Nietzsche: Sobre Verdade e Mentira No Sentido Extra-Moral (1873)
Nietzsche: Sobre Verdade e Mentira No Sentido Extra-Moral (1873)
Nietzsche: Sobre Verdade e Mentira No Sentido Extra-Moral (1873)
in: Antologia de
Textos Filosóficos. Marçal, J. (org.), SEED, Paraná, 2009 (pp. 530 – 541).
§11 única chama que é a vaidade, é a tal ponto a regra e a lei que
quase nada é mais inconcebível do que como pôde aparecer
Em algum remoto rincão do universo cintilante que se entre os homens um honesto e puro impulso à verdade. Eles
derrama em um sem número de sistemas solares, havia uma estão profundamente imersos em ilusões e imagens de sonho,
vez um astro, em que animais inteligentes inventaram o seu olho apenas resvala às tontas pela superfície das coisas e
conhecimento. Foi o minuto mais soberbo e mais mentiroso da vê “formas”, sua sensação não conduz em parte alguma a
“história universal”: mas também foi somente um minuto. verdade, mas contenta-se em receber estímulos e como que
Passados poucos fôlegos da natureza congelou-se o astro, e os dedilhara um teclado às costas das coisas. Por isso o homem, à
animais inteligentes tiveram de morrer. – Assim poderia noite, através da vida, deixa que o sonho lhe minta, sem que
alguém inventar uma fábula e nem por isso teria ilustrado seu sentimento moral jamais tentasse impedi-lo; no entanto,
suficientemente quão lamentável, quão fantasmagórico e fugaz, deve haver homens que pela força de vontade deixaram o
quão sem finalidade e gratuito fica o intelecto humano dentro hábito de roncar. O que sabe propriamente o homem sobre si
da natureza. Houve eternidades, em que ele não estava: mesmo! Sim, seria ele sequer capaz de alguma vez perceber-se
quando de novo ele tiver passado, nada terá acontecido. Pois completamente, como se estivesse em uma vitrina iluminada?
não há para aquele intelecto nenhuma missão mais vasta, que Não lhe cala a natureza quase tudo, mesmo sobre seu corpo,
conduzisse além da vida humana. Ao contrário, ele é humano, para mantê-io à parte das circunvoluções dos intestinos, do
e somente seu possuidor e genitor o toma tão pateticamente, fluxo rápido das correntes sanguíneas, das intrincadas
como se os gonzos do mundo girassem nele. mas se vibrações das fibras, exilado e trancado em uma consciência
pudéssemos entender-nos com a mosca, perceberíamos então orgulhosa, charlatã! Ela atirou fora a chave: e ai da fatal
que também ela bóia no ar com esse páthos e sente em si o curiosidade que através de uma fresta foi capaz de sair uma
centro voante deste mundo. Não há nada tão desprezível e vez do cubículo da consciência e olhar para baixo, e agora
mesquinho na natureza que, com um pequeno sopro daquela pressentiu que sobre o implacável, o ávido, o insaciável, o
força do conhecimento, não transbordasse logo como um odre; assassino, repousa o homem, na indiferença de seu não-saber,
e como todo transportador de carga quer seu admirador, e como que pendente em sonhos sobre o dorso de um tigre. de
mesmo o mais orgulhoso dos homens, o filósofo, pensa ver onde neste mundo viria, nessa constelação, o impulso à
por todos os lados os olhos do universo telescopicamente em verdade!
mira sobre seu agir e pensar. Enquanto o indivíduo, em contraposição a outros indivíduos,
É notável que o intelecto seja capaz disso, justamente ele, quer conservar-se, ele usa o intelecto, em um estado natural
que foi concedido apenas como meio auxiliar aos mais das coisas, no mais das vezes somente para a representação:
infelizes, delicados e perecíveis dos seres, para firmá-los um mas, porque o homem, ao mesmo tempo por necessidade e
minuto na existência, da qual, sem essa concessão, eles teriam tédio, quer existir socialmente e em rebanho, ele precisa de um
toda razão para fugir tão rapidamente quanto o filho de acordo de paz e se esforça para que pelo menos a máxima
Lessing. Aquela altivez associada ao conhecer e sentir, nuvem bellum omnium contra omnes2 desapareça de seu mundo. Esse
de cegueira pousada sobre os olhos e sentidos dos homens, tratado de paz traz consigo algo que parece ser o primeiro
engana-os pois sobre o valor da existência, ao trazer em si a passo para alcançar aquele enigmático impulso à verdade.
mais lisonjeira das estimativas de valor sobre o próprio Agora, com efeito, é fixado aquilo que doravante deve ser
conhecer. Seu efeito mais geral é engano – mas mesmo os “verdade”, isto é, descoberta uma designação o
efeitos mais particulares trazem em si algo do mesmo caráter. uniformemente válida e obrigatória das coisas, e a legislação
O intelecto, como um meio para a conservação do indivíduo, da linguagem dá também as primeiras leis da verdade: pois
desdobra suas forças mestras no disfarce; pois este é o meio surge aqui pela primeira vez o contraste entre verdade e
pelo qual os indivíduos mais fracos, menos robustos, se mentira. O mentiroso usa as designações válidas, as palavras,
conservam, aqueles aos quais está vedado travar uma luta pela para fazer aparecer o não-efetivo como efetivo; ele diz, por
existência com chifres ou presas aguçadas. No homem essa exemplo: “sou rico”, quando para seu estado seda
arte do disfarce chega a seu ápice; aqui o engano, o lisonjear, precisamente “pobre” a designação correta. Ele faz mau uso
mentir e ludibriar, o falar-por-trás-das costas, o representar, o das firmes convenções por meio de trocas arbitrárias ou
viver em glória de empréstimo, o mascarar-se, a convenção mesmo inversões dos nomes. Se ele o faz de maneira egoísta e
dissimulante, o jogo teatral diante de outros e diante de si de resto prejudicial, a sociedade não confiará mais nele e com
mesmo, em suma, o constante bater de asas em torno dessa isso o excluirá de si. Os homens, nisso, não procuram tanto
evitar serem enganados, quanto serem prejudicados pelo
engano: o que odeiam, mesmo nesse nível no fundo não é a
1
O texto original chama-se: Uber Wahrheit und Luge in ilusão, mas as consequências nocivas, hostis, de certas
aussenmoralischen Sinne. A tradução, como é antiga, assim, toma espécies de ilusões. É também em um sentido restrito
uma edição também antiga na Alemanha e colocada sob suspeita hoje, semelhante que o homem quer somente a verdade: deseja as
a qual seria: NiEtzSCHE, F. Werke. Herausgegeben von Nietzsche- consequências da verdade que são agradáveis e conservam a
Archiv. Leipzig: Alfred Kröner verlag, 1901-1913. Porém, como se vida; diante do conhecimento puro sem consequências ele é
trata de um texto completo, e sem variações nas várias edições feitas indiferente, diante das verdades talvez perniciosas e
da obra de Nietzsche, creio que podemos indicar a edição mais usada destrutivas ele tem disposição até mesmo hostil. E além disso:
hoje na Alemanha que é: NiEtzSCHE, F. Kritische Studienausgabe.
(KSA 1 – 15). Herausgegeben von Giorgio Colli und mazzino
2
montinari. berlin: W de Gruyter, 1988. Guerra de todos contra todos. (N. do E.)
1
o que se passa com aquelas convenções da linguagem? São Pensemos ainda, em particular, na formação dos conceitos.
talvez frutos do conhecimento, do senso de verdade: as Toda palavra torna-se logo conceito justamente quando não
designações e as coisas se recobrem? É a linguagem a deve servir, como recordação, para a vivência primitiva,
expressão adequada de todas as realidades? completamente individualizada e única, à qual deve seu
Somente por esquecimento pode o homem alguma vez surgimento, mas ao mesmo tempo tem de convir a um sem-
chegar a supor que possui uma “verdade” no grau acima número de casos, mais ou menos semelhantes, isto é, tomados
designado. Se ele não quiser contentar-se com a verdade na rigorosamente, nunca iguais, portanto, a casos claramente
forma da tautologia, isto é, com os estojos vazios, comprará desiguais. Todo conceito nasce por igualação do não-igual.
eternamente ilusões por verdades. O que é uma palavra? A Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual
figuração de um estímulo nervoso em sons. mas concluir do a uma outra, é certo que o conceito de folha é formado por
estímulo nervoso uma causa fora de nós já é resultado de uma arbitrário abandono dessas diferenças individuais, por um
aplicação falsa e ilegítima do princípio da razão. Como esquecer-se do que é distintivo, e desperta então a
poderíamos nós, se somente a verdade fosse decisiva na representação, como se na natureza além das folhas houvesse
gênese da linguagem, se somente o ponto de vista da certeza algo, que fosse “folha”, uma espécie de folha primordial,
fosse decisivo nas designações, como poderíamos no entanto segundo a qual todas as folhas fossem tecidas, desenhadas,
dizer: a pedra é dura: como se para nós esse “dura” fosse recortadas, coloridas, frisadas, pintadas, mas por mãos inábeis,
conhecido ainda de outro modo, e não somente como uma de tal modo que nenhum exemplar tivesse saído correto e
estimulação inteiramente subjetiva! Dividimos as coisas por fidedigno como cópia fiel da forma primordial. denominamos
gêneros, designamos a árvore como feminina, o vegetal, como um homem “honesto”; por que ele agiu hoje tão honestamente?
masculino: que transposições arbitrárias! A que distância – perguntamos. Nossa resposta costuma ser: por causa de sua
voamos além do cânone da certeza! Falamos de uma Schlange honestidade. A honestidade! isto quer dizer, mais uma vez: a
(cobra): a designação não se refere a nada mais do que o folha é a causa das folhas. O certo é que não sabemos nada de
enrodilhar-se, e portanto poderia também caber ao verme. 3 uma qualidade essencial, que se chamasse “a honestidade”,
Que delimitações arbitrárias, que preferências unilaterais, ora mas sabemos, isso sim, de numerosas ações individualizadas,
por esta, ora por aquela propriedade de uma coisa! As portanto desiguais, que igualamos pelo abandono do desigual
diferentes línguas, coladas lado a lado, mostram que nas e designamos, agora, como ações honestas; por fim,
palavras nunca importa a verdade, nunca uma expressão formulamos a partir delas uma qualitas occulta com o nome:
adequada: pois senão não haveria tantas línguas. A “coisa em “a honestidade”. A desconsideração do individual e efetivo
si” (tal seria justamente a verdade pura sem consequências) é nos dá o conceito, assim como nos dá também a forma,
também para o formador da linguagem, inteiramente enquanto que a natureza não conhece formas nem conceitos,
incaptável e nem sequer algo que vale a pena. Ele designa portanto também não conhece espécies, mas somente um X,
apenas as relações das coisas aos homens e toma em auxílio para nós inacessível e indefinível. Pois mesmo nossa oposição
para exprimi-ias as mais audaciosas metáforas. Um estímulo entre indivíduo e espécie é antropomórfica e não provém da
nervoso, primeiramente transposto em uma imagem! Primeira essência das coisas, mesmo se não ousamos dizer que não lhe
metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em um som! corresponde: isto seria, com efeito, uma afirmação dogmática
Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera, e como tal tão indemonstrável quanto seu contrário.
passagem para uma esfera inteiramente outra e nova. Pode-se O que é a verdade, portanto? Um batalhão móvel de
pensar em um homem, que seja totalmente surdo e nunca metáforas, metonímias, antropomorfismos, enfim, uma soma
tenha tido uma sensação do som e da música: do mesmo modo de relações humanas, que foram enfatizadas poética e
que este, porventura, vê com espanto as figuras sonoras de retoricamente, transpostas, enfeitadas, e que, após longo uso,
Chladni 4 desenhadas na areia, encontra suas causas na parecem a um povo sólidas, canônicas e obrigatórias: as
vibração das cordas e jurará agora que há de saber o que os verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são,
homens denominam o “som”, assim também acontece a todos metáforas que se tomaram gastas e sem força sensível, moedas
nós com a linguagem. Acreditamos saber algo das coisas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração
mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e no como metal, não mais como moedas.
entanto não possuímos nada mais do que metáforas das coisas, Continuamos ainda sem saber de onde provém o impulso à
que de nenhum modo correspondem às entidades de origem. verdade: pois até agora só ouvimos falar dá obrigação que a
Assim como o som convertido em figura na areia, assim se sociedade, para existir, estabelece: de dizer a verdade, isto é,
comporta o enigmático X da coisa em si, uma vez como de usar as metáforas usuais, portanto, expresso moralmente:
estímulo nervoso, em seguida como imagem, enfim como som. da obrigação de mentir segundo uma convenção sólida, mentir
Em todo caso, portanto, não é logicamente que ocorre a em rebanho, em um estilo obrigatório para todos. Ora, o
gênese da linguagem, e o material inteiro, no qual e com o homem esquece sem dúvida que é assim que se passa com ele:
qual mais tarde o homem da verdade, o pesquisador, o filósofo, mente, pois, da maneira designada, inconscientemente e
trabalha e constrói, provém, se não de Cucolândia das Nuvens, segundo hábitos seculares - e justamente por essa
em todo caso não da essência das coisas. inconsciência, justamente por esse esquecimento, chega ao
sentimento da verdade. No sentimento de estar obrigado a
designar uma coisa como “vermelha”, outra como “fria”, uma
3
terceira como “muda”, desperta uma emoção que se refere
A palavra Schlange é diretamente derivada, por apofonia, do verbo moralmente à verdade: a partir da oposição ao mentiroso, em
schlingen ,(torcer, enroscar), no sentido específico da forma
proposicional sich schlingen, que equivale ao de sich winden
quem ninguém confia, que todos excluem, o homem
(enrodilhar-se). Em português a ligação entre a palavra cobra e o demonstra a si mesmo o que há de honrado, digno de
verbo colear, é bem mais remota; mais próxima, talvez;, seria a confiança e útil na verdade. Coloca agora seu agir como ser
relação entre serpente e serpear. Preferimos, em todo, caso, manter o “racional” sob a regência das abstrações: não suporta mais ser
exemplo original do texto. (N. do t.) som. (N. do t.) arrastado pelas impressões súbitas, pelas intuições,
4
Chladni, Ernst Friedrich - físico alemão (1756-1826); celebrizou-se universaliza antes todas essas impressões em conceitos mais
por suas engenhosas experiências sobre a teoria do som. (N. do t.)
2
descoloridos, mais frios, para atrelar a eles o carro de seu viver todas as coisas: no que, porém, parte do erro de acreditar que
e agir. tudo o que destaca o homem do animal depende dessa tem essas coisas imediatamente, como objetos puros diante de
aptidão de liquefazer a metáfora intuitiva em um esquema de si. Esquece, pois, as metáforas intuitivas de origem, como
dissolver uma imagem em um conceito. Ou seja, no reino metáforas, e as toma pelas coisas, mesmas.
daqueles esquemas, é possível algo que nunca poderia ter (...)
êxito sob o efeito das primeiras impressões intuitivas: edificar §2
uma ordenação piramidal por castas e graus, criar um novo (...)
mundo de leis, privilégios, subordinações, demarcações de Esse impulso à formação de metáforas, esse impulso
limites, que ora se defronta ao outro mundo intuitivo das fundamental do homem, que não se pode deixar de levar em
primeiras impressões como o mais sólido, o mais universal, o conta nem por um instante, porque com isso o homem mesmo
mais conhecido, o mais humano e, por isso, como regulador e não seria levado em conta, quando se constrói para ele, a partir
imperativo. Enquanto cada metáfora intuitiva é individual e de suas criaturas liquefeitas, os conceitos, um novo mundo
sem igual e, por isso, sabe escapar a toda rubricação, o grande regular e rígido como uma praça forte, nem por isso, na
edifício dos conceitos ostenta a regularidade rígida de um verdade, ele é subjugado e mal é refreado. Ele procura um
columbário romano e respira na lógica aquele rigor e frieza, novo território para sua atuação e um outro leito de rio, e o
que são da própria matemática. Quem é bafejado por essa encontra no mito e, em geral, na arte. Constantemente ele
frieza dificilmente acreditará que até mesmo o conceito, ósseo embaralha as rubricas e compartimentos dos conceitos,
e octogonal como um dado e tão fácil de deslocar quanto este, propondo novas transposições, metáforas, metonímias,
é somente o resíduo de uma metáfora, e que a ilusão da constantemente ele mostra o desejo de dar ao mundo de que
transposição artificial de um estímulo nervoso em imagens, se dispõe o homem acordado uma forma tão cromaticamente
não é a mãe, é pelo menos a avó de todo e qualquer conceito. irregular, inconsequentemente incoerente, estimulante e
No interior desse jogo de dados do conceito, porém, chama-se eternamente nova como a do mundo do sonho. É verdade que
“verdade” usar cada dado assim como ele e designado, contar somente pela teia rígida e regular do conceito o homem
exatamente seus pontos, formar rubricas corretas e nunca acordado tem certeza clara de estar acordado, e justamente por
pecar contra a ordenação de castas e a sequência das classes isso chega às vezes à crença de que sonha, se alguma vez
hierárquicas. Assim como os romanos e etruscos retalhavam o aquela teia conceitual é rasgada pela arte. Pascal tem razão
céu com rígidas linhas matemáticas e em um espaço assim quando afirma que, se todas as noites nos viesse o mesmo
delimitado confirmavam um deus, como em um templo, assim sonho, ficaríamos tão ocupados com ele como com as coisas
cada povo tem sobre si um tal céu conceitual que vemos cada dia: “Se um trabalhador manual tivesse
matematicamente repartido e entende agora por exigência de certeza de sonhar cada noite, doze horas a fio, que é rei,
verdade que cada deus conceitual seja procurado somente em acredito”, diz Pascal, “que seria tão feliz quanto um rei que
sua esfera. Pode-se muito bem, aqui, admirar o homem como todas as noites durante doze horas sonhasse que é um
um poderoso gênio construtivo, que consegue erigir sobre trabalhador manual”. O dia de vigília de um povo de emoções
fundamentos móveis e como que sobre água corrente um míticas, por exemplo os gregos antigos, é de fato, pelo milagre
domo conceitual infinitamente complicado: – sem dúvida, constantemente atuante, que o mito aceita, mais semelhante ao
para encontrar apoio sobre tais fundamentos, tem de ser uma sonho do que o dia do pensador que chegou à sobriedade da
construção como que de fios de aranha, tão tênue a ponto de ciência. Se uma vez cada árvore pode falar como ninfa ou sob
ser carregada pelas ondas, tão firme a ponto de não ser o invólucro de um touro um deus pode sequestrar donzelas, se
espedaçada pelo sopro de cada vento. Como gênio construtivo mesmo a deusa Atena pode subitamente ser vista quando, com
o homem se eleva, nessa medida, muito acima da abelha: esta sua bela parelha, no séquito de Pisístrato, passa pelas praças
constrói com cera, que recolhe da natureza, ele com a matéria de Atenas – e nisso acredita o ateniense honrado –, então a
muito mais tênue dos conceitos, que antes tem de fabricar a cada instante, como no sonho, tudo é possível, e a natureza
partir de si mesmo. Ele é, aqui, muito admirável – mas só que inteira esvoaça em torno do homem como se fosse apenas uma
não por seu impulso à verdade, ao conhecimento puro das mascarada dos deuses, para os quais seria apenas uma
coisas. Quando alguém esconde uma coisa atrás de um arbusto, diversão enganar os homens em todas as formas.
vai procurá-la ali mesmo e a encontra, não há muito que gabar O próprio homem, porém, tem uma propensão invencível a
nesse procurar e encontrar: e é assim: que se passa com o deixar-se enganar e fica como que enfeitiçado de felicidade
procurar e encontrar da “verdade” no interior do distrito da quando o rapsodo lhe narra contos épicos como verdadeiros,
razão. Se forjo a definição de animal mamífero e em seguida ou o ator, no teatro, representa o rei ainda mais regiamente do
declaro, depois de inspecionar um camelo: “vejam, um animal que o mostra a efetividade. O intelecto, esse mestre do
mamífero”, com isso decerto uma verdade é trazida à luz, mas disfarce, está livre e dispensado de seu serviço de escravo,
ela é de valor limitado, quero dizer, é cabalmente enquanto pode enganar sem causar dano, e celebra então suas
antropomórfica e não contém um único ponto que seja Saturnais. Nunca ‘ele é mais exuberante, mais rico, mais
“verdadeiro em si”, efetivo e universalmente válido, sem levar orgulhoso, mais hábil e mais temerário: com prazer criador ele
em conta o homem. O pesquisador dessas verdades procura, entrecruza as metáforas e desloca as pedras-limites das
no fundo, apenas a metamorfose do mundo em homem, luta abstrações, de tal moda que, por exemplo, designa o rio como
por um entendimento do mundo como uma coisa à semelhança caminho em movimento que transporta o homem para onde
do homem e conquista, no melhor dos casos, o sentimento, de ele, do contrário, teria de ir a pé. Agora ele afastou de si o
uma assimilação. Semelhante ao astrólogo que observava as estigma da servilidade: antes empenhado em atribulada
estrelas a serviço do homem e em função de sua sorte e ocupação de mostrar a um pobre indivíduo, cobiçoso de
sofrimento, assim um tal pesquisador observa o mundo inteiro existência, o caminho e os instrumentos e, como um servo,
como ligado ao homem, como a repercussão infinitamente roubando e saqueando para seu senhor, ele agora se tornou
refratada de um som primordial, do homem, como a imagem senhor e pode limpar de seu rosto a expressão da indigência. O
multiplicada de uma imagem primordial, do homem. Seu que quer que ele faça agora, tudo traz em si, em comparação
procedimento consiste em tomar o homem por medida de com sua atividade anterior, o disfarce, assim como a anterior
3
trazia em si a distorção. Ele copia a vida humana, mas a toma
como uma boa coisa e parece dar-se por bem satisfeito com
ela. Aquele descomunal arcabouço e travejamento dos
conceitos, ao qual o homem indigente se agarra, salvando-se
assim ao longo da vida, é para o intelecto que se tornou livre
somente um andaime e um joguete para seus mais audazes
artifícios: e quando ele o desmantela, entrecruza, recompõe
ironicamente, emparelhando o mais alheio e separando o mais
próximo, ele revela que não precisa daquela tábua de salvação
da indigência e que agora não é guiado por conceitos, mas por
intuições. dessas intuições nenhum caminho regular leva à
terra dos esquemas fantasmagóricos, das abstrações: para elas
não foi feita a palavra, o homem emudece quando as vê, ou
fala puramente em metáforas proibidas e em arranjos inéditos
de conceitos, para pelo menos através da demolição e
escarnecimento dos antigos limites conceituais corresponder
criadoramente à impressão de poderosa intuição presente.
Há épocas em que o homem racional e o homem intuitivo
ficam lado a lado, um com medo da intuição, o outro
escarnecendo da abstração; este último é tão irracional quanto
o primeiro é inartístico. Ambos desejam ter domínio sobre a
vida: este sabendo, através de cuidado prévio, prudência,
regularidade, enfrentar as principais necessidades, aquele,
como “herói eufórico”, não vendo aquelas necessidades e
tomando somente a vida disfarçada em aparência e em beleza
como real. Onde alguma vez o homem intuitivo, digamos
como na Grécia antiga, conduz suas armas mais
poderosamente e mais vitoriosamente do que seu reverso,
pode configurar-se, em caso favorável, uma civilização e
fundar-se o domínio da arte sobre a vida: aquele disfarce,
aquela recusa da indigência, aquele esplendor das intuições
metafóricas e em geral aquela imediatez da ilusão
acompanham todas as manifestações de tal vida. Nem a casa,
nem o andar, nem a indumentária, nem o cântaro de barro
denunciam que a necessidade os inventou: parece como se em
todos eles fosse enunciada uma sublime felicidade e uma
olímpica ausência ele nuvens e como que um jogo com a
seriedade. Enquanto o homem guiado por conceitos e
abstrações, através destes, apenas se defende da infelicidade,
sem conquistar das abstrações uma felicidade para si mesmo,
enquanto ele luta para libertar-se o mais possível da dor, o
homem intuitivo, em meio a uma civilização, colhe desde logo,
já de suas intuições, fora a defesa contra o mal, um constante e
torrencial contentamento, entusiasmo, redenção. Sem dúvida,
ele sofre com mais veemência, quando sofre: e até mesmo
sofre com mais frequência, pois não sabe aprender da
experiência e sempre torna a cair no mesmo buraco em que
caiu uma vez. No sofrimento, então, é tão irracional quanto na
felicidade, grita alto e nada o consola. Como é diferente, sob o
mesmo infortúnio, o homem estóico instruído pela experiência
e que se governa por conceitos! Ele, que de resto só procura
retidão, verdade, imunidade a ilusões, proteção contra as
tentações de fascinação, desempenha agora, na infelicidade, a
obra-prima do disfarce, como aquele na felicidade; não traz
um rosto humano, palpitante e móvel, mas como que uma
máscara com digno equilíbrio de traços, não grita e nem
sequer altera a voz: se uma boa nuvem de chuva se derrama
sobre ele, ele se envolve em seu manto e parte a passos lentos,
debaixo dela.