e os grupos tem em si a
animer capaz de reconfigurar processualmente a forma-conteúdo da cidade, espaço de
existência onde a socioespacialidade do estar-junto se dá enquanto configuração
diferencial e conflitiva, aderentes à potência de realização de cada grupo num pedaço
do território a cada momento histórico. A cidade, desse ponto de vista, é uma
135No capítulo A sociabilidade e o meio geográfico do livro O homem na Terra (1967), Max Sorre
demonstra o papel assumido pelos seres humanos no ecúmeno: um poder transformativo de elaboração
e reelaboração do espaço habitado pelo homem. A cidade, em seus diversos estilos e formas de
organização, surge no ecúmeno como elemento de maior complexificação da vida humana. Nas relações
entre seus habitantes estão assentadas ao mesmo tempo a diversidade de ocupações e o alto grau de
especialização que marcam a dinâmica socioespacial do lugar.
226
136 Élvio Martins (2009, p. 32) aponta que o importante observar em termos geográficos no que diz
respeito à totalidade é que a mesma está encerrada na relação entre o princípio geográfico da escala e o
conceito de rede. E é nessa relação que a relação todo/parte em geografia ganha especial sentido. O todo
se converte em parte em função da escala a ser considerada, abrindo-se para a rede de relações entre os
Lugares. O lugar (a cidade, para nós), nesse ponto de vista, pode tanto ser o todo quanto parte numa
trama de relações (rede) maior. Tudo está na dependência da escala de apreensão do real, enlevado por
específica epistemologia. (Cf. MARTINS, Élvio. Pensamento geográfico é geografia em pensamento. In:
KATUTA, Ângela Massumi (et. al.). Geografia e mídia impressa. Londrina-PR: Moriá, 2009.).
227
137Ao longo do seu livro Condição pós-moderna (2005), David Harvey analisa as diferentes abordagens
ao que se convencionou chamar de planejamento e desenvolvimento urbano. No campo da arquitetura,
basicamente, os urbanistas modernos (Ebenezer Howard, Le Corbusier, e discípulos) primaram pela
restrição da suburbanização e imediata substituição desta pelo desenvolvimento planejado de novas
cidades (Howard) ou pela expansão ou renovação de alta densidade (Corbusier). Ficava em evidência, aí,
uma preocupação profunda com a racionalização dos padrões espaciais e dos sistemas de circulação para
promover uma suposta igualdade, bem-estar e crescimento econômico a todos os que habitavam na
cidade. Por outro lado, em seus projetos aquitetônicos, os urbanistas pós-modernos (Leon Krier, Jane
Jacobs, dentre outros) teriam como foco principal a visão sobre o espaço como coisa independente e
autônoma a ser moldada segunto objetivos e princípios estéticos. Ficaria em evidência o ecletismo do
desenvolvimento urbano, permitindo ao urbanista idealizar as “colagens” de espaços necessárias à
produção da “cidade-colagem”. A “cidade-imagem”, sob o império da colagem fragmentária, é um dos
preceitos dessa arquitetura. (Cf. HARVEY, David. Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as
origens da mudança cultural. 14. ed. São Paulo: Loyola, 2005.).
228
138 N. G. Canclini (2007) mostra-nos o quanto o poder dos “atores comunicacionais” (televisão, rádio,
mídia impressa) ajuda a criar um imaginário da cidade como simulacro. Uma aparência enganosa de uma
parte da cidade, pedaços dela (bairros, distritos, vilas etc.), com “os lugares que nunca vamos querer
conhecer, porque são emblemas da insegurança, do perigo, algo do qual tem que se escapar.” (p. 83). (Cf.
CANCLINI, Néstor García. Imaginarios urbanos. 3. ed. 4. reimp. Buenos Aires: Eudeba, 2007.).
139 “A cidade, desde os alvores da era agrária, foi uma criação humana, a obra por excelência; seu papel
histórico ainda é mal conhecido”. (Cf. LEFEBVRE, Henri. Espaço e política. Belo Horizonte, MG: Editora
UFMG, 2008. p. 81.).
229
140 Fazemos referência ao estudo “Do povoado a cidade: a transição do rural ao urbano em Rondonópolis”,
no qual o autor indica-nos que o processo de urbanização é marcado por rupturas, heranças do passado
e germes do futuro. Dessa forma tal processo, fala-nos o geógrafo, “possui múltiplas temporalidades,
tempos históricos que coexistem em um mesmo tempo cronológico” (p. 5). (Cf. SUZUKI, Júlio César. Do
povoado a cidade: a transição do rural ao urbano em Rondonópolis. São Paulo: Universidade de São
Paulo -USP, 1996. Dissertação de Mestrado.).
141 Fazemos alusão à admissão, por parte de Aristóteles (1997), da escravidão como escolha inelutável. O
filósofo estagerita admitia a escravidão na polis e a justificava vendo os escravos como instrumentos de
produção ao abastecimento da cidade. (Cf. ARISTÓTELES. Política. 3. ed. Brasília, DF: Editora
Universidade de Brasília, 1997.).
230
São Tomás de Aquino, citado por Rouanet (1993, p. 420), certa vez disse:
“ousa servi-te de tua razão”. Sentença deveras incompleta nos dias atuais, se não
reclamarmos: ousa pôr-te ao lado da razão, com emoção. Parece ser na cidade que esse
reclame se faz ouvir com afinco. A razão, só a razão e apenas ela só, põe em risco a
socialidade. Não basta um plano de racionalização puro para que o leque de escolhas ao
estar-junto fixe o quadro de ações no espaço comum de convívio. Tal plano tornar-se-ia
reflexo de um quadro estreito para as ações, empobrecendo a socialidade. É necessária
a presença da emoção, gestora da razão emocionante142, trazida por aqueles indivíduos
empobrecidos à fixação de novas formas de socialidade a fim de assegurar uma
comunicação mais densa entre os mesmos ao encontro resignificador do espaço da
vida, adensado pelo estar-junto. A cidade precisa desse encontro para permanecer
enquanto cidade de intensos dinamismos socioespaciais, lugar social da coexistência
dos grupos em seus diversos matizes (econômicos, culturais, políticos). E ter por base a
criatividade e a espontaneidade como ações poíēticas que imprimam riqueza à
pragmática estabelecida ao mundo, parece ser o princípio norteador do
enriquecimento das relações socioespaciais.
142 Essa noção está em dialógo com o que certa vez A. C. R. Moraes (2005) comentou sobre “práxis
manipulativa” e “práxis apropriativa”. A práxis manipulativa diz respeito a “um saber que propicia o
manuseio dos fenômenos, sem captar-lhes a mecânica” (p. 28). Parecem-nos estar presente, aí, um certo
sentido de ver a razão sustentada em um conhecimento advindo da vivência imediata, permitindo
reflexões-primeiras sobre o espaço geográfico sem um necessário arcabouço epistemológico para
encaminhá-las. Por trás de tal apreensão está aquela geografia primeira vivida pelo indivíduo como uma
experiência espacial não nomeada como geográfica (no sentido de um saber científico contemporâneo),
mas que tem como base, geograficidades gestadas a partir de relações socioespaciais ainda que não
promotoras de significados “científicos”. A práxis apropriativa “implica um conhecimento ordenado,
sistematizado e padronizado, que visa a apreender a lógica de funcionamento dos fenômenos” (p. 28). A
razão, aí, soa como a uma razão racionalizante com instrumentos lógicos encadeados de maneira
pragmático-criativo para o alcance de um objetivo científico. Em caso específico, para nós, o objetivo é a
produção de um conhecimento geográfico sobre o espaço. Ambas práxis, parecem-nos, se vistas de forma
plenamente separadas, concorrerem para realçar apenas o caráter pragmático-normativo de suas
apreensões. (Cf. MORAES, Antonio Carlos Robert. Ideologias Geográficas: Espaço, Cultura e Política no
Brasil. 5. ed. São Paulo: Annablume, 2005.). A razão emocionante, arvorada num elã emocional-racional,
quer ser aquela razão capaz de intercambiar face to face a “práxis manipulativa” com a “práxis
apropriativa” para fazer emergir uma práxis formativa que empreenderá uma apreensão emocional-
racional do real em movimento. A razão emocionante, sustentada na existência histórico-geográfica,
retorna à mesma na forma de atos de objetivação (trabalho, técnica, arte etc) capazes de imprimir
mudanças radicais aos fenômenos.
231
uma vida baseada no máximo consumo de bens e serviços produzidos, recaindo nos
ditames econômico-pragmáticos, e uma vida que vislumbra relações sociopolíticas
transformadoras dos indivíduos no ambiente comum de comunicação. Para nós, nessa
“encruzilhada”, a diferença entre “ter” e “ser” é uma diferença entre uma
socioespacialidade centrada no cotidiano enquanto preconceito e outra centrada no
cotidiano enquanto possibilidade. De um lado, uma socialidade com alicerces em um
cotidiano esquemático e repetitivo (LEFEBVRE, 2001); do outro, uma socialidade
imaginada a partir do cotidiano como “lugar de descoberta” (SANTOS, 1993) e “espaço
da vida” (SILVA, 1995). Ambas implicam formas diferentes de experiência geográfica
do “nós” na cidade. Pensemos cada uma delas.
143Referimo-nos aos condomínios, enclaves dentro do Todo, que sintetizam materialmente formas
específicas de usos individualizados nas cidades.
235
que atendam à lógica segregacional dos indivíduos pecuniosos. Esse parece ser o caso
das normas governamentais-empresariais que atendem as necessidades das
transnacionais de alguns setores (o caso do setor aero-espacial, no que diz respeito à
compartimentação e fragmentação do território de quilombolas em Alcântara-MA, p.
ex.144). As empresas, nestes termos, sendo um dos agentes pecuniosos, segmenta e (re)
ordena o campo material através das suas ações repetitivas a usos exclusivos de
pedaços do território. As normas das empresas são, como já nos avisava M. Santos
(2004b, p. 230), “uma das locomotivas de seu desempenho e de sua rentabilidade”.
Essas normas encontram na época atual forte esteio, paradoxalmente, na chamada
“desregulação”. Sustentadas na desregulação, as elites obesas aliadas às empresas
transnacionais reproduzem o ciclo perverso do modo ter na cidade: produção de coisas
que, pelo consumo conspícuo, age em prol dos usos exclusivos e pragmáticos de
pedaços do território. Nesse ínterim, a desregulação começa a significar multiplicação
do número de normas e não, ao contrário da imagem que a acompanha, supressão das
normas (SANTOS, 2004b, p. 275). Estamos bem perto, aí, de ver nas normas (do direito
positivo), por extensão a G. Lukács (1976), não a expressão da espontaneidade surgida
do nada na vida diária, mas a fixação da pragmática normativa de certos indivíduos (os
indivíduos pecuniosos) dos usos exclusivos do território.
144A partir de um Plano elaborado pelo Grupo para Implantação do Centro de Lançamento de Alcântara
(GICLA) e endossado pelo Decreto n° 7.820, o Governo do Estado do Maranhão, juntamente com o
Ministério da Aeronáutica, no ano de 1980, declarou de utilidade pública para fins de desapropriação
uma área de 52 mil hectares, no município de Alcântara-MA para a implantação do CLA; expropriando
cerca de 312 famílias de trabalhadores rurais, deslocando-as compulsoriamente para agrovilas. Estas, de
acordo com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA), conformavam-se fisicamente
num loteamento urbano medindo 25m x 40m e num loteamento rural medindo aproximadamente 14 a
22 hectares. Estes, por sua vez, pelo Estatuto da Terra de 1964, não garantiam o módulo rural básico de
30 hectares para plantio de diversas culturas. As normas estabelecidas pelo plano estatal-empresarial
implicam até hoje para os moradores de Alcântara-MA continuadas perdas socioespaciais.
236
145 Interpretando de J-P. Sartre (2008), um ato mediado pela imaginação e que é prenhe de
intencionalidade em que cada ser consciente elabora, numa relação entre corpo e pensamento, a ação
poíētica que principia a sua participação no mundo humano. (Cf. SARTRE, Jean-Paul. A imaginação.
Porto Alegre, RS: L&PM, 2008.). (Cf. SARTRE, Jean-Paul. O imaginário: psicologia fenomenológica da
imaginação. São Paulo: Ática, 1996.).
146 Em E. Fromm (2008) a manifestação do ter, ligada ao consumo, diz respeito ao ato de incorporar. (Cf.
FROMM, Eric. Ter ou ser?. 4. ed. 1. reimpr. Rio de Janeiro: LTC, 2008.). Ou seja, um nível básico (e
originário) para a manutenção da existência esta ligado ao ato de incorporar uma coisa, como por
exemplo, comendo-a ou bebendo-a. Toma-se posse do objeto incorporado fisicamente. Isto parece ecoar
no sentido de reprodução da vida na cidade, em sua forma básica da reprodutibilidade populacional ao
longo do devir histórico. R. Moreira (2007) ajuda-nos a compreender, por uma via aproximativa, o
consumo como forma de manutenção da existência ligado ao ato de incorporar, no caso, objetos
produzidos. Assim nos diz o autor: “A produção de bens é feita na razão das necessidades de consumo,
realizando-se tanto a produção quanto o consumo segundo as leis historicamente determinadas da
237
pecuniosos e de suas normas, ser o “Todo” das estruturas vivas norteadoras do estar-
junto. As dinâmicas de relações entre os indivíduos não devem converter apenas a
socioespacialidade do estar-junto à cupidez imediata da usura do espaço de existência,
transformando-nos em meros consumidores de espaços e subespaços (culturais,
políticos, econômicos). A metáfora utilizada por E. Fromm (2008, p. 45) do consumidor
enquanto “a eterna criança de peito berrando pela mamadeira”, concorre, assim nos
parece, à transformação do indivíduo em adorador do “ídolo” consumismo. O império
do modo ter de existência impõe a ditadura do consumismo que justifica, assim nos
parece, a efemeridade com que as relações socioespaciais são tecidas na cidade. Em um
instante quer-se engolir o mundo todo, pela prática econômica da avidez consumista,
em outro, ainda não abastecidos pelos consumos de subespaços, exige-se mais
consumos. Uma espiral perversa que impõe um cotidiano vivido enquanto prática de
constrangimentos às corporeidades e individualidades mais sujeitas ao preconceito.
sociedade próprias à natureza de cada modo de produção. Como o montante dos bens oriundos do
processo de produção desaparece sob o ato do consumo, o processo de produção se repete
continuamente, isto é, se reproduz sempre.” (Cf. MOREIRA, Ruy. Pensar e ser em geografia: ensaios de
história, epistemologia e ontologia do espaço geográfico. São Paulo: Contexto, 2007. p. 69.). Produção,
reprodução e consumo são formas primevas de manutenção da vida na cidade que garantem relações de
base (comer, beber, reproduzir, vestimentas etc.) e expressam o elo desta com o modo ter. Assim,
parecem-nos.
238
147 N. G. Canclini (2007) especificamente no capítulo sobre as cidades multiculturais do livro Imaginarios
urbanos, utilizando como exemplo explicativo de cidade multicultural a Cidade do México, relata pelo
menos quatro formas de se compreender a complexidade cultural de grandes cidades como a capital
mexicana. Segundo o sociólogo as quatro cidades discerníveis na capital mexicana são: 1) “A primeira é a
cidade histórico-territorial que açambarcaria os edifícios construídos na época precolombiana e no
período colonial e que ainda subsistem”; 2) “A segunda é a cidade industrial que se opõe ao histórico-
territorial porque não abarca um espaço delimitado ao modo tradicional, mas sim que se expande com o
crescimento industrial, a localização periférica das fábricas e também de bairros operários e de outros
tipos de transportes e serviços”; 3) “A terceira é a cidade informacional e comunicacional prevendo que a
industrialização já não era o agente econômico mais dinâmico no desenvolvimento das cidades, passou-
se a considerar outros impulsos para o desenvolvimento, que são basicamente a informacionais e
financeiros.”; 4) “A cidade onde coexistem as três outras cidades e que faz coexistir em ritmo acelerado
uma montagem efervescente de culturas de distintas épocas.” Entender está última cidade, ainda com o
autor, é entender a articulação dos modos diversos de vida e os múltiplos imaginários urbanos que a
geram. (Cf. CANCLINI, Néstor García. Imaginarios urbanos. 3. ed. 4. reimp. Buenos Aires: Eudeba, 2007.
p. 80-88.).
239
148Das múltiplas conotações com o belo (beleza sensível, beleza de sabedoria, belo estético etc) até os
significados próprios e irredutíveis da palavra Amor ofertados por diversas visões de mundo (seja pelo
platonismo seja pelo cristianismo ou, ainda, panteísmos de todos os matizes), várias são as “teorias do
amor”. Apenas queremos comentar duas delas: 1) a de G. Simmel (2006), numa transição do Amor do
ideal romântico da absoluta unidade para uma concepção formativa do “humano” no homem. “[o amor]
pertence a um estágio demasiado elevado da natureza humana para que possamos situá-lo no mesmo
plano cronológico e genético da respiração ou da alimentação, ou mesmo do instinto sexual.” (Cf.
240
SIMMEL, Georg. Filosofia do Amor. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006., p. 123.); 2) e a de E. Fromm
(1973), em que o amor é um traço do caráter que deve ser compartilhado entre todos. “(…) o amor deve
ele necessariamente existir nas relações que se tenham, não só com a própria família e amigos, mas
também com aqueles com os quais se tem contacto, através do trabalho, dos negócios, da profissão.” (Cf.
FROMM, Eric. A arte de amar. Belo Horizonte, MG: Itatiaia, 1973, p. 166.).
149 A esperança ganha matizes diferentes de acordo com o sistema de idéias no qual fora concebido.
Podemos citar alguns exemplos. E. Bloch (2005, p. 17) a faz categoria básica da filosofia (“A filosofia terá
consciência do amanhã, tomará o partido do futuro, terá ciência da esperança. Do contrário, não terá
mais saber.”) tornando-a o impulso básico da vida que leva o ser humano a transcender o presente e
vislumbrar o futuro. (Cf. BLOCH, Ernest. O princípio esperança. v. 1. Rio de Janeiro: EdUERJ:
Contraponto, 2005. 3 v.). Em G. Marcel (1959, p. 33) a esperança é uma correlação de “crédito” entre o
sujeito e a realidade, transcendentalmente inseparável do desespero absoluto ao mundo de então. (“Não
é menos certo que a correlação da esperança e da desesperança absoluta subsista até o fim. Não me
parecem separáveis. Quero dizer que a estrutura do mundo em que vivemos permite, e em certa maneira
parece aconselhar, uma desesperança absoluta; mas é só em um mundo deste tipo que pode surgir uma
esperança invencível.”) (Cf. MARCEL. Gabriel. El mistério ontológico: posicion y aproximaciones
concretas. Tucuman: Facultad de Filosofia y Letras/Universidad Nacional de Tucuman, 1959.). E. Fromm
(1986, p. 19-22) ressalta que a esperança não pode ter a conotação de salvação, de uma qualidade de
passividade e de “espera”, mas, sim, “ter esperança significa estar pronto a todo momento para aquilo
que ainda não nasceu e todavia não se desesperar se não ocorrer nascimento algum durante nossa
existência.” (p. 22). (Cf. FROMM, Eric. A revolução da esperança: por uma tecnologia humanizada. São
Paulo: Círculo do Livro, 1986.). É importante observar que parece difícil, para nós, atenuar a “esperança”
em uma analítica fromminiana tanto quanto no messianismo que ronda a esperança blochiana, bem
como na acepção proto-teológica da esperança de Marcel. Tais concepções de esperança, para nós,
trazem à tona o reconhecimento de que a esperança é motivadora da ação poíētica. Neste sentido, a
esperança, necessariamente, não é uma “ilusão lírica”, mas componente da natureza da ação poíētica.
Tem-se, então, que agir, mesmo em prol de um fim que necessariamente não se torne realizável, é agir
esperançosamente “salvando” a ação poíētica do espontaneismo cego e do pessimismo pétreo.
241
150 A réplica a que nos referimos concerne à resposta dada por K. Marx e F. Engels (2003), n’A sagrada
família, a um pequeno ensaio do filósofo alemão Edgar Bauer sobre o amor (A quietude do conhecer). Em
síntese Marx e Engels contrapõe-se à Bauer na forma deste querer transformar o amor em um “deus
cruel” – “O amor... é um deus cruel que, assim como toda a divindade, quer possuir o homem por
inteiro...” (BAUER, 1843 apud MARX; ENGELS, 2003, p. 31). Ou seja, no ponto de vista crítico marxiano,
Bauer ao transformar o amor em “deus cruel” coloca o “amor” à parte do homem como ser,
autonomizando-o e lhe remetendo o sentido de objeto, um objeto possessivo e insensato. Contrário à
Bauer, Marx e Engels vêem o amor não como abstração, mas como ato humano em “um desenvolvimento
real, que ocorre no mundo dos sentidos, entre indivíduos reais”. E por fim, reprovam à Bauer, dizendo:
“[ele] quer combater com isso não é apenas o amor, mas tudo aquilo que é vivo, tudo que é imediato,
toda experiência sensual, toda experiência real...” (Cf. MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A sagrada família:
ou A crítica da Crítica crítica contra Bruno Bauer e consortes. São Paulo: Boitempo, 2003. p. 31-34.).
242
deixa o mundo. E a esperança entendida, não como simples estado veleidoso da alma,
mas, como princípio de determinação do homem e da realidade (BLOCH, 2006), é a
detonadora dos atos dialético-criativos para essa reordenação.
151 Nos termos apresentados por E. Bloch (2006, p. 303-304) o que caracteriza a “esperança geográfica”
são os atos de inventar e descobrir. Na acepção de Bloch, o “inventar” age na alteração dos objetos e
intervém neles enquanto o “descobrir” parece se limitar a encontrá-los e mostrá-los. Assim: “o descobrir
parece não conter mais sonho algum, seria um sonho corrigido de imediato pelos fatos presumidos. O
descobridor, no entanto, adota uma atitude meramente observadora (…). O inventor na realidade
pressupõe em geral o descobridor, mas não permanece contemplativo como ele, também chamado de
explorador. (Cf. BLOCH. Ernst. O princípio esperança. v. 2. Rio de Janeiro: EdUERJ: Contraponto, 2006. 3
v.).
152 Concebemos esse ressentimento não como inteiramente negativo, ou “auto-intoxicação” do ser por
uma força nefasta transcendental tanto comentada por M. Sheler (1970) (Cf. SCHELER, Max. L’Homme
du ressentiment. Paris: Gallimard, 1970.), mas como um ato de mobilização da ação que traz, dentro da
precarização da existência, uma reação ao constrangimento produzido pelos indivíduos pecuniosos
(multinacionais, financeiras etc) aos indivíduos empobrecidos (movimentos sociais, sindicatos etc). Ele
guarda os germes de ações criativamente violentas por vezes necessárias à reversão, na existência
histórico-geográfica, do dano social-espacial produzido pelos agentes hegemônicos. Assim, o especto
outrora de total negatividade é realçado como ponto relevante à ação poíētica e menos moralizante às
conseqüências de seus resultados.
243
eficaz à reconfiguração do modo ter presente no cotidiano em modo ser da vida diária.
As geograficidades trazem aquele sentido sartriano de que a esperança existe como
parte da ação (SARTRE, 1997b), isto para efeito de uma mudança significativa ao
mundo humano. Daí pensarmos que até mesmo o ressentimento, para que seja eficaz,
tem que trabalhar com a esperança dos indivíduos que o propõem. E muitas vezes essa
proposição é posta em prática através de atos criativamente violentos, que podem
constranger a pragmática normativa imposta por outros indivíduos ao convívio no
mesmo ambiente.
“política possível” como “empresas” dos atos humanos esperançosos dos indivíduos
empobrecidos, estão circunscritas no terreno da experiência geográfica do “nós”. Daí a
esperança geográfica que, aproximando-nos da conotação de objetivações duradouras
(arte e ciência) de que nos falou A. Heller (1992), permite a sobrevivência da arte e
também da política, enquanto possibilidades realizadas que retornam à vida diária do
“eu”, bem como aos seus efeitos que sobrevivem na vida diária dos “outros”. Isto se dá
mediante ação poíētica que permite a comunicação da vida do “eu”, através da arte ou
da política, com a vida do “outro”. Na figuração a ser explanada na próxima seção, os
termos da evidência criativa do poeta Gullar estão à mostra mesmo num ambiente em
desacordo político-cultural para a sua realização.
Esse parece ser o apelo criativo pelo qual Gullar emerge a criação artística
do poeta num mundo onde ainda predomina o ter.
246
“O contato com qualquer obra humana evoca em nós a vida do outro, deixa
rastros que nos inclinam a reconhecê-lo e a encontrá-lo.”, E. Sábato (2008, p. 17) nos
diz de forma esperançosa. Que obra humana de história tão complexa se converteria no
lugar do encontro do poeta com a vida do outro em seu cotidiano lacerado? Não seria
aquela obra humana que se anunciou como episódios pictóricos na primeira metade do
dezenove ao discípulo de Humboldt, o pintor flamengo Rugendas?153 Ou não seria ela
aquela obra convertida em pequeno mito nos alvores do vinte?154 Por fim, que obra é
aquela onde os rastros humanos começaram a pulsar de forma violenta e vivaz com a
expansão das villas miserias a partir dos anos setenta?155 A obra humana na qual as
interpelações se fazem ouvir, chama-se Buenos Aires.
153 Entre 1837 e 1847, o pintor flamengo John Moritz Rugendas (1802-1858) utilizou-se da fisionomia da
natureza, procedimento criado por Alexander Von Humboldt (1769-1859), para ilustrar a cordilheira
dos Andes bem como as cercanias de Buenos Aires. O intuito era captar a “fisionomia” da paisagem
através de seus traços característicos que tinha no elemento vegetal e nos seus habitantes (os Andes, os
pampas, o pampeiro, os criollos etc.) os “detonadores” da apresentação pictórica da fisionomia da
natureza. (Cf. AIRA, César. Um acontecimento na vida do pintor-viajante. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.).
154 Fazemos referência ao espantoso crescimento populacional de Buenos Aires no período de 1895-
1930, quando um intenso fluxo de migrantes internos (camponeses) e migrantes advindos da Europa foi
verificado. Assim nos fala J. L. Romero (1986, p. 251-252): “Buenos Aires, a mais populosa de todas, tinha
já 677.000 habitantes em 1895 e chegava aos dois milhões em 1930. Foi, sem dúvida, a cidade cujo
crescimento chamou a atenção dos europeus – de cujo tronco se nutria a imigração que a transformava –
até convertesse em um pequeno mito. (Cf. ROMERO, José Luis. Latinoamérica: las ciudades y las ideas. 4.
ed. Buenos Aires: Siglo XXI, 1986.).
155 A villa miseria assemelha-se às mais miseráveis favelas paulistanas e ela expressa a forma de
agrupamento urbano das classes mais despossuídas de Buenos Aires. Em trabalho clássico H. Rattier
(1971) expressa assim o significado da villa miséria, bem como do conventillo (espécie de cortiço), ao
processo de (re)organização socioespacial dos indivíduos na cidade de Buenos Aires: “O campo expulsa.
Em 1930, o conventillo, a pensão barata ainda podiam ser moradia operária. Quando os frigoríficos se
transferiram do litoral ao próprio porto de Buenos Aires, os peões desses estabelecimentos se instalaram
nos conventillos de Ilha Maciel (…). Em pouco tempo, nem mesmo esses alojamentos – não
recomendáveis do ponto de vista da higiene – se encontravam ao alcance da massa imigratória interna. O
ingênito do criollo busca novamente uma solução própria, apelando aos elementos de sua cultura
tradicional. Há uma antiga arquitetura camponesa que, unindo técnicas indígenas e espanholas, permite
a qualquer um levantar a sua própria habitação.” (p. 11) A villa miseria surge desse processo e
correspondeu, outrossim, como uma guerra-social não-declarada entre os moradores de bairros
populares e aqueles indivíduos socioespacialmente mais privilegiados. “A villa sabe que se empreende
uma guerra de extermínio contra ela, e se defende. Para muita gente, incluídos certos importantes
matutinos, foi Perón quem as inventou por razões políticas. O certo é que elas pré-existiam ao período
peronista e cresceram como nunca quando este se concluiu.” (p. 15). (Cf. RATTIER, Hugo. Villeros y
Villas Miseria. Buenos Aires: CEAL, 1971.).
247
156 N. Shumway (2008, pp. 33-34) expressa a formação do moderno Estado argentino evidenciado o
isolamento geográfico e cultural da cidade portenha. Esse autor nos relata o isolamento entre Buenos
Aires e as outras cidades do período pós-colonial (1810) da seguinte forma: “Sob nenhum aspecto a área
era unida por geografia, política, economia ou qualquer visão particular de destino nacional. As cidades
que existiam eram na verdade agrupamentos urbanos isolados e missões, ligadas por estradas ruins ou
inexistentes; povoações que só eram alcançadas mediante o tráfego terrestre, terrivelmente lento. No
Oeste, existiam os pequenos povoados poeirentos de Mendoza de San Juan, situados no sopé dos Andes,
mais ligados ao Chile que a Buenos Aires. No Norte, havia Tucumán, Salta e Jujuy, culturalmente mais
próximas das culturas indígeno-espanholas do Peru do restante do que mais tarde passaria a ser a
Argentina. Mais no centro da região estava Córdoba, um ativo centro de conservadorismo político,
educação escolástica e fervor religioso. Ao longo do rio Paraná, seguindo para o Norte a partir do
estuário do rio da Prata, havia uma rica área agrícola conhecida como ‘litoral’, com as pequenas
povoações de Santa Fé e Paraná. E na boca do grande estuário estava Buenos Aires, geográfica e
culturalmente distante do resto da Argentina, mas destinada, pela localização privilegiada entre os ricos
pampas e as rotas comerciais oceânicas, a exercer uma hegemonia peculiar sobre as províncias do
interior.”. (Cf. SHUMWAY, Nicolas. A invenção da Argentina: História de uma Idéia. São Paulo: Edusp;
Brasília, DF: Editora UnB, 2008.).
248
157 “Os lares eram invadidos, as pessoas desapareciam, os irmãos separados, as avós se tornavam mães e
os primos, irmãos. As famílias dividam-se, as pessoas mudavam de casa, de cidade, de país. O chão
formado pelo mundo elementar de referências começava a se estilhaçar. A vida cotidiana partia-se,
marcando um antes e um depois, cujo divisor foi o seqüestro de familiares.” (Cf. CATELA, Ludmila da
Silva. Situação-limite e memória: a reconstrução do mundo dos familiares de desaparecidos da
Argentina. São Paulo: Hucitec; Anpocs, 2001. p. 91.).
249
criativa, como forma de oposição àqueles momentos que se configuraram, nas palavras
de A. Cangi (2000, p. 61), “de maior recrudescimento do microfacismo embrenhado nas
práticas cotidianas, nas instituições, nos atos e nos usos lingüísticos”. É ir à busca de
uma socialidade que tem no outro a sua razão de ser. “A permanência é o outro. Não
existe outra forma de permanência.” (GULLAR, 2006) (Entrevista realizada com
Ferreira Gullar, por Samarone Marinho, em novembro e dezembro de 2006). Parece-
nos que esse apelo feito pelo poeta é alusivo à produção, no próprio cotidiano, das
condições que modificam a socialidade. Condições estas que têm a ver com as maneiras
diversificadas de apreensão intersubjetiva do espaço. Afinal de contas, depreendendo
de M. Santos (LEITE, 2007, p. 81), os indivíduos dentro de uma área apreendem o
espaço de maneira desigual, pois o aparato senso-perceptivo e intelectual-emocional,
objetivamente, não é igual de um indivíduo para outro. É nesta maneira de apreensão
diferenciada do espaço que mora o sentido da socialidade ser mais densa para uns e
mais superficial para outros.
E. de Ípola (2005, p. 17) em sua análise sócio-semiológica, descreve os
aspectos da produção, circulação e recepção de rumores no interior do espaço e tempo
carcerários158. Esses rumores dizem respeito, na ascese teórica produzida pelo autor, a
como os prisioneiros políticos argentinos, num elo comunicante em ambiente de
precarização da existência histórico-geográfica, produzem e veiculam formas de
socialidades capazes de romper os ditames do cotidiano lacerado. Tais ditames, são
impostos pelas instituições carcerárias (delegacias, pavilhões, cadeias etc.) que se
querem controladoras da corporeidade e da individualidade, restringindo, pari passu, a
socialidade. As dinâmicas do estar-junto (comunicação entre prisioneiros em celas,
entre prisioneiros em pavilhões, entre prisioneiros em cadeias) analisadas por Ípola,
parecem depender de certa lógica socioespacial para a produção, no ambiente
restritivo, dos graus diversos de socialidade. Assim, quando o autor nos fala que o
destino do rumor está diretamente ligado ao destino logístico (socioespacial, para nós)
dos presos políticos (ÍPOLA, 2005, p. 31), o ambiente comum de comunicação profícuo
159 Fazemos alusão ao cotidiano dos trabalhadores industriais analisado por A. Abós (1984) no período
de 1976-1983. Uma análise da condição enfrentada por eles em face de sucessivas perdas trabalhistas
(leis de retração salarial, repressão contra as greves, desmantelamento de sindicatos etc.). (Cf. ABÓS,
Alvaro. Las organizaciones sindicales y el poder militar (1976-1983). Buenos Aires: Centro Editor de
América Latina, 1984.).
160 “A ditadura converte em cárceres os quartéis e as comissárias, os vagões abandonados, os barcos em
desuso. Não converte também em cárcere a casa de cada um?” (Cf. GALEANO, Eduardo. Dias y noches de
amor y de guerra. Madrid: Alianza Editorial, 2007b. p. 93.).
251
161 L. A. Romero (2006, p. 174), sobre as duas primeiras organizações, conta-nos que ambas surgiram por
volta de 1970: “a organização Montoneros, surgida a partir do integrismo católico e nacionalista, que se
tornou peronista, e o Exército Revolucionário do Povo (ERP), vinculado ao grupo trotskista do Partido
Revolucionário dos Trabalhadores”. (Cf. ROMERO, Luis Alberto. História contemporânea da Argentina.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.). P. Calveiro (2006, pp. 18-19), conta-nos: “Em poucos meses [entre
setembro de 1975 e início de 1976] destruíram quase totalmente o ERP e as regionais dos Montoneros
que operavam em Tucumán e Córdoba”; completa: “só os Montoneros, perderam, no lapso de um ano, 2
mil ativistas, enquanto o ERP desapareceu. Além disso, existiam no país entre 5 e 6 mil presos políticos,
de acordo com os informes da Anistia Internacional.”. (Cf. CALVEIRO, Pilar. Poder y desaparición.
Buenos Aires: Colihue, 2006.). O. Baigorria (1996, p. 175), contando-nos do ambiente da militância do
poeta argentino Nestor Perlongher na Frente de Liberación Homosexual da Argentina (FLH), nos informa
que as intenções da FLH eram: “articular as ‘reivindicações homossexuais’ no marco das lutas populares,
nas demandas da esquerda e no ‘processo de liberação nacional e social’. Este último incluía,
especificamente, ter em conta a emergência – e radicalização – do peronismo.”. (Cf. BAIGORRIA, Osvaldo.
“La Rosa mística de Luxemburgo”. In: CANGI, Adrián; SIGANEVICH, Paula. Lúmpenes peregrinaciones.
Rosário: Viterbo, 1996.).
162 Segundo E. de Ípola (2005, p. 18) o “rumor de rua” (rumor callejero; rumor de la calle), diferentemente
da bemba produzida em ambiente carcerário, tende a ser recolhido e registrado pela imprensa e os mass
media, mostrando uma tendência de serem quase-sempre “armazenáveis”. (Cf. ÍPOLA, Emilio de. La
bemba: acerca del rumor carcelario. Buenos Aires: Siglo XXI, 2005.).
252
163 O círculo intelectual-poético no qual Ferreira Gullar estava envolvido, concerne para a demonstração
de uma esfera de significados cujo espaço de existência (Buenos Aires) co-participou, significativamente,
para o mergulho do indivíduo socioespacial (o poeta) na ambiência político-estética circunstanciadora
da produção artística (o Poema sujo). Segue abaixo o ideograma Ferreira Gullar como um ‘ponto’ e um
‘todo’ nas relações socioespaciais, o que demonstra, parcialmente, a significação em processo. Vejamos:
164Essa emigração, ainda de acordo com G. Wettstein (1989, p. 27), deu-se: “tanto em cifras absolutas
(porque afetou aproximadamente a dois milhões de argentinos, um milhão de chilenos e quatrocentos
mil uruguaios, o que faz um total de quase três milhões e meio de pessoas), quanto em números relativos
(Uruguai, por exemplo, perdeu 35% de sua população em idade ativa).”. (Cf. WETTSTEIN, Germán; DIAZ,
Jose Pedro. Exilio-Inxilio: Dos enfoques. Montevideo: Instituto Testimonios de las Comarca y del Mundo,
1989.).
254
165A respeito das práticas ocorridas no encarceramento dos “subversivos” E. Sábato (1984, p. 42) conta-
nos ainda: “As características edilícias desses Centros [Centros Clandestinos de Detenção], a vida
cotidiana em seu interior, revelam que foram concebidos antes para submeter as vítimas a um minucioso
e planificado despojo dos atributos próprios de qualquer ser humano para sua supressão pura e
simples.”. (Cf. SÁBATO, Ernesto (comp.). Nunca Mais. Informe da Comissão Nacional Sobre o
Desaparecimento de Pessoas na Argentina [Conadep], presidida por Ernesto Sábato. [Relatório
Sábato].Porto Alegre, RS: L&PM editores, 1984.).
255
(rádio a transmitir boletins militares) sem saber o que aconteceria comigo” (GULLAR,
2003, p. 251): o poeta permitiu-se à socialização mínima, o que em muito o ajudou
atenuar a imersão na solidão do corpo próprio, como evidenciamos no capítulo sobre a
corporeidade. Ou seja, a abertura de sua individualidade a outra individualidade
(Santiago Kovadloff) permitiu, outrossim, a expansão mínima do seu círculo de relações
intelectuais. A cidade permitiu o encontro, mesmo em situações de precariedade. A
cidade permitiu a anunciação do que se escreveu: o poema.
A constituição da socialidade sobre decréscimo do campo intelectual-
artístico em épocas de incertezas requer dos indivíduos a persistência na elaboração de
estratégias de convívio para o fabrico de relações capazes de contradizer o limite à ação
criativa. Ao persistir o ato da comunicação entre indivíduos, a socialidade é adensada.
No silêncio da sozinhez, ela é rompida. Parecem morar aí, contra a mudez dos atos, as
estratégias de convívio que encontram na instância da cultura – desta ser uma “relação
entre o homem e seu entorno” (SANTOS, 1993 apud LEITE, 2007, p. 84) – o rumor
recriador (resignificador) das vivências. Atos simples, banais da restituição originária
do bom convívio, como a produção e a “publicização” da palavra (a palavra poética,
uma delas), a leitura, o encontro com o “outro”, parecem ser o convite à ação, à
aproximação entre indivíduos no adensamento da socialidade.
Nas palavras de J. P. Díaz (1989, p. 23), sendo a cultura a que remete a um
“lugar de encontro onde o humano é de uma só vez particular e único e genérico”, fica-
nos permitido vê-la não enquanto entidade autônoma às ações dos indivíduos, mas, ela
mesma, um veículo das idéias dos indivíduos. É no âmbito da co-determinação,
também, que a cultura age. Assim ela, a cultura, é uma instância entre outras instâncias,
vista aqui como correção da idéia do uso supra-orgânico166 aos espaços moldados pela
cultura hegemônica. Ela é parte formadora da vida do indivíduo em sua
socioespacialidade; e não, ela, o Todo orgânico. Eis que a cultura produzida
politicamente, aquela que é uma conquista às demandas territoriais preteridas por
variados indivíduos e/ou grupos no meio social, converte-se no espaço político possível
à mudança de convívio socioespacial. Um espaço experienciado e vivido por uma
“consciência política” (SILVA, 1986b, p. 153), uma consciência crítica aberta a um
ambiente que permita a veiculação tanto de idéias hegemônicas quanto de idéias
“marginais”.
167L. A. Romero (2006, p. 152) conta-nos: “O principal foco da renovação cultural estava na universidade
(…). Estudantes e intelectuais progressistas [que administraram a Universidade de Buenos Aires no
período de 1955-1962] se propuseram em primeiro lugar a ‘desperonizar’ a universidade, isto é,
eliminar os grupos clericais e nacionalistas, de valor acadêmico ínfimo, que a haviam dominado na
década anterior, e, em seguida, modernizar suas atividades, de acordo com a transformação que toda a
sociedade estava sofrendo.”. A idéia de modernização estava atrelada à questão do atendimento dos
padrões internacionais, ao fortalecimento das faculdades de biologia, física, agronomia e computação,
com laboratórios e cientistas com dedicação exclusiva ao ensino e à pesquisa. “Nas ciências sociais”, nos
diz ainda L. A. Romero (2006, p. 153), “a modernização estava associada a duas novas carreiras:
psicologia e sociologia”. (Cf. ROMERO, Luis Alberto. História contemporânea da Argentina. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2006.).
257
terrorismo de Estado colocado em prática pela ditadura concorreu para uma inação
que tentou solapar sistematicamente as práticas político-culturais, impondo uma
norma do silêncio (político e cultural) na vida diária. Norma que se fazia sentir, de um
lado, com a prescrição do regime processista (alcunha de Processo de Reorganização
Nacional) que exigia uma obediência filial à política desculturalizante do modelo
liberal-conservador e, do outro lado, à perseguição aos indivíduos que se opunham ao
sistema com atividades político-culturais “subversivas”. M. Novaro & V. Palermo (2007,
p. 194) ajudam-nos a clarificar a presença desse quadro de disjunção político-cultural
com a seguinte passagem: “[o regime processista] não permitiu nenhuma ação que
pudesse reconstituir o espaço público, vozes desafiadoras com discursos críticos ou
articulações entre grupos ou atores sociais, nem sequer iniciativas culturais que
pudessem dar lugar a aventuras estéticas autônomas.” Assim, qualquer manifestação
político-cultural que não estivesse enquadrada no modelo ideológico em vigência era
tida como uma ameaça a ordem.
“Todos os regimes de opressão se fortificam com o envilecimento dos
oprimidos”, já nos dizia S. de Beauvoir (2005, p. 84). Os sinais de aviltamento, além
estarem expressos materialmente nos CCDs (Centros Clandestinos de Detenção),
fizeram-se notar no uso público controlado da cidade portenha. “Com freqüência,
soldados armados invadem bares e passam a pedir a identificação das pessoas. Eu, com
minha cara incomum, de traços mestiços, sou sempre escolhido pelas patrulhas.”,
comenta-nos F. Gullar (2003, p. 236). Silvia Sigal (2006, p. 325) fala-nos que o “estado
de sítio” e a “repressão” liquidaram o espaço público. A crescente onda de perseguições
político-culturais trazia à cidade uma prática de um paisagismo fascistóide que se fez
percebido nas ruas e nas praças. A. Pereyra, citada por S. Sigal (2006, p. 325), comenta-
nos sobre a anatomia do projeto paisagístico colocado em prática pela ditadura. Ela nos
diz: “para a Praça [referindo-se à Praça de Mayo] ampliaram-se os espaços verdes,
instalaram-se bancos e cestos de papéis ao redor das fontes, para restituir uma
fisionomia que se fez tradicional, hierarquizando-a em suas fontes e ornamentos
principais; reintegrando seu sentido de recinto aprazível, testemunho dos dias do país
e digna do respeito de todos os argentinos.” Na fisionomia da paisagem, assim nos
parece, a ditadura lançava as suas investidas ao enclausuramento do espaço público.
Encontrava, aí, uma forma de arremeter, pela estetização da materialidade, certa
mensagem de controle “asséptico” aos espaços sociais da vida.
258
168Esses “setores” conservadores já estavam com substancial atuação na universidade desde o “ensaio
autoritário” dos governos militares dos generais Juan Carlos Onganía (1966-1970), Roberto Marcelo
259
Levingston (1970-1971) e Alejandro Lanusse (1971-1973). A repressão ao comunismo, tema que unia
todos os setores golpistas dessa época (1966-1973), se estendeu a todas as expressões do pensamento
crítico, dissidentes ou apenas diferentes. (Cf. QUIROGA, Hugo, El tiempo del “Processo”: conflictos y
coincidencias entre políticos y militares – 1976-1983. Rosário: Homo Sapiens; Politeia; Editorial
Fundación Ross, 2004.). (Cf. LUNA, Felix. La Argentina: de Perón a Lanusse – 1943/1973. 7. ed. Buenos
Aires: Planeta, 1995.). O alvo principal, assim nos confirma L. A. Romero (2006), era a universidade que,
vista como berço do comunismo pelas forças golpistas, tinha que sofrer uma urgentemente remodelação.
O dia emblemático que marca a intervenção e a perda de autonomia das universidades à esse período foi
a “noite dos cacetes” (29 de julho de 1966). Neste dia, conforme L. A. Romero (2006, p. 161), “a polícia
invadiu algumas faculdades da Universidade de Buenos Aires e espancou alunos e professores”. Este fato
concorreu para a consecução de vários pedidos de demissão de professores “opositores”. Estes, por sua
vez, foram substituídos por grupos dirigentes que satisfaziam a tendência liberal-tecnocrata. (Cf.
ROMERO, Luis Alberto. História contemporânea da Argentina. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006.).
169 S. A. Martínez (2000), em sua tese de doutorado, relata-nos três diferentes experiências pedagógicas
de cunho teórico-prático ocorridas na primeira metade dos anos 70. Grupos de professores e alunos
universitários identificados com a idéia de transformação social desenvolveram na Universidade
Nacional de Córdoba (Oficina Total), Universidade Nacional de Rosário (Dinâmica de Grupos) e na
Universidade Nacional de Mendoza (Sistema de Áreas Curriculares) uma arguta reflexão crítica no campo
da pedagogia institucionalizada. A experiência pedagógica da Oficina Total consistia na incorporação de
todos os docentes e alunos da faculdade (de Arquitetura, no caso) na execução de uma proposta
pedagógica comum, interdisciplinar e com um desenho curricular inovador. A proposta da Dinâmica de
Grupos não inovava na organização hierárquica do magistério, respeitando o tradicional funcionamento
dos cursos dividido em cátedras, mas diversificava cada cátedra internamente. Cada cátedra ficava
integrada por um conjunto de colaboradores de diversos níveis, todos interessados no campo de saber
estudado. Por fim, a proposta de Sistema de Áreas Curriculares tinha sua particularidade na reagrupação
das tradicionais cátedras dentro de uma faculdade ou escola – em relação às suas afinidades – em
campos epistemológicos ou campos de saber, denominados “áreas”. Os ideólogos dessa experiência
entendiam que cada área era uma unidade orgânica de docência, pesquisa e serviços, em relação a um
objeto da realidade e sobre a base de metodologias gerais comuns. [Cf. MARTÍNEZ, Silvia Alicia. Memória
de Professores: experiências universitárias na Argentina (1968-1976). Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2000.
Tese de Doutorado.]. H. Sábato (1996) faz referência às atividades desenvolvidas nos espaços em que
ocorria uma produção em Ciências Sociais fora das instituições oficiais. Ela nos diz que tal produção não
apenas permitiu a muitos intelectuais atravessar o isolamento da ditadura como também gerar uma
reflexão social crítica. As “instituições” político-culturais escolhidas para o desenvolvimento dessa
reflexão foram os centros de estudos, os grupos de trabalho, as revistas, as editoras. (Cf. SÁBATO, Hilda.
Sobrevivir en Dictadura: las Ciencias Sociales y la ”Universidad de las Catacumbas”. In: QUIROGA, Hugo;
TCACH, César (orgs.). A Veinte Años del Golpe. Com Memória Democrática. Rosário, Homo Sapiens
Ediciones, 1996.).
170 Esses discursos traziam em si tentativas, no âmbito da expressão artística, de fixar identidades
concerne às práticas ditatoriais) que fora definido pelo regime. Ainda que veladamente,
esses discursos encontravam em espaços (cafés, porões, pequenos auditórios, fábricas
etc.) fora do controle das instituições oficiais uma forma de difusão das idéias
antiautoritárias. A destinação individual-social de Gullar em Buenos Aires parece-nos
aludir a essa busca numa tentativa de reconstituição do “nós” que, como uma
experiência geográfica do “nós” adversa, circunstanciasse a recomposição de si e do
ambiente comum de comunicação com os outros. Assim nos soam os encontros do
poeta com amigos próximos que, diga-se de passagem, não eram encontros à uma ação
“subversiva” premeditada, mas encontros ocasionais nos quais os indivíduos pudessem
planejar a veiculação de suas idéias em meios impressos opositores ao regime171. A
literatura, na vontade de partilha intelectual-artística dos indivíduos envolvidos
(Gullar, Luís-Felipe Noé, Kovadloff, Galeano etc.), mediava os encontros no intuito, sub-
reptício que seja, de reafirmação criativa do “humano” em face do ambiente autoritário.
Beatriz Sarlo (1987, p. 37), no quadro de incertezas e rumores, conta-nos
que “a literatura buscou modalidades mais oblíquas (e não apenas por causa da
censura) para se colocar numa relação significativa com respeito ao presente e começar
a construir um sentido da massa caótica de experiências separadas de suas explicações
coletivas”. Essa busca por uma literatura que pudesse fazer recuar o intimismo
(entendido aqui como a auto-exploração imaginativa do ego) em prol da exigência em
considerar (metafísica ou sociopoliticamente) o indivíduo como uma variável da vida
Novaro e V. Palermo (2007, p. 197), as práticas “desafiavam o regime implicitamente em virtude de sua
mera presença, pois implicavam identidades e afazeres considerados subversivos, atuando nas margens,
longe dos espaços centrais”. Essas práticas assim explicitadas remetem-nos ao sentido de serem elas
alternativas, mas não necessariamente oferecerem uma alternativa. Haja vista que o processo de
alternativa a algo pressupõe uma posição no mínimo equiparada à proposta de outros agentes,
envolvendo uma participação político-econômica (e não apenas “simbólica”) para tornar concreta a
alternativa. O que não era o caso dos “subversivos” em relação ao regime ditatorial. Em face do
solapamento do âmbito político-cultural alternativo (de espaços culturais de encontro como pequenos
auditórios, sindicatos etc), a luta era a da restituição da expressão criativa e não necessariamente
implicava uma disputa pelo domínio de espaços centrais (grandes auditórios, estádios de futebol etc.)
(Cf. NOVARO, Marcos; PALERMO, Vicente. A ditadura militar argentina 1976-1983: Do Golpe de
Estado à Restauração Democrática. São Paulo: EdUSP, 2007.).
171 Nesse ponto, as formas que vários intelectuais e poetas encontraram na Argentina para se comunicar
estavam diretamente relacionadas aos impressos (revistas e jornais) opositores do regime. Dentre eles,
citamos: 1) a revista Punto de Vista que, segundo C. Altamirano (1996), tinha como estratégia discursiva
estimular a reflexão crítica e manter vivo o espírito de oposição ao regime. 2) o jornal Buenos Aires
Herald que trazia em suas edições, críticas abertas ao regime; 3) a revista Crítica y Utopia, no fala ainda C.
Altamirano (1996), discutiu abertamente o tema da democracia e suas condições sociais; 4) a revista
Expreso Imaginário, revista sobre música progressiva nacional que funcionou como “suporte” identitário
de jovens músicos. (Cf. ALTAMIRANO, Carlos. Régimen Autoritario y Disidencia Intelectual: la Experiencia
Argentina. In: QUIROGA, Hugo; TCACH, César (orgs.). A Veinte Años del Golpe. Con Memória
Democrática. Rosário, Homo Sapiens Ediciones, 1996.). (NOVARO; PALERMO, op. cit., p. 198.).
261
diária, parece trazer à obliqüidade da fala poética argentina dos anos setenta uma
espécie de afirmação de estados de espíritos criativos de autores em meio aos
ambientes autoritários. Entrelaçar os processos íntimos com a vida social e política,
sem reduzir a poética à uma “mensagem política”, parece ter sido o grande desafio dos
poetas argentinos (dentre eles estão Santiago Sylvester, Manuela Fingueret, Daniel
Freidemberg, Fernando Sánchez Sorondo e outros) que começaram a publicar seus
trabalhos no “olho do furacão” processista172.
Sobre estes, parece-nos que o espaço onde a voz poética se fizera ouvir sem
o constrangimento da censura foi a residência, o lar, entendido como ethos primevo do
encontro entre indivíduos. J. Filc (1997) revela-nos a importância do lar enquanto lugar
de socialidade em tempos de “militarização” do espaço público. Ela nos relata: “A
militarização durante a ditadura deu um significado completamente novo ao lar:
reuniões políticas, grupos de estudo, publicações mimeografadas e recitais de música e
poesia compartilhavam o mesmo espaço” (FILC, 1997, p. 52). Ainda que seja arriscada
essa generalização, certamente algo semelhante sucedeu em muitos lares portenhos. A
rememoração de Gullar é ilustrativa nesse sentido, como muito bem nos conta:
Apesar dos atropelos que experimentei em Buenos Aires, viver ali tinha
algumas compensações, sendo a primeira delas a proximidade com o
Brasil, que por si só me alimentava, e tornava possível a leitura de
jornais brasileiros (diariamente ia à Calle Florida comprar o Jornal do
Brasil) e a visita eventual de alguns amigos. Era uma alegria revê-los,
abraçá-los e ouvi-los falar de nosso país, da sua vida e de outros
amigos. Devo-lhes esses pequenos momentos de felicidade que me
ajudaram a seguir adiante, apesar de tudo. (GULLAR, 2003, p. 241).
172 Conforme S. Kovadloff (1990, p. 16-18) a poesia que irrompeu dos cenários político-culturais dos
anos setenta trouxe, com sua fatura, facetas estéticas múltiplas à sua compreensão. A dissolução das
fronteiras precisas entre a realidade externa e interna ou objetiva e subjetiva era um dos núcleos do
revisionismo estético com o qual a ‘geração de 70’ teve que se defrontar. Os poetas que tiveram
publicados os seus trabalhos nesses anos enfrentaram ainda uma ambiência de definhamento de grande
parte da industrial editorial argentina, de sensível redução das tiragens, da invasão do mercado local
pelos best-sellers, o desaparecimento de revistas literárias, o êxodo de muitos escritos etc., tudo
concorrendo para a destruição de “ambientes literários” e, conseqüente, empobrecimento do espaço
público. (Cf. KOVADLOFF, Santiago (introdução, seleção e tradução). A palavra nômade: poesia
argentina dos anos 70. São Paulo: Iluminuras, 1990.).
262
mundo humano recua, dando lugar ao rumor recriador (o poema sendo “publicizado”)
como estratégia de convívio no espaço social da vida. Um convívio onde se torna
inevitável o encontro entre as subjetividades que se realizam no ambiente do
momento. E mesmo ainda que um ambiente de restrições se imponha a tal convívio, o
projeto humano final é a partilha.
“Quando surge uma idéia, vou para rua. Tenho prazer em conceber o poema
no meio das pessoas que passam e nem suspeitam que ali, naquela hora, ele está
nascendo”, confessa-nos Ferreira Gullar (1997, p. 29). Essa aparente tranqüilidade na
escrita calcina-se no encontro inevitável com a vida diária, o cotidiano em latência. A
dureza do mundo empírico dialetiza-se com o mundo poetante em prol de uma poética
capaz de lançar outro olhar ao mundo humano. “O poema não provém de outra vida
que a vida diária”, observa S. Kovadloff (2004, p. 165), “é o produto da saturação do
espírito por parte da rotina”, conclui. Essa saturação do espírito humano que se
defronta com os atos corriqueiros da vida, remete ao que é próprio do poeta em
afirmar a vida em meio aos atos repetitivos justamente para ascendê-los, através de
poética crítico-existencial, ao patamar de uma interpelação impertinente em face do
status quo. O poeta não foge disso, afinal, com menor ou maior intensidade, “cada fato,
cada experiência de vida o invade e precipita a criação” (GULLAR, 2006) (Entrevista
realizada com Ferreira Gullar, por Samarone Marinho, em novembro e dezembro de
2006). É uma fala que antes de tudo quer reconfigurar o mundo humano através da
clarividência poética no afã de tornar criativos os atos para elevar o mundo da rotina a
mundo da criação.
O enfrentamento da vida diária, por parte do poeta, traz à baila aquele
sentido revogado à criação artística por parte de A. S. Vásquez (1977, p. 256), de
entendê-la como a expressão comunicada da nova realidade que não se confunde
literalmente com o sujeito, o seu criador. Essa mesma expressão comunicada talvez não
se confunda com a realidade geográfica vivida, mas guarda, em níveis variados,
264
paralelos com ela. É nessa relação entremeada por relativa elisão, ora do eu empírico na
finalização da criação artística, ora do eu poetante na não-identificação com o criador,
que o caráter duplo existente no poeta – de ser ele um elemento no todo social (“ponto
no mundo”) e um todo em si mesmo (“ele próprio um mundo”) – se faz notar. Como, no
Poema sujo, esse caráter duplo está presente? Esse aspecto, por aproximação, está
realçado na premissa básica que permeia o terço final do poema, a saber: a dialética
entre a parte e o todo já há muito evidenciada por A. Villaça (1984, p. 155). Essa
premissa é identificável no poema quando o eu poentante, pela versificação crítico-
rememorativa, presentifica a si próprio no tempo passado do lugar-natal relembrado e
quando o eu empírico lança-se à fatura poética como a própria tomada de consciência
aos estados das coisas. Duplamente, pode-se aludir aos fragmentos abaixo como
demonstrativos de tal recorrência.
(…)
Parado e ao mesmo tempo inserido
Num amplo sistema
que envolvia os armazéns
da Praia Grande, a Estrada de Ferro São Luís-Teresina,
fazendas em Corotá, Codó, plantações de arroz
(…)
minha cidade doída
Me reflito em tuas águas
recolhidas
(…)
Sobre os jardins da cidade
urino pus. Me extravio
na Rua da Estrela, escorrego
no Beco do Precipício
Me lavo no Ribeirão.
Mijo na Fonte do Bispo.
na Rua do Sol me cego,
na Rua da Paz me revolto
na do Comércio me nego
mas na das Hortas floresço;
na dos Prazeres soluço
na da Palma me conheço
na do Alecrim me perfumo
na da Saúde adoeço
na do Desterro me encontro
(…)
(GULLAR, 2006a, p. 43; p. 51-53)
265
por vezes elementar à criação artística se ratifica quando a intenção ontológica incide
ao mundo poetante uma contrapartida do externo (o mundo empírico), para sua fatura.
E em termos figurativos, o que é externo ao Poema sujo? As vozes de outros poetas que
universalizam a expressão comunicante entre os indivíduos, como forma de
complexificar a socialidade existente entre eles. Que poetas são esses?
É inesgotável o campo intelectual-artístico argentino que circundava o poeta
brasileiro nos anos setenta. Como observamos anteriormente o círculo socioespacial no
qual estava mergulhado Gullar, no que diz respeito especificamente ao círculo
intelectual-artístico, era pouco intenso o que refletia certo cuidado do poeta com uma
inserção mais incisiva nos dilemas sociopolíticos e culturais da cidade portenha e do
país. Entretanto, no âmbito da coexistência de alteridades, isto não anula a
aproximação entre universos poéticos de tendências estéticas dissímeis mas
demonstraram, por outro lado, afinidades no âmbito da vivência da existência, de
exprimirem certo estado de espírito antiautoritário, crítico à realidade vivida. Afinal, a
socialidade se complexifica com escritores desconhecidos entre si, mas necessários aos
outros indivíduos que os vão tomar por conhecidos durante a existência histórico-
geográfica quando a mensagem poética é repassada para outro e para outro etc. Com
essa finalidade faz-se menção à poética de Leónidas Lamborghini, no verso trágico-
paródico de En el hospicio (1980, p. 12), e à poética de Santiago Sylvester, no verso
crítico-existencial de El Balance (1990, p. 44). Como iluminações da socialidade do
poeta brasileiro sendo adensada, assim nos soam o poemário dos argentinos
Lamborghini e Sylvester.
Leónidas Lamborghini, poeta portenho, nascido em 1927; falecido em
Buenos Aires, em 2009. Junto com seu irmão Osvaldo Lamborghini173, é uma figura
singular da poesia contemporânea argentina, informa-nos A. Porrúa (2001). Esse autor
tem uma obra poética que remete ao jogo construtivo entre paródia e tragédia, síntese
do seu credo estético. Visa com esse jogo questionar poeticamente valores
hegemônicos ligados ao cotidiano. Poeta também de variações sutis, que revisa com
estilo perspicaz e espírito sarcástico textos fundamentais da política argentina. Obras
173 Osvaldo Lamborghini (1940-1985), poeta e ficcionista argentino nascido em Buenos Aires e falecido
em Barcelona. É desconhecido no Brasil, mas exerceu influência no espírito de outro argentino, Nestor
Perlongher, que a intelectualidade brasileira já reconhece como exponencial do século passado. Em vida,
Lamborghini publicou apenas três livros, mas ultimamente suas obras completas vêm sendo organizadas
por César Aira, em dois volumes sob o título de Novelas y cuentos e um sob o título de Poemas: 1968-
1985. Em vida publicou ainda o livro de contos Sebregondi retrocede (1973).
270
como Eva Perón en la hoguera (1972) e Perón en Caracas (1999), nas quais o autor
“reescreve” o peronismo por meio da humanização dos seus maiores emblemas, são a
expressão do chiste paródico presente em alguns de seus textos. Obras que de pronto
remetem a certa subversão poética que corrige onto-esteticamente a ordem cotidiana
vigente. Assim nos soam os versos do poema En el hospicio publicado no livro Episodios
(1980):
la ciudad es su hospicio.
la ciudad es su hospicio.
la ciudad es su hospicio.
como ese
como ese
la ciudad es su hospicio.
(LAMBORGHINI, 1980, p. 12)
271
(…)
– no quarto de um sobrado
na Rua das Hortas, a mãe
passando roupa a ferro –
fazendo vinagre
– enquanto o bonde Gonçalves Dias
descia a Rua Rio Branco
rumo à Praça dos Remédios e outros
bondes desciam a Rua da Paz
rumo à Praça João Lisboa
e ainda outros rumavam
na direção da Fabril, Apeadouro,
Jordoa
(esse era o bonde do Anil
que nos levava
para o banho no rio Azul)
(…)
se penso na cidade se desdobrando em seus
telhados e torres de igrejas
sob um sol duro
as famílias debaixo das telhas, retratos de mortos
com o rosto exageradamente colorido
dentro de molduras pintadas de dourado,
cômodas
antigas, pequenas caixas com botões e novelos de linha,
parentes tuberculosos em quartos escuros, tossindo
baixo para que o vizinho não ouça, crianças
que mal começam a andar
agarrando-se às pernas de pais que nada podem,
debaixo daqueles telhados encardidos
de nossa pequena cidade
(…)
(GULLAR, 2006a, p. 33; p. 45)
resistência), que as casas, as cidades deixam de ser apenas lugares por onde, passando,
passamos. Cidades e ruas que deixam de ser o espectro da solidão mergulhada em si
mesma, mas um caminho de abertura transindividual à cidade que é o abrigo crítico
para a geografia do “eu” (eu empírico/eu poetante) se realizar. A cidade-hospício de
Lamborghini passa a ser reinterpretada pela memória crítico-subjetiva gullariana
quando os “personagens” rememorados dão a coloração necessária à multifacetada
vida diária em agonia no verso lamborghiniano. O processo maquínico de uma cidade
(o bonde rememorado de São Luís que se embrenhava nas várias ruas) remete ao “eu”
trágico-paródico imerso na outra cidade (o deambular do eu poetante pelas ruas e
esquinas da Buenos Aires de então). Por trás da mensagem poética de ambos os textos
– o de Lamborghini e o de Gullar – há a reafirmação do quadro crítico vivido no
cotidiano, cada qual em seu tempo e lugar. Ambas as cidades (dos dois poetas)
concorrem para a humanização impura e inautêntica, mas essencial, à coexistência de
todos os desiguais entre si no cotidiano. Este mesmo que é veio para a proximidade ou
o distanciamento desses desiguais, na produção de uma socialidade mais profunda ou
superficial.
Com Santiago Sylvester – poeta argentino, nascido em Salta, em 1942 – a
proximidade ou distanciamento entre indivíduos e, principalmente, indivíduos-cidade
são imputados, por aproximação à palavra poética e para além dela, a certos ciclos de
ilusão político-econômicos enfrentados pelos argentinos ao longo do século vinte. Os
versos crítico-existenciais de El Balance remetem a um universo poético em que, pela
hibridez do discurso coloquial com as explosões imagéticas de alta densidade, o eu
poetante fixa-se no umbral das dificuldades que o mundo humano lhes oferta. O eu
poetante nesse poema está incorporado ao cotidiano vivido, e participa tanto do esplim
que corrói a cidade das partes ao todo quanto do pedido agônico à mudança que está
longe de ser concretizada. Ao menos nos parece ser esse o balanço poético feito pelo
autor. Acompanhemos a leitura do poema:
174“Não se pode esperar muito deste ano/Mudamos de cidade, de roupa,/de costumes;/e outra vez
amigos mortos,/outro ano para enumerar formas/da melancolia, roupa pendurada num dia de chuva/Há
uma lucidez que perdemos/(para sempre, como acontece/cada vez que perdemos a lucidez)/e não é
possível saber em que momento/começou o erro: perguntas demais/para um país varrido,/para tanta
gente que rebenta sob o sol/como um gargarejo/O balanço não ajuda muito/e o ar continua lá
fora/pedindo desesperadamente que o deixem entrar.”. (Cf. SYLVESTER, Santiago. El Balance. In:
KOVADLOFF, Santiago (org.). A palavra nômade: poesia argentina dos anos 70. São Paulo: Iluminuras,
1990. p. 44-45.).
275
175 Dentre alguns poemas, podemos mencionar: A bomba suja (GULLAR, 2001, p. 156-58) e o Poema
brasileiro (GULLAR, op. cit., p. 159), poemas-mensageiros que têm como um dos seus núcleos, a vida
precarizada pela fome; O açúcar (GULLAR, op. cit., p. 165-166), na apresentação da lógica da
desigualdade social; Homem comum (GULLAR, op. cit., p. 167-168), na revelação da vida em sua
efemeridade antecipada pelas imagens do poder (latifúndio e transnacionais); Coisas da terra (GULLAR,
op. cit., p. 174), na palavra poética que afirma a vida no perecimento; A vida bate (GULLAR, op. cit., p.
180-181), na abertura consciente dos movimentos que cerca a vida diária; Por você por mim (GULLAR,
op. cit., p. 184-188), um “canto” contra a ameaça bélica ao mundo da vida; Dentro da noite veloz (GULLAR,
op. cit., p. 195-202), um elegia a uma personagem política; Madrugada (GULLAR, op. cit., p. 218), anúncio
da condição da vida clandestina; Exílio (GULLAR, op. cit., p. 221), Dois poemas chilenos (GULLAR, op. cit.,
p. 226) e Passeio em Lima (GULLAR, op. cit., p. 227), são a afirmação da vida ante à condição exílica. (Cf.
GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. 11. ed. Rio de Janeiro, 2001.).
176 Mencionamos os seguintes poemas: A alegria (GULLAR, 2001, p. 295), interpelação ao sofrimento na
vida diária; Ao Rés-do-chão (GULLAR, op. cit., p. 296) e Homem sentado (GULLAR, op. cit., p. 302) exames
do exílio e do isolamento; Improviso ordinário sobre a cidade maravilhosa (GULLAR, op. cit., p. 309-314),
tem como um dos seus núcleos afirmação do “eu” na cidade; Minha medida (GULLAR, op. cit., p. 334),
afirmação do “eu” nos tempos dentro do Tempo. (Cf. GULLAR, Ferreira. Toda Poesia. 11. ed. Rio de
Janeiro, 2001.).
276
coisas passageiras da vida. “Todas as coisas de que falo estão na cidade/entre o céu e a
terra./São todas elas coisas perecíveis”, nesses versos iniciais de um poema (GULLAR,
2001, p. 174) revela-se a intenção ontológica do fazer poético gullariano: em face do
definhamento, afirmar a vida na(s) cidade(s).
Os poemas dos anos da condição exílica não se reduzem, obviamente, a
meros portadores de “mensagem” doutrinária, mas guardam entre si um elo
comunicante que denota certo estado de espírito de permanência criativa para com a
vida – a resistência, como aqui a entendemos. Esse estado de espírito criativo está
marcadamente presente no Poema sujo, na forma de como a exposição dos ritmos e das
figuras de linguagens compõe o universo poético em prol de “uma nova poética na qual
memória e crítica não se pejam de dar as mãos” (BOSI, 2003, p. 174): uma poética que
extrapola o nível dos temas, em sua aparência, ascendendo-os ao exame crítico que
compõem o universo poético, quando as figuras do cotidiano corroboram com a
consciência crítica que atua poeticamente na precariedade existencial do mundo
humano. O homem sentado, poema que compõe o livro Na vertigem do dia (2001),
dentre tantos outros poemas, talvez seja uma figuração da vida no cotidiano perecível,
mesmo quando o cotidiano seja a plasmação de uma paisagem social ainda estranha ao
“eu” (eu empírico/eu poetante). Leiamos o texto:
Considerações possíveis:
da explicação à afirmação
pelo poeta Ferreira Gullar à produção do Poema sujo. Por outro lado, o materialismo
histórico permitiu-nos engendrar mudanças radicais de sentidos aos fenômenos,
agindo na transformação das aparências. Agir na compreensão das determinações
geográficas que participaram de maneira relativa na gênese da criação artística foi
remeter com profundidade à importância do período vivido pelo poeta (na América
Latina e Argentina da década de setenta) no papel co-participativo a essa gênese.
Porém, por sabermos disso é que apenas um novo mergulho futuro no real
em movimento poderá atenuar tais perdas expositivas. Sabendo disso, imediatamente,
propomos rever os materiais onto-epistêmicos para que o acesso a esse real se torne a
epistemologia em estado dinâmico e não em estado inercial. Tal busca implica
necessariamente, a disposição em refazer as perguntas ao mundo humano que poderão
redirecionar os conceitos a um posterior estágio de operacionalidade e, por
conseqüência, à coerência da teoria. Obviamente, aí, é rever, pari passu, a subordinação
do corpo conceitual às situações do real a serem apreendidas racional-emocionalmente
pelos instrumentos de análise. O tempo e o lugar concorrerão para dar maior ou menor
consistência às análises, realçando os valores da realidade geográfica com a qual o
homem se defronta.
283
APÊNDICE A
Esboço de uma busca
285
de 2005 com as primeiras especulações em mãos (20 laudas escritas) soou-me como
ingenuidade descabida pronta para ser destruída. Mas não a foi. Já havia alguns dias
hospedados na casa de uma amiga quando decidi procurar Ferreira Gullar. Por
telefonema (tinha o telefone dele em mãos), anunciei-me como geógrafo que queria
“estudar” a sua obra. Para meu espanto, ele decidiu me receber. Ele queria saber de
atípico enfoque, como seria feito. Mal sabe ele que o fim disso tudo ainda estar por vir.
Enfim… Em nosso primeiro encontro (meados de agosto de 2005) Ferreira Gullar, de
uma sisudez pesada, acolheu-me de maneira até surpreendente. Entre um esfuminho e
outro do café conversamos sobre coisas da vida, poesia, e, finalmente, sobre o que eu
queria, estando ali. Tentei desvendar para ele o que para mim ainda era obscuro. O que
fazer? Comecei com uma ladainha preambular falando da relação entre geografia e
literatura, seus multifacetados projetos e concepções etc., até o momento que expliquei
a minha então intenção que assim se resumia: “o projeto, intitulado Espaços de
Existência: poética do movimento na obra de Ferreira Gullar, levanta as questões básicas
através da seguinte hipótese: o poeta e o sujeito histórico Ferreira Gullar é mediação
essencial entre a cidade e o mundo. Para tanto, a partir do estudo de uma cosmovisão
(a do poeta), estabelece-se alguns questionamentos acerca das transformações no
âmbito social e político ocorrido na América Latina nas décadas de 1970-80. Neste
sentido, a Poética, entendida enquanto ciência do conhecimento literário, surge como
elemento delineador da imaginação criadora (arte) e da razão epistemológica (ciência)
permitindo um avanço na aproximação metodológica entre Geografia e Literatura”.
Algo ainda intangível e muito incipiente, do que me dei conta apenas depois, quando do
primeiro, de tantos outros, exercício de auto-interiorização da idéia. Depois, já ao
anoitecer, dissera-me que o meu desafio seria (e está sendo) instigante, de uma
complexa relação a ser estabelecida. Ele, no fim de nossa conversa, lançava-me o
seguinte desafio: “Pois”, disse-me, “se não quer fazer o que já é feito em sua disciplina,
não sei nem no que posso lhe ajudar?... Que tal procurar o lugar onde tudo isso
aconteceu: Buenos Aires?” O livro Poema sujo, fora criado em Buenos Aires, no ano de
1975, quando mais um capítulo da infâmia humana era concretizada por meio, agora,
da fixação de governos autoritários e seu material repressivo na América Latina como
um todo. Parece-me, e só hoje consigo perceber, que o desafio do poeta era uma
provocação contumaz, mas de muita pertinência. “Talvez”, pensei, “ir até lá, estabelecer
contato com o lugar onde tudo isso começou, pode significar algo.” Quatro dias depois,
287
creio que dia 21 de agosto do ano de 2005, estava em Buenos Aires. “O que estou
fazendo aqui?”, ao chegar no aeroporto de Ezeiza, perguntei-me. A Buenos Aires de
2005 não era mais a Buenos Aires de 1975. O que estava fazendo ali? Procurei, então,
situar-me. A partir do centro da cidade, procurei nos arquivos públicos, em jornais e
revistas daquele período, algo que me levasse a, no mínimo, um quadro geral, p. ex., da
poesia que estava sendo produzida, a fim de mergulhar o poeta no que posso chamar
de esfera de significados estéticos da cidade portenha. O resultado: provisório,
preenchido, ademais, pelo encontro de um material sobre a poesia argentina produzida
na década de 1970 (que vim a tirar proveito durante a escrita do meu trabalho). No
mais, tudo soava uma busca sem muito sentido, mas que, mesmo assim, abriu um leque
de possibilidades. Fiquei com a impressão que retornaria àquela cidade (e retornei,
como narrarei mais tarde). De Buenos Aires voltei para o Rio de Janeiro seguindo para
São Paulo pouco tempo depois: onde, a história acadêmica deste trabalho se inicia. O
encontro (tanto com o poeta e o lugar) resultara num dos imbróglios que se arrasta até
hoje, qual seja: como retirar a conotação da arte (em sua especificidade de forma-
conteúdo, a poesia) enquanto reflexo total da realidade, haja vista que, particularmente,
acredito que há um nível parcial de reflexibilidade intrínseco à obra de arte a ser levado
em conta e que, numa relação co-determinativa com o lugar, essa mesma relação se dá?
São Paulo começa a se translinear numa busca mais teórico-acadêmica aos meus
dilemas no final do mês de novembro do ano de 2005. Ao visitar um amigo na
Universidade de São Paulo-USP, conheço o Prof. Júlio César Suzuki (hoje meu
orientador) que, este, sensível ao trato com a literatura, interessa-se pela idéia que hoje
passo a entender como “outra mediação entre geografia e literatura”. Começava, então,
a segunda parte de minha caminhada, pois, a primeira – que se iniciou lá atrás em 2001,
imagino –, o seu ciclo, dava-o por concluído.
Logo depois do processo seletivo de ingresso à pós-graduação na USP, o ano de
2006 (o primeiro semestre, enquanto aluno ouvinte e especial; e o segundo semestre,
enquanto aluno regular) marcou o início de processos e idéias que fui ou incorporando
na totalidade/parcialidade ou refutando na totalidade/parcialidade, e que, em muito,
ajudaram na conformação da nova cara do trabalho. O que antes me parecia um trato
com a poética em si, do que de imagético poderia encontrar nela, passei a rabiscar em
cadernos de anotações o que poderia haver de conteúdo geográfico na obra gullariana.
Desde o contato com a primeira disciplina, feita como ouvinte, A crítica literária
288
Todo esse movimento em relação à ontologia foi feito para a busca de certo filtro
geográfico à elaboração de outra perspectiva (a perspectiva ontológica) no tocante a
adensá-la para o tratamento futuro (no hoje) a ser dado à relação geografia e literatura.
A retomada de algumas leituras filosóficas era condizente com o que identificava como
sendo o caminho viscoso da relação entre geografia e literatura que, no interior da
Geografia Cultural, tinha uma perspectiva de caráter multifacetado: a perspectiva
humanista. No que vi, li e vivi e no que mais tarde (no hoje) vislumbrei para outro
caminho, toda a abordagem para um outro caminho da supracitada relação segue
desenvolvida em corpus teórico na primeira parte do trabalho (mas, uma constante no
trabalho). Em tese, isso resume a primeira das duas respostas ao estabelecimento dos
novos nexos que queria estabelecer entre a teoria e o real. E qual era a segunda
resposta? Responde-mo-la. Não bastava o diálogo em si entre as ontologias, precisava
conectar a síntese-provisória obtida de tais leituras no real em movimento. As
mediações enquanto exigência ao adensamento dessa perspectiva (que já tinha
295
Plano Geral
01/12 – Partida-Ezeiza/16hs.
Esse movimento de retorno a Buenos Aires tinha por base estabelecer uma espécie de
partido metodológico ao trato, do que chamei mais tarde (no hoje), da análise
compreensiva da crítica expositiva (ambas idéias desenvolvidas no trabalho) e com o
qual poderia dar maior empiricidade (qualitativa) (o movimento da mediação entre a
teoria e o real) aos termos envolvidos: a esfera de significado pretérita da Argentina
através de conversações com indivíduos e coletivos humanos, bem como o acesso à
literatura (estética e historiográfica) da época do período ditatorial argentino (revistas,
jornais, panfletos, poemas, contos etc.) para o ‘mergulho’ do poeta e do poema no
contexto tensivo. Nessa viagem, p.ex., na senda das descobertas, as conversações
(dentre elas as conversas com Germán Wettstein e Carlos Reboratti) se conformariam
algum tempo depois (no agora, em São Paulo) na concreção de tal partido metodológico
297
com o qual os conteúdos ofertados pelos indivíduos e coletivos humanos, no ato da fala,
deram-me um amalgama de idéias retornadas como a operacionalização de alguns
materiais onto-epistêmicos (o homem situado, o exílio geográfico, espaço de existência,
são alguns deles). O entrevero dos contrários (as visões de mundo obtidas a partir das
conversações) que se aproximaram ao longo da fatura científica (o trabalho
propriamente dito), fez-me tratar as conversações (o vivido rememorado) enquanto
uma dinâmica de aprendizado ao real que foi (e está sendo) acionado de forma implícita
no trabalho para salvaguardar as falas de quaisquer monolitismo. Daí parece-me que,
quando do meu retorno ao Brasil, o elo entre a teoria e o real foi se adensando. Um
último-provisório momento da história de minha vida na USP, e não estritamente da
história deste trabalho, concorreu para mostrar-me que é a existência que diz muitas
coisas. Falo desta maneira no intuito de evocar aqui um compromisso paralelo à
totalidade investigativa na qual me envolvi. A feitura da disciplina Agricultura e
Urbanização (Prof. Júlio César Suzuki/Geografia-FFLCH) remonta a uma outra linha de
pesquisa (geografia agrária) que remeteu à abertura e retorno necessários à certos
movimentos empírico-lógicos de suma importância à compreensão de realidades
específicas (as metamorfoses do rural e do urbano ao longo do tempo sofridas pela
cidade de São Paulo, p. ex.), universais em concretude territorial, no interior da história
sendo processada (as transformações socioespaciais sofridas por São Paulo em face das
transformações socioespaciais sofridas pelo Brasil, p. ex.). Este, enfim, é o sintético-
provisório de um caminho repleto de vaivens. Encontrei, aí, pessoas fabulosas nessa
senda (ainda) inacabada. Figuras humanas que imaginei não mais encontrar em um
ambiente às vezes esquizofrênico e soturno como a academia. A elas agradeço pela
força a mim ofertada.
298
APÊNDICE B
Geografia da vida, conversações com Ferreira Gullar
(Reprodução de partes das entrevistas concedidas
nos meses de novembro e dezembro de 2006)
299
[SM] Certa vez em uma entrevista que viria a compor os Cadernos de Literatura
Brasileira o Senhor havia comentado que sua poética baseava-se na captação direta das
suas experiências no mundo. O Senhor poderia explicitar melhor esse processo?
[FG] Não existe uma norma, nem uma coisa que não tenha exceção. Em geral, no meu
caso, a poesia se dá a partir de experiências que ocorrem inesperadamente e que não
precisa ser um grande acontecimento. O cheiro da tangerina no poema O cheiro da
300
tangerina, por exemplo, se deu no momento em que observava o meu filho a descascar
uma tangerina. Isto não é nenhum acontecimento em si, excepcional, mas o que
deflagra isso, o que faz com que num determinado momento isso se torne uma coisa
fonte de poesia é um mistério. É assim que ocorre, e, às vezes, não. Às vezes é uma
palavra, uma idéia… Entendeu? Agora, o que eu quero dizer é que sempre parte de
alguma coisa que foi vivida, experimentada, que deflagra naquele momento o processo.
Eu não sou um planejador. O João Cabral de Melo Neto, por exemplo, planeja o livro:
“Vou fazer um livro com versos de tais e tais tipos, com tantos poemas, tantas estrofes;
ou então vou explorar um tema determinado”. Isso não acontece comigo, eu nunca faço
isso. A poesia surge das circunstâncias, do eventual.
[SM] Pode-se dizer que foi a partir da década de 1960 que a sua poética se deu numa
intima relação com a sua visão de mundo?
[FG] Não! Se deu um pouco antes, em 1954. Se deu durante já mesmo no livro A luta
corporal. A luta corporal já é fruto da experiência minha com o mundo. A luta corporal é
um livro que nasce da descoberta dessa poesia moderna e de uma concepção, um novo
relacionamento com a linguagem, esse é um momento. Ele é um livro inquieto que
busca penetrar num nível da realidade que resultou na explosão da linguagem.
[SM] E depois, com as vanguardas estéticas, como se deu esse processo da formação de
sua poesia?
[FG] A poesia concreta, de algum modo, indiretamente, precipita a necessidade de
surgir uma poesia não-discursiva, uma poesia posterior à A luta corporal, posterior à
desintegração da linguagem. Não é por acaso que a poesia concreta é a tentativa de
organizar a linguagem sem discurso. Organizar espacialmente as palavras sem o
discurso, porque o discurso já tinha sido desintegrado pela A luta corporal. Essa,
digamos assim, é a minha contribuição involuntária para o surgimento desse
movimento.
301
aquilo me levou a fazer o poema. Mas a construção do poema é diferente: não é como
eu escrevia antes e nem como eu escrevia depois. Por exemplo: a idéia da repetição das
palavras para criar um clima, uma “atmosfera” azul. Mas isso foi uma experiência que,
no meu caso, se desdobrou nos poemas espaciais, até terminar com o Poema
enterrado… Isso foi nos anos de 1959-60. A partir daí eu entro em crise novamente. Eu
não queria continuar naquilo. Achava que aquilo ali [referindo-se à poesia concreta] era
uma coisa diferente do que eu desejava. Imaginava que tinha reduzido a linguagem
verbal a uma única palavra. Era interessante, não renego e nunca reneguei o que fiz,
mas eu achava que não era aquilo que deveria continuar fazendo.
[SM] Walter Benjamin fala que o ato da escrita, no seu desenrolar, é uma forma
importante de mediação do indivíduo com a sociedade. Tal mediação, para ele,
concretiza-se justamente quando os atos de narrar e de rememorar as “coisas em si”
põem-se à busca para a compreensão do mundo. Na sua poética, este movimento do ato
da escrita como força motriz entre indivíduo e sociedade não fora alcançado em sua
plenitude com o Poema sujo?
[FG] [um longo silêncio] Esta é uma pergunta difícil. Não sei se consigo responder a
essa pergunta…
[SM] Como o cotidiano alimenta a sua poesia? O senhor poderia explicar esta questão?
[FG] Isto é uma questão mesmo da minha maneira de ver o mundo. Eu não sou
realmente uma pessoa que viva na fantasia. Estou sempre me defrontando com a
contingência da vida e não procuro fugir disso, não procuro criar fantasias absurdas,
despropositais ou buscar uma Pasárgada [referindo-se ao poema Vou me embora para
Pasárgada, de Drummond] fora de tudo, como dizia Drummond. Procuro, de certa
maneira, entender essa realidade e mudá-la, quer dizer: criar poesia com esse material
sujo da vida. Criar poesia com essa coisa que é própria existência. Seria uma espécie de
alquimia do existente, do real, do banal transformado em poesia.
[SM] Há algo de relevante em sua trajetória de vida que não passa despercebido: a sua
relação com o marxismo nas décadas de 1960 e 1970, via militância política. O quanto
essa relação mudou a sua visão de mundo?
304
[FG] São duas coisas. A primeira é minha opção política – como falei a minha ida para
Brasília-DF e o reencontro com o país –, que me tirou da perspectiva meramente
estética, de vanguarda. Passo, a partir daí, a refletir sobre a condição do país, da
sociedade e a necessidade de mudança. Isto é uma coisa. Em função disto passo a ler o
marxismo, a me informar sobre o pensamento de Marx e a filosofia marxista. Enfim,
dessa visão de mundo que está implicada certa luta revolucionária. Uma coisa é a opção
existencial, opção de vida que vai envolver a minha poesia também. Deixo de fazer
poesia de vanguarda para fazer uma “poesia militante” em que, inclusive, o problema
estético é subestimado. Como nos poemas de cordel em que a qualidade estético é
subestimada. Nesses poemas não estava muito preocupado com isso. Estava muito
mais preocupado com “levar” a consciência social às pessoas, com “fazer” ideológica e
politicamente a cabeça das pessoas. São duas coisas que se juntam. Então, quando eu
estudo o marxismo, quando eu passo a compreender a realidade através da dialética
marxista, uma influência se dá em mim. Isto é claro. Hoje, eu tenho uma visão crítica
com relação a muitas dessas coisas.
[SM] Em suas notas autobiográficas Albert Einstein nos confidencia o seguinte: “um
homem com sessenta e sete anos não é de modo algum o mesmo homem que era aos 50,
aos 30, aos 20”. Talvez esteja implícito, aí, que o processo de mudança do homem seja
contínuo incidindo na forma de pensar e ver o mundo. Como o senhor, aos 76 anos, pensa
e vê o mundo de hoje?
[FG] Evidentemente que não é como eu pensava quando eu tinha 20, quando eu tinha
40... É diferente. O que eu penso do mundo hoje? Isso é uma coisa muito complexa.
Através da minha poesia eu digo o que eu penso do mundo. Hoje a minha visão de
mundo é bem diferente daquela que eu tinha aos 45 anos. Por exemplo: hoje tenho uma
visão crítica em relação ao marxismo, não com relação à proposta de mudar o mundo,
305
de criar uma sociedade mais fraterna. Mas tenho uma visão crítica com certo
reducionismo na explicação da realidade. Até com relação ao Benjamin tenho certas
restrições. Por exemplo: eu acho que muitas das coisas que ele disse foram coisas
equivocadas, como aquela teoria da aura [referindo-se ao texto A obra de arte na era de
sua reprodutibilidade técnica, mais exatamente a parte que trata da destruição da aura
do objeto artístico]. Aquilo está errado, não concordo com ele. A idéia de que a
produção industrial acabou com a aura do objeto fabricado, isto para mim não faz
sentido. Hoje mesmo, têm pessoas colecionando todo tipo de automóvel para instituir a
aura.
[SM] … então o senhor, diante de todas essas teorias e visões de mundo, está sempre
disposto a mudar.
[FG] Veja bem, essa idéia do absoluto é que me incomoda. São diagnósticos errados.
Bom! A obra de arte única criou uma aura. Quer dizer, p. ex., uma Gioconda do Leonardo
da Vinci como ela, é única. Ela criou uma mistificação em torno dela, uma aura de coisa
única no mundo. Mas o automóvel, p. ex., que não tem “um” original, que é uma
produção industrial pode conter essa mistificação. O automóvel no início é um desenho
que depois dá base ao “primeiro original” automóvel, que a partir daí será igual a um
outro automóvel, que é igual a um outro automóvel e igual a outro… Esse processo quer
me revelar que não existe original. Logo, então, o objeto não tem aura. Mas isso não é
verdade. Há pessoas que colecionam Fusca. Portanto, não é por que seja uma coisa
sociológica que temos que explicar por razões aparentes. No fundo parece-me que é
uma coisa do ser humano essa idéia, às vezes, de mistificar as coisas e jogar o seu afeto
em tudo.
naquele candidato, isto é muito difícil de saber. A realidade é muito mais complexa do
que a gente imagina.
[SM] Voltando à sua poética. O tempo nela, como se faz presente? Parece-me haver
evidências claras de um tempo relativo em poemas como “As pêras”, “Dentro da noite
veloz” etc.?
[FG] Olha, quando eu escrevi esses poemas não pensava nessa questão. Depois percebi,
quando conheci a teoria da relatividade de Einstein, que ela se fazia presente. Até
escrever o poema As pêras eu não conhecia a teoria da relatividade. A partir do seu
conhecimento vi que cada coisa tem seu próprio tempo. Esse poema, de certo modo diz
isso. O tempo do relógio não é o tempo das pêras. Cada coisa tem seu próprio tempo.
Por exemplo: o dia comum é a distância entra as coisas, o dia das pêras é o seu
apodrecimento. De certo modo, isso é Einstein, mas isso para mim fora intuído na
experiência direta da vida, antes mesmo de tomar conhecimento da teoria. Mais tarde
essa idéia do tempo que está nas coisas e nos homens, está muito evidente em o Poema
sujo. Em vários momentos, essa idéias está presente. Inclusive naqueles em que me
refiro às velocidades diferentes.
[SM] O trecho do Poema sujo “Numa noite há muitas noites/ mas de modo diferente/ de
como há dias no dia” é um bom exemplo disso, não é?
[FG] Sim, creio que sim. Ao mesmo tempo que há noites, o relógio, por sua vez, não
mede algo absoluto. Essa é a complexidade da vida. Na noite há muitas noites, como há
muitos dias no dia. Mas não é da mesma maneira. Cada coisa tem a sua maneira de
aparecer e existir. É essa a complexidade que me faz ter um fascínio pela vida, pela
existência. Então não existe um tempo absoluto. Parece-me então, neste tempo, é que a
poesia moderna é o que é.
[SM] E o espaço?
[FG] Se existo aqui, não posso existir em outro lugar, a princípio. Mas com a tecnologia
isso é possível, ao menos num plano: o virtual. Mas a vida não é virtual. O espectro de
minhas ações pode estar em qualquer lugar, mas o meu corpo e a minha
individualidade estão aterrados em um lugar, e apenas num lugar. Que para mim é o
meu universal. Posso estar errado, mas é isso o que penso.
[SM] Fiz algumas leituras da sua poesia daquela época (1970-1980) e realmente a forma
como o Senhor apresentou essa questão da simultaneidade foi interessante, porque
permitiu-me essa leitura de ver não só o tempo, mas o espaço como esse “conjunto” de
temporalidades diferentes. Esses tempos diferentes apresentados na poesia, de pessoas
diferentes, de um universo poético diferente se comparado com outro. Isso tudo, acredite,
fez-me pensar na Geografia de hoje. Que Geografia nós queremos fazer atualmente? Qual
a importância dela no mundo? Exponho essas questões para o Senhor porque, diferente
do que muitos pensam, a Geografia de hoje está se permitindo fazer perguntas que até
pouco tempo nunca havia feito. Questões como temporalidade, o cotidiano, e a existência
apresentam-se com certa relevância no discurso geográfico atual. No momento em que
muitos imaginam que isso já se perdera em prol de um mundo, digamos assim,
padronizado pela ditadura do dinheiro, estas questões ganham força na Geografia. Milton
Santos, certa vez, num elã metafórico mas super real, disse que o espaço é acumulação
desigual de tempos. Ou seja, o espaço, simultâneo ao tempo, é uma instância que contem e
é contido pelas temporalidades que usam o tempo na conformação das formas
geográficas e para além delas. Esse geógrafo brasileiro nos deixa entrever um tempo do
cotidiano, um tempo plural, que vai bem nessa linha da construção de parte de seu
universo poético sustentado num tempo dentro do Tempo, um tempo que é diferente
conforme a necessidade de cada um de nós. Parece ser nessa questão que a atual
Geografia esteja sustentando vários dos seus debates.
[FG]Interessante essa nova Geografia.
[SM] Então, parafraseando Drummond: Gullar, o que há sob o nome: uma geografia?
[FG] Essa é uma pergunta filosófica. Eu não sou filósofo. Suas perguntas são bastantes
complexas. Estou aqui refletindo sobre coisas novas nunca antes perguntadas. Nunca
308
pensei que um geógrafo me procuraria algum dia. O que eu penso sobre a vida, da
existência, do mundo e do ser humano está escrito em meus poemas. Nunca parei para
pensar nisso, nestes termos. É, verdadeiramente, uma coisa muito complexa e diferente
para mim. Fui criado a perceber a geografia como descrição de lugares e vê-los a partir
de mapas. Esta foi a educação geográfica que tive.
[SM] Permita-me explicar. Bem na verdade o Senhor me instigou a fazer tais perguntas. E
por quê? Uma crônica escrita recentemente pelo Senhor (A idade do óbvio, Folha de São
Paulo, 19/11/2006) me trouxe a tona novamente a reflexão sobre o problema de um
mundo permeado por coisas rasteiras e fúteis em contraposição à falta de paciência para
com o complexo. Talvez eu esteja trazendo justamente essas questões para o Senhor como
um outro olhar sobre a sua obra. Gostaria de pedir-lhe paciência. Mas, por outro lado, não
sei, talvez eu tenha levado a crônica muito a sério.
[FG] Não! Não, mas é sério o que está escrito ali. O que estou tentando lhe dizer é que o
que penso sobre mim no fundo está escrito nos meus poemas. Esta sua análise é uma
possibilidade, cabe a você, enquanto analista, buscar o entendimento necessário das
repostas que procura. Quando você lê minha crônica, A Idade do óbvio, você vê quem
sou eu. Não sou eu que tenho que viver. Quando você me lê, você vê quem eu sou. Mais
do que o porteiro do prédio, mais do que minha mãe, sou uma pessoa, digamos assim,
muito mais aberta porque eles não escrevem sobre tantas coisas; eu escrevo. Então,
quando escrevo, estou me mostrando. Isso revela muito de mim. Você ao ler aquela
crônica vai saber o que penso do mundo contemporâneo, do sistema capitalista e da
arte de hoje – dessa arte conceitual. Está escrito ali, é o que penso da vida. Isto está num
nível de compreensão mais aparente. Mas existe uma camada mais profunda que só na
poesia pode ser identificada essa relação.
geográfica, e esta no homem. Esta, talvez, seja também a diferença entre um poeta e um
filósofo.
[SM] Mas querendo ou não o poeta, com esse deslumbre, “antecipa” coisas que, às vezes,
nunca foram imaginadas. Peguemos o exemplo de um Rimbaud e a “representação” de
uma cidade cosmopolita do século dezenove. E um Drummond fazendo o reexame da
mundanidade desta mesma cidade.
[FG] Antecipa justamente porque essa abertura para a criação de mundo condiz com
sua não-coerência diante da realidade. O filósofo se aproxima do mundo armado com
suas teorias, o poeta não. O mundo não está dado, não é imediatamente compreensível.
Sendo assim, nós nos armamos de uma teoria e procuro entender o mundo a partir da
visão filosófica de mundo produzida. E o que está fora disso, não vejo. O poeta
310
[SM] Na sua obra há um exemplo muito forte disso: o livro de narrativas Cidades
inventadas (1998). Em 1962 o Senhor escreveu a narrativa Ufu, que comporia o livro mais
tarde. Fiz uma reflexão de que muito do que viria a ser estudado em termos de velocidade
estavam, de algum forma, contemplados intuitivamente ali.
[FG] Interessante. Quando escrevi esse texto estava em Nova Iorque. Nova Iorque não
era inda aquilo que expressei no texto e o que hoje é. Por isso que lhe digo: o poeta vai
na intuição da descoberta. Neste caso, é a intuição da cidade grande que vai crescendo.
Foi uma espécie de sensação que eu tive do que seria uma cidade do futuro a partir do
que vi ali, naquele presente.
[SM] Como é que foi o processo de constituição de um livro que levou um pouco mais de
quarenta anos de elaboração, como Cidades Inventadas? O que lhe ajudou a compor esse
livro?
[FG] A primeira narrativa que escrevi foi em 1955 e retratava a cidade de Odon. Não sei
por que escrevi aquele texto: a história de uma cidade maluca. “Um amontoado de casas
velhas no meio do deserto”. Essa cidade é um pouco São Luís do Maranhão: uma cidade
a margem da história. Uma cidade que não constava no mapa. Estava ignorada, lá.
Então, não sei por que escrevi isso. Escrevi, talvez, para dizer que as coisas existem
independentes de estarem no mapa. As pessoas existem mesmo no anonimato, não é
preciso estar estampadas no jornal ou na televisão. As pessoas existem nos lugares
independentes do mapeamento da mídia. Não é a televisão que dá a condição de
existência das pessoas. Aí fui escrevendo outras histórias. Fui a Nova Iorque e escrevi
Ufu. Me entusiasmei e comecei a inventar várias cidades. Até agora, escrevendo
crônicas, invento cidades. Hoje mesmo inventei duas cidades: Cidades inimigas. Na
311
verdade uma é a China e a outra o Ocidente. A China socialista que virou um paraíso do
capitalismo. Onde a classe operária é escrava, ganha uma miséria e os capitalistas se
transferiram para lá, para explorar os trabalhadores aprisionados pelo sistema chinês.
Seria a maior ironia que podia acontecer no mundo! Você cria um país socialista. “A
classe operária está no poder!” [Em tom irônico]. Só que não está – os burocratas estão
no poder. “Não precisa de sindicato, de reivindicação, porque nós estamos no poder!”.
Aí, agora, o socialismo chinês transformou-se num capitalismo de estado onde se vê
que não existe organização sindical, não existe reivindicação, não existe FGTS, não
existe décimo terceiro, o salário do operário é a metade do salário mínimo daqui. É
claro, então, que, reportando ao velho Marx, a mais-valia é a fonte de riqueza do
capitalismo… E o que é a mais-valia? É a diferença entre o valor do objeto, o valor
investido pelo trabalho e o que ele é vendido. Então, se eu não pago salário, como na
escravidão, a mais-valia é total. Se pago um salário minguado a mais-valia é enorme…
Agora se pegarmos a Alemanha atual, onde as reivindicações a serem atendidas são
grandes, o capitalista já está “sobre o pescoço”. Então os capitalistas europeus estão
indo para China onde eles não pagam nada, ou quase-nada. Vendo isso tudo, escrevi
sobre duas cidades: Cidades inimigas. Tenho comigo que o Ocidente tende a vencer essa
batalha.
discutir pautas mas não estávamos dentro da máquina. Não sabíamos o que se passava
dentro do partido. Foi diferente quando eu estava na clandestinidade e no exílio. Aí,
nesse momento, passei a estar dentro da máquina do partido. Aí, realmente, eu tive
algumas surpresas.
[SM] Mudando um pouco de assunto. E o cotidiano em sua poesia que me parece firmar a
vida diária no mundo para protegê-la do próprio efêmero que insisti atacá-la. O que
pensa sobre isso?
[FG] De algum modo toda a atividade artística pretende isso, salvo algumas exceções.
Embora não seja uma invenção explícita. Quer dizer, quando escrevo um poema não
quer dizer que vou salvar as coisas da precariedade. Mas no fundo é isso que se
pretende. Você tenta passar para o outro a tua experiência, a tua descoberta que é uma
descoberta que o poeta acaba de ter da existência por meio da atividade artística. E ao
mesmo tempo que você faz isso, você está tornando aquilo permanente no âmbito do
313
[SM] Tenho uma curiosidade. O Senhor está aqui, neste lugar, e é provável que quase tudo
o que o Senhor escreve atualmente advenha daqui, da Rua Duvivier. Uma unidade mínima
de espacialização, como dizem os geógrafos. É possível, então, falar do mundo estando em
qualquer lugar. O que o Senhor pensa disso?
[FG] As pessoas têm que ficar em algum lugar. As pessoas, assim como as coisas, estão
em algum lugar. Numa cidade, p. ex. Muitas podem até querer estar em lugar nenhum.
Mas eu, p. ex., tenho que estar em um lugar. Se não morasse aqui, moraria em Ipanema.
Em algum lugar o indivíduo tem que morar. Então, evidentemente, o fato de eu estar
aqui me faz pensar sobre coisas a partir de coisas que estão aqui, que me são
cotidianas, que me cercam, que constituem a minha realidade. Essa árvore em minha
janela, a esquina com os mendigos, a esquina com ambulantes, os pombos que estão na
rua, o barulho da rua, tudo isso constitui um realidade específica: a minha. E isto eu
menciono, pode se dizer assim, nos meus poemas. Eu sou muito, como posso dizer,
geográfico nesse sentido.
[SM] Isso, então, está implícito para a realização dos poemas, não é?
[FG] Sempre menciono essas coisas nos meu poemas. Como pode tal indivíduo que está
pensando sobre meia dúzia de bananas [alusão ao poema Bananas Podres publicado no
livro Na vertigem do dia] apodrecendo sobre uma geladeira na Rua Duvivier? A idéia de
315
que as coisas estão em algum lugar é fascinante. Por exemplo, a questão mais
surpreendente para mim é o fato de que bananas apodrecendo é um processo químico
complexíssimo. Observe. Uma fruta que está se transformando e que vai virar água, vai
virar suco e que depois vai se dissolver. Um processo da realidade, de dissolução de
uma forma viva. E isso está acontecendo na Rua Duvivier [Bairro Copacabana no Rio de
Janeiro]. É como se eu estivesse dizendo: ‘Um fenômeno extraordinário está
acontecendo na Rua Duvivier’. Só que esse fenômeno não vai além de meia dúzia de
bananas apodrecendo na Rua Duvivier.
[SM] A cidade e o cotidiano também são constantes em sua poética. Poemas como A Vida
Bate, Improviso Ordinário sobre a Cidade Maravilhosa nos revelam que o cotidiano está
muito presente na sua poesia. Há uma necessidade de falar do cotidiano para
salvaguardá-lo do efêmero?
[FG] Olha, o cotidiano é surpreendente. Muito mais fantástico do que qualquer fantasia
é a realidade. Nada é mais rico do que a realidade. Só o fato de existir o mundo já é uma
coisa extraordinária. Dentro dessa coisa extraordinária que é a vida, nós temos que
criar um mundo compreensível, cheio de cotidiano; de conflito. Como Einstein disse
uma vez, é preciso entender o mundo por etapas: ao menos aqui temos que entendê-lo
assim. Querer entender o todo, sem entender as partes, não dá. É a forma que tentamos
explicar o mundo. E o cotidiano revela tudo isso. É fantástico o mundo. Vivemos num
mundo organizado, conceitualizado para poder viver. É impossível viver no espanto. É
impossível viver permanentemente na incompreensão. Por isso, com nossa visões de
mundo, organizamos as coisas. E o cotidiano está aí, faz parte disso. É por isso que, de
repente, um cheiro de tangerina lhe revela que toda teoria não explica o mundo.
[SM] E aí…?
[FG] E aí é que nasce a poesia. É o que eu chamo de espanto. No momento em que não
se pode viver no espanto vinte quatro horas por dia, no momento em que o mundo
organizado, conceitualizado é arrebentado por um cheiro de tangerina [alusão ao
poema O cheiro da tangerina publicado no livro Barulhos], então, aí, revela-se o que é
inexplicável no mundo, o que é de cada um, a maravilha do mundo. Vivemos em um
mundo organizado, conceitualizado para poder viver. Mas no momento em que esse
mundo é arrebentado por um cheiro de tangerina, então aí se revela o que é
316
inexplicável no mundo. Daí nasce o poema. É o que eu chamo de espanto. Daí nasce o
poema. Porque as coisas estão permanentemente abafadas pelos conceitos.
[SM] É por isso que alguns dos seus poemas tentam afirmar a presença do cotidiano nesse
mundo. Pergunto, o Senhor acredita que o horizonte para a humanidade são os espaços
“impessoais”?
[FG] Hoje o que eu digo é que ninguém vive numa cidade de dez milhões de habitantes.
Ninguém vive! Todo mundo vive numa pequena cidade. Eu vivo numa cidade de trinta,
quarenta pessoas que se chama meus amigos. Na metrópole São Paulo ninguém
conhece. As pessoas vivem em comunidades pequenas, em família, entre amigos. Essa é
uma verdade. Os demais compõem outros núcleos que se mostram pela necessidade de
partilhar o que for com núcleos vizinhos. É assim que é. É impossível viver numa cidade
de dez, vinte milhões de habitantes! Não como conhecer. O que é conviver? É passar
por alguém na rua? As pessoas nem se conhecem e por isso não convivem. Daí decorre
uma série de outros fatores. A desesperada necessidade que alguém tem do outro. Do
outro concreto e não abstrato, para poder construir uma outra humanidade. Creio que
daí, desse concreto, seja importante valorizar o cotidiano, valorizar as pessoas. A
pessoa existe para o outro. O sentido da existência está aí. Isso é o mundo humano.
Dizer a palavra que a pessoa merece. Pois se você não diz a palavra, você está
desfazendo o outro, desconhecendo essa pessoa enquanto ser humano. É disso que
temos que viver. Isto tem haver com o projeto de cidade que estamos construindo.
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