Ovidio A Arte de Amar
Ovidio A Arte de Amar
Ovidio A Arte de Amar
PREFÁCIO
A história do livro e a coleção ”A Obra-Prima de Cada Autor”
MARTIN CLARET
Que é o livro? Para fins estatísticos, na década de 60, a UNESCO considerou o
livro ”uma publicação
impressa, não periódica, que consta de no mínimo 49 páginas, sem contar as
capas”.
O livro é um produto industrial.
Mas também é mais do que um simples produto. O primeiro conceito que
deveríamos reter é o de que o livro
como objeto é o veículo, o suporte de uma informação. O livro é uma das mais
revolucionárias invenções do
homem.
A Enciclopédia Abril (1972), publicada pelo editor e empresário Victor Civita,
no verbete ”livro” traz
concisas e importantes informações sobre a história do livro. A seguir,
transcrevemos alguns tópicos desse
estudo didático sobre o livro.
O livro na Antigüidade
Antes mesmo que o homem pensasse em utilizar determinados materiais para
escrever (como, por exemplo,
fibras vegetais e tecidos), as bibliotecas da Antigüidade estavam repletas de textos
gravados em tabuinhas de
barro cozido. Eram os primeiros ”livros”, depois progressivamente modificados
até chegar a ser feitos - em
grandes tiragens - em papel impresso mecanicamente, proporcionando facilidade
de leitura e transporte.
com eles, tornou-se possível, em todas as épocas, transmitir fatos, acontecimentos
históricos, descobertas,
tratados, códigos ou apenas entretenimento.
Como sua fabricação, a função do livro sofreu enormes modificações
p. 5
dentro das mais diversas sociedades, a ponto de constituir uma mercadoria
especial, com técnica,
intenção e utilização determinadas. No moderno movimento editorial das
chamadas sociedades de consumo, o
livro pode ser considerado uma mercadoria cultural, com maior ou menor
significado no contexto
socioeconômico em que é publicado. Como mercadoria, pode ser comprado,
vendido ou trocado. Isso não
ocorre, porém, com sua função intrínseca, insubstituível: pode-se dizer que o livro
é essencialmente um
instrumento cultural de difusão de idéias, transmissão de conceitos, documentação
(inclusive fotográfica e
iconográfica), entretenimento ou ainda de condensação e acumulação do
conhecimento. A palavra escrita
venceu o tempo, e o livro conquistou o espaço. Teoricamente, toda a humanidade
pode ser atingida por textos
que difundem idéias que vão de Sócrates e Horácio a Sartre e McLuhan, de Adolf
Hitler a Karl Marx.
Espelho da sociedade
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baseavam-se no gosto do
público para imprimir, sobretudo, obras religiosas, novelas, coleções de anedotas,
manuais técnicos e receitas.
Mas o percentual de leitores não cresceu na mesma proporção que a expansão
demográfica mundial. Somente
com as modificações socioculturais e econômicas do século XIX - quando o livro
começou a ser utilizado
também como meio de divulgação dessas modificações, e o conhecimento passou a
significar uma conquista
para o homem, que, segundo se acreditava, poderia ascender socialmente se lesse -
houve um relativo
aumento no número de leitores, sobretudo na França e na Inglaterra, onde alguns
editores passaram a
produzir, a preços baixos, obras completas de autores famosos. O livro era então
interpretado como símbolo
de liberdade, conseguida por conquistas culturais. Entretanto, na maioria dos
países, não houve nenhuma
grande modificação nos índices percentuais até o fim da Primeira Guerra Mundial
(1914/18), quando
surgiram as primeiras grandes tiragens de livros, principalment
p. 7
romances, novelas e textos didáticos. O número elevado de cópias, além de
baratear o preço da unidade,
difundiu ainda mais a literatura. Mesmo assim, a maior parte da população de
muitos países continuou
distanciada, em parte porque o livro, em si, tinha sido durante muitos séculos
considerado objeto raro,
passível de ser adquirido somente por um pequeno número de eruditos. A grande
massa da população mostrou
maior receptividade aos jornais, periódicos e folhetins, mais dinâmicos e
atualizados, além de acessíveis ao
poder aquisitivo da grande maioria.
Mas isso não chegou a ameaçar o livro como símbolo cultural de difusão de
idéias, como fariam, mais tarde, o
rádio, o cinema e a televisão.
O advento das técnicas eletrônicas, o aperfeiçoamento dos métodos
fotográficos e a pesquisa de materiais
praticamente imperecíveis fazem alguns teóricos da comunicação de massa pensar
em um futuro sem os
livros tradicionais, com seu formato quadrado ou retangular, composto de folhas
de papel, unidas umas às
outras por um dos lados.
Seu conteúdo e suas mensagens, racionais ou emocionais, seriam transmitidos
por outros meios, como, por
exemplo, microfilmes e fitas gravadas.
A televisão transformaria o mundo inteiro em uma grande ”aldeia” (como
afirmou Marshall McLuhan), no
momento em que todas as sociedades decretassem sua prioridade em relação aos
textos escritos.
Mas a palavra escrita dificilmente deixaria de ser considerada uma das mais
importantes heranças culturais,
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*M*
p. 10
PERFIL BIOGRÁFICO
Públio Ovídio Nasão
Vida e obra
O ano era 43 a.C. Em Sulmo, atual Sulmona, em Abruzzos, Itália, nascia um
menino que viria a encher a
cidade, a península itálica e o mundo com a fama de seu nome: Públio Ovídio
Nasão.
Provinha de família abastada de cavaleiros. Ainda muito jovem, mudou-se
para Roma, juntamente com o
irmão um ano mais velho, e lá recebeu esmerada e completa formação retórica com
Aurélio Fusco e Pórcio
Latrão. O irmão se debruçava avidamente sobre a eloqüência e sobre o direito; mas
Ovídio logo se deu conta
de que não nascera para o fórum - ingrato foro, ”Fórum ingrato” (Am., I, XV, 16),
que ele desprezava,
contemplo foro, ”Fórum desprezível” (Ars Amandi, 111, 542), mas sim para a
poesia; as musas atraíam-no de
maneira irresistível.
O pai, porém, homem prático e mesmo pragmático, como tradicional romano
de boa estirpe, insistia em que
seguisse a carreira de advogado; afinal, pensava, a poesia para nada servia e até o
grande Homero morrera
pobre. Queria para o filho uma situação estável e digna; por que não haveria de ser
o filho um novo Cícero,
que alçara a retórica romana às alturas? Mas Ovídio declinava de toda insistência
paterna, desculpando-se e
afirmando: Et quod temptabam dicere versos erat 1.
[ 1 Tudo o que digo me sai em verso. ]
Os que ouviram o Ovídio estudante declamar, deixaram escrito que o jovem
não conseguia manter a ordem
rigorosa do discurso e que este mais parecia poesia em prosa: solutum carmen.
Desses
p. 11
exercícios oratórios perduraram marcas na obra do poeta: a tendência a enfeitar
seus versos com
sentenças morais, os raciocínios extemporâneos que os faz proferir suas
personagens, os longos
discursos, modo forensi, que saem da boca de seus heróis...
Para completar a sua formação, visitou Atenas, as principais cidades da Ásia e
a Sicília, ali
permanecendo por quase um ano.
Familiarizou-se com a língua e a literatura gregas; seu espírito extasiou-se com
a visão magnífica
daquelas lendárias belezas e com as associações mitológicas entranhadas na
paisagem helênica.
com isso, bastante entusiasmado, o jovem poeta passou a escrever as suas próprias
impressões, que
o fizeram capaz de imitar, de modo livre e original, as descrições de lugares e
monumentos dos
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poetas antigos.
Enquanto isso, o irmão, mal completados os 20 anos, morre de repente. Sobre
isso escreveu o poeta:
Jamque decem vitae frater geminaverat annos I Cum perit, et coepi parte carece
mei... 2
* 2 ”Meu irmão faleceu quando mal completara vinte anos e, então, começou a
faltar-me aquela parte de minha alma...” +
Foi quando, sozinho, decidiu ingressar na vida política, sem deixar de lado o
convívio com as
Musas. Mas quando estava para encetar a carreira de senador, renunciou
solenemente. Em lugar da
toga laticlávia, própria dos senadores e dos jovens cavaleiros aspirantes ao Senado,
contentou-se
com o angusticlávio de simples cavaleiro: Cúria restabat, clavi mensura coacta est:
Maius erat
nostris viribus illud ônus. 3.
* 3 ”Aquele encargo era superior às nossas forças.” +
O jovem não se sentia com disposição para grandes sacrifícios em prol de uma
carreira que o não
atraía. Não sentia a menor inclinação para a carreira das honrarias; era um espírito
são e simples;
tudo o que desejava era ser inteiramente livre; quanto mais vivia, mais se lhe
evidenciava que
nascera para ser poeta. De resto, as condições políticas da época favoreciam a
repugnância de
Ovídio pela vida pública e a sua dedicação ao estudo da poesia. A forma
republicana permanecia,
mas Augusto governava como monarca absoluto. Só mesmo os irremediavelmente
atingidos pelo
vírus da política podiam ainda aspirar à carreira das honrarias partidárias,
contanto que estivessem
resolvidos a fazer concessões e que se submetessem aos mais variados caprichos de
Augusto. Não
era o caso de Ovídio, grande apreciador do convívio com os
p. 12
poetas, que eram muitos na Roma da época. Por essa razão, congratula-se por ter
nascido em tão
fecundo período da história romana.
Muito cedo leu em público os seus primeiros poemas, como então era
costume, e essas
primeiras investidas poéticas não só lhe deram fama e renome, mas sobretudo a
oportunidade de
conquistar a amizade dos intelectuais de seu tempo. Logo se tornou o predileto de
uma sociedade
culta, frívola e elegante. No auge de sua popularidade, figura indispensável nos
banquetes e festas,
Ovídio passava a conhecer a melhor fase de sua vida: era uma vida refinada e
frívola, mas a única
que se casaria bem com seu caráter e temperamento. A partir de então, vive,
escreve, ama e goza
com um único objetivo: impor-se mais e mais ao círculo culto e elegante que o
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um só livro,
surgiram Os Remédios do Amor e Os Remédios para Embelezar o Rosto.
Casou-se duas vezes e em ambas divorciou-se. Sua terceira mulher, Fábia,
parece ter sido o grande
amor desse coração frívolo e ao mesmo tempo apaixonado, egoísta e também
amoroso. Teve uma
filha que o fez avô duas vezes (Cf. Tristes, IV, 10, 75-76). Não se sabe ao certo,
porém, de qual das
três mulheres nasceu a filha.
Ovídio foi um grande amoroso, como ele próprio confessa, Tantus amator ego
(Arte de Amar, II).
Um Don Juan sob o império de Augusto. Amou todas as mulheres que pôde. A
Corina do vate de
Sulmona é um símbolo; representa todas as mulheres que de alguma maneira
entraram em sua vida.
O poeta confessa-nos que amava todas as mulheres, altas ou baixas, louras ou
morenas, esbeltas ou
opulentas, instruídas ou ignorantes, contanto que fossem belas e que não tivessem
ultrapassado o
sétimo lustro de vida, isto é, a idade de 35 a 40 anos, que no seu entender era a
época em que a
mulher atingia a sua maturidade plena e o mais alto grau da ciência amorosa.
Ovídio abandonou a poesia erótica quando beirava os 40 anos. Mais tarde
(Tristes, 11, 353 et sqs.)
sentiu a necessidade de advertir os seus leitores que sua vida de jovem não fora tal
qual a sua poesia
teria podido fazer supor.
Abandonando as poesias ligeiras e lascivas da juventude, Ovídio empreendeu
escrever uma obra de
fôlego, As Metamorfoses, o maior poema que nos foi legado pela antigüidade, em
15 livros; depois,
vieram os Pastos, onde Ovídio se propôs a traçar o quadro poético do calendário
religioso dos
romanos, em 12 livros; dessa obra só concluiu seis livros.
Até que chegou o ano de 762 de Roma, o oitavo de nossa era.
p. 14
Ovídio, o festejado e rico poeta, então com quase cinqüenta anos, a fase calma
e serena de quem
tem tudo o que pode desejar na cidade mais opulenta do mundo, Roma: a alegria
doméstica, a
amizade cordial de pessoas influentes, a riqueza e a saúde, uma bela obra poética,
fama, glória e,
sobretudo, a certeza de que seu nome jamais será esquecido. De súbito, como raio
em céu sereno e
claro, caiu sobre Ovídio a desgraça inesperada. Um decreto de Augusto o relega
(não o exila, como
às vezes se lê), de maneira improvisada, para Tomos, hoje Custengo, cidade da foz
do Ister (Baixo
Danúbio), no Ponto Euxino, terra dos Getas, onde hoje se localiza Dobruscia. A
ordem de partir lhe
vem à noite. O poeta estarrecido vê, de um instante para o outro, que tudo perdeu.
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Ignoram-se as
razões do exílio do poeta, mas devem ter sido muito fortes, já que Tibério, sucessor
de Augusto,
manteve o poeta em Tomos.
Em diversas passagens de suas últimas obras, o Poeta alude às causas que
levaram Augusto a
expulsá-lo para tão distante e inóspita região (Tristes, Epístolas do Ponto); mas
devemos dar um
desconto aos naturais exageros que, ditados pelo desespero, o fazem ora negar, ora
confessar, ora
enfim, atenuar sua culpa.
Entre as numerosas hipóteses aduzidas para explicar o mistério, baseadas nos
indícios que
possuímos (Cf. Trist., I, 7, 11 et sqs.; II, 207 et sqs.; III, 5, 4, 9 et sqs.; I), nenhuma
gozou
de tão ampla repercussão como a exposta por Boissier e Ribbek.
A empresa que Augusto mais desejava levar a cabo era a de novamente
introduzir em Roma,
afogada na mais torpe licenciosidade, os antigos e rígidos costumes dos prístinos e
austeros
romanos do tempo de Catão e de Cipião. Deve ter notado o imperador que seu
empenho fracassara.
Hoje nos parece ironia que ele quisesse reformar os costumes da cidade quando a
corrupção geral
grassava, de modo alarmante, dentro de sua própria casa. Augusto vivia sempre
irritadíssimo com
os contínuos escândalos proporcionados pelas mulheres de sua família. No ano
primeiro de nossa
era, o imperador se viu coagido a desterrar sua única filha, Júlia, por causa de suas
imoralidades. A
culpa talvez não fosse da jovem que, desde menina, por razões de Estado, passou
com tanta rapidez
de um marido para outro que apenas lheÒ a dado distinguir entre amantes e
maridos. E em sua
filha, Augusto castigou a depravação geral; porém, mais ainda castiga o fracasso
irremediável de
sua política de restauração. No mesmo ano do desterro de Júlia foi
p. 15
publicado o livro Arte de Amar. Oito anos depois repete-se o escândalo, em
circunstâncias semelhantes; só
que dessa vez trata-se de sua neta, Júlia. Se nas aventuras imorais da mãe não tem
o poeta responsabilidade
maior, nas da filha ele intervém de modo direto. Júlia e seu amante Silano haviam
atraído para o seu grêmio o
festejado poeta; complacente e bonachão, Ovídio passou a partilhar da intimidade
do casal, erro funesto que
mais tarde deplorou inutilmente. Mas que erro seria esse?
A segunda falta, error, consiste - o próprio poeta nos revela (Tris., IV, 4, 39;
Pont., II, 217) - em seu
culpável silêncio, já que fora testemunha, segundo parece, das orgias dos
imprudentes amantes.
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O imperador descarregou sua cólera sobre o infeliz vate, por ele odiado,
causador de tão grandes danos à sua
política. Desse modo, o episódio de Júlia e Silano foi mero pretexto; causa real foi a
poesia licenciosa de
Ovídio.
A isto ajuntam outros a circunstância de haver o poeta freqüentado o círculo
de amigos de Germânico. Outros
fazem menção ao fato de ter o poeta, por curiosidade, violado algum dos mistérios
orientais, aos quais Júlia se
filiara; esta, indignada, tramara então o seu relegamento. Esquecera-se, assim, o
poeta, do conselho que dera
na Arte de Amar (II, 603-604): ”É pequeno mérito guardar um segredo, mas grave
falta falar o que se deve calar”.
Essa hipótese, de ter Ovídio divulgado segredos dos cultos secretos,
modernamente não conta com muitos defensores.
Ainda a considerar, há a hipótese que pretende o poeta filiado a uma das
inúmeras seitas pitagóricas que
enxameavam na Roma da época e eram tidas como suspeitíssimas pelo imperador.
Mas não passam de meras conjecturas. Não nos parece que alguma dessas
hipóteses, por si mesmas,
expliquem o mistério. São todas verdadeiras no sentido de que contribuíram para
fazer com que o Imperador
visse com maus olhos o fútil e elegante poeta. A verdadeira razão, julgamos, foi
simplesmente o prestígio e as
regalias de que o poeta desfrutava na cidade. Augusto não era homem que
tolerasse alguém a lhe fazer
sombra. E Ovídio, com toda a sua fama, prestígio, notoriedade e influência,
tornara-se um argueiro no olho do
vaidoso e cruel imperador. Em um gesto revelador de sua autoridade ilimitada, de
seu despotismo inumano,
relega-o, então, para longe. com isso ficava livre de um súdito por demais
influente, parecendo vingar, com
ânimo austero, a licenciosidade do poeta.
Fernando de Azevedo, no seu magnífico livro No Tempo de Petrônio (”O
Desterro de Ovídio”, páginas 149-
155), aventa a
p. 16
hipótese, sustentada por alguns críticos antigos, de que o relegamento do famoso
poeta ocorreu devido a um
fato político: Augusto, arrependido de ter esbulhado Agripa, seu neto, a favor de
Tibério, fora visitar aquele
na Ilha Planásia, para onde o exilara o ódio de Lívia. Acompanhara o imperador,
nessa visita, Fábio Máximo
(Tácito, Anais). Augusto, atirando-se aos braços do neto, jurou que lhe daria o
império. Fábio Máximo,
imprudente, contou o segredo a Márcia, sua esposa; esta o levou aos ouvidos de
Fábia, sua amiga, mulher de
Ovídio. Lívia, que contava com uma formidável rede de espionagem, que só mais
tarde viria a ser superada
pela de Sejano, logo soube do fato. Imediatamente tratou de agir. Fábio Máximo
morreu pouco depois, de
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morte que todos tiveram por violenta (Tácito, Aliais, I, V). O poeta foi relegado,
sem confisco, para o fim do
mundo civilizado. Lívia tinha então o caminho livre à sua frente. As duas
mulheres, apavoradas, não ousariam
abrir a boca. Augusto estava nas últimas, e, criam todos, Lívia não era estranha à
enfermidade que minava o
grande imperador (Tácito, Anais, I, V). Agripa, mais tarde, seria morto (Tácito,
Anais, I, VI), deixando o
trono vago para Tibério. Eis a hipótese de nosso admirável Fernando de Azevedo.
De qualquer forma, o fato é que o poeta foi afastado para local distante da
civilização, habitado por bárbaros,
cuja língua porém logo aprendeu, a ponto de nela poder compor um panegírico de
Augusto, o Carmen
Triumphale, O Cântico do Triunfo, e outra obra sobre a morte do imperador, que
não chegaram até nós.
Na longínqua Tomos, Ovídio permanece o mesmo fútil e frívolo. A solidão
não o melhorou em nada. Não se
dedicou a pensamentos sérios, como foi o caso de Sêneca, por exemplo. Limitavase
a suspirar pelos prazeres
suaves e frívolos da bela Roma.
O poeta, apesar das súplicas, dos lamentos e da baixa adulação, não consegue
retornar para o meio dos seus.
Morreu quase sexagenário, no ano 17 da nossa era. Antes recomendara que suas
cinzas fossem transportadas
para Roma e lhe pusessem o seguinte epitáfio: Hic ego qui jaceo, tenerorum lusor
amorum, Ingenio peru
Naso poeta meo; At tibi, qui transis, ne sit grave, quisquis amasei, Dicere: Nasonis
molliter ossa cubem. 4.
* 4”Eu, que aqui jazo, o poeta Nasão, cantor dos doces amores, pereci por
causa do meu talento; mas tu, que passas, quem
quer que sejas, se alguma vez amaste, não hesites em dizer: que os ossos de Nasão
repousem suavemente. ]
p. 17
Como se vê, o epitáfio de Ovídio diz claramente que foi a inveja que o perdeu.
No tempo de
Augusto, os homens não podiam ser talentosos impunemente.
II - A Arte de Amar
O tom da Arte de Amar é grave e majestoso. Tem algo de poema didático. É
encantador como obra
de arte; perigoso sob o ponto de vista moral.
Mas é preciso que se deixe claro: analisando-o vê-se que não é mais imoral do
que as elegias que
formam os Amores, tampouco do que certas elegias de Propércio. Melhor omitir as
grosseiras
obscenidades de Flauto e Terêncio. E também não se pode comparar com Marcial
que é
pornográfico e, perto de seus Epigramas, a Arte de Amar torna-se casta e pudica.
Imoral foi Catulo;
imoral é o Satiricon de Petrônio. Mas ainda assim, Ovídio, em razão de seu caráter
desinibido e de
seu desterro, atribuído à sua imoralidade, goza da fama de ser o único poeta
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A Arte de Amar - Ovídio
imoral da literatura
latina. Pergunto, então, por que só Ovídio com a sua arte mereceu a pecha de
imoral? Talvez por
causa do assunto. Ou por tomarem o título por escandaloso: Arte de Amar.
Naturalia íon sunt turpia - ”as coisas naturais não são vergonhosas”,
afirmavam não só os físicos
e filósofos medievais, mas também os próprios casuístas. E o amor é um fato
natural. O amor é a
força misteriosa que atrai os dois sexos e não permite que a raça se extinga; é
comum a todos os
animais. Ovídio quis transformar em arte o que, como o amor, existia de modo
natural. Se foi feliz
nesse empreendimento, que o digam os seus leitores.
A Arte de Amar tem muitos defeitos. O menor deles por certo não será o
abuso da mitologia. Nesse
particular Ovídio apresenta-se como autêntico alexandrino. É inexplicável a
imensa digressão de
Dédalo e ícaro, bem como a escabrosa história de Pasífae. A lenda de Prócns é um
apêndice híbrido
e demasiado grande para o pequeno preceito que pretendeu inculcar; o poeta se
deixou levar pelo
entusiasmo que o assunto lhe despertou. Muitos de seus conselhos são inócuos;
outros são de uma
ingenuidade que faz sorrir. É de se esperar que um trabalho dessa natureza resvale
na monotonia.
Para fazer frente a isso, o recurso de que se valeu o poeta foi a mitologia. De fato,
os mil e um
incidentes mitológicos
p. 18
conferem vida e graça ao assunto e ilustram com vivacidade as leis ou regras que
quer prescrever.
Se os conselhos se sucedessem aos conselhos e às observações, não haveria quem
lesse a obra até o
fim.
Suas comparações hoje nos fazem sorrir. Tiradas quase sempre da vida
marítima, do exército ou de
jogos circences, nada nos dizem, atualmente; para os contemporâneos, porém,
eram cheias de graça
e atualidade.
III - Obras de Ovídio
Em sua juventude, Ovídio escreveu obras eróticas: Amores, em três livros de
elegias; Heróides,
cartas em versos elegíacos, de supostas heroínas a seus amantes; a Arte de Amar,
em três livros;
Remédios do Amor e De Medicamine Fadei Femineae, ”A respeito dos remédios
para embelezar o
rosto das mulheres”.
Obra da maturidade já são as Metamorfoses, poema narrativo em 15 livros,
redigido em versos de
seis sílabas, é uma coleção de lendas, a maioria de origem helênica, em cada uma
das quais ocorre
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A Arte de Amar - Ovídio
uma metamorfose. Pastos é uma coleção de 12 livros - dos quais se conservam seis
- dedicados
cada um deles a um mês do ano, nos quais se comentam as festas romanas e suas
origens lendárias.
Tristes e Pônticas foram escritas em Tomos, íbis, poema satírico imitado de
Calímaco, também foi
composto no desterro, bem como Haliêutica, um tratado sobre a pesca, do qual
temos apenas 134
versos.
Em sua mocidade escreveu uma tragédia, Medéia, que não chegou até nós. No
início de sua carreira
literária, ideou um poema épico cujo assunto seria a luta dos gigantes com os
crônidas,
Gigantomaquia. O que se sabe é que Ovídio iniciou o poema, mas dele nada
restou.
IV - Ovídio - quase imoral
A obra de Ovídio é a de um grande poeta. Mesmo as produções frívolas e
licenciosas de sua
mocidade trazem a marca do gênio. Mesmo contendo defeitos, esses são ofuscados
pelas suas
melhores características, como a espontaneidade
p. 19
Neste que já foi chamado de o ”Voltaire do século de Augusto”, não
busquemos grandeza de ânimo,
elevação de sentimentos ou profundidade de pensamentos. Tampouco haveremos
de encontrar
sinceridade na paixão; seu mérito consiste na ridente e luminosa visualidade do
relato, na clara
amenidade do estilo, em seu delicado bom gosto, em sua deliciosa fantasia e
inigualável riqueza de
invenção.
A par da espontaneidade, tão louvada em suas obras, maneja a língua como
senhor e dono da forma,
com a destreza do mais hábil artífice. É um parnasiano na forma e um romântico
na expressão. Seus
pensamentos, sutilmente aguçados, cativam menos pela novidade do conteúdo do
que pela
personalíssima arte com que são expostos. Senhor de todos os recursos da
estilística, maneja as
mais variadas figuras de linguagem - antíteses, paralelismos, onomatopéias,
aliterações, jogos de
palavras - graduando a narração conforme os sentimentos por ela instigados,
façanha que nenhum
poeta latino conseguiu tão plenamente.
Na pintura de seus quadros tem-se a impressão visual da coisa descrita:
Ovídio é um impressionista.
Ninguém como ele soube se servir dos recursos pictóricos para potencializar o
conteúdo de um
vocábulo ou a disposição dos termos, arrancando, com pura arte, os mais
inesperados efeitos de luz
e sombra. Ovídio é inigualável na entonação e elocução da variada gama de efeitos
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A Arte de Amar - Ovídio
rítmicos; é um
simbolista preso aos encantos do som.
Por último, a sua observância das regras da gramática e o uso moderado das
licenças poéticas
fizeram dele o imortal padrão em que toda a posteridade se pauta.
Devemos reconhecer que Ovídio é o insuperável virtuoso da forma e o mais
genial narrador da
antigüidade.
V - Ovídio - Arte de Amar
Não sabemos, exatamente, o ano em que Ovídio escreveu a Arte de Amar.
Inicialmente, a Arte de Amar deveria constar de dois livros somente; no
decorrer da criação da obra,
Ovídio resolveu juntar um terceiro, exclusivamente para as mulheres.
No todo, é um livro original; ninguém mais indicado para escrevê-lo do que o
galante poeta dos
círculos requintados de Roma. Bastava-lhe teorizar, com arte e elegância, o que a
sua vida amorosa
p. 20
lhe ensinara. As normas de galanteria, os meios para conquistar as mulheres, a
estratégia amorosa,
aí vêm expostos em versos lapidares.
Sua Musa, leve e graciosa, entre os quadros dos costumes da época, onde o
atrevimento, o impudor
e a lascívia atingiam o mais alto grau, move-se com desembaraço e naturalidade.
Vê-se que o poeta
está no seu elemento.
Ovídio dirige seus preceitos àquele círculo feminino do qual ele é o ídolo,
círculo formado por
mulheres de vida livre, conhecedoras do grego e do latim, exímias na arte da dança
e do canto, que
sabiam falar com afetada desenvoltura, caminhar com desenvolta simplicidade e
sabiam amar com
refinamento, tão ao contrário das pudicas matronas dos séculos anteriores. Sabiam
rir ou chorar à
perfeição, conforme fosse o caso.
Em vão, mais tarde, quis o poeta desfazer a impressão de impudor e
imoralidade que essa obra
suscitara, mediante os Remédios do Amor, fingida palinódia, forçada, que a
ninguém satisfez.
Contudo, é preciso reafirmar que, analisando-o, vê-se que não é mais imoral
do que as elegias que
formam os Amores; não é mais imoral, também, do que certas elegias de Propércio.
Omito, de boa
mente, as grosseiras obscenidades de Flauto e Terêncio. Não se pode comparar
com Marcial; este é
pornográfico, e a. Arte de Amar, junto dos seus Epigramas, torna-se casta e
pudibunda. Imoral foi
Catulo; imoral é o Satiricon de Petrônio e o Asinus Aureus (O Burro de Ouro) de
Apuleio. Mas
Ovídio, em razão da sua desenvoltura e do episódio doloroso do seu relegamento,
atribuído à sua
15
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naveguem céleres; é
a arte que permite aos carros correrem velozes; e a arte deve governar o Amor.
Automedonte 1 era
exímio no manejo dos carros e das flexíveis rédeas; Tífis 2 pilotava o navio de
Hemônia 3. A mim,
Vênus confiou a mestria do jovem Amor; serei pois nomeado de Tífis e
Automedonte do Amor.
[ 1 Automedonte - Auriga do carro de Aquiles.
2 Tífis - Piloto do navio Argo, dos Argonautas.
3 Hemônia - O navio Argo fora construído com pinheiros do Pélion, na
Tessália, também chamada
Hemônia. ]
Embora o Amor seja arredio e se revolte muitas vezes contra as minhas lições,
ainda é uma criança
dócil, que se deixa guiar. Graças aos sons da citara, o filho de Philira 4 educou
Aquiles menino, e
com esta arte suave abrandou sua alma selvagem. Aquiles, que aterrorizou tantas
vezes seus amigos
e inimigos, parece que tremia diante desse velho carregado de anos. E, quando o
seu mestre o
ordenava, apresentava as mãos à palmatória, as mesmas mãos de
p. 23
que Heitor 5 havia de sentir o peso. Quíron foi o preceptor do Eácida 6, o filho
mais novo de Peleu.
Eu sou o preceptor 7 do Amor. Tendo ambos nascido de uma deusa, são ambos
temíveis. E o próprio
touro acaba por oferecer a cerviz à canga do arado, e o cavalo mais fogoso morde o
freio. Do
mesmo modo, o Amor me obedece, ainda que transpasse meu coração com suas
setas e agite sua
tochas. E quanto mais cruelmente me transpasse e me abrase, mais saberei vingarme
das feridas
que me causou.
[ 4 O filho de Philira é o Centauro Quíron, mestre e preceptor de Aquiles
5 Heitor - Herói troiano, filho de Príamo e de Hécuba e esposo de
Andrômaca. Era o mais nobre e o mais
valente dos guerreiros troianos. Morreu pelas mãos de Aquiles, que arrastou seu
cadáver. Cf. Ilíada, canto
XXII.
6 Eácida - Peleu, pai de Aquiles, era filho de Éaco que era filho de Júpiter.
Eácida, portanto, o neto de Éaco é
Aquiles.
7 Cupido, deus do Amor, representado com carcás e tochas. ]
Não afirmarei falsamente, ó Febo, 8, que tu me inspiraste este trabalho;
tampouco fui ensinado pelos
cantos ou pelos vôos dos pássaros; nem vi Clio 9 e suas irmãs enquanto
apascentava os rebanhos nos
teus vales, ó Áscra. 10. Foi apenas a experiência que me ditou esta obra; ouvi, pois,
um poeta a quem
a prática ensinou.
[ 8 Febo - Apolo, deus do sol; chefe das Musas. Representavam-no com uma
17
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lira na mão.
9 Clio - A Musa da História. Suas irmãs são as demais Musas, nove ao todo,
cada uma inspiradora e
protetora de uma arte.
10 Áscra - Aldeia da Beócia e pátria de Hesíodo. Os vales de Áscra eram
consagrados a Apolo. ]
Eis o que cantarei: a verdade. Ajuda-me no meu intuito, Mãe do Amor.
Longe de mim, estreitas faixas 11 símbolo do pudor, e também tu, longa túnica
que usam as matronas
até o meio dos pés. Cantarei só o amor que a lei permite, ou seja, as relações lícitas
12; o meu poema
nada mostrará que seja repreensível.
[ 11 Estreitas faixas - As Vestais e as virgens usavam como insígnias estreitas
faixas para prender os cabelos.
A longa túnica que esconde até os pés” era usada pelas matronas. Ovídio dirige-se,
portanto, somente às
mulheres livres.
12 Relações lícitas - Este livro não se destina, pois, senão àquelas que podem
amar sem violar as leis do
pudor romano. ]
p. 24
Antes de tudo, tu que és soldado que cruza as armas pela primeira vez, trata
de encontrar o objeto
do teu amor. 13. Em seguida, dedica os teus esforços à conquista da jovem que te
agradou e, em
terceiro lugar, esforça-te para que o amor seja duradouro. Serão estes nossos
limites, onde nosso
carro deixará seu sinal; é esta a baliza que segurará a roda, lançada a toda a
velocidade. 14.
[ 13 Objeto do amor - Ovídio indica aqui, de modo geral, a feição da sua obra.
A ”procura” será tratada mais
adiante; a arte de ”comover a jovem”, será tratada no meio do livro, e os meios de
fazer durar o amor objeto,
no livro II. O livro III, parece, não estava no projeto inicial da obra. O poeta
escreveu-o atendendo solicitações
das jovens que freqüentava.
14 Imagem sugerida pelos jogos do circo. Ovídio usa muito, também,
imagens tiradas da vida marítima. ]
Enquanto ainda és livre e vais onde queres com a rédea solta, escolhe aquela a
quem possas dizer:
”Só tu me agradas.” Todavia, ela não cairá nas tuas mãos, como trazida do céu por
uma brisa, terás
que buscar a mulher que encantará teus olhos. O caçador sabe onde tem de armar
as suas redes para
apanhar o cervo; conhece os vales onde grunhe o javali; o passarinheiro conhece o
arvoredo; o
pescador, com seu anzol, conhece as águas piscosas. Portanto, tu que andas em
busca do objeto que
prenda longamente teu amor, também deves saber antes onde poderás encontrar
grande número de
donzelas.
18
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Tua busca não há de levar-te pelo mar afora, nem por longos caminhos. Perseu
15 procurou
Andrômeda entre os negros indianos, e um frígio 16 teve de raptar uma grega.
Contudo, encontramse
em Roma tantas jovens bonitas que podemos afirmar: ”Nossa cidade oferece
todos os tipos de
beleza que o mundo gerou”.
[ 15Perseu - Libertador de Andrômeda. Segundo a tradição, o fato ocorreu na
Etiópia.
16Frígio - É Paris, raptor de Helena, a ”jovem grega”. +
Como o trigo abunda em Gárgara, 17, a vinha viceja em Metimna, 18, o mar
oculta farto peixe, os
pássaros nos bosques, e o céu está repleto de estrelas, 19, também em Roma, onde
habitas, existem
p. 25
muitas formosuras. A mãe dos amores fixou sua morada na cidade do seu querido
Enéias 20. Se te
encantam os viços juvenis da adolescência, a teus olhos se oferecerá, intacta, uma
virgem. Preferes
uma beleza já desabrochada? Milhares te agradarão, na plenitude de sua beleza,
assim que te será,
apesar de tua, difícil é a escolha. E, se talvez te voltares para a experiência das mais
vividas, o leque
de escolha será, segundo penso, ainda mais completo.
[ 17 Gárgara - Um dos cumes da cadeia do Ida, na Mísia, Ásia Menor. Famosa
por sua fertilidade.
18 Metimna - Região da costa meridional da ilha de Lesbos, no mar Egeu.
19 Há no céu - Expressão usada para indicar grande número ]
Bastará que caminhes lentamente uns cem passos pelo Pórtico de Pompeu 21,
quando o Sol bate no
dorso do Leão de Hércules, 22, ou bem no lugar onde a mãe juntou suas dádivas às
de teu filho, 23,
obra magnífica, cheia de mármores raros. Freqüente também o Pórtico decorado
com velhas
pinturas, chamado de Lívia, 24, e a cuja memória foi consagrado, nem olvides
aquele onde se vêem
as netas de Belo 25 que ousaram tramar a morte dos desventurados primos, e o seu
cruel pai, de pé,
com a espada na mão.
[ 20 De seu filho - A mãe de Enéias é Vênus. A cidade é Roma.
21 Pórtico de Pompeu - Era lugar de passeio muito freqüentado; no centro
estendiam-se jardins e as galerias
estavam ornadas com obras de arte das 14 nações vencidas e pilhadas por Pompeu.
22 Leão de Hércules - O leão de Neméia, abatido por Hércules, um dos
famosos trabalhos.
23 Do teu filho - A mãe é Otávia, cujo pórtico foi construído sobre o alicerce
do Pórtico de Metelo.
24 Lívia - O Pórtico de Lívia foi dedicado no ano 12 antes de Cristo.
25 Netas de Belo - Uma escultura do Pórtico de Apolo representava as
Danaides, netas de Belo, pai de
Dânao. ]
19
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cabeleira hirsuta com uma simples coroa de ramos frondosos. Cada um olhou para
trás, localizou a
mulher que desejava, com mil pensamentos a agitar-lhe silenciosamente o peito. E
eis que,
enquanto, aos acordes rústicos de um tocador de flauta toscano, um dançarino bate
com o pé três
vezes no chão aplainado, premiado com aplausos 36 (que nesse tempo eram
espontâneos), o rei faz
ao seu povo o sinal combinado para agarrar sua presa. Soltando gritos que não
deixam dúvidas
sobre suas intenções, no mesmo instante se atiram com suas mãos ávidas sobre as
virgens. Assim
como as pombas fogem ariscas diante da águia e as ovelhas desatam a correr
diante do lobo,
também o bando assustado de moças foge diante desses homens que avançam sem
que nenhuma lei
os detenha. Todas mudaram suas cores, porque todas tiveram medo, embora este
se manifestasse de
maneiras diversas. Umas arrancavam os cabelos; outras ficavam estáticas,
estarrecidas; algumas
ficaram mudas de dor; outras invocavam inutilmente a sua mãe; uma se lastima,
outra fica
paralisada pela surpresa; uma fica imóvel, enquanto a outra corre em fuga.
[ 33 Verso muito citado no original: Spectatum vemunt, vemunt spectentur ut
ipsae.
34 O rapto das Sabinas - Legendário rapto das sabinas, promovido por
Rômulo durante os jogos oferecidos
aos Sabinos, povo vizinho dos Romanos.
35 Palatino - A colma do Palatino, um dos sete montes de Roma, era outrora
coberta não de ricas mansões
mas de cerrados bosques.
36 Aplausos - No tempo de Rômulo não havia, ainda, a claque, os
”applaudlsseurs à gages”. Mais tarde os
Romanos aperfeiçoaram a ”arte da claque”. Cf. Tácito, Anais, I, XVI, IV; Suetônio,
Vida de New, XX. ]
Arrastadas à força e destinadas ao leito nupcial, muitas destas mulheres se
tornaram mais belas pelo
medo que sentiam. Se alguma se mostrava muito rebelde e repelia o companheiro,
este a carregava,
levava-a, estreitando-a contra o seu peito, e dizia-lhe com paixão: Por que estragar
os teus lindos
olhos com lágrimas? Serei para ti o que o teu pai foi para a tua mãe. Rômulo, só tu
soubeste dar tal
oportunidade aos teus soldados! Concede-me a mesma, e me tornarei soldado teu!
É certamente por fidelidade a este antigo costume, que o teatro ainda hoje está
cheio de armadilhas
para as mulheres formosas.
Não desprezes, de modo algum, as corridas em que competem fogosos
corcéis! 37 O circo,
freqüentado por grande multidão, fornece muitas oportunidades. Não será preciso
usar a linguagem
21
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das mãos nem fazer sinais com a cabeça para teres um indício de consentimento.
Nada te impede de
te sentares bem perto daquela
p. 28
que te agrada; aproxima o mais possível o teu corpo ao dela, 38; felizmente o
tamanho dos assentos
obriga as pessoas, quer gostem quer não, a se apertarem umas contra as outras, de
modo que é
obrigada a deixar-se tocar. Trata então de entabular uma conversa, e que as tuas
primeiras palavras
sejam banalidades. ”De quem são os cavalos que se aproximam?” - perguntarás
atencioso - e, a
seguir, o teu cavalo favorito será o dela. Quando porém se adiantar o numeroso
cortejo 39 que
precede os combates de efebos, aplaude então com entusiasmo Vênus, que tem
entre as mãos a tua
sorte.
[ 37 Fogosos corcéis - Os Romanos sempre tiveram grande predileção pelos
cavalos e pelas corridas de carro.
(Cf. Amores, III, II, 1).
38 O teu corpo ao dela - A respeito da tática a ser empregada no Circo ou nos
teatros, Ovídio fornece grande
abundância de minúcias na sua obra Amores, III, II.
39 ...cortejo - Os cortejos rituais (”pompa”) celebravam-se com grande
solenidade; nessas procissões eram
conduzidas estátuas dos deuses; cada um ovacionava sua divindade favorita.
Ovídio, é óbvio, aplaudia Vênus. ]
Se, como costuma acontecer, cair alguma poeira no colo da tua bela, que os
teus dedos o sacudam
com cuidado; e mesmo que não caia poeira alguma, sacode a poeira imaginária.
Tudo serve de
pretexto para mostrar tua solicitude. O manto, muito comprido, arrasta no chão?
Pega-o pela sorla e,
com cuidado, levanta-o do chão sujo. Mesmo que não haja outra recompensa para
o teu zelo, verás
ao menos umas pernas dignas de se ver, sem que a sua bela possa se ofender.
Esteja atento a quem se sentar atrás; não permitas que joelhos alheios se
apoiem com força contra
as costas delicadas. Pequenas atenções cativam estas almas delicadas; mais de um
foi recompensado
por ter ajeitado oportunamente a almofadinha do assento. Ninguém tampouco se
arrependeu de ter
abanado com um leque ou posto um escabelo sob uns pés delicados.
Encontrarás no circo, no fórum, entre a turba impaciente, sempre
oportunidades de um novo amor, e
também no solo do circo coberto pela areia funesta. 40. O filho de Vênus 41
combateu muitas vezes
sobre esta areia e, ao contemplar as feridas alheias, muitos ficaram feridos. Ali
conversamos,
tocamos mãos, pedimos um programa, fazemos apostas sobre os vencedores e eis
que uma ferida
22
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nos faz
p. 29
gemer, eis uma flecha ligeira que nos atinge e uma mesma pessoa é a um tempo
ator e espectador
do mesmo espetáculo.
[ 40 Areia funesta - Nela corria o sangue dos gladiadores. Cf. Amores, II, XIV,
8.
41 Filho de Vênus - Cupido. ]
E quando, não faz muito tempo, César nos ofereceu um espetáculo
reproduzindo uma batalha
naval, 42, com barcos persas e dos filhos de Cécrope, 43, quantos homens e
mulheres vieram de mares
distantes! Nossa cidade 44 era um universo! E nessa multidão, quem não achou um
objeto para o seu
amor? Que pena! Quantos sofreram os tormentos de amor por uma estrangeira!
[ 42 Batalha naval - Naumáquia que o imperador ofereceu aos Romanos.
43Cécrope - O primeiro rei, mítico, de Atenas.
44 Cidade - Roma. ]
E eis que César se dispõe a dominar o que resta do mundo. Agora, povos do
Extremo Oriente, sereis
nossos. 45. Partas, sereis castigados. Rejubila-te, Crasso, na tua sepultura 46 junto
com as insígnias
infelizmente caídas nas mãos dos bárbaros. Aí está o vosso vingador; desde a sua
tenra idade
promete ser um chefe e, adolescente, 47, comanda guerras como um adulto. Almas
tímidas, não
percais vosso tempo em contar os aniversários dos deuses; entre os césares, o valor
aumenta com os
anos. A sua índole celestial se revela prematuramente, e mal suporta as imposições
e a lentidão do
tempo. Ainda criança, o herói de Tirinto 48 estrangulou as duas serpentes com as
suas mãos, e desde
o berço mostrou-se digno de Júpiter.
[ 45 Extremo Oriente - Refere-se à campanha que o Imperador Augusto
armava contra os Partas para proteger
os limites do Eufrates. Essa guerra, que preocupava os Romanos, recebe contínuas
referências de Ovídio,
assim como os Partas, no decorrer desta obra.
46 Tua sepultura - Alusão à expedição malograda de Crasso contra os Partas,
em 53 aC., em Garras; nela,
Roma perdeu 20.000 soldados. A expedição de Augusto, em 20, reconquistou os
estandartes de Crasso,
tomados pelo inimigo. Cf. Horácio, Odes, IV, V, 25.
47 Adolescente - Caio, filho de Agripa, que havia desposado Júlia, mal
contava vinte anos.
48 Tirinto - É a pátria legendária de Hércules, que praticou a sua primeira
façanha no berço, quando
estrangulou duas monstruosas serpentes enviadas por Juno para matá-lo. ]
E tu, embora ainda criança, quão grande foste, Baco 49 quando
p. 30
a índia, vencida, temeu o teu tirso! 50 Ó jovem, é sob os auspícios de teu pai e com
23
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nasce o riso; o pobre toma coragem; tal como as nossas preocupações e as rugas da
fronte, a dor desaparece.
A franqueza, tão rara no nosso tempo, abre as nossas almas, pois o deus põe fim
aos artifícios. com
freqüência, o coração dos jovens é cativado pelas belas; depois do vinho, Vênus é
fogo sobre fogo. Todavia,
não dê muito crédito ao que te mostra a luz das lâmpadas: ela costuma provocar
equívocos. A noite e o vinho
são maus conselheiros para julgar a beleza. Paris contemplou as deusas em plena
luz do sol, e disse então a
Vênus. 69: ”Estás muito acima de todas elas”. A obscuridade da noite dissimula os
defeitos 70 e é indulgente
com as imperfeições, e nessas horas qualquer mulher parece bela. Para julgares a
beleza das pedras preciosas
ou da lã tingida de púrpura, o dia é o melhor conselheiro; adota-o também para
julgares as feições e as linhas
do corpo.
[ 65 Cornos de Baco - Os cornos, para os antigos, eram o símbolo da força.
Baco, deus do vinho, comumente
era representado com cornos.
66 Cupido - Cupido, menino alado, filho de Vênus. Há graciosas
representações de Cupido com asas.
67 Dispõe os ânimos - Ver também a fala de Sileno, na peça O Ciclope, de
Eurípedes (168 ei sqs.)
68 Páris - Em seu julgamento, sobre o monte Ida, Paris concedeu o prêmio de
beleza a Vênus, preferindo-a a
Juno e a Minerva.
69 Vênus - Deusa do Amor e da Beleza. Era a divindade mais venerada entre
os antigos. Corresponde à
Afrodite grega.
70 Em latim: Nocte latent mendae. Tornou-se provérbio. ]
Será preciso mencionar as reuniões de mulheres, tão próprias para a caça às
beldades? Mais fácil me seria
contar os grãos de areia. Terei de falar de Baias 71 e da sua costa, e das fontes onde
fumegam as águas quentes
e sulfurosas? Ao deixá-las, várias pessoas,
p. 33
com o coração trespassado, já disseram: ”Não, estas águas não são tão salubres
como dizem”.
[ 71 Baias - Hoje Baia, no golfo de Nápoles. Era cidade célebre na antigüidade,
com caldas sulfúreas e banhos
de mar. Lugar muito freqüentado pela nobreza romana, de péssima fama quanto à
moralidade. ]
Veja que o templo de Diana 72 se ergue em um bosque nos arredores de
Roma, e observa o vigor
que a adaga dá a uma mão criminosa. Por ser virgem e detestar as setas de Cupido,
a deusa já feriu
muitos dos seus fiéis e ferirá ainda outros mais.
[ 72 Diana - O sacerdote do templo de Diana, em Arícia, devia, para exercer
seu sacerdócio, ter matado o predecessor
em combate singular. O templo ficava no meio de um bosque. ]
26
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Onde escolher o objeto do teu amor, onde colocar tuas redes? Eis, trazidas por
rodas desiguais 73
as indicações dadas até agora por Tália. 74. Agora, quero eu mesmo indicar-te os
meios de cativares
aquela que te agrada; será esta a parte mais importante do meu trabalho. Ó
homens de toda parte,
prestai documente a vossa atenção; e que as minhas promessas encontrem um
auditório favorável.
[ 73 Rodas desiguais - Alusão ao dístico elegíaco, composto de um hexâmetro
e de um pentâmetro (versos desiguais).
Cf. Amores, III, I, 10.
74 Tália - Uma das nove Musas, divindade campestre que presidia, também,
aos banquetes; mais tarde tornou-se Musa
da Comédia e da Poesia. ]
Esteja, antes de tudo, intimamente persuadido que podes conquistar todas as
mulheres; e elas serão
tuas; terá apenas que estender tuas armadilhas.
Será mais fácil que os pássaros emudeçam na Primavera ou as cigarras no
Verão, ou que o cão de
Mênalo 75 fuja diante das lebres do que uma mulher resistir à carinhosa solicitude
de um homem.
Aquela que tens como mais difícil de alcançar, também cederá. O amor furtivo
agrada tanto ao
homem quanto à mulher. Só que o homem não sabe dissimular e a mulher esconde
muito melhor os
seus desejos. 76. Ora, se o sexo forte não tomar a dianteira, a mulher
vencida tomará para si este papel. Nos prados verdejantes, a fêmea chama o touro
com os seus
mugidos; é sempre a fêmea quem, com os seus relinchos, chama o garanhão de
duros cascos. Entre
nós, homens, a paixão é mais comedida, o desejo menos furioso; o ardor do
homem respeita as leis.
p. 34
Será preciso falar de Bíblis, 77, que ardeu de amor culpado por seu irmão, e puniu
o seu crime
corajosamente com a forca? Mirra 78 amou a seu pai com um amor nada filial;
agora está escondida
em uma fina casca de árvore, que a aperta. As suas lágrimas, que a árvore
aromática derrama, são o
perfume a que demos o seu nome.
[ 75 Mênalo - Monte da Arcádia, dedicado a Pã.
76 Deseja mais secretamente - Psicologia feminina. A mesma idéia vem
expressa em Amores, II, XIX.
77 Bíblis - Amou seu irmão Cauno com amor incestuoso.
78 Mirra - Formosa filha de Cíniras, rei de Chipre. Para se vingar da falta de
culto, Vênus despertou nela furioso
amor pelo pai. Esta, aproveitando da escuridão da noite, foi possuída pelo pai;
dessa união nasceu Adônis; Mirra transformou-se
na árvore odorífera homônima. Cf. Metamorfoses, X, 297 et sqs. ]
Aconteceu que, lá nos umbrosos vales do Ida, 79, habitava um touro branco,
orgulho dos rebanhos.
27
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105 Tróia, alegre por ver partir os gregos, que a sitiavam havia dez anos,
acolheu jubilosa o imenso cavalo de
madeira que os Gregos haviam deixado junto ao muro da cidade. Cf. Eneida, II,
235 et sqs. ]
É também oportuno investir quando a bela estiver ressentida por ter uma
rival; tu farás então que
não fique sem vingança. Ao fazer seu penteado matinal, ouvirá de sua escrava
incitações, o que dará
à vela o auxílio dos remos. Ela deve murmurar, suspirando docemente: ”Não creio
que sejas capaz
de pagar-lhe na mesma moeda.” Então falará a teu respeito, com palavras
persuasivas, e jurará que
morres de amor por ela. Apressa-te porém, antes que caia a vela e cesse a brisa. A
cólera é frágil
como o gelo, não demora a desaparecer.
p. 38
Perguntas-me se seria conveniente seduzir também a criada. Esta é uma
prática arriscada. Esta, por
ter-lhe concedido seus favores, pode ser mais zelosa, enquanto a outra pode ser
mais negligente.
Aquela te destina a amante da sua ama, e esta de si mesma.
O sucesso é imprevisível; mesmo que ajude a tua audácia, o meu conselho é
que te abstenhas. Não
traçarei um caminho entre precipícios e rochedos; ninguém há de se extraviar se
me tomar como
guia. Portanto, se a serva te agradar por sua beleza ou pelo seu zelo, quando leva
ou traz recados,
trata primeiro de possuir a dona, e a vez da escrava virá a seguir; mas nunca é por
ela que deves
iniciar o tributo a Vênus.
Um conselho apenas, se confias na minha arte, e se minhas palavras não forem
arrastadas pelo
vento. Não comeces uma aventura para não levá-la até ao fim. Não haverá
delações quando a serva
estiver meio envolvida. O pássaro não pode voar com o visco nas asas: o javali
dificilmente foge
das largas redes, e o peixe não pode se soltar do anzol que engoliu. Mas esconde-te
bem. Se
ocultares bem as tuas ligações com a serva, estarás sempre informado a respeito da
tua amiga.
Engana-se quem julgar que somente aqueles que se dedicam aos árduos
trabalhos do campo ou os
marinheiros precisam consultar o tempo. Assim como não se deve confiar sempre
em Ceres 106 ao
campo enganoso, nem se deve lançar o côncavo barco às águas verdes, nem
sempre há certeza de
êxito na conquista de uma beleza.
[ 106 Ceres - O mesmo que Démeter, para os romanos. Deusa da agricultura,
da primavera e da seiva estival. ]
O sucesso do empreendimento será melhor ou pior, conforme o tempo
escolhido.
31
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e o austero juiz ou o
ilustre Senado. Mas não ostentes em vão teus recursos, nem faças alarde da
eloqüência. Elimine do teu falar
todo o acento de pedantismo. Poderá alguém que esteja no seu juízo declamar seu
amor com palavras
complicadas à sua amada? Basta, muitas vezes, uma carta para dar motivo a uma
grande repulsa. Escreva de
modo natural, com palavras comuns mas ternas, escreve como se estivesses
falando. Se ela recusar a carta e
devolvê-la sem ler, tenha paciência, que um dia acabará por fazê-lo, e não desista.
com o tempo, o novilho
indócil acostuma-se à canga, e o cavalo resigna-se ao freio. Uma argola de ferro
gasta-se com o atrito
constante, assim como o vômer de tanto ser usado na terra. Haverá alguma coisa
mais dura que a pedra e mais
mole que a água? Todavia a água mole em rocha dura tanto bate até que fura. Se
fores persistente,
conquistarás a própria Penélope. 122. Foi preciso muito tempo para tomar
Pérgamo, 123, mas acabou sendo
tomada. 124. Se a tua amada recebeu a tua carta e não a quer responder, não insista
demais nisso; continua
porém a mandar-lhe frases carinhosas. Desde que as leia, há de querer responderlhe.
O teu objetivo será
alcançado a seu devido tempo, aos poucos. De início, talvez recebas uma carta de
maus presságios, na qual te
pede que deixes de cortejá-la: significa que receia que desistas. Ela deseja o que não
te pede, isto é, que
insistas. Continua, pois, em breve obterás tua recompensa.
[ 122 Penélope - Esposa de Ulisses. É símbolo da fidelidade conjugal. Ver a
Odisséia de Homero.
123 Pérgamo - Outro nome para Tróia.
124 Verso proverbial, freqüentemente empregado. No original: Capta vides
sero Pergama, capta tamen. ]
Enquanto ela se faz transportar reclinada na liteira, aproxima-te dela quase
casualmente e, para não seres
ouvido por ouvidos importunes, fala-lhe, dentro do possível, por sinais ambíguos.
Se caminha sob os pórticos,
descontraidamente, acompanha seus passos, ora indo à sua frente, ora atrás,
apressando ou retardando o teu
andar. Não receies passar umas vezes por entre as colunas, e outras, bem junto
dela. Não permitas que ela, no
esplendor da sua beleza, vá sentar-se sem ti nos degraus do teatro. Os seus ombros
te oferecerão um belo
espetáculo. Poderás olhá-la, admirá-la, dizer-lhe muitas coisas com gestos e com
olhar. Aplaude o
comediante que
p. 42
faz o papel de moça, 125; aplaude todos os que representam o papel de amantes.
Levanta-te se ela se levantar, e
se ela continuar sentada, deixa-te ficar sentado; tens de saber perder tempo
acompanhando o alvitre da tua
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amada.
[ 125 Pantomimo - O ator que interpretava o mimo era sempre um homem. ]
Não crie, todavia, o hábito de frisar o cabelo a ferro, nem alise com pedrapomes
as pernas. Deixa tais coisas
para quem, como os Frígios, aos gritos se consagram a Cibele. 126. Aos homens só
convém uma beleza sem
enfeites. Quando a filha de Minos 127 foi raptada por Teseu, 128, ele não havia
arranjado os cabelos com frisos
e grampos. Fedra 129 amou Hipólito 130 apesar do seu aspecto negligente. Adônis,
131, um habitante dos
bosques, foi amado por uma deusa.
[ 126 Cibele - A mãe dos deuses, grande deusa da Frígia. Os sacerdotes de
Cibele eram eunucos.
127 Teseu - O herói, depois de matar o Minotauro, raptou a filha de Minos,
Ariadne.
128 V. nota 127.
129 Fedra - Filha de Minos e Pasífae, esposa de Teseu.
130 Hipólito - V. nota 101.
131 Adônis - A tradição quer Adônis de deslumbrante beleza, apesar de
silvícola. ]
Os homens devem agradar apenas pela elegância discreta; a pele deve estar
bronzeada pelo exercício do
Campo de Marte, 132; a tua toga, com bom caimento e imaculada; o calçado, bem
amarrado e na justa medida
do pé, não grande demais; o cabelo bem aparado, não arrepiado e, ele e a barba
tratados por mão experiente;
as unhas, cortadas e limpas e que não haja pêlos a sair pelas narinas; que não saia
de tua boca malcuidada um
hálito desagradável, e que um odor de bode não agrida as narinas. Todo o resto
deixa para as mulheres
lascivas ou para aqueles que, contrariando a natureza, procuram o amor de um
outro homem.
[ 132 Campo de Marte - No Campo de Marte, em Roma, faziam-se os
exercícios militares. ]
Mas Líber 133 chama o seu poeta; também protege os amantes e favorece os
amores que ele mesmo inflama.
[ 133 Líber - Deus itálico, identificado com Baco, ”o que liberta o homem dos
cuidados”. +
p. 43
A filha de Creta 134 errava, perdida, por praias desconhecidas da pequena
ilha de Dia, 135, batida pelas ondas;
como saiu do sono, vestindo apenas uma túnica solta, os pés descalços, os cabelos
de açafrão soltos sobre os
ombros, contava às ondas surdas a crueldade de Teseu, e as lágrimas molhavam as
delicadas faces da pobre
abandonada. Chorava e gritava, mas ambas as coisas lhe convinham; as lágrimas
não diminuíam a sua
formosura. E a infeliz batia com as mãos no peito, dizendo: ”O pérfido abandonoume!
Que será de mim?” E
repetia: ”Que será de mim?”
[ 134 Ariadne - Teseu, que raptara Ariadne, a abandonou, adormecida, na ilha
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de Naxos, ou Dia.
135 Dia ou Naxos - Pequena ilha fronteiriça a Cnosso. ]
Ouviram-se então címbalos por toda a praia, e som de tambores batidos por
mãos frenéticas. Ela desmaiou de
medo e se calou; o sangue fugiu de seu corpo, e ficou como morta. Eis que surgem
as Bacantes, 136, os cabelos
a esvoaçar-lhes sobre os ombros; eis os ligeiros Sátiros, 137, arautos do deus; eis
Sileno, 138, o velho ébrio, mal
se mantendo sobre o burrico, agarrando-se habilmente às crinas. Enquanto
persegue as Bacantes, estas fogem
dele e perseguem-no, por sua vez; mau cavaleiro, ele atiça sua montaria orelhuda
com a chibata, e cai de
cabeça. Os Sátiros gritaram-lhe: ”Pai 139 levanta-te, levanta-te”.
[ 136 Bacantes - Mulheres que, no delírio que o deus Baco lhes provocava,
acompanhavam seus cortejos.
137 Sátiros - Divindades dos bosques que acompanhavam Baco. Mais tarde
confundiram-se com outras divindades
rústicas.
138 Sileno - Ancião bonachão e bêbado; foi preceptor de Baco. Quando
lúcido, era tido por sábio.
139 Pai - Sileno, muitas vezes, era chamado Pappo-Sileno, da palavra frígia
Pappas, ”Pai” ou ”Mestre”. +
Enquanto isso, o deus, coroado de uvas, em sua carruagem, puxava as rédeas
douradas detendo os tigres
atrelados. 140. A jovem perdeu a um tempo a cor, a lembrança de Teseu e a voz.
Três vezes tentou fugir, e as
três vezes o medo a deteve.
[ 140 Tigres atrelados - O carro do deus Baco era puxado por tigres. ]
Estremeceu como a espiga estéril agitada pelo vento, como o frágil caniço no
úmido charco.
E disse-lhe o deus: ”Vim ofertar-te um amor mais fiel; nada
p. 44
temas: o teu esposo, filha de Cnosso, 141, será Baco. 142. ”Como presente, dou-te o
céu; serás um astro
oferecido à nossa contemplação; muitas vezes, a nau sem rumo se dirigirá para a
Coroa da Cretense 143”. Ao
dizer isso, para que os tigres não assustassem Ariadne, saltou da sua carruagem e
suas pegadas ficaram
impressas no solo; enlaçou a jovem contra o peito e arrebatou-a (e de fato ela não
poderia resistir). Haverá
alguma coisa difícil para o poder de um deus? Uns cantavam ”Himeneu!” 144
Outros gritavam: ”Evhion,
Evhoé!” 145 Foi assim que, no tálamo sagrado, se uniram o deus e a jovem esposa.
[ 141 Ariadne, nascida em Cnosso, cidade de Creta.
142 Baco - Filho de Júpiter e Semeie. Deus do vinho e da inspiração poética.
V. nota 49.
143 Coroa Cretense - Constelação associada ao presente de núpcias dado por
Vênus a Baco, obra-prima do operoso
Vulcano.
144 Himeneu - Invocação ao deus do casamento.
145 Evhoé - Grito das Bacantes em delírio. Evhion era um dos nomes de Baco.
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]
Portanto, 146, quando à mesa te servirem os dons de Baco, 147, se uma mulher
for tua vizinha de leito, 148, roga
ao deus da noite, 149, no culto noturno, que não permita que o vinho te suba à
cabeça.
[ 146 Portanto... - Ovídio retorna à tática amorosa que deve ser seguida nos
banquetes ou festins.
147 Dons de Baco - O vinho.
148 Leito... - Os Romanos não comiam sentados, mas reclinados em leitos que
circundavam a mesa.
149 Nictélio - Outro nome de Baco: ”O Noturno”, porque seu culto se
celebrava à noite. ]
Poderás então dizer, com palavras veladas, muitas coisas que tua vizinha
receberá como se as tivesses dito
para ela, traçar discretamente palavras carinhosas, com um pouco de vinho, 150,
para que leia na mesa que
cativou teu coração; olhá-la nos olhos para que teus olhos lhe digam da tua paixão.
Uma boca muda tem, às
vezes, mais eloqüência que a voz e a palavra. Procura apoderar-te primeiro da taça
onde ela bebeu, e bebe do
mesmo lado que sua boca tocou. Serve-te das mesmas iguarias que ela e, ao fazê-lo,
toca também a sua mão.
[ 150 Com um pouco de vinho - A mesma prática é recomendada em Amores,
I, IV, 20. ]
p. 45
Convém também agradar ao amante da tua bela; poderá ser muito útil, se vier
a ser teu amigo. Se te couber a
sorte de beber primeiro como rei, 151, cede-lhe a realeza; coloca nele a coroa que
puseram na tua cabeça. Se
for teu inferior ou igual, de acordo com lugar no festim, deixa-o sempre se servir
primeiro e não esqueças de
concordar com ele. A capa da amizade é um meio seguro e freqüente de enganar,
mas é um meio censurável.
[ 151 Rei do banquete - Tirava-se a sorte entre os convivas; o escolhido era
aclamado como ”Rei do festim”. +
Muitas vezes, o procurador estende seus poderes para muito além do que lhe
compete.
Qual é a justa medida que deve ser observada ao beber? Vou indicar-ta. Que a
tua inteligência e os teus pés
possam exercer prontamente seu ofício. Evita principalmente as discussões que o
vinho provoca e tendência
para as brigas cruentas. Euritião 152 foi morto por ter bebido sem moderação todo
o vinho que lhe ofereceram.
Bem mais proveitoso é o vinho e a mesa com agradáveis passatempos!
[ 152 Euritião - Um dos Centauros que quiseram raptar Hipodâmia durante as
núpcias de Pirítoo. ]
Se tens voz, canta; se tens graça nos movimentos, dança; e use todos os meios
de que dispões para agradar. A
embriaguez, se for verdadeira, te será danosa, mas se for fingida poderá te ser útil.
Faz que a tua língua
pronuncie artificialmente palavras balbuciantes, para que sejam atribuídas, se
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A Arte de Amar - Ovídio
p. 49
Por acaso, dormia no mesmo leito uma virgem de sangue real; foi ela quem
percebeu, para sua
desonra, que quem a acompanhava era um homem. Cedeu à força (assim convém
acreditar), mas
não se aborreceu por ter cedido. Muitas vezes lhe disse: ”Fica”, quando Aquiles se
dispunha a
partir, deixando a roca pelas suas temíveis armas. Onde anda agora a violência?
Por que,
Deidâmia, 180, reter com voz melíflua o autor de tua desonra?
[ 180 Deidâmia - Filha de Licomedes, em cuja casa foi criado Aquiles; em
segredo o jovem unira-se a
Deidâmia; dessa união nasceu Pirro. ]
O pudor de fato tolhe a mulher de provocar certas carícias, mas agrada-lhe
recebê-las, quando o
outro toma a iniciativa. Sim, o homem tem em alta conta suas qualidades físicas, se
espera que ela
tome a iniciativa. Cabe ao varão começar, fazer as súplicas, e a ela cabe acolhê-las.
Queres tê-la?
Pede. Ela espera por isso. Conta-lhe a causa e a origem do teu desejo. Era Júpiter
quem abordava as
heroínas lendárias, suplicando-as; nenhuma foi provocá-lo, apesar do seu poder.
Se perceberes porém que tuas súplicas esbarram em um orgulho desdenhoso,
desista de avançar e
trate de se retirar. Quantas desejam o que lhes escapa e detestam o que têm ao seu
alcance! Não
sejas tão insistente, e não serás repelido.
Nem é conveniente deixar transparecer, nas tuas súplicas, a esperança de
chegares a bom termo;
faça o amor se insinuar oculto sob o véu da amizade.
Vi mulheres difíceis vencidas por esse caminho; o que era apenas amigo
tornou-se seu amante.
Uma pele branca não combina com o marinheiro, pois é bronzeado pela
maresia e pelo Sol.
Tampouco assenta bem a um lavrador que, exposto ao tempo, revolve a terra com
o adunco vômer e
a pesada enxada.
E também não seria adequado, se disputas nas lutas a coroa de Palas, 181, que
fosses branco. O
enamorado deve ser pálido; é a cor mais apropriada e conveniente. 182. Muitos
acharão que isso é
p. 50
supérfluo. Todavia, Órion 183 era pálido quando, enamorado de Side, 184,
vagueava pelos bosques;
pálido era Dáfnis, 185, apaixonado por uma Náiade 186 indiferente. E também a
magreza deve
revelar os tormentos da tua alma, e não te acanhes de cobrir a tua brilhante
cabeleira 187 com um
capuz, como fazem os doentes. O corpo emagrece com as vigílias, com as
inquietações e a dor
geradas por um amor violento. Para alcançar tua meta, inspire piedade, a fim de
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que, ao te ver,
todos digam: ”Estais enamorado”.
[ 181 Coroa de Palas - A coroa de oliveira, prêmio aos vencedores nos esportes.
182 Preceito bem ao gosto da geração inquieta e atormentada dos românticos,
que morrem jovem sofrendo do
Mal do Século. Seu ideal era justamente uma face pálida, aspecto doentio e
macilento.
183 Órion - Caçador lendário que andava acompanhado do seu cão. Tornouse
uma constelação.
184 Side - Mulher de Órion.
185 Dáfnis - Filho de Hermes (Mercúrio) e de uma Ninfa.
186 Náiade - Ninfa dos rios e das fontes.
187 Os cabelos eram embelezados com óleo perfumado. ]
Terei que lamentar ou simplesmente alertar-te que é difícil distinguir entre o
lícito e o ilícito?
Amizade não passa de uma palavra, e boa fé é uma expressão sem conteúdo! 188
Infelizmente
ninguém pode, sem se arriscar, elogiar aquela que ama diante de um amigo.
[ 188 Verso célebre, muito citado. Em latim: Nomen amicitia est, nomes
inanefides. ]
Se este acredita nos elogios, trata logo de tomá-la de ti. Mas alguém dirá: ”O
neto de Actor 189 não
desonrou o leito de Aquiles; Fedra manteve-se fiel a Pirítoo. 190. Hermíone 191 era
amada por
Pílades 192 com a mesma afeição que Febo 193 tinha por Palas, 194, e que Castor e
Pólux 195 nutriam
por ti, filha de Tíndaro”. 196. Todavia, alimentar hoje a mesma esperança é esperar
que a tamareira
dê frutos ou procurar mel no meio de um rio.
[ 189 Actor - O neto de Actor é Pátroclo, amigo de Aquiles.
190 Pirítoo - Amigo de Teseu, que era marido de Fedra.
191 Pílades - Amigo de Orestes; a amizade desses dois tornou-se lendária.
192 Hermíone - Filha de Menelau
e Helena, amante de Orestes.
193 Febo - Apolo.
194 Palas - Minerva. Apolo e Minerva eram irmãos e amavam-se com amor
fraternal.
195 Castor e Pólux - gêmeos, eram irmãos de Helena e Clitemnestra.
196 Filha de Tíndaro - Helena. ]
p. 51
Só o que é torpe agrada; cada um busca o seu prazer, mesmo aquele obtido à
custa da dor alheia. Que
escândalo! Não é o inimigo que um amante deve temer. Foge pois daqueles que
julgas fiéis, e estarás a salvo
do perigo. Cuidado com o parente, o irmão e o amigo dileto. Todos poderão te dar
motivos para temores
bem fundados. 197.
* 197 Cf. Voltaire: ”Meu Deus, guardai-me dos meus amigos! Dos meus
inimigos, eu me encarrego!”. +
Ia terminar aqui, mas o coração das mulheres é muito variável; acharás mil
gênios diferentes; emprega pois
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mil modos diferentes para conquistá-las. A mesma terra também não se adapta a
todos os frutos 198: esta
convém à vinha, aquela à oliveira e outra ainda oferece fartas searas.
[ 198 Cf. Virgílio, Geórgicas, 11, 109: Nec vero terrae ferre omnes omnia
possunt, ”De resto, nem toda terra pode
produzir todas as espécies de plantas”. +
Há tantos gênios diferentes quantos rostos. O homem sensato se amoldará a
essas inumeráveis variedades de
caracteres; como Proteu, 199, ora se transformará em mansa onda, ora será um
leão, uma árvore ou um hirsuto
javali. O peixe ora é apanhado com fisga, ora com anzol, ou então com redes
puxadas por uma corda tensa.
[ 199 Proteu - Deus marinho, filho do Oceano e guarda do gado de Netuno,
famoso pelos seus oráculos e pelas suas
espantosas metamorfoses. ]
Tampouco é conveniente usar o mesmo método para todas as idades; uma
velha corça descobre a armadilha
de longe; se te mostrares muito sabido para uma noviça ou muito atirado para uma
pudica, elas desconfiarão
de ti e se afastarão. com isso, muitas vezes, a mulher que teme entregar-se a um
homem de bem, se deixa cair
vergonhosamente nos braços de quem não a merece.
Terminei uma parte do meu trabalho, e resta-me outra. Atiremos a âncora e
paremos aqui nosso navio.
*M*
p. 52
LIVRO SEGUNDO
A Arte de Amar
Cantai ”Io Pean!” e repeti ”Io Pean!” 200. A presa que perseguia caiu nas
minhas redes. Que o feliz amante
ofereça aos meus poemas a verde coroa 201 e os tenha como superiores aos dos
velhos de Ascra 202 e de
Meônia. 203. Tal como o filho de Príamo, 204, quando desdobrou ao vento as suas
brancas velas, partindo da
belicosa Amicléia, 205, levando a mulher 206 do seu hóspede 207 a quem raptara.
Tal como aquele que te
levou, Hipodâmia, 208, no seu carro de vencedor, para terras estranhas.
[ 200 Io Pean! - Pean é um dos nomes de Apolo. E um grito exultante de
vitória.
201 Verde coroa - Coroa de louro.
202 Ancião de Ascra - Hesíodo. V. nota 10.
203 Ancião da Meônia - Homero. Meônia é nome antigo para a Lídia.
204 Filho de Príamo - Paris.
205 Antiga cidade do Peloponeso, Lacônia, com porto.
206 Esposa - Helena.
207 Hóspede - Menelau.
208 Hipodame - ou Hipodâmia. Pélops só conseguiu desposar Hipodame
graças a um estratagema que o fez vencer a
corrida contra Enomao; caso contrário, teria morrido como os demais
pretendentes. ]
Por que esta pressa, meu jovem? O teu barco ainda está no meio
43
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A Arte de Amar - Ovídio
p. 53
do mar, e longe o porto que demandas. Não basta que os meus versos tenham
trazido para junto de
ti a mulher que amas: foi conquistada graças à minha arte, e por ela irás conservála.
E não é preciso
menos talento para conservar as conquistas que para realizálas; a sorte pode entrar
na conquista,
mas a conservação é obra da minha arte.
Agora, mais do que nunca, concedei-me vossa ajuda, ó filho de Vênus, 209, e
tu, deusa de Cítera. 210.
E tu também, Erato, 211, pois deves o teu nome ao amor. 212. Planejo uma grande
empresa: quero
explicar com que artes se pode conservar o amor, esse menino tão volúvel a errar
no vasto mundo.
É ligeiro e tem duas asas que lhe permitem escapar, e é muito difícil prever seus
movimentos.
[ 209 Filho de Vênus - Cupido.
210 Cítera - Vênus.
211 Erato - Musa da poesia erótica. Derivam seu nome do verbo erãn,
”amar”.
212 Amor - O Amor personificado. ]
Minos, 213, para impedir a fuga do seu hóspede, 214, fechou todos os
caminhos; todavia as asas
ofereceram uma audaciosa via de fuga. Dédalo, 215, quando prendeu o homem
meio touro e o touro
meio homem, fruto do amor criminoso da sua mãe, 216, disse-lhe: ”Minos, tu, o
mais justo dos
mortais, põe fim ao meu exílio, para que minhas cinzas sejam recebidas pela terra
dos meus pais.
Vítima de destino iníquo, não pude viver na minha pátria; permite-me, ao menos,
que possa nela
morrer. Permite então que meu filho 217 regresse, se achares o velho indigno da
graça; e se não
queres poupar o filho, perdoa ao velho”.
[ 213 Minos - Rei de Creta.
214 Hóspede - Dédalo.
215 Dédalo - Famoso artífice da antigüidade, construtor do Labirinto.
216 Da sua mãe - Pasífae. De seu consórcio com o touro nasceu o Minotauro.
217 Filho - Ícaro. ]
Assim ele falou; mas podia ter dito muito mais que isso, que Minos não
permitia que Dédalo
regressasse. Tão logo o compreendeu, Dédalo disse a si mesmo: chegou o
momento de mostrares o
p. 54
teu engenho. Minos é o senhor da terra e das águas; não é possível fugir nem por
terra e nem por
mar. Resta-nos o caminho do céu. E é por ele que tentaremos fugir. Perdoa minha
ousadia, ó
Júpiter, tu que reinas nos céus. Não é minha pretensão violar a região dos astros;
mas, para fugir do
cativeiro, só me resta a via dos teus domínios. Se o Estige 218 me oferecesse um
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caminho,
atravessaríamos a nado suas águas. Diante dessa impossibilidade, vejo-me
obrigado a modificar a
minha natureza.
[ 218 Estige - Rio dos Infernos. Era por esse rio que juravam os deuses. ]
É bem comum que a desventura faça nascer o engenho. Quem poderia
acreditar que o homem havia
de voar um dia? Imitando as asas dos pássaros, Dédalo arranja as penas de modo
ordenado, e ata a
sua delicada obra com fios de linho; prende as extremidades com cera derretida ao
fogo. Assim
completou o trabalho deste insólito instrumento. Satisfeito, o jovem 219
manuseava a cera e as
penas, sem saber que tal aparelho se destinava a seus ombros. ”Para voltarmos à
nossa terra, eis os
únicos navios que temos; este é o único meio de fugirmos de Minos. Ele fechou-nos
todas as saídas,
mas não pode fechar-nos o ar. Usemo-lo, cortando-o com minha invenção. Mas,
para te orientares,
não terá que olhar para a virgem de Tegéia 220 nem para o companheiro de Bootes,
Órion, que traz
uma espada; deveras regular por mim o movimento das asas que te darei; irei à
frente, mostrando o
caminho; bastará que me sigas. Guiado por mim, estarás seguro. Se, em nosso vôo
pelo céu, nos
aproximarmos do Sol, a cera não resistirá ao calor; se descermos demais e
agitarmos as asas bem
próximo do mar, molharemos as penas de nossas asas. Voa pois entre o Sol e o
mar. Observe
também os ventos, meu filho; deixa que as asas te levem para onde eles soprem”.
[ 219 Jovem - ícaro.
220 Tegéia - Trata-se da Ninfa Calisto, filha do rei Tegeu. ]
E, dando-lhe estes conselhos, ajustou as asas no filho e ensinouo a movê-las,
tal como um pássaro
ensina o filhote. Depois, adaptou a seus próprios ombros o aparelho que construíra
para si e
balançou timidamente o corpo no novo caminho. Na hora já de levantar vôo, o pai
abraçou e beijou
várias vezes o filho, sem poder reter as lágrimas que lhe desciam pelo rosto.
p. 55
Havia lá um outeiro, menor que uma montanha, que dominava a planície. De
lá os dois se atiraram juntos para
sua fuga arriscada. Dédalo agitou as asas e voltou-se para observar as do filho,
mantendo todavia o seu curso
regular. Logo ficaram encantados com a novidade do caminho e ícaro começou a
voar com mais audácia com
sua máquina aventurosa. Um pescador viu-os na hora em que se dispunha a
pescar e, aturdido, deixou cair o
caniço.
À sua esquerda, já se divisava Samos, 221, Naxos, 222, Paros 223 e Delos, 224,
apreciada pelo deus de Claros, 225,
45
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haviam-lhes ficado para trás e, à sua direita, Lebintos 226 e Calimne 227 coberta de
sombrias florestas, e
Astipaléia, 228, rodeada de águas piscosas. Foi quando o jovem, com a imprudente
temeridade dos seus
poucos anos, elevou-se mais alto no céu, abandonando seu pai. As ligaduras das
asas afrouxaram e, ao se
aproximar do deus (Sol), a cera fundiu-se e, malgrado agitasse fortemente os
braços, não pôde sustentar-se no
ar sutil. Olhou, aterrado, para a água daquela altura; o medo cobriu seus olhos de
trevas. A cera derretera-se, e
ele caiu, gritando: ”Meu pai, ó meu pai, estou sendo arrastado!”.
[ 221 Samos - Ilha ao norte de Creta, entre a Grécia e a Jônia.
222 Naxos - Ilha do mar Egeu, a maior das Cidades.
223 Paros - Uma das ilhas Cíclades, no Mediterrâneo, famosa pelos seus
mármores.
224 Delos - Pequena ilha rochosa do arquipélago das Cíclades, no mar Egeu,
hoje desabitada.
225 Claros - Cidade da Jônia, famosa por um templo de Apolo.
226 Lebintos - Uma das ilhas Espórades.
227 Calimne - Ilha do mar Egeu.
228 Astipaléia - Uma das ilhas Cíclades, em face da Dórida. ]
E as águas taparam-lhe a boca que ainda falava. Enquanto isso, o
desventurado pai, que já não era mais pai,
gritava: ”ícaro, ícaro, por onde voas?” E, enquanto chamava ”ícaro!”, avistou as
penas sobre as águas. O
corpo do jovem foi entregue à terra, e o mar tragou o seu nome. 229.
[ 229 Tragou seu nome - O mar Icário, paçfe meridional do mar Egeu. ]
Minos não pôde impedir a fuga de um homem com a ajuda de asas; poderei
eu deter um deus tão volúvel?
Seria ilusão lançar mão
p. 56
das artes de Hemônia 230 ou do que se arranca da testa de um potro”’. Para tornar
duradouro o amor, de nada
servirão as ervas de Medéia, 232, nem as fórmulas dos Marsos e suas nênias. 233.
Se os encantamentos tivessem
poder 234 para conservar o amor, 235, a princesa do Fásis 236 teria retido o filho de
Éson 237 e Circe 238 teria
retido Ulisses. 239. Tampouco há que esperar dos filtros que fazem empalidecer as
jovens; eles só perturbam o
espírito e levam à loucura.
[ 230 Hemônia - A Tessália, pátria das feiticeiras.
231 É o hipômanes, carúncula negra na testa dos potros recém-nascidos ou
humor negro produzido pelas éguas no cio
e que era usado como filtro de amor.
232 Medéia - Famosa feiticeira. São célebres as suas aventuras com Jasão.
233 Nênias - Cantos ou invocações mágicas usados pelas feiticeiras.
234 Medéia era habilíssima em filtros amatórios.
235 Os filtros eram administrados ao som de cantilenas, ”Nênias”.
236 Princesa de Fásis - Medéia. O rio Fásis, da Cólquida, que deságua no
Ponto Euxino.
237 Filho de Éson - Jasão.
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Reso, o Sitônio, 254; e foi por aí que voltei, com os cavalos 255 que lhe tomei.” Ia
desenhar mais coisas quando
veio uma onda que levou Tróia, o campo de Reso e o próprio Reso. A deusa disselhe
então: ”Poderás confiar
tua viagem a estas águas que apagaram tão grandes nomes diante de teus próprios
olhos?”. Portanto, quem
quer que tu sejas, receia fiar-te numa beleza enganadora e, para além dos atributos
físicos, procura alcançar
valores duradouros.
[ 247 O latim e o grego.
248 Calipso - Formosa Ninfa que manteve na sua ilha, Ogígia, o herói Ulisses.
É personagem da Odisséia.
249 Ulisses tomara parte na guerra de Tróia, destacando-se como um dos
mais valentes capitães.
250 Odrisas - Guiados pelo trácio Reso.
251 Simoente - Rio de Tróia.
252 Dólon - Espião troiano, morto por Ulisses e Diomedes. Cf. Ilíada, X.
253 Cavalos de Hemônia - Os cavalos de Aquiles.
254 Reso, o Sitônio - Rei da Trácia que viera acudir os Troianos; foi morto por
Ulisses e Diomedes. •
255 Cavalos - Os cavalos de Reso. Segundo um oráculo, Tróia seria
inexpugnável se os cavalos de Reso conseguissem
beber no Simoente; mas foram roubados antes por Ulisses e Diomedes. ]
O que acima de tudo cativa os corações é uma indulgência sensata; a aspereza
gera o ódio e conflitos cruéis.
Odiámos o falcão, que vive combatendo, e o lobo, que costuma atacar sorrateiro os
tímidos rebanhos. Mas o
homem não arma laços à inofensiva andorinha, e o pássaro da Caônia 256 vive
livremente nas altas torres.
Longe de nós, pois, as discussões e os conflitos de palavra mordaz; as doces
palavras são o alimento do terno
amor.
[ 256 Pássaro da Caônia - A pomba. Caônia é uma parte do Epiro. ]
Discussões e brigas sempre separam maridos e esposas e fazem crer que estão
sempre em litígio entre si. O
dote da mulher casada são as discussões. A amante deve sempre ouvir as palavras
que ela deseja ouvir. Não
foi a lei que vos uniu no mesmo leito; a vossa lei é o amor.
Apresenta-te com ternas carícias ao chegar e que tuas palavras agradáveis
façam a tua amiga alegrar-se com a
tua chegada. Não é para os ricos que dou lições de amor; quem pode presentear
não precisa delas.
É fácil ter disposição quando se pode dizer, sempre que for do agrado: ”Aceite
isto”. Cedamos passagem a
estas pessoas; tudo o que eu possa dar, em palavras, agrada menos que seus
gestos. É para os pobres que
componho este poema porque, pobre, eu amei; quando não podia dar presentes,
dava belas palavras. 257. O
pobre deve ser prudente no amor e tem que evitar qualquer palavra inconveniente;
deve suportar muitas coisas
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expressão do teu
rosto seja determinada pela dela. Se
p. 60
ela quer jogar e agita nas mãos os dados de marfim, agita-os tu também, bem mal,
e passa-os depois
para ela. Se jogas os ossinhos, evita que ela venha a perder e ter de pagar, e para tal
procura ter os
cães, que fazem perder. 264. Se jogarem xadrez, faz com que seus peões de vidro
vençam os teus
soldados. Segura-lhe tu mesmo o guarda-chuva aberto, e abre-lhe caminho entre a
multidão. Cuida
de achegar-lhe o escabelo para a cama alta; calça, ou descalça, as sandálias de seus
delicados pés.
Também será muitas vezes oportuno que, mesmo estando morto de frio, aqueças
no peito as mãos
geladas da tua amiga. E não tenha por vergonhoso (e, mesmo que o fosse, deveria
agradar-te) sendo
tu homem livre, segurar o espelho para ela. O deus que, após permitir que a sogra
265 enchesse de
monstros seu caminho, mereceu o céu que antes ele mesmo carregara; como dizem,
segurou a
alcofa entre as virgens da Jônia 266 e fiara a lã grosseira. O herói de Tirinto
obedeceu submisso as
ordens da sua amante. Vá, pois, e não hesites suportar o mesmo que ele suportou!
[ 264Cães que fazem perder - Os Romanos chamavam ”vaza de cão” a que
dava o mesmo número em todos os dados e
que era a pior de todas.
265O trecho refere-se a Hércules. O herói matou todos os monstros que Juno,
irada, enviava contra ele. Tirinto,
cidade da Argólida foi onde se criou.
266 Virgens da Jônia - Ônfale, que comprara Hércules escravo, era da Lídia. A
Jônia era província grega na Ásia
menor. ]
Se te mandar ir ao fórum, procura estar lá sempre antes da hora, e não saias de
lá senão depois da
hora marcada. Se te disser ”Vai em tal lugar”, corre para lá, deixando teus afazeres,
e que a
multidão não retarde teu caminho. À noite, quando voltar para casa depois de um
festim, se chamar
um escravo, oferece a ti mesmo. Se ela está no campo e te diz: ”Vem”, e não tiveres
carro, faze o
caminho a pé; o amor detesta todo o atraso. Que nada te possa deter, nem o mau
tempo, nem a
canícula que dá sede, nem a neve que encobre o caminho com sua brancura.
O amor é uma espécie de serviço militar. Arredai-vos, homens covardes! Não
são os pusilânimes
que devem levar os estandartes. Nos campos do prazer, nossa provações são a
noite, o inverno, as
longas marchas, caminhos fragosos. Terás muitas vezes que suportar a copiosa
chuva e, morto de
frio, terás de dormir sobre a terra nua.
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Dizem que o deus de Cinto 267 pastoreou as vacas de Admeto, 268, rei de
Feres, 269, e viveu numa
humilde cabana. E se Febo não considerou isso indigno dele, o será para ti?
[ 267 Deus de Cinto - Apolo. Cinto era uma montanha de Delos, ilha onde
nascera o deus.
268 Admeto - Rei de Feres, na Tessália, famoso pela sua bondade; quando
Apolo foi expulso do céu, foi
apascentar os rebanhos do bom rei Admeto.
269 Feres - Cidade da Tessália, na Grécia. ]
Se queres ser amado por muito tempo, despoja-te de todo orgulho. Se te é
proibida uma estrada fácil
e segura para te juntares à tua bela, se esbarras numa porta trancada, escorrega
então, (caminho
arriscado!) pela abertura do teto que dá no átrio; também uma alta janela poderá te
oferecer uma
entrada furtiva. A tua amante se rejubilará ao saber do risco que correste por causa
dela, e isto será
penhor seguro do teu amor. Leandro 270 poderia ter-se privado muitas vezes de
ver a sua amada,
mas atravessava a nado o Helesponto para lhe manifestar os seus sentimentos.
[ 270 Leandro - Amante de Hero. Ver Ovídio, Heróides, XVIII, XIX. Hero era
sacerdotisa de Vênus; Leandro
atravessava, todas as noites, a nado, o Helesponto, para encontrar-se com sua
amante, até que uma noite
perdeu o rumo e morreu afogado. ]
Não te acanhes em conquistar a boa vontade das criadas, de acordo com a sua
categoria. Nem a
dos escravos. Cumprimente cada qual pelo seu nome, que nada te custará e,
astuciosamente,
toma suas humildes mãos entre as tuas. Além disso, no dia da Fortuna 271 dá um
pequeno presente
ao escravo que o pedir, que pouco custará. Dá igualmente um presente à criada no
dia em que os
Gauleses, 272, confundidos pelas vestes das escravas romanas, foram punidos pelo
seu erro. Creia-me;
conquiste para a tua causa este pequeno mundo. Pelo menos, não esqueças do
porteiro, nem da
escrava que guarda a porta do dormitório.
[ 271 Dia da Fortuna - 24 de junho.
272 Os gauleses... - Dia 7 de julho. Após a retirada dos Gauleses, os povos
vizinhos de Roma intimaram o
Senado para que lhes entregassem todas as mulheres livres. A conselho de uma
escrava, as servas romanas
vestiram as roupas de suas senhoras e foram para o campo inimigo, onde
embriagaram os homens e, com isso,
garantiram o sucesso das armas romanas. Assim, o 7 de julho era a festa das
escravas. ]
p. 62
Não te aconselho a dares presentes caros à tua amiga; é melhor que sejam
modestos, mas
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pretendias fazer. A vantagem será tua, deixa a honra para ela. Nada tens a perder
se a deixares convencida de
que tem grande poder sobre ti.
Se, porém, queres conservar o amor da tua amiga, faze-a acreditar que estás
maravilhado com sua beleza. Se
ela veste um manto de púrpura de Tiro, 278, elogia os mantos de púrpura de Tiro.
Se ostenta um tecido de
Cos, 279, diga que lhe cai às mil maravilhas. Cobre-se de jóias? Dize-lhe que, para
ti, ela vale mais que o ouro.
Se escolheu um tecido pesado, aprova a sua escolha. Se te se apresenta vestida com
uma simples túnica,
exclama: ”Tu me abrasas!”, mas, timidamente, pede-lhe que se proteja do frio. Traz
no penteado uma simples
fita? Elogia esse penteado. Seus cabelos foram frisados a ferro? Como gostas dos
cabelos frisados! Admira
seus braços quando dança, a sua voz quando canta; quando acabar, lamenta que
tenha terminado. É mesmo
lícito enaltecer os vossos mais íntimos abraços, e os secretos prazeres que se
saboreiam pela noite adentro.
Ainda que fosse cruel como a assustadora Medusa 280 tornar-se-ia doce e
amorável para ti, que suspiras por
ela. Cuide que nem as palavras te traiam, nem a expressão do rosto as contradiga.
O artifício é proveitoso se
permanece oculto. Se revelado, ficarás envergonhado e verás destruída para
sempre e merecidamente a sua
confiança.
[ 278 Tiro - Os Fenícios eram os grandes fornecedores de púrpura.
279 Cós - Tecidos leves fabricados na ilha de Cos e muito apreciados pelas
elegantes.
280 Medusa - Uma das Górgonas. ]
Muitas vezes, ao se aproximar o Outono, uma das mais belas estações do ano,
quando as uvas ficam túmidas
de suco vermelho, quase rubro, quando sentimos alternativamente um aperto de
frio e a lassidão do calor,
estas inconstâncias de temperatura fadigam o corpo. Possa tua amada continuar
bem saudável. Todavia, se
alguma indisposição a obrigar à cama e se, doente, sofrer a influência perniciosa do
tempo, será oportunidade
para deixar-lhe patente o teu amor e a tua abnegação. Semeia, então, a farta messe
que colherás no futuro.
Não desanimes com as exigências da enferma; prestar-lheás, tu mesmo, todos os
serviços que ela te pedir.
Que ela te veja chorar, e que nenhuma repugnância te faça recusar um beijo e que
os seus lábios ressequidos
bebam as tuas lágrimas. Formula muitos
p. 64
votos de melhoras, mas sempre em voz alta e, sempre que isso lhe possa agradar,
tenha sonhos de bom
augúrio para contar-lhe. Que venha purificar a casa e o leito uma velha mulher que
traga, com mão trêmula, o
enxofre e os ovos. Tais cuidados deixarão nela uma lembrança doce de recordar.
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tabuinhas enceradas; quantas mulheres lêem ali mais do que lhe escrevemos!
Ofendida, Vênus toma justamente as armas e revida os golpes recebidos e faz
que também tu tenhas
o que lamentar. Enquanto o Atrida se contentou com uma só mulher, ela mantevese
casta; a
leviandade do marido tornou-a culpada. Soube que Crises, trazendo a coroa de
louros e as insígnias
sagradas 295 não pôde recuperar a filha. Soube que Brises, magoada pelo rapto,
prolongou a guerra
com torpes obstáculos. 296. Tudo isto ouviu-se dizer, mas a filha de Príamo, 297,
viu-o com seus
próprios olhos, pois, para sua vergonha, o vencedor era cativo da sua cativa. Assim
também a filha
de Tíndaro, que abrigou no seu coração e no seu leito o filho de Tieste, vingando
cruelmente o erro
do marido.
[ 295 Insígnias sagradas. Cf. Ilíada, I, 14.
296 Torpes obstáculos - A peste, que assolou o acampamento grego, e a
funesta cólera de Aquiles.
297 Filha de Príamo - Cassandra. ]
Se teus atos, apesar de feitos às escondidas, vierem a ser descobertos, mesmo
assim nega-os até ao
fim. Não te mostres mais submisso nem mais carinhoso que o costumeiro; esses
são indícios certos
de culpabilidade.
Mas não poupes teus lombos, pois só assim acharás a paz; é o leito que tem de
provar que não
fruíste antes os prazeres de Vênus. Há velhas que aconselham a tomar segurelha,
planta daninha; na
minha opinião, é um veneno. Outras aconselham a misturar pimenta à semente da
urtiga picante, ou
a dissolver piretro moído em vinho velho. 298. Mas a deusa que habita nas
umbrosas colinas do
monte
p. 67
Érix 299 não concorda que se lance mão de meios artificiais para gozar seus
prazeres. O que convém
tomar é cebola branca que vem da cidade grega de Mégara, 300, a erva do amor,
301, que cresce nos
nossos jardins ou os ovos, o mel de Himeto 302 e amêndoas e pinhões.
[ 298 Trata-se, aqui, de afrodisíacos. ]
299 Deusa do monte Érix - Vênus.
300 Alcátoe, o mesmo que Mégara - Cidade reconstruída por Akátoo.
301 Erva estimulante, Eruca, tida por afrodisíaca.
302 Himeto - Montanha da Ática, cujo mel era famoso. ]
Mas, sábia Erato, 303, porque desviar-me agora com tais artes mágicas? Deve,
o meu carro, 304,
buscar antes a sua meta. Tu, a quem ainda há pouco aconselhava a que buscasse
esconder tuas
faltas, aconselho agora a que mudes a direção e reveles tuas infidelidades. Não me
acuses de
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incoerência. Não é sempre o mesmo vento que impele o barco com sua carga: às
vezes é
Bóreas, 305, vindo da Trácia; às vezes é Euro 306 e outras vezes é Zéfiro 307 que
enfuna as nossas
velas; e outras é Noto. Repara como age o auriga: ora solta as rédeas, ora retém os
cavalos que
correm a galope.
[ 303 Erato - V. nota 211.
304 Linguagem figurada, tomada das corridas de carro.
305 Bóreas - Vento do norte.
306 Euro - Vento do leste.
307 Zéfiros - Vento que anuncia a primavera, soprando do oeste. ]
Há mulheres a quem é impróprio mostrar acanhada submissão; seu amor se
enfraquece quando não
têm rival. Geralmente, a prosperidade embota o espírito e não é fácil mantê-lo em
equilíbrio quando
se é feliz. Assim como o fogo, que quase se extingue ao consumir seu alimento e
fica encoberto
pela branca cinza, se lhe colocas enxofre, a chama quase extinta reaviva-se e brilha
da mesma luz
de antes, assim também quando o coração amorna no indolente torpor da
segurança, é preciso
aguilhoá-lo para reavivar seu amor. Faça, pois, que tua amiga se sinta insegura;
que novo fogo
reaqueça seu morno coração; que ela empalideça à idéia de tua infidelidade.
Quatro vezes feliz aquele cuja amante tanto chora 308 por ter sido
p. 68
traída e que, ao ouvir a confissão de uma falta de que desejaria duvidar, desmaia e,
mísera, perde a
um tempo a cor e a voz. Quisera eu ser aquele por quem ela arranca os cabelos!
Quem dera fosse a
mim que arranha as faces e a quem não pudesse ver sem chorar. Mesmo sendo
olhado com ódio,
quisera fosse eu aquele sem o qual não pudesse viver, mesmo o querendo!
* 308 Cf Tíbulo (I, C, 64): ”Ó quatro vezes feliz aquele que pode, irado, fazer
uma tenra amante chorar!” Cf. Virgílio,
Eneida, I, 54: ”Ó três quatro vezes felizes aqueles...” A expressão é de Homero. +
Se me indagas por quanto tempo é mister deixar que se queixe do que sofreu,
te responderei: ”por
pouco tempo”, pois do contrário sua cólera se reforçará. Trata logo de abraçar o
seu alvo colo e
apoia o seu rosto banhado em lágrimas sobre o teu peito. Beije suas lágrimas e dêlhe
os prazeres de
Vênus. Será feita a paz. É o único meio de dissipar a sua cólera. Quando estiver
bastante irritada e
te parecer uma inimiga declarada, pede-lhe para firmar o armistício no leito. Ela se
acalmará.
É ali que mora a Concórdia, sem as armas; é ali que nasce o perdão. As
pombas, que ainda agora
brigavam, unem os bicos e os seus arrulhos são uma linguagem de amor.
No princípio, o mundo era uma massa confusa e desordenada 309 em que não
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se distinguiam os
astros, a terra e o mar. A seguir, o céu foi posto acima da terra; a terra foi cingida
pelo mar e o caos
vazio foi repartido entre os diversos elementos. A floresta tornou-se a morada dos
animais ferozes e
o ar encheu-se de pássaros; as frias águas ocultaram os peixes em seu seio
profundo. Então os
humanos erravam solitários pelos campos; eram apenas músculos sem inteligência.
O bosque era a
sua morada, a erva o seu alimento, as folhas o seu leito e durante muito tempo não
se aglutinaram
numa sociedade.
[ 309 Aqui começa um trecho que se encontra, quase com as mesmas palavras,
nas Metamorfoses (I, 5 et sqs). Cf. Pastos
(I, 106): ”Fogo, águas, terra, tudo era um montão confuso”. +
Dizem que foi a meiga voluptuosidade que abrandou aquelas almas
selvagens. Uma mulher e um
homem encontraram-se no mesmo lugar: o que eles tinham de fazer, aprenderam,
sem professor.
Sem precisar de tratado algum, Vênus consumou o seu doce ofício. O pássaro tem
uma fêmea para
amar. O peixe fêmea encontra nas águas aquele ao qual terá o prazer de se unir. A
corça busca o
cervo. A serpente agarra-se à serpente; após a cópula, o cão fica
p. 69
preso à cadela; a ovelha aceita o macho com prazer, tal como o touro é bem aceito
pela novilha; a
cabra permite o assalto do seu macho lascivo; a égua no cio vai em busca do
garanhão, mesmo
afastado e separada dele por rios.
Portanto, para acalmares a cólera da tua amiga, usa tais remédios enérgicos.
Só eles podem
apaziguar o agudo ressentimento. São mais poderosos que os sucos de Macáon,
310; só eles, após tua
falta, te reconciliarão com tua amante.
[ 310 Macáon - Filho de Esculápio, deus da Medicina. Era notável médico. ]
Tais coisas eram o tema do meu canto, quando Apolo me apareceu de repente,
dedilhando as cordas
da sua lira de ouro. Trazia louros nas mãos, e uma coroa de louros cingia-lhe a
sagrada cabeça. O
deus profeta, 311, coroado de louros para ser reconhecido, aproximou-se e disseme:
”Preceptor do
amor libertino, conduz os teus discípulos aos meus templos; ali verão uma
inscrição cuja fama
cobriu o mundo todo, que manda que todos se conheçam a si mesmos. 312. Só
poderá amar com
sabedoria aquele que conhecer a si mesmo, e só ele terá forças bastantes para seu
empreendimento.
Se foi aquinhoado pela natureza com belos traços, deve oferecê-los aos olhares; se
tem uma pele
bonita, deve dormir com o ombro desnudo; se tem prosa agradável, não deve ficar
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em silêncio; que
cante aquele que sabe cantar, e beba aquele que sabe beber. Mas mesmo os bons
oradores não se
ponham a declamar no meio de uma conversa vulgar, nem os poetas excêntricos a
ler os seus
versos”. Tais foram os conselhos de Febo: obedeçam-nos!
[ 311 Apolo era o deus dos poetas.
312 Conforme o axioma socrático: gnõthi seautón. Em latim, Nosce te ipsum.
]
Da boca sagrada do deus só saem palavras infalíveis. Voltarei a falar de coisas
mais simples.
Aquele que for sábio nos seus amores, triunfará e obterá o que deseja se seguir
minha arte.
Nem sempre a terra restitue com abundância as sementes que lhe confiamos, e
o vento nem sempre
é favorável ao barco em sua rota de aventura. Poucos prazeres e muitos
sofrimentos são o quinhão
dos amantes; preparem seu espírito para numerosas provas. As lebres do monte
Atos, 313, as abelhas
que se nutrem no monte Hibla,
p. 70
as bagas da árvore de Palas 314 de sombria folhagem e as conchas da praia não são
tão numerosas
como os tormentos do amor.
[ 313 Atos - Montanha da Calcídica. ]
314 Palas - A árvore de Palas (Minerva) é a oliveira. ]
Os dardos que recebemos são cheios de fel. Te dirão que a tua amante saiu
bem quando talvez a
vejas; convém pensar que de fato saiu e que os teus olhos te enganam. Prometeu-te
a noite e, ao
chegar, sua porta está fechada; suporta com paciência deitar no duro chão, mesmo
que esteja sujo.
Talvez uma criada mentirosa diga, com insolência: ”Por que este sujeito se acerca
da nossa porta?”.
Suplicante, dirige palavras carinhosas aos portais e à cruel serva, tira as rosas que
te enfeitam a
cabeça e deposite-as na soleira.
Quando ela o quiser, a verás; mas afaste-se, se vires que te evita; um homem
bem educado não deve
ser importuno. Gostarias de forçar a tua amiga a dizer: ”Não há meio de me livrar
deste sujeito?”.
Nem sempre dirá o mesmo. E não tenha vergonha de suportar suas injúrias, seus
golpes, nem
mesmo de beijar os seus pés delicados.
Mas por que deter-me em detalhes? Meu espírito anseia por abordar coisas
mais importantes. Vou
cantar grandes feitos. Povo, presta-me toda atenção. Árdua é minha empreitada,
mas sem risco não
há mérito. Nosso tratado requer um trabalho difícil.
Suporta com paciência um rival; a vitória estará do teu lado e serás vencedor
na arte que o grande
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Júpiter pratica. Estas palavras, creia-me, não pertencem a um homem, mas aos
carvalhos gregos. 315.
Nada de mais importante minha arte te oferece.
[ 315 Carvalhos gregos - Alusão aos carvalhos de Dodona que, segundo a
lenda, proferiam oráculos. ]
A tua amiga acena para um rival: suporta-o. Ela lhe escreverá; não toques nas
tabuinhas. Que venha
de onde quiser e vá aonde lhe agradar. Os maridos 316 dedicam tal complacência
às suas legítimas
esposas, quando o suave Sono vem cumprir seu papel. Não sou versado nesta arte,
confesso-o. Que
fazer? Estou aquém dos meus próprios ensinamentos. Quer dizer que quando
façam sinais a meu
rival, diante de mim, eu suportarei, evitando que a cólera me leve a cometer algum
excesso?
[ 316 Quando os maridos dormem, as esposas têm liberdade para fazerem o
que bem entendem. ]
Lembro-me que um dia seu amante beijou-a; fiz uma cena por
p. 71
causa disto, pois o nosso amor era cheio de bárbaras exigências. E não foi apenas
este prejuízo que me causou
o meu arrebatamento.
Mais sensato é o amante conciliador que apresenta, ele próprio, os rivais. O
melhor é tudo ignorar. Deixe-a
esconder suas infidelidades e não a obrigues a fingir para subtrair-se à vergonha
da confissão. Eis aí mais uma
boa razão para evitares surpreender as tuas amantes. Que traiam, mas que, ao trair,
pensem que estão
enganando. O amor dos amantes só aumenta quando é perseguido; já que tiveram
sorte comum, persistem
ambos no que é a causa da sua perdição. Conta-se uma história bem conhecida no
Olimpo, 317, sobre Marte e
Vênus 318 surpreendidos em flagrante delito pela artimanha de Vulcano. 319.
[ 317 História famosa, narrada na Odisséia. Cf. Amores, I, IX, 39.
318 Marte tornou-se amante de Vênus.
319 Vulcano era o marido da traquina Vênus. ]
Marte, tomado de louca paixão por Vênus, embora sendo terrível guerreiro,
tornou-se um enamorado. A deusa
não se mostrou nem esquiva nem cruel às súplicas do Gradivo, 320; pelo contrário,
nenhuma deusa se mostrou
mais terna. Quantas vezes, contam, a brincalhona zombou do manquejar do
marido 321 e de suas mãos
endurecidas pelo fogo do seu trabalho. Nessas ocasiões, arremedava Vulcano na
presença de Marte; e isto
caía-lhe tão bem que sua beleza crescia com as mil graças. De início, tinham o
cuidado de esconder seus
encontros; sua paixão culpada estava repleta de reserva e pudor. Uma denúncia do
Sol 322 (quem pode
esconder-se de seus olhares?) fez Vulcano tomar conhecimento do comportamento
da esposa. Que mau
exemplo ofereces tu, ó Sol!
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[ 320 Gradivo, aquele que caminha - no caso, diante dos exércitos, isto é,
Marte.
321 Vulcano era coxo e tinha o ofício de ferreiro.
322 Sol, erguendo-se primeiro, surpreendeu os amantes enlaçados.
323 Lemnos - Vulcano aí tinha um santuário, seu retiro predileto. ]
Pedisse antes a Vênus uma recompensa pelo teu silêncio. Por certo te daria
alguma coisa.
Vulcano colocou em torno e em cima do leito umas redes imperceptíveis: os
olhos eram incapazes de vê-las.
Fingiu ir para Lemnos, 323; os amantes compareceram ao encontro, e ambos nus,
foram apanhados nas redes.
Vulcano convocou os deuses e os prisioneiros ofereciam um espetáculo; Vênus
retinha as lágrimas a muito
custo. Os amantes!
p. 72
não puderam esconder o rosto, e tampouco tapar com as mãos as partes pudendas!
124 Então, um dos deuses,
rindo, disse: ”Ó Marte, que és o mais valoroso dos deuses, dê-me tuas cadeias, se
elas te pesam!”. Foi graças a
teus rogos, ó Netuno, que Vulcano libertou os cativos. Marte retirou-se para Trácia,
325, e Vênus para
Pafos. 326.
[ 324 Este verso é uma licenciosidade acrescentada por Ovídio ao relato
homérico (Odisséia, VIII); tal relato guarda
ainda suas proporções, embora licencioso e irreverente.
325 Trácia - Era o lugar preferido por Marte.
326 Pafos - A ilha de Pafos era o retiro habitual de Vênus; seu templo nessa
ilha, conforme Heródoto, era admirável
(I, 105). ]
E após tua proeza, Vulcano, eles passaram a fazer às claras o que antes
escondiam, pois que abandonaram
todo pudor. 327. Todavia, muitas vezes confessas que tiveste uma conduta
insensata e imprudente, e dizem que
te arrependeste do teu estratagema.
[ 327 Conclusão pessoal de Ovídio. ]
Evitem esta conduta. Dione, 328, apanhada em flagrante, proíbe tais insídias
de que ela própria foi vítima. Não
estendam redes em volta do vosso rival, nem interceptem as cartas secretas.
Deixem que as interceptem, se
assim houverem por bem, apenas os homens a quem a água e o fogo 329 tornaram
esposos legítimos. Pela
segunda vez o afirmo: não brinco com o que a lei proíbe. Não aparece nos nossos
folguedos nenhuma
matrona.
[ 328 Dione - Dione designa, aqui, Vênus.
329 Fogo e água - Na celebração do casamento, apresentava-se aos nubentes
o fogo e a água, símbolo dos elementos
necessários à vida. ]
Quem ousaria revelar aos profanos os mistérios de Ceres 330 ou as veneráveis
cerimônias 331 da
Samotrácia? 332 Tem pouco mérito guardar um segredo, mas ao contrário, é um
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A Arte de Amar - Ovídio
A palavra pode atenuar os defeitos. Podemos chamar morena aquela que tem
o sangue mais negro
que a resina da Ilíria. 342. Se for estrábica, diga que se parece com Vênus. 343. Ela
tem os olhos
amarelados? São como os de Minerva!
[ 342 Ilíria - Região da Itália banhada pelo Adriático.
343 Vênus - Segundo o padrão de beleza dos Gregos, os olhos das mulheres
deveriam ser levemente
convergentes. Havia a Vênus zanaga. Cf. Borneeque: ”Lê regará de Vênus avait
quelque chose de vague”, ”O
olhar de Vênus tinha algo de vago”. +
p. 75
Chamarás esbelta aquela a quem a magreza mal deixou a vida. Dirás às
pequenas que são ágeis, e às gordas
que são bem apanhadas. Ou seja, disfarçamos o defeito com a qualidade mais
próxima.
Não indagues sobre sua idade, nem sob qual cônsul ela nasceu, 344, cuidado
que compete ao rigoroso censor,
principalmente se já não estiver na flor dos anos, seja passou sua melhor estação e
já arranca os cabelos
grisalhos. Meus jovens, essa idade, e mesmo uma mais avançada, têm suas
vantagens. Sim, o campo que
talvez desdenhes, produzirá searas; sim, é um campo bom para semear.
[ 344 Os Romanos contavam o tempo pelos cônsules. ]
Enquanto as forças e a idade o permitirem, enfrentem a fadiga; logo, sorrateira
e silenciosamente a velhice os
curvará. Cortem o mar com seus remos ou a terra com a relha; empunhem, suas
mãos belicosas, as armas
mortíferas ou ainda consagrem às mulheres o vigor juvenil e seus cuidados. Este
último mister é como um
serviço militar que nos traz muitas riquezas.
Além disso, nesta idade as mulheres têm mais sabedoria nas lides amorosas, e
têm uma experiência capaz de
produzir artistas.
Com os seus cuidados, compensam os ultrajes do tempo; preocupam-se com
não parecerem velhas. Conforme
a tua fantasia, estarão dispostas a mil posições no amor, 345; nenhuma coletânea de
pinturas voluptuosas
imaginou tantas poses. Nelas, o prazer surge sem provocações artificiais; para que
seja realmente agradável, é
mister que o homem e a mulher participem igualmente. Detesto os amplexos em
que ambos não se entregam
(eis porque não sou inclinado ao amor com rapazes). Detesto a mulher que se
entrega por obrigação e que,
não sentindo nada, pensa nos seus afazeres. O prazer que me é concedido por
dever não me agrada; eu não
quero que uma mulher me ”deva” prazer. Quero ouvir palavras que traduzam a
alegria que ela sente, me
pedindo para ir mais devagar e me conter. Gosto de ver o olhar lânguido duma
amante que desfalece e que,
esgotada, não quer ser tocada por um bom tempo.
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A Arte de Amar - Ovídio
Quando demorar-se pode ser perigoso, convém remar com toda a força e
esporear o teu corcel lançado em
disparada.
Cheguei ao fim do meu trabalho; concedei-me a palma, juventude agradecida,
e coroai os meus cabelos
perfumados com uma coroa de mirto. 353. O que era Podalírio 354 para os Dânaos
355 na arte de curar, o neto
de Êaco no valor, 356, Nestor 357 na prudência, Calcante 358 na adivinhação, o
filho de Telamônio 359 na
destreza das armas, Automedonte 360 na condução dos carros, assim sou eu como
mestre do amor.
[ 353 Coroa de mirto - Atributo de Vênus: o mirto era consagrado à deusa do
Amor.
354 Podalírio - Os Gregos.
355 Dânaos - Filho de Esculápio, deus da Medicina.
356 Neto de Êaco - Aquiles.
357 Nestor - O mais sábio dos chefes gregos. Cf. Ilíada, I, 247, sqs.
358 Calcante - O adivinho da armada grega diante de Tróia. Cf. Ilíada, I, 69
etpassim.
359 Telamônio - Ajax. Cf. Ilíada, XI, etpassim.
360 Automedonte - V. nota 1. ]
Homens, celebrai o vosso poeta; dedicai-me os vossos louvores e que o meu
nome seja cantado no mundo
inteiro. Eu vos dei as armas - Vulcano deu-as a Aquiles; que minha oferta vos leve
à vitória como levaram a
ele. 361. E aqueles que, graças ao gládio recebido das minhas mãos, triunfarem
sobre uma Amazona, 362,
inscrevam nos despojes: ”Ovídio foi o meu mestre”. 363.
[ 361 A pedido de Tétis, Vulcano fizera novas armas para Aquiles, pois as
primeiras, quando Pátroclo foi morto,
caíram em poder dos Troianos.
362 Amazona - Isto é, uma mulher; Ovídio, como sempre, compara o amor a
uma empresa bélica.
363 O mesmo final voltará no terceiro livro. ]
Mas eis que as ternas jovens me pedem também preceitos. 364. Serão o tema
dos meus versos, no próximo
poema.
[ 364 É o aviso do terceiro livro; vê-se, por esse final, que a última parte da
Arte de Amar foi concebida durante
a confecção dos dois primeiros livros e não entrava no plano primitivo da obra. ]
*M*
p. 78
LIVRO TERCEIRO
A Arte de Amar
Dei armas aos Gregos contra as Amazonas, 365; falta-me agora, Pentesiléia,
366, dá-las também a ti e aos teus
esquadrões, para que marchem para o combate com armas iguais; que a vitória
sorria a quem for favorecido
pela benfazeja Dionéia 367 e pela criança 368 que, em seu vôo, percorre o mundo
todo. Não seria justo que
enfrentásseis indefesas inimigos armados; e seria vergonhoso também que os
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A Arte de Amar - Ovídio
deusa dos róseos dedos. 403. E diga-me Vênus, além de Adônis 404 - a quem não
paras de chorar, de quem
nasceram teus filhos, Enéias 405 e Harmonia? 406 Segui pois, ó mortais, o exemplo
das deusas e não negueis
os prazeres que podeis proporcionar aos vossos amantes desejosos.
[ 400 Endimião - Formoso pastor amado por Diana.
401 Latmo - Monte da Caria, onde Diana vinha à noite visitar Endimião.
402 Lua - Diana, ou Febe, em grego.
403 Deusa dos dedos róseos - Aurora, cf. Homero.
404 Adônis - V. nota 131.
405 Enéias - Herói troiano, filho de Vênus; personagem principal da Eneida,
de Virgílio.
406 Harmonia - Harmonia era filha de Vênus e Marte. ]
Admitindo que vos enganem, que perdeis? Continuais a ter tudo o que tínheis.
Mil podem se aproveitar de
seus encantos sem que nada lhes roubem. O ferro desgasta-se com o uso e a pedra
torna-se menor; mas aquilo
a que me refiro resiste ao desgaste e não há que temer o menor dano.
Quem recusaria acender uma chama noutra chama? Quem vigiaria as águas
do mar profundo para que não se
gastassem?
Todavia, é possível que haja uma mulher que responda ao homem: ”De forma
alguma”. Por que, se só perdes
a água com que te lavas? 407 Contudo, não estou aconselhando que se entreguem
ao primeiro que passa, mas
sim a que não temam uma perda imaginária: entregando-se, nada perdem.
[ 407 A água a que se refere é a mesma que aparece nos Amores, III, VII, 84. ]
Precisarei depois, para continuar, de um vento mais forte; enquanto estiver no
porto, que me empurre uma
ligeira brisa.
Começarei com os cuidados pessoais; as vinhas bem cuidadas dão vinho
abundante; 408; no campo bem
lavrado, as searas são
p. 83
fartas. A beleza é uma dádiva dos deuses - quantas, porém, podem orgulhar-se de
serem belas? A maioria
não o é. Os cuidados vos darão um belo rosto, mas se dele descuidares ele se
estragará, ainda que fosse
parecido com o da deusa Idália. 409.
[ 408 Isto significa: à mulher que cuida de seu aspecto jamais faltarão amantes
409 Deusa Idália - Vênus. A deusa do amor era especialmente wnerada em
Idálio, cidade de Chipre. ]
Se as mulheres de antanho não tomavam tais cuidados com o corpo, é que
então também os maridos não os
tomavam. Seria de estranhar que a túnica de Andrômaca fosse de tecido grosseiro?
Seu marido era um rude
soldado.
Seria concebível que a mulher de Ajax 410 se mostrasse enfeitada ao marido,
cujo escudo 411 era formado por
sete couros de boi? Naquele tempo reinava uma rude simplicidade; mas, hoje em
dia, Roma resplandece de
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A Arte de Amar - Ovídio
ouro e possui as enormes riquezas dos povos subjugados. Compara o Capitólio 412
atual com o que foi
outrora; dir-se-ia que o de hoje é consagrado a outro Júpiter. Hoje, a Cúria 413 é
mesmo digna de tão nobre
assembléia; quando reinava Tácio, 414, ela era de palha. E o que era então o
Palatino, 415, onde hoje se erguem
brilhantes edifícios, sob a proteção de Apolo e dos nossos chefes? Apenas uma
pastagem para os bois de
arado.
[ 410 Ajax - Herói grego. V. nota 359.
411 O lendário escudo do herói Ajax era feito com sete couros de boi. Cf.
Amores, I, VII, 7.
412 Capitólio - Uma das setes colinas de Roma.
413 Cúria - Lugar de reunião do Senado.
414 Tácio - Rei dos Sabinos.
415 Palatino - Outra das sete colinas de Roma. ]
Deixo que outros exaltem o passado! De minha parte, eu me rejubilo por ter
nascido agora. A idade presente é
muito do meu agrado. Seria talvez porque em nossos dias extraímos da terra o
ouro macio ou porque trazemos
de diversas praias conchas escolhidas? 416 Ou talvez porque as montanhas
diminuem, de tanto que lhes
extrairmos o mármore ou então porque nossos molhes detém as ondas azuis? Não,
é só porque agora
cuidamos do corpo e já não admitimos aquela rudeza que sobreviveu aos nossos
ancestrais.
[ 416 Escolhidas - As conchas que encerravam as pérolas. ]
Todavia, não sobrecarregueis as orelhas com as pedras que o
p. 84
escuro indiano 417 apanha na verde água, nem vos apresenteis carregadas de
vestidos bordados a ouro. O luxo
exagerado com que nos quereis seduzir, muitas vezes nos afugenta.
[ 417 Indiano - Nome genérico para designar o oriental; as gemas vinham
principalmente da índia. ]
O que mais seduz é a elegância singela.
Que o cabelo não esteja em desalinho. As mãos podem aumentar ou diminuir
a beleza de um penteado. Há
muitas maneiras de arranjar um penteado; a mulher deve escolher a que mais lhe
convém e, antes de mais
nada, consultar o espelho. Um rosto comprido requer cabelos partidos na fronte e
nenhum adorno: era esse o
penteado de Laodâmia. 418.
[ 418 Laodâmia - Cf. Amores, II, XVIII, 38. Filha de Acasto e mulher de
Protesilau. ]
Um rosto redondo combina com um coque sobre a cabeça, de modo a mostrar
as orelhas, como tu, Febo, 419,
harmonioso quando a tua mão tange a lira. Outra os trará amarrados atrás, como
Diana 420 quando perseguia a
caça assustada, erguendo a curta túnica. Para uma podem cair bem os cabelos fofos
e soltos; para outra
convém as presilhas. Uma gosta de adorná-lo com um pente de Cilene, 421; outra
71
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A Arte de Amar - Ovídio
prefere as ondulações
semelhantes às do mar. Assim como não se podem contar as bolotas de um
carvalho frondoso, as abelhas de
Hibla 422 e a caça dos Alpes, tampouco se conta o número dos penteados.
[ 419 Febo - Apolo, patrono das Musas e dos poetas.
420 Diana - Cf. Amores, 1,1, 11. Deusa da caça.
421 Cilene - Cidade da Arcádia.
422 Hibla - Montanha da Sicília, famosa pelo seu mel. ]
A cada dia surge uma novidade. Uma cabeleira descuidada fica por vezes tão
bem que pode nos deixar crer
que é um penteado da véspera que acaba de ser refeito. A arte muitas vezes apenas
imita o acaso. 423. Assim,
na cidade expugnada, Íole 424 apareceu aos olhos de Hércules 425 que logo
exclamou: ”É esta que amo!”.
Assim estavas tu,
p. 85
filha de Cnosso, 426, abandonada, quando Baco 427 te raptou no seu carro,
enquanto os Sátiros 428 gritavam
”Evoé”.
* 423 A arte imita o acaso. Cf. Oscar Wilde: ”A vida imita a arte”.
424 Íole - Filha de Éurito, rei de Icália, uma das esposas de Hércules.
425 Hércules - O herói. Filho de Alceu,
426 Filha de Cnosso - Ariadne.
427 Baco - Referência ao episódio de Baco e Ariadne abandonada.
428 Sátiros - V. nota 37. ]
Quanta indulgência tem a natureza com os vossos encantos, e quantas
maneiras vos oferece de reparar os
danos do tempo! Nós somos impiedosamente privados dos nossos encantos e
nossos cabelos caem como as
folhas que Aquilão 429 agita.
[ 429 Aquilão - Vento norte. ]
A mulher tinge os cabelos brancos com ervas da Germânia 430 e, com
artifícios, lhes confere uma cor mais
conveniente que a natural. Também anda exibindo uma farta cabeleira que
comprou, 431, e torna seus os
cabelos de outra. E não se acanha de a comprá-la abertamente: fá-lo sob os olhos de
Hércules 432 e o coro
das Musas.
[ 430 Germânia - Os povos da Germânia usavam ervas para mudar a cor dos
cabelos.
431 Cf. Amores, I, XIV, 45 e seg.
432 Alusão ao templo situado no Campo de Marte, ponto de reunião de
vendedores. ]
E que direi então sobre a roupa? Não me refiro aos bordados dourados nem à
lã tingida com a púrpura de
Tiro. 433. Quando se encontram tantas cores menos caras, seria insano vestir o
corpo com tamanha fortuna. 434.
Veja a cor do céu quando está sem nuvens e o austro 435 não traz chuva. E eis aqui
uma cor semelhante à da
tua lã, ó carneiro, 436, que livraste outrora Frixo e Hele 437 das armadilhas de Ino.
438.
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E que dizer daquelas que alteram 463 a pronúncia normal de uma letra e
gaguejam ao pronunciar um
som? Nelas, tal pronúncia errada torna-se um encanto; aprendem a falar pior do
que poderiam.
[ 463 Alteram... - As mulheres romanas tinham certa antipatia por certas letras.
Cf. Pérsio, Sat., I, 32 et sqs. ]
Prestai atenção a todos estes artifícios, que lhes podem ser úteis. Aprendei a
caminhar como
convém a uma mulher. No modo de andar há certo encanto, que não é desprezível;
atrai ou afasta
um homem desconhecido. Uma, com um movimento estudado do quadril, faz o
vestido ondular ao
vento e leva adiante o pé, majestosamente. Outra, como a mulher rubicunda de um
úmbrio, 464,
caminha afastando as pernas e a passos largos. Mas nisto, como em tudo o mais, há
que se observar
a justa medida. No andar, uma é rústica demais e a outra é mais pretensiosa do
que convém.
[ 464 Úmbrio - Os úmbrios eram conhecidos pela sua rudeza. ]
De qualquer maneira, deixai descoberto o ombro e o alto do braço esquerdo.
Isto convém
principalmente a uma pele de nívea brancura: convida a cobrir de beijos a parte
exposta.
As sereias 465 eram monstros marinhos cujo canto melodioso detinha os
navios, mesmo os mais
velozes. O filho de Sísifo, 466, ao ouvi-las, quase rompeu as cordas que o prendiam
ao mastro; os
seus companheiros tinham os ouvidos tapados com cera.
[ 465 Sereias - Seres míticos do mar, que encantavam, com sua voz melodiosa,
os marujos que passavam pelas
imediações. Cf. Odisséia, XII, 39 et sqs.
466 Sísifo - Uma tradição bastante pejorativa para Ulisses informava que ele
não era filho de Laerte, mas de Sísifo, o rei
velhaco de Corinto. ]
p. 91
Uma voz melodiosa é um grande atrativo; que as jovens aprendam a cantar
(na falta de outro encanto, muitas
mulheres têm na voz um meio de sedução), tanto as árias ouvidas nos teatros de
mármore, como os cantos do
Nilo, 467, com seu ritmo especial.
[ 467 Nilo - Isto é, do Egito. As músicas lânguidas do Egito. ]
As mulheres que seguirem minhas lições não devem desconhecer a arte de
segurar o plectro com a mão
direita e a citara com a esquerda. com sons da sua lira, Orfeu, 468, o cantor do
monte Ródope 469 comoveu os
rochedos, os animais ferozes, os lagos do Tártaro 470 e o cão de três cabeças. 471.
Aos teus cantos, as pedras
formaram de boa vontade novas muralhas, ó justo vingador da tua mãe. 472. Se for
verdade a conhecida lenda
de Árion, 473, apesar de mudo, um peixe se deixou encantar pelos cânticos e sons
da sua lira.
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bebesse.
490 Epístola - Das Heróides; gênero literário criado por Ovídio. ]
Seja feita a tua vontade Febo, e as suas, divindades sagradas que protegeis os
poetas, e a tua, poderoso Baco
corrnudo, 491, e a vossa, nove Musas 492.
[ 491 Cornudo - Os chifres eram símbolo de força.
492Musas - As protetoras das artes. ]
Que ninguém duvide: eu quero que uma mulher saiba dançar, para que, se lhe
for solicitado, possa fazer
aqueles gestos graciosos num festim. As bailarinas do teatro deliciam os
espectadores, que acham muita graça
nos seus movimentos. Tenho até pejo em dar
p. 93
conselhos de tão pouca importância: a mulher deve conhecer 493 o valor do jogo
dos ossinhos, e o seu
significado depois de lançados; deve saber lançar os três dados, decidir a propósito
e com habilidade o ponto
em que é oportuno parar e quando é melhor pedir. Que ela se dedique ao xadrez,
com prudência e método: um
peão contra dois inimigos, perece; o rei, ameaçado, continua a combater sem a
rainha e, ciumento, 494, é
muitas vezes obrigado a voltar.
[ 493 Em outra parte, Ovídio lamentou que algumas mulheres se dedicassem
ao jogo sem moderação.
494 Ciumento - Porque a rainha está em poder do adversário. ]
Há um jogo muito rápido que divide com linhas delgadas o tabuleiro em
tantas partes quantas os meses do
ano. 495. A mesa recebe três peões de cada lado, e a vitória é de quem primeiro os
leva até o outro extremo.
[ 495 Trata-se do ”Jogo dos doze escritores”. +
Praticai mil jogos; é vergonhoso que uma mulher não saiba jogar, e muitas
vezes o amor surge no calor do
jogo.
Todavia saber jogar bem não é o mais importante, mas o é saber dominar-se.
Jogando, abaixamos a guarda; a
paixão revela o nosso caráter e o jogo põe nosso coração a nu. Sem nos aperceber
somos tomados pela ira que
nos enteia, pela cupidez do ganho perdemos a compostura, brigamos e criamos
ressentimentos. Trocam-se
acusações, gritos enchem o ar, cada um invoca os deuses para que participem da
sua ira. Os jogadores
desconfiam uns dos outros. Quantos votos se formulam para ganhar! Quantos
rostos vi encherem-se de
lágrimas!
Que Júpiter preserve de atitudes tão aviltantes as mulheres que querem
agradar!
Estes são os jogos, mulheres, que convém à vossa natureza delicada; os
homens têm diante de si um campo
mais vasto.
Os homens têm a rápida bola, o dardo, o disco, as armas e a equitação. O
campo de Marte não é recomendável
79
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às mulheres, nem a gélida Aqua Virgo, 496, e o rio da Toscana 497 não vos leva nas
suas águas tranqüilas.
* 496 Acqua virgo” era uma fonte situada no Campo de Marte, de águas muito
frescas, onde os atletas vinham se banhar.
497 Rio da Toscana - O Tibre. }
Em compensação, é-vos lícito e até aconselhável passear à
p. 94
sombra do Pórtico de Pompeu, 498, quando os cavalos da Virgem no céu têm a
cabeça brilhante. 499.
[ 498 Pórtico de Pompeu - Lugar de passeio, em Roma. V. nota 21.
499 Virgem - A constelação de Virgo. Ovídio refere-se ao mês de agosto. ]
Visitai, no Palatino, 500, o templo de Febo 501 coroado de louros (foi ele que
fez naufragar as naus de
Paretônio 502), ou os monumentos erguidos para a irmã e a esposa do Imperador e
também para seu genro,
com a fronte cingida pela coroa naval. 503. Visitai os altares onde se queima o
incenso oferecido à bezerra de
Mênfis. 504. Visitai os três teatros, 505, tão bons para serem vistos. Contemplai a
arena ainda manchada do
tépido sangue e a meta, 506, onde roçam as rodas dos carros velozes!
[ 500 Palatino - O soberbo templo de Apolo que havia no Palatino.
501 Febo - Apolo.
502 Paretônio - Porto egípcio. Referência à frota egípcia, que foi afundada no
mar, em Ácio, graças a Apolo. Cf.
Propércio, II, 31.
503 Irmã e a esposa - Trata-se de Otávia, irmã do Imperador Augusto, e Lívia,
sua esposa; para ambas foram erguidos,
em Roma, soberbos pórticos que tinham os seus nomes. O genro é Marco Agripa,
esposo de Júlia, filha de Augusto;
Marco Agripa, após sua vitória sobre a frota de Sexto Pompeu, foi agraciado com a
coroa naval.
504 Bezerra de Mênfis - Refere-se ao culto de Isis.
505 Teatros - Havia em Roma três teatros: o de Balbo, o de Marcelo e o de
Pompeu.
506 Meta - No meio do circo romano, de formato de elipse, erguia-se um
muro baixo chamado spina, em cujas
extremidades havia as metas que os carros roçavam ao dar-lhes a volta durante as
corridas. ]
O que se esconde fica desconhecido; e o que é desconhecido não desperta
nenhuma paixão. Mesmo o rosto
mais bonito é inútil se ninguém o pode apreciar. Poderias exceder no canto a
Tâmiras 507 e Amebeu, 508, mas,
se as notas da tua lira não forem ouvidas, 509, não
p. 95
lhe trarão muita fama. Se Apeles 510 de Cos 511 não tivesse exposto a sua Vênus,
512, estaria ainda mergulhada
no mar! O que buscam os poetas, esses divinos cantores, senão a imortalidade?
Esse anseio é o fim último dos
nossos trabalhos.
[ 507 Tâmiras - Poeta da Trácia, vencido pelas Musas a quem ousara desafiar,
que o cegaram.
80
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maneira de apanhá-lo;
a corça não ensina a correr aos cães que a perseguem. Mas que importa o meu
interesse?
Continuarei lealmente a tarefa que assumi e continuarei a fornecer às mulheres de
Lemnos 553 as
armas que irão me matar.
[ 553 Lemnos - As mulheres de Lemnos, ilha do mar Egeu, mataram, durante a
noite, todos os homens do lugar, inclusive
os maridos. Ver Estácio, Tebáida. ]
Fazei com que nos acreditemos amados - o que é fácil, pois a paixão convencese
facilmente
daquilo que deseja. Basta que a mulher olhe com afeto o seu amigo, suspire
profundamente e
indague porque ele vem tão tarde. Acrescentai lágrimas, a raiva de
p. 104
falsos ciúmes e ameaçai arranhar-lhe o rosto. Logo estará persuadido; irá se
comover e dirá para si
mesmo: ”Ela ama-me loucamente”. Principalmente se ele for elegante, dos que se
contemplam ao
espelho, e se julgar capaz de conquistar até o coração de uma deusa. Mas em todo
caso, não te
perturbes demais com uma ofensa, e não percas a cabeça se ouvires que tens uma
rival.
E não acredite de imediato neste último ponto, pois a credulidade pode ser
perigosa. Prócris 554
oferece um exemplo claro que comprova isso.
[ 554 Prócris - Filha de Erecteu, foi morta involuntariamente pelo marido,
Céfalo. ]
Junto às encostas ridentes do Himeto 555 cobertas de flores, há uma fonte
sagrada; a relva macia
recobre o solo. Árvores pouco altas formam ali um pequeno bosque; cresce a erva à
sombra do
medronheiro; o alecrim, o loureiro e a escura muita perfumam os ares. Há
abundantes bosques de
buxo da folhagem espessa, e ali viceja o frágil tamarindo, o humilde cítiso e o
pinheiro doméstico.
Ao suave hálito do Zéfiros 556 e da brisa saudável, a folhagem e o topo das ervas
agitam-se
levemente.
[ 555 Himeto - Montanha vizinha de Atenas, famosa pelo seu mel.
556 Zéfiros - As brisas suaves. ]
O repouso muito agradava a Céfalo; 557; muitas vezes vinha sentar, cansado,
nesse lugar, deixando
para trás criados e cães. Costumava ele cantar: ”Brisa inconstante, vem ao meu
peito aliviar meu
ardor.” Alguém ouviu essas palavras, guardou-as e, com imprudente zelo foi leválas
aos ouvidos
da sua crédula esposa. Ao ouvir o nome de ”Brisa”, que tomou como nome de uma
rival, Prócris
perdeu o senso e ficou muda de dor. Empalideceu como as folhas da vinha no
outono, depois da
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ultraje de nenhuma
rival. Assim, terra, serás mais leve para mim quando me sepultarem em teu seio. Já
meu espírito é
levado por esta Brisa, cujo nome causou meu erro. Eu morro! Oh! Cerra-me os
olhos com a tua mão
querida”.
[ 560 Deus de Cilene - Isto é, de Mercúrio, que nascera e era adorado em
Cilene. ]
p. 106
Esmagado pela dor, Céfalo apertou nos braços o corpo agonizante da sua
amada, e suas lágrimas
banharam a ferida fatal. Mas não houve remédio, e a boca do desventurado marido
recolhe num
beijo o último alento que exala do imprudente peito da amada.
Mas voltemos ao nosso tema. Tenho de explicar-me com clareza, para que a
minha barca fatigada
chegue ao porto. Esperas impaciente que te conduza aos festins, e também queres o
meu parecer
sobre isso.
Chega tarde, e só apareça quando as lâmpadas estiverem acesas: a espera te
valorizará, pois não há
melhor alcoviteira que ela. Ainda que sejas feia, parecerás bela aos olhos turvados
pelo vinho, e
bastará a noite para ocultar com um véu as tuas imperfeições. Pega nos alimentos
com as pontas
dos dedos (no gesto de comer pode haver certa graça) e não leves ao rosto as mãos
sujas. Não
comas em casa antes de um banquete e pare um pouco antes de estar saciada; come
um pouco
menos do que poderias. Se o filho de Príamo visse Helena comendo gulosamente,
diria desgostoso:
”Que conquista idiota a minha!”. Beber é mais indicado para as mulheres, e ficalhes
melhor: o
filho de Vênus e Baco combinam muito bem. É preciso, todavia, que a tua cabeça
possa resistir, que
a tua inteligência e o teu andar não se atrapalhem e que não vejas em dobro. Que
espetáculo
vergonhoso uma mulher caída de bêbada! 561 Ela merece ser possuída por
qualquer um que passe.
Tampouco podes entregar-te ao sono, à mesa, sem correres risco: o sono permite,
muitas vezes,
coisas que ofendem o pudor.
Ruborizo ao pensar no que ainda tenho para ensinar, mas a boa Dione 562
disse-me: ”O que
nos diz respeito é justamente o que causa vergonha”. Portanto, que cada mulher se
conheça bem, que
adote esta ou aquela posição conforme o seu corpo, pois a mesma postura não
convém a todas. Se tens
um semblante singularmente belo, deita-te de costas. É de bruços que se devem
mostrar as que estão
satisfeitas com suas costas. Lucina 563 deixou teu ventre enrugado? Faz como os
91
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p. 108
Esquecia deste outro detalhe: não deixes que a luz inunde de todo teu quarto:
há muitas partes do
teu corpo que são favorecidas pela meia luz.
O meu jogo chega ao fim: é tempo de descer do carro a cujo jugos estão cisnes
atrelados. 569. Como
antes aconteceu com os homens, que agora as mulheres, minhas alunas, escrevam
nos seus troféus:
”Ovídio foi o meu mestre”.
[ 569 Cisnes - O carro de Vênus, no qual Ovídio tomou lugar, era puxado por
cisnes Há muitas representações de Vênus
sobre seu carro com Ovídio ao seu lado. ]
*M*
p. 109
Os remédios do amor
O amor, ao ler o título deste livrinho, disse: ”É a guerra, percebo, é a guerra
que preparam
contra mim!” Cupido, pare de condenar como criminoso o teu poeta, justamente
eu, que tantas
vezes, sob as tuas ordens, segurei o estandarte que me confiaste. Não sou o filho de
Tideu que feriu
a tua mãe, e a quem os cavalos de Marte conduziram para as etéreas moradas. Há
homens que
freqüentemente esmorecem; eu sempre amei e, se indagares o que estou fazendo
agora, respondo-te:
continuo a amar. Nunca traí, nem a ti, meiga criança, nem a nossa arte; nem
tampouco elegi nova
Musa que contrarie a minha obra passada. Se um amante arde pelo objeto do seu
amor, e que lhe
corresponde, que se regozije com sua felicidade e entregue seu barco aos ventos
favoráveis. Mas, se
houver quem, por sua infelicidade, suporte o jugo de uma amante indigna do seu
amor, que procure
a ajuda da minha arte, se quiser salvar-se. Por que razão este amante, como trágico
fardo, se
enforcou numa alta viga? E por que este outro trespassou o peito com um punhal?
Amigo da paz,
aborreces o crime. Melhor será que renuncie, mesmo contra gosto, aquele que se
arrisca a morrer
por causa de um amor infeliz; e não serás tu, Amor, a causa de nenhuma morte.
És uma criança, e só te cabem as brincadeiras. Brinca. O que convém à tua
idade é um poder
desprovido de crueldade. Deixa que o teu avô combata com a adaga e a aguda
lança e saia,
sangrando, como vencedor de uma grande carnificina. Quanto a ti, cultiva as artes
da tua mãe, que
nós praticamos sem corrermos perigo, e que jamais um filho seja cruelmente
arrancado por ela dos
braços da mãe.
O papel que te cabe é arrombar uma porta durante uma briga
p. 110
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noturna, e enfeitar seus batentes com diversas coroas. É graças a ti que os jovens e
as tímidas moças
têm encontros furtivos e, depois de uma rusga, astutamente enganam um amante
desconfiado; tanto
induzes o enamorado a dizer palavras doces como a cobrir de injúrias uma tranca
teimosa e,
repelido, a cantar em torn plangente. Que te bastem tais lágrimas, e não te
acusarão de nenhuma
morte. Não, o teu lume não merece levar o fogo às piras fúnebres.
Estas foram as minhas palavras. O Amor agitou as suas áureas asas brilhantes
dizendo: ”Que leves a
bom termo a nova obra que queres escrever”.
Venham às minhas aulas, jovens enganados a quem o amor só trouxe
decepções. O mesmo que vos
ensinou a amar vos ensinará como vos curardes. A mesma mão vos dará o veneno
e o antídoto. A
terra produz, ao mesmo tempo, ervas salutares e ervas nocivas, e muitas vezes a
urtiga viceja junto
da rosa. A ferida que a lança de madeira de Pélion infligiu ao filho de Hércules, seu
inimigo, ela
própria a cicatrizou. Todavia, ouçam-me: tudo o que digo aos homens aplica-se
também a vós,
minhas jovens. Eu distribuo as armas para os dois lados. E se porventura algo não
se aplicar
diretamente, o exemplo, no entanto, poderá servir-lhes como um precioso
ensinamento.
A meta deste meu trabalho é apagar a chama violenta da paixão e libertar os
corações de uma
vergonhosa escravidão. Se Fílis tivesse recebido as minhas lições teria vivido, e
percorrido mais
rapidamente o caminho que percorreu nove vezes. Agonizando, Dido não teria
visto do alto da
fortaleza as naus dos dárdanos, entregando ao vento as velas que este enfunava. O
ressentimento
não teria armado a mão da mãe contra o próprio sangue para se vingar do marido.
Por mais
apaixonado que estivesse Tereu por Filomela, não teria, graças à minha Arte,
merecido ser
transformado em pássaro pelo crime que cometeu.
Confia em mim, Pasífae, e deixarás em breve de amar um touro. Se confiares
em mim, Fedra, logo
verás fugir o teu amor culpável. No caso de Paris, Helena ficaria com Menelau e
Pérgamo não
cairia vencida nas mãos dos Dânaos. Se Cila, filha desnaturada, tivesse lido o meu
livrinho, não
teria cortado o cabelo de púrpura de Niso. 1.
[ 1 Niso tinha o cabelo ruivo, e a ele estava ligada a segurança da cidade. Por
amor ao chefe inimigo, sua filha Cila
cortou-lhe os cabelos. ]
Mortais, tomando-me por guia, afastai os sombrios cuidados, e
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assim a vossa barca, guiada por mim, navegará segura com seus passageiros.
Quando aprendestes a amar, devíeis ter lido Nasão; deveis ainda agora
continuar a lê-lo. Eu
reivindico a liberdade para todos, e quero libertar os corações escravizados; que
cada qual colabore
para a sua libertação.
Agora que vou começar, eu te invoco, Febo. Que o teu louro me inspire, pois
inventaste a poesia e
os socorros da medicina. Ajuda tanto o poeta quanto o médico; ambas as artes
imploram a tua
proteção tutelar.
Enquanto for possível e os sentimentos que agitam o teu coração forem leves e
superficiais, e se
sentires que estás perdendo a paz, detém teus passos.
Mata no nascedouro os germes funestos do mal que se prenuncia; que o teu
cavalo se recuse a
avançar, desde a partida. Pois o tempo fortalece todas as coisas; amadurece as uvas
e transforma em
robustas espigas o que era antes só erva. A árvore que hoje oferece a sua sombra
aos caminhantes,
quando a plantaram era tão só um fraco rebento. Estava então à flor da terra e uma
mão poderia
arrancá-la; hoje, porém, que tomou vigor, agarra-se à terra com suas raízes que se
alongam em
todas as direções.
Quem é o objeto do teu amor? Eis o que a razão deve examinar rapidamente;
se pressentes que o
jugo será pesado, retira dele o pescoço. Combate o mal desde o início; se permitires
que se fortaleça
com o tempo, não haverá remédio contra ele. Apressa-te, porém, e não adies tua
decisão dia após
dia. Quem não está pronto hoje, o será ainda menos amanhã. O amor sempre se
esconde, e o tempo
é seu principal alimento; para desembaraçar-se dele, o melhor dia é o mais
próximo. Raros são os
rios que nos deixam ver as abundantes fontes que os alimentam; a maioria
engrossa com as águas
que recebe ao longo do caminho.
Se tivesses percebido a gravidade do erro que ias cometer, Mirra, 2, não
ocultadas a face sob a casca
da árvore. Vi males fáceis de tratar no começo e que, descuidados, acabaram por
cobrar caro a
negligência. Mas, como gostamos de saborear os frutos de Vênus, dizemos sempre:
”Amanhã ainda
haverá tempo”. Entretanto, a
p. 112
chama consome silenciosamente o nosso coração e a árvore maligna vai enterrando
profundamente as raízes.
[ 2 Mirra se apaixonou pelo próprio pai, que quis matá-la. Ela fugiu e se
metamorfoseou na árvore que tem o
seu nome. ]
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chamado pela nostalgia do lar, mas pelo amor da tua amiga, embora sob o disfarce
de palavras
pomposas. Deixado o lar paterno, encontrarás mil coisas que irão mitigar o teu
sofrimento, como o
campo, os teus companheiros e a vastidão dos caminhos.
E não julgues que bastará afastar-se. A tua ausência deve ser longa o bastante
para que as cinzas
tenham esfriado por completo, e nelas não haja mais restos de fogo. Se voltares
muito depressa,
antes que teu espírito esteja bem fortalecido, o Amor, rebelde, voltará contra ti suas
setas cruéis.
Qualquer que tenha sido a duração da ausência, voltarias ardente, cheio de desejos,
e o tempo que
tenhas demorado na viagem reverterá contra ti.
Não acredites que as ervas nocivas de Hemônia e as artes mágicas tenham
alguma utilidade. O uso
de feitiços é condenável. Apolo, o nosso deus, nos versos sagrados que nos inspira,
só oferece
ajudas inofensivas. As sombras não serão por mim obrigadas a sair do túmulo; a
terra não se abrirá
pelos encantamentos abjetos de uma velha feiticeira; as messes não serão mudadas
de um campo
para outro; o deus Tibre levará suas águas para o mar, como sempre o fez; como de
costume, os
corcéis brancos conduzirão a Lua. Jamais os encantamentos conseguirão afugentar
as inquietações
do teu coração, e nem o amor será vencido pelo enxofre vivo.
De que te valeram as plantas de Fásio, princesa de Cólquida, quando querias
ficar na casa de teu
pai? Que utilidade tiveram para ti, Circe, as ervas que Perseu te trouxe quando os
ventos favoráveis
te levaram os barcos de Nérito? Usaste de todos os artifícios para impedir que teu
hóspede fosse
embora contra tua vontade; com as velas enfunadas, encetou uma fuga que nada
poderia impedir.
Tudo fizestes para não seres devorada por um fogo cruel; o amor reinou longo
tempo no teu
coração, contra tua vontade. Tu, que possuías os meios de mudar os homens, nada
pudeste contra as
leis que regem sua alma. Dizem até que tentaste reter o rei, quando se dispunha a
partir, com estas
palavras: ”Não, não te peço o que me era agradável esperar no começo, ou seja,
que fosses meu
marido, embora eu julgue que sou digna de ser tua esposa, pois sou deusa e filha
do poderoso Sol.
Minha súplica é que não apresses a tua partida; imploro-te este adiamento como se
fosse um favor.
Poderia
p. 116
eu desejar menos? Repara nas ondas agitadas, deves temê-las; mais tarde, o vento
será favorável às
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tuas velas. Que motivo tens para fugir? Não é uma nova Tróia que renasce aqui;
não há nenhum
Reso que chame seus companheiros às armas. Aqui reina o amor, a paz, e só eu
estou ferida, para
meu mal; toda esta terra obedecerá às tuas ordens.”.
Enquanto assim falava, Ulisses desamarrou seus barcos; aquelas palavras não
surtiram nenhum
efeito; e Noto encheu as velas e levou-os. Circe, ardendo de paixão, recorreu a seus
artifícios de
sempre, mas eles não acalmaram o seu amor. Portanto, tu que pedes à minha arte o
auxílio de que
precisas, não confies nos sortilégios e nos encantamentos.
Se fortes forem os liames que te prendem à cidade que é senhora do mundo,
ouve os meus
conselhos sobre o como te conduzires.
A melhor maneira de ter de volta tua liberdade é romper as cadeias que ferem
o coração e pôr fim
ao tormento. Aquele que for capaz disso, terá minha admiração, e a ele direi: ”Não
necessitas dos
meus conselhos”. Mas é a ti, a quem vejo esforçar-se para te libertares do amor, a ti,
que o desejas
mas não podes, é que se destinam minhas lições. Lembra-te com freqüência dos
atos culpáveis da
tua amiga e de todo o mal que ela te fez. Embora ela tivesse um objeto igual e, não
contente em mo
ter tomado, com sua avidez me forçou a pôr um cartaz de venda à porta da minha
casa. Eis o
juramento que me fez e depois violou. Quantas vezes ela deixou que eu dormisse à
sua porta! Ela
agrada a outros, e desdenha o meu amor. Ai! Um reles corretor 3 desfruta as noites
que ela me nega.
Quando tais comportamentos tiverem envenenado teus sentimentos para com ela,
busca neles os
germes da raiva, e tomara que esse ódio te torne eloqüente. Bastará que sofras para
teres o dom da
palavra, mesmo sem esforço.
[ 3 Homem da mais baixa condição. ]
Meus cuidados, ultimamente, haviam se fixado a uma mulher que não
correspondeu aos meus
sentimentos. Como Podalírio doente, curava-me com os meus próprios remédios e,
confesso-o, fui
péssimo médico. O que me consolou foi observar os defeitos da minha amiga;
desprezá-los com
freqüência fez-me sentir bem. ”Como são feias suas pernas!”, eu me dizia. Na
realidade, nunca o
foram. ”Como são mal feitos seus braços!”, mas para dizer a verdade,
p. 117
eram muito belos. ”Como ela é baixinha!”, e ela não o era. ”Não há presente que a
satisfaça.” Este sim, foi o
real motivo que gerou minha aversão por ela.
Além disso, o mal está bem próximo do bem; é fácil enganarnos sobre isso e,
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às vezes, queixamo-nos da
virtude, como se fora um vício. Dentro do possível, observa pelo lado desfavorável
as qualidades da tua
amante, e graças à proximidade com os seus defeitos, poderás te enganar no
julgamento que fizeres. Se for
gorducha, chama-a de balofa; se for morena, chama-lhe de negra. Se for esbelta,
censura-lhe a magreza; podes
chamar desavergonhada a que é sincera e hipócrita a que é honesta.
Se a tua amiga é pouco prendada, insiste com carinho para que mostre o que
não sabe fazer. Se não tem voz,
insista que ela cante; leva-a para dançar, se ela não souber movimentar a mão. 4.
Tem uma linguagem inculta?
Faça-a manter longas conversas. Se não sabe tocar lira, oferece-lhe uma. Seu andar
é cansado? Convida-a
para passear. Se tiver seios avantajados, não deixes que use espartilho para
disfarçá-los. Se tem dentes feios
conta-lhe alguma coisa que a faça rir. Chora com facilidade? Conta-lhe coisas que a
façam chorar.
[ 4 Para os romanos, o gesticular das mãos durante a dança era mais
importante que o movimento dos pés. ]
É também interessante apareceres-lhe inesperadamente em casa pela manhã,
antes que tenha tido tempo de se
arrumar. Aquilo que normalmente vemos e nos seduz, não é a própria mulher; os
adornos, o ouro e as pedras
preciosas a encobrem. Sob tantos atavios, é difícil, às vezes, encontrar a mulher
para amar. O Amor usa desta
riqueza como um escudo para nos enganar. Vai a casa dela sem avisar; ela deverá
estar sem suas defesas, e
talvez a surpreenda a se arranjar, e suas imperfeições a farão cair de seu pedestal.
Todavia, não confie
totalmente nesta prescrição pois, muitas vezes, um homem é atraído por uma
beleza sem artifícios. Mas podes
- diabos levem o pudor! - aproximares-te para veres o rosto da tua amante no
momento em que se lambuza
de poções cosméticas: verás potes de mil cores diversas e como os ungüentos
escorrem sobre os seus seios
lépidos. Essas drogas, têm o cheiro das iguarias de que Fineu 5 se servia; várias
vezes me causaram náuseas.
[ 5 Fineu, rei da Trácia, foi punido pelos deuses com a cegueira e com a
impossibilidade de comer, pois quando
a tal se dispunha, as hárpias vinham sujar sua comida. ]
p. 118
Direi agora como é preciso agir durante o próprio ato de Vênus. Para que
afugentemos o Amor, é preciso
atacá-lo em todas as frentes. Há muitas coisas que me fariam corar, sobre isso, se
tivesse de dizê-las
explicitamente; mas a tua imaginação suprirá o que eu omitir. De fato,
recentemente meus livros foram
criticados, e de acordo com meus censores, a minha musa é licenciosa. Contanto
que eu agrade e seja cantado
em todo o mundo, um par de críticos pode muito bem atacar a obra que lhes der
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curado.
Ela marcou um encontro; aparece na noite combinada. Ao chegar, encontraste
a porta fechada; não te
aborreças. Não insultes nem diga à porta palavras ternas, nem deites a dormir
sobre a dura soleira. No dia
seguinte, não deixes que nenhuma queixa transpareça das tuas palavras, e que o
rosto acuse o sofrimento.
Diante da tua frieza, logo ela deixará de lado o seu desdém; e mais esse favor
ficarás devendo à minha arte.
Mas, ao mesmo tempo, procura uma forma de te distrair, e não fixe para ti
mesmo uma data para deixares de
amar; às vezes o cavalo corcoveia sob o freio, e nem por isso se liberta. Não penses
nos progressos que vais
fazendo; vai fazendo o que puderes, e o esperado acontecerá. E, para evitares que
tua amiga fique muito
convencida e te despreze, deves ter firmeza, o que a obrigará a curvar-se.
Talvez a sua porta esteja aberta; mesmo que te chame, segue o teu caminho. Se
te convida a um encontro para
uma certa noite, hesite em aceitar e não dê certeza.
Quando, com um pouco de sabedoria, alcançamos rápida e facilmente a
felicidade, ainda mais facilmente
encontramos o sofrimento.
Quem poderá achar os meus preceitos severos? Por ti, até you fazer o papel de
alcoviteiro. Já que existem
infinitos caracteres,
p. 122
convém encontrar mil e um meios; para grandes males, grandes remédios. Há
corpos que o agudo ferro não
consegue curar de todo, e há muitos que encontram auxílio no suco das plantas. És
muito fraco; não podes
afastar-te, as cadeias o impedem e o cruel Amor pôs-te o pé na garganta. Pare de
lutar; os ventos, enchendo as
velas, levarão teu barco; siga com teus remos a onda que o leva. É preciso aplacar
essa sede que te abrasa e
faz sofrer. Concordo. Quero que, daqui para diante, bebas no meio do rio.
Todavia, bebe além do que teu estômago pedir; bebe até regurgitar. Desfruta
da tua amiga sem descanso e
sem obstáculos; dedica-lhe todos os dias e noites. Busca alcançar a saciedade. A
saciedade é também uma
forma de cura. E, mesmo quando julgares que já podes ficar sem ela, deixa-te ficar
até estares bem saciado,
até que a fartura corrompa o amor, até que sintas nojo da casa e não queiras ali
ficar nem mais um minuto.
A dúvida também alimenta o amor... Se queres expulsá-lo, vence o medo.
Aquele que se perguntar, com
terror, se a sua amante lhe continuará fiel ou temer que um rival lha leve, de nada
lhe valeriam os cuidados de
Macáon, que o não poderiam curar. Dentre seus dois filhos, uma mãe geralmente
ama mais aquele cuja volta é
duvidosa, pois partiu armado e isso a preocupa.
Próximo à porta Colina, há um templo venerável que deve seu nome ao monte
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no teu rival, lembra-te da porta insensível aos teus rogos; pensa nos falsos
juramentos feitos diante dos
deuses. E não penteies os cabelos para encontrar-te com ela, nem ostentes a beleza
de uma toga de pregas
amplas. Não te preocupes em nada para agradar a uma pessoa que, de agora em
diante, deve ser uma estranha
para ti; esforça-te porém para veres nela uma mulher qualquer.
Mas, vejamos, qual é o principal obstáculo ao sucesso de nossos esforços? Eu
direi; mas cada um deve ouvir
os conselhos de sua própria experiência. Demoramos para romper um romance
porque esperamos ainda ser
amados; a nossa vaidade torna-nos crédulos como o vulgo.
Mas tu não deves acreditar na garantia das palavras (haverá algo mais
enganoso?) nem nos deuses imortais, e
evita deixar-te enganar pelas lágrimas femininas. Elas têm a lágrima a seu
comando. Incontáveis são seus
estratagemas para assediar o coração de um amante, quantos são os cascalhes da
praia. Não declares as razões
que te fizeram preferir a separação e não fales dos teus sofrimentos; este segredo
deves guardar até alcançares
teu fim. Não lhe censures os possíveis erros para que ela não tente justificálos; seria
como dar-lhe a
oportunidade de mostrar que a causa dela
p. 126
é melhor que a tua. Quem se cala está firme na sua decisão; quem censura a sua
amante pede-lhe, de fato, que
se defenda.
Não ousarei, como fez o rei de Delíquio, lançar ao rio as flechas que nos
enlouquecem, nem as tochas
ardentes; não serei eu a cortar as brilhantes asas da Criança, nem tampouco minha
arte afrouxará seu arco
sagrado.
Os meus cânticos foram inspirados pela prudência; ouvi-os, e tu Febo, que me
auxilias, continua a amparar-me
em minha missão. E Febo a ampara; escutei a sua lira e vi suas flechas; reconheço o
deus pelos seus
símbolos; Febo está a meu lado.
Compara a púrpura de Tiro com um tecido tingido nas tinas de Amiclas: este
te parecerá o mais grosseiro.
Assim, compara também a tua amiga às mais belas mulheres; haverás de te
envergonhar da tua amante.
As duas deusas pareceram belas a Paris; mas, quando as comparou com
Vênus, esta saiu vitoriosa do
confronto. E não compares apenas a aparência; compara também o caráter e os
talentos; mas evite que teu
julgamento seja falseado pelo amor.
Os conselhos que meu verso te dará daqui em diante são pouco importantes;
todavia já foram úteis para
muitos, a começar por mim.
Evite reler as cartas de amor da tua amante, que guardaste; até almas fortes
ficam abaladas ao reler tais
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documentos. Por mais que te custe, lança-as resolutamente ao fogo dizendo: ”Que
seja esta a fogueira fúnebre
do meu amor”. A filha de Féstio queimou o seu filho numa fogueira, apesar de
estar longe dele, e tu hesitas
em lançar ao fogo palavras falsas.
Se puderes, desfaz-te também dos retratos. Por que se consumir diante de uma
imagem muda? Foi desse
modo que Laodâmia morreu.
Os lugares que freqüentaram juntos, são também perniciosos. Fuja dos locais
que foram palco do vosso
enlace, pois serão para ti motivo de sofrimento. ”Ela esteve aqui; aqui dormiu ela;
dormimos os dois nesta
cama; foi aqui que ela me concedeu os seus favores numa noite de amor.” Tais
lembranças reavivam o amor e
fazem doer a ferida ainda não cicatrizada, e a menor imprudência pode prejudicar
os doentes. Assim, se
deitares enxofre num fogo quase extinto ele reaviva, e de um foguinho modesto
pode nascer um grande
incêndio; do mesmo modo, se não evitares o que pode despertar o amor, logo
verás brilhar novamente a
chama que julgavas extinta. Os navegantes gregos teriam desejado passar longe do
cabo Cafareu, e de ti,
velho, que com teu fogo querias vingar uma
p. 127
morte; o marinheiro prudente alegrou-se por ultrapassar com seu barco a ilha de
Niso. Foge, pois,
dos lugares onde já foste feliz; que eles sejam para ti como as Sirtes; evita os
rochedos
Acroceráunios; e a cruel Caríbdis, que vomita a água que bebeu.
Há remédios que não podem ser impostos, mas que, tomados por acaso, são
muitas vezes úteis. Que
Fedra perca suas riquezas; tu, Netuno, pouparás o teu neto e o touro enviado por
um avô não
espantará os cavalos. Por que nenhum homem seduziu Hécale e nenhuma mulher
seduziu Iro? Sem
dúvida porque este era indigente, e aquela era muito pobre. A indigência não tem
com que
alimentar o amor, e este morre à míngua; contudo, esta não é razão suficiente para
desejares ser
pobre.
Mas há razões bastante fortes para te afastares do teatro antes de teres banido
completamente o
amor do teu peito. O coração amolece ao som das cítaras, das flautas, da lira, do
canto e também
com os movimentos harmoniosos dos braços na dança. Ali bailam sem parar os
amantes fictícios:
com que arte um ator ensina ao público o caminho da voluptuosidade!
Contra mim o digo; não toques nos poetas eróticos. Eu próprio, desnaturado,
exilei o meu talento. 7.
Fuja de Calímaco, ele não é inimigo do Amor. Tu, poeta de Cos, és tão perigoso
quanto Calímaco.
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Quanto a mim, Safo tornou-me ao menos mais terno para com a minha amiga, e a
musa de Teos
nunca ensinou costumes severos. Quem pode ter lido os poemas de Tíbulo sem se
expor ao perigo,
ou os teus, totalmente inspirados por Cíntia? Quem poderá permanecer com o
coração insensível
depois de ter lido Galo?
[ 7 Refere-se ao seu exílio para Constanza, sobre o Mar Negro, cansado pelos
seus amores escandalosos com
Júha, neta do imperador. ]
Sei que os meus cânticos tem um pouco os mesmos acentos.
Se Apolo me guia neste trabalho, e não me engana, posso afirmar que um rival
é a principal causa
dos nossos tormentos. Portanto, não penses que não tens um, e que a tua amiga
deita sozinha na
cama. Se o amor que Orestes sentiu mais forte por Hermíone, foi porque ela
pertencera antes a um
outro homem. Por que te lamentas, Menelau? Partiste para Creta sem tua mulher e
o fizeste
tranqüilamente; mas Paris a raptou, e eis que já não podias passar sem ela; o amor
de outro homem
aumentou o teu. Aquiles chorou porque Briseide foi levada e se entregava aos
prazeres com o filho de
p. 128
Plístenes. E havia razões bastantes para chorar, acreditem; o filho de Atreu fez o
que tinha que
fazer, exceto no caso de humilhante impotência. Eu, pelo menos, o teria feito, e não
me considero
mais prudente que ele. As conseqüências desses ciúmes foram muito importantes.
Pois, se
Agamemnon jurou pelo seu cetro não ter desfrutado Briseide, foi porque não
considerava que o seu
cetro fosse sagrado.
Consintam os deuses que, ao passares diante da porta da tua amante, os teus
pés não te atraiçoem. E
poderás consegui-lo; tens apenas que ter uma vontade constante; é então que será
preciso avançar
com coragem, e será preciso fincar as esporas no flanco do teu corcel. Imagina que
é o antro dos
Lotófagos, das Sereias; para ajudares os remos, iça também as velas.
Eu queria, além disso, que não considerasses o homem que é teu rival e tanto
te fez sofrer, como teu
inimigo. Cumprimenta-o de qualquer jeito, mesmo que sintas raiva dele; quando
enfim fores capaz
de abraçá-lo, estarás curado.
Para cumprir todos os deveres de um verdadeiro médico, indicarte-ei os
alimentos que deves evitar
e os que deves comer.
A cebola, quer seja dáunia, quer venha das margens da Líbia ou trazida de
Mégara, é sempre
inadequada para ti. É também oportuno evitar os rábanos, esse afrodisíaco, e tudo
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o que leve os
nossos sentidos para os prazeres do amor. Melhor será que uses a arruda, que
melhora a vista e, em
geral, todo alimento que afasta os sentidos dos prazeres do amor.
Pedes-me preceitos sobre os dons de Baco; you satisfazer o teu pedido com
duas palavras. O vinho
predispõe a nossa alma para o amor, se tomado moderadamente, e desde que
nossos sentidos se
mantenham alerta, não entorpecidos por libações abundantes. O mesmo vento que
alimenta a chama
pode de apagá-la; uma brisa leve faz subir a chama; muito forte, apaga-a. Portanto,
valem os
extremos: ou nenhuma bebedeira ou uma bebedeira tal que leve as tuas
inquietações amorosas; um
estado intermediário é prejudicial.
Eis que está finda minha obra; enfeitai com grinaldas meu navio cansado.
Chegamos ao porto aonde
queríamos atracar. Homens e mulheres curados pelos meus versos, mais tarde
rendereis as graças
que deveis ao poeta sagrado.
*M*
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Os produtos de beleza para o rosto feminino
Escutai, belas jovens, quais os cuidados que embelezam o rosto e os meios de
proteger sua beleza.
Trabalhada, a terra árida produziu os dons de Ceres, retribuindo os cuidados que
recebeu;
desapareceram os abrolhos cheios de espinhos. Os tratos também se vêem nos
frutos; corrige-se o
gosto amargo e, pelo enxerto, a árvore fendida passa a ter qualidades que não lhe
pertenciam. Tudo
o que se reveste de enfeites agrada à vista; o sol doura o alto dos telhados; a terra
negra é revestida
pelos mármores; a lã que apreciamos é repetidamente tingida nas caldeiras de Tiro;
e a índia dá-nos
marfim, usado para o requinte do nosso luxo.
Talvez, há muito tempo, sob o reinado de Tácio, as Sabinas preferissem
cultivar os campos dos pais
a cuidar da sua beleza. Era um tempo em que a robusta matrona, de faces coradas,
sentada numa
cadeira alta, tecia sem descanso com as próprias mãos o seu penoso trabalho; ela
mesma recolhia ao
redil os gados que sua filha apascentara; alimentava o fogo com as próprias mãos,
lançando nele
gravetos e lenha cortada.
Mas as vossas mães geraram filhas mais delicadas; quereis vestir vosso corpo
com roupas bordadas
a ouro; quereis perfumar o cabelo e mudar de penteado; quereis ostentar anéis de
pedras preciosas;
vos enfeitais com colares e brincos de diamantes do oriente, tão grandes que vos
pesam nas orelhas.
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Mas não fiquem aborrecidas com minhas palavras; deveis ter o cuidado de
agradar, já que hoje
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em dia os homens são considerados pelo seus adornos; os maridos criaram gostos
femininos, e só a
muito custo uma mulher se vestiria mais luxuosamente que eles...
Mesmo as mulheres que vivem escondidas no campo penteiam-se
cuidadosamente. Se olhares
indiscretos as vissem atrás das escarpas do Atos, certamente as veriam a se
adornar. Agradar a si
mesma, a sua vaidade, tem certo encanto; as jovens se ocupam e se alegram na
contemplação da sua
beleza. O pássaro de Juno, quando elogiamos sua plumagem, a desdobra vaidoso
e, em silêncio,
orgulha-se da sua beleza.
Esse é o meio de provocar nosso amor, preferível ao uso de plantas com
virtudes mágicas que os
temíveis feiticeiros colhem com perícia. Não confiai nos filtros, quer nos mais
simples, quer nos
mais complicados, nem proveis o líquido daninho da égua no cio. Não são os
feitiços dos Marsos
que dividem as serpentes ao meio, tampouco fazem as águas a recuar, rio acima,
até à nascente.
Poderíamos muito bem parar de bater no bronze de Témis; a Lua não desceria do
seu carro.
Que a vossa primeira preocupação, jovens, seja a de zelar pela formação do
caráter; as qualidades
da alma dão ao rosto novos atrativos. O amor nascido graças a um bom caráter é
duradouro; o
tempo provocará devastação na vossa beleza, e as rugas sulcarão o vosso rosto
sedutor. Dia virá em
que acharão deplorável sua imagem no espelho e este desgosto vos provocará mais
rugas. A virtude
satisfaz, dura toda a vida, por mais longa que seja e, onde há virtude, o amor é
preservado.
... Pois bem, quando o sono tiver relaxado os vossos membros delicados, como
fazer ressaltar a
brancura da vossa pele? Tomai cevada, da que os camponeses líbios enviam pelo
mar. Tirai-lhe a
palha e as cascas. Juntai igual quantidade de chicharo, diluída em dez ovos; a
quantidade de cevada
limpa deve ser de duas libras bem pesadas. Uma vez posta para secar ao ar, e
depois de seca, esta
mistura deverá ser moída até ser reduzida a um fino pó. Triturai também chifres
de veado, dos que
caem no começo do ano, e juntai a sexta parte de uma libra à mistura. Depois de
bem misturado e
formar uma farinha fina, passai por uma peneira bem fina. Acrescentai doze
bulbos de narciso,
descascados e amassados vigorosamente num almofariz de mármore, bem limpo,
mais duas onças
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