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Direito Das Obrigações II

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DISCLAIMER

Estes apontamentos não dispensam o estudo dos manuais recomendados pelo


Professor Regente e Assistente.

DIREITO DAS OBRIGAÇÕES II

PROF. ROMANO MARTINEZ

Faculdade de Direito de Lisboa


Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

RESPONSABILIDADE OBJECTIVA

Responsabilidade Civil

§1: GENERALIDADES. Antes de estudarmos a responsabilidade objectiva, seja ela pelo

risco ou pelo sacrifício, cumpre tecer algumas considerações preliminares e recordar os

pressupostos gerais da responsabilidade civil.

A responsabilidade civil é uma fonte de obrigações, maxime a obrigação de

indemnizar que, como sabemos, é exclusivamente legal: encontra-se, por isso, tipificada na

lei [arts. 562º ss].

Enquanto excepção à regra geral de imputação dos danos na esfera jurídica onde

ocorrem, a responsabilidade civil consiste no conjunto de factos que dão origem à obrigação

de indemnizar os danos sofridos por outrem [ressarcibilidade].

Relativamente à distinção entre responsabilidade subjectiva e objectiva, importa

recordar:

• Responsabilidade subjectiva ou delitual: a responsabilidade civil pressupõe,

regra geral, culpa [art. 483º-2]. A culpa deve ser aqui entendida como um

juízo moral ou de censura da conduta, seja ela praticada com dolo ou mera

culpa. A actuação do agente é, assim, ilícita e culposa: um delito, enfim.

o As responsabilidades obrigacional e extra-contratual são, em regra,

subjectivas, assentando no princípio da culpa: vg devedor que falta

ao cumprimento da obrigação, com culpa [responsabilidade

subjectiva obrigacional].

• Responsabilidade objectiva: constitui uma excepção à regra geral da

responsabilidade subjectiva ou delitual [art. 483º-2], já que o dano é

provocado, ainda que independentemente de culpa do agente. Pressupõe

um dano, como toda a responsabilidade civil, mas não existe delito.

Modalidades de responsabilidade objectiva, consoante o título de

imputação:

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o Pelo risco: tipificada na lei [art. 483º-2], aplica-se às práticas de

actividades humanas lícitas, normalmente geradoras de prejuízo [vg

circulação automóvel]; do risco inerente a essas actividades resulta

o dever de reparar o dano.

 Funções:

• Função principal: reparação do dano

• Função acessória: prevenção

o Pelo sacrifício ou por acto lícito: a lei autoriza o agente a agir,

causando prejuízos a outrem e correlativa obrigação de

compensação desses danos [vg constituição de servidão legal de

passagem].

 Função exclusiva: reparação do dano.

o As responsabilidades obrigacional e extra-contratual podem ser,

excepcionalmente, objectivas, independentemente de qualquer

culpa: vg devedor que falta ao cumprimento da obrigação, sem

culpa [responsabilidade objectiva obrigacional, art. 800º].

§2. PRESSUPOSTOS. Sumariamente iremos enunciar cada um dos pressupostos da

responsabilidade civil.

Face ao disposto no art. 483º-1:

• Facto

• Ilicitude [“violar ilicitamente”]

o Não se verifica na responsabilidade por facto lícito

• Culpa [“com dolo ou mera culpa”]

o Prescinde-se na responsabilidade pelo risco

• Dano [“pelos danos”]

• Nexo de causalidade entre facto e dano [“resultantes da violação”]

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1. O facto voluntário do lesante remete-nos para um comportamento humano,

dominável pela vontade, expressão da conduta de um sujeito responsável. Não se exige

intenção, nem sequer actuação [contra o que a redacção do art. 483º-1 pode indiciar],

bastando a conduta sob o controlo da sua vontade.

O facto voluntário pode revestir duas formas:

• Acção [art. 483º]: existe um dever genérico de não lesar direitos alheios

[neminem laedere], pelo que não se exige qualquer dever específico.

• Omissão [art. 486º]: exige-se um dever específico de praticar o acto omitido,

já que não existe um correspondente dever genérico de evitar a ocorrência de

danos para outrem, o que tornaria a vida em sociedade insustentável e

multiplicaria as ingerências na esfera jurídica alheia.

o O dever específico de garante pode ser criado por contrato [vg

alguém estar obrigado a vigiar um doente mental, evitando que se

suicide].

o Ou pode ser imposto pela lei [arts. 491º-493º]. No direito alemão, a

partir de disposições semelhantes, tem-se defendido a doutrina dos

deveres de segurança no tráfego ou dos deveres de prevenção do

perigo delituais, alargando-se a responsabilidade por omissão para

além dos casos tipificados na lei. Esta doutrina teve influências entre

nós [ANTUNES VARELA, MENEZES CORDEIRO e SINDE MONTEIRO].

Na responsabilidade objectiva, o facto que a despolete essa imputação pode ser um

facto natural, um facto voluntário do agente, ou ainda um facto do próprio lesado [vg

acidentes de trabalho].

2. A ilicitude deve aqui ser entendida enquanto um juízo de desvalor atribuído pela

ordem jurídica ao:

• Resultado da conduta do agente [teoria do desvalor do resultado].

• Comportamento do agente [teoria do desvalor do facto]: posição maioritária.

A ilicitude distingue-se da ilegalidade, na medida em que esta pressupõe a

inobservância de um ónus jurídico: será ilícita a condução em excesso de velocidade, e ilegal

a venda de um imóvel verbalmente, vg.

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Nesta sede relevam as causas de justificação/exclusão da ilicitude [nunca

“justificação da ilicitude”!].

3. A culpa é pressuposto normal da responsabilidade civil, sendo a responsabilidade

objectiva excepcional, como já tivemos oportunidade de mencionar [art.483º-2]. Hoje,

autores como MENEZES CORDEIRO consideram-na um juízo de censura, em sentido

normativo, em relação à actuação do agente, que poderia e deveria ter agido de outro modo.

A sua conduta é, assim, axiologicamente reprovada.

As presunções de culpa invertem o ónus da prova [art. 350º-1] e são ilidíveis, nos

termos gerais [art. 350º-2]: as dificuldades de prova inerentes torna mais segura a obtenção

de indemnização, pelo lesado. Para ROMANO MARTINEZ e MENEZES LEITÃO, o disposto nos

arts. 491º-493º corresponde, na verdade, a exemplos de responsabilidade subjectiva, e não

objectiva.

4. O dano é condição essencial de responsabilidade: por muito censurável que seja o

comportamento do sujeito, não caberá recurso às regras da responsabilidade civil se as coisas

correrem bem e ninguém sair lesado. Ao contrário do direito penal, onde, como sabemos, a

tentativa é punível. MENEZES LEITÃO entende que o dano deve ser definido num sentido

fáctico e normativo, enquanto frustração de uma utilidade que era objecto de tutela jurídica.

5. O art. 483º limita a indemnização aos “danos resultantes da violação”: esse

comportamento deve ser causa dos danos sofridos, existindo um nexo de causalidade entre o

facto e o dano.

• Teoria do fim da norma violada: teoria do escopo da norma violada

o É apenas necessário averiguar se os danos que resultaram do facto

correspondem à frustração das utilidades que a norma visava conferir

ao sujeito através do direito subjectivo ou da norma de protecção.

Questão que acaba por se reconduzir a um problema de interpretação

do conteúdo e fim específico da norma que serviu de base à

imputação dos danos.

o Para MENEZES LEITÃO é esta a melhor forma de determinação do

nexo de causalidade. A obrigação de reparar os danos causados

constitui uma consequência jurídica de uma norma relativa à

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imputação de danos, o que implica que a averiguação do nexo de

causalidade apenas se possa fazer a partir da determinação do fim

específico e do âmbito de protecção da norma que determina essa

consequência jurídica.

§3: RESPONSABILIDADE OBJECTIVA. Na responsabilidade objectiva o dano é

provocado, ainda que independentemente de culpa do agente: pressupõe-se, ainda, um dano,

comum a toda a responsabilidade civil, embora não exista qualquer delito.

A responsabilidade objectiva engloba duas modalidades:

• Responsabilidade pelo risco [arts. 499º ss, 1348º-2 e legislação avulsa]

• Responsabilidade por factos lícitos ou pelo sacrifício:

o Obrigacional [vg responsabilidade por revogação de contrato de

mandato].

o Extra-contratual [vg responsabilidade por danos causados em estado

de necessidade ou pelos prejuízos causados por servidão legal de

passagem].

Ao contrário da responsabilidade subjectiva, prevista na cláusula geral do art. 483º-1,

os casos de responsabilidade objectiva são excepcionais [insusceptíveis de aplicação

analógica, art. 11º], taxativos, e só pode ser invocada se existir uma previsão legal específica

que a contemple [art. 483º-2].

Por força do art. 499º são-lhe aplicáveis, mutatis mutandis, as normas da

responsabilidade civil em geral [arts. 483º ss], exclusive as disposições respeitantes à culpa.

Responsabilidade pelo Risco

§1: NOÇÃO. A responsabilidade pelo risco é, ainda, uma modalidade de

responsabilidade civil: excepção à regra geral de imputação dos danos na esfera jurídica onde

ocorrem, dando origem à obrigação de indemnizar os danos sofridos por outrem

[ressarcibilidade].

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Delimita-se, nestes termos, uma determinada esfera de riscos pela qual deve

responder outrem que não o lesado, cumulando-se as seguintes concepções:

• Risco criado: cada pessoa que cria uma situação de perigo deve responder

pelos riscos resultantes, independentemente de culpa.

• Risco-proveito: a pessoa deve responder pelos danos resultantes das

actividades que tira proveito, independentemente de culpa [brocardo ubi

commoda, ibi incommoda].

o Para ROMANO MARTINEZ, os casos de responsabilidade pelo risco

previstos no CC apenas têm como fundamento esta concepção.

• Risco de autoridade: a pessoa deve responder pelos danos resultantes das

actividades que tenha sob seu controlo, independentemente de culpa.

Ainda que se prescinda da culpa enquanto título de imputação, não é, em rigor,

irrelevante a existência ou não de culpa, já que a verificação desse “não-pressuposto” pode

condicionar a aplicação de determinadas disposições legais, a saber:

• Medida da culpa em caso de pluralidade de responsáveis [art. 497º-2, ex vi

art. 499º]

• Limites máximos da responsabilidade [art. 508º]

• Culpa do lesado [art. 570º]

• Limitação da indemnização no caso de mera culpa [art. 494º, ex vi art. 499º]

e fixação equitativa da indemnização por danos não patrimoniais [art. 496º-3

ex vi art. 499º]

Por outro lado, e de harmonia com a introdução supra, a responsabilidade objectiva

pode ser obrigacional, vg devedor que falta ao cumprimento da obrigação, sem culpa

[responsabilidade objectiva obrigacional, art. 800º], mais concretamente tratando-se de

responsabilidade pelo risco:

• Obrigações de garantia: adstrição a uma prestação ou a um evento que não é

controlável pelo obrigado, respondendo pelo risco da não obtenção do

resultado que se comprometera a produzir.

o Cláusula de assunção do risco: vg contratos de seguro ou o art. 800º.

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Eis os exemplos de responsabilidade pelo risco que estudaremos:

• Responsabilidade do comitente [art. 500º]

• Responsabilidade do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas [art.

501º]

• Danos causados por animais [art. 502º]

• Acidentes causados por veículos de circulação terrestre [arts. 503º-506º]

• Danos causados por instalações de energia eléctrica ou gás [arts. 509º e 510º]

• Legislação avulsa:

o Responsabilidade do produtor

o Embarcações de recreio

o Aeronaves

o Ultraleves

§2: RESPONSABILIDADE DO COMITENTE. A responsabilidade do comitente pelo risco,

prevista no art. 500º, não é, para ROMANO MARTINEZ, um verdadeiro caso de

responsabilidade pelo risco, embora seja efectivamente independente de culpa, uma vez que

não assenta no pressuposto do risco.

Cumpre estabelecer a seguinte delimitação:

• Relações externas [com o lesado, nº 1 e 2]: a responsabilidade pelos danos

causados pelo comissário no exercício das suas funções é solidária, uma vez

que responde aquele que encarrega outrem de qualquer comissão [o

comitente], independentemente de culpa sua na escolha do comissário, na

sua vigilância ou nas instruções que lhe deu.

• Relações internas [entre comitente e comissário, nº 3]: o comitente que

satisfizer a indemnização supra tem o direito de exigir do comissário o

reembolso de tudo quanto haja pago [direito de regresso], excepto se houver

também culpa sua, caso em que lhe será aplicável o disposto no art. 497º-2

[concorrência de culpas].

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o Garante-se o efectivo pagamento da indemnização ao lesado, pelo

comitente, uma vez que o património dos comissários não suporta, na

maior parte dos casos, o pagamento de elevadas indemnizações.

o Os comissários actuam no interesse e por conta do comitente, pelo

que deve este garantir ao lesado o pagamento da indemnização.

Eis os pressupostos deste regime de responsabilidade objectiva do comitente pelos

factos danosos praticados pelo comissário, no exercício das suas funções:

• Relação de comissão:

o Tarefa ou função realizada no interesse e por conta de outrem que,

acrescenta MENEZES LEITÃO, possa ser imputada ao comitente [e não

face a toda e qualquer prestação de serviços lato sensu]: actos

praticados exclusivamente no seu interesse e por conta sua [culpa in

instruendo], tenham eles o carácter duradouro ou isolado. Exemplos:

• Contrato de trabalho [art. 1152º]

• Contrato de mandato [art. 1157º]

• Exclui-se o desempenho de funções com autonomia:

prestação de serviço de depósito [art. 1185º], empreitada

[art. 1207º] e contrato de transporte.

o [ Liberdade de escolha do comissário pelo comitente: culpa in

eligendo ] – MENEZES CORDEIRO, contra MENEZES LEITÃO e RIBEIRO

DE FARIA. Ao contrário do que sucede no direito alemão, não se

admite entre nós que o comitente possa ilidir a responsabilidade

através da demonstração de que escolhera diligentemente o

comissário.

o [ Nexo de subordinação ou controlo do comissário ao comitente: culpa

in vigilando ] – ANTUNES VARELA e ALMEIDA COSTA, contra MENEZES

LEITÃO e MENEZES CORDEIRO. A exigência deste pressuposto só faria

sentido se a concepção da responsabilidade do comitente se baseasse

na doutrina do risco de autoridade, supra §1.

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Nota: no nosso direito, basta que o comissário esteja no exercício das suas funções,

uma vez que a responsabilidade do comitente se mantém mesmo que o comissário

desrespeite as suas instruções ou actue intencionalmente [art. 500º-2].

• Facto danoso praticado pelo comissário no exercício das suas funções:

o A função que fora confiada ao comissário funciona como delimitação

da zona de riscos a cargo do comitente.

o MENEZES LEITÃO não concorda com a interpretação restritiva feita

pela doutrina relativamente a este pressuposto [doutrina essa que

exclui deste âmbito os danos por ocasião da função e os danos

praticados com abuso de funções, exigindo um nexo instrumental

entre a função e os danos - ANTUNES VARELA e ALMEIDA COSTA],

uma vez que tal interpretação retiraria alcance prático ao preceito e

não tem qualquer apoio legal. Sugere, assim, um nexo etiológico

entre a função e os danos, incluindo situações de desrespeito e de

abuso de funções: basta que os danos sejam originados no exercício

da função, sejam eles por actos intencionais do comissário, praticados

em desrespeito das instruções, ou não [nº 2].

o ROMANO MARTINEZ inclui actos preparatórios e posteriores.

Exemplo: age no exercício das suas funções o operário que deixa cair uma telha ou o

operário que, fumando enquanto trabalha, provoca um incêndio. Do mesmo modo, responde

o Banco pelo empregado bancário que haja burlado os clientes. O comitente responde ainda

pelos actos praticados pelo comissário em desrespeito das instruções: o segurança de uma

discoteca que deliberadamente agride um cliente ou o operário que conduz uma máquina em

desrespeito das ordens do comitente, vg.

• Responsabilidade do comissário:

o Sobre o comissário recaia também a obrigação de indemnizar.

o Pergunta-se: exige-se culpa do comissário ou basta qualquer

imputação ao comitente, mesmo que a título objectivo [sem culpa]?

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• Responsabilidade subjectiva, com culpa: ANTUNES VARELA e

RUI DE ALARCÃO [“excepto se houver também culpa da sua

parte” – nº 3] – pressupõe culpa do comissário.

• Responsabilidade subjectiva ou objectiva: ALMEIDA COSTA,

MENEZES CORDEIRO e ROMANO MARTINEZ [“desde que sobre

este recaia também a obrigação de indemnizar” – nº 1] – o

comissário responde pelos danos a qualquer título, com ou

sem culpa.

• MENEZES LEITÃO e RIBEIRO DE FARIA: a lei não exige uma

demonstração efectiva de culpa do comissário, bastando a

mera culpa presumida [art. 500º-1], pelo que acolhem a

primeira posição.

Propendemos para a exigência de culpa do comissário [primeira posição]: o nº 3

refere expressamente a possibilidade de “também” existir culpa do comitente, pelo que se

nenhuma culpa houver, de nenhum dos intervenientes da relação de comissão, não há

qualquer direito de regresso do comitente e deve ser este a suportar a totalidade da

indemnização. Neste caso, ROMANO MARTINEZ propõe a eventual aplicação analógica do

disposto no art. 507º, uma vez que a responsabilidade pelo risco recai sobre várias pessoas e é

solidária.

Se o comitente actuar com culpa exclusiva [in instruendo, in eligendo ou in

vigilando], nada pode exigir em regresso [o nº 3 só opera com culpa do comissário], uma vez

que a culpa afasta o risco. Diferentemente, havendo concurso de culpas, a responsabilidade é

solidária, na medida das respectivas culpas [art. 497º-2 ex vi art. 500º-3].

§3: RESPONSABILIDADE DO ESTADO OU DE OUTRAS PESSOAS COLECTIVAS

PÚBLICAS. Segundo o disposto no art. 501º, o Estado e demais pessoas colectivas públicas [IP,

EP, Universidade Pública, etc.], quando haja danos causados a terceiro pelos seus órgãos,

agentes ou representantes no exercício de actividades de gestão privada, respondem

civilmente por esses danos nos mesmos termos do art. 500º.

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Compreende-se que esta remissão respeite apenas a actos de gestão privada [danos

que poderiam ter sido praticados por particulares, uma vez que foram causados por entidades

públicas desprovidas de ius imperii/poderes de autoridade]. O âmbito é o do Direito privado,

e não do Direito Constitucional ou Administrativo.

Os requisitos são, por isso, os mesmos:

• Relação de comissão

• Facto danoso praticado no exercício da função, ainda que a actuação tenha

sido intencional ou tenha desrespeitado as instruções recebidas

• O órgão, agente ou representante pode ser responsabilizado a título de culpa

Exemplo: acidente de viação causado pelo motorista do Ministro da Cultura.

§4: DANOS CAUSADOS POR ANIMAIS. Quem utilizar, no seu próprio interesse,

quaisquer animais, responde pelos danos que causarem, desde que resultem do perigo

especial que envolve a sua utilização [art. 502º].

Recorde-se que o art. 493º-1 atribui já a responsabilidade [subjectiva] ao vigilante de

animais, cuja culpa se presume. As duas responsabilidades podem, naturalmente, ser

cumuladas, caso em que o vigilante [vg o tratador] e o utilizador do animal [vg o proprietário]

responderão solidariamente perante o lesado [relações externas], com direito de regresso do

proprietário sobre o tratador [relações internas].

Cumpre apreciar os pressupostos de aplicação desta norma:

• Utilização de animais no seu próprio interesse [ubi commoda, ibi

incommoda]:

o Proprietário do animal – cuja responsabilidade é excluída pela

utilização de:

 Usufrutuário

 Comodatário

 Simples possuidor

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o Locação: respondem tanto o locatário [que utiliza o animal no seu

interesse] como o proprietário [que recebe o preço locativo] –

ANTUNES VARELA e MENEZES LEITÃO.

• Danos resultantes do perigo especial que envolve a utilização do animal:

o A responsabilidade objectiva é restringida a uma zona de riscos

normalmente conexos com a utilização do animal.

 Há responsabilidade objectiva: coice do cavalo em fuga de um

incêndio ou o cão que morde uma pessoa, vg.

 Exclui-se a responsabilidade objectiva: queda causada pelo

susto de um cão a ladrar ou o cão que, caído de uma varanda,

atinge um transeunte, vg – danos que, embora causados pelo

animal, são exteriores aos perigos da sua utilização.

o Havendo culpa do lesado, cabe aplicação do disposto no art. 570º [vg

alguém que, desrespeitando um sinal, faz uma festa a um cão feroz] –

o tribunal deve decidir se mantém, reduz ou exclui a indemnização

[cfr. infra §5].

Compreende-se que fiquem excluídos do âmbito de aplicação desta norma animais

inofensivos como peixes de aquário ou tartarugas [ROMANO MARTINEZ].

§5: ACIDENTES CAUSADOS POR VEÍCULOS DE CIRCULAÇÃO TERRESTRE. Questão

juridicamente mais controversa, em face da importância prática que assume no dia-a-dia, é a

dos pressupostos da responsabilidade objectiva pelos danos causados por veículos [de

circulação terrestre, seja ela circulação rodoviária ou ferroviária, art. 508º-3: ANTUNES

VARELA e PIRES DE LIMA], prevista nos arts. 503º ss.

Com efeito, aquele que tiver a direcção efectiva de qualquer veículo de circulação

terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário,

responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que não se encontre

em circulação [art. 503º-1]. Face a esta responsabilidade, a lei obriga à prévia celebração de

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um contrato de seguro de responsabilidade civil automóvel, sem o qual o veículo não pode

circular.

Quanto ao âmbito de aplicação do art.503º, MENEZES LEITÃO inclui os acidentes

causados por bicicletas e outros veículos não motores, contra o entendimento de ROMANO

MARTINEZ, que os exclui por não representarem qualquer perigo em especial.

Cumpre apreciar cada um dos pressupostos:

• “Direcção efectiva” do veículo: aquele que tiver um poder de facto

[conduzindo o veículo] ou que exercer um controlo sobre o mesmo

[independentemente de conduzi-lo em pessoa]. Não releva, neste caso, a

titularidade de um direito sobre o mesmo. Exemplos:

o Detentores legítimos

o Proprietário

o Usufrutuário

o Locatário

o Comodatário

o Detentores ilegítimos [esbulhadores]

o Exclui-se a responsabilidade objectiva: proprietário cujo veículo fora

furtado, cliente de táxi ou aluno em escola de condução [uma vez que

nenhum tem a direcção efectiva do veículo]; inimputáveis,

responsáveis nos termos do art. 489º [o art. 503º-2 parece exigir a

imputabilidade do agente, para exercer poderes de facto sobre o

veículo], segundo MENEZES LEITÃO [contra, ROMANO MARTINEZ].

• “Utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário”:

exclui a responsabilidade objectiva a quem conduz o veículo por conta de

outrem [comissários], uma vez que essa responsabilidade objectiva recai

antes sobre o próprio comitente.

• Danos indemnizáveis – “Danos provenientes dos riscos próprios do veículo,

mesmo que este não se encontre em circulação”: abrange todos os danos

resultantes da circulação do veículo em via pública ou em recintos privados

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[vg atropelamento de pessoas, colisão entre veículos ou embate contra

coisas] e os danos causados pelo mesmo quando imobilizado [vg incêndio do

motor ou avaria nos travões]. Exclui-se a responsabilidade objectiva pelos

riscos não conexos com o veículo [vg catástrofes naturais].

A responsabilidade do art. 503º-1 [de quem tiver a “direcção efectiva” do veículo]

exclui-se nos casos do art. 505º, sem prejuízo do disposto no art. 570º [mantendo-se essa

disposição, portanto]:

o Quando o acidente seja imputável:

 Ao próprio lesado: não se exige culpa do lesado, mas sim

exclusividade da sua conduta na produção do dano [vg

desmaio ou comportamento ditado por medo invencível do

lesado exclui a responsabilidade pelo risco]. O

comportamento causal do lesado foi causa exclusiva e única

do dano, e o acidente deixa de se poder considerar como um

risco próprio do veículo.

Nota: a lei pouco esclarece quanto a concurso de causalidade entre o facto do lesado

[seja ele culposo ou não] e a condução do veículo [respeitando a riscos próprios do mesmo].

Cumpre apreciar:

• Se o lesado actuar sem culpa, o condutor responde pelo risco e,

eventualmente, com culpa.

• Se houver culpa do lesado concorrente com a culpa do condutor aplica-se o

disposto no art. 570º-1.

• Se não se demonstrar culpa do condutor, e a culpa do lesado concorrer com o

risco próprio do veículo, exclui-se a responsabilidade do condutor [a culpa

provada/efectiva do lesado exclui o dever de indemnizar em caso de culpa

presumida] – art. 570º-2, por interpretação extensiva [ANTUNES VARELA,

PIRES DE LIMA e MENEZES LEITÃO].

o Nota ao art. 570º: exige-se culpa do lesado, e não imputação lato

sensu [vs art. 505º] e relação de concausalidade. O tribunal pode,

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

por isso, ordenar a redução ou a exclusão da indemnização. O nº 2

permite que a culpa provada do lesado exclua a responsabilidade

com culpa presumida do lesante [contra o regime extravagante da

responsabilidade do produtor, infra §7], quando ambas hajam

concorrido para a produção do dano, verificado o nexo causal.

 Acidente imputável a terceiro: também não exige culpa de

terceiro [pessoa, entenda-se], bastando que tenha sido a

única causa do dano, em termos tais que não se possa atribuir

este a um risco próprio do veículo.

• A responsabilidade pelo risco do condutor é excluída.

• Havendo concurso de culpas entre o condutor e o

terceiro, ambos respondem solidariamente perante o

lesado [art. 497].

o Quando o acidente resulte de “causa de força maior estranha ao

funcionamento do veículo”: o acontecimento imprevisível, inevitável

e exterior ao funcionamento do veículo. Exemplos:

 Ciclone

 Inundação

 Animais

 Óleo ou neve na estrada

 Não excluem a responsabilidade pelo risco: circunstâncias

relativamente ao funcionamento ou à utilização do veículo

[vg derrapagem, rebentamento de pneus ou incêndio do

motor].

A responsabilidade pelos danos causados por veículos aproveita aos seguintes

beneficiários [art. 504º]:

• Terceiros [vg transeunte, peão, etc.]

• Pessoas transportadas [vg motorista, maquinista, cobrador de bilhetes, etc.]

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• Transporte por virtude de contrato: a responsabilidade só abrange os danos

que atinjam a própria pessoa [lesões, danos morais ou dano morte] e as coisas

por ela transportadas [nº 2] – excluem-se os danos em coisas não

transportadas e os danos reflexos sofridos pelas pessoas referidas nos arts.

495º-2 e 3 e 496º-2.

• Transporte gratuito [vg boleia]: a responsabilidade apenas abrange os danos

pessoais da pessoa transportada [nº 3] – excluem-se os danos nas coisas

transportadas com a pessoa.

• São nulas as cláusulas que excluam ou limitem a responsabilidade do

transportador pelos acidentes que atinjam as pessoas transportadas [nº 4]

mas não, a contrario, aquelas que excluam a responsabilidade pelos danos

que atinjam as coisas transportadas.

A previsão da responsabilidade pelo risco nos acidentes de viação não dispensa,

contudo, a necessidade de se averiguar se existe ou não culpa do condutor do veículo: em

caso afirmativo, a sua responsabilidade é subjectiva, nos termos gerais [art. 483º-1], pelo que

não estará sujeita a qualquer limite máximo de indemnização [art. 508º, infra], abrangendo

todos os danos sofridos pelo lesado [arts. 562º ss]. Salvo presunção legal de culpa do lesante,

é ao lesado que cumpre provar a culpa do primeiro [art. 487º-1]. Tradicionalmente,

concebeu-se a condução de veículos enquanto uma actividade perigosa que presumiria a

culpa do condutor, nos termos do art. 493º-2. Um assento do STJ afastou esse entendimento,

pelo que o lesado não beneficia com a pretensão da responsabilidade subjectiva do condutor,

uma vez que terá que fazer prova [por vezes verdadeiramente probatio diabolica] a esse

respeito. MENEZES LEITÃO propõe uma interpretação restritiva do assento, considerando a

condução de veículos enquanto uma actividade perigosa em três situações [art. 493º-2]:

• Veículos utilizados em provas desportivas

• Transporte de materiais explosivos ou inflamáveis

• Condução de veículo sob o efeito de álcool e/ou estupefacientes

A lei consagrou, todavia, um caso de responsabilidade por culpa presumida neste

âmbito: o condutor de veículo por conta de outrem [comissário] responde pelos danos que

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causar, salvo se provar que não houve culpa da sua parte [art. 503º-3, 1ª parte]. Contudo, se

o fizer fora do exercício das suas funções de comissário, responderá nos termos do nº 1, supra

[nº 3, 2ª parte], como se tivesse a direcção efectiva do veículo [no seu interesse próprio] – o

comissário só é responsável pelo risco se conduzir fora do exercício das suas funções,

utilizando o veículo no seu próprio interesse e presumindo-se culpado. Em todos os outros

casos, a responsabilidade pelo risco é atribuída ao comitente, que tem a direcção efectiva do

veículo e o utiliza no seu próprio interesse, ainda que por intermédio do comissário [nº 1].

A presunção de culpa do comissário [nº 3, 1ª parte] permite ao comitente, caso o

primeiro não a consiga ilidir, exercer contra ele o direito de regresso [relação interna] pela

indemnização que tenha pago ao lesado nos termos no nº 1 [relação externa].

Perguntou-se se essa presunção valeria no âmbito das relações externas, maxime para

o efeito de o lesado demandar directamente o comissário [excluindo a aplicação dos limites

máximos do art. 508º, infra, que pressupõe não existir culpa do lesante]:

• RODRIGUES BASTOS e MENEZES CORDEIRO: não. A presunção de culpa do nº

3, 1ª parte valeria apenas nas relações internas, entre comitente e

comissário.

• ANTUNES VARELA, ALMEIDA COSTA, RUI DE ALARCÃO e SINDE MONTEIRO:

sim. A presunção de culpa do nº 3, 1ª parte tem alcance externo, sendo eficaz

perante o lesado. Esta posição foi acolhida e fixada por um assento do STJ.

o ROMANO MARTINEZ: a presunção só deve valer nas relações

externas e não no direito de regresso, uma vez que o comissário

[responsabilidade subjectiva com presunção de culpa] e o

comitente [responsabilidade objectiva pelo risco] respondem

solidariamente perante o lesado.

o A lei faz recair sobre o comissário, em lugar da responsabilidade

pelo risco, uma presunção de culpa: o comissário responde por

todos os danos causados, sem qualquer limite [não sujeito ao

disposto no art. 508º], se não conseguir ilidir tal presunção.

o Compreende-se a presunção de culpa dos condutores comissários,

uma vez que dos condutores profissionais se exige uma perícia

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

superior à do condutor médio, podendo ilidir a presunção com

relativa facilidade. Por outro lado, a condução por conta de

outrem representa, normalmente, um risco de afrouxamento na

vigilância do veículo e de fadiga do comissário que conduz o

veículo horas seguidas.

O art. 506º regula em termos específicos a colisão de veículos, sem culpa: a lei

apresenta critérios de resolução de um possível conflito de imputações com base no risco.

• Se da colisão entre dois veículos resultarem danos em relação aos dois ou em

relação a um deles:

o E se nenhum dos condutores tiver culpa: a responsabilidade é

repartida na proporção em que o risco de cada um dos veículos

contribuiu para os danos [nº 1, 1ª parte] – concausalidade de

ambos os veículos.

• Em caso de dúvida, considera-se igual a medida da

contribuição de cada um para os danos [nº 2] – repartição

igualitária de danos.

• Ter-se-á em conta: veículo pesado, circulação a

velocidade superior, etc.

o E se os danos forem causados somente por um dos veículos, sem

culpa de nenhum dos condutores: só a pessoa causadora dos

danos é obrigada a indemnizar [nº 1, 2ª parte] – vg um dos

veículos embate na parte traseira de outro. Uma vez mais,

atender-se-á a quem tiver a direcção efectiva desse automóvel.

o Danos causados por culpa do condutor de um dos veículos: é este

o responsável exclusivo, uma vez que a culpa afasta o risco [art.

506º-1].

Questionou-se se a presunção de culpa do art. 503º-3, 1ª parte seria aplicável à

colisão de veículos, maxime ocorrendo a colisão entre um veículo conduzido por um

comissário e outro por um condutor no seu próprio interesse e não sendo provada a culpa de

nenhum deles. Aplicar-se-ia o critério da contribuição causal do risco dos veículos para a

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

produção dos danos ou, pelo contrário, presumir-se-ia a culpa do condutor por conta de

outrem? Um assento do STJ fixou a segunda doutrina [no sentido de ANTUNES VARELA e

ALMEIDA COSTA]. Contra este entendimento pronunciou-se MENEZES LEITÃO, que preconiza

antes o recurso ao critério da contribuição causal do risco dos veículos para os danos, nos

termos do art. 506º-1, 1ª parte.

Surgindo vários responsáveis pelo dano resultante de um acidente de viação, a lei

estabelece a solidariedade como regra geral do art. 507º-1, mesmo que haja culpa de alguns,

caso em que apenas os culpados respondem, nos termos do art. 497º-2 – vg o locatário que

não fez as devidas revisões ao veículo [507º-2, 2ª parte]. Nas relações internas entre os vários

responsáveis, a repartição da responsabilidade estabelece-se de harmonia com o interesse de

cada um na utilização do veículo [art. 507º-2, 1ª parte] – aquele que tiver maior interesse na

utilização do veículo suportará a maior parte da indemnização [vg o locatário, no caso da

locação de veículos]. Se o responsável culpado pagar a indemnização, não poderá exercer

qualquer direito de regresso.

A responsabilidade pelo risco, em acidentes de viação [inclusive colisão de veículos],

está sujeita aos limites máximos legais constantes do art. 508º, com as alterações de 2004:

quando não haja culpa do responsável, a indemnização tem como limite máximo o capital

mínimo do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel [nº 1] – o limite máximo dos

danos cobertos pelo seguro, uma vez que se assiste a uma transferência de risco por parte do

responsável à seguradora, que será demandada em juízo [a seguradora não é, todavia, a

responsável, mas apenas aquela que estará obrigada a pagar a indemnização]. O mesmo se

diga quanto a transportes colectivos ou ferroviários [nº 2 e nº 3].

Os danos que excedam o valor do seguro obrigatório já não são indemnizáveis em

sede de responsabilidade objectiva, mas poderão sê-lo nos termos gerais.

§6: DANOS CAUSADOS POR INSTALAÇÕES DE ENERGIA ELÉCTRICA OU GÁS. Nos

termos do art. 509º-1, a responsabilidade pelo risco é atribuída a quem tiver a direcção

efectiva de uma instalação destinada à condução de energia eléctrica ou do gás, utilizando-a

no seu próprio interesse. ANTUNES VARELA e ALMEIDA COSTA reconduzem esta

responsabilidade a todo o tipo de actividades dessa índole, desde a produção ao

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

armazenamento, condução ou transporte [contra o entendimento restritivo de RIBEIRO DE

FARIA, MENEZES LEITÃO e ROMANO MARTINEZ].

Esta responsabilidade é afastada se, ao tempo do acidente, a instalação se encontrar

a funcionar de acordo com as regras técnicas em vigor e em perfeito estado de conservação

[nº 1, 2ª parte] – situação de ilicitude imperfeita.

Do mesmo modo, a responsabilidade é afastada se os danos forem devidos a causa de

força maior: toda a causa exterior independente do funcionamento e utilização da coisa [nº 2]

– factos naturais externos [ciclone que derruba um poste de energia, vg] ou factos do próprio

lesado [electrocussão derivada de o lesado ter subido ao poste, vg].

Naturalmente, esta categoria de responsabilidade não abrange danos causados por

utensílios de uso de energia [vg electrodomésticos] – art. 509º-3.

Quando não haja culpa do responsável, o limite máximo da indemnização é aquele

estabelecido no art. 508º-1, salvo diploma especial.

§7: LEGISLAÇÃO AVULSA.

Responsabilidade do Produtor [DL 383/89, alterado pelo DL 131/2001]

A responsabilidade objectiva do produtor, independentemente de culpa, pelos danos

causados por defeitos dos produtos que ponha em circulação surgiu nos EUA, onde se

denotava uma maior preocupação pelo consumidor.

Considerando que o ónus da prova da culpa cabe ao lesado, nos termos gerais [art.

487º], para o consumidor comum era verdadeiramente diabólica a probatio de demonstrar a

culpa do produtor, seja ela dolo ou negligência no fabrico do produto defeituoso.

Por transposição de uma Directiva Comunitária, o Estado Português legislou a matéria

no DL 383/89, alterado pelo DL 131/2001, nos seguintes termos:

• O produtor responde independentemente de culpa

[art. 1º].

• O produtor é definido em termos latos, enquanto o

fabricante do produto defeituoso, o importador, o distribuidor e o

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

fornecedor [art. 2º] – no caso das “marcas brancas” dos supermercados, é

o fornecedor que responde perante o lesado. Abrange o produtor real

[nº1] e o produtor aparente [nº2]. Esta solução apresenta vantagens

práticas: facilita a demanda em juízo do verdadeiro responsável, e não do

vendedor.

• Entende-se por produto qualquer coisa móvel, ainda

que incorporada noutra coisa, móvel ou imóvel [art. 3º].

• Um produto considera-se defeituoso quando não

oferece a segurança com que legitimamente se pode contar [art. 4º]. Esta

noção é mais restrita que aquela do art. 913º.

• Exclui-se a responsabilidade se o produtor provar

que [art. 5º]:

o Não pôs o produto em circulação: falta

de pressuposto de aplicação da responsabilidade, e não

“exclusão”.

o Inexistência do defeito no momento da

entrada do produto em circulação: limitação da

responsabilidade, e não “exclusão”.

o O defeito é devido à conformidade com

normas imperativas – exclusão da responsabilidade pela

intervenção de terceiros, como a do art. 505º.

o O defeito é imputável ao produto em

que foi incorporado, no caso de parte componente

• Se várias pessoas forem responsáveis pelos danos, é solidária a sua


responsabilidade [art. 6º]: nas relações internas deve atender-se ao risco

criado por cada responsável, à gravidade da culpa e à sua contribuição

para o dano.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Havendo concurso entre a responsabilidade do produtor e do lesado ou


de terceiro, a responsabilidade do produtor não é excluída

automaticamente [art. 7º], contra o que dispõe o art. 570º.

• São indemnizáveis os danos resultantes de morte ou de lesão pessoal,


bem como os danos em coisa diversa do produto defeituoso [art. 8º].

• Os limites da responsabilidade são mínimos, ao invés do art. 508º: só


há responsabilidade por danos superiores a € 500 [art. 9º, alterado]. A

versão original previa limites máximos, mas o DL foi alterado por

exigências comunitárias. A responsabilidade do produtor segurado é

ilimitada, desde o dano seja superior a € 500, pelo que se o valor da

indemnização exceder o limite máximo pelo qual a seguradora do

produtor responde, este suporta-o sozinho.

• Prazo de caducidade: dez anos [art. 12º].

Em conclusão, este diploma pretendeu cumular e integrar a responsabilidade delitual

e contratual, em termos tais que supera a tradicional summa divisio entre ambas, segundo

ROMANO MARTINEZ.

Embarcações de Recreio [DL 329/95]

O diploma aplica-se a todo o engenho ou aparelho, de qualquer natureza, com

comprimento entre 2,5 metros e 24 metros, utilizado como meio de deslocação na água, sem

fins lucrativos [art. 3º].

O comandante representa a embarcação de recreio junto das autoridades, sendo a

pessoa responsável pelo governo e segurança do mesmo [art. 42º].

• Responsabilidade solidária do proprietário e do comandante da

embarcação de recreio, independentemente de culpa, pelo ressarcimento

de danos causados a terceiro pela embarcação, salvo se o acidente tiver

sido causado por culpa exclusiva do lesado [art. 43º].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• O seguro de responsabilidade civil ilimitada pelos danos causados a

terceiros é obrigatório [art. 44º].

Aeronaves [DL 321/89, alterado pelo DL 279/95]

Este diploma instituiu a obrigatoriedade de realização do contrato de seguro da

actividade de transporte aéreo.

• O transportador aéreo é responsável, independentemente de culpa, pelo

ressarcimento do dano morte, lesões corporais, avarias, atrasos, bagagens

etc. [art. 3º].

• Essa responsabilidade está sujeita a limites máximos [arts. 4º e 5º].

• O seguro de responsabilidade civil é obrigatório [art. 17º].

• O proprietário ou explorador da aeronave é responsável, ainda que sem

culpa, pelo ressarcimento dos danos causados a terceiros à superfície pela

aeronave em voo ou por objectos que dela se soltem [art. 10º], ou quando

esteja imobilizada [art. 11º].

• Em caso de colisão de duas ou mais aeronaves em voo ou em manobras no

solo, essa obrigação de indemnizar recai sobre o proprietário ou

explorador da aeronave que deu origem ao acidente [art. 15º]. Na

ausência de determinação, será repartida em partes iguais.

• Em caso de furto, usurpação ou comando ilícito da aeronave, mantém-se

a responsabilidade do proprietário ou explorador da mesma pela

reparação dos danos causados, com direito de regresso [art. 14º].

• Exclui-se a responsabilidade nos seguintes casos [art. 13º]:

o Tremores de terra e cataclismos naturais

o Conflitos armados e revoluções

o Utilização por terceiros de armas ou engenhos explosivos

Ultraleves [DL 238/04]

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Responsabilidade pelo Sacrifício

§1: NOÇÃO. Há responsabilidade pelo sacrifício sempre que a lei preveja o direito à

indemnização a quem viu os seus direitos sacrificados em resultado de uma actuação lícita

danosa destinada a fazer prevalecer um direito ou um interesse de valor superior. O âmbito

é, ainda, o da responsabilidade objectiva, pelo que os casos de responsabilidade pelo

sacrifício carecem de previsão legal expressa e são insusceptíveis de aplicação analógica.

Exemplos:

Responsabilidade extracontratual:

• Estado de necessidade [art. 339º]:

o É justificada a conduta do agente que sacrifica bens

patrimoniais alheios para evitar um perigo actual de um dano

manifestamente superior, do agente ou de terceiro.

o O agente deve indemnizar o prejuízo causado se o dano for

provocado por sua culpa exclusiva.

• Ingerência em prédio alheio para captura de enxame de abelhas [art.

1322º]

• Servidão legal [art. 1554º, 1559º, 1560º e 1561º]

• Apanha de frutos [art. 1367º]

• Reparações ou construções [art. 1349º]

Responsabilidade contratual:

• Revogação do mandato [arts. 1170º-1172º]

Na doutrina alemã pergunta-se a quem devem ser imputados os danos da

responsabilidade pelo sacrifício: se ao autor do sacrifício que os causou ou, pelo contrário, ao

titular do direito de valor superior, em benefício de quem esse sacrifício ocorreu.

A OBRIGAÇÃO DE INDEMNIZAÇÃO

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Indemnização

§1: NOÇÃO. A indemnização é tratada pelo CC como uma modalidade das obrigações

[arts. 562º ss], cuja fonte consiste na imputação de um dano a outrem e cujo conteúdo se

caracteriza pela prestação de um equivalente ao dano sofrido. Pretende-se, com a

indemnização, a eliminação do dano sofrido pelo credor, sendo a mesma, por isso, atribuída

no seu interesse [ressarcibilidade do dano].

Em termos processuais, a indemnização pode ser exigida sem o seu montante se

encontrar especificamente determinado [art. 569º], aquando da propositura da acção. A

mesma pode igualmente ser atribuída em termos equitativos, pelo tribunal [art. 566º-3].

Da articulação dos arts. 562º e 566º-1 resulta a primazia da restauração ou

reconstituição natural/in natura sobre a indemnização em dinheiro. Com efeito, a obrigação

de indemnização estabelece-se primordialmente através da reparação do objecto destruído

ou da entrega de objecto idêntico [concepção real de dano]. O credor/lesado é posto na

situação que existiria se não se tivesse verificado o dano.

Quanto tal reconstituição natural não seja possível [infungibilidade ou impossibilidade

do objecto], não repare integralmente os danos ou se afigure excessivamente onerosa para o

devedor/lesante [interpretada em termos restritivos – apenas quando a reconstituição natural

se apresentar como um sacrifício manifestamente desproporcionado para o lesante, contrário

à boa fé.], a indemnização é fixada em dinheiro [sucedâneo pecuniário].

Nestes casos, a indemnização em dinheiro é calculada mediante recurso à

denominada teoria da diferença [art. 566º-2]: tem como medida a diferença entre a situação

patrimonial do lesado na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria

nessa data se não existissem danos [situação patrimonial hipotética se não existissem danos].

O dano é avaliado em termos patrimoniais, mediante a apreciação concreta das alterações

verificadas no património do lesado [a repercussão da supressão do bem no património do

lesado, enfim], e comparação entre duas situações patrimoniais presentes [situação

patrimonial real e hipotética].

A teoria da diferença é de aplicação limitada, uma vez que:

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Exclui o cálculo de:

o Danos não patrimoniais

o Danos futuros

o Danos de natureza continuada: vg alguém que, em consequência de

uma lesão, vê reduzida a sua capacidade de trabalho – deve ser

atribuída uma indemnização em renda vitalícia ou temporária [art.

567º], colmatando-se a perda continuada de rendimentos, pelo

lesado.

• Não tem lugar quando o tribunal possa fixar a indemnização em montante

inferior aos danos causados, nos casos de mera culpa e de culpa do lesado,

vg [arts. 494º e 570º].

§2: TITULARIDADE DO DIREITO DE INDEMNIZAÇÃO. Dir-se-ia que o titular do direito

de indemnização seria apenas o lesado, na medida em que é ele o titular dos direitos ou

interesses que a lei visava proteger. Excluir-se-iam terceiros, mesmo que hajam sofrido

reflexamente danos em consequência da actuação do lesante.

Superficialmente, esta regra estaria correcta: assim, quem atropelasse um jogador de

futebol não teria que indemnizar o clube desportivo por danos reflexos, vg.

Todavia, esta regra sofre excepções, admitindo-se a terceiros a titularidade do

direito de indemnização nos seguintes casos:

• Dano-morte e danos não patrimoniais em consequência da morte da vítima

[arts. 495º-1 e 496º-2 e 3].

• Em caso de morte ou de lesão corporal, são titulares do direito de

indemnização aqueles que socorreram o lesado, bem como estabelecimentos

hospitalares, médicos, etc. [art. 495º-2].

• Os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado

prestava no cumprimento de uma obrigação natural são, igualmente, titulares

do direito de indemnização, uma vez que os alimentos são essenciais para a

sobrevivência dos seus titulares [art. 495º-3].

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MODALIDADES DE OBRIGAÇÕES

Obrigações Naturais

§1: NOÇÃO. As obrigações naturais são obrigações que se fundam num mero dever de

ordem moral ou social, cujo cumprimento não é judicialmente exigível, mas corresponde a

um dever de justiça [art. 402º] – pelo que a esmola não será uma obrigação natural, vg.

A prestação não é judicialmente exigível, pelo que a sua tutela jurídica resume-se à

possibilidade de o credor conservar a prestação espontaneamente realizada [soluti retentio],

segundo o art. 403º. Exclui-se a possibilidade de repetição do indevido [art. 476º], salvo se o

devedor não tiver capacidade para realizar a prestação [prestação realizada por incapaz:

arts. 403º e 764º-1]. Não pode ser repetido/devolvido o que foi prestado espontaneamente,

enfim.

Se a prestação for realizada espontaneamente pelo devedor [i.e., sem qualquer

coacção, art. 403º-2], já não pode pedir a restituição do que prestou, mesmo que convencido,

por erro, da coercibilidade do vínculo.

Não podem ser convencionadas livremente pelas partes, sob pena de equivaler a uma

renúncia do credor ao direito de exigir o cumprimento [art. 809º]. Exemplos:

• Obrigação prescrita [art. 304º-2]

• Jogo e aposta [art. 1245º]

• Obrigação de alimentos [art. 495º-3]

§2: REGIME LEGAL. A lei manda aplicar às obrigações naturais o regime das

obrigações civis em tudo o que não se relacione com a realização coactiva da prestação,

salvas as excepções da lei [art. 404º].

§3: NATUREZA JURÍDICA. São verdadeiras obrigações jurídicas, apesar de o seu

regime ser diferente das restantes por não se permitir a sua execução, segundo MENEZES

CORDEIRO e ALMEIDA COSTA.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

MENEZES LEITÃO entende, todavia, que não se trata de verdadeiras obrigações

jurídicas, na medida em que não existe qualquer vínculo jurídico por meio do qual uma

pessoa fique adstrita para com outra à realização de uma prestação [art. 397º]. Reconduz a

figura à doação, uma vez que o cumprimento da obrigação representa um incremento do

património do credor natural à custa do património do respectivo devedor. Distingue-se,

contudo, da doação, face à ausência do espírito de liberalidade [art. 940º].

Prestações

§1: PRESTAÇÕES DE COISA E DE FACTO. A prestação consiste no conteúdo positivo do

direito do credor.

Quanto ao objecto, as prestações podem ser:

• De coisa: cujo objecto consiste na entrega de uma coisa – a actividade do

devedor pode ser distinguida da própria coisa.

o Dare: prestar ou restituir.

• De facto: consistem em realizar uma conduta de outra ordem [vg cuidar de

um jardim] – não é possível distinguir entre a conduta do devedor e uma

realidade independente dessa conduta.

o Positivo: facere

• Material

• Jurídico

o Negativo: non facere [omissão] e de pati [sujeição]

§2: PRESTAÇÕES FUNGÍVEIS E INFUNGÍVEIS. Quanto à substituição no cumprimento,

as prestações podem ser:

• Fungíveis: a realização da prestação pode ser substituída por outrem que não

o devedor, sem prejuízo para o credor [arts. 767º-1 e 827º-830º] – susceptível

de execução específica.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o As prestações são, em regra, fungíveis: independentemente de a coisa

ser ou não fungível [art.207º], atendendo a:

• Natureza da prestação

• Interesse do credor

• Acordo das partes

• Infungíveis: só o devedor pode realizar a prestação [art. 767º-2]. A

substituição do devedor no cumprimento não é possível, pelo que a lei não

admite a execução específica da obrigação.

o Infungibilidade natural: a substituição do devedor no cumprimento

prejudica o credor.

o Infungibilidade convencional: devedor e credor acordaram

expressamente que a prestação só pode ser realizada pelo primeiro.

§3: PRESTAÇÕES INSTANTÂNEAS E DURADOURAS. Quanto ao momento em que

ocorrem, as prestações podem ser:

• Instantâneas: a execução da prestação ocorre num único momento [art. 434º-

1].

o Integral [realizada de uma só vez, vg entrega da coisa vendida]

o Fraccionada [uma única obrigação, cujo objecto é dividido em

fracções, com vencimentos intervalados, vg venda a prestações, art.

934º]

• Duradouras: a execução prolonga-se no tempo, implicando uma repetição

sucessiva de prestações isoladas [art. 434º-2]. A sua realização global

depende do decurso de um período de tempo.

o Contínua ou continuada [a prestação não sofre qualquer interrupção,

vg locação]

o Periódicas [a prestação é sucessivamente repetida em certos períodos

de tempo, existindo uma pluralidade de obrigações distintas - vg

renda, no contrato de arrendamento]

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§4: PRESTAÇÕES DE RESULTADO E DE MEIOS. Quanto à obtenção do resultado, as

prestações podem ser:

• De resultado: o devedor vincula-se a obter um resultado determinado,

respondendo por incumprimento se esse resultado não for obtido [vg

transportador].

• De meios: o devedor não está obrigado à obtenção de um resultado, mas sim

a actuar com a diligência necessária para que esse resultado seja obtido [vg

prestação médica].

§5: PRESTAÇÕES DETERMINADAS E INDETERMINADAS. A prestação não necessita de

se encontrar determinada no momento da conclusão do negócio, bastando que seja

determinável [arts. 280º e 400º]:

• Determinadas: a prestação encontra-se completamente determinada no

momento da constituição da obrigação.

• Indeterminadas: a determinação da prestação ainda não se encontra

realizada, pelo que terá que ocorrer até ao momento do cumprimento.

o Obrigações genéricas

o Obrigações alternativas

§6: OBRIGAÇÕES GENÉRICAS. As obrigações genéricas [vs obrigações específicas] são

aquelas cujo objecto da prestação se encontra apenas determinado quanto ao género e

quantidade [art. 539º].

A prestação encontra-se determinada apenas por referência a uma certa quantidade,

peso ou medida de coisas dentro de um género, mas não está ainda concretamente

determinado quais os espécimes daquele género que vão servir para o cumprimento da

obrigação. Exemplo:

• Obrigação de entrega de dez quilos de maçãs, vg: há referência ao género

[maçãs] e à quantidade [dez quilos], mas ainda não estão concretizadas quais

as maçãs com que o devedor deverá cumprir a obrigação.

31
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Pelo contrário, a obrigação específica é aquela em que tanto o género, como os

espécimes da prestação se encontram determinados.

As obrigações genéricas são comuns nas negociações sobre coisas fungíveis [art. 207º].

Exemplo de obrigação genérica quanto a coisa infungível: entrega de um quadro de um

pintor, vg.

A escolha, ou o processo de individualização dos espécimes dentro do género [vg

recorrendo à pesagem, medida ou escolha], pode caber a ambas as partes [credor ou

devedor, art. 400º], ou a terceiro. Em regra, e supletivamente, a escolha [concentração] cabe

ao devedor [art. 539º], embora possa eventualmente caber ao credor ou a terceiro [art.

542º], excepcionalmente.

Pergunta-se se o devedor [o dono das maçãs, vg] é completamente livre de escolher

os espécimes, maxime aqueles de pior qualidade. O BGB obriga o devedor a entregar uma

coisa de classe e qualidade média, pelo que MENEZES CORDEIRO invoca o regime da

integração dos negócios jurídicos, com base na boa fé, defendendo a mesma solução [art.

239º]. ROMANO MARTINEZ e MENEZES LEITÃO reconduzem esse entendimento ao disposto no

art. 400º: a determinação da prestação deve ser realizada segundo juízos de equidade.

Uma vez que, nas obrigações genéricas, a transferência da propriedade não pode

ocorrer no momento da celebração do contrato [vs art. 408º-1], a indeterminação inicial

coloca o problema do risco do perecimento da coisa que, nos termos gerais, corre por conta

do proprietário [art. 796º]. Com efeito, um direito a uma quantidade de coisas a escolher de

certo género é um direito de crédito, e não um direito real. Regra geral, a transferência da

propriedade opera com a determinação da prestação [art. 408º-2]: a transferência opera,

enfim, quando a coisa é determinada com conhecimento de ambas as partes.

Todavia, as obrigações genéricas constituem uma excepção a este regime. A

transmissão da propriedade, e, consequentemente, do risco, ocorre no momento da

concentração da obrigação, ou seja, no momento em que a obrigação genérica passa a

específica, não se exigindo que essa concentração seja conhecida de ambas as partes. A lei

consagrou a teoria da entrega [art. 540º], de JHERING, segundo a qual a concentração da

obrigação genérica só ocorreria com o cumprimento da obrigação, transferindo-se o risco para

o credor nesse momento. Qualquer perecimento da coisa que acontecesse anteriormente

32
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

correria por conta do devedor. Com efeito, a concentração ocorre normalmente mediante a

entrega pelo devedor [art. 408º-2 – princípio da entrega], devendo ser determinada até ao

cumprimento, através da concentração.

A lei admite, contudo, casos em que a obrigação se concentra antes do cumprimento,

embora cabendo a escolha ao devedor [art. 541º] – o risco do perecimento corre por conta do

credor:

• Acordo das partes: contrato modificativo da obrigação que substitui a

obrigação genérica por uma obrigação específica.

• O género extingue-se a ponto de restar apenas uma das coisas nele

compreendidas: a concentração ocorre por mero facto da natureza [art. 790º]

• O credor incorre em mora: o credor, sem motivo justificado, recusa receber a

prestação ou não pratica os actos necessários ao cumprimento da obrigação

[art. 813º]. MENEZES LEITÃO: trata-se de uma ficção para estender a

aplicação do regime do art. 814º-1 às obrigações genéricas.

• A promessa de envio [art. 797º]: hipótese do cumprimento, e não

concentração – dívidas de envio ou remessa, em que o devedor não se

compromete a transportar a coisa para o local do cumprimento, mas apenas a

colocá-la num meio de transporte destinado a outro local.

Diferentemente, quando a escolha compete ao credor ou a terceiro [art. 542º], passa

a ser irrevogável. Essa escolha concentra imediatamente a obrigação, desde que declarada ao

devedor ou a ambas as partes. Se o credor não fizer a escolha dentro do prazo estabelecido, é

ao devedor que a escolha passa a competir [art. 542º-2], passando a ser aplicáveis as

disposições dos arts. 540º e 541º.

§7: OBRIGAÇÕES ALTERNATIVAS. As obrigações alternativas consistem em

modalidades de prestações indeterminadas, que se caracterizam por existirem duas ou mais

[indeterminação] prestações de natureza diferente, mas em que o devedor se exonera com a

mera realização de um delas que, por escolha, vier a ser designada [art. 543º]. Exemplo:

33
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• O devedor que se obrigue a entregar o barco ou o automóvel, cumpre a

obrigação se entregar qualquer um destes objectos, vg – apenas uma

prestação é concretizável através da escolha. O devedor tem apenas uma

obrigação, e o credor apenas um direito de crédito sobre uma das prestações.

Na falta de determinação em contrário, a escolha pertence ao devedor [art. 543º-2],

embora também possa competir ao credor ou a terceiro [art. 549º]. O benefício da escolha é

concedido ao devedor, supletivamente. No primeiro caso, pergunta-se se a

escolha/determinação da prestação só ocorrerá no momento do cumprimento. Assim não o é,

uma vez que o art. 408º-2 não exceptua o regime das obrigações alternativas. Aqui, é a

designação do devedor, conhecida da outra parte, que determina a prestação devida [art.

543º-1 e 548º], exonerando-se o devedor quando designar a prestação que vai realizar e esta

for conhecida da outra parte. A posterior revogação da escolha, pelo devedor, credor ou

terceiro, não é possível após o conhecimento dessa designação, sob pena de incumprimento

[art. 542º e 549º].

Se alguma das partes não realizar a escolha no tempo devido, a lei devolve essa

faculdade à outra parte [art. 542º-2 e 548º e 549º]: remete-se a faculdade de escolha para a

contraparte.

• Escolha do credor – a escolha passa imediatamente a competir ao devedor,

sendo-lhe devolvida.

• Escolha do devedor – a escolha passa para o credor apenas na fase da

execução, uma vez que na fase declarativa o credor não tem o direito a uma

prestação individualmente considerada, mas apenas a receber qualquer uma

delas em alternativa.

Se a escolha couber a terceiro, e este não escolher, devolve-se a escolha ao devedor.

Mesmo tratando-se de prestações divisíveis, não é possível realizar parte de uma

prestação e parte de outra [art. 544º], salvo consentimento do credor, em face do princípio

da indivisibilidade.

Perante impossibilidade casual da prestação, não imputável a nenhuma das partes

[art. 545º]: como a propriedade ainda não se transmitiu, o risco sobre qualquer dos objectos

corre por conta do devedor, limitando-se a obrigação às prestações possíveis.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Diferentemente, se a impossibilidade for imputável a alguma das partes:

• Imputável ao devedor [art. 546º]:

o Se a escolha lhe competir, deve efectuar uma das prestações

possíveis – a impossibilidade é causada pela parte a quem compete a

escolha.

o Se a escolha competir ao credor ou a terceiro, estes podem optar por:

 Exigir uma das prestações possíveis, ao devedor

 Exigir a indemnização pelos danos de não ter sido realizada a

prestação que se tornou impossível, rectius, uma

compensação por ter sido afectada a faculdade de escolha

 Resolver o contrato [credor]

• Imputável ao credor [art. 547º]:

o Se a escolha lhe competir, considera-se cumprida a obrigação.

o Se a escolha pertencer ao devedor, considera-se cumprida a

obrigação tornada impossível, a menos que:

 Prefira realizar outra prestação

 E prefira ser indemnizado pelos danos que haja sofrido, com a

impossibilidade da escolha da prestação tornada impossível.

• Se a escolha competir a terceiro, a doutrina propõe:

o Impossibilidade imputável ao devedor [art. 546º]: o terceiro pode

optar por realizar uma das prestações possíveis ou pedir indemnização

pelos danos resultantes de não ter sido realizada a prestação que se

tornou impossível, e não optar pela resolução do contrato [ANTUNES

VARELA]. Para MENEZES CORDEIRO deve passar a ser o credor quem

escolherá entre exigir a prestação possível, a indemnização ou a

resolução do contrato, neste caso.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Impossibilidade imputável ao credor [art. 547º]: deve passar a ser o

devedor a escolher entre considerar cumprida a obrigação ou realizar

outra prestação, exigindo uma indemnização.

Não são obrigações alternativas:

• Aquelas em que só existe uma prestação, mas que pode ser escolhida a sua

forma de execução [vg lugar e prazo].

• Aquelas em que se estabeleça uma alternativa condicional [verificando-se ou

não certa condição].

• Obrigações com faculdade alternativa: a prestação já se encontra

determinada, mas dá-se ao devedor a faculdade de substituir o objecto da

prestação por outro [vg art. 558º-1].

o Nas obrigações alternativas, o direito do credor abrange duas

prestações em alternativa.

o Nas obrigações com faculdade alternativa, abrange apenas uma

prestação, ainda que o devedor possa substituí-la. A prestação

encontra-se determinada desde a data da sua constituição, mas pode

ser efectuada outra prestação no momento do cumprimento.

§8: OBRIGAÇÕES PECUNIÁRIAS. Obrigações pecuniárias são aquelas que têm dinheiro

por objecto, visando proporcionar ao credor o valor que as respectivas espécies monetárias

possuam [requisitos cumulativos]. Modalidades:

• Obrigações de quantidade [art. 550º]

• Obrigações em moeda específica [art. 552º]

• Obrigações em moeda estrangeira [art. 558º]

§9: INDETERMINAÇÃO DO CREDOR. Sendo possível a indeterminação do credor, uma

vez que este pode não ficar determinado no momento em que a obrigação é constituída,

embora deva ser determinável, sob pena de nulidade do negócio jurídico, o devedor é,

36
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

contudo, obrigatoriamente determinado logo no momento em que a obrigação é constituída

[art. 511º].

A indeterminação temporária do credor pode resultar de se aguardar a verificação de

um determinado facto futuro e incerto, vg promessa pública [art. 459º], ou pela ligação entre

o credor e a relação obrigacional se apresentar como indirecta ou mediata, vg cheques ao

portador.

§10: OBRIGAÇÕES PLURAIS. A definição do art. 397º refere-se apenas às obrigações

singulares. Todavia, a obrigação pode também constituir-se abrangendo:

• Vinculação de várias pessoas para com outra: pluralidade passiva

o Exemplo: A, B e C obrigam-se perante D a entregar-lhe € 900

 Obrigação conjunta ou parciária: D apenas pode exigir que A

lhe entregue € 300

 Obrigação solidária: D pode exigir a A a totalidade da

prestação, € 900, podendo A exigir a B e C que lhe entreguem

€ 300 cada.

• Vinculação de uma pessoa para com outras: pluralidade activa

o Exemplo: A obriga-se perante D, E e F a entregar-lhes € 900

 Obrigação conjunta ou parciária: D poderá exigir a A € 300

 Obrigação solidária: D pode exigir a A € 900, ficando obrigado

a entregar a E e F € 300 cada.

• Pluralidade mista

o Exemplo: A, B e C obrigam-se perante D, E e F a entregar-lhes € 900

 Obrigação conjunta ou parciária: D poderá exigir a A € 100

 Obrigação solidária: D pode exigir de A € 900, tendo A que

exigir de B e C € 300 cada e ficando D obrigado a entregar a E

e F € 300 cada.

37
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

A regra geral é a das obrigações conjuntas ou parciárias [art. 786º-3]: cada um dos

devedores só está vinculado a prestar ao credor ou credores a sua parte na prestação e cada

um dos credores só pode exigir do devedor ou devedores a parte que lhe cabe:

• Cada credor só pode exigir a sua parte no crédito

• Cada devedor só tem que prestar a sua parte na dívida

Excepcionalmente, as obrigações podem ser solidárias [arts. 512º ss], no interesse do

credor:

• Solidariedade passiva: qualquer um dos devedores está obrigado perante o

credor a realizar a prestação integral.

o A realização da prestação integral por um dos devedores libera todos

os outros devedores em relação ao credor [art. 512º].

• Princípio da igualdade [art. 516º].

o Direito de regresso sobre os outros devedores para exigir a parte que

lhes compete na obrigação [art. 524º]. A obrigação de regresso, essa,

é conjunta [vg € 300 a B e € 300 a C].

o Sendo a impossibilidade culposa, os vários devedores respondem

solidariamente [art. 520º].

o A insolvência de um condevedor co-responsabiliza os demais [art.

526º].

• Solidariedade activa: qualquer um dos credores pode exigir do devedor a

prestação integral.

o A realização integral da prestação a um dos credores libera o devedor

para com todos os credores [art. 512º].

o O credor que recebeu mais do que lhe compete está obrigado a

satisfazer aos outros a parte que lhes cabe no crédito comum [art.

533º].

• Solidariedade mista: qualquer um dos credores pode exigir a qualquer dos

devedores a prestação devida por todos os devedores a todos os credores.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o A realização integral da prestação por um dos devedores a um dos

credores libera todos os devedores em relação a todos os credores.

o O devedor que realizou a prestação tem direito de regresso sobre os

outros devedores pela parte que lhes compete.

o O credor que recebeu a prestação está obrigado a entregar aos

restantes credores a parte que a estes compete.

Em suma, eis as características comuns aos três tipos de solidariedade:

• Identidade da prestação em relação a todos os sujeitos da obrigação

• Extensão integral do dever de prestar ou do direito à prestação em relação a

todos os devedores e a todos os credores, respectivamente

• Efeito extintivo comum da obrigação com o cumprimento por apenas um ou

apenas a um deles

No silêncio da lei [vs art. 497º, vg], e na ausência de estipulação, aplica-se a regra

geral da conjunção aos casos de pluralidade de sujeitos na relação obrigacional [art. 513º].

PLURALIDADE PASSIVA

Cumpre fazer um reparo: tratando-se de obrigação plural indivisível, dispõe o art.

535º: só de todos os devedores pode o credor exigir o cumprimento da obrigação, salvo

estipulação de solidariedade ou quando esta resulte da lei [aplicando-se o regime dos arts.

518º ss]. Exemplo:

• A, B e C comprometeram-se a entregar um automóvel a D: este tem que

exigir a prestação a todos os devedores, simultaneamente. Estipulada a

solidariedade, poderá D exigi-la apenas a A.

Nota: o critério da divisibilidade baseia-se na natureza das coisas, atendendo à sua

função económico-social, relacionado com a satisfação do credor. Será divisível a prestação

que puder ser fraccionada sem prejuízo para o interesse do credor.

Verificando-se a extinção da obrigação em relação a alguns dos devedores, o credor

não fica inibido de exigir a prestação dos obrigados que sobejarem [art. 536º], não

acarretando necessariamente a extinção integral da prestação. O acréscimo de

responsabilidade dos restantes obrigados é, por isso, admissível, sendo a prestação exigível

39
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

aos demais devedores. O credor deve pagar-lhes o valor correspondente à parte do devedor

exonerado [art. 536º].

Se a prestação for impossível por facto imputável a apenas um dos devedores, este

responde por impossibilidade culposa [art. 801º-1], enquanto que os restantes vêem extinta a

sua obrigação [art. 790º].

PLURALIDADE ACTIVA

Diferentemente, se a obrigação for indivisível com pluralidade de credores, a lei

refere que qualquer um deles tem o direito de exigir a prestação por inteiro, mas que o

devedor só relativamente a todos os credores em conjunto se pode exonerar – o devedor

cumpre perante todos os credores, enfim [art. 538º]. A citação judicial do devedor por um

dos credores transforma a obrigação conjunta em solidária, como defendem ROMANO

MARTINEZ e MENEZES CORDEIRO. A solução, neste caso, pauta-se pela aplicação analógica

do disposto no art. 536º: os restantes credores só podem exigir a prestação do devedor se lhe

entregarem o valor da parte que cabia à parte do crédito que se extinguiu.

FONTES DAS OBRIGAÇÕES BASEADAS NO

PRINCÍPIO DA AUTONOMIA PRIVADA

O CONTRATO

Negócios Jurídicos

§1: NEGÓCIO JURÍDICO. Cumpre reter a seguinte distinção tradicional:

• Negócios jurídicos unilaterais: possuem apenas uma parte

• Negócios jurídicos multilaterais: possuem duas ou mais partes

o Negócios bilaterais ou contratos: possuem apenas duas partes

Por parte entende-se, nesta sede, o titular de um interesse, e não uma pessoa

individualmente considerada. Esta acepção, por isso, implica que duas ou mais pessoas

constituam uma única parte, desde que ligadas por um interesse comum. Nos contratos, por

seu lado, exige-se uma contraposição de interesses entre as duas partes.

40
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

A referência a “interesse” é, como sabemos, discutida pela doutrina: MENEZES

CORDEIRO critica aquilo a que apelida de verdadeira “jurisprudência dos interesses”, já que

os intervenientes num negócio jurídico unilateral podem ter interesses diversos, sem prejuízo

de uma posição comum.

MENEZES CORDEIRO propõe, deste modo, a seguinte classificação:

• Negócios jurídicos unilaterais: os efeitos desencadeados não diferenciam as

pessoas que intervieram.

o Tende a existir apenas uma pessoa, uma declaração e um interesse.

• Contratos: os efeitos desencadeados diferenciam duas ou mais pessoas.

o Tende a existir várias pessoas, várias declarações e vários

interesses.

MENEZES LEITÃO critica esta acepção, propugnando antes o critério da necessidade

de uma declaração negocial ou de duas ou mais, como critério delimitador de negócios

jurídicos unilaterais e bi/multilaterais. Atenta-se, aqui, ao modo da formação do negócio, e

não já aos “interesses” subjacentes ou aos “efeitos” desencadeados.

Face a esta primeira abordagem, podemos concluir o seguinte:

• A doação é um contrato: exige duas declarações negociais [art. 940º].

• A doação pura a um incapaz é um negócio jurídico unilateral: produz efeitos

independentemente de aceitação [art. 951º-2].

• Os efeitos da doação são sempre os mesmos, seja ela um contrato ou um

negócio unilateral: art. 954º.

O contrato é, enfim, o resultado de duas ou mais declarações negociais contrapostas,

mas integralmente concordantes entre si, de onde resulta uma estipulação unitária de

efeitos jurídicos.

Modalidades de Contratos

41
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§1: QUANTO À FORMA. O princípio do consensualismo [art. 219º] determina que,

salvo casos excepcionais, o simples consenso das partes deve ser operativo em relação à

constituição do contrato. Daqui se extrai que:

• As declarações podem ser exteriorizadas por qualquer meio.

• Excepcionalmente, existem disposições que exigem forma especial que, a não

ser observada, redunda em nulidade [art. 220º] – normas excepcionais,

insusceptíveis de aplicação analógica [art. 11º].

Quanto à forma, os contratos podem ser:

• Contratos formais: a forma da declaração negocial encontra-se especialmente

prevista [vg arts. 875º, 947º-1 e 1143º].

• Contratos não formais: a exteriorização da declaração negocial pode ser feita

por qualquer meio [vg oralidade].

Em concluir, importa recordar a seguinte distinção fundamental da Teoria Geral do

Direito Civil:

• Forma: maneira como o contrato se revela e como se exteriorizam as

declarações de vontade.

o Ad substantiam

o Ad probationem

• Formalidade: exterior ao próprio negócio, servindo para complementá-lo.

§2: QUANTO AO MODO DE FORMAÇÃO. Quanto ao modo de formação, os contratos

podem ser:

• Contratos reais quoad constitutionem: para a sua celebração exige-se

tradição ou entrega da coisa objecto. São exemplos o penhor, comodato,

mútuo e depósito [contratos pelos quais “uma das partes entrega”…] ou a

doação verbal de coisas móveis, art. 947º-2.

o Razões:

 Históricas: comodato, mútuo e depósito

 De ponderação: doação

42
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

 De publicidade: penhor

• Contratos consensuais: para a sua celebração a entrega da coisa é dispensada.

Neste âmbito, uma significativa doutrina portuguesa seguiu a concepção germânica de

que as partes, ao abrigo da autonomia privada, poderiam dispensar o requisito de tradição da

coisa, excepto tratando-se de penhor de coisas [art. 669º], cuja tradição tem efeito

constitutivo [VAZ SERRA, MOTA PINTO, ALMEIDA COSTA, MENEZES CORDEIRO e CARVALHO

FERNANDES]. Contra este entendimento, pronunciaram-se PIRES DE LIMA e ANTUNES

VARELA.

MENEZES LEITÃO defende que quando a lei exige imperativamente a tradição para a

constituição do contrato [vg arts. 669º e 947º-2 – “só produz efeitos” e “só pode ser feita”],

esta não pode ser dispensada pelas partes. O mesmo se verifica nos restantes casos [arts.

1129º, 1142º e 1185º], já que a exigência da tradição tem a utilidade de não permitir que a

execução do contrato ocorra numa fase posterior à da declaração negocial [contra MENEZES

CORDEIRO]. Admitir-se alterações decorrentes da autonomia privada permitiria a

coexistência de um comodato real com um comodato consensual, etc, implicando defender

dois regimes contraditórios entre si para um mesmo contrato.

§3: QUANTO AOS EFEITOS. Quanto aos efeitos, os contratos podem ser:

• Contratos constitutivos, modificativos, transmissivos ou extintivos de direitos

e de obrigações

• Contratos reais: originam uma situação jurídica que se reconduz a um direito

real.

• Contratos obrigacionais: originam uma situação jurídica que se reconduz a

direitos de crédito e a obrigações.

Cumpre atender ao disposto no art. 408º-1, que determina que a transmissão dos

direitos reais sobre coisas ocorre por mero efeito do contrato [regra geral – quoad effectum]:

para tal, as coisas têm que ser presentes, determinadas e autónomas de outras coisas [art.

408º-2: transferência da propriedade diferida para momento posterior]. A regra geral

corresponde, assim, ao denominado sistema do título [admitindo-se a dissociação entre posse

e direito real]: a transmissão do direito real não depende de qualquer acto posterior, como a

43
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

tradição da coisa ou o registo. Nestes termos, o adquirente da coisa é seu proprietário desde

o momento da celebração do contrato, correndo o risco da perda ou deterioração da coisa a

partir desse momento [art. 796º-1].

Indiciámos já algumas excepções a esta regra, que ora cumpre apreciar [art. 408º-2] –

excepções legais ao princípio geral da transferência imediata:

• Coisas futuras: o momento da transferência da propriedade é o da aquisição

da coisa pelo alienante [vg A promete doar um anel a B a 11 de Outubro.

Entretanto, B promete vendê-lo a C, em Dezembro do mesmo ano. A

propriedade do anel transmite-se para C a 11 de Outubro, quando o anel é

doado ao alienante, B]. Ressalva: regime aplicável à compra e venda, e não à

doação ou à empreitada [arts. 880º e 942º-1].

o Coisas relativamente futuras: art. 211º. O efeito translativo depende

da constituição da propriedade [ou de outro direito real] sobre essa

coisa por parte do alienante.

o Coisas absolutamente futuras: não existem ainda na realidade jurídica

e fáctica. O direito só será adquirido a partir do momento em que a

coisa tiver existência [tornar-se numa coisa presente], transferindo-se

por mero efeito do contrato.

• Coisas indeterminadas: a transferência da propriedade verifica-se no

momento em que a coisa é determinada com conhecimento de ambas as

partes. Regime aplicável às obrigações alternativas [art. 543º] – o efeito

translativo está associado com a escolha da prestação, desde que conhecida

das partes [normalmente, do devedor]. Ressalva: regra não abrange as

obrigações genéricas [arts. 539º e 540º] – o efeito translativo dá-se com a

concentração [normalmente, com o cumprimento], salvo o disposto no art.

541º.

• Frutos naturais e partes componentes ou integrantes: a transferência da

propriedade verifica-se no momento da colheita ou da separação [obrigação

de entrega do devedor, art. 880º].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Excepções convencionais ao princípio geral da transferência imediata [art. 408º-1]: a

transmissão do direito real pode ser diferida mediante acordo de termo [art. 796º-2] ou

condição [art. 796º-3], apostos ao contrato.

Em qualquer caso, a transmissão da propriedade continua a realizar-se por efeito do

contrato, e é consequência directa deste.

§4: RESERVA DE PROPRIEDADE. Como consequência lógica do que supra §3 foi

referido, o comprador torna-se imediatamente proprietário da coisa vendida no momento de

celebração do contrato de compra e venda, vg, podendo aliená-la de imediato, mesmo que

esta ainda não lhe tenha sido entregue ou que o preço ainda não tenha sido pago [na

totalidade] – cfr. art. 408º-1. O vendedor, esse, tem o direito de crédito de cobrar o preço:

quando não tenha qualquer preferência no pagamento, concorre com todos os credores

comuns do comprador sobre o património deste [art. 604º-2]. Acresce o facto de que o

vendedor não pode resolver o contrato por incumprimento da outra parte a partir do

momento em que ocorra a transmissão da propriedade e a entrega da coisa [arts. 801º-2 e

886º]. Esta realidade é ilustrada pelos inconvenientes e riscos da compra e venda a crédito

[com espera do preço, enfim].

À convenção entre o vendedor e o comprador pela qual o alienante reserva para si a

propriedade da coisa até ao cumprimento total ou parcial das obrigações da outra parte, ou

até à verificação de qualquer outro evento, designa-se cláusula de reserva de propriedade

[art. 409º - pactum reservati domini]. Neste caso, a transmissão da propriedade é diferida

para o momento do pagamento [integral] do preço, sem exigência de qualquer publicidade,

dependendo a transferência desse facto futuro e incerto [o pagamento]. Esta convenção pode

ser celebrada em relação a quaisquer bens, sendo que quando respeite a bens imóveis ou

móveis sujeitos a registo, só a cláusula de reserva de propriedade constante do registo é

oponível a terceiros [art. 409º-2]. Tratando-se de uma coisa móvel não sujeita a registo, a

eficácia da cláusula é meramente inter partes, em face do princípio da relatividade dos

contratos [art. 406º-2]. Extinguir-se-á, todavia, se o terceiro adquirir a propriedade a título

originário [vg usucapião ou acessão].

45
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

A cláusula de reserva de propriedade defenderá o vendedor das eventuais

consequências do incumprimento do contrato pelo comprador, sendo que a conservação da

propriedade no vendedor até ao pagamento impede outros credores de executarem o bem [vs

art. 604º-2]. Verificado o incumprimento definitivo por parte do comprador, o vendedor pode

resolver o contrato, já que ainda não transmitiu a propriedade da coisa [cfr. arts. 801º-2 e

886º].

Em caso de venda a prestações em que haja tradição da coisa, o vendedor não pode

resolver o contrato se o comprador faltar ao pagamento de uma única prestação que não

exceda 1/8 do preço [inferior à oitava parte do preço]. Pode, sim, resolver o contrato se o

comprador faltar a mais do que uma prestação, independentemente da proporção da mesma

na quantia total em dívida, ou a apenas uma, superior à oitava parte do preço [art. 934º].

Esta norma data de 1966 [versão originária do CC]: o legislador concebia já o consumidor

como a parte mais fraca, que merece tutela do Direito.

§5: NATUREZA JURÍDICA DA RESERVA DE PROPRIEDADE. Face à configuração

dogmática desta figura, pronunciaram-se GALVÃO TELLES, ANTUNES VARELA e ALMEIDA

COSTA no sentido de que seria equiparável a uma condição suspensiva: a transmissão da

propriedade ficaria subordinada a um facto futuro e incerto, o pagamento do preço. O

comprador seria, nestes termos, um adquirente condicional [arts. 273º, 274º e 796º-3, 2ª

parte].

MENEZES LEITÃO considera inaceitável que o vendedor suporte o risco pela perda ou

deterioração da coisa [art. 796º-3, 2ª parte], mesmo após entrega ao comprado, conforme a

solução supra propugna. A partir da tradição, é o comprador quem está investido nos poderes

de uso e fruição da coisa, enquanto que a reserva da propriedade na esfera do vendedor

apenas assegura a recuperação do bem, em caso de não pagamento do preço. O risco deve,

por isso, correr por conta de quem beneficia do direito: por conta do comprador, enfim, e a

partir da entrega da coisa [brocardo ubi commoda, ibi incommoda].

CUNHA GONÇALVES concebe a teoria inversa: a cláusula de reserva de propriedade

seria equiparável a uma condição resolutiva, já que a propriedade seria logo transmitida para

o comprador mas, verificado o incumprimento do pagamento do preço, ocorreria a resolução

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

dos efeitos do negócio jurídico, com eficácia retroactiva, sendo a propriedade “recuperada”

pelo vendedor [art. 886º].

MENEZES LEITÃO dirige uma vez mais críticas a esta teoria: este entendimento

entraria em contradição com o disposto nos arts. 409º-1 e 304º-3: “é lícito ao alienante

reservar para si a propriedade da coisa até ao cumprimento” e “se prescrever o crédito ao

preço, pode o vendedor, não obstante a prescrição, exigir a restituição da coisa quando o

preço não seja pago”.

Qualquer dos entendimentos supra padece do vício de classificar a cláusula de reserva

de propriedade enquanto uma condição, seja ela suspensiva ou resolutiva, já que a condição

é a cláusula acessória do negócio jurídico que determina a subordinação dos seus efeitos a um

acontecimento futuro e incerto [art. 270º]. Trata-se, sim, de uma alteração da ordem de

produção dos efeitos negociais:

• Sem a reserva, a transmissão da propriedade ocorre antes do pagamento do

preço [por mero efeito do contrato, enfim: art. 408º-1].

• Com a reserva, a transmissão da propriedade ocorre depois do pagamento [é

diferida para momento póstumo, enfim].

Em conclusão, MENEZES LEITÃO considera que uma vez que o negócio translativo já

foi celebrado, o comprador já tem uma expectativa jurídica de aquisição do bem. A natureza

jurídica da reserva de propriedade relaciona-se, assim, com a expectativa real de aquisição

do direito real, expectativa oponível a terceiros.

ROMANO MARTINEZ entende que sempre que tenha havido entrega da coisa, o risco

tem-se por transferido, servindo-se de quatro argumentos:

• O princípio do cumprimento

• O perecimento da coisa por causa não imputável ao alienante corre por conta

do adquirente/proprietário [art. 796º-1]

• O risco do perecimento da coisa, em virtude de contrato que dependa de

condição resolutiva, corre por conta do adquirente/proprietário se a coisa lhe

tiver sido entregue [art. 796º-3]

47
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• A reserva de propriedade é a condição resolutiva que obsta à resolução do

contrato, pelo devedor, com fundamento na falta de pagamento do preço

[art. 886º].

Nestes termos, o adquirente com reserva de propriedade beneficia do direito de

retenção previsto no art. 754º, segundo ROMANO MARTINEZ.

§6: QUANTO À RECIPROCIDADE DAS OBRIGAÇÕES. Quanto à reciprocidade das

obrigações, os contratos podem ser:

• Contratos sinalagmáticos: contratos que originam obrigações recíprocas para

as partes, ficando ambas simultaneamente na posição de credores e de

devedores [art. 879º b) e c), vg]. Emergem para ambas as partes direitos e

deveres, recíprocos e interdependentes.

• Contratos não sinalagmáticos:

o Unilaterais: apenas uma das partes assume uma obrigação

o Bilaterais imperfeitos: uma das partes assume uma obrigação, mas a

outra realiza a prestação – vg mandato].

MENEZES CORDEIRO propõe uma classificação autónoma:

• Contratos monovinculantes: apenas uma das partes fica

vinculada ao cumprimento da obrigação.

• Contratos bivinculantes: a vinculação à obrigação existe em

relação a ambas as partes.

O contrato-promessa unilateral [assim apelidado pelo art. 411º] seria, segundo este

entendimento, um contrato sinalagmático, já que implica prestações correlativas [as

declarações de ambas as partes], ainda que monovinculante [apenas uma das partes se

vincula a prestar].

Contra este entendimento, MENEZES LEITÃO considera que não há qualquer

sinalagma no contrato-promessa unilateral, já que só uma das partes está obrigada/vinculada

a celebrar o contrato definitivo. A declaração negocial não pode ser vista como uma

obrigação nem pode ser exigida.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Regressemos, por isso, à primeira classificação deste âmbito: a classificação de

contratos quanto à existência de obrigações recíprocas [maxime os contratos sinalagmáticos].

O surgimento de uma prestação está ligado ao surgimento de uma contraprestação: o

denominado sinalagma genético [nexo final]. Como consequência lógica deste nexo final, as

prestações surgem interdependentes e uma não deve ser executada sem a outra.

Este sinalagma, também designado sinalagma funcional, tem manifestações em

diversos institutos do Direito das Obrigações:

• Excepção do não cumprimento: art. 428º [vg A, dealer de droga, combina

com B entregar uma mala com cocaína num local público, em troca de uma

mala com o preço acordado, a efectuar em simultâneo].

• Resolução por incumprimento: art. 801º-2.

• Extinção do contrato sinalagmático por impossibilidade de uma das

prestações: art. 795º-1.

Na base desta concepção encontram-se exigências de justiça comutativa e de

equilíbrio contratual.

§7: QUANTO ÀS ATRIBUIÇÕES PATRIMONIAIS. Quanto às atribuições patrimoniais, os

contratos podem ser:

• Contratos onerosos: implicam atribuições patrimoniais para ambas as partes

[vg contrato de compra e venda: o vendedor abdica da coisa e o comprador

do preço, art. 874º].

• Contratos gratuitos: implicam atribuições patrimoniais para apenas uma das

partes [vg doação e comodato, arts. 940º e 1129º].

• Contratos onerosos ou gratuitos, dependendo: mútuo, mandato e depósito,

arts. 1145º, 1158º e 1186º.

o Mútuo: quando oneroso [art. 1145º-1], não é sinalagmático – todos os

contratos reais quoad constitutionem, mesmo que onerosos, nunca

são sinalagmáticos.

o Os contratos sinalagmáticos são sempre onerosos.

49
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Contratos onerosos e gratuitos, simultaneamente: contrato a favor de

terceiro, vg [art. 443º] – relação triangular.

Neste âmbito, cumpre ainda apreciar a seguinte distinção:

• Contratos comutativos: ambas as atribuições patrimoniais se apresentam

como certas.

• Contratos aleatórios: pelo menos uma das atribuições patrimoniais se

apresenta como incerta

o Quanto à sua existência

o Quanto ao seu conteúdo

o Exemplo: contrato de jogo e aposta [art. 1245º], contrato de renda

vitalícia [art. 1238º] e contrato de seguro.

Esta distinção só é possível quanto aos contratos onerosos.

§8: OUTRAS CLASSIFICAÇÕES. Cumpre ainda reter as seguintes classificações de

contratos:

• Quanto à previsão do regime legal:

o Contratos típicos: o regime está previsto na lei.

o Contratos atípicos: o regime é imposto pela prática comum, falando-

se a esse propósito de uma “tipicidade social” ou de um “tipo social”

[vg contrato de franquia ou franchising].

• Quanto ao nomen iuris:

o Contratos nominados: reconhecidos pela lei através de um nomen

iuris. Podem, por sua vez, ser típicos ou atípicos.

 Atípico: contrato de hospedagem [art. 755º b]

o Contratos inominados: a lei não os designa através de um nomen iuris.

São sempre atípicos.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§9: CONTRATOS MISTOS. Os contratos mistos reúnem em si regras de dois contratos

total ou parcialmente típicos. Assumem-se como contratos atípicos, já que não correspondem

integralmente a nenhum tipo contratual regulado por lei.

Paradoxalmente, a sua atipicidade resulta da adopção de dois ou mais contratos que

são, per se, típicos, suscitando conflitos dos regimes a aplicar.

Constituem categorias de contratos mistos:

• 1. Contratos múltiplos ou combinados: contratos nos quais as partes

estipulam que uma delas deve realizar prestações correspondentes a dois

contratos típicos distintos, enquanto que a outra realiza uma única contra-

prestação comum.

o Exemplo: venda de automóvel + prestação de serviços de conduzi-lo.

• 2. Contratos geminados ou de tipo duplo: contratos nos quais uma parte se

encontra obrigada a uma prestação típica de certo tipo contratual e a outra

se encontra obrigada a uma contra-prestação, de outro tipo contratual.

o Exemplo: arrendamento + prestação de serviços de limpeza do

prédio.

Para estes tipos de contratos [1. e 2.], GALVÃO TELLES propõe a aplicação da teoria

da combinação: aplicação combinada dos vários regimes em causa. MENEZES LEITÃO

considera que esta será a solução tendencial para os dois tipos de contratos em apreço, de

modo menos rígido quanto propugna GALVÃO TELLES.

• 3. Contratos indirectos, mistos stricto sensu ou cumulativos: contratos nos

quais é usada uma estrutura própria de um tipo contratual para preencher

uma função típica de outro tipo contratual.

o Exemplo: venda de um imóvel a preço residual, meramente

simbólico, a título de liberalidade/doação.

• 4. Contratos complementares: contratos em que são adoptados os elementos

essenciais de um determinado contrato mas aparecem acessoriamente

elementos típicos de outro(s) contrato(s).

51
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Exemplo: venda de automóvel + prestação de serviços acessória de

manutenção do veículo.

Para estes tipos de contratos [3. e 4.], GALVÃO TELLES propõe a aplicação da teoria

da absorção: deve-se optar a favor de um único regime contratual. MENEZES LEITÃO

considera que esta é a teoria que tendencialmente se aplicará aos dois tipos de contratos em

apreço, de modo menos rígido quanto propugna GALVÃO TELLES.

ALMEIDA COSTA discordou de ambos os entendimentos, sustentando, na teoria da

analogia, a não aplicação de nenhum dos regimes, tratando-se de contratos integralmente

atípicos que devem obedecer à Parte Geral do Direito das Obrigações. Perante lacunas de

regime, a integração deveria ser feita com recurso à analogia. MENEZES LEITÃO considera

que esta teoria merece um afastamento liminar, já que a integral atipicidade dos contratos

mistos não corresponde à sua natureza.

MENEZES CORDEIRO e ANTUNES VARELA pronunciaram-se no sentido da ponderação

caso a caso, entre as duas primeiras teorias apresentadas por GALVÃO TELLES.

§10: UNIÃO DE CONTRATOS. Ao contrário dos contratos mistos conforme enunciados

supra §9, na união de contratos não existe um contrato apenas, já que os vários elementos

dos tipos contratuais não se dissolvem para formar um único contrato.

Na união de contratos verifica-se, sim, a celebração conjunta de diversos contratos,

unidos entre si. Cada contrato mantém a sua autonomia e pode ser individualizado em face

do conjunto.

Cumpre reter as seguintes modalidades de união de contratos:

• União externa: a ligação entre os vários contratos resulta apenas de serem

celebrados ao mesmo tempo [vg ir a um café e pedir um bolo e um maço de

cigarros] – art. 417º-1, 1ª parte.

• União interna: os contratos apresentam-se ligados entre si por uma relação

de dependência, unilateral ou bilateral [vg só comprar um computador se for

vendida uma impressora, conjuntamente] – art. 417º-1, 2ª parte.

• União alternativa: as partes declaram pretender um ou outro contrato,

consoante ocorrer ou não a verificação de determinada condição, implicando

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

a produção de efeitos de um dos contratos e excluindo a produção de efeitos

do outro [vg celebração de dois contratos de arrendamento, em cidades

diferentes, com a condição de só vigorar aquele respeitante à cidade onde o

sujeito for colocado pela sua empresa].

§11: SUBCONTRATO. O subcontrato é um negócio jurídico bilateral sujeito à

disciplina geral dos contratos.

Com efeito, uma das partes no subcontrato terá que ser parte noutro negócio

jurídico, enquanto que o subcontraente é, em regra, estranho à relação contratual base. O

negócio base tem necessariamente que ser um contrato duradouro e celebrado sem intuitu

personae. O intermediário é parte nos dois contratos, pelo que não se desvincula da

convenção base, passando a coexistir duas relações jurídicas distintas: a do contrato principal

e a do subcontrato.

No subcontrato permite-se o gozo por terceiros das vantagens de que o intermediário

é titular, bem como a substituição deste no cumprimento da actividade a que estava adstrito.

Exemplos:

Sublocação: art. 1060º

Subempreitada: art. 1213º

CONTRATOS PRELIMINARES

Contratos Preliminares e Contratação Mitigada

§1: CONTRATOS PRELIMINARES. Os contratos preliminares são contratos cuja

execução pressupõe a celebração de outros contratos.

Constituem exemplos fundamentais, que estudaremos infra ao pormenor:

• Contrato-promessa [art. 410º]

• Pacto de preferência [art. 414º]

53
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§2: CONTRATAÇÃO MITIGADA. Os contratos preliminares não devem ser confundidos

com a figura da contratação mitigada, conforme configurada por MENEZES CORDEIRO nos

seguintes termos: na contratação mitigada não há qualquer vinculação a uma obrigação,

embora as partes assumam certos compromissos durante a fase das negociações.

Eis alguns exemplos:

• Carta de intenção [letters of intent]

• Acordo de negociação [definição dos parâmetros da contratação]

• Acordo de base [definição dos pontos essenciais das negociações]

• Acordo-quadro [definição de um enquadramento comum a todos os

contratos]

• Protocolo complementar [side-letter ou complementação do contrato]

Ainda que não haja qualquer vinculação, as partes respondem por culpa in

contrahendo nos termos do art. 227º, por violação de deveres de lealdade, informação e

segurança.

Contrato-Promessa

§1: NOÇÃO. Por contrato-promessa entende-se toda a convenção pela qual alguém se

obriga a celebrar um novo contrato [art. 410º-1]. Essa convenção tem como objecto uma

prestação e facto jurídico: a obrigação de contratar, ou seja, a obrigação de emissão de

futuras declarações negociais. Trata-se de um contrato preliminar de outro contrato [o

contrato definitivo], ainda que seja uma convenção autónoma deste. Como consequência

lógica, o contrato-promessa tem, regra geral, eficácia meramente obrigacional, ainda que o

contrato definitivo tenha eficácia real.

A importância do contrato-promessa no comércio jurídico reside no facto de as partes

iniciarem as negociações e chegarem a acordo relativamente à celebração do negócio

jurídico, embora não queiram ou não possam realizá-lo naquele momento [maxime tratando-

se de um contrato de compra e venda de bem imóvel, cuja escritura pública não possa ser

imediatamente efectuada].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

O art. 410º-1 consagra o denominado princípio da equiparação: o contrato-promessa

está sujeito ao mesmo regime do contrato definitivo, por extensão. Exemplifiquemos: se a lei

proíbe a venda a filhos e netos [art. 877º], é lógico que também proíba a celebração de um

contrato-promessa de compra e venda com filhos e netos.

Este princípio obedece, todavia, a duas importantes excepções [art. 410º-1, 2ª parte]:

• Quanto à forma: o contrato-promessa obedece a forma menos solene do que

aquela eventualmente prescrita para o contrato definitivo.

o Na ausência de estipulação em contrário: art. 219º, liberdade de

forma.

o Se o contrato definitivo exigir forma escrita, mesmo que escritura

pública: art. 410º-2, documento particular assinado pela(s) parte(s)

que se vincula(m).

o Se o contrato respeitar à transmissão ou constituição [onerosa] de

direito real sobre edifício ou fracção autónoma dele: art. 410º-3,

documento particular com reconhecimento presencial de assinaturas

e reconhecimento notarial da existência de licença de utilização ou

de construção.

• Quanto a disposições que, pela sua razão de ser, não devam considerar-se

extensíveis ao contrato-promessa:

o art. 879º: efeitos da compra e venda.

o art. 892º: nulidade da venda de bens alheios – o contrato-promessa de

compra e venda de bem alheio é válido, já que não se exige, em

relação ao promitente-vendedor, qualquer requisito de legitimidade.

Exemplo: promessa de venda de bens futuros, ainda indisponíveis na

esfera do promitente-vendedor, cuja eficácia é meramente

obrigacional. Não está em causa, em rigor, qualquer disposição, mas

antes uma prestação de facto jurídico: a declaração negocial.

o art. 1682ºA-1a) e 1690º-1: é válida a celebração de um contrato-

promessa relativo a bens imóveis próprios ou comuns dos cônjuges,

55
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

por apenas um deles. Qualquer cônjuge pode assumir uma obrigação

[de contratar] sem o consentimento do outro. Nenhum cônjuge

poderá, todavia, entregar a coisa ao promitente sem consentimento

do outro cônjuge, transferindo-lhe a posse sobre ela [a constituição

de direito pessoal de gozo é expressamente vedada pelo art. 1682ºA-

1a].

o art. 604º-1: é válida a celebração de dois contratos-promessa

incompatíveis sobre o mesmo bem, uma vez que há apenas uma

constituição de dois direitos de crédito que concorrem

simultaneamente sobre o património do devedor.

§2: MODALIDADES. Recordemos os conceitos supra enunciados, relativamente aos

contratos unilaterais/bilaterais e monovinculantes/bivinculantes.

MENEZES CORDEIRO propõe a seguinte classificação, no âmbito do contrato-

promessa:

• Contratos-promessa monovinculantes: apenas uma das partes

fica vinculada à celebração do contrato definitivo.

• Contratos-promessa bivinculantes: ambas as partes ficam

vinculadas à celebração do contrato definitivo.

O contrato-promessa unilateral [assim apelidado pelo art. 411º] seria, segundo este

entendimento, um contrato sinalagmático, já que implica prestações correlativas [as

declarações de ambas as partes], ainda que monovinculante [apenas uma das partes se

vincula a prestar]. O termo “unilateral” poderia induzir o discente em erro, fazendo-o crer

tratar-se de um negócio jurídico unilateral, nos mesmos termos dos arts. 457º ss: assim não o

é; as duas partes celebram o contrato-promessa, embora apenas uma fique vinculada à

celebração do contrato definitivo.

Contra este entendimento, MENEZES LEITÃO considera não existir qualquer sinalagma

no contrato-promessa unilateral, já que a declaração negocial não pode ser vista como uma

obrigação, nem pode ser exigida. Só existiria um sinalagma perfeito no caso de contrato-

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

promessa em que ambas as partes se vinculam à celebração do contrato definitivo e ambas

podem exigir da contraparte essa mesma celebração. Propõe, assim, a seguinte classificação:

• Contratos-promessa unilaterais

• Contratos-promessa bilaterais

Essa é, aliás, a designação legal dos mesmos [art. 410º-2 e 411º].

Com o devido respeito, sustentaremos aqui a primeira das posições [da autoria de

MENEZES CORDEIRO], já que a designação de “contrato-promessa unilateral” poderia ser

confundida com os [parcos] exemplos de negócios jurídicos unilaterais, redundado em

confusão terminológica.

Feita esta ressalva linguística, a classificação das modalidades de contratos-promessa

em monovinculantes e bivinculantes é pertinente, já que a promessa respeitante à celebração

de contrato definitivo para o qual a lei exija documento autêntico ou particular, só vale se

constar de documento particular… [art. 410º-2]:

• Contratos-promessa monovinculantes: …assinado pela parte que se vincula à

celebração do contrato definitivo.

• Contratos-promessa bivinculantes: …assinado por ambas as partes.

A maior parte das promessas monovinculantes [art. 411º] são remuneradas, maxime

através do denominado preço de mobilização: entrega, de uma só vez ou faseadamente, de

uma prestação pecuniária que constitui a contrapartida pela vinculação do contraente à

celebração do contrato definitivo. O contraente vinculado não fica, todavia, indefinidamente

sujeito a que a contraparte, que não se vinculou, possa exercer o direito de exigir a

celebração do contrato definitivo: se as partes não convencionarem um prazo dentro do qual

esse vínculo seja eficaz, pode o tribunal fixá-lo [art. 411º]. MENEZES LEITÃO considera

existir, aqui, um sinalagma imperfeito, já que a parte que se vincula fica obrigada a celebrar

o contrato definitivo e adquire o direito à contrapartida, enquanto que a contraparte deve

proporcionar essa contrapartida e goza do direito de exigir a celebração do contrato.

No caso de promessa monovinculante remunerada, a mesma deve ser assinada apenas

pela parte que assume a obrigação de contratar [pela parte que se vincula, enfim], segundo

MENEZES LEITÃO [contra, GALVÃO TELLES e ANTUNES VARELA].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§3: CONTRATO-PROMESSA BIVINCULANTE ASSINADO POR UM DOS PROMITENTES.

Questão pertinente é aquela que versa sobre um contrato-promessa originariamente

bivinculante que foi apenas assinado por um dos promitentes. Pergunta-se: poderá o mesmo

ser válido como promessa monovinculante, permitindo a subsistência da obrigação de quem

assinou o documento particular [art. 410º-2]? A doutrina respondeu de quatro formas

diferentes:

• Teoria da transmutação automática desse contrato em contrato-promessa

monovinculante:

o Defendida por: jurisprudência do STJ durante a década de 70.

• Teoria da nulidade total do contrato [art. 220º]:

o Defendida por: jurisprudência do STJ no final da década de 70 e por

GALVÃO TELLES, até à década de 80.

o A assinatura de ambas as partes seria um elemento essencial para a

forma do contrato-promessa bivinculante e um requisito formal de

validade da vinculação. O contrato seria totalmente nulo, por não

revestir a forma legalmente prescrita.

• Teoria da conversão [art. 293º]:

o Defendida por: ANTUNES VARELA e, revista a sua posição supra,

GALVÃO TELLES.

o Deve permitir-se o aproveitamento do negócio jurídico através da

conversão, já que o contrato-promessa bivinculante a que falte uma

das assinaturas se apresenta como totalmente nulo. Não cabendo

qualquer aproveitamento parcial do contrato, deve o mesmo ser

transformado num negócio de tipo ou de conteúdo diferente.

o Críticas: a manutenção do sinal, constituído com frequência nos

contratos-promessa, não é salvaguardada, em face da nulidade total

do contrato [art. 442º] – MENEZES LEITÃO.

• Teoria da redução [art. 292º]:

o Defendida por: ALMEIDA COSTA.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Se a lei só exige a assinatura para a declaração negocial do

contraente que se vincula à promessa, a nulidade por falta de forma

será parcial se apenas um dos contraentes não assinar o contrato.

Este é o regime que melhor tutela os interesses do contraente

vinculado, para além de salvaguardar a constituição do sinal [a

invalidade é meramente parcial, “salvando-se” a datio pecuniae].

o Críticas: MENEZES LEITÃO defende que a natureza sinalagmática do

contrato-promessa “bilateral” é radicalmente diferente da natureza

do contrato-promessa “unilateral”, não cabendo qualquer

aproveitamento parcial do mesmo. Esta crítica não colhe, se, como

coerentemente sustentamos, concluirmos pela natureza sinalagmática

de ambas as modalidades de contrato-promessa. Recorde-se o

entendimento de MENEZES CORDEIRO que temos vindo a defender: o

contrato-promessa unilateral, assim apelidado pelo art. 411º, é um

contrato sinalagmático, já que implica prestações correlativas [as

declarações de ambas as partes], ainda que monovinculante.

MENEZES CORDEIRO adopta uma posição conciliadora: dada a diferente natureza dos

dois tipos de contrato-promessa [diferença essa não baseada na natureza sinalagmática de um

em detrimento de outro, mas sim no número de partes que se vincula à celebração do

contrato definitivo], a situação só poderia ser de invalidade total, pelo que apenas a

conversão poderia salvar o negócio jurídico. Todavia, a redução pode, em concreto,

salvaguardar melhor os interesses do contraente vinculado. Nestes termos, propugna a

aplicação conjunta dos dois preceitos em causa [arts. 292º e 293º] aliados à boa fé na

integração de lacunas das declarações negociais [art. 239º], em ordem a encontrar a solução

mais justa para o caso concreto.

Não podemos deixar de concordar com esta solução.

Um assento do STJ datado de 1989 [numa altura em que os assentos eram fonte de

direito, art. 2º] pretendeu solucionar a querela doutrinária em questão, determinando que:

O contrato é nulo mas pode considerar-se válido como contrato-promessa

monovinculante, desde que essa tivesse sido a vontade das partes.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

MENEZES LEITÃO e MENEZES CORDEIRO consideraram a formulação “manifestamente

infeliz”, já que apenas afastaria a teoria da transmutação automática, reabrindo a discussão

relativamente às três teorias que sobejavam:

• MENEZES LEITÃO, ALMEIDA COSTA e jurisprudência maioritária: o assento

adoptou a teoria da redução.

• GALVÃO TELLES e ANTUNES VARELA: o assento adoptou a teoria da

conversão.

• CALVÃO DA SILVA: o assento seria inconstitucional.

Em conclusão, a questão está longe de pacificada e é passível de inúmeras

interpretações, de entre as quais optamos pela solução de MENEZES CORDEIRO.

§4: EDIFÍCIO OU FRACÇÃO AUTÓNOMA. Como supra indiciámos, o contrato-promessa

que respeite à constituição ou transmissão de direito real sobre edifício ou fracção autónoma

deve ser celebrado mediante documento particular com reconhecimento presencial da

assinatura e de certificação, pelo notário, da existência de licença de utilização ou

construção [art. 410º-3].

Está patente, neste âmbito, a distinção entre forma [art. 410º-2], através da qual se

revela a vontade negocial, e formalidades [art. 410º-3]. As formalidades exigidas no nº 3 do

mesmo artigo, das quais depende a validade plena do negócio jurídico, justificam-se para

evitar a celebração de contratos-promessa em casos de construção clandestina, sob pena de

invalidade. Essa invalidade só poderá ser invocada pelo promitente adquirente, a menos que

seja provocada por sua culpa exclusiva: trata-se, enfim, de uma invalidade mista.

• Não pode ser invocada por terceiros

• Não pode ser conhecida oficiosamente pelo tribunal

• Pode ser invocada a todo o tempo pelo promitente adquirente

• Pode ser sanável mediante posterior obtenção da licença, com

reconhecimento presencial das assinaturas

Eficácia Real do Contrato-Promessa

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§1: NOÇÃO. Ao contrato-promessa poderá ser atribuída eficácia real, verificados os

seguintes pressupostos [art. 413º]:

• Promessa respeitante a bens imóveis ou móveis sujeitos a registo

• Mediante declaração expressa das partes

• Registo da promessa

• Forma mais solene:

o Bens móveis sujeitos a registo: documento particular com

reconhecimento da assinatura da parte que se vincula ou de ambas

[contrato-promessa monovinculante ou bivinculante com eficácia

real].

o Bens imóveis: escritura pública.

§2: EFEITOS. Caso seja atribuída, pelas partes, eficácia real ao contrato-promessa, o

direito à celebração do contrato definitivo prevalecerá sobre todos os direitos reais que não

tenham registo anterior ao registo da promessa com eficácia real.

§3: NATUREZA JURÍDICA. Pergunta-se qual a natureza jurídica do direito do

beneficiário do contrato-promessa com eficácia real:

• Para GALVÃO TELLES, OLIVEIRA ASCENSÃO e MENEZES CORDEIRO: trata-se

de um verdadeiro direito real de aquisição.

• Para ANTUNES VARELA, ALMEIDA COSTA, PIRES DE LIMA e HENRIQUE

MESQUITA: trata-se de um direito de crédito, sujeito embora a um regime

especial de oponibilidade a terceiros.

§4: CUMPRIMENTO DA PROMESSA COM EFICÁCIA REAL. A lei é omissa quanto à forma

de obtenção do cumprimento do contrato-promessa com eficácia real, maxime tendo havido

uma alienação do bem imóvel ou móvel sujeito a registo a terceiros, pelo que a doutrina

procurou dar resposta a esta questão:

• ANTUNES VARELA e ALMEIDA COSTA: instauração de uma acção de execução

específica contra o obrigado, cumulável com uma acção de condenação à

61
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

restituição da coisa, proposta contra o terceiro, por se tratar de uma venda

de bens alheios, nula [art. 892º].

o MENEZES LEITÃO: a execução específica contra o obrigado não faz

sentido, uma vez que já não é o proprietário do bem, e não há aqui

qualquer venda de bens alheios, uma vez que o obrigado era o

verdadeiro proprietário aquando da venda do bem a terceiro.

• DIAS MARQUES: instauração de uma acção de execução específica contra o

terceiro.

• OLIVEIRA ASCENSÃO: instauração de uma acção de execução específica

simultaneamente contra o terceiro e o obrigado.

o MENEZES LEITÃO: não pode ser instaurada uma acção de execução

específica contra o terceiro na medida em que falta o pressuposto

essencial de o terceiro estar obrigado, para com o beneficiário da

promessa, a celebrar um contrato definitivo.

• MENEZES CORDEIRO: instauração de uma acção de reivindicação adaptada

contra o terceiro [art. 1315º].

o MENEZES LEITÃO: a acção de reivindicação não tem natureza

constitutiva, ao invés do exercício da eficácia real [aquisição

potestativa de um direito real], mas apenas de mera apreciação –

reconhecimento de um direito real e consequente restituição da coisa

que é seu objecto [art. 1311º].

Face às críticas endereçadas por MENEZES LEITÃO a cada uma das propostas

doutrinárias, o autor propõe a instauração de uma acção declarativa constitutiva,

eventualmente cumulável com um pedido de restituição, em litisconsórcio necessário contra

o promitente faltoso e o terceiro adquirente.

Incumprimento do Contrato-Promessa

§1: MEIOS DE DEFESA. Ao contrato-promessa que seja incumprido por uma das partes

[promitente faltoso], pode o promitente fiel opor-lhe os seguintes meios de defesa:

62
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Responsabilidade obrigacional [arts. 798º ss]

• Execução específica [art. 830º]

• Sinal ou outra indemnização pré-convencionada [art. 442º]

• Aumento do valor da coisa ou do direito [art. 442º-2, 2ª parte]

• Direito de retenção [art. 755º f]

Cada um destes meios que fazem valer a posição do promitente fiel serão estudados

infra com maior detalhe.

Responsabilidade Obrigacional

§1: REMISSÃO. Estando em causa a violação de deveres específicos, a culpa do

promitente faltoso presume-se nos termos do art. 799º, aplicando-se os arts. 798º ss.

Só existe responsabilidade obrigacional nos casos de incumprimento definitivo [e não

apenas de mora, art. 808º], pelo que se remete o estudo deste instituto para o âmbito do

incumprimento das obrigações, infra.

Execução Específica

§1: NOÇÃO. Visto que no contrato-promessa os promitentes se vinculam a uma

prestação de facto jurídico, incoercível, o devedor não pode ser coagido pela força a emitir a

declaração negocial a que se obrigara, que conduziria à celebração do contrato-prometido.

Todavia, a lei admite a execução específica dessa obrigação: o devedor é substituído

no cumprimento, obtendo o credor a satisfação do seu direito pela via judicial.

63
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Por outras palavras, a execução específica consiste na emissão, pelo tribunal, de uma

sentença que produza os mesmos efeitos jurídicos da declaração negocial em falta,

constituindo-se, assim, o contrato definitivo [art. 830º-1].

Com efeito, dispõe o art. 830º-1:

• O não cumprimento da promessa atribui à outra parte, na falta de convenção

em contrário o direito a recorrer à execução específica, conforme definida

supra [nº 1].

o O “não cumprimento” da promessa deve ser entendido em sentido

lato, uma vez que é suficiente, para operar a execução específica, a

simples mora.

o A execução específica deixa de ser possível em caso de

impossibilidade definitiva de cumprimento [vg alienação do bem

prometido a um terceiro, caso em que a sentença judicial produziria

os efeitos de uma venda de bens alheios, art. 892º]. Ainda que a

acção de execução específica tenha sido registada antes do registo da

venda do bem a terceiro, deve entender-se que o direito de crédito

do promitente fiel não prevalece sobre o direito do terceiro

adquirente [MENEZES CORDEIRO], uma vez que esse entendimento

equivaleria à atribuição de eficácia real a todos os contratos-

promessa, derrogando-se o regime do art. 413º. A favor da

prevalência do [mero] direito de crédito do promitente fiel sobre o

direito real do terceiro, pronunciaram-se GALVÃO TELLES, OLIVEIRA

ASCENSÃO e, mais recentemente, PAULA COSTA E SILVA.

§2: LIMITES À EXECUÇÃO ESPECÍFICA. Há casos em que a execução específica do

contrato-promessa não é possível:

• Havendo convenção em contrário [art. 830º-1 e 2]:

o A possibilidade de execução específica da obrigação de contratar não

é um regime imperativo, uma vez que pode ser derrogado.

64
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Presume-se convenção em contrário caso as partes estipulem sinal ou

outra penalização para o incumprimento da promessa, maxime

cláusula penal [nº 2] – presunção ilidível, nos termos gerais [art. 350º-

2], de que as partes queriam uma “indemnização”, e não a emissão

da declaração omitida.

• Quando a execução específica seja incompatível com a natureza da obrigação

assumida:

o A natureza do contrato-promessa não se apresenta como compatível

com a sua constituição por sentença judicial nos seguintes casos [nº1,

2ª parte]:

 Contrato-promessa relativo a contrato real quoad

constitutionem [penhor de coisas, mútuo, comodato e

depósito], já que se exige a tradição da coisa, de forma

espontânea, para se poder operar a constituição do contrato

definitivo: sem coacção para tal, pelo tribunal.

 Contrato-promessa de contrato de trabalho [carácter pessoal

da prestação de trabalho].

 Contrato-promessa que verse sobre convenções antenupciais,

no âmbito do Direito da Família.

Não sendo possível a execução específica, o incumprimento do contrato-promessa

pode apenas gerar indemnização por responsabilidade contratual [arts. 798º ss], nos termos

gerais.

§3: HIPOTECA. Quando se trate de execução específica de contrato-promessa relativo

à celebração de contrato oneroso de transmissão ou constituição de direito real sobre edifício

ou fracção autónoma dele:

• Essa execução específica é imperativa: o direito à execução específica não

poderá ser afastado pelas partes [nº 3 e 410º-3] e a estipulação de sinal ou de

cláusula penal não presume o afastamento da execução específica, neste caso

[vs nº 2].

65
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Se o bem prometido estiver livre de ónus ou encargos, mas encontrar-se

hipotecado, na acção de execução específica pode ser simultaneamente

pedida a condenação do promitente faltoso na quantia necessária para

expurgar a hipoteca [nº 4 e 721º]: protege-se a posição do promitente-

comprador, permitindo que adquira um bem desonerado.

§4: EXCEPÇÃO DO NÃO CUMPRIMENTO. Diferentemente, se o contrato-promessa

incumprido possibilitar ao obrigado a invocação da excepção de não cumprimento:

• A acção de execução específica improcede se o promitente fiel não consignar

em depósito a sua prestação, no prazo que lhe for fixado pelo tribunal [nº 5 e

428º] – ónus do promitente fiel que tutela o promitente faltoso.

• A excepção de não cumprimento do contrato é de parca aplicação prática

[veja-se o caso do dealer de droga que exige a entrega da mala com a quantia

devida, no preciso momento em que entregar a mala com a “mercadoria”,

vg].

Sinal

§1: NOÇÃO. Em sede de contrato-promessa, o sinal assume uma função

preponderante, já que o seu regime suscita inúmeros problemas dogmáticos quanto à matéria

que ora estudamos.

Por sinal [art. 442º] entende-se a cláusula acessória dos contratos onerosos mediante

a qual uma das partes entrega à outra, por ocasião da celebração do contrato, determinada

coisa fungível.

§2: REGIME GERAL. Esta cláusula acessória tem uma utilidade prática inquestionável,

uma vez que fixa as consequências do incumprimento do contrato oneroso na qual é aposta:

• Se a parte que constituiu/entregou o sinal deixou de cumprir a sua obrigação,

a outra parte tem o direito de fazer sua a coisa entregue [art. 442º-2, 1ª

parte], ou se a impossibilidade for imputável a essa parte.

66
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Se o incumprimento partir de quem recebeu o sinal, tem este que o devolver

em dobro [art. 442º-2, 1ª parte], ou se a impossibilidade for imputável a essa

parte.

• Se não houver qualquer incumprimento de nenhuma das partes, e o contrato

for integralmente cumprido enquanto tal, a coisa entregue como sinal será

imputada na prestação devida, se tiver a mesma natureza da obrigação

assumida [tratando-se se uma quantia monetária, será subtraída ao montante

devido como preço, vg] ou restituída em singelo, se essa imputação não for

possível [art. 442º-1], sob pena de enriquecimento sem causa de quem

recebera o sinal [art. 473º-1] – facto não imputável a nenhuma das partes.

• Se houver impossibilidade imputável a ambas as partes, os direitos recíprocos

a indemnização extinguem-se por compensação [art. 847º], subsistindo o

dever de restituir o sinal em singelo.

Este regime [art. 442º-1 e 2, 1ª parte] aplica-se a qualquer contrato oneroso no qual

as partes estipulem sinal: face a estes traços gerais, MENEZES LEITÃO classifica o sinal

enquanto uma datio rei com função confirmatória-penal, que se aproxima da cláusula penal

[art. 810º - embora não consista no pagamento a posteriori de uma quantia pecuniária, como

na cláusula penal] e pressupõe a entrega prévia de uma coisa fungível [contrato real quoad

constitutionem e quoad effectum].

Ainda assim, a realização de uma datio rei por uma das partes aquando da celebração

do contrato não presume, nos termos gerais, a constituição de sinal [art. 440º]: a datio rei é

vista como uma antecipação do cumprimento da obrigação, e não como a constituição de

sinal, salvo estipulação expressa das partes.

§3: O SINAL NO CONTRATO-PROMESSA. A redacção do art. 442º não é clara quanto à

divisão do mesmo. Todavia, doutrinariamente estabeleceu-se que os nº 2, 2ª parte, nº 3 e nº 4

se aplicam exclusivamente aos casos de sinal em contrato-promessa.

Em sede de contrato-promessa, diferentemente do que supra §2 foi enunciado, a

datio rei nunca se poderia qualificar como antecipação do cumprimento da prestação, uma

vez que o contrato-promessa apenas institui obrigações de prestação de facto jurídico [a

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

emissão da declaração de celebração do contrato definitivo]. Coerentemente, presume-se

que todas as quantias em dinheiro [datio pecuniae] entregues nesta sede, pelo promitente-

comprador ao promitente-vendedor, foram pagas a título de sinal [art. 441º]. Compreende-se:

a obrigação de pagamento do preço só surge com o contrato definitivo.

Esta presunção é ilidível nos termos gerais [art. 350º-2], valendo a quantia, nesse

caso, como antecipação do cumprimento de uma obrigação futura, a imputar na prestação

devida. Se a obrigação não se chegar a constituir, a quantia deve ser restituída em singelo,

sob pena de enriquecimento sem causa de quem a haja recebido [art. 473º-2, condictio ob

causam finitam].

Cumpre analisar detalhadamente o regime do sinal relativamente ao contrato-

promessa.

§4: DIREITO AO AUMENTO DO VALOR DA COISA/DIREITO. Segundo o art. 442º-2, 2ª

parte, no caso de incumprimento do contrato-promessa, o promitente-comprador que haja

recebido a coisa a que se refere o contrato prometido mediante tradição, tem o direito de:

• Exigir o valor da coisa ou do direito [determinado de forma objectiva à data

do não cumprimento da promessa],

• Com dedução do preço convencionado,

• Para além da restituição do sinal,

• E da parte do preço que já tenha pago.

Esta faculdade consiste numa alternativa, do promitente-adquirente, às regras gerais

do incumprimento do contrato oneroso com sinal: restituição do sinal em dobro [nº 2, 1ª

parte] e restituição dos valores já pagos como antecipação do preço. O promitente-

adquirente não pode, por isso, recorrer aos outros mecanismos de defesa perante o

incumprimento do contrato-promessa.

A razão histórica da opção pelo aumento do valor da coisa/direito é compreensível

face à conjuntura de inflação e especulação imobiliária que marcou a década de 80:

desvalorização das quantias em dinheiro e correlativa valorização dos bens imóveis. A demora

na execução do contrato-promessa [na celebração do contrato definitivo, enfim], maxime

68
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

tratando-se de contrato-promessa de celebração do contrato definitivo de compra e venda de

bem imóvel, sujeito a escritura pública e a outras formalidades, levava a que deixasse de

haver uma correspondência económica entre o preço estipulado para o contrato definitivo e o

valor actual da coisa prometida. Essa diferença compensava o incumprimento do contrato-

promessa, restituindo-se “somente” o sinal em dobro.

Hoje o promitente-adquirente pode exigir o montante correspondente à valorização

obtida pela coisa entre o momento da celebração do contrato-promessa e o momento do

incumprimento do mesmo, acrescido da restituição do sinal em singelo e da parte do preço

que haja pago.

Numa fórmula simples, sintetizaríamos:

Quantia recebida pelo promitente-adquirente = valor actual da coisa – preço

convencionado + sinal em singelo + parte do preço já paga.

Em suma, o legislador pretendeu, com as alterações legislativas, desincentivar os

incumprimentos do contrato-promessa. Sublinhe-se que não há enriquecimento sem causa

proprio sensu do promitente faltoso, uma vez que, à data da alienação da coisa a terceiros,

ele era ainda o verdadeiro e único titular do direito de propriedade, ainda que a ratio legis do

preceito seja reconduzida a esse instituto, por MENEZES LEITÃO, e não ao ressarcimento dos

danos. Está em causa, tão-só, uma forma de obstar às vantagens auferidas pela não execução

do contrato-promessa.

A tradição da coisa objecto do contrato definitivo constitutivo ou translativo de um

direito real, é um pressuposto essencial para operar esta opção do promitente-comprador,

uma vez que a celebração do contrato definitivo seria uma mera formalização de uma

situação de facto, já consolidada: o uso e fruição da coisa em causa, desde a celebração do

contrato-promessa.

Por outro lado, a exigência do aumento do valor da coisa/direito pressupõe ter sido

constituído sinal, uma vez que a tradição sem sinal seria um acto de mera tolerância

[MENEZES CORDEIRO e MENEZES LEITÃO]. Contra este entendimento, pronunciou-se GALVÃO

TELLES. Com efeito, o disposto no art. 442º-2, 2ª parte consiste numa disposição excepcional,

destinada a corrigir um funcionamento desvirtuado do sinal, pressupondo a sua constituição

69
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

prévia. Se, diferentemente, não tivesse havido qualquer estipulação de sinal, o promitente-

comprador:

• Receberia uma indemnização pré-convencionada, se fosse o caso.

• Poderia exigir uma indemnização pelos prejuízos causados com o

incumprimento, nos termos gerais [arts. 798º ss].

• Poderia exigir a execução específica do contrato [art. 830º-1].

Com recurso a qualquer um destes meios, o promitente fiel obteria eficazmente a

reintegração da sua esfera jurídica com o dano resultante do incumprimento, pelo que seria

desnecessária a opção do aumento do valor da coisa/direito, segundo MENEZES LEITÃO.

§5: SINAL E EXECUÇÃO ESPECÍFICA. No art. 442º-3, 1ª parte, também exclusivamente

aplicável aos casos de constituição de sinal em contrato-promessa, temos que em qualquer

dos casos [perda do sinal/restituição do sinal em dobro ou direito ao aumento do valor da

coisa/direito], o promitente fiel pode, em alternativa, requerer a execução específica do

contrato, nos termos do art. 830º. Cumpre apreciar:

A redacção é infeliz, uma vez que dir-se-ia que o promitente fiel teria sempre a

possibilidade de optar pela execução específica, em alternativa ao sinal. Não é assim:

havendo sinal, presume-se que as partes efectuaram uma estipulação contrária à execução

específica [recorde-se o teor do art. 830º-2, supra explicitado]. A execução específica só

pode funcionar em alternativa às soluções “perda do sinal/restituição do sinal em dobro ou

direito ao aumento do valor da coisa/direito” se as partes ilidirem essa presunção, ou se se

tratar de um caso de execução específica imperativa [art. 830º-3].

Reformulando o disposto no preceito, a doutrina maioritária reconduziu esta infeliz

redacção à seguinte fórmula: “Existindo ou não tradição da coisa, conforme previsto no

número anterior [art. 442º-2, 1ª e 2ª parte], o contraente não faltoso pode requerer a

execução específica do contrato, nos termos do art. 830º”.

§6: EXCEPÇÃO DO CUMPRIMENTO DO CONTRATO-PROMESSA. No art. 442º-3, 2ª

parte consagrou-se expressamente a solução defendida por MENEZES CORDEIRO, pelo autor

apelidada de “excepção do cumprimento do contrato-promessa”.

70
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Com efeito, admite-se que a oferta do cumprimento da promessa, pelo promitente

faltoso, paralise o direito ao aumento do valor da coisa/direito [art. 442º-2, 2ªparte], uma

vez que o cumprimento da obrigação em falta representaria uma excepção [situação jurídica

activa susceptível de paralisar o direito da contraparte].

MENEZES LEITÃO é favorável a esta solução, uma vez que reconduz a figura do

direito ao aumento do valor da coisa/direito ao instituto do enriquecimento sem causa [cfr.

supra §4].

Discutível é a expressão legal “salvo o disposto no art. 808º” [art. 442º-3, 2ª parte]. O

art. 808º refere os casos em que a mora se converte em incumprimento definitivo [seja por

perda do interesse do credor ou por desrespeito pelo prazo razoavelmente fixado pelo credor

para o cumprimento – interpelação admonitória], permitindo a aplicação do disposto nos arts.

798º ss. Duas interpretações desta expressão seriam teoricamente possíveis:

• Dispensa-se, em sede de contrato-promessa, essa conversão da mora em

incumprimento definitivo: o esquema do sinal e do direito ao aumento do

valor da coisa/direito funcionariam ante mera mora.

• Continuar-se-ia a exigir o incumprimento definitivo da obrigação para a

constituição desses direitos, na esteira do art. 442º-2, 1ª parte.

MENEZES LEITÃO pronuncia-se no primeiro sentido: uma vez que a excepção do

cumprimento consiste numa oferta de cumprimento em relação a um contrato-promessa, essa

oferta não faria qualquer sentido face a um contrato-promessa definitivamente incumprido,

antes consistindo numa forma de purgação da mora [evitar que a mora se converta em

incumprimento definitivo].

Conclui-se: para a aplicação do art. 442º-2, 2ª parte [direito ao aumento do valor da

coisa/direito] bastaria a mera ocorrência de mora no cumprimento, segundo ANTUNES

VARELA e MENEZES CORDEIRO. Contra este entendimento, exigindo uma situação de

incumprimento definitivo, pronunciaram-se GALVÃO TELLES e CALVÃO DA SILVA.

Posições intermédias delinearam-se perante a controvérsia: ALMEIDA COSTA

considerou que o novo regime legal [art. 442º-3, 2ª parte] havia acrescentado ao art. 808º

uma nova hipótese de transformação da mora em incumprimento definitivo [o direito ao

aumento do valor da coisa/direito]. Por seu lado, JANUÁRIO GOMES considerou exigível a

71
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

outorga ao promitente faltoso de um prazo suplementar de cumprimento, prévio à restituição

do sinal em dobro ou do aumento do valor da coisa/direito, findo o qual o devedor poderia

oferecer-se para cumprir a obrigação [excepção do cumprimento do contrato-promessa] ou,

caso não o fizesse, a mora transferir-se-ia em incumprimento definitivo, nos termos gerais

[art. 808º].

MENEZES LEITÃO, ante a querela doutrinária, estabeleceu alguns pontos assentes

sobre o regime do sinal no contrato-promessa:

• O art. 442º-3 é uma disposição específica sobre o regime do sinal no contrato-

promessa, pelo que dela não poderão ser extraídas conclusões sobre o regime

do sinal em geral [art. 441º-1 e 2, 1ª parte].

• Regime do sinal em geral [art. 441º-1 e 2, 1ª parte]: a lei exige o

incumprimento definitivo da obrigação, sob pena de se considerar a perda do

sinal ou a sua restituição em dobro enquanto sanções desproporcionadas para

simples mora no cumprimento. Por outro lado, cominar tais sanções à simples

mora provocaria uma quebra sistemática entre o regime do sinal e o regime

da cláusula penal, com o qual o primeiro se identifica parcialmente [a

cláusula penal apenas pode ser exigida com o incumprimento definitivo da

obrigação, a menos que as partes a estabeleçam para o atraso da prestação,

art. 811º-1].

• Regime do sinal no contrato-promessa [art. 442º-2, 2ª parte, nº 3 e nº 4]:

o Diferentemente, a opção pelo aumento do valor da coisa/direito pode

ocorrer em caso de simples mora, valendo como renúncia do

promitente fiel às regras gerais do sinal [as quais, em caso de

eventual conversão em incumprimento definitivo, não poderá invocar

a seu favor]. Sistematicamente encontra-se referida no art. 442º-3, 2ª

parte, que, na 1ª parte, menciona a execução específica [cujo

pressuposto é a mora e não o incumprimento definitivo].

 Havendo simples mora, o promitente fiel deve comunicar o

seu interesse no aumento do valor da coisa/direito ao

promitente faltoso, para que este, paralisando essa

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

restituição, possa oferecer-se para o cumprimento da

obrigação em falta [excepção do cumprimento do contrato-

promessa].

 Verificando-se o incumprimento definitivo [seja por perda do

interesse do credor, seja pelo decurso do prazo da

interpelação admonitória, art. 808º], o promitente faltoso

terá que restituir o aumento do valor da coisa/direito.

Esquema do regime do sinal:

Perda do sinal

Incumprimento definitivo

[art. 442º-2, 1ª parte]

Restituição do sinal em dobro

Simples mora ----- Opção pelo aumento do valor da coisa/direito

+ responsabilidade por danos moratórios

§7: INDEMNIZAÇÃO E SINAL. Dispõe o art. 442º-4 que, na ausência de estipulação em

contrário não há lugar, pelo não cumprimento do contrato-promessa [recorde-se que

MENEZES LEITÃO considera que o art. 442º-2, 2ªparte, nº 3 e nº 4 se aplica exclusivamente ao

regime do sinal no contrato-promessa], a qualquer outra indemnização, nos casos de:

• Perda do sinal

• Restituição do sinal em dobro

• Aumento do valor da coisa/direito

Conclui-se: o sinal funciona como uma fixação antecipada da indemnização devida,

em caso de não cumprimento. A parte não poderá reclamar outras indemnizações para além

daquelas supra elencadas, com uma nuance: se o contraente faltoso [o alienante] não cumprir

a obrigação de restituição do sinal em dobro ou incorrer em mora, a contraparte poderá

sempre pedir uma indemnização pelos danos causados, nos termos gerais da responsabilidade

obrigacional [arts. 798º ss].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Todavia, é admitida estipulação em contrário, caso em que a convenção de sinal

funcionará como limite mínimo da indemnização.

§8: FUNÇÕES DO SINAL. Retomando a introdução supra §2, MENEZES LEITÃO,

MENEZES CORDEIRO e GALVÃO TELLES consideram que o sinal assume uma função

confirmatória-penal, na medida em que só pode ser exigido em caso de incumprimento

definitivo e funciona como pré-determinação das consequências desse incumprimento.

Direito de Retenção

§1: NOÇÃO. O promitente que obteve a tradição da coisa tem direito de retenção,

nos termos do art. 755º f). Com efeito, dispõe a referida alínea:

“nº 1: Gozam ainda do direito de retenção:

[…]

f) O beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que

obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo

crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 442º”.

§2: PRESSUPOSTOS. Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, pode o

promitente fiel que tenha recebido a coisa em tradição executá-la com preferência aos

demais credores do devedor [art. 759º-1], prevalecendo mesmo sobre hipoteca, ainda que

registada anteriormente [art. 759º-2 e art. 5º-2 CR Predial] – direito crédito oponível inter

partes e direito real de garantia oponível erga omnes que lhe permite conservar a coisa na

sua posse.

Uma interpretação literal dos preceitos poderia tornar mais forte a pretensão do

promitente-comprador do que a do próprio comprador do imóvel hipotecado!

Nestes termos, MENEZES LEITÃO considera que o direito de retenção, em caso de

incumprimento de contrato-promessa, pressupõe não só tradição da coisa, mas também

constituição de sinal [veja-se a referência a “nos termos do art. 442º”, supra §1, e o que

supra foi dito quanto aos actos de mera tolerância, quando haja tradição sem sinal].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Preconiza, pois, uma interpretação restritiva do preceito: “crédito resultante do não

cumprimento imputável à outra parte” respeita apenas ao direito ao aumento do valor da

coisa/direito, se o credor optar por essa alternativa [art. 442º-2, 2ª parte, supra], e não à

indemnização pelo incumprimento, nos termos gerais da responsabilidade obrigacional [arts.

798º ss]. Também não respeita ao direito à restituição do sinal em dobro, uma vez que esse

direito ocorre haja ou não tradição da coisa [não pressupõe a conexão directa com a coisa,

enfim].

Pacto de Preferência

§1: NOÇÃO. Em sede de contratos preliminares encontramos o pacto de preferência

[arts. 414º ss]: a convenção pela qual alguém [obrigado à preferência] assume a obrigação de

dar preferência a outrem [preferente] na venda [negócio preferível] de determinada coisa. É

uma figura mais geral do que a preferência na venda, já que o art. 423º admite obrigações de

preferência em relação a outros contratos onerosos que não tenham cariz intuitu personae. O

obrigado à preferência não se obriga a contratar com o preferente: antes a escolhê-lo como

parte num negócio jurídico.

É um contrato preliminar de outro, tal como o contrato-promessa, embora o obrigado

à preferência não se obrigue a contratar, mas apenas a escolher alguém como contraente.

Reformulemos: o pacto de preferência é a convenção pela qual alguém assume a

obrigação de escolher outrem como contraente, nas mesmas condições negociadas com

terceiro, no caso de decidir contratar. É necessário que o preferente esteja disposto a

“acompanhar”, enfim.

É um contrato unilateral, já que apenas uma das partes assume uma obrigação,

enquanto que o titular da preferência é livre de exercer ou não o seu direito.

Havendo preferências recíprocas, temos ainda dois pactos, ainda que num mesmo

documento. Se uma das partes assiná-lo, a sua vinculação é válida, sem necessidade de

redução ou de conversão.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§2: FORMA. O art. 415º remete para o regime do contrato-promessa, quanto à forma

do pacto de preferência [art. 410º-2]. Nestes termos, se, para a celebração do contrato

preferível for exigido documento autêntico ou particular, exige-se que o pacto de preferência

conste de documento particular. Em qualquer outro caso, vinga a liberdade de forma, nos

termos gerais [art. 219º]. Todavia, apenas terá que ser assinado pelo obrigado à preferência,

já que se trata de um contrato unilateral [cfr. supra §1].

Não se aplica, contudo, o regime do art. 410º-3: a remissão legal do art. 415º não tem

esse alcance [contrato-promessa relativo à celebração de contrato oneroso de transmissão ou

constituição de direito real sobre edifício, ou fracção autónoma dele].

§3: EFICÁCIA REAL. Nos termos gerais, a estipulação do pacto de preferência atribui

apenas ao seu beneficiário um direito de crédito contra a outra parte, em face da

relatividade e inoponibilidade a terceiros.

A lei admite, contudo, que ao direito de preferência seja atribuída eficácia real [art.

421º e 413º], verificados os seguintes pressupostos:

• Bens imóveis e móveis sujeitos a registo

• Estipulação expressa das partes

• Celebrado por documento particular com assinatura do obrigado, se não

for exigida escritura pública para o contrato preferível

• Inscrição no registo

Não se confunda esta figura com a das preferências legais: essas têm sempre eficácia

real [podem sempre ser opostas ao terceiro adquirente], já que é a própria lei que concede a

preferência na venda ou dação em cumprimento da coisa objecto de direito real ou pessoal

de gozo. Exemplos:

• Compropriedade [art. 1409º]

• Arrendamento [art. 1091º]

Com efeito, segundo o art. 422º o direito convencional de preferência [art. 421º] não

prevalece contra os direitos legais de preferência, uma vez que as partes não podem,

mediante convenção, afastar direitos legalmente atribuídos, ainda que registado!

76
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

O titular da preferência não possui apenas, neste caso, um direito de crédito à

preferência, mas também um direito real de aquisição, oponível erga omnes, mesmo a

posteriores adquirentes da propriedade.

Neste caso, o processo adequado para o exercício do direito de preferência é a

denominada acção de preferência [art. 1410º]: extensível a qualquer titular de direitos reais

de preferência, e não apenas ao comproprietário. Pressupostos:

• Prazo: 6 meses

• Depósito do preço devido, no prazo de 15 dias

Quanto à legitimidade passiva para a acção de preferência:

• GALVÃO TELLES, ALMEIDA COSTA e MENEZES CORDEIRO: o obrigado à

preferência não seria parte legítima, salvo se o titular decidir cumular a

acção com um pedido de indemnização.

• ANTUNES VARELA e MENEZES LEITÃO: o obrigado à preferência tem

necessariamente que ser demandado, em litisconsórcio necessário passivo

com o terceiro adquirente.

Caso as partes simulem o preço, nos termos dos arts. 240º ss, cumpre apreciar duas

hipóteses:

• Se o preço declarado para a transmissão for superior ao preço

efectivamente pago, o titular da preferência deve exercê-la sobre o preço

real, uma vez que o negócio dissimulado é válido [art. 241º].

• Se o preço declarado para a transmissão for inferior ao preço

efectivamente pago, dir-se-ia que a lei impossibilitaria aos simuladores a

exigência da preferência pelo preço real [ANTUNES VARELA, VAZ SERRA,

CASTRO MENDES e MENEZES LEITÃO], uma vez que:

o Os simuladores não podem invocar a nulidade da simulação

contra terceiro de boa fé [art. 243º-1].

o Exclui-se a prova testemunhal na simulação [art. 394º-2].

77
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Contra este entendimento, MOTA PINTO, ALMEIDA COSTA,

MENEZES CORDEIRO e CARVALHO FERNANDES, uma vez que

isso equivaleria a autorizar um enriquecimento ilegítimo pelo

preferente à custa dos simuladores, preferindo pelo preço

simulado, inferior. Para MENEZES CORDEIRO, o preferente

não faria qualquer investimento de boa fé que mereça tal

tutela. Neste sentido, tem-se interpretado o art. 394º-2 de

forma restritiva.

§4: OBRIGAÇÃO DE PREFERÊNCIA. O regime da obrigação de preferência [arts. 416º a

418º] é igualmente aplicável em relação aos direitos legais de preferência.

Quanto à forma de cumprimento da obrigação de preferência, dispõe o art. 416º:

• A forma adequada é efectuar uma comunicação para preferência [para a

qual a lei não exige qualquer forma específica, art. 219º] – nº 1.

• Recebida a comunicação, deve o titular exercer o seu direito em 8 dias,

sob pena de caducidade – nº 2.

o MENEZES LEITÃO considera que, de iure condendo, o prazo

para o exercício do direito deveria ser mais longo, ainda que o

mesmo possa ser dilatado pelo obrigado na comunicação.

o A determinação do cumprimento da obrigação, por seu lado, é

de difícil demonstração em tribunal, uma vez que pode ser

feita verbalmente [art. 219º].

o A referência legal ao “projecto de venda” e às “cláusulas do

respectivo contrato” [nº 1] parece pressupor a existência de

um contrato preferível, não podendo ser considerada como

comunicação para preferência a emissão de propostas

contratuais ou de convites a contratar, vg. Assim:

 Não é comunicação para preferência: “quer comprar

por 100”? – proposta contratual ou convite a contratar

78
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

cuja rejeição, pelo titular do direito de preferência,

não implica a perda do seu direito de preferência.

 É comunicação para preferência: “vou vender a X por

100, quer preferir?” – o titular do direito é informado

de que o não exercício da preferência precludirá

definitivamente qualquer possibilidade de a exercer

no futuro. O direito extingue-se por inutilidade e há

lugar ao contrato.

• A comunicação para preferência não pode ser realizada logo que o

obrigado se encontre na situação de “querer vender” [nº 1], exigindo-se

antes uma negociação com terceiro e acordo das cláusulas a comunicar ao

titular do direito, que para ele sejam relevantes: preço e condições de

pagamento.

• A comunicação para preferência terá que ser efectuada antes da

celebração de um contrato definitivo com terceiro, ou já teria ocorrido o

incumprimento da obrigação de preferência.

• Se a forma da declaração não for respeitada, há responsabilidade pré-

contratual por culpa in contrahendo [art. 227º].

Face a esta norma, perguntou-se se a comunicação para preferência teria que conter

o nome do terceiro. A doutrina respondeu das seguintes formas:

• Não: OLIVEIRA ASCENSÃO – a referência ao nome de terceiro impediria o

obrigado à preferência de celebrar um contrato para pessoa a nomear

[MENEZES LEITÃO e ROMANO MARTINEZ: nesse caso a própria reserva de

nomeação deveria ser comunicada].

• Sim: GALVÃO TELLES e MENEZES CORDEIRO, por razões de boa fé.

• Sim, mas apenas nas situações em que o não-exercício da preferência

implique que subsistam relações jurídicas entre o terceiro e o titular da

preferência [vg compropriedade e arrendamento, supra]: PIRES DE LIMA,

ANTUNES VARELA e CARLOS BARATA.

79
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Sim, desde que o terceiro seja um sujeito determinado, ou, em caso

inverso, deve a situação de indeterminação ser mencionada na

comunicação, sob pena de o obrigado não ter que exercer o seu direito à

preferência, e de o direito não precludir se não for exercido: MENEZES

LEITÃO.

Nos mesmos termos, a reserva de nomeação, no contrato para pessoa a nomear,

infra, teria que ser mencionada na comunicação para preferência.

Em suma, a função do pacto de preferência é permitir que o titular da preferência

possa optar por contratar com o obrigado, em igualdade de condições com um terceiro

[recorde-se a noção supra §1]: nestes termos, se a comunicação não indicar o nome de

terceiro, não há qualquer hipótese de o titular da preferência verificar a veracidade das

condições comunicadas. Conclui-se: o titular do direito da preferência não tem que exercer o

seu direito se, na comunicação, não for indicado o nome do terceiro [MENEZES LEITÃO].

§5: INCUMPRIMENTO DA PREFERÊNCIA. Com a comunicação e o exercício da

preferência, ambas as partes formulam uma proposta de contrato e respectiva aceitação,

pelo que, se voltarem atrás com a sua decisão, praticam um facto ilícito: preenchidos os

requisitos de forma, e verificadas proposta e aceitação, tal implica a celebração do contrato

preferível, sem mais.

Quando tal não suceda, essas declarações valem como promessas de contratar, o que

permitirá o recurso à execução específica, em caso de incumprimento definitivo – celebração

de contrato incompatível, com terceiro [art. 830º]:

• Sem comunicação da preferência

• Com comunicação da preferência, e após comunicação, dentro do prazo,

da intenção do titular em exercer a preferência

O titular da preferência adquire o direito à indemnização pelo incumprimento

contratual, nos termos gerais dos arts. 798º ss: não pode, contudo, reclamar a coisa contra o

terceiro adquirente, uma vez que os direitos de crédito não prevalecem sobre os direitos

reais.

80
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Não incumpre a obrigação de preferência quem se comprometer a dar preferência no

arrendamento de uma casa e posteriormente o decidir vender a terceiro, vg: o obrigado

celebrou um contrato de natureza diferente do contrato preferível, pelo que não há qualquer

incumprimento.

§6. MANUTENÇÃO DA PREFERÊNCIA. Há duas hipóteses legais que justificam ainda a

manutenção da preferência:

• União de contratos [art. 417º]: venda da coisa juntamente com outras,

por um preço global.

o União externa: estipulação comum do preço, sem qualquer

dependência entre os vários contratos – o titular pode exercer

a preferência pelo preço que for atribuído proporcionalmente

à coisa [nº 1, 1ª parte].

o União interna: há dependência entre os vários contratos, pelo

que o exercício da preferência afecta toda a união de

contratos – o obrigado pode exigir que a preferência se faça

em relação a todas as coisas vendidas [nº1, 2ª parte]. Para

tal, exige-se que a quebra da união interna acarrete prejuízos

apreciáveis para uma das partes.

• Contratos mistos complementares [art. 418º]: também aplicável aos

contratos indirectos, mistos ou cumulativos [vg venda por preço

simbólico] – a prestação acessória deve ser compensada em dinheiro,

sendo excluída a preferência se a prestação não for avaliável.

O CONTEÚDO DOS CONTRATOS

Contrato a Favor de Terceiro

§1: NOÇÃO. O contrato a favor de terceiro, previsto nos arts. 443º ss, pode ser

definido como o contrato em que uma das partes [o promitente] se compromete perante

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

outra [o promissário] a efectuar uma atribuição patrimonial em benefício de outrem,

estranho ao negócio [o terceiro] – excepção à relatividade dos contratos.

Exemplos:

• Seguro de vida

• Seguro de responsabilidade civil

• Seguro de acidentes de trabalho

• Contrato com florista para que entregue as flores a terceiro

Essa atribuição patrimonial consiste normalmente na obrigação de efectuar uma

prestação [art. 443º-1], embora possa consistir numa liberação de uma obrigação, cessão de

um crédito ou constituição, modificação, transmissão ou extinção de um direito real [nº 2]. É

o promissário quem determina essa atribuição patrimonial, a realizar pelo promitente, desde

que relacionada com um interesse digno de protecção legal [nº 1]. Por desejo do promissário

assiste-se, por isso, a uma atribuição patrimonial indirecta entre este e o terceiro, que é

executada pelo promitente. O terceiro não é, contudo, interveniente no contrato, embora

adquira um direito contra o promitente, em virtude do contrato celebrado entre este e o

promissário.

Exemplo: A e B celebram um contrato nos termos do qual se convenciona extinguir

uma dívida de C.

Por isso frequentemente se apelida à situação jurídica complexa daqui emergente

“relação triangular”, analiticamente decomposta em três relações:

• Relação de cobertura ou de provisão: promitente e promissário [art. 449º]

• Relação de justificação da atribuição ou de valuta: promissário e terceiro

[atribuição patrimonial indirecta] – interesse digno de protecção legal.

• Relação de execução: promitente e terceiro [execução da determinação

do promissário]

Eis algumas modalidades de contrato a favor de terceiro:

• Contrato a favor de terceiro próprio ou impróprio

• Contrato a favor de pessoa determinada ou indeterminada

• Contrato a cumprir em vida do promissário ou depois da morte deste

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§2: REGIME GERAL. O regime geral do contrato a favor de terceiro é aquele que é

verdadeiro, a favor de pessoa determinada e a cumprir em vida do promissário.

O contrato a favor de terceiro constitui uma excepção ao regime da ineficácia dos

contratos em relação a terceiros [art. 406º-2], uma vez que faz nascer automaticamente um

direito para o terceiro, surgindo independentemente da aceitação deste [art. 444º-1] – teoria

do incremento, vs teoria da aceitação e teoria da cessão. Esse direito de crédito legitima o

terceiro a exigir o cumprimento da promessa [art. 444º-1].

Admite-se, contudo, que o terceiro rejeite a promessa, declarando-o ao promitente,

que o deve comunicar ao promissário [arts. 447º-1], extinguindo-se o direito por ele

adquirido. A adesão impede a revogação da promessa [art. 448º-1].

Para além do terceiro, o promissário pode também exigir do promitente o

cumprimento da sua obrigação [art. 444º-2], uma vez que acordou com o promitente a

realização da prestação a terceiro. Segundo TEIXEIRA DE SOUSA e MENEZES LEITÃO, existe

aqui apenas uma única posição jurídica objectiva que permite a aquisição da prestação: o

direito de crédito de terceiro.

§3: CONTRATO A FAVOR DE TERCEIRO IMPRÓPRIO. A promessa de liberação de

dívida [art. 444º-3] é um contrato a favor de terceiro impróprio, uma vez que o promitente e

o promissário acordam numa obrigação de resultado: a de que o promitente obterá a extinção

de uma dívida que o promissário tem para terceiro. Não há, aqui, qualquer adstrição a uma

prestação, pelo promitente, mas tão-só a liberação da dívida do promissário.

A prestação que o promitente realize perante terceiro, eventualmente, é meramente

instrumental, a fim de obter o resultado da liberação do promissário: só este tem interesse na

promessa, e não o terceiro.

§4: BENEFÍCIO DE PESSOA INDETERMINADA. Se o beneficiário da prestação for um

conjunto indeterminado de pessoas [vg interesse público, no limite], estabelece-se uma

legitimidade difusa para a exigência da prestação [art. 445º e 446º].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§5: PROMESSA A CUMPRIR DEPOIS DA MORTE DO PROMISSÁRIO. Esta constitui uma

excepção ao regime do art. 444º-1, uma vez que o terceiro não pode exigir o cumprimento da

promessa antes da verificação da morte do promissário. Pergunta-se:

• As partes pretenderam atribuir ao terceiro logo um direito de crédito

sobre o promitente, o qual apenas se vencerá no momento da morte do

promissário? – Se o terceiro morrer antes do promissário, os seus herdeiros

sucedem no seu direito sobre o promitente [art. 451º-2].

• Ou pretenderam que o direito de crédito apenas se constitua após a morte

do promissário, beneficiando até lá o terceiro apenas de uma expectativa

jurídica? – Os herdeiros do terceiro não o sucedem em nada, uma vez que,

quando o terceiro morreu, ainda não era titular de qualquer direito [art.

451º-1].

A lei foi compromissória nesta matéria, tentando consagrar ambos os entendimentos.

Paradoxo? A lei serviu-se de presunções, a ilidir nos termos gerais: o direito só é atribuído

com a morte do promissário e este designa subsidiariamente como beneficiários os herdeiros

do terceiro.

Esta promessa é sempre revogável, expressa ou tacitamente, enquanto o promissário

for vivo [art. 448º]: quer o direito já tenha sido adquirido pelo terceiro, quer a aquisição se

verifique após a sua morte. Exemplo: o promissário designa, em vida, outro beneficiário para

o seguro de vida que contraiu.

Contrato de Pessoa a Nomear

§1: NOÇÃO. Quando um dos intervenientes no contrato se reserva a faculdade de

designar outrem para adquirir os direitos ou assumir as obrigações resultantes desse contrato

[art. 452º-1], é admitida uma dissociação subjectiva entre a pessoa que celebra o contrato e

aquela onde vão repercutir-se os respectivos efeitos jurídicos.

Efectuada a designação da pessoa, no contrato de pessoa a nomear, os efeitos vão-se

repercutir directamente na esfera do nomeado [amicus], não ocorrendo qualquer

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

transmissão, mas sim um fenómeno de substituição de contraentes [art. 455º-1]. A eficácia é,

pois, retroactiva.

Exemplo: A doa a B um relógio, reservando-se B a faculdade de nomear um terceiro

para assumir a posição do contrato.

Normalmente, a reserva de nomeação de terceiro é colocada em alternativa com a

subsistência do contraente originário no contrato, pelo que se não for efectuada a nomeação

nos termos legais, o contrato irá produzir os seus efeitos em relação ao contraente originário

[art. 455º-2]. Estipulação em contrário é, contudo, admitida, caso em que a não verificação

da nomeação acarretará a ineficácia do contrato – vg se as partes acordarem que em caso

algum o contrato virá a produzir efeitos em relação ao contraente originário.

§2: PRESSUPOSTOS. A nomeação deve observar:

• Forma: escrita

• No prazo convencionado ou em 5 dias [art. 453º-1] – nomeação

intempestiva, se decorrer o prazo.

• Ratificação do contrato ou de procuração anterior à celebração deste

[art. 453º-2] – requisito necessário: atribuição de poderes representativos

por parte do nomeado, garantindo a sua vinculação ao contrato.

• Sendo exigida ratificação, deve ser outorgada por escrito [art. 454º-1], se

forma mais solene não for exigível [nº 2].

§3: NATUREZA JURÍDICA. O contrato para pessoa a nomear é um contrato

simultaneamente celebrado em nome próprio e em nome alheio.

A sua celebração em nome próprio está sujeita a uma condição resolutiva, e a sua

celebração em nome alheio está sujeita a uma condição suspensiva: a eficaz nomeação do

terceiro – teoria da dupla condição, segundo MENEZES CORDEIRO.

TRANSMISSÃO DAS OBRIGAÇÕES

A TRANSMISSIBILIDADE DOS CRÉDITOS E DAS DÍVIDAS

85
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Cessão de Créditos

TRANSMISSÃO DO LADO ACTIVO

§1: NOÇÃO. A cessão de créditos consiste numa forma de transmissão de crédito que

opera por virtude de um negócio jurídico, normalmente um contrato celebrado entre o credor

[cedente] e terceiro [cessionário] – arts. 577º ss.

Exemplo: A, cedente locador, transmite o seu direito de crédito face a B, locatário, a

C, cessionário, que passa a cobrar as rendas.

Não se exige qualquer consentimento do devedor, nem a prestação de qualquer

colaboração deste para que a cessão venha a ocorrer, uma vez que, para o devedor, é

indiferente realizar a prestação perante um ou outro. A cessão de créditos tem, contudo, que

lhe ser notificada [art. 577º-1]. Em suma, transmite-se o direito de crédito do credor/cedente

para o terceiro cessionário, sendo que o último ocupa a posição jurídica do primeiro.

Modalidades:

• Legal

• Convencional

• Negócio jurídico unilateral

• Judicial

§2: PRESSUPOSTOS. Eis os pressupostos da cessão de créditos:

• Negócio jurídico a estabelecer a transmissão da totalidade ou da parte do

crédito, entre o antigo e o novo credor [cedente e cessionário]:

o Compra e venda ou doação, vg – o negócio-base/fonte é sempre

causal, pelo que se o negócio transmissivo vier a ser declarado nulo

ou anulado, tal determinará a anulação da transmissão do crédito

[arts. 289º a 291º] – a cessão não vale por si mesma.

o Dação em cumprimento: A, devedor de B, transmite-lhe, com o

acordo deste, um crédito que tem face a C, extinguindo a dívida, vg.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o A cessão de créditos integra-se nesse negócio, apresentando-se como

um efeito do mesmo [art. 578º-1].

o É através do regime do negócio-base que se determinará a forma e o

regime jurídico aplicável à cessão de créditos [art. 578º-2, quanto à

cessão de créditos hipotecários: escritura pública].

o Admissibilidade da cessão de créditos futuros: possível na venda, mas

não na doação [arts. 399º, 880º e 942º-1], desde que preenchido o

requisito da determinabilidade [art. 280º]. Neste caso:

 O crédito surge directamente na esfera do cessionário? –

Teoria da imediação: no caso de créditos futuros resultantes

de relações já constituídas, segundo LARENZ e ANTUNES

VARELA.

 Ou vem a passar primariamente pelo património do cedente? –

Teoria da transmissão: no caso de créditos futuros resultantes

de relações a constituir, segundo LARENZ e ANTUNES

VARELA.

 Contra este entendimento: art. 1058º e 821º, uma vez que

mesmo em relativamente a relações já constituídas é de

aplicar a teoria da transmissão. É esta a solução consagrada

relativamente à transmissão de créditos futuros [MOTA

PINTO].

Exemplo: C tem um apartamento arrendado a B, que lhe paga renda. C vende, em

Maio de 2007, a totalidade das rendas do ano de 2008 a A.

• Inexistência de impedimentos legais ou contratuais a essa transmissão:

o Admitem-se: créditos como o direito de preferência [art. 420º] ou o

direito a alimentos [art. 2008º].

o Proíbe-se: a cessão de créditos de direitos litigiosos a magistrados ou

outros funcionários judiciais [art. 579º], sob pena de nulidade [art.

580º-2].

87
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Pressupõe que não tenha sido convencionado entre o devedor e o

credor que o crédito não seria objecto de cessão [art. 577º] – pactum

de non cedendo, expressa ou tacitamente. Este pacto não coloca o

crédito fora do comércio jurídico, mas apenas gera uma obrigação

para o credor de não o transmitir a outrem. Não se trata de um caso

de nulidade da cessão.

o A convenção é inoponível a um cessionário de boa fé [art. 577º-2].

• Não ligação do crédito, em virtude da própria natureza da prestação, à

pessoa do credor:

o Se tal suceder, não faria sentido obrigar o devedor a prestar perante

pessoa diferente. Exemplos: direito a alimentos [art. 2003º], contrato

de serviço doméstico ou prestação de serviço dos médicos e

advogados.

o Sob pena de nulidade, nos termos do art. 294º.

§3: EFEITOS DA CESSÃO DE CRÉDITOS. Quanto aos efeitos da cessão de créditos,

cumpre distinguir:

• Efeitos em relação às partes:

o Transmissão do crédito do cedente para o cessionário

o A cessão opera por mero efeito do contrato

o A transmissão não é imediatamente oponível a terceiros

o Essa transmissão verifica-se com todas as vantagens e defeitos que o

crédito tinha, abrangendo garantias e outros acessórios [art. 582º].

 Transmitem-se as garantias inseparáveis da pessoa do cedente

[art. 582º-1]: fiança, penhor e hipoteca [arts. 627º, 666º e

686º ss].

 Direito de retenção: garantia intimamente ligada à pessoa do

cedente, que só poderá ser transmitida por acordo expresso

entre cedente e cessionário [arts. 754º ss].

88
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

 Reserva de propriedade: não pode ser transmitida com a

cessão de crédito, uma vez que seria necessária a resolução

do contrato por falta de pagamento do preço [art. 409º].

o A transmissão abrange as excepções que o devedor possuía contra o

cedente [art. 585º]: vg invalidade, resolução ou prescrição.

o O cedente tem que prestar ao cessionário a garantia da existência e

da exigibilidade do crédito ao tempo da cessão [art. 587º-1],

aplicando-se o regime do negócio base [arts. 892ºss ou 956º ss, no

caso de compra e venda ou doação].

o Obrigação de entrega de documentos [art. 586º].

• Efeitos em relação ao devedor:

o A transmissão só produz efeitos em relação ao devedor após:

 Notificação

 Aceitação [art. 583º-1]

 Conhecimento [art. 583º-2]

o A notificação ou a aceitação pelo devedor decidem qual a cessão que

vai prevalecer, em caso de dupla alienação do mesmo crédito [art.

584º]. Não estão sujeitas a forma especial [art. 219º].

o Se o devedor, antes da notificação ou aceitação, por ignorar a cessão

de créditos, pagar ao cedente ou celebrar com ele algum negócio

relativo ao crédito, o pagamento e o negócio têm efeitos sobre o

crédito, podendo até extingui-lo [art. 583º-2].

o O cessionário que veja o seu direito afectado pode instaurar uma

acção de enriquecimento sem causa contra o cedente

[enriquecimento por intervenção através da disposição eficaz de um

direito alheio] – a notificação é do interesse do cessionário.

o Oposição ao cessionário de todos os meios de defesa, pelo devedor,

que lhe era lícito invocar contra o cedente [art. 585º]: prazo da

prestação, excepção de não cumprimento, prescrição, vg.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Efeitos em relação a terceiros:

o A cessão produz efeitos independentemente de qualquer notificação:

a partir da sua verificação, podem os credores do cessionário

executar o crédito ou exercer a acção sub-rogatória.

o Depende de notificação ao devedor ou de aceitação por este num

caso: quando o crédito seja cedido a mais do que uma pessoa [art.

584º], prevalece a cessão que primeiro tiver sido notificada ao

devedor ou por este ter sido aceite. Se o devedor, conhecendo a

prioridade da primeira cessão, aceitar a segunda:

 Não realizará qualquer pagamento liberatório, pagando ao

segundo cessionário, segundo a autora ASSUNÇÃO CRISTAS.

 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA: rigidez da solução do

art. 584º e não aplicação do art. 583º-2 [exceptio doli], por

razões de segurança.

 MENEZES LEITÃO compatibiliza os dois preceitos, defendendo

que a prioridade é atribuída com base na notificação que

primeiro vier a ser efectuada ao devedor, salvo se,

desconhecendo a dupla alienação do crédito, tiver aceite

alguma das cessões.

Sub-rogação

TRANSMISSÃO DO LADO ACTIVO

§1: NOÇÃO. A sub-rogação [arts. 589º ss] consiste na situação que se verifica quando,

cumprida uma obrigação por terceiro, o crédito respectivo não se extingue, mas antes se

transmite por efeito desse cumprimento para o terceiro que realiza a prestação em lugar do

devedor ou forneceu os meios necessários para o cumprimento.

Enquanto que a cessão tem por base um negócio jurídico, a sub-rogação resulta de

um acto não negocial, o cumprimento, sendo a medida deste que determina a medida da sub-

90
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

rogação [art. 593º-1]. Para mais, é insusceptível de se verificar em relação a prestações

futuras.

§2: MODALIDADES. A lei admite as seguintes modalidades de sub-rogação:

 Sub-rogação pelo credor [art. 589º]:

o O credor/sub-rogante declara que pretende que o terceiro/sub-

rogado que cumpre a obrigação em vez do devedor venha, por virtude

desse cumprimento, a adquirir o crédito, podendo exigir

posteriormente ao devedor a realização dessa prestação.

o Requisitos cumulativos, sem os quais apenas se verifica um

cumprimento por terceiro, sem adquirir o crédito [ideia de tutela de

outros credores e garantes do devedor, de boa fé]:

 Cumprimento da obrigação por terceiro

 Declaração expressa anterior do credor a determinar a sub-

rogação [art. 217º], sem forma especial [art. 219º]. Não

havendo cumprimento, a declaração não extingue a

obrigação.

Exemplo: A deve € 100 a B. B declara expressamente que C fica sub-rogado nos seus

direitos, se pagar. C paga, podendo, por isso, exigir os € 100 a A.

 Sub-rogação directa pelo devedor/sub-rogante [art. 590º] a terceiro/sub-

rogado:

o Também pressupõe uma declaração deste, pretendendo que o

terceiro que cumpre a obrigação adquira o respectivo crédito.

o Declaração expressa, até ao momento do cumprimento, evitando a

extinção da dívida. Liberdade de forma, nos termos gerais [art. 219º].

o Não se admite eficácia retroactiva, pelas mesmas razões de tutela.

Exemplo: A deve € 100 a B. C paga € 100 a B. A declara, antes do cumprimento, que

esse pagamento determina a sub-rogação de C no direito de B.

91
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

 Sub-rogação indirecta em consequência de empréstimo efectuado ao devedor

[art. 591º]:

o Não é o terceiro quem cumpre a obrigação, mas sim o próprio

devedor, com meios facultados por um terceiro [que lhe empresta

dinheiro ou outra coisa fungível: mútuo]

o Declaração expressa, anterior ao empréstimo.

o Forma escrita simples [documento do empréstimo].

o Em consequência do mútuo o terceiro já adquire um crédito sobre o

devedor, não fazendo sentido que fique com dois créditos após a sub-

rogação – GALVÃO TELLES e MENEZES LEITÃO: a sub-rogação

substitui o primeiro crédito [mútuo] pelo segundo [transmitido pela

sub-rogação].

Exemplo: A deve € 100 a B. C empresta € 100 a A. A paga a B.

 Sub-rogação legal [art. 592º]:

o Independentemente de qualquer declaração do credor ou do devedor:

quando o terceiro tiver garantido o cumprimento ou estiver por

qualquer outra causa directamente interessado na satisfação do

crédito. O sub-rogado [terceiro] é garante do devedor que realizou a

prestação.

o Exemplo: se o terceiro for fiador do devedor ou tiver constituído um

penhor ou hipoteca sobre bens seus para garantia do cumprimento –

vg A deve €100 a B. C, fiador de A, paga 50% a B.

o O interesse directo do terceiro na satisfação do crédito e no

cumprimento tem que corresponder a um interesse próprio com

conteúdo económico prático, não bastando um interesse meramente

jurídico – vg subarrendatário paga ao senhorio em vez do

arrendatário, art. 1089º.

92
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§3: EFEITOS DA SUB-ROGAÇÃO. Os efeitos da sub-rogação encontram-se previstos no

art. 593º:

Transmissão do crédito na medida da sua satisfação:

O terceiro adquire, na medida da satisfação dada ao direito do credor, os

poderes que a este competiam: se o terceiro, numa dívida de € 1000

apenas pagar € 600, não fica sub-rogado na totalidade do crédito, mas

apenas no montante por ele satisfeito.

Transmissão das garantias e acessórios do crédito:

Cfr. supra, cessão de créditos [arts. 594º, 582º-584º]

Transmissão das excepções:

GALVÃO TELLES: o art. 585º aplicar-se-ia à sub-rogação, em geral.

Contra, ANTUNES VARELA: o art. 585º apenas pode ser aplicável aos

casos de sub-rogação pelo credor ou de sub-rogação legal. Com o

assentimento de MENEZES LEITÃO, que entende que, no caso de a

sub-rogação provir do próprio devedor, é-lhe vedada a invocação de

qualquer excepção.

Eficácia em relação ao devedor e terceiros:

Aplicam-se as disposições dos arts. 583º-584º, ex vi art. 594º.

Assunção de Dívida

TRANSMISSÃO DO LADO PASSIVO

§1: NOÇÃO. A transmissão a título singular de dívidas denomina-se assunção de dívida

e encontra-se prevista nos arts. 595º ss: transmissão singular de uma dívida através de

negócio jurídico celebrado com terceiro. Corresponde historicamente a uma delegação.

O acordo do credor é imprescindível.

§2: MODALIDADES. A assunção de dívidas pode verificar-se [art. 595º-1]:

93
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Por contrato entre o antigo e o novo devedor [assuntor], ratificado pelo

credor: assunção interna.

o A transmissão de dívidas resulta do efeito conjugado de dois negócios:

 Contrato entre o antigo e o novo devedor

 Negócio unilateral do credor, a ratificação, como condição de

eficácia da assunção de dívida em relação ao credor [do

primeiro contrato, enfim], podendo as partes distratá-lo

enquanto o credor não ratificar [art. 596º-1].

• Qualquer das partes pode fixar um prazo peremptório

para a ratificação, findo o qual esta se considerará

recusada [art. 596º-2].

• Só a partir do momento em que ocorre a ratificação é

que a assunção de dívidas se torna definitiva,

deixando as partes de a poder distratar.

• A ratificação, uma vez realizada, tem eficácia

retroactiva e a dívida considera-se transmitida no

momento da celebração do contrato. Com

divergências, esse efeito retroactivo é por uns

considerado pleno [RIBEIRO DE FARIA e MENEZES

LEITÃO], ou não implica, para outros, a ineficácia dos

actos conservatórios de crédito praticados no período

entre a ratificação e o contrato de assunção de dívida

[PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA].

Nota: suscita-se, neste âmbito, o seguinte problema – apesar da não ratificação pelo

credor, o negócio celebrado entre as partes pode valer como promessa de liberação

[assunção de cumprimento], nos termos do art. 444º-3? A doutrina alemã considera existir

uma regra interpretativa de que qualquer assunção de dívida não ratificada vale como

assunção de cumprimento. Entre nós, a mesma posição é sustentada [ANTUNEZ VARELA e

94
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

MENEZES LEITÃO], com base nos arts. 239º [vontade presumível das partes] e 293º

[conversão do negócio totalmente nulo].

• Por contrato entre o novo devedor [assuntor] e o credor, com ou sem

consentimento do antigo devedor: assunção externa.

o A transmissão da dívida resulta de apenas um único negócio jurídico:

 Contrato entre o novo devedor e o credor, ao qual o antigo

devedor pode ou não dar o seu consentimento.

• O consentimento do devedor é irrelevante.

• Assunção cumulativa:

o O antigo devedor não é liberado da sua obrigação, mantendo-se

solidariamente obrigado perante o credor [art. 595º-2, 2ª parte].

o O novo devedor fica vinculado por essa obrigação exactamente nos

mesmos termos que o antigo devedor, sem que a vinculação deste

seja afectada [sem exoneração].

o Regime:

 Efeitos na relação interna entre antigo e novo devedor:

• Transmissão da dívida do antigo para o novo devedor,

independentemente da exoneração concedida pelo

credor [art. 595º-2].

 Efeitos na relação externa dos devedores para com o credor:

• Na ausência de exoneração concedida pelo credor, os

dois devedores respondem solidariamente – o credor

pode exigir o cumprimento da obrigação a qualquer

um, indistintamente.

• A solidariedade imperfeita, e não conforme dispõem

os arts. 512ºss:

o O direito de regresso só existe do antigo

devedor sobre o novo devedor, num só

sentido

95
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Não se aplica a presunção do art. 516º

[comparticipação em partes iguais na dívida]

o O novo devedor goza de meios de defesa mais

amplos que o devedor solidário:

 O novo devedor não pode opor ao

credor quaisquer meios de defesa que

resultem da relação entre o antigo e o

novo devedor [art. 598º] – vg

promessa da prestação de uma

contrapartida: a assunção de dívidas é

um acto abstracto, protegendo o

credor.

 O novo devedor pode, sim, opor ao

credor os meios de defesa derivados

da relação entre ele próprio e o

credor, bem como os meios de defesa

existentes na relação antigo devedor

e credor, salvo meios de defesa

pessoais do primeiro:

• Pode: nulidade, prescrição,

impossibilidade e ineficácia.

• Não pode: erro, coacção, dolo

ou incapacidade do antigo

devedor, compensação.

• Assunção liberatória:

o Verifica-se a extinção da obrigação do antigo devedor, ficando

exclusivamente obrigado o novo devedor [art. 595º-2, 1ª parte].

o O novo devedor substitui integralmente o antigo devedor, que fica

assim exonerado.

96
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Declaração de exoneração do primitivo obrigado [antigo devedor],

que compete ao credor: declaração expressa, feita por palavras ou

outro meio directo de expressão da vontade [art. 217º]. Sem esta

declaração, exigível tanto na assunção externa como na assunção

interna [art. 595º-2], a assunção é cumulativa, com as consequências

supra.

 Ratificação: credor dá o seu acordo à transmissão, impedindo

as partes de a distratarem.

 Declaração expressa de exoneração: o credor extingue a

vinculação do antigo devedor.

o Regime:

 Com a exoneração concedida pelo credor ao primitivo

obrigado, o novo devedor torna-se no exclusivo devedor,

ficando o primeiro totalmente liberado da sua obrigação.

 O conteúdo da obrigação não se altera em virtude da

transmissão, pelo que o novo devedor permanece vinculado à

prestação nos mesmos termos que o antigo devedor [vs

novação: extinção do direito de crédito e substituição por um

outro]. O crédito é o mesmo, embora tenha sido

redireccionado de um sujeito para outro [assuntor].

 O credor deixa de poder demandar o antigo devedor, caso se

verifique a insolvência do assuntor, seja ele o novo devedor

ou garante da obrigação [art. 600º]. Admite-se, porém, que o

credor ressalve expressamente a responsabilidade do antigo

devedor [art. 600º, in fine], caso em que a responsabilidade

deste é subsidiária e não extinta.

Requisitos comuns às várias modalidades de assunção de dívida:

• Consentimento do credor

o É sempre necessário. Razões:

97
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

 Só o património do devedor responde perante o credor, pelo

que o consentimento do credor na assunção de dívida permite

obstar a transmissões de dívidas para devedores com

situações patrimoniais piores do que as do devedor originário.

 Exigência do consentimento do credor:

• Assunção interna: ratificação do contrato entre antigo

e novo devedor.

• Assunção externa: o próprio credor celebra o contrato

com o novo devedor.

• Contestada por MOTA PINTO.

 Em qualquer caso exige-se a declaração expressa supra para

exoneração do antigo devedor.

• Consentimento do novo devedor

o Não faria sentido impor a alguém a assunção de uma dívida, contra a

sua vontade.

o Não é necessário o consentimento do antigo devedor [claramente

dispensado na assunção externa], por maioria de razão: se o terceiro

pode cumprir a obrigação, mesmo com oposição do devedor [art.

768º-2], pode igualmente assumir as suas dívidas sem consentimento.

• Existência e validade do contrato de transmissão

o A transmissão da dívida deve decorrer de um contrato transmissivo da

obrigação que exista.

o Esse contrato não pode ser nulo ou anulável.

o Não há obstáculos legais à transmissão de dívidas futuras, tal como no

caso da cessão de créditos futuros, supra: basta o requisito da

determinabilidade [art. 280º], e que estas resultem de negócio já

celebrado ou a celebrar.

 Exemplo: assunção da obrigação de pagamento das rendas

devidas pelo locatário no ano de 2009.

98
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Se o contrato de transmissão da dívida for declarado nulo ou anulado

e o credor tiver exonerado o devedor primitivo [assunção liberatória],

renasce a obrigação anterior [art. 597º].

§3: NATUREZA JURÍDICA. A teoria da oferta colectiva ou teoria do contrato com o

credor, originalmente de MENZEL, veio a ser sustentada por MENEZES LEITÃO, no âmbito da

discussão doutrinária acerca da natureza jurídica da figura da assunção de dívidas.

Nestes termos, a assunção de dívidas corresponde como que a uma delegação, hoje

feita através de um contrato que envolve três pessoas: o delegante, o delegado e o credor

delegatário. Delegante e delegado fazem uma oferta colectiva ao credor, propondo a

substituição contratual, devendo o último dar o seu consentimento. A fonte da assunção de

dívidas reside, assim, num contrato trilateral.

Cessão da Posição Contratual

§1: NOÇÃO. A cessão da posição contratual [art. 424º] designa a transmissão da

situação jurídica mais vasta que engloba direitos, deveres, faculdades, poderes, ónus e

sujeições que resultam para uma parte da celebração de determinado negócio.

As vantagens na adopção desta figura residem no facto de permitir a transmissão de

negócios jurídicos em bloco, sem quebrar as ligações existentes entre as diversas situações

integrantes da posição contratual, cuja preservação interessa às partes.

Aqui, não se transmitem créditos ou dívidas individualmente, mas sim a própria

posição contratual globalmente considerada, enquanto situação jurídica complexa.

Não se confunda com:

• Subcontrato: alguém celebra um contrato com base na posição jurídica

que lhe advém de outro contrato do mesmo tipo, já previamente

celebrado com outrem [vg sublocação, subarrendamento, subempreitada

ou submandato]. O subcontrato depende do contrato principal, de modo

que a extinção do último importa a extinção do primeiro. Na cessão da

99
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

posição contratual, há a transmissão da posição contratual de um sujeito

para outro, enquanto que no subcontrato a relação contratual primitiva

permanece inalterada.

• Adesão ao contrato: um terceiro vem a constituir-se como parte numa

relação contratual existente entre duas pessoas, participando da posição

jurídica já atribuída a uma delas, sem que esta perca a titularidade dessa

mesma posição. Na cessão da posição contratual o cedente deixa de ser

parte do contrato, enquanto que na adesão ao contrato não há qualquer

transmissão contratual, mas apenas a agregação de uma terceira parte à

relação contratual.

§2: PRESSUPOSTOS. A cessão da posição contratual requer:

• Um contrato a estabelecer a transmissão da posição contratual, celebrado

com o consentimento do outro contraente [art. 424º]:

o Terá que ser um negócio unitário [transmissão da posição

contratual em globo] e não um mero somatório de cessões de

créditos ou de assunções de dívida.

o A assunção de obrigações pressupõe o consentimento do outro

contraente: a sua eficácia fica dependente do acordo posterior à

celebração do negócio [art. 424º-2]. Sem consentimento, e ao

contrário da assunção de dívidas, o negócio não pode valer como

assunção de cumprimento das obrigações do cedente. Se houver

recusa, pergunta-se se o negócio não poderá ser convertido, nos

termos do art. 293º, num contrato misto de cessão de créditos e

assunção cumulativa de dívidas: não o cremos, uma vez que a

assunção cumulativa não pode ser feita sem o consentimento do

credor [art. 595º-1a].

o Exemplo: compra e venda, doação ou dação em cumprimento –

negócios causais, uma vez que a cessão da posição contratual não

é um negócio abstracto.

100
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• A inclusão da referida posição contratual no âmbito dos contratos com

prestações recíprocas

o O art. 424º-1, 1ª parte, parece restringir a cessão da posição

contratual aos contratos com prestações recíprocas, conforme

sustentam GALVÃO TELLES, VAZ SERRA, ANTUNES VARELA e

ALMEIDA COSTA – poder-se-ia transmitir a posição contratual de

comprador ou de arrendatário, vg, mas não já a de mutuário ou

doador, transmissíveis apenas mediante cessão de créditos ou

assunção de dívidas.

o MOTA PINTO e MENEZES CORDEIRO criticaram esta posição, uma

vez que reconduziria a cessão da posição contratual a um mero

somatório de créditos e de dívidas, como já supra §1 afastámos.

Essa posição desconsidera a situação jurídica complexa que a

figura representa, pondo de parte direitos potestativos e deveres

acessórios. MENEZES LEITÃO concorda com esta posição, uma vez

que permite incluir neste âmbito os contratos bilaterais em que

uma das prestações já haja sido executada [vg na compra e venda

executada apenas pelo vendedor, este deve ter ainda direito a

uma eventual resolução do contrato por incumprimento do

comprador, art. 886º].

§3: EFEITOS. Cumpre distinguir:

• Relação entre cedente e cessionário:

o Transmite-se a posição contratual do cedente para o cessionário

 O cessionário adquire todos os créditos, poderes

potestativos e excepções e fica vinculado pelas

obrigações, deveres acessórios e sujeições resultantes.

101
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

 Contrato de execução periódica ou continuada: a cessão

da posição contratual abrange apenas as situações

jurídicas correspondentes ao período de tempo posterior à

celebração do negócio de transmissão: efeitos ex nunc.

 A maioria doutrinária rejeita que a cessão da posição

contratual possa abranger as consequências dos vícios

intrínsecos das declarações negociais [MOTA PINTO,

MENEZES CORDEIRO, MENEZES LEITÃO e ANTUNES

VARELA]. A faculdade de anulação do negócio [vg por

erro, dolo ou coacção] é inseparável da pessoa do

cedente, não sendo, por isso, objecto de transmissão. Não

faria qualquer sentido que o cessionário pudesse exercer

essa faculdade, uma vez que, em relação a ele, não se

verifica qualquer vício. Verificado o erro, dolo ou

coacção, o cedente pode, após a cessão da posição

contratual, solicitar a anulação do negócio, caso em que a

cessão se tornará nula por impossibilidade do objecto

[art. 280º-1].

o Garantia prestada pelo cedente relativamente à posição

contratual transmitida

 O cedente garante ao cessionário, no momento da cessão,

a existência [validade] da posição contratual transmitida

[art. 426º-1], nos mesmos termos que na cessão de

créditos [art. 587º]. A garantia do cumprimento das

obrigações [vg o cedente responder como fiador], essa, só

existe se for expressamente convencionada, nos termos

gerais [art. 426º-2].

 Tratando-se de uma venda, e se tal posição contratual

não existir ou for inválida, o cedente torna-se responsável

perante o cessionário nos termos dos arts. 894º e 899º.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Relação entre cessionário e o contraente cedido

o É perante o cessionário, único titular da posição contratual, que o

contraente cedido deve exercer os seus direitos e cumprir as

respectivas obrigações.

o Se, após a cessão, o contraente cedido efectuar o cumprimento

perante o cedente, esse cumprimento não tem efeito liberatório,

a menos que o último haja dado o seu consentimento antes da

transmissão [art. 424º-2].

o Relações contratuais duradouras [vg contratos de execução

periódica ou continuada]: a cessão apenas abrangerá as situações

jurídicas respeitantes ao período posterior à transmissão,

presumindo-se que os créditos e obrigações já vencidos se

mantêm na titularidade do cedente.

o Quanto às garantias das obrigações de que o contraente cedido

seja titular, aplica-se por analogia o disposto no art. 599º.

• Relação entre o cedente e o contraente cedido

o O cedente fica liberado de todas as obrigações, deveres acessórios

e sujeições emergentes do contrato, com algumas excepções:

 Se o cedente tiver causado danos à outra parte, em

virtude de incumprimento: a obrigação de indemnizar

mantém-se na sua titularidade.

o Com base na autonomia privada, podem as partes estipular a não

liberação do cedente nas suas obrigações, com a cessão, podendo

o mesmo responder como fiador ou devedor solidário, vg. O

cedente perde, ainda assim, a sua qualidade de parte no

contrato, assumindo antes um novo vínculo de garantia de

cumprimento de obrigação alheia, perante o cedido.

§4: NATUREZA JURÍDICA. Quanto à natureza jurídica da cessão da posição contratual,

MENEZES LEITÃO, na esteira de MOSSA, LARENZ e entre nós, MOTA PINTO, ANTUNES

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

VARELA, MENEZES CORDEIRO e RIBEIRO DE FARIA, sustenta a teoria da transmissão unitária,

nos termos da qual o crédito e a dívida não surgem isoladamente.

A posição contratual constitui, assim, uma situação jurídica complexa cuja

transmissão é possibilitada pela cessão da posição contratual.

DA EXTINÇÃO DAS OBRIGAÇÕES

Causas de Extinção dos Negócios Jurídicos

§1: GENERALIDADES. A extinção das obrigações verifica-se quando o negócio que lhes

serve de fonte é destruído:

• Por um negócio jurídico posterior:

o Revogação

o Resolução

o Denúncia

• Através de um facto jurídico stricto sensu:

o Caducidade

• Por um efeito conjugado dos dois:

o Oposição à renovação

Distinguiremos cada uma destas causas infra.

§2: REVOGAÇÃO. A revogação consiste na extinção do negócio jurídico por virtude de

uma manifestação da autonomia privada em sentido oposto àquela que o constituiu.

Tratando-se de um contrate, a revogação denomina-se distrate, sendo

necessariamente bilateral [art. 406º-1].

Se, no entanto, o negócio for unilateral, a revogação é igualmente unilateral [vg

revogação de promessa pública, art. 461º].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

A retroactividade da revogação pode ser livremente convencionada pelas partes,

excepto se tenha sido criada uma situação em benefício de terceiro ou quando o acto esteja

sujeito a registo e este tenha sido realizado.

§3: RESOLUÇÃO. A resolução do contrato [arts. 432ºss] consiste na extinção da

relação contratual por declaração unilateral de um dos contraentes, baseada num

fundamento ocorrido posteriormente à celebração do contrato. Processa-se sempre através

de um negócio jurídico unilateral [vs revogação], pelo que a decisão não está sujeita ao

acordo da contraparte.

É normalmente de exercício vinculado, e não discricionário, verificado um

fundamento legal ou convencional [cláusulas resolutivas] para tal [art. 432º-1]. Se esse

fundamento não se verificar, a resolução não é permitida [art. 406º-1].

Pode ser fundamentada pelo incumprimento contratual da contraparte [art. 801º-2]

ou pela justa causa [art. 1140º], maxime por meras razões de conveniência justificada do

comodante, no comodato.

Está, contudo, excluído o direito de resolução nos casos em que não haja

possibilidade de restituir o que se houver recebido [art. 432º-2], sob pena de enriquecimento

da parte que exerce a resolução.

Na falta de disposição, a resolução é equiparada à nulidade ou à anulabilidade do

contrato [art. 433º], aplicando-se o art. 289º: relação de liquidação, na qual se visa colocar as

partes na situação em que estariam se o contrato não tivesse sido celebrado [art. 290º].

Contudo, sublinhe-se que a resolução pode não ter eficácia retroactiva, contrariamente à

regra geral, se contrariar a vontade das partes ou a finalidade da resolução [art. 434º] – nos

contratos de execução continuada ou periódica seria contrário ao fim da resolução admitir a

restituição de prestações já pagas, vg. Por outro lado, e contrariamente à invalidade do

negócio [art. 291º], a resolução não pode, em caso algum, prejudicar terceiros [art. 435º-1].

A resolução efectua-se mediante simples declaração da parte, dispensando-se recurso

ao tribunal [solução alemã, vs francesa], nos termos do art. 436º-1, excepto o disposto no art.

1047º.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Evitando uma situação de indefinição, a contraparte pode fixar ao titular do direito

de resolução um prazo razoável para que o exerça, sob pena de caducidade [art. 436º-2].

§4: DENÚNCIA. À semelhança da resolução, a denúncia resulta também de um

negócio unilateral, pelo que se baseia unicamente na declaração de uma das partes.

O seu exercício é livre, não carecendo de qualquer fundamento. Limita-se aos

contratos de execução continuada ou duradoura [vg fornecimento ou mandato], em que as

partes não estipulam um prazo fixo de vigência. A denúncia é admitida a todo o tempo, de

forma a obstar a contratos perpétuos e a vínculos de duração indefinida.

A denúncia não é retroactiva, limitando-se a extinguir o contrato para o futuro [ex

nunc].

§5: CADUCIDADE. A caducidade do contrato consiste na sua extinção em virtude da

ocorrência de um facto jurídico stricto sensu, e não de um negócio ou de um acto jurídico: vg

decurso do tempo, verificação de condição resolutiva ou morte de uma das partes em

contrato intuitu personae.

§6: OPOSIÇÃO À RENOVAÇÃO. Conjugando as figuras da caducidade e da denúncia, a

oposição à renovação permite que as partes convencionem que o contrato vigore por períodos

limitados no tempo e, simultaneamente, prevêem a sua renovação tácita, não havendo

declaração em contrário. A lei impropriamente qualifica de denúncia a oposição à renovação

no contrato de locação, nos arts. 1054º e 1055º].

É de exercício livre, não é retroactiva mas só pode ser exercida até à renovação do

contrato.

Prescrição

§1: NOÇÃO. A prescrição é uma causa de extinção de direitos de crédito, ocorrendo

quando alguém adquire a possibilidade de se opor ao exercício de um direito, em virtude de

este não ter sido exercido durante um determinado lapso de tempo [art. 304º-1]. Trata-se de

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

uma excepção, na medida em que permite ao seu titular paralisar eficazmente um direito da

contraparte.

Não se confunda com a caducidade ou o não uso [art. 298º]. Quando um direito deva

ser exercido num lapso de tempo, a situação é qualificável de caducidade, a não ser que a lei

refira expressamente a prescrição. Quanto ao não uso, constitui uma causa de extinção

privativa dos direitos reais de gozo.

Assim, sempre que não exista um prazo especial de exercício, seja ele legal ou

convencional [caducidade], e não se esteja perante um direito real de gozo [não uso], ou

perante um direito indisponível [art. 298º-1], aplicam-se as regras da prescrição [arts.

300ºss], maxime o prazo ordinário de prescrição de 20 anos [art. 309º].

§2: MODALIDADES. A prescrição pode ser:

• Comum: funda-se no não exercício de um direito durante um lapso de

tempo, podendo o devedor recusar o cumprimento [art. 304º-1].

• Presuntiva: funda-se na presunção de que, após um certo lapso de tempo,

já se ter verificado o cumprimento da obrigação [art. 312º].

o Esta presunção só pode ser ilidida por confissão do devedor

originário, expressa ou tácita [arts. 313º e 314º].

§3: REGIME LEGAL. O regime legal da prescrição é imperativo [art. 300º], pelo que

são nulos os negócios jurídicos destinados a modificar os prazos legais. Carece de invocação

[art. 303º] por aquele a quem aproveita, não resultando automaticamente do decurso do

prazo. Caso o devedor não invoque a prescrição quando demandado judicialmente pelo

credor, o tribunal deve condená-lo no cumprimento [excepção peremptória extintiva].

Caso o devedor cumpra a obrigação, embora prescrita, não pode prevalecer-se da

repetição do indevido [restituição], uma vez que o cumprimento de obrigação prescrita

consiste numa obrigação natural, judicialmente inexigível [arts. 304º-2 e 402º].

A prescrição é renunciável, mas apenas uma vez decorrido o prazo prescricional [art.

302º-1].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Além do devedor, a prescrição pode ser invocada pelos seus credores e quaisquer

terceiros com legítimo interesse na sua declaração [art. 305º-1].

Impossibilidade Superveniente da Prestação

POR CAUSA NÃO IMPUTÁVEL AO DEVEDOR

§1: NOÇÃO. A impossibilidade da prestação é causa de extinção das obrigações

quando superveniente, objectiva, absoluta e definitiva [arts. 790ºss].

• Superveniente: a impossibilidade ocorre após a constituição da dívida.

o Se a impossibilidade fosse original, o negócio considerar-se-ia nulo

por impossibilidade do objecto [arts. 280º-1 e 401º-1], pelo que a

obrigação não chega sequer a constituir-se.

• Objectiva [salvo nas obrigações de prestação infungível]: a

impossibilidade tem que dizer respeito à prestação em si,

independentemente da pessoa que a realizar [a prestação impossibilita-se

uma vez que nem o devedor, nem qualquer outra pessoa, está em

condições de realizar a prestação].

o Se a impossibilidade fosse subjectiva, o devedor deveria fazer-se

substituir por outra pessoa no cumprimento [vg advogado que

adoece na véspera do julgamento, art. 767º-1].

o No caso de prestação infungível, a impossibilidade subjectiva

produz igualmente a extinção da obrigação [art. 767º-2 e 791º].

• Absoluta: a prestação torna-se efectivamente irrealizável.

o Se a impossibilidade fosse relativa, não importaria a extinção da

obrigação, embora pudesse desencadear o instituto da alteração

das circunstâncias, infra.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Definitiva:

o Se a impossibilidade fosse temporária, o devedor não responde

pelo atraso no cumprimento [art. 792º-1], mas continua adstrito à

realização da prestação. Se o credor perder o interesse na

realização da prestação, a impossibilidade temporária é

convertida em definitiva [nº2].

Se a impossibilidade revestir estas características, a obrigação extingue-se [art. 790º-

1], liberando o devedor da prestação e correndo o risco por conta do credor, que perde o seu

direito de crédito.

Tratando-se de impossibilidade parcial, o devedor exonera-se mediante a prestação

do que for possível, devendo ser proporcionalmente reduzida a prestação da contraparte [art.

793º-1], salvo perda de interesse do credor [nº2].

Se, em virtude do facto que tornou impossível a prestação, o devedor adquiriu algum

direito sobre certa coisa, em substituição do objecto da prestação, pode o credor exigir a

prestação dessa coisa [art. 794º: commodum de representação]. Esta figura destina-se a

corrigir o enriquecimento obtido pelo devedor em consequência da impossibilidade da

prestação [vg seguro ou subsídio] – o devedor não sofre prejuízos, uma vez que ficou

exonerado da sua obrigação.

§2: FRUSTRAÇÃO DO FIM DA PRESTAÇÃO E PERDA DO INTERESSE DO CREDOR. Se a

conduta a que o devedor se vinculou ainda for possível de realizar, mas há perda do interesse

do credor ou satisfação do mesmo por outra via, não há qualquer impossibilidade [MENEZES

LEITÃO], uma vez que a acção abstracta de prestar se mantém como possível. No entanto,

justifica-se a equiparação destas situações à impossibilidade, já que o credor não retira

qualquer benefício da acção do devedor, nem tem qualquer interesse na realização da

prestação [art. 398º-2].

§3: DISTRIBUIÇÃO DO RISCO. Já supra §1 foi mencionado que, tornando-se a

prestação impossível em termos objectivos, supervenientes, absolutos e definitivos, o

devedor exonera-se da mesma e o risco corre por conta do credor [art. 790º-1].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Todavia, o regime da impossibilidade apresenta especificidades quanto à distribuição

do risco, maxime tratando-se de contratos bilaterais/sinalagmáticos [cujo princípio da

interdependência de prestações impede que uma possa ser realizada sem que a outra o seja

também].

Por força do sinalagma, a impossibilidade afecta ambas as partes, pelo que o credor

fica desobrigado da contraprestação e tem o direito, se já a tiver realizado, de exigir a sua

restituição nos termos previstos para o enriquecimento sem causa, com fundamento no

desaparecimento superveniente da causa para a recepção da prestação – condictio ob causam

finitam [arts. 473º-2 e 795º-1]. A impossibilidade de uma das prestações extingue todo o

contrato, por caducidade, e o risco é distribuído por ambas as partes através da extinção

recíproca das suas obrigações. Não haverá lugar à extinção do direito do credor à

contraprestação no caso de este pretender exercer o direito de commodum de representação

[art. 794º], supra §1.

Se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao credor, este não fica

desobrigado da contraprestação [art. 795º-2].

Tratando-se de contrato sinalagmático, e havendo frustração do fim da prestação ou

realização do interesse do credor por outra via [supra §2], o devedor deve ser exonerado e,

por outro lado, compensado pelas despesas que haja efectuado, segundo MENEZES LEITÃO

[com recurso à aplicação analógica do art. 1227º, e não do regime da gestão de negócios,

como propugna ANTUNES VARELA].

A distribuição do risco [por impossibilidade, perecimento ou deterioração da coisa] é

também específica quanto a contratos reais de alienação. A regra geral [brocardo res perit

domino] é a de que o risco pelo perecimento ou deterioração da coisa cabe ao que for

proprietário dela, no momento em que tal evento se verifica [art. 796º-1]: o devedor fica

exonerado da sua obrigação, mas o credor, por conta do qual corre o risco, continua onerado

com a sua contraprestação. Com efeito, o risco é associado ao proveito que se retira da coisa,

o qual compete, em princípio, ao proprietário.

Para efeitos de aferição do momento da transferência do direito real, importa

recordar o teor do art. 408º: tratando-se de coisas determinadas, a transferência da

propriedade e, consequentemente, do risco, dá-se por mero efeito do contrato. Se, porém, o

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

contrato respeitar a coisas futuras, indeterminadas, frutos naturais ou partes integrantes de

uma coisa, a transferência é diferida para momento posterior:

• Coisas futuras: quando se der a aquisição da coisa pelo alienante.

• Coisas indeterminadas: quando a coisa for determinada com

conhecimento de ambas as partes, salvo obrigações genéricas [quando se

der a concentração da obrigação, arts. 540º e 541º].

o Tratando-se de promessa de envio [art. 797º], a transferência do

risco dá-se com a entrega ao transportador da coisa. Esta norma

apenas se aplica às obrigações genéricas [art. 541º], uma vez que

quando a coisa seja determinada, a transferência do risco dá-se

com a celebração do contrato, muito antes do envio.

• Frutos naturais ou partes integrantes de uma coisa: aquando da colheita

ou da separação.

Se, porém, a coisa tiver continuado em poder do alienante em consequência de termo

estabelecido a seu favor, o risco só se transfere com o vencimento do termo ou a entrega da

coisa – vg A vende um quadro mas entrega-o apenas um mês mais tarde, para exibi-lo numa

exposição [art. 796º-2]; se o mesmo vier a ser destruído, em virtude de incêndio na galeria,

vg, é A, o vendedor, que suporta o risco. A ressalva quanto ao disposto no art. 807º [art. 796º-

2, in fine] justifica-se na medida em que, se o alienante se constituir em mora quanto à

obrigação de entrega, esta acarreta a inversão do risco.

Cumpre estabelecer a distinção entre duas situações [art. 796º-3]:

• Contrato sujeito a condição resolutiva: o risco corre por conta do

adquirente se a coisa lhe tiver sido entregue.

o A condição resolutiva não impede a transmissão da propriedade

[art. 1307º-1].

o A entrega da coisa faz supor que é o adquirente quem está a tirar

proveito da mesma, justificando-se que seja ele a suportar o risco

• Contrato sujeito a condição suspensiva: o risco corre por conta do

alienante.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o A propriedade ainda não se transmitiu, uma vez que tal

transmissão é apenas eventual. Não se justifica, por isso, que seja

o adquirente a suportar o risco, mesmo que a coisa lhe haja sido

entregue, já que é mero detentor.

Alteração das Circunstâncias

§1: NOÇÃO. O instituto da alteração das circunstâncias [art. 437º] implica a

contradição entre dois princípios jurídicos:

• Princípio da autonomia privada: exige o pontual cumprimento dos

contratos livremente celebrados

• Princípio da boa fé: não é lícito a uma das partes exigir da outra o

cumprimento das suas obrigações quando se assista a uma alteração do

status quo que leve a um desequilíbrio entre prestações.

No âmbito do art. 437º deparamo-nos com uma concepção objectiva deste instituto,

uma vez que se referem as circunstâncias efectivamente existentes no momento da

celebração do contrato. Quando, todavia, contrapomos essa disposição ao teor do art. 252º-2,

acerca do erro sobre a base do negócio e da remissão para o regime da alteração das

circunstâncias, não podemos deixar de concluir por uma concepção subjectiva do mesmo

[falsa representação sobre essas circunstâncias]. MENEZES CORDEIRO e OLIVEIRA ASCENSÃO

rejeitam este entendimento, pondo em causa a remissão do art. 252º-2 para o regime da

alteração das circunstâncias, antes reconduzindo a questão para um problema de erro, nos

termos gerais, com consequente anulação do negócio jurídico, e não resolução ou

modificação segundo juízos de equidade.

§2: REQUISITOS. A aplicação da alteração das circunstâncias é possível, verificados os

seguintes requisitos:

• Existência de uma alteração das circunstâncias face àquelas em que as

partes fundaram a sua decisão de contratar:

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Apenas são relevantes as alterações das circunstâncias

efectivamente existentes à data da celebração do contrato, e que

tenham sido causais em relação à sua celebração pelas partes

[base do negócio objectiva].

o São irrelevantes: casos de falsa representação quanto às

circunstâncias [meros problemas de erro, anuláveis: cfr. supra §1]

• Carácter anormal dessa alteração:

o Imprevisibilidade: vg revolução ou estado de sítio, alterações

legislativas inesperadas.

• Alteração lesiva para uma das partes:

o Surge um desequilíbrio entre as prestações contratuais.

• Lesão de tal gravidade que se apresente como contrária à boa fé a

exigência do cumprimento das obrigações assumidas:

o Este instituto apresenta-se como uma modalidade específica de

abuso do direito [de crédito - art. 334º].

o A alteração das circunstâncias não pode ser invocada quanto a

contratos já executados [MENEZES CORDEIRO].

• Que não se encontre coberta pelos riscos próprios do contrato:

o Cada decisão de contratar envolve uma assunção de riscos, pelo

que só será considerada alteração das circunstâncias quando a

lesão não se reconduza ao círculo de riscos considerados como

normais daquele contrato.

o Exclui-se a aplicação deste instituto nos contratos aleatórios, em

que não haja limites quanto aos riscos assumidos pelas partes.

§3: MORA DA PARTE LESADA. O art. 438º nega à parte lesada o direito à resolução ou

modificação do contrato por alteração das circunstâncias se se encontrava em mora no

momento em que essa alteração se verificou. Coerentemente, a mora do devedor provoca

uma inversão do risco da prestação [art. 807º]. Nestes termos, se o devedor, por causa que

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

lhe é imputável, não cumprir na data aprazada, entende-se que assume o risco de verificação

de posteriores desequilíbrios contratuais.

Ressalve-se o regime previsto no art. 830º-3, 2ª parte, que estabelece que, na acção

de execução específica, a sentença pode determinar a modificação do contrato [e não a

resolução] nos termos do art. 437º, ainda que a alteração das circunstâncias seja posterior à

mora – nos casos de contratos-promessa de venda de edifícios ou fracções autónomas.

§4: EFEITOS. A alteração das circunstâncias origina um desequilíbrio contratual, que

cumpre colmatar. Tal é fundamento bastante para a resolução do contrato, nos termos do

art. 432º-1 [art. 437º-1], ou a modificação do mesmo segundo juízos de equidade.

Optando-se pela resolução do contrato, aplicam-se as regras desta [art. 439º]: efeito

retroactivo, com a ressalva face aos contratos de execução continuada ou periódica [sem que

abranja as prestações já realizadas, art. 434º-2]

Todavia, entende MENEZES LEITÃO que a resolução não tem que ser requerida em

juízo [contra ALMEIDA COSTA], com base no disposto no art. 436º-1, ex vi art. 439º, bastando

a mera declaração à contraparte, nos termos gerais.

Optando-se pela modificação segundo juízos de equidade, propõe MENEZES

CORDEIRO que se procure a reposição do equilíbrio contratual, tomando em atenção a

vontade das partes no contrato e a eficácia concreta da alteração na esfera da parte lesada.

Cumprimento

§1: NOÇÃO. O cumprimento consiste na realização da prestação devida, pelo devedor

[art. 762º-1]. A obrigação extingue-se através da satisfação do interesse do credor, com a

consequente liberação do devedor.

O cumprimento é, com efeito, a causa normal de extinção das obrigações, através da

concretização da conduta a que o credor tinha direito.

§2: PRINCÍPIOS GERAIS. Segundo MENEZES LEITÃO, o regime do cumprimento das

obrigações deve obedecer aos seguintes princípios:

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Princípio da pontualidade [arts 406º-1 e 762º-1]:

o Consagrado a propósito dos contratos [art. 406º-1], este princípio

deverá ser aplicável a todas as obrigações [GALVÃO TELLES].

o Pressupõe a exigência de uma correspondência integral em todos os

aspectos, e não apenas quanto ao momento de celebração do

contrato [pontualidade stricto sensu]: cumprimento ponto por ponto,

enfim, e não somente cumprimento no tempo devido.

o Proíbem-se quaisquer alterações à prestação devida, sob pena de

cumprimento defeituoso. Com efeito, o credor não pode ser

constrangido a receber do devedor coisa ou serviço diferente do que

fora inicialmente convencionado [aliud pro alio], ainda que possua um

valor superior ao da prestação devida.

• Princípio da integralidade [art. 763º-1]:

o O devedor deve realizar a prestação de uma só vez, ainda que se

trate de prestação divisível [susceptível de ser fraccionada sem

prejuízo para o interesse do credor].

o Considera-se que o comando de realizar a prestação é unitário, para o

devedor, uma vez que é do interesse do credor receber a prestação

de uma só vez.

o Norma supletiva, admitindo-se estipulação em contrário [vg art. 934º,

venda a prestações], caso em que o cumprimento deve ser

fraccionado, e não realizado por inteiro [sob pena de enriquecimento

do credor, art. 476º-3].

o Poderá haver lugar ao pagamento parcial, de igual modo, quando tal

resulte dos usos: vg caso o montante em falta tenha valor

desprezível, sendo contrária à boa fé a inviabilização da prestação,

pelo credor [art. 762º-2].

• Princípio da boa fé [art. 762º-2]:

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Tanto no cumprimento da obrigação, como no exercício do direito

correspondente, devem as partes proceder de boa fé.

o Não basta, com isto, a mera realização da prestação devida em

termos formais, mas antes o respeito dos ditames da boa fé [por

quem executa e por quem exige a prestação].

o Deveres acessórios de conduta: protecção, informação e lealdade,

cujo não acatamento, embora não legitime o recurso à acção de

cumprimento [art. 817º], pode implicar uma situação de

responsabilidade civil, e fundamentar o direito de indemnização,

verificados os pressupostos gerais [dano e nexo de causalidade].

• Princípio da concretização:

o A vinculação do devedor deve ser concretizada numa conduta real e

efectiva, com respeito pelos pressupostos de cumprimento

[capacidade e legitimidade das partes e disponibilidade da coisa] e

pela disciplina da sua forma de realização [lugar e tempo do

cumprimento].

Aos quais ROMANO MARTINEZ acrescenta:

• Princípio da capacidade para efectuar o cumprimento e receber a prestação

[art. 764º]

• Princípio da legitimidade para efectuar a prestação [arts. 765º-2 e 767º]

• Princípio da legitimidade para receber a prestação [arts. 769º-771º

Estes princípios serão estudados infra, separadamente.

§3: CAPACIDADE PARA O CUMPRIMENTO. Não se exige a capacidade do devedor, a

menos que a própria prestação consista num acto de disposição [art. 764º]. A prestação

poderá, assim, ser realizada pelo devedor incapaz [vg prestações de facto material como a

pintura de uma casa ou prestações de facto negativo como a não construção de um muro].

A capacidade do devedor será exigida se a prestação consistir num acto de disposição,

maxime quando o cumprimento implica a celebração de um novo negócio jurídico [vg

contrato prometido em relação ao contrato-promessa] ou dele resulte directamente a

116
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

alienação ou oneração do património do devedor [vg escolha da prestação, nas obrigações

genéricas e alternativas]. Nestes casos, deve o cumprimento ser realizado pelo representante

do incapaz, nos termos gerais, sob pena de anulação [arts. 125º e 139º]. O credor pode opor-

se ao pedido de anulação se o devedor não tiver tido prejuízo com o cumprimento [exceptio

doli, art. 764º-1, in fine].

Sendo a prestação realizada por terceiro, esta consistirá sempre num acto de

disposição, uma vez que o terceiro não se encontra vinculado à sua realização por um negócio

jurídico anterior – a capacidade de terceiro é, pois, sempre exigível.

Quanto ao credor, este deve ser sempre capaz, sob pena de destruir o objecto da

prestação ou de não tirar qualquer proveito com o cumprimento. Se a prestação for realizada

a credor incapaz, o seu representante legal poderá requerer a sua anulação, e a realização de

nova prestação pelo devedor [nº2]. Do mesmo modo, pode o devedor opor-se ao pedido de

anulação da prestação realizada ou de nova prestação, invocando, aqui, uma excepção

fundada no princípio da proibição do enriquecimento injustificado, impedindo que o credor

incapaz enriqueça com a nova prestação.

§4: DISPONIBILIDADE DA COISA. O devedor tem que ser titular da coisa dada em

prestação, a fim de realizar eficazmente o cumprimento.

Nestes termos, se o credor, de boa fé, receber a prestação da coisa que o devedor

não possa alhear, pode impugnar o cumprimento [art. 765º-1], seja alheia a coisa, ou própria

de que o devedor não possa dispor. Compreende-se esta solução: de outro modo, o credor

estaria sempre sujeito à possibilidade de ver a coisa reivindicada pelo seu legítimo

proprietário, ou o cumprimento anulado.

Ao devedor já não assiste o mesmo direito de impugnação, esteja ele de boa ou de

má fé [nº2], a menos que possa oferecer imediatamente nova prestação em substituição da

anteriormente realizada.

§5: LEGITIMIDADE PARA O CUMPRIMENTO. Geralmente, o cumprimento verifica-se

com a realização da prestação pelo devedor ou pelo credor. Todavia, admite-se que a

prestação seja realizada por um terceiro, nos seguintes termos:

117
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Legitimidade activa [autor da prestação: solvens]

o O princípio da legitimidade activa é generalizado a todas as

pessoas, tenham elas interesse directo no cumprimento da

obrigação, ou não [art. 767º-1].

o Ainda assim, o credor só pode exigir a prestação do devedor,

embora não se possa opor à sua realização por terceiro, sob pena

de incorrer em mora perante o devedor como se tivesse recusado

a prestação deste [arts. 768º-1 e 813º]. O credor só poderá

recusar a prestação, neste caso, se o devedor se opuser ao

cumprimento, desde que o interesse não tenha interesse directo

na satisfação do crédito, vg por ter garantido a obrigação [arts.

768º-2 e 592º].

o O terceiro não poderá cumprir se a prestação for infungível, por

natureza ou por convenção das partes [nº2]. Neste caso, o credor

pode recusar a prestação de terceiro e exigir que seja realizada

pessoalmente pelo devedor.

O cumprimento por terceiro provoca os seguintes efeitos:

o A obrigação extingue-se

o O devedor libera-se

o Eventualmente:

• Doação indirecta do terceiro ao devedor, quando cumpra

com espírito de liberalidade [art. 940º] – o terceiro nada

vai adquirir.

• Transmissão do crédito para o terceiro por sub-rogação,

arts. 589ºss – o pagamento é visto como um facto

determinante da transmissão do crédito, adquirindo o

terceiro o mesmo direito que o credor possuía [art. 593º].

• Obtenção de um direito de reembolso de despesas [vg

gestão de negócios ou mandato, arts. 464ºss e 1157ºss] – o

118
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

pagamento é juridicamente considerado um acto jurídico

alheio, realizado por conta do devedor.

• Restituição do enriquecimento por prestação, caso o

terceiro haja cumprido por se julgar erroneamente

vinculado para com o credor [art. 477º] ou devedor [art.

478º] – sem que exista causa jurídica para essa realização.

• Restituição do enriquecimento por despesas, em caso de

pagamento de dívida alheia, sem que se verifique

nenhuma das situações supra – verificando-se proveito

para o devedor.

• Legitimidade passiva [receptor da prestação: accipiens]:

o A legitimidade para receber a prestação é estabelecida em termos

mais restritivos [art. 769º]: a prestação deve ser feita ao credor

ou ao seu representante, e, em princípio, só estes têm

legitimidade para a receber.

o Todas as outras pessoas são considerados terceiros, pelo que a

realização da prestação a estes não comportará a extinção da

obrigação. Com efeito, o devedor poderá ser condenado a realizá-

la uma segunda vez.

o Tratando-se de credor incapaz, é apenas ao representante legal

que a prestação deverá ser efectuada, sob pena de anulação do

cumprimento, nos termos do art. 764º-2.

o Tratando-se de representação voluntária, o devedor não é

obrigado a satisfazer a prestação ao representante do credor,

salvo convenção nesse sentido [art. 771º] – MENEZES LEITÃO

critica esta solução, uma vez que contraria as tendências da

actual sociedade económica, fazendo aplicar o regime da mora do

credor [art. 813º], ao invés de permitir a aceitação de prestações

recebidas mediante procuração.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o O devedor pode recusar a prestação perante o representante

voluntário [PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA interpretam

restritivamente esta disposição, não aplicável ao núncio nem ao

encarregado de cobrança, contra MENEZES LEITÃO].

A realização da prestação a terceiro comporta os seguintes efeitos:

o A obrigação não se extingue [art. 770º, proémio], podendo o

autor/devedor da prestação exigir a sua restituição com

fundamento no enriquecimento por prestação [art. 476º-2].

o Excepções – casos em que a obrigação se extingue com a recepção

por terceiro, adquirindo este legitimidade para tal [art. 770º]:

 a): estipulação ou consentimento pelo credor

 b): ratificação pelo credor, expressa ou tácita [o

terceiro adquire legitimidade superveniente]

 c): aquisição posterior do crédito pelo terceiro

 d): o credor não tem interesse em novo

cumprimento da obrigação

 e): o credor é herdeiro de quem recebeu a

prestação

 f): se a lei considerar liberatória a prestação feita

a terceiro, por outro motivo

§6: TEMPO DO CUMPRIMENTO. No âmbito do tempo do cumprimento [arts. 777ºss], a

doutrina distingue:

• Momento em que o devedor pode cumprir a obrigação: forçando o credor

a receber a prestação, sob pena de este entrar em mora [arts. 813ºss].

o Pagabilidade do débito [art. 777º-1, 1ª parte]

• Momento em que o credor pode exigir do devedor a realização da

prestação: sob pena de o devedor entrar em mora [arts. 804ºss].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Exigibilidade ou vencimento do débito [art. 777º-1, 2ª parte]

A este respeito, cumpre reter a seguinte contraposição:

• Obrigações puras: cujo cumprimento pode ser exigido ou realizado a todo

o tempo.

o Regra geral, as obrigações são puras, uma vez que não têm prazo

certo estipulado.

o O credor tem direito de exigir a todo o tempo o cumprimento da

obrigação, assim como o devedor pode a todo o tempo exonerar-

se dela [art. 777º-1].

o O devedor apenas entra em mora com a exigência de

cumprimento pelo credor [interpelação, art. 805º-1].

• Obrigações a prazo: cuja exigibilidade ou possibilidade de realização do

pagamento é diferida para momento posterior.

o Prazo de cumprimento por estipulação das partes ou disposição

especial da lei [art. 777º-1, 1ª parte] – obrigações com prazo certo

o O decurso do prazo constitui o devedor em mora [art. 805º-2a].

o Mesmo que as partes não tenham estipulado prazo, e na omissão

da lei, casos há em que a obrigação não pode ser tida como pura,

carecendo de prazo: quer pela própria natureza da prestação,

quer pelas circunstâncias que a determinaram ou pelos usos.

Neste caso, cabe ao tribunal a fixação de prazo [art. 777º-2].

A determinação do prazo do cumprimento pode ser deixada ao critério de uma das

partes: o credor ou o devedor.

• Quando o credor não use a faculdade que lhe foi concedida, deve o

tribunal fixar o prazo, a requerimento do devedor [art. 777º-3].

• Quando o prazo seja deixado ao critério do devedor, a lei distingue:

o Critério objectivo [vg capacidade económica do devedor] –

obrigações cum potuerit/quando puder [art. 778º-1].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Critério subjectivo [vg se aprouver ao devedor realizar a

prestação nesse momento] – obrigações cum voluerit/quando

quiser [art. 778º-2].

A possibilidade de a prestação ser realizada ou exigida em momento posterior

constitui um benefício. A parte a quem é atribuído o benefício do prazo pode renunciar a ele,

podendo realizar a prestação antes do fim do prazo ou exigi-la a todo o tempo, consoante

respeite ao devedor ou ao credor, respectivamente.

Sendo assim, eis a quem pode competir o benefício do prazo [art. 779º]:

• Ao devedor: regra geral

o O credor não pode exigir a prestação antes do fim do prazo

o O devedor tem o direito de proceder à sua realização a todo o

tempo, renunciado ao benefício do prazo, sem que o credor a tal

se possa opor, sob pena de mora do mesmo [art. 813º]

o Há pagabilidade, mas não exigibilidade

o O devedor perde o benefício do prazo caso a sua situação

patrimonial se altere [insolvência] ou pratique algum acto

incompatível com a confiança do credor [diminuição das garantias

do crédito e não realização de uma prestação nas dívidas a

prestações] – o credor pode, nestes casos, exigir o cumprimento

imediato da obrigação [arts. 780º e 781º], uma vez que foi posta

em causa a confiança do credor na solvabilidade do devedor.

• Ao credor [vg depósito, art. 1194º]

o O credor tem a faculdade de exigir a prestação a todo o tempo

o O devedor só tem a possibilidade de cumprir no fim do prazo

o Há exigibilidade, mas não pagabilidade

• A ambos [vg mútuo oneroso, art. 1147º]

o Nenhuma das partes tem a faculdade de determinar a antecipação

do cumprimento

o O decurso do prazo funciona para a pagabilidade e exigibilidade

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§7: LUGAR DO CUMPRIMENTO. As regras que regulam o lugar onde deve ser realizada

a prestação são supletivas [arts. 772ºss], cedendo perante estipulação contrária das partes e

disposições especiais, previstas ao longo do CC [vg art. 885º- o lugar do pagamento do preço é

o mesmo da obrigação de entrega da coisa]. Doutrinariamente temos:

• Obrigações de colocação:

o O devedor deve apenas colocar a prestação à disposição do credor

no seu próprio domicílio ou noutro lugar.

o Ao credor cabe o ónus de levantar a prestação fora do seu

domicílio – pelo não levantamento, o devedor não pode ser

responsabilizado, uma vez que se trata de mora do credor [art.

813º].

• Obrigações de entrega:

o O devedor tem efectivamente que entregar a coisa ao credor no

domicílio deste, ou no lugar por este acordado, sob pena de mora

do devedor [art. 804º].

Nos dois casos, o lugar da prestação coincide com o lugar do resultado.

• Obrigações de envio:

o Situação intermédia: o devedor, embora não se limite a colocar a

coisa à disposição do credor, também não tem que lhe assegurar a

sua entrega efectiva.

o O devedor está apenas obrigado a enviar a coisa para o domicílio

do credor, sendo o transporte da conta e risco deste.

o O local do cumprimento é aquele onde o devedor procede à

entrega ao transportador. Se o transporte se atrasar ou a coisa se

perder ou se deteriorar, o risco corre por conta do credor [art.

797º]. Ainda assim, a obrigação só se extingue a partir do

momento em que o credor recebe a coisa enviada.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Há uma diferenciação entre o lugar da prestação e o lugar do

resultado da mesma.

A determinação do lugar do cumprimento cabe, em princípio, às partes [art. 772º-1,

1ª parte], seja por convenção expressa ou tácita [art. 217º]. Exemplo: resulta da própria

natureza da prestação que o lugar do cumprimento da prestação de pintar uma casa seja

nessa mesma casa, vg.

Na falta de convenção das partes, a regra geral é que o cumprimento seja realizado

no domicílio do devedor: favor debitoris [art. 772º-1] – obrigações de colocação. O credor

tem, assim, o ónus de se deslocar ao domicílio do devedor para obter a prestação.

Se, por outro lado, a obrigação tiver por objecto a entrega de uma coisa móvel, a

regra é a de que a obrigação seja cumprida no lugar onde a coisa se encontrava ao tempo da

conclusão do negócio, seja essa coisa determinada [art. 773º-1] ou genérica [nº2]. Ainda

assim, a obrigação é de colocação, uma vez que o credor deve ainda deslocar-se.

Se a obrigação tiver por objecto certa quantia de dinheiro [obrigações pecuniárias],

deve ser cumprida no domicílio que o credor tiver ao tempo do cumprimento [art. 774º] –

obrigações de entrega, face à facilidade das transferências de dinheiro. Durante o transporte

e até à entrega ao credor, o risco corre por conta do devedor.

A alteração do domicílio das partes pode não significar necessariamente a alteração

do local de cumprimento, sempre que a parte lesada sofra prejuízos com essa alteração:

• Obrigações de colocação [art. 772º-2]:

o Se ocorrer mudança do domicílio do devedor depois da

constituição da obrigação, o cumprimento é realizado no novo

domicílio, salvo prejuízo para o credor.

• Obrigações de entrega [art. 775º]:

o Se ocorrer mudança do domicílio do credor depois da constituição

da obrigação, o cumprimento é realizado no domicílio do devedor.

o A obrigação de entrega converte-se em obrigação de colocação.

124
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Quanto à impossibilidade de realização da prestação no lugar fixado, quando seja

essencial em relação à própria prestação [vg por destruição do edifício ou alterações

climatéricas que impossibilitam espectáculo ao ar livre]:

• Se a impossibilidade já existia no momento da conclusão do negócio:

nulidade [arts. 280º-1 e 401º] – impossibilidade originária.

• Se a impossibilidade é posterior à celebração do negócio: extinção da

obrigação [art. 790º] – impossibilidade superveniente.

o Contratos bilaterais/sinalagmáticos: perda do direito à

contraprestação.

Diferentemente, se o lugar do cumprimento não aparecer como essencial em relação

à obrigação, a obrigação não se considera extinta, devendo a prestação ser realizada noutro

lugar [art. 776º]:

• Havendo lacuna negocial, a mesma será integrada de harmonia com a

vontade hipotética das partes [art. 239º].

• Aplicar-se-iam as regras supletivas dos arts. 772ºss – foi esta a solução

legal consagrada no art. 776º. Se, ainda assim, permanecer alguma lacuna

negocial, caberá recurso à integração dos negócios jurídicos, nos termos

do art. 239º.

§8: IMPUTAÇÃO DO CUMPRIMENTO. Quando existam várias dívidas e a prestação

prestada não chegue para as extinguir a todas, ao devedor cabe a faculdade de imputação do

cumprimento, i.e., a escolha das dívidas a que o cumprimento se refere [art. 783º-1]. Esta

regra comporta excepções, a reter:

• O devedor não pode imputar o cumprimento numa dívida ainda não

vencida, se o prazo tiver sido estabelecido em benefício do credor [nº2, 1ª

parte].

o Regra geral: o prazo é estabelecido em benefício do devedor [art.

779º] – o devedor pode antecipar o cumprimento, livremente.

o Prazo estabelecido em benefício do credor: este pode recusar a

antecipação do cumprimento, pelo devedor.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o O mesmo se diga se o prazo for estipulado em benefício de ambas

as partes [MENEZES LEITÃO].

• O devedor não pode imputar o cumprimento numa dívida de montante

superior à prestação efectuada, sempre que o credor tenha a faculdade

de recusar o pagamento parcial [nº2, 2ª parte].

o Princípio da integralidade da prestação [art. 763º-1].

• O devedor não pode imputar o cumprimento numa dívida de capital,

enquanto estiver obrigado a pagar também despesas, indemnização

moratória ou juros [art. 785º-2].

Caso o devedor não efectue a designação, cabe aplicação das regras supletivas do art.

784º, não podendo o credor substituir-se ao devedor na imputação.

§9: PROVA DO CUMPRIMENTO. A prova do cumprimento compete, em princípio, ao

devedor, uma vez que o cumprimento constitui um facto extintivo do direito do credor que

deve ser demonstrado pela parte contra quem o crédito é invocado [art. 342º-2].

Todavia, o cumprimento não pode ser provado mediante prova testemunhal [art.

395º], pelo que se recomenda que o autor do cumprimento exija do credor uma declaração

escrita [quitação ou recibo, quando conste de documento avulso] de que recebeu a prestação

em dívida – o devedor encontra-se “quite” para com o credor [art. 787º].

Por vezes a lei presume já ter ocorrido o cumprimento, em virtude de já ter

decorrido determinado prazo sobre a constituição da obrigação [arts. 312ºss, prescrições

presuntivas].

§10: NATUREZA JURÍDICA DO CUMPRIMENTO. Quanto à natureza jurídica do

cumprimento, a nossa lei consagrou expressamente [art. 762º-1] a teoria da realização real da

prestação, defendida por LARENZ, nos termos da qual será suficiente, para o cumprimento, a

obtenção do resultado da prestação através do acto de prestar do devedor que corresponda à

prestação devida.

Rejeita-se, assim, qualquer carácter negocial ao cumprimento, uma vez que se trata

de um simples acto devido, de cariz real ou material. Refere GALVÃO TELLES que no

126
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

cumprimento não se inova, mas somente se executa: acto real de liquidação, que não exige

qualquer exteriorização do animus solvendi.

Causas de Extinção das Obrigações além do Cumprimento

§1: DAÇÃO EM CUMPRIMENTO E DAÇÃO PRO SOLVENDO. A dação em cumprimento

[arts. 837ºss] consiste numa causa de extinção das obrigações através da prestação de coisa

diversa da que era devida, ainda que de valor superior, com assentimento do credor.

Desta primeira noção, podemos concluir pelos seguintes pressupostos:

• Realização de uma prestação diferente da que foi devida:

o A prestação que o devedor realiza não coincide com aquela a que

está vinculado, pelo que não cabe exoneração, nos termos do art.

762º-1 – realiza um aliud em relação ao que estava

originariamente vinculado.

o Não há qualquer limitação: o art. 837º respeita tanto a obrigações

de prestação de coisa específica, como a obrigações de prestação

de coisa fungível, obrigações pecuniárias, genéricas, prestação de

facto ou de facere. Exemplo: em lugar da entrega de um

automóvel, pode haver cumprimento mediante entrega de quantia

monetária ou de um barco, vg.

o Essa prestação não corresponde, todavia, a uma nova obrigação

assumida pelo credor [vs novação, art. 857º].

o A prestação deve ser definitivamente realizada, não sendo

suficiente a mera celebração do acordo transmissivo do direito [vs

art. 408º-1].

• Acordo do credor relativo à exoneração do devedor com essa prestação:

o Brocardo aliud pro alio: a outra prestação, mesmo que de valor

superior, pode não corresponder ao interesse do credor.

127
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Obrigação solidária: a dação em cumprimento pode ser realizada

apenas por um dos devedores [art. 523º] e/ou apenas a um dos

credores [art. 532º] – dependendo da solidariedade ser passiva ou

activa, respectivamente.

A dação em cumprimento determina a extinção da obrigação [art. 837º], com a

consequente exoneração do devedor. Em regime de solidariedade, a realização da prestação

por um dos condevedores determina a extinção da obrigação para com os restantes. O mesmo

se diga quanto à solidariedade activa [extinção da obrigação do devedor para com todos os

credores].

Se a dívida a extinguir não existia, cabe a repetição do indevido, nos termos gerais

[art. 476º-1]. Diferentemente, se a dação em cumprimento for inválida, a relação

obrigacional primitiva continua a subsistir, salvo verificação de facto extintivo autónomo [vg

prescrição]. Se a causa de invalidade for imputável ao credor [vg simulação, dolo ou coacção]

não renascem as garantias prestadas por terceiro de boa fé [art. 839º].

Quanto à natureza jurídica desta figura, MENEZES LEITÃO concorda com o

entendimento de MENEZES CORDEIRO, segundo o qual se recusa a integração da dação em

cumprimento noutras categorias, limitando-se a qualificá-la como uma forma convencional de

extinção das obrigações através da realização de uma prestação diversa da devida.

A dação pro solvendo [art. 840º], ou dação em função do cumprimento, consiste na

execução de uma prestação diversa da devida, para que o credor proceda à realização do

valor dela e, com isso, obtenha a satisfação do seu crédito [através da transformação em

dinheiro da prestação realizada]. Cumpre, pois, distinguir:

• Dação pro solvendo:

o A realização da prestação diversa da devida não visa obter a

imediata exoneração do devedor, mas antes proporcionar ao

credor uma forma mais fácil de obter a satisfação do seu crédito:

o crédito subsiste até que o credor venha a realizar o valor dele

[vg através da venda do bem entregue, da cobrança do crédito ou

do cumprimento da dívida].

128
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Não se verifica uma causa distinta de extinção das obrigações,

mas sim de um meio de facilitar o cumprimento das obrigações:

trata-se de um negócio preparatório do cumprimento.

o É a actuação do credor que extingue a obrigação, em

cumprimento de um encargo que lhe é conferido pelo devedor.

• Dação em cumprimento:

o A realização da prestação diversa da devida visa obter a imediata

exoneração do devedor.

o Verifica-se uma causa distinta de extinção das obrigações.

o É a actuação do devedor que extingue a obrigação.

Conclui-se: a datio pro solvendo consiste num mandato conferido pelo devedor ao

credor para proceder à liquidação da prestação realizada. Não poderá ser revogado pelo

devedor, salvo justa causa [art. 1170º-2].

§2: CONSIGNAÇÃO EM DEPÓSITO. A consignação, outra causa de extinção das

obrigações, consiste na possibilidade reconhecida ao devedor nas obrigações de prestação de

coisa de extinguir a obrigação através do depósito judicial da coisa devida, sempre que não

possa realizar a prestação com segurança por qualquer motivo relacionado com a pessoa do

credor, ou quando este se encontre em mora [art. 841º-1].

Exemplo: o devedor desloca-se a casa do comprados para entregar a encomenda, mas

o último ausentou-se inesperadamente.

Com efeito, não é justo que, nestes casos, o devedor fique indefinidamente vinculado

ao cumprimento. Considera-se que o credor não presta a colaboração necessária para esse

cumprimento, pelo que é conferida ao devedor a faculdade [facultativa, nº2] de extinguir a

obrigação sem a colaboração daquele.

A consignação em depósito é necessariamente judicial: se extrajudicial, não

extinguirá qualquer obrigação.

Eis os pressupostos desta causa de extinção:

• A obrigação tem por objecto uma prestação de coisa [vg quantia

pecuniária]:

129
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Prestações de facto positivo: insusceptíveis de depósito.

o Prestações de facto negativo: o cumprimento da obrigação ocorre

independentemente da cooperação do credor.

• Não é possível ao devedor realizar a prestação por motivo relativo ao

credor:

o Impossibilidade não imputável ao devedor de realizar a prestação

ou de o fazer com segurança, por qualquer motivo relacionado

com a pessoa do credor.

 Exemplos: credor incapaz sem representante legal [art.

764º-2], credor cujo paradeiro é desconhecido ou o

devedor que não sabe com segurança quem é o credor.

o Mora do credor: recusa em receber a prestação ou praticar os

actos necessários ao cumprimento [arts. 813ºss].

 Exemplos: credor que recusa receber a prestação ou

credor que recusa passar quitação da dívida [art. 787º-2].

Os efeitos da consignação em depósito podem ser de três ordens:

• Instituição de uma relação processual entre o consignante/depositante e o

credor

• Instituição de uma relação substantiva triangular entre o

consignante/depositante, o consignatário da coisa devida e o credor:

o Semelhanças com o contrato a favor de terceiro [arts. 443ºss].

o O credor adquire um direito à entrega da coisa por parte do

consignatário [art. 844º].

o Relação de cobertura: consignante e consignatário

o Relação de atribuição: obrigação que o consignante visa satisfazer

o Relação de execução: o credor recebe o direito sobre o

consignatário

• Eficácia da consignação sobre a obrigação:

130
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o A obrigação persiste, no percurso do processo: o risco corre pelo

credor e a dívida não vence juros.

o Ao devedor é atribuída, na pendência do processo, uma excepção

dilatória de recusa da prestação.

o Consignação aceite pelo credor ou declarada válida pelo tribunal:

exoneração do devedor, retroagindo até à data do depósito [art.

846º].

§3: COMPENSAÇÃO. A compensação é uma forma de extinção das obrigações segundo

a qual, quando duas pessoas estejam reciprocamente obrigadas a entregar coisas fungíveis da

mesma natureza, é admissível que as respectivas obrigações sejam extintas, total ou

parcialmente, pela dispensa de ambas de realizar as suas prestações [ficando “quites”: € 500

- € 500 = 0] ou pela dedução a uma das prestações daquela devida pela contraparte [arts.

847ºss]. A extinção de ambas as obrigações por compensação determina a exoneração de

ambos os devedores.

Cumpre atender aos seguintes pressupostos da compensação [art. 847º]:

• Existência de créditos recíprocos:

o Cada uma das partes tem que possuir um crédito contra a outra

o Fica vedada a invocação de créditos alheios [art. 851º-2] – vg

fiador ou condevedor solidário. Para tal, seria sempre necessário

o consentimento do respectivo credor. Por outro lado, não podem

ser invocados créditos sobre outras pessoas, ainda que ligadas por

qualquer relação ao credor [vg contrato a favor de terceiro, art.

449º].

• Fungibilidade das coisas objecto das prestações e identidade do seu

género:

o A compensação não foi restringida ao dinheiro, admitindo-se a

compensação em relação a prestações de coisa fungível [art.

207º], do mesmo género e qualidade – vg quantidades de uma

mesma mercadoria.

131
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o A quantidade pode não ser idêntica, uma vez que se admite a

compensação parcial, caso uma das dívidas seja de montante

superior à outra [art. 847º-2].

• Exigibilidade do crédito que se pretende compensar:

o O crédito do declarante tem que ser judicialmente exigível [art.

847º-1] – só podem ser compensados os créditos em relação aos

quais o declarante esteja em condições de obter a realização

coactiva da prestação.

o Excluem-se: créditos de obrigação natural [art. 402º] ou créditos

ainda não vencidos.

As vantagens desta figura residem no facto de se extinguirem ambas as obrigações

sem necessidade de realização da prestação devida, facilitando os pagamentos, e de

funcionar como garantia dos créditos [vg perante insolvência do devedor].

Não são compensáveis os seguintes créditos [art. 853º]:

• Créditos provenientes de factos ilícitos dolosos

• Créditos impenhoráveis

• Créditos do Estado ou de outras pessoas colectivas públicas

• Créditos cuja compensação envolva lesão de direitos de terceiros

• Créditos cujo devedor haja renunciado à compensação

O regime legal da compensação, conforme consagrado no CC, foi influenciado pelo

BGB, exigindo-se, como condição de eficácia da compensação, uma declaração da parte que a

pretende [art. 848º], contrariamente, pois, aos sistemas francês, italiano e espanhol:

compensação automática, que opera de direito [ope legis] e sem necessidade de qualquer

declaração negocial nesse sentido [CC de 1867].

Em conclusão, a compensação não opera de modo automático, na medida em que

carece de ser invocada por uma das partes, mediante declaração judicial ou extrajudicial. No

entanto, uma vez feita essa declaração, os créditos consideram-se extintos desde o momento

em que se tornaram compensáveis, retroactivamente [art. 854º] – é esse o momento

relevante para a extinção da obrigação. Assim, se após essa data um dos créditos for cedido a

132
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

terceiro, arrestado ou penhorado, o declarante pode continuar a invocar a compensação [art.

853º-2, a contrario].

A declaração de compensação é ineficaz se for feita sob condição ou termo [art. 848º-

2], de modo a salvaguardar o grau de certeza que é necessário conferir à extinção da

obrigação, retroagindo ao momento da compensabilidade dos créditos.

A par da compensação legal supra, é admissível a figura da compensação

convencional ou contratual: compensação que, em lugar de ocorrer através de uma

declaração unilateral, resulta de um acordo celebrado entre as partes [contrato de

compensação]. Exige-se, tão-só, a existência de créditos de ambas as partes, e não é

necessário que se trate de créditos recíprocos, exigíveis ou que tenham por objecto

prestações homogéneas. Também é admitida face a créditos por factos ilícitos dolosos, do

Estado ou de outras pessoas colectivas públicas, mas não face a créditos impenhoráveis [art.

853º-b] ou de créditos que impliquem prejuízo para terceiros [art. 853º-2].

MENEZES LEITÃO, na esteira de LARENZ, situa a compensação no âmbito dos tipos

contratuais, admissível em termos autónomos, através da qual se vem suprir reciprocamente

o cumprimento de duas obrigações.

§4: NOVAÇÃO. A novação [novatio, do Direito Romano] é a causa de extinção das

obrigações através da constituição de uma nova obrigação, que substitui a primeira [arts.

857º ss]. Constitui-se, assim, um novo vínculo, embora o facto jurídico que desencadeia a

extinção da obrigação antiga seja simultaneamente o facto jurídico que constitui a nova

obrigação. Dessa extinção resulta uma dependência da causa jurídica do facto extintivo em

relação ao facto constitutivo da nova obrigação, e vice versa: por outras palavras, a antiga

obrigação só se extingue porque veio a ser constituída uma nova, e a nova obrigação só se

constitui porque veio a ser extinta a antiga.

• Novação objectiva: a nova obrigação se constitui entre os mesmos credor

e devedor da obrigação antiga [art. 857º].

o Pode ocorrer através de:

 Mudança no objecto da obrigação

 Alteração da fonte da obrigação

133
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Novação subjectiva: verifica-se uma mudança de algum dos sujeitos da

obrigação [art. 858º].

o Pode ocorrer por:

 Substituição do credor: um novo credor é substituído ao

antigo.

 Substituição do devedor: um novo devedor, contraindo

nova obrigação, é substituído ao antigo, que é exonerado

pelo credor.

• Pressupostos comuns:

o Declaração expressa da intenção das partes de extinguir a

anterior obrigação, criando uma nova em sua substituição [art.

859º]:

 Sob pena de se considerar uma mera modificação ou

transmissão da obrigação primitiva, e não uma novação.

 Não se pode inferir uma novação através de simples

modificações da obrigação, como nas alterações do prazo

de pagamento, taxas de juro, etc.

 Exige-se exteriorização do animus novandi: não se

admitem presunções de novação, nem novações tácitas.

o Existência e validade da obrigação primitiva:

 Pressupõe-se a existência de uma obrigação antiga, que as

partes visam extinguir e substituir por uma nova.

 A novação torna-se ineficaz quando se verifique que a

obrigação antiga não existia, estava extinta ao tempo em

que a segunda foi constituída ou existia, mas fora

entretanto declarada nula ou anulada [art. 860º-1] – a

novação não é um negócio abstracto, tendo sempre como

pressuposto a existência prévia de uma obrigação.

134
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

 Sendo ineficaz a novação:

• E não se tendo ainda verificado o cumprimento: o

devedor pode recusar a sua realização.

• E já se tenha verificado o cumprimento: o autor

do cumprimento tem direito a uma pretensão

restituitória [arts. 289º ss e art. 476º-1, caso a

obrigação seja inexistente: repetição do indevido]

o Constituição válida da nova obrigação:

 Sob pena de não se verificar a novação, subsistindo a

obrigação primitiva [art. 860º-2].

 A lei tutela a situação de confiança de terceiros garantes

que deixam de contar, justificadamente, com a

eventualidade de terem que satisfazer essa obrigação:

quando a nova obrigação seja imputável ao credor [art.

860º-2].

Quanto ao regime da novação, o novo crédito não recebe, em princípio, as garantias

relativas à obrigação antiga [art. 861º], uma vez que a garantia é sempre concedida tendo em

atenção uma concreta obrigação. As garantias poderão ser reservadas para a nova obrigação,

desde que haja declaração expressa nesse sentido.

Os meios de defesa da obrigação antiga [vg existência de um prazo ou excepção do

não cumprimento] extinguem-se em consequência da novação [art. 862º], ao contrário do que

acontece na transmissão das obrigações [transmissão das excepções, arts. 585º e 598º]. Aqui,

ao extinguir-se a dívida, naturalmente se extinguem os meios de defesa que a ela

respeitavam. Será admissível, uma vez mais, quando expressamente estipulado pelas partes.

Actualmente a novação perde importância histórica em face da modificação por

consenso do objecto da obrigação, e da admissibilidade da transmissão de créditos e de

dívidas. Com efeito, a não consagração da novação, aquando dos trabalhos preparatórios do

CC, chegou a ser equacionada [tal como no BGB].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§5: REMISSÃO. A remissão consiste no “perdão de dívida”, i.e., na abdicação do

direito de crédito, pelo credor, contra o devedor, com o acordo deste, determinando a

extinção da dívida sem a realização da prestação [arts. 863º ss]. Por outras palavras, a

remissão consiste no acordo entre o credor e o devedor pelo qual o credor prescinde de

receber deste a prestação devida. Exemplos:

• Se o credor sabe que o devedor se encontra em dificuldades económicas.

• Se o credor concluir que a instauração de uma acção executiva não teria

efeitos práticos.

• Razões de amizade.

Eis os pressupostos desta causa de extinção das obrigações:

• Existência prévia de uma obrigação:

o A celebração da remissão pressupõe a existência da obrigação que

se visou extinguir.

o A remissão não é, por isso, o reconhecimento negativo de dívida,

onde o credor se limita a declarar a inexistência de qualquer

obrigação.

• Contrato entre credor e devedor pelo qual aquele abdica de receber deste

a prestação devida:

o A remissão reveste necessariamente de carácter contratual

[influências do BGB, vs CC italiano]: exige-se declaração do credor

de que abdica de receber a prestação, e aceitação dessa

abdicação pelo devedor. Contra a regra geral de extinção dos

direitos por acto unilateral, enfim.

o Problemas práticos: na maior parte dos casos o credor não espera

resposta à sua declaração, e o devedor não vê necessidade de a

ela responder.

o O contrato de remissão consiste num acto de disposição do direito

do credor, representando, em relação ao devedor, uma atribuição

patrimonial geradora de enriquecimento [liberalidade ou

136
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

compromisso pessoal do credor para com o devedor]. No caso de

ser realizada a título de liberalidade, a remissão por negócio

entre vivos é havida como doação [arts. 863º-2 e 940º ss].

o Não é concebível que a remissão seja efectuada como

contrapartida da realização de uma prestação [dação em

cumprimento] ou da constituição de uma nova obrigação

[novação].

A remissão extingue a obrigação e libera o devedor, perdendo o credor o seu direito

de crédito em termos definitivos. Existindo uma pluralidade de partes, cumpre distinguir:

• Remissão in rem: remissão concedida a todas as partes ou por todas elas.

o Extingue-se a obrigação em relação a todos os sujeitos.

• Remissão in personam: remissão concedida a apenas algumas partes ou

por apenas algumas delas.

o Remissão concedida por ou em benefício de pessoas específicas,

em relação às quais produzirá efeitos. A obrigação mantém-se em

relação às restantes.

o Regime da conjunção ou da parciariedade: extinguem-se as

fracções da obrigação em relação às partes em que ocorreu a

remissão. A obrigação não é afectada quanto aos demais sujeitos.

o Regime da solidariedade:

• Passiva: a obrigação remetida de um dos devedores

extingue-se, mantendo-se a dos restantes devedores,

embora liberados pela parte relativa do devedor

exonerado [art. 864º-1].

• Activa: o devedor fica exonerado na parte relativa ao

credor solidário que concede a remissão [art. 864º-3].

• Obrigação plural indivisível:

• Passiva: a remissão concedida pelo credor a um

dos devedores implica que o credor só possa exigir

137
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

a prestação dos restantes se lhes entregar o valor

da parte que compete ao devedor exonerado

[arts. 865º-1 e 536º].

• Activa: a remissão concedida por um dos credores

ao devedor implica que este não fique exonerado

perante os restantes credores, embora estes só

possam exigir-lhe a prestação se entregarem o

valor da parte que competia àquele credor [art.

865º-2].

o Efeitos quanto a terceiros: consideram-se extintas todas as

garantias que asseguravam o cumprimento da obrigação [art.

866º-1]: fiança, consignação de rendimentos, penhor, hipoteca,

privilégio e direito de retenção – razões de tutela da confiança de

terceiros garantes. Pelo contrário, a renúncia às garantias da

obrigação não faz presumir a remissão da dívida [art. 867º]: o

devedor não pode aproveitar o benefício dessa renúncia para dele

inferir a remissão da obrigação, uma vez que quem normalmente

renuncia a uma garantia não o faz por pretender abdicar do

crédito.

§6: CONFUSÃO. A confusão é a última causa de extinção das obrigações regulada pelo

CC [arts. 868º ss]. A confusão consiste na extinção simultânea do crédito e da dívida em

consequência da reunião, na mesma pessoa, das qualidades de credor e devedor. Com efeito,

a obrigação pressupõe a alteridade dos sujeitos que estão na posição de credor e de devedor,

pelo que quando essa alteridade não se verifica, deixa de haver necessidade jurídica de

manter a obrigação.

Exemplos:

• Não há alteridade se o devedor adquirir, por cessão, o crédito que sobre

ele tinha um credor anterior.

138
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Não há alteridade se uma sociedade vir a ser objecto de fusão com outra,

extinguindo-se os créditos e as dívidas recíprocas.

Não são exemplos de confusão, em sentido técnico:

• Reunião, na mesma pessoa, das qualidades de proprietário e titular de um

direito real menor. Não se extingue o direito de crédito, antes se

recupera a propriedade plena [arts. 1476º-1b), 1536º-1d) e 1569ºa].

• Confusão imprópria: reunião, na mesma pessoa, das qualidades de

devedor e garante da obrigação. Não se extingue o direito de crédito,

antes se extingue a garantia, a menos que o credor tenha interesse na sua

manutenção [art. 871º-3 e 4].

Pressupostos da confusão proprio sensu:

• Reunião, na mesma pessoa, das qualidades de credor e devedor:

o Em virtude da aquisição, por uma das partes, da posição que a

outra ocupava no crédito ou no débito.

o Em virtude da aquisição conjunta por um terceiro das posições

que ambas as partes ocupavam na obrigação.

• Não pertença do crédito e da dívida a patrimónios separados:

o Sob pena de não se verificar a confusão [art. 872º].

o Se a confusão se verificar em consequência de o devedor adquirir

o crédito por herança, continua ele a responder pela sua

obrigação até à liquidação e partilha [art. 2074º-1].

• Inexistência de prejuízo para os direitos de terceiro [art. 871º-1]:

o Se o vínculo obrigacional se encontrar igualmente a funcionar em

benefício de terceiro [vg usufruto ou penhor sobre crédito], esse

vínculo subsiste [art. 871º-2].

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

A extinção da obrigação por confusão provoca a extinção de todos os acessórios do

crédito [vg sinal, cláusula penal e obrigações de juros], bem como de todas as garantias que

asseguravam o seu cumprimento [fiança, consignação de rendimentos, penhor, hipoteca,

privilégio e direito de retenção], quer as garantias sejam prestadas pelo devedor ou por

terceiro.

Se a confusão se desfizer, a obrigação renasce com os acessórios supra, mesmo em

relação a terceiro [art. 873º-1], mas não quanto às garantias prestadas por terceiros [a

extinção das garantias mantém-se], por razões de tutela da confiança [art. 873º-2].

À semelhança da remissão, e verificando-se uma pluralidade de partes, cumpre

distinguir:

• Regime da conjunção ou da parciariedade: extinguem-se as fracções da

obrigação em relação às partes em que ocorreu a confusão. A obrigação

não é afectada quanto aos demais sujeitos.

• Regime da solidariedade:

o Passiva: se forem reunidas na mesma pessoa as qualidades de

devedor solidário e credor, a obrigação deste extingue-se nessa

parte da dívida, ficando os restantes devedores exonerados nesse

âmbito, embora continuem a responder solidariamente pela

restante obrigação [art. 869º-1].

o Activa: se forem reunidas na mesma pessoa as qualidades de

devedor e credor solidário, o devedor fica exonerado, mas apenas

na parte relativa a esse credor [art. 869º-2].

• Obrigação plural indivisível:

o Passiva: com vários devedores – a reunião, na mesma pessoa, da

posição de credor e de condevedor implica que este só possa

exigir a prestação dos restantes condevedores se lhes entregar o

valor da parte da posição que adquiriu [arts. 870º-1 e 536º].

o Activa: com vários credores – a reunião, na mesma pessoa, da

qualidade de devedor e co-titular do crédito não a exonera

perante os restantes credores, embora estes só lhe possam exigir

140
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

a prestação se lhe entregarem o valor da parte que competia

àquele credor [arts. 870º-2 e 865º-2].

DO NÃO CUMPRIMENTO DAS OBRIGAÇÕES

Impossibilidade de Cumprimento e Mora não Imputáveis ao Devedor

§1: IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO. O cumprimento pode ser impossível por

causa não imputável ao devedor quando o próprio objecto do cumprimento seja impossível

[objecto mediato ou imediato], em abstracto.

Com efeito, não se pode cumprir aquilo que é, per se, impossível.

§2: IMPOSSIBILIDADE ORIGINÁRIA E SUPERVENIENTE. A impossibilidade originária do

cumprimento determina a nulidade do negócio jurídico, nos termos do art. 401º-1, sem mais.

Inversamente, não acarreta a nulidade do negócio jurídico a impossibilidade da prestação

relativamente à pessoa do devedor [nº3], uma vez que não se trata de uma hipótese de

impossibilidade, mas sim de incumprimento. Por outro lado, também não é nulo o negócio

que as partes celebraram na expectativa de a prestação vir a ser possível [nº2] – vg venda de

bens futuros.

Por outras palavras, e reformulando, é nulo o negócio jurídico cuja prestação seja

originaria e objectivamente impossível e que as partes não tenham admitido a possibilidade

de se tornar possível. Servindo-nos dos requisitos do objecto negocial, inferimos que a

impossibilidade originária e objectiva da prestação está relacionada com a inviabilidade física

ou legal do objecto, com a contrariedade à lei ou com a indeterminabilidade [art. 280º]:

• Impossibilidade física absoluta: aspectos materiais derivados da natureza

das coisas [vg inexistência – compra e venda de cavalo que havia perecido

anteriormente ao acordo; diferentemente, se o cavalo vier a morrer

depois da celebração do contrato, há incumprimento, e não

141
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

impossibilidade, uma vez que o contrato é válido – contrato real quoad

effectum]. A impossibilidade física tem que ser absoluta, pelo que o

cumprimento defeituoso ou a impossibilidade de eliminação dos defeitos

não constitui um caso de impossibilidade física do objecto [vg compra e

venda de cavalo que padece de doença incurável].

• Impossibilidade legal: casos de negócios que se dirijam à conclusão de

outros [vg contrato-promessa de compra e venda de bens fora do

comércio ou de um imóvel verbalmente].

• Contrariedade à lei: violação de disposições legais [vg negócios contra

legem – constituição de um direito real não tipificado, art. 1306º; fraude à

lei].

• Indeterminabilidade: impossibilidade de concretização do objecto

negocial.

A impossibilidade superveniente, por seu lado, não determina a nulidade do negócio,

mas antes o seu incumprimento [cfr. exemplo da venda de cavalo que perece depois de

celebrado o contrato, supra].

No estudo subsequente, atender-se-á somente à impossibilidade superveniente, uma

vez que a impossibilidade originária tem maior relevância em sede da Teoria Geral do Direito

Civil.

A impossibilidade [superveniente] pode ser:

• Imputável ao devedor [arts. 798º ss]

• Imputável ao credor

• Imputável a terceiro

• Não imputável

§3: IMPOSSIBILIDADE OBJECTIVA E SUBJECTIVA. Esta distinção releva a dois níveis:

• Impossibilidade objectiva: objecto da prestação [art. 790º]

• Impossibilidade subjectiva: pessoa do devedor [art. 791º]

§4: IMPOSSIBILIDADE DEFINITIVA E TEMPORÁRIA.

142
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Impossibilidade definitiva: situação de impossibilidade irreversível

• Impossibilidade temporária: situação de impossibilidade que perdurará

por determinado período [art. 792º].

§5: IMPOSSIBILIDADE TOTAL E PARCIAL.

• Impossibilidade total: impossibilidade que respeita a toda a prestação.

• Impossibilidade parcial: impossibilidade que afecta uma parte da

prestação [art. 793º].

§6: IMPOSSIBILIDADE ABSOLUTA E RELATIVA.

• Impossibilidade absoluta: exonera o devedor.

o Distingue-se de difficultas praestandi.

• Impossibilidade relativa: não exonera o devedor.

o Há situações de impossibilidade relativa que são equiparáveis a

hipóteses de impossibilidade absoluta: em razão do carácter

excessivamente oneroso e atendendo a regras da boa fé,

determinando também a exoneração do devedor. Exemplo:

entrega do anel que caiu ao rio.

o Alteração das circunstâncias [art. 437º].

§7: EFEITOS. Se a prestação for impossível, o devedor fica exonerado de cumpri-la,

uma vez que a obrigação se extingue [art. 790º].

Segundo o commodum de representação [art. 794º], o credor é tutelado por duas vias

alternativas:

• O credor substitui-se ao devedor na titularidade de direito que este

adquira relativamente a terceiro por virtude do facto que tornou

impossível a prestação [vg seguro e subsídio].

• O credor exige que o devedor lhe preste a coisa cujo direito adquiriu por

virtude do facto que tornou impossível a prestação.

143
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Quanto à contraprestação, maxime no caso dos contratos sinalagmáticos [art. 795º], a

impossibilidade de uma prestação determina que o credor fica desobrigado da

contraprestação [nº1], excepto se a prestação se tornar impossível por causa imputável ao

credor, caso em que este deverá efectuar a contraprestação [nº2].

§8: TRANSFERÊNCIA DO RISCO NAS PRESTAÇÕES DE COISA. Cumpre estabelecer a

seguinte distinção:

Risco da prestação: é regra geral suportado pelo credor, com a reserva dos

contratos sinalagmáticos [repartição de risco, art. 795º].

Risco da coisa [art. 796º]: cfr. supra, contratos reais e âmbito do art. 408º.

§9: MORA DO CREDOR. Há mora do credor quando este não aceita a prestação ou não

colabora na aceitação da mesma [arts. 813º ss]. Ainda que lhe seja imputável, tal não

pressupõe culpa do credor.

A obrigação mantém-se e assiste-se a uma inversão do risco [art. 815º], com direito

de compensação do devedor [art. 816º].

Prazo admonitório.

Falta de Cumprimento Imputável ao Devedor

§1: NÃO CUMPRIMENTO. O devedor [solvens] terá que realizar a prestação nos

seguintes termos:

Nos termos impostos pela boa fé [art. 762º-2], sem que a sua actuação cause

prejuízos ao credor.

Cumprindo a sua prestação pontualmente [arts. 406º-1 e 762º-1], ajustando-

se, em todos os aspectos, ao que lhe era devido.

A prestação deve ser efectuada integralmente e não por partes, salvo

convenção, disposição legal ou uso em contrário [art. 763º].

144
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Nos casos em que o devedor desrespeite os princípios supra, ou pura e simplesmente

não realize qualquer prestação, estar-se-á perante uma situação de não cumprimento do

dever obrigacional.

As regras constantes dos arts. 798ºss [não cumprimento culposo] são aplicáveis, em

princípio, às prestações de execução instantânea, oferecendo alguns problemas em face de

relações continuadas ou periódicas, que pressupõem o cumprimento sucessivo de várias

prestações. Com efeito, nestes casos o não cumprimento reconduz-se normalmente apenas a

um incumprimento relativo a um momento concreto, não pondo em causa a relação

contratual no seu todo.

No caso do direito à resolução em caso de não cumprimento, entende-se que só uma

violação grave ou reiterada dá fundamento para a resolução do contrato de prestação

periódica ou continuada. Nesses casos, cumpre aferir se houve ou não uma quebra na relação

de confiança estabelecida entre as partes, situação em que haverá direito de resolução.

Em caso de não cumprimento culposo [arts. 798º ss] presume-se a culpa do devedor,

ainda que apreciada nos termos gerais – em abstracto, pela diligência do bom pai de família

[arts. 799º e 487º-2]. Objectivou-se, assim, a responsabilidade contratual [a culpa era

apreciada em concreto, na vigência do CC anterior]. Assim, desde que, atendendo a critérios

de normalidade, a prestação fosse viável, o solvens considera-se culpado.

§2: RESPONSABILIDADE CONTRATUAL. A responsabilidade obrigacional assenta no

princípio da culpa, uma vez que a responsabilidade civil é, em regra, subjectiva [arts. 483º-2

e 798º], presumindo-se a culpa do devedor. Como excepção, resta-nos o art. 800º

[responsabilidade contratual objectiva, sem culpa].

§3: TERCEIRA VIA DE RESPONSABILIDADE CIVIL. A summa divisio entre a

responsabilidade obrigacional e a responsabilidade extra-contratual encontra-se hoje

esbatida: veja-se o desenvolvimento de especiais deveres de protecção das partes no

contrato, vg. A natureza unitária da responsabilidade civil, enquanto um todo, tem tido ecos

na doutrina nacional: o próprio legislador dotou o CC de regras gerais da responsabilidade

145
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

civil comuns a ambas as responsabilidades [arts. 483º ss]. A consequência é comum: obrigação

de indemnizar [art. 562º ss].

Em conclusão, toda a responsabilidade civil assenta no princípio geral neminem

laedere, ainda que com concretizações especiais que, como em todas as relações de

especialidade, não pretendem afastar as regras gerais nem advêm de criação doutrinária ou

jurisprudencial:

Responsabilidade do produtor [cfr. supra]

Responsabilidade do vendedor e do empreiteiro [arts. 789º ss]

Responsabilidade do vigilante [art. 491º]

ROMANO MARTINEZ propõe a distinção por pequenos núcleos de responsabilidade,

relacionados com certas actividades e profissões, nestes termos.

Das conclusões supra, certa doutrina apelida de “terceira via” da responsabilidade

civil as situações em que não existe um direito primário de crédito, por meio do qual alguém

possa exigir a outrem uma prestação, mas a responsabilidade surge em consequência da

violação de deveres específicos, e não apenas de deveres genéricos de respeito, contrapostos

aos direitos absolutos.

MENEZES LEITÃO e ROMANO MARTINEZ incluem na denominada “terceira via” da

responsabilidade civil as situações de violação de deveres derivados da boa fé, geradoras de

responsabilidade pré-contratual e pós-contratual. Esses deveres não dispõem de tutela

primária, através da acção de cumprimento, mas instituem deveres que constituem um plus

relativamente ao dever geral de respeito.

Para ROMANO MARTINEZ essa “terceira via” não é verdadeiramente alternativa: se

essas fontes de obrigações não se enquadrarem em previsões legais, não podem ser uma

verdadeira modalidade de responsabilidade civil. Exemplifiquemos:

• Culpa in contrahendo [art. 227º]: responsabilidade pré-contratual, segundo

preconizada por JHERING.

o Violação de deveres pré-contratuais:

 Informação [informação insuficiente ou omissa quanto à

qualidade do bem, vg].

146
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

 Lealdade [ruptura inesperada das negociações por uma das

partes, criação de convicção de celebração de contrato

válido, vg].

 Segurança e protecção

o Aplica-se o regime da responsabilidade obrigacional [arts. 798º ss],

dada a violação dos deveres específicos supra.

o Na obrigação de indemnizar não se inclui o direito de resolver o

contrato, apesar de estes direitos se poderem cumular.

• Culpa post pactum finitum [art. 239º]: responsabilidade pós-contratual –

violação de deveres contratuais que subsistem após extinção do vínculo

contratual.

o Sigilo [vg sigilo bancário]

o Concorrência leal [art. 484º]

o Não se confunda com a responsabilidade patrimonial que subsiste

depois de cessar o vínculo em consequência de cláusula contratual de

não concorrência, vg [na responsabilidade pós-contratual não há

qualquer convenção das partes, antes assentando em deveres

impostos pela boa fé].

• Contrato com eficácia de protecção para terceiro [vg arrendamento], e não

contrato a favor de terceiro [art. 443º]! – aqui, terceiros encontram-se na

esfera de protecção do contrato [vg os filhos do arrendatário, no

arrendamento].

o A responsabilidade é obrigacional ou extra-obrigacional em função do

tipo de danos, cfr. infra.

• Relações contratuais de facto

Em todos os institutos enunciados a responsabilidade é obrigacional, podendo ser

extracontratual atendendo ao dano causado.

O progressivo alargamento do campo de aplicação da responsabilidade obrigacional

dificulta a delimitação com respeito às situações extra-obrigacionais. Exemplifiquemos:

147
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Se o amigo do inquilino cai nas escadas do imóvel que o último arrenda, a

responsabilidade é contratual face ao inquilino e delitual quanto ao amigo?

• Se um acidente entre dois comboios mata um utente não portador de bilhete,

a responsabilidade é delitual? Seria responsabilidade contratual se o utente

tivesse comprado o bilhete?

Sendo que supra concluímos que a distinção não é indispensável, não podemos,

todavia, prescindir dela. O CC soluciona este problema através da cláusula geral de

responsabilidade civil [art. 483º-1], através da violação de deveres de protecção que não se

fundam no acordo das partes: protege-se a integridade pessoal e patrimonial, fora do

perímetro contratual. Ressalve-se as diferenças de regime [vg art. 500º vs art. 800º].

O alargamento da responsabilidade obrigacional, incluindo deveres delituais no

contrato [obrigação de segurança, vg], contraria o princípio de tratar o igual de forma

idêntica. A inclusão de deveres desse tipo seria desnecessária, segundo ROMANO MARTINEZ,

já que os deveres acessórios do contrato decorrem das regras gerais da responsabilidade civil.

Fundar a responsabilidade por violação de direitos absolutos no negócio jurídico criaria uma

hipertrofia do direito contratual.

Face ao potencial concurso entre a responsabilidade delitual e a contratual, os

partidários da teoria da prevalência da responsabilidade contratual em detrimento da

primeira, sustentam-na mediante recurso a três argumentos:

• A existência de um contrato estabelece deveres de protecção derivados da

boa fé, mútuos e recíprocos.

• O princípio da autonomia privada evidencia que, com a celebração de um

negócio jurídico, as partes pretenderam afastar as regras da responsabilidade

extra-contratual.

o Crítica: a celebração do contrato não priva as partes da protecção

geral, não se renunciando à defesa que teriam independentemente da

celebração do mesmo [ROMANO MARTINEZ].

• A responsabilidade obrigacional impõe um regime mais gravoso para o lesante

[devedor], pelo que o credor não tem qualquer interesse em recorrer às

regras da responsabilidade extra-contratual.

148
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Crítica: sendo certo que os prazos da prescrição são mais longos na

responsabilidade obrigacional [art. 309º, 20 anos], dispondo o credor

de uma tutela mais eficaz, os prazos de exercício de direitos podem

ser bastante mais restritos nos contratos em especial do que aquele

da responsabilidade extra-contratual [art. 498º, três anos], vg nos

casos do cumprimento defeituoso nos contratos de compra e venda ou

de empreitada [ROMANO MARTINEZ]. No âmbito da responsabilidade

extra-contratual, ao lesado não pode ser aplicado um prazo

prescricional que o coloque numa situação pior da que estaria nos

termos gerais do art. 498º: três anos.

Esta teoria, apesar das críticas supra, é coerente com a relação de interacção entre

os dois tipos de responsabilidade, e não de especialidade. As regras da responsabilidade

obrigacional aplicar-se-ão, assim, a danos extra rem [provocados no cumprimento da

obrigação, mesmo que por actividades laterais, provocando prejuízos na pessoa e no restante

património do credor]. Exemplo: o incêndio que deflagre durante as obras de reparação de

um prédio presumir-se-ia culpa do empreiteiro [responsabilidade obrigacional, presunção de

culpa – art. 799º].

ROMANO MARTINEZ discorda da exemplificação supra: se à responsabilidade do

produtor o DL que a consagra aplica as regras delituais, o mesmo critério pode ser

estabelecido para os danos extra rem, justificando-se a aplicação da responsabilidade extra-

contratual. O mesmo autor propõe a distinção seguinte:

• Danos extra rem: danos pessoais e no restante património do

accipiens/destinatário do pagamento/credor e de terceiros [não inclui o

prejuízo causado no objecto da prestação] – aplicam-se as regras da

responsabilidade extra-contratual.

o Danos pessoais [vg ferimentos causados por explosão de garrafa de

gás].

o Danos noutros bens do credor [vg animal enfermo que contagiou os

demais].

o Viga defeituosa que causou a ruína da casa do dono da obra, vg.

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Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Parceiro pensador que, no âmbito de obrigação pecuária, alimentou

o gado com refeições estragadas que havia adquirido previamente ao

fornecedor, devendo indemnizar o parceiro proprietário, vg. Pode

invocar direito de regresso contra o fornecedor da ração.

• Danos circa rem, por exclusão de partes: danos causados no objecto da

prestação, tão-só – aplicam-se as regras da responsabilidade obrigacional.

o Diminuição ou perda do valor da coisa

o Custos contratuais

o Valor da eliminação dos defeitos

o Montante dispendido em estudos e pareceres

o Diferença de preço para aquisição de bem substitutivo

o Lucros cessantes

o Outras despesas derivadas do incumprimento:

 Renda da casa arrendada por período em que não foi possível

usá-la

 Custo da sementeira perdida porque as sementes são de

fraca qualidade e não germinaram

 Despesas judiciais na acção em que se exige a execução

específica ou a resolução do contrato

Quando se assista simultaneamente a danos extra rem e circa rem, o credor tem

direito a uma pretensão indemnizatória, embora exista concurso de normas [uma só

pretensão, um único pedido processual, com duplo fundamento: responsabilidade extra-

contratual e obrigacional]. Todavia, as regras que regem a indemnização são comuns às duas

responsabilidades [art. 562º ss], ainda que o fundamento de direito seja diverso. Ainda assim,

o princípio da liberdade de opção entre as pretensões delitual e contratual é maioritário na

doutrina e na jurisprudência. No extremo oposto, situa-se a regra do não-cúmulo, “absurda”

segundo ROMANO MARTINEZ. Levada ao limite, o filho do dono da obra não poderia

demandar delitualmente o empreiteiro pelos ferimentos do pai como consequência do defeito

da prestação, vg, mas tão-só no caso de morte do mesmo.

150
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Para evitar que o lesado seja menos protegido na hipótese de ter celebrado um

contrato, deve admitir-se a possibilidade de concurso de normas [princípio da liberdade de

opção]. ROMANO MARTINEZ conclui pela superação da rigidez dos conceitos jurídicos da

responsabilidade contratual e delitual.

Conclusão:

• Só se admite recurso à responsabilidade extra-contratual [violação de direitos

absolutos] quando:

o A prestação causou danos em bens do património do credor, sem

dependência do contrato cumprido: danifica-se uma obra já

existente.

o Exemplos:

 Adaptação de um comutador a uma máquina, fazendo uma

fenda nesta, vg.

 Instalação de uma câmara frigorifica num camião, estragando

o motor, vg.

 Obras de reparações de edifícios

 Subempreitadas de acabamentos [vg instalações eléctricas]

• Admite-se recurso à responsabilidade obrigacional quando:

o Haja entrega de uma coisa com defeito [cumprimento defeituoso]

o Se realize uma obra imperfeita

o Não basta que o prejuízo tenha sido causado por um facto ilícito

praticado na altura da realização da prestação

o Os prejuízos que excederem o sinalagma contratual entram no campo

aquiliano.

Meios Gerais de Reacção em Caso de Não Cumprimento

§1: GARANTIA GERAL DAS OBRIGAÇÕES. Sendo a falta de cumprimento imputável ao

devedor, o credor pode reagir executando os bens do seu património ou de terceiro garante.

Sobre esta matéria, cfr. o capítulo infra.

151
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§2: REALIZAÇÃO COACTIVA DA PRESTAÇÃO. Caso o devedor não cumpra de forma

voluntária a obrigação a que estava adstrito, permite-se que o credor:

• Instaure uma acção de cumprimento e execução, mediante a qual satisfaça

coactivamente o seu crédito [execução do património do faltoso] – arts. 817º

ss.

• Instaure uma execução específica, que pode respeitar a:

o Entrega de coisa determinada [art. 827º]

o Prestação de coisa fungível [art. 828º]

o Prestação de facto negativo [art. 829º]

o Contrato-promessa [art. 830º]

• Exija uma sanção pecuniária compulsória [art. 829º-A], caso se trate de uma

prestação de facto infungível.

§3: EXCEPÇÃO DE NÃO CUMPRIMENTO. Uma das partes pode recusar a sua prestação

se a contraparte não tiver cumprido [arts. 428º ss], em casos de mora ou de cumprimento

defeituoso.

Pressupõe:

• Subsistência de uma relação sinalagmática [vg compra e venda: o vendedor

recusa a entrega da coisa enquanto o devedor não pagar o preço].

• Os prazos de cumprimento das prestações não a podem inviabilizar.

• A parte que cumpriu a prestação principal do contrato celebrado [vg o

mecânico que já reparou o veículo] não pode, depois, invocar a excepção do

não cumprimento.

Distingue-se do direito de retenção [art. 754º].

§4: RESOLUÇÃO. Nos contratos sinalagmáticos, o incumprimento definitivo e o

cumprimento defeituoso da prestação de uma das partes permite que a contraparte resolva o

152
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

contrato [art. 801º] – condição resolutiva tácita, uma vez que se pressupõe que as partes,

tacitamente, condicionam os negócios que ajustam ao seu pontual cumprimento.

Quanto ao regime, cfr. supra.

Impossibilidade Culposa do Cumprimento

§1: IMPOSSIBILIDADE CULPOSA. A impossibilidade culposa não corresponde ao

incumprimento:

• Incumprimento: para tal, é necessário que haja uma prestação devida e

possível. Só se pode estar adstrito ao que é possível e só se pode deixar de

cumprir aquilo a que se está adstrito.

• Impossibilidade culposa: arts 801º a 804º.

o O legislador equiparou o regime da impossibilidade culposa ao da

falta de cumprimento [art. 801º-1] – acarretando a obrigação de

indemnizar decorrente da responsabilidade obrigacional [arts.

798ºss].

 Têm aplicação todas as regras da falta de cumprimento [vg

art. 799º-1]? SIM! Se não se presumisse a culpa do devedor, o

credor ficaria em desvantagem sempre que a prestação fosse

inexecutável, sendo mais onerado no caso de impossibilidade

do que no caso de incumprimento.

o Impossibilidade parcial imputável ao devedor [art. 802º] – estas regras

aplicam-se também ao incumprimento parcial, tal como as regras da

impossibilidade total se aplicam ao incumprimento total.

Não Cumprimento Culposo

§1: MODALIDADES. O não cumprimento culposo pode assumir os seguintes contornos:

• Mora do devedor

• Incumprimento definitivo

153
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Cumprimento defeituoso

Iremos estudar cada uma delas com detalhe, infra §2 ss.

§2: MORA DO DEVEDOR. Se o devedor, por causa que lhe é imputável, não efectuou o

cumprimento na data do vencimento, podendo realizá-lo mais tarde [porque é ainda possível

ou porque continua a satisfazer o interesse do credor, que ainda subsiste, arts. 804º-2 e 808º-

1], encontrar-se-á numa situação de mora: falta temporária de cumprimento [arts. 804ºss].

Não haverá mora solvendi se a causa do retardamento não for imputável ao devedor:

vg devendo-se a caso fortuito ou a acto do credor. A culpa no retardamento presume-se [art.

799º-1].

A mora tem início com o vencimento da prestação, o qual pode advir [art. 805º]:

• De interpelação feita ao devedor [arts. 777º-1 e 805º-1]

• Do decurso do prazo estabelecido para se efectuar o cumprimento ou da

interpelação [art. 805º-2a]

o No mútuo, na falta de fixação de prazo, o pagamento é devido 30 dias

após a interpelação [art. 1148º].

• Do facto de se tratar de uma obrigação proveniente de facto ilícito [art. 805º-

2b].

O vencimento da prestação carece de prova pelo credor [art. 342º-1].

Enquanto o crédito for ilíquido, o devedor não se constitui em mora [art. 805º-3],

excepto se a falta de liquidez lhe for imputável ou se se tratar de obrigação de indemnizar

por facto ilícito ou pelo risco.

Segundo ROMANO MARTINEZ, a mora deve ser qualificada como uma falta temporal

do cumprimento, e não como um defeito temporal do cumprimento, expressão que poderá ser

confundida com o cumprimento defeituoso.

Distingue-se do incumprimento parcial, na medida em que pode haver mora

[retardamento da prestação] mas, enquanto houver essa mora, não se poderá falar em

incumprimento definitivo, total ou parcial. O incumprimento definitivo parcial pressupõe que

aquela parcela da prestação jamais será realizada.

154
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

A mora pode respeitar tanto à prestação principal, como às prestações acessórias [vg

falta de entrega do manual de instruções do electrodoméstico vendido], bem como às

relações subsequentes [vg mora na eliminação dos defeitos da prestação].

A mora do devedor determina a subsistência do vínculo, e tem como efeitos:

• Dever de indemnizar o credor, nos termos gerais [arts. 804º-1 e 562º ss]:

o Mantém-se o dever de cumprir a prestação.

o A indemnização por danos moratórios não exclui o cumprimento,

antes se cumula com este.

o Tratando-se de prestações pecuniárias, a consequência legal são os

juros de mora [art. 806º], sem necessidade de prova de danos pelo

credor – os juros de mora legais são de 4%, no Direito Civil; quando

convencionais, podem ser de 13% [sem garantia real] ou de 11% [com

garantia real].

• Assunção do risco [art. 807º-1]:

o O devedor assume o risco da perda ou deterioração da coisa que

deveria entregar.

o A mora confere ao credor a faculdade de recorrer à excepção de não

cumprimento do contrato [arts. 428º ss].

A situação de mora extingue-se com:

• Purgação [purgatio morae]: cumprimento da prestação com pagamento da

indemnização moratória.

• Transformação da mora em incumprimento definitivo:

o Prazo admonitório [art. 808º-1]

o Perda do interesse do credor [art. 808º-1]

o Declaração do devedor de que não pretende cumprir

• Extinção da obrigação, por impossibilidade superveniente do cumprimento

§3: INCUMPRIMENTO DEFINITIVO. O incumprimento definitivo designa os casos em

que a prestação não tenha sido cumprida e já não possa vir a sê-lo posteriormente.

155
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

Face à presunção de culpa [art. 799º-1], se a prestação não foi definitivamente

cumprida, pressupõe-se que:

• O devedor actuou ilicitamente

• A actuação é culposa [ainda que a culpa seja presumida]

• Causou danos para o credor [que carecem de prova]

Verificados os pressupostos gerais da responsabilidade civil [acção, ilicitude, culpa,

dano e nexo de causalidade adequada], o devedor terá que indemnizar o credor por não ter

cumprido definitivamente a prestação a que se encontrava adstrito [arts. 798º ss].

Eis as causas de incumprimento definitivo:

• Perda de interesse do credor:

o Não se justifica que, ainda assim, o solvens pretenda realizar a

prestação, uma vez que o interesse do credor designa o fim para o

qual a obrigação foi constituída.

o É apreciada objectivamente [art. 808º-2]

o É ao credor que incumbe a prova da perda de interesse [art. 342º-2]

o Se o credor perder o interesse, já não se poderá recorrer à realização

coactiva da prestação [arts. 817º ss].

o Exemplos: negócios sazonais, casamento, etc.

• Decurso do prazo suplementar [admonitório] de cumprimento estabelecido

pelo credor [accipiens], arts.808º-1 e 808º:

o O credor não deve ficar indefinidamente adstrito à relação

obrigacional

o Prazo deve ser razoável

o Consequências do desrespeito do prazo: o accipiens pode optar entre

as regras do incumprimento definitivo e as da acção de cumprimento

e de execução específica.

• Declaração expressa do devedor em não querer cumprir:

o Não se torna necessário que o credor estabeleça um prazo

admonitório.

156
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Se o devedor declarar que não vai cumprir, o accipiens pode optar

entre as regras do incumprimento definitivo e as da acção de

cumprimento e de execução específica.

De todo o modo, a impossibilidade culposa da prestação determina a equiparação ao

incumprimento definitivo [arts. 801º e 802º].

Perante um caso de incumprimento definitivo, o credor pode:

• Resolver o contrato [art. 801º-2]:

o Extinção retroactiva do vínculo obrigacional [retroactividade in

radicem]

• Exigir uma indemnização pelos danos [art. 801º-2]:

o Funções da indemnização:

 Interesse contratual negativo: restabelecer a situação que

existiria se a parte lesada não tivesse celebrado o contrato.

• Só se justifica quando o credor resolveu o contrato e

está adstrito a devolver a prestação recebida.

• Restitui-se a situação, como se a parte lesada não

tivesse confiado no contrato que celebrou.

 Interesse contratual positivo: colocar a parte lesada em

circunstâncias idênticas às que se verificariam se o contrato

tivesse sido pontualmente cumprido.

• A resolução prevista no art. 802º pode ser cumulada

com a indemnização pelo interesse contratual

positivo, de modo que o credor possa ser ressarcido

quanto aos seus lucros cessantes.

• O credor que resolve o contrato não deve ficar em

pior situação do que aquele que pede a redução do

preço.

o Como se determina o valor da indemnização?

157
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

 Doutrina clássica: só a indemnização pelo interesse contratual

negativo pode ser cumulada com a resolução do contrato.

• Não admite que a parte lesada possa pedir a

resolução do contrato e pretender ser indemnizada,

restabelecendo a situação que existiria se o contrato

tivesse sido cumprido [interesse contratual positivo].

• A indemnização pelo interesse contratual negativo

abrange as despesas contratuais do próprio acto, bem

como as acessórias, e os lucros cessantes.

 Doutrina minoritária: admite-se que, apesar de existir

fundamento para resolver o contrato, o credor opte por exigir

a indemnização pelo interesse contratual positivo, devendo

realizar a sua contraprestação [Surrogationstheorie].

• A indemnização pelo interesse contratual positivo

pode ser cumulada com a resolução do contrato.

• Exigir a redução da sua contraprestação:

o Quando o incumprimento definitivo é parcial, o credor tem a

faculdade de exigir a realização do que for viável e reduzir a sua

contraprestação, para além do direito a ser indemnizado pelo

interesse contratual negativo [art. 802º-1].

• Commodum de representação [art. 803º-1]:

o Possibilidade de:

 O credor exigir a entrega de uma coisa adquirida pelo

devedor em substituição do objecto da prestação que este

não efectuou.

 O credor sub-rogar-se directamente na titularidade de um

direito que o solvens tenha adquirido contra terceiro [vg

subsídio ou seguro].

158
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Estas duas possibilidades podem verificar-se em caso de

incumprimento definitivo ou de cumprimento defeituoso.

§4: CUMPRIMENTO DEFEITUOSO. Ainda que o legislador tenha sido omisso quanto a

este tipo de inadimplemento [salvo breve referência no art.799º-1 e indícios no art. 798º -

“falta (…) ao cumprimento”], deve-se entender que a divisão é tripartida: mora,

incumprimento definitivo e cumprimento defeituoso.

A figura do cumprimento defeituoso [inexacto ou imperfeito] tem contornos anglo-

saxónicos [breach of contract] e designa as situações em que o devedor realiza a prestação a

que estava adstrito em violação do princípio da pontualidade do cumprimento [discrepância

entre o “ser” e o “dever ser”].

Por outras palavras, se o credor não fica satisfeito, o devedor não é liberado da sua

prestação. Depende do preenchimento de quatro condições:

• O devedor realizou a prestação em violação do princípio da pontualidade:

o Nove classes de hipóteses de cumprimento defeituoso:

1. Prestação realizada de modo distinto do acordado

2. Prestação realizada em tempo distinto do acordado, seja ela


antecipada ou retardada [arts. 804ºss, mora do devedor]

3. Prestação de quantidade distinta da devida, seja para mais

[devedor exige que lhe seja devolvido] ou para menos [credor

exige o remanescente]

4. Prestação realizada em local diverso do acordado

5. Entrega de coisa diferente da acordada [direito de

substituição]

6. Prestação de qualidade diversa da devida [relativa à conduta


ou ao objecto] – própria das prestações de facere

7. Prestação padece de um defeito de direito [vg entrega de


coisa alheia]

8. Violação de deveres acessórios

159
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

9. Realização defeituosa da prestação, expressamente

consagrada na lei

• O credor procedeu à sua aceitação por desconhecer a desconformidade ou,

conhecendo-a, apondo uma reserva:

o Desconhecimento do credor: pelo facto de o defeito não ser

detectável, quando a prestação haja sido realizada sem carecer de

aceitação ou quando haja sido realizada a terceiro.

 Aceitação da prestação em pleno conhecimento: não se pode

considerar esse cumprimento como defeituoso.

o Conhecimento da inexactidão do cumprimento, com reserva: o credor

pode aceitar o que lhe for prestado.

 O credor tem interesse, apesar do defeito, em receber a

prestação.

 A boa fé impõe-lhe o dever de aceitar o que for prestado – vg

defeito pouco significativo, sem prejuízo de indemnização

pelo devedor.

• O defeito é relevante:

o Não se justificaria que o credor demandasse a contraparte por um

defeito insignificante do cumprimento [bom senso e boa fé objectiva]

– art. 762º-2.

o Importância do defeito é apreciada em concreto, mas determinada

objectivamente à luz do interesse do credor.

• Foram causados danos típicos:

o Delimitação pela negativa: foram causados prejuízos distintos

daqueles que o credor poderia sofrer em caso de incumprimento

definitivo ou de mora.

160
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Dever de eliminação do defeito ou de redução da contraprestação [vg

preço].

Excluem-se do âmbito do cumprimento defeituoso as situações em que a prestação é

efectuada tardiamente [arts. 804º ss] e quando a falta de quantidade não afecte a totalidade

da prestação [casos em que o incumprimento parcial implique uma correlativa satisfação do

interesse do credor].

Pela consequente satisfação parcial do interesse do credor, com o cumprimento

defeituoso, poder-se-ia defender que este seria um tipo de incumprimento parcial, seja ele

definitivo ou retardado/mora [vg quando a obrigação deficientemente cumprida é genérica].

Não segundo ROMANO MARTINEZ, uma vez que a satisfação parcial do interesse do credor

nem sempre se verifica e, mesmo que tal suceda, os meios de que dispõe o credor [exigência

da eliminação dos defeitos, vg] excedem os meios legalmente previstos para as hipóteses de

incumprimento definitivo parcial ou de mora parcial. Por outro lado, o incumprimento

definitivo parcial e a mora parcial pressupõem que o credor só haja aceite uma parte da

prestação. Por fim, o incumprimento parcial corresponde a uma visão meramente

quantitativa da insuficiência da prestação, visão essa que não é contundente com o

cumprimento defeituoso.

Ao cumprimento defeituoso aplicam-se os arts. 762º ss e 798ºss pelos indícios

terminológicos explicitados supra, e só a partir do momento em que a prestação defeituosa é

aceite pelo credor.

São ainda de aplicar, analogicamente, as regras do incumprimento definitivo e da

mora:

• Regras da impossibilidade culposa: aplicam-se quando a deficiência seja de

tal ordem que o credor não tenha qualquer interesse na prestação recebida e

esta não possa ser realizada em momento posterior.

• Regras da mora: aplicam-se quando a prestação possa ser executada mais

tarde.

Finalmente, do regime da execução inexacta estabelecido em termos especiais para

alguns contratos [vg quanto à compra e venda - arts. 905º ss e 913º ss - e empreitada - arts.

1220º ss], pode-se inferir um conjunto de princípios básicos:

161
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• O credor pode exigir que o cumprimento defeituoso seja rectificado, lato

sensu

• Se o defeito não for eliminável, o credor pode exigir que a prestação seja

substituída.

• Enquanto o defeito não for eliminado, ou a prestação substituída, o credor

pode invocar a excepção do não cumprimento [arts. 428º ss] e recusar a sua

contraprestação [vg pagar o preço].

• Quando o cumprimento defeituoso implique uma perda de valor da prestação

efectuada, o credor pode reduzir a sua contraprestação, de modo a

reequilibrar a relação contratual.

• O credor tem direito à resolução do contrato, verificados os pressupostos dos

arts. 801º e 808º.

• Para além disso, o credor tem o direito à indemnização por todos os danos

que a prestação defeituosa haja causado.

§5: RESPONSABILIDADE POR ACTO DE TERCEIRO. A responsabilidade do devedor

pode ser agravada por facto de outrem, seja por culpa in eligendo, in instruendo ou in

vigilando.

Por outro lado, o devedor pode responder objectivamente pelo incumprimento

imputável a terceiro, a quem encarregara e executar a prestação a que estava adstrito [art.

800º, sem culpa]. Mesmo tendo o devedor agido com diligência, in eligendo, in instruendo ou

in vigilando do auxiliar, é responsável pela actuação deste, uma vez que o devedor retira

benefícios da actuação de terceiros e deve suportar os prejuízos inerentes [ubi commoda ibi

incommoda]. Por fim, o credor deverá ficar em situação idêntica à que estaria se a prestação

tivesse sido cumprida, na totalidade, pelo devedor, tendo o direito de exigir um cumprimento

diligente deste.

§6: FIXAÇÃO CONTRATUAL DOS DIREITOS DO CREDOR. Os direitos do credor podem

ser fixados contratualmente pelas seguintes vias:

• Cláusulas de limitação e de exclusão da responsabilidade:

162
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Liberdade contratual

o Proibição de renúncia antecipada aos direitos por parte do credor

[art. 809º] – não pode renunciar ao direito a ser indemnizado pelo

incumprimento. Excepções a esta regra:

 Acordo prévio, desde que a exclusão ou limitação não

compreenda actos que representem a violação de deveres

impostos por normas de ordem pública.

 É lícita a exclusão contratual da responsabilidade objectiva,

sem culpa, e não da responsabilidade subjectiva.

o Cláusulas de limitação da responsabilidade: limitação máxima ou

agravamento.

o As cláusulas de exclusão da responsabilidade distinguem-se da

delimitação do objecto do negócio jurídico [art. 405º], fixando o seu

conteúdo ou extensão [vg cláusula de contrato de seguro ou placa em

parque de estacionamento].

• Cláusula penal:

o Montante fixo ajustado pelas partes para a indemnização resultante

de qualquer dos tipos de incumprimento [art. 810º].

o Redução da cláusula penal [art. 812º].

• Sinal: cfr. supra, contrato-promessa [arts. 441º ss].

GARANTIA DAS OBRIGAÇÕES

Garantia Geral

§1: PATRIMÓNIO DO DEVEDOR. O património do devedor constitui a garantia geral

das obrigações por ele assumidas [art. 601º].

“Garantia” deve, aqui, ser entendida em termos objectivos: enquanto segurança no

cumprimento das obrigações, assegurando o pagamento de débitos, e não enquanto

coercibilidade.

163
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

A garantia geral incide sobre todos os bens que integram o património do devedor,

indiscriminadamente, à altura da execução, independentemente de terem sido adquiridos

antes ou depois da constituição do crédito [excepto quando haja acordo de limitação de

responsabilidade, nos termos do art. 602º]. Contrapõe-se, assim, às garantias especiais, que

incidem sobre bens certos e determinados do património do devedor. A garantia geral não

prevalece em relação a garantias especiais.

Só respondem pelo cumprimento das obrigações os bens do devedor susceptíveis de

penhora [art. 601º], i.e., aqueles que constam dos arts. 821º ss CPC.

Importa ainda aferir a que título o devedor detém os bens no seu património: se for

proprietário, os bens respondem na totalidade; se for titular de um direito real menor [vg

usufrutuário] ou de um direito pessoal de gozo [vg arrendatário] cumpre apreciar caso a caso:

• Usufrutuário: a execução só abrange o direito de usufruto e não a

propriedade sobre a coisa.

• Locatário: o direito de gozo sobre a coisa locada não é executável, em

princípio, salvo tratar-se de arrendamento para o comércio ou indústria.

No caso de concurso de credores, e não sendo o património do devedor suficiente

para saldar todas as dívidas, proceder-se-á ao rateio [art. 604º]: os vários credores,

independentemente da data de constituição do crédito, serão pagos proporcionalmente

através do património do devedor [aquele a quem era devida maior quantia irá receber uma

quota superior à dos demais].

§2: GARANTIAS APARENTES. Na prática bancária, frequente é que o devedor preste

garantias de cumprimento, ditas especiais, que têm, na verdade, uma eficácia meramente

obrigacional, pelo que apenas produzem efeitos inter partes. Estas garantias são aparentes

porque nada acrescentam à garantia geral, nem podem ser apostas por um dos credores aos

demais, em caso de concurso de credores.

Em conclusão, visto que apenas produzem efeitos entre o devedor e o credor, as

garantias aparentes são ineficazes em relação aos demais credores.

Exemplos:

• Carta de conforto [comfort letter]

164
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Negative pledge

• Cláusula pari passu

• Contrato-promessa de garantias especiais

Conservação da Garantia Patrimonial

§1: CONSERVAÇÃO DO PATRIMÓNIO. Com vista a evitar a dissipação de bens do

património do devedor, estabeleceram-se meios conservatórios da garantia patrimonial [arts.

605º ss], dos quais:

• Declaração de nulidade

• Sub-rogação do credor ao devedor

• Impugnação pauliana

• Arresto

§2: DECLARAÇÃO DE NULIDADE. art. 605º.

§3: SUB-ROGAÇÃO DO CREDOR AO DEVEDOR. A sub-rogação do credor ao devedor

permite que o credor exerça contra terceiros direitos do devedor [arts. 606º ss].

Distingue-se da acção directa, no âmbito da união de contratos.

§3: IMPUGNAÇÃO PAULIANA. Através da impugnação pauliana [arts. 610º ss] o credor

pode tornar relativamente ineficazes actos de alienação ou oneração patrimonial perpetrados

pelo devedor para o prejudicar. Destes actos excluem-se aqueles de natureza pessoal [vg

casamento, divórcio ou adopção].

Esta acção desvia-se do princípio geral da responsabilidade patrimonial, uma vez que

destrói a barreira que se interpõe entre o direito de execução dos credores e os bens

alienados pelo devedor, que já se encontram na esfera jurídica de terceiro. Corresponde,

pois, a uma reacção legal à violação do princípio de garantia patrimonial.

Eis os requisitos da impugnação pauliana [arts. 610º-612º]:

165
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Acto praticado pelo devedor que não seja de natureza pessoal

• Esse acto provoca, para o credor, a impossibilidade de obter a satisfação

integral do seu crédito ou o agravamento dessa responsabilidade

• Acto praticado de má fé [bilateral] ou tratar-se de um acto de natureza

gratuita

• É necessário que o crédito seja anterior ao acto, ou mesmo posterior, quando

o acto tenha sido efectuado dolosamente com o fim de impedir a satisfação

do direito do futuro credor.

§4: ARRESTO. O arresto [arts. 619º ss] designa a apreensão judicial de bens do

devedor se houver justo receio de extravio ou dissipação dos mesmos.

Cessão de Bens aos Credores

§1: NOÇÃO. A cessão de bens aos credores é um contrato mediante o qual o devedor

inadimplente, ou em vias de não cumprir as suas obrigações, encarrega os credores, ou alguns

deles, de procederem à liquidação do seu património ou de parte dele, repartindo entre si o

produto do mesmo para satisfação dos respectivos créditos [art. 831º].

Este negócio pode servir de remédio ao incumprimento, obstando, pois, à aplicação

das regras da garantia do cumprimento, designadamente à execução do património do

devedor.

§2: REGIME. A cessão de bens não é oponível aos credores com créditos anteriores à

celebração do negócio, que não tenham nela participado [art. 833º]. Esta figura não funciona,

pois, como uma garantia especial [cfr. infra], na medida em que os credores cessionários não

adquirem qualquer preferência sobre os bens cedidos em caso de concurso com outros

credores com créditos anteriores à cessão.

Se os credores tiverem créditos constituídos em data posterior à cessão, cumpre

distinguir:

166
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Bens sujeitos a registo: se a cessão tiver sido registada, é oponível a esses

credores [art. 832º-2]; se a cessão não tiver sido registada, o direito desses

credores não é oponível mesmo em relação a terceiros cujos créditos se

constituíram em data posterior à da cessão de bens.

• Bens não sujeitos a registo: a cessão é oponível a esses credores.

Os credores relativamente aos quais a cessão de bens seja oponível não podem

executar a parte do património do devedor que tenha sido cedida [art. 833º, 2ª parte].

§3: NATUREZA JURÍDICA. A cessão de bens não é um contrato exclusivamente

obrigacional, na medida em que se apresenta como oponível a terceiros que se tenham

constituído como credores depois do seu ajuste.

Não há, contudo, qualquer transferência da propriedade dos bens, mas sim a

incumbência de um encargo [art. 831º]: os credores cessionários são encarregados de liquidar

o património do devedor, aproximando a figura do contrato de mandato, ainda que com

especificidades.

Feita a liquidação, o devedor fica liberado das suas dívidas perante os credores

cessionários na medida em que o produto da liquidação tenha satisfeito os créditos destes

[art. 835º]. Se, diversamente, for insuficiente o produto recebido, os créditos mantêm-se na

proporção não paga. Se exceder, incumbe aos credores a devolução do remanescente.

Garantias Especiais

§1: GARANTIAS ESPECIAIS. Através das garantias especiais, a lei permite que o

credor, por via negocial, se coloque numa situação privilegiada em relação aos demais

credores, sem perder os direitos próprios dos credores comuns.

Se for insuficiente a garantia especial, o credor preferencial terá que concorrer ao

rateio com os restantes credores, conforme explicitado supra.

Em suma, a garantia especial constitui um reforço da garantia geral.

167
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

§2: PRESTAÇÃO DE CAUÇÃO. A prestação de caução [arts. 623ºss] pode constituir-se

mediante a prestação de outras garantias pessoais ou reais e prossegue duas finalidades:

• Assegurar o cumprimento de eventuais obrigações, que não se sabe ainda se

se virão a constituir – compensando os prejuízos decorrentes de um eventual

futuro incumprimento contratual [vg contrato de empreitada].

• Assegurar o cumprimento de obrigações de montante indeterminado – como

as partes não têm ainda a possibilidade de avaliar a amplitude exacta da

obrigação, podem acordar quanto à constituição de uma caução.

O depósito de dinheiro, títulos de crédito, pedras ou materiais preciosos como caução

é havido como penhor [arts. 623º-1 e 666º-2], facto que justifica a qualificação da caução em

garantia especial mista, um tertium genus entre as garantias pessoais e reais.

§3: GARANTIAS PESSOAIS. As garantias pessoais implicam que, para além do

património do devedor, exista o património de um terceiro responsabilizado pelo pagamento

da mesma dívida, através da adjunção de bens penhoráveis de outro património.

• Garantias pessoais típicas: fiança e aval

• Garantias pessoais atípicas: garantia autónoma e carta de conforto

Estudaremos os seguintes exemplos de garantias pessoais:

• Fiança:

o O credor passa a ter como garantia de cumprimento dois patrimónios:

o do devedor – que responde por dívida própria – e o do fiador – que

responde por dívida alheia [arts. 627º ss].

o Em relação a ambos os patrimónios, o credor tem tão-só a garantia

geral, concorrendo contra todos os credores no rateio.

o Fiador: responsabilidade pessoal pelo cumprimento de uma dívida

alheia.

o Características da fiança:

168
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

 Característica imprescindível: acessoriedade [art. 627º-2] – a

fiança fica subordinada a acompanhar a obrigação afiançada.

• Declaração expressa

• Constituição de forma menos onerosa

• Acompanha a invalidade e extinção da obrigação

principal

• Fiador pode invocar meios de defesa do afiançado

 Característica que pode ser afastada: subsidiariedade

[benefício da excussão, art. 638º].

• O fiador só responde quando se provar que o

património do devedor é insuficiente

• Pode ser afastada pela vontade das partes

• Característica inexistente nas obrigações mercantis

o Caso em que o fiador se apresenta como

principal pagador, tornando-se ambos

responsáveis solidários pelo pagamento.

o Pode constituir-se mediante negócio jurídico entre fiador e credor,

com ou sem acordo do afiançado.

• Subfiança ou abonação:

o Pressupõe a existência de duas fianças numa relação sucessiva.

o O subfiador garante, perante o credor, a solvabilidade do fiador [art.

630º].

o O subfiador dispõe de duplo benefício da excussão [art. 643º]: é-lhe

lícito recusar o cumprimento enquanto o credor não tiver excutido os

bens do devedor ao fiador.

 Pode ser total ou parcialmente afastado pelas partes

 Não vigora no caso de obrigações comerciais

• Caso em que o subfiador responde solidariamente

com o fiador e o devedor

169
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

• Retrofiança:

o Figura não prevista na lei: negócio atípico na sua formulação mas

cujos efeitos o aproximam da fiança.

o O retrofiador garante o devedor perante o fiador que exerce o direito

de crédito no qual ficou sub-rogado.

o Se o fiador for chamado a honrar a dívida do seu afiançado, a lei

confere-lhe um direito de crédito contra este, com base numa sub-

rogação legal [arts. 644º e 592º] – o exercício desse direito de crédito

pode ser garantido através de uma retrofiança.

o Se o devedor, demandado por via da sub-rogação, não pagar ao seu

fiador, este exige o cumprimento ao retrofiador.

• Mandato de crédito:

o Quando alguém encarrega outrem de conceder crédito a um terceiro

[art. 629º-1], e o fizer exigindo que seja realizado por sua conta,

celebra um contrato de mandato [art. 1157º] e, no caso do art. 629º,

sem representação [art. 1180º] – o mandatário concede crédito em

nome próprio.

o O mandato de crédito não constitui, todavia, um verdadeiro contrato

de mandato, na medida em que não têm aplicação as regras dos arts.

1181º ss. Corresponde, sim, a uma garantia pessoal.

o O mandante responde como fiador do terceiro [mutuário] perante o

mandatário [mutuante].

o A iniciativa de prestar garantia cabe ao fiador, e, contrariamente ao

que acontece na fiança, a vontade de a conceder não tem que ser

expressamente declarada [art. 628º-1]. A fiança resultante do manda

to de crédito tem como fonte directa a lei e não a vontade das partes

o Livre revogação [art. 629º-2, 1ª parte].

o O encarregado, depois de ter aceite o encargo, pode licitamente não

conceder o crédito, mas apenas quando a situação patrimonial do

170
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

terceiro ou do autor do encargo se tiverem alterado em data

posterior à do encargo [art.629º-3].

o Responsabilidade por actos lícitos – denúncia do mandato de crédito

[art. 629º-2].

• Seguro de crédito:

o Diploma avulso. Contrato feito pelo credor, o tomador de seguro,

para cobertura do prejuízo resultante do não cumprimento da

obrigação.

• Convenção del credere:

o Uma das partes assegura à outra que os créditos desta perante

terceiros, relacionados com a actividade da primeira, serão por ela

saldados em caso de incumprimento desses devedores.

o Prevista no Código Comercial e no Regime do Contrato de Agência.

o Uma pessoa [comissário ou agente] garante perante o credor

[comitente ou principal] o cumprimento da obrigação do devedor

[pessoa contratada por intermédio do comissário ou agente], em

termos idênticos aos do art. 1183º.

• Aval:

o Garantia pessoal característica dos títulos de crédito, concretamente

das letras, das livranças e dos cheques.

o Tal como a fiança, um património torna-se responsável pelo

pagamento da dívida alheia, mas não constitui uma obrigação

acessória da dívida avalizada, mantendo relativa autonomia.

• Garantia autónoma ou garantia bancária:

o Concessão eventual de um crédito equivalente ao do montante

garantido, mediante uma contrapartida [comissão].

• Cartas de conforto ou comfort letter:

171
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Missiva dirigida a uma instituição de crédito por uma sociedade-mãe

que, numa relação de grupo, detém uma posição accionista

significativa na sociedade-filha, informando acerca da existência de

um compromisso assumido pela primeira perante a destinatária,

dando o seu patrocínio quanto à seriedade da recomendada ou quanto

ao cumprimento dos deveres por ela assumidos.

§4: GARANTIAS REAIS. As garantias reais pressupõem a afectação de bens do devedor

ou de terceiro ao pagamento preferencial de determinadas dívidas.

São mais eficientes que as garantias pessoais na medida em que reduzem o risco, uma

vez que o credor é pago, preferencialmente, pelo valor de determinados bens. Todavia, são

menos flexíveis quanto à sua constituição, modificação e execução.

As garantias reais associam-se normalmente aos direitos reais de garantia. Por vezes,

todavia, o titular exerce um poder directo e absoluto sobre determinada coisa corpórea [vg

na hipoteca], uma vez que lhe é conferido o direito de requerer a sua venda judicial.

Para mais, só se podem qualificar como direitos reais as garantias que incidam sobre

coisas e não aquelas que recaiam sobre direitos [vg penhor de direitos, arts. 679º ss].

• Consignação de rendimentos [arts. 656º ss]:

o Não se confunde com a consignação de receitas

o O credor paga-se pelos rendimentos de certos bens imóveis ou móveis

sujeitos a registo.

o Pode ser convencional [prevista no CC] ou judicial [CPC]

o Carece de registo para produzir efeitos contra terceiros

o Em caso de concurso, o credor tem preferência ante os demais pelo

valor dos rendimentos consignados.

o Pode operar independentemente de ter havido violação do direito de

crédito – motivo pelo qual é incluída entre os acordos que facilitam o

pagamento de dívidas [ROMANO MARTINEZ]. Apresenta similitudes

com a dação pro solvendo [art. 840º-1], uma vez que confere ao

credor meios que lhe facilitam a satisfação do crédito.

172
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Aplicam-se-lhe as normas da hipoteca [art. 665º].

• Penhor:

o Incide sobre coisas ou direitos não hipotecáveis [vg direitos de autor],

necessariamente móveis [art. 666º-1] – pergunta-se se abrangerá

complexos de coisas/universalidade, vg o estabelecimento comercial.

o Penhor de coisas [arts. 669º ss]

o Penhor de direitos [arts. 679º ss] – aplicam-se, por remissão, as regras

do penhor de coisas [art. 679º].

o Penhor com desapossamento – o autor do penhor entrega o bem ao

credor pignoratício ou a um fiel depositário [contrato real quoad

constitutionem], com tradição da coisa. Função de publicidade.

o Penhor sem desapossamento

o O credor pignoratício vai, de forma preferencial, satisfazer o seu

crédito pela venda judicial da coisa empenhada.

o Proibição de pactos comissórios [art. 694º]: não se permite que o

credor fique com o bem dado em garantia.

• Hipoteca:

o Tanto significa o direito real de garantia, como também o contrato

mediante o qual se constitui o direito em causa [bilateral].

o Tipos de hipoteca [art. 703º]:

 Legal

 Judicial

 Voluntária

o Incide sobre coisas imóveis ou coisas móveis que sejam equiparadas ás

primeiras [versa sobre bens registáveis, enfim].

o Recai sobre direitos reais que não a propriedade [vg usufruto, direito

de superfície … - art. 688º].

173
Direito das Obrigações II - Lara Geraldes @ FDL

o Não há direitos sobre direitos, pelo que a hipoteca terá por objecto

coisas determinadas [art. 716º], abrangendo as partes componentes e

integrantes do bem.

o Vigora também a proibição do pacto comissório [art. 694º]: não se

pode acordar que o credor hipotecário fará seu o bem garante.

• Privilégios creditórios:

o Concedidos a certos credores atendendo à natureza do crédito [arts.

733º ss]. Constitui uma preferência de pagamento independente de

registo – preferência de cumprimento.

o Não são susceptíveis de serem constituídos por negócio jurídico.

o Podem ser mobiliários ou imobiliários, gerais ou especiais.

o A sua eficácia depende do acto de penhora sobre os bens que são

objecto da respectiva incidência – só se constituem efectivamente

quando ocorrem os factos ou os actos de que a lei faz depender a sua

atribuição.

• Direito de retenção:

o Confere ao devedor, que se encontra adstrito a entregar uma coisa e

disponha de um direito de crédito sobre o credor, o direito de não

efectuar a prestação, mantendo a coisa que deveria entregar em seu

poder [arts. 754º ss].

o Pressuposto: o crédito do devedor da entrega da coisa deve resultar

de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.

o Similitude com a excepção do não cumprimento [arts. 428º ss],

embora possa ser exercido independentemente de relação

sinalagmática, tenha função de garantia e incida apenas sobre coisas

corpóreas, móveis e imóveis.

• Garantias de natureza processual: penhora e arresto repressivo, que não

estudaremos nesta sede.

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