Formas Alternativas de Produzir Artefatos e suas Relaes com o Design de Produtos

Resumo de Apresentao

definir qualquer procedimento necessrio para a constituio ou a configurao de um artefato improvisado. Por se tratar de um fenmeno da cultura material, a gambiarra pode ser compreendida como uma forma alternativa de design isso, se considerarmos que o conceito de design no se define pela simples questo esttica, nem pelo dito estilismo, mas pelo ato de idealizar ou constituir objetos; conceber forma, funo e significado.

Gambiarra um termo que vem sendo amplamente usado de maneira informal para

aproximar os termos design e gambiarra, curioso o aparente contraste e a forma diametralmente oposta como ambos so alvos de freqentes interpretaes negativas, e que algumas vezes envolvem preconceitos. Enquanto para muitos, gambiarra algo precrio, feio, desleixado, ordinrio, design sinnimo de frescura, futilidade, algo suprfluo e dispensvel. Em outras palavras, a velha dualidade luxo e lixo.

Ao

questo da gambiarra1 prope diversos questionamentos e reflexes sobre design e ps-uso; o valor de alguns recursos materiais disponveis; necessidade, criatividade e soluo; identidade e cultura; sustentabilidade, inovao e desenvolvimento de artefatos. Algo distante do lugar-comum que se costuma classificar como glamourizao da pobreza.

A Questo da Gambiarra um tema de pesquisa que tomou seus primeiros passos em 1999, a partir de inquietaes sobre produo industrial e cultura material no Brasil, como um questionamento quanto s definies restritas sobre a atividade do design. O trabalho vem sendo desenvolvido por Rodrigo Boufleur (boufleur@usp.br). Consulte www.usp.br/sibi ou www.scribd.com para download da tese de mestrado apresentada em setembro de 2006 na Faculdade de Arquitetura da USP.

A Questo da Gambiarra - Rodrigo Boufleur

Dentre diversos significados relacionados, o termo gambiarra vem sendo freqentemente

usado de maneira informal para identificar formas de improvisao: adaptaes, adequaes, ajustes, consertos, reparos, encaixes, emendas, remendos, inventos inteiros, engenhocas, geringonas. A despeito das depreciaes que se costumam atribuir a alguns destes tipos de procedimentos em muitos casos com compreensvel razo, na qualidade de precrio, feio, desleixado, malandro, o termo gambiarra recebe tambm conotaes positivas. Acompanhando um momento de mudana na maneira como alguns pensadores e a prpria populao brasileira tm enxergado sua cultura e identidade 1, o termo gambiarra tem sido remetido idia do pronunciado jeitinho brasileiro 2, numa viso que busca enfatizar em seu prprio povo, uma propenso ao esprito criativo, capacidade inventiva e inovadora, inteligncia e dinmica da cultura popular3; levando em considerao a conjuntura de adversidades e vicissitudes s quais todos ns (muitos evidentemente mais) estamos expostos; entendendo-a como uma prtica que se aproxima de conceitos como reutilizao / reciclagem e bricolagem 4. Independentemente de questes vernaculares, o termo gambiarra usado por muitos para definir qualquer procedimento necessrio para a constituio de um artefato ou objeto utilitrio improvisado. Neste sentido, por se tratar de um fenmeno da cultura material, a gambiarra pode ser compreendida como uma forma alternativa de design isso, se considerarmos que o conceito de design no se define pela simples questo esttica, nem pelo dito estilismo, mas pelo ato de idealizar ou constituir objetos; conceber forma, funo e significado. Apesar de serem idias semelhantes na essncia, a atividade de design - principalmente no mbito industrial, envolve contextos diferentes, como a tecnologia empregada, os mtodos, a infra-estrutura envolvida (fbrica, pessoas, equipamentos, matria-prima, etc), o processo industrial, seus propsitos polticos e alguns objetivos corporativos como, por exemplo, para quem, por que, e para qu se produz. Esta relao com o design, nos leva a compreender a gambiarra como um paradigma paralelo, o qual surge a partir dos limites e dos impactos proporcionados pelo modelo industrial de produo e consumo. Se anteriormente ao advento da indstria no existia o que entendemos por design, neste mesmo sentido, a partir da estrutura que o processo de industrializao proporciona, que outras maneiras de desenvolver artefatos surgem tambm. No entanto, h uma diferena fundamental: Ao invs de ter como base a matria-prima bruta, nestas prticas alternativas os artefatos so constitudos por meio da transformao ou reconfigurao de outros artefatos industriais pr-existentes, e no com o objetivo de serem comercializados ou simplesmente na forma de arte, mas, sobretudo, para serem efetivamente utilizados por quem os elabora. O surgimento de alguns termos como design alternativo, design espontneo, design popular, design no-cannico, design no-profissional, design vernacular, design artesanal, prdesign, tecnologia apropriada 5, entre outros, revelam a existncia de uma lacuna para classificar formas de produo, que no se enquadram precisamente na tradicional dicotomia artesanal / industrial. Frente aos rumos que o uso do termo gambiarra tem tomado, gostaramos de tentar propor uma definio, a partir de quem o considera sob a tica da cultura material. Gambiarra uma forma heterclita de desenvolver uma soluo funcional / aplicada. Ou seja, um processo
Vide a crescente importncia de obras como FREYRE (1933) e HOLANDA (1936), e exemplos contemporneos como RIBEIRO (1995), MATTA (1984) e MAGALHES (1985). 2 BARBOSA (1992). 3 A capacidade de inveno, para mim, cada vez se torna mais clara ser o grande atributo do homem brasileiro. MAGALHES, Alosio. E Triunfo? A questo dos bens culturais no Brasil. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1997, p. 178. 4 LEVI-STRAUSS (1966:38) 5 Vide estudos que citam estas termologias, ou idias semelhantes em BARDI, 1994; BORGES, 1999; BONSIEPE, 1983; MAGALHES, 1985; MALDONADO [1976], 1991; PACEY, 1992; PAPANEK, 1971; SANTOS, 2003; RUDOFSKY, 1987; STAIRS, 2002; WHITELEY, 1993
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baseado no raciocnio projetivo imediato, elaborado a partir de uma necessidade particular ou algum recurso material disponvel - os quais proporcionam a constituio de um artefato de maneira improvisada. Seja porque uma determinada pea do ventilador quebrou e precisa de conserto imediato ou porque muito mais fcil dar um jeitinho do que procurar alguma loja que venda um esquisito parafuso; seja porque no se fabrica mais a maaneta da porta de um carro antigo ou porque no h dinheiro para comprar uma vassoura; seja porque o apagador de lousa no se enquadra nas propores da mo nem no jeito de manipul-lo, ou porque no existe uma cadeira de rodas que se adapte s condies atmosfricas e de relevo em que se vive; seja porque no se encontra uma mochila com caractersticas que correspondam maneira de viver de um indivduo, muitas vezes somos convidados a partir para a busca de uma soluo no convencional. Uma das condies que parecem motivar estes tipos de soluo a existncia das necessidades especficas ou inslitas. Deste momento em diante, segue o uso de algum recurso ou material disponvel (veja bem, no necessariamente adequado) e vale ento o raciocnio inventivo e a capacidade criativa para se obter os mais variados resultados. Enfim, as gambiarras esto sempre relacionadas a um contexto peculiar, uma conjuntura de situaes que no se repetem de forma padronizada, nem costumam ser previsveis. natural, assim, encontrarmos diversos exemplos de objetos que so transformados, pequenas adaptaes que so feitas para melhor adequar a funo de um produto, artefatos que so criados a partir de resduos de outros, ajustes, consertos, remendos improvisados dentro das condies cabveis naquele instante. possvel que tenhamos passado desatentos at aqui, mas sob o olhar de um assunto muito comentado atualmente, entender e aprimorar a prtica da gambiarra pode significar uma real contribuio para nosso desenvolvimento sustentvel. Um dos maiores problemas da atualidade o destino dos resduos slidos. Existem de fato diversas alternativas sugeridas, alm de outras j implementadas, como a reciclagem em massa de uma parcela mais incidente do lixo. No entanto, estamos ainda distantes de uma soluo efetiva, e novas proposies para esta problemtica so sempre bem-vindas. Existe um verdadeiro nicho no lixo. Ao considerarmos tudo que pelas mais variadas razes descartado, podemos identificar uma determinada gama de materiais e objetos variados. No comum, mas todos devem concordar que possvel encontrar elementos, como por exemplo, um tubo de televiso queimado, uma bola de boliche mal fabricada, um mostrurio ultrapassado de celulares, uma roda de bicicleta desmontada, uma vitrola e seu disco de vinil, uma fita de videocassete, ou uma bacia giratria de mquina de lavar roupa que estragou. Para uma sociedade que prioriza ndices de porcentagem, trata-se de algo desprezvel ou de importncia nula diante do volume e incidncia de alguns resduos como as garrafas PET, latas de alumnio, embalagens de leite, folhas de papel, mas, ao reunir objetos que se enquadrem nessa caracterstica, temos uma quantidade razovel de raridades. Alm da impressionante diversidade, estes objetos revelam uma grande riqueza, no somente pelas suas caractersticas particulares e sua qualidade material, mas pelas suas composies e formas sugestivas. o que poderamos chamar de lixo rico. Como j de conhecimento geral, nem tudo pode ser reciclado, e mesmo quando possvel, nem sempre a reciclagem se revela a melhor alternativa. Diante destas condies, h um questionamento que se pode apresentar: No seriam possveis outros destinos, diferentes da reciclagem convencional, das usinas de incinerao, do ferro-velho ou dos aterros sanitrios? Por exemplo: enxerg-los como matria-prima instantnea para desenvolver novos artefatos, s vezes com a ajuda de alguns clipes, vergalhes, tocos de madeira, canos de PVC, parafusos, telas, placas de plstico, chicletes, guardanapos, barbantes, fita crepe, pasta de dente, trapos de pano, fios eltricos, elementos pr-fabricados (materiais pr-industrializados) ou quaisquer outras peas e objetos em geral. E mais: No caberia justamente atividade do design, a justa adequao destes recursos, visto seus aspectos simblicos, alm de sua re-elaborao quanto questo forma/funo? E

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estes recursos materiais poderiam significar muito mais do que algumas peas de arte, ou de efeito decorativo. Com design, possvel muito mais que isso. Curioso que paralelamente questo do lixo rico, todos ns por sermos seres individuais e variados possumos caractersticas muito particulares ou raras, as quais, possivelmente em algum momento, demandam diferenciais nos artefatos que utilizamos. Muitas vezes vemos pessoas marginalizadas pela sua condio singular, como o caso dos portadores de deficincia, das pessoas que possuem medidas incomuns, ou at daqueles que insistem em adotar um hbito de vida diferente da maioria. Como desenvolver produtos em srie para atender essas mais variadas necessidades? Ao menos por esta via, o design teria que ser desenvolvido em condies plenamente no-industriais, preferencialmente livre de objetivos predominantemente mercadolgicos. Talvez essa relao disponibilidade / demanda (recursos materiais disponveis / necessidades especficas) pressuponha a existncia de uma espcie de projeto idiossincrtico, pois seria interessante que a produo dos artefatos tambm respondesse particularidade destas duas realidades. Isso sugere que uma forma de produo industrial, o modelo tradicional para desenvolver artefatos atravs do design (algumas referncias: PEVSNER [1936], 1995; DORFLES [1978], 1991; LBACH [1976], 2001; HESKETT, 1980), deixa lacunas, no sendo capaz de suprir todas as necessidades materiais existentes. A esse contexto, o que se procede a estruturao de um novo paradigma no desenvolvimento de artefatos, uma forma ps-industrial de produo. Ao aproximar os termos design e gambiarra, curioso o aparente contraste e a forma diametralmente oposta, de como ambos so alvos de freqentes interpretaes negativas. Enquanto a gambiarra vista como uma prtica inferior, pauprie, indigna, e constantemente citada como algo precrio, feio, desleixado, ordinrio, o design muitas vezes tido como uma manifestao de puro materialismo, luxo, ostentao, opulncia, sendo refutado por muitos por ser considerado puro make up - algo ftil, suprfluo e dispensvel. Em outras palavras, a velha dualidade luxo e lixo. A difuso da idia de aproximar gambiarra e design pode qui, colaborar com a derrocada de alguns mitos; a quebra de alguns paradigmas insustentveis; um passo para se repensar alguns preconceitos quanto recuperao, recauchutagem, ao reaproveitamento, restaurao, reutilizao, ao uso de artefatos improvisados, reparados, recuperados. A questo da gambiarra nos indica a urgncia em revermos nossos modelos de produo e consumo; indica a necessidade de desenvolvermos um design orientado a uma conjuntura de situaes peculiares, nicas, singulares; orientado ao indivduo e suas necessidades especficas; orientado utilizao e ao aproveitamento de recursos materiais incomuns, aos quais no se pode aplicar uma metodologia serial; orientado ao re-design, reciclagem do design dos artefatos pr-existentes; orientado ao resgate da criatividade e superioridade de esprito do ser humano frente tecnofilia ou hi-tecnocentrismo das mquinas e supercomputadores, os quais, apesar de benficos, tm muitas vezes comprometido a funo do ser humano dentro do prprio mundo abstrato que construiu; orientado diversidade, variedade, harmonia de diferentes contextos, tolerncia, co-existncia de solues; orientado independncia tecnolgica, condio interdisciplinar, ao constante experimentalismo, ao carter indefinido; orientado por um contexto econmico mais prximo ao modelo do terceiro setor, ao universo das organizaes no governamentais, onde a ampliao de mercados, o crescimento econmico, o aumento do lucro no so os objetivos principais de uma instituio; orientado ao futuro. Rodrigo Boufleur boufleur@usp.br rboufleur@gmail.com

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O Jeitinho Brasileiro de fazer gambiarra. Foto: Marcelo Eduardo Leite

Improviso na construo civil. Foto: Rodrigo Boufleur

Soluo improvisada para zper defeituoso. Foto: Rodrigo Boufleur

Adaptao para necessidade especfica: Tenda mvel para conserto de chaves. Foto: Rodrigo Boufleur

Exemplo de Lixo Rico: Filtro de Ar Automotivo. Foto: Rodrigo Boufleur

Artefatos criados a partir de outros pr-existentes. Foto: Rodrigo Boufleur

Porta-cachorro. Foto: Cristina Marmelo

Artefato para gravar aves. De: Daniel DeGranville. Foto: Tietta Pivatto

Gambiarra Anti-furto. Foto: Rodrigo Boufleur