Datsi'a'uwẽdzé - Vir a ser e não ser gente no Brasil Central - versão corrigida - arquivo mais leve
Datsi'a'uwẽdzé - Vir a ser e não ser gente no Brasil Central - versão corrigida - arquivo mais leve
Datsi'a'uwẽdzé - Vir a ser e não ser gente no Brasil Central - versão corrigida - arquivo mais leve
Datsi'a'uwdz ViraserenosergentenoBrasilCentral
Orientadora:ProfessoraDoutoraBeatrizPerroneMoiss VERSOCORRIGIDA
SantoAndr 2011 1
Resumo EstetrabalhopartedeumapesquisaetnogrficajuntoaopovoA'uwXavantefalantede umalngua dotroncolingsticoMacroJ,habitandohojeregiesdolestedoestadodoMato Grosso(Brasil)comviagensrealizadasentreosanos2008e2010. A partir dos dados obtidos em campo e do debate com a produo etnogrfica e antropolgica sobre os A'uwXavante em particular e sobre os povos amerndios em geral, considerando tambm outras contribuies tericas, abordo as concepes a'uwxavante de gente e pessoa em seus mais variados aspectos, buscando compreender o processo de sua contnuaconstituio. Tomoaexperinciadacapturadoetngrafopelossujeitospesquisacomobaseparaesta compreenso ainda que seja apenas uma parte do todo que aqui apresento. Capturado, o etngrafo adquire uma potncia de tornarse gente, atravs de sua predao, familiarizao e magnificao. Com isso, abordo questes que dizem respeito ao parentesco, ao paraparentesco (como as metades agmicas e as classes de idade), aos rituais, relao transformista entre humanidadeenohumanidade,constituiopolticadapessoaeaoscargoscosmopolticos. Palavraschave:pessoa,captura,aparentamento,paraparentesco,magnificao,etnografia Abstract ThisworkisbasedonanethnographicresearchamongsttheA'uwXavantepeoplewho speakalanguageoftheMacroJlinguistictrunk,nowinhabitingareasofeasternMatoGrosso (Brazil)conductedbetweentheyears2008and2010. Fromdataobtainedinthefieldandindiscussionwithethnographicandanthropological productionabouttheA'uwXavanteinparticularandtheAmerindiansingeneral,alsoconsidering other theoretical contributions, I address the a'uwxavante conceptions of humanity and personhoodintheirmanyaspects,seekingtounderstandtheprocessofitsongoingconstitution. Itaketheexperienceoftheethnographerbeingcapturedbythesubjectsofresearchasa basisforthatcomprehensionalthoughitisonlyapartofthewholepresentedhere.Captured, theethnographeracquiresapotencyofbecominghumanthroughthepredation,familiarisationand magnification. With that, I address issues concerning kinship, parakinship (such as agamic moietiesandageclasses),rituals,thetransformistrelationbetweenhumanityandnonhumanity,the politicalconstitutionoftheselfandcosmpoliticaloffices. Keewords:person,capture,akining,parakinship,magnification,ethnography 2
Agradecimentos
CAPES,pelaBolsadeDoutorado,oferecendocondiesdededicaopesquisa. FAPESP,queatravs doProjetodePesquisaTemticaRedes Amerndias,gerao e transformaonasterrasbaixassulamericanas,desenvolvidojuntoaoNcleodeHistriaIndgena edoIndigenismodaUSP,deusuporteminhapesquisadecampo. AssociaoXavanteWar,quemeabriuasportasdeummundoqueeusconhecia atravsdoslivros. UniversidadedeSoPauloeaoProgramadePsGraduaoemAntropologiaSocial,que me propciaram esta experincia acadmica, de aprendizado e produo de conhecimento num campotoridoquantoaetnologiaamerndia. AoNcleodeHistriaIndgenaedoIndigenismo(NHII)etodososseuspesquisadores, professores,colegasesecretrio(ocordialFrankNabeta),comquempudeparticipardedebates, discusses,leituras,pesquisaseproduocoletivadesaberesarespeitodospovosamerndios,uma readoconhecimentotolouvadanoscircuitosespecializadoseaomesmotempotonegligenciada pelopblico,quedesconheceaquelesqueummitofundadordabrasilidadedizcomporemumde seustrspilares.Queestetrabalhosejadignodomomentodemudanapeloqualpassaoncleo, emsuatransformaoemalgomaior,oCentrodeEstudosAmerndios(CEstA). Atodososamigosquefiznesteprocesso,quecontriburamdealgummodocomaminha pessoa,emtodosessesanosdeUSPeduranteodoutorado.UmcumprimentoespecialAnaYano, Andr Drago, Daniel Andrade, Fernando Vianna, Joana Cabral de Oliveira, Lusa Valentini e RenatoSoares,quemeajudaramemquestesderedaoeemmomentosdifceisdatese.Um abraoatodososmeusdemaisamigos,alheiosaomundoacadmicosougratosuapacinciaem aturarminhasausncias,ocupadoemmeuinterminveltrabalhoantropolgico.Umespecialpara RosenayMello,quemeajudoucomapreparaodasfotografiasdatese. minhaorientadoraBeatrizPerroneMoiss,semprepaciente,aquemdevograndedosede minhasrefernciaseconsideraestericas,eaosprofessoreseamigosMarcosLannaeGabriel Barbosa, que participaram de minha banca de qualificao e com quem pude dialogar. s professorasMartaAmoroso,queincentivoumoraleintelectualmenteminhashiptesesdetrabalho, eSylviaCaiubyNovaes,emcujaauladegraduaoouvipelaprimeiravezsobreocontrasteda relaoentreosTupieosJarespeitodeseusantroplogos:osprimeirosenfatizandooscomo cunhadoseossegundoscomofilhosadotivos. 3
minhafamlia,meuspaiseminhaesposaFhoutineMarie,quesempremeapoiarameme ajudaram a seguir este caminho to pouco rentvel em termos financeiros. Tambm minha pequenaafilhada,HalinaOkazakiStavale,quesecontentoucomminhasintermitentesvisitasentre umaviagemeoutra. spessoasquemereceberameajudaramduranteminhasviagensdecampo,especialmente afamliadeAdilaBrittodeLimaparentesquedescobriefiznesteprocessoeaamigaCarolina Sobreiroeseupai,OSombra. UmagradecimentofundamentalatodoopovoA'uwXavante,comquemtenhoaprendidoa sergentemesmo. Em memria de meu sogro Paulo Srgio da Silva Souto, meu av adotivo Jos Pedro Tsere'ri'r,meubisavantropolgicoDavidMayburyLewisemeucolegaLusFernandoPereira, pessoas a quemsougratoem vrios sentidos,e quepartiram enquantoeu iae vinhaentre as passagenseparagensdestapesquisa. DedicoestetrabalhoaocoletivoAtivismoABCeCasadaLagartixaPretaMalaguea Salerosa,comquemtentocolaborarnainvenooudescobertadeummundooutro.Esperoque estapesquisatenhaalgoaacrescentarnestajornada.
Alertaaoleitor Acreditoquetodaexperinciaremeteraalgoanterioraela.Osprincpiosquesetomam comoconstitutivosdarealidadesobalizasdealgoquespodeserrecuperadoretroativamente. Assim,aexperinciadopassado(mesmoexperinciasdeprediodofuturo)esfazsentido enquantoalgoaserpassadoadiante.TalconcepononovaeseaproximadeWalterBenjamin em ONarrador, nosentidodequeaexperinciasvvidasefortransmitida.Poisaviagem etnogrfica e seutrabalhopodemvircomorespostaaoqueBenjaminjulgouserapobreza da experinciamoderna.Eaetnografia,umamaneiradecapturaraexperincianumaredeque,apesar de sempre deixar algo escapar, tambm apreende muita coisa, como disse Mauss sobre as antropologias. A seu modo, os A'uwXavante parecem saber disso. Como me falou uma vez Tseredzar(arespeitodequemoleitorconhecerumpouconaspginasaseguir),oantroplogo temdeexperimentartudo,casocontrrioterumamexperincia. comointuitodetransmitirestaexperinciaqueotextoquelhesapresentoaseguirsegue percursostotortuosos.porumanecessidademaiorqueadoestiloquealterno,naescrita,a descrioeareflexo;ocampoemtrabalho(departo,deconstruo)eotrabalhoterico;osmitos easatitudes;afilosofiaa'uwxavanteencorporadaemseumododevida,aformacomosoulevado avivlaeasfilosofiasdeminhasoutrasvidasquandoestoulongedeles.Estafrmula,ummtodo umtantoselvagem,procuraassemelharseminhaprpriaexperinciadecampo,maneiracomo vivoereflitoduranteotrabalho,queumtrabalhotantodiscursivoquantoritual.Experinciaque sfazsentidojustamenteporserafetadapelosmodosa'uwxavante:suamaneiradeandarpelas trilhasdoserrado(oumesmopelacidade)desgarrandoseereagrupandoseempontosdeencontro menosoumaisdifusosouaproveitandopistaseoportunidadesquesurgemdesurpresa,seumodode alongarsenasfalasduranteasreuniesnoptiodaaldeiaondepodemparlarsimultaneamenteem conversasparalelas,ojeitocomopessoasentramesaemdejogosouritosfrancesaoumesmo dascasasunsdosoutrosetantasoutrassituaes. Noforamrarasasvezesemque,emmeioaumadanacoletiva,eutentavaaomesmo tempodecoraraletra,emularatcnicadocorpo,adaptarmeaoritmodacano,manterumalista mentaldostpicosenotasquelevariaaocadernodecampoe,aindaporcima,arriscarmeem filosofar comigo mesmo. Enquanto jogava vlei ou futebol com os A'uwXavante, s vezes correndoatrsdeduasbolas(poraquelesquenovemtantagraaemjogarcomumabolas), tentavanofazermfiguraarespeitodeminhasdesajeitadashabilidadeseaindaassimentenderas 5
regrasdojogo,osjogosdecorpoejogosverbais.Emmeioaisso,muitasvezesencontravame refletindosobrecomometratavam. Todasessasalternnciasentreagirerefletirsobreaao,ouentrepensarcomocorpoe tomaratitudescomamente,projetamseemmeutexto.Assim,alertoaoleitorparaquenotropece nosdegrausdemudanasrepentinasentreplanosdescritivoereflexivo,equenoescorregueem momentosmaislisosdefusoentreosdois,numvaledereentrnciasecorrentesfluidas. Eparaqueconfienacontinuidadedosfiosdameadaquesocosturadosentreidasevindas notecidotextual,entregandosesemmedodeseperder. Refletindosobreesteprocessoapartirdeummtodoumpoucomenosselvagem,acredito que, mesmo no sendo um novelista policial, o trabalho do etngrafo envolve lidar com a apresentao dos dados de maneira indiciria, abdutora: mostrando os rumos e pistas de sua descoberta,matriasprimasdesuainvenoeassimrevelandosuaslimitaes.Possibilitandoque oleitorsigaestastrilhaseparticipeparcialmentedestasdescobertaseinvenes,ouquetrilheas pistasdemododesviantedaquelequeotextotrilha.Deixandoqueoleitortomedotextoalgo daquelaexperinciaaoacompanharseuprocessolaboratorial,conhecendoevidnciasdashipteses aventadas.Paraquepossainclusivecontarahistriaaseumodo.Afinal,comojdiziaLviStrauss, contarumahistriasemprerecontlae,emalgumamedida,contradizla.Algodequenemo etngrafoescapa. Poroutrolado,osdadospodemsertofartosquantoaspeas,trecosecacarecosdeuma oficinadebricolagem,quemuitasvezesdoformaaalgoqueaparentementenoestaval.como amontagemdeumjogodearmarcujoresultadofrutomaisdeumretroprojetodoquedeum projeto.Afarturadedadosresultanumasobra,cujoprocessodedescartetoconstitutivoda pesquisa,daescritaedashiptesesquantoaquiloquenojogadofora. RecordomedeumaauladoProfessorKabenguelMunanga,naqualestemencionouum ditado africando que dizia: s vezes, o caador sai de casa prometendo um elefante, mas s conseguevoltartrazendoummacaco.Asvicissitudesdotrabalhoetnogrfico,emseusdiversos estgios(observaoparticipante,cadernodecampoeescritaetnogrfica),envolvemtodotipode perdaque,assimcomoaquiloquefoiganho,temtambmseuvalor.Restaesperarqueocaador possaapresentar,emsuapantomimanoregressoaolar,comolheescapouoespalhafatosoelefantee comolhecoubeomacacoperturbadoramentehumanide.
****
6
Apresentao
EstatesetemcomoobjetivoapresentaroquetornarsegenteparaosA'uwXavante. TratasedepovoindgenahabitantedeterritrionolestedoEstadodoMatoGrosso(Brasil) oque,paraeles,nosemsentido:tornarsegenteestdiretamenteligadoaolugareecologia. Por convenincia, a partir de um critrio inicialmente lingstico, incluise os A'uw XavantedentreospovosJ,falantesdelnguasdotroncoMacroJ.Seestecritrionodistingue, emsi,ossentidosa'uwxavantedoquevemaserafalaealnguapropriamentehumanas,elepode inclulosnumcampodereflexomaisamplonossobrealnguaeafilosofianativafalada nestaslnguas,mastambmsobreoutrasquestestocantesaestespovos. Quanto ao tornarse gente, abordo diferentes manifestaes, processos e elementos que elucidemotema.Fuiinstigadoaoassuntocombaseemminhaexperinciadecampo,marcadapela formacomoosA'uwXavanteaplicavamounoesteprocessosobremim,numjogodealteraes eassemelhamentos,epelaformacomoeuaceitavaentrarnestejogo.Assim,minhaexperincia como algum em processo de tornarme gente como os A'uwXavante um fio condutor importantedosdiversosenredamentosqueapresentosobreaquesto. Tomoapredaofamiliarizanteeacapturanoesqueseromelhorescrutinadasadiante comofundamentodesteprocessoquereconstituinosapessoadoetngrafocomobaseda contnua constituio da pessoa a'uwxavante, incluindo seus aspectos mais coletivos. Resumidamente,tratoesteprocessocomoumvetorquesemovenoeixodeumpndulo(parausar umafiguradasmaisbsicasdasqueapresentonatese),entreasemelhanaeadiferena,oconflito eapacificao,opodereocontrapoder(noesqueserofundamentadasaolongodosprximos captulos). Odebatesobretemaspolticos,porassimdizer,nofortuito:aconstituiodapessoaest intimamenterelacionadaquestodopoder. Estapessoalidadepolticaque,operandoconformeoprocessodetornarsegente,temofora desicomoelementoconstitutivo.Notoa,portanto,queoetngrafo,enquantoestrangeiroque setornagente,participederelaeseassumaposiesdefinitivasdolugaroudonolugardo poderparaosA'uwXavante.Oqueincluicargoseencargosrituaisepolticos.Passandopor relaescomafonteoriginaleexteriordeumpoderquetocsmicoquantopoltico,tomgico quantoritual,tosimblicoquantoecolgico. Defendo tambm um dilogo da filosofia nativa a'uwxavante com antropologias e 7
filosofiasnonecessariamenteindgenasparatratardoproblemacosmopolticodarelaoentre multiplicidade,dualidadeeunidade.Estedilogorecuperaaaproximaoentresimbolismoecorpo, magiaeparentesco,ddivaeantropofagia,emaranhadosnaconstituiodotecidocoletivo.Poiso processodetornarsegentemanifestasenumaredevitalqueincluiasmaisvariadaspessoas ndiosebrancos,humanosesuperhumanos,antepassadoseanimais,vivosemortos,jovense velhos, homens e mulheres etc. e que opera cortes to gentis quanto violentos, demarcando transiesepermanncias,passagensefases,estadosquetendeminstabilidade.Esteprocesso podesertratadocomoumacadeiaalimentar,intimamenteligadaaoparentesco(dasrelaesnos entreafinsmasentreconsangneos)eaaoparaparentesco(sobretudonarelaoentreclassesde idade).Queseconectaa(eseconfundecom)umacadeiadereaesetransformaesmaisampla, fazendoedesfazendovnculosemsuamutanterelaocomafontedepoder. Afilosofiaeaprticaa'uwxavanteforamabordadasapartirdealgunstermosquederam balizaaotexto,comodahiba(corpo,pessoa,vidaetc.)edahibauptabi(corpomesmo,almaetc.), a'uw (gente,ndioetc.)e a'uw uptabi (gentemesmo).Comisso,possveldiscorrernos sobreoparentescomastambmsobreoparaparentescocomoelementofundamentaldoprocessode gentificao(otornarsegente). Diversosdadosdecampo,elementosnovosnaetnografiaa'uwxavante,soapresentados comopistasquecorroboramtaisconclusesenosaquelesreferentesexperinciapessoal doetngrafo.Anoserqueporexperinciapessoalcompreendasetudoaquiloqueapessoa capazdecapturardeoutraspessoas,cederparaoutraspessoas,todasassuasrelaes.Tomamse assimosdadoscomoddivasqueincluemleiturasdeoutrasetnografias,observaesfactuais diversas,narrativas,usosdepalavrasetermos,usosdeadornoseobjetos,comportamentosdesdeos maisverbalizadosatosmaisgestuais,indciosdeestadosdeespritocomosquaisoetngrafo tececonjecturas,conjecturasquesoarriscadastambmapartirdepistasetimolgicas.Combase nessesdados,apresentoproblemasarespeitodaterminologiadoparentescopropostospornovos elementosetnogrficos,procuroresolverantigascharadasdaetnografiaa'uwxavantecomoado abandono do ritual de nominao feminina e o quase sumio do suposto terceiro cl entre as metades exogmicas , fao apontamentos para uma resposta questo do perspectivismo amaznicopostaaosa'uwxavante,propondotambmumanoodeparentescopotencialatravs docruzamentodediversasevidncias. Suspeitoqueavariedadededadoseelementosquetragoparaadiscussoarespeitodos A'uwXavanteecomosA'uwXavantesejafrutodaquelemtodoalternadoderelao 8
entrereflexoeexperimentaoaoqualaludinoAlertaaoLeitor.Areflexoduranteaparticipao ou a participao reflexiva ajuda o etngrafo a ir atrs de mais dados e mais pistas, intensificandoseutrabalhoevidencial. Enfim,proponhonosconsideraesarespeitodoquevemaserenoserA'uwXavante comotambmarespeitodaquiloemquesetransformaotrabalhoetnogrficoapartirdoinstanteem queoetngrafocapturadopelaredenativa. Coerentementecomdiversosestudossobrepovosamerndios,oprocessodetornarsegente notemfim1.Porque,aqui,nocessadeoscilarentreplosopostos.Taloscilaopareceseroque temgarantidolongavidaaestagente,quevemaserorasemelhante,oraoutra,emrelaossuas prpriasfontesdevitalidadeepoder.Fontesoriginais,passadas,dasquaisadiferenaescapaes quaisremetida. *** Cabeagoraapresentaralgumasquestesdeordemedeorganizaodotextoesuarelao comatese. * Almdaconvenodeseitalicizaremttulosdelivros,escrevoostermosemitlicoquando setratarsomentedelnguaa'uwxavanteoudeexpressesa'uwxavanteemlnguaportuguesa. Porestemotivo,termosemlnguaestrangeira,latinismosetc.noseroescritosemitlico. Somarcadasemitlicoaquelasexpressescujosentidoseria equvoco paraoleitorde lnguaportuguesa(oudoportugusbrasileiro) sedesconsideradoosentidopropriamentea'uw 1NocasodospovosJemparticular,valeaquioquejfoidito,porexemplo,arespeitodosMebengokr:praticam
suaprpriacondioeconstituiocomoumprocesso,umfluxo,algoempermanenteproduoejamaisacabado (Cohn 2008: 5). Em termos mais gerais, considerando asociolgica amerndia como sendo uma fisiolgica (Seeger,DaMattaeViveirosdeCastro1979),suainstabilidadetransformacional(Vilaa2005,Taylor1996)estligada atransformaes corporais(Viveiros deCastro2002a)queseefetivam apartirdaconvivncia,compartilhamento alimentar,transfernciadefluidoscorporais,modificaesdasuperfciedocorpocomomarcas,perfuraes,pintura emesmoroupas(Conklin2000,2001;Fausto2002,2007;Gow1991,2000;Lagrou2000;Rival1998,1999;Vilaa 2005,2007,dentreoutros).Levoemcontaquetaistransformaesenvolvemtcnicasdocorpoeoutrosconhecimentos, com referncias abordadas ao longo da tese. Tais transformaes esto ligadas condio de humanidade a'uw xavante,comoemoutroscasosamerndiosemqueahumanidadeeapersonitude,dadasascircunstncias,relaese perspectivas,podeounoserestendidaaentidadesdiversas,comoanimaiseespritos(Taylor1996e1998,Vivierosde Castro2002).Asespecificidadesdestascondiesparaocasoa'uwxavantesoabordadasaolongodatese.
xavantedadoaostermos.Tambmseromarcadosemitlicoalgunstermosque,noutraspassagens dotexto,aparecemnomarcados,comoclelinhagem,porexemplo,dadoqueorasousados enquantotermosantropolgicos,oraenquantonativoscapturados,semdvida,dovocabulrio antropolgicocomoqualosA'uwXavanteentraramemcontatoapartirdaspesquisasdeDavid MayburyLewis. Esses termos cl, linhagem, descendncia, dentre outros envolvem controvrsias complicadas,abordadasemcadaoportunidadecomoapoiodenoesemlngua nativaedesuafilosofia(que,emgrandemedida,umafilosofiacorporal,queseaplicaaocorpo pessoalecoletivo,quepensaapartirdocorpoequesemanifestapelocorpo).Outrostermoscujos sentidos podem ser disputados como origem, tradio, predao etc. tambm envolvem controvrsiasquenoseresumemtraduoeseroconsideradoscasoacaso.Maisdoqueevit las, apresentar em itlico o uso de termos em portugus pelos nativos visa apontar para a as controvrsias,diferenciandoousoquefazemdostermosdousoqueeueosantroplogosfazemos. Enfim,oitlicousadoemcasosmarcantesdeconfusolingsticaeconceitual(emse tratandodarelaoentrelnguastodistintas),principalmentenostermosdeparentesco,jqueo uso desses termos em portugus pelos A'uwXavante freqente em suas relaes com o etngrafo. precisodizerqueousodostermosemlnguaportuguesapelosA'uwXavanteno conceitualmentepreciso.Nosetratamdecategoriasinequvocas,sendomuitasvezestradues localizadasfeitaspelosprpriosemsuafala.Arefernciaatermosdeparentescoemportugus a'uwxavante, por exemplo, no pode ser considerada em todos os lugares idntica da terminologia de parentesco em lngua a'uwxavante, j que o portugus continua sendo uma segundalnguaeograudefamiliaridadedosA'uwXavantecomelavarivel.Oquesepode sugerirqueousodetermosemportugussejaguiadoporumacertabricolagemcoerentecomos modos a'uwxavante. Imagino que as palavras sofram operaes de aproximao e contgio semelhantesquelasdoaparentamentoa'uwxavantedebatidonatese. Nessesentido,parasefazerementenderpormim,algumasvezesjuntamtermoscriando palavrascompostas: paisogro,filhogenro,tiospais,tiasmesetc.Apesardeindicativosdeuma operaodetraduodifundidaentreosA'uwXavante,essesusossoeventuais.Eventosque remetem,contudo,aumaestrutura,parafalarcomoMarshallSahlins(1990). Algunstermosquejulgocontroversosemdemasia,sejapordiscordaremgrandemedidade suasaplicaesaindaquesejamcorrentesemAntropologia,sejapornotertomadoaindauma posio sobre eles nem escolhido um vis para abordlos (suspendendo, com isso, a crtica), 10
mantenho entre aspas. Tambm mantenho entre aspas os termos citados diretamente de outros autoresouinformantesantesdetornarseuusocorrenteaolongodatese,sejaesteocaso. Ademais,sentenasepalavrasnomarcadasemitlicotambmpodemexpressarmodos a'uwxavante,sendoatditasporeles.Soreduzidasasdefesasdalinguagemqueutilizocontrao contgiopornoesfilosficasdiversas,sobretudonoesa'uwxavante.Porbem,todootexto afetadopelosmodos,pensamentoseprticasdaquelessobrequemdiscorre.Creioqueestecontgio, estamisturaeestatransformaosejamprpriosdaAntropologia,aomenosdaquelaquesefaz aqui.Demodoquealgumaspalavraspoderoapareceroraemitlico,oraentreaspas,orasem marcao,dependendodeseucontextonafraseenoargumento.Estetrnsitodaspalavrasentre diferentesmundosseassemelha,emalgumamedida,aotrnsitodoantroplogoemrelaoaos A'uwXavante:porumlado,comoumtermocondicionadopelasdiferentesposiesquepode assumirnovetorpendularqueconstituiofundamentorelacionala'uwxavantee,poroutrolado, peloefeitodosmodosdoantroplogo(etantodaantropologiaquantodemodosestrangeirosaos a'uwxavante)sobreonativo,ambosemcontnuaretroalimentao. * Tomoporconvenoanotaoparaposiesgenealgicascominiciaisemingls(Fpara pai,Mparame,Sparafilho;Dparafilha;Cparafilho/aindependentedosexo,Wpara esposa,Hparamarido,Bparairmo,Zparairmreferindoseasisterparadiferenciar sedoSdeson).Ascombinaesquesurgemsubentendemogenitivodalnguainglesa:MBSW paraesposadofilhodoirmodame,FFBSSparafilhodofilhodoirmodopaidopaie assimpordiante. Assim,evitasealgumasconfusescomnoesdalnguaportuguesacomoprimoqueno uso cotidiano brasileiro se estende tanto para FBS, MZS, MBS, FZS e outros graus (como tambmdizsenalinguagemcorrente):FFBSS,porexemplo.Todavia,termoscomoesteaparecem aolongodatesedadoseuusopelosA'uwXavante:quandodizemprimo,porexemplo,referemse aalgumparentedoladopaternocomoFBS,FFBSSetc.,dependendotantodagenealogiacomoda convivncia(comosvezesacontecenousobrasileiro),maspoderiamtambmchamarde irmo umapessoanessasmesmasposiesgenealgicas. Com este comentrio antecipase que o parentesco a'uwxavante no se encaixa precisamente num modelo genealgico do qual a conveno notacional qual recorro emblemtica.Aquiadistinoentreparentesverdadeiros(queema'uwxavantepoderiamser chamados de uptabi) e classificatrios discutvel no sentido de que o aparentamento por 11
convivialidade e familiarizao torna a classificao muito mais relacional e mutante do que absoluta, pois fazcom que parentes classificatrios se tornem parentes verdadeiros no s devidoaocontgiodacontigidadecorporalmastambmdependendodocontextooudarelao emjogo.Aindaquecertasconsideraesclssicascomoadoprincpiodaunidadedogrupode germanos (RadcliffeBrown 1952) faam bastante sentido: o princpio da equivalncia entre germanos(sobretudoosdomesmosexoougnero)segundooqualirmosdopai(FBs)sejam tambmpai(F),podeestenderseparamuitosa'uw atravsdaconvivncia.Issoposto,devese reconhecerque,porexemplo,umapessoapodedizerquefulanoirmodebeltrano,enquanto outrapessoapodedizerquefulanoprimodebeltrano,ouamesmapessoapodeenunciarcada umadasrelaesemcontextosdiferentes. Issoacontececomosprpriostermosema'uwxavante,comosever.Oquepodeter comoefeitoquadrosgenealgicosdiscordantes:comomostraVianna,comparandoasdiscrepncias entre genealogias sobre as mesmas pessoas traadas por dois informantes diferentes, cada informante pode justificarse dizendo que as informaes elencadas pelo outro esto erradas (Vianna2001:229).Oqueaconteceporcausadoscurtocircuitosgenealgicoscausadospela adooeporoutrasformasdeaparentamentoporconvvio. * Utilizonestetextoasconvenesfonticasdalnguaa'uwxavante(a'uw mreme)adotas porLachnitt(2004b).AsgrafiasdaspalavrasemA'uwXavanteaquiapresentadasserobaseadas, quandopossvel,naquelasapresentadasporLachnitt(2003,2004a)oudeduzidasapartirdestas obras. A lngua escrita A'uwXavante no tem notao unificada. Notaes diferentes so adotadaspelasobrasdoSIL(SummerInstituteofLinguistics)(ver McLeodeMitchell2003) e tambmportextosoriundosdaterraindgenadePimentelBarbosa(cf.Sereburetalii1998).Por comodidadeeporconvviocomosA'uwXavantequeutilizamamesmanotaopropostapor Lachnitt(eosestudosdosmissionriossalesianos),adotoamesmareferncia. Adiversidadedeescritasnodeixadeserumfatoetnogrfico.Notaseumacongruncia entreessastrsdiferentesescritaseadivisogeogrficadosA'uwXavantepropostaporLopesda Silva(1986[1980])apartirdasdiversashistriasdecontatopacficoentreosA'uwXavanteeos brancos no sculo XX: Aqueles que estabeleceram contatos com os missionrios catlicos (principalmentedasterrasindgenasdeSoMarcoseSangradouro,mastambmdeMariwatsde, cujoshabitantesmigrarampelasoutrasterras),aquelesquepassaramaserelacionarintensamente 12
commissionriosprotestantes(daterradeMarechalRondon,principalmente)eaquelesintitulados tradicionais, sem contato to intenso com religies crists (principalmente os de Pimentel Barbosa)poucasdcadasatrs. Hojeemdia,contudo,asinflunciasmissionriassomaisvariadas.Porexemplo,aaldeia deTsa'otwaw,emrearecentementeintegradaterraindgenadeSangradouro,chamadade crente, ou seja, influenciada por missionrios protestantes. Tive contato com poucas pessoas oriundasdestaaldeia.Estas,porestudaremnaescolaindgenadaaldeiaAbelhinha,pareciamadotar ousodolocalondehabitavamquandoasconheci. * Quantoformadotexto,quatroinformaesnecessrias(oualertascomplementares). Aquelasqualidadesdotextosugeridasnosalertasiniciaisaoleitoracabamresultandoemum usointensivodenotasderodap.Oquenoimpedequeelementosapresentadosemnotasderoda psejamretomadosnotextoprincipaloudialoguemcomashiptesesprincipais. Outrosdesviostextuaistomamformadedigresses,aolongodotexto,difceisdedemarcar. Tentopontulasporseparaesdentrodossubcaptulosentremeadasporumasteriscooquenem sempre possvel quando o assunto se alonga. Quando as digresses forem mais especficas, demandarem maiorateno outrouxeremdados e elementos novos paraa antropologiaa'uw xavantequeperderiamdestaquenosentremeiosdotexto,serodestacadasdotextoseparandoas entresmbolosdejogodavelha(#)eintituladasparte. O corpo da tese entrecortado por algumas poucas figuras, grficos e fotografias cujo posicionamento em meio ao texto e noem anexo tem a inteno deilustrlo e tambm complementloapartirdeimpressesspossveisatravsdaimagem. Enfim,oleitorpoderidentificaremalgumaspassagensdotextoalgoprximoaofluxode conscincia(expressonolineardospensamentoscomosemanifestamparaoprprioautor)ou aosolilquio(expressodospensamentoseimpressesdeumpersonagemparaumaaudincia) 2. Entretanto,sehnissoqualquercarterdeintrospeco,elasaconteceapartirdeumaanterior exospeco,porassimdizer.Enfatizoque,longedetomaraescritaapartirdeumaperspectiva individualista(oqueseriaaprisionaroconhecimentoentreomisticismoeoceticismo),creioqueo
2 A este respeito, ver Humphrey (1976) e Auerbach (1976). Tratase, aqui, de um movimento semelhante ao da literatura moderna em que convergem [p]aisagem exterior e interior, encontro entre pessoas e seu ''fluxo de conscincia'' (Bezerra Teixeira 2003: 34). A diferena que aqui a constituio se d atravs de uma pesquisa etnogrficasoborigordomtodoparticipativo,doregistroemcadernodecampo,dereflexestericasantropolgicas eumdilogocomsujeitosapesquisa.
13
fluxodotextotalcomoseapresentaemalgumaspassagenssejaumaconjunodaexperincia etnogrficaparticipanteedaproduoantropolgicanummesmoprocesso,tomandotalprocesso comoelementodaanlise.Porque,nele,aconstruodapessoadoantroplogopelosnativosde umasociedadeindgenabrasileira3umdadocientficoimportante.Spossofalar(eescrever) comopersonagemdapesquisaqueempreendojustamenteporquetantoconstituorelaesqueso meuobjetodepesquisaquantosouconstitudoporelas.Maisdoqueumfocoemmimmesmo,o foconasrelaesemquemeenvolvoequemeenvolvem,bemcomonasreflexesqueelas suscitam.atravsdarelao,doenvolvimentoedocontgioquepossoconhecerooutro,que possoconhecergente:istosegundopressupostosepistemolgicosnosmeusmas,sobretudo,dos prpriosA'uwXavante,comopretendomostrar.Talenvolvimentocontagia,ento,otextomesmo, eoexcessocrescente(ouarepentinaescassez)dedigresses,refernciasealternnciasprocura expressararelaoentrecaoseordemestabelecidapelosprpriossujeitospesquisa.
****
3 Parafraseando texto antolgico da etnologia brasileira, fundamental para a pesquisa que se empreende aqui: A construodapessoanassociedadesindgenasbrasileiras(Seeger,DaMattaeViveirosdeCastro1979).
14
1CapturandooProblema
Odilemadocativo Aoterminaromestrado,tinhaalgumadvidasobremasplanossuficientesparadar prosseguimentoaotrabalhocomumapesquisadecampo.Minhadissertaodedicouseleiturade etnografias sobre os AuwXavante por uma chave maussiana4; abrangendo um conjunto de circuitosdeddivas(casas,nomes,ornamentos,alimentosetc.)epessoas;cogitandohiptesessobre uma imagem axiomtica do padro relacional auwxavante entre hierarquia e insubmisso, concentrismoediametralismo,tempoeespao,tradioepredao.5Hiptesesquepediamumaida acampo,parareterritorializartaisproposies,conferirsetudosepassavacomosepensavaquese passavaou,forosamente,criarnovosproblemasperanteosantigos. Talvezporisso,fazendocontatosparaofuturo,diantedaiminentedefesadadissertaoem meados de 2006, ao mandar convites eletrnicos para conhecidos, amigos e parentes, acabei
4 SobretudoapartirdosensaiosdeMarcelMausssobreaddivaesobreanoodepessoaepessoamoral(Mauss2003 [1950]), conectandoos no sentido de que coisas e pessoas (e corpos, espritos etc.) se misturam e se constituem mutuamente, atravs de suas circulaes e vnculos. Sendo a ddiva considerada tanto nos seus movimentos temporalmentedistintosdodar,recebereretribuir,tantoquantoapartirdeseusparadoxosconstitutivos:voluntariedade eobrigao,interesseedesinteresse,amizadeeantagonismo,junoeseparao.Recuperandoesseselementoscomo baseparaotratamentodenoesaetnologiaamerndia,comoarelaoentrepessoas,corpos,nomes,prerrogativas rituais,comensalidadeetc.,addivatambmtomadacomoinspiraoparasetratardeoutrosmovimentos,comoa predao,otomar,operder,ovingar. 5 Comoaproveitamentodasnoesdecrculosdereciprocidadeeenglobamentodocontrrio,apartirdeobrasde MarshallSahlins,EduardoViveirosdeCastroeTimIngold,propusumesquemahipotticodetrscrculosconcntricos ointerior,omedialeoexterior,noabsolutosmasrelativosapessoasmoraisdadas,considerandorelaesde parentesco(sobretudoentre sogro, genro e cunhados estesdiferidosentrequemdequemtoma esposa);relaes sciopolticas (relaes de solidariedade e antagonismo entre classes de idade organizadas num circuito de reciprocidade);erelaesentrecls(duasmetadesexogmicasconcebidascomoclseumterceiroclcuja caractersticaexogmicaedefiliaoametadeeraduvidosasegundoosdadosbibliogrficos)esistemasrituais(odo Danhono,ligadosclassesdeidade,eodoWai'aouDarini,ligadoaquisiodepoderesxamnicos).Assim,haveria uma relao de antagonismo e aquisio competitiva entre pessoas singulares ou coletivas situadas nas posies adjacenteseumarelaodesolidariedade(aindaquehierarquizada)entrepessoassituadasemposiesalternas.Um movimentodepredaoontolgicaquesetradicionalizaapartirdaassimilaopelointerioresuaredistribuioparao medial.
15
incluindonalistaoendereodeemaildaAssociaoWar6.Umaassociaoindgenaauw xavantecomquemeuhaviapoucosanosentraraemcontatovisandotrabalhodecampoemterra indgenaparaomestrado,oqueacabounotendoprosseguimentoporumasriedemotivos.Pude, comisso, fazerumaleituradiferente,apartirdeumvisespecfico,revelandonasetnografias existentessobreosA'uwXavanterelaesquenotranspareciamemcadatextoisoladamente. Porm,devidoaestefoco,nopudeengajarmenumapesquisaparticipante. Entretanto, para Hiprdi Toptiro7, presidente da associao War poca, isto no agradava. Sua mensagem eletrnica de resposta foi um protesto enrgico, em poucas palavras, contra minha empreitada. Como era possvel uma pesquisa sobre seu povo sem a presena do pesquisador?ExplicloaHpardifoimaisdifcildoqueparaantroplogosentusiastasdotrabalho decampo.Porqueelebuscavanoumaexplicao,masumaaceitaoporminhapartedeumafalta cometida. Umafalta,comopercebidesuareao,comimplicaestomoraisquantoepistemolgicas, pois pareceume, para ele, ter criado uma distncia equivalente ao distanciamento presente na relaosujeito/objeto.Opesquisadorcomosujeitoeoseupovocomoobjeto.Masmaisdoqueisso, umadistnciaqueimpossibilitavaoconvvioeoafeto8entreaspessoasenvolvidasnarelao.Sem misturaentreaspartes,semqueaescritadeumsemisturassecomaparticipaodooutroeno outro,alteraonecessriaparaoreconhecimentodaalteridadeemjogo.Umaparticipaoque,no
6 AAssociaoWarorgulhaseemserumainstituioregularmenteconstitudapelopovoA'uwXavantedaaldeia Idz'uhu,quesignificaAbelhinha,localizadanaTerraIndgenaSangradouronoMatoGrosso,Brasil.Somosuma entidadesemfinslucrativoscriadaem1997,subordinadaaumrgodeliberativo,aassembliatradicionalA'uw Xavante,queaconteceno War,pteocentraldaaldeia.Anossaentidadetemcomomissoapreservaodo R,o mundoXavante,querepresentaaomesmotempoocerradoeacultura.http://wara.nativeweb.org/associacao.html. 7 HiprditambmfezcursosdeAntropologianaUniversidadedeSoPauloduranteumcertoperodo(nochegandoa se graduar), onde conheceu o antroplogo Fernando Vianna, que reconhece em seu trabalho (2001 e 2008) a importnciadeHipridicomoagentepolticonocenrioindigenistanacionaledocontatoentreosA'uwXavanteeo mundowaradzu,omundodosbrancos. 8TomoanoodeafetocomodesenvolvidaporFavretSaada(2005[1990])eexploradaporGoldman(2005).Quando oserafetadotornasetambmumsertomado,notaseque,aosertomadapelocircuitodabruxaria,assumindo papisrituaisquepossibilitaramqueeladialogasseeproduzisseoprpriofatoetnogrficojuntocomossujeitos pesquisa,FavretSaadatornouseumdadofundamentaldamesmapesquisa(Reinhardt2006:144149).Talsituao refleteseaqui,nosentidodequefuitomadopelosA'uwXavante.Estesertomado,comotododadoconcreto, aconteceemmeioarelaesdiversasdaquelasexperimentadasporFavretSaadanoBocageFrancs.Aqui,sorelaes depredaoeaparentamentonosamerndiascomoa'uwxavantes.
16
caso auwxavante9, parece ter a ver com a prpria participao dos corpos, das pessoas, da convivncia,dacomensalidade,davida. Umapesquisanopresencial,enfim,seriamuitopoucohumana. Mais tarde euencontraria indcios entre os AuwXavante de que,para conhecer, para conheceralgum,precisoenvolvimento:emsualngua,tsiwaihu,palavratraduzidapordiversos auwxavante como amigo, constituise pela raiz waihu, do verbo traduzido como saber, conhecer(waihuu)quecomoadjetivotraduzseporciente10epelaparticulatsi,reflexiva numarelaoentreoquenossagramticachamadesujeitoeobjetodoverboeindicando primeiraouterceirapessoadosingular. Conhecer gente, conhecer pessoas, parece envolver alguma reciprocidade, um reconhecimento. Seria necessrio, em meu trabalho, que nos entreconhecssemos11. Um conhecimentoquenoenvolvesomenteacirculaodesaberentreosenvolvidos,mastambma participaoeamistura,imbricadaemddivasquepodemtomardiversasformas. Nobastaconhecer,temdeajudar,dissemeemtomdedesafioumA'uwXavantea caminhodaprimeiracorridadetoradaqualeuparticiparia(verimagemdacorridaabaixo).
17
Ajudar,prestarumservio,entregarsedealgumaforma,nospresentear:apresentarse. Umadasformasmaiscomunsdosauwxavantelidarempessoalmentecomnondioscomquem temumarelaocontinuadaedequembuscamauxliotratandoosporamigos,comomuitas vezeseuescutariaobservandosuaatitudeesuarefernciaaoutrosbrancos.Sobreisto,Fernando Vianna(2001e2008)jhavianotadoqueaamizademostrasecomoumamaneiraauwxavante derelacionarsecomosbrancosparaalmdamerainimizade(subentendidapelastensesda alteridade), marcando um dos dois plos atitudinais que se alternam constantemente no comportamentorelacionala'uwxavante,conformelheensinaraAracyLopesdaSilva,segundo ele. Istoposto,devoltaameuinciodeconversacomHpridi,comopossvelreparaoecomo agradecimentoaosAuwXavantepelapesquisaqueeufizerasemconsultlos,propusaeleum encontronoqualeulhedariaumacpiademinhadissertao.Propostaaceitadebomgrado,jno maisatravs demensagenseletrnicasmasviatelefonemas.Elemedisse,eeuconcordei, que pessoalmentenosentenderamosmelhor.Entretanto,Hiprdiestavaprestesaretornarsuaterra natal,deondeeventualmentepartiriaparamaisviagens,enossoencontroaguardariamesesatque elevoltasseaSoPaulo. Enfim, Hiprdi pde ler minha dissertao em cpia eletrnica que lhe enviara pela Internet,masadiminuiodadesconfianadependeriadeumcontatopessoal,corporal,nocomeo de2008,numencontroedepoisnumjantaremcompanhiadeseusamigos.Umdeles,umprofessor degeografianondioaquemHipa(comotambmconhecido)chamavade tio,eaquemfez questodepagarumbomlanche,horasantesdojantar,afirmandoquedeveriacuidarbemdeseu tio. Nesseencontroounessetrnsito,jquepartedaconversafoiapoudenibusHiprdi pareceumeexcepcionalmenteabertodivergncia,desdequebemargumentada.Aocontarmedas impresses de sua leitura, alm de questionamentos (a respeito da relao entre as metades exogmicasoucls Po'redza'ono e waw eosupostoterceirocl Topdat,negousuadistino enquantocl,associandooacertalinhagem12),Hiprdiidentificouemmeutrabalhoumamaneira sutildeencararoEstadotpicadeumanarquistaeumainspiraodePierreClastresautorqueo mesmo conhecia e apreciava sob o tema da reciprocidade. Tema desenvolvido por mim, entretanto,apartirdeobrasdeMarcelMaussouinfluenciadasporele,nonecessariamenteem
12OproblemadacondiodosTopdatsermelhordesenvolvidoemmomentoespecficonatese.
18
acordocomatesedeClastres(2003[1974])arespeitodolugardachefiaamerndiacomorecusada reciprocidade(entendidacomotroca):ochefeseriaumdoadordebensepalavraseumrecebedor demulheres13.Comosermostradooportunamente,taisproposiesconcernemaosa'uwxavante com algumas nuances, afinadas pela filosofia prtica nativa mas tambm por consideraes maussianas. Arelaoentrechefiaereciprocidadepodecomearaseraventadaapartirdeoutraquesto, implicitamentepresentenoacordoentreosA'uwXavanteeeu:arelaoentre reciprocidadee hierarquia.OencontrocomHiprdiecomaAssociaoWarabriucaminhoparaapesquisade 14 campoemterrasauwxavantesmas,paraisso,eraprecisoqueeuaceitassesuasexignciaseme colocassesuadisposio. Marcamos umencontrosubseqentenacidadedeSoRoque,emcasadeumade suas amigasligadaassociao,MariaLciaCeredaGomide15.Quandooencontrei,eleelogioumeu trajeroupapretatrajedeguerreiro.Omomentonoeradosmenostensos. Duranteaconversamefalaram,dentreoutrascoisas,sobreocarterespecialdanoode auw uptabi (gente verdadeira, gente mesmo): segundo Hipa e seus amigos presentes, ao contrriodoquedizolivrodosmissionriosGiaccariaeHeide(1972),auwuptabinoseriauma designaodetodoopovoAuwXavante,massimdealgumas linhagens,parasaber,temde pesquisaradescendncia,disseele. Enfim,veioapropostadaassociaocomocondioparaminhapesquisa:eudeveriafazer uma viagem inicial de vrios dias, em companhia de alguns deseus membros, durante a qual iramosvisitarasterrasindgenasauwxavantesdePimentelBarbosa,AreeseSoMarcos,alm deSangradouro,deondepartiramos,espalhadasnumavastaextensodolestedoMatoGrosso,
13OproblemadaconceporestritivadetrocaaplicadaporClastres,baseadanumaidiadeequivalncia,foiabordado porLanna(2005),recuperandoconcepesmaussiandasdeddivaquetrazemnuancesnoodereciprocidade.Por outrolado,privilgiosedeveresdelderesehomensimportantesa'uwxavantesparecemsermaisumaquestodegrau (emagnificao)doqueumaquestodeinversoourecusadareciprocidade. 14 Paraumaabordagemdarelaoentrereciprocidadeehierarquiaenvolvendosuperioridadeeinsubmissobem comoinversooualternnciadehierarquiasentreclsemetadesexogmicasa'uwxavante(mastambmentreoutras pessoasmorais,comoclassesdeidade),confiraFalleiros(2005).Alirecuperoreflexespresentesem LviStrauss (1944)eLanna(1996),apontandoparaaassimetriacomoumcomponentedareciprocidade,recuperandopercepesj presentesnaobradeMauss.CreioqueestahierarquiaalternadasereflitanarelaoentreosA'uwXavanteeos brancosenarelaoentreeleseeu,comopretendodefenderaolongodatese. 15 AutoradatesededoutoramentoemGeografiapelaUniversidadedeSoPauloMrnBddiaterritorialidade XavantenoscaminhosdoR(2008).
19
beiradoRiodasMortes16.Umaviagemquetinhaavercomplanosealianaspolticasdaprpria associao,buscandoumamobilizaoquantoaosproblemasrelativosaorio,visadopeloavano hidreltricodesenvolvimentista. Paraviajar,eudeveriacontribuircomumaquantiaemdinheiroquesomavaquaseototalde minharendamensalcomobolsistadedoutorado.Estaquantiaincluiriagastosdetransporte,estadia ealimentaonasaldeias(masnonaestrada).Maistardeeuperceberiaquemesmoarelaocom asaldeiasvisitadasenvolviaddivasparaseusmoradoresnosdeminhapartemastambmdos membrosdaassociao.Etambmdasaldeias,certamente,dandonoscomida(muitoarrozefeijo, sobretudo)elugarparadormir.Pareceumequeaboarecepodependeriatantodecontatosprvios entre os AuwXavante envolvidos quanto da generosidade do contato atual e qui da demonstraodepossibilidadedegenerosidadefutura. Dadaminhainexperincianessetipodetransao,entreinumdilema.Antesdequalquer viagemeuteriadeentregaralgodevaloremtrocadoqueaindaerampromessas.Que,afinal,foram cumpridas.Contudo,naquelemomentoprvio,procureialento,aomenosterico,naantropologia daddiva,emargumentoaseguir. Uma das bases da chamada teoria dos jogos, de Albert W. Tucker o dilema do prisioneiro,formuladoporCaill,damaneiraquesesegue.Doiscmplicesestoincomunicveis, presosporcometeremumcrime,esuasentenadependerdocomportamentodeumperanteo outro. Caso ambos se denunciarem reciprocamente, cada um ser condenado a quatro anos de priso.Seumdenunciarooutromasestenodenunciaraquele,oprimeiroserpostoemliberdade eoltimopermanecerpresoporoitoanos.Casoambosnosedenunciaremreciprocamente,cada umcumprirapenasumanodepena(Caill2002[2000]:5355).Estaltimasoluopareceamais interessanteparaoconjunto(poislhesdarapenasdoisanosdecadeiaaotodo)etambmamais moral:adafidelidade.Poroutrolado,amaisarriscadaindividualmente.Havendoquebrade confiana,umdelesterminarcomapenamaisalta(oitoanos)eotraidorserpostoemliberdade. Emtermosdeutilidadetotalparaambos,umaduplatraioresultarnumresultadototal(quatro maisquatro)igualmentenegativoaodatraiosingular,pormpiordopontodevistadotraidorque seumdelesforfielaooutro. Assim,peloclculoracional,emtermosdemaximizaodautilidadeereduoderiscos, atraioacusatriapoderresultar,individualmente,amelhoralternativa:liberdadeimediata.Mas
16 OsA'uwXavantepossuemhoje,demarcadaspeloEstado,asseguintesterrasindgenasdescontnuasaolongodo leste de Mato Grosso: Sangradouro, So Marcos, Arees e Pimentel Barbosa ao longo do Rio das Mortes, Mariwatsedemaisaonorte,eMarechalRondoneParabubureaolongodoRioCuluene,maisaoeste.
20
isto se e somente se a fidelidade do outro for mais forte: a vantagem de um depender necessariamentedasolidariedadedooutro.Contudo,serigualmenteruimparaautilidadetotal, hajadoistraidoresousomenteum.Eudiria,portanto,queotraidormaisbemsucedidoaqueleque confiaemseuparceiro. Mas,paraalmdautilidade,devesenotarqueadesconfianasobreandoledoparceiro (serqueelevaimetrair?comodisse,atomaiortraidordependedafidelidadealheia)ea efetivaodatraioterocomoresultadoarupturaouimpedimentodaalianaentreosdois.A desconfianaseguidadetraioabalaoudestriaparceria,pormaisquedependadela. Comisso,Cailldenunciaateoriadaaoracionalbaseadanodilemadoprisioneiro como uma teoria da inao coletiva. Nela, a confiana necessria para uma ao conjunta se encontranumbecosemsada,dandoaoatoisoladoumagrandelimitao:seruimnegaraaliana, mais arriscado afirmla. Por falta de certeza se os outros vo entrar no jogo, ningum se interessaporfazerojogo.Ateoriadosjogossemostraassimcomoumateoriadosnojogos (Caill2002:54).Ou,nomximo,umateoriadatrapaanojogo,contandocomaboavontade alheia. Portanto,parajogaromesmojogoeafirmaraaliana,humacondionecessria:ao menosumdosladosdevefazerumaapostanooutroesairjogando.Algumdevecorrerorisco,um gestoincondicionalfrentepossvelatitudefavorvelerecprocadooutro.Aceitarestacondiode quesedeveaceitarooutroincondicionalmenteouseja,aopovoluntriadeobrigarseaooutro, pormaiorquesejaavantagemouoganhoemutilidadevisado,eudiriaoqueCaillchama paradoxalmentedeincondicionalidadecondicionaldaddiva(Caill2002:106138). AoaceitaropedidodaWar,aodaroqueelespediamesperadeumaretribuiofutura umatodentreosdaclssicatradedar,recebereretribuirdeMausseuapostaranaaliana,na relao.E,quelemomento,aassociaoWartinhasidoanicaassociaoauwxavantequeeu conhecia a retornar positivamente meus pedidos de pesquisa, ou seja, j tinha sado jogando comigo.Aofazersuaproposta,saiujogandonafrente,primeiro,desafioumeparaoseujogo. ParaosAuwXavanteaexposioaoriscotambmseriagrande.Emltimocaso,aceitaa relaodepesquisaeterminadooprocessotodo,eupoderiainventarcoisassobreelesparaos outrosapartirdeminhaetnografia(comoelesmediriamdepoisarespeitodoque,segundoeles, fazemalgunspadresejornalistas).Mas,ameuver(eesperoquenodelestambm)asminhas seriaminvenesnobomsentido:nosentidodequeinventaredescobrirsoomesmoprocesso, comodiriaWagner(1981). 21
Entretanto,fuilevadoacrer,depoisdetudo,queomeudilemadoprisioneirodeviaser,na verdade,umdilemadocativo.Eucomocativo,osAuwXavantecomocaptores. Ouvinaaldeia,muitotempodepois,queeracomumentreeles,sobretudonasguerrasdo passado,fazerprisioneiros,principalmentecrianas,aquemadotavamecriavamcomofilhos.Eque esteerameucaso,adotadoquefuipela famlia17 deAdoToptiro, pai mama18 deHipa,da metadeexogmicapatrilinearPo'redzaonoedona,dentreoutrasposseseprerrogativasmgicase rituais,doimportantecargocerimonial Pahriwa,conformemedisseAdo(que,nafotografia abaixo,aparecefazendochocalhos).
A palavra usada por eles neste caso, a respeito de mim e da natureza desta adoo, danhimidzama19,oqueoutrosmedisseramequeAdoadmitiracomdiscrioecertarelutncia, dado talvez o carter depreciativo que ela encerra. Segundo o dicionrio salesiano, referese a animaldomstico,escravo,submisso(Lachnitt2003:42).
17Evitoporenquantodiscutiranoonativadefamlia,masvaledizerqueelestambmusamestetermoalmdo termolinhagem. 18Conformeanotaocorrenteemantropologiadoparentesco,mama(meupaiouseupai,termorelativodogenrico damama) referesesposiesdeF,FBetc.Arelaoentreostermosdeparentescoa'uwxavanteesuasnotaes genealgicasserapresentadaemcaptulosobreoaparentamento. 19 Muitas vezes pronunciada danhimiyama com o y como um misto de vogal (i) e consoante (j), um abrandamentodapronnciadodz(prximaaosomdez)comumnafalaa'uwxavanteesemprecomnasalizao eacentonaslabafinal:masoacomometc.
22
Tenteiaveriguarcomalgumaspessoasseamesmapalavravaliaparaumacriananascida auwxavante e adotada por outro auwxavante, e a palavra que me foi dada para isto foi danhimipredu.Esta,almdapartculadepessoagenricadaumacrianaadotadapormim, primeirapessoadosingular,serianhimipreduformadapornhimi(transformaodetsimi), quetemsentidodeprpriodesi,feitoporsiepredu,quequerdizermaduro,crescido (talvezfeito,comodizemosemportugushomemfeito).Ouseja,parecequererdizeralgo prximodoquedizemoscomfilhodecriao,quefoicrescidoeamadurecidopelapessoaqueo adotou.Nessesentido,quempegaparacriaro'mad''wa,oquecuida,oquevigia,termo importantenasociologiapolticaa'uwxavante,comosever. Jdanhimidzamasecompepelasmesmaspartculasqueapalavraanterior,mastemaraiz dzama, que segundo o mesmo dicionrio quer dizer tambm, igualmente, com e seguir, acompanhar,imitar(2003:25).Portanto,nhimidzamaparecequererdizeralgocomoaqueleque mesegue,quemeacompanha,quemeimita,quememimetizaouaquelequefizmeuseguidor, meuacompanhante,meuimitador,meumimetizador. Arespeitodammeseparaosamerndios,pelomenosdesdeTaussig(1993)concebesenela uma potencial inverso de hierarquias: a faculdade de copiar, imitar, criar modelos, explorar diferenas,entregarseetornarseOutro.Amagiadamimesisestnoatodedesenharecopiara qualidadeeopoderdooriginal,atalpontoquearepresentaopodeatmesmoassumiraquela qualidadeepoder(TaussigapudNovaes2008:458459traduodaautora).Imitasequemtem poderecomissoseadquirepoder.DeWalterBenjamin,Taussigrecuperaaidiadammesecomo cpiaematerialidadesensriae,deJamesFrazer,adeimitaoecontgiomgico,demodoque ammeseimplicatantocpiaquantoconexosubstancial,replicaovisualetransferncia material (Taussig1991).Noodecontgioquenoestdistantedanoomaussianademagia, comolembraCaiubyNovaes(2008). Umaressalva,contudo,sobrearelaoentrecpiaeoriginalapartirdeumaidiade imitaoerepresentaosugeridapelotrechocitadodeTaussig.Comosermostrado,paraos A'uwXavante,oqueoriginalmenteseufoicapturadodoexterior.Jnohmais,apartirdesta ontologia cujos indcios noessencialistas20 sero apresentados ao longo da tese, como fixar o autnticoemdetrimentodaimitao.Nofazsentido,portanto,trataraimitaocomosecundria emrelaoaalgoprimrio:elatooumaisprimria.Ooriginal,porsuavez,tooumais
20Paraumadiscussoemetnologiaamerndiasobreaparaconsistnciaeonoessencialismoquepossibilitamrelaes deterceiroincludoentrediversas antinomias dopensamentoocidental,comocopoemente(oucorpoealma), verdadeiroefalso,senhoreescravoetc.,confiraUgoMaiaAndrade(2007).
23
secundrio,tooumaisoutro:nosetratadeumpontofixo.Dessemodo,imitar,aqui,nosignifica reproduzir identicamenteesimcontagiarse,adquiriralgodooutroatravsdeumaapropriao plsticaquenodeixadeenvolverrecriaes.Setomarmosanoodeoriginal,contudo,apartir deumaconcepomaisprximadadosa'uwxavantecomoanterioreexteriorpoderse argumentartantocontraquantoafavordaorigem,namedidaqueelestambmseaproximamese distanciamdaorigem(nosentidoquedoaelaemseusmitos),umaorigemqueestsempremais alm.Nadamaisoriginalmentea'uwxavante,portanto,doqueconstituirseapartirdoqueoutro. Nesse sentido, a mimese como contgio parece ser uma opo menos essencialista e mais transformista. AmimesepensadanosentidodeentregarseetornarseOutroquecontagiarsepelo outroremeteaumaquestochavedo datsiwaihu (amigo,entreconhecerse),queo que Caiuby Novaes chama de conhecimento direto/pessoal, reconhecena (2008: 465), aquele entreconhecersesobreoqualsediscorriaacima.RecuperandoTaussigapartirdeumaetnologia amerndiaatual,MorimdeLimacomparaammeseaoexperimentaraperspectivaeopontode vistadooutro,agirsobreeleeincorporlo(2009:195196).Levandoemcontaque,paraMauss, aimitaoestligadadiretamenteaohabitus,aoatotradicionaleficaz,stcnicasdocorpo(Mauss 2003:401424),entoapoderarsedaperspectivadooutro,agindosobreeleeincorporandoo,seria umaprendizadooucapturadastcnicas(docorpo)dooutro,dosmodosdooutro,deseusaber fazer. Dessemodo,talveznosejaestranhoaosa'uwxavantequeaquelequeseguepossaumdia tambmserseguido,equeaquelequeimitapossaadquiriralgumtipodecontrolesobreosimitados. Oqueaumentaaindamaisoriscodeseaceitarooutro:aoinventarsobreeles,oantroplogo poderiatalvezapoderarsedelesoudoquedeles,doquelhesdsabereosvinculaaopoder. Quantohierarquiaenvolvidanestasrelaesdemmeseereconhecena,tendocolhido algumasevidnciaslingsticaseetimolgicas,tomoascomoindciosparasugerirqueadiferena entre a particula tsi (em tsiwaihu) e a partcula tsimi (em sua forma nhimi, em nhimidzama) estnamarcao dehierarquia,aprimeirasem marcao(partcula reflexiva), a segunda com marcao (partcula possessiva). Seria sugestivo considerar a possibilidade, se enquanto tsiwaihu apontasse para uma reciprocidade a princpio no hierarquizada, nhimidzamadenotasseumahierarquiaarespeitodequemimitaequemimitado.Entretanto, noseriamasrecprocasverdadeiras?Ou,poroutrolado,essesmorfemasnadainformariamsobre hierarquia? 24
Indciosparaodesenvolvimentoetimolgicodestaquestoaparecemnagramticasalesiana da lngua auwxavante (Lachnitt 2004b). A aquelas partculas tsi e tsimi aparecem caraterizadascomoprefixosinternos,comojvistodepassagem,comosseguintessignificados paracadaumadelas:tsiindicatransitividadeeaorealizadasobresimesmo,reflexividade(de si para si), e tambm tornarse a si mesmo, por exemplo: tsi'a'uw tornarse xavante, datsi'a'uwalgumtornarsegente;jasvriastransformaesdetsimi(nhim,nhib, nhip,tsim,tsib,tsip,nhimi)indicampossealienvel,algoprpriodoagente,sejatambm feitoourealizadopelapessoamarcadanoprefixo,porexemplo:wanhimhanossochefe,o chefefeitoporns(Lachnitt2004b:37ambososexemplosaparecemnomesmotrecho). MayburyLewis (1984 [1967]) traduzira h'a (sem o prefixo personalizador ) como chefeetambmcomocoruja.Nocasodonomedopssaro,refereseaosomdogritoqueeled (Eidetalii2002:346).OsA'uwxavanteafirmarammequeotermoh'a,devidoaocontato com os missionrios, passou a designar padre, por isso passaram a chamar os chefes de danhimi'h'a,nossoprprioh'a,enoumpadre...Aindaque,aopdaletra,h'aqueiradizer pelebranca,peleclara(h: pele,casca; 'a:branco,claro).Ospadressoreferidostambm comoh'apapa,pelebrancacomprida,emrefernciabatina.Arelaoentreestapelebranca doldereohomembrancoparecesugestiva,aindaqueinsipiente. Enfim, retomando a reflexividade da partcula tsi, tratar o tsiwaihu como um conhecimentoreflexivospodefazersentidoseforumareflexoatravsdooutro,comonumjogo deespelhos,percebendoseapartirdooutro(Novaes1993)eviceversa,entreconhecendose. Alm disso, a traduo de danhimidzama como escravo imprecisa, e no explicita questesarespeitodoqueestariaemjogo,conformeoque,porsensocomum,esperasedeum escravo:trabalhosforados?restrioaoirevir?terumdono? Arefernciaaescravosnasaldeiasa'uwxavanteaparecemuitasvezesnosmitosenas histrias de guerras econtatos narrados porJernimoXavante(ver GiaccariaeHeide1975a e Medeiros1990)semquehajaumdebateconceitualsobreotermo. Chamoatenoparaqueo danhimidzama,comoelementodeumaditaescravidoumcativeirobastantepeculiarseja entendidoapartirdospressupostosdosprpriosa'uwxavante,quesorecuperadosaolongoda tese. Seriaomeucasodiferentedaqueledoscativosdeguerradeoutrora,jquesoualgumcom liberdadedeirevirenofuicapturadonumaguerra?Ounotodiversa,selevarmosemcontaas reflexesdeFausto(2008)sobreamaestriaeaposseparaosindgenasdaschamadasTerrasBaixas 25
Sulamericanas,queenvolveriaummistoparadoxaldecuidadoedescuido? Mesmocomtantaliberdade,osA'uwXavantesempremedizemparavoltaravisitlose estarentreeles,ereclamamquandoficomuitotempolonge.ComomedisseovelhoDuts,meupai ou tio adotivo mama'am (outro pai) e irmomaisvelho dub'rada deAdoTop'tiro, conformeatraduosimultneaparaoportugusdemeuirmomaisvelhoWto:eupodiaviajar, masnodeviairmuitolonge... Emtermosdeservido,aolongodeminhasestadiascomosAuwXavante,muitasvezes sentime sobrecarregado, no s por pedidos de ddivas mercantis (mantimentos e alimentos industrializados,roupas,camisetas,meiesebolasdefutebol,shortsdefutebolpararituais,colares, fumo,dinheiroeatinstrumentosmusicais)comorequisitadoparainmerasatividades,trabalhose atuaes diversas, como buscar lenha no mato ou cantar variada e repetidamente para meus companheiros auwxavantes (sobretudo os da metade exogmica oposta quela em que fui adotado)canesqueeuaprenderadelesousonhara.Dissotudo,aparentementeouimediatamente, norecebiaalgoemtroca,senoosprpriosdadosetnogrficos(seconsideradoscomoddivasdo nativoparaoantroplogoapartirdeumaepistemologiamaussianaavanadaporBrunoReinhardt (2006)).Grandepartedessasatividadesconsistiamjustamenteemaprendereexecutarservios, tarefaseexpressesqueumauwxavantedevessesaberfazer.Comoaprenderpelammesee executarsuasdanaserituais,porexemplo.Oucomoserviraosmaisvelhos. Adotado, eu havia me tornado o irmo mais novo (no de idade menor que a do interlocutorcasosejameuirmoouprimo21)deHiprdiedetodososseusirmos22,emfunode minha idadeinferiordetodososoutros,aquemHipasempredemandouqueeuajudasse de diversasformas,inclusivecomcomprasemantimentosfazendocomoeleouporele.Voltareimais adiantequestodasrelaesentreirmoseparentesauwxavantenoqueconcerneahierarquia deidade.Desdejcabedizerque,nestasituao,oqueosAuwXavanteesperavamdemimera umaespciedesubmissovoluntria23aeles,umaprovadaminhaentregapessoal.ComoHiprdi
21FS,FBSetc. 22Nocasodepluraiscomoeste,quenalnguaportuguesalevamasubsumirnomesmotermotantoomasculinoquanto ofeminino,ostermosdoportugusa'uwxavanteparecemmanteradistinodegnero.Portanto,quandoescrever irmos,porexemplo,estareimereferindoaosdesexoougneroamasculino.Abstenhome,nestetrabalho,da preocupaodedistinguirsexodegnero,relegandoaparaoutromomento. 23 Remeto submisso voluntria bem como a opo voluntria de obrigarse ao outro idia de servido voluntriadeEtiennedeLaBotieemODiscursodaServidoVoluntria,fundamentalparaopensamentodePierre Clastres(confiraediode2008[1982]comcomentriosdesseautor),mascomdiferenasimportantes.LaBotie consideraqueosdeverescomunsdaamizadenoslevammuitasvezesadiminuirnossobemestarpelahonrae
26
medisseratemposdepois,eraprecisoqueeumostrassequenoeramaisumbrancoquerendo brincardendio,comodizumafamosacanotelevisivainfantilnondia.Aquesto,pois,deve serlevadaasrio. Tudoindica,enfim,queeudeveriaentregarmeeserenglobadoporeles,umasubmisso hierarquia,quepodesercaracterizadasenoparaeles,aomenosparamimcomoprximaao sentidodeenglobamentodocontrrio,comosedizapartirdeLouisDumont(1966).Alis,Hipa parecia preocuparse comigo pelo fato de que, segundo me dissera, anarquistas so contra a hierarquia.Nessesentido,suapreocupaopareciateravercomqueeuaprendesseaseguira hierarquiamodaauwxavante,oquetalveznotenhaoexatosentidodanoodehierarquia para o senso comumbrasileirooumesmoparaosensocomumanarquista,quiparaateoria antropolgica. Mas cabejnotaraomenosumindciodereciprocidadenestacondiodeoutro entre outros:oprprioHiprdi,assimcomovriasoutraslideranasauwxavante(comoPauloCsar, ochefedeumadasaldeiasondevivi,queapresentareiadiante)teveexperinciasemelhanteaoque apresentadonofilmeEstratgiaXavante24,conformeaqualhomensauwxavantesomandados, quando crianas, para viver na cidade criados por famlias nondias, freqentando escola e aprendendoavidadosbrancos,paraenfimretornaraldeiacomesteconhecimento,comopoder dasnovasrelaesqueadquiriram.Ouseja,dealgumaformaeletambmforacativadoecriadopor estrangeiros,quasecomoeuestavasendoagora.Eutambmestavaatrsdeconhecimentoenovas relaes.Estastalveztragammealgumpoder,quialgumainflunciaintelectual,talvezcargos acadmicos.Aestratgiaxavanteemulaprocessosdeumapesquisaetnogrficaouapesquisa etnogrficaemulaprocessosdeumaorigemmaisremotaemtica.Masasidadessodiferentes,os mtodos so diferentes alis, o mtodo etnogrfico impese ao etngrafo a partir de uma disciplinabastantepeculiar.Esperopodermostraraolongodoqueseseguequeadisciplinaa'uw xavante,seumododevidaseumtodo,porassimdizertemaexpediorumoaoestrangeiro,ao
vantagemdooutroequeamesmaamizadequefazcomque,numoutromomento,algunscativemseemobedecere daralgumasvantagensaooutro,tornandoosoberano.Quandofaloemsubmissovoluntriaeopovoluntriade obrigarseaooutro,remetoaummomentodeamizadeanterioraopodersoberano. 24DocumentriodirigidoporBelisrioFranaelanadooficialmenteem2007,contandoahistriadeoitomeninosda aldeiadePimentelBarbosa(TerraIndgenaPimentelBarbosa,MT)queforamviveremRibeiroPreto(SP),adotados porfamliasnondias,retornandoanosdepoisparaaaldeia.Histriasdecrianaseadolescentesquesaemdoconvvio dos A'uwXavante indo viver com seres extraaldeos, retornando depois, tambm pode ser encontrada em sua mitologiacomo,porexemplo,nahistriadoroubodofogodaona,emqueumgarotocuidadopelaona,dequemele fogetrazendoosA'uwXavantepararoubla,comosermostrado.
27
outro, ao diferente, como elemento constitutivo. Se isso tambm faz parte da constituio do antroplogoenquantoprofissional,otrabalhodecampoeosseusanfitriespemparaelequestes enquantopessoa.NotenhocomodiscorrerarespeitodasimpressesdestesA'uwXavantesobre esteprocessoouassoluesquederamedoaosdilemaspessoaisquedelesurgem.Mas,em termosmaisabstratos,umainversodehierarquiaspareceoperar,aorelacionarmosaestratgia xavanteeaestratgiaetnogrfica.InversoquetemavercomarelaoentreosA'uwXavantee osWaradzu,apredaocontraoEstadoeaddivadoEstado. Trocandoemmidos,nossasituaoenquantopesquisadoresdaalteridadenoidntica, elaafetada emcadacasopelasconcepesarespeitodehospitalidade,proximidade,famlia, corpo, poder e tantas outras, das quais discorro ao longo da tese (muito mais a respeito das concepesA'uwXavantedoquedasWaradzu,aomenosmaisexplicitamenteeforadasnotasde rodaps).Entretanto,seguehavendoumasimetria:ambassoentregasaoestranho,aoestrangeiro. * Como exposto acima, minha pesquisa de campo teve incio antes de minha entrada no programa de doutoramento e antes das viagens s terras auwxavante, a partir dos contatos primeirosparaacertosdaviagemdecampo.Minhasviagensaterrasindgenaseapermannciaem aldeiasauwxavantesderamseentrejulhoesetembrode2008,durantepartedefevereirode 2009,entrenovembroedezembrode2009,entreabrilejunhode2010edurantepartedesetembro de2010.Antesdeestabelecermeesempreretornaraduasaldeiasespecficas,conheciasterras indgenasdeSangradouro,SoMarcos,AreesePimentelBarbosanaturnemconjuntocoma associaoauwxavanteWar. A primeira aldeia em que residi ligada associao War: Abelhinha, na terra de Sangradouro. Aldeia dotada de mais ou menos uma novena de casas e umas setenta pessoas incluindo crianas (nmero varivel devido constante desabitao, reabitao, destruio e construodealgumascasas;egraasmudanaecirculaocontnuadealgumaspessoas).L morei(oraemminhabarracadeacampamento,oranumacasaemconstruoaolado)junto casadeBaticaeAdoToptiroque,almdeserempaiemedeHipa25,soavs26deTseredzar,
25Etambmmeuspaisadotivos. 26Ostermosterparentescoa'uwxavanteteroumadiscussomaisdetalhadaoportunamente,maspodeseantecipar queostermosquetraduzemporaveavomesmoparaoladomaternoepaterno(FF,FM,MF,MM,FFB,FMZ, MFB,MFZetc.):da'radaquepodesertambmtraduzidocomoprimeiro,quechegouprimeiro.Asrelaesentre ocasaldevelhosmencionadoseHipa,tantoquantosuarelaocomTseredzar,consideradauptabi,enfticomuitas vezestraduzidocomoverdadeiro,masquenodeveserpensadoemtermosessencialistasesimrelacionais. Pai
28
atualpresidentedaassociaoWar,epaisousogrosdamaioriadosadultosdaaldeia.Comminha participaonaclassedeidadedospadrinhosoupatronosdosadolescentes,oudanhohuiwa(oque sermelhorexplicadoadiante)27,maistardefoiconstrudanaaldeiaumaCasadosAdolescentes, Humdoselementosimportantesdasrelaeserituaisqueeuentendiapesquisar.Talexperincia (deconstruodo H)referesediretamenteposioeatitudesqueseprojetavamemmim.A Abelhinha um lugar onde, apesar das dificuldades e malentendidos tpicas dos primeiros contatos, fui bem recebido e onde prezo estar, uma aldeia beira de um rio transparente de cabeceira,circundadaporcerradoematasgaleriasdecoresridasevibrantes,decasassombreadas por mangueiras vastas, no to comuns nas dezenas de aldeias a'uwxavante que visitei (das centenasquedevemexistir28),oqueajudouatornaraestadiaaprazvel.Enfim,umlugardehonra efora,constitudoporverdadeirosA'uwXavante.
uptabi,porexemplo,podesertantoo pai responsvelpelafecundao(ouomaisresponsveldentretodososque tiveramrelaessexuaiscomame)comousadoemrefernciacomparativa:aquelequemaisatualizaestarelaode proximidadeecuidado,dentretodososquepodemserclassificadoscomopai(F,FB,FFBSetc.). 27Antecipoque,noportugusfaladopelosa'uwxavante,apalavrapadrinhotemdoissignificados:referesetantoaos danhohui'wa,quepoderiamsermelhorconcebidoscomopatronosdosadolescentesatravsdascorporaesdeidade,e odanho'rebdzu'wa,escolhidodentreosirmosdame(damamawapt)comoumpai substituto (LopesdaSilva(1986 [1980]:96102)paraosfilhosdeumadesuasirmseque,dentreoutrasfunes,quandojchamadoporumsegundo termo(danhimamat)quemrecebeaadabatsa,carnedadadepresentenoivapelonoivo,oqueremeteaindaque sobcrtica,comoserargumentadoadiantenoodepreodanoiva.Danhohui'wa,almdesertermogenrico paradapredupt(jovemadulto),tambmtermorelativoamembrodequalquerclassedeidadepatronaporpartede membro da classe de idade patrocinada por aquela. Usarei o termo patrono para danhohui'wa a fim de evitar confuses, mas o uso nativo do termo padrinho no deve ser esquecido no que revela o modo como traam associaes(nosempossveisrudosdesentido)comoportugusbrasileiro,quicomanooiberoamericanade padrinho,quenodeixadeestarassociadadepatronoou,melhor,patro(arespeitodisto,verLanna1995sobretudo quantoaoelo,queaparece novnculo com padrinhos e patres, entrea esfera domsticae as esferas alm do domstico).Aassociaocomotermopadrinhoemportugus,enfim,nodeveserabandonada,jquenoso danho'rebdzu'wa mastambmo danhohui'wa umaespciede pai umsubstituto,porassimdizer,sobretudoem termospedaggicos,jqueestetrataosadolescentesporfilhos:umho'wapodeserchamadoporelede'raou'rare, filhinho: porqueo pai deixouo filho no H paracuidarmos dele,ensinar,aidia amesma,dissemeLzaro TserenhmewnaaldeiaBelm. 28Estimodemaneirabastanteaproximada,considerandoquehmaisdeumadezenademilharesdepessoasa'uw xavante.TomandoaAbelhinhaeBelmcomorefernciasprincipaisemtermosdenmerosdehabitanteselevandoem contaasdezenasdealdeiasquevisiteiedequeouvifalar(imaginandoumpadronaquantidadedehabitantesporcasa aoredordos8),podesesugerirumamdiadeumacentenadepessoasporaldeia.Oqueresultariaemmaisdeuma centenadealdeias.
29
Tambmmehospedei,graasaoscontatosfeitosduranteareferidaturn,naaldeiaBelm (terraindgenadePimentelBarbosa),ondehabiteiaposentocontguoenfermariadaaldeia,oraem companhiadeenfermeiros,orasozinho;etambmemsaladaescolaindgenaduranteperodode ressessoescolar.Aldeiarelativamentegrande,compoucomaisdeumavintenadecasas eumas duzentas pessoas incluindo crianas (quantidade varivel como na Abelhinha). Nesta aldeia pernoiteiinumerveisvezesjuntoaosadolescentesno H.Tambmestabelecirelaesformais modaauwxavantecomoutraspessoas(muitoqueridas),melhoresdescritasadiante,bemcomo acabei por aproximarmemais intensamentedeoutro pai adotivo,MrcioTserehitTsere'ri'r, cantor29 daaldeia.EscolhiestaaldeiaporserindependenteosuficienteparaterumaCasados Adolescentesjestabelecidapoca30.Aboareceptividade(incluindoumconvitedocaciquePaulo
29 Estaumadenominaomuitoatual,ligadaaousorecente,porpartedealgunsa'uwxavante,detecnologia musicaloriginadadosbrancos,comoinstrumentos,aparelhoseltricosetc. 30BelmtemumhistricoqueadistinguedaaldeiasededePimentelBarbosa,jquecompostapormigrantesda readeMariwatsedeeseusdescendentes,quecircularamporvriasterrasindgenas.JaaldeiaAbelhinhatemuma dezenadecasasmasseusadolescentessopoucoseparticipavamdosrituaisdaCasadosAdolescentesdeSangradouro, notendoumHacabadonaaldeiaat2010.AjustificativaquemefoidadanaAbelhinhaeraadequealiaindano haviaumaquantidadesuficientedeadolescentes.Ademais,osmoradoresdaAbelhinhaestodiretamenteenvolvidosna polticaenosrituaisdeSangradouro(mesmoquedemaneiramuitasvezesantagnica).Percebiemcampoqueos A'uwXavanteconstroem,hoje,umadiversidadedealdeiaspequenas(svezesdeduascasassomente)efamiliares (comoelesdizem,oquenospodetrazernovosproblemastericosnarelaoentreparentescoealdeia).Demodoque apenasalgumasaldeiasmantmopadrodaaldeiaantiga(verMayburyLewis1984[1967]e LopesdaSilva1983) formada por um grande arco de casas oposto a um espao em que se constroem as Casas dos Adolescentes (alternadamenteprximaaumadaspontasdosemicrculodecasas,conformeametadeagmicaqueaocupa).Muitas dasaldeiastambmpossuempostosdesadee/ouescolasindgenas(normalmentelocalizadosemreaexternaou marginalaldeia).Algumas,detograndesepopulosasqueso,talvezdevidoaoconfinamentoterritorialepresena depadresdeconstruomaisestveis(oqueincluiaalvenaria),tomarampraticamenteaformadecrculosfechados (comoaaldeiadeSangradouro).Estaquestodarelaoentrealdeiasgrandesepequenasfoiextensamentedebatidapor LusRobertodePaula(2007),emestudosobreadinmicascioespaciala'uwxavanteemplanomicro(relaesintra e entre aldeias) e macro (migraes, conflitos e polticas de demarcao de terras indgenas). Hiptese sobre a multiplicaodealdeiasesuarelaocomprojetosdefinanciamentosdogovernofoipostaporGraham(1987).Parao casodaterraindgenadeSangradouro,Vianna(2001)propeaidiademegaaldeia,dadososvnculosrituaisede parentesco entre as diversas aldeias menores entre si e com a aldeia de Sangradouro (onde, inclusive, segundo informaesdecampo,situaseocaciquegeraldaterraindgena),ondesepassamamaioriadosrituaisimportantes. Poroutrolado,devesenotarqueaaldeiadeVoltaGrande(Tsa'twaw)contacommaiorautonomia,aomenosem termosdociclodeclassesdeidadedosritosDanhono,apesardequeseusmembroscirculemporoutrasaldeias:dois jovens'riti'waoriginriosdestaaldeiaestiveramvivendoemdistintosmomentosnaaldeiaAbelhinhaenquantoestive l,umdelessendo'riti'wat,ouseja,ummembrodaclassedeidadeNodz'uquetinhasidorecentementeiniciado(da
30
Csar)foioutromotivoquemefezoptarporBelm.Almdabelezadolocal,comvistaparaa giganteformaorochosade tnho'redza'a31 (aoitohorasapdaaldeia,segundocontam),ele tambmagraciadopelassombrasdiriasdasmangueiras. ValenotarqueaaldeiaBelmmantevedurantemuitotempo(eduranteminhasestadiasl) umgeradormovidoacombustvelfssilqueeraligadoaoanoitecerouemqualqueroutromomento desdequetivessecombustvelgerandoenergiaeltricaparatodasascasasdaaldeia(todasde palha, mas retangulares, o que diminuiria os custos em folhas de indai necessrias para a construoemaisrarashojeemdia)eparaasoutrasconstrues(dealvenaria):postodesade, escola,capela(usadasomenteaosdomingos).Nesteanode2011,segundofuiinformado,passoua receber energia eltrica das redes ligadas ao Estado. J a aldeia Abelhinha no possui energia eltricaesuafaltaerasupridaocasionalmentepelousodeumpequenocaptadorsolarporttilque circulavaentreascasas(amaioriadepalhaecirculares,algumasretangulares,umafeitadetelhado dezinco,outrafeitadealvenariaapenasnasbases,assimcomoaescolaredondadaaldeia),alm deinstrumentosmovidosapilha.DiferentementedaaldeiadeSangradouro,porexemplo,abastecida porumapequenahidreltricadamissosalesiana(Spaolonse2006:26). Aescolhadessasduasaldeiasdeusetambmdevidodistnciageogrfica(aAbelhinha ficaprximasnascentesdoRiodasMorteseBelmficaprximafoz)quemepareciapoder oferecer uma ampliao do escopo etnogrfico para generalizaes e diferenciaes, dada a distnciaentreasaldeiasesuasimbricaesemdiferentesfeixesderelaesentrealdeias,cidadese tiposdea'uw.Apesardasdistncias,ambasasaldeiasmantmvnculosdeparentescoeamizade entresi,oquefacilitouminhaescolhaepermanncia.Daniel,o'am(amigoformalizado32)de Vitrio, motorista daaldeiaAbelhinha,dequemvoltareiafalar,vivenolocalecasadocom Virgnia Ro'opew, irm uptabi de Tiago Tseretsu, cacique da Abelhinha. L tambm viveu (duranteperodoemqueestiveporl)umprimo(damesmametadeexogmica)muitoprximode Tseredzar emtermos de descendncia a'uw uptabi,LzaroTserenhemew.Estes noso os
osufixot,quequerdizernovo),antesportantodosNodz'udaAbelhinhaedeSangradouro.Istotemavercomo histricodiferentedaquelaaldeia,umahomologaomaisrecentedesuaterraindgenacontguaSangradouro.Dizse tambmque,naquelaaldeia,osa'uwxavantesejamcrentes,devidoamissescristsprotestantes,diversamenteda influnciadosmissionrioscatlicosnamaiorpartedaterraindgena.Paraumaabordagemdaprticamissionriaentre osA'uwXavante,confiraMenezes(1984). 31Algotraduzvelcomogargantadepedraelevada.Osnondioslocais,conformemeinformouumA'uwXavante, chamamnadeMorrodaAldeia. 32 TermocunhadoporAracyLopesdaSilva(1986[1980])emcontraposiopolarizaoconceitualentreamigo formaleamigoinformal,comosermelhorexplicadoadiante.
31
nicoscasosdeparentescoprximoentreessasaldeias,tivenotciadeoutros:porexemplo,foi meditoquea me deWto,um filho adotivodeAdoTop'tiro,queviveemSangradouro,teria vivido em Belm e se mudado para Mariwatsde. De fato, no to difcil assim encontrar parentesprximosemqualqueraldeiaA'uwXavante,comoserexplicado. Nessesperodosdeestadianasterrasindgenas,tambmfizvisitaseparticipeidejogose rituais em diferentes aldeias, sobretudo nas aldeiassede ou aldeiasme das referidas terras indgenas: Pimentel Barbosa e, principalmente, Sangradouro. Tive relaes importantes com a aldeia de Sangradouro (onde participei de rituais e corridas e obtive um amo, um amigo formalizado)eumpoucocomadePimentelBarbosa,ondejogueiumapartidadefutebolpelotime deBelm. TambmacompanheiosAuwXavanteemvilasecidades,emmeiossuascomprasque maispareciamcaadas,tiveencontrosfortuitosoupassageiroscomelesprincipalmentenascidades dePrimaveradoLesteeCanarana(enaviladeSerraDourada)etambmcertaaproximaocom alguns AuwXavante de Nova Xavantina, incluindo habitantes de outras terras (Parabubure, Arees,SoMarcos,almdeSangradouroePimentelBarbosa)quefizeramencontrosnestacidade. Apartirda,contatoscomdiversosauwxavanteseestenderamparaalmdeseuterritrioinicial: algumasvisitasemSoPauloesobretudoconversasatravsdaInternetviaprogramaseletrnicos demensageminstantnea. * Minha percepo dos indcios da situao de captura como um problema etnogrfico, contudo, no precisou esperar muito e deuse quando, surpreso, notei durante minha primeira estadiaemterrasauwxavantequeestavasendoincludoemseussistemasdeclassificaode parentescoeclassedeidade,almdenomeadoemsualnguae,maistocante,sendochamadopara danarsuasdanas.33
33Dsecomocertoqueofatodesertransformadoefamiliarizadopelosnativosconstadoanedotrioantropolgico, masraramentetornouseoobjetodapesquisa.Aindaassim,asensaodetersidocapturadopelosA'uwXavantenum processodeassemelhamentoapartirdaparticipaonodeveserconsideradacomoexclusividademinha.Colegas pesquisadores fizeram meno aquestes semelhantes,queenvolvem captura e assemelhamento (Fernandes 2002, 2005) e participao na vida ritual (Spaolonse 2006 e Oliveira 2010) e tero suas referncias recuperadas oportunamente.ObtiverelatodepercepesparecidassobreosA'uwXavanteporpartedenoetnlogos.Umaamiga, CarolinaSobreiro,paraaqualeumediaracontatocomaAldeiaBelm,emseuprimeirodianaaldeiafoilogochamada paraparticipardeumadanaespecialdaclassedeidadedosdanhohui'wa,naqualeutambmtomavaparteenaqualas mulherespodemoudevemparticiparmasraramenteofazem.Dadasuapresenanaroda,vriasoutrasmulheresda mesma classe de idade acorreram dana para ajudla. Segundo ela, o inesperado disso tudo trouxelhe uma
32
Defato,umdemeusprimeiroschoquesculturaisentendendotalchoquecomoofazRoy Wagnerarespeitodatransformaodapessoadoetngrafopelotrabalhodecampo(1981)foi percebermesendoincludocomoparticipantedealgoqueeujulgavaapenasobservarouolhar e ouvir para depois escrever. Aconteceu j em minha primeira noite na aldeia Abelhinha, quandomeconvidaramparadanarnocentrodaaldeiaeaprenderosprimeirospassosdadanaem rodaauwxavante,eatcantarletraemsicaqueeuparcamentemimetizavaenadaentendia.No dia seguinte, crianas vierammeazucrinar(oquesetornariapraxe) beirademinhabarraca cantandoumacanoAdabTeWeimo(algocomolvemanoiva,queeudescobririamuito depoisserumafamosacanodeumcantorpopauwxavante,Fabiano,distribudaemCDs encontrados nas cidades da regio) que eu tambm tentava imitar, gerando uma espcie de pedagogiaporpartedelas,ensinandomeenquantomeatormentavam.Pedagogiaqueapontavapara umamodupla:poucotempodepoisensaieiestamsicanoviolo,emprestadodeoutromoradorda aldeia,paraaadmiraodasmesmascrianas. ComoAnthonySeeger,eutambmestavatendoumaentradamusicalemcampo(Seeger 1980:29)massemningumparadizeraosAuwXavante(comofizeraClaudioVillasBoasaos SuyarespeitodeSeeger)queeuseriamsicoouqueestarialparaestudarsuamsica 34.Oque melevariaacrerqueamsicatem,paraeles,umpapelimportantenestarelaodeapreensode outrem.Ficaaconstataodeumfelizencontroentreminhaexperinciapregressacommsicaea experincia auwxavante, afinal, [a] experincia pessoal por quepassa[o antroplogo] e os dadosquecoletanoestocompletamentedissociados(Seeger1980:25).Eoaparenteatormentar mecomsuasmsicas(bemcomoospedidosconstantesdequeeucantasseparaeles)talveztenha sido,no snessecomeomasaolongodetodaminhaestadiaemterrasauwxavante,uma maneiradelessuportaremcommuitapacinciaopesquisadorquelhesfaziaperguntasdifceise desagradveis, tomando seu tempo e ignorando as mais bvias convenes sociais e perigos naturais(Seeger1980:2526).Masmaisdoqueisso,talvezumamaneiradeanteciparostormentos
surpresaeumaexperinciamstica,conformesuareflexonoantropolgicaquepoderiaserpensadaapartirdoSer afetadodeFavretSaada(2005[1990]).Esteafetoacompanhouumaprontaparticipao:foiimediatamenteincludana classedeidadedospadrinhos.Paralelamente,logoviuse(efoivistapelosdemaisepormim)comofilhaadotivado caciquedaaldeia,includanasclassificaesdeparentescoapartirdaredealdeetransalde. 34 Aindaqueeusejaummsicoamadoreque,talvezporisso,tenhaprestadoatenosquestesmusicaisdeste contatoefinalmentetenhameinteressadoporelementosameuverintrodutriosaosestudosdaetnomusicologiaa'uw xavante.Limitaoqueminhaenodoramo,jqueumadasbasesdaetnomusicologiabrasileirasegundoRafaelde MenezesBastos(2007),aobradeDesidrio Aytai(1985,1999),discorresobreamsicadosA'uwXavante.Ainda assim,naquelemomentoessasnoeramminhasquestesantropolgicasmaisprementes.
33
queeulhescausaria,tomandoafrentenojogo.Afinal,eraeuquemdeveriasereducadosua maneira,enoelesminhaaindaquequisessemmuitoaprendercomigotambm.Peranteo mundoA'uwXavanteseriaeuumacriananomundo(Seeger1980:25).Aindaqueumadulto nomeumundo,comobemnotaraWagnersobreaimportnciadoantroplogocomomediador entremundos nainvenodaculturanativa(1981).Osparadoxos daminhacondio de adultoparaosa'uwxavantetambmseriamimportantesemsuarelaocomigo.Umadultoque, aocontrriodoshomensa'uwxavante,notinhaaorelhafurada. Masquepodialhesensinar muitacoisasobreomundodosbrancos. * Chegariaahoraemqueperceberiaqueparaaprendersobreeleserapreciso,quasesempre, aoinvsdeperguntarenoobterqualquerresposta,obterafirmaeslacnicasouinconsistentes, repetiesdojditonaperguntaoumesmotercomorespostaalgoqueelessupunhamqueeuqueria ouvir,aprendercomoeles(enoscomeles).Aprendervivendo,fazendo,seguindoosprocessos que eles seguem, contagiandome mimeticamente, atuando, apresentandome, numa experincia tanto cognitiva quanto esttica. A este respeito, baseado numa reflexo sobre ontologias e analogiasdosensvelapartirdeleiturasdeLviStrausseViveirosdeCastro,aspalavrasdeUgo Maia Andrade (2007) sobre xamanismo no Oiapoque podem oferecer detalhes a cerca dos princpioslgicosparaconsistentesquenorteiamestapedagogia,baseadaem: [U]mapeculiarexperinciaestticaque,atentandoparaasqualidadessensveis dos entes,apreendeosapartirdatransitividadenohorizontedesua aparescncia que, determinandolheomododeseremeexistirem,ummanifestarsecomoecom,compondo quadroseesquemascognitivosemqueascoisassopredicadastosomenteapartirdetal zonaderelao.Estascosmologiasseriamassim,eaocontrriodasdemaisfundadasna predicaoaprioridosentes,relacionistas(ourelacionalistas)(MaiaAndrade2007:196 grifosdoautor). Dotados (como sugerem evidncias levantadas ao longo da tese) desta epistemologia relacionistaemseuespritoeducativoquesemostrariaumespritodecorpoosAuwXavante surpreenderiamme,aindanasprimeirassemanasdeestadianaAbelhinha,aotornarmeparticipante deumritualensaiadoeencenadoespecialmenteparaolhosestrangeiros,japoneses.
34
*** Acapturadoolhar,daaudioedaaodatradio EraAgostode2008quandotivenotciadequeumgrupodeestudantesjaponeseschegaria aldeiaAbelhinhaparaumaestadiadealgunsdias. Duranteumareunionoturnanowar(ptiocentraldereuniesdaaldeiaauwxavante) congregandohomensadultos(e,devezemquando,mulheresaoredor)RmuloTsereruu,diretor daescoladaaldeiapoca,eumdosfilhosdeAdoToptiroeBatica,estavadizendoscrianase adolescentes especialmente convocados ao war naquela noite para se prepararem para a chegada dos japoneses.Deveriamcoletarmuitalenhaparafogueira(eeutambm),bemcomo ensaiarasdanasecantosqueseriamapresentados. Na noite seguinte, muitas pessoas vieram ao war para ensaiar, danar e cantar, especialmenteosprofessoresdaescola(todosnafaixaetriadosdanhohuiwa)algunsritiwa(da faixaetrialogoabaixodos danhohuiwa),asmeninasemoas,ascrianaseeu.Aumcerto ponto,meninasemoastiveramdeabandonaroensaioeapenasassistir,jqueadanaemquesto seriadocomplexoritualdoWaia,nopermitidosmulheres35. Paraisso,ohomemmaisvelhodaaldeia,AdoToptiro,transmitiuatodosumacanocom aqualtinhasonhado,muitosimpleserepetitivaquetemposdepoiseudescobririaserligada dana datsiwaiwre (tpicado Waia)comdiversasreiteraesetransformaesdosvocalizes hahaiehahaire. Namesmanoiteum ritiwa quejtinhamedadoumacamisetacomemorativadesua aldeianatallocalizadanaTerraIndgenadeSangradouro(VoltaGrande Tsaotwaw,tambm consideradacomoterraindgenaVoltaGrande,contguaaSangradouroe,porisso,tratadascomo umasterraindgena)dissemequeeradocl waw emeperguntouseeuera Po'redzaono (comoAdoeseusfilhosRmulo,Hiprdi...).Amesmaperguntatinhamesidofeitaporalgumas crianaswawnaquelasemana,sugerindoqueeufossePo'redzaono...Eantesdisso,logoquando euretornaraaldeiadepoisdaturnpelasterrasauwxavante,os danhohuiwa AndrGustavo TsudzawereeCamiloDuts,ambos primos entresie Po'redzaono,disseramme:vocvaiser Po'redzaono tambmeupergunteiquando,emeresponderam:agora!.Issoaindaeramuito
35OWai'aouDariniumdoscomplexosrituaisnaspalavrasdeAracyLopesdaSilva(1983)maisimportantes dos A'uwXavante, ligado aquisio de poderes mgicos e xamnicos, e tambm a um poder de agresso e fecundaomasculinos(sobrearelaoentreagressividadeepodersexualnoWai'a,verMayburyLewis1984).
35
novoparamimedemorouparaqueeunotasseestarsendoassociadoaestecl. Nodiaseguintenohouveaulanasescolasindgenasdaaldeia(a quadrada ea redonda, dois prdios margem da aldeia e geridos pela mesma escola municipal hoje chamada Ado Toptiro,empregandosomentefuncionriosauwxavante36).tarde,Rmuloeosprofessores chamaramtodasascrianasdaaldeiaparaserempintadaseadornadasdentrodaescola redonda. Tambmchamaramamimparaisso.Oprocessoeoresultadodapinturademeucorpocausoucerta maravilhaneleseemmim.DisserammequeapinturasereferiaaoWaiaetambmaosritiwa, Senomeengano,estaeraapinturaqueGiaccariaeHeide(1972)bemcomoPoloMller(1976) identificamcomoda'upt37.Todosestavamsendopintadosassim,apesardesuasidadesegneros efetivos.Osprofessores,aomepintarem,tambmdesenharamemmeubraoebarrigaumase outras pintas pretas que indicavam que eu era mais velho que as crianas ali (que, segundo GiaccariaeHeide1976,complementamoda'upttornandoaapinturadodanhohui'wa),apesarde elesprpriosnoestaremusandotaismarcas.Suasdiferenaseidentidadesnoprecisavamserto marcadasquantoasminhas?Camilo,professorcomoAndrGustavo,respondeuminhasperguntas sobreapinturadizendoqueaslinhaspintadasemminhascostas(outalveztodaapintura,nopude entender,provavelmenteestavamfazendoemmimumapinturamaiscompleta)significavamqueeu erapartede[sua]cultura! Sobreosadornos,ensinarammequetodos,atmesmoasmulheres,emalgumasfestas, usamo tsrebdzua atpicagravataauwxavantequecostumaserpresenteadapelos pais (damama)oupelos irmos da me queassumemopapelde pais substitutos(danho'rebdzuwa aquelequefazo tsrebdzua).TiurTsatdzir(oprimeironomefoiescolhidopelo pai,deum
36pocaodiretoreraRmulomas,atualmente,comasreformasereinauguraodaescola,adiretoriapassoupara umamulher,Bernardina'Rnher,tambmfilhadeAdoTop'tiro,logodepoisdefindooseucursodeespecializao psgraduado em Educao Escolar Indgena. Os professores eram em sua maioria danhohui'wa, confirmando prescritivaouperformativamenteemSangradourohiptesedeLuizSilvaLeal(2006),padreemissionriosalesiano, sobreacorrelaofeitapelosA'uwXavante(daTerraIndgenadeSoMarcos)entreseumododetransmissode conhecimentoviaclassesdeidadeeosistemaescolar. 37Braos,troncoeatametadedacoxapintadosdevermelho,calcanharesebatatasdapernapintadosdepretoenas costasas damana'rada, parparalelodetraospretoscomasbaseseostoposserifados,ocupandotodaaextenso verticaldascostas,comoduasletrasismaisculasouo2romano:II.Osignificadodessesnomesobscuro,mas da'upt parece ter alguma relao com da'upte (banho) e da'upto (mancha), sento que t quer dizer novo. J damana'radaformadopordamanaque,conformeimpressesquetiveemcampo,temalgoavercomopnisou comoousexomasculino,enquantoque'radasignificaanterior,primeiro,remetendoaalgumaidiadeorigem(o queremeteriaaoWai'a).
36
ndioamericanoqueconhecera,eonomea'uwfoidadopelame,deumprimodelajfalecido, talvezseu tsrebdzu'wa),um ritiwa,dissemequetinhaumasdezdessasemcasaeAndr Gustavodissemequetinhavriastambm,emeemprestouuma. Os japoneses chegaram na mesma tarde. Descobri depois que eram trs estudantes de medicina da UniversidadedeKeio,Tquio,trazidos porum nikkei (descendentedeimigrantes japoneses)cujo paiprofessordaUniversidadeEstadualdeSoPauloeamigodeHiprdi.Eles promovem este intercmbio anual para estudantes japoneses do sexto ano da graduao em medicinaque,entrevisitasauniversidadesehospitaisbrasileiros,tambmtmcomoparadeiroa aldeiaAbelhinha. Depoisdapintura,Adoveioensinarocantonovamentescrianas,aosprofessoreseaos ritiwa quefariamaapresentao.Outros,inclusiveamaioriados ritiwa,noquiseramser pintadosnemparticipar,especialmentealgumasmoasejovensmulheresqueteriamdedesnudar seuspeitoscomofaziamasmeninasepareciambastanteenvergonhadasdisto. AndrGustavo,respondendoaminhasperguntassobreosquenoqueriamsepintar,disse mequequeriamviveravidadosbrancos.Aindaqueestivessemaliconosco,ajudandonapintura eusandoatcnicaauwxavantedemascarcocosdebabauproduzindoumsucoque,cuspido mo,faziaabasedapintura.Umdelescuspiuosucoemminhasmos,instandomeapintarTiur, lambuzandoasnasmassasdeurucumecarvoepassandoemseucorpo. Nessenterim,aspoucasgarotaspintadasescondiamseuspeitosdasvistasalheiasenquanto adananocomeava. Ocaptulodasroupasauwxavantepoderiaserescritoparte.Jfoianotad o(Giaccariae Heide1972)que,pocaemquepromoviamacaaaosbraosisto,aosbrancos,portanto antes de estabelecerem relaes pacficas com os Waradzu (o que por ora traduzirei como estrangeiros,brancos,nondios),tomavamasroupasdosmortoscomoprovadosucessoda caada. Quem saa nesta caada era chamado de wadzuriwa, o que literalmente quer dizer rasgador,provvelalusocapturaviolentadaroupadosbrancos.Taiscaadaseramempresados ritiwarecminiciados(deorelhajfurada),eassimadmitidosaumaespciedecategoriade guerreirosauxiliadosporseus pais.Aquelequematavaum waradzu tornavase Auwtedewa (traduzvelcomodonodegente38)efaziacomquetodososhomensdaaldeiamudassemdenome. Atualmenteacaaaohomem[branco]substitudapelacaaona(GiaccariaeHeide1972: 235).
38ConformeojmencionadoTiurmedirianaquelasemana, a'uwtede'wa ohomemmaisforte,quenotem medodosanimais,quetemcoragem.
37
ComparandocomosAuwXavantedosdiasdehoje,jemtermosdepazcomosWaradzu, aimpressoquesetemdequesuaetiquetadeexposiocorporalfoiinfluenciadapelamoral waradzu,oucrist,oucatlica(consideradaapresenadosmissionriossalesianosnarea).Some se a isto um formalismo auwxavante ao vestir, como eu pudia observar: shorts pretos ou vermelhos para os rituais, uniformes completos de futebol para treinos e jogos, roupas mais arrumadasparairsaulasmesmoqueaescolaselocalizeapoucasdezenasdemetros,dooutro lado(defora)docircuitodaaldeiaroupascompridasparaotrabalhobraalouagrcola,roupas pretas ou escuras para caar (que tambm rementem guerra) etc. Mulheres vestem predominantementesaiaecamiseta,demaneirabastanteuniformeparaumavestimentaqueno constariadeseusmodosaboriginais. Enfim,aquestodaaparnciaessencialparaosA'uwXavante.Ou,empalavrasmais precisas,umaquestodeaparescncia:ohorizontedemanifestaodosentes,oserenquanto fenmeno(MaiaAndrade2007:197199grifodoautor)39. Depoisdetantapreparao,Rmulomeavisouqueeubrincariacomumdosjaponesesa lutadaforquilha(oquedefatonoocorreu).Estalutaumabrincadeiradecriananaqualdois competidores engancham duas forquilhas uma na outra e, puxando com fora, tentam trazer o adversrioparaseulado,desequilibrandoo,paravencer.EutreineicomAndrGustavo:
38
Talvezgraasatcnicasdocorpoaprendidasemaulasdekungfueutenhavencidocontra eleaprimeirapartida.AndrGustavoquisjogardenovo,demodoquetevesuarevanche,jqueos AuwXavantenosesatisfazemenquantonoconseguemoempate,dissemeRmulo... Enfim,jeradetardequandotodosrumaramparaocentrodaaldeiaafimdequeosritos tivessemlugar. Asdanasdemonstradasforamasseguintes:adanasemicirculardanominaofeminina, datsiwai',naqualsebalanamosbraoscomforaaoladodocorpoegritando,aofimdocanto,o tpicogritoauwxavante(aosouvidosdeumfalantedoportugusbrasileiro,umamisturafontica entretuuuiekuuuw,masnumapronnciaprpalatal40);adanaemcrculodapraba,naqualos danarinosafastamrapidamenteaspernasparaafrenteeparatrs,comfora,porqueassim queosvelhosdisseramparaserfeito;umadanaecantodecuranumasituaorealdecura durariaumanoiteinteira,commuitoesforoesofrimentodosdanarinos,paracurarumapessoa doentetrazendodevoltasuaalmaecomissoaalegriadevoltaparaaaldeia(emborafosseuma simulao,asgarotasnotiverampermissodeparticipar).Enquantoeuassistiadefora,masj pintado,Rmuloenfimchamoumeparaparticipardapartedadanaqueacontecerianofinalda cerimniadecurareal,aonascerdosol,quandohaveriaumamudanadepasso,transformandoo crculodeatoresemumaespiralsemicircularcaminhandorumoaocentro(ondesefariaoburaco doqualsedarialuzaalmaperdidadodoente41),seguindoumafilanaqual,emcadaponta, umoficiantecarregariaumbastodewamar42.
40 Diferente de outra expresso tambm comum (ouvia muito entre os a'uwxavante da aldeia Belm e, em SangradouroenaAbelhinha,maisentreosmaisvelhos)tuuuemqueavogallabialecujosentidobemdiverso. Enquantooprimeirosoacomoumgritoaltodechamadoealegria,osegundoumainterjeiodetomjocosousada normalmentecontraalgumquefoidesafiadoouquesofreuumataquesurpresaldicoemsituaesinformais,em trocasdeofensasverbaisoumesmoemjogos(comoludodetabuleiro),perdendoalgoparaalgum(devidoobrigao geraldesedaroquepedido,desergeneroso,sobretudoconformeahierarquiadeidadeeparentesco,dandooquese temmo),oumesmorecebendoumpresenteinesperadodealgum.Porexemplo,umavezpassandopelaestradade terradecarro,saindodaAbelhinha,paramosparainterceptaroutroa'uwxavantequecolhiafrutinhas,gabirobas, beiradocaminhoealgumdeulheumtuuuenquantotodosdocarropediamlheoqueeletinhacolhido.Naaldeiade Sangradouro,tambmestandoeupassageirodeumcarro,encontramosummeuirmomaisvelhoqueveiofalarnose deilheumcolardemissangasdepresente,oquefoireplicadoporumtuuuudeoutroocupantedocarro.Quemsai jogandosaiganhando,mesmoqueestejaperdendoalgo,eotuuuamarcadissosobreaquelequeentroubemno jogo. 41DadoobtidoemtextodeBartolomeuGiaccaria(1990,2000)sobreodatsiwaiwre,queoautorcaracterizacomo cerimniadecuraexamanismocoletivoa'uwxavante.ConfiradescriomaisdetalhadaporPoloMller(1976). 42'WamarumarvoremitooriginalparaosA'uwXavante.Bastesdestamadeiraforamusados,segundohistria
39
Depois dessas danas, alguns meninos pequenos apresentaram o Oi, luta ritual de bordunas feitas de grossas e toscas razes, que acontece todo ano durante a estao chuvosa principalmente(entreaproximadamentesetembroeabril),mastambmaolongodotempoemque osmeninosvosendopreparados,desdecedo,parao Oi final,queculminaemsuaentradana CasadosAdolescentes.Ospaisensinamseusfilhosestaprticaemcasaeascrianasmenores,em situaesinformais,simulamnacomoseumdosbraosfosseaborduna.Depoisdaapresentao infantil,doisdosjaponesesforamchamados,umporvez,parajogaralutadaforquilha,enfrentando respectivamente os professores Camilo e Andr Gustavo, que obviamente venceram ambas as partidas.Mostravam,assim,maisvitalidadeeforaqueaquelesqueestavamltambmdevido suacapacidadededemonstrarforavitalouqueestavamagorapondoprovatalcapacidade. Oqueenfimteveseutempo:comofinaldestesrituaisencenados,novosritostomaram aquele lugar. Os Japoneses apresentaram seus presentes, entre eles um saco com dezenas de camisetas plo brancas desenhadas com uma logomarca qualquer. O cacique da aldeia, Tiago Tseretsu(genro deAdoToptiro)recebeuospresentesefezaredistribuiodascamisetaspara aquelesqueparticiparamdosrituaisetambmparaalgunsdaplateia,principalmentemulheres,j queoshomensquenotomarampartenasdanasficaramemcasa(comopraxe,eudescobriria: quemnoparticipanopodeaparecerpublicamente).Tiurmedisseparapegarumaparamim,mas eurecuseidizendoqueosjaponesesqueriamdarsparaosAuwxavanteenoparamim.Ele pareceuumpoucozangadoedesapontadocomminhaatitude.AndrGustavoentomedissequea gravatinhaqueeletinhameemprestadoeraparaserminha.Eunotariadepoisqueosestudantes japonesestambmteriamrecebidogravatinhasdepresente,novas(nousadascomoasqueme deram),provavelmentefeitasespecialmenteparaeles,osconvidadosdehonradodia. A distribuiodepresentes continuoudentrodaescola quadrada,ondematerialescolar ofertadoporcrianasjaponesas,segundoosintercambistas,foidadoscrianasauwxavante, bemcomoorigamieaviesdepapelfeitosnolocalpelosestudantesdemedicina.Ascrianase algunsjovensauwxavanteusaramomaterialdoado(sobretudolpisdecor)paradesenharcenas tradicionais:casasredondascomfogareirosnocentrodecadauma,caadas,algunsanimaisna mataepessoasusandopinturascaracteristicamenteauwxavante.Euentreinadanaedesenhei
que ouvi noutro momento e noutra aldeia, para criar as mulheres. Desta madeira feito um p especial para a pacificaodeconflitosdentrodaaldeia.Amesmausadaparasetersonhosdivinatrios.Apalavratambmquer dizercruz,eacruzodesenhodacruzosmbolopararaizdatsari,segundoRmulomemostrouumavez, rabiscandonapoeiranumanoitedewar.Datsaritambmpodeserusadanosentidodeorigemeraizfamiliar.Da poderiamsersugeridoscuriososcruzamentosdesentidoentreosmboloa'uwxavanteoosmbolocristo.
40
umguerreiropintado,usandoumaborduna,dandomeudesenhodepresenteparaAndrGustavo. Antesdasessodedesenhonaescolatnhamosidoaoriobanharnos(ouapenas banhar, comodizemnoportugusregional).Camiloajudoumeamelavar,talvezportermepintadoantes, presumi, ento ajudei Tiur tambm, um esfregando as costas do outro. Quando os japoneses apareceram na beira do rio, as crianas e adolescentes comearam a fazer piadas um tanto agressivas,gritandopalavrascomosayonar!,arigat!,banzai!erindomuito.Fiqueicontente pornoseroalvodesuaspirraasnobanhodestavez,paravariar. Maistarde,nomesmodia,osestudantesdemedicinajaponesesfizeramexamesdevistaem todososhabitantesdaaldeiaquesevoluntariaram,medindoapressosangneadoolhoetambm adobrao,etestandogotasdesangueparataxasdeglicose 43.Fizeramotesteemmimtambm. Comisso,deramconselhosmdicosparaaquelesqueestavamconsumindoacaremexcesso,j que a dieta auwxavante tem mudado muito nos ltimos cinqenta anos, incluindo um alto consumo de arroz e produtos industrializados, como refrigerantes sobretudo como bebida cerimonialeissotmlhestrazidodoenascomodiabetes. noite,nowar,osdanhohuiwajuntamentecomigoeosadolescentesfizemosumcantoe dananafrentedecadacasadaaldeia,etodosospresentesnowarparticiparamdemaisalgumas danasecantosquefaziamquasetodanoite,maisinformais.Discursoseagradecimentosforam trocados,sendoosauwxavantetambmagraciadoscomumcantoemcoroporpartedostrs japoneses,queapresentaramohinoougritodeguerradosestudantesdauniversidadedeKeyo. Namanhseguinte,ascrianaseadolescentesaplicariamaosjaponeses(quepernoitavamna escola quadrada) a brincadeira de sujarlhes os rostos com carvo enquanto ainda dormiam, despertandoos,oquesetornaraumatradioduranteessasvisitas,diriamme.Namesmanoite,j semapresenadosjaponeses,depoisdobanho,enquantonosprepararamosparaowaracendendo afogueira,fariamrenitentementeamesmabrincadeiracomigo,parameudesprazer. * Todoesteeventoetnogrficopodeservircomointroduoquestodacaptura,introduo factualdoetngrafoaoproblemadesuatransformaotantoemsujeitoemrelaoaossujeitosde pesquisa como, porcausa disso,em objeto constituinte da investigao. Para esta investigao, agora,deveselevaremcontaosentidodatransformaoque,paraosauwxavante,comoser indicado,umatransformaoimbudadetradio. Aprimeiratransformaoaanalisarpodeseraqueladatransformaodaguerra(oudacaa) 43Atondeeusei,nenhumaamostradesanguea'uwxavantefoilevadapelosjaponeses. 41
aowaradzu(aosbraos,aosbrancos)empaz,quetodaessaencenaoritualsinaliza. Podenoserporacasoqueaescolhadapinturacorporaldosdanarinosdarecepoaos estudantesjaponesestenhasidoaquelaque,almdefazerrefernciaaoWai'a(dadaaencenaode partedo datsiwaiwre),faztambmrefernciaaos ritiwa,antigamenteresponsveispelacaa aos braos. Pintados de ritiwa os Auwxavante recepcionam em paz seus convidados estrangeirosque,bemvivos,ospresenteiamcomroupasasquais,numoutrotempo,teriamservido como prova do contato guerreiro bem sucedido com os waradzu44. Desta vez as roupas esto inteiras,nomaisrasgadas,epodemservestidas. Apazbemsucedidaseapresentanosnos presentes dos visitantes mas na prpria vestimenta dos AuwXavante, agora trajando roupas waradzueatenvergonhadosdemostraremseuspeitosnusnudezindiciriadeumacorporalidade agressivaanteriorpaz?Apacificaoparece,sim,fazerpartedesteprocessodovestirse,como quandondiosamaznicospassavamavestirroupasparaseremdeixadosempaz(Conklinapud Vilaa2000:57).Fazpartedestapacificaoovivercomoosbrancos,comodisseAndrGustavo e como diria tambm Vilaa (2000: 58) a respeito da adoo de roupas pelo povo Wari da Amaznia. A autora associa o uso de roupas ao xamanismo wari a partir do perspectivismo amerndio,demodoqueousoderoupasocidentaistemumpapelnaconstituiodeumcorpo duplo,quenocasowaridifereseemumcorpohumanoeoutroanimal.Espero,aolongodatese, desenvolverelementosdarelaoa'uwxavanteentrecorpo,xamanismoeperspectivismo.Nesse sentido,sugiroque,paraosA'uwXavante,assumiraroupapodeserumamaneiradeassumirum corposobreoutro,umenglobandoooutro,pormnoocultandooporcompleto.Aduplicidade 44 Cabeperguntarseosjaponesesseriamtambm waradzu.Osentidode waradzu parecetercambiadobastantede
umanooampladeestrangeiroparaumanoomaisprecisadebranco,eserescrutinadomaisdetalhadamente adiantee,nestesentido,usareiotermo Waradzu emletramaisculaquandosereferirtalcondiodebrancomais doquedeestrangeirosomente. Mastomandoumanooampladeestrangeiro,levandoemcontaoslugarese maneirasatravsdosquaissetravaramrelaesrituaiscomestesjaponeses,tambmpodeserlcitoenquadrlosno mesmolugardosWaradzu.Ofatodeeutertidoacarapintadadepretocomoadelesoutrosinaldestaaproximao. Mas,paraumrespaldocomplementar,considerandoseaescolacomolugarondecertastransmissesforamfeitasdos japonesesaosA'uwXavante,aliosjaponesesocupamolugardaorigemestrangeiradosremdios,conformepoderia dizerLopesdaSilva.Elaperceberaque,natradioa'uwxavante,tambm osremdiossocapturados,tmorigemno exterior.Aautoracoletaratestemunhosehistriasarespeitodecomocertosremdiosforamdescobertosobservandose ocomportamentodeanimaismachucadosedoentes.Aprendemseterapiasatravsdoencontrocomseresdaflorestaou alhures.Omundodosbrancos,dosnondios,dizLopesdaSilva,umdessesdomniosnosquaishsabere recursosabuscar.Aescolacomoinstituiodosbrancos,tambmocupaestelugarondeoconhecimentodefora incorporadoeinternamentesocializado(2002:4546).
42
tambm aparece a,como entreos Wari.Hnelaumjogo deinverses entre presaecaador, assumesecadavezmaisapeledaquelesbraosqueanteseramcaados. Capturarasroupasdosbrancosoque,nomeucaso,caracterizaseporinsistentespedidos dosA'uwXavanteporroupasusadas,shortspararituaisecamisasdetimesdefutebolnodeixa deserumacapturadevitalidadeperigosa,poistransformaocorpodequemaveste.Considerese queanoodeWaradzu,dadaapartculadzu,temumcertosentidodeconstanterenovaoetroca depele,comoatrocadepeledascobras,conformeexplicaodeHiprdiparaVianna(2001:302). De modo queadquirirroupas waradzu,essas segundas peles constantementerenovadas, uma formadeadquirirsuaintensavitalidade.Poroutrolado,aocapturaroquewaradzueassumiralgo desuaaparescncia,domesticandoo,osA'uwXavanteparecemtambmdomesticarse,opoder sobreumcontrabalanceandoopodersobreoutro.SituaoqueexplicitadapelosprpriosA'uw Xavante:''japrendemosavidadosbrancos.Usamosoqueosbrancosusam,n?Deroupas.Por issonsparamosdebriga''(Fernandes2005:88grifomeu). Assim como as pinturas e adereos, as roupas so recursos de diferenciao e transformaodocorpoindissociveisdeprticasalimentareseatrocadesubstnciasatravsda proximidadefsica(Vilaa2000:60).Entretanto,apesardequenocasoaquiestudadotambmhaja umidiomadatradioexteriorizantecomoconjuntodeprticas(Vilaa2000:66)oque estmuitoprximodaconflunciaentretradioetcnicasdocorpopropostaporMauss(2003), oquesecapturapelosA'uwXavanteaocontrriodoqueparaosWarideVilaatambm umacarga,umconjuntodeprticasquesecarrega,tomandoaspalavrasdaautora.Destemodo, podesesugerirparaosa'uwxavanteumacomplementaridadeentrecorpoecarga,nosentido tratadoporVilaa(2000),demodoquesuatradioecapturaenvolvamtantotransfernciade carga,doquesecarrega,quantodecorpo,seusafetosetcnicasedisciplinas45. Quantoantigacaaaosbraos,reforasesuaanalogiarecepodosjaponeseses pinturasdadanaapresentadatantoquantopresenadecertospersonagens.Primeiramente, dignodenotaque,nodiaanterior,pergunteinahoradobanhoonomedeumjovem,ritiwa,e estemedissequeeraAuwtedewa,ottulodadoaomatadordewaradzu.Elenofalavasrio, depoisvimasaberseunome:LibncioNhihriw''.Assim,senoeramaisapropriadoquese matasse o branco, aomenos era possvel brincar com umbranco sobre esta possibilidade. Quantopinturacorporal,valenotarqueapintura da'upt umadasduas(juntamentecomaa 45NoBrasilCentraldosa'uwparecenoocorreroqueacontecerianaAmaznia:dopontodevistaa'uw,espcies
depessoastmprticasdiferentesquesoconsideradasporelescomoculturasdiferentes,comopretendomostrar.
43
Poderseia conjecturar a respeito da influncia missionria sobre este simbolismo do contato,jqueosdadosbibliogrficoseaimagemaquerecorroparaexplicitlovmdeobrasde missionrios (Lachnitt, Giaccaria e Heide). Se os AuwXavante da Abelhinha so solcitos
46 SegundoGiaccariaeHeide,apinturado dauh, almdeserusadaalternadamentede da'upt nainiciaodos nefitos ao cargo de tsawr'wa, tambm seria usada no retorno dos tsawr'wa aldeia durante e depois das expediescoletivas,quandovinhamconferirasplantaes,verseestavatudobemnolocaletc(1976:240244).No fazemnotarse,complementarmente,apinturadoda'uptporacasoseriausadanomovimentocontrrio,odesadada aldeia.
44
(conscienteouinconscientemente)emexpressartalsimbolismonoritualencenadoe,poroutro lado, esto prontos a discordar de outras teses de seus missionrios como a da suposta generalizaodanoodea'uwuptabiparatodososAuwXavante,conformeoprimeiroindcio apresentado aqui a partir da fala de Hiprdi e seus amigos , h, para dizer o mnimo, uma seletividadedosmesmosemsuasrelaescomeles.Enfim,talsimbolismofazsentidoapartirda prpriaexperincianativa,emato,emritual,comosenota. Joantroplogopintado,waradzusemsombradedvidaarespeitodesuabrancura,agora separeceaindamaiscomumcativo danhimidzama,jquecontagiasepelosmodosdepintura corporalauwxavanteepassaasertratadocomotalafinal,deveriaatteraceitoodomda camisetaplo.Aoinvsdemataremwaradzuetrazeremparaaaldeiasuaroupa,recebemroupasde presente(evestemnas,comoosWaradzu)e,reciprocamente,tmnaaldeiaumwaradzuvivoque mimetizadoema'uw.Eopresenteiamtambm,casualmente,comsuagravatatradicionalcomo asque,maisespecialmente,foramdadasaosjaponesescomoboasvindas(oucomoindciodesua potencial transformao em gente?). Enfim, somente este antroplogo, dentre os estrangeiros presentes,foipintadoparaadanaparaosjaponesesverem.Numcertosentido,eracomose houvesseumatrocadeposiesemjogo:osjaponeseschegaramparaocuparolugardewaradzu desteantroplogoque,agora,reciprocamente,ocupavaolugardea'uw. AparteespecficadadanaemquetomeiparteeraadofinaldoritodecuraDatsiwaiwre, aplicadoquelesemestadomuitoavanadodedoena.Muitotempodepois,vimasabernasaldeias sobreotermousadoparasereferiraquemestivessevirandondio,virandogente:datsi'a'uw oqueagramticadeLachnittsupracitadasconfirmou.Masnoaparecenagramticasupracitada queotermodatsi'a'uwpodeseraplicadoaquemserecuperadeumadoenagrave,algumque tinha quase morrido, conforme alguns me informaram, como Vanderlei Temirete, da aldeia Belm.SegundoCamilo,daaldeiaAbelhinha,dizseapmatsi'a'uw,quevoltouasergente, renasceu:mahiwa'udu. Ento,seadanadatsiwaiwredeveserfeitapararetornarodoente,pacientedoritual,aseu estado de gente, talvez haja um sentido especial em convocar para o ritual encenado fora de contextoumwaradzuqueestavavirandogente. * Estewaradzucontagiadopeloa'uwnofoicativadoaindacrianaselcitosuporque numaguerraosadultosnoseriampoupadosmasque,apartirdeumacordo(eumaddiva financeira),aceitouoqueviriaasersuatransformao.Aindaassim,umadultomuitoparecidocom 45
umacrianaemtermosdoquedeveaprenderafimdeseconhecerousaberfazeromodode vidaauwxavante. AracyLopesdaSilvajhavianotadoaparticipaodecrianasemrituaisauwxavante parabrincareaprender(2002:43).Sabertransmitidoscrianasatravsdaperformanceritual, pois verses sucessivas da mesma cerimnia podem ser atualizadas pela memria, guiando o presente. Memria e criao, performance e tradio, tudo combinado para reafirmar estilo e patrimnionicos,massemprecapazesdeprocessareincorporarosdesafiosdomomentohistrico vivo(LopesdaSilva2002:43). Pelosqueaindanoestonaidadeapropriada,levadospelosmaisvelhosparaascerimnias, alinguagemplsticaesintticadoritualapareceexpressadacomamesmaseriedadequepelos oficiantesapropriados.SegundoLopesdaSilva,estalinguagemensinaarespeitodasclassificaes de grupos de participantes, dos movimentos, do cenrio ritual, da pintura corporal, da manipulao e das sensaes sobre as matrias vegetais usadas e seus sentidos, do uso de ornamentos,daforafsicanecessriaparasedanarsobosol,dadisciplinacorporal,doscantos... Somenteassistiraoespetculojseriaumaexperinciadeaprendizado,conformeaautora(2002: 44). Aconcepodetradioauwxavantedeacordocomumestudosobresuacosmogonia feitoporArthurShakerEidemdilogodiretocomnarradoresdaaldeiadePimentelBarbosa, sobretudo velhos Rupaw, Serezabdi, Serebur, Serenhimirmi, Hipru, Paulo Supretapr e Azevedo Prep, coautores da tese de Eid , abarca uma relao entre saber ritual e jogo/ brincadeira.Suapalavrapararitualdat,quetambmquerdizerfesta,jogoebrincadeira (Eidetalii2002:56).Falandosobrecorridasdetoraa'uwxavante,Vianna(2001,2008),concebe ascomomisturaentrejogoerito,emcrticadistinoentreestesdoisconceitosfeitaporLvi Strauss em OPensamentoSelvagem.Ainda que,na mesma obra,LviStrauss tenha feito uma contribuioquevemaoencontrodopensamentoa'uwxavante:apercepodavitrianojogo comoumafiguradamorteimpostasobreooutroe,comisso,dojogocomoatenuantedaguerra (LviStrauss1976[1962]:54),oquetambmfoilembradoporVianna(2001:298). Como dizem os A'uwxavante, vencer no jogo (de futebol, ou na corrida de tora) trucidar, 'marowre,quandoestavammuitocansadosemmeioaumjogoatltico,ouvimuitas vezes dizeremmeemportugus:morri... Ampliandotaisconsideraessobreaatenuao da guerrapelojogoparaoutrasmanifestaesdodata'uwxavante,podersechegaraconcluses
46
interessantessobresuasrelaesentrepolticaeritual47. Almdisso,Eideseusinterlocutorestambmlembramnapassagemrecmmencionadaque dat querdizerolho...eseconsiderarmosaimportnciadoolharnoaprendizadodastradies como Lopes da Silva salientou, a proximidade entre olho e ritual aumenta para alm da homonimia. Em minha experincia, quando os Auwxavante fazem piadas e brincadeiras, tambm chamamistodedateprincipalmentedatoire,formadiminutiva:brincadeirinha.Essaassociao, aparentementeparadoxal,daseriedadecerimonialfrivolidadedabrincadeira,remeteaosestudos deJohanHuizingaarespeitodoHomoludens(1980[1938]),quetratamdojogo,emsuasdiversas transformaes,comofundamentodaCulturadeformamuitosemelhantequefazMausssobre astransformaesdaddivaedasprestaestotaispresentesnomododevidadediversos povos,jqueolivrodeHuizingafoiescritoemrefernciaexplcitaaoensaiodeMauss(Caill 2002[2000]:248).AocontrriodeLviStrauss,Huizingajapontavaparaumasnteseentrejogoe ritual,sntesequeseaplicadiretamenteaocasoa'uwxavante,comonotouVianna.Poroutrolado, Huizingatambmcontribuicompistasparaateselvistraussianadarelaoentrejogoeguerra: porexemplo,analisandoovocabulrioparajogodalnguaalgonquinablackfoot,identificaquea mesmapalavra(amots)designaavitrianumacompetio,corridaoujogo,etambmnuma batalha,tendonesteltimocasoosentidode''carnificina''(1980[1938]:3839),oquepareceter analogiascomocasoa'uwxavante,sempensarmosotrucidarcomoumacarnificina. De qualquer forma, parte do ritual encenado para (e com) os japoneses na Abelhinha envolvialutas,oOi'o,alutadaforquilha,aoinvsdaguerraoudacaaaosbraosmortfera. Anoodedatcriaumaaberturaparaainclusodecrianasbemcomoparaaparticipao deatoreseapresentaesmenossriasaosolhosnoindgenassenojnoincluiasprprias crianasnumritodelutamuitomaissrioqueumabrincadeirinha,comooOi'o.Maspormenos srioqueseja,nostermosdeHuizinga,ojogocontmgravidade,severidade,levadoasriopor seusjogadoreseatofazerdecontadotadodeseriedade(1980[1938]:331).Oquepareceser verdadeiroparaosauwxavante.Demodoqueaparticipaodeumestrangeiro,umwaradzu,em seusrituais(sejaolhando,mastambmsejaatuando),emseumododevida,naquiloquepoderiavir aconstituirumauw,devesernomnimotosriaquantoadeumacriana. Assim, ao considerar que eu no devesse apenas brincar de ndio, Hiprdi estaria
47AdianteitaisconclusesemPolticasmusicaisecorporaescorporais:deMaussaosA'uwXavante,trabalho apresentado27a.ReunioBrasileiradeAntropologia,realizadaentreosdias01e04deagostode2010,Belm,Par, Brasil,eretomoseusargumentosaolongodatese.
47
provavelmentefalandomais paraum Waradzu (paraquem,comoeledevesaberjqueviveu duranteanosjuntoaessetipodegentebrincadeiraeseriedadenosemisturammuitobemefaz decontacostumaserenquadradocomofico),doquecomoeparaum auw (paraquema brincadeiralevadamuitomaisasrio).Portanto,aprecauodeHipatalvezfosseparaqueeume envolvessecomgravidadenestemeubrincardendio,nososlevandoasriomastambmme entregandoasrio. Todavia,seriaesseritualparajaponsverumritualsrio,autntico? Obviamenteasdanasecantosdemonstradosnoritoestavamdeslocadasdesuasfinalidades especficasecomplexosrituaisapropriados.Demodoqueenvolveramcertamedidadetradio entreaspas,comoMarcelaCoelhodeSouza(2007)diriaapartirdanoodeculturaentreaspas deManuelaCarneirodaCunha(2003).Isto,umespetculoondeseapresentamfragmentosde uma etnicidade, uma unidade idntica a si mesma, autenticada e autocentrada como organizaosocialeatmesmocontroladaedelimitadapelasleisdoEstado(sobretudoarespeito do que ser legalmente indgena). Mas tambm, como tratase de uma tradio sem aspas, legitimadaporsuarelaocomsentidospassadosepresentes(conformeareflexoapresentada sobreos ritiwa,acaaaosbraoseocontato)esuasprpriasconsideraessobreautoe hterocentralidade. De acordo com Laura Graham, os AuwXavante tm sua prpria concepo de autenticidade, que informa suas idias a respeito da apreciao de estrangeiros sobre sua indigenidade e suas formas expressivas (Graham 2005: 629). O que estaria em relao com a manutenodesuaculturaoumododevidadahimanadz:lugar,instrumentooumaneira( dz) de vida (dahimana) existente desde o comeo da vida auwxavante, desde os primrdios. o que os tornaria AuwXavante, de acordo com a autora: esta continuidade expressapelosrituais,pelascanesouvidasemsonhodabocadosantepassados.Talautenticidade viriadarelaoentrepassadoepresente,comareplicaodosmodosancestrais(Graham2005: 629),incluindodesderituaisepinturasaoutrastcnicascorporais,comocortedecabelo. Emcampo,ouvimanifestaesqueafirmavamseusrituaiscomomarcadoresfundamentais dadiferenadeseumododevida:Nssomosgente[auw],nstemos Ubd'wa'r,nstemos Wanridobe,nstemosnossomododevida[wahimanadz],waradzutemodele,disseumavez umvelho,emlnguaauwxavante,duranteumareunionoturnanaaldeiaBelm. Wanridobecantoedanadosdanhohuiwarelativoaogranderitualdefuraodeorelha dosadolescentes(Danhono),envolvendoaescolhadenovosamigosformalizadosdaamentre 48
jovens adultos de sexo oposto ao tornaremse adultos plenos. Ubd'wa'r uma cerimnia envolvendoaconstituiodeumlaoespecialentreumjovemadultoespecficodentreocoletivode patronos (danhohuiwa) e um ou mais adolescentes (wapt). Durante a cerimnia, cada wapt escolheumdentreosdanhohuiwadametadeexogmicaoposta(lembrandoaoposiobsicaentre waw e Po'redza'ono) para ser seu patrono especial, e ambos se tornam reciprocamente danhimiwainhmaisdeumadolescentepodeescolheromesmojovemadulto,principalmentese os adolescentes forem irmos ningum, nos dois coletivos, deve ficar sem seu parceiro tsimiwanh. Noato,os danhohuiwa sentamsedefrenteao H eosadolescentesdemetades exogmicasopostaslevantamsee,nummovimentocaracterstico,pegampelobrao(pegar:mrami palavraquetambmseestendecaaeapesca,comosentidodecapturaretambmdeacolher 48) odanhohuiwaescolhidoparaserseutsimiwainh,seguidomuitasvezesporumirmomaisnovo (queaindanoadentrouao H masque ai'repudu,ouseja,estprestesaentrareparticiparda mesmaclassedeidade)eumcomplexointercmbiodecomidaeadornossefazentreeles,donsque seroamplamenteredistribudos,sobretudoparaosdanhohuiwadosdanhohuiwadosadolescentes (isto,aquelesquepatrocinaramosatuaisdanhohuiwa),esegueseumacorridadetoradeburiti49. Participeideambososrituais50 e minhaparticipaonesseseemtantosoutrosrituaisteriadireta
48Otermotambmmarcaumacaractersticaimportantedosa'uwuptabicomoaquelesmaisacolhedoresemrelao aestranhosepessoasqueperderama famlia etc.,conformemediriamnaAbelhinha,oqueserdiscutidoadiante. Tambmdignodenotaquearelaoentreacapturaamansadoraeopegarpelobraoapareceemoutrasetnografias sobre povos J, como os Mebengokr, por exemplo (ver Cohn 2005: 112113). Se no exploro mais a idia de amansamentoaolongodateseporqueosprpriosA'uwXavantepreferemoutras,comoasdeacolherepacificar. 49Paraestacorridaosdanhohui'wautilizamumcolardedentedecapivaraubd'wadaprovavelmenteonomeda cerimniaUbd'wa'rcabeadededentedecapivara.Eumesmo,contudo,nouseiestecolarquandoparticipei. Meucasotambmfoiinusitado.FuiescolhidocomonhimiwainhporCsarMessiasTserenhma,umdosquedetmo cargode Aih'ubuni (primeiroslderesdaclassedeidade,furamaorelhamuitoantesdosoutros), waw, filho de PauloCsar.CsarMessiastambmpegouLzaroTserenhemew.AmodestefoitomadatambmporKtchuaWatsa, irmomaisnovo deCsar,queadentrariaao H mesesdepois,eminhaoutramofoitomadaporoutro ai'repudu, ValrioTseretsu,nomea'uwqueteriaaparecidoemsonhodeseupai,ValerianoTserenhemewnomeque,porsua vez,teriasidosonhadoporumirmodesuameemMariwatsde,segundoeleenopossodizerseacoincidncia onomsticacomLzarolevouo filho deValerianoaescolheramimeLzaronaquelasituao,maspudenotarque LzaroeValerianoerammuitoamigos,talvezporseremxarsdenomea'uw.Destemodo,todosostrssetornararam watsimiwainh(nossosdatsimiwainh)meuedeLzaro.Talvezporissoeunotenharecebidoocolardedentede capivara,porqueoquecabiaamimjdeviaestarpreparadocomantecednciaporPauloCsarTsere'u'r(queme pintoueornamentouparaacorridadetora)paraLzaro,jquefaziapoucoqueeuestavanaaldeia. 50Aindaque,pormalentendidosquantoadatas,tenhaperdidoacerimniafinaldoWanoridbenaAldeiaBelm.
49
relaocomminhatransformaoemauw. Poisotratarmecomoauwtambmfariareferncia,senodiretamenteaestesrituais,s relaesqueelesmanifestamcomoasentreclassesdeidade,tantosolidriasquantoagonsticas, tomusicaisquantoesportivas.Narelaoentreclassesdeidadepatrocinadaepatrocinadora,os patrocinadosjiniciadosdeorelhafuradasochamadospelospatrocinadoresde roptswa, palavra que pode ser traduzida como aquele (wa) que d (ts, raiz do verbo dar) amplamente,intensamente,indefinidamente(ro).Oquerevelaumacaractersticafundamental dasrelaesentreclassesdeidade:amaisnovadevedarcomidaepresentesalternadamentemais velha (suapatrocinadora),esobretudoos wapt enquanto hwa (moradoresdo H)devemdar comida (que recebem da casa de seus pais) aos danhohuiwa, e muitas vezes me vali desta prerrogativaparacomerjuntoaoshwa. Estefluxodeddivasoperacomonumjogoorganizadodepredao 51eservidovoluntria, tornadasrecprocas,emtermosdeumatrocageneralizadaqueprojetanadiacroniaaquiloque LviStrauss (1976 [1949]) visualizou sincronicamente, e no paraparentesco agmico (a relao cclicaentreasoitoclassesdeidadedivididasemduasmetadescerimoniais)aquiloqueomesmo autorviunoparentescoexogmico(oque,paraosA'uwXavante,umaexogamiademetades cujodiametralismoseprojetaconcntricocomaconsideraodeum terceiro cl includo entre dois,cujosefeitossemanifestamnaterminologiadeafinidadeenasestratgiasdecasamentodas linhagensesuasaproximaesscasaslvistraussianas). Issoposto,jnoinciodeminhaestadianaAldeiaBelm,mesmonotendoparticipadodos ritos formais emfasesanterioresdeminhavida,acabeiadquirindoum inhimiwainh dentreos
51 No que concerne questo das prestaes, da ddiva e da troca, o termo predao foi usado na literatura especializadaemsentidosdiversos.Paraumaapreciaomaisdetalhadadarelaoquepodesermantidaentreddivae predao,verFalleiros(2005),ondeseabordaapredaoapartirdeconcepesdeViveirosdeCastro(1993)eAnne CristineTaylor(2000),leituras recuperadas adiantenatese.Comissoalertoqueminhaabordagem diversa,por exemplo,dadePhillipeDescola(1998).Paraesteautor,arespeitodarelaoentrehumanoseanimaisnaAmaznia,a predaosignificaausnciadecompensao.Jaddivatemosentidooposto,odedoaosemcompensao,e reciprocidadetemosentido deequivalncia.Apartirdopontodevistaemquemesituo,entretanto,aquestoda compensaoempotencialcolocasetantoparaoquedoadoquantoparaoquetomado,enosimplesmentenatroca direta.possvelqueapredaoenvolvaumaausnciadecompensaodireta,masnocreiopoderfecharessaquesto daformapelaqualfezDescola,tantoquantonosefechaocrculodasvinganaseretribuies.Porqueotempo,na ddiva,umelementoessencial.Almdeque,seapredaononecessariamenteseinverteisto,seumapresaeum predadornonecessariamentepossamtrocardelugarnarelao,estarelaopodegerarcontraddivasque,aoinvsde inverterarelao,poderoaproximaraprezaaopredador.
50
patrocinadoresdaminhaclassedeidade,AlfredoTsawe'waHire'edi,aquemeusemprerespondi positivamenteaseusalegrespedidosporcomidaeoutrospresentes,equemeauxilioubastante dentrodaaldeia.Fuirapidamenteadotadoporeleapartirdomomentoemqueessasajudase ddivascomearamasemanifestar.Meusgestosdedareramincentivadosportodosemrelaoa ele. Jemmeusprimeirosdiasnestaaldeia,naprimeirapescariacomtimbdaqualparticipei, apontavamme Alfredo e diziamme para chamlo, quando pegasse um peixe, bradando: nhohui'waatsacomidaparati,meupatrono,eeleria52...Assim,ddivas,pedidoseajudas criaramperformativamenteumarelaoquedeveria,porsuposto,jexistir,dadoqueolaoteriase estabelecido em minha adolescncia, caso eutivesse passadoaquele perodo juntoaos A'uw Xavante. Tais prestaes atualizavam o lao que deveria ser passado, criandoo no presente. Rapidamente,passamosanoschamarpelotermorecprocodeinhimiwainh. Estemesmohomem,certavezemquecriticavaoatrasodoswaradzuemseusserviosde sadepblicajqueoenfermeiroouxam53daaldeiaeporissopreocupavasecomademora daentregadeinsulinaparaaenfermarialocal,dadaaexistnciadediabticosauwxavante, chamouos Waradzu dementirosos.Protestei: dissequeeunoeramentiroso.Noqueeleme respondeu:masvocauw,vocroptswa!. Emsituaesdiferentes,omesmohomemmechamariade waradzu paraosoutros,com algumadiscrio.Todosfariamomesmo,commaisoumenosdiscrio,dependendodasituao. Porexemplo,durantemomentosdedisputaecompetiomaisacirrada.Durantecaadas,quando metadesexogmicascompetemporcaa;durantejogosesportivos(devlei,futebol),nosquais timessoformadosporcritriosdeidade,moradiaetc.(paraoscritriosemaneirasdeformaode times de futebol auwxavante, confira Vianna 2001 e 2008); depois de corridas de tora mal sucedidasparaotimedoqualeuparticipava;etc..Normalmentenoodiriamnaminhacara,ainda queeupudesseouvilosfalandoentresi,ouusariamsinnimosde waradzuqueeusupostamente desconhecia,comotsiroma.Alis,foinumdosprimeirosjogosdevleidequeparticipeinaAldeia Abelhinhaqueouvitalpalavra,aqualosupramencionadoCamilomeapontoucomosinnimade
52 Muitospresentesfaziamomesmo,entreabrincadeiraeaseriedade.InclusiveCsarMessiasfezomesmoem relaoamim:pescouumpeixeemechamoudizendonhohui'waatsa,peixequepegueiedeiparaumirmomais velho dub'rada quetinhameemprestadoarcoeflechaparaapescados peixeszonzos.OmesmoCsarme escolheriacomoseunhimiwai'(edeseuirmomenor)cerimonialmentealgumtempodepois,comojmencionado. 53 Termo transformado em cargo pblico, por assim dizer: nomeado por uma parceria com organizaes no governamentaiseEstadoatravsdochamadoProjetoHai,nodeveserestritamenteconfundidocomoconceito antropolgicodexam,aindaquefaatambmsentidodentrodele.
51
waradzue,aoassistirfilmesemDVDounaTVjuntodosAuwXavante,identifiqueicomosendo usadaporelesemrefernciaaovilodanarrativa.Seosadultossoumpoucomaisdiscretos,as crianastendemamechamarde waradzu maisfacilmenteediretamente,sobretudopornome conhecerem muito bem (algumas, j me conhecendo melhor, chamarmeiam, por exemplo, de tsiwaihuamigooupelonome,masnuncadeixeideserchamadodewaradzu). * Oleitor,atagora,deveterpercebidoaquicertainterpolaodememria,etnografiae teoria.Poisseofundamentodestainvestigaoumaetnografiabaseadaempesquisaparticipante, contudotambmenvolvetextosnoproduzidospelosprpriosAuwXavante,tantoatravsde minhasprpriasleiturasquantoatravsdasleiturasdeoutrospesquisadoresquefizerametnografias eantropologiajuntoaosAuwXavante. Seopesquisadortambmummediadorentreessesmundos,odoantroplogoeodo nativo,odasexperinciaseodasteoriasetc.,podesernecessriaumadialticacomoa sugeridaporWagner(1981).Quioutrasferramentasdialgicas,comocomoodilogosugerido emlinhasgeraisporClastres(2004[1980]).OuaquelesugeridoporBakhtin(1988[1981]),em termos mais tcnicos. Dilogo tanto entre dados etnogrficos e tericos quanto entre a teoria nativaeateoriaantropolgica.Umdilogocontraaameaadoencantamentoinscritana linguagemcomoseonomeproduzidotivesseopoderiodebastarse,deserumpurodito,um puroouvido,ouqueressoasseumasvozadivisodoumedooutroeapassagemdoumno outro,atrocadefalas,adissociaoinfinitamenteadiadadofalaredoouvir,adiferenadasvozes (Lefort2008[1982]:145). Dialogismomuitoassemelhadoquelepraticadopelosa'uwxavante,comomostrama seguirpesquisadoresquedealgummodoexperimentaramsuasprticasdiscursivas. Ainda que no seja s sobre fala que se esteja falando. Considerada a participao do antroplogo como um dado elementar da pesquisa, demanda pelos prprios nativos, devese recordardoaprendizadodetcnicasdocorpo,cantos,modosdedanareandar,jogosverbais,cara debravo(coisaquefazemmuitoequemedizemparafazer),umaatitudedeorgulhoaltivoe,asim, um jeito diferente de dialogar, como mostra Graham (1990, 1993, 2003 [1995]), de modo que tcnicas do corpo e linguagem esto intrinsecamente envolvidos desde a constituio mais comezinha da pessoa a'uwxavante at a estrutura mais elementar de seu jeito de ser, a'uw himanadz.Jque,comoargumentaHeloisaPontes,trazendoparaaantropologiaargumentosda crticaliterriaafimdepensararelaoentreescritaeexperinciaetnogrfica,thecontentofwhat 52
onesays,does,paintsanddancesisinseparablefromthewayinwhichonesays,does,paintsand dances,andwrites.(Pontes2011:512grifomeu). Pelomenos,seestareflexoimitadealgumaformaareflexoa'uwxavanteouafetada porela,eseseupensamentotemalgodepensamentoselvagem,entomodadopensamento selvagem,estetextotambmempregaoselementosmuitoconcretoscoletadosnotrabalhode campo e poroutros meios afimdearticullosemproposies umpoucomais abstratas, capazesdeconferirinteligibilidadeaosacontecimentoseaomundo(Goldman2006:171). * Paracompreenderaquestodequeaquisetratabomrecuarumpouco,devoltaaos ancestraisdosAuwXavanteerelaoentrepassadoepresenteatravsdatradio,sugerindo maneirasdetratarumapossvelanalogiaentreantepassadoseestrangeiros,sobretudoemtermosde suaposioemrelaospessoasdopresente. Paracomear,tomeseosonhocomoconcebidopelosAuwXavante:sonhartambm umaformadeentraremcontatocomosantepassados.Osonho rotsawr:olharoumeditar (wr) amplamente, intensamente, indefinidamente (ro) no seria apenas uma manifestao imaginativa e inconsciente, interna, da psiqu de quem sonha (como talvez diga a moderna psicanlise)masumaverdadeiraviagemdapessoaparaforadesi,umasadadaalmaoucorpo mesmodahibauptabiparaforadocorpodahiba,palavraquetambmpodesertraduzida porpessoa,vidaetc.ecujossentidosmaisamplosseroexploradosmaisadiante. Grahamjmostravaumaconexoentresonhoeperformanceritualemseutrabalhosobre Warodi,umvelhodaaldeiadePimentelBarbosa(Graham2003[1995]).Waroditeveumsonhocom osancestrais,quefoiapresentadonumaperformanceritualintencionandoidentificarasieaosseus (seus parentes,seus amigos,seus aliados dePimentelBarbosa) aos verdadeirosantepassados auwxavanteou,melhor,legitimarsecomomediadordeacessoancestralidadeestendendoesse acessoaosseuse,porqueno?,aquemaelesefiliasseenelesefiasse. Enquantoosonhoerateatralizadosvistasdaantroploga,eraaomesmotemporeelaborado atravsdaparticipaooralecorporaldeoutrosvelhosejovensatoresque,portaismeios,tambm reformulavamereelaboravamoqueerapassado,adicionandoelementosdopresente.Warodieseus interlocutoresouconarradoresoscilavamentreanarraodosonhocomosimortais,adescrioda situaoatualeaprpriaprorganizaoprticadoritual54.Warodidescreviacomoosimortais
54Entreanarrativaeoscorpos,comooxamcunadeLviStrauss,quefariaumaoscilaocadavezmaisrpida entreostemasmticoseostemasfisiolgicos,comosetratassedeabolir[...]adistinoqueossepara(LviStrauss 1975[1958]:223).
53
conversavam sobre sua prpria pintura corporal, o que servia como guia de como os personificadoresdoritualdeveriamsepreparar,eaomesmotempodescreviacomoestesestavamse preparando (Graham 2003: 207208). As falas de Warodi faziam simultaneamente referncia a acontecimentos antepassados manifestos em sonho e a acontecimentos atuais de preparao do ritual.Nesteprocessoderitualizaodanarrativa,tudosepassavacomonumaausnciadadistino entreostenso(sabervivido)edeferncia(saberporouvirfalar),jqueaexperinciadosonhode umsemisturavaaosaberdosdemaisatravsdasfalaseseatualizavanovamenteemexperincia atravs desuatransformaoemritual.Oucomosetentassem,naconflunciaentreoqueera descritoeoqueeraencenado,rompercomadescontinuidadeontolgicaentresignoeoreferente (sobreestaquesto,verViveirosdeCastro2007)numaviademodupla. Na narrativa, os imortais reunidos decidiam se pintar do mesmo modo que j estavam fazendoseuspersonificadoresrituaiseatmesmoasbombinhastrazidasparaafestadeencenao dosonhoiamretroalimentandooquesetinhapassadonosonhoefazendopartedopassadosonhado (Graham 2003 [1995]: 137174). A descrio de Graham sugere, assim, que as inovaes do presente afetam o (que foi) passado. Afinal, em sonho temse contato direto com as pessoas antepassadas,constituindose(novas)relaescomelasou,melhor,renovandorelaescomelase, assim,renovandoseaspessoas. Ademais,atravsdesseprocesso,Warodisemagnificavacomopessoa(verSztutman2005 sobre a noo demagnificaoaplicadapessoaamerndia),nosentidodequeampliavasuas relaes,commaispessoas(presenteseantepassadas),ampliavasuahumanidade,ampliavasua legitimidadecomoA'uwXavante.Cresciacomomediadordepoder,angariandopessoasparaseu ritualemseucanalcomaancestralidademassconseguindoissoportornaressasoutraspessoas tambm sujeitas da magnificao, partcipes da histria do ritual. Em outras palavras, especificamentediscursivas,opoderdesuapalavradependiadopoderdesuaescutadapalavra alheia,detornarsuaapalavradooutroedooutroasuapalavra.Paraalmdaspalavras,oritual todomanifestaessamisturaeessevnculoentrepessoas. AtransmissoritualdosonhodeWarodiparecetercomocontedoaprpriaforma,a prpriaalianaentrevivosemortos,atransmissodealianasfeitasnopassadoparaopresente vnculo tradicional que torna os AuwXavante sempre vivos gerando bebs belos e sadios (Graham 2003 [1995]: 137226). E pelo efeito desta aliana, no processo de ritualizao deste sonho,atradiosemanifestacomoviademoduplaparatransformaesrecprocasentreas
54
alianasdopresenteeasalianasdopassado.55 Pelaviadosonhosemanifestamoutrasalianastambm.Vianna(2001,2008)relembraa narrativa do sonho de Jernimo Xavante com Jesus Cristo escrita pelos missionrios cristos Giaccaria e Heide. Jernimo sonhara com Cristo dizendolhe que os AuwXavante deveriam continuarpraticandosuastradicionaiscorridasdetora.Poderseiasugerirquetalnarrativatenha sidoinfluenciadapelosmissionrios,poisseconcebvelparaumauwxavante,Warodi,quesua narrativadesonhosejatransformadaporquemaconarraeaencena,porquetambmnoseria aceitaainflunciadosescritoresmissionriosdanarrativadesonhodeJernimo 56?Postaaquesto emsuspenso,oqueimportacomoamediaoestrangeiraseatrelacontinuidadeantepassada:O sentido dapermannciadaculturacaminha,porassimdizer,dabocadumapotnciasimblica waradzu aoouvidodum auw ,edeste,paraacoletividade. (Vianna2001:99100grifomeu).O esquemaapresentadonestafraseimportanteeserrecuperadonaquiloemquereverberaemoutros esquemasrelacionaispresentesnacorporalidadeenanarrativaa'uwxavante,senoemdiversos outrosaspectosdeseumododevida. Viannaapresentaestanarrativaatreladaquestodaquiloquechamoudexamanismo,a partirdasproposiesdeManuelaCarneirodaCunha(1998)eLopesdaSilva(1999)doxam comoaquelequefazocontatoeotrnsitoentremundosdiferentes,construindosentido.Segundo ele, o xamanismo auwxavante seria um tema pouco desenvolvido pela literatura etnolgica (Vianna 2001: 98). Vianna aproveita a discusso de Marcela Coelho de Souza (1997) sobre a performanceritualdesonhosestudadaporGraham(2003[1995]),reconhecendoquehaveriapontes comparativas entre os AuwXavante e grupos amaznicos cuja vida ritual centrase no xamanismo(CoelhodeSouza1997:191).Grahamnoasteriaidentificadobem,segundoesta leitura(Vianna2001:98).Apartirdestaproposioxamanstica,Viannacomparaarelao de Warodicomosantepassadoscriadores57;arelaodeJernimocomJesusCristo;earelaode
55Paraumadiscussosobreumanoomaussianadetradio,homlogaaexpressaaqui,partindodaconsideraoda ddivaedas tcnicas docorpo,envolvendotambmtransformaodas alianas passadas pelas alianas presentes, considerandoleiturasdaobradeMausscomoasfeitasMarcosLannaeAlainCaill,dentreoutros,verFalleiros(2005). 56 Ocaminhoinverso(masnooposto)foisemdvidatraadoporEid,aoassumirRupaw,Serezabdi,Serebur, Serenhimirmi,Hipru,PauloSupretapreAzevedoPrep comocoautoresdesuatese,apartirdeummtodode pesquisacalcadonaassembliadenarradoresetradutoresjuntamenteaopesquisador,voltadaespecialmenteparaa narrativaediscussodemitos,passandopordefesasdetesedoprprioEidperanteaassembliageraldowar(2002: 3337).Assim,aproduodatesedeEidseassemelhamuitoao dialogismo a'uwxavanteestudadoepropostopor Graham(2003[1995])apartirdeleiturasdeBakhtin(1988[1981]). 57Eidalertaque,paraosamerndiosemgeraleosA'uwXavanteemparticular,criarsignificatransformar.Os
55
Hiprdi com omundo waradzu, com ofutebol e odiscursoambientalista. De modoque este xamanismoserelacionariatantocomosantepassadosquantocomomundoestrangeiro. Warodieos seus performatizampelafala,pelo corpoepelo ritualseucontatocom os antepassados. E se Jernimo no fala com um antepassado autntico (conforme uma idia essencialistadetradio),aomenosestepersonagem(JesusCristo)aparecefalandoemnomeda tradicionalcorridadetoras,eatravsdeummodoespecficodetradioa'uwxavante,osonho. Poroutrolado,estpatenteemJernimoantimarelaocomoestrangeiro,comacrena waradzu emCristo.ApartirdissoViannaconsideraumaaproximaoentreoxamquecontata diferentesmundoseHiprdiqueconstrisentidocomofuteboleoambientalismo(elementos estrangeiros,waradzu).Hiprditerialheditoqueofutebolnaaldeiatemumcartermaisecolgico queacorridadetoras,porquenodemandariaaderrubadadervoresdeburitiparaousodos troncos(dadooatualencapsulamentoambientalauwxavantefaceaosantigosrecursos,rareados devidoaocrescimentodoslatifndiosmonocultoresemsuaregio).TodootrabalhodeVianna mostracomooesportedabolaseinserenoatualmododevidaauwxavante.Seconsiderarmosa relao entreestetipodexamanismoligadoaojogodebola(tomadodos waradzu),orituale tambmapoltica,talvezsentidosinauditospossamserexplorados. Por ora, tomase o xamanismo como uma articulao entre passado e alteridade, num sentidomuitomaisamplodoqueaquelequesecostumacomumenteaplicaraotermo,quandoeste aparecemaisvoltadoparaasprticasmgicasedecura(oque,levandoemcontaaassociaoentre o tornarsegenteeocurarsedeumadoenabrava,tratamaisdeumencontroentretradio, mudana,magiaecuradoqueumdesviodeumtemaaooutro).Deumlado,Viannanotaamaneira como Graham apresenta criatividade individual e experincia coletiva concorrendo para a continuidadenotempodaculturaxavante(Vianna2001:99).Dooutro,apontaparaasmudanas natradiovindasdoestrangeiro.Masseriamessesmovimentosodevoltaaopassadoeode transformaopresenteindependentes,ouoxamanismojfaria,porprincpio,asntesedosdois? Emprimeirolugar,devesenotarqueopassadosempretomaformaapartirdopresente.Em segundolugar,aalianacomosantepassadosecomosestrangeirossempreumaalianacomalgo queestalm.GeneralizandoaquelafrasedeViannadestacadaacima,seatradiopassadeuma
criadoresseriam,ento,transformadores.Maisdoquecriacionista,ametafsicaa'uwxavantetransformista(Eid, 2002:64).LopesdaSilvajressaltaraomesmoponto,baseadaemafirmaesdeMayburyLewis(LopesdaSilva1986 [1980]:225):QuandoosXavantefalamdecriao,noestabelecemnenhumadistinoentreacriaoapartirdonada eacrianonosentidodetransformao.[]AmaiorpartedasestriasdosXavanterelativascriaoreferemsea metamorfosesoudescobertas(MayburyLewis1984[1967]:350351).
56
potnciaexternaparaumainternae,emseguida,paraacoletividade,estamosnocaminhodeuma sntesepotencial,masinconclusa,entreantepassadoeestrangeiro:oplodapurapotnciaaberto econtmdiferenas.Assimcompreendeseamultiplicidadedostrajetosemdireopurapotncia, feitoporpessoascujamagnificaoestaelaatrelada,estendendooraciocnioaplicadoaocasode WarodinosparaJernimomastambmparaHiprdi:estabelecemserelaestantocomos antepassadosquantocompesquisadores,missionrios,antroplogos:relaescsmicasepolticas. Eemterceirolugar,deveserlembradoqueestrangeirospodemteralgodeantepassado,jque surgiram de antepassados desgarrados, que abandonaram o convvio propriamente humano, alojandosemaisalm. * Almdosantepassadoseestrangeiros,emcampopudeaprenderquenossonhosnosquais so transmitidos cantos, que so posteriormente encenados ritualmente, tambm se manifestam outrasentidades:aquelasquechamamosdeanimais;os avs,bisavseoutrosparentesfalecidos; parentesvivendolongeouemviagem... Porexemplo,TiagoTseretsuumavezensinouparasercantadano war umacanoque tinhaouvidoemsonhocomseucachorro,mortohaviaalgumtempo.Nosonho,ocoapareciacom corpodeco,masdanavaemrodacomoutroscesenquantocantavaquenosabiaporqutinha sido morto (o que sugeria que algum tinha sido excessivamente severo com ele, matandoo). Tseretsu,dadasminhasperguntas,afirmouqueaindaestavatentandoentendercomoerapossvel um co danar e cantar daquela maneira! J na aldeia Belm, Lzaro Tserenhemew um companheirodeclassedeidade, Pahri'wa equemetratacomo tio (damama'am,outro pai) dissemequeamsicaqueestavaensinandoaosadolescentestinhasidopegaquandoelesonhava comumjabuti (u') cantandonocentrodaaldeiasobosoldemeiodia(comofazemosAuw Xavanteemmuitasdesuasdanas)58.Contoumeoutrosonhocomumveado(aih)noqualo animalandavapelocerradoecantavaporqueestavatriste,sentiasesozinho.Numoutroexemplo, nomaiscomanimais,AdoToptirodaaldeiaAbelhinhacaptaraumacanodabocadeseu prpriofilho,Hiprdi,quenaquelemomentoestavaviajando,distantedaaldeia.Libncio,netode Ado,sonharacomumacanoqueeracantadaenquantoaaldeiaeravisitadaporumpadre,que vinhadarconselhosequerecebia,emseguida,umcolarts'rebdzu'adeAdo. Almdisso,ossonhos tambmpodemtercarterpremonitrio,notratandoapenas do 58comumque,antesdeensinarumacanopegaemsonho,aquelequesonhounarreseusonho,demodoqueno
estranhoparaosA'uwXavantenarrartaissonhosnestecontexto.
57
passado,mastambmdofuturo.Alis,poucosdiasdepoisdetermoscantadoamsicadosonhode Lzarocomojabuti,nacerimniadeUbd'wa'relereceberiadepresentedeseutsimiwainhum jabutivivo(paracozinharecomer)seusonhoantecipoualgodaperformance,jquefoinum ritualsobosolenomeiodaaldeiaqueopresentelhefoientregue.Nodiademeuprimeiroretorno aldeiaAbelhinha(apsaviagemcomaAssociaoWar),fuirecebidocomentusiasmoporAdo Top'tiroe,imediatamente,Rmuloveiomedizerque,emsonho,algumhaviamencionadomeu nome a Ado,o queexplicaria a recepo entusiasmada. Minhaparticipao noritual para os japonesesvervirialogoaseguir. Tambmouvirelatosdesonhoscompadres,comaona(quedisseparaAdoToptiroo nomequeseriadadoaomaiscaadorequeridocodesuaaldeia:Tsebreh),almdeserpossvel sonhar com outras entidades bem conhecidas e muito respeitadas pelos AuwXavante, os Tsarewa,espciedesuperhumanossobrequemsefalarmaisadiante. Enfim, considerando os diversos sonhos, sejam com animais, com antepassados, com estrangeirosoumesmocomparentesemviagem,notasequeomovimentodatradioauw xavante,emseuaspectoonrico,estmuitomaisassociadodistncia,sejaelatemporalouespacial (ouasduas),doquesimplesmenteaopassado59. *** Foraedentrodagente Aviagemdaalmaoucorpomesmodahibauptabiparaforadocorpodahibano sonhojapresentaumarelaoentreinterioreexterior,nummovimentoemqueoaspectomais enfticodocorposaidesiembuscadoqueestlfora.Estemovimentopoderiaserchamadode xamnico a partir desta noo genrica de xamanismo recuperada por Vianna, que ao incluir futebol, ecologismo e viagens de pessoas auwxavante s cidades, expandese para alm do campoemquesecostumaassociloreligio,usodesubstnciasintoxicantes,contatocomo sobrenatural etc., como circunscrevera o famoso (e difamado) Handbook of South American Indians(Steward1963[1946]),aodistinguirpolticadexamanismo.Masnosentidoestritodo sensocomumsobrexamanismo(sentidoquepoderiatero HandbookofSouthAmericanIndias
59Assim,umsonhocomJesusCristonoserianecessariamenteumaformadeinculturaocatlica,anoserque essainculturaopossaserpensadanoeixomaisgeraldacapturadaqualqualquerA'uwXavantepodeserum agente,enomeropacientedasoperaesmissionrias.
58
comomitodeorigem)aviagememsonhovemmaisbemacalhar.Nosa,comoemantigase novasteoriassobrexamanismo,entreclssicos,comoMirceaEliade,eocnoneamerindianista contemporneo. Menosdoquemapearoslimitesdetaisnoesdexamanismo,cabeapresentarseuescopo bsico para da extrair caractersticas importantes para o assunto em questo: a mediao e a captura,bemcomoseuaspectopolticooucosmopoltico,aosquaisoxamanismoassociado. Interessa extrair as potencialidades do conceito, capturar suas vitalidades e no simplesmente criticlo. SegundoEliade,oxamanismoenvolveriaasadadaalmaparaforadocorpo,otranse exttico,odilogocommortos,demnioseespritosdaNaturezaeocarterespecialdo xam,umeleitocomacessoaumazonaespecialdosagrado,inacessvelaoscomunsainda queacessvelavriaspessoasviainiciaoemorteritual(Eliade1998[1951]).Eliadeadianta umaproposioacercadasmanifestaesreligiosasemgeral,dasquaiscolocaoxamanismocomo casoparticular:arelaodashierofanias(manifestaesdosagrado)comatemporalidade.Elas marcamumeternoretornoaumaeraatemporal,recriandoomundo(Eliade1998[1951]).O poderdoxamamerndioemveromundotalqualnotempoprimordial(Gallois1988;Viveirosde Castro1996;Sztutman2005b)ecoaesseretornoaotempomtico(oudeorigem)sugeridopor Eliade,oquetambmsemanifestanosonhodeWarodi,eseupoderderecriaromundo,estudado porGraham. Mas a idia de tempo mtico pode ser problematizada pelas apreciaes da etnologia amerndia contempornea. Talvez os termos e tempos queocircundam oeternoretorno e o atemporalexerampapelmaisconstitutivosobreoquevemaseromtico,aoinvsdaidiade umaerafixadanopontodeorigemdeumasupostalinhadotempo. ViveirosdeCastro,embuscadeumasntesequeabarqueospovosdaAmazniaequi detodaaAmricaindgena,caracterizaoxamanismoamaznicocomohabilidademanifestapor certos indivduos de cruzar deliberadamente as barreiras corporais e adotar a perspectiva de subjetividadesaloespecficas,demodoaadministrarasrelaesentreestaseoshumanos.Vendo os seres nohumanos como estes se vem (como humanos) (2002a: 358). Este argumento j incorporaoutratesecondensadapeloautoracercadoquenomeouperspectivismoamerndio, basicamenteanoodequecadaentevosoutroscomonohumanoseasimesmocomohumano, oquedependedeumanoomonoculturalistatodososentesteriamumespritohumano correlatadeumamultinaturezaumamultiplicidadedeespciesdecorposdiferentes,com 59
mundos diferentes, porm vistos por cada um a partir da mesma forma (a forma humana, acarretandoamesmaculturahumana),sobretudoatravsdeumadialticaentrepredadorepresa. Oqueseachasohumanosvestindoroupasanimaisetornandoseanimais,ouanimaisdespindo suasroupasanimaiserevelandosecomohumanos.Aformahumanacomoumcorpodentrodo corpo,ocorponuprimordial,aalmadocorpo(2002a:389).Asdiferenascorporaisestariam entonasdiferenasdeafeces,comodiferenteshabitus. Essamisturaentrehumanoseanimaisremeteaumacondiomitooriginal(pararesvalar emEliade),isto,aotempoemqueoshomenseosanimaisaindanoeramdiferentes,como diriaumndioamericanosegundoLviStrauss(LviStrausseEribon2005[1988]:195196),ou umestadodeorigemconstitudocomoumcontnuoheterogneo(ViveirosdeCastro2006:324) emqueasdiferenasentrehumanoseanimaissemultiplicamesediferenciamindiferenciadamente, cadaqualmanifestandoemsiumamultiplicidadedetransformaesnooutroeemoutros.Nesta multiplicidadeoriginal,osanimaisseriamhumanos,aindanotendosedistinguidocomoespcies. Aconstituiodasespcies(naturezas)diferentesumasdasoutrasmasuniformeseestveisemsi mesmas(cadaqualconsiderandoasimesmacomodotadadacultura,daperspectivahumana, isto,adesujeito)viriadepois,notempocorrente.ViveirosdeCastro,apartirdeproposies yanomamis e correlaes com outros exemplos da regio amaznica e de fora dela, prope generalizarparaaAmazniaumacertaapreciaodesteperspectivismoquetemcomofocoos espritosoumelhor corporalidade[s]dinmica[s]intensiva[s] (2006:326),agenciadospelo xamanismo cujapolticacsmica(acapacidadedetransitarentremundos diferentes atravs da mudanadeperspectiva)seriaumapolticadiplomtica,esuacondiodepossibilidadedependeria dequeasintensidades,misturaseindefiniesdaorigemmitolgicafossematualizveiseperenes. Demodoquenosetratamaisdeummomentonotempomasdeumapermanncia,ouimanncia: fundouniversalimanenteofundoquevemtonanoxamanismo,nosonhoenaalucinao, quandoohumanoeonohumano,ovisveleoinvisveltrocamdelugar(2006:326),talvezat umcontratempo. Poisemquemedidaestasntesegeneralizantesobreoxamanismoamaznicopodecotejare sercotejadapelodebatesobreoxamanismoauwxavanteemgerale,especificamente,sobrea questo da captura? A partir do quej foi introduzido aqui,ao menos um distanciamento dos AuwXavanteperanteomodeloamaznicodoperspectivismomultinaturalistapodeserintudo, ainda que de forma simplista. O sonho auwxavante no se caracteriza por uma adoo da perspectivaanmicocorporaldosujeitocomquemsesonha(edequemse pegam cantos,nomes 60
etc.)noqueocorpodooutro,emsonho,novistoemformaantropomrfica:quandosesonha comumanimal,porexemplo,vseoanimalemsuaformacorpreaespecfica,nohumanide. Nohummovimentoamaznicodeversegentecomoeleeoutroemrelaoprpriagente. ArthurShakerEid(2002)questionouosvelhosdePimentelBarbosasobreestaquesto,se osanimaisseviamcomohumanos,erecebeurespostanegativa.Entretanto,duvidouqueapergunta fosserealmenteacerta.Emrelaocondiooriginalenvolvendohumanoseanimais,reconhecea humanidade dos romhtsi'wa (criadores no sentido de transformadores, transformistas) como fundamental para que surgissem da os animais (os avs ona, por exemplo, humanos com poderestransformistas,tendoperdidoessepoderaosetransformaremdefinitivamenteemonao av eemtamandua av apsoroubodeseufogo,conformeaversodahistriaque contaramparaEid). Tal condio original da humanidade principal, seria expresso central da sntese de todososestadosdoser,apartirdaqualabresecomocrculosumadiversidadehierrquicadeoutros estadosconsideradoshumanos,dentrodosquaisestocontidasasformasanimais(Eidetalii2002: 331332).Ouseja,paraEidcomoseaquelamultiplicidademitooriginalestivessecontidanuma humanidadeprincipalquejnoestmaissobopoderdahumanidadecomum(apesardeestar sobpoderdosTsa're'wa,porexemplo).Concluocomistoquetalhumanidadeprincipalestsempre alm,superhumananosentidodealmdohumano.Ahumanidadesalmdesimesma. Eiddiznotercomoconcluirsenostemposmticoshaveriaounodistinoentrehumanos eanimais(Eidetalii2002:333)masqueatransformaomticadefinitivaterialevadoosanimaisa nomaispoderemretornaraoestadohumano,queconsistiriaempoder(atravsdesonhoseoutras prticas)versimultaneamentetodososmundoseseusserescomointernosaestesseresdepoder. Poder[d]oqualoshumanosparticipariampotencialmente.(Eidetalii2002:332). Issoposto,Eidafirmanoterumasoluodefinitivasobreopossvelperspectivismoa'wu xavante. No posso dizer at que ponto a filosofia metafsica universal de Eid (fundada principalmente em diversas obras de Ren Gunon) faz efeito em seu dilogo com a filosofia a'uwxavante alis, esta ressalva valeria para qualquer antropologia, sob influncia de pensamentos no nativos mas, pelo menos, ela ajuda a delinear os problemas de um perspectivismoquevenhaasera'uwxavante.Osanimaisseriamapenasfrutodatransformao humana?Teriameles,hoje,algumpodersemelhanteaohumano? Quantopolarizaoimannciaetranscendncia,temporaleatemporal(perantea situaomitooriginalatualizadapeloxamanismo),emseuestudodacosmogonia,Eidafirmaque 61
taisnoesdevemserconsideradasapartirdasconcepesnativas,observandoaaimportncia doritualnocarterfundanteeintegradordoconceitode''tradio'',queestnabasedacultura Xavante(Eidetalii2002:57).SegundoEid,taldistinopolar(temporaleatemporal,imannciae transcendncia)noseencontraentreosAuwXavante,queenfatizamanodescontinuidade, cujaimagemsimblicaseriaadeumaespiralqueseabreapartirdeseuCentro(Eid2002:61). Acreditoquealgodestaconcepopodeseencontrarnatopologiadasfigurasdachamada fitadeMbius(nomeadaapartirdomatemticoAugusteFerdinandMbius),emqueumladoda fitaencontrasecomoseuavessoquandosuasduaspontasseunem,edagarrafadeKlein(em refernciaaomatemticoFelixKlein),emqueinterioreexteriorseencontram.Comonumencontro diretoentrefiguraefundo,entreodadoeconstrudo,entreoprximoeodistante.Oquejteria sidodetectadoporLviStraussnopensamentoamerndio: Enquanto as estruturas de ordem do forma noo de tempo e as estruturas algbricasformalizamanoodemovimentosespaciais,atopologiarefinaambasessas noes, injetandolhes a linguagem da proximidade. Nas Mithologiques reencontramos grupos(estruturasalgbricas)ereticulados(estruturasdeordem),mergulhadosagoraem espaosdeondeemergemformascomoasfitasdeMoebiuseasgarrafasdeKlein,centrais entreasmetforasdeAoleiraciumenta.(Almeida1999:169) Entretanto, segundo Eid, a prpria nodescontinuidade deve ser relativizada: na metafsicaAuw[sic],osvelhosdistinguem hiwa,omundoceleste,domundoterrestrequeos Auwvivem,distinoqueseabrircomomanifestaocosmolgica.Masadistinoaparece apenasparaoolhardamanifestao,quecolocadaemumpontodevistarelativo,sofreporissode umacertailusodetica.(Eidetalii2002:61).Assim,deveserconsideradacomcautelauma concepodecrculosconcntricos(oCosmos)quesodescontnuosemrelaoaoCentro(o supraCosmos ou SupraNatureza) (2002: 61), tpica da metafsica tradicional (entendase metafsica tradicional por metafsica ocidental, de origem grega). Tal descontinuidade apareceriaapenasparaoolhardamanifestao,porqueasdistinesqueosAuwfazementre osmundosnopassaporconceitoscomo''oCosmoseosupraCosmos''(2002:146).Seriaesteo perspectivismoauwxavante? Como mencionado, abordei (Falleiros 2005) as relaes auwxavante a partir de uma concepocircularquenodeveserconfundidacomestametafsicatradicionalreferidaporEid
62
apartir deumaconsideraocrticadanoodecrculosdereciprocidade (MarshallSahlins 1976 [1972]), Tim Ingold 1986, Chris Gregory 1992) e da economia simblica da predao (Viveiros de Castro 1993, Anne Cristine Taylor 2000), embasada por uma releitura da ddiva maussiana (queenvolvetantoa constituio dapessoaquantodiversos paradoxos constitutivos, comoamisturaentreantagonismoesolidariedade60)edaanliselvistraussianadarelaoentre concentrismo, diametralismo e dualismo (em Antropologia Estrutural e Histria de Lince bem comoemseuartigoReciprocityandHierarchy61)paratratardatradioauwxavantecomo constituiodointernoapartirdoquevmdeforaeredistribudo,envolvendorelaesde solidariedadeeantagonismo.Graficamente,istopodeserapresentadoapartirdafiguraabaixo,em queovetorxrelacionaaspessoasmorais(sejamclassesdeidade,sejamclsetc.)AeCem continuidadeumacomaoutra,emoposiopessoamoralB:
OquecreioencontrarrespaldonoqueEidconsideraumdosfundamentosdacosmogonia auwxavante:opontomaisdistantedeseumundo(oumundos)seriaarepresentaoexteriorda origem,demodoqueopontoextremosimbolizasse,exteriormente,ocentrointerior,operandouma inverso[...]narelaoentreosprincpiosmetafsicosesuamanifestaocosmolgica(2002: 104). Reflexo semelhante feita por Vianna (2001) uma das fontes da minha hiptese , amparadopelasleiturasdeElizabethEwart(2000)eDietschy(1976)darelaoentreconcentrismo e diametralismo, concluindo que o centro de uma aldeia [J] e seu exterior so posies aproximveiseintercambiveis(Vianna2001:330).
60Comesteparntesealertotantoparaoperigodesepensaraddivacomopuregift,supostamentedesinteressadae amistosa,quantoparaasmslimitaesheursticasdeumavisodaddivacomocoisaquecircula,oqueacolocaria somentesobumaconcepotroquistadereciprocidade,ignorandoseuefeitoprodutivodepessoas,dadaamisturaentre pessoaecoisaqueoricoestudomaussianopropiciainvestigar.Paraumaapreensodetalhadadaquesto,ver Falleiros(2005). 61 ParaumaleituracrticadestetextodeLviStrauss(1944),verLanna(1996),queconsideraahierarquiacomo constitutivadaprpriareciprocidade,oquenoteriaescapadoaMauss.Pensoquetalconsideraoestariadeacordo comteorizaeslvistraussianasmaisrecentes(1991),queenfatizamodesequilbrioinstvel.
63
Esteforadesiconstitutivopodeserremetidonovamenteaosonho,passandopelomitoe pela histria. oquedemonstra Srgio LuizRodrigues Medeiros,identificando uma estrutura narrativacomumentreosrelatosmticos,histricoseonricosauwxavanteapartirdoque foidocumentadodospronunciamentosoraisdeJernimoXavante(Medeiros1990). Analisando todos os mitos narrados por Jernimo, chegase a uma estrutura narrativa resumida,excetuandoalgumasvariaesaquieali,daseguinteforma:opersonagemdanarrativa 62 visita uma paragem mtica; em seguida o personagem volta para a aldeia; enfim, a aldeia beneficiada com o retorno do personagem, que portador de um segredo, saber ou riquezas adquiridos(ofogo,rituaisdepovosinimigos,ocultivodealimentosadquiridosdeoutrasentidades etc.,emesmooconhecimentosobretransgressesaseremevitadas) cujadivulgaoenriqueceo patrimniodatribo(sic)(Medeiros1990:86,passim). ParagemmticacomoMedeiroschamacertosstiosforadaaldeiaacessadosapartirde
62Personagemsingularoucoletivo,oumesmoduplo,nocasodosespiesqueandamsempreemdois,porexemplo. Masaindaquesejammaisdeumapessoanogeralumapessoasozinhaoqueasituaoenfatizaumafastamento destapessoaemrelaoaocoletivo,emsituaesdeisolamento,solidoeabandono,comoquandoasmulheresse tornamqueixadasporsesentiremabandonadaspeloshomens(Medeiros1990:6667).
64
incursespelamataoupelocerrado,lugaresemqueencontrosfantsticosfazemcomqueseviva algumaexperinciaextraordinria,locaisonderesidealgumserambivalente,numasituao envoltaemumaatmosferadesonhoepoesia(Medeiros1990:12).Seriaolugarondealgo preciosoestescondidoeo habitat dooutro(Medeiros1990:43grifodoautor).Sendoum estudioso de literatura sem formao etnolgica, Medeiros tambm faz referncia a figuras de linguagem empregadas para descrever os acontecimentos ligados a tais paragens e que, numa apreciao mais concreta e etnolgica, dirseia estarem ligadas a situaes de encontros com alteridades,capturas,transformaesemetamorfoses(comoquandoosfatosocorridosacarretam mutaesnaspessoasenvolvidas). AfimdecompreenderoqueMedeirosquerdizerporparagemmtica,podemosrecorrer, comofazoautor,noodemitodeLviStrauss.Aindaque,conformealerte,noestejaaplicando aanliseestruturaldosmitos,pois,apesardaforadomodelodas Mitolgicas edariquezadas operaeslgicasedadosqueelerevela,ofocodeMedeirosestnaanlisenarrativa(1990:11). Pareceme,contudo,frutferaacomparaoentreestaestruturanarrativaeodesequilbrio instvelqueLviStraussidentificarcomopadronasrelaesentreduplasdepersonagensmticos amerndiosemHistriadeLince.Decertomodo,oqueMedeirosfazeoquepretendofazer levarasrioomitocomopensamentoreflexivo,emesmocomofilosofiapoltica,dialogandocom eleassimcomopropsPerroneMoissapartirdeClastreseLviStrauss(PerroneMoiss2009). Aindaconformeosconceitoslvistraussianos,Medeirossupeque[um]mitodizrespeito, sempre,aacontecimentospassados:'antesdacriaodomundo',ou'duranteosprimeirostempos', emtodocaso,'fazmuitotempo'.Masovalorintrnsecoatribudoaomitoprovmdequeestes acontecimentos,quedecorremsupostamenteemummomentodotempo,formamtambm uma estruturapermanente.Estaserelacionasimultaneamenteaopassado,aopresenteeaofuturo(Lvi StraussapudMedeiros1990:15). Assim,anoodeparagemmtica,setomadanumsentidomaisforte,comoumlugarondeo mitosemanifesta,talvezcontenhaumcurtocircuito,jquemanifestasedentrodoprpriomito(de novo, a figura da garrafa de Klein vem a calhar). Entretanto, este curtocircuito causado justamente pela dupla feio de imanncia e retorno origem exterior: momento de diferena indiferenciadanosnoscortessociomtricos,naestruturasocialcsmica(estruturaemsentido meiofuncionalista,csmicaemsentidopsestruturalista),mastambmnaestruturatemporal. Demodoquenoestamoscomofuncionalismo,mascomumLviStraussquerevelauma antropologia da temporalidade que deixaria corados alguns de seus detratores, talvez mal 65
compreendidojustamenteporconteremseusdesenvolvimentosumamatrizummodusoperandi aprendidacomosamerndios.Amerndiosparaquemotempotransfiguradoemespao,ouvice versa,oscilanummovimentodeeternoretornodocentroaoexterior,comonofuncionamentode uma mquina antientrpica ou demnio antientrpico, se considerarmos o demnio de Maxwell,dotadodeagnciaecomavidaprolongadaserealimentadodeforatalqualode estruturasdissipativas[]queproduzemorganizaoapartirdeflutuaescaticasemsistemas quenoestoemequilbrio(Almeida1999:184186). J num sentido atenuado, paragem mtica trataseia do lugar chave de manifestao de acontecimentosmitooriginaistpicos.Sentidofracoqueinteressaaqui,semqueleveaperdero interesse no mais forte. Pois ajuda a pensar a paragem mtica fora do prprio mito, em sua articulaocomoquehdeperenenomito.Ou,melhor,narelaoentreatemporalidadeevolta incessante (eternoretorno).Quesacontecemapartirdecertomovimentoincessantenoespao ordenadocircularmente,sepensarmosarelaoentrecentroeperiferiadaaldeia,eentrealdeiaeo queacircunda. Medeirosnosautorizaapensaraposiodoprprionarrador,lideranae'Wamartede'wa Jernimo,nocaso comomovendosenestelugar,atravessandocrculosemimpulsosdesada, capturaefamiliarizaodocapturado.MedeirosfaladamitologizaodeJernimo,queassume uma imagem fascinante e todapoderosa como personagem central de seus sonhos relatados (Medeiros1990:8),alandooaumacondiosemelhantequeladeWarodiaoidentificarseaos antepassados mticos (Graham 2003 [1995]), constituindo relaes que o potencializam e magnificam.tambmnessesentidoqueJernimoapresentaasdemaisnarrativas,histricase onricas. NarradoresegrandeslderesqueforamJernimoeWarodiparecemfazerconfluir de algum modo o poder transformacional do mito e do xamanismo63. Poder sintetizado na noo a'uwxavante de romh enquanto criao/transformao, constituinte de todo trnsito entre mundos,emrelaoaosquaisJernimoeWarodi(porexemplo,masnoapenaseles)tmaposio demediao.Mediaoentremito,sonhoecoletivoa'uwxavante;emesmoentrecoletivoa'uw xavante,padreseantroplogos.Posiocoincidentesuacondiodeprestigiadoslderes.
63 Mas nunca totalmente, afinal o poder demirgico da palavra precisa ser controlado, como foi na histria dos Parinai'a,quecriavamalimentoseanimaispronunciandoseusnomes etransformandoseneles,porcausadisso mortospelosoutrosa'uw.OsParinai'asoumpardeamigosformalizadosadolescentes(noiniciados,portanto), cujanarrativamticaserexpostaadiante,detinhamumplenopoderdatransformaodapalavraemato.Umpoder antisocial,porquenemtudopodetersentidoparaquehajavidacoletiva.Nemtodasasassociaespodemserfeitas, casocontrrionenhumaassociaotemsentido.
66
Assim,poderiasesuporparaosA'uwXavanteumaindistinoentrelderespolticose lderesrituais(oquejhaviasidoindicadoporPoloMller197664),chefesexams,manifestana figuradesseslderesqueexalamxamanismoeassociamsuapessoaprpriaorigemdeseupovo, beiradeumafontedevitalidadecujopiceamorte,osacrifcioeodistanciamentoradical infortnios do guerreiro selvagem, como diria Clastres (2004 [1980])65. Neste sentido, na ecopoltica ou cosmopoltica a'uwxavante, as lideranas polticas e rituais confluem em direo potncia csmica, sem transformla num lugar ocupvel como aquele do poder poltico(verPerroneMoisseSztutman2009:3,Sztutman2005:73eVanzoliniFigueiredo2008: 91).Liderespolticoserituaisconfluemnosentidodequeaesternalizaodopoderpolticoconflui nabuscapelapotnciacsmica(toexteriorquantodeveserafontedeenergiadeumamquina antientrpica).Olugardopoder,assim,olugardapuravertigem,oatraentevcuoconectandoo limite66interioraolimiteexterior. O que refora, num sentido cosmolgico, a tese sociolgica de Clastres a respeito da exterioridadedopoder(Clastres2008[1982]).Massomenteseconsideramosqueestaexterioridade constitutiva da prpria interioridade, como o prprio Clastres intua ao tratar da questo da tradio e da alteridade comooriginria daprpriacultura(2004 [1980]:102,passim). Sem encontrar parada entre uma posio interior e um lugar exterior, essas pessoas potencialmente magnficas constituiriam um constante dilogo entre os plos da instabilidade. Atuaria a uma socialidadecontraoestvel,paraousarafelizformulaodeValriadeMacedoarespeitodos
64Alinhagemdefineseuprestgiopolticoenosuaidentidadeatravsdasfunesqueseusmembrostmodireitoe odeverdeexercer.Quantomaisinfluenteogrupo,maiordesempenhodefunesoufunesrituaismaisimportantes estaroacargodeseusmembros(PoloMller1976:183). 65CreioqueoexemplomaisnotriodestepiceedestedistanciamentoradicalestejanafiguradosastrosSol(Bd)e Lua(A'amo).Ambosforamadolescentesqueaceitaramumdesafioextremoumapegadinhadeseuscompanheiros, comosubirnumburitiouestourarumovoquentedeemanopeito,oprimeiroestourandooprprionus,queprojetou separafora,formandooSol,eosegundoafogandose,borbulhandonaguaaotentarresfriaraintensaqueimaduraque sofrera(paraumaversodestashistrias,verSereburetalii1998)evirandoLua.OsA'uwXavantedizemque proibidotsawidzahidirigirseaestesastrosdiretamenteougritarparaeles,poispodemdescereenforcaraqueleque os desrespeitou. Aceitaram um desafio mximo e magnificaramse de tal maneira que, hoje, vivem apartados do convviohumano.Algunsdizemquetaispersonagensremetem,respectivamente,aoscargoscerimoniais Pahri'wae Tbe. 66Limitenonosentidogeomtricodelimitao,isto,depermetrooutermoqueconstrangeedefineumaforma substancial(recordeseaidia,topresentenovocabulrioantropolgico,dasenceintesmentales),esimnosentido matemticodepontoparaoqualtendeumasrieouumarelao:limitetenso,nolimitecontorno(Viveirosde Castro2002b:121).
67
Guarani(Macedo2009). * Numacoincidnciabastantereveladora(dosmodosa'uwxavante)Medeirosapiaseno dialogismodeBakhtinparacompreenderaconstruodanarrativadeJernimo,assimcomofaria Grahamemseusvriosestudos(1990,1993,2003[1995]).Estedialogismoaparecemaisnosrelatos histricos, nos quais soa uma polifonia de vozes, sendo a do narrador apenas uma delas, sem prevalecersobreasdemais.Narradorquemostraseuinteressepelotestemunhodooutro,dando atenoparaarelaoentreospersonagens,emseudebatedeidiasdiscordantes,envolvendoa efetivaodeacordosbemcomoacontinuidadedainimizade,deixandooutremfalaratravsdesi. Assimomesmodialogismomanifestaseemmitosnosquaissedavozparainimigos. UmexemplodenarrativahistricaquefazissoorelatodoencontrocomosWaradzuToro (identificados por Medeiros como ndios aculturados, portanto diversos dos assim chamados waradzu, epteto atualmente identificado mais aos brancos), revelando tanto o que diz um membrodestes(feitocativopelosA'uwXavante)quantoumembateoudebateentreambosos povos, no qual os primeiros (inimigos dos A'uwXavante) do a alguns dos segundos, num momentodecaptura,aescolhadevoluntriaecorajosamentesubmeteremsemorteouvoltarem covardementeparaaaldeia(oquealgunsfazemeoutrosno).Josrelatosmticosdialgicos tratam,porexemplo,dosTsiretede'wa,cujosremanescentesdebatalha,aoinvsdesacrificados,so deixadosirparacontarseucasoaseuprpriopovo;edosHereroywa(sic)67que,entreumabatalha eoutra,dialogamcomosA'uwXavantearespeitodadevoluodemulherescapturadasporestes (Medeiros1990:135144),devoluoqueenfimserealizacomomostradehumanidadea'uw
67 Tsiretede'wa,conformea grafia apresentadapor Medeiros,talvezqueiradizerdonos dos passarinhos tsire: passarinho, tede'wa:dono.HindciosdistonanarrativaapresentadaporMedeirossobreacapturadeumpssaro empreendidapelosndiosbaixinhosTsiretede'wapssaroeste,contudo,chamadonanarrativadetsiwaw:pssaro grande,guia(Medeiros1990:30)talvezacapturadograndegarantaottulodedonosdospssarosemgeral, consideradasasconcepesqueosA'uwXavantetmsobreotamanhocorporaleopoder(nosentidodequeanimais maioresso chefes dosmenoresdamesmaespcie,comoservisto),oquepororaapenasconjectura.Entretanto, comocomumaomissodagrafiadaoclusoglotal,parelhaomissotambmcomumnafalaa'uwxavante,talvez otermopossaserTsi'rtede'wa,oquelhedariaumengenhososentido,jquetsi'rquerdizerseparado,dividido, raizdapalavratsi'r'waosdooutrolado,afins.JHereroywasemdvidaumagrafiadiferenteparaotermo Hireri'wa que,comooprprioautorreconhece(Medeiros1990:3738),referesetantoaumcertopovoinimigo quantoonomequesedaosadolescentesa'uwxavanteapsafuraodeorelhaspormantesdotrminodetodos osrituaisqueoslevaroprximafasedavida,portanto,umarefernciadeliminaridade.Seforlevadaadianteesta analogiaentreumpovoinimigoeadolescentesquaseadultos,surgemrevelaesinteressantessobreaconcepode genteepessoaa'uwxavanteesuanecessriapassagempelaliminaridade.
68
xavante(edesuaendogamia). Este estilo dialgicoestariapresente,segundoMedeiros,nos discursos feitos durante as reuniesnoturnasdo war,quandoosoradoresa'uwxavantesreproduzemdramaticamente,em suasfalas,aquelasdospersonagensdequetratam,portriviaisquesejam,concordemounocomo pontodevistadeles(Medeiros1990:142144).Oquenovamentepodesercomparadoanlisede Graham(1990,1993,2003[1995])sobreumpontoligeiramentediferente:oembateentreoradores noqualcadaumencorpora,nasuafala,afaladooradoroposto,semqueoconsensoconstitudo entreelesvenhaaserumprodutoposteriordojogoentrediferenasindividuais(comoseriano modelo da esferapblica modernadeHabermas,segundoaautora),demaneira que tanto a concordnciaquantoadiscordnciamanifestemsesimultaneamentenaincorporaodeumpelo outro.Algosemelhanteaodiscursodochefedealdeiaa'uwxavante,queoperacomomediador 68 entreasfaces(apesardesergeralmentemembrodamaisforte)e,emsuafala,incorporaos apartesfeitospelosparticipantesdareuniodo war (MayburyLewis1984[1967]).Enfim,um dialogismomaisprximodeumadialticasemsntese.Quiummistodeconjunoedisjuno entreumeoutro,misturaeseparao. Alm deste dialogismo (que Medeiros identifica, ademais, nos sonhos), a estrutura das narrativas histricas apresenta uma semelhana em relao adas narrativas mticas. Os relatos chamadosporMedeirosdehistricosincluemfatosocorridosposteriormenteacertoseventos mticosderuptura,comooroubodofogodaona:quandoofogolhefoiroubado,ametamorfose daonaseconcluiu,nohmaiscomoelavoltaraserambivalentegente,comoeraantes.Para Medeiros,atransformaonoenvolvesimplesmenteoroubodofogo,masacontinuidadedesua produo,umsaberfazer.Damesmaforma,depoisdeaprenderemaplantaromilho,nohmais retorno ao momento anterior de descoberta do milho narrado miticamente. medida que os Xavanteiamseapropriandodosbensculturaisdisseminadospelasparagensmticas,ossereseos objetosambivalentesqueaexistiamtambmforamdesaparecendo''osmilagres'',comodiz Jernimo,desapareceram.Seacondioanteriortornaseirretornvel,osaberfazerparecesero responsvelpelametamorfoseou,pelomenos,pelamanutenodoplomaisavanadodoprocesso degentificao:ahumanidadedependedacontnuaatualizaoprticadatcnica,dohabitus69. 68 Demodoquenohajaumaverdadegeral,universal,tantoquantonohajaincompatibilidadeentrediferentes
verdades. 69ReiteroaconcepodeMausssobreohabitus:Esses''hbitos''variamnosimplesmentecomosindivduosesuas imitaes,variamsobretudocomassociedades,aseducaes,asconveninciaseasmodas,osprestgios.precisover tcnicaseaobradarazoprticacoletivaeindividuallondegeralmentesevapenasaalmaesuasfaculdadesde
69
Aindaque,emcertoslugares,omistrio[tenhasepreservado]intacto:porexemplo,o donodasguasparadas u'utede'wa aindahabitaumalagoanaterradeCoutoMagalhes (atualmente Terra Indgena de Parabubure). Ou que, a partir de certos rituais, como o Wai'a (tambm chamado Darini), revivase o embate entre tsimihpri (espritos maus (sic)) e danhimite(espritosbons(sic)),presenciadomiticamente(Medeiros1990:129130). Esses relatos histricos tm a seguinte estrutura narrativa: primeiramente os espies (espio traduo que Medeiros oferece para tsawr'wa, batedor), normalmente em dupla, descobremooutro;emseguidaestesreencontramoscompanheiroserelatamoquesabemsobre ooutro;finalmente,ogrupo,apartirdessasinformaes,decidesedeveatacaroupacificaro outro(Medeiros1990:148151).Notesequeessesrelatostratamdesituaesdeencontroemque acoletividadefazseprecedernamovimentaopelomatoemsituaesdecaa,coletaoumesmo migrao,quecostumavamfazerpartedomovimentocoletivosazonalconhecidocomo Dzmori (palavraque,emtraduodireta,querdizeralgocomoiratrs,buscar)peloqualosgrupos domsticos da aldeia saam autonomamente por rotas prprias pela mata, durante semanas (MayburyLewis 1984 [1967] e Gauditano 2010) por espies ou batedores responsveis pelo quasecontato, personagens eixos entre os pontos de passagem da trama. Esta a importncia histricadotsawr'wacomoagentedecontatoa'uwxavante. Seformoslevaraoextremoahomologiaentreo dahibauptabi emviagem(sonho)eo agentedecontato,considerandoo dahibauptabi emsuarelaoentreointernoeoexternoda pessoaa'uwxavante,os 'riti'wa,caadoresdebraos, poderiamservistos,naperspectivada internalidadeexteriorizada,comorepresentantesdoprprioa'uwxavanteperanteoestranho,o estrangeiro.O'riti'wasujeitoestandoforaou,melhor,suaanalogiacomaalmaoucorpomesmo, personitudevitala'uwxavante,sfazsentidoemsuacondioexteriorizada,comoaalmaquesai emsonho.Assimtemsentidocomofiguramarginaldaaldeia,circulandoentresuaperiferiaesua externalidade:os 'riti'wa soguerreiros,tmcomoidealoconflitocomoestrangeiro,dormem
repetio..ComissoMaussnoestfazendoumadefesadarazoprticacontraasfaculdadesdaalma,massim salientando que todos os aspectos devem ser levados em conta, no sentido de um homem total, biolgico, sociolgicoepsicolgico,trselementosindissoluvelmentemisturados(2003:404405grifomeu).Oquese passaumaimitaoprestigiosa.Acriana,comooadulto,imitaatosbemsucedidosqueelaviuserefetuadospor pessoasnasquaisconfiaequetmautoridadesobreela.Oatoseimpedefora,doalto,mesmoumatoexclusivamente biolgico,relativoaocorpo.Evitandoumaleituradurkheimiana,podesefazeruma leituramaisa'uwxavantedo foraedoaltocomofontedoprestgiodapessoaquefazoatoordenado,autorizado,provado.ou,caracterizando melhoratcnica:atotradicionaleficaz(evejamquenissonodiferedoatomgico,religioso,simblico),tcnicado corpo(Mauss2003:407).
70
muitasvezesforadecasa(paraevitaros sogros),estonoaugedadisposioparaaluta.Os 'riti'waestomuitobravos,diziamosA'uwXavanteparaMayburyLewisquandosetratavade comunicarlhepossibilidadesdeconflitoouguerra,fazendonotaropesoideolgicodestacategoria (MayburyLewis1984[1967]). Aassociaoentreocorpomesmo(alma)dosa'uwxavanteemmovimentonosonhoeo mesmo movimento feito pelo tsawr'wa, no padro comum entre eles, aponta para o velho fundamentodaontologiaamerndiachamadodeantropofagiapelosmodernistas:ummovimento emdireoaooutro,capturandooparaconstituirosimesmo.Oquenodeixadeserumaparagem comum da etnologia das terras baixas brasileiras, reforando a tese da preenso relacional (Viveiros de Castro 1986) e sua predao ontolgica, constituinte do regime geral de subjetificao oupersonificaonaAmazniaindgena(ViveirosdeCastro2002a: 1415). Se associarmosestemovimento,porsuavez,aoutrospersonagensgrandiosos,comoosherisque fazemascapturasmticas,ossonhadores,osdonosdegenteetc.,estendeseatesedapredao ontolgicaparaaconstituiodalideranacomopessoamagnificada. Amagnificaodelderes amerndios (Sztutman 2005) opera em grande escala aquilo que a caracterstica mesma da constituiodapessoa:aapreensodapotnciaestrangeira.70 Daretornamos,maisumavez,aosonho,notandosuaimportnciafundamentalnadistino elementardaconstituiodapessoaa'uwxavante:aquelaentreomomentodaalmanocorpo vigliaeomomentodaalmaforadocorposonho,umacondiopendulardeinternalizaoe externalizaodesi.Dessemodo,conformedisseramPerroneMoisseSztutmansobrequestoque meparececorrelata: Aincompletudedosmovimentos,emambosossentidos,anofixaoemnenhum dosplos,oquegaranteacontinuidadedoprpriomovimento.()Dizemos''pndulo''e nofundo,evidentemente,esto''dualismoemperptuodesequilbrio''propostoporLvi Strauss[emHistriadeLince]comomolamestradopensamentoamerndio.Essanoo fundamental,diziaLviStrauss,podetransparecernaideologia(cosmologia),expressarse namitologia,ounaorganizaosocial,ouemambas(...).Nohdesurpreenderqueo dualismoemperptuodesequilbriopossatambmfazersepoltica. (PerroneMoisse Sztutman2009:10).
70 Aquiconsideroque,aomenosparaamagnificaoa'uwxavante,humarelaoentrepredaoeatraode seguidores:umgrandeatratordeseguidores,numcertosentido,umgrandepredador,porquecapturaeredistribui dadivosamente,agenerosidadequeoengrandecedependedarelaocomafonteexteriordepodercosmopoltico.
71
Ou ento,diriacomosA'uwXavante,fazersecorpoealma,emmovimentopendular semelhanteaofeitopeloscorposcoletivos. Aqui,aconstituioedissoluodecoletivos(examinadaporPerroneMoisseSztutmanno textosupracitado)podeencontrarpistasnaestruturadasnarrativasa'uwxavantecomoestudada porMedeiros,narrativasqueinformammovimentoseagentesdeinteriorizaoeexteriorizao, colocandoaquestodaconstituioedefiniodocoletivoqueconjugacriaoetransformao numsmovimentodedistanciamentoapartirdoslimitesdesseentraesai.Apostoassimnatese dequeomesmoprincpiodeentraesai expressonaconstituiodocoletivoenaconstituio dapessoa. Omovimentodopndulopodeteralgoemcomumcomaqueledodilogoque,segundo Medeiros,constituiosonhoou,maisespecificamente,osonhodo'Wamartede'waapesardequeo prprioautorreconhea,comotambmmostrammeusdadosdecampo,quequalquerpessoapode sonhardemaneirasemelhante,demodoqueo'Wamartede'wapodeserconsideradoumsonhador magnificado.O'Wamartede'wa,emsuaviagemonrica,temumencontrocomcertoesprito:a prpriamadeirade'wamr(Medeiros1990:172),quepoderiaassumiraparnciasdiversasecuja funonarrativasempreadedialogarcomosonhador,fornecendolheconselhoseinformaes teis, que sejam vlidos para a comunidade como um todo e no apenas para o prprio ['Wamartede'wa]. J depois de sua catequizao, Jernimo passa a sonhar com outros personagens, Dapoto'wa (Deus)eseufilhoJesusCristo71 lembrandoqueanoodecriao (dapodo,deondevemdapoto'wa,criador)a'uwxavantesfazsentidocomotransformao. MasmesmomudandoosinterlocutoresdeJernimo,o sonhocontinuasendoumdilogo. Noselecomotambmsuatransmisso,quesegueodialogismoexpositivotpicodonarrador a'uwxavante(Medeiros1990:170171). Opndulopareceser,assim,oprpriomediador,emseuprocessodeentradaesada.Os movimentos de sada, aventurana e retorno aldeia narrados em sonho so semelhantes aos
71MedeirosidentificaumadiferenadecomportamentodeJernimoemrelaoacadaumdospersonagens,etambm dosmesmos.Enquantoo'wamarestimulaaaotipicamentecaadoraeguerreira,deapreensodeferramentasdos waradzuetc.,quevisamobenefcio[]dosXavanteemdetrimentodooutrooquepodesechamardecaptura,o Dapoto'wa promete (e dissuadido na maioria das vezes) punies (como transformao dos a'wuxavante em animais:puniesmticastpicas)casoprticascomooroubo,porexemplo,persistamseguindoportantoumatica mais crist e menos predatria , enquanto Jesus Cristo, como filho de Dapoto'wa, teria um comportamento ambivalente(Medeiros1990:186189).
72
movimentoshistricosmticos:expedies,viagens,guerras,caadas:seguemamesmaestrutura narrativa,omesmomovimento.Destemodo,comoseosonhador(o'Wamartede'wa)eobatedor ouespio(tsawr'wa)tivessemamesmatarefapendular:serointermedirioentreosXavanteeo outro,poisambosatuamcomoguiasdogruponaaproximaoaooutro(Medeiros1990:171174). O prprio Jernimovalidaestaassociaodiretaaosecolocarcomoespioemseusrelatos onricos.GiaccariaeHeide(1976:240244),porsuavez,fazemnotarquenachegadadasgrandes expediesdecaaecoleta(dzmori)nosotsawr'waexerciamfunoritualimportantecomo mensageirosdeboasintenesentreocoletivoquechegavaaldeiaeaquelequejhaviachegado jqueaaldeiasefragmentavaemvriosgruposdomsticosparaestasexpedies,quemuitas vezesaproveitavamparadarvazossuasdesavenasnoretornandoaldeia,rumandoparaoutra (MayburyLewis1984[1967])emesmotentandoumataque,oquecaracterizavaodzmoricomoo plofragmentardopndulopolticoa'uwxavantemastambmo'Wamardzubtede'wa atuava nessesmomentos,comseuppacificador. Arelaoentreosonhoeahistriatambmencadeada,jqueamensagemonrica[] estimulaaprpriaaodosespies,queconcretizaroessecontato,assegurandoaoscompanheiros averacidadedaspalavrasouvidasnosonho(Medeiros1990:171174). Essesdoispersonagenstambmpodemserassociadasfiguradocaadortantoquantodo guerreiroque,segundoMedeiros,fundamsenochamamentoincisivoao(Medeiros1990: 171174),umaodevidaativa.AoaqueMedeirosnonomeia,masquepoderiasernomeada aquicomocaptura. Interessante notar que, quanto centralidade de seu papel e sua importncia para a humanidade,o'Wamartede'wa,segundodisserammeHipardiealgunsdeseusparentes,aquele cuja linhagem podesedizerpropriamentehumana, a'uw uptabi.Almdisso,segundoaanlise queMedeirosfazdaatuaodeJernimo,o'Wamartede'watemalgodeprofetaereformadorda sociedade (Medeiros 1990: 182). Assim, a importncia do 'Wamartede'wa em termos da constituio,continuidadeemudanacoletivaparececongruentesuacondiodegentemesmo, dacoletividadehumanapropriamentedita.Comisso,umafascadesemelhanabrilhaentreessas noes dahibauptabi quevaievoltadocorpo, 'Wamaritede'waa'uwuptabi) ( quevaievoltado coletivoe,enfim,o a'uwuptabi. Semelhanas como aquelas que decorrem um certo padro replicado nas estruturas narrativasde mito,histriaesonho,principalmentenoqueconcerneseussujeitos:afigurado tsawr'wa, batedor ou espio responsvel por primeiros ou aventureiros contatos com 73
desconhecidos; a figura do homem de prestgio, 'Wamartede'wa, especialista em contatos pacificadorescomaalteridadeesuapotncia,sejaonrica,mticaouhistrica,sejamosprprios missionrioseetngrafosqueoagenciamesoagenciadosporele;aprpriaalmaoudahiba uptabiquesainosonho,acaadeumaalteridade,oudeumavitalidadeoutra... Estassemelhanassoporanalogia,nosetratadeumarelaodeidentidadecomoaquela entre as noes de esprito, xam e pessoas mitooriginais na Amaznia como corporalidades dinmicasintensivas (ViveirosdeCastro2006:326),aindaquetodasessasfigurasa'uwxavante tomemsuapartenapolticadiplomticacsmicatransformacional.So,ainda,semelhanasque podemencontrarna constituiodapessoa,na constituiodacoletividade ena constituioda lideranaummesmomovimento. Medeirosesquematizaassimomovimentoentrenarrativaesonhodo'Wamartede'wa(com aressalvadequetodoa'uwxavantetemopoderdesonhar 72):o 'Wamartede'wa dialogacomo espritoonrico;emviglia,transmitealdeiasuamensagem;estarespondetomandoatitudes condizentes com a mensagem premonitria, beneficiandose. [A] reminiscncia onrica de Jernimocompreendeumsonho,asuacomunicaoposteriore,porltimo,arespostadaaldeia (Medeiros1990:196167). Destaforma,amesmaestruturanarrativaapresentadaporMedeirossubjazaostrsgneros narrativosqueoautordistingueseguindoosorganizadoresdasnarrativasdeJernimo,Giaccariae Heide.Estasemelhanapodesugerirqueosaberfazer,oconhecimentoeareplicaodatcnicaa partirdeumatradio,adquiridanosprocessosquemarcamapassagemdomitoparaahistria, tambmserepliquemnasprpriastransformaeshistricas.Afinal,LopesdaSilvaargumentaque osA'uwXavantenodistinguemrelatoshistricosdemticosemtermosdesuatemporalidade, poisambostratamdoqueaconteceudurih,antigamente,sendoassimambosdurihwatsu'u histriadeantigamente: Dureihwatsuu (estrias''antigas''oudehmuitotempo), itsnaratawatsuu (estrias do ''comeo'') ou wahirata nori (nimi) watsuu (estrias que os antepassados contavamouestriassobreosantepassados).Aoquetudoindica,tratasedertulosgerais empregados alternativamente e que cobrem um mesmo campo semntico. Englobam
72Semdemonstrloatravsdeargumentosnativos,Medeirosassociaopodersonhar,ouaconquistadodireitode sonhar,aomitodamulherestrela,emqueumrapazvisitaaaldeiadosmortosconvidadopelaestrelatendocomo veculoumapalmeiraquecresceuatocu.Comisso,aviagemaldeiadosmortos,realizadasecretamentepelo wapt,foiportanto''domesticada''pelosXavante(Medeiros1990:194).
74
quandoanalisadosapartirdeoutroquadroderefernciaqueodaclassificaoXavantea) mitosdeorigemetransformao(relacionadospassagemdanaturezaCultura);b)relatos deexpediodecaa;c)relatosdeenfrentamentosentreguerreirosdedistintasaldeias XavanteeentreosXavanteeoutrospovosindgenase(...)eventoshistricosquechamaria de''mitificados''(LopesdaSilva1984:2023). Enfim,conformeaclassificaoXavante,aconflunciaentreoqueMedeiroschamoude relatoshistricoserelatosmticosnoqueLopesdaSilvaidentificacomomesmocamposemntico apenasreforaatese:hummesmosentidonomovimentodeaoedenarraoa'uwxavante. Um padro que me parece manifestarse no que foi realado por Vianna O sentido da permannciadaculturacaminha,porassimdizer,dabocadumapotnciasimblica waradzu ao ouvidodumauw,edeste,paraacoletividade.(2001:99100).Padrorelacionalquenafrase postonoplanodiscursivo(movimentoquevaidabocadeumaoouvidodeoutro)masque podeserexpandidoparaosmaisamplosdomniosdavida 73,equefundamentaatesedeVianna sobre o xamanismo ontolgico a'uwxavante na relao com o futebol waradzu, tradio no apenasoralmas detcnicasdocorpo. Esteomesmopadroqueinspirouminhaformulao circulardatradioa'uwxavantecomoconstituiodointernoapartirdoquevmdeforae redistribudo,envolvendorelaesdesolidariedadeeantagonismo,sendoaexternalidademxima constitutivadainternalidade(Falleiros2005),umfoconatradioquenodeixadepediroseu contrrioconstitutivo:apredao. Sejammovimentosxamnicosmodaantiga,comoaviagemonrica,sejamxamanismos modernos,comoojogodefutebolxamanismoscosmopolticosoquehemcomumemtodos elesotipodeaoenvolvida.umaaodesadaeretornoquetransformaseuprpriopontode partidadevidoarelaoestabelecidacomopontodechegada.Contidonanarrativa,humfluxo contnuodesada,descoberta,retornoetransformao.Cadanarrativaapresentaumafinalizao hierarquizada depossibilidades.A questoqueasnarrativas nopodempararecomelas as hierarquiasepossibilidadestambmno,precisosemprenovasaesparanovasnarrativas,e novasnarrativasparanovasaes,porqueomovimentonoapenasdodiscurso,ummovimento daprtica,davida,emsuaentropiaeantientropia. ummovimentodepragmtica,deeficciasimblica.opoderdapalavraemtornarseato umpoderque,paraosA'uwXavante,deveserbemcontroladoelimitado(confiraahistria
73 Domniosdistintosparaumaoperaodeanlisecartesiana,oquenopareceserocasodaanlisedosprprios A'uwXavantesobresuavida.
75
dos demiurgos Parinai'a). Caso contrrio, o demnio antientrpico padece, ele precisa de represso, conscincia coletiva, tradio, votao, constituies[, r]egras, tabus, preferncias, mapas, estilos e cosmologia, restries no movimento de vaievem (Almeida 1999: 184) movimentoque,contudo,permanecenecessrio,afinal,comodiriaMauss,ostabusforamfeitos paraseremviolados74. Os Parinai'a so uma dupla de jovens no iniciados e amigos formalizados que se transformavamemanimaiseplantasdizendoonome,oquetrouxetambmopavor,peloqualforam sacrificados pelos mais velhos. Pois a morte (ou tentativa de morte, como ser mostrado) dos Parinai'acriaatradio.Tradioquenodependesdamemriamastambmdoesquecimento, pelanecessidadedesedesfazeremdamemriaintilacumulada.Casocontrrio,cairseianuma vertigem, inclusive porque sua longevidade fundamentase na realimentao exgena (Almeida 1999:185). Estaaoummovimentotantosimblicoquantopoltico,porqueenvolveotrnsitopelas margens do coletivo trnsito que as definem. Ou, melhor, trnsito entre os limitestenses extremos da continuidade coletiva e de sua transformao. A substncia transitada constitui o prpriolimitedefinitivo:halgoaseaprender,algoaseadquirir,sejadado,sejatomado,houtro algum(eojogodemisturaeantagonismoentrealgoealgumafundamental), algoque podetransformarcaoticamentequemotomasemedidasordenadorasnoforemtomadas. ummovimentosobretudodecaptura,caractersticodaeconomiasimblicadapredao (ViveirosdeCastro1993,AnneCristineTaylor2000),outromodelogeneralizantedaetnologia amerndia,aquirecuperado. Poiscreioserpossvelenecessriorecapitularanoodepredaocomocaractersticada capturaedoxamanismoa'uwxavantedequesepretendetrataraqui.Emminhaexperinciade campo,nohcomoconsiderarumasriedeocorrncias,pelomenosprimeiravistacomoa formapelaqualaspessoaspedemaoantroplogoasmaisdiversascoisasdemododemandantee incisivo(esuamoraldagenerosidade);aformapelaqualaspessoasrecebempresentes(umaalegria agressivademedquemeu);aformacomolderesentramnaaldeiadepoisdecapturasbem sucedidas e dispem seus presentes para todos, muitos conquistados dos waradzu (cobertores, fardosdealimentos,carnedeabateetc.);aformacomoesperamqueeuajanamesmacircunstncia (chegandodeviagem,precisoapresentarmeno war noite,comofazqualquervisitantequese prese,equasesemprenestemomentofazerumaentregaformaldediversospresentesparahomens
74UmexemplodosparadoxosdeMauss,escutadoporumdeseusalunos,AlfredMtraux,emsaladeaula(Clifford 2002[1994]:143144).
76
assembleadosesuascasas)etc.semseretomarsnuancesconfluentesdanoodepredao. TomocomopontodepartidaaquelasproposiesdeViveirosdeCastroeAnneChristine Taylor.Nessesentido,predaopodecaracterizarprestaesdehostilidade,guerraecaa,numa esfera deparentescopotencialousciopoltica,afimdeconstituiroqueinternoapartirda incorporaodoqueexterno.Tantooelementoagressivoquantoosinalnegativo(oopostode dar) da noo de predao no parecem desprezveis nas formulaes desses autores, mas a valorizaoeincorporaodoexternoparaaconstituiodointernootommaismarcantedatese daeconomiasimblicadapredao. Hdoisaspectosimportantesnessanoodepredao.Oprimeiro,seumodo:agressividade equiagonismonaformadeddivasnegativasnegativasporacentuaremotomar,inversodo dar,queocomplementacomoumasombraquetantorevelacontornosquantoencobreindcios(j queosA'uwXavanteevitammuitasvezesrevelarquemlhesintermediouarelaocomoqueest sendotransmitido75).Osegundosuaontologia:ooutrocomoconstitutivodomesmo.Nessesentido, deveseconsiderarapredaoparaalmdaagressividade,doagonismoedaguerra.Porque,sea agressoconstitutiva,htambmumaforteatenodosA'uwXavantequestodapazque,se para MayburyLewis (1984 [1967]) estava ligada a um ideal de harmonia (em oposio prticafaccional),paraLopesdaSilva(1986[1980])apareciacomoumdosplosdeuma alternnciaenvolvendoummovimentopendularentreacooperaoeadisputa(Viana2001). Nesse sentido, cabe considerar que a predao tambm est envolvida dialeticamente com a familiarizao(Fausto1997e2001)comomeiodeacessoscapacidadesxamnicasdecura, fecundidade,fartura,criatividade(Fausto,1997:325).SeguindooraciocniodeFausto,apredao a'uwxavantepareceteremaltacontaprocessosdefiliaoadotiva. Inspirado naabordagem de Faustosobrea filiao e baseado em dados da pesquisa de campojuntoaosA'uwXavante,sugironatesequeapredaoa'uwxavantetambmocorreno seiodoprprioparentesco,indoalmouaqumdaeconomiasimblicadapredaobaseadaem relaessciopolticas. Devesersalientadotambmqueotrnsitodapredaoumtrnsitodealgo,sejaestealgo formulado como substncia,essncia,corpo,alma, pessoaouddiva, numsentido maussianodostermos(Mauss2003:185317). Tomo a noo de predao como congruente com recentes crticas s distines entre polticaexamanismo,oupoderesaber,naconstituiodapessoaamerndia,nosporsubsumiro
75Porexemplo,noserevelaseumcantoqueestsendocantadofoisonhadoedadoaocantadorporumterceiro,a relaocomapotnciacosmopolticaapresentadacomodireta.
77
xamanismomasporoferecerumareflexosobreaecologia,atopologiaeo modusoperandi do poder,doantipoderoudoquasepoderparaosA'uwXavante:relaescomapotnciacsmica, focoexterior dacosmopolticaedaecopolticaindgenas,doqualsecapturampessoas,coisas, saberes,rituaisetc. Assim,porexemplo,oguerreiroqueserveaaldeiaemataumwaradzu,rasgandoetrazendo suaroupa,fazmudardenometodagentedaaldeia,transformandoacapturadeumapotnciado outroempoderdapalavra,etornandoseorasgadorumdonodegente,A'uwtede'wa.Oquemais umttulohonorficoqueumcargocomfunesespecficastalqualodopacifista'Wamrtede'wa, masseuprocedimentosemelhante,porqueseuteatrodeoperaestambm:oslimitesdaaldeia e seus misteriosos exteriores76 onde a captura acontece, onde as continuidades se rasgam mas tambmsetecem. Encontramseaquiquestesclastreanasdebasemasapartirdeumcertodeslocamento sobreosentidodopoder(e,comele,dasociedade)edahistria(Clastres2003[1974])anlogo aoslimitesdohumano,dagenteedapessoa,edeumatemporalidadequetorceaslinhasquecortam ouatravessammitoehistria77. *** Virandogentedenovo
76Sejaamata,sejaacidade,sejaaaldeiadosmortossituadanoalto,nocu(Medeiros1990:55). 77 DeacordocomaperguntafeitaporClastres,osentidodahistriaestarianapassagemdopoderpolticono coercitivoaopoderpolticocoercitivo,dasuainvestigaoacercadasociedadecontraoEstadosetratardeuma investigaoarespeitodosselvagenseprimitivosvocabulrioevolucionistamaspondoemquestoahierarquia quesubjugaosprimitivossemEstadoaoscivilizadoscomEstado,tratandoaquelescomodotadosdeuma dinmicadiversa,contraoEstado.Demodoqueosentidodahistriaprimitivanoseriaodaevoluodafaltade EstadoparaoEstado,masdeumaopoporcontrariarecomissocontrolaraevoluodoEstado.Evitandomaiores discussessobreoquevemaserprimitivo,optopelasoluoapresentadaporPerroneMoisseSztutmanemretomar oprojetodeestudosclastreanocomumpropsitomaisrestrito:noconsideramos''asociedadeprimitiva'',masapenas asamerndias,demodoqueinteressasaberquaisseriamostermosamerndiosdessareflexo(PerroneMoisse Sztutman2009:1).Meu(re)encontro(in)suspeitocomClastresestcertamenteligadoaoencontroentrealgunsdemeus anseiosealinhadepesquisadasFormas Polticas Amerndias(grupoformadoatualmenteporBeatrizPerrone Moiss,RenatoSztutman,SpensyK.Pimentel,GuilhermeFalleiros,AndrDrago,DiegoRosaeGabrielaFreire).Mas oprosseguimentodestepropsitotericosfoibuscadoaquigraasinflunciadosA'uwXavante,quemeensinaram comopoltica,gentificaoeparticipaodoetngrafopodemserinseparveis.Enfim,umasriedebonsencontros seosindciosqueapresentaraquimepermitiremdizlo.
78
Ojogodemisturaeantagonismoentrealgoealgumquepredadoecapturado,que trazido do forapara aconstituio dodentro, ofoco daanlisedecomo os A'uwXavante capturamoucapturaramesteantroplogo.Aassociao,algolivreeselvagem,quesecostuma fazerentreasnoesdecanibalismoepredaojcarregaemsiaidiadequequempredado, ao menos potencialmente, gente como quem preda78 enfim, a prpria relao envolve transformaesdadaspelacirculaodesubstnciasentreaspartes. Todoumproblemadarelaoentrepessoaecoisa,endereadopelodebatedaddivacoma predao(verFalleiros2005),aquisedesdobranarelaoentrehumanoenohumano,confluindo aquestodasubjetividade,daagnciaedasrelaescaracterizaodecortesepassagensnarede davidaquevmdefinirquemequemnogenteeque,porissomesmo,genteempotencial. Omesmoproblemaaparecenarelaoentrealmaecorpo,quientreCulturaeNatureza. Emsetratandodepredao,podesefazerumaassociaocomaidiadealimentaoda ciberntica, no sentido que a transferncia de informao entre um e outro seja tambm uma alimentao.Umaeconomiasimblicadapredaoa'uwxavantetratadacomociberntica.Pensa se em ciberntica sobretudo a partir da leitura de Wiener (1968 [1950]) aproveitada pela antropologiacomomostraAlmeida(1999),prestandosumaatenoaseuaspectoantientrpico. Paraqueseentendaoquequerodizercomissoapartirdeumafigurasimplificada,imagine seumafogueiraconsumindoseucombustvel:restarosomentecinzaseafogueiramorrercaso ningumaalimentecommaislenhaoudiminuaseucalorapartirdeoutrosmeios,comojogando umapequenaquantidadedeguasenobasedecusparadas,comofazemconstantementeos A'uwXavanteaopdofogonowar.Cusparadasantientrpicas,queresfriamosistema. Aantientropia,assim,ummovimentocontraahistria,paraficarcomasugestodada porMrcio Goldman(1999) apartirdadiscussolvistraussianasobrehistoricidadesfriase quentesdiscussoquedevemuitociberntica.Isto,umprincpioativocontraainternalizao dodesenvolvimentoesuaspotncias,quedemandamquetudoardaataltimagotadecombustvel fssil (como diria Max Weber). Contra a histria, contra o Estado, como sugere Goldman, apontandoparapropostasclastreanas(1999:233234).
78Cientedequeaetnologiaamerndiatemapresentadoreflexessobreestaquestoqueapontamparaumadisjuno entrepredadorepresaoraacorrendodistinoentresujeitoeobjeto,acreditoqueocasoa'uwxavante,pelo menos,podeajudaradeseclipsaradificuldadedestadisjuno,operigopermanentedaausnciadedisjuno.Faoisso aoencontrodereflexesmaussianasque,porseuturno,forambaseadasemetnografiasdasmaisdiversas,inclusive sobrepovosdaAmrica.
79
Afontedecalor,dedesenvolvimento,depoder,deveestardoladodeforaparafalarcom Clastresparaquesuaspotnciaspossamserperseguidasecapturas,trazidasparadentro,como mostramasnarrativasa'uwxavantes.Pois,poroutrolado,parecemenecessrio,paraodebate queapresento,recuperaroutrapercepolvistraussianasobrearelaoamerndiaentreosplos opostos:aquestodaboadistncia(LviStrauss2006[1968]).Nessesentido,oesfriamento,a antientropiaascusparadasprecisamsercontrabalanceadascomcalorcomalimentao,com lenhanafogueira:entropia... * A mitologia a'uwxavante analisada por Srgio Medeiros apresenta uma caracterstica interessantearespeitodotempoemqueoshumanoseanimaisnoeramdiferentes:aocontrriodo homem natural que vivia sem morada, fala e companhia (conforme o experimento lgico narrativodafilosofiacontratualistadeRousseau,rememoradaporMedeiros),osA'uwXavante dosprimrdiosdesdequeumpardehomensoriginaiscriousuasesposasetiveramdescendentes79 vivemnumaaldeiaeexcursionamregularmentepelomisteriosoterritrio[]quecircundaa aldeiaedepoisretornamparacasadepossedeumsegredo[]querevelamaoscompanheirose assim enriquecem [nos], de revelao em revelao. Assim, nunca houve sobre a terra um homemnatural[]indiferentesociabilidade(Medeiros1990:40).[O]Xavanteprimordialj umsersocialereside,comamulhereosfilhos,numaaldeiaconstitudaporvriasoutrasfamlias (Medeiros1990:41). Oquesepodeconcluirqueasrelaessociais,omododevidaeseulugarconstitutivo decomo(oudeveriaser)avidahojeportantorelaesquetambmformamumaestrutura permanentequeconfluitemporalidadeeespacialidadecircularesousemicircularesjestavam presentesaotempodaindiferenaentrehumanoseanimais,quenodeveserconfundidacom equivalncia,poismultiplicaoindiferenciadadediferenasqueseinterpenetramesemisturam, sem especificaremse. Passado, presente e futuro aparecem como crculos concntricos que confluemquandoopassadofazpresenanofuturoaoabriraconcentralidadedoscrculos.Talvez porissoaaldeiaa'uwxavantesejaumcrculoaberto,semicrculo.Aapreciaodocontatoentre futuroepassado,interioreexterior,possibilitadopelaaberturadocrculoespaotemporalparece serfundamentalnacompreensodomovimentotransformacionalentrea'uwewuaradzu,afimde explicaracapturaa'uwxavante. Diversashistriasdeantigamentea'uwxavantetratamdatransformaodohumanoem
79AquiMedeirosnorelataomitoaqueserefere,masvoltareiaeleemsuasvariadasverses.
80
nohumanoedosurgimentodecertasespciesgraasahbitosimoraisouexagerados,comoa transformaodemeefilhoincestuososemantas,osurgimentodosqueixadasdevidoaoabandono dasmulherespeloshomenseatmesmoosurgimentodoswaradzugraasacomportamentoabjeto (gula,quasecanibalismoeincesto)deuma'uwxavantechamadoTserebutuw (confiraverses dessashistrias,oumitos,emGiaccariaeHeide1975aeSereburetalii1998).Outrosoutros,como os j mencionados Hereri'wa, Tsiretede'wa, e Waradzu Toro, no parecem ter a origem to elaborada quanto a dos Waradzu estrito senso, tampouco quanto a dos Tsa're'wa que, segundo Medeiros,teriamseoriginadodaqueleque,abandonandoavidacomuma'uwxavanteporsentir seexcludodogrupoaoferiropesolitrioaovoltarparaaldeiavazia,realizouodesejodeser outronumadimensograndiosaqueequiparaondiocomumaodemiurgo(Medeiros1990:57 63). Estedesejodeseroutro(Medeiros1990:71),teriatambmmovidoTserebutuw,oa'uw xavante que virou Waradzu atravs de diversos afastamentos inclusive devido criao ou travessiadeumgrandecursod'gua,tendoTserebutuw seestabelecidodooutrolado:poreste motivoeleseriachamadotambmdewaw'wa,fazedordagrandegua(Eidetalii2002).Mais do que o ancestral dos Tsa're'wa que, segundo a verso de Jernimo por Giaccaria e Heide (1975a),foiabandonadoporseus irmos osquais,maistarde,vieramprocurarlhe,masquefoi acompanhadoporsuafamlia(esposasefilhos)naconstituiodaquelenovopovoTserebutuw noteveseguidorese,quandoencontradoporseusirmos80,estavacasadocommulherescriadasa partirdoclitrisda me,pedaodecorpoqueteriasidodadoporelaaseu filhocomoformade pregarlheumapeadevidosuagulaaocomercastanhas.Umaseparaomaisradical,portanto,via violaometonmicadotabudoincestoequasecanibalismoqueolevouasaborearamargamenteo pedaodocorpomaternoquesetransformariaemsuasesposas.Oque,contudo,levouotambma entraremcontatocomumpodercsmicoecriadormagnfico,queatraiuaatenodeseusantigos parentes. ParecequeacondioprivilegiadatantodosWaradzuquantodosTsa're'wa,emtermosde seuspoderestransformativos,estligadatantoasuaprpriaescolhainsubmissovoluntria? quantoafaltascometidaspelosa'uwxavante(ouporelesmesmos,enquantoa'uw). EstvoFernandes,comparandonarrativas(incluindonarrativasdiversassobreosmesmos personagens,comoodeTserebutuw,dentreoutros),revelaumadessasfaltas:somenteosXavante maltrataramseuscriadorese,decertaforma,tambmmaltrataramoscriadoresdosWaradzuedos
80Oque,dadoomodopeloqualosA'uwXavantevertemsuasclassificaesdeparentescoparaoportugus,pode incluirumasriedeparentesdamesmametadeexogmicaconsangneos,comodizojargoantropolgico.
81
Tsa'rewa,oqueafetouomododevidadosXavante.(Fernandes2005:85).Porcausadissoos A'uwXavante,segundoFernandes,estariamempiorescondiesfrenteaosWaradzu,tendofeito umamescolha(GordonapudFernandes2005:12).Emoutraspalavras,humaespciedeperda original dos A'uwXavante em relao aos Waradzu, diretamente vinculada ao ganho em vitalidade,poder,energia,daquelesquepartiramparaaparagemmtica,estabelecendosedoOutro lado. Estaperdaestariasendorevertida,segundoFernandeseconformehiptesedeCsarGordon arespeitodainflaoconsumistamebengokre(povoKayapenquadrado,comoosA'uwXavante, entreospovosJ)(Gordon2001),numainteraoentremitoehistriasegundoaqualnoseja absurdo arriscar que o consumismo [de mercadorias dos brancos] pode ser lido como uma tentativadereverteraescolhamtica(GordonapudFernandes2005:168).Comportamentoque, emcertosentido,fazparaleloaocomportamentodeconstituiodaprpriatradioapartirda obtenodoqueestrangeiroeoutro(SeegerapudFernandes2005:168169).Fernandesconsidera inclusive a extenso deste comportamento para atitudes que os Waradzu classificariam como roubo,comoastomadasdeviaturasdaFUNAIedaFUNASAfeitaspora'uwxavanteseleve seemcontaqueanooa'uwxavantededanhiptsaihuri,traduzidacomoroubo,temconotaes diferentesparaeles,poisnoconsideramque''tomaralgoparasi''semoconsentimentododono seja algo errado em si mesmo (MayburyLewis apud Fernandes 2005: 170). Roubo que Fernandescomparacomoroubodofogodaona,cujacapturaedistribuioseriasemelhante quelafeitadoscargoserecursosadquiridosjuntoFUNAI.Analogiaquemantmcoernciacom o esquema que aqui se refaz a partir de Medeiros (1990), Vianna (2001), Eid et alii (2002) e Falleiros(2005). Esse reverter a m escolha (Gordon apud Fernandes 2005) no deve ser considerado comoocuparaquelelugardooutroabsoluto,noalmdaparagemmticaondeapotnciatotal, ondeaentropiatotal.Paraaceitarestahiptese,serianecessriotratlamaiscomoumreajusteno movimentopendularentreameaboaescolha.Umreajustequenodeixadeservertiginoso paraodemnioantientrpicoque,porisso,precisadesfazersedememriaintil(Wienerapud Almeida1999:185):esquecervnculos,mastambmgerarseparaes,afastamentos,divergncias, diferentespassados,diferentespresentes,diferentesversesdarealidade,nosentidodequeas realidades devempermanecernoplural(Lopes daSilvaapudFernandes 2002e2005). Mas, acreditoeu,opndulonopodependerapenasparaoladodapluralidade,abandonandototalmente asingularidadea'uwxavante.Estasingularidade,quemeparecepoderseroquefazdeles a'uw 82
uptabi,podeserbuscadanaquilomaiseficazmentetotal,emtermosdeeficciatcnicosimblicae fatosocialtotal,capazdeenglobarocontrrio.Contudo,umtodonosentidode partedotodo (ViveirosdeCastroapudStolzeLima2006:87),umasindoque:apartedofatosocialtotal.E essapartetotalprecisareconhecersecomoafetadapelofragmentrioquedesejaenglobar.Se pretendoencontrlanoexamedasnoes(eaes)dedahibauptabi,a'wuuptabiedopapeldo paraparentescoedoritual,devoprocurartambmcomoestessoafetadospelodahiba,peloa'uw (enoa'uw),peloparentescoeporoutrastcnicasdocorpo,disciplinasefontesdecontgio81. Nesse sentido, considerese o plo da pluralidade: eventos histricos podem ser transformados, ainda que sejam considerados como ''passados'' aos moldes da historiografia ocidental: as expresses da metafsica Xavante, tais como suas musicalidades, oralidades, as territorialidadesemesmosuasidentidades[...]estoempermanentedevir(Fernandes2005:79). Assim,opassadosetransformapeloefeitodapluralidade.Entretanto,devesereconhecertambm quesetransformadeumamaneiramuitosingular: pensandoarelaoentretradioepredao,o recurso tericodaddiva(Mauss2003,Lanna2001,Vilella2001,Caill2002,Godbout2002, dentreoutros82)levoumeatrataressarelaocomotransmissodevnculos,presentepassadoentre pessoasepessoasmorais,demodoqueoquepassadotambmalteradopelasrelaesentreos presentes,operandotantodiacronicamentequantosincronicamente,ecapturadoatravsderelaes muitopresentescomaquelealmmitoxamnicoque,comovisto,afontedediversosrecursos,
81Casocontrrio,estariadiantedeumahierarquizaofundadanumasdisciplina,umatendnciaaunificarpalavrae ao,comodarumsentidonicoeexplcitoaosistemadedesigualdadesquepermeiaessaForadecimaabaixo; porquesetratadefazertodosossegmentosteremumapercepoigualitriadequepertencemaumuniversocoma mesmaregraprimordial,quedefinequeopertencimentosedapartirdasegmentao,[...]pelacrenanadisciplina como''ideologiadatotalidade'',fatomaiordodever(Leirner1997:106),umasgrandecadeiadoser(Leirner 2008:201).EstariadiantedoExrcito.NoqueosA'uwXavantenoapreciemoExrcito,nogostemdehomensde uniformeequesuasclassesdeidadenosejammquinasdeguerra.Mastambmelesapresentamumcontraponto teoriaqueassociadiretamenteamquinadeguerraSociedadecontraoEstado(Clastres2003[1974]),construindo mquinasdepaz. 82Empalestraministradaem2004naFaculdadedeFilosofia,LetraseCinciasHumanasdaUSP,HeloisaPontesfez notarqueumdosaspectosdestaquesto,odolapsotemporal,importanteparaaduplicidadedaddiva:livree desinteressada,pormobrigatriaeinteressadadaaimportnciadolapsodetempoentredar,recebereretribuir. QuestotemporalqueteriasidolevantadanosporMaussmastambmporMalinowskieBourdieu,comonotou Gabriel Coutinho Barbosa em comunicao durante a banca de meu doutoramento. Interessante perceber contrastivamenteque,numatradiototalizantequeenfatizaoplododever(comoamilitar),oseusentido!esteja justamentenaimediatez:procurasesuprimiraomximo(demaneiraideal,totalmente)ointervaloentreaordemea suaconsumaoemato,entrecomandoeobedincia.(Leirner2008:198).
83
comoamsicacaptadaemsonho,transmitidaatravsdoritual(naCasadosAdolescentes)eda levadaaoutrasparagens(cantadasnaaldeiaeemfrentescasas)(paraumresumodesteprocesso, confiraFalleiros2010). Ademais,oproblema dodar,recebereretribuirlevaapensararelaoentretradioe predaotantopelaidentidadeentreumprocessoeoutroquantopelacomplementaridadeentreeles. Argumentei(Falleiros 2005)que,nocasoAuwXavante,entregaseaosmais velhos comocontraddivadatradiosobretudoaprpriavidadosmaisnovos,quepassamapertencer acoletivoscomoasclassesdeidade,asmetadesagmicaseaoprpriocoletivoAuwXavanteou, melhor, ao mundo dos homens83 e dos humanos. Entregamse tambm as prprias vidas aos ascendentes familiares, constituindo elos atravs de dons no s tangveis como intangveis. Haveria,assim,umendividamentomtuoeassimtricoentreosmaisjovenseosmaisvelhos,cada umentregandoaooutroaquiloqueelenopodedevolvernamesmaespcie.Addivadatradio parafamiliardosAuwXavanteretribudanodeformasimples,comonatrocasimples,mas sim numa peculiar forma de troca generalizada (em termos lvistraussianos), atravs de uma temporalidadecircular(anecessidadedolapsodetempoassegurariaaduplaverdadedaddiva: livreedesinteressadapormobrigatriaeinteressada).84 Naesferafamiliaradvidacomosmais
83Dadaaparticipaomarginaldasmulheresnosistemadeclassesdeidade,masobviamentenosepodedizercom isso que as mulheres no tenham tradio. Ainda que, segundo Lopes da Silva (1986), para os A'uwXavante tradiosejaconsideradaumaquestomasculina.Aindaassim,Gauditano(2010)mostracomoamemriafemininae suaconstituiocomopessoatambmestomarcadaspelasrelaesdeclassesdeidade. 84Emoutraspalavras:tomandoseatradiocomosimbolismofeitodedonse,herdado,feitodeaesecomunhes passadas,sfazendosentidoseestiveraserviodaalianadosvivos,ocontradomdavidaamenizaumadvidaque nopodeserretribudacomumdomsemelhanteaoquefoirecebido,masgraasacircularidadea'uwxavante,a retribuiofeitaindiretamentecomoemcrculodereciprocidadegeneralizadalvistraussiana,operaoqueo prprioautornotarajparaosXerentecomoexternaaoparentesco(LviStrauss1975:146147),desconhecendo pocaasanalogiasentreomitoXerentedasclassesdeidadeeasclassesdeidadeA'uwXavante.Paraquerecebama tradiodosvelhos,osjovensentregamlhesaprpriavida,intercmbiocujocurtocircuitopodeexpressarsenomito dosParinai'a.Porm,osmaisvelhosdevemtransmitiratradio,tambmtmumadvida,quiumadvidapelamorte dos Parinai'a. Que num longocircuito, expressase numa srie circular de classes de idade (num total de oito), envolvendoatransmissodeensinamentos,cantoseatdoprprioHentreumaclasseeoutra.Cadaclasserenasce numsistemadesucessocircularemqueumaclassebemmaisvelhasetornaamaisnovaaosereencorporaratravsda entradadosadolescentesnoH(casoaindavivos,jqueadistnciaentreosmembrosvelhosdaclassequerenasceeos novospodesermaisde40anos,aquelesadquiremoeptetode'bradaporexemplo:Nodz'u,Nodz'u'brada).Ofator tempoenvolvidonessacirculao,decertaformarecusadoeinstauradopelosParinai'a,quegaranteovalorde vnculo,astransmisses,omovimento,avida.Pois[o]temponecessrioparaexecutarqualquercontraprestao,
84
velhos,emrelaotradiotransmitida,apareceemmodosdeprestaesdasquaisspudemedar contaemcampo,esobreasquaistambmtratonatese.Quandofaloemdvida,refiromemenosa algoquedeveserrepostodemaneiraequivalenteemaisaumcrditopermanentequequemdeve precisa suprir com generosidade: uma dvida anterior, primordial, expressa na obrigao da generosidade. Uma importante contraddiva da tradio que investigo neste trabalho est no costumedeosmaisnovos,emgeral,alimentaremosmaisvelhos. Filhos alimentamseus pais e irmosmaisnovosalimentamosirmosmaisvelhos;aclassedeidademaisnovaddecomerpara amaisvelhadevesergenerosa,daramplamente,intensamente,indefinidamente,comonafigura doropts'wa. Considerandose,ento,estaquestodadvidaentreosmaisnovoseosmaisvelhos,teriam aquelesqueescolheramseafastar,osirmosquesedesgarraram,queforamparaoOutrolado,que foramAlm,umadvidacomseuspredecessores a'uw?Perguntese,poroutrolado,quantoao avessodareversodamescolha:poderiamescolhervoltar?Seriamcapazesdisso? Conforme afirma Viveiros de Castro a respeito dos mitos amerndios de origem dos brancos,osbrancosnodescobriramosndios,poisseoriginaramdeles,masencobriram a si mesmos, at voltarem: O retorno dos brancos era esperado estava previsto , mas se esperava, talvez, um pouco mais deles: que se comportassem como parentes que retornam (ViveirosdeCastro2001: 16grifomeu).Pensandoissoapartirdaperspectivadasnarrativas a'uwxavante,podesedizerque,paraagircomoumparentequeretornadeumaparagemmtica, devesevoltartrazendosabereseriquezasadquiridasjuntofontedepoderoriginal. Sejacomofor,esseretornopareceserpossvel.oqueatestaFernandes,aodaraindicao dequeelemesmoseriaumagentedisto:ComomedissecertavezocaciqueAlexandre,euera brancoatchegarnaaldeia;daemdianteeuhaviametornadondio(Fernandes2002:137138). Agora,tratasedesabercomosefazesteretorno,estarefamiliarizao.
[e]isumaoutraforma,simpleserealista,deresolveroproblemadosdoismomentosdotempoqueocontratounifica (Mauss2003:236237).AorecusaraplenitudedosParinai'a,osA'uwXavanteparecemrecusarjustamenteoqueo contrato unifica. Enfim, ao mesmo tempo que a variabilidade da tradio est ligada ao plo de liberdade e indeterminaopresentenolapsonecessrioentredar,recebereretribuir,elatambmestcondicionadavariedadede alianasqueseestabelece,constitudasnospeloparentescomastambmpeloparaparentesco,seassimsechamaros vnculosentrepessoasepessoasmoraisrituais:isto,emrefernciaaodat,sclassesdeidadeeoutroscoletivosque operariamdamesmamaneira,comonoDarinitaloperaodeformaodecoletivosdeidadeparaoDariniouWai'a foiressaltadoWelsh(2010)eexaminadoestruturalmenteporPoloMller(1976).PoloMlleridentificanoWai'atantoa diferenciaodefazessucessivasquandoadistinoentreduasmetadessquaiscadaparticipantepertencerportodaa vidadesdequeiniciado.
85
Se a captura do waradzu transmutado em a'uw envolve captura e (re)familiarizao, mmese,imitao,habitus,aprendizadodetcnicascorporaistradicionais,emesmoseosaberfazer a'uwxavantecontinuaseatualizandohistoricamenteeoaprendizadodofutebol,tratadopor Vianna,umexemplodisso,entopossveliralmdoquedisseMedeiroseconsiderarqueas transformaes,oramticas,estoa,imanentes,amercdosencontrosecapturas85.Emais,queo movimento de tornarse a'uw no acabou com o fim do tempo mtico, um processo ininterrupto. * Virarndio,virargente,umapotencialidadereconhecidapelosA'uwXavantenanoode datsiauw.Istoenvolve,comovistoacima,recuperarsedeumaquasemorte,graasaoretornoda alma,docorpomesmo,dodahibauptabi,paraocorpoumprocessoquetantosingularquanto coletivoenvolve,porexemplo,noritode Datsiwaiwre, umxamanismocoletivo(Giaccaria 1990,2000)queritualizaaaldeiacomopessoa,comoparturientedoconvalescente.Indciodeque, comoodoenteviragentedenovoaoretornaraocorpo,ovirargentedeumestrangeirosejauma espciederetorno. Este movimento do processo relacional a'uwxavante, expresso em suas diversas manifestaes de circularidade e pendularidade parece constituirse num padro. Com ele, o gentificarsedoestrangeiroemndioganhanovosevelhoscontornos.Oqueintentoaqui mostrarcomosotraados. Novosdadospassadosenovashistriassobreopassadopodemsurgirgraasanovas aquisiestcnicasedesaberfazeres,assimcomosepassaramnasaquisiesmticas.Aquisies tambmdepessoas,comodizemasnarrativassobreos Tsa're'wa esobreos WaradzuToro que foram capturados (Giaccaria e Heide 1975a). De modo que o movimento de virar outro e o movimentodooutroviraromesmosejamopostoscomplementares.Complementosinstavelmente desequilibrados,emqueapredaodeumnemsempresetroquepelapredaodeoutro.Aindaque atrocatsaprema'uwxavantesejaumaboaestratgiamicroeconmicadoetngrafoemmeio aosconstantespedidosquesofre.EaindaqueosA'uwXavantesvezesdigamquegostemdo empate,comodisseRmuloTsereru'usobreodesejodeAndrGustavodejogarcomigooutraveza lutadaforquilha.Trocaseempatesquenoseparecemcomumavoltaestacazero,sefor verdadequetodatransmissoenvolvatransformao. 85Aparagemmticapode,inclusive,encontrarsenascidades,ondeosA'uwXavanteesgueiramsecomoquemcaa,
evitandoosolharesdeestranhoscomoquemevitaencontrosindesejadosnamata.
86
Aotratardecomoistoacontece,tomominhaexperinciacomodado.
****
2Aparentando
Nestecaptulopretendoabordarasnoesdepessoa,corpoeparentescoa'uwxavante, tendocomobalizaotermodahiba(pessoa,corpo,vida).Outrosderivadosdamesmaraiz, como dahiba uptabi (corpo mesmo, alma), tsihiba (usado para parente prximo), tedzatsihiba(termotransformacionalquetambmserefereaparentescodistante)seroutilizados damesmamaneira.Oquenoquerdizerqueestassejamascategoriaspredominantesdaexpresso a'uwxavantedoparentescoedaencorporao86docativorededeparentesco,masqueservem comobonsindciosdabasedoargumento:oinseparvelentrepessoa,corporalidadeeparentesco. Noapenasisso,tratasetambmdaquilonapotnciadapessoaedacorporalidadequevaialmdo parentesco. Isolaraexplanaosobrepessoa,corpoeparentescodeconsideraessobreanoode gentea'uwedasclassificaesnativasparaoutrostiposdepessoawaradzu(estrangeiro,no ndio,branco), Tsa're'wa (almhumanos), abadze (animal,caa)etc.umprocedimentoem certamedidaarbitrrio,jqueaencorporaodealgunstiposdepessoaapartirdoparentesco elementarparaagentificao.Seria,porm,umequvococonsideraroparentescocomosuficiente para o processo de gentificao. Alm de uma srie de hbitos, tcnicas do corpo e outros conhecimentosnecessriosparaamanutenodesteprocesso,deveserlevadoemcontanoso parentescomastambmoalmparentescodasclassesdeidadeedasmetadescerimoniaisagmicas sem as quais no parece ser possvel tornarse gente mesmo. E aquilo que pode haver no
86 Hdecertoumaproximidadedesseargumentocomanoodeencorporao(vejaembodimentemCsordas 1990eencorporaoemViveirosdeCastro2002a:374).Oquequerdizer,segundoTimIngold,queexisteuma relaodiretaentreofazerdocorpoeosimbolismo.Masqueestecorponopodeserpensadodesligadodamentee que seu fazer tambm , portanto, emindment (Ingold, 2006 [2000]). Tais consideraes fazem sentido se relacionadassnoesa'uwxavantededahibaedahibauptabi.Portantoaencorporaodocativoaoparentesco uma encorporao estrito senso, j que passa pela sua participao corporal no parentesco, segundo a filosofia encorporadaa'uwxavante.Deveselembrarqueestarelaoentreosimblicoeocorpopessoal amerndiofora propostamuitoantes(Seeger,DaMattaeViveirosdeCastro1979)eparticularmenteelaboradaparaoparentescopor Seeger(1980).
87
aparentamento que atravessa esses recortes na rede. Entretanto, devido complexidade e o estranhamentodecadaumdessestemasparaoleitorwaradzu,precisoqueminhaparticipaona vidaa'uwxavanteeseusaspectosinseparavelmentemanifestosfatosocialtotal87,enfim sejamdealgumaformadesmembradosemcaptulosparafinspropeduticos,queoexperimento comoalgoplenosejarepartido,alimentado,digeridoetomecorpo.Poroutrolado,devesetomar cuidadocomatotalidadedestefatosocial,paraquenosejaanlogoaumaeficciasimblica total,emqueossmbolosfaameofazersimbolizeinequivocamente,oqueseriaumplenofeitio doUm,nostermosqueClaudeLefortelaboraapartirdaobradeLaBotie,emsualeiturasobreo elementodeilusoconsentidaaosetomaronomedoUm(queoutro)comocorposem igual inteiramente referido a si mesmo. O nome do Um a sociedade que se encarna fantasticamente: entendamos, literalmente, que ela toma corpo como o Um, que o plural, denegandose,precipitasenoUm.(Lefort2008[1982]:141). ComonotaraLviStrauss,dizerqueofatosocialtotalnosignificaapenasquetudoo queobservadofazpartedaobservao,mastambmesobretudoque,numacinciaemque o observador damesmanaturezaqueseuobjeto,oobservadoreleprprioumapartede sua observao(LviStraussapudMauss2003:25grifosdoautor).Todaviaoobservadornopode confundirsecomotirano,comoseavisoviessedeleetodosseachassemviradospeloavesso sua vista; [implicando] a abolio da diviso do vidente e do visvel, do ativo e do passivo; [realizando],comoquedelugarnenhum,ofechamentodosocialsobresimesmo.Magiaatal pontoeficaz[]quenemprecisodispordaimagemdotiranoparalheatribuirotodopoderio,a vidnciatotal(Lefort2008[1982]:142). Dessemodo,entretudooqueobservado,anaturezamesmaentreobservadoreobservado eaincompletudeantitirnicadeumaobracheiadehipteses,suposies,indcioseapostas,o traadodestetextooscilaentreascertezascategricaseasincertezasnarrativas,entreanecessidade
87 Nesses fenmenos sociais''totais'',comopropomoschamlos,exprimemse,deumasvez,as maisdiversas instituies:religiosas,jurdicasemoraisestassendopolticasefamiliaresaomesmotempo;econmicasestas supondoformasparticularesdaproduoedoconsumo,oumelhor,dofornecimento[prestao]edadistribuio; semcontarosfenmenosestticosemqueresultamessesfatoseosfenmenosmorfolgicosqueessasinstituies manifestam(Mauss2003[1950]:187).AocomentaranoodefatosocialtotaldeMauss,BrunoKarsentidiferencia aposiodesteautordadeDurkheim,considerandoqueavidadogrupoenquantogruponopodeserextradada vidaconcretadosmembrosqueocompe,umasituaodeimannciamanifestanoaspectovivoefugazemquea sociedadetomadaemqueoshomenstomamconscinciasentimentaldelesmesmosedesuasituaoperanteos outros(Karsenti1994:4647,originalemfrancs).
88
racionalistaealiberdadeexperimental,ouviceversa.88 Nomnimo,oleitornodevejulgarascategoriasapresentadascomoapenasdadasno sentidonosdeofertadascomotambmdeprontas,estveis,prdeterminadasporumsuposto corpo doutrinrio coeso e universalizado para todo e qualquer indivduo ou grupo a'uw xavante.Sedado,dadoporalgum(ouvriosalguns)e,nomesmoprocesso,transformadopelo seureceptor,poisconstitudoatravsdeumarelaoespecficaesituada:apresenadoetngrafo. Oqueenvolveinclusiveumasujeioa(quemd)osdados,coletandopistasdeixadaspelorastro queoetngrafoconvocadoaseguiraseumodo. Escreveraetnografiajumainvestigao,tortuosa,queseperdeesereencontraportrilhas nemsemprereconhecidasnaslinhasdamemriaoudoscadernosdecampo,masqueguiamem direo a certas palavras como pontos de referncia do dilogo ou, menos do que isso, das perguntas. Aqum disso, as prprias manifestaes, opinies e explicaes a'uwxavante sobre os assuntos aqui tratados corpo, alma, gente, parente, vida, morte, gua, fogo, origem... esto sujeitas a variao, dependendo da situao e das pessoas que me as ofertam, algumas bem controversas.Dependendotambmdaexperinciaalheiajetnografada,publicadaelida,oquefaz multiplicarasvariaesbemcomoospontosderefernciaprocedimentoque,maisdoqueapontar paraocaos,tentatomlonumaordemparticular,comoquemolhaparaasestrelasformandouma constelao. Comojindicado,osproblemasrelativosnoodea'uwuptabiapresentaramselogono incio da pesquisa, em meu primeiro encontro com Hiprdi, surgindo como um assunto extremamentevalorizadoporelee,comodescobririadepois,porseusparentesmaisprximos,de modoqueserparenteesergentemesmo,paraeles,soquestestoenvolvidasquantoosfiosque compemumcordo.
88KarsentiidentificaemMaussumasituaosemelhante,quechamadeparadoxodadescrio,condicionadopelo queLviStrausschamoudeseuapegoteorianativa:oconcretoaquiloqueosocilogo,quepraticaaetnografia (defendidaporMauss),desejadescrever;entretantotambmumobstculosdimensesexplicativas(Karsenti1994: 5759).Situaosemelhanteaapresentadaaqui,outalvezinversa.Masquevisaestabelecerostermosintermedirios pelosquaissingularecoletivosesolidarizam,aosetratarodadodascinciashumanascomodadohumanono sentidofortedotermo,dadosituado,identificvel,concretoevivo(Karsenti1994:69traduominha).Dadoque, porsuavez,tambmrecebidoe(re)transmitidopeloetngrafo.Poisoetngrafotambmtomacinciadaquelesque estuda atravs de sua participao em sua vida concreta. E com isso acaba ele mesmo fazendo parte do dado, misturandoalgodesicoisadada,comolembraraLviStrauss,masaquinumaoperaomuitomaisdeparticipao doquesomentecognio.
89
J o caminho rumo noo de dahiba foi aberto por trilhas de pistas mais esparsas, influenciadaspelosatalhos,desvioseperdidosdaquelequesujeitadoaseguir(outentarseguir)os A'uwXavanteseutsimidzamaseguindoamaisdeummestre,comotantossejamosmestres a'uwxavantes. No menos, tratar do dahiba antes de tratar de a'uw talvez seja um procedimento necessriodadoseucartermaisgeral:emsuma,nemtododahibaa'uw,aindaquetodoa'uw tenhaousejadahiba. *** Ocorpoemevidncia Ao iniciar minha pesquisa na aldeia Abelhinha eu trazia preocupaes a respeito da distribuiodecargoseencargosrituais,nomeseoutrasposses(Falleiros2005),oquepautou minhasprimeirasquestesaosa'uwxavante.Umadasprimeirasexplicaesquerecebisobreesta transmissofaziarefernciaaocorpo. ConversandonaaldeiaAbelhinhacomTseredzar89,estemeexplicavaqueparaaescolha dos adolescentes que portaro os cargos mais importantes do Danhono (o complexo ritual de iniciaodasclassesdeidade),osvelhossepautavampelocorpoquemaiscombinavacomocargo emquesto:osvelhossabemquemtemocorpoquecombinacomcadacargo,disse.Aescolha demandareuniesdeconselhodosvelhosdetentoresdecadacargo,queautorizamatransmissodo cargodeumparenteparaoutro.Masoparentescoentreosoficiantesnodeterminaporsisa escolha(aindaqueum pai possasemprequererforaraescolhadeseu filho),atransmissodo cargodeumparentemaisvelhoparaummaisnovoacontecedevidosemelhanacorporal. Assimocorpoapareceumecomoelementofundamentaldaconstituiodapessoaa'uw xavante,pororaaomenosdaquelaspessoasmagnificadasporcargospolticorituais.Oqueno surpreendeoleitorfamiliarizadocomotextoquedeuformaaoproblemadacorporalidadeeda
89 O j mencionado presidente da associao War poca, filho de Lucas Ruri' (grande lder da regio de Sangradouro,comtrabalhonaFUNAIeportadordoimportantecargoritualdePahri'wa,tendotambmsidotcnico dotimedefuteboldaAbelhinhaelderdosrituaisdoDarini)enetouptabideAdoTop'tirodoclPo'redza'ono,de quemherdouonomepessoalTseredzar,conformemeinformaria.AlmdeportadordocargoAih'ubuni(termoque seusparentesusammuitasvezescomovocativoourefernciaaele)daclassedeidadedos tpa(amesmaemqueeu seriaincludo,demodoqueaparentateramesmaidadequeeu:algunsanosmaisjovemdoquesou).
90
personitude amerndias (Da Matta, Seeger e Viveiros de Castro 1979), com cujo programa de pesquisaestatesevisacontribuir:aimportnciafundantedasnoesdepessoaecorpoamerndias. EcujasimplicaespolticastinhamsidoatcertopontoantecipadasporClastresemseuartigo sobreatorturaeosritosdepassagem(Clastres2003[1974])90,reaparecendoemdesenvolvimentos tericosdosmaisrecentes(sobreamagnificaoatravsdenomesemarcasnocorpodoguerreiro amerndio,porexemplo,confira Sztutman2009a).Aqui,halgonocorpoanterioraosttulos,s marcaseiniciaoou,talvez,algoquevemaoencontrodestescaracteres,umencontromarcado. Marcadopeloparentesco,aindaquenocategoricamentedeterminadoporele. Assim, onomea'uwxavantequerecebi,jlogodeincioemminhaestadianaaldeia Abelhinha,tambmfaziarefernciaaocorpo,aomeucorpo.Noprimeirofimdetardeemque jogueivleicomalgunsjovensa'uwxavantenocampinhodaaldeia(situadosuamargem,em frenteescola quadrada),estespassaramamechamardeTsa'rwaw,dizendomequeerapor causa de minhas coxas grandes e, tambm, porque havia outro Guilherme A'uwXavante moradordaaldeiadeSangradourocomomesmonome:Tsa'rwaw.Vimsaberqueeradocl waw eirmouptabideVitrioWa'motegenrodeAdoTop'tiroemoradordacasaaolado deste.VitrioexperientemotoristadaassociaoWaremembrodaclassedeidadeTsada'r,j bemmaisvelhaqueatpa,deTseredzar,masdamesmametadeagmica91. PassandoosprximosdiasemviagemdecarropeloMatoGrossoepelasterrasa'uw
90Ocorpomediatizaaaquisiodeumsaber,eessesaberinscritonocorpo,comonosdizClastres(2003[1974]: 198).Nessesentidoamarcacorporaldaleiatravsdatorturanosritosdepassagemdemandaousadaesilenciosa entregavoluntriadosiniciandosumasanocoletivaquenomeramenteexterior,poisfazsesubstnciainscrita nocorpopessoal.Aotemadaservidovoluntriaaparecequaseinsuspeitadamente,semrefernciaaLaBotie.Ea memriadadorpelamarcafazumaconjunotalquetornaindistintosindivduoesociedade:aleiorgnica osaberdesidasociedadenocorpodecadaindivduo,lugardesuapresenaesuaimanncia(Clastres2004 [1980]:116117),quepoderiaservistacomosocialidadeinstauradanocorpopessoal,numarelaohologramticaentre indivduoesociedade. Tambmimportantesuapercepodosilncioquemarcaestainiciao,silncioque investigonocasoa'uwxavantecomoumsinaldequesedeveabdicardopodercriadordapalavradosmitolgicos adolescentes (enoiniciados) Parinai'a,paraquesevolteateralgum acessoaele.Aentregadesienvolveuma aquisiodosmeiosdeacessoaessepoder:amarcaa'uwxavanteofuronaorelhaporondepassamasmadeiras mgicas,emformadebrincos,quepossibilitam,nosporsonho,amanipulaodepoderesvitais(comoopoderde procriar).precisoouvireobedecer,masodesobedientepo're',queaopdaletraquerdizeraquelequeno ouvetambmimportante,comoserargumentado. 91Tsada'roaclassedeidadedospadrinhosdosHtr,porsuavezpadrinhosdostpa,sendoassimdamesma metade agmica e cerimonial, considerados pelos tpa como wahi'rada, nossos antepassados, sendo aproximadamente20anosmaisvelhos.Omesmotermoquerdizernossosbisavs.
91
xavantejuntoaTseredzareVitrio,tivetempoparamuitasconversascomosdois.Vitriome ensinou que eu ser chamado pelo nome a'uwxavante de seu irmo tinha a ver com nossa semelhana corporal: eu era grando como ele e os outros membros de sua famlia92. E que, encontrandoo,eudeveriatratlocomosetrataaum irmo graasaestahomonimia,poisseria assimomododetratamentoentrexars.Ouseja,adotadopelafamliadeAdoTop'tirosogroe portantomembrodametadeexogmicaopostadeVitrioaindaassimeudeveriatrataroirmo destecomo irmo,porcausadanossasemelhananosnominalcomocorporalquasecomo umainflexocognticanoagnatismoa'uwxavante93.Oquenuncachegouaocorrerdefato,dadas as rarssimas vezes que o encontrei ou que nos aproximamos para um aperto de mo. Mas a potnciadeumarelaofraternaestl,nocorpoenonome. A relaoperformativaentrecorpo enomesemostrava,assim,aindamais marcante, e marcadadealgummodopeloparentesco.Ofatodetermosomesmonomeemportugusseria menosumacoincidnciadoqueumaevidnciadaeficciasimblicacorporal. OprpriosignificadodeTsa'rwawfazrefernciaaotamanhodocorpo:tsa'rquerdizer sombraewaw,grande.SombraGrande,disseramme,podeserasombrafeitaporumcorpo grandesobaluz,ouasombradeumaescuranuvemdetempestade. Alis,recebitambmdosA'uwXavantedaAbelhinhaumapelidoreferenteaotamanhode meucorpo:'RiwawCabeo.Oquefoiemparteinventadopormimjque,quandoHiprdi melevavadecarropelaprimeiravezaldeia,tendoidomebuscarnacidadedePrimaveradoLeste (MT), estava eu sentado bem no meio do banco de trs do carro, ladeado por outros A'uw Xavante,epergunteilheseassimnolheatrapalhavaavisopeloretrovisor,devidoaoexcessivo tamanhodeminhacabea.Apiadafoiretransmitidaporeleaseuspaiemeuptabi,quepassarama mechamar,entresi,de'Riwaw,dissemeHipa.FoiassimqueTseredzarsereferiuamimna estrada,depoisdeespecularporqueeuescreviatantoduranteaviagem:waradzu'riwaw...Repeti suaspalavrasemvozalta,tentandopronuncilascorretamentee,logoemseguida,fizemosuma pausa para Tseredzar iraotoalete.FoiquandoVitriopolidamentemeinformou94 que meu
92 Que,segundoVitriomediriatemposdepois, Tsa're'watede'wa,donados Tsa're'wa,pormotivosquesero melhorrelatadosadiante.Oquetmaverjustamentecomotamanhodocorpo,jqueosTsa're'wasomaioresemais fortesqueosa'uw comuns.Aaproximaodemimaistoecoaoquefoiditoporoutroantroplogowaradzu,Estvo Fernandes,aquemumvelhoa'uwxavantecertafeitaconfundiucomumTsa're'waou,maispolidamentedizendo,um Dadzapari'wa(Fernandes2005). 93Relaoentreagnaoecognaoqueserabordadaemdetalheadiante. 94Eujsabiadisso.TinhasidotestadoaesserespeitonaAbelhinha,comoquandovisiteinoite,convidadoporoutro
92
nomedefatoeraTsa'rwaw,explicandomesobreseuirmo.Estenome,emoposioa'Riwaw, passouaserusadopelosA'uwXavanteparasereferiremamimdemodoformalerespeitoso, enquantoooutromanteveseutomjocoso,muitoparecidocomotomdotermoemportugus:uma misturadeestupidezeexcessodepensamento,oquepodeterconotaesruinseboas.Lzaro TserenhemewcontoumecertanoitenowardaaldeiaBelm,quandopercebiquefalavamsobre mim,quediziamqueopessoaldaAbelhinhatinhaacertadoemmedaroapelidode'Riwaw porqueeupensavamuito,tinhamuitasidias,perguntavamuito. Enfim,algumasdasprimeiraspalavrasquemeforamdadascomopessoaentreosA'uw Xavanteforampalavrassobremeucorpo.Noporacaso,masnumprocessoativodesdeoprincpio. Elesmesmostratavamde(re)estabelecerminhaeficciacomopessoa(Wagner1981)atravsde suamaneiraespecialdetrataraspessoas.MinhaperdadoEu,implicadanotrabalhodecampo, eraumaentregaretribudasimbolicamente.Senoeraretribuio,eraentoumacontraddiva, uma ddiva de nome, que tambm um dado emprico, j que fala a respeito da maneira especificamente a'uwxavante de constituir uma pessoa. Nesse corpoacorpo simblico, a identidadedonativoiasendoconstrudaaomesmotempoqueapersonadoantroplogo (Rocha2006:103),aformacomofazemistocondicionandotambmcomosefazaquilo. * Passeiaespecularmaisarespeitodanoode dahiba muitodepois,naaldeiaBelm,j maisenvolvidocomodanhohui'wahimandazomododevida,acultura(comotraduzemos A'uwXavante),ocostume,ohabitus,dospadrinhosoupatronosdosadolescentes,jquecada pessoaoucoletivo,paraosA'uwXavante,temseuhimanadzespecfico. Convivendointensamentecomaclassedeidadedos tpa,eraconstantementeassediado porelesparaquecantasserepetidamentemsicasa'uwxavantequeeuaprendia,principalmente aquiloqueeupoderiachamardepopxavante95,oumesmoalgumacanoquesonhara,equando queriamqueeucantasseoutra,diziamme:hiba'amoutra,maisuma,outrodeste... Prestandoatenonafalade MrcioTserehitumaocasio,dentrodo H localqueele
(CsarTserenhdza),aresidnciadeumcasal,FernandaePierRodolfo,filhaegenrodocaciqueTiagoTseretsu,que meservirampeixerecmpescadoemeperguntaramqualerameunomee,emseguida,qualerameunomea'uw xavante.PierdissemeentoqueGuilhermeTsa'rwaweratambmonomedeseucunhadodeSangradouro. 95OsprpriosA'uwXavantenotmumtermoespecialparaessetipodemsicadistintodascanesdecartermais cerimonial (cantadas em coro), chamando toda cano de danho're. O que chamo de pop xavante so canes produzidas por cantores singulares, duplas ou bandas, utilizando instrumentos e equipamentos waradzu: violes, pandeiros,tecladoseletrnicosetc.
93
freqentavasobretudoporserHtr(classedeidadepatronadaclassedostpa,queporsuavez patronados Nodz'u,adolescentespoca),almde pai uptabi deumoutro tpa edeum Nodz'u noteinumadesuasfalasqueusavaamesmaraizdapalavradahibaparasereferira algum,aalgumapessoa.PesquiseinodicionriodeLachnitt,descobrindotambmotermopara alma (dahiba uptabi ou dahiba uptabire). Observei quase no mesmo dia um de meus companheirosapontandoparaseuprpriopeitomovendoasmosemsuadireo,dizendoalgo sobrehiba.Pergunteilhesesereferiasuaalma,eeleconcordou...Comoestavameensinando oversodeumacanodeMrciosobreaterradeMariwatsdeMariwatsdeh,totsenati'a n,watsiriam,wahibadur96,deumetraduosemelhantesobrewahiba,nossavida,nosso corpo,nossaalma. Dahibachama,assim,umaconstelaodesentidosquepareceamplaparaquemestiver maisacostumadocomalnguaportuguesa(esconcepesdemundosquaiselaseassocia)que comaa'uwxavante. Omaisestranhodelesestcontidonaexpressohiba'am.Usadoemrefernciacano, levanosaperguntarseamsicatambmcorpo(pessoa,vida...).Certamenteasexpressesdo idiomanosodotadasdeumliteralismotoradical,maspodemserndicesdesentido.Assim comoquandodizemosoutracoisaoupedimosparaalgumcantaroutracoisanoestamos pressupondoqueoqueseemitesejaumacoisaslidaebemdelimitada(comoumabolade bilhar),damoscontudooindciodequeparanshalgodeobjetoinanimadonosprodutosdenossa emissovocalquiumamaterialidadeconcretaetangveldomesmotipoabordadopelafilosofia dalinguagemdeBakhtin(1997[1929]).Eparaosa'uwxavante? Especuleisobreoassuntotemposdepoisenquantoensaiavacantoscomosmesmostpa beiradaestrada,naviladeSerraDourada,esperandoocaminhodaaldeiaBelm.Pergunteide modoliteral(sempremisturandoportuguscomumpoucodea'uwxavante)seocantodanho're eracorpodahiba.Perguntatendenciosa,jquedanho'retambmquerdizergarganta(talvez, selermosaopdaletra,espaodedaredeengolir 're:lugar,cavidade,planta,buraco, furo, carroceria, espao, interior, contedo, gruta, ovo, cova e ts (nho): dar, doar, engolir, contribuir(Lachnitt2003):dareengolir(predar?)parecemserprocessosassemelhados,portanto97. Ecapciosa,queosfezmatutar.LeandroUptswwarirespondeumequesim,afinaleucanto,eu
96AlgotraduzvelcomoMariwatsde,terraemqueestnossocoraoenossavida. 97Istoindicariaumduplosentidodapredao(ouddiva)a'uwxavante?Quemd,nessemesmoprocesso,tambm toma,apartirdeumalgicadigestiva?Quemenglobaquemnosatosdedarereceber?Duplosentidosemelhante pareceocorrerem'requandoestevocbuloabarcacontinenteecontedo.
94
tenhodaiba.Insistiquerendosaberdoqueerafeitoocanto,eelemedissequeerafeitodevoz, damreme,abocaquefaz.Ecomofazparasairdabocadeumechegaraoouvidodeoutro? Temdecantaralto,forte. Damremetambmquerdizerpalavra,fala,lngua(nosentidodelinguagem,noda partedocorpo).Curiosamente,essasrespostasassemelhamsedealgummodojmencionada filosofiadalinguagemdeBakhtin,segundoaqualapalavrasigno,encontroentreoorganismo humanoeomundoexterior(1997[1929]:49).Masosentidodedahibanoacabapora,demodo quecaberiatambmdizerqueoquesuaaplicaonessecontextoindicaumaprefernciaa'uw xavantepelotropodapessoaanimadaaoinvsdotropodacoisa.Eaindaalgomaisamplo,oumais especfico,seespecularmossobreaetimologiadehiba. Hiba(compostocomodahiba,hibaetc.)traduzidoporvida,existncia,corpo, pessoa,corpovivo(Lachnitt2003).Jhsignificapeleetambmcasca,segundoomesmo dicionrio(homnimoouhomfonodeoutrapalavra,quequerdizerfrio,etambmdaquelaque serefereCasadosAdolescentes,H,masespecularrelaesentreessestermostalvezsejaarriscar demaisporenquanto).Enquantoba (considerandoseoicomovogaldeligao)podesertrs palavras distintas: o substantivo costas, a parte superior traseira do corpo (cujo sentido, na composiode hiba, pareceredundanteouaindamaismisterioso:costasdapeleoqueno deveseconfundircomoavessodapeleouoqueestsobapele);aposposioparaourumoa; erepartir,tirarparte,cortar,parte,corte. Teriaapalavrahibaosentidoetimolgicoderumoapele,rumoacasca?Ouento partedepele,partedecasca? O primeirosentidonosremeteriaaumaontologiadamanifestao,daliminaridade, da apresentao:oseroquetendeaaparecer,oquevemtona,oqueexpressasenasuperfcie 98. Josegundoconsiderariacadacorpovivo,cadavida,cadaexistncia,comopartedealgomaior,de uma superfcie extensa indefinida. Optar por esta ou aquela explicao etimolgica parece indecidvel,masficamcomosugesteseindcios.Pensardahibacomoparteoupea,porexemplo, fariasentidoaoconsiderarmosaexpressohiba'am:maisumapeadomesmotipodaanterior outrapeamusical(comonoexemplo),ouumapeadequalqueroutraespcie.Conformeoutro exemplo,aopintaralgumparaumritual,comopresenciei,aquelequeopinta,depoisdeacabarde pintarumadaspernas,podepediraopintadoquelhedeixepintaraoutra:hiba'am.Enfim,se todapessoa,sendocorpo,vida,tambmpartedealgo,entoalgumasconsideraespoderiamser
98 Notesequeaanalogiadascostasnocontradiriaaontologiadamanifestao,jqueascostasdeumcorposo manifestastambm.
95
feitassobreanaturezadarelaoentreumapessoaeoutra. * Estahiptesenoapenasbaseadaemetimologiatentativa,masemoutroselementosa serem melhor apresentados, como parentesco e tcnicas do corpo. Ainda assim, em dilogo eletrnico comum irmomaisnovo (no)a'uwXavante,ojmencionadoVanderleiTemirete DaduwaridaaldeiaBelm(maisconhecidocomoDadu,tambmnumarelaoentreseunomee seu corpo, como as apresentadas acima99), atravs de um programa de conversas textuais pela internet(peloqualelesecomunicavacomigodealgumlugardoMatoGrosso),fizumtestedesta hipteseetimolgica. Pergunteilheseocorpoeracomoumpedaodepeleoucasca,eeledissequesim,isso,a gentejtmaisvelho,porissoissodeumpedaodepele,decasca.Suarespostanoapenas repeteapergunta,masacrescentaumaexplicaoumtantoenigmtica:oenvelhecimento.Oque, comoserdebatido,podeserretardadoapartirdecertastcnicascorporais,comorotineirosbanhos frioseoutrastcnicasantientrpicas,contraoaquecimentodissipativoecaticoquelevaria,no limite,aofimdocorpo. Masaetimologiapareceestarcorreta,jqueelearepetiusemduvidar.Perguntei,ento,se nossocorpoeraumpedaodecascadosparentes100eeleconcordoucomum.Paraenfatizar, questioneosecadapessoaeraumpedaodosparentesquevivemjuntoeelerespondeu:
99NoficamuitoclaroseDaduwariseunomeeDaduseuapelido.AtraduodeDadutraduoBarriga, refernciaaumacaractersticacorporalmarcantedeVanderlei,corpulentoevolumoso,jadeDaduwariincerta segundoLachnitt(2003),waripodeserquebrar,quebrarnozesou,conformevocbuloseparado,pedir.A dvida sobre a relao entre nome e apelido se justifica porque, afinal, os nomes a'uwxavante tendem a fazer refernciaacaractersticaspessoaisecorporais.SegundooprprioDadu,seuav(paideseupaiFFlembrandoque otermoparaav,da'rada,nofazdiferenaentrepatriematrilateralidade)JosPedro(Poredza'ono.Pahri'watede'wa e'Wamartede'waambososcargosde Pahri'wa Wamartede'wa e' foramtransmitidosaDadu )passouachamlode Daduwari. Segundo o av, este um nome de Tsa're'wa, que Dadu chama tambm de wahi'rada, nossos antepassados, e seria tambm uma referncia ao tamanho de seu corpo (comparece com o caso de Guilherme Tsa'rwaw).JDionsioBoprn,paideDadu,dissequeesteeraonomedeumdosirmosdeJosPedo,eseriao nomedemenino(watebrmitsitsi)deVanderlei,enquantoTemeritseriaseunomede 'riti'wa('riti'watsitsi), oriundotambm deum irmo deJosPedro.Entretanto,chamlode dadu,assimcomochamarmede 'riwaw (cabeo),semprefazpartedenossasbrincadeirasmtuas,nasquaisoutraspalavrasreferentesapartesdocorposo trazidasbailaporelecomestafinalidade,tendoeuaprendidoalgumasparamedefender.Porexemplo:parap(p comprido), 'ridupu (cabeacheia), dadupu ou dupu'a (gordo,panainchada), paratuhi (ossodecanela), butuhi(ossodepescoo)etc. 100PerguntaqueformuleitendocomopontodepartidaatesesobregruposcorporaisdeSeeger(1980).
96
isso.Nocontente,jquearefernciaaosvelhosaqueladasmaisvalorizadaspelosA'uw Xavante,pergunteilheseosvelhostambmachavamisso,eeleconcordou... Obviamentesuaopinionorefletenecessariamenteadosvelhos,entretantoacreditoque elenojurariaemvosobreonomedosvelhos,jqueestessomuitorespeitados.Almdisso,no convviocomosA'uwXavante,aprendiqueelestendemaservagosedbiosaorespondercertas perguntas,sobretudoperguntascomplicadascomoesta.Algumasvezestambmpregampease, noutras,parecemconcordarapenasparadizeroqueoetngrafoquerouvir,deixandoo,assim,na dvida.Porissofuiinsistentenasperguntas,formulandoasdemaneirasdiversas.Tambmtenho com ele certa intimidade e confiana, dado que alm de nos tratarmos como irmos, somos membrosdamesmaclassedeidade,tpa,ecompartilhamosdiversasatividadesdeclassequando estivenaaldeiaBelm.Quandoconversamospelainternetcostumofazerlhealgumasperguntas,de modoqueelejestacostumadoarespondlasporestemeio.Nemsempreconcordacomminhas suposies e tradues. Por exemplo, quanto elevao rochosa tnho'redza'a, localizada quilmetrosaofundodaaldeiaBelm,pergunteilhecomooswaradzuchamavamnaeelemedisse queeramontanha.Insisti,querendosaberseeragargantadepedraelevada(traduoliteral)e eledissequepodiaser,masqueoswaradzudizemtambmMontanhadaAldeia. * Enfim,sepuderfazeranalogiasdessacascaedessapelecomaidiademscarae persona,remeteriatantoorigemdanoodepessoaestudadaporMaussemAnoodepessoa,a noodeeu(2003)isto,apersonalatina,porondesaiosom,umamscaracomaboca vazada (oquenoslevariaaelocubraessobrearelaoentrecantoepessoaparaosA'uw Xavante)quantoquelademscaraoupersonaestudadaporNietzscheaolongodetodasuaobra: comoumapareceraoinvsdeumser,umaaparescncia(MaiaAndrade2007).Enfim,tratar dahibacomoaparescncia,comoentequetendesuperfcie,manifestaoecascapodelevara estranhamentos:afinal,seocorpomanifestao,oqueseriaentoaalma,dahibauptabi? *** Ocorpointerior? Faaseaquiumparntesefilosfico,ouumdilogoentrefilosofias. Neste debate sobre as palavras, no que penso ser um dilogo com os A'uwXavante, 97
estamos eu e eles em posies duplamente desiguais. Se por um lado o poder da escrita est comigo, poder que tem algo de mgico j que pode recriar tudo na forma de uma tremenda linearidade,estessegarantepelopoderqueelesmeconcederamdetentarreproduziraindaque alterandoalgumacoisa(oupessoa),casocontrrionoseriacapazdetransmitirestesaberporno terplenodomniodalngua,tampoucoseriamcapazesdecompreendlomeusleitoreswaradzuque nofalamnemlememlnguaa'uwxavante.Assim,meupodersobreaspalavraslimitado, muitos(senoamaioria)dosnomesqueinventomesodadospelosA'uwXavante.Notenho aqueledireitosenhorialdedarnomes,opoderdossenhoresqueNietzscheviacomoaorigem dalinguagem.Oumesmocomo origemdoEstado,fatalidadeeterrveltiraniaimpostapela violnciadeumaraadeconquistadoresesenhores(Nietzsche1998[1887]:1974).Poderda palavraquetambmremeteaoqueLaBotiechamoudefeitiodonomedoUm,Revelandoo lugardaexperinciadodesejoedalinguagemnadivisodominantedominado(Lefort2008 [1982]:133134). ConsideraroquevemaseropodernopoderdapalavraremeteaomitodosParinai'ae suapotnciaplenadecriao/transformaoque,comojsugerido,osprpriosA'uwXavante tentaramcontrolar,pondofimexistnciacomumdosdemiurgos. Enfim, na conversa com e sobre os A'uwXavante, se no posso inventar palavras livrementenemimplaspelaviadeumaterrveltirania,faoaquiminhasconjecturas,meudilogo interiordesviante,aomesmotempoumdilogoexterior,colocandoemcontatodiscursosestranhos umaooutro. * A primeira vez que me contaram a histria dos Parinai'a em campo, apesar de eu j conhecladaliteraturaetnogrfica,foiquasenofinaldoprimeiro(longo)diadaviagemdecarro quefizcomTseredzareVitrio.Naquelaviagemporestradasasfaltadas(edeterra,dentrodas terrasindgenas)queseguiamofluxodedescidadoRiodasMortesemdireoaonortedoleste matogrossense,samosdaterraindgenadeSangradouroefomosdiretoparaaterradePimentel Barbosa.Essetipodeviagem,disseramme,normalmentefeitoparandodeterraemterra,de aldeiaemaldeia,aolongodocaminho.Maspassamosdiretopelasbordasdasterrasindgenasde SoMarcoseArees,semparar.Porquedessavezdecidiram,pormotivosquenocabemaqui,ir diretoaPimenteledelseguirdescendodevoltaparaasvisitassubseqentes. AntesdeentrarnobraodeestradaquelevaaldeiadeEtenhiritip,disserammequefoi daliqueosXavantesaramesubirambeiradoRiodasMortesatSangradouro.Aquinessa 98
aldeianossosavsdanaram,dissemeVitrio.Assimopercursotomavaasfeiesdeumavolta origem,numalongaviagemquemaispareciaadeumsonho.Foisemdvidaumaviagemmuito maisrpida,comaajudadapotnciadomotorwaradzu,doqueaquelasfeitasappelosA'uw Xavantealgumasdcadasatrs.Nestemomento,aproveiteiparadizerqueestavaconhecendode verdadeumahistriaquessabiadoslivros.Tseredzartirouadevidaconcluso:oseusonho estserealizando. EnquantomeexplicavamosignificadodeEtnhiritip,grandepedracomumintervalono meio,umpedaodepauenganchousenopneudoveculo,interrompendoajornada.Paramose descipararetiraroempecilho.Tseredzaracendeumeumcigarroenroladoempalhaoupapelde caderno(nomelembromuitobemqualeraomaterial,masosA'uwXavantecostumamenrolar seuscigarrosdefumoraladoemsedadecaderno),entreolhousecomVitrioedisserammequeeu estavagostandodaviagem.FoinessemomentoqueVitriocontoumeahistriadosParinai'a,dois adolescentesqueerammuitoamigos(da'amumdooutro). Esses adolescentes, muito amigos, se transformavam em diversos tipos de animais e alimentos,dizendoalgocomo:eagora,meuamigo,oquevamosfazer?,eooutro:vamosnos transformar no bicho tal, e falando isso logo se transmutavam. Falando assim, perguntando e respondendo,criaramdiversosseresealimentosqueosA'uwXavantenoconheciam,dandode comeraosmaisvelhosenutrindooscomaflunciaeabundncia.Mastambmassustandooscom tantopoder,jqueumdosanimaisquecriaramdessamaneirafoiaona.Apavorados,osA'uw Xavante decidiram matlos, e atiraramnos ao fogo. Entretanto, seus corpos nunca foram encontrados... * PorqueVitriodecidiramecontarestahistrianaquelemomentoimprovvel.Maspode sersugerido.Fizemosumalongaviagem,quedealgummodoseassemelhavaaumsonhoaomeu sonho,segundoTseredzarrumoterraondedanaramseus avs.Viagememtomderetorno, viagememtomxamnico,deeternoretorno,aindaqueeste,segundoTseredzar,sejaumretorno recente:nofazmuitotempoqueretomaramrelaespacficascomdiversosoutrosA'uwXavante que,antigamente,viviamguerreandoentresi. Para mim, essa viagem xamnica como antroplogo, como aquela proposta por Janet Chernela e Eric Leed em Shamanistic Journeys and Anthropological Travels (1996), cruzava fronteirasatravsdeseupoderrelacionaleperformativo.Umpodermuitosemelhantequelede transformarsonhosemrealidade,paraosA'uwXavante.Poisseemsonhopossvelviajarlongas 99
distncias,emvigliaessaviagemparecemaisdifcileperigosa.Chegarorigemdavidaencarar potncias to vitais quanto mortais. Para minha sorte, a origem estaria sempre mais adiante: conformemedisseTseredzar,antesdevoltarmosparaocarro,dooutroladodoRiodasMortes estariaaantigaaldeiaWededz,lquechegaramosXavantequevieramdeGois. Poisestaviagemparaelesmesmoseraumaviagemcosmopoltica.Umaviagemquevisava articularosA'uwXavantedabaciadoRiodasMortescontraarriscadasmudanasemseumodo devida,cheiadevisitasaaldeiaseassembliasdewar, delongasconversas,discursoseoutras palavras que lhes gastavam saliva, palavras difceis e importantes como dahimanadz, hidreltrica,processodeverificao,quialgumamenoao tede'wa (odonodagua, entidademticaa'uwxavante)eoutraspessoas(comoospeixes).Nssomososverdadeiros ambientalistas,ambientalistastradicionais,diziam,ambientalistasa'uw uptabi.Tratardestas questes,viajar,fazerpolticaampla,encontrarparentesdistanteseassimaproximarseesentirse emcasa,issotudofaziaTseredzarsentirsevivo,diriaeleemnossasconversasdepdeestrada. VitrioeTseredzarpareciamnoignorarotipodepoder(relacionaleperformativo)que me concediam com isso, com meu estar entre eles, compartilhando a mesma aventura. Se Tseredzarolhavacomestranhamentoeprecauoparaminhaininterruptaescritanocadernode campo(escritacomansiadeumdiriodeprimeiraviagem),Vitrioeramaisexplcitoemsuas indiretas.Paradosnumpostodegasolina,dissemequemuitasvezespadresejornalistasinventam coisassobreosA'uwXavantecomoaquelageneralizaodanoode a'uw uptabiparatodo povoXavantecomopovoautntico101.Porque a'uw uptabi no qualquerum:ser a'uw uptabiserjusto,buscarapaz,acolheraspessoas,quemnoa'uwuptabideveprocurarestar juntodosa'uwuptabi,fazertudocerto,sercorreto,porquenodiaemque[]errar,elesvo[] julgar,issojvemdopassado.(Noexatomomentoemquetnhamosestaconversa,umfrentista dopostodegasolinafezlhesmenoaumcasodeviolnciacontraumameninaa'uwxavante numa certa unidade de sade, que estava sendo noticiado poca, acusando indiretamente os prpriosA'uwXavante.Contendoonervosismoparaevitarumbateboca,osdoisresponderam queXavantenofazisso,issofoiinvenoda[fundaogovernamentalquecuidavadasade indgenapoca]!102.)
101VerGiaccariaeHeide(1972). 102Vitrio,aindatenso,perguntoumeretoricamenteseeunolembravadascrianascomproblemasdeconstituio corporal,quenoandavamdireitoetc.,dadoalgumtipodedeficincia,quevamospelasaldeias.Sinaldequeos A'uwXavantenomatavamsuascrianasdeficientes,comoafofocasugeria.Eumesmoconvivicomumaououtra crianaassim.Porexemplo,umagarotinhaquetinhasidovtimadepoliomielitemascujocrescimentosaudveleupude
100
Portanto,eupoderiaouviromitodosParinai'acomoumalertadequerealizarplenamentea potnciarelacionaleperformativadaquelaviagemseriafazercomoaquelesadolescentes,queno ouviamosoutrosmassumaooutroouqueeramgrandesamigosentresi,maspoucodosoutros, quemantinhamsegredodeseupoderperantequemnoeraseu 'am ,inventandoapartirda prpriapalavra,incorrendonumpodermortfero.Umpoderque,contudo,japareciadivididoem dois,doisamigos,doisda'am,doisparinai'a,inscritoemseuscorpostransformistas.Masqueera justamenteopoderdetransformlosalmdeseusmltiplos,deequivalerunidadeemultiplicidade, numaeficciasimblicatotal. * Outrasfalas,maismetafsicas,sobreosmesmos Parinai'a, ajudamadarcontornosaesta imagemdopodersimblico,numalongacitao(aqualmistura,nooriginal,lnguaportuguesae lnguaa'uwxavante)quesejustificapelariquezadeinformaes: Quandoelessaemeandam,falamamesmacoisa:oquevaiseragora?Emarih?O outrorespondia:vocquesabe,m,pmaripisutu.Queelenosabe,m.Diziaparaooutro escolheroquetinhapensado.Ooutroentofalava:wapsuptab.Temqueserocachorro!O outroconfirmava:ihetah.Tahuptab.Tahquerdizer:Temquesercachorromesmo,tem queserissomesmo.Cadavezqueiacriaralgumacoisa,usavaessapalavra.Sempreisso, moniuptab,pewatuptab.Osdoissempreamesmapergunta.OPorezanopergunta paraowaw:Oquensvamosser?Ah,vocquesabe,owawresponde:Ah, entoestbom,temqueserocachorro.Ah,estbom,temqueserocachorromesmo,o wawresponde.Daelessetransformamemcachorro.Elesiamrevezando.Daoutravezo wawperguntava,iainvertendo.[...]Osparinaiacriavameopovojdavaosnomes. Nuncaviramantescachorro,eopovojchamouwaps.Comojderamdiretoonome, cachorro?Rupawdisse:Noseicomoeleslevaramjuntooarco,acesta,asarmasdeles. Transformaramseemcachorro,eessesmateriais,comolevaram?Osvelhosachamque so osdoiswaptquecolocaramnacabeadaspessoasonomedascoisasqueelesestavam criando.Elesmesmosquedoosnomes,todomundojfala,waps,abz.Opovojvai conhecerosnomes.Ningumfala:oqueisso?Vamoscolocaressenome?Opovojfala logoosnomes.Elesdevemcolocarosnomesdentrodacabeadaspessoas.[]Elescriam,
acompanhar.
101
chegavamcomosalimentoseospadrinhosjfalavamonome.Deveserelesquecolocavam osnomesnacabeadospadrinhos.Todosessesnomesqueelescriaram,soospadrinhos quechamavampelonome.Antigamente,notempodoescuro,notinhaogrupodoh,a casadosadolescentes.Antigamente,cadavezqueosmeninoschegavamaumaidade,se reuniamentreelesparadormirnocentrodaaldeia,chamavaiusu,sficavamnowar.No tempoemqueoswaptestavamcriando,jestavamnoh,comospadrinhos.Jestavam criando,jestavamnoh,comospadrinhos.Jtinhapadrinho,chamaisiminhhu,o mesmonomeathoje.(Eidetalii2002:123126pargrafosomitidos). Assim,combasenoquetranscreveEideseusparceirosdetrabalhoa'uwxavante,podese dizerqueos Parinai'a,magicamente,invertiamacadeiadetransmissodapalavra,aoinvsde ouvir osmaisvelhos,faziamqueosmais velhosdissessemoqueelesqueriamquefossedito. Incutiamaquiloquequeriamouvirjustamentenaqueles(ospadrinhos,osadultos,osmaisvelhos)a quemdeviamescutar.Inventavam,literalmente,atradio.Oqueindicadopelasuarelaocomo surgimentodaCasadosAdolescentes,instituiofundamentaldatradiocirculara'uwxavante: EideseuscolaboradoresafirmamqueoHpassaaexistircomosParinai'a. UmaespciedefeitiounificadordapalavradosParinai'aincutiasenacabeadetodos, constituindosecomovontadegeral,palavraunificada,semasdvidastpicasdeumdilogoem perguntaeresposta.Alis,reduzindoodilogoentreosplosopostosdaexogamiapolticaque representam Po'redza'ono e waw aumarplicaalternadadomesmo,os Parinai'a agiam quaseconformeumatrocasimtrica,quaseumequivalentegeral.Masatravsdeumaparticipao tototaldeumnavidadooutro,edessesdoisnavidadetodos,queatingiaograudointolervel. Instauradaemplenitude,seriaofimdaprpriapotnciamltiplaqueanutria. dignodenotaquetaleficciasimblicatotalpareapossuirumsignoema'uwxavante,a noodeuptab: Quandoelescriam,temqueseramesmafala.omesmo,repetindo:uptab.Essa palavra quer dizer: Tem que ser! Uptabi e uptab so duas palavras diferentes. Uptab significaquetemqueserumacoisafixa,definida.Porexemplo,novoupegarnocopoazul nemnoverde.Temosqueescolherumacoisas.Escolhemosocopovermelho,sesseque queremos.saquilomesmo,uporuptab,temqueserovermelho.Uptabumapalavra bempositiva.Temqueserisso.Nopodemudar.Temqueseraquiloquevocsjentraram emacordo,temqueseraquilomesmo.umaordem.Jumpensamentocerto,temqueser
102
issoquejfoidefinido,notemadvida.Nacabeadeumdoswaptjtemdefinidooque vaisercriado,vaiseraquilo,eooutroaceita.Jtemumaforanacabea,quevaiserisso. Nanossafala,temmuitouptab.Porexemplo,anicacoisaquevoucomprarogravador, sisso,gravadoruptab.Ou,ihireuptab,sosvelhosvovir.Euvouchamarapenasos velhos,ihireuptab.Seeuestoulongeealgumvailevarminhamensagemparaosvelhos queeuestouchamandososmaisvelhos,entoihireuptab.(Eidetalii2002:124 grifos meus). Em meu conhecimento pouco fluente da lngua a'uwxavante, no pude reparar na diferenaentreessasduaspalavras uptabi e uptab emcampo.Talvezporalgumadiferena regionaldepronnciaouuso,jqueotextodeEidbaseadonoA'uwXavantedePimentel Barbosa, um pouco distinto do de Sangradouro e tambm do da aldeia Belm, habitada primordialmente(masnoabsolutamente)pormigrantesdeMariwatsdeeseusdescendentes.A distinoentreuptabieuptabnoexistenodicionriodeLachnitt(2003).Masoquelembrodeter ouvidoemcampo,semternotadoadiferenadesentido,uptabih,comacentovocliconoi,o quefazdeleumaespciedeuptab,jqueohindicasemprenfase.Tambmviassimescrito atravsdemensagenseletrnicasdeNatalAnhaha,deSangradouro,nasquaisautointitulavase A'uw Uptabih. Enfim, h indicaes de que uptab e uptabih so pronunciadas em certos momentoseporcertaspessoasnosquaisecomquemopoderdapalavraa'uwxavantedevetomar formasmaisimperativasoubempositivasdoqueamoraldahistriadomitodosParinai'a fazparecer.Afinal,ofatocrticomtico(oplenopodertransformador)criouoseucontrrio,a tradio foi inventada e seus portavozes (da boca de quem saam os nomes), a partir da, continuaramsendoosmesmososmaisvelhosossonhadores,osnarradores(comoJernimo, Warodi, mas no s eles) por serem tambm os mais prximos,em certo sentido, da alm humanidadedosParinai'a,prximosqueestodamorte,dapassagemparaoalm. NosporquefoinacabeadelesqueosParinai'apuseramsuapalavraantigamente,mas tambm porque no corpo deles (dos narradores ou historiadores, como dizem os A'uw XavantecomEid)queseaprendeasentiratualmenteaquiloqueosParinai'afaziameinculcavam nosantigamente: Osparinaiatmpoderparasetransformarnaquiloqueelesvocriar.Hiprudisse: Mascomoelesetransforma?Oqueelepensanaquiloqueelevaiser?Notemjeitopara
103
nspensarmos.Todomundoperguntaisso.Masohistoriadorresponde:Elesabecomovai viveresentir.Masnsnosabemos,seeletempoder,seelesecriou,eledeveterdeixado alguma coisapara pensar,ele tem poder, ele sabe, sele mesmo que sabe, ele tem o sentimentodelemesmo.Assimohistoriadorresponde:Elesabe,elesecriou,elesabeoque elesente,oquecriou.Todomundoperguntaisso.umacoisamuitointeressante,quea gentepensaathoje.Queremossaber,mascomodescobrir?todifcil.Ficamosquerendo descobrir,masnoconseguimos.Ohistoriadorqueconta,ele sabesentir isso.Osnossos grandeshistoriadores,comooSerenhor,elesconhecem,sabem,jsentem.Elesdentro deles,jvemcomo.Masoqueestdefora,opovo,elequersaber,querdescobrir.Ns ficamosquebrandoacabea.Masohistoriador,elesabecomosentirisso.(Eidetalii2002: 124pargrafosomitidos,grifomeu). Noadiantaquebraracabeaparadescobrirosegredoquefoiencucadoldentro,jque estesegredosesentenocorpo.Ecomosentemissodentrodeles?Talvezporsuarelaocomo queestforadeles.Afinal,elesjsentem.Aindanoocupamestelugar,masjsentem,para almdoqueinternalizadonacabea. * Emsuma,hpessoascapazesdesabersentiropoder.Masquetipodepoderessaspessoas defatotm?SeosA'uwXavantetentamcontrolaroplenopoderdapalavraque(devoltaescrita de Nietzsche) um poder senhorial, dificultando seu acesso, por outro lado esse poder no destrudo.Spodeserrenegadoporqueexiste,eseexisteafirmadocomoalgobempositivo. Poisumaaproximaodavidaa'uwxavantequeladaaristocraciacomoapresentadana polmicaeetimolgicaGenealogiadaMoralnietzscheana,senhorialeimperiosa,possvel,mas somentecomoaproximaoexterior. NoquenopossamosenxergarnosA'uwXavanteosmesmosaresqueNietzscheviana aristocracia, aconstituiofsicapoderosa,sadeflorescente[],juntamentecomaquilo que servesuaconservao:guerra,aventura,caa,dana,torneiosetudooqueenvolveumaatividade robusta, livre, contente (Nietzsche 1998 [1887]: 25). Mas sim que seu antilugar na oposio dominantes/dominadosdependejustamentedesuarelaocomaexterioridade: Todososinstintosquenosedescarregamparaforavoltamseparadentroistoo
104
quechamode interiorizaodohomem:assimquenohomemcresceoquedepoisse denominasua''alma''.Todoomundointerior,originalmentedelgado,comoqueentreduas membranas,foiseexpandindoeseestendendo,adquirindoprofundidade,larguraealtura,na medidaemqueohomemfoiinibidoemsuadescargaparafora.Aquelesterrveisbasties comqueaorganizaodoEstadoseprotegiadosvelhosinstintosdeliberdade[]fizeram comquetodosaquelesinstintosdohomemselvagem,livreeerrantesevoltassemparatrs, contra ohomemmesmo(Nietzsche1998[1887]:73grifosmeus;grifosdooriginal retirados). Nadamaiscontrriointeriorizaodesiqueaalmaa'uwxavante.Comovisto,elaque sailivreeerranteemsonho,nacapturadooutro.Aindaassim,estaalmaguardaalgodaquele mundointeriordelgado,comoqueentreduasmembranas:dahibauptabi,oprpriodahiba, a prpria parte de ou tendncia superfcie, casca, pele. O mundo interior seria, desta maneira,algocomoumasuperfciemesmo,enftica,quenofariasentidosemsuaexteriorizao. DemodoqueosA'uwXavanteparecemapresentarumasoluoouumafugadaquela interiorizaodosimpulsosdeaolivreacusadaporNietzsche.Estainteriorizao,elechamoude mconscincia103.Oque,paraofilsofo,teriatidoorigemnumafatalidade:osurgimentodo EstadoacidentebrutaleenigmticoqueClastres(2008[1982]),comLaBotie,nomeoudemau encontroinominvel.Seriaamconscinciaummauencontro?Seriaomauencontroumencontro consigomesmo?Emais,seriaomauencontroumaboaescolha? Estas analogias tornam mais potente a comparao feita por Clastres entre La Botie e Nietzsche: La Botie , na realidade, o desconhecido fundador da antropologia do homem moderno,dohomemdassociedadesdivididas.Antecipa,commaisdetrssculosdedistncia,a empresadeumNietzschemaisquedeumMarxdepensaradecadnciaeaalienaoaorevelar comaresdeobviedadesurpresaqueoshomensobedecem[]voluntariamente(Clastres2008 [1982]:114115).Potenteporqueasanlisessecomplementamcomocontraexemplaresdamesma espcie: daquelaemqueoencontronofoitomauassim.SeLaBotienoexplicaomau encontro(aorigemdoEstado)massim como eleperdura,comoomauencontroseperpetuaa pontodeparecereterno(Clastres2008[1982]:114),namesmalinha,masaocontrrio,Clastres
103 A presena da noo de cabea no texto de Eid e dos narradores a'uwxavante supracitado no deve ser confundidacomadeespritooualma.Outrossim,nodeixadesersedutorpensarqueosaberrestritocabeae umamconscincia,incapacidadedeexternalizaodesi.Quemficacomacabeamuitocheia'ridupuparece terdificuldadescomaexperinciadomundo.
105
pergunta[c]omoconseguemconjuraromauencontro,comoosamerndios(jqueaquinose estmaisfalandoemprimitivos)fazemisso? Acredito que a esta pergunta os A'uwXavante respondam mostrando como fazem a conjuraodesi,rumoaencontrosoutros.Talvezsejaestaumarespostaaomaudesejo,bipartido entreodesejodepodereodesejodesubmisso,cujarepresso104 Clastresvnosritosde passagemqueinscrevemaordemcoletivaeatradionoscorposindgenas(2008[1982]:117118). Ordenaoque,comojdito,dependedocaosacessadojustamentepelaexternalizaodaalma,do corpomesmo. Enfim,seLaBotienofaladaalmamasdapolis,nofaladaliberdadeinterior,masda liberdadepoltica(Lefort2008[1982]:131),sugirocontudoque,paraosA'uwXavante,poltica, coletivo,corpoealma(tooumaisexteriorqueinterior)sejamfeitosnomesmoprocesso.Oque viriajustamenteaoencontrodeumLaBotierepensadoporLefort,jqueodesejodeliberdade cujoparoxismolevariaservidoexigequeanaturezadosujeitonuncasejadeterminada,nem cadaum,nemtodos.Isto,borrasedealgummodoadistinoentreindivduoesociedade, favoreceseaentreconstituio,oentreconhecerseque,paraLaBotieeLefort,constituema amizade.Emoposioaisto,ofeitiodoUmevocaumamordesi,umnarcisismosocial (Lefort2008[1982]:146)que,natentativadenegarooutro,buscatornartodosrplicasumdooutro eunsdoUm. OentreconhecersedeLaBotie,comoaquelemanifestono datsiwaihu a'uwxavante, encontraseentreosA'uwXavantenaprpriarelaoentreoscorpos:entrecorpos. Ademais,estudararelaoentrealma,corpoepoder,oucompreendercorpoealmaa'uw xavantecomodaordemdoapareceraoinvsdoser,daaparescncia,poderiatrazerumnovo sentidopercepodeClastressobreumcertotipodepoder:umpoderquenoseexerceno umpoder,apenasumaaparncia(2008[1982]:113). *** Dahibauptabi,dahibauptabire AoperguntaraosA'uwXavantesobreosignificadode dahiba e dahibauptabi,oque
104Comoaquelarepressoaplicadaaodemnioantientrpico(trazidobailacomoauxlioMauroAlmeida)paraum ordenamentodocaos.
106
faziaprincipalmenteparacompanheirosdeclassedeidade,oumaisjovens,recebiamuitasvezesum olhardedesconfianaemistrio,oumesmodedificuldade.Assimcomoparansdizeroque almanofcilemuitateologiajdevetersidoescritasobreisso,porsbiosrenomados tambmparaelesnotosimples. Um jovem, Onsimo, Po'redza'ono, neto uptabi de Ado Top'tiro e 'riti'wa da aldeia Abelhinha(mas,aocontrriodeDadu,pertencenteaumaclassedeidademaisnovaeadversria minha:Abare'u),respondeumecertavez,enquantomemostravaosrecentestrabalhosdaroada aldeia, que dahiba tambmqueriadizertransarcomamulher,atosexual,equevidaera dahimana.Omesmomedissequenosabiaexplicarosignificadodedahibauptabi,depoisde tentarmedizerquesignificavacorpoprprio.Procureimudarapergunta,jquehaviafeitouma pesquisanosdicionriossalesianosLachnitttraduzhibauptabicomoespritoehibauptabire comoalma(Lachnitt:2003:31)eentolhedissequequeriasaberoquesignificavadahiba uptabire.Onsimomerespondeuqueeraoespritodentrodocorpo,pequeno. ObtiverespostaparecidadeMarcos,umtpadametadeexogmicaopostawawque medisseque dahibauptabi eracorpogrande,comotinhamnossosantepassados,e dahiba uptabireeracorpopequeno.Maistarde,conversandocomeleeoutrotpawawMarciano Were',genrodeAdoTop'tiro,habitandoamesmacasaqueAdo,ecomquemeujtinhamaior intimidadenacoletademadeirajuntoaosadolescentesparaaconstruodo H,pareceque tiverammaisconfianaemtratardadelicadezaqueoassuntodemandava.Were'respondeumeque ambosostermosreferiamseaoespritodecadaum.Marcosreveloumeque dahibauptabi e dahibauptabiretratavamsedoespritoquesaiquandoapessoaestdoenteoumorre.Coma morte,dissemeMarcos,enterraseocadverdahibawareodahibauptabirequesaido cadversetornaumtsimihpri,quecircundaaaldeiaassobiandoeassombrandoa,quequando todoschoramamortedomorto.Aparentementeesseestadodeassombraonoseriaplenoou noseriaonico,afinalelesvoparaaaldeiadosmortoseatreencarnam(comooutraspessoas mediriam),epossvelencontrarsecomodahibauptabiredequemjmorreu,oumesmoestar empresena,duranteaviglia,deumdahibaquenosepodever,umdahibatsamri'comome disseraalhures(naaldeiaBelm)LeandroUptswwarimaisdeumavez(numadelasfazendo refernciaaquemcantavaemcoroa'uwxavantenumafitacasseteporumgravadorligadonaCasa dosAdolescentes: dahibatsamri',podamosouvilosmasnovlos).Sobreoencontrocomo corpo prprio de algum, Marcos no mencionara os sonhos, mas derame como exemplo a suposiodoencontrocomoprpriocofalecido:semeucachorromorreeeuenterro,euposso 107
vernomatoeledenovo,masvaiserseudahibauptabire,entovouficartristeecomsaudade masnuncavidahibauptabiredecachorro. * Teriaessadiferenaentredahibauptabiedahibauptabirealgumsentidoespecial? Emlnguaa'uwxavanteodiminutivosefazpelosufixo re, demodoqueatraduode uptabire uma nfase, porm diminutiva. Isso no diz muito se no soubermos dos usos do diminutivoparaosA'uwXavante. Umadasopes,semelhanteaoqueocorreemportugus,adeumtratamentocarinhoso oudefamiliaridade.Muitasvezesouvipessoasreferindoseaoutrasquelheseramprximas,ou chamandoas,usandoodiminutivo.Istoseaplicaanomesprpriosusadoscomoreferncia,nomes peloqualapessoaconhecidainformalmenteourotineiramente,quepodemserema'uwxavante ouportugus(porexemplo:MarcosMarcure). Aplicasetambmatermosdeparentesco,sobretudoosdeusomaisinformalentimo, comoboditermoqueenglobasobrinhosenetos,isto,pessoasdogneromasculino(otiparao feminino)daprimeiraesegundageraodescendente,exclusososfilhosefilhas105semrespeito diferenadepertenaametadesexogmicasoquefazdessapalavra(esuascorrelatas) uma exceo em relao terminologia apresentada por MayburyLewis, aproximada ao modelo iroqus (1984 [1967]) (discutido mais adiante). Ou a seu simtrico oposto como termo de chamamentonda,dentreoutros(porexemplo,ram:minhame).Principalmenteemreferncia acrianasouporcrianas.Assim,eracomumquecrianaspequenasdacasadeAdoTop'tiro, especialmentePepot'(netadeAdoporpartedesuafilha),chamassemmedenda,dizendoem seguidameunomeGuilherme(comsuapronnciaprpria:Guileme,Dileime,Mireime etc.).Nodiminutivo,paratodasessaspalavras,teramosentondare,bodire,ramreetc.. Presencieiusosemelhantedodiminutivoparaanimaisdeestimaooucapturadosparatal finalidade.UmcodacasadeAdoTop'tiro,pertencenteCatarina(suaconsogradawatsinique vive no local), de nome Chico (que no portugus falado pelos a'uwxavante quer dizer covarde...),eramuitasvezeschamadodeChicure.Umfilhotedeemamcapturadoedado paraummoradordamesmacasa,provavelmenteporcausadeseupequenotamanho,erachamado demre. Um usocarinhoso,s vezesumpoucojocoso,s vezes numtomsexual,percebisendo 105 S,D,C.aindaquenotenhanotadoseomesmovaleriaparaBSetc.nocasodeegoderefernciaser
masculino,ouZSetc.nocasodeegofeminino.
108
aplicadoemrefernciaapessoascomomembrosdeclassedeidade,principalmenteporpartede mulheresparahomens,especialmentesuas cunhadas (datsidan,algocomocomes,mulheres quesoesposasempotencialouparceirassexuaispreferenciais,simetricamenteopostasairmose primos),principalmenteaquelasdeclassesdeidadepertencentesametadesagmicasopostas.Ou seja, um tipo de chamamento entre pessoas opostas e complementares simultaneamente pelo gnero,pelaexogamiaepelocerimonialagmico. Esse chamadodas cunhadas tambmpareceenvolverumaespciedeperigosaseduo: afinal, so exatamente estas cunhadas da metade agmica oposta que mais praticam atos de agressoepredaocontraoshomens,dediversasformas.Sejaatrapalhandosuasdanasdando lhesasmosoqueosobrigaadaraelasalgumapresa,caa,pescaououtroobjetooumesmo puxandoos dadana numtomsexualagressivo;seja jogandofarinha ecarvoem seus rostos enquanto danam comemorando vitria numa corrida de tora contra a metade agmica dessas mesmasmulheres.Experimenteitodasessasagressesrituaisaomenosumavez.Numanoite,na aldeiaBelm,oshomensdowaradulto(separadododos'riti'wa)cantaramtoprovocativamente quesuas cunhadasvieramperseguiloscompalhasemchamasnocentrodaaldeia,causandoum alvoroo ldico geral. Noutra dana, que congregou todos os membros adultos da aldeia, uma cunhada deumeamoparamostrarcomosedanava:diasdepois,tendoeuparticipadodeuma pescaria,amesmacunhadamandousuafilhavirbuscarumpeixequeeulhedevia. Recebialgumasvezesestechamamentoporpartedemulheresdasmetadesexogmicae agmicaopostasminha,principalmenteasdeclassesimediatamentemaisnovasouimediatamente maisvelhas,masvezououtraumaaindamaisvelhaentravanabrincadeirameuscompanheiros incentivavamme a chamla de tsidan hiba'rada, cunhada velha, cunhada do corpo velho. Chamavamme tpa'bre,jquesoumembrodaclassedeidade tpa.Notesequecomum chamarumapessoapelaclassedeidadequalelapertenceemoutrassituaes,semousodo diminutivo,conformeadistnciaqueseescolheenfatizaremrelaoaela.Sejaparaaproximar,seja paradistanciar.Porexemplo,umnetoreferiusecertavezaoseuavcomoAbare'u,classedeidade dametadeagmicaopostasuaNodz'uquandoqueriadizerqueovelhoeramau,watsetdi: haumindciodequeseriaindevidodizerqueo av eramau,masnoqueoadversriode classedeidadeeramau. Percebioutraaplicaododiminutivoemrelaoacargoscerimoniais.Especificamenteno caso do 'Wamardzubtede'wa, outra verso do cargo 'Wamaritede'wa106. Jovens detentores deste
106 Apartcula dzurefereseaopde 'wamari,usadoparapacificar.Parecequeosdoistermossousadosem referncia a funes distintas do mesmo cargo (isto , assumidas pela mesma pessoa ao assumir o cargo), a de
109
cargo so chamados de 'Wamaridzu'bre (sendo bre outra forma do diminutivo), como o j mencionado OnsimodaaldeiaAbelhinha,porexemplo.Eumesmofuipintadoeparamentado conformeestecargonaaldeiaBelmparaumacertacerimnia,ealgumaspessoasquemeviam assimexclamavam:'Wamaridzu'bre!.Issofariareferncia,porcomplementaridade,existncia de oficiantes do cargo mais velhos e plenos, chamados sem o diminutivo. Por exemplo, na Abelhinhao 'Wamartede'wa maisativoseriao cacique TiagoTseretsu(dametadeopostade Onsimo,porexemplo,jqueocargopossudopordistintasfamlias).NaaldeiaBelm,omais lembradoseriaBaioqueTsaranat,agentepastoralcatlicoemuitasvezesooficiantedasmissasem lnguaa'uwxavantequeocorriamnaaldeia, filho domesmohomem(RaulTseretsu107)queme outorgaratalcargoaindaquenamesmaaldeiahouvessemoutrosdetentoresdomesmo(abaixo, RaulTseretsuposaparaafotografia):
*
sonhador ('Wamartede'wa) e a de pacificador ('Wamaridzubtede'wa). Jernimo Xavante, conforme Medeiros (1990),seriadonatriodasduasfunesconcomitantes.Outrosa'uwxavantequeentrevisteitambmparecemno separarasduasfunesdomesmocargo,oraenfatizandoumdostermosconformeafunoemquesto,oraooutro. 107AhomonimiaentreTiagoTseretsueRaulTseretsuparece,nestecasoespecfico,meracoincidncia.
110
EntenderodiminutivoparaosA'uwXavantedeveajudaraentenderasutildiferenaentre dahiba uptabi e dahiba uptabire, ainda que no possibilite explicaes definitivas, como essnciasdostermosoucomodefiniescategoriaisconceitualmentebemdelimitadas. Nos primeiros exemplos dados, o diminutivo tem um carter de proximidade ou aproximao. Usado entre pessoas ntimas ou, por outro lado, entre pessoas distantes porm potencialmententimasevisandoumaaproximao.Umarefernciaapessoasprximas,quese querperto,oudasquaisquerseaproximarvencendoadistncia,squaissequerdomesticar. Tambmserefereaalgumquenooexemplomximodecertapersonificao,comono casodoscargos,masquetendeaele. Assim,considerandoesseselementoscomoindcioseconsiderandoque dahibauptabire sejaoespritotornadontimo,dentrodocorpo,comomedisseOnsimo,talvezpossaseconcluir queaplenitudenodiminutivadodahibauptabised,justamente,foradocorpo.Oquereforaria queoprincpiodocorpoprprio,davidapropriamentea'uwxavante,venhadesseforadesiedo contatocomoexteriorquesequerdomesticar.Masdesdequeemrelaoaocorpovivo. Porque,poroutrolado,oencontrocomo dahibauptabire deummortooumesmoa refernciaaoespritodeummorto,comoafeitaporMarcosdealgummodoassinalaarelao diminutivacomaquelesmuitodistantesdequemsebuscaaproximaomovimentoinversodosair paraforadesi.Nessesentido,amenoaodahibauptabiredeumconoparecedespropositada, supondoasdistnciasexistentesentrecesehumanos,bemcomoaaproximaoesperadaapartir dadomesticao,dafamiliarizaodoalheio.Jarefernciaaocorpograndedosantepassadosem relaoaodahibauptabiapontaparaconsideraesarespeitodaquelapotnciadopassadomtico oudaparagemmtica,docorpodopassadoimanentenaalmapresente.Enfim,oencontronomeio damatacomoespritodeumfalecidocoparecejustamentesetratardeumaeventualidadeda mesma natureza mitoxamnica da dos encontros fantsticos e extraordinrios manifestos nas paragensmticas. *** Especulaesderisco Odahibauptabi,emviagemonrica,podeadquiriropoderquevemdeforadesidemodo maisplenoqueosimplescorpo,aindaqueodahibanoestejaimpossibilitadodisto.Sonharo 111
modo mais corriqueiro de entrar em contato com as potncias exteriores, estando acessvel maioriadaspessoasdiuturnamente.Enquantoqueencontrosemviglia,comovistonashistriase mitos,parecemmenosfreqentesemaisperigosos. A pura potncia que imana do alm poderia ser comparada quela da diferenciao indiferenciante,daambivalnciacomumaocontnuoheterogneo,comodiriaojreferidoViveiros de Castro. Pensar em contnuo heterogneo pode remeter a alguma forma de comunidade heterognea original de substncia ou, melhor, de superfcie. Continuidade que talvez esteja presumidajnanoodedahiba,sefizersentidoconsiderarasuposioetimolgicaqueaponta parasuaparcialidade,cortadadeumasuperfcie.Equeseriamaisenfticanodahibauptabi. Essacontinuidadepresumidapareceumindciodetransformaoouconsubstanciaoentre asheterogneaspartesenvolvidas.Aindaqueo dahibauptabi deumapessoaquesonhanose transformenaformadaspessoascomquemelaseencontraouviceversaoquetalvezsejauma garantiadeseguranadosonho,emsono(danhono),emrelaoaosencontrosemviglia(darini). Nessesentido,o dahibauptabi seria uptabi justamentepelopoderdemantersesemelhanteasi mesmo, um poderqueprecevirdiretamentedaorigem,jque,segundomedisseram,os pais A'uwXavantecostumam,oucostumavam,fazerumaoraovoltadosparaonascentedoSol tidocomoocomeodocuetambmolugarmesmodaorigem(MayburyLewis1984[1967]e Eidetalii2002)pedindoque Danhimite,entidadedapotnciavitaldonascimentoedamorte, responsvelpelodahibauptabi,desselhesrebentossadios,fortesebelos,pedindolhequetivesse umcorpoparecidocomocorpodopai,segundoVitrio.AssimDanhimiteenviariaumdahiba uptabiquereforasseasemelhanadodahibaasimesmo. Oquenodeveserconfundidocomdeterminismoidealnemcomnegaodotornarse outro,massimcomopoderdecontrolaratransformao,graasaumacapacidadederegistro nosnodahibacomotambmnodahibauptabidosaberfazer,datradio,datcnicaedo habitusquegarantiriamacontinuidadecorporaldequempropriamentegente.Pois,certavez,ao fazerperguntasparaoutrofilhodeAdoTop'tiro,Wto,estemediziaparaeuouvirbemoqueele meensinavademodoqueaqueleconhecimentoficassebemregistrado,isto,na[minha]alma. Emsonhopodeseconversarououviroscantosdeumanimal,porexemplo,semqueo sonhadorconsidereistoumriscoesabesequeseestcomunicandocomtalouqualanimal justamenteporsuaformacorporalespecfica.Jemviglia,ouviravozdeumanimalpareceser maisperigoso.Amenoquetivedeuma'uwxavantearespeitodeencontrosextremosdestetipo foideTseredzar,querespondeuaumademinhasinquisiesperspectivistasdizendosaberda 112
histriadeumcaadorque,devidoamuitojejum,ouviucaititusconversandoeavisandoaseus filhotes do perigo assustado, quem fugiu do perigo foi o caador. Outros, mais jovens que Tseredzaremenosinstrudosnaexperinciaenatradio,diriamqueumcaadornoouveos animais falaremporqueanimaisnofalam.Mas,comosever,asmanifestaes voclicasdos animaisemviglia,seusgritos(dahro),choros,pioseassobiospodemsinalizarperigoiminente. * Outrossim,apesardequeaosefalarempartepossasepresumirotodo,oqueapalavra dahiba enfatiza justamente a descontinuidade. Afinal, enfocase no corte duma suposta continuidadedavida.PensarassimpodeajudaraentenderaquelarefernciafeitaporDaduao envelhecimento.Compreendaseissocomaajudadeoutropensadormodernoenondio,Pierre JosephProudhon: Acontinuidadeumaidiaverdadeira,mascujaverdadeanteriordiferenciao dos seres []. Que mais eu diria? Nossa prpria vida est submetida srie; e a continuidadedaconscincia,apermannciadosentidontimo,aincansvelvigliadoeuso somenteiluses.Acreditamosviverumavidaindefectvelenointerrompida,aomenos nestecurtointervalodetempoquenospermitido;pobresmortais!cadainstantedenossa vidasseligaaoquelheprecedecomoasvibraesdaliraseligamumassoutras:afora vital que nos anima contada, pesada, medida, seriada; se ela fosse contnua, seria indivisvel,ensseramosimortais(Proudhon1986:4344)108 Ainda que nesta apresentao da filosofia de Proudhon no tenha havido lugar para a diferenanaprpriacontinuidade(oqueexatamenteodiferencialdamatriamticaamerndiae aparece at napercepodeLefortsobreofeitiodoUm109),aleituradestapassagem pode 108Proudhon,emsualinguagemtomoderna,europiaedatadaquantoadeNietzsche,defendeumametafsicada
sriequeemresumonoseriacoisasubstancialecausativa,masordem,conjuntoderelaes.Realidade presentenoprpriomtodoaplicado:raciocinarseriar,segundoele.Asrieaanttesedaunidade:elaseforma pelarepetiodasposiesecombinaesdiversasdaunidadee[a]menorsriepossvelabrigapelomenosduas unidades:umateseeumaanttese,umaalternncia,umvaievem,oscontrrios,osextremos,apolaridade[],opaie ofilho,omestreeoaprendiz,oesposoeaesposa,ocidadoeoEstado.Enfim,emtodoproblema[]convmantes detudodeterminaramatriadasrie,ou,comodizemos,opontodevista.(Proudhon1986:4447grifosmeus).Este brevesumriodametafsicaproudhonianaintroduzdiversasquestesquepoderiamnosinteressarnodilogocoma metafsicaa'uwxavanteesuasimplicaespolticas. 109Afinal,noUmdatiraniaamesmaimagemcondensaadivisoeaindivisoeoplural,denegandose,precipita
113
sugerirqueaconexofeitaporVanderleiDaduentrepedaodepeleeficarvelhopareauma referncia insustentabilidade do ser ou parecer enquanto parcialidade, dada sua mortandade,suadistnciadaorigemvital. Entretanto,odahibauptabiparecepoderseaproximarmaisdacontinuidadeou,melhor, efetivaaproximaescommaiorfacilidadeeacessaapotnciavitaldeummodoqueo dahiba encontradificuldade.Oquepodeestarassociadonomortalidadedaalma. Pois,apesardequeadoenagrave,paraosa'uwxavante,sejaumpasseioemvigliada almaparaforadocorpo,atradapeloDanhimiteentidadequedavida,dpessoaseudahiba uptabi paraqueelapossanascer, mastambmtiraavida,atraindodevoltao dahibauptabi, e contraissoosritosdoxamanismocoletivodecurasoefetivados(Giaccaria1990,2000) ,os contatosfeitosemsonhocostumamser,porassimdizer,pacficos.Pegase(mrami)nomesecantos pronunciados pelas pessoas com quem se encontra em sonho sem a necessidade de qualquer violncia.Forteindciodarelaoentresonhoepazestnofatodequeosonhadormagnificado, 'Wamaritede'wa,eopacificador,'Wamaridzubtede'wa,soduasfacetasdomesmocargocerimonial. Por outrolado,os encontrosemviglia,comoascaadas rotineirasdos homens a'uw xavante,sempreenvolvemamorteouamortetentativanormalmentedacaamassvezes acontece(comodizemosa'uwxavantecomoeufemismoparafatalidades)deserodiadocaador. Emcorpoeviglia,hsempreoriscodopredadorvirarpresa. Os contatos perigosos realizados em sonho, contudo, ainda que no efetivem o perigo, podemserpremonitrios:avisamsobreperigosqueodahibapodeenfrentaremviglia. Halgodepremonitrionosemsonho.SegundoRmulo Tsereru'u,o dahibauptabi pressentenocorpoosperigosqueapessoapodeviraenfrentar,apessoaficatriste,vocsente algumacoisanoseucorpoespiritualmente.Espritoecorpoestoemconexodireta. O dahibauptabi tambmpodeseretirardocorpoatravsdodesmaio,enosrituaisde aquisiodepoderesdoDariniodesmaiousadoparaqueseamplieacapacidadedesonharos A'uwXavantedizemquequemdesmaiamaisoupormaistempo,sonhamais.Masasituaode riscomaisadodesmaioqueadosonho,poisseguroqueaalmasaiadocorpoemrepousoe sono,masnoquefaaissocomocorpoemviglia(causandoodesmaio). * Tudoissoposto,seriacorretoconsideraradistinoaparentementearbitrriaentreespritoe alma,cravadapelodicionriomissionrio,afimdesepensaroespritocomoalgomaiorqueaalma
senoUm(Lefort2008[1982]:141).
114
pessoal?AlgoprximodoEspritoSantocristo?OuoEspritocomoconsideradopelocnone daantropologiaamazonistanosentidodeumaCulturatransperspectivaemultinatural:uma Cultura,vriasNaturezas;umEsprito,vriosCorpos?Ouentoatraduoquedistingue entreespritoealmaocultariaoqueoexamemaisliteraloumaisdetidodasconcepeseprticas a'uwxavantepoderevelar? Dahiba uptabire e dahiba uptabi parecem ser dois momentos diferentes da mesma entidade,damesmapessoa.Mastambmalgoemcontinuidadediretacomo dahiba. Ou,pelo menos,nomuitodiferentedele,poisdescontnuadeumcontnuo,emsetratandodeumcortena superfcievital.Poroutrolado,falaremtransespecificidadedodahibauptabisparececorreto, porora,noquehdecorretoemsefalaremtransespecificidadedodahiba:sedahibacorpo, vidaepessoa,apersonitudeparecesertransespecficajnocorpo. Paraqueestaquestosejaanalisadaacontento,precisoabordardistintosproblemas:a relaoentreodahibaeodahibauptabideumapessoa(ecomoseafetammutuamente,oqueh da constituio de um na constituio do outro); a aplicabilidade transespecfica das noes dahibaedahibauptabi(quaisespcieshumanaseanimaistmounotmumeoutro,oqueh de comum entre o corpo e a alma do exemplar de uma dada espcie); a possibilidade ou impossibilidadetransformacionaldodahibaedodahibauptabi,considerandoseasquestesdo parentescomastambmdoxamanismoedomitoisto,oproblemadeque,comomerespondeu Hiprdicertavez,antigamenteosA'uwXavantesetransformavamemanimais,mashojeno mais, ao contrrio dos Tsa're'wa que, diferentemente dos a'uw comuns, so capazes de se transformaremtudooquerelacionadoaor(omeioambientedosa'uwxavante).E,enfim,do quesetrataapersonitudededahiba:tododahibaumsujeito? *** Transformismoeaparentamento Muitoesclarecedorasobreaimbricao,paraosA'uwXavante,dessesdistintosproblemas, outrapassagemdatesedeArthurEidemqueseuscoautoresexplicamlhenoesenvolvendo transformaoecorporalidadeaindaapartirdomitodosParinai'a.Paraencurtarapassagemeas refernciasaumaobratofundamentalcomoadeEidparaumaantropologiaespiritual(como dizosubttulodatese)mastambmcorporaleparaadaptarostermosaosmeusproblemasde 115
campoeortografiautilizadaemSangradouroounaaldeiaBelm,diversadaqueladePimentel Barbosa110,mencionoostermosalipresentesdeformaanaltica,pormmantendoaconstelaode sentidosqueosconjunta. Ao explicaras transformaes travadas pelos Parinai'a,Eide os coautores desua tese apresentamasnoesdetsipoto,tedzatsipodo,romhtsi'wa,tsihiba,tedzatsihiba,queenvolvem poderdecriao,transformao,corpoe,emcertosentido,parentesco. Tsipotoetedzatsipodotemamesmaraiz,podocriar,procriar,desenhar,fazerprojetose criatura, criao, imagem, fotografia, desenho (Lachnitt 2003). Com Eid, os A'uwXavante traduzem tsipotoporsecriar,brotar,aparecer,transformar,nascertudoisso(Eidetalii 2002:122123)lembresedareflexividadedoprefixotsieobserveseseuefeitosobrearaizda palavra.J tedzasipodo elestraduzemcomovaisecriar,vaisetransformaretc.tudoisso (Eidetalii2002:122123).Notesearelaodiretaentreprocriaoetransformao. Tezasipotoamesmacoisaqueromhsiwa.[...]Romhsiwacoisaquevoctempoder, fora (Eid et alii 2002: 122123). Romhtsi'wa so aqueles que tm consigo o romh, poder transformacionalecriativo,decriar,transformar(Lachnitt2003),podermgico.acriaoem potncia.Oassuntoemquestoacapacidadedos Parinai'a desetransformarememdiversos animais e alimentos mas sem comissoperderema capacidadede tornarem aseroqueeram, mantendoaexistnciadoquecriaramisto,aosetransformarem,osParinai'adiferemsedesie criamalgoalmdelesmesmos,quecontinuaexistindomesmoqueelesvoltemasi(omesmofazem os Tsa're'wa, conforme me disseram). Justamente para falar dessa volta a si, usase o termo tedzatsihiba.Oumelhor,tedzatsihibaap: Vaivoltarhumanodenovo.Sihiba,voltarhumanodenovo,vaivoltar.Hiba corpo.Tezasihiba,vaisetransformaremhumanodenovo.Tezasihibaap,vaivoltar.Ap voltar.Tezasihibapodesertambmusadoparaparente.maisoumenosmeuparente, isihiba.Nosuafamliamesmo.Primoterceiroouquarto.Vocpodeusar,eleisihiba, elemeuirmo,omeuparente.Isihibameusangue,someusirmos.amesma
110Asdiferenasprincipaisestonousodasconsoantested.EmPimentelBarbosa,diferentedecomofazemos A'uwXavantedeoutrasreas,noseusatantesdesedantesdez,aindaqueissononecessariamente acompanheumavariaonapronncia.AspronnciasdetsedzdeSangradourooudaaldeiaBelmesedoz dePimentelsosimilares.Soamcomooencontrodasmesmasconsoantesemlnguaportuguesa,bemmaissuaveem A'uwXavante.OtextodeEidtambmobliteraalgumasacentuaesmuitousadasnaescritadalnguaa'uwxavante, comoo~sobrealetrai,queindicanasalizao.
116
famlia.Tezasihiba,elevaivirarocorpodegentedenovo.Tezasihiba,elevaivoltar.No precisausarapalavraap.[]Masnotodomundoquepodeentender,entosevocfala ap,voentender,queelevaivoltarpessoa.(Eidetalii2002:123pargrafoomitido) Apresentei esta seqncia de frases para que o leitor perceba algumas tradues apresentadasdemodoasuspeitarumpoucodeessencialismos,jqueaintenodolocutor(um narradora'uwxavante)dialgica,fazersecompreenderpeloouvintewaradzu(oprprioEid). Tedzatsihibaapresentadocomosetransformaremhumanodenovo,masahumanidadedeste serquevoltaaserparecepresumidapelocontexto,jque[h]ibacorpo(palavraquepodeser aplicadaacorposdediversasespcies,nosespciehumana)etedzatsihibaappodequerer dizertornaraserapessoaqueseeraantes,voltarpessoa. Oetnlogopergunta:estariaaimplcitaaidiadequeserhumanoserparente?Emais:a idia de que o parentesco envolve sangue, como diz o senso comum ocidental (ou euro americano,seosensocomumbrasileirotambmpuderserchamadoassim),teriasidoapresentada aparafazersecompreenderpelowaradzu,ouseriaumdiscursoamerndiolegtimoarespeitodos fluidoscorporais?Ouento:falaremprimoterceiroouquartoquerdizerqueosA'uwXavante tm uma percepo genealgica do parentesco, ou estariam falando nos termos que crem ser compreensveisparaseuinterlocutorwaradzu?Enfim,odilogocheioderudoseinterpolaes desentido,masoqueressaltamenosaorigemautnticadascategoriasdoqueaproduodeste discursoapartirdodilogo.Umdilogomuitoespecficoautntico,seassimquiserserchamado que, como j dito, demanda uma hierarquia de sentidos a'uwxavante sobre os sentidos antropolgicos,euroamericanos,brasileirosou waradzu eumjogoentrehierarquias,uma hierarquizaorecprocainstvel. Sejacomofor,oqueestexplcitaarelaoentreparentesco,corpoemagia.tsihiba meuirmo,meuparente,mesmafamlia.Enquanto tedzatsihiba maisoumenosmeu parente, primo terceiro ou quarto. Alm da corporalidade e da pessoalidade do parentesco, tambmsomosinformadosdequeasimparaosa'uwxavante,oquepodeserumadistncia genealgica(primoterceiroouquarto)tambmenvolveumadistnciatransformacional:quevir aserparente.Humaassimilaodadistnciagenealgicadistnciageogrficosocial(Viveiros de Castro 2002a: 121) atravs da proximidade transformadora, efeito da dinmica intensiva da corporalidadesobreaextensodoscorpos.ConstituiseaalgomuitoprximodaquiloqueSeeger chamoudegruposcorporais(1980)gruposunidospelasubstnciacomum,fluidoscorporais
117
(smen, sangue), alimentao e restries alimentares. Ainda que a proposta de Seeger tenha surgidoparadarcontadecasosonde,aocontrriodoa'uwxavante,nooperaoprincpiode agnao. A questo da proximidade corporal acrescida da idia de graus (primo terceiro ou quarto)remeteaoutrapropostadeSeegerque,ameuver,afinasuapropostaanteriorparaocaso estudado(arelaoentreagnatismoecognatismoa'uwxavante):osfuzzysetsouconjuntos nebulosos,nosquaissermembronoumestadoabsolutomasumaquestodegrau(Seegerin MayburyLewiseAlmagor1989:191208)111. Por enquanto, continuese falando simplesmente do poder de transformao intensivo operantea,pois tedzatsihiba algumquevaiser tsihiba,quevaidividiroucompartilhar mutuamenteocorpo,avida,apessoalidade.Umparenteempotencialou,nomnimo,umirmoem potencial.Umparenteque,apesardesermaisoumenos,podersetransformaremmeusangue, meusirmos,mesmafamlia.Oquepodesugerir,implicitamente,apossibilidadedeumretorno, ap,avoltadeumparenteetambmseuopostocomplementar:queodistanciamentotambm desaparenta.Poroutrolado,tambmpodesesugerirumaatualizaoinconclusivadoqueestem potncia. * Esta reflexoiluminaaformacomoosA'uwXavantesereferiamamimnoincio de minhaestadiajuntoaeles:voc vaiser Po'redzaono tambm...agora!.Ou,comomediriam noutraocasiomuitoparecida(beiradorio):vocvai virar a'uw112 quando?,perguntei agora!. Por qu? Porque vou cortar o cabelo como o deles (raspando as costeletas, por exemplo),porquevivocomelesnesteexatomomento.Umviraserparentequaseimediato,quase como uma transformao. Mas, entretanto, um permanente vira a ser ao invs de ser definitivamente.Umdevirdotadodeumacertanuance,jquepareceenvolverumatensoentre
111Seegeraplicaanoodeconjuntonebulosonatentativadeapontarsoluesparaosdilemasdasorganizaes dualistas,abordadosporMayburyLewisnarelaoentreosclsemetadesa'uwxavantes.ComoSeegerafirma,as trs formas de dualismo que o prprio distingue a nebulosa; a nonebulosa ou absoluta; e a recursiva, focalizadanarelaodeoposiopodemseconfundirnumamesmainstituio.Porora,parecemecrvelqueuma misturadessestrsdualismosestpresentenaconcepodasmetadesexogmicasa'uwxavante. 112Alis,estasituaofoimuitoparecidacomaquelaenfrentadajuntoaAlfredoTsawe'wanopostodesadenaaldeia Belm,quandoestemedisseraqueosWaradzueramentirosos,masqueeueraa'uw.Nestaoutrasituao,Libncio, 'riti'wa jmencionadodaaldeiaAbelhinhapoca,dissemenobanhoquenogostavade waradzu. Pergunteilhe, ento,senogostavademim,maselerespondeu queeu[ ] a'uw sou .Juliano,seu primoqueestavajunto,foiquem acrescentouqueeuiavirara'uw.Talvezissoseexpliqueporque,emrelaoaoswaradzu,paraosA'uwXavante,eu soua'uwmas,emrelaoaosa'uw,euvouvirara'uw.
118
atualizarseepermanecerpurapotncia. Oqueapontaparaamaneiracomo,hospedandosenasaldeiasduranteaquelaviagempor diversasterras,Tseredzartenhadito:jmesintoemcasaaocomentarolanchequefezcom seutiorecmdescobertoemumadaslocalidadesvisitadas,ondepdepernoitarjuntoaseusprimos esobrinhos.MudanadeatitudeexpressatambmporVitrio,aoafirmar,acertaalturadaviagem, quejsentiasaudadedaspessoaselugaresvisitados.Saudadeque,emA'uwXavante,pe'dz, um tipo de dor de barriga ou nas entranhas, um sentimento entranhado no corpo, um sentimentodosoutrosdentrodesi. Aindaqueessasdescobertaseessessentimentosestivessemligadosavnculosgenealgicos, porassimdizer,jquea(re)aproximaonoerafeitacomqualquerpessoa.Demodoquepodemos indagarcomo,emsetratandodequalquerpessoa,sedariaopotencialdetransformao,ouquem viriaaserounoumapessoaqualquer,oquefariaenofariaapotnciatornarseato. * Enfim,seoshumanosnormais,os a'uw (eos waradzu capturadospelos a'uw )normais, notmaquelepoderdos romhtsi'wa detransformaremaespciedeseucorpoediferilo,elestm algumpoder,aindaquemenorqueaquele,umapotnciadetransformaoemparentesumdooutro. Umpoderdeaparentamentopotencialque,comootermoemportugussugere(numsonoro encontro entre vocbulos), tem a ver com a aparncia113. Porque a noo a'uwxavante de parentesco est ligada diretamente comunho corporal, pessoal, vital: tsihiba, uma relao reflexivacorporalentreaspessoas,umapersonalizaoeencorporaocompartilhada,umsiquese constituiapartirdooutro.Eocorpo,apessoa,comojespeculado,umaespciedecasca,depele, demanifestao,deaparncia.Aparnciaafetadapelaaproximao. * Nodemoroumuito,emminhaprimeiraestadiaemcampo,paraqueeuouvissequeminha aparnciaestavasetransformando.TiurTsadzir,jovem'riti'wanetodeAdoTop'tiroefilhode meu irmomaisvelho CornlioTserenhi'mTop'tiro,daAbelhinha,medisseespontaneamente certavezbeiradorioquemeucorpoestavamudando,estavaficandoumpoucoparecidocomo deles.Rmulo,seutioetambmmeuirmomaisvelhoadotivo,explicarmeiatemposdepoisque este era o vocabulrio do Tiur para falar do processo de adoo que eu sofria como danhimidzama.Nspodemosconsiderardetechamardenossoirmo,disseme. *
113Algosemelhantevaleriaparaoingls kin (parente)e akin(semelhante,parecido)otrocadilhoserviuparaque Vilaa(2002)sugerisseoduplosentidodetornarseparenteeparecido.
119
Indagadosobreasmudanasnocorpo,Rmulorespondeumequeatravsdaconvivncia claroqueocorpomuda,etambmcomoaprendizado,asatividades,asidasaocerrado... CamiloDuts,indagadosobreasmesmasquestesbeiradorio(obanhomostrouseum momentopropcioparaestasconversas),dissemequeocorpomudavaseapessoacortavaocabelo, furavaaorelhaeaprendiabemalngua... MarcianoWere',indagadonossobreo dahiba mastambmsobreo dahibauptabi, respondeumequesegundoacincia,eparaosXavanteigual,aalmavemdaalimentao. JnaaldeiaBelm,emminhasconversascomMrcio,estemeconfirmouquequemconvive ecomejuntotambmsemistura,tsiwadzari,dahibatsiwadzari.Omesmoquesepassacomo dahibatambmsepassariacomodahibauptabi,oqueacontececomumtambmacontececom ooutro. Assim, uma srie de elementos podem ser elencados pelos A'uwXavante como transformadoresdocorpoedaalma,elementosligadosaoaprendizadodeseumododevida,suas atividades,asidasaocerrado,inclusivesualngua(que,paraosensocomumeuroamericano algotopoucocorpreo,aindaquenoosejaosleitoresdeBaktin),suaestticacorporal(oque, novamenteparaosensocomumeuroamericano,partedoque,paraosa'uwxavante,parece sernospartemassimtodaaquesto),suaalimentao...Esseselementostmumaimbricao de ares triviais, mas que deve ser compreendida em suas peculiaridades. Seno seria a transformaodetudoportudo,aentropiaeocaosgeral. * noEsboodeumateoriageraldamagia,quemaispoderiasechamarEsboodeuma teoria geral do simbolismo, que Mauss apresenta a condio prvia daquilo que ele ele viria chamar de tradio, tcnicas do corpo, habitus. A condio primordial em que o humano imaginavacriarascoisasassimcomosugeriaasimesmopensamentos,umaconfuso,uma eficciaimediataesemlimite,acriaodireta(Mauss2003:51,99).Nessesentido,ascoisasem contatoestooupermanecemunidas,osemelhanteproduzosemelhante,ocontrrioagesobreo contrrio, os indivduoseascoisas estotoligados aumnmero,quepareceteoricamente ilimitado,deassociadossimpticoseacorrentedelestocerrada,talsuacontinuidadeque, paraproduzirumefeitobuscado,indiferenteagirsobreumousobreoutrodoselos(Mauss2003: 100101).Tratasedeummovimentonosdoespritomastambmdocorpo:ocontgiomgico noapenasidealelimitadoaomundodoinvisvel;eleconcreto,material,eemtodosospontos semelhanteaocontgiofsico,transfernciadeidias[que]complicasedeumatransfernciade 120
sentimentos(Mauss2003:102).Demodoque,sealeidasimpatiafosseabsoluta(comonofeitio doUm),oselementosdeumacorrentemgica,constitudapelainfinidadedoscontatospossveis, necessriosouacidentais,seriamigualmenteafetadospelaqualidadequesetratariadetransmitir,e, aseguir,quetodasasqualidadesdeumdoselementosdacorrente,qualquerquefosse,transmitirse iamintegralmenteatodososoutros(Mauss2003:103). Ora, escreve Mauss, no isso que acontece. Por um lado, interrompese, num momento preciso, a corrente simptica; por outro, transmitese somente uma, ou um pequeno nmerodasqualidadestransmissveis(2003:103).114 Ecomosedariaocortenessaredesimptica?Atravsdealgomuitosemelhanteaoqueseria expressoporumdeseusdescendentesantropolgicos(seconsiderarmosLviStraussentreambos): represso,conscinciacoletiva,tradio,regras,tabus,preferncias(Almeida1999: 184). Os encadeamentos simpticos devem ser encadeamentos tradicionais e rituais, [a] necessidade,atendnciaquefazemorito,noapenasescolhemossmbolosedirigemseuemprego, mas tambm limitam as conseqncias das assimilaes que, teoricamente, como as sries de associaesporcontigidade,deveriamserilimitadas,nemtodasasqualidadesdosmboloso transmitidasaosimbolizado.[F]oradatradionohcrenanemrito(Mauss2003:105106). Assim,aatividademimticaouasimpatiamimtica(Mauss2003:106)precisaseguir certos encadeamentos em detrimento de outros, certos processos tcnicos e rituais, certo dahimanadz. Alis,quandosefalaemelosdeumacorrente,pressupesetantoadivisoquantoa indiviso,jqueoselossopartesquesereconectam.Imananessareligaoumacontinuidadede superfcieemqueascoisasestooupermanecemunidas(Mauss2003),oquepoderemetera umaorigememqueoshomenseosanimaisaindanoeramdiferentes(LviStrauss&Eribon 1988)115, porm uma continuidade que j heterognea (Viveiros de Castro 2006), ou uma superfciequejheterognea.
114 Evemosaqui,maisumavez,Maussantecipandodebateshodiernosnossobrepessoa,redeecortesnarede, comoaquelepropostoporStrathern(1996). 115EnessesentidoomitodosParinai'anodevesertomadocomocasoexemplar,jqueexisteumasriedeoutras narrativasemquefalamtantodosurgimentodeanimaisdevidoafalhashumanas,daguerraentrehumanoseanimais (comoahistriadoconflitocomosbugiosou macacosassassinos)emesmodevidoaofatode,nahistriaa'uw xavantedodesaninhadordepssarosedoroubodofogo,aona(oumelhor,oona)serhumanaeoshumanosque roubamofogopoderemsetransformaremanimaisparafazlo.
121
* Parafalardomnimo,parecehaverumasimpatiaentrecorpoealmaouocorpomesmo a'uwxavante,dahibaedahibauptabiquesocortes,partes,nasuperfcie(ousuperfcies116)da vida.Essecontgioatestadopelatransformaosimilardaalmaemrelaoaocorpoatravsda alimentao, porexemplo,assimcomoinversamenteafetamseosnimosdocorpoatravsdas percepes da alma. Com isso, parece fazer sentido para o caso a'uwxavante a idia de indistino,maiordoquesecostumapensar,entreanoodealmaeanoodecorpo(Mauss 2003:71).Estecasocontrastadiferencialmentecomaquelesdeoutrasparagensamerndiasemque a diferena de espcie, por assim dizer, entre alma e corpo quetorna a perspectiva humana privilegiada,nosentidodequeacondiohumanacaractersticaespiritualdetodasasespcies tantoquantodahumana,jquetodoespritoespritohumano.Demodoque,comparaaomodelo perspectivistaamaznico, humdeslocamentonoprivilgiodahumanidadea'uwxavante,que deveseridentificado. Aalmaessencialmentemveledesligadadocorpo(qualidadevoluntriaquenocaso a'uwxavantegeneralizadaatravsdosonhoparaqualquerpessoaenosomentepropriedade domgico,anoserquetodoA'uwXavantequesonhesejamgico),princpiomesmode todososfatosgeralmentedesignadospelonome,bastantemalescolhido,dexamanismo,parao corposeuduplo,isto,noumaporoannimadesuapessoa,massuapessoaelaprpria: seuduplonoumpuroesprito(Mauss2003:71grifosmeus).Poisaalma,aqui,corpo prprio,corpomesmo,ocorpoempessoa. Entretanto,aquinosemanifestahumanamentecomoalhuresaquelametamorfose(isto, transformaodocorpodeumaespcieemoutra)naformadeumdesdobramentosoboaspecto animal(Mauss2003:72).Porque,comofoivisto,estepodermetamrficooudetransformao transespecfica coisa de antigamente, durih. Foi excomungado da raa humana atravs do sacrifciodosParinai'a,sendoprivilgiodestesedosTsa're'waque,sesotodoshumanos(a'uw), sotambmmaisdoquehumanos.Reformulando:setodoa'uwxavantequesonhaumxamno que concerne aviagemdaalma,os nicos xamsnosentidotransespecficodotermoso os Parinai'a eos Tsa're'wa (equioutrosmais). Estessodotadosemplenitudedasqualidades mticasquesopoderesouconferempoderes(Mauss2003:70). * Arespeitodoaparentamentoentrepodertransformadoreparentesco,simbolismoecorpo,
116Casonosetratemdedoisladosdeumamesmasuperfcie,comonumaFitadeMebius,oumesmomanifestaes heterogneasnumamesmasuperfcie.
122
dasimpatiaentrecorposealmasdepessoasdiversas(enosomenteentrecorpoealmadamesma pessoa),ammesesimpticadeveseguircertastcnicasespecficasafimdesetornareficaz,mas aqumdeumaeficciaimediataesemlimitedeumailusoabsoluta(Mauss2003:99)poisa mistura precisa ser quase completa (Mauss 2003: 123)117. A aproximao, o convvio, a comensalidade, ambos tornam a mmese possvel. Por outro lado, algumas formas de contgio devemserimpossibilitadasatravsdotipodecontatoemediaoquesefazementreaspessoas porque, j no parentesco a'uwxavante (bem como no seu paraparentesco), existe um corte fundamentalnarededeaparentamentossimpticosentreasduasmetadesexogmicasdemarcadas pelos signos waw e Po'redza'ono. Ainda assim, os perigos (e as vantagens) do contgio permanecemimanentesaseuscortes. Eselevarmosemcontaqueasimpatiaeamisturasedonosomenteentrepessoase corpos, mas tambm entre signos e pessoas, pessoas e coisas, ddivas e presas, faz sentido considerarmosanecessidadeexpressapelosA'uwXavantedediferenciar,porexemplo,tsipodo procriao, criao,transformao,imagem,ocampodammesee tsaprtrocar, passarparaooutrolado,atravessar,traduzir(Lachnitt2003),comopodeselerabaixo: Quandonosesabeoque,usaropodo.Isipodo,tezasipoto,''queelevai se transformar'', sipotopariaptezasihiba,''criousetransformandoeelevolta,elesetorna denovopovo,gente''.Nessesentido.Masseestiverfalandodetroca,porexemploessecopo porartesanato,entousamosisapri.Vocsqueremtrocar,eeuestoufalandodevocs, usamosmaisapri.Masisaprinopodeserusadoparaessaaodosparinaia.Usateza sipoto,elesetransforma,tezasihiba,elesedestransformadenovo.Sihiba,elevaivirar humanodenovo.Isapritrocarumacoisapelaoutra.Amaimasaprina,vocquertrocar comigo?(Eidetalii2002:122). Ouseja,hnatrocaumasalvaguarda,umagarantiadenotransformao,oudenodes transformao,dequemtrocapelamediaodoquetrocado.MasseoA'uwXavantesentea necessidadedetraaressadiferenaentreessasnoes,talvezsejaporquequalquerobjetotrocado
117Ou,emoutraspalavras,[o]queestabelececlaramentequeailusonuncasenoparcialorito,aindaquenesse processoestejaenvolvidaumavontadedecrereexporseatodasasiluses(Mauss2003:129),oquenosremetede voltaaLaBotieeservidovoluntriaenvolvidanofeitiodoUm.Poiscomadicamaussianapodemossuporque,se avontadedecrereaservidovoluntriasonecessrias,elasnopodemserplenasemsetratandodocontra Um,oudoquaseUm.
123
exeraumefeitocontagiantesobreaspessoasenvolvidasnointercmbioouporqueaquisepassa o que Mauss notou em sua generalizao sobre a ddiva: transmisso de vnculos atravs de misturas porqueacoisatambmpodeseralma,naturezaesubstnciapessoal,essncia espiritual(2003:200)118.Nomnimoporque,selembrarmosdoquedisseAndrGustavosobre aqueles que no queriam tirar as roupas para participar do ritual queriam viver a vida dos Waradzu objetos,taisquaisroupas,tm paraosA'uwXavante umpotencialtransformativo 119 sobreseuspossuidores. A simpatia mimtica de objetos ornamentais, pelo menos, nos quais poderiam estar includos os artesanatos, tambm efetivada (no interrompida) quando se trata de vnculos ritualisticamentecriadosparatanto,comooda'amnoporacasoamesmarelaoexistenteentre ostransformistasParinai'a. Eu,porexemplo,escolhidocomo 'am porAldoTsi're'wa'r,um waw jbemidoso, recebideleumenfeitedecabea120idnticoaoqueeleestavausandonumaocasioemquevisiteia aldeia de Sangradouro pelo aniversrio desta, na qual os A'uwXavante faziam suas danas circularestpicas.Naseqncia,Aldomechamouparadanar.SegundoCornlioTserenhi'm, quemereceberaemsuacasaemSangradouronaqueladata,Aldodeumeaqueleenfeiteparaqueeu ficasseigualaele.Defato,otermo'amsignifica,aopdaletra,meuoutro,outroeu.E muitosmedisseramqueeleseriacomoumirmo.Ouseja,apesardeserdadametadedosafins, tudosepassacomoseelefossequaseumconsangneo,umconsangneopotencial.Ou,melhor, como uma relao limite entre os dois extremos, potencialidade extrema de transformaremse mutuamente,comoaqueladosParinai'a,quetambmeramum'amdooutro.121 Nomesmodia,explicandomeminhacondiodeadotado,Cornliodiziaqueeuficasse
118 Maussencontrasenummomentotericoemqueessnciaesubstncia,almaecorpo,apesardemisturadosna ddiva,aindanotinhamsidosubsumidosnumconceitocomoodeparescncia,comoodeMaiaAndrade(2007). 119EnosparaMauss...Nosetrataaquideaplicaracriticamenteateoriamaussianaaosdadosa'uwxavantemas dedemonstrarcomoseencontram.Mesmoporqueateoriamaussianaestencharcada,naorigem,deteoriaindgena. 120 LopesdaSilvanotaque,almdeboloscerimoniais,arelaoentreos da'am seexpressasimbolicamentena confeco e doao de ornamentos (colares de algodo), alm do ato de segurar pelo brao no momento do estabelecimentodolao(quecortarelaesdeevitaoprexistentes)edanarladoalado(demosdadas)(Lopesda Silva1986:219220). 121Oquenoquerdizerqueestasejaanicafacetadarelao:osXavantealternammomentosemqueasemelhana, asimetriaeocompanheirismodefinemrelaes,commomentosemquesoexpressaspredominantementeaevitaoe aalteridade,adistnciaeaassimetria.Nestesltimosmomentos,asrelaesdeafinidadevmparaoprimeiroplano, alterando a situao anterior em que a afinidade subjacente s relaes com o ''outro'' era obscurecida pelo
124
vontadeparaservirmedecomidaemsuaresidncia,queeupegasselumpedaodealcatrae fritasseparamimmesmo.Tambmfezcomquesuaesposacozinhasseparamimupa(mandioca, macaxeira,aipim),muitosaborosa. Nosemantespedirme,conformeseusdireitosde dub'rada (irmomaisvelho),umdinheirinhotrocado.Maslogoemseguidadizendoqueeuera tsawidi querido,amado:tsawidi nospara pegar,no, pe'dzdi pe'dzdi,comosesabe, algumdequemsesentesaudade,algumquesesentenasentranhas,dissemequeeueratsawidi doseumama(pai)AdoTop'tiroequeeuestavalparaconhecer,aprender,aceitar.Equepor isso eu no precisava me preocupar, porque eu tambm tinha um 'am tsawidi (abaixo, na fotografia,famliadeTop'tiroe'amAldonacasadeCornlio):
Aaobrigaodoirmomaisnovo(dano)serviraoirmomaisvelho(dadub'rada)recobre arelaoentrea'uwewaradzunosentidodequeelepoderequererdemimdinheirodevido situaoambguanaqualminhaqualidadedea'uw(de irmomaisnovo)sobrevmeenglobaa minhaqualidadede waradzu (dealgumquetemdinheiro),masnumcortequelimita aums sentidoopodermimticoecontagiantedodinheirocomoequivalentegeral . 122
companheirismo (que no conjunto das oposies da lgica Xavante se equipara, em seu contedo, a ''consanginidade'')(LopesdaSilva1986[1980]:202203).Entretanto,faonotarqueaassimetria,narelaoentre irmosmaisvelhoseirmosmaisnovos,porexemplo,tambmfazpartedaconsanginidade. 122Apesardessepoder,emqualquertransaomercantilexisteumaincerteza,umriscoassimtricoeumanecessidade deconfianatpicasdeumarelaoconstitudapeladdiva(Godbout2002).SegundoMauss,adistinoentremoedae ddivaviriadeumlimitearbitrrio,apesardetornarosintercmbiosimpessoaiseindependentesdequalquerpessoa moral afora a autoridade do Estado (2003: 216217). Lanna afirma que Mauss teria ignorado que a moeda,
125
Dadaamisturaentrenossaspessoas,odinheironopodefuncionarcomooperadordetroca talqualocorrerianumasituaomercantil,mascomoumaddivademonicaperanteaqualo acolhimentoquemedemsuacasaoutraddivademonica.Apartirdadiferenaentreodare oreceber,bemcomodainequivalnciaentreumdarparaooutrorecebereooutrodarparaum receber,controlaseoperigodocontgiototal.Afinal,nosetratadepassarumacoisaparaum ladoeaoutraparaoutro,masdeestarmosdomesmolado,waniwimhdonossolado,termo que MayburyLewis (1984 [1967]) identifica como marcador no s da parte exogmica mas tambmdapolticaoumelhor,deestarmosambosdo seulado,demodoqueeu aceitasse esta relaohierrquica. Earelaomonetriaentrequemestdomesmoladopareceprecisarserbemcontrolada, porque perigosa para a relao de parentesco: muitas vezes ouvi pessoas da Abelhinha ou de Sangradouroindignadosreclamandoqueseusparentespediamlhesdinheiroparalhedaremcaronas emseusveculosautomotorespelaestradadeterraquecortaaterraindgena. Entretanto,nosetratameramentedepassarparaomesmolado,senoseriaumasimples troca de posio (porparte deumaspessoa,oudas duas simultaneamente), comoseeu me tornassetotalmentea'uwcomendocomoele,eeletotalmentewaradzuendinheirandosecomoeu. Porque nesse vnculo algo persiste enquanto algo se mistura. Alm de que, hipoteticamente, ocorreriaumcancelamentodaprpriadiferenaentreirmomaisnovoeirmomaisvelhocasoeu simplesmenteassumissesuaposioouseupontodevistaaoestardoseulado.Oquenoocorre tampoucoainversodessespapis,porquequantomaisntimos,maisasmesmasobrigaes parecem se acentuar. Tratase de um estar a seu lado e ao mesmo tempo atrs, de uma aproximao que envolve um encadeamento (atravs de ddivas tambm), uma seriao, um enfileiramentodomaisnovoatrsdomaisvelho,dequemseguequem,dequemo tsimimidzama dequem. Tratasetambmdeumenglobamentodocontrrio,nosdo waradzu pelo a'uw contrriosmaisexplcitos,dealteridadecaractersticamastambmdeumadiferenaque,seno aclssicadiferenadaafinidade,adiferenadeidade 123.Hierarquiacujainversonosetratade
diferentementedaddiva,violaeoperaumaconversoentrediferentesesferasoucircuitosdetroca(Lanna2001: 12).Entretanto,mesmoamoedadependedeesferasdetrocaprprias,afinalasmoedasdeumpasoudeumaunio depasesnotemomesmovalordeequivalentegeralemoutro,cadanaoinstituindosecomopessoamoralsoberana arespeitodamoedaquealidevecircular.Quantoaocartermimticodamoeda,umarefernciaaobradeAglietae Orlan, que partem de consideraes estruturalistas sobre o jogo de foras da indiferenciao e da diferenciao, tomandoamimeseprincipalmenteapartirdasteoriasdeRenGirard(conformeasquaisovalordadopelaimitao mtuaecompetitivadosdesejos)eMauss(verAglietaeOrlen1990[1982]). 123Aindaque,comoserrelembradoapartirdeLopesdaSilva(1986[1980]:96102),considerandoseacriaode
126
umasimplestrocamasdeumaduplavalidaodovnculo:umestobrigadoaooutro,maso outrotambmestobrigadoaum,diferencialmenteobrigados,umacolhendo,outroservindo. interessanteacomparaofeitaporCornlioentrefamliaeda'am,aomenosnoaspecto tsawidi,querido,amado.Afinal,arelaodeamizadeformalizadaa'uwxavanteparececontrariar algo que se faz presente no seio da famlia: a hierarquia, outra maneira de ordenar aquela transmisso de propriedades (confira o mesmo Mauss 2003, sobre a magia) que o contgio simpticoefetiva.Ocontrasteentrehierarquiae(qui)antihierarquiaqueenquantoarelao entreirmomaisvelhoeirmomaisnovoenvolveumintercmbiodesigualouumareciprocidade assimtrica(seoprimeiroacolhe,osegundodeveservilodealgummodo),narelaoentreda'am essaassimetrianoseapresenta,oubuscaseumaigualdade124. Apesardeque,deincio,algodehierrquicoseapresente:foieleenoeuquemepegou pelo brao (mrami) quando da cerimnia de escolha dos da'amo, na qual fui pego por ele juntamentecomAndrGustavo,aoladodequemeuestavanaqueleexatomomento.Nopude investigarafundoarelaoentreAldoeAndrGustavo,masbemprovvelque,conformeatestara LopesdaSilva,essarelaotenhasepassadoentreelesporlinhapaterna:nosolaoexistente entredoishomens''repetido''nageraoseguinteentreseusfilhos(deambosossexos)[atravsde
umarelaoespecialdepaisubstitutoentreumirmodameespecfico(odanho'rebdzu'wa)comosfilhosefilhasde irmmembrosdametadeexogmicaagnticaoposta(ZC,FBDCetc.),umirmomaisvelho(dadub'rada)possase tornarum sogro (damaprewa).Ouseja,casoo pai substitutoou padrinho (tambmchamado,paraasmulheres,de padrinhodecasamento)danoivadeumhomemsejaseuirmomaisvelho,essehomemdevepassaratratarseuirmo comosogro,aindaqueestenosejaopaiuptabidanoiva.Issoporque,segundoLopesdaSilva,esseshomens(noe dub'rada umdooutro)mantmumarelaodehomogeneidadequeprecisaserrompida,diferentementedoque aconteceria se o padrinho da noiva fosse um tio (damama 'amo) do homem que se casa com ela, no havendo necessidadedemudanadetratamento.Demodoque,aindaqueexistaadiferenadeidadenoseiodaunidadedo grupodesiblings,ocasamentodeumhomemcoma afilhada deseu irmo causariaumasituaotalvezatmais perigosaparaopadrinho,queteriaemsuaafilhadaumacunhada. 124CujoperigodeunidadeomitodosParinai'asinaliza.MascujascondiesevantagenssoexpostasporLopesda Silva:Independentedesexoeidade,asrelaessosimtricas(laosde am [sic]neutralizamlaosdeafinidade prexistenteseneutralizamtambmasdiferenasdegeraoentrepessoasdomesmosexoeasdiferenasdesexo). Comum am,aproximidadefsicapermitidaeaconvivnciasebaseiaemcompanheirismo,cooperao,ajuda mtua. Relaes sexuais entre pessoas ligadas por este lao, noentanto, sointerditadas. De um am esperase solidariedadeeauxlioe,emboraemsituaescorriqueirasdavidacotidianaaelenoserecorraemprimeirolugar (recorreseaosparentesconsangneos,aosmembrosdogrupodomstico,aosmembrosdamesmafacopoltica),o fatodeseterumamgaranteum''podercontarcom''(LopesdaSilva1986[1980]:220)(AgrafiadeLopesdaSilva justificasenousodohfencomooclusoglotalenotilcomoreforogrficodomodocomoalnguaa'uwxavante nasalizatodavogaldepoisdasconsoantesmen.)
127
relaoestabelecidaentreosdemesmosexonaCasadosAdolescenteseentreosdemesmosexoe sexo diferente na dana do Wanoridbe], como ampliado cortando as barreiras das geraes [atravsderelaoestabelecidanoTsa'uri'waounoWa'i125](LopesdaSilva1986[1980]:218219). Entretanto, ao contrrio do que afirma Lopes da Silva, ao me escolher, Aldo no tenha se restringidoaoscasosreais,noclassificatrios.Suaescolhapareceubaseadatantonofatodo provvelconhecimentogeraldequeeuseria Po'redza'ono quandonofatodeeuestaraoladode Andr Gustavo, contguo a ele, contagiado por ele. Ainda que, classificatoriamente, Andr Gustavo seja meu 'ra 'amo, sobrinho, outro filho126, chamado preferencialmente de aib, tratamentodadoaossobrinhospaternosjadultos(aibtambmquerdizermacho,homem)127. Oenfeitedecabeaacimamencionadonofoianicatransmissodeddivasentremeu 'amoeeu:almdointercmbiodeboloscerimoniaisapsacorridadoTsa'uwri'wa,fizvisitas suaresidnciaalgumasvezeslevandolheregalos(altimafeitaemsuaausncia,quandodeiuma peademortadelaparaseu filho)emesmodeilheumlanchecertafeitaemqueoencontreina rodoviriadacidadedePrimaveradoLeste.Napenltimadasvisitasquelhefizaltimaemque eleestavapresenterecebideleumcocardeplumasricamentedecoradoque,conformemedisse Wtomaistardenomesmodia(jqueeutambmcostumavaficaremsuacasaquandonaaldeiade Sangradouro),eraowair,cocarusadonosritosdoWai'a(ouDarini).Segundoele,deviaserusado comaspenasparafrente(quemusaparatrsndioamericano,outraetniaouseja,oadorno, aaparncia,operandocomomarcadordegentificao128)etinhapenasdegavioqueserviampara tersortenacaa,enxergarlnafrente.Ococarservetambmparafacilitarosonho(oquefaz sentido, j que relacionado ao Wai'a, onde se adquire poder de sonhar) e que, quando 'am
125OWa'iritualdelutacorporalemquedoishomensnaqual,emp,abraamseetentamprojetaroadversrioao cho(nummovimentosemelhanteaohukahukadoXingu).Normalmenteocorreentrehomensdamesmametade exogmica,comofuiinformado(corrigindooqueafirmeiemFalleiros2010),masqueemcertosmomentos(como aquelequesegueafuraodeorelhas)travadoentreosdanhiminhohu(patronoseafilhados)demetadesexogmicas opostas.Nohlutaentreosdanhimiwainh(entrepatronoeafilhadoespeciais)oque,pelaassociaoqueLopesda Silva (1986 [1980]) faz entre a relao de danhimiwainh e da'amo (apesar de suas diferentes, sobretudo no que concerneahierarquia)e,apesardeeunoterpresenciadooutrosWa'ialmdaquelequesucedeafuraodeorelha,pelo fatodamaioriados Wa'i serentremembrosdamesmametadeexogmica,concluoquenohlutaentreos da'am. Assim,provavelmenteaescolhadeda'amosed,comonoTsa'uri'wa,nummomentoanteriorluta.
126BSetc.
127Vianna(2001)desconfiadalateralidadedestetermo,comoservisto. 128 NoacreditoqueousodotermoetniaporWtorepresentequalquerapelodestesteoriasantropolgicasde etnificao,squaistambmnofaoreferncia.
128
morresse,iriaporissoaparecernomeusonho.Omesmotipodepenadegaviotambmtinhasido usadocomopropsitosemelhantedevisoesorte(masescondidasobumaraizque,segundome disseram,serviaparaevitarqueeumemachucasse)no ts'rebdzu'a quemefoidadoporAdo Top'tiroparaaocasiodeumacorridadaqualparticipei.ConformeGiaccariaeHeide(1972),o wairteriatambmoutrautilizao:irianacabeadaquelequeianafrentedafiladoscaadoresde brancos. Umaforteinverso,numchoquedesentidos,estariamanifestaemmeuusodesseadereo,o quetalvezexpliqueoqueaconteceuquandosapelagrandealdeiadeSangradourodevoltacasa deWto,usandonacabeaopresentedeAldo:dedentrodacabinedeumacaminhonetebranca(do rgo governamentalquecuidavadasadeindgenanaquelemomentoequeempregavavrios a'uwxavantes) um a'uw desconhecido gritou para mim, daquele modo srio com o qual os A'uwXavantefazemsuasbrincadeiras:vocvaimorrerhoje!. Concluindosobreosadornos,conformeescreveLopesdaSilva,arelaode da'amo se expressa simbolicamente na confeco e doao de ornamentos (colares de algodo [danho'rebdzu'a])edealimentocerimonial(LopesdaSilva1986[1980]:219). Ento,falandomaisprecisamenteemtransmissodeposses,eaindamaisprecisamenteem cargoscerimoniaisou,pelomenos,napinturadessescargos,existetambmumacoincidncia.Por exemplo,disserammequeapinturaquemeseriafeitaparaacorridadoTsa'uri'wa(meioanoantes daocasioacimamencionada)eraade Pahri'wa,jqueAdoTop'tiro Pahri'watede'wa. Na verdade,quasetodososparticipantesdacorridaestavamcaracterizadosdestaforma(oqueparece ser o costume, conforme outras informaes129). Noutra situao, num encontro de lideranas indgenas que tomei parte como espectador130, durante o qual os A'uwXavante se pintaram, fizeramme inicialmenteapinturade Pahri'wa, queservecomobasepara outras j que o Pahri'wa limpo,comomedisseWto,costumausarshortsbrancosnosrituaisesuapintura cobre somente a barriga e uma faixa perpendicular nas cosas em vermelho de urucum provavelmenteamesmaquePoloMller(1976:73)chamadedanhanapr(umaespciedefigura dadigesto: danhana querdizerintestinoe pr, vermelho131).Queriamprosseguirpintandoo
129LzaroTserenhemew,quepocamoravanaaldeiaBelm,dissemequeasflautas Tsidupu,ambasfeitasapartir da junoparaleladedoistubos,seriamasflautasdos Pahri'wa e,assim,possedos Po'redza'ono.Nacorridado Tsa'uri'waseriamusadasversesmenoresdessasflautasmasque,porcausadisso,apinturacaractersticadacorridaera adoPahri'wa,aindaquenemtodosprecisassemsepintardestamaneira. 130Cujosdetalhesnopodemserdivulgados,apedidodosprpriosA'uwXavante. 131PoloMllerfazemseutrabalho(1976)umaaplicaodateoriaestruturallvistraussianaaosistemadepinturas
129
restodomeucorpo(tronco,braos,coxas)empretodecarvodemodoacompletarapintura da'uh(pinturadoqueixada).Masparafacilitareupediquedeixassemsdaquelejeito,como Pahri'wa,ealgumqueestavaporpertodisselhesquepodiamdeixarassim,jqueminhafamlia eraPahri'watede'wa,donadoPahri'wa. Quando fui pintado por Aldo foi diferente, acompanheio ladoalado na corrida do Tsa'uri'wa(acheiconvenientedevidoidadeavanadadovelhoetambmporcausadasbolhasnos meus ps...)e,porgostardeminhacompanhia,elecomplementouminhapinturacomaboca pretadecarvo(usandoumpedaodepauqueimadodocerradobeiradaestradaondeparamos paraqueeledescansasseporalgunsmomentos)domesmojeitoqueestavapintadasuaboca.
corporaisa'uwxavante,mostrandocomosuafilosofiaclassificatriasemanifestanapinturaatravsdascombinaes decoresemotivos,identificandonasrelaesdepinturasdasclassesdeidadeagraduaoetria,marcandoumaforte diferenaentreoswapteosoutros(enquantooritualenfatizaarelaoentreclassesalternas).Umaanlisedeoutro eixodesentido,envolvendoosgrafismoseseusnomes,levarnosiaanovasinterpretaesdafilosofiaencorporada a'uwxavante.provvelqueateoriadadigestoedotubo(oudagarrafadeKlein)observadaporLviStrauss nosmitostambmsemanifesteoquenodeixadesoarcomoobviedadenoscorpos.Ocorposocialoucultural, assim,seriaantesdetudoumcorpofisiolgico,oumelhor,nofariasentidofazeressadistinoaqui,aocontrriodo quedefendeTerenceTurnerparaosKaiap (Turner2009:3537).Arelaodestapinturacomos Pahri'wa,suas flautasdetubosduploseacorridadoTsa'uri'wapodeserindcioparaumareflexosobreateoriadadigestoa'uw xavante, inclusive porque, conforme diversas pessoas me disseram, eu devia tomar cuidado para nomorrer na corridaeque,antigamente,quemmorrianestacorridatornavasealimentocanibaldosvelhos.ConformeGiaccariae Heide(1972:174175)issoocorreriacasohouvessemortedeum'riti'watnoTsa'uri'wafinaldoDanhono,ouseja,de umrecminiciado.Este Tsa'uri'wa dequeparticipei,contudo,seriaoutro,oTsa'uri'wa dosvelhos,conformeme disseram.Aindaassim,umououtrofalavamesobreestecanibalismodoTsa'uri'wadeantigamente,dizendoqueseeu morressenestacorridadaqualestavaprestesaparticipar,seriacomidopelosvelhos.
130
Istodeacordocomocargocerimonialquelheprprio Ai'utmanhari'wa, algocomo fazedordenennsoualgumquefazcomoumacriancinha(ai'ut),ocargodopalhao a'uwxavante132. * Nopretendoesgotarnistoadiscussosobremagiaeparentesco,amizade,transmisso,troca, mistura,posse,donos,cargosetc.,masapenasapresentaremquesentidoaforatransformadorado contgiomimtico(parausarostermosmaussianosacimarecuperados)imanadasrelaesa'uw xavantes,requerendoformasdecontrolequeseroexploradas. Antesdeumaexploraotextualmaisdetalhadadaordenaodocaos,oudacaotizaoda ordemoucomointroduoatalexplorao,acreditoserinteressanteapontarparaaalimentao contemporneaa'uwxavante,afimdesecompreendercomocontinuidadeemudanaoperam nessecampoocomertopropciosforasperformativaseaosefeitossimpticos.Sobretudo emterrasamerndias,ondeoidiomadaalimentaosemanifestacomtantafora,desdearelao entreasnoesdepredaoeantropofagiaatsclssicasanliseslvistraussianasdosmitosem quesecompeumatriplateoriadadigesto133.(Quetaisconsideraesquepossamservir,um pouco,comocomentriointrodutrioaumreencontropossveldamitologialvistraussianacoma
132Seissomedariaounoapossepermanentedocargoumacontrovrsiaa'uwxavanteseguidaadiante. Advida quantoaosentidodonomedocargotemavercomofatodelesertantoocargodepalhao(oprpriofatodeAldoter meescolhido,juntamentecomAndrGustavo,paraseu'amo,quebrandooprotocolodeseescolherumapessoase comissoincorporandooestranho,waradzu,aojogo,gerourisodacentenadeparticipantesdacerimnia)quantoum cargodepolcia,comodizemosA'uwXavantedualidadeentreoridculoeaautoridadequeecoaalgosemelhante aomanifestonotrabalhodeMagnusCoursesobreopalhaomapuche(comunicaooralfeitaaoNcleodeHistria IndgenaedoIndigenismonaUniversidadedeSoPauloemjulhode2011).Poisnafestadenominaodasmulheres, Abadzi'rihidibaquesegundoosA'uwXavantenotemsidomaispostaemprticao Ai'utmanhari'wavigiae controlacerimonialmenteasrelaesextraconjugaisqueneladevemserpraticadas,policiandoas.Haveriatambm algum momento ritual, segundo tambm me disseram, em que Ai'utmanhari'wa faz sexo a noite inteira (o descontrolesexualseriaumacaractersticadopalhaoamerndio,segundoCourse).Assim,ficaadvidaseottulo referesesuaatitudedeai'utre,criancinha,termoqueosA'uwXavanteaplicamtambmstroasebrincadeiras tolas,ousesereferesuaintensaatividadesexual,produtoradebebs.Quisduascoisas. 133 Conformetalteoria,oprimeiro Mitolgicas tratada ausncia eda presena daculinria;osegundo,parteda culinriaparainvestigarosentornosdaculinria,tratandoomelcomoaqumdacozinhaeotabacocomoalm.Jo terceirovolumeseocupadoscontornosdaculinria,dasrelaesentrenatural(digesto)ecultural(modosmesa), conformediriaLviStrauss(Pereira2008:295).Adigestodeveservistaacomoumafunomediadora,comparvel culinria,modeloorgnicoantecipadodacultura(LviStrauss2006[1968]:429).
131
magiamaussianaaquiapresentada,comsuasmediaeseimediaes,transformaes.) * NaaldeiaAbelhinha,aoresponderumaperguntaquelhefizsobrearelaodosA'uw XavantecomoquevemdosWaradzu,sobretudocomidaeroupa134,RmuloTsereruugarantiume que o uso que os A'uwXavante fazem desses produtos aliengenas no os faz perder seu dahimanadz:algumascoisasjentraramparanossaculturae,mesmoassim,dividimostudo entre vrias famlias, no somos considerados individualistas, tanto a compra quanto a caa divididaentreas famlias,novaidarsparao sogro,masparaoutras famlias tambm.Os objetos waradzu soparaagenteacompanharoqueestpercorrendonossavolta.Comisso, permanecemidias,cultura,fala,tradiomasestamosabandonandonossareligioevirando catlicos. IndciosparadiversasquestespodemserencontradosnestafaladeRmulo.Apartirda lgicadocortenarededoscontgios,percebesequeRmuloreconhecequeosegredoparano deixar de ser a'uw est na maneira como o processo de transmisso fracionado, como a distribuiofeitadaquiloqueapreendido,capturado,predado,omodocomoosobjetosentram. Afinal,precisoacompanharoqueestpercorrendosuavolta.Nessesentido,compraecaano parecemdiferirmuito,jqueambassoefetuadassuavolta,foradesi,nomundoqueoscircunda eosengloba.Comonosoconsideradosindividualistasmaisdoqueindivduos,parecem mesmodivididos,oudivises,partesdesuperfciesingulareplural135 ,aconstituiodapessoa a'uwxavanteapresentasecomoelementofundamentaldacirculaoedaconstituiodesuas relaescoletivas,entrevrias famliasenosomentepelaviadaafinidade,comoenfatiza Rmulo.Relaes,corposepessoasconstitudosatravsdacirculaodealimentoseornamentos. Aquienfatizaseumaspectomaisimediatosincrnico?datradio,datransmisso,a maneira como a performance e a conduta (os modos mesa, para ficarmos com afilosofia digestiva)sogarantiadesuacontnuagentificao,umaseguranabastantefortearespeitoda resistnciadesuasorigensa'uwcombasenumasolidariedadequebeiraacognao,envolvendo relaesdeconsanginidade(eagnao)tantoquantoasdeafinidade. 134Eaquijnoconsigodistinguirseaconjunoentreosdoiselementosminhaoudeles,levandoemcontaque
paraumaconcepodepessoaecorpocomodahiba,emqueessnciaesubstncianoparecemdiferirmuitode manifestaoesuperfcie,oquealimentaeoqueornamentaparecemteralgodesemelhante,aindaquediverso. 135Nofaoumaanalogiadiretanoomelanesistadedivduo(Strathern1988)aindaqueestaconcepovenha acalharnaquiloqueconsideraaspessoascomocompostasdeoutraspessoasesimumarefernciaspessoascomo cortesnumasuperfciepessoal,comoargumenteiparaanoodedahiba.
132
Alhures,anfasepodeserdiferente.NaaldeiaBelm,assistiaumvdeojuntoaosA'uw Xavanteemqueeramostradaumacompetiodemsicaedanadatsirenetsi'wap(competio de dana) em comemorao de um dos aniversrios da retomada da terra indgena de Mariwatsde,naqualmsicaspopxavantefaziamsuamisturadetradioecriatividade comojouvirafalarsobreessetipodemanifestao,chamadaporelesde criativa.Osmsicos alternavamseapresentandosecominstrumentosatpicos(violesepandeiros),sendoqueumou dois cantores einstrumentistas ficavamdefrenteaos microfonesenquantoumgrupodeoutras pessoasaelesassociadasdanava.Apresentaesbemdiversasdastpicasprticascerimoniaisem quetodoscantamedanamjuntoseemrodaousemicrculo,acompanhadossvezesdechocalhos. Masaliatradiosemanifestavanaspinturas,gestosreferentesaatividadescotidianasous descritasnacano,fazendorefernciaculturaa'uwxavanteehistriadaslutasdosa'uw mariwatsde136.Oscantoreseramapupadostantopelaaudinciacaptadaemvdeoquantopelos espectadoresnasaladeTV(saladeauladaescoladaaldeia...)principalmentecombasenoque haviadetradicionalemsuaexpresso,sobretudonoquediziamsuascanes,todasem a'uw mreme(lnguaa'uwxavante). Informarammeque,numadelas,ocantordiziaquenodeviamabandonaraalimentao criadapelosParinai'a,contraaalimentaodobrancocheiadesaleacar,quetrazcolesterol, diabeteecirrose.Aalimentaotradicionalprecisavaserrenovada,nopodemosdesistirdela, devemosvoltarparaMariwatsdeeencontrarondeestaalimentaoantigaestescondida,dizia amsica,conformemetraduziram.Acriatividadedessasmsicasparecia,assim,umoutromodo deretornoorigem,sepensarmosquenaorigemqueestopodercriativoetransformador.Ou seja,nummesmoimpulso,tradioecriatividade. AvoltaMariwatsdeeraassociadaentovoltasorigens,muitovalorizadanaquele momento,oquesedenotapelograndecrescimentopopulacionaldaquelafamosaaldeia.Segundo DanielWerept,irmomaisvelho(dub'rada)deMrcioeportantomeupaioutio(mama'amo: outropai137)deBelm,Mariwatsdejcontavacom103casas,Xavantesdetodaparteestoindo para l. As potncias atratoras de Mariwatsde no se restringiam s criaturas ocultas dos
136 Eles ainda se identificam com os a'uw mariwatsde, ainda que, segundo muitos me disseram, os grupos geograficamentedistintosdosA'uwXavanteestejam,hoje,todosmisturados,secomparadossituaodemeio sculoatrs,equemesmonaAldeiaBelmexistamA'uwXavantedediversasorigens . Algunsdelesjulgandose assim estrangeiros terra indgena de Pimentel Barbosa, associada aos a'uw aptseniwimh. A questo dessas subdivisesdosa'uwserabordadaadiante.
137FBetc. 133
Parinai'a:segundoBenevaldoWa'aire,filhomesmo('rauptabi)deMrcio,Mriwatsdeboa wdi porque tem muitos carros robduri ahdi , criaturas maqunicas waradzu. Outras criaturastambmpovoamaquelelugar:segundoCristiano,donodocargoTbe(lderdeclassede idade pertencente metade exogmica waw, comparvel ao Pahri'wa dos Po'redza'ono, considerado como mais importante), a aldeia de Mariwatsde possui aproximadamente 500 cabeas de gado, e l ele trabalhou como vaqueiro. Por outro lado, Mrcio afirma que em Mariwatsdetambmtemmuitacaa. ArefernciaaosParinai'afeitanascanessobreMariwatsde,porsinal,nodeixadeser complementarrefernciadeestaremvirandocatlicosemSangradouro. PorqueJesus,segundoMrcio,seria waradzu,masduranteamissarezadapelosA'uw Xavantenaaldeia,Jesusseriaa'uw.Ouseja,suacaractersticaestrangeiraerasubsumida,atravs docontgioedaproximidade,pelacaractersticanativa. Alm deste Jesus, segundo Mrcio, os A'uwXavanteteriamoutrosdoisJesusoriginalmentea'uw:osParinai'a.AssimcomoJesus [waradzu]fezopo,elesfizeramvriosalimentosdosa'uw.Elesviravampeixeparaassustaras crianas,depoisdesviravam.Viajamnotuiuiu.Hojeaparecem,masmuitopouco.Hojescomemos comidawaradzu. AMrciofazrefernciaaotuiuiuoujaburu,odza'u'eoudza'u're,longopssarobrancode colarvermelhoecabeapretaquecomumentevoaemdupla,consideradacomotransformadadupla Parinai'a. Seu sobrevona aldeia pode seruma visita dos Parinai'a oumesmo dos Tsa're'wa. PresencieiumavisitadessasnaaldeiaAbelhinha:aovlosnocu,AdoTo'ptirolevantousedesua cadeira sob as mangueiras ao lado de casa e bradou heeepr!, a tpica expresso de agradecimentoouparabenizaoa'uwxavante.ComissoAdoTop'tiromostraque virarcatlico umprocessocontrariadoporoutrosprocessos:oslouvoresantigospersistem. AfaladeMrcio,comoadeRmulo,apresentaumafarturadesignificadoparatopouco fraseado.Paratentarcompreenderoqueelavemadizervaleapontarparaarelaoentreocorpode CristoeocorpodosParinai'a.Poisambosos(trs)corposdesenvolvemsenumatransformaoem alimento,oquealudeindiretamenteaocanibalismo,aindaqueatransformaosejaanteriorsuas mortessacrificiais.Seoalimentofoicriadopelatransformaodocorpohumano,aalimentao indiretamentecanibal,eestamosdevoltaquelecontgiototalqueprecisasercontroladoatravs decondutascorretas. Condutasque,nocasododiscursodeMrcioedaquelesquelouvamavoltaaMariwatsde, envolvemumretornoorigemdiacroniaespacial?,retornoperformtico,queenfatizaocorte 134
peranteooutro(osmausalimentoswaradzu)atravsdeumarenovadacomunhocomoprincpio davida a'uw,doqualsehaviadistanciado,tornadoseoutro.Masseentraremcontatocoma paragemdeorigemnospotentemastambmperigoso,perguntomesecorremmaisperigo aquelesqueseconcentramemMariwatsde138. A comparao dessas duas falas sobre a alimentao ressalta que, quando contgios se tornamexcessivos,precisamsermaiscontroladosapartirdetcnicaseprocedimentos,ealgumas proximidadesprecisamsercontrabalanceadascomoutrasdistncias.Ambososcasoslidamcomos problemasdacontinuidadeedamudana,doacessoaopoderalheiooudabuscadoprprio poderescondidoalternandoentreaboadistnciaeadistnciaperigosa.Tantoaconquistaquantoo perigoestoenvolvidosnolidarcomaproximidadeextremaentreacaaeacompra.Omesmovale para o contgio mimtico extremo, mas de outra ordem, que leva Xavantes de toda parte a concentraremsenasalvadorae,porassimdizer,messinicaterradeMariwatsde. AsdiferentessoluesencontradasoubuscadassugeremqueosA'uwXavantenoesto sobojugodeumaeficciasimblicanicaoutotalmaspermitemsevariaesedesvios. Porumlado,considerandoseaacorridapopulacionalaMariwatsdeemcontrastecoma multiplicidadedealdeiaseterrasindgenasocupadasaolongodahistriarecentepelosA'uw Xavanteemgeralepelos a'uw mariwatsde emparticular,podesepensarnocontrasteentre pequenas e grandes aldeias. Tomo como referncias as anlises feitas por PerroneMoiss e Sztutmanarespeitodaformaoeabandonodegrandesaldeias,conectadaaprocessosdecriaoe dissoluodeconfederaes(PerroneMoiss2006,PerroneMoisseSztutman2010),conformeo movimentopolticododesequilbrioinstvelpendularamerndio,entreoquaseUmeoquasecontra Um. Os a'uw mariwatsde,segundoinformaesobtidasemcampo,fizeramumatrajetria espalhandose por So Marcos, Sangradouro, Couto Magalhes (terra onde Mrcio nasceu, atualmentelocalizadanaterraindgenadeParaburure,comojnotado),Areesetc.,demodoque 138Superpovoadaereduzida,circundadaporfazendasdegadoesoja(eporposseirosviolentos),commuitascasas
feitasdealvenariaetelhadosdezinco(diferentesdascasasdepalhamaiscostumeirasaosA'uwXavante),osriscos paraasade a'uwalicresceram,comoatestaumaepidemiadedoenaspulmonaresquelevariamortealgunsdos parentesdoshabitantesdeBelmqueresidiamemMariwatsde,numperodoentre2009e2010.Haviamuitapotncia naquelelugar,tantonativaquantoestrangeira.ConformeafirmaFernandes,asadeparaosA'uwXavante,quando afetadapelasdoenaswaradzu,tmmuitomaisavercomumcontgiodaalteridadequecomumcontgiobiolgico nosentidoobjetivistadotermo.Talsadeseriaafetadapelafaltaderesguardosalimentaresdospaisperanteseusfilhos pequenos,porexemplo,emrelaoaosalimentoswaradzu(Fernandes2010).Ouseja,hquesereconstituircortesna rededecontgiosmimticosquandosetratamdessesalimentoscujapotnciatoestranhaaosA'uwXavante.
135
hojeestotodosmisturados,masseusdescendentesnuncaseesqueceramdaterradeondeforam expulsospelosWaradzu139. Assim,aconcentraopopulacionalpareceassociadaproximidadedopodermitooriginal mas tambmaos perigosdo feitiodoUm. Lembrandoqueasnarrativas mticas ouhistricas a'uwxavantetmumainflexotopolgica,podesetratarahistriaa'uwxavantecomosendo tantotemporalquantoespacial.Avisodosa'uwmariwatsdearespeitodeMariwatsdecomo suaaldeiadeorigemrepetemetonimicamentearelaodetodososA'uwXavantecomaaldeia deTs'repr(ouSrepr)comoprimeiragrandealdeiaa'uwxavanteaoestedoRiodasMortes, apsatravessiamitohistricadorio,nalgummomentoentreomeioeofimdosculoXIX.Ali conheceram uma unidade nunca antes aludida, seja nos relatos nativos, seja nas descries apresentadaspelahistoriografiaoficial,terraondeoprprioJernimoXavanteterianascidoe ondeteriamvividomaisdemilpessoas,conformecontariamosvelhos(Paula2007:226232). Talaldeiateriaselocalizadona(ounasproximidadesda)atualterraindgenadePimentelBarbosa o queexplicanumcertosentidoarefernciadeTseredzar eVitriovoltasorigens que representava a viagem at aquela terra. Ademais, este movimento entre a fragmentao e a concentraoeeudiria,entreadistnciaeaproximidadedaorigemseria,paraVianna,marca dahistoricidadependulara'uwxavante(Vianna2001:309),movimentodepnduloque,num desequilbrioinstvel,marcariaarelaoamerndiacomopoder,comapotnciacsmica (PerroneMoisseSztutman2009). Por outro lado, ambas as expresses sobre a alimentao podem ser complementares,
139ParaumahistriamaisdetalhadadasmigraeselutasdosA'uwXavantedeMariwatsde,confiraSobreos XavantedeMariwatsededeFernandes,textodifundidorecentementepordiversosmeioseletrnicos,porexemplo: http://pib.socioambiental.org/es/noticias?id=104204&id_pov=316(Outubrode2011).Ahistriadastravessiaseda dinmicascioespaciala'uwxavantefoiabordadaemdetalheporLusRobertodePaula(2007)combaseemdados coletadosemcampoemconjuntocomoutrasetnografiasdahistriaorala'uwxavante.Histriaoralque,segundo LopesdaSilva(1984),seriaumaexpressomticadavivnciahistricaouoinverso,oimportantequemitoe histriaseconfundemcomoprope Fernandes(2005)apartirdeumaleituracrticadeTurner(1988a1988b)e Gallois(1994,2001).DemodoqueoimportantenotaraconjunoentremitificaoehistorizaoparaosA'uw Xavantecomoummesmoprocessoemcontnuamudanacomooperaesteprocessoquepretendoconsiderar.Para umaapreciaodopontodevistaa'uwxavantesobresuahistria,confiratambm Lopes daSilva(1992)que tambmfocaaspectosdarelaocomaconstituiodeterrasindgenas,frentesdeexpanso waradzu eoEstado, GiaccariaeHeide(1972)eSereburetalii(1998).Paraumaleituradefontesdahistoriografiaoficial,verRavagnani (1978)e,paraaspectosmaisrecentesdesuahistriajuntoaoEstadobrasileiroeFUNAI(FundaoNacionaldo ndio),verToral(1987)eGraham(1986/1987).ParaumahistriamaisampladarelaoentreosA'uwXavanteea lutaporterrasperanteoEstado,confiraGarfield(2001).
136
ressaltandodoistraosouaspectosinseparveisumdooutro,duasinstnciasdomesmoprocesso pendulardomododevidaa'uwxavante:ocircular,dacirculao(nafaladeRmulo);eolinear, da linha de fuga (no caso de Mariwatsde). A circulao envolvendo uma distribuio ou familiarizaodaquiloquefoicapturado,posterioraomovimentodefuga(eretorno)caracterstico doimpulsodecaptura.Nestesentido,acapturadoqueoriginalmenteumapotnciaa'uw xavanteedoqueumapotnciaexteriorseconfundem.Afinal,aorigemdoquecentralparaa vidaa'uwxavantesempreexterior.EseosWaradzusoumaalteridadeatualmentemaisprxima (com seus alimentos cheios de sal e acar) devese agora retomar o contato com o que est alternadamente mais distante: a prpria origem a'uw. Os termos destas relaes (o alimento waradzu, o po de Jesus ou os alimentos feitos pelos Parinai'a) no so fixos, mas o padro relacionaldoquecentral,doqueprximoedoquedistantesemantem. * Abuscadosalimentosoriginais,assimcomootratamentodosalimentoswaradzu,precisam seguiracortestradicionaisnoencadeamentomimtico.Masesteencadeamentocortadosvezes passa pelas prprias instituies outras, como a escola, trazida pela relao com os Waradzu, concomitantemente s suas novas fontes de consumo de presas. O que, contudo, no causa estranheza,jqueaestranhezaamatriadeseuconhecimento.Afinal,comojlembrouLopesda Silva, o mundo dos brancos, dos nondios, um desses domnios nos quais h saber e recursosabuscar.Assimpercebeque aescolatambmocupaestelugarondeoconhecimentode foraincorporadoeinternamentesocializado(LopesdaSilva2002:4546). Estemovimentopodeserressaltadopeloestudosobreaalimentaotradicionalfeitopor Bernardina'Rnher(2010)filha('ra)140deAdoTop'tiroquesubstituiuRmulonadiretoriada escoladaAbelhinhadevidosuapsgraduao:EspecializaoemEducaoEscolarIndgena.A partirdesuasreflexespodemosperceberqueaquelavisoumtantoingnua,acusadaporum funcionrio do antigo Servio de Proteo ao ndio de que os A'uwXavante achavam que sairiamrapidamentedaescolasabendofazerrdios,tratores,carroseavies,ou doutoresque entendemcomonossasociedadefunciona(Garfield2001:129)jfoialargada.Temosuma mulhera'uwxavantepsgraduadalatusenso.Jnosetratasomentedesabercomoamquina waradzufunciona,masdecontrolararelaocomela. Segundo'Rnher,desdeocontatopacficocomosWaradzuporvoltade1945edaentrada dosA'uwXavanteeminternatossalesianosemSangradouropoucosanosmaistarde,osa'uwse
140D.
137
expuseram aumamudanadoscostumes ealimentao,perdadepartedesuaresistncia, perdadafartura,problemasdedesenvolvimentofsicodopovoXavante('Rnher 2010:21 22): o contato pacfico expressouse num enfraquecimento do corpo141. Entretanto, atravs da escola diferenciada, tentase romper com este processo, identificando os problemas da alimentao industrializada e trazendo para as aulas o conhecimento dos velhos: conhecer as conseqncias da adoo de alimentos noindgenas para a sade e valorizar os alimentos tradicionais('Rnher 2010:26).Esseconhecimentotradicionalenvolveu,naaldeia,atividades sobreosprodutosdaroa(abbora,mandioca,milhoxavante)ecoleta(comoadococode bocaiva), aprendizado do preparo tradicional, levantamento dos produtos industrializados consumidosmensalmentenascasas,rememoraodosusosalimentaresrituais(bolosdoDanhonoe doWai'a,porexemplo)eumalistaderestrieseproibiesalimentaresparadiversasfinalidades, pessoasefasesdavida:gravidez,parto,amamentao,luto,velhice,embelezamento,fora...Para osadolescentes,carnesdeespciesquebrilhamecorremmuitosoaconselhveis,valorizama boa forma fsica, correr e suportar rituais o que revela uma clara noo de contgio mimtico corporal atravs do alimento. Apesar desse conhecimento das antigas restries e prescriessernecessrio,estficandodifcilmantertalencadeamentoalimentar,jnoh muitosanimais('Rnher2010).142 Mas a cadeiadeenredamentosecortesmimticosalimentares,ritualetradicionalmente concebida, continua sendo essencial para a manuteno do desenvolvimento fsico corpreo a'uwxavante,apesardoafastamentosofridoemrelaosfontesdefarturavitaloriginais.Assim, para lidar com as novas fontes, preciso conheclas bem (atravs da escola diferenciada), aprendendo a constituir cortes e restries sobre elas, para que a qualidade de fraqueza nelas existentesnosejamimetizadapelaspessoasa'uw.Oumelhor,paraqueoquehdea'uwuptabi nelesnoseenfraqueaemrelaoaoquepodeviraserwaradzu.143
141Da,talvez,aintensificaodanecessidadea'uwxavantedeadquirirforavitalatravsdasroupas waradzu.Se lembrarmosque waradzu umtermoquetambmfazrefernciatrocadepeles,comoadacobra,quearevitaliza (Vianna2002:302),asroupaswaradzuparecemcarregartalvitalidade. 142Equandohanimais,acaarelativamenteexcessiva(jqueomuitodehojepoucosecomparadocomafarturade antigamente)podegerarrestriesdeoutraordem,impostaspeloEstado:tivenotciadequeumgrandecaadora'uw xavantehaviasidodeduradoaoIBAMAe,porisso,multado.OmesmoEstadoquedefendeoagronegcioqueafetou drasticamenteosecossistemasdocerradopuneaquelesquetentamviverconformeospadresdadiversidadeecolgica anteriorsmonoculturas. 143Ou,retomandoasconsideraessobrejogocomoatenuantedaguerranestanovarelaodepazcomosWaradzu, naspalavrasdeLviStrausslidaseaplicadasporVianna(2001):queosA'uwXavantepossamganharaoinvsde
138
* Enfim, conjugandoafaladeRmulosobreaextensonoindividualistadapersonitude a'uwxavantesdiferentesmaneirasdedeixarseounocontagiar,decapturarooutro,oestranho, oestrangeiro,aquelequenoomesmo,podeseretornarumacarapercepodeLopesdaSilva sobreotema,cujoeconaelaboraodereflexestericasparaaetnologiaamerndiapodeser escutado hoje,aindaquetardio.Escusadoseuvocabulriode poca,otrechoservecomo uma espciedeepgrafeparaoquesesegue: Apessoa,assim,parececompletarse,aocabodeumlongoprocessodeelaborao peloqualasociedadecomoumtodoresponsvel,aovivenciarpassagensfundamentais entredomniosestanques(opostos)[...]:apessoa''costura''asociedade,alinhasuaspartes, incorpora,igualandoemsi,conceitosnicosexpressos,cadaum,porumdesses''pedaos'' dequeasociedadesecompe.Assim,o''outro''porexcelncianosoamigoformal[] mastambmonominador,omembrodacategoriaoudaclassedeidadedametadeoposta,o afimqueseevita.O''outro''evitase,mantmsedistncia,controlandoselheoscontatos, formalizandoos,regrandooscompreciso;masooutrotambmseincorpora,igualandose aelenumsistemadeposiescerimoniais,tornandoseoprprio''outro''aousarseunome [...]. Paracomo''outro'',portanto,duasatitudes,expressodedoiscaminhosconceituais paraasuaapreenso, paraasuacaptura:aevitao,adistncia,aseparaoostensiva, declarada,paraaqualsemantmasociedadeatentaeconscientedadiferena[]ou,por outro lado, a negao da diferena e a incorporao do ''eu'' ao ''outro''. [][S]o os companheirosirmos, [] ''outrosiguais'', [] maridos e esposas que se acabam por incorporar umaooutro[];''outros protetores'':os tios maternos,as tias paternas, os patrocinadores das iniciaes, os pais adotivos, cerimoniais, substitutos; os avs []. [J]ogo equilibrado entre opostos: a distncia/evitao/alteridade, de um lado, e a solidariedade[]queeuvinculariaestreitamenteidentidade(LopesdaSilva1986[1980]: 246247,250grifosmeus).
perder.Ganharquetemtambmosentidode da'rn ,deixarparatrs,colocarooutroatrsdesiaoinvsdeseguilo . Pois,sepossvelsemprejogaroutrapartidaeinverterojogoeoprincpiodareciprocidadenojogoeste:a interminvel eincertaalternncia,odesequilbrioinstvel ovelhoa'uwxavanteaindaperguntaria: quandoos senhoresmeusnetosperdem,comoelespodemsempreaceitarosoutrosganharemdeles?Nodiaderrota?Ouno lhesdodesnimo?(Vianna2001:205).Poisodesenvolvimentofsicoa'uwxavanteestestreitamenteligado prticadojogoedosrituais.
139
Noporacaso,LopesdaSilvasituasuaetnografia[e]ntreduasposies,doisnveis diversosdediscursoquerefletemnfasesdiversasemnveisdistintosdarealidade,umodacoeso edasimilitudequeaautoraexemplificapelatesede Gross(1979) sobreorganizaosocialno BrasilCentral,outroodafragmentaoedadiferenaqueamesmaexemplificapelatesede ClastressobreapositividadedaguerraexpostanaArqueologiadaViolncia.Doisaspectosdo quefoitratadoporelaapartirdanoodepessoaedasrelaessociaisinterpessoaisa'uw xavante,mostrandonosaimportnciadaindivisointernaedaoposioexterna,salientadas porClastres,mastambmdadivisointernaeoestabelecimentoritualizadoeconscientedelaos de alteridade []quegarantem,justamente,aunidadedasociedadeJ(Lopes daSilva1986 [1980]:258263,grifosmeus).Nessesentido,LopesdaSilvajsituasuaetnografiaentreaunidade eafragmentao,retroalimentandohodiernasconsideraessobreestesplosrecuperadasaolongo destatese. *** Asocialidadecontraoaparentamentoeafavor ConformerespondeumeVanderleiDadu,noqualquerpessoaasirelacionadaquepode serchamadade tsihiba. Datsihiba podeteromesmosentidode datsiwapru: wapru querdizer sangue,demodoquedatsiwaprusoaquelesquecompartilhamomesmosangue.Compartilharo mesmo sangue, contudo, no o mesmo que a consaginidade do jargo antropolgico. Se consanginidadeoopostodeafinidade,entoojargonoseaplicaaumcasomuitoespecfico doaparentamentoa'uwxavante:ocasamento.Porqueosesposos,ocasalquandosecasa,passaa compartilharomesmosangue,datsiwapru. Contudo,segundoele,nosechamaaesposaouesposodamrodedatsihiba.Poroutro lado(oqueecoaaspalavrasdeOnsimosobre dahiba referirseaoatosexual),paraVanderlei, damrotambmdahiba.Sepudecompreendlobem,tudosepassariacomoseaintimidade docasalfossetantaqueiriaalmdameraentrecorporalidade.Corretaouno,estainterpretao levaacrer,pelomenos,quearelaoentreespososrompedealgummodocomafronteiraentreos ladosegoorientadoswaniwimheoniwimh,marcaprincipaldasrelaesdeexogamia(enos
140
delas) a'uwxavante segundo MayburyLewis (1984 [1967])144 e, talvez por isso, o prprio MayburyLewistenhaafirmadoqueaesposaa'uwxavantesejaconsideradacomofazendoparte doladodo marido,aindaqueaprefernciaderesidnciasejauxorilocal.Dequalquermaneira, comojhavianotadoLopesdaSilvaparaofatodequeasprticasmgicassotransmitidasnos depaiparafilhomastambmdemaridoparaesposa(edemeparafilho),[n]estecasoespecfico, omodelodasrelaes(comunidadesde''substncia''[])pareceexplicarmaisqueumraciocnio baseadonosconceitosdedescendnciaepatrilinhagem,essenciaisnaanlisedeMayburyLewis (LopesdaSilva1986[1980]:105). Ademais,outrostermosderelaesdeaparentamentoquemarcariamintimidadetambm nodevemsertratadoscomodatsihiba,segundoVanderlei.Comoda'rada,av,av,sejadolado paterno,sejadoladomaterno,incluindooquechamaramosnoportugusbrasileirodetiosavse tiasavs145,quetambmnodevemserreferidoscomo datsihiba:oseu av sparachamar 'rada, s isso.Talvezadistnciageracional,talvezadubiedadedotermo,queapontapara a cognao, tornem a aplicao de datsihiba inapropriada, j que este termo parece ser mais aplicvelspessoasdamesmametade,sobretudoirmoseprimos. Outrotermoclssicodasestratgiasdecognaoa'uwxavante,odamamawapt,tambm no se chama datsihiba. Respondeume Vanderlei Dadu, negando que damamawapt fosse datsihiba:damamawaptotiomaterno146. Arelaocomodamamawaptenvolveriaintimidade,coabitao,eapotencialidadedeum laoespecfico(ode danho'rebdzu'wa,espciede paisubstituto,conformeLopesdaSilva147)que criariatantoelosdeaparentamentocognticoquantoimpedimentosdecasamentocomalgumas pessoasdametadeexogmicaoposta(casoocasamentoocorresse,arelaocomopaisubstitutose
145FF,FFBetc.,MF,MFBetc.eMM,MMZetc.,FM,FMZetc.
146 Noeramuitocomumouvirestaformulao, tiomaterno,nogeralfaziam refernciasa irmos desua me, preferindoestestermosqueles. 147LopesdaSilva(1986[1980]:96102)tratadarelaoentreodanho'rebdzu'wa,escolhidoentreosirmosdame,e seu afilhado destaforma,chamandoodepaisubstituto.Paraumadiscussosobreaimportnciado pai edo pai substitutonanominaomasculina,vertrechoarespeitodenarrativasdeorigemdosclsnosubcaptulosobrerituaisde aparentamento.
141
romperia).Taispessoasnocasveisseriamos filhos e filhas uptabi148 daquele irmo da me149 especfico,quepassamaserirmoseirms.Abordei(Falleiros2005)aquestocomoresultadode estratgiasdecognao(englobamentodeafinspelaconsanginidadeouapagamentodadistino entreconsanginidadeeafinidade)apartirdedadosdeMayburyLewis(1984[1967])edadose conclusesdeLopesdaSilva(1986[1980])sobreotema,tomandoaanlisedeMarcelaCoelhode SouzadoparentescoJ (2002)masremetendoaacaractersticassemicomplexas150 (Franoise Hritier1981e2000)doparentescoa'uwxavante. Entretanto,paraVanderleiDadu,estaestratgiadecognao,nosmeustermos,noparece operaraopdaletranoquedizrespeitoterminologiadatsihiba,aindaqueestejapresentenas concepesdecontgiocorporal. Enfim, os cortes na rede da vida (ou na rede sciocsmica151) a'uwxavante so complexos,oquenodescartaasemicomplexidadedeseusistemadeparentesco,mastornam necessrioretomaraselaboraesacercadesteparentescoafimdecompreendermelhorcomonele 148S,Z,C,considerandosetambmefeitosdeconvvioeadooquefaamcomqueCdealgumpossamsetornarC
deoutrem. 149PodendoserumMB,MFBSetc.,valendotambmoprincpiodeunidadedogrupodesiblingseocontgiopelo convvio.. 150Isto,queampliamocrculodeparentesnocasveisincluindoprimoscruzadosemesmoalm,massemuma totalfaltademarcaoquecaracterizariasistemascomplexosondenohprefernciasdecasamentoparacertosgraus deparentesco.Nocasoa'uwxavante,oscasamentostidoscomopreferidosrespeitadaanoodequeosconsogros seriamcorrelatosaprimoscruzadosapartirdaaplicao(dbia,comosever)dotermowatsiniocorreriamnolimite entreacognaoealinhaagnticadaafinidade. 151TermousadoporFausto(2002:14)emrefernciantimarelaoexistente,naAmaznia,entrecomensalidadee canibalismoenvolvendoasespciesdiversasquedisputampotencialidadesdeexistnciaecapacidadesprodutivasem meio a relaes de predao e familiarizao, captura. O dilogo mais detalhado com os argumentos de Fausto demandaria,contudo,umacomparaomaisfinadocasoa'uwxavantecomocasoamaznico.Umpontodepartida paraestedilogooquedizFausto:Interessamemenossugerirqueosmodelosdaddivaedareciprocidadetm relativamenteumaprodutividademenornaAmaznia,doqueinseriracaaemumconjuntoderelaespredatrias entre diferentes tipos de gente. Meu argumento supe que humanos e animais esto imersos em um sistema sociocsmiconoqualoobjetoemdisputaadireodapredaoeaproduodoparentesco(2002:11).Omodelo maussiano,incluindoaquisuaextensomgica,ajudainclusiveasuperarodualismocartesiano,hojerejeitadoquase unanimementenacaracterizaodasontologiasamerndias,compreendendoquecomercarneacrescento:paraos A'uwXavante tambm a carne cozida, como nas preferncias de caas de pelo brilhante para os adolescentes implicaaapropriaodecapacidadessubjetivasdavtima(Fausto2002:18).Ecomissofaoamesmapergunta: comooshumanospodemidentificarseentresiaocomeremjuntoscomidaprpriaaoshumanossem,noentanto,se identificaremcomaquiloquecomem?(2002:16).
142
operamastransformaessquaistenhoaludido. * PodeserditoqueosA'uwXavantesedividememduasmetadesexogmicasepatrilineares querecebemosnomesde Po'redza'ono e waw, chamadastambmporMayburyLewis(1984 [1967]decls,considerandoseumparentescomticotidopeloautorcomonotravel152,squais serelacionaumterceiroclchamadoTopdat,cujacondiocomoentidadeexogmicatemgerado controvrsiasentreantroplogoseentreosprpriosA'uwXavante. ParaMayburyLewishaveriaumadiferenanarelaoentreclsdosXavanteOcidentais (dentre os quais estavam includos aqueles que deram origem s terras indgenas de Marechal Rondon,Parabubure,SangradouroeSoMarcos)edosXavanteOcidentais(idemparaosque dariamorigemsterrasindgenasdeArees,PimentelBarbosaeMariwatsde,comoseconclui dosdadosdoautor).AdiferenaseriaqueparaosOrientaishaveriaumaexogamiaentretrscls, enquantoqueparaosOcidentaisumaexogamiaconformeaqualosToptdatewawformariam uma metade e os Po'redza'ono outra. O autor faria referncia a um mito de origem (no apresentado) dos trs fundadores dos trs cls (1984 [1967])153. Vianna (2001) contestou esta diferenciaobaseadoemdadosdoprprioMayburyLewisquemostravamumintensofluxode pessoasentreasduasregies,incluindoinformaesdosA'uwXavantedePimentelBarbosade que l as metades exogmicas se chamariam waw e Po'redza'ono (Gauditano et alii 2003). Entretanto o prprio Vianna apresenta indcios da diferena dos Topdat como, por exemplo,
152Dadosacertadegrandesherisancestraisdoelementosparacontrariarestatese,comoargumentonosubcaptulo arespeitodasnarrativasrituaisdeaparentamento:rememoraesdeancestraistambmoperamcomopresentificaes derelaesdeparentesco. 153Emcompensao,anicaversocurtssimaqueMayburyLewisrevelaaseguinte:aTerraabriu,ededentroda TerraapareceramdoisAuw,edessesdoisAuwquefoisurgindoopovoAuw.(1984[1967]:220,350).Em GiaccariaeHeide(1975a)encontraseumaversoestendidaemqueButswaweSa'amriteriamsidopostosnaterraa partirdoarcorisporumaforadoaltoecriadotambmasmulheressobaordemdeumavozdoaltoapartirdos pausdo'wamariedowerwaw,ospauscomriscopretoderamorigemsmulheresqueforamdadasporButswawa Tsa'amrieestedeuqueleassurgidasdospauscomriscovermelho,oqueseriaumaalusoscoresdosclspreto para Po'redza'ono evermelhopara waw.Ouvinarrativasemelhantesobreotema,econtestaessobreela,bem comodiversasrefernciasdosA'uwXavanteaButs(ouButswaw)eaTsa'amri(ouTsa'amriwaw).Osvelhosde PimentelBarbosateriamcontestadoambasasversesperanteArthurShakerEid,porquenoconheciamnenhuma histriaarespeitodisto,somenteaquelaquediziaqueosA'uwXavantevieramdocomeodocu, Hiwana'rada,a leste,ondeocunasce,eporquenofariasentidoqueteriamouvidovozesdoalto,oqueseriaumatentativados missionriosdeinculturloscomprincpiosdeumDeuscristo(Eid2002:7178).Umdebatemaisdetalhadosobre estasquestesapareceadiante.
143
elaboraodemscarasdepalhaaseremusadasnacerimnia[do Danhono],esclarece ironicamente queaqueestavaemsuasmos,nascoresvermelhaepreta,noeranem Poredza'no nem waw: era 'Flamengo', o conhecido e rubronegro clube carioca. Significativoobastanteofatodeohomememquestoser,segundomeusdados,do minoritrioclTopdat(Vianna2001:261) Asimplicaesdaoposioentreduasmetadesexogmicasversusaoposioentreostrs cls,amanifestaodasimbologiadestesclsnosritosdo Oi'o,aexistnciados Topdat esua relaocomoswaw emsupostaoposioaosPoredza'ono,configuramumproblemadedifcil soluonaetnografiasobreosa'uwxavante,paraaqualobtive,contudo,pistasimportantes. EumesmoassistifitadevdeoreferidaporViannaduranteumademinhasestadiasem Sangradouro e passei a considerar omesmo dado como indcio relevante depois de presenciar situaosemelhante(incluindoarefernciaaoFlamengo)no Danhono queacompanheinaaldeia Belm,envolvendosuasmscaras wamnhor. Acreditoqueaextinodafestadenominao feminina,Abadzi'rihidiba,tenhaalgoavercomaaparenteperdadeimportnciadosTop'datnas relaesexogmicas.festadeAbadzi'rihidibaestassociadoocargodeAi'utmanhari'wa,que encontreivinculado,naaldeiaBelm,acertalinhagemPo'redza'onoquesedizia,tambm,Topdat. Comparandose isto a uma anlise sobre a relao de oposio diametral e concntrica entre Po'redza'onoewaweseusvnculosrespectivoscomosrituaisdoDariniedoDanhono,creio poderapontarparaumasoluoaoimpasse,ouparasuacomplicao. Aindaassim,segundoMayburyLewis,asmetadessoformadasporlinhagenspatrilineares dotadasdecertasposses(cargosrituais,usodecertassubstncias,pinturasetc.),cujonomeseria formado com a ajuda do sufixo tede'wa (que por ora tratarei como dono) por exemplo: Pahori'watede'wa donos do cargo ritual Pahri'wa. MayburyLewis (1984 [1967]) foi quem primeiroqualificouosA'uwXavantecomodotadosdelinhagensagnticas,pressupondoqueos termosformadospelosufixotede'wa eramasdenominaesdessaslinhagensque,contudo,no seriamfixasmasmudariamcontextualmentedealdeiaparaaldeia. Este problema da variao contextual foi em parte desvendado por Regina Polo Mller (1976)eAracyLopesdaSilva(1986[1980]),quandonotaramqueessasposses(sufixadaspelo
144
tede'wa)podemseremprestadasoudoadasatravsdealianaspolticasedeparentesco.Percebi emcampoqueesseemprstimooudoao(comoddivaquemantmovnculoentreaspartesmas quepodeserdisputadaporelas,comoindicaPoloMller154)podeserfeitoentrelinhagensafins. Alguns Pahri'watede'wa de uma das aldeias em que vivi dizem ser tambm 'Wamri'tede'wa, donosdopbrancopacificador,masmembrosmaisvelhosafirmamqueessaposseveiodeseus afinsporcasamento. Tambmnotei,aomenos tomando amim mesmocomo exemplo,queatransmisso de cargospodeserfeitaentrelinhagensdamesmametadeexogmica,considerandoseosefeitosde aparentamentoporcontgioeconvivncia.NaaldeiaBelmpasseiaserconsiderado'rauptabide MrcioTserehitTsere'ri'r155,comquemadquiriumaproximidademaior.Entretanto,quandofui pintadocomo 'Wamardzubtede'waeintituladocomotalpelaaplicaodeseupbrancoespecial emminhanuca,issofoifeitoporumvelho mama,RaulTseretsu,aparentementenoassociado diretamente aMrciopela genealogia,consideradoporelecomo seu primo (tsitsanaw). Este habitaumpontomaisdistantenoarcodecasasdaaldeiadeondeestosituadasascasasdeMrcio edeseusdoisirmosuptabi(DionsioBoprn,vicecaciquedaaldeia,eDanielWerept),cadaum destes trs considerados como 'ra uptabi de Jos Pedro Tsere'ri'r este tambm um 'Wamardzubtede'wa (porm falecido meses antes do momento ritual em que fui pintado). A moradia comum, a vizinhana, ou o que MayburyLewis (1984 [1967]) chamou de grupo domstico mostrase a como um elemento importante do aparentamento. Mas formas de aparentamentomaisdistantestambmpodemoperarnatransmissodeposses.
154Samri,umdoschefesdaaldeiadeArees,contoumequeapessoaqueinventouocolaruhjeremaarifoiseu avSamri,quandoosXavantenohaviamaindaseseparado(isto,numtempomtico).Ogrupodeseuavdeuo colarparaWartifazer.EntoaturmadeDuptdiqueestariaagoraemSoMarcos,acaboucomeleparaficarcomo colareaturmadeWartiagoraestespalhada.PorissoSamribrigounaaldeiadeSoMarcos.(PoloMller1976: 178).Estapassagemproblematizaaprofundidadetemporaldalinhagem,mostrandocomoahistriapodesercontadana defesa de interesses faccionais, constituindo um passado que garanta a inalienabilidade de certos artigos, a permannciadovnculocomeles.Nocasocitado,arefernciaaoavtambmdificulta,jqueotermoauw xavantenoindicaseapessoareferidadelinhapaterna(portanto,domesmoclelinhagem)oudelinhamaterna(por princpio,decldiferente).Apassagemtambmcolocaempautaapossvelaproximaoentreatransmissodenomes (Samri tinhaum av chamado Samri)eatransmissodopoderde tedewa (dadoaumterceiro, Warti,presumvel aliadodeSamri,porquemesteteriabrigadoemSoMarcos). 155 Enquanto em outro contexto, parafraseando MayburyLewis ou, ainda, numa outra perspectiva a da aldeia Abelhinha eu mantenha esta mesma relao com Ado Top'tiro. Talvez possa ser dito que, de uma perspectiva englobante,hajaumaprimeiridadedeAdo,jquesuafamliaminhaprimeirafamliaa'uwxavante.
145
Essaspossescirculariamtambmporforadoparentescoentreamigosformalizados,como indiqueiacimasobreapinturadeAi'utmanhari'wadadaamimpormeu'amdeSangradouro.H controvrsiassobreisso,comojnotado.NodiaemquefuipintadoemSangradouro,todosaquem pergunteidisserammequesim,eujera Ai'utmanhari'wa,algunsfazendorefernciaaofatode queeuviriaafazermuitosexocomasmulheresporcausadisso(jquetalfeitoestariaincludo emalgumafunoritualdoAi'utmanhari'wa,ligadoaosantigosrituaisdenominaofeminina). Comentando o ocorrido alhures, disseramme que eu j tinha mesmo me tornado um Ai'utmanhari'wa, porque, segundo um deles, as mulheres j tinham me visto pintado desta forma.Outrosdisseramqueno,queapenasuseiapinturanaquelemomento,oquenomedaria direitodeuslanovamente.Confronteidoiscompanheirosdanhohui'wacomopiniescontrriasa esterespeito, aomesmotempoenomesmolocal,enenhumdosdoisconcordoucomo outro abertamente,aindaqueevitassemdiscordarcaraacara.Noteseque,almdepertenceremmesma classedeidade,ambospertencemtambmaomesmocl.Comapermannciadaminhadvida,um delesmedisse:sevira!.Virarmeseguindoosentidotestacontrovrsia. Vale notar que observei caso idntico na aldeia Belm: um homem adulto, Pedro Tsuwede'wa Po'redza'ono e predu dono do cargo de Ai'utmanhari'wa, pintou Anglico Tseremowwaw,'amseuedeseusirmos,danhohui'wadoswaptdessamesmaforma quandopreparavaoparaacorridadetoradoUbd'wa'r(posteriorescolhadosdatsimiwainh, patronoeafilhadoespeciais).PedrojtinhameditoqueopintariadestamaneiraequeAnglico, assim,tambmiaserAi'utmanhari'wa. Comisto,podesesugerirqueparaosA'uwXavante,emmuitoscasos,ousoeapossede algoconfundemsemaisdoquenoseconfundem.Imaginoque,nocasodeumdilema,umaopo entreduasverdades:serounoserdono,asoluosejaperformativa.Oque,nolimite,podegerar conflitos, como visto com Polo Mller (1976: 178). Ou seja, no se trata de uma soluo de continuidade do dilema, mas de uma toro desta continuidade. Dilema que, no caso dos Ai'utmanhari'wa ,parecetambmassociadocontrovrsiados Topdat . Em fim, a respeito da questo do datede'wa, a presena de donos de prerrogativas semelhantesemdiferentesaldeias(comojinturaMayburyLewis,assumindoqueaslinhagens eramcontextuais)oumesmonumamesmaaldeiagrandenogaranteumaconexogenealgica entreseuspossuidores. * Osistemadeparentescoa'uwxavantefoiclassificadoporMayburyLewis(1984[1967]e 146
1979)comoprximoaotipoiroqus,pormpatrilinearcomoodakotaisto,igualandoos termosdosascendentes(F=FB)apartirdeumadiferenaentreparentesagnticosdeegoeseus afins,aindaquecomdiversasressalvas,sendoqueViannanotadiscrepnciasemrelaoaoquadro terminolgicoexpostoporMayburyLewiseaquelepropostoporGiaccariaeHeide(1972),que teria feies dotipohavaiano(Vianna2001:119)156.Almdaproblemticaquestodas duas seestersidopostaprovapelodebateentreMayburyLewiseLviStrausssobreodualismo (controvrsia apresentada por Sztutman 2002 confira Falleiros 2005 para uma argumentao seguindo a via lvistraussiana em relao aos A'uwXavante ), problema que colocaria a precednciadasclassessobreasrelaes(aindaqueasclassessejamrelaesdeoutraordem157, entrepessoasmorais).Nessesentido,ocasamentoentreprimoscruzados,tpicodesistemasdeduas sees,nopareceriapreferencialentreosA'uwXavante,nemtinhasidofocalizadopelapesquisa deMayburyLewisapesardaexogmicademetades(edofortetabuperantecasamentosdentroda mesma metade158), e apesar de ocorrncias como troca de irms acontecerem tambm, seja majoritariamentenosdadosdeMayburyLewis,sejaminoritariamentenosdadosdeVianna(para estadiscusso,confiraVianna2001:113118).Alis,nomesmotrechodesuadissertao,Vianna notanosdadosdecasamentoscoletadosporMayburyLewis,almdecasamentosentreTopdate
156Almdaextensohavaianaparamuitostermos(comoparatodasasclassificaesdamesmageraoqueego), noobservadaemcampopormimnemporautorescomoMayburyLewis(1984[1967])eLopesdaSilva(1986[1980]), existenatabeladeGiaccariaeHeideaausnciadealgumasposiesdescritivascomofilhadoirmodopai (algumdamesmametadeexogmicadeego,umairmclassificatria,portantodahidiba,segundoosdadosdos antroplogos),irmdame(quesegundoosdemaisautoresseria,comoame,dati'),filhodairmdaesposa (que,seguindoalgicaexpressapelosautores,seriasimplesmenteomasculino bodi de oti,filhadairmda esposa)efilhodairmdoesposo(que,seguindoamesmalgica,seria datsihudu e bodi,aindaqueerradamente tenhamchamadoafilhadairmdaesposaassimtambm).Hduplicatanoquadrodadescrioesposadoirmoda me,oraglosadacomotbe(termoqueosprpriosGiaccariaeHeideglosamtambmcomoirmdopai,oque combina com anoo,de outros autores, dequesejadamesma metade exogmicade ego), ora glosada como anapt (oque,conformeogenitivo,seriaalgocomoirmdatuame!)e dati'(mesmotermoqueglosampara meeesposadoirmodopai,numtoquehavaianoincongruentecomosdemaisautores:esposadoirmodo pai=esposadoirmodame!).Ograndemritodesuatbulaofatodedistinguiremostermosparafalante masculinoefeminino(verGiaccariaeHeide1972:104106). 157 Emoutraspalavras:classes,afinal,soumtipoparticularderelao,comosesabedesdeMorganePeirce (ViveirosdeCastro1993:154). 158Sobreisso,tiveconhecimentodocasodeumbebdeumaaldeiaa'uwxavantequenovisiteiquefoiadotadopor umawaradzuparaevitarquefossemortoporserfilhodeumarelaoincestuosaentremembrosdeumamesmametade exogmica.
147
Poredza'ono, cinco possibilidades de casamento que envolveriam, cada uma, um circuito de casamentosentretrslinhagensdostrscls,emrelaesdeparentescomaisdistantes. Curiosamente,oencontroentreiroquesesehavaianosfoinotadoalhures,noXingu,por CoelhodeSouza(1995)que,emtrabalhoposterior(2002),buscouestenderparaosJ(incluindoos A'uwXavante, J centrais como os Xerente) a reviso de uma outra tipologia: a do dravidianatoamaznico,deixandoemsuspensooproblemadasduasseesquedificultavaa aplicaodomodelodravidianoaocasoa'uwxavante,tentadasemgrandesucessoporMaybury Lewis,dadaainadequaodealgunstermosaosistemasociocntricodemetades(CoelhodeSouza 2002:480483).ArevisodoparentescoJviadravidianatoamaznicopartiudeumainspirao dumontiana (do englobamento do contrrio) e lvistraussiana (da relao entre diametral e concntrico, entre dualismo e ternarismo)159, enfim atingindo a noo de afinidade potencial (ViveirosdeCastro1993):umaalianaexterioraoparentesco,masenglobanteenecessriapara esteemtermosdeafinidade160.Talextensovalidousenumabuscadasfilosofiassociaisnativas sobregente,pessoaecorporalidadequeaquitambmserecuperam. Antesderetornaraessasfilosofias,cabeumaatenosobrecomoestemodelodaafinidade potencialfoiinicialmenteimaginadoparaasrelaesdospovosJ:ViveirosdeCastrosugereem notas que o antagonismo amaznico entre externo e interno, no caso J, se tornaria um antagonismoentrediferenasinternas,demodoqueaafinidadepotencialousciopolticaseja internaecerimonial,estilizada.Opondoasnoeslvistraussianasde''dualismodiametral''e ''dualismo concntrico'', afirma que o dualismo concntrico (interior/exterior) amaznico convertese,nocasoJ,emdualismodiametralinterno,aindaquealgunssistemasdemetades jguardemessaassociaoentrecentroeperiferia,mascomocentrosendooenglobanteecom umamarcadaideologiadasimetriasubordinandooconcentrismo''praadaaldeia/periferiada aldeia''pelodiametralismo(ViveirosdeCastro1993:204206). AsquestesquesefazemaestaprhiptesesobreosJ,paraocasoa'uwxavante,passam portrsmomentos.Porumacrticaideologiadasimetria(presentenaobradeMayburyLewis), recuperandotantoarelaoentrereciprocidadeeassimetrianarevisofeitaporLanna(1996)do artigodeLviStrausssobrereciprocidadeehierarquia(1944)quantoasnoesdedesequilbrio
159Nosentidodetambmsepensarainterfernciaentreodiametralismodigitalediatnicodagradeterminolgica eaestruturaanalgicoescalardaoposioprximo/distante,dedisposioconcntrica(ViveirosdeCastro1993:165). 160Quantonecessidadedaafinidadepotencialcomoprodutoradaafinidadenumambienteondeserhumanoser parente,masondeaindaprecisosecasarcomnoparentes,confiraCoelhodeSouza(2004)arespeitodosTimbira, povoJsetentrional.
148
alternadodaddiva(StrathernapudGregory1982:53)edesequilbrioinstvelamerndio(Lvi Strauss1991). Tambmporumarelativizao(nosentidofortederelatividade161)darelaoentre diferenciaointernaediferenciaoexterna:[os]processosquerespondempelaconstituiodas comunidades so anlogos queles que respondem pela constituio dos seus segmentos ''internos'',[os]'cls'(''segmentosresidenciais'',''famliasextensas'',Casaseetc.)e''comunidades'' resultamdeprocessosdemesmanatureza(CoelhodeSouza2002:13)analogiaque,contudo, nodeveserconsideradacomoidentidade,nemcomoausnciadedefasagemenuancesentreeles. Comisso,procureielaborarumesquemadeprojeododualismonoconcentrismo,constituindo uma relao de oposio entre centro relativo e periferia e, por outro lado, uma relao de contigidadealternaentreomesmocentrorelativoesuaexternalidade(Falleiros2005).Agora, restaumterceiromomento:averiguarasituaodaafinidadepotencialnesteesquema,levando em conta questes como a da filiao adotiva (Fausto 2008), reconsiderando tambm as estratgiasdecognao162. Todavia, retomando as questes mais tcnicas do sistema de parentesco como as sugeridasacimaapartirdaabordagemdetipologiasertulosexticos(comoostiposiroqus, havaiano,crowomahaetc.)quemaisatrapalhamqueesclarecem,conformeescreveuViveirosde Castro(1993:150),creioquealgumdadonovosobreosA'uwXavantepodeserapresentado. Noteiemcampomastambmconformeodicionrio(Lachnhitt2003)eacriticveltbula dascategoriasdeparentescodeGiaccariaeHeide(1972:104106)aintrusodeumainflexode feio(oumscara)crowomahaapartirdaidentidadeentretermosdetratamentopara filhos da irm(ZCetc.)enetos(CC),masnosparaeles.Apresentoocasopoissobreeletenhoalgumas das poucas evidncias que colhi em campo sobre a terminologia de parentesco (que por isso demandamaiorespesquisas,esclusasdoslimitesdestetrabalho)quesechocamcomaterminologia
161Quevaialmdaformacomofoivulgarizadapelorelativismocultural:adequesujeitosdiferentestemvises diferentes sobre o mesmo objeto. Porque aqui relatividade quer dizer que as perspectivas de cada sujeito variam conformeaperspectivaumdooutronohobjetoneutrodeperspectiva,cadaobjetodeperspectivapodesertratado comoumsujeitodeperspectiva.Notesequeestaafirmaononecessariamenteequivalentedoperspectivismo amerndioqueinvertearelaoentresujeitoeobjetodorelativismocultural:vriasobjetificaes,umasubjetificao ,apesardoperspectivismoamerndiotambmsebasearnesterelativismorelacionista. 162 Asaproximaesedistanciamentosdasocialidadea'uwxavantecomasociedadedecasas(Falleiros2005, 2010) foram tratadas paralelamente ao esquema diametralconcntrico ao qual me refiro. Hiato que me parece condicionadopeloproblemametodolgicodasindoque,oproblemadesetomarempartesportodosou,melhor,dese optarpelapartedotodo.Hiptesespodemnoabarcarumassoutrasjustamenteporquetratamdeaspectosdiversos deumatotalidadesempreemaberto.
149
trazidaporMayburyLewis(1984[1967]). GiaccariaeHeidetrataramquasetodosos filhos deirmos e irms pelostermosde bodi (masculino)e oti (feminino), sejaparafalantesmasculinosoufemininos,parecendocometerum erroaodeixarembrancoadenominaoparafilhodairmdomarido(HZS),pormchamandode bodi(termoqueseriaapropriadoparaocasoanterior)afilhadairmdomarido(HZD).Excluem destetratamentoosfilhosdairm(ZC)dofalantemasculinoeosfilhosdoirmodomarido(HBC), referidosporda'rawapt,eapenasnistocondizemcomasinformaesapresentadasporMaybury Lewis(1984[1967])eLopesdaSilva(1986[1967])sobreestescasos.Almdisso,glosamtsihudu (genitivodeterceirapessoaparadatsihudu)paratodososcasosdenetos(CC)etambmparafilhae filhodoirmodaesposa(WBC)efilhadairmdomarido(HZD)esquecendose,infelizmente, de registrar qualquer denominao para o que seria o filho da irm do marido (HZS). Diferentemente,MayburyLewis glosa oti somente comoqualquermulherdaprimeiragerao descendentedeego,doseulado,comexceodesuaprpriafilha(BD,FBSD)(MayburyLewis 1984 [1967]: 227) e nhihudu (genitivo de primeira pessoa do singular para datsihudu) como qualquerpessoadasegundageraodescendentedeego(SC,DC,BSC,BDC,ZSC,ZDC)ou abaixo,noimportandoseatravsdeintermediriosmasculinosoufemininos(MayburyLewis 1984[1967]:227). Emcampopudeouvir,comojnotado,tantoousodeotiebodiparafilhosdairm(ZC) comoquandomedisseramqueeudeveriachamarassimosfilhosdemeutsa'omo(maridodairm, ZH,portantocrianasdecldiferente)quemorajuntoaAdoTop'tiro quantoos avs dessas crianaschamandoasassimtambm.IstopeumaclaradivergnciaaousopropostoporMaybury Lewis. Almdisso,umvelholderdeumadasaldeiasemqueresidiafirmaramequeumjovem lderdaquelaaldeia,importantenapolticaindigenistaeneto(SS)deseusogro(WF)(portantouma pessoadecloposto),era(tambm)seuprprionetonomecomunicandose,ema'uwmreme, usaria o termo bodi ou nhihudu.Questioneiojovem adultosobreisso,quemenegouo fato. Imagineiqueoprimeiroestivessefazendoalgumclculodeparentescoatravsdeoutraspessoas, quepudessefavorecerseuaparentamentocognticocomaqueleimportanteldermaisnovo,jqueo termo a'uwxavante para av tem a extenso cogntica tpica de terminologias dravidianas (ViveirosdeCastro1993eCoelhodeSouza2002). Emcontrapartida,ouvinamesmaaldeiaumamulherPo'redza'onochamandodebodiaum homemdamesmametadeexogmica,adulto,aindaquemaisjovemqueela,oquelhesdavaumar 150
deintimidade,apesardesuarelaogenealgica163nopoderserfacilmentetraada.Nessesentido, vi outra mulher, waw, chamando o filho do prprio irmo uptabi de bodi, tanto quanto de nhihudu meuneto,elaexplicou.Seriamessesostermos,portanto,usadosparatodosaqueles descendentes agnticos ou cognticos que no podem ser seus filhos, seja de homem, seja de mulher?TalvezessamesmaquestotenhalevadoGiaccariaeHeidesconfusesdeseuquadrode termosdeparentesco,oquenodeixadeserumaquestolegtima,paraaqualaindanotenhouma respostafinal.Atenteseaofatodequearecprocanoverdadeira,nogerandoduplosentidonos termospara avs,porexemplo, da'rada,queserosempreascendentesdeascendentes(FF,FM, MF,MMetc.). Noutroexemplocomaminhapessoa,umvelhonaaldeiaBelm,JosPedroTsere'ri'r,pai uptabideMrcioTserehitTsere'ri'r(umdemeuspaisadotivos),numanoitedewar,chamou meparaalgumaspalavrasusandootermobodiouseja,usandootermocomochamamentopara neto(SS). Sobreaextensodousodenoosemelhanteparaadultosdeambasasmetadesexogmicas, Vianna(2001:104)refereseaotermoaib(homem,macho,usadoemrefernciaasobrinhos BS,FBSSetc.jiniciadospelafuraodeorelha)dizendoquepoderiaserusadotambmpara filhosdeirms(ZS,FZSSetc.).SegundooquadrodeGiaccariaeHeide,otermoaibnoconsta parafalantefeminino,oquepoderiajustificarofatodaquelamulherterpreferidootermobodipara chamarumhomemdamesmametadeexogmica.Entretanto,ouvimulhereschamandohomenspor estetermo,eumesmofuichamadoassimpelaesposadeumdemeustios(mama'am)daaldeia Belm.Ouseja,otermousando,sim,parapessoasdaoutrametadeexogmica,massualgica parececoextensivalgicadousodotermo'ra:assimcomoumamechamaseufilhoqueda metade exogmica oposta dela , a esposa de um pai ou tio chama um homem da metade exogmicaopostadeaib.Socorrelatos.Oquenoquerdizerqueumhomemchamariaalgum dametadeexogmicaopostadeaib. Aquestodolimitedeidadeparaoefeitocognticoestariaimplcitanaterminologiade MayburyLewisquandooautordizqueZCseriaidentificadacomo"algumquepertenceaolado dofalante"noinciodavida,masquesedistanciacomopassardotempo(MayburyLewis1984 [1967]:294).OquesejustificanaterminologiadeMayburyLewispelousodeda'rawapteno aib.
163 Caso revelasse seus nomes, suas posies numa rede de parentesco de genealogias traadas por outros pesquisadorespoderiamseridentificadas(comalgumadificuldade).Noofaoporqueoassuntopareceligeiramente polmicoeprocuronoferirsuscetibilidadesdemeusprezadosparentesadotivos.
151
Paracomplicar,osexemplosqueobtiveemcampomostramousodebodieotienglobando estaposiodeda'rawapt.Umcasoemblemticodestes,entretanto,norevelouotermoemlngua a'uwxavante:LeandroUptswwari,contandomesobrequemmoravaemsuacasa,mencionouo filho desua irm,noqueeupergunteiseeraseu 'rawapt eele,semconcordarnemdiscordar, dissemequeeraseuneto. O sentido que MayburyLewis d a aib o de [q]ualquer homem da 1 gerao descendentequesejawaniwimhdeEgo,exceodeseuprpriofilho(1984[1967]:280).Em campo,tiveaimpressodequeessaexceodeseuprpriofilhonoeraverdade.AdoTop'tiro, porexemplo,costumachamarme,como filho adotivo,de aib mas,senomeengano,eleteria usado este mesmovocativoparaseus prprios filhos.JMrcioTserehitchamamede 'ra164. Tenhoaimpressodequeotermoaibsejaumarefernciamaisligadaidadedequemchamado eparaosda mesmametadeexogmicaagntica(pensandodopontodevistamasculino). Tive evidncias de que a lateralidade do termo proposta por MayburyLewis estava de acordo: por exemplo, quandochameide aib umdos filhos uptabi de Cornliocom quemeutinhapouco contato, o rapaz estranhou e logo em seguida perguntoume se eu era Po'redza'ono. Ou seja, entendeuochamamentocomoindicativodequeramosdomesmoladoporlinhapaterna. Emsuma,sendoousodaterminologiacontroversotantoparaetngrafosquanto,peloque um dos casos indica, para os prprios A'uwXavante, falta ainda uma pesquisa minuciosa a respeito.Masoproblemafoiaomenosidentificado. Istoposto,temseaimpressodequeousodessestermosestdeacordocomestratgiasde aparentamentosemicomplexasecognatizantes,quecolocamosA'uwXavante beiradeuma sociedade de casas. Mantm estratgias de cognao que quase se encontram com a performatividade total conforme a qual, diria Lvi 165 Strauss, haveria uma equivalncia entre o
164Oque,casoconfirmadaaregrapropostaporMayburyLewis,maisumreforodatesedafiliaoadotivaem sentidoforte. 165SemdvidaodilogoentreanoodesociedadedecasaseodeestruturaperformativadeMarshallSahlins (1990[1985])viriaacalhar.Attulodesugesto,talvezopndulodasocialidadea'uwxavanteoscileentreaestrutura prescritivaeaperformativa,aopontodequeestabelecerseemumdosplosserianegarsuadistinoemrelaoao Estado.OexemplohavaianoestudadoporSahlinselucidadoraesterespeito.Apartirdeleoautorconcebeaestrutura performativacomoformaoderelaesapartirdasprticas(nocasohavaiano,prticassexuais,mastambmde residncia,reproduodasubstncia,consumoemconjunto,sendoquecomertem,emtodaaPolinsia,o significadoderelaosexualSahlins1990[1985]:48),emoposioestruturaprescritivacomogruposdelimitados eregrasobrigatrias,queprescrevemanteriormenteemmuitoamaneirapelaqualaspessoasdevemagireinteragir (Sahlins1990[1985]:47),admitindoquetodasassociedadesprovavelmenteseutilizamdealgumamisturadesses
152
realeofictcio(1986),entrealianaefiliao(1999[1983])aindaqueoutroselementos dasrelaesdeparentescoa'uwxavanteajamcontraesteaparentamento,comoaprpriadistino entremetadesexogmicas(Falleiros2005e2010). AaproximaoentresociedadedecasaseosA'uwXavantefoipensada,resumidamente, conforme o que se segue: Vanessa Lea (1992, 1995, 2002), tratando dessa questo no caso mebgokre,focalizaarelaoentretransmissodeessnciaversustransmissodesubstncia ou nome versus corpo (Melatti 1976, Da Matta 1976). Numa comparao com os Auw Xavante,creioqueemtaistransmisseshumadiferenafrenteaoschamadosJsetentrionais(nos quaisosMebgokresoincludos):nosAuwXavanteatransmissodesubstncia(smen,por exemplo,formadordocorpopelaaopaternaoupelasaespaternas,hajavistaaprticacomum derelaessexuaisentredatsidaimamaZH,HBetc.edatsidanaBW,WZetc.eaidiadeque apaternidadeseminalpodesercompartilhada166)noantagnicatransmissodeessncia:a transmissodenomestantopatrilinearmentequantoporavsdeambososlados,bemcomopelo daorebdzuwa(nocasomasculino),escolhidoentreirmosdame(MBsetc). Odanho'rebdzu'wadbolosdemilho,feitosporsuaesposa,paraamedeseusafilhados como agradecimento por ter ganhando esses novos filhos substitutos, e tambm presenteia seu afilhado comocolar danho'rebdzu'a ,agravatinha,quejfoipropostacomondicedecontgio 167
modosrecprocosdeproduosimblica.MasnoHavahaveriaumaperformatividadeextrema(total?)doparentescoa partirdasrelaessexuais.Nesteambientealianaedescendnciasemisturariameaascendnciaseriaumaescolha seletivaatchegarseaumaligaocomumaantigalinhadominantedoreino(Sahlins1990[1985]:40)oque,de certamaneira,fariajuscategorizaodesistemasdeparentesconosquaishumaequivalnciaentrelinhaspaternase maternas (equivalncia entre F, FB e MB ou correlatos) como havaianos. Essa entropia sexual, essa performatividadeeessecontgioextremosconvivemnoHavadeSahlinscomumadiviso(nostermosqueoautor tomadeClastres)entrechefesepovo,ondeaservidovoluntriaseexerceatravsdoaloha,amor,eopoder poltico,esttico,seexercepelaaparncia(Sahlins1990[1985]:37,passim).Umapolticaquevaiemdireoao provvelestadodenodiferenciao(Sahlins1990[1985]:42),muitoprximodaeficciasimblicatotaldofeitiodo Um.Oquecaberiadizer,comisso,queumasocialidadecontraoUmnosimplesmentecontraaprescriototalse no for, tambm, contra a performatividade total. Onde a usurpao d legitimidade ao poder performativamente (Sahlins1990[1985]:112),aindaassimessepoderumpoderqueseestabelece.Comessasugestoargumentativano pretendoexplicarocasohavaianodemodotosumriomaisdoqueexemplificarlinhasderaciocnioquedesviam destas,noquesetratadosA'uwXavante. 166 Almdaprticade da'uptr,molharobebcomoesperma(Vianna2001:67),concebesequeofeto,para crescerdentrodabarrigadesuame,necessitaderelaessexuaisconstantesecontnuodepsitodeesperma. 167 Danho'rebdzu'wa querdizer,literalmente,fazedorde danho'rebdzucolar,enfeitedegarganta(danho're: garganta)sendodanho'rebdzu'aagravatinhabranca('a:branco,alvo).
153
entreaspartesnocasodarelaodefiliao,bemcomonadeamizadeformalizada,marcandouma espcie de aparentamento em favor do doador (e em favor de ambos, quando se trata de um intercmbiopotencialmenterecprocodeadornos). Considerandoamisturadascorporalidadesatravsdacomensalidadeedoconvvioemcasa habitadapormembrosdelinhapaternaematerna,aaproximaoserefora.Somandoseaisto,o parentescosemicomplexoapareceriacomoaprefernciadecasamentoentrefilhos(C)deprimos cruzados (do mesmo sexo)168,termo que,nosingular,teria comocorrelatoem a'uw mreme a palavradawatsini,cujosignificadotambmabarcaodeconsogro.Otermodawatsiniusadoem referncia a ambos os membros do casal aliado, com o estabelecimento do compromisso de casamentopelonoivadoentreofilhodeumeafilhadeoutro.Abaixo,umafiguradocasamento entrefilhosdedawatsini,conformesuafacetaprescritiva:
J a liana sciopoltica entre linhagens diferentes, com a transmisso da posse do tedewa,operarariademaneiasemelhanteaestescasos,nonecessariamenteatravsdaresidncia, sendotalvezumexemplomaisdistendidodestaoperao. OdistanciamentoentresociedadedecasaseosA'uwXavante,almdamarcadadistino entremetadesexogmicasagnticas,aconteceatravsdecasamentosentremembrosdemetades opostasforadaprefernciadosfilhosdeprimoscruzadosouaqumdestelimite,comofoivistocom Vianna(2001:113118).Almdisso,ocarterperformativodessasagnciasdecasamento,sepor umladovaiemdireodasocialidadedecasas(emqueoparentescoaltamenteperformativo),
168Nessesentido,osA'uwXavanteseaproximamdomodelodravidiano,enoiroqus,nosentidodequefilhosde primoscruzadosdomesmosexosoafins(verLounsburyapudViveirosdeCastro2002a:109).
154
poroutrovaicontra:arelaode datsiwatsini (isto,entredoiscasaisde dawatsini recprocos) podeserestabelecidaentrequasequalquercasaldemetadesopostas(considerandoseofeitoda esposa ser tratada como estando do lado do marido, consanginizada pelo datsiwapru, compartilhamento do mesmo sangue), e no somente entre primos cruzados. No aspecto performativo,portanto,falaremcasamentodefilhosdedawatsiniumaredundncia.Almdisso,a prpriarelaocomodanho'rebdzu'wanoimpedeocasamentoentreseusfilhoseseusafilhados, masrelaocomo danho'rebdzu'wa desfeitacasoessescasamentosaconteam e,setiverrecebido umnomedeseudanho'rebdzu'wa,ohomemperdeessenome(LopesdaSilva1986[1980]:84). Disse quase, em se tratando da ampla possibilidade de constituio de relaes de dawatsinidesdequerespeitadaaexogamiademetades,porqueemalgunsmomentospodehaverum rechao de casamentos entre pessoas que estejam na relao de danawapt (MZ, MFBD etc.)/da'rawapt (ZS, FBDS etc.), e damamawapt (MB, MFBS)/da'rawapt (ZD, FBDD etc.): indciosdissosoofatodequeouvi,certavez,umcompanheirodeclassedeidadedizendoque tinhaseseparadodaesposaporqueelateriaseenvolvidocomumtiodele(quepoderia,portanto, ocuparestaposioclassificatriaemrelaoaela):comumprimotudobem,masqueelasubisse elenoaceitava.JEsterdeSouzaOliveira,emrecenteetnografia,registraque[n]emtodasas relaesincestuosassomarcadaspelaquebradaregradeexogamia,[o]scomentriosarespeito de incestos normalmente referemse mulher envolvida; comentase, por exemplo, que ''ela namorouosobrinho,queissomuitoproibido''(Oliveira2011:30).Vianna,porsuavez,registra umcasomuitomaismarcante(dequebra)destetabu:odeumchefedeSangradouroquemantinha relaessexuaiscomsua sobrinha (ZD)isto,algumclassificvelcomo da'rawapt mau comportamentocaracterizadocomoincestoeumdosmotivosqueteriamlevadoosfundadoresda aldeiaAbelhinhaaabandonaraaldeiasede(Vianna2001:80)169.Oquereforaaimportnciados efeitoscognatizantesparaocasodefamiliaresprximos.Poisvalelembrarqueoefeitocontagiante
169SeretornarmoscomparaocomoHava,londeachefianascedeumincesto(Sahlins1990[1985]:112),aquia possibilidadedeincesto,senoamata,servecomolegitimaodoabandonodochefe.Ouseja,nosenegaarelao entrepoderequebradetabu,masaquijustamenteporissoqueochefeperigoso.Emcompensao,umincestomais radicalcaberiaorigemdoswaradzu,comTserebutuwcomendooclitrisdame,comovisto.Outroincestomais radical,entremeefilho,teriadadoorigemanta,uhd,comolembraOliveira,notandoquemulheresacusadasde incestosochamadasdeanta,oqueseassociatambmaocorpodaanta,segundosuainterlocutoraa'uwxavante, que teria duas mamas como o corpo humano, e ao seu hbito de fugir levando somente filhotes masculinos, abandonandoasfmeas(2011:30).Emsuma,seoincestoeopoderestiveremdealgummodoassociadostambmpara osA'uwXavante,somentenosentidodequeoincestosituaquemocometenoexteriordahumanidadeou,no mnimo,emdireoaesteexterior,sepensarmosnocasodochefemalcomportado.
155
do convvio edaentrecorporalidadeafetaperformativamenteousodessas classificaes. Esse efeitotambmpodeserrecuperadoseconsiderarmosamaioraproximaoatitudinalqueocorre entrecunhadoseentregenroesogroaolongodavida(LopesdaSilva1986[1980]:228230e1983: 54). AsociedadedecasascaracterizadaporLviStrausscomoabertahistria,nocasoda histriacontarsecomoumcaminhosemvoltarumoentropia.Assim,oselementosdequasecasa no parentesco a'uwxavante colocamse como uma entreabertura histria atravs da qual a misturae o contgio,emcertosentidocaticos,fluemdeumladoparaooutro.Fazemno de maneiramaisoumenoscontidaporumdemnioantientrpicopostadonaportadecomunicao entre os dois compartimentos (Almeida 1999: 184), ao qual se permitem necessrios esquecimentos.Comisso,algunstermospodemcircular:umafimdeumageraoacimapode tomaraintimidadedeumconsangneoparaotratamentodealgumdageraoabaixo,rompendo comasatitudesepalavrasdaagnaoemdireocognao,tentandoesquecerqueeleeseu parenteestomarcadosnestarelaopelaoposio;outentandoesquecerqueaqueleparentejno mais criana. Pode, inclusive, fazlo moda dos avs, cujo carter cogntico parece mais explcitonoscdigosquecompemalistadeentradaesadadabrechaantientrpicanaqualo demniodeMaxwellpostasecomovigia. Assim,oafimdeumageraoacimatomaossupostosafinsdeumageraoabaixode maneirasimtricaqueladosascendentesdestes,comoumaespciederetornodeumaentrega assimtrica.Umarelaosimtricaqueladodanho'rebdzu'wa,masparaooutrolado,dopontode vistado datsa'omo (ZH), jquearelaofundamentaldo danho'rebdzu'wa como pai deseus afilhadosdopontodevistadoai'ri(WB). Explico:odatsa'omotermoparamaridodairm(ZH)bemcomoparagenro(DH),um cunhado/genroque,graasprefernciaderesidnciauxorilocal,passaamorarcomosogro(WF): damapre'wa ou waw deveservirao sogro etambmaceitarserpredadopelo irmo desua esposa,oda'are'waouai'ri: Um ari [sic170]fazusodecoisasdapropriedadedeseu tsaomo semhesitao, emborahajapoucareciprocidadenessecaso.Ostsaomofreqentementereclamamdeseus cunhados,considerandoospredatrios(MayburyLewis1984:150grifosmeus).
170 Conforme ouvi em campo, o termo ai'ri ou ai' no tem flexo genitiva, diferentemente de seu correlato da'are'wa.
156
Essapredaodo ai'risobreseutsa'omopodeserdevriasformas,comotomarparasi algumapeaderoupaoupresentequeestetenhaganho,comoobserveiindiretamentealgumas vezes,vendooirmodaesposausandoopresentequeeutinhadadoparaomaridodesuairm AndrenoTsipadzatWti,naaldeiaAbelinha,confirmoumequeseu cunhado svezespegava suascoisas,porexemplomasssefordeoutroda'utsu,disseele,isto,deoutraclassedeidadee tambmdeoutrametadeagmica.Jumtsa'omomeunaaldeiaBelm,Anglico,dissemequeo ai'ritsahi,bravopalavramuitousadapelosA'uwXavanteepuxaocabelodeseu tsa'omo. Sendoocabeloumndicedeforavital,puxlomaisqueumasimplesagresso.Mas,sevalera aregraexpostaporAndreno,Angliconodeveriaternadaatemerdemim.Defato,noteique seoqueAndrenodissepodeserestendido,incluindonosoqueoai'ripegamastambmoque elepede,entoumououtroquesediziameuai'rinoseguiaestaregra,pedindoparaqueeulhe dessecoisasjustificandosenestaafinidade,aindaquefssemosdamesmaclassedeidade. Ento,prosseguindoaexplicao:estecunhado/genro(ZHeDH)temachance,comouso dessestermos,detransformararelaonageraoseguinte,chamandoosfilhos(C)enetos(CC) dessesmesmosafins,queestonumaposiosimtricainversadele(WFCeWBC)porumnico termo(assimcomoambososafinsochamamporumnicotermo: tsa'omo ,queomesmotermo ) queumconsangneousaria(sejaele datsihudu,bodioti .Comissoeleinverteojogoaseufavor, , ) familiarizandoosdescendentesdaquelesqueopredaram. Oquecomplementaofatodeque,ao longo dos anos, esses afins (genro, sogro e cunhados) tornemse mais prximos, ntimos e companheiros. Quanto cognao e quase sociedade de casas, gostaria de apontar para outro caso observado em campo que tambm parece operar na mesma chave de estratgia de cognao, especificamente dentro de casa. Este caso tambm, por sinal, diverge das classificaes de MayburyLewisevaiaoencontrodaproblemticatbuladetermosdeparentescodeGiaccariae Heide. Da mesma maneira, reclama maiores investigaes de campo a cerca dos usos da terminologiadeparentesco.Referese,maisprecisamente,aorelacionamentodascrianas.Tratase do que ouvi na casa de Ado Top'tiro, de sua tsiwatsini Catarina Wautomotsitsatsitsi', Po'redza'ono e me uptabi de Marciano Were' (cujo nome a'uw foi herdado de um bisav waw),quecasadocomumadas filhas deAdoevivenamesmaresidnciaqueeste,onde tambmviveCatarina.Were'temumafilhapequena,ba'ono(meninapequena),chamadaPepot'. Catarinatemoutra filha quevivecomeles,Jaqueline'Roni, me deoutrameninamenorzinha, ba'tore,chamadaPenhiniwa'u(esteltimoonomedoprprio pai damenina,Lucaswa'u, 157
quemoravaemSoPaulonessapoca,tendoretornadoparaaaldeiapoucomaisdeumanodepois disso).CertavezpercebiqueCatarinasereferiasobrePepot'paraPenhinicomoaindub'rada,tua irm mais velha.Acontece quePepot',como seu pai Were', waw, fatoquecostumava repetir com freqencia: wah waw eu sou waw, dizia ela. Penhini, por sua vez, Po'redza'ono,comoseu pai,queforacasadocomJaqueline. Assim,asduasmeninasdemetades exogmicas opostastinhamtodaviaumaaoutracomo irms Outroefeitodaconvivncia eda . familiarizao aplicada a crianas que vivem juntas? Crianas, ainda no inclusas na rede de casamentosdosadultos?Ficamasperguntas. Enfim,considerandoseopapeldacognaonessasrelaesdomsticasa'uwxavantes, poderseiasugerirqueumapartedaclebreequaododradividianatoamaznicoaproximasedo casoa'uwxavante.Afrmula,baseadanomodeloyanomamcompropostoporBruceAlbertelido porViveirosdeCastro(1993:165),envolveriaumasuperposiodogradienteprximo/distantedo cognatismo sobreocontrastebinrioconsangneo/afim,resumidadaseguintemaneira:seno nvel local a consanginidade engloba a afinidade, no nvel supralocal a afinidade engloba a consanginidade, e ao nvel global a prpria afinidade que se v englobada (definida, determinada)pelainimizadeeaexterioridade.(ViveirosdeCastro1993:173).Apartequetomo aqui, por enquanto, a primeira: a donvel local. Mas isso apenas sea nuanarmos,como apontadoacima,levandoemcontaoslimitesapresentadoscognao,amanutenodecertos laosdecontraparentescoeaafinizaodosprximosatravsdocasamento,levandoemconta tambmapermannciadasdistinesdemetadesexogmicas(oucls)oque,senomantmneste mbitoasubordinaodoconcentrismopelodiametralismo,fazcomqueconcentrismodacognao aparea menos como subordinador e mais como insubordinado. As estratgias de cognao poderiamserpensadasacomoestratgiasdeinsubordinaodocontgiofamiliarizanteaoscortes narededoparentesco.Aindaquenomenosprevistas(comohordemtambmnocaos)portanto estruturaisdoqueasestratgiasdeagnao. Agora,antesderetornarafinidade,queseexamineaagnao. Ostermosparapai,irmodopai,filhodoirmodopaidopai(F,FB,FFB)etc.deego soomesmodamam,oupodeserdesdobradonaformadedamama'am(tio,outropai),como jindicado.Bemcomoostermosparafilhodopai(irmo),filhodoirmodopai,filhodofilhodo irmodopaidopai(FS,FBS,FFBSS)etc.deegono,semaisnovo,edub'rada,semaisvelho. Em compensao, h termos traduzidos muitas vezes como primo (dasiwadi, dasitsanaw), referente a laos tidos como mais distantes entre membros da mesma linhagem paterna ou da 158
mesmametadeexogmica.Oproblemasaberqualaestratgiadeaparentamento,ouquaisas condiesnecessrias,paradecidirseumdadosujeitodamesmametadeprimoouseseencaixa nasoutrasclassificaes(comopaieirmo). Umforteoperadordessaestratgiadeaparentamentootermoenfticouptabi,muitasvezes traduzidocomoverdadeiro,masmaisprximodosentidodeprpriooumesmo.Entretanto, associaressetermoaoconceitodeparenterealemoposioaparenteclassificatriopodeser enganador.Issoporque,comojfoidito,oaparentamentonoapenasumaquestodeclculo genealgico, mas tambm uma questo de contgio, convivialidade, comensalidade e familiarizao. Mas no s isso: creio que o termo uptabi deva ser tratado como ligado perspectiva,isto,relaoentrerelaes. Explicoapartirdoseguintepontodepartida:estavaeuvoltandodecarroparaaaldeia Belm, de carona com dois homens a'uwxavante, um de quem no me recordo e Pedro Tsuwede'wa como motorista Poredza'ono a quem tratopor dub'rada. Ouvindo sua conversa, apesardenocompreenderplenamentealnguaa'uwxavante,entendiqueestavamfalandosobre mim(umdosindcioseraousodotermowaradzuentreeles)quandochegamosaldeia,ePedro disseaooutroqueeuera'rauptabideMrcioTserehit. Estranheiousodotermoporque,apesardeeurealmentetermaisproximidadecomMrcio dentre todos meus mama naquela aldeia, eu no costumava freqentar sua casa ainda que, abrigadonorecintoanexoao postinho desade,asresidnciasmaisprximaseramrealmenteas casasdosirmosuptabideMrcio,eaindaqueMrcio,sendozeladordaescola(localizadalogo atrsdopostinho)estavasempreporperto.Soavameestranhoser'rauptabipoispareciamaisque bvioqueeueraadotado.Aindaporcima,eutinhasidoadotadoprimeiramentepormembrosde outraaldeia.Enfim,soavamesurpreendenteofatodequeminhaadooporMrciofosseto radicalaopontodeeupoderserconsideradoseuprpriofilho. AcompreensodequeeuteriasidoadotadoprimeironaAbelhinhaseexpscertavez,por exemplo,nafaladeAlfredoTsawe'wa,quandoestemenarravaseuencontrocomDesidrio,filhodo danhim'ih'a da aldeia Abelhinha, Tiago. Alfredo e Desidrio teriam se encontrado em algum eventodesadeindgena,jqueambosatuamcomoenfermeirosemsuasaldeias,eoprimeiroteria ditoaosegundoparaqueeles(daAbelhinha)noficassembravospelofatodelesoutros(daaldeia Belm) terem me pegadoemprestado.Com isso,se comparadas minhas relaes com a aldeia BelmecomaaldeiaAbelhinha,euseria filho uptabi desta.Aindaassim,parecehaverauma disputalatentepelaperspectivadesujeitosobremim,poissetratadamesmarelao,mesmoque 159
emgraudiferente.Acreditoquemovimentosemelhanteseexpressenasdisputasentreirmos por cunhadas, porexemplo,ounasdisputasporcargos,comoo Pahri'wa,dadaaprerrogativade famliasdiferentes(aindaqueaparentadas)sobreomesmocargo(disputasquepodemser,comose viuarespeitodosdatede'wa,acarretadaspelodomouemprstimodeprerrogativas). MasdopontodevistadaaldeiaBelm,emrelaoaoutros mama destaaldeia,euseria filho uptabi deMrcio.Almdisso,existeaminharelaocomMrcioemcomparaocoma relaodeseusoutrosfilhosaele.Creioqueeles,emrelaoamim,sejamconsiderados,para Mrcio,uptabieeuno,oqueparecetrivial,masprecisaserdemonstrado.Umindciodissoa pinturaqueMrcioplanejavamefazerparaalgumascerimniasdoDanhono:elemedissequeme faria a pintura Flamengo, uma pintura corporal genrica que, nessas circunstncias, no est associada a nenhum tipo de cargo ou encargo cerimonial especfico, conforme ele mesmo me informouelepintaria,contudo,seuprpriofilhoBenevaldoWa'air(danhohui'waetpacomo eu) conforme o cargo que ele, Mrcio, possua: o de Aih'ubuni, cargo tambm exercido por Benevaldoquandoerawapt.Talvezporissoeutenhasidopintadoporoutromama,RaulTseretsu, de'Wamaridzu'bre,jqueMrcionoteriaoutrapinturadevidamentecarregadaparameoferecer. Estaquestomereceumaatenoaparte,poispodetercontribudotambmofatodeque naquelemomentoeuexpressavalutopormeusogrowaradzu,tendoraspandoacabeaporiniciativa prpria,modaa'uwxavanteeusadoinadvertidamenteumapinturadeluto.umapinturade urucumsobreatesta,queeunotaraTiagoTseretsuusandonaAbelhinhacertafeitaemqueelesara paraaaldeiadeSangradouro,segundomeresponderam,paralevarobolodepresentefamliade um recm falecido,suafunocomo 'Wamardzubtede'wa deaplacarosnimos dosenlutados. Umafatalidadeemminhavidapessoal,ofalecimentodemeusogrowaradzu,levoumeaexpressar olutodemaneiraa'uwxavante,raspandominhacabea,pordecisoprpria.Eususpeitavaque nofossemuitocomumparaosA'uwXavanterasparacabeaemcasodefalecimentodeparentes por afinidade, mas tambm pressentia que era aceitvel e algumas pessoas me confirmaram. Disseramquedependedodesejodoenlutadoedoseusentimentodeproximidadecomomorto. EsteperodoeraodeummomentocrucialdoDanhonoeeuestavaimersonasatividadesrituais.Ao observaroprocessodefabricaodosbambusqueseroosprimeirosbrincosdosadolescentes, feitos pela classe de idade por vir (sua adversria), eu j estava de cabea raspada e um dos envolvidosnopreparodoritualcomquemmantenhoumaamizadecomoumtsiwaihuJorge, um'riti'wa(Abare'u)waw,netodeJosPedroedanho'rebdzu'wadeoutrodeseusnetos,eque sempreteveumarelaoamistosacomigo(apesardasnossasdiferenasclnicaseagmicas),por 160
estar mexendo com o urucum usado para pinturas, decidiu pintar minha testa de vermelho segundoele,parademonstrarminhaadesocultura(dahimanadz mododevida)a'uw xavante,paramostraroquantoeuerabravo(tsahi).Comopermaneciassimpintadodurantetodo aqueledia,vriaspessoasmeolharamcomadmiraoouvieramperguntarporqu(demaneira maisou menosretrica,jquesabiammelhordoqueeuosentidodaquilo)euestavapintado daquelejeitoequemmepintara.AtquemamaZWalmirexplicoumequeaquilonoerauma refernciaaa'uw 'riprre,jqueapinturadoa'uw 'riprre,paramostrarbravezaperanteos inimigos(tsahidaparabraveza)feitacomwededzu(opdealgumamadeiraavermelhadaque desconheo)enob(urucum).Alfredoacrescentouqueaquelapinturadeurucumera,naverdade, parademonstrarluto.Finalmente,comentandosobreminhapintura,Danielmedissequeeudeveria manterolutoporquatrodiasoque,senomeengano,foimaisoumenosoperododuranteoqual Tseretsu manteve a pintura na testa. Alfredo (recordemos que meu tsimiwainh da metade exogmicaopostaquelaqualeuforaassimiladoequetambmpertenceclassedeidadealterna superiorqueapadrinhaaclassedeidadequaleufuiassimilado)dissemequesepintariaassim tambmnodiaseguinte,emsolidariedadealgoparecidomedisseraumcompanheirodeclassede idade,queostpacombinaramqueficariamtristescomoeu,emhomenagemameusogronotei sercomumqueumaclassedeidadeinteiraraspeacabeaemhomenagemaalgum,sobretudo algumdamesmametadeagmica,equeessevermelhodourucum(usadotambmnosprimeiros brincosdosadolescentesqueestavamsendopreparados)eraumsinaldedor,sangueeluto.Essa histriaapresentapistasparaconjecturasdiversassobreossentidosdasrelaesa'uwxavante, mascabeaquiexploraraquelequeseligaaumaexpressocorporaldesentimentoquevaialmda metadeexogmica,alcanandoaoutrametade,numimpulsodecognao.Enfim,diasdepois,no prosseguimentodosrituais,nopreparoparaumdasfasesespecficas(oWa'i,alutaritualejocosa entremembrosdemetadesexogmicasopostasdaclassedeidadequeapadrinhaedaclassede idadequeacabadeteraorelhafurada,queacabadeseriniciadaparaalmdaadolescnciaambas da mesma metade agmica), Marcolino Tseredzabdi, um dos filhos uptabi de Raul, velho 'Wamaridzubtede'wadaaldeiaBelm,dissemequeeudeveriaprocurarseupainaquelemomento paraqueelemepintassecomo'Wamaridzubre,porqueeutinhaumandolepacfica,nogostava debriga,equedeveriaterestecargo.Umdemeuscompanheirosdeclassedeidadelevoume entoaovelhoeexplicoulheoquehaviaditoseufilho.Ovelhofoiatsuacasa,pegouopde 'wamar,efinalizouopreparodeminhapinturajogandoopemminhanuca.Segundotodosme disseram,estaeraamarcadequeocargomeforaoutorgado.Teriaissotudoaver,emalgum 161
sentido,comminhaexpressodelutopormeusogro?Aexpressodelutopelosogromostrauma ndolepacificadoraeumimpulsodeaparentamento,entrecorporalidadeeintensificaodeuma aproximao com algum de quem, no princpio, deve se manter distncia. Pois, como mostra MayburyLewis(1984[1967],oprocessodeaproximaoentre genro e sogro lento,durauma vida, ainda que acontea. O luto, assim, apressa este processo diante de um momento de interrupo da vida. uma congregao entre opostos e, portanto, a atualizao de um comportamentocabvelparaum'Wamaridzubtede'wa. Aindaassim,meuslaoscomRaultinhamsidoestreitadosquandoestemepedira(paraque eupedisseparameu pai waradzu)umcobertoreeulhotrouxepedidoidnticofeitoporJos Pedroamim,oquejulgueiseralgotpicodevelhos,demodoquealmdepresentelosdesta forma,tambmpresenteeimeumamaAdoTop'tiro. DevoltaminharelaocomafamliadeMrcio,disputasnodeixaramdeaparecerentre Benevaldoeeu.Almdemeuirmoadotivoestarsemprebrincandodesermaisvelhodoqueeu, apesardesermaisnovo(no,portanto),tambmreclamavaapossedeumacanodadaamimpor outremparaosrituaisdo Danhono.Issonoevitaria,contudo,quemantivssemosumarelao amistosaequeelegentilmentesugerissequeeulevassecomigo,paraacidade,seufilhopequeno(e de adotado eu passaria a adotador, caso aceitasse). Contrabalanceando as disputas e jogos de palavraseumaououtrapegadinhaduranteumacaada(comoretirarasbalasdaarmaantesdeeu usla),Benevaldomuitasvezesfezenfeitesdecascadervoreparamimnomeiodamataeajudou amepintarpararituais. Tomarme como exemplo neste caso uma espcie de teste da hiptese em condies extremas,jque,aprincpio,souumcativo,um danhimidzama,umfiliadoadotivoque,tambm dependendodasituaoedascondies,nodeixodesertratadoereferidocomo waradzu,se tambmsoutratadocomoa'uw. Retomandoagoraostermosdeaproximaodoaparentamentoesuasdistncias,watsiwadi (nogenitivoparaprimeirapessoadopluraldedatsiwadi)otermoqueMayburyLewisglosacomo companheiro defaco, semdeixarclarosesereferelinhas agnticas ouauma forma de incluso de membros da outra metade (MayburyLewis 1984 [1967]: 225). O dicionrio de Lachnitt(2003)traduztsiwadicomoreunirse,aproximarse,oquenessesentidopodesereferira qualquerumqueserena,nohavendoumadefiniodeparentesco.Sobreomesmotermo,certa ocasioemquefalvamossobreosTsa're'wa,Tseredzardissemequenoerapolidochamlosde Tsa're'waequeumvelho,duranteoWai'a,arespeitodesuaspossveispresenasnamata,disselhe 162
que deveria chamlos de Watsiwadi, o que, em portugus, segundo Tseredzar, seria nossos irmos. Seria este um indcio de que, para os A'uwXavante, a germanidade, a metagermanidade ou uma germanidade distanciada, cosmopoltica, da qual preciso aproximarse como tsiwadi constituise, de alguma forma, em idioma sociocsmico, parafraseandoFausto(2008:349)maspropondolheumaexceo?Poisestagermanizao171do sociocosmicamentedistanteo Tsa're'wa,dequemsefalarmaisadiantepareceviolar em algumsentidoasconclusesdafrmuladaafinidadepotencial:[]oparentescocomoumtodo que se v, primeiramente englobado pela afinidade, finalmente subordinado relao com o exterior(ViveirosdeCastro1993:173).Porqueaquiarelaocomoexterior,oqueestalmdo humano que o ultrapassa ou que sabedor: tsa're'wa dada por uma espcie de germanizaodistanciada.Seriaexagerofalaremmetagermanidadenestecaso,oubastariaapenas considerar a predao familiarizante no que ela tem de potencial, conforme a qual um agente exterioraoparentescotransformadoemfilhoadotivo,isto,umafiguradodomnio,darelao assimtricaentreodonomestre(quepodesertambmumpai,umchefeoumesmoumpatro)e seus filhosxerimbabos. (Fausto 2008: 351)? Acredito que a questo poder ser abordada novamentequantofortratadodosTsa're'watede'wa,donosdosTsa're'wa. Para situaes mais familiares que watsiadi poderia ser referido o termo datsitsanaw, conformeMayburyLewis,aplicadoapessoasmaisntimasdafaco,comquemjpoderiamser usadostermosdeparentescoapropriados(MayburyLewis1984[1967]:225),comodahitbre(B, FBSetc.),parahomensdamesmalinhagememesmageraodeumamulher,oudahidiba(Z,FBD etc.), para mulheres da mesma linhagem e mesma gerao de um homem. Pessoas do mesmo gnero,nessasmesmascondies,tratarseiampordano(maisnovo)e dadub'rada (maisvelho), comopercebideformageralexcetuandoocasodascrianasacimarelatado.Aprprianoode faco de MayburyLewis expressa um movimento de confluncia entre parentesco e aliana polticaapartirdoidiomadagermanidade,aindaqueoprpriotermo watsiwadi aquelescom quemnosreunimosnoexpressediretamenteumaidiadegermanidade.Sendousado,contudo, comosinnimodeprimopaterno. Segundoinformaesdepessoasa'uwxavanteetambmconformeodicionriosalesiano (Lachnnitt2003,2004a),datsitsanawquerdizerfamlia,linhagemetambmirmo,irm,e muitas vezes se traduz como primo, de modo que, em sentido genrico, parece se referir a
171 Aindaquenumgraudefamiliaridademenoroumaisdistante: no so,porexemplo,referidoscomo wano ou wadub'rada(nossosirmosmaisnovosounossosirmosmaisvelhos)pelomenosnoobtiveevidnciadisto.
163
parentesagnticosdeformaampliada,nofazendorefernciaaquemdooutrolado,queso chamadosdetsi're'wa. bomremeter,comisso,aproximaomuitofortedoconceitodeunidadedogrupode germanos (RadcliffeBrown 1952) ao caso a'uwxavante, se relido a partir do relacionismo presente em sua filosofia do aparentamento172. Esta parece ser uma questo importante para a definioa'uwxavantedelinhagem,quandoLopesdaSilvaenfatizaaimportnciadalinhagem nosnaorganizaodasrelaesedeclassificaodosXavantemastambmnosentidodeque elasejaumgrupodeparentesconsangneoscomascendnciapaternacomum,queseidentificae reconhecidoporoutroscomogrupo(emboranonecessariamenteincorporado[sic]nemcom limitesfixadosrigidamente)(LopesdaSilva1986[1980]:168grifomeu).Equantomaioro grupodegermanosuptabi,melhor,dissemeCsarTserenhdzumavez,aodizerquetinhadoze irmos:muitosirmosparalutar,nanossavidaimportante,quemvaiajudarsetiverpoucos?. Vale notar que Lopes daSilva usa otermo incorporado em lugardo termo britnico corporateemrefernciaacorporategroup,natraduoquefezobradeMayburyLewis 173. Nestesentido,aautoranoabordaaquestodosgruposcorporaisqueserecuperaaqui.Poroutro lado,aautorapareceenfatizarumaprofundidadedeapenasduasgeraes.Seriaalinhagema'uw xavantelimitadaaesteponto?difcilcrer,dadaa capacidadequealgunstmdetraarlongas genealogias para o antroplogo Vianna (2001), por exemplo, obteve extensas genealogias de Sangradouro.Massemdvidaasolidariedademaisintensadeumalinhagempareceocorrerneste nveldestacadoporLopesdaSilva.Masrealmentenopareceumanoodaqualsepodelivrar facilmente.Aindaassim,elasecruzacomoutra,adaentrecorporalidadecomoentrepessoalidade. Aunidadedogrupocorporaldegermanosa'uwxavanteexpressasenaextensoda germanidadeparaFBS,FFBSSetc.,dadososconseqentesefeitosdecontgioquefarocomque umdatsitsanawsejareferidopropriamentecomodanooudadu'brada.Aopopelaaproximao tambmenvolveestratgiasdehierarquizao:trazeralgumintimidadededanooudadub'rada envolve assumir a hierarquia de idades e a possvel atualizao dos deveres recprocos desta hierarquia:serviraomaisvelhoe,poroutrolado,acolheromaisnovo,oquepodeenvolvera concessosexualdaesposa.Pareceumecomumentreosmembrosdeumamesmaclassedeidade quesodatsirewanhono(damesmametadeagmicaemesmametadeexogmica)ouentrequalquer
172 Recuperase,nessesentido,acrticaaomodelodegruposcorporadosapartirdaidiadegruposcorporais (Seeger1980). 173Compareseousodostermosnamesmaobraemingls (MayburyLewis1974)enatraduodeLopesdaSilva paraoportugus(MayburyLewis1984),respectivamentecomocorporateeincorporado.
164
datsitsanaw queseencontreecomquemseengajeemintimidadescasoestejamnamesma geraodeparentesco(isto,casonosejam 'ra/mama'am etc.)quedisputemludicamente sobre quem o mais velho e o mais novo entre eles. Os Xavante gostam de brigar com as palavras,dissemeumavezJuvncio,umwatsirewanhonoPahri'waefilhodeummeudub'rada. Participeidemuitosjogosverbaisdestetipoemquecadaumtentavaafirmarsecomomaisvelho. Entretanto,muitasvezes,perdercomomaisnovoacarretavaperguntassobreaesposadooutro... Assimsepassaparaoutroaspectodaunidadedogrupocorporaldegermanos,queo casamento entre grupos de irmos (MayburyLewis 1984 [1967] e 1979), casamento real ou possvel.Nessesentido,todaesposadeirmoeprimoumadatsidan,cunhadadehomem,etodo irmoeprimodoesposoumdatsidaimama,cunhadodemulher,oqueseestenderespectivamente para irm da esposa (WZ, WFBD etc.) e esposo da irm (ZH, FBDH etc.). Os dois termos, rememorandoseosentidodapartculatsi,significamalgocomoaquelaquemecomigoe aquelequepaicomigo.Asrelaesentreessascunhadasecunhadosmarcadaporjocosidade e,comonotado,possveisatossexuais. Correlatoaestestermosanoodedatsiwabdzu,isto,umarelaoentredoisirmosque podemdividirsexualmentesuas esposasentresi174.Araizdapalavratemsentidosaparentemente vagos,mas tsiwabdzuri,porexemplo,traduzidocomoconvviomatrimonial,coito(Lachnitt 2003)sendoqueapartculari,aoquemeparece,temumsentidoprximodepr,pr, talvezindicandoumnexocausal,porassimdizer175.Otratamentodedatsiwabdzuestligeiramente relacionado a umcomportamento perigosamente jocosoe a um reforoda intimidade entre os irmos,peloqueindicamasbrincadeirasdotipoemquefuienvolvido. Entreos danhohui'wa, muitasvezesumterceiro diziameparaqueeudissesse quealgum dospresentesnacategoriadeirmo176erameutsiwabdzu,eumadasbrincadeirasdestetipoque
174 Concunhado poderia ser um termo aproximado, mas uma traduo assim remeteria a noo muito mais afinidade,oquenoparecetoapropriado,jqueoshomensrelacionadossoconsangneos,numestadoestremode consanginizao.Poroutrolado,nuncaouviem campoousodotermoemportugus, concunhado,tampoucoa respeitodestarelaoespecfica. 175Eisossentidosquemeparecemvagos:wabdzutraduzidocomoachar,encontrarewabdzuritraduzidocomo jogar, jogar fora, expulsar, afastar, chutar, lanar, criar (Lachnitt 2003). Se a partcula ri realmente implicar causalidade,poderseiaconcluirquetudoqueencontradoporalgumfoi,antes,lanadoporalgum,oqueparece fazersentidoconformeaontologiamticaa'uwxavanteaquirecuperada.Etambmconformeaepistemologiaaqui adotada,afirmandoquetododadodadoporalgum. 176Normalmenteissoocorreucomirmosmaisnovos,porquesoudefatoomaisvelhodentreostpacomquem convivi. S pude experimentar esse clima jocoso junto a membros da mesma classe de idade ou, mais raro, em
165
fizeramcomigofoiparaqueeudissesseaoutro:Fulando, tsitsaiwariFulano,eucomoseus restos,oquegeravamuitasrisadase,maistarde,comentriosbemhumoradosnareuniodowar. Tal frase tem uma conotao sexual que, novamente, remete o aparentamento alimentao. Aparentamentoentredoishomensque,nocasodarelaosexualcomamesmamulher,dadaa comunhodesangueentreesposos,pareceintensificarse.Intimidadeperigosaqueserevelavano fatodealgunsnogostaremdabrincadeira,tendoeuouvidoumdelesdizerqueser no deum waradzu,tudobem,mastsiwabdzuno...Inclusiveporqueeunotinhanenhumaesposanaaldeia para reciprocar com ele. Enfim, o termo tsiwabdzu um vetor de simetrizao na relao tipicamente assimtrica entre irmos,mediado pela consanginizao potencial de uma mulher afim.Dadoocartertontimodarelaoentreumeoutrodamr(esposo/esposa)pelodatsiwapru (consanguinizao) e pelo dahiba (o corpo, a pessoa), a competio pela mesma posio relacional, pela mesma pessoalidade, parece iminente em se tratando da relao entre dois datsiwabdzu.Talvezporissoasrelaesentre irmos,dentrodecasa,demandemtantorespeito: porqueaagressividadedasviasdefato,quandosemanifestaentreeles,podeserextremada. Daspouqussimasbrigasquepresenciei177,trsdelasforamentreirmos.Umanaformade lutacorporal,conformeastcnicasdowa'i(iniciadaporqueomaisnovoteriafuradocomumafaca
refernciaaelesporterceiros.Quandoumhomemmaisvelho,deoutraclassedeidade,admitiasermeutsiwabdzu,o faziacomalgumadiscrioecertavergonha.Acreditoqueissosedevaaofatodequeotermoremetaaumaobrigao delecomigo,comomaisvelho,apossibilidadedecedersua esposa,etambmaocartersimetrizantequeotermo exercesobrearelaoassimtricaentredadu'bradaedano,oqueresultarianumaperdaparaomaisvelho. 177 Quandodigobrigasrefiromeaataquesmanuaisbem sucedidos ouseja,pelomenos um dosenvolvidos consegueacertarouferirooutrocomumoumaisgolpesemqueocarterldicodarelaoficaabeiradesituaes mais srias e perigosas. comum entre os A'uwXavante agrediremse de maneira ordeira ou simularem lutas, socandorevezadamenteobraoumdooutro,agarrandoseeatfingindogolpesdefaca.Muitasvezesessaslutas alternammomentosdecarinhoentreoscontendores,oqueobserveientrecompanheirosdeclassedeidade.Dasmais graves,presencieidistnciaumatentativadeagressotragicmicaemqueumhomembbadoperseguiasuaesposa entreumacasaeoutra,cenaquefoiobservadaemtomgraveecomentadaamimporumadolescentedestamaneira: guerramundial.Outrocasoquepresencieiquaseresultouembrigaentrepessoasdemetadesexogmicasdiversas,j queosenvolvidossedesafiaramnumaespciede wa'i eoperdedor,alcoolizado,levantouseesegurouooutropela camiseta, ficando ambos nesta situao de segurarse e empurrarse, intimidandose mutuamente, at que foram separadosporalgumque,dadaasituaoespecfica,podiareclamarascendnciahierrquicasobreosdois(irmo maisvelhodeumepatronodooutro).Outraluta(oembatesubseqenteprimeiralutaentreirmosnarradanocorpo dotexto)foiseparadadeformasemelhante:estandoosdoiscontendoresrolandonocho,ummembrodametade exogmicaopostaedamesmaclassedeidaderesolveuinterferirseparandoose,paraisso,reclamousuaascendncia bradando:tsi're'wa,tsi're'wa!ouseja,suademandaapaziguadoradeviaseratendidapelofatodeleserdooutrolado.
166
opneudabicicletadomaisvelho),duranteaqual osenvolvidosmantinhamcertonveldebom humor,sucedidapelodesafiodoperdedoraoutro irmo damesmaclassedeidade,presenteno local.Outraenvolvendomaisviolncia,comsocosepontapsentredoishomensjovenspormim desconhecidosfoiduranteumgrandefestivalnumadasaldeiasemqueviviemefoiditoqueera paranomepreocupar,afinaleramdoisirmoseabrigafoiseparadaporseusfamiliares. Um parntese sobre o uso do lcool: a ingesto de bebida alcolica, hoje em dia, comumenteresponsabilizadapeloscasosdeviolnciadequesetemnotcia.OsA'uwXavanteno tm um consumo cerimonial de fermentados alcolicos herdado dos antigos, nem costumam produzirtaisbebidas,considerandoasumainflunciawaradzu.Paulinho178AndersonTsere'u'r, filhododanhimi'ih'adaaldeiaBelm(PauloCsarTsere'u'r)elderdentreostpadaaldeia, aconselhoumecertavez,duranteumareunionoturnadowar,depoisdesaberqueeugostavade cerveja: watsi'utsu179, cuidado com bebida alcolica, no bebe, muito perigoso. Quanto ao carterdolcoolnavidaa'uwxavante,EduardoCarrara(2010) apresentaumapesquisasobreo consumo desta bebida e seus efeitos bioqumicos a partir de um vis simblico e emocional. Partindo deumaconcepodeconsubstancialidadeentrecorpo,menteecrebro,afirmaqueo sujeitoembriagadosedesprendemomentaneamentedesuaformaocorpreomentalcoletiva, distanciandosedoethosa'uwxavante.VindoaoencontrodeCarrara,maspartindodeoutra paragemterica,eudiriaqueonousodolcoolesubstnciasembriagantesnavidacerimonial a'uwxavanteestdiretamenterelacionadoaumanfasenapacificaoou,parausarpalavrasque ouvi algumas vezes em campo de vozes mais filosficas, como a de Paulo Csar, ao carter pacificadordaagressividadeauwxavante,aguerradepacificao180.Pacifismoguerreiroque, no discurso deHiprdi,porexemplo,manifestasenaatitude acolhedora dos a'uw uptabi. O prprioAdoTop'tiromedisse,traduzidoporCatarina,queoA'uwtede'wa,quemataona(e que,sabese,matabranco),gostadepaz. Issotudopareceiraoencontrodeumapredao familiarizantemuitocaractersticadosA'uwXavante,coerentecomseureforodoritualldico
178 Peloquemefoiditonaaldeia,PaulinhoseriaumapelidodeAnderson,emrefernciaaonomedeseupai. 179Watsi'utsuotermousadoentremembrosdamesmaclassedeidadepormdemetadesexogmicasopostas. 180assimqueparecesedefiniraposseterritoriala'uwxavante.Certavez,respondendoumaperguntaminhasobre cermica,PauloCsardisseme:aquipertotemmuitocacodecermicadesculosatrs,quandonossosancestrais pacificavamessarea,quetinhamuito Tsi'rtede'wa,ndiopigmeu.Oleitordeveselembrardashistriassobreos Tsi'rtede'wa(orachamadosdeTsiretede'wa)mencionadasacima.Poisessaterraeradeoutro,maselestomarameso fizeramporquepacificaram,apazcarregaumaidiadecancelamentodeinimizades,vinganas,dvidas,comoa justia.Tibopari(pronto,apagou,pronto,estlimpo,acaboulimpo),elesdizemquandosecompletaumatroca, secancelaadvidadealgoprometido.Elestornaramolugarpropriamentehabitvel,humano.
167
comoatenuantedaguerraedopapeldavidaritualnacontnuagentificaodesuaspessoas.Alm disso,suas cerimniasejogosmeparecemtocomplexoseextenuantes,comsuaprofuso de cargosepequenosritos,classesemetades,pinturaseadornos,corridasedanasinterminveis, complexascanessonhadasememorizadasacadanovocicloetc.queparamimtentarpratic losbbadoseriaquebraracabeaeocorpo,aindaqueraroscasosdeembriagusapareamaquie aliemalgumritual181. Quanto ao termo datsitsanaw, provvel que tenha relao com aquele glosado por MayburyLewis(1984[1967])comocl:sna'rada,raiz,querevistoporCoelhodeSouza(2002: 266)comotsana'rada:incio,comeo,raizdervore(quenogenricoseriadatsana'rada). 'Radaoradicaldapalavraprimeiro,princpioanterioretsanaglosadoporLachnitt (2003)comointestino.Otsijfoiapresentadoaquicomotendoosentidodereflexividade, bemcomoodeumarelaomtuaourecproca.Jwtemosentidodetronco(docorpo)e, porextenso,corpo,etambmdividir,partir(Lachnitt2003). Ouseja,estamosdevoltapartedocorpo,entreparcialidadeeentrecorporalidade,mas tambm de volta a uma filosofia corporal da digesto, para falar nos termos de LviStrauss, associadaem datsana'rada comocomeo,oprincpio,talvezumaprdigesto . A relao com a raiz tambm interessante quando se nota, em campo, que os conhecimentosfitoterpicosemgicosa'uwxavantessobaseadosnousoderemdios, dawede (wedequerdizerpau,madeira),osquaiselessempretraduzemporraiz,esoconhecimentos costumeiramentetransmitidosatravsdoslaosdeparentesco.LopesdaSilva(1986[1980])jtinha notadoqueosconhecimentosmgicossopassadosde pais e mes para filhos,etambmentre esposos. RosaBueno(1998),numapesquisademestradopoucoreferidapelaliteraturasobreos A'uwXavante,estudousuasprticasdecura,mostrandocomosotransmitidasdentroda famlia, depaiparafilhoe,noqueconcernesmulheres,opaicostumatransmitilosparafilhasvivas,mas
181 Acompanhei um ritoem quedois dos quatroatores principais,quefariam umacorridacom cestos decarne presenteandoosfuturospersonificadoresdedoisdosprincipaiscargosdaclassedeidade(TbeePahriwa),estavam bbados.Antesdospreparosdoritual,numavilawaradzu,umdelesgastouquasetodoseudinheiroemlatasdecerveja, dividindoabebidacomosegundoedesafiandoosdemaispresentesaentornaremoquejera,emsi,umritualde ddivaagonstica,baseadonaprerrogativadedesafiantedametadeexogmicaoposta.Nocaminhodevoltaaldeia, depoisdaspinturas,enfeitesecestosfeitos,eranotvelosilncio,avergonhaeareprovaodosdemaisemrelaoaos doisembebedados.Paraterminar,ambostiveramdeserajudados acarregaroscestosdecarne,nopicedoritodo manad, do meio da aldeia at as casas dos respectivos presenteados, pois no agentaram fazer isso sozinhos. Perderam a corrida para seus adversrios exogmicos, para a gozao discreta dos membros do outro cl que os assistiam.
168
queatransmisso182desteconhecimentotambmatravessaoscortesdoparentesco.Emcampo,tive pelomenosumdadocuriososobreisso:umcompanheirodeclassedeidade,aobuscarcomigono mato a raiz de dzara're (ou dzara'repa), usada para males respiratrios e diversas outras enfermidades (sendotambm fumadajuntocom tabaco),disseme quefoiseu sogro quem lhe ensinouousodaplanta. Numadasaldeias,paraqueeupudessequestionaraspessoasarespeitodesuas famlias, alguma'uwxavanteinstruiumequeeudeveriaperguntarlhessobredatsarina'rada.Aspessoas, assim questionadas, normalmente tornavamse mais pensativas e passavam a fazer referncia histriadesuafamliaemtermosdeorigemterritorialouaalgumantepassadomaisprximo,seus avs ou bisavs (termos descritos a seguir), ou ento declaravam desconhecla. Tsarina glosadoporLachnitt(2003)comodeacordocom,coerente,seguindoatrsde,sendoquena significaalgocomoem,comoude,etsaritraduzidocomoarrastar,puxar,morder, picar sendo que tsa, alm de usado para picadas de inseto183, referese a comida e alimentao(eri,comoseconjecturou,temalgumarelaocomosentidoquedamospara proupremportugus). Teriaoprovrbioparentedentequemordeagenteumaascendnciacentrobrasileira? Comdatsarina'radatemosumanoobemprximadeumfluxodigestivoouprdigestivo no qual os ascendentes de uma pessoa aparecem como aqueles que a arrastam, puxam e mordem,umindicativomuitointeressantedosentidodapredaoedaalimentaonacadeiade contgiodoaparentamentoa'uwxavante,indciodeumacadeiaalimentarordenandooprincpio descendncia descendncia num sentido mais selvagem, errante em relao ao conceito de antropolgico, tomando na expresso a'uwxavante uma combinao entre o prescrito e o performativo.184
182 Usootermotransmissopartindodareflexosobreaddiva,nosentidodequetododado(poralgum) tambmtransformadoapartirdasnovasalianaserelaesnasquaisaspessoasestoenvolvidas,oquepassadose alterapelopresente,misturandoaspessoassemtornlasidnticas(verFalleiros2005).Tenhodefendidoumaleitura positivadoradetermoscomotransmissoetradio:noprecisolivrarsedelesparacriticarleiturasessencialistasa seurespeito.Qualquertermopodeserprejudicadopelossentidosquelhesodadoscomootermorelativismo,por exemplo,quesedistanciouprejudicialmentedateoriadarelatividade,precisoretomlosetransformlos. 183 Fuipicadonopumavezporumaformigaquecausoumeumadorintensaeduradouraportodaaperna,e disserammequesetratavadematsa,oquesetraduzliteralmentecomoquepica. 184 ComomedisseHiprdi:temdepesquisaradescendncia,osascendentes,paradescobrirsealgum a'uw uptabi. Mais argumentos sobre a relao entre os elementos performativos e prescritivos da descendncia sero apresentadosarespeitodasnarrativasdeorigemdoscls,nosubcaptulosobrerituaisdeaparentamento.
169
Estafilosofiaprdigestivadadescendnciapoderemeterantropofagia,numaconcepo protomodernistadotermoou,paraseusaraidiacarashiptesesqueapresentoetambm hiptesedo dravidianatoamazniconumacertaconcepodepredaoontolgica.Mas uma predaoontolgicaatuandonoseiodaprpriafamliaagntica.Porora,podesedizerqueotermo parececondizentecomaidiadeque,nasrelaesdeproximidade,aconsanginidadeotermo englobante, enoaafinidade.Mas,nestecaso,envolvendoumaespciede tropoendocanibal intensivo,fazendodametforacanibalalgonoexclusivamentehomlogoafinidade.Ouseja,a consanginidadejenvolve,emsimesma,adiferena.Assimcomoaunidademitooriginalj,em si,mltipla,dotadadediferenciaoindiferenciante. Emrelaoaesteproblemadotropoantropofgico,talveznoporacasonotaseque a distinoentrebrideserviceebridewelthnoseaplicaaocasoa'uwxavante.Explico:segundo ViveirosdeCastro(1993:186192),apartirdateoriadeColliereRosaldo(1981),nasbrideservice societies(nestecaso,amaznicas)prevaleceriaoprincpiodequeumamulherssetrocaporoutra mulher,umapessoassetrocaporoutrapessoa,sejacativa,sejamorta,oquedeumpontodevista deassociaomitoprticaentreafinsecanibaisdariaaoafimumaespciedecrditocanibalsobre aquelequerecebeumaesposa(masquenodoutramulheremtroca),colocandoesteaservio daquele.Istoporquenoacontecerianapaisagemamaznicaumaintercambialidademaussiana entrepessoasecoisastpicadeumabridewelthsociety,segundooautor. Com relao a isto, uma primeira ressalva (dividida em duas): o sentido maussiano de ddiva,porumlado,nocontrrionoodequesseintercambiaumapessoaporoutrapessoa, ouomesmopelomesmo.Poroutrolado,addivamaussianaenvolveumamisturaoucontgioentre pessoas,coisas,corpos185.Comisso,umatrocaentrecoisasdiferentesnoseriarealmenteuma troca,masumavinculaorecproca,doisvetoresinversosdecontgio.Isto,riquezasnoseriam (meramente) trocadas por noivas, ainda que (ou porque) a ddiva que algum d ligase intimamentesuapessoa,comoalgodesi.Addivanodeixadeserumfluxodepersonitude,no deixadeserpessoa. Umasegundapalavra:nocasamentoa'uwxavanteoperamtantoserviosdomaridoparaa famliadaesposacomseutrabalhoecaadiriosindodiretamenteparaelaeseusparentes,sendo eleoauxiliardosogronaconstruodacasaetambmvtimadaavidezdoirmodesuaesposa sobresuasposses(MayburyLewis1984[1967]) quanto oaspectopublicamenteritualizadoda ddiva da Adabatsa acomidadanoivaqueonoivoddepresenteparao padrinho de
185VerFalleiros(2005)paraumarecuperaodestedebateapartirdeMausseseuscomentadores.
170
186AAdabatsanoseriaanicaddivapblicaenvolvidanosritosdecasamento,contudo.Antesdela,comoacerto decasamento,queGiaccariaeHeidechamamdenoivado,existemconstantesdonsdebolodemilhooufeijodame danoiva,aindamenina,paraamedomenino(etambmparaofuturogenro)edonsdecaa:opaidomenino[] vaicaaredivideapresaaomeiocomafamliadameninae,quandojwapt(adolescente)este,depoisdecaadas especialmentevoltadasparaisso,vocasadamedafuturaesposaondeosdepositam(GiaccariaeHeide1972: 144145).Este,comosepodever,contudo,umcircuitodedoisfluxosentreafins,diversodaAdabatsaqueenvolveum opadrinhodanoiva, danho'rebdzu'wa. Tambmnodiadonoivadopblicoeemmomentoposterior,existeuma ddivadebolofeitapelamedanoiva,masestavaiparaodanhohui'wa(patrono)donoivo(GiaccariaeHeide1972: 176)queprovavelmente o datsimiwainh,portantoalgum domesmocl daprprianoiva. Oliveira (2011) tem informaes interessantes a esse respeito: segundo sua me e sua irm adotiva a'uwxavante, na aldeia onde acompanhouo Danhono,dmuitotrabalhofazerobolo(tsada'r),porcausadissoonoivonoteriaodireitode recusarocasamento:obolopresenteadoaonoivogeraumaobrigaodecasamento.Sendoosbolosnestaaldeiafeitos dearroz,atualmente,dizqueantigamenteeramfeitossomentedemilho,oqueassociadodescobertadomilhopor umamulherjuntoaosperiquitos.Outrasituaoreferenteaessesbolosfemininos,quenopudeobservaremcampopor estarentregueaumaoutraatividaderitual,simtricaoposta(emgnero)atividadenarradaporOliveira,foiacorrida das esposas dos danhohui'wa parapegarosbolosdestinados aeles,sendoqueessas mulheres eram ajudadas por homensdaclassedeidadeacimados danhohui'wa poca(tpa),os Tirwa (2010:5663).Perguntomeque mulherteriapegadoobolodemeu inhimiwainh. Enfim,enfatizaseadistinoentredonsfemininosbolose masculinoscaa.
171
Estacomidaserretiradapelo padrinho ou pai substitutodanoiva,seu danho'rebdzu'wa, que,comomencionadoacima,umirmodame(MB,MFBSetc.)danoiva.Estehomempode ser,coincidentemente,umpai(damama)outio(damama'am),umirmomaisvelho(dadub'rada) etc.doprprionoivo,porque,sendoirmoda me danoiva,membrodametadeexogmicado noivo.Este padrinhodecasamento e pai substituto recebea adabatsa,sendooresponsvelpor distribuiracarneparaascasasdetodaaaldeia(LopesdaSilva1986[1980]). AcompanheiumacerimniadestasnaaldeiaAbelhinhaemqueanoivavivianacasada irmdonoivoporsertsitsanaw(familiar)dotsa'omo(ZH)donoivo.Onoivo,tendoseupai juntando uma grande quantidade de caa para tanto, carregou o pesado cesto cheio de carne moqueadaauxiliadoporoutroshomens,incluindoseuprpriotsa'omo. Estecasoqueacompanheiumtantoatpicoperanteosexemplosdabibliografia(fundados emcasamentosdejovensrecminiciados),poissetratoudeumsegundocasamentoentredois adultos.(Houveinclusiveumburburinhonanoiteanterior,causadopelaoutraesposadonoivo,no queairmdonoivodiziaparaaoutraaceitar,poisassimeraseudahimanadz,mododevida,jeito deserauwxavante).Nestecasonossemanifestaumaaparenteconsumaodetrocadeirms, acompanhadadeddivaalimentar,comotambmumclaroauxliodo tsa'omo ao 'arewa (WB) para que este levasse o presente de casamento da noiva, sendo esta to ou mais familiar do auxiliadorquantoestedonoivo. Masoquedeveserressaltado,afimdeseconsideraroquesepassanaAdabatsa,sodois pontos.Primeiramente,ointrigantefatoetnogrficodacomidadanoivaacabarcaindoemmosde um parente consangneodonoivo(isto,damesmametadeexogmica).Emseguida,o feito etnolgicodeque,conformeafiguradocrditocanibalenvolvidonocasamento,talcrditoseja saciado(aomenostemporariamente)apartirdasubstituiodonoivopelacarnedecaadacomida danoiva.Numaimaginaoantropofgica,seriacomoseonoivosubstitussesuaprpriacarnepela carnedecaa.Ligandoosdoispontos,observaseque,mediadopelocasamento,oqueocorreno casoa'uwxavantequeonoivoentraemrelaoindiretacomalgumquepoderiaserseu (ou pai irmo )eoalimentacomonafiguraendocanibalmasagorademaneira,porassimdizer,extensiva (mediadapelanoiva). Nestecaso,acaaseriaumtropodoendocanibalismoou,nomnimo,deumcanibalismo imaginrioemqueasfronteirasentreaconsaginidadeeaafinidadeestariamnubladasporuma estratgiadecognao,aquelaquejuntaanoivaeseupadrinho.Ainstituiododanho'rebdzu'wa
172
transformaalgumquepoderiaserum irmo ouumoutro pai donoivoemum pai substitutoda noiva,quepassariaaserchamadoporelademama,pormmantendoumaevitaoatitudinal,ao contrriodarelaoqueelatemcomseuspaisuptabi. Paraonoivoumaoperaorecprocaeinversaaconteceria:algumdoseuladotornarseia, coma Adabatsa,seuafim,seu sogro.Masnemsempre.Porque,segundoLopesdaSilva,[u]m ''pai''(mmoumm'am187)nuncapodesetornarum''sogro'',dizemosXavante[m]asum irmopodeerealmenteconsideradocomotalpelo marido da Adab quetenhasidopintada[e ornamentada]pelomaisvelhodosirmos188 esassimocasamentomarcaumdistanciamento, umaseparaoentrehomensdomesmo''lado''(1986[1980]:97). Dessemodo, afiguraendocanibalmediadapelocasamentodeveserignoradasomentea respeitodeum irmo ,nodeum .LopesdaSilvaofereceumapossvelexplicaoparaissoao pai dizerquearelaoprecisaserestabelecidaentredoisindivduosqueestejam''separados'':sej estoseparadospelagerao,isto,sesommam/'ra,noprecisamsepararsenovamentepela instituio conceitual de uma relao de afinidade (expressa na adoo de termos recprocos mapre'wa/tsa'omo,ouseja,sogro/genro),oqueenvolveumaalteraodaterminologia edo comportamentoentreoshomensenvolvidos(1986[1980]:101102). Estaexplicaovlida,masacreditoquepossahavermaisuma:um pai eum filho no podemsertsiwabdzuumdooutro,isto,nosoconsideradoscomocompartilhadoresdemulher, masirmossim.Destemodo,parecenecessrioqueoirmodonoivoquepaisubstitutodanoiva deixedeser,portanto,umpossvelparceirosexualdesua filha substituta.Trocandoemgrados: quempraticaoendocanibalismofiguradosobreoutro,mediadoporumamulher,nopodepraticar aantropocomensalidadefigurada(sexual)mediadaporumamulhercomomesmooutro.Haveriaa umparoxismo,umavertigem,entreafinidadeeconsanginidade. Poroutrolado,issotambmpareceserumcorolriodaevitaoexistenteentresogroenora (tsaihi) porque,se pai e filho nodividemmulher,a esposa deveevitaro pai deseu marido. DiferentementedecomoglosaMayburyLewis(1984[1967]),queapresentaotermocomoirmda esposa (WZ, WFBD etc.), tsaihi a palavra que ouvi sendo usada para nora (SW), tambm chamadadedatsani'wa.Foimeditoquedevesetrataranoracommuitorespeitoeevitao,ainda queeladevaestaraserviodossogros(isto,aqualquerumquesejachamadodemamaporseu esposo).
187LopesdaSilvaoptapelousodo~paraindicaranazalizaodevogaisdepoisdem,opoquenofaodado quetodavogaldepoisdemennazalizadaema'uwmreme.
188Isto,pelodanho'rebdzu'wadanoivaqueumdu'radadonoivo. 173
Na escola de uma das aldeias, por exemplo, durante certo perodo, trabalhou como cozinheiraa esposa dofilhodeummeu dub'rada,eos irmose primos desteapareciamvezou outranahoradamerendaescolarparapegarumpoucodacomidaqueelatinhafeito.Esseservio decomidacertamenteseopeousubstituiaquelaoutraformadesecomerquetambmfaz seu sentido figurado no portugus brasileiro. Vez ou outra, tambm, o marido desta mulher, tsirwanhono(isto,meucompanheirodeclassedeidadeetambmdemetadeexogmica,porser Po'redza'ono),vinhaminharesidncianaaldeiaacompanhadodesuaesposaqueseportava,em relao a mim (sobretudo na presena dele) em plena atitude de vergonha. Certa vez, quando estvamosos tpa nomatoensaiandocantosparaumritual,outro watsirwanhono (meu no e mama do marido destamulher)fezumapiadaarespeitodacarnequeestetinhatrazidoparao lanche,dizendoqueera tsaihinhi (isto,carnede nora).Istosooucomofaltaderespeitoeo maridocertamentenoachougraa.Ouseja,almdaproibiodeendogamiaclnicaedarelao entreparentesdegeraescontguasemetadesexogmicasopostas,tambmparecehaverumtabu conexoaoanteriordarelaoentresogrosenoras. Um parntese sobre as relaes alimentares entre homens e mulheres: Lzaro Tserenhemewdissemeumavezquenosedeveaceitarcomidadasmosdeoutrasmulheresque nosuaprpriame,suaesposaouentoalgumamulhermaisvelhadomesmocl.Nuncadairm oudeoutramulhercomoanora,porexemplo.Casooutramulherfaacomidaparavoc,eleme disse,vocdeveseservirdiretamente,pegaracomidavocmesmo.Casocontrrio,ficafraco. atransmissodacomidadamodeumamulherparaamodeumhomemquesecercadestetabu. Tomadadestengulo,acomidamenosmetafricadoquemetonmica,vetordecontgioperigoso entrecertoscorpospessoais.Tambmparecehaveraumaquestodeiniciativa,dequem pega, mrami, captura. Pois aceitar uma oferta por iniciativa de algum parece, tambm, aceitar ser capturado. Segundooqueoutros medisseram, afirmandoquerecebiamcomidadada por suas cunhadas, creio poder estender a permisso da esposa cunhada. Entretanto, conforme pude observar, a proibio da irm no parece valer para os no iniciados: os adolescentes no H comumenterecebiamcomidatrazidapelasmosdesuasirms. Deve ser dito, quanto relao de afinidade hierrquica, que a vergonha 189 presente na relao entre sogros e noras valeparaarelaoentre sogras e genros:quandoestiveem uma
189 O dicionrio de Lachnitt (2004a) d para vergonha os termos danhits, dawadz, rowadz. S a palavra respeito, datsimiwadz (correlata reflexiva dos termos acima) foime ensinada a partir de um ocorrido, uma brincadeirainapropriada,noqueaoutrapessoa(um wapt)retrucou:emahtaatsimiwadz?,algocomocadseu respeito?,disseramme.
174
terceiraaldeiaemcompanhiadeumwatsirwanhono(damesmametadeexogmicaemesmaclasse de idade), este ficouclaramente constrangido ao descobrir queuma mulher a quemele estava tratandoportbe(tia,FZ)comaqualsemantmumarelaofrancaeamigveleranaverdade suasogra,jqueumprimoseumuitoprximoestarianamorandoafilhadamesmamulher. Percebesequetodasessasproibiesprescritivasdependemdarelaoperformativaquese temcomaspessoasemquesto.Umapessoanumadeterminadaescalageracionaldeparentesco podesertantoumsobrinhodemulher(BSetc.)quantoumgenro,tantoumada'rawaptdehomem (ZDetc.)quantouma nora,tudocondicionadopelograudeproximidadeentreessaspessoas,e entreelaseosfamiliaresqueasunemamim:certamenteo genro da irm demeu pai podeser consideradoalgumtoprximoamimqueelapassaaser,conseqentemente,minhasogramas talvezeusejamaisprximodeladoquedele,entopossoterrelaesamigveiscomela(aindaque nosexuais,certamente!)sempreocuparmecomavergonha.Semcontar,obviamente,ofatode que,antesdesetornarminhasograuptabi(casoeumecasecomsuafilha),umamulhercertamente poderiasertratadapormimcomotia(doladopaterno).Avariaoestemfunodaestratgiade aparentamento que eu escolher, ou que meus familiares escolherem, mas as escolhas no so totalmentelivres,elasseencadeiam,umaacarretaefeitosobreaoutra.Almdisso,existemalguns tabusmaisfortesqueosoutros,um chefe podenoseimportarcomqueosoutrosvopensare envolverseromanticamentecomafilhadairm,masissopodejustificarodesgostoeoabandono deoutros.ComojdiziaMayburyLewis,aindaalheiosteoriasdacorporalidadeesestratgias decognao,oparentescoa'uwxavanteumaquestotantodepolticaquantodegenealogia (MayburyLewis apud Lopes da Silva 1986 [1980]: 169). Alm disso, essas solidariedades e conflitosseentrecortamporoutrosdeoutraespcie:osdeclassesdeidade,porexemplo.Neste caso,umapessoacomquemsemantmumtipoderelaonombitodoparentescopodemanter outronodasclassesdeidade,bastasabercomoacionaroseixosdiferentes.Porexemplo,amesma mulher supracitada a quem trato por tsaihi e que mantm frente a mim vergonha e evitao, dependendodasituaopodedirigeseamimcomsolidariedadefrancaouincentivo,chamandome dewatsi'utsu,porsermosdamesmaclassedeidade. Devoltacadeiaalimentaretriadoparentescoa'uwxavante,tomemseostermospara avs(FF,MF,FFB,MFBetc.,bemcomoFM,MM,MMZ,FMZetc.),quesoomesmotantoem refernciaaoladopaternoquantoaomaterno: 'rada (meu av,minha av), da'rada (termono possudo).Oquefazmisturar,naterminologiarelacional,oquedeveriaestarseparadosegundoa definiodasduasmetadesexogmicas(pormdeacordocomcertasprticasdravidianas,como 175
salientadoacima). 'Rada querdizeranterior,primeiro(Lachnitt2003). hi'rada ou dahi'rada refereseaosantepassados(aosvelhosdahianteriores,osprimeirosvelhos),oquemuitasvezes aparecenodiscursoa'uwxavantecomobisavs,masquepareceterumcarterbemmenospreciso emtermosgenealgicos,fazendorefernciasobretudoamortos(norestrito,portanto,aFFF,MFF etc.)almdeserusadonosistemadeclassesdeidadeemrefernciaaos patrocinadoresdos patrocinadoresdaclassedeego:umindicadordoparaparentescopresentenestesistema. Assim,sealinhaagnticaaindafazsentidoparasepensarosa'uwxavanteconsiderando LopesdaSilva(1986[1980])eVianna(2001)arespeitodalinhagem,esuarelaocomaunidade dogrupodegermanossobretudoquandoosprpriosa'uwxavanteusamotermolinhagem,por outrolado aprofundidadedostermos deparentesconoalcanamaisqueumaquartagerao genrica,dahi'rada,comquemasdistnciasgenealgicassoimprecisas.Oquenoimpossibilita, emtese,quesefaaacontadasdistnciasapartirdeoutrostermos,porexemplo:avdopai,av doavnemquesetracemgenealogiasmaislongascomoatraadapelosinformantesdeVianna (2001). Quantoetimologia, hi,almdesereferiravelho,antigo,tambmquerdizerossoe perna. Mantendo em mente a filosofia corporal a'wuxavante, talvezpudesse sepensar nos velhostantocomobasequemantmosA'uwXavanteempcomoaparteduradocorpocoletivo, pormaquelamaisprximadoalm,jqueaossadaoresquciodeumdahibaquejsefoi.Esse tipodeanalogiaapressada,demandariaumainvestigaosobreossentidosdosossosparaos A'uwXavante.Masaimportnciadosvelhosparaelesjfoidocumentada,osvelhossoaqueles quemaisconhecemavidaa'uwxavante,sempresoreferidosquandosetratadealgumaverdade queolocutornosabeexplicar:assimporqueosvelhosdizemquedeveser,osvelhossabem,os velhos gostamounogostamdequealgosejafeito.Osvelhosestomaisprximosdopoder original,dapotnciacsmica.Porquevieramprimeiroeporqueesto,decertaforma,retornando paral. AliteraturasobreosA'uwXavanteafirmaqueoshomensidososocupamumaposio polticoeconmicahorsconcoursmaisdistantesdosproblemasdofacciosismo,comumaposio dehonranogrupodomstico,muitoprovavelmentechefiadoporseugenro(MayburyLewis1984: 147148)almdetersidoditoquenotmmaisnomepessoal,jqueteriamdoadotodos (Lopes da Silva 1986: 8485). velariam pelos valores mticos gerais e estariam cada vez mais prximosdosancestrais,aindaqueseusespritossejamrogadospelosparentesvivosembuscade auxlio (Graham1990:8591).Essasconclusesdosetngrafosmaisantigos,olhadasapartirdo 176
meutrabalhodecampo,parecembastantecategricas,operandoumavisoesquemticasobrea velhice, o que importante na comparao com outras idades. Mas devem ser vistas em suas nuances. Os velhos continuam tendo voz ativa na poltica e sua palavra a mais respeitada. Continuam tambm sendo referidos, ao menos na relao comigo, por seus nomes prprios, principalmentenomesemportugus. Quantoaossonhos,quemeparecemumachaveimportanteparaacompreensodomundo a'uwxavante,comumquesesonhecomaspessoasdeparentesmortosconhecidosemvida.Seu dahibauptabi,suapessoamesmo,pareceterumaduraoemsetratandodavidaapsamorte. Vanderlei Dadu, algum tempo depois da morte de Jos Pedro, de acordo com sua funo de 'Wamartede'wa,sonhoucomo av,narrandoemseguidaosonhoqueteveno war daaldeia Belm, passando para todos uma mensagem de bem aventurana e tranqilidade a respeito do falecido. Outro exemplo, ainda que no seja de sonho com um velho: quando viajei junto de TseredzarenoshospedamosnestamesmaaldeiaBelm,elepediumeparaajudloapuxarum cantoparaoswapt,jqueambosramosdanhohui'wa,cantoqueeletinhacaptadoemsonhocom seuprimofalecido. Almdoreconhecimentodapersonalidadedomorto,osencontroscomosmortosemsonho noparecemsermarcadosporinimizadeouantagonismo. Issoacontececomamaioriadosencontrossonhadosatravsdosquaisse pegam cantose nomes, j que noso apenas os mortos que cantam e transmitem nomes em sonho,como j comentado. O canto sonhado por Tiago, por exemplo, com seu co saudoso que voltou para lamentar sua prpria morte (cometida por outrem, no pelo prprio dono), parece muito mais marcadopelaamizadedoquepelainimizade.OuosonhodeLzarocomoveadoquecantava porquesesentiasozinho.EmesmoosonhodeAdoTop'tirocomumacanodeseufilhoque,no momento,estavalongedecasa.Nessesentidoossonhosa'uwxavanteparecemsedistanciar,ainda quenoradicalmente,dossonhosdosParakan,documentadosporFaustocomoumaextensoda guerraatravsdeumaapropriaoefidelizaodeuminimigoonricoporummatador (Fausto 2001).Alis,aassociaoentresonhoe 'Wamartede'wa,donodamadeirade 'wamar edesuas caractersticaspacificadoras(ao 'Wamaritede'wa estinterditaavingana:sealgumbrigarcom voc,nopodebrigardevolta,disseramme),distanciaomaisdaguerraedoassassinatodoqueo sonhadorparakan.Mesmoque,nocasoParakan,hajatambmummovimentodepacificaodo inimigopormatravsdeumhomicdiocometidopeloprpriosonhador.Oquehemcomum entre ambas as capturas onricas que a pessoa encontrada em sonho a'uwxavante, como o 177
xerimbabo(animaldeestimaosemelhanteao danhimidzama a'uwxavante)parakan,tambm noparecerecebernadaemtrocadaquiloqued.comoseodahibauptabi(aprpriapessoa) daquele que est em condio de alteridade reconhecesse abertamente aquilo que pode evitar reconheceremviglia:queestemdvidacomaquelesquepermaneceramgentemesmo. Amsicacapturadaemsonhoa'uwxavantetambmpareceatuar,aseumodopeculiar, numaproduoritualdointerior(Fausto2001)emligaodiretacomoexterior. Poroutrolado,oaspectodefiliaoadotivaexistentenocasodosonhoparakansetorna maisvagoparaocasoa'uwxavante,jquenoseestabeleceumvnculopermanentecomas pessoasencontradasemsonhocadasonhopodeenvolvercontatoscompessoasdiversasdeum sonhoanteriorenemsempreocasodeserelacionarcomumcativoouadotado.Talvezessas nuancesdosonhoa'uwxavantepossamdizermaisarespeitodasnuancesdesuafiliaoadotiva. * Emsetratandodetantoscruzamentosentreaparentamentoecontraaparentamento,ainda possvelconsideraroaparentamentocomolaoimportantedentrodeumaaldeia.Muitasvezesouvi naAbelhinhaqueestaeraumaaldeiafamiliar,porqueleramtodosdamesmafamlia.Naaldeia BelmouvidiscursosemelhanteendereadoamimpelocaciquePauloCsarTsere'u'r:queeuera dafamliaequealieutinhavriospais,tios,irmos,tiospais,tiasmes,porqueaaldeiauma famlia. Assim,afamiliarizao,apesar detudo,pareceserbastante pervasivadentrode uma aldeia,oquepoderiaaproximarumpoucoaaldeianoodecasalvistraussiana.Entretanto, issomepareceaindaincompleto,tantonosentidodequeasfamliaspossamseestenderparaalm dasaldeiasquantonosentidodequesomenteoparentesconosuficienteparaquesemantenham asrelaesa'uwxavante.Casocontrrio,porquesedetertopormenorizadamenteemrelaes supervenientes, como as das classes de idade, e seus complexos rituais? De qualquer modo, o aparentamento,comotenhoprocuradomostrar,vaialmdoparentesco. *** Rituaisdeaparentamento EmmeioaestaentrecorporalidadetointensadosA'uwXavanteeseuscontgiosecortes naredesciocsmicadeaparentamento,diversosrituaiscomooritualdeafinidadedaAdabatsa, jbastanteescrutinadoacimasoumjeitodemanifestarcortesecontgiosdemaneiraordeira, 178
almdeseremtcnicasdeconstituiodoscorpos.Pretendotratar,agora,tantodealgunsatos ritualizadosdocotidiano,queenvolvemconvvio,transmissesdecomida,comerjunto,presentes, banharsejunto,contarhistriasetc.,quantoderitosmaiscentrais,svistasdetodos,jogosque envolvem toda a comunidade alde, festas dat que operam fortes marcaes dos cortes ampliadosdoparentescoa'uwxavante:aquelesquemostramatodosaoperaobinria(sobre possibilidadesternrias...)dasoposiesexogmicas.Sorituaisemqueasmarcasdosditoscls a'uwxavante tornamse explcitas, como o Oi'o e as etapas finais do Danhono (j depois da furaodeorelha)emqueseproduzemeutilizamasmscaras wamnhor.Oquejtinhasido sinalizado por Giaccaria e Heide (1972) e foi observado por Marcelo Spaolonse (2006) em etnografiafeitadoritodoDanhonoemSangradouro. Para tratar desses temas, achoimportante apresentar um quadro doque MayburyLewis chamou de categorias de idade a'uwxavante, afinal estes so ritos estritamente ligados ontognesedapessoa(sendoquefocalizareinapessoamasculinanoqueconcerneosrituaisde marcaoclnicanoqueparecemserexclusividademasculina). Gauditano(2010)mostraasfasesdavidaa'uwxavantecomoessenciaisparaaconstituio dapessoa,especialmentedopontodevistadasnarrativaspessoais.Asfasesdavidaassimcomoo lapsodetempoquemarcaasdistnciasentreodar,recebereretribuirdaddivanumsentidomais geralparecemmeimportantesnacompreensodosentidodavidaa'uwxavante,noscortesda rededavidaquesotantomarcadosporpresaseddivasquantodefinemquem(equando)presae predador,doadorerecebedor.Temporalidadequetalvezestejaligadaquelamitohistriapendular daqualsefalouanteriormente,aquelaestruturanarrativa(Medeiros1990)quepoderiaserlida porolhosestruturalhistricos: Assimcomootempoe aseqnciasofundamentais paracontarummito ou executarumrito,aestruturatambmumdesenvolvimentoprodutivodascategoriasede suas relaes. No evento so produzidos termos novos e sintticos e as categorias elementaresmudamseusvalores.Avidadasociedade,deumamaneiraabstrata,gerada atravsdacombinaodequalidadesopostas,pormcomplementares,cadaumaincompleta semaoutra(Sahlins1990[1985]:121). Comissonoqueronecessariamentemereferiramudanasdevaloresnascategoriasde idade a'uwxavante. Mas que se lembre do movimento pendular aludido a respeito da 179
espacialidade mitohistrica a'uwxavante em sua relao de idas e vindas paragem mito original,amenoroumaioraproximaodapotnciacsmica,parasepensarotrnsitoporentreas idades.Bemcomoasmudanashistricasaludidasarespeitodoabandonodecertosrituaiscomo odanominaofemininaeasituaomisteriosadosTop'dat. Alis,umadessasmudanas,quepareceteravercomaatualrelaoentrepequenasaldeias ealdeiassede,podeservistanacontemporneainterrupodaprticadodzmor(queGauditano grafacomozomo'ri190)expediodelongaduraoaocerradoemqueaaldeiasefragmentavaem grupos domsticos (MayburyLewis 1984 [1967]). Uma prtica afetada pelo encapsulamento territorial (Vianna 2001) das demarcaes de terras indgenas e pelo fortssimo avano dos latifndiosedoagronegciomonoculturalnaregioa'uwxavantenosltimosanos.Aindaassim, naaldeiaBelmfoimeditoqueem2007houveumdzmordeumasemana. Enfim, o dzmor no deixaria de ser, como nota Gauditano, um fato social total (Gauditano2010:112)envolvendocomplementaridadesentrehomensemulheres,oposiesentre metades, transmisso de conhecimentos e o aprendizado de prticas sociais generizadas, diferenciandomasculinoefeminino.Aprendizadoquetrazaoextensivodadoocartersazonal dessasexpedies,quepoderiamdurarmaisdems,eaexperimentaopermanentedoambiente pelascoletorasecaadores(Gauditano2010)aquiloquepareciaintensivonasidasxamnicas paragemmtica. Refletir sobre a questo do masculino e feminino a este respeito seria tentador, principalmenteaoselembrardacontinuaodasupracitaointerrompidadotextodeSahlins: porissoqueametforadomasculinoefemininotemumpapeltoprivilegiado(1990[1985]:121). Sahlins referese ali inconsistncia sincrnica porm consistncia diacrnica do rei estrangeirodasilhasdoPacfico,quepodiaseranlogotantoaofemininoquantoaomasculino, localeestrangeiro,articulandoosintercmbiosentreestesmbitosnumaeconomiadachefiatotal (1990[1985]:130grifomeu).Emcontrastecomessasituao,asindoquea'uwxavante,sua partedotodo,parecesituarseemoutraspessoascoletivasemagnificadas:asclassesdeidade. SobretudosetomarmosoquedizLopesdaSilva:osXavanteusamomodelomasculinodas classes de idade como modelo para sua sociedade total e [...] as mulheres so includas neste
190Enocabeaquidecidirpelagrafiaoupronnciacorreta,apenasimaginarapossibilidadedevariaodialetal, jqueGauditano(2010)fezsuapesquisajuntoahabitantesdePimentelBarbosacomquemnoconvivi.EmPimentel Barbosa(excetoaaldeiaBelm,cujaorigemdiferenciadajfoialudida)adotouseumagrafiaqueanotaasconsoantes zessemseussuplementos(comonodzets),comojfoinotadoarespeitodatesedeEidetalii(2002).Parao termodzmor,tomocomorefernciaodicionriodeLachnitt(2003).
180
sistema de classes de idade por extenso (1985[1980]: 137 grifos meus). justamente em relaoaosciclosdasclassesdeidadequeosritosdoOi'oeasmscaraswamnhorsoatualizados. interessante apontar para a vinculao das marcas clnicas e exogmicas a momentos diacronicamenteopostos(oanterioreofinal)destesmesmosritosdasclassesagmicas,esua vinculaoaoshomens.Oshomensparecemser,naconcepodosXavante,osdepositriosda culturaedatradio;parecemser,segundoaideologiamasculina,osresponsveispelaexistncia deumavidapropriamentesocial.(1986[1980]:147).Issofariacomqueosistemadeclassesde idadefosseconcebidocomoapartedotodoaomenosapartirdetrsdiferentesngulos:como ummodeloparatodaasociedadeXavante;comoumncleodeatraodefasesdistaisdavida, oraafetadaspelofacciosismo(ofimdainfnciaeavidaadulta),oraprximasdoalm(comoos velhos);ecomoenglobamentodarelaodegneropelaordemmasculina.Poroutrolado,tomara partedotodonodeixadeserumavisoparcial.Poisseoshomenssoatradio(encenadano meiodaaldeia),talvezosolhosquevemessatradiosejam,deumacertaperspectiva(ada periferiadaaldeia),femininos,comosever. Todavia, retomese o quadro das categorias de idade, para fins didticos, adiante. Ele apresentaumsistemadeclassificaesetrias,nosdivididoporgnerocomotambmdividido entrefasesdavidaedamaturaopessoais.Sobreestequadrocirculamasclassesdeidade, formadasporgeraessucessivas,cujainsgniaacompanhaapessoaportodasuavida(aclassede idadeumcoletivoaoqualapessoaseafiliaedoqualmuitoraramentesetransfere 191).Ovalordo tempo,nestecaso,aomenosnoqueconcerneasclassesdeidadeparaMayburyLewis,temaver com o fato de que elas seriam mais atuantes da fase medial da vida (desde o wapt at o danhohui'wa)eperderiamimportncianasfasesposteriores.MayburyLewis(1984[1967])opea vidacerimonialdestafasedavida,voltadaparaoapaziguamentoeparaaharmonia,vida polticadafaseadulta(dapredu)eseusfaccionalismos.Estahiptesejfoibastantecriticada (verVianna2001eFalleiros2005arespeitodocartercompetitivodasclassesdeidade)mascreio que,oportunamente,podeserretomada,aindaquecomnuances,seconsiderarmosqueosA'uw Xavantedizem,comoouvialgumasvezes,queafestaacaba,navidadohomem,quandoeledeixa deser danhohui'wa setorna dapredu. Eseconsiderarmosquepoltica,paraeles,podenoser exatamenteomesmoqueparans. LopesdaSilvaapresentaoquadroesquemticodascategoriasdeidadeseparandoambosos sexos, quadro reproduzido por Vianna (2001: 145) e que adapto aqui alterando os genitivos e
191 Ouvifalardeumcasoououtrodehomensquemudaramdeclassedeidade,sobretudoquandoprximosda adolescncia.
181
algumasgrafias: CategoriasMasculinas CategoriasFemininas ai'ut("beb") Ba'tre("meninapequenina"entre2e3anos aproximadamente) ba'n("menina"at9anosaproximadamente) adzarudu("mocinha") adaboutsoimb(noivae"recmcasadasem filhos")
dapreduptoudanhohui'wa("jovem pi'**("mulhercasada") adulto") dapredu**("pessoamadura") dahi("velho,velha") bomnotarqueestequadroaparecesimplificado,jquehgradaesemdiversasdessas categorias,sobretudoemtransiesrituais.Porexemplo,depoisquefuramaorelhamasaindano terminaramocicloderituais,osadolescentessochamadosde heri'wa ou hireri'wa. Quanto estonolongoprocessodebaterguanorio,sochamadosde wat'wa.Almdisso,existem gradaes para outras fases, como 'riti'wat ('riti'wa novo), por exemplo. Graham considera tambmosmortosou,melhor,osimortais(thealwaysliving),comooutracategoriadeidade: himana'u'.Essesimortaissoacessadosemsonho192,promovendoacontinuidadeentrepassadoe presente (Graham1990) demodoquealinhadavidaparecetomarfeiescirculares,oumesmo semicirculares. * Alis, adistinoentre dahi e dahimana'u' termoque,peloqueouvi,nodeuso genrico entre os A'uwXavante: em Sangradouro dizem que aprenderam este termo com os padresetalvezseuusosejamaiscorrenteemPimentelBarbosa,ondeGrahamfezapesquisadeve sernuanada.Porquecomosearelaoentrevelhoseimortaisouantepassadosfossetoprxima queamortenoseriamaisqueumritoconfirmatriodeumapassagemquejacontecia,oponto final desta passagem (e no a passagem em si, como nas metforas crists com a quais os waradzu estamos acostumados). Como se a velhice fosse uma maneira de deixar a vida de mansinho.Osvelhos,osantepassadossoquaseelesmesmos:quaseoutros.Enfim,tudosepassa
192Masnoselessoacessadosemsonho,comotambmvivosdistantes,animais,outrasgentesetc.,comojfoi notado.
182
comoseosvelhosfossemosantepassadosagora,comosevalessetambmparaelesaquelafrase quemefoiditasobreomeuvirargente:vaivirarquandovouvirar?agora! Porqueosvelhosconvivemmaiscomosantepassados:elessoosgrandessonhadores,que osencontrammaisvezesemsonhoeosencontrarammuitasvezesemvigliano Darini ouno Wai' eatravsdospoderesassimmaturadosejospersonificaramemmuitosrituaisquando mais novos. E tambm por que os conheceram pessoalmente entreconheceramse, entre corporificaramse,conheceramdiretamenteaparagemmticadeondevieram,tendolcomeles convivido. EraesteocasodeJosPedroTsere'ri'r.Ovelhomedisse,emrpidaentrevistaquefizcom eleauxiliadoporVanderleiDadu,quetinhanascidoemTs'repr,aaldeiadeorigemdapresena mitohistricaa'uwxavantedoladooestedoRiodasMortes,conformecontamGiaccariaeHeide (1972). # Rituaisnarrativosdeaparentamento Aproveito o foco na categoria de idade dos velhos para uma digresso a respeito de narrativas a'uwxavantes sobre antepassados fundadores atravs das quais se atualizam, pela memriamanifestaisto,oralmenteperformada:ritualvnculosdeaparentamentoquepassam pelarelaoentreosnarradoreseseusvnculoscomgrandeslugares,grandeshomens,grandes nomesesuarelaocomopoder. De acordo com uma verso da mitohistria de travessias fluviais a'uwxavantes, os A'uwXavanteteriamsedeparadocomumgolfinhoouboto(pedzai'y193)espirrandoguapara cimanomeiodorio.IstoteriaassustandoosA'uwXavanteporquepensaramqueeratubaro194, dissemeLzaroumavez,aomenarrarasuaversodestahistriadavindadosA'uwXavante
193Maisumanotalingstica:hojeemdiaosadultosemaisjovenscomquemconvivinopronunciammaisoy comoindicaodicionriodeLachnitt(2003,2004a,2004b).Originalmenteumavogalquesoaentreoieouda lnguaportuguesa,comalnguanaposioparaueoslbiosnaposioparai.Nalnguadehoje,anosera faladapelosvelhos,ondesegrafaynotextopronunciaseunafala.Muitasvezesosfalantesalteramagrafia quandoescrevem(emcadernos,lousasetc.).Porexemplo,syryre(pequeno,pouco)pronunciasecomosurureesvezes escrevesecomosurure. 194Continuandoacomparaocomosdadoshavaianos,otubaroa'uwxavanteumdivisordeguasecoletivos,ao contrriodotubarodeFijioudoHavaquegovernaecaminhasobreaterra(Sahlins1990[1985]:111).Seopoder deforadahumanidade,aquielesemantm afastado(paraquepossaserpredado?),dispersandoa.Enquantoque naquelasilhasdopacficoelevemdoalmmareseinstalasobreaterra.
183
desdeolesteeomar(oqueelelocalizaemSoPaulo)atolestematogrossense.Issoosteria separadodefinitivamentedosXerente.Decadaladodoriounsgritavamparaosoutros:cuidebem domeufilhoqueficouparatrs,cuidedaminhairmquefoicomvocs,cuidedomeuav,do meu neto etc., segundo Lzaro, e foram cada qual para um lado. Mas para Lzaro isto teria acontecidonapassagemdoAraguaia.ParaGiaccariaeHeide,foinapassagemdoRioDasMortese olderdaquelesquecompletaramatravessiaeraButs(GiaccariaeHeide1972:23).Paulafaznotar queMayburyLewis,diferentementedeGiaccariaeHeide,contaoutrahistria(comofazLzaro): talaparioteriasidonopr,RioAraguaia,jquefoiemGoisqueosXerenteficaram(Paula 2005:225226).Devesedizerqueparecenoexistirumaversodefinitivadestaseparao do pontodevistaA'uwXavante:teriasidonoAraguaia,teriasidonoRiodasMortes? Advidaouareplicaodosriosremeteaumpadrocaractersticodonarrarhistrico a'uwxavante,quesenotaadiantearespeitodasaldeiase,principalmente,dosgrandeshomensde grandesnomes:ummistoderepetioetransformao. MasoquesequerpororaafirmarqueovelhoJosPedroveio(mito)praticamentedireto dolocaldeconstituiodosA'uwXavantecomogenteindependente(parcialmente)deoutras. Estehomemoriginousenaprpriaorigema'uwxavante.VirgniaRo'opewmeconfirmouisto emoutraspalavras,enquantoseusogroJosPedroaindaestavavivo:umantepassado,viveu comosantigos,temmaisde100anos. JosPedromerelatouumasriedenomesdeantepassadosqueseriamseusavs,domais velhoparaomaisnovo:Tsa'amriwaw,Tomotsuwaw,Tserenho'r(queviveuemHu'uhi,antiga aldeiadaregiodeMariwatsde)eButswaw(queviveuemTs'repr).Tsa'amriwawteriasido o irmomaisvelho quecriouosoutrostrs,criouatosParinai'a,disseVanderleiDadu.Jos Pedro e Vanderlei apresentaramme assim uma verso do mito de origem do mundo em que Tsa'amriwaw teriacriadocomseuprprioesprito,utilizandopaude 'wamari,osoutrostrs personagens,seusirmosmaisnovos.TodosPo'redza'onocomoelesJosPedroeDadu,seus antepassados. Os primeiros waw, por seu turno, teriam sido os filhos destes irmos Po'redza'ono! Quantorelaocomosrios,notesequeTs'reprteriasesituadomargemoestedoRio dasMortes,portantobemafastadadeGois,margemlestedoRioAraguaia.Massegundooutro informante,BaioqueTsaranat,quandomerespondiasobredequemteriaherdadooscargosde Pahri'wa e 'Wamartede'wa,dissemequevieramdo bisav Buts,queveiodeGois.Talvezo mesmoButs,Butswaw,destacadoporJosPedrocomoumdeseusavsdeTs'repr.Onome 184
deButsteria,assim,atravessadoumentreriosdemitohistriaa'uwxavante. Jos Pedro viria a falecer meses depois, confirmando em fim o processo de tornarse antepassado.NopdeassistiraoDanhonodeBelm,quehaviasidoantecipadoporsuacausa,j quediziaesabiaestarabeiradamorte.MasestanoseriaaltimaconversadeVanderleiDadu comseu av antepassado.Eleseencontrariamaisvezescomeleetambmoutraspessoasem sonho.Numdessesencontros,algumchorando(choroquefoipegoporDadu)disseaeleparaque recuperasseasterrasdeorigemdosA'uwXavante,terrasqueaindanohaviamsidodemarcadas, incluindoolocalexatodaantigaaldeiaHu'uhiedeTs'repr,pertodeRibeiroCascalheira(MT). EquepertodeSoFlix(MT)estariaaterraindgenanodemarcadaparaondeTsa'amriwaw teriamandadoosParinai'aeondesedeuaaventuradestadupla.Porcontadisso,Dadupreparava um relatrio para a associao War, com quem estabelecera uma parceria. Cosmopoltica indigenistamuitoemacordecomosencargosdeVanderleiDadupois,almde 'Wamartede'wa, sonhador,Dadutambm Pahri'wa, renomadafiguraa'uwxavante.assim,comolder,que Dadufaz,deseusonho,armapoltica.Osonhopassaacomporamitologiaa'uwxavante,fontede dadosparalaudosfavorveisaterrasindgenas,tomandocomissoumsemprerenovadoflego cosmopoltico.ComojeramossonhosdeJernimo(Medeiros1990)eWarodi(Graham2003 [1995]).
185
paramemostrarque,naprhistria,surgiramdoisgeradoresentreduasvoresde'wamar cruzeiro do sul, segundoele e uma de jatob, a'iwede, ao lado. Entre elas brotaram dois redemunhos,cadaumparaumlado,edelessaramoprimeiroPo'redza'onoemdireoaopoentee oprimeirowaw emdireoaonascentedosol.Estestrocaramentresiesposasfeitasdopaudo 'wamar.SeriamelesSa'amriwaweTomotsuwaw.PauloCsarnosabiadizerqualdodoiserao primeiro Po'redza'ono e qual o primeiro waw, at os velhos se confundem, mas eles transmitiriamseusnomesaosseusfilhoseassimpordiante. Tiveainformaodeoutro waw,LeandroUptswwari,dequeoDeus a'uw seria Tsa'amriwawequediferentedo Jesus waradzu quenotem ,ums,porque cl waradzu no sabe ,casacom teriacl:Po'redza'ono.UmPo'redza'ono,BaioqueTsaranat,confirmou cl irm estainformaodivinaeclnica,afirmandoqueolugardeTsa'amriwaweranowar,emoposio aodeJesus,nacapelalocalizadamargemexternadaaldeia,atrsdasltimascasasdeumadas pontasdaferraduraqueelaforma,londetambmestoaescoladaaldeiaeopostodesade. CapelanaqualoprprioBaioque,Wamaridzubtedewa,ministramissascomoagentepastoral. Isto posto, diferente da verso de Jos Pedro, na histria de Paulo Csar a afinidade anterior: ambos surgiram dos redemoinhos prximos a essas duas rvores e com elas fizeram pauzinhosparacriarasprimeirasmulheres.NaversodeGiaccariaeHeide(1975a)destamesma histria,Butswaw teriapintandoseuspauzinhosdepretoeSa'amri(sic)devermelho,depois trocandoosparaquecadaumdesposasseasmulheresdocloposto,sendoopretoPo'redza'onoeo vermelhowaw.Tirandoessarefernciascores,aversodePauloCsarmuitosemelhante contadaporGiaccariaeHeide(1975a)195 apartirdeJernimo,queerawaw comoPauloCsar. Masparasabercertinho,temdeperguntarparaoJosPedro,finalizouPauloCsar.Perguntar paraaqueleque,contudo,dariaumaversodiferentedasua. Pois at nas narrativas as diferenas (e semelhanas)clnicas so enfatizadas, seja pelo prprio discurso, seja pela divergncia encontrada. Na primeira narrativa, uma relao originalmenteentrepaisefilhosdariaorigemrelaoentreafins,oquepropeumaanterioridade consangnea,porassimdizer,paraasrelaesdereciprocidade,indciodeumaincestuosidade protohistrica(incestuosidadenotoextrema,contudo,quantoaqueladamitologiaedasexo poltica havaianas estudadas por Sahlins (1990 [1985]), que tenho usado como ponto de comparao).Nosegundocaso,aafinidadejsurgenaorigeme,mesmoqueoDeussejadeum cl(ocldooutro),suapertenaaumclcondicionadapelaafinidade,pelofundamentodese 195Almdequenotextodosmissionriosexisteumavozdoalmquefazcomqueosherisfaam... 186
casarcomamulherfeitapelooutro.Doispontosdevistadiversosconstitutivosdamesmaestrutura (como diria o mesmo Sahlins). Comparados, eles pem em jogo duas potncias extremas: a consangnea e a afim. A primeira reforando o concentrismo da estrutura, hierarquizando, englobando e capturando a outra. A segunda reforando o diametralismo da mesma estrutura, equalizando,distribuindoetrocandocomaprimeira.Masnenhumadasduasdandocontadotodo, inclusiveporquedelasdesdobramseoutrasrelaes,comoarelaodealteridadeeoposioentre Tsa'amriwaw eJesusnarelaoentrecentroeperiferia(oladodeforadaperiferia,umgrau intermedirio entre o lado de dentro da periferia da aldeia e a externalidade mxima de uma paragemmtica). Assim,aquelaperspectivaconcntricadametafsicaocidentalqueShakerEid(Eidetalii 2002:61,146,passim)sugeriratomarcomcautelanosentidodenotomlacomoaexplicao nicadasrelaesa'uwxavantepodeentoserretomadacomo umadasperspectivaspossveis dosprpriosA'uwXavante. Jogo de perspectivas semelhante a este, colocando em questo concentrismo e diametralismo,aparecenosclssicosensaiosdeLviStrauss (1975[1958]) sobreAsEstruturas Sociais no Brasil Central e Oriental e As Organizaes Dualistas Existem?, mostrando, por exemplo, como os Winebago da Amrica do Norte eram divididos em metades que, contudo, tinhamviseshierarquicamenteopostasumadaoutrasobreanaturezadesuasociologiaespacial: umaviaaaldeiadivididaaomeioemduasmetades,outraaviadivididaentrecentroeperiferia.De modoqueLviStraussantecipavaemalgumasdcadasapercepodeSahlins(1990[1985])sobre anecessidadedeconsiderarosparadoxos(nocasodoautorfrancs,ododualismoternrioouas tradesdisfaradasdedades)comototalidadescujaapreensosempreparcial,surgidosdojogo entreperspectivasdiferentessobreamesmaestrutura. Devoltaaosantepassadosa'uwxavante,bomlembrarqueButstambmmarcapresena nahistriamticadosPo'redza'onodeSangradouro.SegundoCornioTserenhi'mTop'tiro,teria havido dois outrs Buts(ouButswaw,conforme variao emsuaprpriafala).Numa das versesquemeenunciou,dissemeterhavidoumprimeiroButswaw,oprimeiroquechegou,e maisoutrosdois.Naoutra,elemencionouapenasdois,colocandoTsihrircomosucedneoaeles. UmdosButsfoio cacique queautorizouapuniosexualno Darini smulheresmal comportadas(sobretudopoucogenerosasoude maridos poucogenerosos)eocanibalismono Tsa'uri'wa.PoisamortenoTsa'uri'waacarretaria,nopassado,oconsumocanibaldomortopelos velhos.QuandoparticipeidoTsa'uri'waemSangradouro,muitosmefalavamqueeupoderiamorrer 187
nacorrida e queseriacomidopelosvelhos.Essasfalastinhamumcertotomdebrincadeira e desafio,falavamparameassustar.Entretanto,nofalavamsemseriedade.GiaccariaeHeide(1972: 174175)contamumaversodeumaconversadessas,replicandoodebateentreumnetoesuaav quediziajtercomidocarnehumana,equeeramuitomaciaegostosamaisamasculinadoquea feminina,porqueestatemmuitoleitemelhorquecarnedecaa. Seria,pois,acarnedopredador,dohomem,melhorqueadosoutros?Dequalquerforma,a mortenoTsa'uri'wapareceexpressarumfracassoempassardefasedavida,emamadurecer,oque sepodeconjecturarapartirdofatodetalmorte,conformedisseavelhadeGiaccariaeHeide,no poderserchorada.Entregaseosossosparaamedomortoeelaosepulta,semchorar.Semseus dahi,ossos,estemortoperduraria,diversamentedequemsetornavelho,dahi,eantepassado. SegundoCornlio,orepastocanibalerafeitocommuitorespeito,osvelhoslimpavamcom algodoasmos,abocaeacarnequecomiam.Oliveira(2010:78)sobreoTsa'uri'wa,relataqueem algumasaldeiasojirauparaseassaromortoaindafeitonowarafimdeassustaroscorredores maisjovens,equeolquidoougorduraquesaiadomortocanibalizadoerapassadonascrianas paraquetivessemlongevidade. QuantoaosegundoButs,conformeumadasversesdeCornlio,foiaquelequechegou paraacabarcomapoucavergonhadocanibalismoedaspuniessexuais,edarfimsguerras constantes.Issoteriaacontecido durih,antigamente.Depois,notempodeTsihrir,tudo j estavaempaz. AversodeGiaccariaeHeidedahistriaorala'uwxavantetambmfalaemdoisButs: olderdeTs'repreumoutro,aquelecomquemTsihrirteriacindidoaproximadamentequatro dcadasdepoisecomquemteriasereunidopoucotempoaseguir(GiaccariaeHeide1972:2324) importantenotarqueamesmahistriaoraldeGiaccariaeHeidefalaemduasTso'repr, estandoasegundalocalizadanaregioatualmentechamadadeParabubure.Asdcadasqueacabo demencionarsomeusclculoscombasenosdadosdeclassesdeidadeapresentadospelosautores missionriosnaquelemesmotrechocitadodesuaobra,jqueociclodasclassescostumeiramente marcaarelaodasnarrativasa'uwxavantecomapassagemdotempo,supondoumatransiode cinco anos, em mdia, entre cada classe. No se trata, contudo, de fazer clculos e encontrar precisoquantitativanestahistria.Masdemostrarque,mesmomitolgicos,aquelesancestraisso tambmhistricos,suacontinuidadepodeserrecuperadapelacontagemdosciclosporassim dizer,genealgicosouparagenealgicos196dasclassedeidade,demodoquenoparecepossvel
196 Conformeoparaparentescoordenadodeformacircularnasclassesdeidadequetoma,doparentesco,palavras como filhos em referncia aos patrocinados e bisavs ou antepassados em referncia aos patrocinadores dos
188
afirmar que haja antepassados clnicos com quem a relao dos vivos no pode ser traada genealogicamenteligandoassimumvivodeuma linhagem aovivodeoutra,mesmoqueto distantes.Porque,almdacontagemfeitaatravsdasclassesdeidade,ashistriasoraisprovm dadosapartirdosquaiscertagenealogiadeparentescopodesertraada:osgrandesnomes,grandes homensque,comosevaseguir,repetemseerenovamse. Em relaoaisso,olivrodeGiaccariaeHeidequeregistraahistriaoraltem uma preocupaounificadoradomaterialedosdadosdeSangradouro,SoMarcosetodasasaldeias xavantes,somandoaelesdadosdediversosmissionrios(1972:911),demodoquetalhistria oralpodeserumacompilaodediversasoutras. J o procedimento a'uwxavante de compilar a histria parece seguir princpios diferentes, dotados de certa fractalidade temporal197, uma replicao hologramtica no tempo, presentesemsuatransmissodenomes,quereplicanomesempessoasdegeraessubseqentes. Assim,quandocontamumahistriaantepassada,nuncaficatoclaroaomenosparamimde qualpessoaestejamfalando.Umapessoapodeserduas,trs.Oupodeseramesma,jquemuitos A'uwXavanteafirmam,comomedisseumavezTseredzar(cujonomefoiherdadodo avAdo emvida,comotambmdecostume),queomortovaiparaaaldeiadosmortosedepoisrenasce, reencarnandoquandooscabelosdeseusparentesestiveremcompridososuficientedepoisdoluto (paraoqualrasparamacabea). Como o nome a'uwxavante um atributo marcadamente encorporado existe uma eficciaperformativaentrecorpoenome,poisospaiseparentesdacrianaescolhemparaelaum nomeapropriadoaseucorpoeapessoacorpo,dahiba,entoexistecoernciaentreoretorno dodahibauptabieoretornodonome.Noquealmaenomesejamamesmacoisa,nemquea pessoapreciseestarmortaparaqueseunomevoltevida.Masalma,corpoenomecombinam, misturamse,caembem. Nesse sentido, podese dizer que Tsa'amriwaw e Tsa'amri, Butswaw e Buts, Tomotsuwaw eTomotsusejam,cadadupla,amesmapessoabemcomopessoasdiferentes.A primeiraaversomagnficadasegunda:ousodotermowaw,grande,parecemeumaespcie detitulaodemaiorhonraria.Comodizemos,porexemplo,Alexandre,OGrande. Lembresequewawtambmumadaspalavrasparasogro,mastudolevaacrerquea
patrocinadores. 197 Eaquitomofractalconformeaidiadepessoafractalaplicadapor Wagner(1991) sobreosgreatmen grandeshomensmelansios,idiachaveparaanoodemagnitudeepessoamagnificadadeSztutman(2005),aqui retomadaparapensaramagnificaodessaspessoasnotempo,atravsdareplicaotantoemnarrativaquantoemvida.
189
grandeza,enoaafinidade,oelementocomumaessescasos.O sogro grandioso,aposio mximadoafimgrandiosa,masnoanicaasergrande.Tsa'amriwaw noo sogro de Tsa'amri,aindaque,porserumgrandehomem,devaserconseqentementesogrodemuitagente. DigoistosemdiminuiraimportnciadaafinidadeparaosA'uwXavante,expressanafigurado sogroaocontrrio,issomostraqueaafinidadeaindaumagrandepotncia. Oeptetodewaw noaplicadosomenteaessestrscasos.Porexemplo,CamiloDuts, netouptabideDuts(dequemherdouonome)irmomaisvelhodeAdoTop'tirodissemeque Alexandre,grandelderdeSangradouro,seriafilhodeumirmodopaidessesdoishomens.Essa afirmao,contudo,develevaremcontaasaproximaesporcontgioeconvivnciaqueoperam nafiliaoenagermanizao.SeriacomodizerqueDutseAdosomaisfamiliaresentresique de Alexandre, mas a preciso genealgica a respeito de quantos pais e quantos tios estariam envolvidosentreelesquaseirrelevante.Acreditoqueomesmomecanismodefuso,deentre personitude,queoperaaoperatambmnopassardasgeraes.ApartirdoquemedisseCamilo, porexemplo,entendiqueAlexandreerafilhodeTserepts,mencionadoporele.Elemecorrigiu, contudo,dizendoqueAlexandreeraoprprioTserepts.Eulhepergunteise,dessemodo,opaide AlexandreseriaTsereptswaw,eCamiloconfirmoudaquelamaneiraa'uwxavantequeaindame mantmemdvida. Dvidaqueparecefazerpartedoprprioprocessodeaparentamentogenealgico.Eque sugerequeassimcomoasdistnciaslateraissoencurtadaspelomaioraparentamento,tambmso asdistnciasgeracionais,quandosetratadeelostraadosatravsdeparentesvelhosoujfalecidos. Aindasobreoeptetowaw,eunosaberiamedirquantahonrateriaeuaoserchamadode Tsa'rwawparamimmuita,afinal,seradotadoporpessoasque,logodeprimeira,jmedoo nomedeumgrandeparenteumsinaldegrandegenerosidade.Soulevadoacrerqueparaos A'uwXavantetalhonranosejapouca,jqueagrandezadapessoatambmmedidaporseu tamanhocorporale,comodisseVitrio,sougrandocomoseuirmoGuilhermeTsa'rwawesua famliadenetosdosTsa're'wa(ossuperhumanosdomundoA'uwXavante).Inclusive,estenome, Tsa'rwaw,sempremefoiusadoemsituaesdemaiorrespeitoeformalidade.Nopoderiadizer o mesmo para oapelido de 'Riwaw,dada sua conotao jocosa. Mas, ainda assim, talvez o engraadosejatambmocheiodegraa.Afinal,atmesmoparaVanderleiDaduwari,Daduum apelido que faztroa desuabarrigagrandee, aomesmotempo, onomedeum importante antepassado. Quantoaosnomesdosantepassadosmticos,acreditoterouvidooutrasmenessobretais 190
heris fundadores de pessoas que falavam apenas em Tsa'amri, por exemplo, e no em Tsa'amriwaw.CreioquetambmsejaesteocasodoSamrimencionadoporPoloMller(1976: 178)homemqueteriainventadocertocolarnotempomticocujaposseestariaagoraemlitgio, conformeocasonarradopelaautora.MuitasvezesosA'uwXavanteomitemaoclusoglotalou elapassadespercebidaparaseusouvinteswaradzu,demodoqueavariaoentreTsa'amrieSamri (lembrandoqueadiferenaentretsesapenasumaopogrficadivergente)bempossvel. Nessaprojeoemcadeiadenomesdeantepassadospareceoperaralgicaa'uwxavante quefazconfluirdoispersonagensnumsequetambmpodefazercomqueumsedividaem dois. Amesmalgica,alis,parecevalerparaasaldeias,comoasduasTs'repr,sobretudosea narrativatratardeoutrostempos,temposlongnquosque,todavia,nosotemposnovividos: afinaloprpriovelhonarradorviveuos,noestfalandodeouvirdizer.Earepetiodonomede umaaldeiatambmmostraoquantoseunomefezhistriaeengrandeceuse,engrandecendoas. LembremosqueTs'reprteriasidoaprimeiraaldeiadepoisdatravessiadoRiodasMortes,aldeia grande,commaisdemilpessoas.Aldeiamagnificada.Grandezaquesinaldesuapotncia csmica. Enfim,osufixowaw quevemjuntoaonomedosgrandeshomensmitohistricosparece no s ressaltar sua condio de grandes lderes e criadorestransformistas, mas tambm sua condiodepessoasmaioresqueumas.Aprpriamultiplicaohistricadeseusnomessinal desteengrandecimento.Seriam,porassimdizer,multipessoas.Advidaouadivergnciaquantoa suashistriasacabamsendosinaisdesuamultiplicidademagnfica. Oque,emmenorescala,acontecetambmcomosA'uwXavantehodiernos,vivos,que tomariameretransmitiriamosnomesdeseuspais,irmosdameeavs. * Arespeitodosnomesdosvivos,otrabalhodeLopesdaSilva(1986[1980])apresentauma apreciao detalhada da nominao a'uwxavante, sendo as noes de ddiva maussiana j flagrantes em sua obra (Falleiros 2005), o que remete, sobretudo, ao prestgio de homens que tinham(edavam)muitosnomes.Umhomemimportantetrocavadenomesmuitasvezesnavida porquetinhavriosnominados,isto,vriaspessoasparaquemdavaseunome,eporsedestacar comolderemseusdiversosaspectos:caa,oratria,rituais,boasalianaspolticas.Assim,tanto um grande homempotencializavaumnomequantoumnomeengrandecidotornavasesinal de prestgioparaquemorecebiaou,melhor,oencorporava. 191
Quem conhece a importncia dada por Lopes da Silva ao papel do danho'rebdzu'wa (recrutadoentreos irmos da me),natransmissodenomesenasrelaesdealianaa'uw xavante pode intrigarse com a comparao entre os nomes dos grandes homens mticos e a nominaocotidiana,jqueosnomesdosantepassadosparecemsereplicarapartirdafiliao agnticae,naobradeLopesdaSilva,tambmfalasearespeitodeumanominaocruzada. Poisquantoaocontrasteentrealiana,cognatismoeagnatismonanominaomasculina, devemseconsiderartrsfatores.Oprimeiro,jexpostoporLopesdaSilva,queanominaopelo danho'rebdzu'wa restrita a uma das fases mediais da vida, a do 'riti'wa, circundada diacronicamentepormomentos demaiorduraoemquenomessosonhados outransmitidos principalmenteporpais,avs(sobretudoosdamesmametadeexogmica)oumesmocaptadosem sonhos com antepassados pelos adultos, que os podem adotar ou transmitilos para outrem. O segundofatorumaparenteenfraquecimentodestainstituiodenominao,peloquepercebiem campo.NasentrevistasquefizcomdiversoshomensdasaldeiasAbelhinha,Belmealgunsoutros, hquaseumaausnciadenomestransmitidospordanho'rebdzu'wa,sobretudoquantomaisnovos forem os homens. As mudanas de nomes por parte de um homem parecem tambm menos freqentesemcomparaocomosdadosdeLopesdaSilva,ouoshomenslembramsecommaior dificuldadedeseusoutrosnomes.Tiveaimpressodeque,muitasvezes,mantmseomesmo nomeportodaavidaadulta(ounegligenciamseasmudanasaoesquecimento),oquetambmest ligado cristalizao dos seus nomes em certides e documentos de registro geral do Estado. Verifiqueimuitoscasosdejovenshomensquetiveramoutrosnomesquandocrianas,masque mantiveramumsegundo(etalvezderradeiro)nomevindoprincipalmentedeorigemagntica.No posso demonstrar agora esta constatao, nem algumas hipteses decorrentes dela, o que demandariaumtrabalhoaindanorealizadocomosdadosdeminhasentrevistassobretransmisso denomes.Masdeixoaindicaodequeumdoselementosrelevantesdestatransformaopodeser aadooamplamentedifundidadenomes waradzu, peranteosquaisosnomes a'uw somuitas vezeschamadosde sobrenomes,oquepodeoperarumasntesedaprticabrasileiradesetero sobrenomedo pai comaprticaa'uwxavantedatransmissoagnticadenome,inclusiveaose adotar um segundo sobrenome (muitas vezes oprimeironomedo pai).Essaadoodenomes waradzu concomitantesaos a'uw (quemuitasvezessomaisdeumsimultaneamente)projetaa alteridade e a variao nominal para um plano sincrnico, sendo que costumava ser preponderantementediacrnica(comasucessodemudanasdenomeeapassagempelonomedo danho'rebdzu'wa).CombasenaleituradeLopesdaSilvaenoqueouviemcampo(equepontuo 192
aquiealidescrevendoaorigemdonomedemeusinformantes),suponhoquepareceserprtica predominanteentreosA'uwXavantedasaldeiaseterrasindgenasquefreqenteianominao agnticacombinadaacertoefeitocognticomenor,dadaaadoodenomessonhadosporparentes maternosouadvindosdeparenteseantepassadosporpartedeme.Enfim,anominaoagnticaj erafortementepresente,conformeoqueselcomLopesdaSilva(1986[1980]).Aautoranotaque, naausnciadenomesdo danho'rebdzu'wa (seestejostivessedadotodos),podiaserecorrera nomesdeparentesdesteouentodeparentesagnticos.Almdisso,nocasodoritualdemortede um waradzu oudeumaonanacaaaosbraosquemdavaonovonomeparaum aib (algumdosexomasculino)erao pai menosparaos predu,queseautonomeavam(Lopesda Silva1986[1980]:8287).Inclusiveaprpriaidiadequeanominaoporviadodanho'rebdzu'wa estariasendoabandonada,aomenosemsuarealizaocerimonialdeoutorgadonome,jtinha sidosugeridaporMayburyLewis(1984[1967]:296297),comonotaLopesdaSilva,queadmite quemuitasvezesosA'uwXavantelhediziamqueodanho'rebdzu'waapenaspintavaseuafilhado, emaisnada:Assim,parecequeaosolhosdosXavante,odanho'rebdzu'wa/danhimamat198visto maiscomoumpaicerimonialdoquepropriamenteumnominador(LopesdaSilva1986[1980]: 109110grifomeu)(abaixo,danho'rebdzu'wapintandoafilhadonaaldeiaBelm):
193
cruzadavia danho'rebdzu'wa parece,portanto,algomuitomaisestruturalmenteprevistodoque efeitodeumasupostadegenerao.Noqueoirmodamesejaumnominadorprivilegiadomas simqueelepodeser um padrinho ,um cerimonial,umquase pai e,portanto,algumqued pai nome.Lembrese,alis,queaprpriagravatinhaquemarcaestarelao,ots'rebdzu'a,segundo Giaccaria(1990),teriaumarelaocomosmeneapaternidade.Somandoistoimportnciada patrilinearidadeparaoparentescoa'uwxavante,aidiadepaternidadeparece,assim,sermarca fundamentaldesuasestratgiasdeaparentamentoapartirdanominao.Oquetornariaaagnao englobanteeacognaoenglobada.Aindaque,comohdesesupor,aconteaminversesnesta hierarquiaeaalternnciaentreosplospotenciaisdafiliaoedaaliana.Estatensoentrefiliao ealianapodesernotria:seasformasdetratamentoentreumnoivoeo padrinhodesuanoiva tomam forma daquelas que se tem com um sogro, os A'uwXavante ainda so capazes de reconhecer,aomenosemsuasexplicaesparaoantroplogo,queodanho'rebdzu'wadaesposa umpaisogro,cujarecprocaserfilhogenrodele,comomedisseumavezTseredzar. Imaginoqueaadoodenomeswaradzupossaoperarsegundoessamesmalgicafiliativa. Istoocorrenatransmissodeumnomewaradzuoudeumapartedestenomedepaiparafilhos, comosugereFernandes(2002:5253)porexemplo:AlexandretemcomofilhosAlexandro, Alex,Alda,Aparecida,AlmerindaeAlice,oquetambmaconteceemalgunsdosnomesdas pessoasqueconheciequeaparecemaolongodatese:umarelaometonmicaentreosnomes. Ainda,acreditoqueanominao waradzu apareacomoumaespciedefiliaoadotiva: adotar nomedeWaradzupodeserumprocessodecontgio,defiliaoaosWaradzu. * Enfim,transmitindoseusnomes,osa'uwxavantetambmmisturamsuaspessoas,revivem nas, continuamnas, afinal so partes de uma mesma superfcie vvida. E engrandecendo seus antepassados,elesfazemdopassadootempodapotncia. Devoltahistriaoral,seaquelacontadapelosmissionriosfoiunificada,referindosea virtualmente todos os A'uwXavante, a genealogia traada por Vianna em Sangradouro precisamentelocalizada,fazendo,todavia,refernciaaosmesmospersonagens.Escritaapartirde doisoutrsinformantes(quenodeixaramdetersuasdiscordncias,comonotaoautor),Vianna constataqueButserairmodeTserenho'r,tendoaqueledadoorigemaosPo'rdza'onodaaldeia Belm (de Jos Pedro) e este dado origem aos irmos Tsihrir (av de Ado Top'tiro) e Tseretomodzats,ambosnotopodasmaisimportanteslinhagenspahri'watede'wadeSangradouro (Vianna2001:334).Comisso,podesedizerqueambasaslinhagensgenealogicamenteaparentadas 194
deBelmeSangradouro(conformeosdadosdeVianna),comparandoseosdadosdeSangradouro aosmitoscosmognicosouvidospormimemBelm,teriamemcomumosmesmosantepassados, sendopossveltraartalcomunhoapartirdeumpontodado.Assim,dopontodevistaa'uw xavante, relaesgenealgicascomaorigemmticaclnica,apesarderelativasnoabsolutas podemsertraadas,aocontrriodoquepostuladopeloqueseconvencionouarespeitodanoo de cl aplicada por MayburyLewis (1984 [1967]: 120 e 220221). As relaes com esses antepassados no deixaria, provavelmente, de sofrer os efeitos do contgio familiarizante do aparentamento, um aparentamento que faz um encontro entre mtico e genealgico. Pois o aparentamentoentreessesgrandeshomenspareceaconteceratravsdarepetiodessesnomesno tempo.Assim,seatcnicacorporaldoaparentamentosednareduodedistnciassincrnicas,a memriafamiliarizantesednareduodasdistnciasdiacrnicasentreestaspessoas. EmcasodefamiliarizaoentreJosPedroeAdoTop'tiro,porexemplo,estapodeser traada mitogenealogicamente. Alis, ambos so (dentre outros tede'wa) Pahri'watede'wa e 'Wamartede'wa.Oquenoaconteceporcaso,nempormeraprescrio.Masporumagenealogia performativaemdoissentidos:nosincrnicoeatminhapresenaentreeles,comofilhodeume netodeoutro,fortalecearelaoenodiacrnicoporqueasnarrativastendemaconvergirem direoaosgrandeshomens.OparentescoentreJosPedroeAdopode,assim,sertraado,ainda quenonecessariamentecalculado.Ambosnososimplesmentedescendentesdohomem(oude umdoshomens)quecriouomundo.Descendemtambmdeumasriedeoutrosparentescomuns situadosentreeleseoprimeirocriador.ComparandoaoexemplohavianodeSahlins(1990[1985) em que a mitologia se apresentava genealogicamente e a prtica do parentesco, performativa, apropriavasedestagenealogiaadaptandoopassadosvicissitudesdopresenteocasoa'uw xavanteapresentatantoumefeitoperformativooperandonaprpriagenealogiamticaquantoum efeitogenealgicooperandonaperformancedoparentesco,constituindosuadescendncia. Alm desses personagens, outro grande nome de antigamente, durih, teria sido o de Pahri'wa,comosevaseguir,ttulodeumimportantecargoritual.Nosepodeafirmar,aqui, sobreoqueteriavindoprimeiro,seonomedoantepassadotornouseumttulo,ouseottulo passouaserusadocomoonomedeumantepassado.Maspodeseafirmarqueocargoremeteaos ancestrais,equetalrelaodoPahri'wacomaancestralidadetransformaoprpriopersonificador docargoemalgummuitontimodosantepassados.IndciodistooquemedisseDadu,certavez: osPahri'wasovelhos,explicandomeporqueosrecminiciadosnocargonasfestasdasquais participeiemBelmjusavamgrossosbrincosnaorelha,bemmaislargosdoqueosdemais 195
iniciados.Poisosbrincosa'uwxavantecostumamiralargandocomaidadedousurio,comopude observar,eosbrincosdosPahri'wasolargoscomoosdosvelhos.Ouseja,oPahori'wamais queiniciado,maisqueadulto(dapredu),elejdahi,velho.Maisumamarcadarelaodiretafeita entreavelhiceeaancestralidade,masagoraaorevez:porseraencorporaodeumancestral,o Pahri'waestmaispertodavelhice. PudeouvirnaaldeiaAbelhinhaumalistadenomesdosantepassadosporpartedosvelhos AdoTop'tirioeseuirmoDuts,arespeitodesuaascendnciaa'uwuptabi.Lembromedeterem traado uma pequena seqncia que vinha de Butswaw, passava por Tomotsu, chegando a Tsihrir.TambmmencionaramPahri'wa,masnocompreendiseulugarnaseqncia(seriaeleo Pahri'wairmodeTsihrirconformeagenealogiadeVianna?).Nopudeobtermaiorpreciso desses dados dos velhos,nem daquele queservia comointrprete,j queos velhos no falam portugusourecusamseafalarportugus(dequalquermodo,estomaisprximosdesualngua ancestral).Eaindaqueointrpretefalasseportugus,nemsemprecompreendiaminhasperguntas, ounemsemprepodiadeterminaraprecisodasinformaes.Elemeconfirmouvagamentequea seqnciaapresentadapelosvelhosseriaemordemdescendentedefiliaoumera'radooutro. De novo, oaparentamento cria suas dvidas: estas seqncias nem sempreidnticas de ancestraiseseusnomes,tratariamdeumgrupodesiblingsmtico,comonaversodeJosPedro eDadu,seriam pais e filhos comonestaversoou,enfim,afinscomonasversesquecolocam Tsa'amriwaw parelho a Tomotsuwaw? Perspectivas diversas constituindo as mesmas relaes estruturais.Eaordemdosnomes,podeseinverter?ButspodeestaracimadeTomotsu?Porque no,jqueumnetopodemuitobemganharonomedoav? Lembraronomedosantepassadosmostrarsuafamiliaridadecomeles,umindciodeque se est familiarizandoos. Porque o nome, para os A'uwXavante, um instrumento de familiarizaoemcontinuidadecomocorpoenoemoposio,comonosfamososcasosj setentrionais(confiraMelatti1976eDaMatta1976sobreestaoposio,ecomparaocomocaso a'uwxavanteemFalleiros2005).Notenhodadossuficientesparasaberseestesnomes,Sa'amri, ButseTomotsusousadospelosA'uwXavanteatualmente.Ousesuacargaseriatopesadaque noseriamaispossvelsuportla,afinaltodonomea'uwxavanteumpeso(LopesdaSilva1986 [1980]) e os mais novos, sobretudo as crianas,podem no agentar.Apenas naaldeia Belm conheciumTserenho'r:EmlioUmntsTserenho'r,queherdouoprimeironomedopaidopaie osegundodopaidoav,emprovvelparentescocomJosPedro.Emlio,almdeserPahri'wa dosHtrdaaldeia,umhomemgrandeeforte,umdosmaisbemcotadosnascorridasdetora 196
(foi considerado como promessa de salvao de uma das corridas de tora em Belm para o desfalcadotimedenossametadeagmica199),conseguindocorrermuitocomumpesonosombros umhomemforteobastanteparaseunome.EmPimentelBarbosateriavividoumSerenhor 200 (Eidetalii2002:80,124),umgrandecontadordehistriaouhistoriadordopassado.Masno sefazmenoanenhumvivocomestenome.JPoloMler(1976)fazmenoaochefedaaldeia deAreesnoinciodosanossetentachamadoSamri.Desconheoseaindacontinuavivoousej passouparaoladodosantepassados.Alis,seaindaforvivo,evelho,talvezjsejaumantepassado. NaAbelhinha,Camilomedissequeumhomemdaaldeiacomqualeunosabiaprecisarasrelaes de parentesco Pier Rodolfo Mra'rih (nome a'uw sonhado por seu pai, segundo ele), Po'redza'ono, um dos mais ativos caadores da aldeia, tendo me dado algumas aulas sobre o assunto201vinhadeTomotsu,enessesentidonoprecisouseerafilho,netooudescendentedeum antepassadochamadoTomotsu.JoprprioPierdissemequeseupaisechamavaBaianoTserepts (primo de Ado Top'tiro), o que o coloca num possvel encadeamento agntico com aquele TsereptswawdeAlexandreTeserepts. Enfim,passadorecenteepassadodistantesemisturam.Seatosvelhosseconfundem comosnomesdoprimeiro Po'redza'ono edoprimeiro waw,comodissePauloCsar,eesses nomespassaramdepaiparafilho,entosuaausnciaentreospaisefilhosdehojepodesertambm indcio da confuso.Talvezreativlossejaassumirmuitopublicamente,atravs donome de algum,asuaprepondernciasobreaorigemeaposiodesualinhagemedeseuclnestaorigem, oqueseriaumaprovvelfontedeconflitodelegitimidade.Seriapoderdemais,riscodemais. Sehumaimportnciapolticanatransmissodenomesemultiplicaodapessoaoudas pessoas,essaoperaopodetambmensinaralgomaissobreafilosofiapolticaa'uwxavante.A
199Paraascorridasdetoramaisimportantes,comoasquefechamcertosrituais,osA'uwXavanteacionamumarede dealiadosecompanheirosdeclassedeidadeemetadeagmicaemoutrasaldeias,buscandoauxlioparadividiropeso datora.AcompanheiosaldeesdeBelmemextensasligaestelefnicasnoorelhodaaldeiaparaasquaissempre mepediamcartestelefnicosemprestadoschamandoomaiornmerodepessoaspossvelparaafesta.Noepisdio mencionadoacima,contudo,ametadeagmicaopostanossafoimaiseficienteemjuntarumaquantidademuitomaior decolaboradores. 200Ofonemadiferenciadodoonosentidoqueoprimeirotemumasonoridadeprximadaqueleque,emportugus brasileiro,grafadocomoopoinclusivefeitaporMcLeodeMitchell(2003).Acontecequenafaladosmais jovens,principalmenteemSangradouro,o soamuitoparecidocomo o.Nosl,parecesercomumoouvinte waradzuconfundirosdoissons,ouentoalgunsA'uwXavantegrafaremoprimeirocomoosegundo,dadodetalhe queosdiferencia(otrema). 201EeulheajudadocomseusestudosparaoEnem.
197
respeito do pensamento poltico amerndio, PerroneMoiss (2009) faz meno a uma histria waiana,agestadeKailawa,grandeldermticodonordesteamaznico,emquealgosemelhanteem termosdereplicaodenomeacontece,marcandoumainverso:osegundoKailawaque,nose sabe,talvezsejaoprimeirotransformadoabandonaoshbitosassassinos,guerreiroseagmicos dopredecessoremnomedeumaeradepazetrocademulheres.Estemitoregistraria,conforme notaaautora,umafilosofiaamerndiacontraopoderextremodoEstado.Umpoderdefazerguerra Sociedade,parausarumaterminologiacaraleituraqueSahlinsfazdeClastresemORei Estrangeiro(Sahlins1990[1985]).PoisagestadeKailawaecoanocontrastetraadoporCornlio entreosdoisButs(ouButswaw),oprimeiroqueautorizaraviolnciasepunies,ooutroqueas proibira.AssimcomoomitoanalisadoporPerroneMoissfaladepolticadonordesteamaznicoe suarecusaemescolherentreaunificaoeafragmentao,ahistrialembradaporCornlio parececonterumafilosofiaa'uwxavantesobreopodereaautoridade,mascomumporm.O Butspermissivoanterioraorestritivo,aindaqueoqueelepermitasejaaviolncia,apunioeo canibalismo.OButsrestritivoposterior,controladordospoderesdeviolnciaextrema.Revelaria istoumaanterioridadedanoodepoder,superadapelofimdocanibalismoepelosupostofim dapuniodasmulheresnoDarini?Ouaproibiodessesatosviolentossetratariadeoutraforma empoderadadeautoridadeamansadora?Aindaqueumaautoridadeantepassada,ausentedecorpoe talvezdenome(comojdito,desconheoseonomeButscontinuasendousado).Dequalquer modo,comodiriaPerroneMoiss,arelaoamerndiacomoEstadonointeiramentenegativa. E,pelomenosnestecaso,estarelaoaparecenumdevirpassado:asnormasdehojesoseguidas porcontinuidadecomopassado.Issonoquerdizerquesigamumaleiimutvel,comosugeriu Clastres(2003[1974]).Porqueasleissotambmburladas:tivenotciadequemulheresainda participamdoDariniemSangradouro,oqueseria,portanto,umaquebradospadrespostospelo segundoButs.Todavia,seriaumprosseguimentoeumareafirmaodocomportamentopermitido peloprimeiro... Ao invs desimplesmenteserecusaremaescolherentreaautoridadeeafaltadela, os a'uwxavantepodemtermofontesdeautoridadedivergentesaquemrecorrerparaburlara autoridadeoquenodeixadesersuamaneiraespecficadenoescolher,comodiriaPerrone Moiss(2009).Assim,termaisdeumchefeemaisumacondiooriginalderefernciapodeser tambmummovimentocontraoUm.Poroutrolado,seasautoridadesestonopassado,osvelhos soumdevirantepassados,portantomaisprximosdaautoridadeedaeficciasimblicatotal.Sua palavraquaseumapalavradeordem. 198
# Outroindciodarelaodiretaentrevelhoseantepassadosque,comendo,aquelescomem comecomoestes.Istoacontecenocotidianoemqueosvelhossosempreosprimeirosaserem servidos, e tambm nos ritos de Wai'a e Darini, incluindo o datsiwaiwre, ritual de cura que Giaccaria (1990) chamoudexamanismocoletivo.Comemtantoacarnequecapturada nas caadasdoDariniquantoacarnequecaadaecolocadanoterodaaldeia(buracocavadono centroparaorenascimentododoente)no datsiwawiwre,paraque Danhimite aquelequeda vida, diretamente do extremoleste, onde est o comeo do cu (Eid et alii 2002) restitua o dahibauptabidodoentequesaiuparacaar(seformulher,paracoletar,demodoqueosvelhos comerosuacoleta).Vriosantepassadossoconvocados,atravsdeoraesfeitaspelosoficiantes dorito,paraajudaratrazerodoentedevoltae,comacarnequeoutrosiniciadosaoWai'acaam, trazsetambmoprpriodahibauptabidodoente.Estacarneser,nofinal,comidapelosvelhos (Giaccaria1990).Emtodosos Darini eoutrascerimniasligadasao Wai'a osvelhoscomema carne dada para os antepassados (Rosa Bueno 1998). como se comessem com e pelos antepassados,comosefossemosprprios.Osvelhos,enfim,predamcomoosantepassados,comem oquefoicaadoparaeles,soospredadoresvivosemlugardeumapotnciadepredaoqueest alm. Queosantepassadossejampredadorestalveznofiquemuitoclaro.Afinal,noseriameles justamentepredadosnossonhos,atravsdosquaisdonomesecantosparaossonhadores?Sesim, entosepodeentreverumconflitoentrepredadores.Cujocasoextremo,porsinal,tomaformano conflito entre o humano e a ona pela posse do fogo e sua reprodutibilidade tcnica pela coletividadehumana.Afinal,aona,almdesergentenaquelapoca,eratambmoavdoheri mtico,comoserapresentadonocaptuloseguinte. Almdisso,comosugesto,podesesuporquepredartambmprdar,todopredadorser presadealgumpoisdistribuirosfrutosdesuacolheitasangrenta,devidamentecortadoses vezesjdefumados,paraseusparentesecontraparentes.Domesmomodoquetodapresadesonho, sejanome,sejacanto,nogeraldadaparaoutrem.Ternomedarnome,escreveuLopesdaSilva em NomeseAmigos (1981[1980]).Masparadarprecisopredar,edessaformaocircuitose completa.Assim,retroalimentandoociclo,seosantepassadossopredadosemsonhooudoem sonho, tomando a iniciativa e assim, a superioridade , porque tm uma potncia predadora intensivamentecumulada. Outroindciodarelaoentreantepassadosepredadoresumdostermosquemeensinaram 199
sobre os antepassados, os a'uw originais: eles podem ser chamados de a'uw toro. Segundo Vitrio,assimtambmpodemserchamadososa'uwuptabi,aquelesA'uwXavantesuperioresa quemsedarmaisatenonoprximocaptulo.Apalavra toro traduzidaporLachnitt(2003) comogulapelacarne.Ouseja,osa'uwtoroseriamaquelesvidosporcarne,vidosporpresas. QuandofuiperguntaraosjovensadultosnaAbelhinhasobre a'uw toro elesmedisseramqueo termosignificavacarnvoroe,dadaminhainsistncia,Marcosdissequeeramnossosancestrais. Nisso,CamiloDuts,queestavajunto,perguntoumesemeusancestraiseramos 'ro'or,macos (bugios),conhecidostambmcomomacacosassassinos,'ro'otsipri.EudissequenoeCamilo emendou:sumahiptese,n?.Ouseja,estariafalandodahiptesedequeohumanodescende domacaco,evolucionismovulgarqueeleprovavelmenteconheceupeloswaradzu.Masnosisso: os a'uwxavante fizeram sua prpria reviso desta tese: seriam os waradzu descendentes dos mticosmacacosassassinos,queatacaramos'riti'wae,emseguida,foramretaliados(cujahistria sermaisbemapresentadaadiante)?Oqueexplicariamuitacoisa...sumahiptese. Almdessarelaodevinganacomosmacacos,outroindciodequeparaosA'uw Xavantenormalpensarnumarelaodepredaoentrepredadoresestnodiscursoecologistade PauloCsar.Muitasvezesno war daaldeiaBelm,emminhapresena,PauloCsarfalavaem portugusparameexplicarosproblemasdeseupovo,criticandoaspressesexternasdasfazendas degado,desoja,asameaasdeencarceramentoindgena,aperdadesuasterras.Ondiorespeitaa poltica do branco, o branco tambm tem de respeitar a do ndio. Vo desmatar tudo, fazer hidreltrica,novaimaisterasfrutas,acaa,ondionacadeiavaigritarnosonhocomoqueele nemsabeoque!Obranconosabequeagenteconversacomnossosancestrais,comosespritosda floresta,dosanimais,domeioambientequeestaoredor.Temosdepensarnosanimaisqueos nossos netos vocomer.Novoexistirmais?Quandopensamnissoosvelhoschoram.Assim diziaPauloCsar. Essesdiscursospodiamsertolongosque,aofinal,srestvamoseu,eleemaisalgumno war comooutra waradzu,CarolinaSobreiro(adotadapelo cacique emsuaprimeiravisita aldeiaparaconheclosemtrocadeseuconhecimentodapolticaindgenaemBraslia).Numa dessasfalas,eledissequeosanimaisetambmoserhumano,agentesepredaumaooutro.Esta faladePauloCsarsupeumarelaoderecproca(oumtua)predaoentrehumanoseanimais. O ndio na cadeia dos brancos seria o oposto do ndio na cadeia alimentar do meio ambiente,emsuaecologiapoltica.Enfim,sepredarseumaooutropossvelentrehumanose animais,porquenoseriaentreoutros? 200
PoisosA'uwXavantecomendo,comemalgum,nestejogodedisputapelaposiode sujeito.Sopredadoresdepredadores.Suacontinuidadeemrelaoaosantepassadosvemtambm doindciodequeaosvelhossejapermitidopredarvontade,semmedodainflunciadaafluncia estrangeira,jestonaltimafasedegentificaoe,aessaaltura,deixardesergenteseriatornarse muitomaisdoquese.comoseosvelhosestivessemmaisprximosdeumaimunidadecosmo diplomtica,capazesassimdemisturaremsesemriscodeseperderem.Imunidadeconciliatria, mastambmpredatria.Prximaaopodersupremodepredao,dotabucanibal. Acreditoqueumafigurainteressantedessesistemadeidadesepassagensnotempopodeser visualizadanumjogode bolita (boladegude,fubeca,chamadadebolitapelovocabulriomato grossenseadotadopelosA'uwXavante)muitopraticadopelascrianas,adolescenteseatjovens adultos. Talvez no seja prprio dizer que esta figura que desenho seja uma metfora sobre a passagemdavidaa'uwxavanteporsuasidades,jqueojogodebolitapartedestamesmavida e de umaparteespecfica,maisjovem,destavida.Parecemequeessejogopodeservircomo pequenametonmiaoumesmopequenasindoquedavidaa'uwxavante.Ummodeloreduzidoda sindoque,sepudermosconsiderar,porexemplo,osistemadeclassesdeidadecomosindoque a'uwxavante.Pensoomodeloreduzidocomonacinciadoconcretoselvagem(LviStrauss1976 [1962]),masdesdequesepossaconsiderlonoscomometforamascomopartedomesmotodo queelevemafigurar.Seaarteummodeloreduzido,assimtambmpareceserojogo.Pensando dessemodopossvelreligaropensamentoselvagemaoHomoludens,aojogocomoconstituio datotalidade(Huizinga1980[1938]),constituioqueparecesersempreumareduo.Jogando,as crianaseosmaisjovensemulameaprendem,apartirdeumaapreensototalizante,asoperaes dojogodesuavida.Etambmavivememmenorescala. VivriosjogosdebolitatantonaaldeiaBelmquantonaAbelhinha,inclusiveporqueeraeu quemospresenteavacomaspeasdojogo.Masnuncaentendimuitobemsuasregras.Creioter conseguidoentenderumpoucodaquelepraticadonoHdaaldeiaBelmpelosadolescenteseseus patronos.Erajogadonochobatidoseguindoumasriedequatroburacos,quetinhamde ser preenchidospela bolita dojogadoremseqncia,atseralcanadooburacofinal,chamadode fogo.Conquistadoofogo,ojogadorpodiaacertarasbolitasdosadversriosetomlasparasi.Pois afiguradestejogoestmuitopertodedizerqueparacaarhumanamenteprecisoconhecerofogo. Umjogadorpodiausarmaisdeuma bolita,trocandoasconformeaconvenincia(usando maioresmagnificadas?paraacertarpredar?emenoresparaseremacertadas),maselaseram comoseamesma.Pareceumetambmquenemsempreeranecessrioacertarumburacopara 201
passardefaseparaoprximo.Mas,semprehaviaumdesafiosobreoacerto.Parafazerodesafioos jogadoresbradavamdinheiro!(numapronnciaalgocomodero)e,dosvriosjogadores,quem falasseprimeiroquefaziavaleraaposta.Quemerrasseperdiasuabolitaedeviaentreglaparao outro,aofinaldojogo.Seacertasse,ganhavaumadooutro. Reveladorarelaoentre fogo e dinheiro.Aconquistado fogo,ocuparolugardestapura potncia,seriaograufinal,oburacofinaldojogo,dandodireitoaojogadordeatacarecapturaras bolitasadversrias.Oltimoestgioeraaquelequedavaplenospoderespredatrios.Jodinheiro serviaparaganharstatusdepredadorantesdofim,duranteascompetiesdasfasesdavidada bolita(oudasbolitasdomesmojogador).Seriaissoumindciodocarterperformativododinheiro paraosA'uwXavante?Senodoseucartertransformativamentepoderoso,comoodofogo?De qualquermodo,odinheironoalgocujosaberfazerseconquistacomoofogo:cunharamoeda monopliodoEstadomodernoefundamentodesuaviolentasoberania(AgliettaeOrlan1990 [1982]).Oprpriocarteruniversalistadodinheiro,alis,precisaserexteriorparaqueopndulo a'uwxavantecontinuebalanando. Independentedeestaremfalandoemdinheirodefato,omecanismododinheironojogode bolita parecesercaractersticodaludicidadea'uwxavantecomsuasapostasedesafios,queso formasdeganharprimeiridade.Seroprimeiroadesafiar,aagir,dquelequebuscaascenderao poderdepredarumgostodestepoder.Quegalgadoacadaburacoemquesecaiedeondese renasce.Comoquandosepassampelosrituaisdafasedavida,atravsdasquaispossvelse adquirircargos,comoosdeAih'ubuninoHeosTbeePahri'waaofinaldoDanhono. Fazendoumaanalogiaentreofogoeacategoriadosvelhos,prximadosantepassadosque roubaramofogodaona,podesedizerqueoprpriojogoemulaesteroubodofogo.Talveza prpriavidadapessoaa'uwxavantefiguresecomoperformancedestemito,emetapassucessivas comoaquelasdapassagemdabrasadeumparaoutro(comosermelhorapresentadonocaptuloa seguirarespeitodoroubodofogo).Nesteprocesso,osvelhosestonopdiodosaberfazer(o fogo)conquistado,opontodedifusolegtimodesuacultura,deseu dahimanadz,masno deixadeserumpdiodesequilibradamenteinstvel,poisofogotambmestvindodemoemmo dosmaisnovos,eodinheiroentranojogoatravsdenovosmeios.Mesmoqueessesmesmosmeios estejam diretamente ligados aos antigos: os velhos ganham aposentadoria como trabalhadores rurais,aindaquesejamseusnetosquevocidadebuscarodinheiro,gastandoopelocaminho. Os pais de famlia ganham a Bolsa Famlia do governo federal e, sobretudo, os homens de liderana,queadquiremcargoscomo Aih'ubuni e Pahri'wa,somuitasvezesosmesmosque 202
Mrcio mantm dois vnculos importantes com o cacique Paulo Csar: ambos so um tsimiwainhdooutro(oprimeiropatrocinadopelosegundo)etambmwatsini(consogrosumdo outro,atravsdePaulinhoAnderson,casadocomumafilhadeMrcio).Ouseja,comomostrou CsarGordonparaosXikrin(2006),aquitambmarelaocomafontededinheiropassapelas hierarquiasdeparentesco,relaesrituaisecargostradicionalmenteinstitudos. * A humanidade a'uwxavante, nunca plena, deve ser constantemente desafiada e conquistada.Nesseprocesso,corresesempreoriscodeperderaaposta,deenvolversedemaiscom ooutrocomowaradzu,nocasododinheiroedesercapturadoporele,perdendosuabolita. Porissobomtersempreumabolitasubstituta.Mesmoassim,aindamelhorperderabolita doqueperderavida,sesepudersubstituiraentregadavidapelaentregadealgumaoutrapeados diversosjogostrabalhosospraticadospelosA'uwXavante,comoacaa. * Sobreascategoriasdeidade,faltoudizerqueaquelestermosdoquadromarcadoscomdois asteriscos(**)precisamsercolocadosemperspectiva,indciodaassimetriadasrelaesdegnero 203
auwxavante. Em contraste de sexo, dapredu seria usado para designar os homens maduros enquanto pi designariamulheresmadurasaindaqueemcontrastedeidade,umamulherseja considerada predu em relao s pessoas menos maduras. Pi seria tambm uma designao genricaparapessoasdosexofeminino,emoposioaogenricomasculinoaib(MayburyLewis 1984[1967]:201203).Temseaimpressoaesterespeitoqueociclodevidamasculinotenhaa maturidade como foco,e o feminino tenha afeminilidade como foco. A masculinidade uma condiorelativasrelaesagnticas(eclnicas,porextenso),poisamesmapalavraquese refereadescendentesdeprimeiragerao(aib).Amaturidadedamulher,poroutrolado,tem comomarcafundamentalocasamento.Inclusive,comomostraLopesdaSilva(1986[1980]),o granderitualfeminino(Abadzi'rihidiba)quedariaumnomeadultosmulheres,caberiasomente scasadas. Esta impresso, contudo, limitada por um olhar meramente categorial. Ainda assim, remete a certas caractersticas da vida a'uwxavante. Por exemplo, na questo da dor e do sofrimento,marcasimportantesdaencorporaodapessoacoletividadecomofeznotarClastres (2003[1974])valelembrardoqueouvicertavezdeoutro danhohui'wa,PaulinhoAnderson, dadasasreclamaesdealgunsporestarmosensaiandocantosdebaixodosol:Paulinhodisseaos reclamantesquehomem,paratornarsehomem,datsiaib,temdesofrernosrituaisenotrabalho.E amulhersofreparaterfilho.Pelomenosessaamemriagenerizadademeucompanheiro sobreotema. Gauditanonotaoutrasprticasdeafliodesofrimentosmulheresapartirdodepoimento daquelasqueviveramo dzmor emoutraspocas:seuspadrinhos,quenestaocasionoso seustiosmaternoscomonocasamento,mashomensdocldeseumarido(HB,FBS,MZS,FZS, MBS),batiamemsuascoxascomumpedaodepauparaquesetornassemmaisfortes,corajosase resistentes.(Gauditano2010:123).Ouseja,asinformaeslevamacrerquehaverianodzmor algumaatividadeparaleladosdanhohui'waparacomasmulheres. Essaspancadassemelhantesquelasdadaspelosdanhohui'waaoswapt,comoservisto davamsmulheresumpagamento:acaaqueodanhohuiwacaceteirotinhafeitonaquelediaia todaparaamulherquetivessetomandoapancadae,numritualseguinte(do wa'i)asmulheres poderiamsevingardopadrinhojuntandosecontraelenalutaearrastandooparaqueficassecom ocorpodolorido(Gauditano2010:123124).Este pagamento emtrocadepancadasqueserviam parafortaleceramulherenquadraasrelaesdegneroa'uwxavantenumaestranhaassimetria. * 204
AmaturidadeparaosA'uwXavantenoapenasumestadocorpreoou,melhor,ocorpo nosimplesmenteumorganismonosentidonaturalistadapalavra.Astcnicasprodutivasdo corposotambmmorais.Himanapredu,palavraformadapelajunodevidacomadulto, usadaemrefernciaabomcomportamento,educaoerespeito.Dizse,porexemplo,que quemtemhimanapredunosaiporacaandomulher.Umaboamaneiradeconseguir(outentar conseguir)umpoucodedisciplinadaquelesqueeuchamavade h'wa (mododechamamentode todos os wapt, menos dos Aih'ubuni, seus lderes) que, se j questionavam um pouco a autoridadedeseuspatronos,combrincadeirasedesafios(inclusivepedindoquelhesbatessemcom owedehu,varadisciplinadora),aproveitavampararelaxarmaiscomigo,seudanhohui'wawaradzu eradizerlhes,nomeua'uwxavanteprimrio,himanapredu!. Otpicodacaasmulhereseraumapreocupaoamaissobreos wapt,quedeviam mantersecastos,eos danhohui'wa semprediscutiamessaquestoentresieaconselhavamseus waptsobreisso.Ospatronos,alis,deviamservircomoexemplo:umdosPahri'wa,grandecantor ecaador,umdosmaisrespeitadosentreos tpaeNodz'u(wapt),casadocomduas esposas, deuaosadolescentesumcantoquesonhoucomseupai,vivo(quehabitaoutraaldeia),dizendolhe paracuidarmelhordesuavidaporqueestavaficandocommuitasmulheres.Comoantesde ensinarocantoosonhadorquasesemprenarraosonho,istotambmeraumensinamentoparaos wapt: cuidadocomasmulheres. Oquenoquerdizerqueos danhohui'wa fossemalheios s aventurasamorosasalis,muitasvezeseramacusadosdesepreocuparemmaiscomissodoque comcaa,trabalhoedana,sobretudoporpessoasmaisvelhasdametadeagmicaoposta(sempre competindo,lanandochistesefazendodesafios). Arelaodoshomenscomasmulherestambmtidacomocomprometedoradospoderes mgicosa'uwxavante:parasercapazdecuraeoutrasatividades,comocontrolarofogodacaada paraquenoqueimedemais,precisofazerpoucosexo(almdejejuar,tomarmuitosbanhos,no passar as mos nocabeloetc.):certavez,quandocomentvamos umafumaamuitoforte que tomavacontadeumpedaodemataentreaaldeiaAbelhinhaealgumaoutra,Tseredzardisseme queofogoestavadaquelejeito(descontrolado)porqueocaadorqueoateoufaziamuitosexo noite. Masestemovimentodefugirdasmulheresobviamentecontrabalanceadoporuminteresse (sexual)muitogrande,assuntoqueoshomensnodeixamdecomentar.Ummovimentopendular entreapurificao(plodoqualoswaptestomaisprximos)edocontgiopelasmulheres,de quem, afinal, emana um poder vital. Lopes da Silva escreveu que se [atravs dos homens] a 205
sociedadeXavantesemantm,atravsdasmulheresqueelaserenova(1986[1980]:147).Vejo isso como umasimplificaoumpoucodistantedomtodocostumeirodaautora(queenvolve sempretratardosdoisplosextremosentreosquaisossujeitossealternam),carregandonuma oposioentretradioemudanaquejfoisugeridacomopoucoproducenteparaosA'uw Xavante(senoemgeral).Contudo,dopontodevistamasculino,podehaverumasemelhanado acesso s mulheres aoacessopotnciacsmicaevitalidadesexteriores,expressanaidiade caarmulheres.Caaquenodeixadeser,entretanto,umaatividademasculinaligadacaptura donovo.Nemdeixadeserperigosaparaaprpriamaturaoquevisaalimentarsedelas. * Sobreaconcepodematuridade,maisumapalavra,oumelhor,umditomuitopopular entreosA'uwXavante,conhecidoporqualquerpessoadasduasaldeiascomquemconverseia respeito:wahdzdapredubdzguafriaamadurece. Estaumarefernciaaumdosmaisimportantesrituaiscotidianosa'uwxavante,obanho derio.Quepraticamenteumbanhodeguafria. Tomasebanhoderioemmdiatrsvezespordia,oumais,dependendodocaloroudas tarefasrealizadas.Mesmonofrioosbanhossoumaespciedeobrigao.Parahomens,mulheres, jovens, velhos e crianas. Xavante, quando acorda, j pensa logo em tomar banho, disseme Vitrio uma vez. Pela manh, ao meio dia e ao fim da tarde as pessoas vo por si s202 ou convocamseumassoutrasparatomarbanho,sejamfamiliares,sejamcompanheirosdeclassede idade. Tiba,vamospragua,vamosprorio,umadasprimeirasfrasesqueseaprende comeles.Qualquermostradedesleixomeuemrelaoaissovoutomarbanhosmaistarde, jestescuroparairaorioetc.eravistacomespantoereprovaopelosmeusinterlocutores, comoumaatitudeimprpria,desrespeitosa,desumanizante. Oaspectoobrigatriodobanhoerasalientadoquandoalgunsmediziamquenogostavam disso. Certa vez um companheiro de classe de idade, indagado se wahdz dapredbudz, respondeume:verdade,watsi'utsumasparamimnobom,no(usandoapeculiarmarcade perspectivadosujeitonafalaa'uwxavante:bomparaalgum,masnoparamim;para vocassim,masparamimnomuitocomumnosdilogosquepresencieietravei,sobretudo nasperguntasmaisdifceis,expressoque,nogenricodaa'uwmreme,dizsedamah).Eleme disseissologodepoisdesairdobanhofrio...Oprpriofriodobanhoeratomadocomouma
202Defatoaspessoasnocostumamsecomunicarmuitopelamanhlogoqueacordam,chamaremsemutuamente, dizerbomdiaoualgodognero.Tomarbanhoparecemaissocialmentenecessrioquefazersaudaes.
206
espciededesafio,implcitonasperguntasqueaspessoas(deambosossexos)quesecruzavamno caminho faziam, especialmente para mim: hdi?, est com frio?. Era tambm comum formulaesmaisexplcitas,jabeirad'gua:vocnoagenta!. Poisnumambienteemqueapessoa,acorporalidade,odahiba,estinterconectadaentre todasasoutras,atravsdevriosfluxoserefluxosdeaparentamento,ocuidadodocorpodeum parececondiodocuidadodarededecorposcoletiva.Umsacrifcionecessrioparaacontnua produodapessoahumana.Alis,mesmomascotes,comoalgunsceseporcosdomato(masnem todosenemsempre),eramlevadosporseusdonosparatomarbanho,ensaboadoselavados,numa provveltentativadehumanizlosumpouco. Nessesentido,aperformatividadejpercebidaparaaentrecorporalidadea'uwxavante parece estenderse tambm para a ontognese da vida pessoal: tomar banho no s acelera a maturidade paraosmaisjovenscomotambm retardaavelhice paraosadultos,tornaoscorpos maisprximosdocorpomaduro,dapredu. ObanhodeixafortecomooMaguila,dissemeumavezVitrio.Serveparadeixaropeito forte,comomefalounoutravezRmulo.Segundoele,principalmenteporcausadaumidadeque ficanocorpodepoisquesesaidagua,queodeixabrilhante(essetalvezsejaomotivopeloqualos A'uwXavantemuitasvezesnoseenxugamaosairdobanho).Outrosmediriamquedeixariao corpoliso.Essasrefernciaseramfeitas,sobretudo,emrelaoaos wapt,quealmdetomar banhonumadashorasmaisfriasdoamanhecer,antesqueosdemaisaldeosofaam,passampor umritualdebaterguawat'waantesdafuraodeorelha,paraoqualdormembeiradorioe ficampraticamenteodiatodoseexercitandon'guaritmadamenteeemconjunto,emmovimento caractersticodemergulharosbraosejogarguaparacimacomasmosjuntas,comomostraa imagemabaixo.
207
Batemgua poraproximadamenteummsinteiroosA'uwXavantesempredizemque antigamentepassavammuitomaistempo:opassadosempremaispotente. Aomesmotempo(oumelhor,emtemposdiferentes)queobanhoconsideradocomouma maneiradeaceleraramaturidade,eleumdesaceleradordoenvelhecimento.Dizsequeosbanhos constantesevitamaosvelhosasrugaseoscabelosbrancos. Assim,obanhoparecefavorecerumacargadeforavital.Senasidadesavanadaselauma foradeconservao,paraosmaisnovosumaforadetransformao:umaforaquepuxaparao pontomdio,tantoacelerandoquantoretardando,umatratorcontrrioatraodosplosopostos daidade. O resfriamento do passar do tempo como forma de controle da entropia e do calor dissipativofuncionacomochoquequeimpulsionaomovimentotemporal.Comoumabateria,uma pilha recarregvel. Uma temporalidade performativa e corprea, um efeito da ao sobre as categoriasnocontraelas,masparaelasenarelaoentreelas,tendocomofocoacategoria dapredu. No seria a velhice to ou mais importante, como salientado anteriormente? Sim, importante,massuaimportnciaestemjustamenteseraqueladequemcedeforadeatraoda idade,cedeaomesmotempoquecapturaestafora.Avelhice,osantepassados,aorigemdeonde vemodahibauptabidosbebseparaondevoasalmasdesgarradasdosdoentesdeDanhimite, vemdel,voltapral,dissemeumavezVitriosobreolestedavidasoquasecomoo encontro dos dois extremos do jogo de foras. Dois extremos que, como visto, esto na consanginidadeenaafinidade.Essesextremosaparecemagoranoscomodoispontosdevista diversosconstituintesdamesmaestrutura,noscomodoisploshierarquicamentediferentesna mesmarelao.Aparecemcomooplodaspolaridades,quemovemodesequilbriocontraoplo da estabilizao e da maturao. A velhice faria o papel do curtocircuito que gera a retroalimentaoparaaperpetuaodomovimentodeequilbriodesequilibrado. Aquiaestruturaperformativacombinamuitobemcomumamitoprxisquejogaentrea entropiaeaantientropia,nosentidodequeodemnioantientrpicotambmprecisadaentropia paraquenosecongele,cujaretroalimentaorecarregaamemriadestemesmodemniocomas lembranasdosantepassados.Estaretroalimentaodarseia,porexemplo,nopapeldosvelhosde rememorarumantigoritualquetenhasidoesquecidoatmesmoesquecidopropositalmente(uma dasnecessidadesdaqueledemnio),comoquandoovelhoApw,aindavivo,enquanto pai dos
208
lderesdePimentalBarbosa,disseaPoloMllerquetinhadecididoqueoWai'anoserealizasse mais,jqueossegredosdesteritualtinhamsidoconhecidosportodos.Ovelhocompletoudizendo queeranecessrioesquecerparaqueoritualvoltasseaserpraticadonovamente(PoloMller 1976:pginasemnmero).Ecomoserialembrando?Provavelmenteatravsdealgumvelhoou antepassado,vivoouemsonho... * Como o frio do banho pode agir tanto a favor da maturao dos novos quanto da revitalizaodosvelhos?Aexplicaopodeestarnoapenasnofriomasnasqualidadesvitaisda gua,nacargadevitalidadequeelatransmite. Enoapenasnobanho,mastambmnarelaodessaspessoasemsuasidadesrelativascom oquemaishsuavolta,suasoutrasrelaes,bemcomosuasrelaescomoutrasfontesdecalor. Poroutrolado,omodopeloqualosA'uwXavantetomambanho,suatcnica,remeteao aquecimento:namaioriadasvezes,tomambanhorpidoevigorosamente,mergulhandoacabeana guaechacoalhandoaintensamenteenquantojogamguanacabeaenascostascomasmos.O aquecimentotambmapareceforadobanho:muitocomumqueemdiasmaisfriosacendaseuma fogueiranabeiradorioefiqueseemvoltadelaaquecendoseantesedepoisdeentrarnagua. Algo peculiar tambm acontece durante o perodo da bateo de gua: os wat'wa (adolescentesquebatemgua)devemdarbanhoscadaumemsuabordunacaracterstica, brudu, comaqualelesdormemnoiteetratamcomofilhos.Essasbordunassodeixadasnabeirad'gua enquantoelesbatemguae,nahoraderetirlas,muitosfalamcadmeufilho,cadmeufilho? euosouvifalandoemportugusmesmo,paraqueeuouvisseeregistrasse,numaocasioemque filmavasuasatividades.Poiscadaumcolocaseu brudu emforquilhasenfileiradasnumpequeno varal(daalturadacintura),parasecaraosol.Issofazpartedobomcuidadoquedevemdedicara seufilho,resfriandooeesquentandooalternadamente.Suabordunaquendicedeagressividade, decontroledaagressividade,eaomesmotempometonmia:partedeseucorpoatravsdeuma filiaoadotiva. Arelaodocorpoa'uwxavantecomofogotambmmereceumafrasefeita,queescutei na aldeia Abelhinha de Csar Tserenhdza meu sobrinho, filho de meu irmo mais velho Cornlio,equepocaeradanhohui'wacomoeu,cujonomea'uwfoideAdoTop'tiroquando jovem(noteseantimarelaoentreostrs,jqueCornlio,almdetambmcarregarumdos nomesdopai,temtambmonomedopaideseupai,Tserenhi'm)certanoiteemreuniodo war.Csarmedisse,abeiradafogueira,queofogonossoesprito.Quando,relendomeus 209
cadernos de campo,depareimecomafrasenovamente,elameintrigoueprocureibuscar sua expressoem a'uw mreme.ConversandocomCamiloDutsatravsdeprogramademensagem eletrnicapelainternet,estemedeuatraduoudzwahibauptabirenhiptede:ofogofortalece nossoesprito,ofogoaforadonossoesprito,ofogoaforadonossocorpomesmo. PudelevaressafrasedevoltaaldeiaeAdoTop'tiromerespondeu,traduzidoporRmulo,que nowarqueistoacontece,queofogofortaleceaalma,ocorpomesmo. Ouseja,dealgummodoaoposioentrecorpo dahiba ecorpomesmo dahiba uptabisecolocaarespeitodaantientropiaedaentropia.Enquantoaantientropiaafetaocorpona gua,pertomasforadaaldeia,aentropiaafetaaalma(ocorpomesmo)pertodofogo,nocentroda aldeia.Comoficaaquestodacontinuidadeentreumeoutro,ento?Seoqueacontececomo corpoafetaaalmaeestatemsentimentosquesemanifestamnaquelecomopressentimentospor exemplo,atristezaadvindadospoderespremonitriosdocorpomesmosobreperigosnamata, entodeveseconsiderarqueaantientropiadeumafetaooutro,eaentropiadooutroafetaaquele um.Retomeseumaleiturapossveldaentropiacomodesenvolvimentoedissipao,queremeteao envelhecimento. Com isso, se os velhos so aqueles que tem o lugar de honra no war, mais prximosdofogoliteralmenteefiguradamente,jquedotadosdomaiorsaberfazerhumanamente possvel,suavelhicecorporaltambmsinaldeumespritoforte,deumcorpoprpriovivo.Por outrolado,seofogoestnolugardeumpodertointensoquechegaaqueimareadestruiro corpoopoderdaguaacessveldiretamenteaocorpo,umaformaatenuadadepoder. Sabesequeo corpoprprio permanecevivoparaalmdamorte,aindaquenumdado momento, no momento de passagem, este corpo prprio d lugar a uma assombrao, o tsimihpri.Comoouvidizeremarespeitodoperododemorteelutoressente,otsimihprie nissonomeprecisaramseeraofantasmadomorto,seeramoutrosfantasmasouseerajustamente aalteridadedomorto,suainversoassombraaperiferiadaaldeiacomassobiosquefazemos parenteschoraremdesaudadedomorto.Tambmhhistrias,comoalevantadaporEidjuntoaos narradoresdePimentelBarbosa(2002),quecontamqueosmortostentaramvoltaraomundodos vivoseforamimpedidosporumpapagaio,aihr,quecomsuavozinsuportvel,seuarremedoda faladegente,osfezretrocederemmassa203.Todavia,nemtodosrecuaramparaaaldeiadosmortos, algunsficaram,maslogofaleceram,transformandoseemtsi'ubura,redemunhos.Que,segundoos velhos de Pimentel Barbosa, seriam, enfim, tsimihpri. Na Abelhinha tive notcia de que o redemunhotinhaalgodehumano,temgenteldentro,medisseram.Enosmomentosdeventania
203 Fingindosehumanoatravsdafala,acaboutambmfingindoqueosvivosnoeramhumanosesimarremedos comoele,espantandoosmortosquebuscavamjustamenteahumanidade.
210
emqueredemunhosseformavamnoptiodaaldeia,indoemdireocasaondeeuestava,Ado Top'tiroselevantavaaoarlivreebradavaparaoredemunho:ma'a,dzareibavaipral,afaste se! O tsimihpri tambmumaentidadeativano Darini.Numadasfases importantes do ritual, encenase uma briga mtica entre o coletivo de Tsimihpri e o coletivo de Danhimite (entidadequedavidaaodarocorpoprpriodapessoa,podendotomlotambm).Umaverso domitodestecombate,vencidoporDanhimite,encontraseemnarrativadeJernimo(Giaccariae Heide1975a).MenesedescriesdoritualaparecemnasobrasdeMayburyLewis(1984[1967]), GiaccariaeHeide(1972)ePoloMller(1976).Considerandoarelaoentreessasduasentidades, deveselembrarqueenquantoo tsimihpri estnapassagementreavidaeamortedo dahiba uptabi,sejaporcausadeumamorterecente,sejapelarecusadecompletarapassagem(como aquelesquenoquiseramvoltarparaaaldeiadosmortosdepoisdeouviroruidosopapagaio),o danhimiteaprpriapotnciageradoradodahibauptabi.Pensoquenaguerramticaentreestas entidadesedigoistoporminhaconta,nenhumA'uwXavantemefezestaanalogiatudose passacomosealutafossetravadaentreumpaieumfilhodesgarrado(jquetododahibauptabi produtodoDanhimite).Ouentoumconflitoentreacontinuidaderenovadoradavida,Danhimite, eadescontinuidadeestagnada,Tsimihpri. Nessesentido,avidaeternaapenasumapotncia,spodeserrealizadacomopotncia, nolugardapotncia,devoltaorigem.Suacontinuidade,quepoderiaparecerumaespciede cristalizaodaanecessidadedofogoparaimpedirquesecongelenoprecisasersolucionada, dissolvida,massimrevertidaepotencializada.Casoeenquantonotomeseulugardepura potncia,nocompleteapassagemparaoalm,apessoaseperdenaestagnao. * Assim podese compreender melhor a relao entre vivos e mortos a'uwxavante. Pois comoficaaalteridadeentreeles,senoslembrarmosdafamosaassertivadeManoelaCarneiroda CunhasobreosKrah(1978)segundoaqualosmortossoosoutros? Paracomeararesponderestapergunta,acreditoserpossvelretomaroutroassunto,oda amizadeformalizada,emqueodebatecomparativosobreosA'uwXavanteeJsSetentrionais (como os Krah de Carneiro da Cunha)j encontra balizas. Em Nomes e Amigos: daprtica XavanteaumareflexosobreosJ(1986[1980]),AracyLopesdaSilvafazumacomparao extensivaentrediversostiposdeamizadeformalecompanheirismodosJdoNorteafimde refletir sobre ocaso a'uwxavante do da'am, queela caracteriza como amizade formalizada. 211
SegundoLopesdaSilva,estamudanaconceitualamizadeformalizadaaoinvsdeamizade formalecompanheirismosedjustamenteporque ocasoa'uwxavantefundenomesmo personagemoucategoriarelacionaloamigoformalizado, da'am duascaractersticasdistintas existentesnoscasossetentrionais.DialogandocomotrabalhodeCarneirodaCunha,LopesdaSilva notaqueparaosA'uwXavantehaveriaumacondensaodoqueparaosKrahestariadividido entredoistiposderelaesdiferentes:ocompanheirismodasimultaneidade,dasemelhanaeda identificaoversusaformalidadedadistncia,daoposioedadiferena.SegundoCarneiroda Cunha,estaltimaaoposioseriaoelementofundamentaldaconstituiodapessoaporque jogandocomaalteridade,instauraumadialtica,umprincpiodinmicoquefundaapessoacomo serdeautonomia(CarneirodaCunha1987[1979]:60).Nocasododa'ama'uwxavante,[os] elementosconstitutivosdaquelasduascategorias,alteridadeesemelhana,sosintetizados(Lopes daSilva1986[1980]:201).SegundoLopesdaSilva,esseselementospodemvariarnotempo: [O]s Xavante alternam momentos em que a semelhana, a simetria e o companheirismo definem relaes, com momentos em que so expressas predominantementeaevitaoeaalteridade,adistnciaeaassimetria.Nestesltimos momentos,asrelaesdeafinidadevmparaoprimeiroplano,alterandoasituaoanterior emqueaafinidadesubjacentesrelaescomooutroeraobscurecidapelocompanheirismo (que, no conjunto das oposies da lgica Xavante se equipara, em seu contedo, a ''consanginidade'')(LopesdaSilva1986[1980]:202203grifodaautoranaprimeira frase,grifosmeusnasltimas). Nessesentido,aautorafazumaleituracrticadaanlisedeCarneirodaCunha.Porque, tendoomodelodestasobreosKrahcolocadoofoconaalteridade,neleasolidariedadeentre amigosformaisquasedesaparece:ficareduzidaa[]umeloligeiro.Parecemequeosentidoda amizade formalizada est, no simplesmente no atributo da alteridade que sem dvida alguma contm,mas,justamente,neste jogoequilibradoentreopostos:adistncia/evitao/alteridade,de umlado,easolidariedade [] queeuvinculariaestreitamenteidentidade.Enfim,aamizade formalizadaimportantenoporcausadesuacapacidadedeexpressaraalteridadee,sim,porque traduzemsimesm[a]estesdois''lados''davidadetodoJ(LopesdaSilva1986[1980]:249250 grifosmeus).204
204dignodenotaquetalposiodaamizadecomoeixoentreaafinidadeeaconsanginidadejhaviasidonotada por Mellati para os Krah: "talvez essa relao simplesmente oponha afirmao de que os consangneos so
212
AcompanhandoodesenvolvimentodareflexodeLopesdaSilvaapartirdasproposies lvistraussianassobreodesequilbrioinstveltrazidasaodebate(Vianna2001,Falleiros2005), inclusiveapartirdaleiturapolticadestedesequilbrio(PerroneMoiss eSztutman2009 etc.), poderamos falar em jogo desequilibrado instvel entre opostos (e suas potncias de consanginidadeeafinidade). Acreditoque,combasenoquetenhoapresentado,arelaoentrevivosemortoscomo relao somente de oposio, pelo menos no caso a'uwxavante, deve ser revista a partir de premissassemelhantessapresentadasporLopesdaSilvaparaarelaodeamizadeformalizada. Diferentedeoutrospovos,paraosquaisaoposioentrevivosemortospareceserocerne darelaoentreestestermos,expressandosedemaneiratoradical,osA'uwXavantevalorizama solidariedadeentrevivosemortos,aindaqueentreosdoismomentosmaisdistendidosdarelao existeumasituaointermediriaadotsimihpriqueexpressaextremoantagonismo.Contudo, antagonismo do tsimihpri viria no de seu distanciamento, mas de sua proximidade O o . tsimihpri nosoubeoperaraboadistncia,acabouficandopelomeiodocaminho.Assim,este casoseencaixanoesquemadeprojeododiametralismoa'uwxavanteemcrculosconcntricos constituindoumarelaodesolidariedadeentreoscrculosalternadamentedistanteseumarelao deevitaoentreesteseocrculointermedirio.Solidariedadequepodeserimaginadacomoo encontroentreolimiteinternoeolimiteexterno(semprepotenciais,jqueimpossveldeterminar umponto)deumagarrafadeklein. Pensoqueomesmomovimentovalhaparaarelaoentredahibaedahibauptabiemsua relaocomguaefogo.guaefogoparecemseramboscarregadosdepotnciastransformadoras extremas.Enquantoodahibatrazdesuarelaocomaguaumadescargadevitalidadecontrao aquecimento que o consome e que consome a entrecorporalidade coletiva sua outra extremidade, o dahiba uptabi, traz de sua relao com o fogo uma almvitalidade, uma capacidadedeiralm,sejaatravsdosonho,sejaatravsdamorte.Almquenomeramente opostoedistante,tambmcontnuoesemelhanteaoqueeraantes.205 *
diferentesdosafins,outraafirmaodequeosconsangneossoiguaisaosafins"(1973:40). 205 Noestouexplicitandoaoutrarelaoque,modalvistraussiana,poderiaseconstituircomodesdobramento desta:arelaoentrefogodecozinhaqueproduzacomida,fundamentalparaaentrecorporalidadeetambmparao prpriodahibauptabi,jqueacomidatambmalimentaeconstituiaalmaeofogodowar,quealimentaoesprito etambmajudaaconstituiracoletividadealde.Nopretendofazerumaanliseextensivadossentidosdofogopara osa'uwxavantemas,casofossefeita,tambmdeveriaserconsideradoofogodecaa.
213
Essaforavitalintensivaligadaaobanhopareceterefeitocontagiantenoaparentamento entre corpos. A antiga palavra usada para banho em lngua a'uwxavante, segundo Giaccaria (2000),eradamro,quequeriadizerbanharsemastambmdesposar,esposo/esposa.Hoje a palavra parece manter somente o ltimo sentido e os A'uwXavante a quem perguntei no compreendemseuusoemrelaoaobanho.Aspalavrasqueusamparaobanharseoulavarseso datsi'upteoudatsi'upts.Sebanharsetinhaalgumacoisaavercomdesposar,valelembrarqueos esposos na filosofia corporal a'uwxavante no so simplesmente afins, mas literalmente consanginizamse.Defato,muitocomumquemaridoemulheracompanhemsemutuamenteao banhoedevezemquandooesposoficaoupermanecejuntoesposanabeirad'guaenquantoela lavaroupaeloua. Alis,asalteraesnomododevidaa'uwxavantedadaaintensificaodarelaocomos waradzu tambm fazem as mulheres passarem mais tempodo queos homens na gua, j que permanecemumpardehoraslavandoroupa,louaepanelasdealumnio,amaioriadasvezesem grupoerodeadasdecrianas,quefazemtodotipodebrincadeirasnaguaenalama.Dasalienta seumadivisosexualdobanhoderio:asmulheresehomenstomambanhoempontosseparadosdo rio,sempreabaixodolocalondecostumasepegarguaparabeber(casoalgumvpegarguade beberdequalquerponto,pedeparaquequemestseaproximandonoentrenagua)talvezpara evitarquesebebamoscorposalheios. Hcertopudornessaseparaogenerizada,masaindaassimasmulherescostumamficar depeitosnus.Poroutrolado,comumquesetomebanhocomaroupadocorpo,demodoquese lavaaroupanoprpriocorpo,comosefosseumacontinuidadedomesmo.Aindaassim,seum homemougrupodehomens(ourapazesetc.)chegaaorioelencontrasealgumamulher,muitas vezes permanecem distncia ou de costas, esperando que ela saia. Alm disso, os prprios homens,rapazes,jovenseadolescentesevitamexporseusrgosgenitaisduranteobanho(ainda quevezououtramostremnodespreocupadamenteoumesmoacintosamente)outalvezoevitem mostrarespecialmenteparamim. Quando os maridos fazem companhias esposas na beiradorio,tambm ofazem por proteo,principalmentecontraanimaiscomojacarsecobras(senocontrapossveisassdiose escapadassexuais,jqueabeiradoriotambmlhespropcia).NaaldeiaAbelhinhahummotivo amaisparaestavigilncia:orioqueabanhachamadodeRiodaSucuri(wanha'upanho'u),e acompanheiacapturaemortedeumadessascobraspequena,sinaldequeumamaior,umasucuri chefe, wanha'utsib'h'a,poderiaatacar.JnaaldeiaBelm,enquantoos wat'wa batiamgua, 214
MrcioTserehitficoudeguardaalgumasnoitesbeiradorio,armado,esperandomatarumjacar (aihi'r)querondavaolocaldevidomaiorconcentraodepeixescausadapelorepresamentoda gua(graasaumdiquedegalhos,bambus,folhaselona,feitopelosdanhohui'waparaoswat'wa, queajudeiareformarcontravazamentosnumdostrabalhoscoletivosdanossaclassedeidade).Na mesmapoca,enquantotomavabanhojuntoaostpa,estestentavammeassustarfalandosobrea chegadaiminentedojacaresvezeseuentravanaperigosabrincadeirafingindoseratacado,oque lhescausavacertaadmirao. NaaldeiaBelm,vezououtraumcompanheirodeclassedeidadechamavameparaobanho coletivonoqualparticipavamosmembrosdaclasseoudamesmametadeagmica(poisera comumtomarmosbanhotambmjuntodoswapt)dizendomequeeraparaagentesemisturar. Poroutrolado,enquantoumaclassedeidadeopostatomavabanho,espervamosdeforaevice versa. Essamisturamedeixoucurioso,nosporjconhecerainterpretaodeGiaccariasobre obanho,masdevidominharelaoprviacomovocabulriomaussianodamistura(Mauss2003). Obtivecommuitocusto,jquepodemtraduzirmisturadediversasmaneiras,anooa'uw xavante de datsiwadzari, testando com eles perguntas em meu a'uw mreme precrio (que os A'uwXavanteouvemcomcondescendncia):ewatsi'utsunoriwatsiwadzariibana?oque, corretoouno,querdizeralgocomocompanheirosdeclassedeidadenosmisturamosnorio?,e obtive respostasafirmativas.Araizdapalavra, wadzari,traduzidaporLachnitt(2003)como misturar, ficarlhe bem, caber. Um misturar que envolve combinar, ornar. A mesma palavra tambmserveparafalardamestiagem: a'uw tsiwadzari traduzidoporLachnitt(2003)como homem que se mistura, caboclo. Assim a entrecorporalidade tambm se manifesta no paraparentescodasclassesdeidade,emsuaconstituiodecorporaocorporal. Almdessasmisturas,obanhoderiotambmpropcioapredaes,comosepodesugerir apartirdapresenadebichosperigosos.EsteseriaumdosmotivosalegadospelosA'uwXavante para que nunca entrem diretamente na gua quando chegam ao rio: na gua podem haver bichinhos,dissemealgum.Porissosentamseprximosbeira,conversam,fumam...Esperam atquealgumcommaiscoragemoulideranaentreprimeiro,oquegeraumaespciedereao emcadeiaquefazcomqueosoutroscomecemaseprecipitarnarioemseguida. Entraresairdaguapareceumaperigosaaberturasmudanas,ouumaperigosamudana deestado,umcontatocompotnciascsmicasevitaisperigosas.Orioumlugarpropciopara encontroscomasmaisvariadasentidades,sejamanimaisouhumanosdeoutranatureza.Porissoas 215
pessoasaosaremdaguachamamseumassoutras: t'ri'u!,vamospracasa,vamospra aldeia, e costumam ter pressa nesse processo, sem esperar muito. Principalmente se est anoitecendo.Certaocasio,saindodoriocomLibncioNhihriw'',naAbelhinha,noescuro, ouvimosumvultonomatopassandobemprximodensumanimal?Imagineiquefosseumlobo guar,dadasasfreqentesfezesdoanimalnaquelelocal.Libncioparecianoquerertiraraprova, dadasuagravecaradeespanto.Jseupaiuptabi,LucasRuri'206,vezououtra,jnobreudanoite, ia para o rio sozinho tomar banho. Uma vez uma encarregada da FUNAI em visita aldeia perguntouseelenotinhamedo.Disseramparaelaqueno,afinaleletemWai'a.Enosisso: chefe do Wai'a (ou Darini),complexoritualquepertenceaos Po'redza'ono (emcontrastecomo Danhonoquepertenceaoswaw). Eutambmcostumavasofrerpredaesnobanho,dasmaisvariadaspessoas(sobremaneira asdesexomasculino,dadaadivisosexualdobanho)quequeriamusarquaisquerapetrechosque eutivessetrazidosabonete,toalha,escovadecabeloetc.mesmoestandooutrosA'uwXavante munidos desses mesmos utenslios. Pareciame que queriam garantir alguma forma de contato corporalcomigo,masumcontatohierarquizado,fazendoseuspedidosdeemprstimoereclamando ou chamandome de tsti sovina, palavra muito usada por eles em suas demandas de generosidadealheiacasoeunoquisesseemprestaroquepediam(principalmenteascrianas, ai'rpuduewapt).Muitasvezeseurespondiaaissofazendopedidostambm,ouchamandoosde teirowaptrepe,algocomopido,quequermuitascoisinhas.Tudoissonodeixavadeseruma espciededisputa,dejogo. Sinalizariatalatitudeumademandamaiordeminhaentregasuaentrecorporalidade,dado meualheamentoalteridadeemrelaoaeles?Ouestecomportamentoqueriadizeralgomais? * Amesmanecessidadedeentregapessoaldeminhapartepudeexperimentaremrelao alimentao,principalmentenaaldeiaAbelhinha,naqualcostumomehospedarnaresidnciade AdoTop'tiroeBatica.Residnciaampliada,jquepasseiasnoitesemminhabarracaaoladode suacasaou,dasltimasvezesemqueestivel,emaposentosdeumacasaemconstruoaolado, de Vitrio e Bernardina (genro e filha de Ado Top'tiro) e ocupada ora por visitas, ora por moradoresdasduasoutrascasascomoJaqueline,quenormalmentedormenacasadeAdocom sua me Catarina, e Tsinhts't, adzarudu (menina) filha de Vitrio e Bernardina, ambas dormindojuntas,comoirmmaisvelhaeirmmaisnova.Tambmcostumamdormirnelaafilha
206SegundoalgunsirmosdeLucas,seunomea'uworiginalmenteseria'Uri',masopadreAdalbertoHeideteria acrescentadooR,formandoRuri'.
216
casadadeVitrioeBernardina,Diana,comseuesposoAmauriPahri'wa(irmomaisnovouptabi deCamiloDuts,filhouptabideJosdeArimatiaenetouptabidovelhoDuts),ambosdaclasse deidadeAbare'ucomoJaqueline,intermediriaemrelaominhaeadosadolescentespoca. SesvezesBernardinaeVitriomechamavamparatomarcafdamanhoulanchedatarde emsuacasa,normalmenteeufaziaasquatrorefeiesdiriascomunsnaaldeiacafdamanh, almoo,lanchedatardeejantanacasadeBaticaeAdo.NormalmenteeraCatarinaquemme chamavaparacomer,oualgumamenina,svezesaprpriaBatica,outrasvezesTserebdzaiw.Este netowaw (eTopdat)deAdoeBatica,tendovindodeParabubure(ondeviveseupai)para morarnaaldeiacomoadolescente.Tserebdzaiw eraumaespciedefaztudodacasa,chamado paraastarefasmaisdifceis,comomatargalinhas,porexemplo,dadoovastogalinheirodeAdo quetambmnossupriacomcarneeovos.ErachamadoporHiprdidechefedecozinha,jqueera oencarregadodosserviosdomsticosmaistrabalhosos.Estavatambmsendopreparadoparaser outrotipodechefe:rapazforteerobusto,ativoetrabalhador,diziamquesetornariaTbe,ocargo waw maisimportantedosistemadeclassesdeidade.Oquedefatoaconteceunascerimnias realizadasemSangradouroem2011,comotivenotcia. importante notar afreqentecirculaode comida entreas casas daaldeia, inclusive porqueBaticaeAdosoospaiseavsuptabidamaioriadosmoradores,nosrecebendoalguma coisacomotambmdistribuindo.E,inversamente,vriasoutraspessoasdaaldeia(edeforadela) apareciam de vez em quando para comer em sua casa, principalmente algum filho homem de passagempelaaldeiae,sobretudo,seusvriosnetosmoradoresdolocal. Ditoisto,logonoprimeirodiadepoisdaviagemquefizcomVitrioeTseredzarporvrias terrasindgenas,Hiprdiavisoumeque,jqueeupermaneceriaporumtempomaislongoemsua aldeia,deveriacontribuircomumadespesademantimentosparaaresidnciasemprequefossepara acidade,principalmentecomcarne.Eassimeufiztodasasvezes. Almdessascomprasqueeufazia,aalimentaodacasatambmeramantidaporcompras freqentesfeitasporseusmoradores,sobretudodecarneemuitossacosdearrozefeijo,leo,sal, acar,chmate,cafetc..Noraro,acasatambmeraprestigiadaporalgumacarnedecaa principalmentequandosetratavadadivisodecarnedeuma Adabatsa, jqueacaa,rareada devidoaointensodesmatamentoaoredordaterraindgena,temsidomaiscomumentelevadaa caboparafinscasamenteiros.Acomidaantigatornase,assim,comidaespecial.Masnoforam poucososcasamentosnasdiversasaldeiasligadasaldeiasededeSangradouronoperodoemque estivel.Demodoque,dadasasrelaesdeparentescoentrepessoasdasvriasaldeias,algum 217
pedaodecaasempreacabavachegandoparaBaticaeAdo,honradosvelhosdaregio.Aaldeia tambmcostumacultivaremseusquintaiseroasdiversasespciesalimentares,comomandioca doce,milho(emsuasvariaesmulticoloridasa'uwxavante),abboraa'uwxavante,bocaiva (daqualsecomeofrutocozidoeocarooamendoado),mangaetc.,eostrabalhosnaroaso intensos. Produziam tambm bolos e alimentos feitos de farinha, principalmente de trigo (de supermercado)comquefaziampescaseiros(modawaradzu)eumtipodebolofrito(que,raras vezes,levavacarnemodanamassa)aoqualchamamdetrigo.Muitasvezesparaocafdamanh ouparaolanche,almdechecaf,tambmserviammingais,principalmenteparareaproveitaro arrozderefeiesanteriores. Ocozimento,oacessocomidaesuadistribuioeracontroladopelasmulheres,sobretudo porBatica,cabendoamaiorpartedotrabalhosmaisnovasouquenoeramasdonasdacasa(isto ,nemBatica,nemsuasfilhas),apesardehomensocasionalmentetambmcozinharemnaausncia demulherescomoWere',porexemploedeteremmepedidoparacozinharalgumasvezes.E apesardapresenaconstantedeTserebdzaiwnessestrabalhos.Oquenotiravaoclaropoderdas mulheres sobre o alimento (sobre isso, confira Lopes da Silva 1983). Acesso ao alimento que parece,at,deixarasmulheresa'uwxavanteumpoucomaisgordasqueamaioriadoshomens.O quetambmtemavercomasmudanasemseumododevidanasltimasdcadas,quealmde terem diminudo as atividades de andana e coleta femininas, aumentaram sua ingesto de carboidratoseacarindustrializado.Incluindooconsumoderefrigerantescomobebidacerimonial edefesta.Umdetalhesobreocartercerimonialdorefrigerante:noqueseuconsumosejafeito emcerimnias,massimqueeleusadocomoddivaemdiversassituaes,sejaaosefazeruma visitaaalgum,sejacomopresenteparaalgumparentemaisvelho,sejamesmonasofertasrituais coletivasdeddivasalimentarescomopagamentoeagradecimentoafigurasquepatrocinam(como osdanhohui'wa),queauxiliam(comoquandoumaclassedeidadefazalgumservionoritualde outra: por exemplo, limpar e preparar o crculo de terra onde se realiza a luta do Wa'i) ou simplesmentequeocupamumlugardehonranessesrituais(osvelhos). Emcasaosmaisvelhostambmsoservidoscommaishonra.Namaioriadasvezesovelho Adopermaneciasentadoemsuacadeirabeiradecasa,ealisuaesposa,Tserebdzaiwoualguma meninalhetraziaasmelhoresporesdecomida,sobretudodecarne.Ascrianastambmeram servidas com prstimo, e os demais costumavam se servir sozinhos e sem muita cerimnia a respeitodequantidades(anoserquandoasmulheresmaisvelhascontrolavamoacessoacertos 218
alimentos,comocarnes).Alis,quantomaischeiooprato,melhor.Nogeralaspessoaspreferiam comerempratosgrandes,panelasourecipientesqueimpossibilitassemaosdemaisveroquehavia ldentro,evitandotantoavigilnciasobreaquantidadequecomiamquantopedidosdecomidaque, dadoodeverdagenerosidade,nopoderiamserevitados. Noqueaspessoassemprepedissemcomidaumassoutras,maspodiampedirsempre quepudessemteralgumcrditosobreaoutranahierarquiadoparentesco.Estahierarquiapareceu me responder por duas premissas bsicas: senioridade e afinidade. Sendo o crdito alimentar pendentesempreparaaquelesquesooudoadoresdemulheres,oudonosdacasacasoosdonos no sejam recebedores diretos de mulheres dos visitantes, como na relao entre um tsa'omo (marido de irm) e um ai'ri (irmo de esposa). As premissas da senioridade e da afinidade parecemseinterpenetrarparcialmente:nogeral,oafimaserservidoprimeiroeratambmaquele queprimeiromorassenolocal.Dadaaprescriouxorilocaldemoradia,quemchegavadefora chegava,assim,devendo.MascomomuitocomumtambmoquejfoinatadoporMaybury Lewis(1984[1967]e1979)queumalinhagemcom pai forteevrios irmos consigaatrairas esposasparasuasresidncias,principalmentedevidoamigraeseconstituiesdenovasaldeias (oqueocorreunaAbelhinha),nemsempreosafinsaquemsedeveestoporperto. Issotudonoquerdizerqueospedidosfossemfeitosatortoeadireito.Nogeral,qualquer pedido pareciame uma espcie de atrevimento, principalmente em casa e nos momentos mais ntimos.Edefatonosocomunsquandoaspessoasestocomendoemcasa. Masosatrevidos, justamentepordemonstrareminiciativa,adquiremumpoderperformticosobreoquepedem(eo que,muitasvezes,pegamsempedir),enocostumamsercensurados.Aindaquealgumapequena disputapossaocorrer,principalmentedetomldico. A respeito da minha relao alimentcia com a famlia que me adotou, esta era, principalmente no comeo, mais de quem alimenta do que de quem alimentado eu devia contribuir comcomidaparaacasaeesperarreceberalgumapartedotodo,principalmenteem grandesquantidadesdearrozefeijo.Essasprestaesintensassoesperadasdapartedeumirmo oufilhomaisnovo.Ocaula,babati,temdetrabalharmuito,dissemeumavezMarlito,filhode Cornlio207.Masnoerasesteocaso,porquealmdecaulaerecmadotado,eutambmeraum danhimidzama. Nojogohierrquicoauwxavante,ostatusdeum danhimidzama comoeupareceume
207Omesmovaleparaodaet'wa,membromaisnovodeumadadaclassedeidade,segundomedisseramnaaldeia Belm.DiziammequeBenevaldo, daet'wa tepa,tinhaquetrabalharmaisqueosoutros,edesafiavamnodesta maneiraquandoeleseentregavaaosmomentosdepreguia,oquenonecessariamentesurtiaalgumefeitodecomando.
219
dbio.Tendosidoadotadoefamiliarizadoatodasasrelaesdeparentescopossveis,meulugar nashierarquiasrelativasfcildeseridentificado.Elevaliaplenamentenocasodeminharelao comaqueleshierarquicamentesuperioresnoparentescoconformeosprincpiosquemencionei,mas no valia to plenamentenocasodos hierarquicamenteinferiores.Ascrianas,principalmente, eramsempremuitoinsistentesemmepedircomidaediversasoutrascoisas.Os'riti'wainclusive oqueeramaiscomumnaaleiaBelm,muitasvezesvalendosederelaesdeparentescopara tanto:mama,mramdimeupai,meutio,estoucomfomediziam.Masparaeleseramaisfcil eunegar,sobretudopelosubterfgiodosjogosdepalavrasentreclassedeidadeantagnicas,eeu podiamesaircomalgumafrasedotipomaredi,Abare'uwatsetdi!novoudar,Abare'uno presta!... Noerascomidaquemeera pedidaseguidoestejogohierrquico,mastambmuma diversidadedepresentes,brinquedosparaascrianas,bolasdefutebol,roupas,esqueiros,canivetes, lanternasemesmodinheiro,emuitofumo.Semprelevavacomigoparaasaldeiasgrandequantidade detabaco,esteacompanhamentoculinrio,comodiriaLviStrauss(2004[1967]),sejaoraladoe embalado em saquinhos para os homens das mais diversas idades, seja fumo de corda, principalmenteparaosvelhosealgumasmulheresmaisaguerridas(comoCatarina,porexemplo). Era muito comum que algum jovem ou adulto, desde o 'riti'wa ao dapredu, passando pelo danhohui'wa, me demandasse fumo de uma maneira muito assertiva: eles simplesmente se aproximavamediziamwar,fumo,jesperandoqueeulhesdesse. Estasituaodbia,quemecolocavacomograndefontededdivasoupresas,eramede difcilaceitaoecompreenso,almdesetransformaremfontedeestresseeirritaocotidianas, inclusive para aqueles que me pediam coisas e no podiam obter, demonstrando seu descontentamentochamandomede tsti,sovina.Porque,apesardedartanto,eucontinuava sendotratadodestaforma?Porque,seeujsabiaqueoaparentamentoeaentrecorporalidadese constituampeloconvvioepelacomunhoalimentar,etendoeusidorapidamenteinseridonas teiasdesteaparentamento,aindaassimtudoqueeulhesdavaparecianobastar?Porque,enfim,eu tinhasvezesaimpressodequemesonegavamcomida,mesmoeucontribuindocomoqueme pareciasersuficiente? Issomecausavaestranhamento,principalmentedepoisdetermedadocontadaregrada senioridade.Porqueumadasprimeirasfrasesquemeensinaramporescritoema'uwmremefazia referncia, justamente,aalimentaro pai.NaqueletempoeuconversavamuitocomTiur, meu sobrinho da Abelhinha, e pedialhe tradues de palavras em portugus ou o significado de 220
expressesqueeuouviaemsualngua.Umdia,porcontaprpria,eleescreveuumafraseema'uw mremeemmeucaderno,depoismeensinouosignificado:wati'datsamamaremaestoulevando comidaameupai. Custeiaperceberqueminhaprpriasenioridadenessasrelaeseradbia.Afinal,apesarde minhaidadeeminhaposionasrelaesdeparentesco,euera,defato,omaisnovoali.No somenteumrecmchegado,mastambmalgumquenotinhapassadoportodososrituaisde maturaoegentificaonotinhaaorelhafurada!enotinhaaindalhesdemonstradominha entregapessoalemeucompromissocomsuagente. Emtermoslvistraussianos,poderiadizerqueofatodeeuserumcontribuintedealimentos crusnometornavadignodeplenoconsumodealimentoscozidos,afinaleuaindaprecisavaser cozido.Nocozidodefato,afinalissosignificariaminhamorte,masfiguradamente,transitando muitomaisentreosplosa'uwxavantedacruezaedocozimento:aguafria,ofogo...Sesomente deixadeserpresaopredadorquedonodofogo,oprocessodeirdeixandodeserpresaeirme tornandopredadorenvolveriapassarporvriasfases,suasquasemorteseseusquaserenascimentos. Poismudanasiamacontecendocomaintensificaodeminhaparticipaonasatividades declassedeidade,queeramasmaisvariadas.Desdetrabalhoscoletivosdelimpezado war e manuteno da aldeia principalmente para dias de festas , nos quais as classes de idade competiamesedesafiavamreciprocamentearespeitodequemtinhamaiscapacidadedetrabalho, ataconstruodoH,aCasadosAdolescentesdaAbelhinha,comomostraaimagemabaixo.
221
Desderituaistpicosdasclassesdeidade,comocantosnowar,cantosnoturnos,corridas detoraeoutrosrituaismaiores(que,nocasodaAbelhinha,aconteciamprincipalmentenaaldeiade Sangradouro),atjogosdefuteboleosvalorosamenteextenuantestreinamentosdotimejuvenil daaldeia(quecontavacomosadolescentes,alguns'riti'waealgunsdanhohui'wa)paraoqualme foi difusamente imputada responsabilidade (juntamente com Marcos, tambm danhohui'wa e tcnico deste time), obviamente sendo eu o responsvel por contribuir com camisetas, shorts, meiesebolaparaotime(posando,abaixo,emmanhdetreinamento).
Aquiotrabalho,queddireitoaretribuiessobretudoalimentares,nonecessariamente umamedida,masumaaposta,umjogo,umdesafio.Quemmostrassemaisserviopareciaadquirir maishonraestatuse,assim,tornavasemerecedordemaiorescuidados.Mostradeservioque, muitasvezes,eraescamoteadopordisfaradosmomentosdepreguia, wa'a.Umapreguiaque podiasertambmumatodeindisciplina.Porquetantoquantoalgumpodiaretirarsedasvistasde todosparadescansartemporariamentedeumritualexaustivo(comoasdanasdafuraodeorelhas dosadolescentesdeBelm,dasquaisparticipei,quelevaramodiainteiro),opreguiosowa'adi podiaassumirumaatitudequaseexibicionistadedescasoeinatividade.Porexemplo,quando estvamoslimpandooptiodaAbelhinhaparaocampeonatodefutebolqueeraorganizadoem comemoraopassagemdocargodediretoradaescolaindgenalocalparaBernardina'Rnher, algumasvezesosadolescentessedeitavamnocho,entreasenxadasusadasparaprepararocampo, emesmo dentrodeumcarrinhodemousadoparacarregaraareiaparaaterraplanagem. Em 222
Belm,certafeita,numamadrugadaemqueosHtr,padrinhosdostpa,esperavamemvolta do fogo a chegada dos demais danhohui'wa para a realizao de mais um canto e dana do Wanoridbe,euhaviamedeitadosobreoscobertoresdealgumoutrocompanheiro(aoladodeum oudoisdeles,comoocostumededormirjuntos)emerecusavaalevantarperanteasinsistentes demandasdos Htr.Respondilhescomumavozlamuriosa: wa'a!,estoucompreguia!e recebi deles risadas de cumplicidade. Tambm era comum que algum, tentando ganhar prepondernciasobreumoutro,pedisseparaqueooutrofizessealgoparaelee,dadaanegativa, chamasseodewa'adi. Alis,estaoutraatitudebastantecomumnojogohierrquicodepredaoauwxavante: pedirparaqueoutrofaaaquiloquevocdevefazerparaumterceiroquedetenhasobrevocalgum crdito (o figurado crdito canibal). Esta relao envolve um misto de comando, desafio e indisciplina que pode acontecer tambm em relaes em que a hierarquia esteja um pouco embaralhada:porexemplo,quandoumjovemldermuitoparticipativodedebatesnaaldeia,de associaoindgena,ouentodotadodecargoritualimportante,demandealgodealgumemidade prximasuamasque,segundoclculosdoparentesco,poderiaserseupai,porexemplo,aindaque maisnovoemidade.Namaioriadasvezesissoparecemanterseucarterldico,reforadoquando ostrabalhoseramfeitos(oudemandados,emdesafiodametadeagmicaoposta)porclassesde idade (abaixo, imagem da classe dos tpa trabalhando com os adolescentes Nodz'u na Abelhinha)208.
223
Nocasodeembatescoletivos,apreguiadeumemtrabalhar,danar,cantaroujogarfutebol podesergravementeacusadaporseuscompanheiros,jqueatrapalhaaclassecomoumtodo.Ouo timedefutebol,cujoscritriosdeformaosomaiscomplexos(Vianna2001e2008).Jalgumas demandas feitas por lderes mais bravos tsahi ou mais velhos, podem perder o tom de brincadeira.Aindaque,mesmodandobronca,nopareamtermuitagarantiadeobedincia,ano serdepersuasoedesafio,sobretudopelacargadejulgamentomoralenvolvidasemelhantequela presentenasacusaesdesovinissenosentidodequeacondutadapessoaagarantiadesua humanidade. Alis, Vianna apresenta uma fala muito interessante de Ado Top'tiro sobre a bronca,falandoparaseusfilhosarespeitodaderrotanacorridadetorasounofutebol:seumde vocslevaremumabroncadosmaisvelhos,vocsameaamdeiremboradaquidaaldeia.No assimqueseganha.Sevocquiserganhar,temquesepreparar.Ento,noprecisaquererirembora paraoutraaldeiasporquevoclevouumabronca.(Vianna2001,Apndice:23).Ouseja,a disciplinaapareceligadacompetioe,poroutrolado,aindisciplinapareceencontrarrespaldona possibilidadesempreabertadeiremboraparaoutraaldeiaelsefamiliarizar.Oque,porsuavez, demandariamaistrabalho,comosepodecreraindaqueumapossibilidadededesvioealternncia. Por outrolado, os A'uwXavante no furtavam ser generosos comigo. Nas pescarias e caadas,mesmonoconseguindoabaterquasenenhumanimal(anoserpeixes),euquasenunca voltavaparaaaldeiademosvazias. Principalmenteporusaraprerrogativado tsi'r'wa:sempre quealgumdametadeexogmicaopostaapanhaalgumacoisa,outrodaoutrametadepoderequerer oqueelepegouusandoaspalavrastsi!tsi!,independentedequalsejasuarelaodeparentesco. Apareceoperaromesmoefeitodeoportunidadeeiniciativaquedoderodojogodebolita,coma diferenadeque,nestecaso,quemfoirequisitadodeveobrigatoriamentedaroquefoipedido.Eu tambmpodiaapelarparaaminhasenioridadeperanteosadolescentes,meuspatrocinados,queme davamespontaneamentealgumapresa.Essaspequenasconquistas,sejadepesca,sejadepredao exogmica,muitasvezesnovoltavamemminhasmosparaaaldeia,sobretudosealgummama meencontrassepelocaminhoefosselogoagradecendo:hpripri,tatanumaversopara portugus,algocomoparabns!agradeoporistoqueestmetrazendo!.Nestescasoseudevia dar o que estava trazendo prontamente para o meu pai que fazia o pedido disfarado de agradecimento,jqueum nodeveprecisarpedirparareceber pai . Todavia,numaocasio,emBelm,conseguichegaraldeiacomdoisjabutisu'. Eum quatiwa'recujabuscaeapreensofoibastantepeculiar:voltvamosdecaminhoquandoum
224
coletivodequatisatravessouaestrada,umdelessendoatropeladonestemomento.Oveculoparou maisfrentee,desbito,resolvidescerdaboliaparacapturarapresa,comofaziammuitasvezes osA'uwXavantenessasocasiesemquealgumanimaldespontavanaestrada.Nomesmopasso, meuirmomaisnovoBenevaldopulavadacaamba,enissoosoutroslogoviramoensejodeuma disputaecomearamagritarkuw,hakuw,hakuwaversodokuuuwusadaparaincentivar corredores, principalmente nas corridas de tora. Consegui chegar primeiro, pegar para mim o wa'reedelavisteiumaquantidadedeoutrasdessaspresasprosseguindoatravessiadaestrada. Griteipelosmeuscompanheiros,quejestavamsaltandodocaminho,armados,rumoaomato comcachorros,conseguindocapturarvriosquatis.Chegandoaldeianoite,deio wa're para meutsimiwainhAlfredo,umdosjabutisparamamaMrcio(que,defato,haviamepedidoque lheconseguisseumnacaada)eoutroparaodub'radaPedro,quehaviamedadocaronanavolta paraaaldeia.Porqueocaminhoemqueestvamosatolounumcrregodaestradadeterrapara Belme,passadashorasdenossoatraso,ocarrodaaldeia(doqualumdosmotoristasautorizados pelo war era Pedro) veio procurarnos e foi nos trazendo aos poucos. Nessa altura dos acontecimentos,algumaposiodehonraeujtinha,jqueviajaranacabinedocaminho,aolado do motorista PaulinhoTsere'u'r filhouptabi do cacique etambmforaoprimeiroaser levadoparaaldeiapelocarrinho. Enfim, com a intensificao de minhas atividades coletivas, caadas, trabalhos rituais, ddivaseserviosdiversos,passeiaserprestigiadodiferencialmente.Porexemplo,prestigiadocom cantosporAdoTop'tiro,quemeiadandoalgumascanesquesonhava,ensinandomeparaqueeu cantassecomosadolescentesdaAbelhinha.Tambmpasseiasermaisbemalimentado,sendoque svezesBaticareservaumasegundaporodecarneoupeixeparamim.OuquandoMarcos(que tambmerameutsa'omo,genro,porsercasadocomafilhadeLucasRuri'),metrouxeumaperna de cotia para comer depois de um duro dia de trabalho na construo do H da Abelhinha, impedindoqueascrianasviessemmedemandarumpedao. Emsuma,ddivaseserviostm comocontraddivaopoderdedeixardeserpresaetornarsepredador,comedordecarne.Um poderqueprecisa,contudo,serconstantementeatualizado,comomemostravamosa'uwxavante, sempremepedindomais. Tudosepassava,portanto,comoseeudevesseseriniciadoaindaquetardiamenteeainda quetomandopartenoesquemaapartirdaminhaidadeaproximadanasrelaesrituaiscentradas principalmentenasclassesdeidade,paraqueadquirissegradualmentemasnoabsolutamenteo statusderecebedor(oupredador)dedons. 225
democrticos. Com isso ele se referia ao fato de que no era necessrio comear do zero a seqnciadefazesdasclassesdeidade,eupoderiaentrarnaquelamaisprximadaminhaprpria idade, mas deveria mesmo assim participar da hierarquia. Democracia, a, conta tanto como burocracia (no sentido de registros de comprovao da passagem de fases) quanto como igualdadedecondies:minhascondieseramdesiguais,diferentes,afinaleujeraumjovem adulto,entodeveriamemisturardiretamentecomosjovensadultosaoinvsdepassarporalgum tipo de madureza selvagem. A ausncia de democracia tambm apontava para uma impossibilidadedeigualdadeentreeueeles,tampoucoentreelesmesmos,numjogodecontnuase desequilibradasinverseshierrquicas.Pois,enquantoeraumservilvoluntriodesuasatividades humanas,eutambmnodeixavadeserumapotnciaestrangeira. Parecemequeessetipodeatividadequedemandavamdemim,adeprovedor,caador, aqueladealgumquetraziacarneeoutrasriquezasparacasa,eprincipalmenteogestodedoar,de dardecomeraomaisvelho,fazpartejustamentedohabitusadquiridoedesenvolvidoapartirda entradadosadolescentesmasculinosno . H Antesdisso,osmeninosnoprecisamcaarnemtrabalhar,todasascrianassoservidase alimentadassemquesecobrenadadelas.Depoisdaentradanacasadossolteiros,pelomenosno casomasculino(talvezofeminino,nesseaspecto,tenhaumcartermaisgradual,aindaquemarcada pelocasamentooumesmopelamenstruao),queosadolescentespassamaserobrigadosaservir aosmaisvelhos,adarcomidaaseuspatronosdanhohui'wa. Assimosistemadeclassesdeidadeaparececomoessencialparaasoperaesalimentares doparentesco,paraacadeiaalimentardoaparentamento. Entretanto, como j vinha sugerido, h outro elemento em jogo, afetando tanto minha entregaquantomeusmritos.Ofatodeeuserwaradzu,ofatodeestarsempreindoevoltandoda cidade,faziamcomqueeufossetambmumtipodepotnciaestrangeira.Porcausadisso,parece me,sempredemandavamdemimmaisdoquemepareciaosuficiente,afinaleuvinhadiretamente deumaparagemmtica,trazendotantosaberesquantosubstnciasdiversas,edeviadividiresse podercomosdemais.Aofazeressadistribuioemlargaescalaeuacabavatambmampliando minhaprpriaescalapessoal,magnificandome.Quantomaiseudava,maisestreitavameuslaose aparentamentos,maisrecebiahonrasemritos(comocanesecargoscerimoniais)mas,poroutro lado,maiseudeviadar.Porque,quantomaisntimoemaisparente,maisaentrecorporalidadedeve operar, mais oque meu tambm dos outros. E seo que meu vem diretamente da fonte 226
estrangeiradetantapotncia,entocadavezmaiseuprecisavadistribuirtalpotncia. Osprimeirospedidospodemtersidomaismarcantes,comosefossemumprimeiroritode passagem.Foramacordos,comoaquelefinanciamentodeviagemjuntoAssociaoWar,ouo feitonaaldeiaBelmarespeitodeminhacontribuionaformadeumtecladomusicalparaMrcio Tserehit,paraqueelepudessecrescercomocantoreassimengrandeceraaldeia.Escusadoisso, outrospedidosmepareciamaumentar:seeutinhatrazidocomidaumavez,daprximaeudeveria trazercomidaeroupas;algunsshortsdefutebolumavez,daprximamuitosmais,enosuma bola,masduas.Noscomidaparaosvelhos,mascincoreaisparaalgumircidade,depoisdez, depoiscinqenta...Assimmeapareceuainflaoa'uwxavante. * Talinflao,quepodesercomparadadealgummodoinflaoxikrin(Gordon2001e 2006),envolvenosfatoresligadoscapturaeamagnificaoritual,mastambmligadosacerta restrioedistintividade.Squenestecasoarestrioemgrandemedidaviolada.Porquedadaa peculiargenerosidadeeoportunidadedeiniciativanosjogospredatriosa'uwxavante,quasetudo oquetrazidodeforaacabasendodistribudo,desdequenosemantenhaofundamentalsegredoa respeito.Aquelemesmosegredoqueosviajantesmticosmantinhamaovoltarparaaaldeia,sem revelardeprontooqueecomotinhamconseguido,comonotaMedeiros(1990),masquelogo deveriaserquebrado. Assimcomonocasoxikrin(dentreosMebngkreKayap,povoJdonorte)analisadopor Gordon,apesardequevriosobjetosentremtambmnaredededistribuiodoparentescode forma equivalente comida (Gordon 2006: 354 grifo meu), nem tudo distribudo to facilmente.Umautomvel,porexemplo,possede famlia,de pai para filho,pareceseguiruma lgica de distribuio semelhante quela das posses familiares de datede'wa do Darini, por exemplo,emqueospoderespassamde pai para filho,comonocasodo Wahitede'wa (donoda cobra, que espanta esses animais e cura suas picadas, podendo tambm uslos contra seus inimigos, posseexclusivados waw), do Wahuptede'wa (donodotempooudaseca,que faz choverouparardechover,posseexclusivados Po'redza'ono),do Hutede'wa (donodaona,com poderessobreofelinosemelhanteaosdodonodacobra)etc. Entretanto, como mostra Rosa Bueno (1998), os conhecimentos mgicos e teraputicos a'uwxavantetambmencontramvlvulasdeescapeemrelaofiliao,sobefeitosdeoutros aparentamentos,comoacognao.OcarroeocaminhodaaldeiaBelm,quemisturavamtantoa regra da paternidade quanto decises polticas coletivas do conselho no war, e o carro da 227
associaoWar,cujosistemadedistribuiodecargosenvolvevotaoeparentesco,parecem operarsobessesmesmosprincpios:filiao,cognaoealiana,emsetratandodedefinirquem controlaseuuso.Tseredzarmedisseumavezqueaparticipaonaassociaoincluatodosos membrosdaaldeiaetambmestavaabertaparamembrosdefora,tudoconformeoparentesco. Portantoprovvelqueahierarquiadoparentesco,envolvendofiliaoealiana,almdaousadia dequemtomaainiciativaedoprestgiopessoal,sejafatordedefiniodequemseroencarregado dedirigirocarrodaassociao.Vitrio,quetemsidoomotoristadaWar,ogenromaisvelhode AdoahabitaraAbelhinha(ooutroWere',sobrinhodeVitrio),Tsa're'watede'wa,suafamlia 'Wamartede'wa eestemaltacontacomo a'uw uptabi,gentemesmo,gentepropriamentedita. Quantoadoiscarrosparticularesquepudeobservarmaisdepertonasaldeias,umdeleserausado pelofilhouptabi,pelogenrododonoepeloprprio,eooutropelodonoeseusobrinho/filho. Vseaoperaodeespalhamentodapossenumoutroexemplodecargo,oAih'ubuni:o cargotemsidoafetadoporummecanismodequasecomunizao(Gordon2006),dedistribuio dopoder,comaprogressivainclusodemaisgentesobsuagideespecialnasclassesdeidade.Na aldeiaBelm,porexemplo,foramseis Aih'ubuni nodz'u noltimo H,etenhocuriosidadede saberquantossoagoraosdaclassedeidadeempossadaentre2010e2011,Anarowa.Poisconsta quenotempodeMayburyLewis(1984[1967])eramapenasdois,somente Po'redza'ono.Hojej so waw tambm. Os prprios A'uwXavante reconhecem essa mudana. Diversos outros cargosseguemvastadistribuioemuitodifcilencontraralguma'uwxavantequenosejadono dealgo.Entretanto,Oscargosdeclassedeidade,bemcomoosdonosdeoutrospoderes,no parecemserafetadospelacirculaodemercadoriascapturadas,nemessasmercadoriasparecem adquirirstatusdepossecerimonialcomoaconteceriaentreosXikrin(Gordon2006:359,passim). Arespeitodaprerrogativadeusodecertosadornos,porexemplo,apesardagrandequantidadede shortsesportivosesuasvariadascorespreto,vermelho,azul,verdeetc.queleveiparausaremem rituais,namaioriadoscasosascoresdosshortseramrelativas,noabsolutas.Isto,determinavase emcadagrandecerimnia(oujogodefutebolimportante...)quaisseriamascoresusadasporcada classedeidade(oupelotime),comalgumasvariaesparacertoscargosespeciais,sepossvel (comoshortsverdescomlistraslateraisbrancasparaosAih'ubuniadolescentesnumritualemque osoutrosadolescentesusavamshortsverdes).Masissonoquerdizerqueaposseouusodesses shortssetornasseexclusiva.Muitasvezes,quandoconseguem,elesmimetizamnoshortsasmesmas coresqueusariamparapintarascoxas,dependendodapinturaescolhida.Outrasvezesissono possvel.OnicotipodeshortsquemedisseramserrelativoaumcargoespecialoPahri'wa 228
obranco.Masissomaisumaprefernciadoqueumaregra,edependemuitodosshortsqueos participantesdoritualtmmo.O Pahri'wa umcasobastantepeculiardeconcentraode poderritual,oudedisputadepoderritual,oquerevelasuapotencialexclusividade. Diversamentedoquepareceacontecercomosnkrjxenomesxikrin(Gordon2001e2006: 366367,passim),vriosdoscargosa'uwxavantenoparecemperdervalorpelomotivodesua maiordifuso,nocostumamserrejeitados,nemseuspossuidoresparecemtermenosorgulhodeles porcausadisso.Ou,sealgumaperdaacontece,elanoparecesertoradicalquantonocasoxikrin. QuandopresencieiTseredzar,porexemplo,apresentandosecomoAih'ubuni,semprenoteiuma atitudedegrandeaprovaoerespeitoporpartedesuaaudincia. Noquerodizer,falandoemdifusodepoder,queentreosA'uwXavanteoprincpiode concentraodepodersejaanuladooumesmoesquecido.Porque,afinal,essesdoisprincpiosme parecemmaisumcasodedoisplosdeumpndulo,comotemsidosugeridoaolongodatese. Aindaassim,adifusodepoderparecesermuitovalorizadapelosA'uwXavante,deformaum tanto semelhante valorizao feita, por exemplo, pelos Ramko'kamekra (povo J setentrional, comoosXikrin),naspalavrasdeKurtNimuendajeRobertLowie: OfthefourtribalgroupsnowintheRamko'kamekrasettlement[]eachhasone ormorehonorarychiefsineachoftheothersthemore,thebetterintheinterestoftheir foodsupply.Allthesecourtesychiefs,then,formtheKingVultures,whoin1931numbered 34(NimuendajeLowie1938:6970) Ouseja,entreosRamko'kramekra,certoscargosdechefeshonorrios,responsveispor cortesiasedistribuiodecomida,deveriamsemultiplicar:quantomais,melhor.Essaassociao entrecargoshonorriosedistribuiodecomidanoficamuitoclaranoexemplodosAih'ubuni, aindaquealgunsdosprincipais Aih'ubuni deBelmfossem,tratandomecomo danhohui'wa,os maisgenerososaomedarcomida(ouasugerirqueoutrosmedessem...),eagenerosidadesem dvidaumavirtudedemandadadetodos,masprincipalmentedoscargoscerimoniaisdasclassesde idade.Alis,ofatodeseremdoisosAih'ubuniconsideradososprincipaistantoumrefluxode concentraocomoseestesfossemmaisqueosdemaisoficiantesdocargoquantoumaagncia dedistribuiojqueseumaiorstatusestavaligadojustamentesuagenerosidademaior,to espontneaquantoobrigatria. Masaassociaodocasoramko'kamekraaoa'uwxavantepodeficarmaisdiretaemse 229
tratandodos'Wamardzubtede'wa,porexemplo.Cargoqueeumesmorecebiequepossedeuma diversidadedehomensnasaldeiasemquevivi.Estecargotemcomoumadesuasobrigaesdar bolosdemilhopara famlias enlutadas, aplacandosuatristezaeseudesejodevinganacontra algum assassino ou feiticeiro que tenha causado a morte de seu parente. certo que alguns 'Wamardzubtede'wareclamamparasimaiorautoridadesobreocargo,comomedisseVitriocerta vezarespeitodeseuirmomaisvelhoBenjamim,deSangradouro,queseriaaquelequempoderia autorizarocargoparaoutraspessoas,dadoseucarterdea'uw uptabi.Aindaassim,aquelesque nopertencemaestemaisaltoescalopodemagirsuarevelia,porinveja.Ditoisto,valenotar que,quantomaisforemos'Wamardzubtede'wa,maisbolosemaispacificaorecebeafamliade ummorto. Sobreestarelaoentreconcentraoedistribuiodaslideranas,Hiprdimedisseuma vezquealgunscriticamaAssociaoWardizendoqueelaquerrepresentarosA'uwXavante, pelofatodaassociaoter(aomenosem2008,quandotivemosessaconversa),algunsprojetosque voalmdoslimitesdeumaaldeiaoudeumaterraindgena:oprojetoMarnBddi209deterra indgenacontnuaparatodoseupovo,tomandotodaaregioporondeosTsa're'wacirculamo que,segundoele,umprojetodealiana,paradividirascoisas,inclusivecomos Tsa're'wa ; o projeto de controle da especulao agrcola nos entornos das terras indgenas; e rdios comunitriasnasaldeias.ElemedissequeaWarbuscaumaconflunciadaslutasa'uwxavante, masissoapenasumaofertaaquemquisertomarpartequemquiserparticipar,pode.Quemno quiserparticipar,noimporta,issonolheconcerne.Algunsgostamdisso,outrosno,nosedeve ser ingnuo. porisso que, segundoele,no h como haveruma liderana, preciso haver vrias. Assim,entreaconcentraoeadisperso,fluemasrelaescosmopolticas(queincluem atossobrehumanosTsa're'wa)eestratgiasdemagnificaoa'uwxavante. * Postasessasressalvas,oquedeveserenfatizadoparaocasoa'uwxavanteouparaomeu casocomosa'uwxavanteumacontinuidadeentreaentregadeddivasepresaseaentregade simesmo.Participao,servios,convivncia,ddivas,comida,bugigangas,dinheiro,tudoparece convergir,nassuasdevidasproporesecortes,nummesmofeixedevetoresdeaparentamento.O queproduziriavetoresinversos,contraddivas:aquisiodeprestgio,cargosepossescerimoniais, sobretudoduranteosperodosrituaisdavidaemqueestaentregapessoalmaisrequerida,como
209ParaoqualatesededoutoradodeCeredaGomide(2008),homnima,propefundamentoetnolgicoegeogrfico.
230
entreasfasesdos wapt'rti'wa danhohui'wa , e ,ounosrituaisdo Darini . * O tom, por assim dizer, sacrificial do banho, da alimentao e seus modos mesa, parafraseando LviStrauss, envolvendo uma obrigao de entrega do corpo ao corpo coletivo, replicaseemcertograunosritosdoOi'opraticadospelosmeninos. O Oi'o umritoimportanteparaavidados garotos,quecomeamlogocedoaserem treinadosparatanto. Osmeninos,muitopequenos,quevinaaldeiaAbelhinhatreinando(ebrincando)parao Oi'o,mesmosemabordunarsticafeitadaraizdomesmonome(oi'o),tpicadoritualformal, seguravamcomamoooutrobrao,comoseelefosseumaborduna(oucomoseabordunafosse umbrao?).Assim,batiamumnobraoenotroncodooutrorepetidamenteatquealgumdelesse afastasse,comosefaznoOi'o. Esseswatebremieai'repudu(nofcilprecisarsuasidades,adiferenaprincipalqueos ai'repudujestoquaseentrandonaCasadosAdolescentes),naAbelhinha,trsouquatro,quatro oucinco,apesardemuitoamigosentresi,semprebrincandojuntos,jcomeavamafazersua prpriapoltica(porfaltadeumtermomelhor,aindausareieste). Certavez,quandoospresenteeicomalgunsbichinhosdeplstico,tentavamdecidirentresi qualseriaochefedanhim'h'adosbichosdebrinquedo.Chegaramconclusodequeagirafa seriaochefeporsermaisalta,terocorpomaior. Hiprdi,noutraocasio,comentouqueessadisputaparaverquemseriaochefeeramuito comumnasbrincadeirasdestesgarotos.Trsmeninosqueestavamsemprejuntosdecidiramum sistemaderodziodechefiaentreeles.PorseremdoiswaweumPo'redza'ono,oPo'redza'ono reclamavaqueesserodzionoerajusto...Almdisso,elescombinavamregrasedesafios,como ficarodiainteirosemchinelo,ouficarbrincandodiretosemirparaacasaalmoar.Depoisdeme contaressascoisas,Hipachamouostrsepediuparaquedanassemparaagentever.Emseguida, pediuparaqueeulhesdessealgumaguloseimaquetivesseemminhabarraca,afinal,serochefes nofuturo. MasoOi'onoumexerccioargumentativoedecisrio,umaprovadefora,resistncia, coragem.Etambmpareceserumamaneiradeordenarasagressesentrecrianas. ComojnotaraMayburyLewis(1984[1967]),ascrianasa'uwxavantetmumavidade pouqussimas interferncias disciplinares dos adultos. O mais comum que se ouve so alguns adultoschamandocrianasedizendoparanoseafastaremmuito,senoiroseperder,datsimini. 231
SegundoVitrio,oTsa're'wapodeveraquelacrianadesgarradaequererpegarparaele,demodo queacriananuncamaisvoltar.Assim,ascrianasqueandammuitoafastadasdopermetroda aldeiasochamadas po're',desobedientes,quenoouvem.Masaindaassimnocostuma haverpunioparaelas.OuapuniopareceseraprpriacapturaporpartedosTsarewa.Nisso parecehaverumecodaquiloqueFaustosugeriuserocarterambivalenteentreocuidadoeo descuidodasrelaescomrfos,cativosexerimbabosnaAmaznia(Fausto2008:354),mas para crianas no adotivas, por assim dizer: para os prprios filhos. Seria uma comparao exagerada,ouseriaocasodeumanuanceumpoucomaissutilentreafiliaoeaadoonocaso a'uwxavante? Dequalquermodo,osadultosnocostumaminterferirnasbrigasdascrianas,esvezesat achamgraa,comoquandoumacrianatentasevingardesajeitadamentedeoutra210.Tambmno seapressamasocorrercrianasquechoramouquefazemalgoinapropriado(comourinarseou defecarsepublicamente),tampoucoaspunemporcausadisso,oufazemnoraramente,oqueno deixadecausarconstrangimentogeral.Comocertavezemqueassistiaaumvdeonacasadeum parentelotadademulheresecrianas:umadascrianasdefecousetodaecomeouacausarum estardalhao,levandocomissoumseverotapadesuame(paraespantogeral!)quefinalmentea puxouparaforadolocal. Enfim, noqueconcernearelaoentreas prprias crianas dosexomasculino, o Oi'o pareceseraformamaisacabadadedisciplina. SegundoGauditano,quandoosmeninosestobrigandodemais,osmaisvelhosresolvem realizaro Oi'o,conformelhedisseumancio.Elelhefalouqueo Oi'o serviriaparaensinara crianadaanosentirdor,umalutaentreoscls.Temquesaberperdereganhar.Oobjetivo[...] trabalharcomascrianas,noopaiacharbomseganhaouperde.aformaodascrianas. Todomundousaseusremdiosdeproteoparaomeninoficarforte,nosentirmedo,nosentir medodoadversrio,dador.Cadahomemessahoracomeaacuidardeseufilho,prepararparao ritual,pintarele,orientarele.Agenteficavagrandeecomeavaapensarqueestavanahorade fazerooicomogrupo[tsi'r'wa].Fazoientreosclselutaentresi(Gauditano2010:62).
210 Presenciei,emvisitaaumaoutraaldeiaporcontadeumjogodefutebolentreotimedaaldeiaemqueeuestavaeo timeda aldeiasede daterraindgiena,umabrigaentreduascrianasquetinhaaqueletomldicoaludidoacima, peranteaqualalgunsrapazesehomensdotimevisitantecomearamafazertorcidaedargritosdetuuuuquando algumdavaumgolpemelhornooutro,atqueduasmulheres(provavelmenteasmesdascrianas)passaramalutar tambm,umadefrenteparaaoutrasegurandosenasmos,tentandoassimempurraremsemutuamente,dandorisadae atraindotambmumatorcida,conflitoqueacabourpidoesemagressessrias.
232
Amarcafundamentaldo Oi'o,assim, oembateentreos cls e,seesteembatetemuma expressoinfantilatamistosa,comonoexemplodosmeninosdaaldeiaAbelhinha, no Oi'o ele tomafeiesdeconflitoorganizado. Umconflitoquepodeafetarasrelaesentredoishomenspelavidatoda,segundoFernando Vianna(informaopessoal).EmsuasconversascomHiprdi,esteterialheditoqueumperdedore umganhadordalutado Oi'o, emseusencontrosadultos,terosuasrelaesmarcadasporesta hierarquiadequemagentoumaisequemabandonoualuta. Acreditoqueo Oi'o tambmpossaserdefinidordocarterguerreirooudelideranade algunsjovensou,melhor,omomentoqueestesapresentamparacoletividadeumamostradaquilo quepodemviraser.AssistimaisumavezemvdeonacasadeWto,emSangradouro,oOi'o finaldos tpa.NeleTseredzar,queviriaaterocargode Aih'ubuni no H,apareciacomo personagem de destaque, vencendo todas as suas lutas, apresentando muita garra e, por isso, recebendoumtratamentoespecialdacmeraqueofilmava.HojeTseredzarconhecidocomoum ldercorajosoetsahiti(bravo,tembraveza)211,ereconhecidoporsuaatuaopolticaparaalm de sua terra indgena e at em Braslia. Eu mesmo tive mostras de sua braveza em nossa convivncia,quandosuasobriedadeesapinciapodiamdarlugarafalasmuitoduras,comodizem. OutrainformaointeressantesobreoOi'oapresentadaporRosaBueno(1998).Elaafirma queHipriditeriaficadodoentedepoisdesualutadeOi'o,suspeitadeenvenenamentodaborduna raizusadacontraele.Parasertratado,ummembrodocl waw ocompanheirodecaa(e provavelmente'am)deseupaiAdo,Ernestofoichamado,porquesomentealgumdaquelecl poderiaidentificaracausadamolstiaafligidaporseuparenteadversriodeHipa.Aatuaode Ernesto neste tratamentocurativooteriaaproximadoaindamais deAdoesua famlia,numa relaoamistosaoqueaautoratratacomoreciprocidade,implicandocontraddiva,apartir daspropostasdeMauss(RosaBueno1998:5758).Dessemodo,almdemarcaraseparaoentre membrosdeclsopostos,oOi'opdeservircomomaneiradeaproximlos. Eumesmonopudeobservarnenhum Oi'o anoseraquelademonstraofeitaparaos japonesesnaAbelhinha,emqueapenasalgunsmeninospequenos(osmesmosquebrincavamde chefeentresi)lutaramporpoucotempo.Entretanto,pudeassistiralgunsvdeos,comojdisse,em queosembatessedavamentremeninosmaiores,no Oi'o queantecederiaaentradaCasados Adolescentes. Nessas lutas as reaes dos lutadores cada qual usando na face um emblema clnico,sobretudoPo'redza'onoewaw,mastambmTopdat,eramdasmaisdiversas:batiamse
211Algumasvezes,nastpicasbrincadeiraspredatriasa'uwxavante,emquealgumtentalhepediretomaralguma coisa,algumdiziaparapararcomabrincadeiraporqueTseredzarestavachegando...
233
pouco at que um se afastasse; batiamse at que um chorasse; e, nalgumas ocasies, os dois lutadoreseramtopersistentesnenhumdelescediaquetinhamdeserapartadospelosmais velhos.Numdessescasos,queassistiemcompanhiadosh'wadeBelmnaCasadosAdolescentes, ondemantinhamumaTV(ligadaaogeradordaaldeia)sobreumavelhatoradecorridausada,os pais dosgarotosresolveramintervir,causandoumaconfusogeral.Nessemomentoaediodo vdeotomouumardramtico,fazendoaaudinciaregistrartudoemcmeralenta,sobafrase datsi'upiwatsde,queosgarotosmetraduziramcomoguerra.Aopdaletra, datsi'upi quer dizer algo como pegarse, tocarse, sendo traduzido tambm como pegapega e coito (Lachnitt2003),ewatsdequerdizerruim,algocomoumabriganosentidoquesugeriacima. Enfim,oOi'onoonicotipodeconflitoritualenvolvendoparentesco.Podesedizerque eleamarcadeumconflitoentreafins,ouafinspossveis,enquantooutrosconflitosrituaisso exercitados entreconsangneos.Essesconflitossedonacorridadetoras,emque irmos de metadesagmicasopostasdesafiamseparacorrerumcontraooutro;nowa'iligadoformalizao deamizades;eno Wai'a ou Darini, doqualassistivriosvdeose,numdeles,explicavamqueo momentoritualdabrigaentreosguardasdamawai'a'waoudama'awa,umadasgraduaesdas pessoasquepassampeloritualemfasessucessivas,oqueocorredeoitoaquinzeanos(Maybury Lewis1984[1967],PoloMller1976eWelsh2010)eraummomentoemqueosguardasnovos (quepassavamparaestafase)entravamnumembatecomosguardasvelhos(quepassavamparaa fase dzoratsi'wa, do chocalho) do mesmo cl, brigando na base do piso no p e, mais tarde, resolviamtudo. Vianna nota que, na terra indgena de Sangradouro, haveria um conflito entre os descendentesdedoisirmos(quecontam,hoje,comaproximadamentecincogeraes):Pahri'wa (chamado tambm de Tseretomodzats ou Tseretomodzapoip) e Tsihrir, ambas famlias detentoras do cargo Pahri'wa Conflito que, alm de se expressar na poltica indigenista (na . FUNAI ou em Braslia) e na escolha de casamentos (evitando que aliados de um ofeream casamentoparaooutroecriticandoquemofaz,comomencionaVianna),teriasemanifestado tambmnoWai'arealizadoem2000(Vianna2001:105106).Almdisso,tivenotciadequeparao finaldoDanhonode2011emSangradouro,quenopudepresenciar,houveumadisputaentreos Pahri'watede'wa porquemseriamosherdeirosdocargo,demodoqueforamfeitasduasfestas separadaseintituladosquatro Pahri'wa (enosdois,comodecostume).Seantigamenteuma disputadessasacarretariaasadadepartedocoletivoeafundaodeumanovaaldeiacomo mostram GiaccariaeHeide,aoescreverahistriaoraldastravessias eformaesdealdeias 234
a'uwxavantes(1972:2233),mencionandooconflitopelocargode Pahri'wa comomotivode cisohojeemdia,numcontextoterritorialdeconcentraoeencapsulamento,outrassadasso encontradasparaquesedividaoacessoaopoderritual. Viannanotanaquelemesmotrechodeseutextoaindaumaoposioentreduaslinhagensde descendentesdeTsihrir,expressanasadadeumcoletivodepessoasdaaldeiadeSangradouro parafundarumanova,sendoqueumdosmotivosparaissoeraasupramencionadaquebradetabu dochefe(pertencenteumadaslinhagensdeTsihrir).Essadissidnciaaindaumdosassuntos polticosfreqentesnaAbelhinha,sobretudoemsetratandodeatuaisdisputassobreacordoscom agricultoreswaradzueoplantiodesoja,tendoaAbelhinhatomadoumaposturamaisecolgica.O queincluiumacrticamaiorproximidadedaaldeiadeSangradouroaomododevida waradzu (comsuascasasdealvenariaeletrificadas,oacessobebidaalcolicae,sobretudo,aproximidade damissocatlica).Todavia,apesardadissidncia,aslinhagensdeTsihrirmantmumarelao deproximidadeecarinhoentresi,tratandoseportermosdeparentescoprximos.Inclusivealguns dosdescendentesdeumdoslados,moradoresdaAbelhinha,tiveramseunome a'uw dadopor aqueleantigochefedeSangradouroaquemumdosnomeados,'riti'wa,chamacarinhosamentede av.SeuavtambmcostumamechamardeaibquandomeencontraemSangradouro. LeitoresdeOsNuer,deEvansPritchard(1999[1940]),apartirdessesdadosereflexesque seutambmleitorDavidMayburyLewis212 nodispunha,poderiamsugeriraamanifestaodo princpiodesegmentaridade,segundooqualumsegmentoseopeaoutrolocalmente(asduas linhagensdescendentesdeTsihrir),masambossejuntamnumoutronvelemoposioaoutro segmento(odeTseretomodzats).Acreditoqueissoatsejapossvel,desdequeconsideradoo outroprocessoemcurso:odoaparentamentoentrelinhagensatravsdosemprstimosdaspossesde datede'wa, a convivialidade, o contgio corporal etc.. O que complica a lgica segmentar africanista, ainda que formas de aparentamento cognticas tenham sido objeto da pesquisa do
212MayburyLewisparecetermimetizadoaorganizaodolivrodeEvansPritchardnasuadivisodecaptulos,como mefeznotarPerroneMoissemcomunicaopessoal.Almdisso,tratanosaslinhagenscomocorporategroups mastambmasclassesdeidadeapartirdaidiadecorporao,notandonelasseucorporatespiritecorporate solidarity(MayburyLewis1974[1967]:108),queLopes daSilvatraduziuporespritdecorpsesolidariedade incorporada(MayburyLewis1984[1967]:157).Outraatualidadedaaplicaodemodelosafricanistasaocasoa'uw xavanteporMayburyLewisestnosistemacclicodeantagonismoadjacenteesolidariedadealternadadasclassesde idade,comosevcomBalandieremsuadiscussosobresociedadesafricanas(1976:7778):grausdistintivosde classedeidade;nmerodepromoesinvarivelenomesqueasdesignam,imutveis,emboraserepitamemintervalos regulares;divisoemduasmetades;rivalidadeentreclassesvizinhas.Paraospormenoresdestaquestodetraduoea comparaodaobradeMayburyLewisaoafricanismo,verFalleiros(2005).
235
prprioEvansPritchardsobreosNuer.213 ParaosA'uwXavante,ento,oaparentamentoeocontraaparentamentonosedoapenas nafronteiradaafinidade,mastambmnadaconsanginidadeenasestratgiasquevisamreplicar casamentosentreafinsfortementealiados,numaespciedeendogamiafaccional.Tantoasalianas polticas entreconsangneos quantoascognaes entreafins soeixos queoperamojogo de alternnciaentresolidariedadeeantagonismo. Ainda assim, ou por isso mesmo, o Oi'o que traz a marca dos cls no rosto dos contendores,marcasquesodesenhadasentreasmasdorostoeastmporas,decadaladodo rosto,etmaseguinteaparncia,conformeregistradaporMayburyLewis(1984[1967]:221):
213ConfiraEvansPritchard(inRadcliffeBrowneForde1974[1950])emesmoOsNuerarespeitodadistinoentre buth (relaes linhageiras agnticas) e mar (relaes de parentela cogntica), o que aponta para algumas semelhanasentreasocialidadenasavanaafricanaeaquelaquefazseumododevidanocerradodoBrasilCentral. Devo a Carolina Sobreiro a ateno para algumas semelhanas entre os Nuer e os A'uwXavante (ou entre as antropologiasfeitassobreeles),comoaquesesugerearespeitodeumalinhagemminoritrianumaaldeianuer:Pode descreversecomoumalinhagemcogntica,masjulgoprefervelrestringirotermo''linhagem''aumgrupodeagnates dentrodeumsistemadetaisgruposefalardeumaglomeradocomo[esteemquesto]comosendoumalinhagemqual seligam,porcausadaresidnciacomum,outraslinhasdeparentesatravsdemulheres.(EvansPritchardinRadcliffe BrowneForde1974[1950]:492).AindaqueEvansPritchardtenhanotadoentreosNuer,narelaodefiliaocriada entreMBeZS,porexemplo,umavunculatomaisradicaldoqueoaventadoporRadcliffeBrown,queseparavadireito deafeto,jquenesteexemplo(comoentreosA'uwXavante)taldistinonopareceexistir:comodecorrerdo tempo,umlaomaternaldestaespciepodesertratadocomosesetratassedeumlaopaternoe,porisso,dentroda estruturagenealgicadaprincipallinhagemdacomunidade(1974[1950]:491).Ouseja,paraumaanalogiacomos termosdoportugusa'uwxavante,aoafilhado(ouafilhada)passariamesmoafazerpartedalinhagemdopadrinho, oquenoacontecedefatoentreosA'uwXavantenarelaocomodanho'rebdzu'wa,comovisto,aindaqueostermos deparentescosetransformem.Alis,outroelementodignodenotadotextodeEvansPritchardquealudeaumadas basesdestateseatransformaodocativoemalgumdamesmalinhagem:Tambmumrapazdinkacapturadopode serlathbuthni,[]comodizemosNuereporissotornarseummembrodalinhagemdoseucaptor.(1974[1950]: 485).
236
Escusadasasvariaesdeescritadosnomesdoscls(queseriamPo'redza'ono,waw e Topdat conformeodicionriodeLachnitt),noteitambmvariaesnosgrafismos.Osmbolo po'redza'ono,porexemplo,quevistocomoumconjuntodegirinostraduodepo'redza'ono, assimcomo waw querdizerguagrande,colocandoessesclsnumarelaodecontedoe continente(Vianna2001),podecontarcommaisdetrsgirinosportmpora:quatroeatcinco, dependendo dalarguradorostodapessoa,dizemosA'uwXavante.Seriaissoalgumtipo de aluso s fragmentaes e multiplicaes po'redza'ono geradas em torno do cargo Pahri'wa, consideradoomaisimportantedosistemadeclassesdeidade?Impossveldizercomcerteza. O smbolo waw nunca varia, ao menos conforme minhas observaes. J o smbolo topdattambmpodeserdesenhadodemaneiradiversa:nosumcrculovazio,masumcrculo vazio sobre um pequeno trao vertical. Indcio da variabilidade que os Topdat trazem como terceiroincludodestedualismo? Observeiemcampoessessmbolospintadostambmemportasdecasas,paredes,carteiras escolaresetc.,sobretudoopo'redza'onoeowaw(assimcomoeramcomunspichaesdosnomes das classes de idade em superfcies semelhantes). Segundo Paulo Srgio Delgado (2008), os smbolostambmsousadosnamatanoritopropiciatriodascaadasparaosPahri'waeTbe,j nofinaldociclodoDanhono,nasquaisapertenaclnicaseriamaismarcada(Delgado2008:49). Eu mesmo, no tendo participado destas caadas especficas, participei de algumas caadas coletivascomosA'uwXavantenasquaispudenotarumaacirradacompetioentreasmetades exogmicas,inclusiveporqueascaasabatidaseramdivididasparamembrosdamesmametade. Numadasqueparticipei,naqualerausadaatcnicadecercarumalongaextensocirculardemata comfogoe,comisso,aprisionaraspresasentreaschamas,umcaadordeumametaderoubouo veadocaadopelodeoutra:oanimaltinhasidodeixadonolocaldoabatimento,nomeiodamata, enquantooqueotinhamatadoiaatrsdeoutrobicho.Osegundo,queprovavelmentedeveriasaber queapresaeradeoutrapessoa,chegouaolocaledividiupedaosdacaaentreosseus.Istogerou ummalestareumestadodeagressoiminentequefoiresolvido,segundoocaadorlesado,coma promessa de queooutrojamais fariaissodenovo.Almdaoposioexogmicanas caadas, Delgadoafirmaque,noritualdasmscaras wamnhor,quandoestasjestofinalizadasaqueles que levam as mscaras at em casa pintam seu rosto conforme o smbolo do cl respectivo mscaraqueescolheram,mesmonotendosidoaproduzidaporelesmesmos(jquealgumpode gostardamscaradooutroclequererparasi,emcomumacordocomosdemais)(Delgado2008: 237
49). Nesse processo de escolha da mscara e da pintura do outro cl, vemos um movimento semelhante ao que sermostrado, com Lopes Silva (1986 [1980])sobre o Oi'o,mas em certo sentidoinvertido:senoOi'odoishomensfazemumacordoparaqueofilhodeumuseosmbolodo outro,nofatodescritoporDelgadoohomemescolhe,elemesmo,amscaradeoutrocle,com isso,pintaoprpriorostoconformeocldamscara. LopesdaSilvadescreveessasituaono Oi'o porterpercebidoemcampo,naregiodo Culueneque,diferentementedoquesepassavaemoutrasterrasa'uwxavantes,aliasmetades exogmicasfuncionavamsemquehouvesseumreconhecimentoexplcitodesuarelaocomos supostoscls.FoilqueLopesdaSilvafezsuapesquisasobretransmissodenomesenotouas ocorrncias de vrias mudanas de nome na vida e o nome de 'riti'wa sendo dado pelo danho'rebdzu'wa (um irmo da me). Talvez pela falta de nomes das metades (os nomes Po'redza'ono e waw) o sistema de nominao encontrado pela autora fosse to marcado, provavelmente servindo como ndice das distines exogmicas: menos demarcadas pela classificao clnica, mais demarcadas pelas relaes entre nominadores e nominados, parafraseandoadicotomiaentreclasseerelaoqueaprpriaautoratomadeLviStrauss (LopesdaSilva1986[1980]).Enfim,Po'redza'ono,waw eTopdat,ali,eramapenasreferncias aplicadasaoOi'oeaoshomens.Aspessoaslembravamsecomdificuldadedainsigniaquetinham usado.Inclusive,haviacasosemquepessoasdomesmoclnominaleramcasadasentresi,ainda queagenealogiademonstrassequeerammesmoafins.Odilemafoiresolvidoquandoaetngrafa percebeuqueissosedavaporcausadaadooporumhomemdofilhodeoutro,propondoqueeste usasse o seu smbolo e no o do pai, podendo lutar pela metade oposta pela qual lutaria originalmente. Segundo ela, essa adoo no acarretava nenhuma mudana de moradia ou tratamentos deparentesco(Lopes daSilva1986[1980]:173175).Aautoradiznoentender a natureza desta relao. Mas, olhando pelo que ela : uma relao estabelecida num ritual de aparentamentotoligadoaosconflitosentreafinseentrefaces,omaisfcilassumilacomo umaalianapoltica,umatentativadeganharumafiliadoparaoseulado. Emcampo,tivenotciasmaisprecisasdanaturezadestarelao:explicandomesobreas transmissesdecargos,MrcioTserehitdissemequenoOi'oumpaipodeadotarofilhodooutro comomostraLopesdaSilvaetransmitirlheatalgumaspossesdecargo,como'Wamartede'wa e Aih'ubunitede'wa. Ouseja,operaseumaalianadefiliao(enodecasamento)e,separa efeitosdasrelaesdeexogamianadamuda,comonotouLopesdaSilva,existeaindaassimum aparentamento.Talvezsemelhanteaodaamizadeformalizada:aofalarsobreoscargosquepodem 238
sertransmitidospelaadoono Oi'o,Mrciomedisseque 'Wamartede'wa tambmsetransmite parada'am. * VsequeoOi'o,comoritualdeaparentamento,apresentaumasriedefacetas,umasmais aparentes, outrasmais contraparentes.Aomesmotempoquedeterminaalutaclnicaentre as metadesexogmicas,fazendodespontarosmaishbeisguerreirosdestaluta,eletambmpermite criar alianas entreos opostosenvolvidos:alianasentreaqueles queajudamacuraradoena causada por outroafim,alianas entreomeninodeumcleosmboloeas posses deoutro, aparentamentosecontraaparentamentosquesoencenadosnoOi'ocomotais.Ouseja,o Oi'o no apenasmostraqueexisteumalutaentreosclsqueprecisaseramansadaatravsdaentradados adolescentesno H etodoocicloritualqueassimseinicia (umapocadefestasquevaido comeodaadolescnciaatofimdaidadejovemadulta), mastambmmostraqueoparentesco pode ser menos ordeiro do que suas classificaes aparentam. A mistura acontece de diversas maneiras,eo Oi'o mostraasacontecendo.umritualqueapontaparaoquehdecaticono parentesco.Seoritualmostraisso,porqueesteumcomponenteestruturantedasrelaesqueele presentificaemcena.Ocorpocoletivofala,atravsdesteritual,queocaosfazpartedaordemdo parentesco. Nosatravsdele.Comovisto,asdisputasentremembrosdomesmoclacontecemem outros momentos rituais: na duplicata de um ritual de imposio de cargos cerimoniais, para contemplarosPahri'watede'wanoltimoDanhonodeSangradouro,nahistriaoralquemostra comoesteconflitopodesepararaldeias,nadisputaintraclnicamanifestanoritualdoWai'a...No sasdisputas,masasmisturas,quepodemacontecernosno Oi'o mastambmnasmscaras wamnhor.Examinarasituaodasmscaras,agora,serumadicaparaasoluododilema,ou mistrio,queenvolveoterceirocl, Topdat.Inclusiveporqueumadasmisturasritualizadas, comopudenotar,atransmissodocargodeAi'utmanhari'waentreamigosformalizados(isto, demetadesopostas). # Seriaofimdafarsados Topdat ? TrataseagoradeapresentaremquesentidoosTopdatestoligadosaosAi'utmanhari'wa, tendoemvistatambmqueos Ai'utmanhari'wa soconsideradoscomoguardiesdoritualde nominao feminina, Abadzi'rihidiba, o qual teria sido abandonado. Um abandono do qual, 239
contudo,nosepodetermuitacerteza.EmSangradouro,porexemplo,teriamsidopraticadaspelo menosalgumaspartesdoritual,comoafestadaona,segundomedisseram. MuitostambmmedisseramqueoAi'utmanhari'waseriaodonodestafesta,aindaque, segundo GiaccariaeHeide(1972:221),afestaseriaestabelecidapelo datdza'rata'wa do cl [Po'redza'ono],isto,umporedzaonodeterminariaomomentodafestaacontecer,segundoestes autores:datdza'rata'waquerdizer,lieteralmente,aquelequedarinciofesta.Oque,contudo, noparecetiraraimportnciadoAi'utmanhari'wa,aindaquenafestaatuemoutrosencarregados, comoosWar'radaouosDzutsi'wa.Onas,macacos,lobosguars,jaburusetc.tambmtomariam partedosrituais,personificados.Almdisso,animaiseplantasdemarcariamosnomesfemininos conformeaatributoscorporais:moas''altas''receberiamnomescomeadosporR[periquito],as ''gordas'ealtas''porRo'[macaco],as''gordas''''grandes''porP[peixe],aspequenasemagrinhas porWautomo[variedadedearbusto]ouTsinhts'e[queroquero](LopesdaSilva1986[1980]: 123). As prprias mulheres, pintadas por seus danho'rebdzu'wa conforme a pintura de riscos dawawi,fariamrefernciaMulherEstrela,deummitoemqueum ai'repudu recebeavisitade umaestrelaqueeleacharabonitanocu,quesedeitacomeleedepoisambossobemaoscuspelo buriti(peloqualeleretorna,jadulto,paraumavisita,trazendoinhame)segundonarradoresde Pimentel Barbosa, seria a mesma pintura riscadinha, usada tambm no brinco masculino propiciadordonascimentodemeninas(Eidetalii2002:311e384).Nestecicloritualatuariam tambm personagens de outros ciclos: tanto coletivos de nominadores das mulheres seriam definidospelascategoriasdeidadeepreenchidospelasclassesdeidade(cujaimportnciaestno ciclodoDanhono)quantopessoascomcargosespecficosdoDarini,comoosdamawai'a'wa (ou dama'awa)osguardasdoWai'a.Aprofusodeagenteseaestocomplexaededifcilexegese, comonotouLopesdaSilva(1986[1980]:123),quemaisfcilaoleitorremetersediretamenteao textodeGiaccariaeHeide(1972:221234),decarterbastantedescritivo,casoqueiraconheceros detalhesdoAbadzirihidiba.Adicionandoamultiplicidadedepersonagensaocartersexualmente permissivodafestaafinalasmulheresnominadasteriamrelaessexuaisextraconjugaiscomos datsidaimama, cunhados casveis,acreditoquesesomammotivosparaqueosA'uwXavante tenham explicitado para mim uma comparao desta festa com o Carnaval brasileiro. Pedro Tsuwede'wa, quando me explicava sobre o Abadzi'rihidiba, disseme que o rito seria igual carnaval,igualcarnavaldo waradzu.Aconteceriaduranteaestaodaschuvas,quandoo milhoaindaestverde(GiaccariaeHeide1972:221),ouseja,pertodocomeodoano,estao queterminariaaproximadamentenamesmapocadenossasguasdemaronoSudeste.Ainda 240
que,supostamente,suafestanofossetoperidicaquantoanossapois,conformeLopesdaSilva, afestaseriatradicionalmenterealizadacompoucafreqncia(1986[1980]:123124). Pensarossentidosdocarnavalpodenosligar,noporcoincidncia,aoAi'utmanhari'wa, opalhao.SegundoSahlins(1990[1985]:123),osjogosdealternnciasentreosplosopostosde umaestruturapodemenvolverapassagemporumperododeSaturnlia,delicenciosidadee suspensodaordem.NocasodeSahlins,osplossoSociedadeeEstado,jquesuareferncia principaloreidasilhasdopacfico,comseulugardopoderdefatoocupado 214.Nocasodos A'uwXavante os plos que atraem no parecem ser dessa mesma natureza poltica. Pois seu carnavalumeventobastanteordenado,inclusivecontroladoevigiadopelopalhao. Seele nochegaaserumreifarsescocomoocarnavalescodeSahlins(queocupariaseulugarem relaoaolugarrealdeummonarca,deUm,inexistenteentreosA'uwXavante),contudoa polcia da festa: ele controla as relaes extraconjugais prescritivas para que sejam quase licenciosas,masnemtanto,afinalasmulheresspodemserelacionarcomumagamaespecficade homens(osseus cunhados).Eosadolescentes,apesardetambmdarnomessmulheres,devem aindamantersecastoseafastadosdasmulheresnopodempassaranoitecomelas,dormindo, como fazem os outros grupos de nominadores (Giaccaria e Heide 1972). Ainda que bem demarcadas,asdiferenaseostornaremseoutrosduranteestafesta,comoaspersonificaesde animais, parecem fazeremse bastante visveis, uma srie muito grande delas acionada, misturando elementos de outros complexos rituais. No que no haja personificaes das mais diversaspessoasemtodososrituaisa'uwxavante,masqueaquielasparecemmultiplicaremsee misturaremse quelas dos outros rituais. Para usar uma metfora culinria, a festa do Abadzi'rihidibaparecepromoverumasaladanoumpirodepersonagens.Umasaladacom vriosingredientes,dentreelespessoasmoraisligadasaocomplexoritualdo Danhono (deposse dosOwaw)eaocomplexoritualdoDarini(depossedosPo'redza'ono)etantasoutras. Creio serpossvelaquiseguirabasemaisabstratadahipteseapresentadaporMagnus Course215sobreopalhaomapuche.Amanifestaodestepersonagemsedariaemmomentosrituais emqueosextremospotenciaisdaalteridadeapresentamsecomopontosvisveisnumcontnuode transformao. Instanciaes da capacidade transformativa de tornarse outro. Transformao
214E,noexemplodoHava(Sahlins1990[1985]:124),asaturnliaseriaoMakahiki,quandooreimticoretornaria pararetomarseupostodoreiatuale,numarelaosacrificialcanibal,ummorreriaesetransformarianooutro,numa polticaperformticaemqueusurpaoelegitimidadeseriamumsemesmogolpe.Reimorto,reiposto. 215EmpalestraoferecidaaoNcleodeHistriaIndgenaedoIndigenismodaUniversidadedeSoPauloemjulhode 2011,intitulada"OPalhaointerior:ovirarbrancoeospalhaosrituaismapuche".
241
dotadadeinstabilidadeeambigidademoral.Pontosvisveiscomoosingredientesdeumasalada. Assimcomoopalhaoa'uwxavante,okoyongmapucheocupaextremosgritantesde seriedadeebrincadeira,segundoCourse,mesmoquesuamarginalidadepobre(oskoyongseriam as pessoas mais pobres e bbadas de uma comunidade mapuche, que aceitariam trabalhar ritualmenteemtrocadebebidaalcolica)contrastecomumamarginalidadenotomarcadado Ai'utmanhari'wa. Ainda que a figura do Ai'utmanhari'wa possa ser associada a uma prtica um tanto vergonhosa,sim,aosolhosdapessoaquefalousobreela:pedirpublicamenteporcomidadecasa emcasajque,segundoestapessoa,oAi'utmanhari'wamramdi,faminto.Oqueaindaremete a uma caracterstica do palhao amerndio destacada por Course: o descontrole dos desejos alimentaresesexuais(lembresequesuarelaocomosexojfoiexplicitada:oAi'utmanhari'wa fazsexoanoiteinteira).Serfamintoaquerdizermenosqueelepassafomeemaisqueelepede muitacomidaoquepodefazerporprescrioritual.Oproblemapareceestarnonafomemas nopedirnoqueosA'uwXavantenofaampedidosotempotodo,mas quemtemumbom cargoeumaboaposionacadeiascioalimentara'uwxavantepareceesperarquelhesdem (noscomida)aoinvsdeterotrabalhodepediraocontrriodoquefazo Ai'utmanhari'wa . Isso posto, ainda devese dizer que a marginalidade do Ai'utmanhari'wa pareceme ser melhorentendidacomoumamarginalidadeinterna,porassimdizer,entredois(PerroneMoiss 2009):umarelaoentreplosopostos.NessesentidoarelaoentreAi'utmanhari'waeTopdat importante. Nafasedeproduodasmscaras wamnhor naaldeiaBelm,quepudepresenciar em minhaltimaestadial,participeidostrabalhoseajudavaaosmeusparentesdasfamliasdeDaniel, DionsioeMrcioapintarasmscaras,feitascomlongosfiosdepalhapenduradospelotopoem ummastroaoqualeramcolocadasamarrandoseapontadaspalhascomalgodo.Estvamosno mar,clareiraritualprximamargemdaaldeia.PedroTsuwede'wa,queestavanolocal,disseme espontaneamentequeomarestavadivididoentreasmetadesPo'redza'onoewaw,masquena aldeianotinhaTopdatentreoswaw,somenteentreosPo'redz'ono!Esseseramelemesmoe suafamlia,osAi'utmanhari'wa.OTopdatteriavindodesdeoavdele. Paradizerisso,acreditoqueeletenhausadotantoapalavraTopdatquantoaTob'ratat,que GiaccariaeHeide(1972)glosamcomosinnimodaquela,comumsignificadodiferente:enquanto Topdatquerdizerolhonorosto(emrefernciaaodesenhodosmboloclnico,lembrandoque dattambmquerdizerritual),Tob'ratatseriaogritodeumaave. 242
Curiosamente,pois,esteclentredois clstambmpossuidois nomes alternativos, um deles remetendo diretamente ao que neles h de espectadores e vigilantes do ritual, o outro remetendoosaumaonomatopiadomundoextrahumano,enquantoosdemaisclsmantmentre siumarelaodecontinenteecontedo.Tambmavariaodosmbolo,oraumcrculo,oraum crculocomumtrao,apontaparaestecmbio,oracontido(circular),oradotadodeumalinhade fuga(otraosaindodocrculo).Tob'ratatqueoraestcomoswaw,oraaparecesozinhocomo instnciaexogmicaaomenosnosdadosdeMayburyLewissobreosXavanteOcidentais,cujas possibilidadesdecasamentoforamanalisadasporVianna,comovistoanteriormente.Equeagora aparececomosPo'redza'ono! Quandomedisseisso,Pedrocomeouamecontarsobreafesta Abadzi'rihidiba:dose nomesparaasmulhereseos cunhados fazemsexocomascasadas,spodendoconvocarafesta depois de que todos conheam o respectivo danho'rebdzu'wa da esposa (isto , depois do casamento).SegundoPedro,temsempre,todoano,informaodivergentedadeLopesdaSilva. Masaquinotemmais,osjovensnoqueremtantoshomensfazendosexocomsuasesposas, eledisse.Masporqueessamudana,porqueagoranoqueremmais?Seriainflunciadamoral cristoudomachismobrasileiro,quevcommausolhosumhomemquedisponibilizasuaesposa para outros? No fiz essa pergunta para ele. Ele me disse, ento, que essa festa era quenm carnaval,temdanadaona,tuiutiu.Masaqui,diferentedoquefazemoswaradzu,pagando tudoemdinheiro,asrelaessexuaisseriampagasaopadrinhodamoaatravsdo wa' pagamento feito de algodo, urucum, penas de pssaros bonitos, arara, papagaio, gavio, mutum.Nestafestaopagamento,comonocasamento,feitoaopadrinhodamulher. Diferente,ento,doqueocorrenocotidianoa'uwxavante,noqualasrelaessexuais costumamserpagasdiretamenteamanteouentoao irmo dela(ouvihistriasdehomensque teriamtomadoocelulardoamantedairmcomopagadeintercursoscarnais...),oquesesomaao fatodeoscunhadosdotipoai'ri(irmosdaesposa)semprepoderemfazerpedidosparaosseus cunhadosdotipotsa'omo(maridosdeirms).Eumesmofizalgosemelhantealgumasvezes,uma delas no final de uma caada e pescaria em que meus companheiros de classe de idade me ensinaramcomopregarumapeanumoutrocompanheironosso,casadocomafilhauptabideum de meus pais adotivos mais ntimos: eu deveria chegar aele reclamando o peixeque ele me prometeutetoimanh,vocmefalou!comoformadehidibawa',pagamentopelaminha irm. Emahtahidibawa'?cadopagamentopelaminha irm?.Quandofizisso,foium divertimentogeral.Ele,queiaensaiandomepediralgo,tevedeseconter,darmeopeixeesecalar. 243
Alis,muitasvezesemquecaamosepescamosjuntoselemedavapeixeespontaneamente.Quanto aoutrasformasde pagamento,umadelasfoiresponsvelporumasituaosurpreendente,para mim,ocorridanumadascorridasdetoradasquaisparticipei:umhomemdametadeagmicaoposta estavacorrendopelotimedeminhametadeagmica.Enquantoramoscarregadospelacaamba lotadadocaminhoqueacompanhavaacorridasuafrentelevandoaquelesjcansadosdecorrer, queretornariamparaajudarnorevesamento,eumaplatiademulheres,velhosecrianas,como temsidocostumeatualmente,pergunteiaeleporque,afinal,tinhacorridopelomeulado.Eleme disse: abadzi wa'. Pagamento do algodo. Peguntei de que, para quem, e ele no me respondeu.Seriaeste abadziwa' umasimplestrocafeitaporele,oferecendoseusserviosde corredorparaalgumemtrocadealgodo(abadzi),ouseriaalgomais,algumtipodepagamento relativoacostumessexuaismodaabadzi'rihidiba?Nopossoresponder,afinalaprpriafestaj noaconteciamais,segundoPedro.Enfim,enfatizasearespeitodestaeconomiacorporalque,para osA'uwXavante,adiferenaentreos waradzu eeles estarianofatodeosprimeirosusarem dinheiroemsuastransasetransaes,masossegundosdisporemdeoutrasformasdepagamento. Daochoqueporpartedelessurgidonumadenossasconversasduranteumapescariaem queolugardosujeitopesquisaesperguntasseinverteu:elesqueriamsaberdemimquantoas brancascobravamporsexo.Nofoipoucaasurpresaquandolhesdissequeamulherwaradzu, quandogostadohomem,fazsexodegraa216.Issodeixoualgunsdesconcertados. Pois, para eles,no existe uma escala de circulao de coisas separada e mediada pelo dinheiropartedaescaladecirculaodepessoas,comooparentescoouoparaparentesco.O intercmbiodecoisaseserviosa'uwxavantesegueomesmonexoqueointercmbiodepessoase relaes pessoais (e sexuais). O que parece inexistir a a prpria distino entre ddiva e mercadoria. Uma grande diviso nossa (daqueles a quem os A'uwXavante chamam de Waradzu),quefazeconasdistinesqueimaginamosemnossasrelaes,separandoaspessoais dascomerciais,desinteresseeinteressenoincomumaos Waradzu,mesmodepoisdetantas revoluessexuais,maldizerasmulheresquefazemsexoporinteresse,aindaquedefendamum erotismofemininosovina. DevoltaminhaconversacomPedrono mra,noteiqueos wamnhor quelestavam
216Nestemomentonolhesfaleicomaautoridadedeumsocilogomasapenasdopontodevistanativowaradzu. Suponhoque,numaperspectivamaussiana,oatosexualgratuitoentrenamorados,espososoumesmoentreparceiros hedonistasfugazesenvolvaumasriedecontradonsdohomemparaamulherquepodemsermercantis(sepensarmos nopapelprovedordomaridoquetrabalhaforaetemsuaesposacomodonadecasa,conformeumaeconomiamoral maisconservadora)ouimateriaispormtangveiscomoocarinhoemesmooorgasmofeminino.
244
sendo feitos tinham pinturas diferentes, que eram chamadas por eles por nomes de peixes. Os wamnhor so quenm peixes, disseme Dionsio. O que me pareceu uma afirmao bastante figurada,noenvolvendoalgumarelaomuitoclara(aomenosparamim)comespritosdepeixe, comooleitorpoderiaimaginar,mascomosTsa're'wa,chamadospolidamentenosdeWatsiwadi (segundo me dissera Tseredzar) mas tambm de Wadzapari'wa, aqueles que nos esperam, aquelesqueestonosescutando,algocomonossaaudincia.Poisnessemomentodeproduo dasmscarasos'riti'wa,opostosaoshireri'wa(adolescentesdeorelhafuradaqueestoemvias deacendera 'riti'wa),devempassaranoiteno mra, acordadosaoredordofogo,vigiandoas mscarasparaqueelasnosejamroubadaspelosWadzapari'wa(rouboalgosemelhantequeleque osmesmosfazemtomandocrianasdesgarradaspoucovigiadaspelosparentes).Jorge, 'riti'wa naquele momento, explicoume que eles faziam isso porque era deles que os A'uwXavante aprendemosnossacultura,nossojogo. Nada a respeito de peixes mencionado na descrio que Giaccaria e Heide do do wamnhor. Osautoresfazemadistinodetrstiposdepintura:a datsarbepr,comametade superiordamscarapintadadevermelhourucum,possedos waw; dawawi,comlistrasfinas verticaisemvermelhourucum217,possedos Po'redza'ono;e datsihdo,pintadadediversasfaixas horizontais em vermelho urucum, alternando faixas em branco, sem pintura, de posse dos Tob'ratato(GiaccariaeHeide1972:160161).Apesardepareceremnoignorarosnomesoriginais daspinturas(comosevercomaexplicaoqueMrciomedariasobreumadelas),Dionsio, MrcioePedromefalaramonomedecadapeixecujaaparnciacadapinturaretratava:aquelacom listras verticais (dawawi) seria como o pacu, tepe tsiwtepara; outro seria o matrinxo (pehi're)218, modelo ausente na descrio de Giaccaria e Heide, como se fosse uma pintura invertida da datsarbepr, com vermelho em baixo e ausncia de pintura em cima talvez substituindoaparaoswaw;enfim,owamnhordefaixashorizontais(datsihdo)seriaopiau (pedzatoupe'at,algocomopeixeolhooupeixerito):esteoTopdatemendouMrcio; alm destas trs haveria um modelo de mscara sem pitura, dzub'a, duas para os Pahri'wa poderem repetir a dose de uslas, depois que as duas primeiras que usassem fossem tomadas duranteosrituais(ecomissopoderemserpredadosdenovoporoutrosquedesejassemtomarem lhesasmscaras)eumaterceiraparaosimpatizante,ummeninoquefariapartedaprxima
217OquefazdiferenaentreadawawidanominaofemininaedaMulherEstrela,pintadadeformamaiscomplexae comousodegenipapo. 218 Peixedetrscorpos,dissemeMrcioumavez,emrefernciasuapelegrossaeduraqueesconde,dentrodele, umoutrocorpoemaisoutro.
245
classedeidadeaentrarnaCasadosSolteiros,quecomelasairiadisfaradodoHparaassustaros tpa no final da madrugada de dana do ltimo Wanoridbe. Depois deste susto do simpatizante,todososiniciandossaemdesuascasasvestindoasmscaras wamnhor paraque sejamperseguidosecapturados.Ocaptornooscapturapropriamente,massimacascaqueest sobresuacascaoriginal:amscaraopeixeapresaqueossubstituinocrditocanibal. comosecapturassemsuasegundapele,suatrocadepele.Issoajudaacompreenderacomparao comospeixes,tantoporqueospeixessopresasquantoporqueomatrinxo,porexemplo,temtrs corpos.Ouseja,podesesugerirqueserumcorpodentrodeumamscaraqueumpeixecomo ter um segundo corpo. Alm disso, outro dado importante: os iniciandos passaram um longo perodo como wat'wa dentrodo rio antes de terem furado aorelha. Agora, devem entregar o peixeentregandose,comosefossempeixe.Peixequetododia,duranteabateodegua,eles pescavamparaalimentaroancioresponsvelporlevlosetrazlosdecasaparaojantar. Poisessecorpodepeixeseriaumsegundocorposacrificial,afinalosiniciandostmde sofrer,muitosofrimento,disserammesobreessesrituais.Wahimanadzdawatsutudi,nosso modo de vida cansativo, disse Paulinho com orgulho, entre uma dana e outra dos danhohuiwa,depois dafuraodeorelha.Osofrimentoeocansaoexpressamsetambmno aperto,nocalorenopesoqueosiniciandostmdesuportardessasmscaras,dacapado no'oni (usadanainiciaodosTbe),doalgodoquevaienroladonacabeadosPahri'wa(noseuritode iniciaoespecial).IstoenfatizadopelosA'uwXavantearespeitodaquiloqueparecemmeras fantasias.Noapenasfantasias,soencargospesadoscomocoroas.quasecomoopesodonome, sugeridoporLopesdaSilva(1986[1980]).Asuperveninciadeumcorposobreoutro,deumavida sobreoutra,deumapessoasobreaoutra.Umcorpopropriamentedentrodooutro,umantepassado sobreooutro.Umprincpiodaconstituiodapessoaa'uwxavante:umenglobamentopessoalde captura. Retornandoconversano mra,falandosobreaspinturasdo Topdat,Pedroacrescentou dizendo que, alm da de pe'at e os crculos nas faces, eles tambm tinham a do Ai'utmanhari'wa.O Ai'utmanhari'wa a polcia da festa das mulheres, para s deixar os cunhados ficarem com as cunhadas, lembrou. S os Topdat podem autorizar o uso dessas pinturas,amscaracomope'at,ocrculonafaceeabocapretadosAi'utmanhri'wa. Mrciomeexplicariaqueapinturado pe'at apintura Flamengo,queusadaemtrs situaesdistintas:nasmscaras wamnhor dos Topdat,pelosfilhosquenoherdaramposses especficasdeseus pais emcertascorridaseritoscomosefosseumgrauzerode datede'wa, 246
pobressempossesrituais,margemdeseusirmosenosparticipantesdoUiwededa'r,acorrida doburitidabocapreta. EuparticipeidoUiwededa'remBelmcomodanhohui'wadosNodz'uquepassavampela furaodeorelhas.OritodoUiwededa'renvolvesegredosquenopodemserreveladosaningum peloetngrafoquetomapartedele.Maspodesedizerqueneleoscarregadoresdo Uiwededa'r literalmenteinvademaaldeia219,fazendoumurrocaractersticoenquantocaminhamebatematora (umtroncocompridodemadeiradiferentedoburiti,maschamadofarsescamentede uiwede)no cho gritando o clssico kuw, mas de forma mais estacada, e atiramna no centro do war, enquantoasmulheres(dequemdevemguardartodosegredo)estodesatentas,entretidasnuma corridadedonsdealimentosentreascasas.Essescarregadoresestotodospintadoscommotivos emlistras,algunspintadoscomoflamenguistas(vermelhoepreto),outrosportandopinturascom refernciaaoutrostimesdefutebol(afaixadoVasco,porexemplo),outrosfazendorefernciaa animais,comoaona.Tudomelembravaumainvasosecretadepotnciasestrangeiras,disfaradas por pinturas que dificultavam a identificao dos personificadores, mas revelando sua origem exterior.Nessesentido,podesesugerirqueostimesdefutebolsubstitueminimigosnospor seremestrangeiros, waradzu,mastambmporqueofutebol,comojogo,podesertidocomoum substitutoatenuantedaguerra,jogowaradzuhabilmenteapreendidopelosaberfazera'uwxavante dadasasdcadasdesuarelaodepacificaodoWaradzu.Dequalquerforma,pareceserguerra poroutrosmeioseasrefernciasaistonoWededa'rsugeremquesetratadeumafarsadeguerra. Invaso farsesca, sem dvida: a tora com a boca preta parece ter algo a ver com o Ai'utmanhari'wa,dadasuapinturabucalfeitaemcarvosertambmdebocapreta.Oritualcria umasituaoemqueoshomenssecolocamexterioresemarginaisnosaldeiamastambms mulheres,sendoseuprivilegiadosegredoumaespciedeobrigao.Noatoaque,comome dissecertavezAlfredonumadasvriasmadrugadasemqueosdanhohui'watinhamdemostrar suaforadanandoecantandooWanoridbeabeiradofogotnhamosdefazerbemfeitoporque, completou,sabecomosoasmulheres,elasestosempredeolho,vigilantes. ParecehaveraumaconstelaodeindciossobreamarginalidadeassociadosaosTopdat. Observando as listras datsihdo vse que figuram um grau zero de cargos e encargos familiares,presentificamumamarginalidadeestrangeiraetambmrepresentamumamarginalidade nativa. Quantoaoestrangeirismo,valelembrarqueosmbolodosTopdatcomumenteassociado
219Spaolonse(2006:98)descreveestemesmomovimentoritualdoscarregadoresdoUiwededa'r,queacompanhou emSangradouro,comoseestivessemacuandoumacaa.
247
aoscrculosqueopovoKaraj,antigoinimigodosA'uwXavante,carregaemsuasfaces,ealguns A'uwXavantesugeremqueosTopdatteriamvindodosKaraj.Outrosdizemsimplesmenteque Topdatnoveiodaorigem(esuaausnciaemtodasasnarrativascosmognicasaquirecuperadas seriaumaindicaodisso).Poisfazeropapeldeestrangeirotambmumadascaractersticasdo palhaoamerndio,percebidajporJulianStewardaochamarospalhaosdeburlesquestrangers (1931:196),comorecuperouCourseemsuapalestra. PoisentreosA'uwXavante,ento,este papelexercidoportodoumcoletivodeparentes,quejnosesabeseumcl,seumaclasse ritualquecontagiaoparentesco,oumesmoalgumtipodepessoamoralpotencialtotal. Quantointernalidade,arelaoentreaslistrasvermelhasdo wamnhortopdat eo Flamengo pareceria estranha, j que no h o uso do preto nas mscaras, ainda assim sendo associadasaotimerubronegro.Porque,eudiria,osTopdatesto,comoumterceiroincludo(um talvezentreumsimeumno;umnemsim,nemno,muitopelocontrrio),exatamente situadosemalgumlugarentreosPo'redza'onoeoswaw,potencialmentenosdois,eissoaparece nas cores. Lembremonos que, num dos mitos cosmognicos a'uwxavante, os pauzinhos que dariamformasmulheresforampintados,exogamicamente,unsdelistravermelha,osoutrosde listrapreta.Emcampoobservei,sobretudoemSangradouro,quediversosadornosdetompreto, comoo wedenhort,eramditos,pelos Po'redza'ono,seremprerrogativasuaaindaquealguns waw desmentissemisso.Aspulseiraswedenhor(cordes)tmumagamadecoresqueoscila entreobranco,overmelhoeopreto,passandoportonscrus.TambmemSangradouroalguns diziamqueaspulseirasbrancaseramdepossedos waw,aindaqueamaisbrancadelasfaa refernciaao 'Wamartede'wa.Enfim,elencardiversoscasosecorestalvezmaisatrapalhedoque ajudeafazercomparaesestruturadas,masestejogotripartitedecorespareceteralgumsentido sciocosmolgicoparaosA'uwXavante.ArefernciaaoFlamengoeaojogodefutebolajudaa compreenderoutrofato,inusitado,quepresencieiemBelm:algunsA'uwXavantemaisvelhos, bemcomoascrianas,referiamsebandeiradoSoPauloFutebolClubeessuascorescomo sendoosmbolodoBrasil.Isto,oconjuntotricolordovermelho,brancoepretoparaelestinha algum sentido de unidade coletiva nacional e brasileira. Par compreender isso, retomemos o estranhoFlamengorubroalvo:oqueimportanessesentidonosotantoascoresemsimasofato dehaverumacombinaoentreduascores,aalternnciaentreduascores.Tomandoofutebolcomo uma das maneiras a'wuxavante de se relacionar com os Waradzu e capturar sua perspectiva (Vianna2001,2008),eseoSoPauloagrandenaoestrangeira,brasileira,tomadapelastrs coresa'uwxavante,quenoencontramtotalizaonacionalanoserforadesi,oFlamengoa 248
presenadoestrangeironoprpriomagodasdistinesinternasdualistas.Tratadasporextenso, despolarizadas,nosTopdatessasdiferenasjnodemarcammaisoslimitesentreomesmoeo outro. Alm desse seu carter entredois, os Topdat tambm parecem estar tanto aqum do parentescoexogmico(nosoum cl,soapenasuma linhagem,diriamalguns)e,poroutro lado,almdoparentesco,jquesuaexpressoexogmicaquasereduzidaaomomentocerimonial. Pessoa moral cuja afinidade e consanginidade quase s aparecem como potncia. Como um parentescopotencial.Noqueaspessoastopdatnosejamparentesefetivosdeningum,massim quessoefetivospelomenosnosltimostemposportambmpertenceremaumdosplosda dicotomiaPo'redza'ono/waw. Por suavez,ojogo,o dat,almdeserexpressodos Topdat comoterceiraentidade vivendo entre duas, est diretamente estampado em suas faces, mais do que nas marcas dos Po'redza'ono e waw. Elestem dat nacara.Ecomdoisolhosamaisemseurosto,parecem duplamente espectadores e vigilantes de ritual. Uma posio, em certo sentido, anloga das mulheres. UmindciogrficodestaanalogiaentreTopdatemulheresqueosmbolocircular,usado na face dos Topdat, em seus olhos na cara, tambm um smbolo para mulher, como me mostrou certa vez Andr Gustavo, enquanto desenhava na areia, numa noite de war. Andr Gustavodesenhouumcrculonochoedissequeaquilosimbolizavaamulher,enquantoRmulo aproveitava para me perguntar a respeito das notaes de parentesco antropolgicas que ele conhecia,associandotambmamulheraocrculo.Andrcompletouodesenhodamulhercomum homem,umtraovindodeforaatocentrodocrculo.Figura,agora,queseassemelhariaoutra variao do olhonacara topdat,aquelacomumtraoembaixoapenas encostando, sem penetrlo,talvezremetendoumaduplicidadeentremulherehomem,noaumarelao(sexual) entremulherehomemtalvezpresentenodesenhodeAndrGustavo. Arelaoentre Topdat emulheresnofazestranhar,portanto,queos Topdat sejamos donos do grande complexo ritual feminino a'uwxavante. Se lembrarmos que uma das caractersticasdasmulheresa'uwxavanteadeddivaquecircula,modalvistraussiana(ver EstruturasElementaresdoParentesco,1976[1967]),entregruposdehomens,encorporandosee consanginizandoseaosmaridos,podesesugerirqueosTopdatdealgummodotambmcirculam entre as metades exogmicas,mas numa espcie de estratgia de cognao ampliada prpria estrutura dos cls. Tomando os cls como pessoas, como se Po'redza'ono e waw fossem, 249
atualmente (independente do que fossem na origem), afins, e Topdat tivesse uma posio semelhantedo afilhado, filiado ouadotado,quisemelhantedo av quetemcarinhopelos netosdosdoislados,ouadosobrinhoquenosesabeseneto. Enfim,osTopdatparecematuarcomoumplenocampoentredoisextremosnumcontnuo detransformao,elespersonificamumaredobradacapturapeloolhar,ammese,ocontgio,num curtocircuitoentreodentroeofora,avertigemquetransitarporumagarrafadeklein. Nestesentido,elesdomaisumsinalsobreoparentesco.Elesnosfazemverdemais,como comumalupa(que,alis,seriaumaboafiguraparaumdosdesenhosdaface Topdat),ocaos estruturado que o aparentamento. Os Topdat nos fazem ver o quanto o parentesco estruturalmentepropensonosordemmastambmdesordem.Esteseupapelritual,quase comoodopalhaodorei,oboboquefalaasverdadessobreacorte.Comadiferenadeque,entre osA'uwXavante,adistinoentreobobodacorteeoreificanublada. Tambm a relao entre nativo e estrangeiro fica nublada: a transmisso do cargo de Ai'utmanhari'waamimpormeuamigoformalizado,talvezoprpriofatodeeletermeescolhido, reforamseupoderdededesestabilizarcortesnarede.Notenhocomosaber,entretanto,seporser pintado e tendo adquirido o cargo, eu tambm vou virar Topdat... Mas bom lembrar que presencieiatransmissodomesmocargoviaamizadeformalizadaemduasocasiesrituaisem locaisdistintos,oquepodesugerirumpadro.Enfim,seaamizadeformalizadaumairmandade empotencial, possvelquenodevanuncaseatualizaredespotencializarseemcasode assunodainsgniaTopdatdeumamigoformalpelooutro:daacontrovrsiaentreosprprios A'uwXavantesobreaquesto.Entretanto,ofatodehaverTopdatentreosPo'redza'onopodeser tantoumindciodestatransmissoquantoumamaneiradecorroborartaltransmisso.Explico:no meucaso,porexemplo,eupoderiabuscarumamaiorfamiliarizaoaosAi'utmanhari'watede'wa deBelm,quesoPo'redza'onocomoeu,familiarizandomeassimaocargo,casoquisesseassumi loplenamente.Umaartimanhadarelaoentreperformanceeprescrio. Emsuma,oprprioTopdatpareceserumclsempreempotencial. * ArelaodosTopdatcomoAbadzi'rihidibaconfirmaahiptese(Falleiros2005)deque osTopdatocupariamumgrauzerodeinterioridaderitual,ouumgraumximodeexterioridadena relaoentrewaw/DanhonoePo'redza'ono/Darini,cadacloumetadenumarelaoespecfica comumtipoderitual. Como diria LviStrauss (1975: 171) sobre algumas organizaes dualistas que 250
combinariam princpios tanto diametrais quanto concntricos, cada metade parece, ao menos, manterrelaesprivilegiadascomumcertotipodesagrado.Nocasoa'uwxavante,osdoiscls principais tm preponderncia cada um sobre um dos dois complexos rituais masculinos mais marcantes,ambosdotadosdecontedosagrado(emsentidolato)secontarmosossonhosdas classesdeidadeparao Danhono (termoquequerdizerSono)eofortalecimentodopoderde sonhardoxamanismocoletivonoDarini(termoquequerdizerViglia)dentrodaquiloqueLvi Straussencampoucomotermosagrado.Estahiptesefoitraadaapartirdoquedizemosdois famosostextosdeLviStrausssobredualismoeindgenascentrobrasileiros(1975[1958]),uma tensoentresistemassociolgicosmparesepares,oqueocorrenosnarelaoentremetades mastambmnaoposioentrecentroeperiferia,afirmandoquehumarelaointrnsecaentre dualismodiametral,dualismoconcntricoetrade.Umadesuashiptesesadequeodualismo(na formadareciprocidadeportrocarestrita)nopassariadeumcasolimitedotriadismo.Ainda,queo dualismoconcntricofuncionariacomomediadorentredualismodiametraletriadismo.Entendoa propostadomesmoautorem HistriadeLince (1993)comoumdesenvolvimentodaanterior:a relaoentreconcentrismoediametralismoteriatomadoaformadeumdualismoemperptuo desequilbrio em que um termo da dualidade sempre colapsa em outros dois (e assim sucessivamente).Apartirdestasproposies,sugeri(Falleiros2005)umaassimetriarecprocaentre Po'redza'ono e waw, num jogo de hierarquia e insubmisso, envolvendo alternncias de englobamentodocontrrio.dignodenotaquetalproblemafoiantevistoporPoloMller,ao mencionaraquestodoterceirocl,Topdat: Hocasiesemqueosmotivosclnicosdepinturasousadosparadistinguira filiaoaostrscls.[][Estas]somaneirasdeexpressarsimbolicamenteummodelo assimtrico, na concepo de LviStrauss. Este modelo diz respeito a um tipo de organizaosocialqueexpressaumprincpiobinriofundamental[...]emsociedadesque possueminstituiesassimtricas.(PoloMller1976:189) A partirdeinvestigaoanterior(Falleiros2005),propesequearelaoentreos cls Po'redzaonoewawseriaaomesmotempoconcntrica(contedo/continente)ediametral(pois representamasmetadesexogmicas).Oconcentrismoindicariaquehumatrade,completadefato pelos Topdat. Os Topdat apareciam comumente associados aos waw, ao continente, ao circundante. Poroutrolado,os Po'redzaono seriamtidospelaliteraturacomoocldominante
251
atualmente,controlandoasfunesecerimniasprincipais(Giaccaria2000:145).Considerados essesfatoreseanalogias,naprojeodarelaodiametraldasmetadesrepresentadaspeloscls Poredzaono e waw,enaprojeodatradeclnica(Poredzaono, waw e Toptad),ambas sobreumcrculoconcntrico,podesetomar Poredzaono comoncleoe waw comoperiferia. Masarecprocapodeserverdadeapartirdeumaoutraperspectivasobreamesmaestrutura:seo WaiaouDarinicontroladopelosPoredzaono,tratandosedasrelaesimediataseexteriores, enquanto que o Daono, controlado pelos waw, trata de relaes mediadas e interiores, Topdatsituasenograugraumximointeriorporumladoeexteriorporoutro.Retomandoa frmulaexpressaacima,numavisohipotticadotodo,seriacomoopontodeencontro(sempre potencial)entreaparteinternaeaparteexternadanicasuperfciedeumagarrafadeklein. Asrelaesexteriores,associadasao Darini,podemserconsideradascomodecaptura (pois tratase de adquirir saberes e poderes), enquanto as relaes interiores, produzidas ritualmentepeloDanhono,tmalgoavercomafamiliarizao(poistratasedetransmitirsaberese poderesaosafilhadosoupatrocinados),seafamiliarizaoforcompreendidacomoparaparentesco, jquenoDanhonoatuammetadesagmicaseclassesdeidade. Acimadetudo,precisolevaremcontaquearelaoentreconcentrismoediametralismo noesttica,arelaoentrefiguraefundoquepostaemjogoenvolveumacontnuainverso: oraumcloenglobante,oraoenglobado,sejadopontodevistadecertoritual,sejadopontode vistadecertanarrativa,sejadopontodevistadasfigurasdosgirinosedaguagrande,sejado pontodevistadedadocasamentoemqueum sogro,ooutro genro etc.Cadaabordagemdesta estruturatemumaopodiferentesobrequalafiguraequalofundo,ouqualodadoequal oconstrudo,parausaraterminologiapropostaporWagner(1981)aopensararelaoentre fundoefigura.Dessemodo,podesedizerqueosplosdeumarelaoquepassaporessejogode concentrismoediametralismorelacionamseentresipelaobviaoque,segundoWagner,o processopeloqualodadoconstrudoeoconstrudodado. Nesse sentido, possvel seguir uma pista proposta pelo texto intitulado Manifesto do Nada (diversos autores,emconstruo)220,queassociaaobviaonoodecontradio presentenanaturezadiacrticadomito,nostermosdeLviStrauss(2011[1971]).SegundoLvi Strauss,contarumahistriasemprerecontla,oquetambmcontradizla(quasecomonodito popularquemcontaumcontoaumentaumponto):comotransformao.Nocasodarelaoentre
220Essetextooriginasedeoutro,originalmenteautoradoporFlvioGordon,sendoumaobraabertaatravsdeum portaldesistemawikideproduoeletrnicacolaborativadetextosdenominadoAOnaeaDiferena.Confirao stioeletrnico:http://amazone.wikia.com/wiki/Manifesto_do_Nada(Novembrode2011).
252
duashistriasopostas,comoseumaobviasseaoutra. Seestemovimentodecontradiomarcaadiversidadedeversesdemitosdeorigemque aqui apareceram, como as histrias de Tsa'amriwaw, Tomotsuwaw, Butswaw etc., devese lembrarqueessashistriastambmlidamcomdiferentespontosdevistasobrearelaooriginal entreosclsumaconcntricaeenglobante,aoutradiametral;umadagermanindadeedafiliao, aoutradaafinidadeetc..Apartirdestashistriaspercebesequeacontradioentrenarradoresde clsopostosexpressatambmaoposioentrecls,oposioarespeitodaposiodecadaumno jogo de relaes clnicas, tantoquantodeum emrelao aooutro.Os cls no apenas so o contrrio um do outro, so contrrios tambm a respeito da natureza desta contradio. A contradionosomentedaordemdafala,elafazpartedarelaoentre essescls,efetivada performativamentenadiferenaenglobantedecadaritualumsobreooutro,bemcomonasrelaes pessoais e de (contra)aparentamento em que o dado sempre dado de algum para outrem, afetandoseumaooutropelarelao,construindoenquantodando. Assim,nohsolofixoemquepossaserfirmadaapontadeumcompassoimaginrioque traceoscrculosa'uwxavantes.Oenglobamentodocontrriono,pois,definitivo,estsempre emmovimentodesequilibrado,alternado. Arespeitodisso,osTopdat(comoAbadzi'rihidiba)seriamcomoqueaexposiodosolo movediodestaoposio,comosefossemumaparaobviao,umarevelaodafarsae,aomesmo tempo,umarevelaofarsesca.Arevelaodoconfrontoentreduasafirmaescontraditrias, pormfactuais.Umpoucocomonaquelasituaoemquemedepareicomduasrespostasparaa mesmapergunta:quandoo Ai'uwtmanhari'wa pintaseu 'am igualaele,estetambmsetorna Ai'utmanhari'wa? Respostas: sim!, no!. Defrontados, os dois no se desmentem. Afinal, o confrontosfoipossibilitadopormim,queagi,assim,conformeumlugarestruturalsimilaraodo Ai'utmanhari'wa.Caberiaamimexplicitarodilema,noaeles.Explicitarmasnoresolver. * Se justamente por causa desta caracterstica de meu trabalho (seno do trabalho antropolgico em geral) eu teria sido associado ao palhao, ao Ai'utmanhari'wa, uma especulaopossvel.OprprioMayburyLewis,apesardenoterregistradoaoutorgadealgum cargoa'uwxavanteparasi221,tambmfoitratadocomopalhao.MasMayburyLewisregistrou 221RegistrouquerecebeuonomedeApow,oprprionomedeseupaiadotivo(MayburyLewis1984[1967])sendo
que,athoje,lembradoassimpelosA'uwXavanteemuitasvezesquefalamemApow,aomenosparamim,eles distinguementreo a'uw eowaradzu.Porexemplo,Benjamin,irmouptabideVitriodeSangradouro,quandoeu falavasobreMayburyLewis,perguntoumeseeunoestavamereferindoaApow.
253
quepassavamuitotempobrincandocomascrianaseque,dadassuasperipciasdesastrosasnuma caada(confiraMayburyLewis1990[1965]paraumanarrativadosfeitose1984[1967]parauma reflexo sobre eles), passou a ser tratado como o palhao da aldeia. MayburyLewis falaria alhuresdestaexperincia: Elesentenderamqueeueracomoumacrianaquepodiaseperder.Quandoagente iaparaamataelesficavamdeolhoparanomeperder.noiteoshomensmadurostinham reunies,e,nessasprimeirassemanasdepesquisa,quandotodosestavamcaindonochode tantodargargalhadas,eusabiaqueelesestavamcontandoasltimasburricesqueeutinha cometidoduranteodia.Eufiqueicomoumaespciedetelevisoparaosndios,euerao palhao!(entrevistadeMayburyLewisparaCorra,CardosodeOliveiraeLaraia2002). SeosA'uwXavantenosmostramqueestaposiodepalhaopodesermaiscomplexado queparece,talvezsejaocasodelevarmosasrioacomparaoentreopalhaoeoetnlogo,dadas asanalogiasdaspotnciasqueambosrepresentam. bomlembrar,comisso,queocargodepalhaoa'uwxavantejustamenteum cargo,um dotedepodercerimonial,comoodeoutraslideranas.Opalhaoumdonodefesta,tendoum poder insuspeito para algum que o considere simplesmente um bobo ou um tolo. Porque os prpriosa'uwxavanteassociamessastolices,essesatosdesconcertantescomobrincarcomas crianas,ouescolherdois 'am,sendoumdeles waradzu (oquesuscitourisonacerimniade da'am daqualparticipeiemSangradouro,porexemplo)aumaeficciasimblicanosentido forte. Pormaisestranhaecaticaquesejaoujustamenteporissotaleficciasimblicado estranhotambmcapturaetransmitepoder,elafazfazer.Afinal,brincadeira,jogoeritualsotodos dat, tradio performativa e transformista. Ea criana, de certa forma, est mais prxima da origem e suas potncias de diferenciao indiferenciante (talvez alguns usos aparentemente estranhosdaterminologiadeparentescoemrelaoscrianas,comomostreiacima,sejamum indciodisto)queumadulto.Lembresedasexperinciasdoetngrafocomocriananomundo segundoSeeger(1980)etambmdequeofatodeseradultoemalgumoutromundofazdesium mediadorentremundos(Wagner1981). EstepoderdopalhaoseassemelhaquiloqueWagner chamouemAInvenodaCulturadesmbolonegativo:umtropoquegeraouobrigaainventar seus prprios referentes, subvertendo tanto a subjetividade quanto a objetividade em prol da
254
mediao.Oquetambmseassemelhaidiademana,exploradaporMausemesmoporLvi Strauss(1988[1950]).Umavirtudeprodutora,comaeficciadeumprincpio deabundncia222. Umaabundncianomeramentematerial:umpoderderelao. Em suma, o antroplogo tem uma relao especial com o poder. E se ele no um romhtsi'wa, um criador/transformador original, tudose passa como se ele adquirisse algo desteromhseumanaatravsdarelaoquetravaentreammeseofazercomecomoea diferenaconstitutivadoprprioprocesso.Aindaquepossaserconsideradocomooinversodo Ai'utmanhari'wa.Poisseestegentequesefazdeestrangeira,oantroplogoumestrangeiroque sefazdegente.Talvezporisso,enquantooAi'utmanhari'wapodesairpelascasaspedindocomida, oetngrafo,aocontrrio,precisasairdistribuindopresentes.Afinal,oantroplogo223estsempre noapenasindoevindodiretamentedafontedepodercomocostumapassarmuitomaistempo longedosnativosdoqueperto,entretidoemsuavidaacadmica.Cadavezquevaiemborada aldeia,repeadiferena,adistnciaeoestranhamentoperanteosnativos.Cadavezquevolta, chegacarregadodepoderestrangeiroe,porbem,carregadodepresentes,aindaquevoltemais ntimo,maisfamiliarizado,maisgente.E,porissomesmo,maisobrigadoasergeneroso. * De voltaaos Topdat,donos do Abadzi'rihidiba,pode seproporqueseulugar o da confusoentreexterioreinterior,capturaefamiliarizao,entredoisplos,comoumterceiro includo.Comisso,nodeixamdeadquirir,emboamedida,umpoderdeexceosregras.O que talvez tenha sido minorado desde que, numa nova configurao polticomoral, o Abadzi'rihidiba no se faa mais, ou tenha diminudo sua presena. Nesse sentido, se as caractersticasdosTopdattambmpodemajudaracompreenderarelaodosA'uwXavanteno s com os antroplogos mas com os Waradzu emgeral,serqueuma proximidademaior dos A'uwXavantecomoEstadobrasileiro,comseupoderdeexceosemigual 224,tenhaexercido
222Comonasnoesdeautoridadeenexumromanas,porexemplo,segundoLanna(2000). 223 Nestecaso,oxavantlogo,jquetalconcepoderelaocomopodernoabsoluta,produzidaapartirda pesquisacomosA'uwXavante.Destemodo,talvezcomotodareflexosobeaantropologia,estaumareflexo situada. 224 Conformealeituracrticaque GiorgioAgamben(2004) fazdeCarlSchmitt(telogodoEstadomoderno),ser soberanoteropoderdeexceo,opoderdesuspenderavalidadedalei,decolocarseacimadela.Assim,oEstado modernocolocarseiaacimadetudo,pretendeenglobartudo,todoocontrrio,constituindoumtodoquesequercomo tal:totalitrio.OsTopdat,porsuavez,soexceoporapontarparaumatotalidadesemenglobamentos,soexceo aosenglobamentos.Issotalvezdecorradesuanaturezaldica,nosentidoestritodotermo,dojogocomoumatotalidade dotadasempredealgumaausncia:algumaausnciadeseriedadee,tambm,umanecessidadedelimitarseaum
255
algumefeitoquelevassediminuiodaimportnciadoAbadzi'rihidibaedosprpriosTopdat? Teria o estabelecimentoderelaes pacficascomos Waradzu ligadoaofimdas expedies guerreirasa'uwxavanteaoutrospovos,umaausnciadaguerraou,melhor,aguerrasendofeita poroutrosmeios(comoofutebolouapolticaindigenista,porexemplo)diminudoointeresseda saturnliaa'uwxavante?Aaproximaoterritorialmenteenglobanteeintensivados Waradzue suaentropiadesenvolvimentista,nasltimasdcadas,terialevadoosWaradzuausurparem,ainda queainadvertidamente,olugardoterceiroincludo? Noocasodeumasubstituionemdeumfim.Umfimque,nolimitedapresena Waradzu,poderiaserofimparaosA'uwXavante.Afinaldecontas,rpipateweimo,operigo vema,comodizumadascanesdeMrcioTserehitsobrehidreltricas,fazendas,eotemordos A'uwXavantedeumdianoteremmaissuasterraseseumododevida.MasosA'uwXavante continuamlutandocontraestefim,oAi'utmanhari'waeosTopdatcontinuamapresentificarse, continuamatersuasprpriasmaneirasdeexpressaraentropiaeocaos,paradoxalmentepoliciando osecontrolandoosnomesmoprocesso. Contudo, se para Course a relao entre o palhao e a alteridade extrema do branco costumaserumtemacomumentreosamerndios,aquivemoscomoamaiorproximidadecomos Waradzupodetertornadomenosimportanteafiguradoterceiroincludoanterior,osTopdateseu palhao,sepudermosconsiderarque,emalgumasdcadasderegistros,elespassaramdeelemento parcialmenterelevanteparaaexogamia(verMayburyLewis1984[1967],GiaccariaeHeide1972)a elemento parcialmente inexistente (ver Vianna 2001, Gauditano et alii 2003). Enfim, como me disseramcertavezemumadasaldeias,ocargodeAi'utmanhari'waestariaperdendoimportncia ali,osdonosesuafamliaestavammaisinteressadosemdisputarocargodePahri'wa. Quantoaosbrancos,vsequeagoraadesmesura,osexcessosalimentaresesexuais,tem neles personagensmais intensosepresentes.Poisos brancossotidos pelos A'uwXavante comobpadi,depniscomprido(havendoatummitosobreisso),motivodepiadaseprovocaes. Umaprovocaocadavezmaisprxima.Se,conformeadiscussolvistraussianalevantadapor Vianna(2001)sobreomitodo Waradzubpa, o Waradzu dopnislongo,otamanhodopnis representao perigodoalargamentodaexogamiaedoencurtamentodadistnciaquedevia ser mantida em relao ao branco, hoje o perigo mais presente. Se antigamente os brancos
campo,deixandoummundodefora(Huizinga1980[1938]).Estariam,assim,maisprximosdo Homoludens de HuizingaquedoHomosacer(2004)deAgamben.IssodecorretambmdofatodequeosA'uwXavantesecolocam, emrelaoaopoder,comovidosestrangeiros,indoevoltandodele.OEstado,porsuavez,situasenoprpriolugardo poder.
256
precisavam ser caados ou acoados, hoje eles aparecem aos montes dentro das aldeias, como missionrios, antroplogos, agentes de sade, polticos e candidatos em campanha, pedreiros e empreiteiros (como os que reformaram e ampliaram a escola indgena Ado Top'tiro na Abelhinha),esoencontradosfacilmenteapoucosquilmetrosdali,nasestradas,vilasecidades. SeissonotrarfimaosTopdat,dequalquermodo,asupostaperdadesuaimportnciana polticadoparentescoeapossvelperdadeseucarterexogmicoparecemestarassociadasdita interrupo,aodesmembramentoouaoocultamentodoAbadzi'rihidiba.225 Hojeosrituaisondeseextravasamalgunsexcessossexuais(comoaexposiodecorpos femininos seminus, sob aplausos, apupos e zooms de cmera) so as A'uw Aimawi Tsirene, competiesdedanaentrealdeias(principalmenteentreescolas)emque,comojmencionado, tocasemsicawaradzuoudeoutrosindgenas(a'uwaimawi)ecapturaseospassos,trejeitose tcnicascorporaisdosestrangeiros,misturandoascomasa'uwxavante.Competiesnasquaisas mulheresmuitasvezesexibemdanasmaiselaboradasesensuais,ospeitosnuseatmaquiagens,a despeito do que ocorre no cotidiano da aldeia. Os A'uwXavante assistem muito a essas competiesgravadasemvdeoeDVDapesardosvelhosdizeremqueaquilonoXavanteede maisnovosnoadmitiremquecostumamparticiardedanasassimepudeassistiravriasdessas competies,emvdeo,comeles. Acreditoqueumestudomaiorsobreessascompetiespodefalartantodolugarestrutural ocupadoporelas,semelhanteaodoAbadzi'rihidiba,odotrikster(aquelequedalgoenebriante paraoDemniodeMaxuellbeber)quantonosensinarsobreaantropologiaemsentidolatoo modo de conhecer o outro praticada pelos A'uwXavante com essas danas. Danas que misturamnomesmogestoainvenoeammese,ofazercomoooutro,otornarseoutro.Eque trazemaosolhoseaoscorpostcnicasdiferentes,jogosdiferentes,rituaisdiferentes,quesoassim capturados.Umaantropologiacorporalquepudeobservarsendopraticadaporelesalgumasvezes quando,depoisdeassistiraalgumfilmedeartemarcial,ascrianassaamimitandoseusheris,ou depois de assistirem s A'uw Aimawi Tsirene alguns rapazes saam danando e reproduzindo tecnicamenteosaberfazercapturado. Ademais,aprpriaatitudeperanteaaudinciadosrituaismudou,comomostraSpaolonse (2006), com a introduo de tcnicas de registro e reproduo de imagens aprendidas com os Waradzupelosaberfazera'uwxavante.AgoraosA'uwXavantejnovemrituaissomenteno ptiodaaldeia,emsonhosouespionandooutrospovosescondidosnamata.Agoracaptamissoem
225ComoosdadosdeLopesdaSilva(1986[1980])eosdadosquetenhocoletadosapontam,osnomesdasmulheres tmpassadoaser,desdenascena,dadosconformeasespciesdenomesdoAbadzi'rihidiba.
257
cmerasouatravsdevdeoseantenasdeTV(sendomuitocomunsasparablicasnabeiradas casas nas aldeias). Surge assim um novo personagem, o video maker, o videografista que assumeumcarterdemediadorentreospraticantesdoritualeumpblicodesconhecido,segundo Spaolonse,anulandoalgumasrestrieseinterditosparaquepossaestarondenodeveriaestarcaso no tivesse umacmeranamo(Spaolonse2006:6768).Acreditopoderaproximar,dealgum modo,estelugardeexceoaodoAi'utmanhari'wa:senoomesmolugar,nodeixadeseruma novaformadeexceoedemediao.Eumesmopudeexperimentaressaexceoaoserautorizado afotografarefilmarowat'wa(abateodeguadosadolescenteseminiciao)emBelm,por exemplo, ainda que acompanhado de um velho mama, Jos Walmir (que, por sinal, Ai'utmanhari'wa),oquenopoderiafazerporcausadaminhacondiode danhohui'wa. Em outrasocasies,comonumapescaria,porexemplo,alegueiquenotinhapegonenhumpeixee por isso, pedia peixe para meus companheiros na hora do almoo porque era o filmador, dahibari'wa (nosemcertohumor,jqueerreiapalavraem auw mreme,tendocomeadoa dizer dahibaridzwa, o que os AuwXavante repetiam para mim com seriedade fingida, fazendotroa). Poroutrolado,outro danhohui'wa queconhecialhuresmantinhaseregularmente afastadodasobrigaesdosdemaisdanhohui'wagraasexceodeseutrabalhocomofilmadore cinegrafista,quedemandavamdelefreqentesviagensecursosnoexterior. Enfim,setodotipodeexpressividaderemeteaeserealizanocorpo(Spaolonse2006: 51),creioserpossveldizerqueatarelaodosA'uwXavantecomoutrasmdiasacabasendo, dessemodo,encorporada.AssistemaritosejogosnaTV,trazendoosparaaprtica,fazendohoje aquiloquedizemqueosantigosfaziam,capturandoeadotandoosrituaisdeoutrospovos.a replicaodeumatradioperformativaetransformadora.Lembrese,tambm,queaTVdlugar tambmaumdosjogosqueosA'uwXavantemaisapreciamencorporar:ofutebol. Aintroduointensivadetantosrituaisestrangeirostalvezdevaterdadomenosespaoa antigosestrangeirosinternoscomoosTopdat.Comisso,podesesuporqueaintuiodeMaybury Lewis sobre ter se tornado uma espcie de televiso em campo tenha um sentido bastante perspicazarespeitodestaposiodeexceo. Especulase que os Topdat, nesse cenrio, teriam supostamente declinado. Mas, de qualquermodo,oqueinteressaentenderoseupapel,asuapartenestapartedotodo.Parteque, emrelao aos Po'redza'ono eaos waw,pareceseradetriksterdoparentesco.Oques possvelsenoparentescoosA'uwXavanteenxergaremoperigodocaos.Perigoqueestnas complexas relaes entre agnao e cognao e nas estratgias de aparentamento tanto 258
complementares quanto discordantes, constituindo conjuntos nebulosos (fuzzy sets) de corpos pessoais.Conseqentemente,omesmoperigoestpresentenosconflitosfaccionais,queocorrem tantoentreclsquantodentrodoscls,ouseja:osclstambmnoconstituemconjuntosabsolutos para a determinao de solidariedades, assim como a oposio entre os cls no basta para a determinaodeconflitos,jquehdiversassolidariedadesentreeles.Operigoestnaquiloqueos rituaismostram:queoparentescopossuipotnciasescondidas,includas,sinalizandonaprpria facesuasincertezasestruturantes,seusemprstimos,suaspropriedadeseantipropriedades. # Recuperase ento aquela sugesto ordeira, por assim dizer, de MayburyLewis (1984 [1967])devernosistemadeclassesdeidadeumaoposiostensesdoparentesco.Massepara eleosA'uwXavanteenxergamoconflitonarelaoentreclseasolidariedadenarelaoentre classesdeidade,trataseaquidealgoumpoucomaiscomplicadoqueisso:atendnciaantisocial doparentescoestnasuadificuldadeemconstituircorporaesenquantototalidadesconsistentes,e nonomeroconflitoentrelinhagensecls.Oconflitonoexatamenteoproblema.Inclusive porque,comojfoinotado(Vianna2001,Falleiros2005),oqueasclassesdeidadefazemcomo conflito ritualizlo, no extinguilo. Pois se existe uma antisocialidade (McCaullum apud Gauditano2010:113)narelaoentreosclsa'wuxavante,porqueestaantisocialidadetambm semanifestanasrelaesdentrodoscls. Aindaassim,aantisocialidadedoparentescomostrasecomoessencialparaacontinuidade davidaA'uwXavante,umamolacontraaestabilizao,quemantmofluxoininterruptoentreo entreconhecerse, o entreencorporarse, e o perigo necessrio do feitio da diferenciao indiferenciante.
****
259
3Gentificando
As questes do aparentamento a'uwxavante so to complexas que, mesmo depois de tandodiscorrersobreelas,aindatemseaimpressodequealgoficoufaltando.Semdvida,uma sistematizaoeumagramticadescritivadoparentescoaindadeixamadesejar.Masoparentesco, entretanto, deve ser visto mais como uma totalizao parte da vida a'uwxavante do que o aparentamentopropriamentedito.Oaparentamentoescapaatotalizaes,porissoanecessidadede controllo.Controlequetentadopelapartedotododasclassesdeidade. Entretanto,certasrecorrnciasdeprincpiosrelacionais,movimentospendularesdefugae retorno,decapturaedistribuio,alternnciasentreoconcntricoeodiametral,entreaspotncias daconsanginidadeedaafinidade,puderamserresumidosdavariedadededadosemanifestaes. Princpiosqueacreditotambmpoderencontrarnaconcepoa'uwxavantedegente,humano, a'uw, a'uw uptabi. Operaes no menos complexas, em termos de sua lgica, que as do parentesco.Masestascustaramporteremabertocaminhoaodebate,introduzindoquestesque agoraseromaisrapidamentereconhecidaspeloleitor. Assim,nestecaptuloabordoagentificaoa'uwxavantecomoumprocesso,inacabado, detornarseasimesmoe,nomesmomovimento,tornarseoutro,operandoapartirdemovimentos semelhantesquelesacimasalientados. Aressalvaavanadanoinciodocaptuloanteriortambmvaleagora:impossvelfalarde tornarsegenteentreosA'uwXavantesemabordarprocessosrituaiscomoosdasclassesdeidade, doxamanismocoletivo,sobreaaquisiodecargoseencargos,sobreodzmor,sobreossonhos, sobretantosaspectosvariadosefundamentaisdoa'uw hoimanadz,omododevidahumano. porissoque,noslimitesdemeusdadosedaparcialidadedeabordagemquepossoter(noabordei pessoalmente o dzmor, por exemplo, nem pretendo fazer uma exegese extensiva do Darini), acionareiesseselementosquandonecessrio,mesmoqueadiantevenhamatomarolugardehonra dadiscusso.Nessesentido,tambmsedevepensaremalgunscargosimportantes,comoodo 'Wamartede'wa,consideradoporalgunscomocondicionalparaosa'uw uptabi(gentemesmo),e outrosttulosqueparecemteralgoadizersobreoquevemasergenteparaosA'uwXavante, comoo A'uwtede'wa,potenteetituladomatadorepacificador.Fizapromessadetratardoque viriaasergentepropriamenteditaparaosA'uwXavante.Certamenteestecaptulonodarconta dissotudo,nemmesmotodaatese,masespalhadonelaqueoassuntoseencontra.Tomeseeste captulocomomaisumaapartedotodo. 260
certoquesenoprocessodetornarsegenteoparaparentescodasclassesdeidade,por
exemplo,importante,pareceriacausativamentenecessrioconsiderarantesesteassuntodoque aquele.Aconteceque,seofluxodevidaa'uwxavantetemcomocentroasclassesdeidadee maisindciosdistoaparecematnaformacomoalgunschamamoHemportugus:ocentro, omovimentopendulardanarraopermitemeretornarorigemdasinquietaesquedoformaa estateseotornarsegente,paraqueassimserecarregueabateriaparaasdiscussesfuturas. Ademais,ocentronodeveignorarosplosopostosda(semi)circularidadequalestrelacionado. *** Quantagente Era comum, para mim, ser abordado por algum adolescente, tanto na aldeia Abelhinha quantonaaldeiaBelmeperguntadosobreminhacondiodehumanidade. Umdeles,beiradocampinhodefuteboldos waptdaaldeiaBelm,querendosaberpor queeunotinhaaorelhafurada,jqueeraseu danhohui'wa ,interrogoume:ahgacho?Waradzu uptabi?Tsa're'wa?frica?...Euiarespondendonoparacadaumadasperguntas... Outro,Brswaw,Aih'ubunifilhodeVitrioperguntoumebeiradorio,durante umbanho,arespeitodeminha esposa: tobtsapore? Gacho? A'uw? Tailands? Xingu? frica? Waradzu uptabire? Percebi que seu questionamento continuou em direo aos outros termos (tailands,xingu)pelofatodeeuterrespondidotsuruna(umpouco),paraaperguntaseelaseria a'uw. Certavez,tambmnobanho,LibncioNhihriw''comeouafazerpiadascomigoa respeitodecertohomempeludo,emrefernciaaospelosdemeucorpo,emmuitomaiorquantidade doqueosdeleoudosdemaisa'uwxavante.Pergunteiseeraoro'o'r,bugio,oro'otsipri,macaco assassino,decujahistriaeujtinhaouvidofalar.Suarespostadevetersidomaisumadessas concordnciasevasivasqueeumuitoobtivedosA'uwXavante,sobretudonummomentodepiada e brincadeira como este. Ainda que, noutra ocasio, comentando o fato de Tiago Tseretsu ter passadopartedanoiteaoladodojirauqueassavaacarnequecaara(cercadoporinteressados irmos desua esposa),Libnciomefalassequeo cacique estavalpormedodeladroeque, dadaminhainsistnciaemsabersobreisso,oladroseriaohomempeludo,aona.Seiquea partirdapasseialgumasvezesarespondersfreqentesperguntassobreoqueeuvinhadeser 261
sobretudososadolescentesdizendoqueeuera Ro'o'ra. Essasperguntaseramfeitasemtomde desafio a respeito de minha condio de humanidade e, mantendo o nvel do desafio, eu os respondiamentindo,brincandocomofreqentementeelesmesmosfaziam,pregandomepeas mascomumadosedomesmodesafioemtomdeameaaquemepropunham,dadooperigo exemplificado pelo 'ro'o'ra. O que nunca ia alm da brincadeirinha, datoire, s vezes personificadaporeles,comoquandoCsarMessiasTserenhmameunhimiwainhemBelm numadascaadascoletivasdequeparticipeicomeles,comeouadestruirarbustosparcialmente tostadospelofogo,aindaqueverdejantes,nocaminhodacaa,batendonopeitocomoKingKonge seautointitulando'ro'tsipri. Esses exemplos, antes de serem esmiuados, apresentam uma gama complicada de classificaesrelativasdegente,comsubdivisesmaisapreensveisecontrastesnotofceisde seremapreendidos.Gacho,porexemplo,umtipomuitocomumnaregioa'uwxavantee,no geral,nomuitoapreciado,dadososconflitosintensoselatentesentreosA'uwXavanteeos imigrantesdoSuldoBrasilqueadquiriramsuaspropriedadesdecooperativasqueadministravam terrasconcedidaspeladitaduramilitarondeeraterritrioa'uwxavante. Gacho parece,paraos A'uwXavante,umtipoparticularde Waradzu,diferentedo Waradzuuptabi. SegundoVitrio, Waradzuuptabiseriaaquelecivilizado,pacfico,respeitador...Perguntomese,dadaalongahistria deconflitoscomosWaradzu,atquepontooWaradzuuptabinopoderiaserconsideradoooposto dissotudo?...Dequalquerforma,elesparecemgradaros Waradzu conformenveisdeexcelncia semelhantesaoquefazemsobresimesmos.Almdisso,comosalientaVianna(2001)conformeo mito de Tserebutuw em que alternamse casos de comportamento antisocial, disjuntivo e vingativocomcomportamentosgenerososereceptivosos Waradzu podemestartantoembaixa quantoemaltaconta. tobsapore quer dizer algo como olho puxado, como os A'uwXavante chamam os japoneses.Nomefoiditoseelesseriamespecificamente Waradzu, masocomportamentoem relaoaelessemelhantequeleemrelaoaos Waradzu.Todavia,o tailands,porexemplo comomedisserammaisdeumaveza'uw.Certaocasio,assistindoTVnaescoladeBelm, algumanotciasobreaTailndiamelevouaperguntarparaMrcioseleleserama'uw.Mrcio confirmouquesim,porquetinhamcabelopretocompridoeamesmacordapeledosa'uw. Quantofrica,quandomediziamistoestavamsempresereferindoanegros,africanosou no.Nogeral,osA'uwXavantesomuitociososarespeitodoscabeloslongos,lisosepretos,dos quaistomamcuidadoespecialpassandoseivasdecocoseentrecasasdervoresparaquefiquem 262
assim produzidos.Cabelos enroladosearmados (comocostumaserumcortedecabeloblack power,porexemplo)sosvezesassociadosaumafiguradobestiriohumanoa'uwxavante chamada de 'ri'rre, algo como cabea seca, talvez em referncia a seu penteado (ou despenteado).Mas,curiosamente,tendoaparecidopovosafricanosemalgumprogramadeTVque levavamumavidadealdeia,caaeexpediesnafloresta,estesforamequiparadosaosa'uw,no pelasuaaparnciamaspeloseumododevida.Poroutrolado,aomenosnaAldeiaBelm,pertoda qual,certafeita,foiencontradoumacampamentode'ri'rreaprovadistofoiumacamaevrias panelasque,numatarde,vichegaremdecaminhonaaldeiatrazidapelosexpedicionriosa'uw xavantesdisserammeque'ri'rreeramosndiosKayabi,a'uw,portanto. Essas classificaes denotam o modo pelo qual, relativamente a certas caractersticas, algumas espcies de pessoas podem ser consideradas a'uw. O que interessa a partir dessas classificaestantoentenderoqueosA'uwXavantevemasercombasenoqueelesnoso, quanto entender algo alm: como se d o encadeamento entre esses vir a seres? Se h o aparentamento,ammeseeoencadeamentocontagianteentreoscorpos,osadornos,osnomes,os saberfazeres,asvidas,issoquerdizerqueemalgumsentidoumserpodeviraseroutro.Ento, quaisseriamoscortesentreooutroeumnessarededavida? * Falarmuitoarespeitodosgachosseriaumainjustia,porquenofizpesquisadecampo comeles,apesardetertomadoumanotaououtrademeupequenoconvviocomimigrantese moradoresnascidadesevilas.Minharelaosuperficialcomestaspessoasdificilmenterevelariao sentidoquegachotemparaosA'uwXavantee,poroutrolado,sefossediscorrerdemaissobre elas, acabaria reproduzindo o mal estar a'uwxavante em relao a elas, dadas as conotaes negativas do termo gacho para os A'uwXavante. Nopossodiscorrer sobreas nuances das conotaes do termo para os prprios gachos e demais habitantes da regio, sejam eles anterioresouposterioreschegadadeimigrantesgachos,sejamdelongaoucurtadata,sejam imigrantesdoRioGrandedoSuloudeoutrosestadosdoSuldoBrasil,sejamfilhosdeimigrantes, sejamapenasmatogrossenses. Matogrossenses,alis,oqueosprpriosa'uwxavantemuitasvezesseconsideram.Uma vez, andando de carro com Hiprdi e sua amiga waradzu, entre a cidade e a aldeia, esta lhe perguntouporqueeleescutavatantamsicasertanejanordiodoveculo.Elelherespondeuque eraporqueelematogrossense,porissoescutavaessetipodemsica.Aquilotambmfaziaparte desuavida.Desuaecologiasonora,porassimdizer. 263
Msica sertaneja, sertanejo universitrio, brega, forr, forr eletrnico, tipos de msica freqentesnessaregio,cujosrtulosdadosaquiporminhacontaeriscoenglobamumamsica popularbrasileiraqueaimensamaioriadosqueestoaoredordosA'uwXavanteapreciame atravsdaqualosA'uwXavanteaprendemsobreoquequeremepensamosWaradzu:cabar, cabar,carrodeplayboyandacheiodemulher,dizaletradeumadasmsicasmaistocadasna regionosprimeirosdoisanosemqueestiveporl.Msicaquefaladeummododevidaqueeles vemseproduzindoaoredordelescomimensavelocidade,comocrescimentosurpreendentedas cidades ao redor, baseado principalmente no agronegcio de grande escala, como plantio de algodo,milhoesoja.Mododevidaque,entretanto,noprecisalhessoartotalmentealiengena. Certa vez, conversandocom Marcos,na Abelhinha,eleme disse quehavia algum tempo, eles escutaramvindodealgumlugarnomuitodistantedaaldeiaumamsicaconstanteealta,um famosoforrdeautoriadeOsFeradoBaile(conjuntomusicalmuitodadoacantarsobrecarrosde playboyecabar).DissemequeosA'uwXavantesaramparaprocuraraorigemdosomna estradadeterra,nomato,masnoacharamningum.Porque,completou,eramos Tsa're'wa que estavamescutandoessamsicaenquantodavamumafesta. Ouseja,amesmamsicaqueosmatogrossensesescutam,queos gachos escutam,os Tsa're'wa tambm podem escutar e os A'uwXavante inclusive. Estrangeiro, superhumano, humano,todosparecemteralgoemcomumatravsdamsica.Amsicateria,paraosA'uw Xavante, um sentido de veculo de comunicao com o mundo paralelo, segundo o etnomusiclogodeprimeirahora(tantoparaosA'uwXavantequantoparaaetnologiaamerndia) Desidrio Aytai:''mundoparalelo'',conceitomais abrangentedoque''mundosobrenatural'' ou ''outromundo'',comoqual,comosabido,oscantosxamnicosvisamestabelecercontato.Emse tratandodede''mundoparalelo'',creioquesepodepensartambmnomundodosanimais,das plantas,nomundodanatureza(Aytai1999:82).Nestapassagem,Aytaisereferesuaanlisede um canto propiciatrio de caa a'uwxavante. Esse canto teria sido aprendido espionando os WaradzuTomodza'ro ,ndiodeolhobrilhante,olhodegato,conformelembraAytai,citando GiaccariaeHeide(1975a).Naanlise,oautorrelataqueocantofeitonamata,emrodaecomas armassegurasdemaneiradiversadaqualseriamparacaar,oqueinterpretacomoumaformade estabelecerrelaespacficascomacaa.Maisumcasodepacificaoguerreira? Enfim, sepredarpodesertambmpacificar,earelaodosa'uwxavantecomoutros povosmuitasvezesmarcadapelacosmopolticadapacificao,vemoscomofazsentidouma conflunciadediversasalteridades,dooutromundo,nummesmoeamplocanalderelaocomo 264
queAytaichamademundoparalelo:amsica.comosediversasespcies,dosobrenaturalao natural,seencontrassemnomesmofeixedelinhasparalelascomasquaisseentraemcontato pelamsica. Essaidiadecontatoentremundosparalelosaindaquenosejaamaisprecisa,jque taislinhasparalelasparecemmeumtantocurvas,cruzadaseperpendiculares apontaparaa complicada cadeia de transmisses entre as (no) gentes em questo. Os Tsa're'wa capturam a msicaWaradzuqueosA'uwXavantejtinhamcapturadoemseusradinhoseCDsecomisso osprpriosA'uwXavantepodemouviros Tsa're'wa.OsA'uwXavante,porsuavez,usamum cantocapturadodosWaradzuTomodza'rondioscomolhosdegato,umencontroperpendicular entrehumanosefelinos(algumparentescocomaona,estavelhacaadora?)para,atravsdele, fazer um tratado de paz que lhes permite capturar outros animais. Se a no nos deparamos precisamentecomumsistemademudanasdeperspectivamodaamaznica(emquecadaum veria,noqueooutrov,algodiferente,pormapartirdeumaidnticahumanidade),encontramos contudoumacirculaointensadetcnicascorporaisehbitossonorosentrediferentespredadores. Oquelhestornadiferentes,ento?Apontamentosparaumaoumaisrespostasdestaquestovma seguir,focalizadosprincipalmentenasrelaesentreosA'uwXavante,Waradzu,Tsa'rewaecertos animais. *** Perturbadoramentehumanide Certavez,fuiroacomLibncio,aaproximadamenteumquilmetroapdedistnciada aldeiaAbelhinha,ajudlonotrabalhodeararosolocomaenxada.Nocaminhoumresquciode estradadeterracercadodecerradoqueimado,atravessandoemseguidapelamatagaleriadorio ouvimosaolongeosomdoqueelechamoudechorodosbugios, 'ro'o'ra.Libnciologome avisou que eu nodeviaimitar tal choro,nemassoviar,porquepoderia chamlos eatrair sua perigosa ateno: Antigamente tinha muito mais macacos. Andando na mata estava muito perigoso, o velho disse para o 'riti'wa no assobiar, mas ele assobiou, os macacos vieram a apedrejaramosXavanteatamorte.Depoisdesteataque,conformeahistriaquemecontava, houveumconselhonowarefoicombinadoqueosmacacosassassinosdeveriamsermortos.Lse foiumaexpedioguerreiraa'uwxavanteemdireoaeles,tornandoseresponsvelportrucidar 265
os'ro''ra.Talvez,imagino,notivessemmatadotodos,senonohaverianenhumparachorarhoje emdia.Masdevemtereliminadoamaioriaporque,comodisseLibncio,antigamentetinhamuito maismacacos.Esteraciocniomitohistoricamentefactveljque,comomostraMedeiros(1990), emvriasdashistriasdeencontroscominimigos,osA'uwXavantedeixamsobreviventespara contarahistria.Maseosmacacos?Seelesnofalam,maschoram,oqueteriamadizer?Talvez seuchoroqueiradizerjustamenteisso:amemriadeseusmortos,umlutopermanenteeinacabado. O que dizer da humanidade desses macacos assassinos, cuja figura humanide uma imagem sugestivaparameu olhar waradzu?Talvezsejasugestivatambm paraoolhara'uw xavante:porqueescolheriam,comoexrcitoinimigo,dentretantosanimais,justamentemacacos, esseshumanidespeludos? Indciosdestarelaoentresuaaparnciaeaaparnciahumanaaparescnciasestona versodahistriacontadaporJernimoaGiaccariaeHeide(1975a).Segundoela,os 'riti'wa depararamsecomos'ro'tsipri,macacosassassinos,quandosaamparacaarWaradzu.Se,na busca desses estrangeiros que seriam, na origem, humanos, depararamse com um coletivo de macacos, talvez faa sentido considerar que, tambm para eles, os macacos macaqueiem os humanos. Almdisso,omitodizqueessesmacacossograndes comoumhomemadultoe carregam debaixo do brao uma pedra redonda com a qual do morte a muitos Xavante (Medeiros 1990). Tratase, inclusive, de uma guerra, e no uma caada em busca de abadze (animais):guerrainiciadapelosmacacosassassinoserevidadapelosA'uwXavante.Eideseus narradoresa'uwxavantecomparamtalnarrativashistriasdeguerrascontraoutrospovosou seres(Eidetalii2002:38).226 Opontoquemeparecemaisimportanteeste:osmacacosassassinos,inadvertidamente atradosporassoviosdosA'uwXavante,tomaramainiciativadeumataquearmado. Antesdecompreenderaquestodainiciativa,poderiaserditoque,seocantoumaforma decontatopacficocomomundoparalelo,nostermosdeAytai,oassovioumaformadecontato muito perigosa com este mundo. Certa vez, na aldeia Belm, comecei a assoviar e um companheirodeclassedeidadepediuqueeuparasse:osvelhosnogostam,disseme.Afirmase queimitar oassoviodepssaros,comooja, dati''u,tambmarriscado.Opiodoja, por exemplo,podeseroannciodealgumperigonamata,umrecadodosTsa're'wa.Lembreseainda
226 DadaquestoapresentadaporFausto(2002)arespeitodainexistnciadeumabarreiraontolgicaentrecaae guerrana Amaznia,reconheo oproblema detal distinoe ointeressedas solues apresentadas peloautor, distinguindocomensalidadeecanibalismo,masumaaproximaomaisprecisadesuateseparaocasoa'uwxavante demandariaummaiorescrutnio,umafuturainvestigao.
266
queotsimihpriassoviaquandomorreuma'uw,trazendoochoroparaaaldeia.Acomunicao doassoviocontmumelementodepredaoviolenta,dedisputa,comoasituaodeumacaada, porexemplonaqualsemimetizamassovioscomoodaanta,paraatraireenganaracaa,oupara secomunicarfurtivamente,oquepareceserevitadoemoutroscontextos.Certavez,pegandocarona decarrocomRicardo,daaldeiaTrsLagoas,irmodePierRodolfodaAbelhinha(Po'redza'ono, portanto),naestradadePrimaveradoLesteparaSangradouro,elemecontouquecaavaimitandoo assovio da anta. Pergunteilhe como era o assovio e ele no quis revello (o que deveria ser perigosonaquelecontexto).Emsuma,oassoviopareceserumaformadecomunicaoconflituosa compotencialdecombatemortfero,diferentedeoutrasque,apesardeenvolveremapredao,tem acaractersticadeumapredaopacfica. Seos 'ro'tsipri comearamoataque,tomandocomissoolugardosujeitoaquelede quemtomaainiciativa,poroutroladonotiveramahumanidadededialogar.Diferente,portanto, doquesepassaranocontatocomosndiosHireroi'waque,lembrese,debateramcomosA'uw Xavantearespeitodadevoluodesuasmulheres(GiaccariaeHeide1975a,Medeiros1990).Um ndicedahumanizaodos Hireroi'wa estnofatodequeosadolescentes,depoisdafuraode orelha,masantesdotrminodosrituaisiniciticos,passamaserchamadosde hireroi'wa:esto quaselemtermosdehumanidade.Diferentementedosmacacosassassinos. Assim,oqueparecetornarosbugiospotencialmentehumanos,seupoderdepredadorese, maisdoqueisso,suatcnicacorporalcoletiva(agememgrupoemanejampedrascomoarmas)se manifestaemsuaguerracontraos a'uw. Massissonobastaparaquesejamtratadoscomo outroshumanos,outrosndios,a'uwaimawi.Porquecomelesnohouvedilogopossvel.Ese ofatodechoraremapontaparaumacomunicaopotencialmentehumana,umacomunicao incompleta,umahumanidadeinterrompida,esttica,emlutopermanentequasecomoaquelado tsimihpri. possvel que a comparao feita por alguns A'uwXavante entre os Waradzu e os 'ro'tsipriahiptesedequeosmacacossejamnossosantepassadosfaledarupturacomuma possvel estabilizao do processo de humanizao, estabilizao caracterstica dos macacos assassinos:antigamentenohaviadilogocomosWaradzu,mashojeh.Aindaassim,separaos A'uwXavante os antepassados so tambm nossa potncia, ento h nos Waradzu uma potencialidadedeestabilizaoedenegaododilogo. ***
267
Eunosoucachorro,no Seacomparaoentrewaradzue'ro'tsipriindiretaepoucoexplcitanasfalasa'uw xavante,ouvi,contudo,muitascomparaesentreocomportamentoeocorpodoWaradzueosdo co,wapts. Ofatodeeuser peludo,porexemplo,foibastantecomparadomesmacaractersticados cachorrosporpartedemeuscompanheiros danhohui'wa emsuasprovocaesamimeminha desumanidade,sobretudoenquantonospreparvamosparaosensaiosvespertinosdoWanoridbe, caractersticododanhohui'wahimanadz(acondutadospatrocinadoresdosadolescentes).Plos, contudo,queeupoderiafacilmenteeconstantementeaparar,assimcomopoderia,comofizuma vez, usar algum produto nativo no meu cabelo para tornlo mais liso e preto, como o wedenhorto, uma entrecasca de rvore que era colhida por um danhohui'wa para que os adolescentes,batendoguanaquelemomento,passassememseuscabelosduranteobanhoeassim osfizessemcrescerlisosepretos,amadurecendoosehumanizandoosmaisrpido.Eunopodia usarareservafrescadessaentrecascaemmimnenhumdanhohui'wapodia,inclusiveeraproibido tsawidzahi que os danhohui'wa entrassem em contato com os adolescentes neste perodo, principalmentenobanho.Assim,podamosusaroquesobravadepois,quandofossemostomar banhomaistarde,quandoeuimitavameuscompanheirospassandonacabeaopoucodogelque restavanasfitasdewedenhorto,deixandoosadmiradoscomobrilhoeopretumedemeuscabelos. Ouseja,osplosecabelos,comocaracterescorporais,podemsersubtradosealteradosapartirde tcnicasdocorpohumanizantes.TcnicasusadaspelosprpriosadolescenteseoutrosA'uw Xavanteemseuintensoprocessodeamadurecimentoegentificao. * OscesentreosA'uwXavantemereceriamumestudoparte,dadoocrescenteinteresse daantropologianestarea,cujosmarcosrecentesemetnologiasulamerndiasoumamonografia sobreanimaisdecriao (VanderVelden2010) eaantropologiadavidadeEduardoKohn (2007) a respeito de sonhos caninos. Tal estudo, entretanto, no caber aqui, mas algumas indicaespoderoseradiantadas,aindaquecomumintuitomaiordefocalizarsobreosa'uwe sosobreoswaptsapartirdesuarelaocomoswapts. Partindo de uma percepo de Ingold (2000) sobre o engajamento entre humanos e animais,quevaida caa domesticao,passandopelo amansamentofamiliarizao,deveser 268
notado que tal engajamento varia tanto em grau como em tipo, com mudanas que podem acontecernotempo,edependendodecadacaso(VanderVelden2010:111).Isto,nohfrmula geral,cadacasodeveserestudadoapartirdesuaspeculiaridadesemtermosderelaesentre humanosenohumanos(DigardapudVanderVelden2010:111).Porexemplo,paraosKaritiana tantoanimaisintroduzidos[pelosbrancos],desdesempresubmetidosaocontrolereprodutivoe aoconvviocomhumanosquantoanimaisnativoscriadosnasaldeias,recolhidosumaum[isto, espcimesconstantementecapturadosdafaunalocal]sodenominadosindistintamenteanimais decriao,aindaquehajadiferenasimportantesentreeles(VanderVelden2010:109111).Oque valeserressaltadocomistoque,paraosA'uwXavante,taisrelaesdevemserapreciadasa partirdesuasprpriasbalizasdehumanidadeenohumanidade. ParaosKaritiana,arelaocomoscachorrossurgeatravsdosbrancoseacurtahistria quecontamsobreoanimalconsideraocomotrazidopelosseringueiros(VanderVelden2009). Nessesentido,nofazempartedotempodeantigamente,nosendofrutodaspotnciascriativas daeraimemorial.Fatodiverso,contudo,aconteceentreosA'uwXavante.Nosporquetoda histria,paraeles,acabaadquirindoasmesmasfeiesdashistriasdeorigem,porseremtodas tratadascomodurihwatsu'u,histriasdeantigamente,comojfoivisto.Masporqueexistepelo menosumaversodessashistriasdeantigamentequefalasobreacriao/transformaodosces, ahistriadosParinai'acontadapelosvelhosdePimentelBarbosaaShakerEid(Eidetalii2002: 123126)conformetranscritaparcialmenteacima.Recuperemsealgunspontosinteressantesdela: os Parinai'a, ao criarem o cachorro transformandose nele, imitaram o que o cachorro fazia, cheirandoeandandonocansao.Elescorriamatrsdosvelhoseestestentavamacertarlhescom abengala,dizendodequemsoessescachorrosa?. Outrarefernciainteressantearespeitodewaptsnamesmaobraotermoqueosvelhosde Pimentel Barbosa propem a respeito dos wadzuri'wa os batedores ou espies, que eram os primeirosaavanarparaoperigonasexpediesnamata.Elesafirmamquewadzuri'waseriatodo ocoletivoquepartiajuntoparaumaexpediodereconhecimentodeoutrospovos,enquantoqueo cargodadupladeespiespropriamentedita,quevainafrente,seriaodoswapsi'a(Eidetalii 2002:311312).Owaptsi'aagiriaconformealgumascaractersticasdowapts: []comocachorro,osdoisnofalam,voficarsprestandoateno.Seouvirem algumbarulho,entoelesvoseaproximar.Setivergentevindo,osdoisvoemborapara darnotcia.Seosdoisestoseparados,umestleooutroparal,entoosdoisvose 269
assoviar,comoaantafaz.Osdoisficamassoviando,igualanta,igualbicho.[...](Eidetalii 2002:312). Reveladorarelao entrequemvaifrentee aanimalidade.Indcioimportante sobre a liderana:quemvaifrentetomaumlugardepredador,masnissotambmtomaumlugardebicho, deoutro.Oquenodeseestranhar,seaalteridadecondiodaprpriaconstituiodapessoae dahumanidadea'uwxavante,masdeseressaltarquenosprocessosdemediaocomoeste contatocompovosestranhosquemvaifrentetenhaseuaspectooutrotornadofigura,eseu aspectogentetornadofundo.Poroutrolado,owaptsi'asofreesecansa(Eidetalii2002:312)e, como se sabe, o modo de vida a'uwxavante, segundo eles mesmos, envolve sofrimento especialmenteparaohomemecansativo.Dessemodo,owaptsi'a,dedemasiadamentepouco humano,passatambmaserdemasiadamentehumano. Oco,porsuavez,almdeterseuprpriojeitodeagir,cheirandoeandandonocansao oqueoaproximadosa'uwtambmrecebeumtratamentoespecialdosA'uwXavantesegundo o mito e conforme pude observar nas aldeias: toma bengaladas dos velhos e bordoadas dos demais. Resumir o engajamento dos A'uwXavante com os cachorros agresso, contudo, muitopouco.Oscessorotineiramentecuidadosdeumamaneiramista. H carinho, que inclui alimentao (no geral, ossos e restos de qualquer comida dos humanos,masumbomcaadorpodereceberalgumprmiomelhor)tratamentodeferidasebichos depdosmaisqueridosoumaisfilhotes,eatbanho:almdelevaremseusceseoutrosanimais domsticos, como caititus e queixadas, para tomar banho de rio com eles, familiarizandoos e misturandoseaeles,muitasvezesosprprioscesrumavamsozinhosouembandoparaorio nosmesmoshorriosqueoshumanos.Oquemuitasvezesnosdeixavaamimeaelesnumasaia justa. Ora cruzavam por mim disfarando ignorarme, ora fugiam ganindo, assustados. Ora eu respiravaumardeperigoaocruzarcomestesanimais.Noquefossemsempreagressivoscomigo, principalmenteporqueeuprocuravaconstantementealimentarosmais prximos,ganhando sua simpatiacomoganhavaadosA'uwXavante.Masumcoemespecial,Leo,muitoferoz,recusou assustadoumademinhasddivasalimentares,enquantoonetododonotentavasegurloparaque meaceitasse. H,poroutrolado,pauladasepedradasemmomentosdemaioragitaocanina,brigaou ameaadeataquee,nafaltadepausepedras,atiramlhescaroosdefruta,mangasverdesou 270
qualquercoisasemimportnciaqueestivermo. Ehtambmasbrincadeiras.Comojoglosparacimanasandanasnomeiodomato, arremesslosparaforadocaminhorumocaaetc.. Sobestejogodeforasoscesassumemumaatitudedetemorerespeitoperanteosa'uw muitodiferentedoatrevimentodessesanimaisdomsticoswaradzu,queseatiramsobreseusdonos (oquelevantaaquestodequemseja,defato,donodequem).Maspodemsetornarferozes, principalmenteperanteoswaradzu.oqueosA'uwXavantefalavamparaexplicarosconstantes avanossobremimoualgumoutro Waradzu quepassassepelaaldeia:queelenogostade Waradzu,diziamsobreoco.Porcontadisso,principalmenteaocaminharporarredoresdecasas nasaldeiasqueeunofreqentassemuito,semprecarregueiumpaunamo.Wapsda,dizem:pau para cachorro,utenslio que mesmo os A'uwXavante no abandonam ao visitar casas com cachorrosbravos.Oquebastantecomum,jquequasetodacasaa'uwxavantepossuialgum wapts nogeral,muitosdeles.Estranhonogostaremde waradzu masentenderema waradzu mreme. Afinal,alnguaqueosA'uwXavantenormalmenteusamparafalarcomosces a portuguesa.Aposiodocoentreessesdoisplosodeproximidadeeodedistnciaperanteo Waradzu,noparecesituloemnenhumdeles. AntesdefalardalnguadeveserditoquehoutroelementomarcantedarelaodosA'uw Xavantecomoswapts,owaptstemdono.Amesmaperguntadosvelhosdahistriaacimasobre quemseriaodonodaquelescesqueosincomodavamcomumentreosA'uwXavantedehoje. Noforampoucasasvezesemqueasreuniesdo war naaldeiaBelmforamperturbadaspor matilhasdecachorrosbrigando,acasalando,perseguindoalgumdentreelesoufazendotudoissoao mesmotempo.Nessemomento,oshomensmandavamqueelespassassem,falandoemportugus: passa!, o que j os assustava, mas tambm atirando paus e pedras ou, em caso de maior dificuldade,chamandopelodonodowapts:e'watede'wa?emahtatede'wa?quemodono? cad o dono? e se a algazarra canina estivesse acontecendo em frente a alguma das casas, bradavamtambmpelo 'ritede'wa,donodacasa.Aindaqueosdonosdificilmenteaparecessem paratomaralgumaprovidncia.Muitasvezes,naiminnciadeseratacadoporumcoouuma matilhadeles,noltimoinstantealgumdosA'uwXavantequeobservavacalmamenteasituao gritavaporseusanimaisouatiravalhesalgumacoisa,salvandome. Oscachorros,pelojeito,nosabemsecomportarmuitobememrelaoaoshumanose, talvezporisso,necessitemdeumdono,dealgumqueoshumanize.Dealgumaquemelesdevem servircaando,sobretudo,edequemrecebemoquesobrar.Umaalimentaomenoscuidadosado 271
queaquelaqueeumesmorecebiaaotrazerparacasamaiscomidadoquemedavamparacomer. Afinaldecontas,euestavaaprendendoamecomportarcomogentemuitomaisrapidamenteque qualquercoe,assim,avanavanosgrausdeparentesco,paraparentescoehumanidade.Amaior incompletudedahumanidadecaninaparecedeverseincapacidadedos prprios cachorros em assumiremomododevidaeoshbitoshumanos,pormaisqueosA'uwXavantequeiramqueeles osimitem.Masnemtanto.Afinal,hcortesnessarededeimitaes,eseoscesnoconseguem assimilarastcnicashumanasdecontgio,melhortambmnofacilitarparaeles.Elesdevem continuarondeesto:ameiocaminho. CertavezparticipeideumapescacomtimbjuntoaoshomensdeBelm.Numdiaanterior, osdanhohui'waewaptsamosparacoletarbastantecip(decaulerelativamentegrosso)queseria usado como veneno para enebriar os peixes e calos com mais facilidade. No dia da pesca, preparamonos todos com o rosto pintado do carvo de um arbusto especial do cerrado, para propiciar a predao (menos um desavisado que, tendo a mulher grvida mas no tendo se precavidopretejandoorosto,teriasidoomotivodorelativofracassodaquelapescaria,segundo LzaroTserenhemew).Jnorio,omaisvelhohomempresente,chamadoporelesdedawede'wa (fazedorderemdio,umtermodereconhecimentoqueosmaisvelhosesbiosherbalistasa'uw xavanterecebemcomoAdoTop'tiro,porexemplo,confiraRosaBueno1998),comeouabater osdurospedaosdecipemumposteperpendiculararmadonomeiodeumbraosemirepresado derio(maischeioporcausadachuva)eafalarsuaspalavrasmgicas.Todososdemaisoseguiram batendoepreparandoaguacomotimb,atqueelaficasseturvaeospeixescomeassema flutuarapatetadamente.Eramuitofcilpegarospeixesassimintoxicados,comflechadasemesmo comasprpriasmos.Sentadobeirarioesperandoaaproximaodeoutropeixe,aoladode Leandro Uptswwari,noteialgunscesbebendoaguaenvenenadaeaponteilheaocorrncia. Eleriuemefalou:cachorronoconhece,nosabepescarcomtimb.Oquemesoouumpouco desconcertante:paramim,pareciamenaturalqueoscesnotivessemqualquerconhecimento sobretaltcnica,desnecessrioexplicitarmeofato.Sefezquestodedizlotalvezsejaporqueo potencialdeconhecernoestejadetodoalheiovidacachorra.Potencialquenolevadoplena atualizao.Ouseja,ococonsideradocomotendoalgumadificuldadedeencorporartcnicas humanas,nosabemimetizarcertoshbitos.Oquenodetodotrivial,jqueoprprioatoa'uw xavantedeadotarumcopassaaimpressodequeestaseriaumamaneiradedaraeleachancede segentificar.Masnoumachancetotal.Porquenosedpapoaumcocomosedparaalgum outro,noselhesofereceamagiaeopoderdapalavravaiqueelesaceitem? 272
Quandofalamdiretamentecomosces,porexemplo,preferemnousarlnguadegente, optandoporpalavrasemportugus.Amaioriadosnomesdoscachorrosqueconhecimaisdeperto eraemportugus,comoChico,General,Leo...Mashtambmnomesema'uwxavante.Umdos nomes em a'uw mreme que conheci Tsebreh, assim chamado o melhor co caador da Abelhinha,quecostumavacircularentreacasadocaciqueTseretsueadeseusogroAdo,atrs casasdali,talvezpordividirememalgumadoseopoderdedatede'wasobreoanimal(nafotografia abaixo,BaticaeTsebreh).
Enquantoestivel,viaTsebrehdisputandocomidacomocodeCatarina,Chico,morador dacasadeAdo.Chicoumcachorrograndemas,comodiriaseunome,covardeparaacaa, servindocomocodeguardaparaasidasdesuadonaroa.Talvez,porcausadessasdisputas, ChicoabandonariaaAbelhinha.NumpasseioaumaaldeiadeparentesdeCatarina,eleresolveu ficar,sevirouporl,dissemeela.ComissodesvioudocrescenteempoderamentodeTsebreh. OnomedeTsebrehtambmtemrelaoperformativacomsuascaractersticasfortese corajosas:foidadoporAdo,quepegouonomediretamentedabocadaona,numsonho. As palavras que mais ouvi os A'uwXavante dizendo para seus ces foram sai! e passa!,emlnguaportuguesa.Jostermosqueouviusaremparafazerocopegaralgumou algumapresaforamp!p!.Umaabreviaodepega!? Dequalquerforma,ousodalnguaportuguesaparasefalarcomoscesparecetersuabase narrativa.VelhosdePimentelBarbosa,falandosobreadecisodeseuspaissobreestabelecerum 273
contatopacficocomosbrancos,acrescentaramalgosobrearelaodestescomseusces:Os Warazu mandaramoscachorrosacuaragente.Oscachorrosentendiamafaladeles(Sereburet alii 1998:135).Comentandoestapassagem,Fernandesinterpretaacomoindicativodacondio denopessoadosbrancos(2002:93).OusodanoodepessoaporFernandesseequivale aodanoodegenteporque,prosseguindooargumento,oautorreplica:[todavia]osXavante afirmam que os brancos tambm so gente, notando que os mesmos narradores de Pimentel Barbosa se espantaram ao verem que o Warazu era gente tambm (Serebur et alii apud Fernandes2002:9394).Poroutrolado,tenhoapresentadoindciostantodasaproximaesquanto dos distanciamentos entre as noes de pessoa e de gente a'uwxavantes: nem toda pessoa dahibagentea'uw,aindaquetenhapotencialparatanto. AcreditoqueosdoisplosqueoperamparaoWaradzugenteenogenteapartirdesta relao com o wapts, podem ser projetados sobre o prprio co. Pois comparando as duas narrativassobrecesobservadas(oriundas,alis,damesmaterraa'uwxavante),podesesugerir queopndulodaorigemcaninaoscilaentreatransformaodosParinai'aemces,deumlado,ea maiorfamiliaridadedestesanimaiscomos Waradzu,deoutro,entendendoatsualngua.Alm disso, se tanto eu quanto qualquer wapts na aldeia somos danhimidzama, seguidores, mimetizadores,oquehemcomumnessasmmeseseatquepontoelassopossveis? * Episdiosqueexperimenteiemcampopodemserelucidativosarespeitodaaproximao entrewaradzuewaptsemsuarelaooscilantecomosa'uw. Algunsdelesreferemseaessaquestodafala. Naprimeiravezemquemedeicontadoproblema,estavanaCasadosAdolescentesna aldeiaBelmenquantovrioscescirculavampelolocalatrsdecomida,oquetambmmuito comumahoradarefeionumaaldeiaa'uwxavantesempreatraidiversos danhimidzama que comemosrestosdoqueagentecome,quandocomeceiaconversarcomumcousandomeu pobre vocabulrio a'uwxavante. Neste momento, todos os presentes olharam espantados para mim, com ar de desconfiana e reprovao. Era como se eu tivesse quebrado uma barreira, permitidoaocoumagentificaoimprpria.Afinal,eleconviviaconosco,comiaconosco,oque seria motivo de aparentamento e tambm fundamento para tornarse gente, era perigosamente prximoeaomesmotempoincapazdeadquirirohabitushumanocorreto.Talvezessarenitncia emcompactuarplenamentecomoshumanosfariadoatodedarpalavraaosouvidosdocoalgo desmerecido,quasecomocederhierarquicamentesuaposio(emoral)desumana. 274
Noutraocasio,Leandrocomentariacomigoarespeitodeumasinfoniadeuivoscaninosque assombraramaaldeianumanoiteanterior:waptswawa,ochorodosces.Dissequeosvelhos estavamfalando,nogostam,pipadiperigoso.Queperigoesse?Aparentemente,umperigo semelhantecomunicaodosmacacosassassinos:aproximarsedemaisedescontroladamentede umavoznohumana,quasehumana,eemviglia,correrperigodeserpredadoporquema vocaliza.Principalmentequandoessasvozessemanifestamdentrodaprpriaaldeia. Seriamosuivosdoscesalgumtipodereuniopolticaperigosamentedissidente?Tudose passariadiferenteseacomunicaodoscescomosA'uwXavantetivessesidoemsonho.Mas essesuivosnoforamsonhadosporningum,atondeeusei.Casotalcomunicaotivessesidoem sonho,ahierarquiados a'uw sobreos wapts estariaassegurada:elesfalariamseusnomesem a'uwmremeoucantariamnummistodea'uwmremecombabadidamreme(letrademsicaque nopalavradalngua,umalinguagemespiritual),masaindaassimestariamdeixandosepredar atravs dessas palavras e msicas, estariam reconhecendo a humanidade do sonhador e se aproximando dela de maneira tcnica e moralmente humana, danando, cantando e sendo generosos.Enfim,emsonho,pelomenos,oscesconseguemimitarohabitushumano,comome relatara,espantado,TiagoTseretsu,arespeitodadanacaninaonricaqueassistira. Seossonhoscostumamacontecernoiteeoperigovoclicodoscestambmnoturno, suadubiedadeehumanidadepotencialserefora.Oslimitesextremosdefaladosces,osuivos deumladoeosnomesecantosdooutro,aproximamsequequasesetocam.Sfaltafalarem. Talvezcombasenessesprincpios,RicardoTseredzadzub'a,meunoporpartedeDionsioe tambmumdosdoisprimeiros Aih'ubuni dos Nodz'u deBelm,tentoupregarmeumapea, atento s minhas curiosidades e perguntas sobre as naturezas humana e animal, provavelmente recordandosedaquelemeucurtoarremedodeconversacomum wapts.Eleo a'uw,noo wapts confidencioume espontaneamente, sem que eu tivesse tocado no assunto, que os cachorrosfalama'uwmreme,nowaradzumreme(portugus)meianoite! Meianoite,perodoimportantedasdemarcaesrituaisdotempoa'uwxavante,poisse trata de um dos horrios propcios ao canto dos danhohui'wa com os wapt, um momento de encontrocomoutrasvozes.Ricardopoderiaestarquerendomeassustarparaqueeunotentasse, novamente,fazerumcantodameianoitebaran'wa'wanho'recomeleeseuscolegasque nestahoraestosemprecommuitosonoefrioerelutambastanteemlevantarparacantar,como eujtinhafeitonumadasvriasnoitesquepasseicomeles.Apesardemeucantosonhadoserum pouco estranho (causando at risos), outros danhohui'wa para quem canteio antecipadamente 275
disserammequeserviriaparabarana'wa'waemeincentivaramsinceramenteaapresentlocomos adolescentes,oquefizsoboprotestomoledosgarotossonados. Ricardocompletoudizendoquemeianoiteoscessoperigososporquecomemgente. Oquecombinanoscomoperigodoscesassumiremostatusdepredadorsobreoshumanos atravsdaentregadafala,tornandoospresas,mastambmcomoperigosempreexperimentadopor qualquerpessoaquecaminhenoitepelaaldeiasobretudoumwaradzucomoeusemumpauna mo,osataquescaninosiminentes. Leveiaconversafrenteepergunteiseoscestambmtinhamcorpodegente a'uw dahibaeelemedissequeno,apenasa'uwmreme.Pergunteiseoutrosanimaisfaziamissoe eledissequetambmno.Alis,sopoucososanimaisquevivemembandoparaquepossam conversar assim que se reproduzem dentro das aldeias a'uwxavantes onde vivi: apenas as galinhascomseusovos,muitopoucopotentesenquantopredadoras,eoscescomseusfilhotes 227. Pergunteilhe,enfim,seocosabiaqueeracoesesabiaqueele,Ricardo,eragente.Elemedisse queocachorrosabiaqueeracachorro,queele,Ricardo,genteequeeusouWaradzu... Alguns dos h'wa iam concordando com esta conversa, mas meu inhimiwainh Csar Messias,quandochegou,desmentiuaprontamenteesemreservas.Aproveiteiaaproximaode umamulherquevinhatrazercomidaparaalgumadolescenteelevanteiaquesto:verdadequeos cesfalammeianoite?Elamedissequenocomveemncia:tsadawainhipe,waptsmreme'di barana'w'wa!mentira,cachorronofalameianoite!. * Emsuma,comoaconteceparaosKaritiana,oscesseriamumapotnciapredatriado matonointeriordaaldeia,umadobradia(VanderVelden2009)entrehumanoenohumano.O que, no caso a'uwxavante,temavercomofatodequeapredaoentrehumanos acontece tambmdentrodaaldeia. Maspodeteravertambmcomapeculiardisposioa'uwxavantepeloterceiroincludo: osces,entredois,entregenteebicho,entreosA'uweosWaradzu,precisamsermantidosdessa maneiraparaquehaja,justamente,umcanaldecomunicaoentredois.Umacomunicaoque envolvefalasmaisemenoshumanas. Comosces,osA'uwXavanteentramemcontatocomumbichomediado,porassimdizer.
227 Observeiumadiversidadedeoutrosanimaisdomesticadosvivendopelascasas,comomacacos,araras,tucanos, papagaiosemesmogatos,masnuncavinenhumdessescomseusfilhotesnasaldeias.Tambmexistemcasosdecriao degado,comoemMariwatsde,masnopudeobservlospessoalmente.NaaldeiaBelm,inclusive,ouvifalarsobre umprojetofuturodecriaoecolgicadegado.
276
Etambmemcontatomediadocomoutrosbichos.Oquetimoparaacaa,paraaproteoda aldeiacontraonaseoutrosintrusos(comoo'ri'rre)eparaaproteodeseusdonosnamataou na roa. Nisso os ces so,em alguma medida, semelhantes ao waptsi'a,ou aos wadzuri'wa: mediadoresdeumaguerraempotencialentrenseoutros. Seguindoestamesmacomparao,oscestambmparecempossuiralgodehumano,afinal, se o a'uw himanadz dawatsutudi omodo de vida de gente cansativo eos A'uw Xavante, sobretudo os homens, tem de sofrer, o sofrimento e o cansao canino tambm so provaessquaiselesdevempassarparaseaproximardahumanidade.Mas,dadasuadistncia desta,talveztenhamdesofrermaisainda...Inclusiveporqueosces,quandoameaadoscompause porretes,fogem,sendoincapazesdeseentregar.Diferentementedoquefazemoswaptemrelao aosdanhohui'wa:esperamassintosamentereceberaspancadasquelhesso,muitasvezesdemando aseatfabricandolevesporretesparatanto,combrotosetalosdeburitiouindai,acrescentando lhesaparatosextrasdeespinhoseferpasmuitomaisparaimpressionardoqueparamachucarde fato,realandosuacoragem.Umaespciede servidovoluntriadesafiadora,comoaquelados jovensmandanarespeitodosquaisClastresfezsuareflexosobreatortura(2003[1974]),quese entregavamalegrementesdores,umamostradodesejodeseencorporaraocoletivohumano.
277
Principalmente em situaes de encorporao disciplinar, como quando construamos o H na Abelhinha, quando os adolescentes produziram vrios desses cacetes, chamados tambm de wedehu228(naimagemacima,Were'seguraumwedehunoHemconstruodaAbelhinha). Enfim,seoscespermanecemoutrosdoshumanospropriamenteditos,entocomelesos A'uwXavantetambmtmachancedefalarcomoos Waradzufalame,assim,mimetizaremos Waradzueseupoderpredatrio.Ainda,comosces,elespodemseprotegerdosWaradzu. Mais doqueisso,os ces soum lembrete tantodasuperioridade a'uwxavante sobre outrosbichosquantodoperigodetornaremsebichoscasonosecomportemcorretamente. * Omalcomportamentocaninofoimeapontadodiversasvezesdentrodasaldeiaseforadelas, principalmenteemBelm.Viaseefalavasesobresuadevassido.Suaobscenidadeeracomparada, inclusive,comadosWaradzu. O excesso sexual e a preguia que tal excesso causa tambm me foi apontada como caractersticadotamandu,padi.EmBelmissoeraditoemprovocaoaostpapelosHtor, seuspatrocinadores,queficavamapostos,demadrugada,esperandocomearoWanoridbe,dana dosdanhohui'wa,enquantoestesaindanochegavam.Alfredo,numamadrugadadessas,disseme queostpatinhamdemudardenome,iamserogrupoPadi.Porqueotamandufazmuitosexo eficamuitocansado,dormemuitoecorrepouco,porissofcilcalooumesmoaculoemsua toca. Devo notar que j tinha ouvido uma piada sobre o padi na aldeia Abelhinha que compartilhavadesentidosemelhante.Certanoiteumvisitantedaaldeiatrouxeumtamanduque tinhacaadonocaminhoe,comoowarnotinhaapresenadeadultosnestedia,algunsjovens resolveramassarapresanoprpriofogocentraldaaldeia.Nessenterim,olhandoparaoanimalque tostavanofogo,Tiurdisserindo:aibpadi...Emseguida,olhandoparaosoutros,completou:padi aib!Todosrirammuitoatqueconseguiquealgummeexplicasseotrocadilho.Aibpadiquer dizer,literalmente,teupniscomprido,sendoqueaiapartculaparasegundapessoa,b querdizerpnisepadiquerdizercomprido.Noutrosentido,aibsignificamachoepadi, tamandu.
228 CertavezRmulomedisseque danhohui'wa aquelequedcuidado.Issopareceremeteretimologiada palavra,jque nho raizdoverbodar.Imaginose hu,nestecaso,refereseaalgumtipodecuidadodisciplinar, naquelemesmosentidodepredaopacificadora.Amesmapartculaencontrasenowedehumadeiraoupaude... disciplinar?Hutambmquerdizerona.Aindaqueotermoparaonapossaserumaonomatopiadoseuurro:hu, hu,hu,hu,comosugereahistriadaonanarradaemPimentelBarbosa(Sereburetalii1998:52).
278
Aapreciaodasexualidadeporpartedoshomensauwxavantetambmpodiaseestender paradepoisdowarnoturno.Numaaldeia,elesiamparaaescolaassistiravdeospornswaradzu e, no dia seguinte, vinham me perguntar sobre o comportamento sexual dos brancos fundamentadospelaidiadequefazamossexoexatamentedojeitoqueaparecianovdeo.Diziam que waradzu tinhapniscompridoafinaleraoqueviamnosfilmes,confirmandoomitodo Waradzu bpa. Perguntavamme por qu as mulheres waradzu gemiam tanto no ato sexual e, principalmente,porquewaradzugostavadesexooral. Duranteumacaadacomos tpa,meuscompanheirosmetrouxeramvriasdvidase perguntas a respeitodissotudo,comojmencionei,buscandoaprenderalgocomigo.Algumas dessasdvidaserespostassoimpublicveisaqui.Massuasconseqnciaspodemserreveladoras. Dadasasminhasrespostasarespeitodosexooral,porexemplo,Agnaldo,meuirmomaisnovoem Belm,retrucouquesexooraleracoisadecachorro.Afinal,vamossempreoscachorrospassando onarizealnguanaspartesntimasunsdosoutros.Sexualidadedespudoradaque,decertomodo, pareceecoaromesmolugardoAi'utmanhari'waesselugarquasecaticodoterceiroincludo que,senopraticaessamodalidadedeatosexual,praticaosexoemgrandequantidade. MasserqueocachorropoderiasercomparadomesmarelaoqueoAi'utmanhari'wae osTopdattmcomoparentesco?Dizerissoseriaexagero,aindaque,comoentreosKaritianade VanderVelden(2010),aquiowapts,assimcomooutrosdanhimidzama,adotadoelevaumavida familiar,comendojunto(aindaquerestos,namaioriadasvezes),tomandobanhojunto,vivendo junto...Aindaqueistonobastasseparaatestarsuagentificao. Emlio UmnatsTserenho'rme deuumaboa resposta aeste respeito,dadas as minhas perguntas sobre o dahimanadz do co e de vrios outros animais. Porque, caando com os homensdeBelmnomato,quandoeuperguntavaalgumacoisasobrecertoanimalporqueo gavioestcantandoassim,porqueeleestvoandobaixoetc.elesrespondiamqueeraseu dahimanadz,mododevida.Conversvamostambmarespeitodos waradzu (incluindoalguns tpicossexuais)eEmliomedisse:Waradzuigualcachorro,notemPo'redza'ononemwaw, no tem watsi'utsu,notemgrupocomissoelequeriadizer,peloqueentendi,queambos, waradzuewapts,notmmetadesexogmicasnemclassesdeidadeda'utsu,oqueosA'uw Xavantechamamtambmdegrupo(watsi'utsunossoprpriogrupo,masrefereseaosmembros damesmaclassedeidadepormpertencentesmetadeexogmicaopostaosdamesmametade exogmicasooswatsirewanhono).EmrespostaeulhedissequeeueraWaradzumasmesmoassim tinhawatsi'utsu.Semsefazerderogadoeevitandomechamardea'uwjquenemtodossoto 279
receptivosassimminhagentificaodissemequeeueradiferente,euera WaradzuAimawi, outro Waradzu usando expresso semelhante que os A'uwXavante usam para falar de outrosndiosquenoelesprprios:A'uwAimawi. *** Almasechefes
Seosanimaistm dahimanadz,cultura,mododevida,hbito,conduta, pareceume umatrilhainteressanteaserseguidaacompreenodeoutroselementos,comoacondiocorporal epolticadosanimaisemrelaoaoshumanos,afimdesepensaroenredamentoeaparentamento oucontraaparentamentoquepodemocorrernacadeiaecolgicadapredaoa'uwxavante. Passei a questionar os A'uwXavante sobre algumas dessas caractersticas partindo de certos indcios.Primeiro,queassucuris,porexemplo,tinhamchefe,danhim'h'a.Afinal,naAbelhinha, tnhamoscapturadoapenasumacobrapequenaea chefe estavasolta.Segundo,seosanimais aparecememsonhoemsuaformaanimal,mascomportandoseconformeacondutahumana,oque isso pode dizerarespeitodesua alma, seu dahibauptabi?Alm disso,a associaoentre o tamanhodocorpoeachefiaerasemprefeitapelosA'uwXavante:acobra chefe seriaamaior cobra,assimcomoos chefes,lderes,pessoasimportantes,sotambmosmaiores,oseucorpo sendoumsinalperformticodesuagrandeza. Ademais,numnvelmaisabstrato,achefiaa'uwxavanteparecepodersercomparadasua almaseretomarmosafilosofiapolticapresentenoforadesiqueocorpopropriamentedito,a alma, constituiparaocorpoa'uwxavante.Afinal,olderpareceseraquelequesaiprimeiro, aquelequeenfrentaprimeiroumamudanacomoentrarnaguadorioantesdetodososoutros, aquelequenosvisitaaparagemmticaemsonhomastambmemviglia,entrandoemcontato comapotnciacsmicaalhuressituadaetrazendodelmuitaspresas.Obviamenteelenoo nicoafazerisso,masparecetantooprimeiroquantoomaior.ComoTiagoTseretsu,porexemplo, omaiorcaadordaaldeiaAbelhinha,daqualcacique.OuHipridieTseredzarque,liderandoa associaoindgena,entramemcontatocomasmaisdiversaspotnciasestrangeirastrazendodel muitosrecursos.OuPauloCsar,naaldeiaBelmque,comoHipa,viveuaestratgiaxavantede ser educado fora da aldeia, tornandose bilogo. E tantos outros e outras, como a diretora BernardinaRenh' quetomamliderananosmaisvariadosaspectosdessasrelaesexteriores 280
pois,afinal,osA'uwXavanteprecisamdevrioslderes.Relaesexterioresquesotambm sonoras,comonamsicadeMrcioTserehit,quecombinaelementos waradzu comelementos a'uwxavante,ouossonhosecanesquetrazemmritoaquemosensinaparaosadolescentes. Lderesnossingularescomocoletivos,comoosdanhohui'waque,enquantocoletivo,trazemdo sonho os cantos para os wapt, por exemplo, sendo considerados como chefes perante os adolescentes. * Como de costume, contudo, as opinies dos A'uwXavante sobre esses temas variam muito, desviam, apontam para possibilidades diversas e complementares a respeito do mesmo assunto. Reitero que a diferena de opinies aqui no deve ser considerada como um teste de verdadeouveracidademassimmaisumelementoconstitutivodoserenosera'uwxavante. Noepisdiodecapturadasucuri,wanha'u,colhialgumasdessasdiferentesopinies. Osdanhohui'waewaptestvamosfazendoumtrabalhodelimpezadomatoquecresciaao redordobraodeestradadeterraquedacessoAbelhinhaafimdetornaraviamaissegurapara afestaqueestavaporvirocampeonatodefutebolemhonradatitulaodeBernardinacomo diretoradaescola229.Porqueaaldeiareceberiamuitosvisitanteseaestradinhateriaumfluxode bicicletas,carrosecaminhesmaiordoqueocomum.Porisso,aordemdodiaeralimparebaixaro cerradodesuasbordas,facilitandoavisualizaodavia,evitandosurpresaseacidentescoma aproximaodeoutrosveculos.Navolta,aofimdatarde,encontramosnocentrodaaldeiatodos admirandoasucuricapturadaporWto,dub'rada,nabeiradorio.Elatinhaacabeaparcialmente estraalhadamasaindasemovia,pormdiziamquejestavamorta.MarcianoWere', tsa'omo, dissequedeviaserenterradanomato,porrespeito,oqueBrs,Aih'ubuni,fariadepois,pertodo Hqueaindaestavaemconstruo.PergunteientoseacobratinhadahibauptabieWere'disse queno.PierRodolfo,quetambmestavanasproximidades,respondeuqueelanotinhadahiba uptabiremasnooutroanoumrapazquemoravaaquibrincoumuitocomabocadeumawanha'u mortaefoipegoporumacobranaroa,elemedisse.Paranselawa'ubur. Wa'ubur a entidadeque,segundoGiaccaria(1990,2000)responsvelpelasdoenas.Quandosetiraosangue ruimdealgumapartedoloridadocorpoatravsdo riscado, dapu'u terapiacomumdosa'uw xavante,umaentregadocorpodoloridacurapelosangramentoo Waubur queseexpulsa (Rosa Bueno 1998). Wa'ubur tambm associado ao Diabo cristo e, nesse sentido, ao gato
229 Deixoparaumaoutraoportunidadefazerumdebatedescritivosobreesteeventoeseuspreparativos,bemcomo outros ligados ao futebol, dada a riqueza e peculiaridade do assunto. Tambm mereceria uma ateno especial a condiofemininadalideranaacomemorada,quepoderserabordadanumoutrotrabalho.
281
domsticonho'rnireoumimire,provavelmenteporinflunciamissionria230. Camilo Duts respondeume que a sucuri no tinha dahiba uptabire, tampouco outros animaisotinham,comoopeixequelheapareceuemsonho,porexemplo.Um wapt,Mancio wawfilhodeDesidrioenetodeTiagoTseretsudissemequesim,acobratemesprito... Mais tarde, fiz a mesma pergunta para mama Ado Top'tiro e ele me respondeu enfaticamente:Irh!Uburabadzedahibauptabireirh!Wapts,tsi'a,wanha'u...Temsim! Todoanimal/presatemalma!Cachorro,galinha,sucuri....Doispontosdevemsersalientadosna faladeAdo:quetodoanimaltemalma,esprito,corpoprprio;equehumgnerodeseresque pareceenglobaroquechamaosdeanimal,chamadoporeledeabadze:presa,caa(Lachnitt 2003),inclusiveanimaisquechamaosdedomsticos. Na aldeia Belm, j preparado pelo que me foi dito na Abelhinha, obtive respostas semelhantesecomplementares,demandandomaisdetalhessobreaquesto. Pergunteiumavezparameuwatsi'utsuPaulinhoAndersonseocachorrotinhaalma.Ele medissequeachavaqueno:evoc,oqueacha?,retrucoucomomuitaspessoastambm fariam,revertendoaquestoparamim.Prosseguiperguntandosetinhachefeeelemedissequeno sabia. Numapescarianomeiodomato,fizessasperguntasparadiversaspessoas,obtendovrias respostas diferentes. Observando um gavio231 que nos sobrevoava, perguntei para Baioque, dub'rada,seeletinhadahibauptabireassimcomooco,eelemedissequeno,nenhumdosdois tinha.Entretanto,confirmouqueogaviotinha danhim'h'a,masocachorrono.Foiaquelhe pergunteiporqueogavioestavagritandohreelemedissequeeraoseudahimanadz, porqueeletinhavisto a'uw,talvezporestarcommedo pahiti maspoderiasertambmo contrrio,porestarbravo tsahiti.Maisadiante,converseicomDaniel Werept, mama'am, que me disse que ambos, co e gavio, tinham dahiba uptabire e tambm danhim'h'a. Surpreendentemente,algunsdiasdepois,quandolherefizaperguntajnaaldeiaelemediria queoconotemdahibauptabire:ocachorronopensa! NamesmapescariaconverseicomEmlioUmnats, dub'rada,quemedissequenenhum
230AindaqueaquivalhatambmumpoucodoquedisseVanderVelden(2009)sobreocokaritianaassociadoao diabo:ogato,talvezsimbolizeumamalvolapotnciaselvagemporsersemelhanteona.Contudo,noouvinenhuma referncialigandoaonaaoWa'ubura'uwxavante. 231 Nolhepergunteionomedaespcieem a'uw mreme. OdicionriodeLachnitt(2004a)apresentapelomenos cincotermosparagavio.Gaviopodesertraduzidocomo tsi'u, tsi'mo e 'wanhihiwa.Htambmogavio fumaa,waripe,eogavionoturnowai'i.Tsiwaw,porsuavez,traduzidocomoguia(Lachnitt2003).
282
dessesdoisanimaistinhadahibauptabire,tampoucoatartaruga,u',quealgumtinhacapturado naquelemomento:elanopensa,quandomorre,nosobe.Horasdepoisreformuleiapergunta:os animaiscomosquaissesonhamtmalma?Elemerespondeuquesoaihveadocampeiro, segundoLachnitt(2003),o uhd antaeo uh queixada tinham,masatartarugano, porqueelenuncasonhoucomtartaruga. mamaMrcioTserehit,numaoutraocasio,dasvriasemqueconversvamosnopostinho emquemehospedavam,dissemeque abadze, wapts etc.notm dahibauptabi.Masque,no sonho,oprprioanimalviradahibauptabi,sefazdahibauptabi.Pergunteiseissoeraobra dos Tsa're'wa eelemedissequetambmpodiaser,masnos,jqueo dahibauptabi erao prprioanimalmesmo.Conformeoexemploquemaistenhoaproveitadoaesserespeitoodoco danarinoonricoMrciomedissequeocoqueapareceemsonhocantandosobresuamorte ficafelizporquecontaprodonoquemomatoue,quandoodonocantar,oassassinovaificar commedoportanto,comojsugeri,estaumasituaodiversadaqueladosParakanestudados porFausto(2001),poisaquioassassinonooprpriodono.Masnoo Tsa're'wa esimo prpriodahibauptabidocachorroqueaparece,completousobreminhaperguntaanterior.Eleme dissequeosonhotambmajudaapreveracidentes,picadasdecobras:dependendodoquesesonha, evitasesairparaacaa.Nissoelemerelatouumahistriadequandoerawaptefoicaarcomos Tsada'ro (classedeidadepatrocinadoradasua, Htr)eum Nodz'u (que,sefossevivo,seria Nodz'umb'rada,jqueumanovaclassedeNodz'uestavanoHnomomentodestaconversa)do qual as esposas nogostavam,deixandoosemcomidaparaacaada.Elefoipicadopor uma jararaca,uibr'wa,oqueacaboumatandoo.Curiosoefeitosimpticododesamorfemininosobrea jararaca.NopergunteiparaMrcioseajararacaeradesalmada,maselemedissequejtinha matadoumasucuri,wanha'u.Entretanto,estatambmnotinhaalma:babadidahibauptabino temalma.Poroutrolado,eleconfirmouainformaodePierRodolfo:elaeraoWa'ubur. Noutraoportunidade,conversandosobrealmas,sonhoseces,elemedissequeoscachorros sonhavam: remexiamse, resmungavam e ganiam enquanto dormiam. Entretanto, no dava para sabersobreoquesonhavam.Afinal,cachorronofala.Portantoaquinoaconteceoquesepassa entreosRunadoEquador(EduardoKohn2007),queinterpretamossonhosdeseuscescombase emnosmovimentosesonsqueemitemenquantodormem.Aindaquetalinterpretaopossafalhar e,comisso,colocaremquestotalpossibilidadedeconhecimento.SegundoKohn,apossibilidade de saber a respeito dos sonhos caninos decorre do fato de que, para os Runa, todos os seres engajamsenomundoeentresicomoseresquetmumpontodevista,comoselvessujeitos, 283
pessoas(nafaltadeumatraduomelhor)numaecologyofselves(Kohn2007).Tomandoeste casocomopontodecomparao,serqueopossvelfatodeosA'uwXavantenointerpretarem ossonhosdeseuscesindicaque,paraeles,oscesnotenhampontodevista,personitude, subjetividade? * Queconclusespodemsertiradasarespeitodetodasessasinformaesanimaiseanmicas? Amaioriadaspessoasdizque abadze animais,presasnotm dahibauptabialma,corpo prprio,aprpriapessoa,pessoamesmo.Algumaspessoas,tantomaisjovensquantomaisvelhas, dizemquesim,abadzetemdahibauptabi.Outrasdizemtantoumacoisaquantooutra:abadzetem dahibauptabi,masnotem, porquenopensa.Algumas,ainda,notmcerteza,nosabem, achamalgoequeremsaberminhaopinioarespeito.Htambmquemsacreditenaquiloquev (emsonho).Equemdigaquetalrealidadesejaapenasonrica,aindaqueossonhossejamreais: afinal, prevem o futuro. Enfim, se a alma do animal pode ser o prprio corpo: um aparente pleonasmo(sealmasinnimodecorpoprprio),aindaquehajadvidasseoanimaltemmesmo alma,issosugereumadiferenahierrquicaentreaalmahumanaeopotencialanmicoanimal. Almdaquestodavidaapsamorte,osubir,irparaumasupostaterradosmortosanimais nocu,arespeitodaqualnotenhonenhumainformao,parecequeoqueestemjogonaquesto docorpoprprioopoderdepensareconhecer.Algunsnegamessepoderaosanimais,aindaque assumamparasimesmosopoderdeconheceroquetemadizerocorpopropriamenteditodos animais. Outros concedem e no concedem este poder aos animais. H ainda aqueles que s reconhecemaalmadosanimaisqueencontramemsonho,sconcebemopoderanimalenquanto elesmesmostenhamomesmopoder:umacapacidadedecomunicao.Outros,ainda,entendem quesomenteparasimesmos(humanos)queosanimaispodemassumirsecomosimesmosde si sem, contudo, tornaremse corpos humanos nesse processo. Enfim, h quem reconhea a propriedadedocorpoedosaberprpriosdoanimal. Oquefazercomestedilema?Acreditoque,emtermosetnolgicos,talcontrovrsiarevele umarelaoindiretadosA'uwXavantecomaquiloqueViveirosdeCastro(2002a,2006)eoutros chamaramdeperspectivismoamerndioouamaznico. Comosugerido,pelomenosemsonho,osespritosanimaisnoaparecemparaosA'uw Xavanteemformahumana,tpicadomonoculturalismoquehabitariaasmltiplasnaturezasde certascosmologiasamaznicas.Agora,acrescentase,htambmadvidaeacontrovrsiaentreos prpriosa'uwxavantearespeitodeosanimaisdefatoteremumcorpomesmo,umaalma,que 284
pudesse assumir a perspectiva de um dos mltiplos corpos dados. Por outro lado, todos os comentriosa'uwxavantearespeitodoshbitoserelaesentreanimaisehumanosnofazem nenhumarefernciaperspectivaanimalcomoenxergandodiferentesmundosapartirdamesma cultura:nuncaouvidosA'uwXavantediscursossemelhantesquelesproferidosporcertossbios da Amaznia sobre a maneira humana pela qual os animais vem os mundos. Por exemplo hipottico:nuncamedisseramqueumporcodomatovejaalamaemquechafurdacomosefosse seuwarenquantovisseosa'uwcomosefossemsuperentidades,talqualestesvemosTsa're'wa. Nohnenhumainformaoarespeitodestaformadeperspectivismo. Inclusive,oscomentrios sobreosces,pelomenos,ousobreosbrancos,dizemalgoemcontrrio:elesnosodotadosde instituiesbsicasdaculturahumanacomometadesexogmicasouclassesdeidade,portanto no parecemter,conformesuas prpriasperspectivas,amesmahumanidade.Umsbioa'uw xavantecomoAdoTop'tiroreconhece,sim,queosanimaistmalmacontrariandoasopiniesde outros, talvez menos experientes (um saber experimental que no se totaliza), ou dotados de sabedoriasdiversasmasnuncadissenadaarespeitodecomoosanimaisvemosmundos. Se retomarmos aquela mentira que me disseram a respeito dos ces (afirmando que falariammeianoite)comoverdadeiraemseusfundamentosepistemolgicosqueoscessabem distinguirentreumco,uma'uweumwaradzuporquesabemquecadaqualcadaqual(eno que,paraoco,elessejamoutrasalteridades)aidiadequecadaumtmamesmaCultura masviveepercebeNaturezasdiferentescontinuadifcildeseratestada. Seoscesnofalamdeverdade,contudo,talvezoutrosanimaisfalem:aomenosumrelato sobreumcaadorexcepcionalmentecarregadodepoderxamnico,contadoporTseredzar,dizque possvelescutaraconversadoscaitituemlnguadegente.Noconheoregistrodo mitodos caititu, uhre, mas o mito dos queixada, uh, diz que as mulheres e crianas resolveram se transformarnessesanimaisdevidodemoradoshomensemvoltarparaaaldeiadeumalonga caada,poisnaqueletempodeantigamenteosA'uwXavantepodiamsetransformaremanimais (GiaccariaeHeide1975aeSereburetalii1998).Ouseja:talvez,comoos uh,os uhre sejam potencialmentehumanos,porqueeramhumanosnopassado,masistonoquerdizerquevejamasi mesmoscomohumanoseaosA'uwXavantecomoalgumaoutracoisa/pessoa. Issoposto,sehalgumaculturahumananosanimais,eladeveserprocuradanafalaou, para recuperarmos adistinopeirceanatomadaporKohn(2007)adiferenaentrendice, coneesmbolonacapacidadedesimbolizao232.somenteapartirdestacapacidadese
232 Aotomaressestermosestouapenasfazendoumarefernciadiscussodoautorsemque,comisso,assumaas distines de Chales Sanders Peirce (apud Kohn 2007) sobre o que vem a ser cone, ndice e smbolo como
285
aspalavrasdocantopuderemserconsideradascomosmbolos,aindaquebastanteindiciriase icnicasqueasubjetividadeanimalpodeseraceitacomotal:somenteaparecendoemsonho dosA'uwXavanteeldizendoseunomeoucantandosuamsicaqueosanimaisviroaser sujeitos,voviraralma,deformaaceitvel.Nesteprocesso,osanimaispodemmimetizaroa'uw himanadz.Poroutrolado,humasubjetividadeanimalqueosA'uwXavantetememaceitar: suasmanifestaesmaisindiciriasouicnicas(comoseusgritos,choroseassovios),pormais queelesseinfiltremtambmnamsica.Aindaquepessoais,relativasaseudahiba(suapessoa) taiscomunicaesparecemincompletasedesumanizantes,podemserriscodevidaparaosa'uw. Aceitartotalmenteasubjetividadeanimalatravsdaplenapalavrahumanaouatirarsesemmedo animalidade comunicativa: dois pontos polares a serem evitados pelos A'uwXavante em sua resistnciaaperderseulugarnahierarquiadagentificao. Aforaisto,osA'uwXavantesomuitoafirmativos emdizerquecadaanimaltem sua prpria cultura, dahimanadz. Nosas vrias pessoas e coletivos a'uw, mas tambm os Waradzuemcontrastecomosa'uw,cadaqualcomseussaberfazeres,hbitos,tcnicascorporais etc.,quepodemsermimetizadaseencorporadas,constituindoaprpriatcnicaapartirdacaptura, osimesmoapartirdooutro.Capturaramseosmaisdiversosrituais,jogosefestasna origem,a partirdaobservaodeoutrospovos,principalmenteos Tsa're'wa masnos.Htambma capturadofuteboloudasdanasdeoutrosndios, a'uw aimawitsirene.Apossibilidadede mmesesedjustamentepeladiversidadedasculturas. Perguntose,nestecasoemqueadistinoentrecorpoealmapareceenvolverumadistino denfase, possvelconceberumaoposioentreNaturezaeCultura.Serpossvelfalar, ento,paraosA'uwXavante,emvriasnaturezasepotencialmentevriasculturas?Seexiste umaecologiadevriasnaturezas,espciesecorposdiversos,existemtambmumaecologiade vriasculturase,nessesentido,osA'uwXavanteparecemmantersuanoodeculturamuito mais prxima daquela noo de habitus que, conforme o perspectivismo multinaturalista, caracterizariaoafetoe,qui,astcnicasdoscorpos. OqueparecediferenciarosA'uwXavantedeseusoutrossuacapacidadedemimetizar outrasculturas:ouseja,seuprivilgioestnumpodermetacultural,metatcnico,metaldico.
caractersticas daquiloquetenhotratadoaolongodotextocomosimbolismo.Minhaconcepodesmbolocomo vnculo(quetomocomotermoenglobantedeoutrasformas,taisquaisasimagens,ammese,osindcios,aspistasetc.) partedeumdebatecomasnoesdeddivaejogoeestmaisprxima,portanto,das deMausseHuizinga.A apresentaodeumestudocomparativodeobrasdestesdoisautoresjsugeridaporautoresdiversoscomo Caill (2002)eRoberteHamayon(1995e1998),porexemploficaparaoportunidadefutura.
286
Um privilgio que no dado, que tomado (como ddiva e como presa), de pende de um processo contnuo, no est garantido, depende do jogo da predao na disputa de posies e inversesnahierarquia.Depende,assim,dequehajafontesexternasdepoderparaserempredadas, dequeosprpriosA'uwXavantenosejamosmaispoderoso s.Demodoqueser a'uw no consisteemsersuperiormassimempoderinverterahierarquia,poderenglobaroenglobante. Talvezporissoparealhesaomesmotemponecessrioeperturbadorqueeusejacapazde mimetizar seushbitos(daquestionaremsemprequepossvelminhahabilidadeecondio de a'uw).Opoderdeimitarooutrosemseperderasimesmogarantesuainversohierrquicae,caso eusejacapazdeimitlose,aindaassim,voltaraser waradzu voltarparaacidadeediscorrer sobresuavidaparaoutroswaradzuperigaqueeulhestomeessaperspectiva.Ouquelhesdestrua aperspectivafixandoanolugardavertigem,damaiorordemedomaiorcaos. UmaordemmaiorcomoumamonografiaqueintentasseunificaraverdadesobreosA'uw Xavante aquilo que, graas ao encontro entre os escrpulos metodolgicos desviantes dos antroplogoseasinflunciasquesofremdosnativos,talveznuncaacontea.Ouentonumcaos maioremqueasmaioresexpressesdaordema'uwxavante,comoasmetadesexogmicaseas classesdeidade,fossemdiludas.Tenhofdequeestaetnografianoofar.bomqueeunoseja capazdeimitlosapontodesubstitulos.Continuoseuseguidor,aprendendocomelesesehoje estoudistante,seestoumaiswaradzuemenosgentefuturamentepodereiestarmaisprximode novoe,assim,maisenglobado,nummovimentodealternnciapotencialmenteincessante. * Entreosimeonodaalmaanimaledesuasubjetividade,osA'uwXavanteparecemoptar pelosdois,oupeloentredois,comvriasgradaesentreessesdois. Demodosinttico,podesedizerquetododahibatenha,empotncia,dahibauptabi,mas queissospodeserconhecidopeloprpriodahibauptabidosujeito.AdoTop'tiro,umhomem muito sbio, pode dizer que ubur abadze dahiba uptabire irh. Afinal, Ado um grande sonhador,seuvastoconhecimentoonricooconhecimentodeseucorpomesmotornoupossvel aatualizaodaquelapotncia.Alis,suaprpriaproximidadecomapotnciaemsi,comoalm, comosantepassados,jquevelho,dahi,permitelheesteconhecimentoarespeitodaquiloque potencial. Um conhecimento que pode ser transmitido aos mais novos e por eles verbalizado, inclusiveexperimentadoemsonho,masnoatestadocomacertezadeumvelho,umacertezaque vaimaisalm.Umacertezaincerta,contudo:quesempreparaalgum,relativanosentidoforte dotermo. 287
* Mais palavras sobre as palavras do sonho: essa dubiedade da subjetividade animal est presentenasletrasdasmsicasa'uwxavante.AomesmopassoquealgumcomoAdoTop'tiro digaqueascanessonhadaspelosa'uwxavantesejamtodasema'uwmreme,outrosdizemque elastmumalinguagemespiritual(quetalvezosmaisvelhosentendamporestaremmaispertodo mundodosespritos)eoutros,mais,queelasnotmpalavra,babadidamreme.Aindaque,com suas interjeies,onomatopiasevocalizes, asletras dessascanes soem,porumlado,como arremedos da fala233. Retomando a terminologia peirceana, tm uma feio simblica mas tambmmanifestemsecomoconesendicesdosimbolismo,tantoimitaesdepalavras quantoindciosdepalavrasempotencial,apontamparaumapotnciasimblica.O romh,cuja eficciaconsistenaquelecarterqueMausschamoudemana,umtropoqueabundaemsentido (LviStrauss1988,Lanna2000),umsmbolonegativo(Wagner1981),purapotncia. Comissovoltamosquestosobresesergenteeserpessoaqueiramdizeramesmacoisa. ParecemequeparaosA'uwXavante,todagente a'uwpessoadahibamasnemtoda pessoaestatualizadacomo pessoamesmo dahibauptabi.Aindaquehajaemtodapessoaum potencial de gentificao, anlogo sua potencialidade de deterem um dahiba uptabi. Um potencialantepassado,localizadonaorigem,doqualodahibauptabiumindcio,masnouma formaacabadaehumanide. Umpotencialqueseexpressanofatodepessoasnogentespoderemterseus chefes,seus danhim'h'a que engrandecem seu coletivo por serem grandes predadores. Um indcio da capacidadedessaspessoasanimaissetornaremoutras,jquealideranaa'uwxavanteparece deterestacapacidadedealterao:umacapacidadefundamentalnainstvelgentificao. *** Aonaeapotncia O fogo, como se supe, a fora do esprito a'uwxavante: udz wahiba uptabire
233Aytai(1985:7378)reconheceocontrasteentreletrascomsentidoesemsentidoeapontaaseguintesoluo: porumlado,algumasslabasespecficastransmitiriamcertossentimentos,como,asrepetiesdotipohehehe transmitiram alegria e as do tipo hi hi hi remeteriam ao choro de tristeza; por outro a monotonia de algumas repeties silbicas sem sentido acompanharia tambm a monotonia da melodia, de modo que melodia e letra andariamjuntas.
288
nhiptede. Por terem capturado o fogo, os a'uwxavante so capazes de uma subjetividade propriamentedita,aquelaqueconheceecapturapacificamenteoutrassubjetividadesatravsdo sonho,aquelaquevivealmdavidaequepodetornaraviver. PoisosA'uwXavantecapturaramofogodaona,eporissotmumarelaoespecialcom esteanimal.Umarelaoque,emcertosentido,podesercomparadasuarelaocomosWaradzu, selevarmosemcontaqueacaaaosbraosquetraziaumamudanadenomesparatodaaaldeia foisubstitudapelacaaona(GiaccariaeHeide1972). Existemvriasversesdahistriadoroubodofogodaona,quenocasoa'uwxavanteest associadaaofamosotemadodesaninhadordepssaros,comoamaioriadessesmitosdentreos povosJcentraisesetentrionais(verLviStrauss2004[1964]). Contareiumaqueouviemcampo,acrescentandoalgunselementosdeoutrasversesque julgo serem importantes para a discusso, ainda que haja diversos outros. Esta verso me foi contada por Tiur Tsadzir numa das minhas primeiras estadias na aldeia Abelhinha esses momentos primeiros da familiarizao parecem ser valorizados pelos A'uwXavante para a contaodehistriasdosprimrdios,quandovoltvamosdebicicletaparaaaldeia,vindode Sangradouro, num fim de tarde. No demoraria para escurecer e era preciso nos apressarmos porque,segundoTiur,haviamuitasonasnaquelasredondezas. Comisso,eleresolveumecontarahistriadaonaoquefariaemlnguaportuguesa, apresentandoalgunstermosema'uwmreme(quereproduzoabaixoforadosparnteses): Doiscunhadosogenroeocunhado(isto,odatsa'omoeoai'ri,oesposodairmeo irmodaesposa,jqueotermoparagenroeparaesposodairmumsema'uwmreme,oque parecelevarTiuraousodotermogenroemvezdecunhado)forambuscarovosdearara,'rada234. Oai'repudu,menino,maisnovoqueogenro,subiunopenhascoondeestavaoninhodeararamas, emvezdejogarosovosparaseuparceiro,jogouumapedrabranca.Oqueestavalembaixoficou comraivaefoiembora,deixandoooutropreso(provavelmenteretirandoalgumaparatoqueservia paraaescalada).Chegandoemcasa,ogenrodissequetinhaperdidoseucunhadodevista. O ai'repudu ficoumuitotemponopenhascoepassoumuitafomeatqueaona hu apareceu.Tinhaformahumananaquelapoca.Aonaosalvoudel,levouoparasuamoradade ona,deulhedecomereeleficoumuitograndeeforte.Antesdogarotoiremboradevolta,aona lhefezumcestocheiodecarne,semelhante adabatsa ,paraqueelelevassealdeia.Oheri tomouorumodecasacomocestocarregadoe,chegandonabeiradorio,encontrousuairm,mas
234Notesequeapalavraararatemamesmafonticadeprimeiro,anterior,antigoeav:'rada.Apenascoincidncia, dadaasemelhanadonomecomogritodaarara,comoumaonomatopia?
289
noseapresentoulogodecara.Imitouprimeiroopiodeumpssaro,masnoconseguiuchamara atenodairm.Quebrouumgravetoeenfimfezcomqueelaovisse.Chamouaelhedisseque tinhamuitacarne.Equetinhavoltado...Suameveioencontrloetodosregressaramaolar.No caminho,oai'repuduencontrousecomairmcasadaeperguntoulhepelomarido(ogenro).Ela respondeuqueeleestavaemcasa.Chegandol,oheriarrastouseucunhado/genroeoatiroupara foradecasacomtodasassuasposses,oquefezavtimapassarmuitavergonha. Acontecequeaonaeradonadofogoefoiassimqueconseguiuprepararascarnesdecaa quetinhalhedado,masdisselhequenocontasseseusegredoparaningum.Dealgummodo, contudo,oshomensdescobriramosegredodaona,queescondiaabrasadentrodoburacodeum osso. vidos por obterem o fogo, os homens se organizaram em fila para roublo e se transforaramemanimaisvelozes:euvouseroveado(podz235),euvouseraanta,uhd,eu vouseracapivara(ubd),euvouseraandorinha(buru'no).Chegandotocadaona,oveado tomouabrasa,correuejogouparaaanta,quecorreuejogoudevoltaparaoveado,quecorreu outravezejogouparaacapivara,masacapivaracaiunorioequasedeixouabrasasemolhar (nessemomento,TiurmedissequeA'uwXavantenocomecarnedecapivara...236),entoveioa andorinha,salvouabrasaeodia.Assim,osA'uwXavanteadquiriramofogo. O jovemnarradoracrescentouqueissotudoverdade.Oscatlicosdizemque s imaginao.Entretanto,issoverdadenanossavida,oqueosWaradzudizemverdadenavida deles,paraeles. Umpardediasdepois,eucolheriacomplementosdahistriacomMarcianoWere': as onaseramumcasalde e do av av ai'repudu ,massem filhos .Nahoraemquefoiresgatado,era apenasoavqueestaval,suaesposaestavaemcasa.Were'acrescentoutambmqueaonapediu queomeninojogassetrsfilhotesdearara(quecomeu)antesdeajudloasairdagrutado penhascousandoumlongopedaodemadeira.Juvncio,queestavaporpertonessahora,disseme quenoconheciaafundoestahistria,masqueiriaperguntarosdetalhesparaAdoTop'tiroseeu quisesseescrever:agentesempreprocuraosvelhos.
235 Apesardehaverpelomenostrsespciesdeveadoparaosa'uwxavante,o aih,o pon eo podz,averso colhidaporViannadeAdoTop'tiroapresentaotermopodz,apesardetraduzilocomoVeadoCampeiro(Vianna 2001,Apndices:24)que,nodicionriodeLachnitt(2004a)aparececomoaih.Baseiomeentonarefernciadada porTop'tiroparaatraduo,ficandocomotermopodz. 236Provavelmenteparanoseremcontagiadosporsuaatitudedesastrosaquequaselhescustouosabertcnicomximo dapredao.
290
Seguindoseusconselhos,vejamosoqueovelhoAdoTop'tirotemadizer.FernandoVianna (2001)apresentaumdepoimentodeTop'tiro,traduzidoporseusfilhos,noqualovelhoassociao surgimentodacorridadetorasaoroubodofogodaona.Adonolhecontaaprimeirametadeda narrativaadodesaninhadordepssarosmas,resumindo,narraoroubodofogocomouma corridaderevesamentodetora,afirmandoqueatocadaona,deondefoiroubadoofogo,ficavano jatob.(Ojatobtambmfazpartedeumadasversesdaorigemdosprimeiros Po'redza'ono e waw, uma terceira rvore em relao as rvores de cruzeiro do sul ('wamar o pau pacificadorepropiciadordesonhossegundoatraduodePauloCsar)dasquaissetiraramos pauzinhoscomqueforamfeitasasprimeirasmulheres.) AversodeTop'tiroapresentamaisanimais,comoaema(m)quecorremuito,ojabuti (u')quenocorreeotatu(warhb)queseescondenoburaco,nosendodemuitaserventiana corrida. Almdisso,talversotratadosurgimentodeumadastcnicasdocorpocoletivomais importantesparaosA'uwXavante(senoparaosJemgeral)acorridadetoras.Ainda,sua narrativa explicita no so roubodo fogo: ao cabo, fala de seuestabelecimentono war e a ritualizao de sua distribuio por todas as casas, do que viria o domnio da tcnica de sua produo,umsaberfazer.Deixaram[ofogo]nowaredepoisfizeramamsicaparacantarem cadacasa.Antesdisso,notnhamosfogueira,porisso,ficvamosnoescuroecomamoswedepo're (orelhadepau)eoutrasrazesquenoprecisavamassar.Depoisdetudoisso,agoratemosfogueira emcadacasa.Edepois,agentemesmofazfogueira.(Vianna2001,Apndice:24). A verso do velho Jernimo dessa histria, contada por Giaccaria e Heide (1975a) e analisadaporMedeiros(1990)revelaoutroselementos:aafeioinicialdaonapelorapaz,queno slheddecomercomolheddebeber(oqueelefazpraticamentesecandoumriacho237).Tal afeioseopeshostisameaasdaesposadaona,queintentavadevorlo.Eleselivradesua atacanteintroduzindoumavarinhaemsuabocaapartirdoqueela(queeraumaonahumana segundoWere')setornatamandu238.Segundoestaverso,ogarotoacabasendoconvencidopelos
237 Talvez demarcando a relao com a ona, nesse momento, como um movimento de conjuno, oposto ao movimentodedisjunodosurgimentodos Waradzu,quandoTserebutuw criouumagrandeguaseparandosedos a'uw. 238Animalque,deumarelaocomoexcessodesexualidadeepreguia(conformeoutrasfalasa'uwxavante),aqui aparececomooriundodeumexcessomalsucedidodeagressividadepredatria.Segundoaversodosnarradoresde PimentelBarbosa,ogarotointroduziuumaflechadetucumfeitaparaelepeloavparaqueatacasseaavmalvada nabocadesuaagressora,flechaquesetornariaalnguadotamanducomedordeformigas(Sereburetalii1998:56). LviStrauss (2004[1964])exploraasrelaesentreonaetamandunosmitosJsobreofogodemaneirabastante sugestiva,questoqueaquinoserexploradaporlimitesdetempoeespao.
291
adultosacontarlhesosegredodacarnedequeixadaassadaquetrouxerae,tendooroubosidobem sucedido,aona(queestavadormindoesacordariadepoisdeterperdidoofogo)declarouguerra aognerohumano,tornandosedefinitivamenteumanimalferoz. Existem, certamente, outras verses a'uwxavantes deste mito, com detalhes diversos (Sereburetalii1998,Fernandes2005),massemmuitasdiscordnciasarespeitodoquepretendo argumentar. Gostariadetratardolugardestaprotoonaqueaindaeragenteperanteoaparentamento e a humanidade a'uwxavante. Alguns pontos chamam ateno a este respeito. Primeiro, a associaofeitaporTiurdocestodecarnemoqueada(dadopelaonaaoai'repudu)adabatsa quenoapareceemnenhumadasoutrasverses.Segundo,ofatodocasalonaserumcasalde avs(sem filhos )doai'repudu,oqueindicaumapeculiarformadeadoo.E,terceiro,areferncia pontualaojatob.TambmprestoatenoaofatodequeaaquisiodofogopelosA'uwXavante noenvolveameracapturamasumsaberfazerque,peloquetudoindica,aonanotinhajque, aoserroubada,noconseguiumaisreproduzirofogo. * PorqueTiurfezaassociaoentreocestodecarnelevadopeloai'repudueaadabatsa? Seriaalgumarefernciaaotamanhodocesto,quantidadedecarne?Seriaumamaneiradidticade facilitarminhacompreensoevisualizao?Talvezacomparaotenhasefocalizadonotamanhoe naquantidade,supondoqueestacarneseriadistribudaparamuitagentenaaldeia,comopraxe nasocasiesdechegadadegrandequantidadedecaaououtraspresas. Cestos cheiosdecarnemoqueada,semelhantes aoda adabatsa, sousadostambmem outrascerimniasa'uwxavante,comodepoisdascaadaschamadasde manad,parapresentear com carne os novos oficiantes dos cargos Pahri'wa e Tbe e as famlias destes novos lderes predadoresedistribuidoresdepotncia,esseschefesdegrupo,comodizemosA'uwXavante.Mas Tiurnofezrefernciaaisso. Aidiadequeoai'repuduestivessetrazendoumacomidadanoivaparaaaldeiasemque ele, contudo, secasasse, parece estranha, inclusiveporqueaprimeira pessoa comquem ele se encontraraaochegarerasuairm,asegunda,suamee,aterceira,suairmcasadacomotraidor. Seriaistoumalevesugestodeincesto?Ou,aocontrrio,umasugestodequeoai'repuduteriase transformadoemafimportersidoadotadopelaona? Aquestodaafinidadenotosimplesassim,afinal,comosesabe,acomidadanoiva dada,naverdade,paraalgumdamesmametadeexogmica.Eoai'repudu,apesardocuidadoao 292
chegaremcasa,tentandochamaraatenodesuairmsemassustla,reconhecidoprontamente porela,tratandooimediatamentecomoirmo. Talvezessasituaoindiquemenos umarelaodeafinidadeemaisumamistura entre afinidadeeconsanginidade,umapotencialcognao. Atenteseparaacondiodeaveavdasonas.Elaparecefundamental,secomparada relaoestabelecidaentreogarotoeaonaemoutrosmitosJ. * Em O Cru e o Cozido (2004 [1964]), LviStrauss toma o conjunto de mitos J do desaninhadordepssarosedoroubodofogodaonacomoumimportantegrupodetransformao emsuaanlisedofogoedaculinriacomomarcasdehumanizaoparaosamerndios.Ocampo deestudosquesuaobra(emesmoestecurtoconjuntodemitos)suscitamuitovastoedesejo aplicarme aqui a um pequeno aspecto do grupo de transformao em questo: a relao de parentescoentreohumanoeaona. Infelizmente,LviStraussnoteveacessomitologiaA'uwXavantenaconcepodesua obra,sendoqueomaisprximodequechegoudelesfoipelosXerente.Valelembrar,comoj mencionado,aperspicazpercepodesteautor(1975[1958])arespeitodosgruposdepraaXerente comoumsistemaagmicodetrocageneralizada,identificandoque,conformeomito,taisgrupos depraateriamsidoclassesdeidadeciclicamenteorganizadas.Ouseja,osgruposdepraaxerente seriampresentificaessincrnicasdoquenomitoeramrelaesdiacrnicasentreclassesdeidade. OquecolocariaosA'uwXavantecomoinauditarefernciapretritadestemito(umdosgruposde praa,inclusive,teriaomesmonomequeumadasclassesdeidadea'uwxavante:Anarowa,fato queeradesconhecidopelaAntropologianapocadotextodeLviStrauss).Masaquiinteressa menososmitosxerentesdoquetodooconjuntodosmitosjcentraisesetentrionaisdoroubodo fogodaonaanalizadoporLviStrauss. Este conjunto inclui seis variaes: KayapGorotire, KayapKubenkranken, Apinay, TimbiraOriental,Krah239 eXerente;almdeumacomparaocomumanarrativaassemelhada, vinda dos OfaiXavante (cuja homonimia em relao aos A'uwXavante marca da histria colonial,nohavendoqualqueridentificaodecontatooumesmosemelhanalingsticaentreos doispovos,aindaqueosOfaisejamincludos,pelalingstica,notroncoMacroJ). Opontochaveaquiarelaomarcada,emtodososseismitos(bemmenosnoOfai),entre ogarotoeaonacomoumarelaodefiliaoadotiva,emcontrastecomarelaodeafinidade
239EtinmioqueoutrosautoresgrafamcomoKrah.
293
entreosdesaninhadoresdeararas. Na primeira variao (KayapGorotire), M7240, os ndios desaninhadores seriam cunhadosentresieaona,quenotinhafilhos,resolveadotaromaisjovem,quesalvarado ninhodasararas.Tratamentoquerecebeprotestodesuaesposa,queeraumandiaechamouo meninodefilhoalheioouabandonado.Notesetambmqueofogodaonaqueimavanum troncodejatob(LviStrauss2004[1864]:9192grifomeu). Nasegundavariao(KayapKubenkranken),M8,osdesaninhadoreseramcunhados (omaisjovem,quesubiunorochedo,erairmodaesposadooutro).Aonatambmadotaaquele que resgata do rochedo, o que no recebe aprovao de sua esposa (cuja espcie no apresentada),chamandoomeninodefilhodeoutro(LviStrauss2004[1864]:93). Naterceiravariao(Apinay),M9,osdesaninhadorestambmsocunhadoseaona adotaogarotoquesalvadoninhodasararas,pornoterfilhos,tornandosepaidomenino.Sua esposa,contudo,assustaoarreganhandoosdentes,comofariaaesposadaonanamaioria dasversesa'uwxavantes.Aquitambmabrasaestariapegandofogonumtroncodejatob(Lvi Strauss2004[1864]:9495grifomeu). Naquartavariao(TimbiraOriental),M10,osdesaninhadorestambmsocunhados humanoseaonasetornapaiadotivodaquelequesalvou.Aesposadaonaseirritacomo jovemporestefazerbarulhoaocomer(porqueestgrvida)e,contrasuafria,oheriaatacacom asarmasquerecebeudopaiadotivo,ferindoanapata(LviStrauss2004[1864]:9697grifo meu). Naquintavariao(Krah),M11,oshumanossocunhadoseaonaadotaomaisnovo, quefoiabandonadonorochedo,comosobrinho(LviStrauss2004[1864]:107),sendoquesua esposasediverteassustandoomeninoeameaandocomlo(LviStrauss2004[1864]:97). Nasextavariao(Xerente)M12,oshomenstambmsocunhadoseaonaresgatao maisnovo,quetambmtratacomofilhoadotivo,conformeatestaoautor(LviStrauss2004 [1864]:107).Amulherdojaguarcensuraomaridoportertrazidoomenino,eassustaocom seusrugidos(LviStrauss2004[1864]:98grifomeu)seriainteressantecompararestaverso xerentecomasversesa'uwxavantedadavriassemelhanasentreelas,masnocabeaquifaz lo. Enfim,LviStraussbuscaumastimavariao,bastantedistinta,paralheajudarademarcar ocontrastedarelaodeparentescoentreoscunhadosdesaninhadores(presentessomentenas
240LviStraussnumeraosmitosqueapresentaporordemdeaparionaobra,parafacilitarareferncia.
294
outrasvariaes,masdeformabemconsistente:omaisvelho,quefoiembora,sendoomaridoda irmeomaisnovooirmodaesposa)eaona.NomitoOfaiXavante,M14,umamulher humanadesejaserfilhadoonamasesteacabasetornandoseumarido(LviStrauss2004 [1864]:108grifosmeus).LviStraussconclui: Omitoofaipoderiasemdvidaintitularse''Ojaguarentreoshomens''eno, comonosmitosJ,''Ohomementreosjaguares''.Apesardessainverso,osOfaieosJ soigualmenteexplcitos[sic]:amulherdojaguarhumana(cf.M7:''amulherdojaguar, queeraumandia...'')e,noobstante,oshomenstemmaismotivosparatermedodelado quedafera.[][O]shumanospreferemmatlaaeliminarojaguar.[]Paraquetudoo queohomematualmentepossui(equeojaguarnopossuimais)pudesselhevirdojaguar (queopossuaantes,aopassoqueohomemno),preciso,portanto,quesurjaentreeleso meiodeumarelao:esseopapeldamulher(humana)dojaguar.[]Compreendese, comefeito,quetodososmitosdessegrupocoloquememcenanoum,masdoisparesde cunhados:primeiramente,odesaninhadordepssaros(queumdoadordemulheres)eo marido dairm ao qual ele nega(intencionalmente ouno) os filhotes [dearara]; em seguida,essemesmodesaninhadordepssaros(masagindocomoembaixadordaespcie humana)eojaguaraquemoshomensderamumamulhereque,emtroca,cedeofogoeo alimentocozidohumanidade.(LviStrauss2004[1864]:109118pargrafosomitidos, grifosmeus). AconclusodeLviStraussarespeitodahumanidadedaesposadaonaparececoerente comopapelqueoautorvnamulhercomomeiodeumarelao,etambmcomaimportncia quedtroca:acapturadofogopensadacomotrocajqueaonadeveriaterrecebidouma mulherparaquepudesseofereceremtrocaofogoeoalimentocozido. Todavia,talconclusosurpreendentedemaisselevarmosemcontaosdadosqueoprprio autorapresentaarespeitodosmitosJcentraisesetentrionais.Naprimeiravariao,M7,tal mulhereraumandia.Masnasdemaisvariaes(escusooacrscimoofai)orasuaespcieno aparece marcada (M8, que, como o anterior, Kayap), ora ela aparece sugerida por suas caractersticascabalmenteferais:emM9elaarreganhaosdentes;emM10elaferidanapata; emM11ela ameaacomer osobrinho;eemM12elaassustaoadotadocom rugidos.A maioriadessasversesvaiaoencontro,portanto,daidiaa'uwxavantedequeaesposadaona 295
seriatambmumaona(quetentavadevoraro neto),aomenosempotncia.Elateria,comoo homemona,caractersticasdeanimalferoz(nocasodele,adevoraodosfilhotesdeararaparece uma antecipaodesuaferocidadefutura).Lembresetambmqueoprpriohomemona, na versoa'uwxavante,noerasimplesmenteumaona,poistinhaformahumana.Suaanimalizao setornafixadasomenteapartirdoroubodofogo.Porqueomesmonosepassariacomamulher ona? Dessemodo,ahiptesedequeaonasejaumcunhadodahumanidadeprecisaserbastante nuanada,demodoqueaafinidadenosejao(nico)focodarelao. Comofica,contudo,aversodeTiur,emqueaonadaoheriumcestocarregadode carne,parecidocomaadabatsa,acomidadanoiva?Seriaumaddivadecasamentodaonaao heri, em troca da esposa (uma esposa, alis, que j tinha sido perdida, transformada em tamandu)? Poderiaatser,jque,separaosA'uwXavanteaesposaseconsanginizaaomarido,a esposa daonatalvezfosse,assim,umamulhertransformadaemonaporviadoaparentamento tpicodocasamento:datsiwapru(consanginizarse).Entretanto,ahistrianosinalizanadadisso emqualquerdesuasverses,emrelaosquaisaversodeTiuraparececomoexceo. AcreditoqueatentativadeLviStraussemressaltaroelementodealianaporafinidadee trocanarelaoentrehumanoseonastenha,sim,algumsentido,jqueanaturezadaesposada onadbia,setomarmosoconjuntodasvariaes.Nomenosdbia,contudo,queanaturezado prpriohomemona! Masnodevesernegligenciadoofatodequeaesposadojaguartambm,senouma ona, uma fera indcio de sua futura nohumanidade. E, principalmente, no deve ser negligenciadooelementomaisexplcitodetodasasversesJcentraisesetentrionaisapresentadas: odaadoo.Adooque,contudo,notransformaoheridomitoemfera,poisestefazacoisa certa,retornaaoshumanoselhesrevela(aindaqueacontragosto)seussegredos. Para alm (e aqum) da aliana, esses mitos parecem afirmar o carter dbio do aparentamentoeespecificamentedoparentescoespecialmenteomitoa'uwxavante.Sugerem que o transformismo do tempo e do lugar mticos, mgicos, tenha plantado sua semente no parentesco. PeranteasvariaesJapresentadasporLviStrauss,asversesa'uwxavantemarcam umadiferenanotvel:aona,semfilhos,passaatratarojovemcomo neto alis,estepassaa tratla,imediatamente,como av:naversodosvelhosdePimentelBarbosa,aindaemcimado 296
penhasco,oai'repudubradapeloauxliodaona,aoavistla,chamandoademeuav(Serebur etalii1998:53)241.Apeculiaridadedarelaodeparentescoentreavsenetosa'uwxavantedeve serressaltada:elaenglobatantomembrosdamesmametadeexogmicaquantodaoutrametade. Nestesentido,arelaoentreavsenetosumarelaoquemisturaagnaoecognao. Porcontadisto,gostariadesugerirqueaassociaoa'uwxavantedaonaaoavumav abandonado,certamente,quedeclarouguerrahumanidadetrateexatamentedeumacondiode parentescopotencialnaqualtantoafinidadequantoconsanginidadeefiliaosejamimportantes. No setratasomentedeafinidadepotencial casohajaalgumasugestodecasamento potencial entre a ona e a humanidade, qui por intermdio de seu neto adotivo, que levou adabatsa paraaaldeia mastambmdeconsanginidadepotencial,filiaopotencial,cognao potencial... Enfim, parentesco potencial com este declarado inimigo da humanidade. Um aparentamentoque,sepotencial,oporserantepassado,jfoienomais. Se comparada relao de afinidade efetiva entre os dois cunhados desaninhadores de araras,oaparentamentoentreaonaeoai'repudu,cujostraosmaisexplcitossoafiliao(seo netopuderserconsideradocomoumfilhodesegundograu)eacognao(caractersticadarelao entre netos e avs)temresultadosfundantesparaagentificao:apartirdestarelaoqueos A'uwXavantesetornaramcapazesdeproduzirofogo.Certamente,atraiodo genro(maridoda irm)fundamentalparaqueoai'repuduentreemcontatocomojaguarnomenosfundamental queacarneassadadadaporeste,daosA'uwXavanteofogoquepassariaamarcarsuacondio dehumanidade. Olugardapotnciaconcedidoonapodeserassociadosuacondiode av tambm numoutrosentido.Afinal,comovisto,osvelhosa'uwxavantesoaquelesmaisprximos da potnciacsmicaedaparagemmitooriginal,daquiloqueanterior,primeiro,'rada.Trataraona comoav,portanto,pareceserumamaneiradeconcederlheumpoderdeidade. Emsuma, anoode av a'uwxavante,emseusentidocosmopoltico,apontaparauma anterioridade,umaprimeiridadepresentenapalavra da'rada ,quemarcaanoodeorigema'uw xavante.Comomisturadeparentesco(jqueenglobaagnaoecognao),temumafortecargade diferenciaoindiferenciante,prximaqueladaorigemmtica,afontedetodapotncia.Assimse
241AindaqueLviStraussanaliseoutromito(M56)dopovoOfaiemqueumpreconsegueroubarofogodaona chamandoadev(LviStrauss 2004[1864]: 156159),oautornoreforaesseaspectodoparentescoem sua anlise. Reconhece, sim, oaspecto adotivo da relao entre humanos e esposa da ona nos mitos j centrais e setentrionais,masparaabordaroataquequeogarotofazelacomoumincestoinvertido(LviStrauss2004[1964]: 339).
297
compreendetantoopoderdosvelhosquantoopoderdaona.Umapotnciaoriginal. Nessesentido,arelaocomaonaseassemelharelaocomosTsa're'waquetambm tmumarelaode av e neto coma famlia quesetornou Tsa're'watede'wa,segundoseumito. Considerandosequeaveorigemsonoesmuitoprximas,esedaonavemaorigemdofogo, notesequedos Tsa're'wa vemaorigemdegrandepartedastcnicasdocorporituaiscapturadas pelosa'uwxavante. Entretanto, se os Tsa're'wa so alvo de imitao dos A'uwXavante, sobre a ona j desumanizadacostumasedizerocontrrio.OuvidosA'uwXavanteque aonaimitaos a'uw . Seriaela,assim,capazdeassumirumaperspectivahumanaatravsdestaimitao? Tenho argumentadoqueaimitaoquecaracterizaarelaodefiliaoadotivaentre danhimidzama e a'uw eestarelaoparecesempremarcadapelocarterdepotencialidade,de devir.Umdevirqueum :eu,comodanhimidzama,vouvirara'uw agora.Eum que virar virar umretorno,jqueapotnciadaorigem. Dessemodo,talvezhajaumperigosopotencialhumanonaona.Daelasertocombatida. Porqueseaonanoeracapazdareprodutibilidadetcnicadofogo,serqueimitandoohumano elapodeviraser? Noimpossvel,masduvidoso.Jqueareproduodoconhecimentodofogotevecomo premissa a distribuio deste conhecimento. E a ona no se mostra capaz de dividir seu conhecimentocomofezcomoai'repudu,poisnosuportouacoletivizaodeseusegredo: Vocvailevaressacarneassada.Sealgumperguntar,vocdizqueeuasseina pedraquente.Vocnopodecontaromeusegredo.Nopodefalarqueeutenhoofogo...Se vocrevelaromeusegredo,eunovoutermaisddeningum...Voucaarecomeras pessoascruas.(Sereburetalii2008:57) Tornarseonasercontraocoletivo,contraacoletivizao. * Wah pipaauwmaiwahuun, soutoperigosoparaoshumanosquantoaona, ensinoumeumavezLibncio,naAbelhinha,quandoempreendamosmaisumjogodebatalha verbal e eu tentava dizerlhe que eu era perigoso como a ona. Esta palavra grande em Sandradouro,explicoume,jqueosjovensdeldizemmuitoissofatodoqualeunotinha
298
idia,masquepudeintuir. Aonaumpersonagemimportantenosjogosdepoderauwxavante ejfoichamada alhuresdeLeviatdaflorestatropical(Thieme1999),condensandoferocidade,predaoepoder paraospovosaltoxinguanos.SerialcitoconsiderlatambmumLeviatdocerrado? Talvezum Leviatroubadonopassadoeconstantementeassassinado,afimdequesedistribuasuapotncia, comosedistribuemnomesdepoisdeumabemsucediacaaaosbraosoquefariasentido tambmemsuafeiofeminina,jqueafestadaonaumadaspartesimportantesdoritualde nominaodasmulheres,naqualoAi'utmanhari'wacoordenaumcoletivodepersonificadoresda ona,pintadoscomoela(verGiaccariaeHeide1972),trazendoessapotnciaferalparaaaldeiaea distribuindoentrevriosatores,transformandoemfarsaaatualizaoedistribuiodeseupoder. Alis,tambmnoataquedoburitidabocapreta(pretacomoabocadoAi'utmanhari'wa),alguns personificam farsescamenteestepoderosopredador.Umpredadorqueimitaos humanos e est sempreperigosamenteprximo. Se o poder daona para os autoxinguanos, quesegundo Thieme (1999) associado chefia, puder ser aproximado ao poder da ona para os A'uwXavante, ajudaria a entender a desconfianadestesemrelaoaoschefesque,comoferas,podemsetornarinimigosdopovo.Essa desconfianaestexpressananarrativaa'uwxavantequedaberturaaolivrodeGiaccariaeHeide (1972),naqual umaduplade chefes traemos a'uw emfavordeseusperseguidores waradzu, revelandoaosbrancosumsegredo: OsdoischefesXavantescontaramaosbrancosqueosXavantesmatavamosporcos [dos brancos] e assim os brancos atacaram e prenderam os Xavantes. [...] Ento os Xavantes disseram: Matemos os dois chefes, que esto sempre conosco e no nos defendem.Ogrupoficaaquiemcasa,enquantonsvamosescondernosnamataonde passamosdoischefes.[...]Quandoosdoischefespassaraml,forampresosemortose, juntocomeles,tambmosseusamigoseumamulherquequeriadefendlos.(Giaccariae Heide1972:27).242
242Nobastamataroschefes,precisomatarseusamigos.Ou,quemsabe,seuscmplices:Sosemprequatroou cincoquemantmotirano[].Semprefoiassim:cincoouseisobtiveramoouvidodotiranoeporsimesmosdelese aproximaram;ouentoporeleforamchamadosparaseremcmplicesdesuascrueldades[]esciosdosbensdesuas pilhagens.Tobemessesseisdomamseuchefequeeledevesermauparaasociedadenoscomsuasprprias maldades,mastambmcomasdeles.,diziaLaBotie(2008[1982]:31)algunssculosantesedooutroladodagrande guaqueseparavaoswaradzudosa'uw.Aomataroschefes(quesodoisenoum,oqueosdistanciaumpoucoda
299
Sabese que o segredo um elemento fundamental dos cortes na rede da vida a'uw xavante.Eleseparahomensdemulheres,separagrausdeiniciaoaoDarini,separafamliasumas das outras. O segredo precisa ser mantido e quando isso no acontece, necessrio um esquecimentoparaqueeleseja,emseguida,reproduzidonovamente,comodisseApw (Polo Mller1976).Masavidacoletivatambmdemandaqueosegredovazeaquieali,comomostra Rosa Bueno (1998). Assim, h um jogo de aparentamentos e contraaparentamentos, uma alternnciapendularquemovimentaamitohistriaa'uwxavante. Mas,paraosegredovazar,precisoquesigaencadeamentosgentificadores:noserevela umsegredoparaumWaradzuqualquer,somenteparaumquetenhasidocapturadoefamiliarizado e,mesmoassim,nosemalgumadesconfiana,conformeoquepressintoemminhasrelaeseas respostascheiasdedespisteseevasivas.Adistnciaqueeudeviamanterdecertossegredosfoi muitasvezesexplicitadaquandopediamouesperavamqueeuficasselongedealgumasreuniese conversas. Atransmissodesegredosparecesergradual,aospouquinhos,comofazemosvelhoscom seus conhecimentos fitoterpicos, transmitindoos pouco a pouco para seus filhos, para companheirosdecaaemesmoparaaantroploga,comomostraRosaBueno(1998),porquetais conhecimentoscontmmuitopoder,podemsernocivos.Masprecisamserdivididosafimdeno perecerem.Atparamimalgunspoucosdessesconhecimentosforamintroduzidos,comoquando algumwatsiutsuououtrapessoameapresentoualgumaraizouervamedicinal,nahoradebuscla naterraoumesmocaminhandopelocerrado.OucomoquandoVitrioWa'moteeAdoTop'tiro
atualizaodofeitiodoUm)eseuscomparsas,osA'uwXavantebuscam,porassimdizer,eliminarpelaraizuma perniciosarededecontgiomimtico.Issofazsentidoseforvlidoparaelesoquevaleno Discursodaservido voluntria.Essesseis[cmplicesdotirano]tmseiscentosquecrescemdebaixodelesefazemdeseusseiscentosoque osseisfazemaotirano.Essesseiscentosconservamdebaixodelesseismil,cujaposioelevaram[].Grandeosecto quevemdepoisequemquiserdivertirseesvaziandoessaredenoverosseismilmasocemmil,osmilhesquepor essacordaagarramseaotirano(LaBotie2008[1982]:3132).Assim,tudosepassacomose,matandooschefese seus amigos,os A'uwXavantedestrussem umprimeiroelodacorrentedaservidovoluntriavinculandoa origemdoEstado.Oqual,seestempotncianosseusdois chefes,estematonosbrancosaquemaquelesse aliaram.Eaquemcontinuamsealiando:porexemplo,numaaldeiaporondepassei,presencieiumavisitadecandidato aprefeituraquefezacordocomocacique,combinandocomeleaentregadecertaquantidadedemercadoriasemtroca dosvotosdaaldeia.Acontecequequemvenceriaaseleiesseriaoutrocandidato com quemalgumasdaspessoas daquelaaldeiamedisseramquevotariam.Poisaindaqueseusvotosnotenhammudadotodooresultadodaeleio,h aomenosumindciodequeoseleitoresa'uwxavantenosofacilmentecontagiadosporseuschefes.
300
mecontaramahistriadosTsa're'wa,dequemnosedevefalarmuito.Oucomoquandoovelho JosPedro,mesmonosendo Ai'utmanhari'wa,aoserinformadodequeeutinharecebidoeste cargodemeu'amemoutraaldeia,perguntoumeseeuconheciaopassodedanaespecficodeste palhaoeensaiouensinarme,dizendopalavrasema'uwxavantequeeunocompreendia.Alis, comoquandomeensinamamaiorpartedashistrias,tcnicasesaberesdeseudahimanadz. Poisparteimportantedesergente,a'uw,saberdividir,dividirse,serpartedahibade umcorpocoletivonebuloso(comoumfuzzyset),pormcapazdeencontrarcertaordemem algunscortesnarededocontgiomimtico,cortescomoosdasmetadesexogmicasedasclasses deidadetodaessaorganizaosocialque,comofoidito,nemoscesnemos Waradzu tm, apesardeseupretensocoletivismo:umcoletivismosemcortes,semfreiosaocontgiomimtico, entregueaofeitiodoUm. * Ressalteinos mitos doroubodofogodaona Japresenadojatobque,na histria contadapor AdoTop'tiro,seriaatocadaona.AversodeTiurtalvezcauseestranheza ao afirmarqueabrasadaonaestavaescondidadentrodeumosso.Oestranhamentosedissipaaose lhecomparar,porexemplo,aversodosvelhosdePimentelBarbosa,queafirmamqueoai'repudu escondeuumabrasadentrodocrniodeumqueixadaassado(Sereburetalii1998:57).Assim, resta o jatobque,segundoamesmaverso,eratambmondeestavaofocodofogodaona (Sereburetalii1998:59). GostariaderemeterhistriadaorigemdosclscontadaporPauloCsar,segundoaqual haveria,nocomeo,doispsde'wamarqueelechamadecruzeirodosulnocentrodaaldeiae, prximoaeles,umpdejatob,a'iwede. Noparecesercoincidnciaofatodequeumtantoquantoprximodupladervoresde 'wamar,paudapacificaoedaalianaoriginalentreosopostosa'uwxavante,apareaoutra rvore,ligadaferocidadepredatriadaonaeaopoderdofogocomoummisteriosoterceiro elemento. Presena da qual no obtive nenhuma explicao, cuja funo na histria no foi explicitada,aocontrriodospsde'wamar,dosquaissaramospauzinhosquesetransformariam emmulheres.Masoseusentidosemanifestasecompararmososdoismitos,jqueojatobremete aumapotnciapredatriaofogotrazidadeforaparadentrodaaldeia.Assim,surgemaisum indciodaimportnciadoterceiroincludonojogoentredoisdosA'uwXavante. *** 301
Watsiwadi Muitojfoifaladosobreos Tsa're'wa aolongodatese.NaetnografiasobreosA'uw Xavanteelesprimeiroapareceramsobarubricade Wadzapari'wa (MayburyLewis1984[1967]), quepodesertraduzidacomoaquelesquenosesperam,aquelesquenosvigiamoumesmo aquelesquenosapiamdzaparitraduzidoporLachnitt(2003)comoapoiar,vigiar,esperar, aguardar,incentivar,queouvisendousadotambmparaassistirsendoconsideraumamaneira polidadesereferiraessesentespelosA'uwXavante. MayburyLewis,nocaptuloenosubcaptulosobreCosmologiadesuamonografia(1984 [1967]),considerouosespritosligadosafinidade,devidoaseucarterditoagressivoeasua relaocomasmscaraswamnhrdoDanhono(osWadzapari'wateriaminteresseemcapturaras mscaras,quedevemservigiadaspelos 'riti'wa no mra clareiraritualparaqueissono acontea). Para o autor, isto seria um indicativo de que eles estariam ligados ao noivado ou casamento dos iniciandos, dada a cerimnia final do Danhono em que as futuras esposas so apresentadas aos jovens. Interessado em identificar o dualismo no pensamento a'uwxavante, MayburyLewisopsosespritosWadzapari'waaosespritosdosmortos,comquemosA'uw Xavantemanteriamrelaesamistosas,contatandoseusparentesfalecidosemsonhosoupedindo lhesauxlioparacurasxamnicas. ApresenteiindciosdequeestaoposiopropostaporMayburyLewisnoseaplica. Arelaoamistosadosmortoscomseusparentesvivosvem,sim,aoencontrodosdadosque apresenteiedasconclusesquetireiapartirdeleslembrando,contudo,oestgiointermedirio dosmortosnacondiode tsimihpri,nadaamistosa.Todavia,comovisto,nososomenteos mortosqueaparecememsonhoaosA'uwXavante. Os Wadzapari'wa, por sua vez, no tm sua relao com os A'uwXavante marcada simplesmentepela agresso(aindaqueelaexista,comopontuarei), tampoucopelaafinidade.J indiqueiaquisuacondiodeirmospotenciais,expressanotermowatsiwadi.Pontueitambmsua condio original de parentes que intencionalmente se desgarraram, fazendo referncia a mitos comparadosporFernandes(2005),segundoosquaisteriamsurgidooraapartirdeumhomem tratadoporJernimocomobisav(GiaccariaeHeide1975a:2289),cujocorrelatohi'rada,av velho, primeiro velho, velho anterior, antepassado e sua famlia, que mais tarde foram contatadosporseus irmos, osquaisretornaramaldeiaecontaramsuahistria;oraapartirde 302
umadupladecunhados(isto,afinsentresi),tendosidotambmseguidospeloirmodeumdeles, que relatou a histria de volta aldeia (Serebur et alii 1998: 7273). O que, por si s, no significariaquesuacondiosemanteriaestvelesabesequeaestabilidadedapessoabastante incomumnestasparagenscentrobrasileirasequenosetornassem,graasaodistanciamento, afins. Entretanto, jamais escutei de algum A'uwXavante referncias aos Wadzapari'wa como afins.Creioqueseulugarnoalmdepurapotncianodetermineumarelaodeparentesco(ou casamento)especfica.Alis,ummitoquerelatareiaseguirdsubsdiosparaisto,jque,apartir deumacordocomelesoudeumacapturaoestabelecimentodelaoscomumWadzapari'wa teriafeitocomqueuma linhagem especficapassasseachamaro Wadzapari'wa de av. Assim, portanto, se sua localizao distncia no revela sua condio nas relaes de parentesco potencial,aoseaproximarem(ouaoserembuscados),passamaserreferidosatravsdetermosque remetemtantoagnaoegermanidadequantocognao. Almdisso,chamlosdeespritosseriaconsiderloscomoreduzidosaoseu dahiba uptabi,sendoquesomuitomaisdoqueisso.Comomencionadosobreos Tsa're'wa,elesteriam sido os nicos a manterem o poder transformista original da humanidade, sendo capazes de transformarseucorpo, dahiba,emoutroscorpos,multiplicandoo,semperderacapacidadede voltarasi.MrcioTserehit,porexemplo,alertoumecertavezqueumavespaquecircundavaa fumaa cheirosa das folhas que eu fumava tsiupdadz (folha cheirosa) um combinado de dzara'repa (mamacadela) com outra raiz que desconheo, usado como fumo e remdio pelos a'uwxavantepoderiaserumTsa're'wavindomevigiardazapari,jqueelesapreciameste odor.Dizsetambmquesetransformamempequenoscolibrisnamata,quewadzaparivigiam nos,assistemnos.Elestambmnosdoassistnciaaocantaremocantodoja,alertandosobre perigos.Ousetransformamemanimaisdecaaquesedesdobramdeseucorpoesedeixamabater, alimentandooscaadores243.Entretanto,sempreretornamsuacondiocorporalhumana,ainda que invisvel cotidianamente, dada sua velocidade: dizem que no conseguimos ver os Wadzapari'wa porquesomuitorpidos,oqueremeteaumdossentidosdapalavra Tsa're'wa:
243OqueecoaaddivaanimaldoSubrtico,naqualhumaentregadacaaaocaador,lidanaobradeautores comoBirdDavid,IngoldeBrightmanporFausto(2002),qualestecontrastaosanimaisemguerradaAmaznia, aindaquelheinteressemenossugerirqueosmodelosdaddivae dareciprocidadetmrelativamenteumaprodutividademenornaAmaznia,doqueinseriracaaemum conjuntoderelaespredatriasentre diferentestiposdegente (2002: 11). Creio mostrar aqui que dar (um dos vetores da ddiva) e predar tm uma produtividade complementarnodilogoantropolgicocomgentedocerradocentrobrasileiro.
303
aqueles que nos ultrapassam. Outro sentido da mesma palavra pode ser tambm aqueles que sabem,queconhecem,quedoaconhecer,quemanifestam,seconsiderarmosastradues queLachnitt(2003)dparatsa'reeacrescentandoosufixo'wa.Oqueremete,porsuavez,idia dequedosWadzapari'wateriamvindograndepartedosconhecimentosetradiesa'uwxavantes. Mesmo sendo to mais potentes superhumanos, eu diria , ainda assim so chamados de humanos, a'uw,oumesmo a'uw uptabi.Almdascaractersticasdehumanosoriginais,esses dados, como outros que mostro adiante, sugerem que o comportamento dos Wadzapari'wa em relao aos A'uwXavantevaialmda agressoalternaseentre os plos daagresso e do auxlio,assimcomoocomportamentoa'uw. Pretendo tratar destas questes a seguir: a relao de parentesco potencial com os Wadzapari'wa e o seu comportamento, elementos que elucidam a relao entre as gentes e a condiodegente. * OsWadzapari'wa,apesardenoparecerempropriamentemalvolos,dadoofatodetambm auxiliaremosA'uwXavante,soconsideradosbastanteperigosos.Afinal,seuspoderessomuito grandes.Nasaldeias,diziammeparatomarcuidadotardedanoite,casoresolvessesairdecasapor algummotivo(denecessidadefisiolgica),porquecorriaoriscodemeencontrarcomalgumdeles emsuaformahumana,jquenotmnecessidadededormirprocureiseguirriscaesteconselho e, numa eventualimpossibilidade deconteno, tentavaserrpidoe noolhavapara os lados. Entretanto,disserammequepoderianoacontecernadaequeelepoderiasimplesmenteconversar comigo.Quem temwai'a,queestavanadonosgrausdeiniciaodo Darini,podetermenos medo.Encontrosforadaaldeia,contudo,podemseraindamaisperigosos.OcaciqueTseretsu,da Abelhinha,tinhavriashistriasdecaadorparacontaraesterespeitoecostumavamrepetilaspela aldeiacomcertadiscrio,afinaloassuntodelicado,ejamaisdeveriaserabordadodepoisde escurecer.Certavezseucodecaafoibaleadonamataporum Tsa're'wa,segundoele.Noutra ocasio,andandopelaestradadeterraemdireoaSangradouro,foiinterrompidoporumgrupode homensa'uwdesconhecidosquequeriamsaberparaondeeleia,eseiriaparaacidade,atacando lhecomalgumpemseusolhos,tornandosuavisoturva.Dizemqueeleterialutadocomeles. Aimpressoquetenho,dessesencontrosnaestrada,adosWadzapari'wacomovigilantes doprocedera'uwxavante:irparaacidadeafastarsedomododevidapropriamentehumano, a'uw himanadz uptabi. Ainda que os Wadzapari'wa ademais, como os prprios A'uw Xavante tambm possam ser encontrados nas cidades, como me foi dito. Provavelmente os 304
Wadzapari'wacorrammenosriscosnacidadejustamenteporteremopoderdetransformaremse vontade,continuandoaser a'uw uptabi. Aindaassim,comodiriaHiprdi,o r, oambientedo cerrado,doBrasilCentral,etodasuacomplexidadeecopoltica(confiraCeredaGomide2008)o lugardosWadzapari'waporexcelncia,lugardeseumododevida,dahimanadz. Talvezessacondiodeguardiesquezelampeloshumanosevigiamosseusrumostenha oslevadoaseremchamadosdeanjosporalgunsA'uwXavante244,sobretudoosmaisprximos religiocrist.FoiassimqueoschamaramumcasaldeantigosmoradoresdaAbelhinhacomquem converseiduranteumatardenasdependnciasdamissosalesianadeSangradouro.Elesdisseram, inclusive, que um dos padres que viveram na misso teve diversos encontros com Tsa're'wa, confirmandoqueeramanjos.Tambmmedisseramqueos Waradzu estranhavamaosaberqueo Wadzapari'waeraavdosA'uwXavantesem,contudo,tertidonenhumfilhocomeles. Soube, todavia, que nem todos os padres tinham to bom relacionamento com os Wadzapari'wa.Hiprdicontoucertavez,naAbelhinha,ahistriadeumpadrequediziaqueos Tsa're'wa no existiam. Ento, numa noite, andando de caminhonete por uma estrada da terra indgena, viuse cercado de uma multido a'uwxavante de homens que no conhecia, todos pintados,deshortsalgunspelados,frisouHipae,atordoado,chegouemseudestinoquerendo saber de onde vinha tanta gente, no obtendo resposta. Passou a dar falta, diariamente, de quantidades de combustvel de seu carro e, preocupado, foi aconselhado a buscar ajuda dos Tsa're'watede'wa, a linhagem dona dos Wadzapari'wa, que acabou trazendo soluo para o problema.SegundoHipa,estaeraa famlia deVitrio,eaconselhoumeaprocurlosequisesse sabermaissobreoassunto. * Numatarde,fuiperguntarmaissobreissoaVitrioWa'mote.ElesesentoujuntoaAdo Top'tiro,nasombradasmangueirasentresuasresidncias,parapoderconsultarovelhosbiosobre detalhesquepudessedesconhecerarespeitodashistriasdeantigamente,durihwatsu'u.Osdois rememoraramemecontaram,ento,ahistriadosWadzapari'wa,comdetalhesausentestantodas histriasdeorigemdosTsa're'waquantodaquelasemqueseenvolveramemguerrascomoucontra osA'uwXavante(Sereburetalii1998,GiaccariaeHeide1975a,Fernandes2005).Adiferena principaleraaquelaquetratavadesuacapturapacficaedatransformaodeumdelesemav. Foi iniciativa de um dos antepassados de Vitrio estabelecer contato pacfico com os Wadzapari'wa, pois j haviam guerreado contra eles, como conta Jernimo (Giaccaria eHeide
244 Fernandestiveraamesmainformaoemtempoelugardiferente,concluindotambm,emcrticaMaybury Lewis,quenofaziasentidocaracterizloscomounicamentedemndoleperanteosA'uwXavante(2005:9091).
305
1975a).Estehomemcontatouoseconvidouosparaseapresentaremnaaldeia.Os Wadzapari'wa comearamachegar,ento,vindosdomato.Nestepontodanarrativa,AdoTop'tiroapontavapara asmargensdaaldeiaAbelhinha,opostasaosemicrculodecasas,mostrandodeondeelesvinham, como se a aldeia de hoje fosse a aldeia antepassada. Os Wadzapari'wa chegaram pintados e enfeitadoscomoosA'uwXavante,sentandosenoptiodaaldeiaemsemicrculoopostoao semicrculodoshomensa'uwxavante,quesesentavamseguindoaordemdesuascasas,demodo que,congregados,osdoisgruposformavamumgrandecrculonowar.(Notesequeestaformao sereplicaemoutrosmomentosrituaisa'uwxavantes,comonasdanasdosdanhohui'wacomos adolescentes:ogrupodospatrocinadosformandoumarcoquesecompletaemrodacomoarcodo grupo dos patrocinadores. Os Wadzapari'wa eram bem maiores que os a'uw, como os danhohui'wa so maiores que os wapt, eu diria). Ento, no momento do encontro circular e pacfico dos Wadzapari'wa comos a'uw,cadahomem a'uw selevantoue pegou pelobrao mrami umhomem wadzapari'wa eoconduziuparasuaresidncia.(Devonotarnovamenteque estemovimentodepegarpelobraoomesmoquefazemosdatsimiwainhadolescentescomos danhohui'wa queescolhemparaseus tsimiwainh,ouquefazemosamigosformalizadosmais velhos,nestecasoaoescolheremosseusnovos'am).Podesecrer,contudo,queesteshomens queescolheramcadaqualumWadzapari'waparalevarparasuascasasefamiliarizaremsecomeles tornavamseseusdonos,datede'wa:humrelatodeJernimoquefalaarespeitodeumescravo tsa're'waqueajudouseudononumaguerracontraosTsi'retede'wa(GiaccariaeHeide1975a),relato semelhantecontinuaodahistriaqueVitrioeAdomecontavam.Entretanto,antesquetal guerradespontasse,todosos Wadzapari'wa menosumdeixaramaaldeia,porque,comono precisavamdormirnoite,tiveramachancedeescapardeseuscaptoresque,cansados,pegavamno sono. Somente um deles escolheu ficar, aquele que se tornaria av da famlia de Vitrio. Infelizmente,estesuperhumanomorreriasemdeixarfilhos,vtimadeumfeitio.Aindaassim,a famliapassouasernetaedonadosTsa're'wa,Tsa're'watede'wa. Vseque,apesardepacfico,estecontatoenvolveuumtipodepredaoqueimpunhauma certa agresso contra a liberdade dos Wadzapari'wa, capturandoos e tornandoos cativos, danhimidzama.Senofosseassim,noserianecessriaavigilncianoturnaparaquenofugissem vigilnciaquenotevecomovencerospoderesdevigliadosWadzapari'wa.Somenteumdeles aceitouestaporassimdizeragresso,aceitoupacificamenteserpredado,entregouseaseu dono: aquele dono que teria sido o primeiro a tomar iniciativa do contato. Tornouse, assim, parente:av. 306
* tentadora a analogia entre os Wadzapari'wa e os danhohui'wa: ambos so, para seus pupilos,preceptoresdatradioa'uwxavante.Suasuperioridadehierrquica,contudo,noimpede deserem,dealgummodo,predadosporaquelesqueaprendemcomeles:essestomamnospelo brao,exigindodelesumaentregapessoal. Estemovimentodepredaotambmsemelhantecapturadeoutrosdanhimidzama,como eu, que devem se entregar voluntariamente a ela. Devem optar por servir voluntariamente aos a'uw.Umaservidovoluntriaquemeparece,contudo,diversadaquelaapresentadaporLaBotie numquesitoimportante:apotencialinversohierrquica.Aquiatuamaqueleselementosdaentre corporalidadequeacrescentamhierarquiaumadosedemutualidadeereciprocidadee,inseridona famlia,estecativotornasenoummeroparente,masumparentesuperior:umav.Existenosa familiarizaocomotambminversesdepoderes,jqueoWadzapari'wacapturadoeramuitomais forteemaisvigilantequeseussenhores,sendocapazdelutarsozinhoumaguerracontraos Tsi'retede'wa,comocontaJernimoecomodiriaVitrio:comooRambo,personagemhericode filmesdeaomilitares.Umsuperheri,porassimdizer,que,mesmotendofalecido,garantiria umarelaopacficaentreosTsa're'watede'waeosWadzapari'wa:estesmuitomaispoderososque aqueles,estesquesoimitadosemseusritosesaberes,contagiandoosA'uwXavante. * Pensoqueesteelementodeinversohierrquicasejaatuanteemdiversasformasderelao entrepessoasepessoasmoraispresentesnomododevidaa'uwxavante.Comonasrelaesentre cls,porexemplo,comojargumentado.Ou,paradarumexemplodosmaisfamiliares,narelao entre irmos,quandoomaisnovoserveomaisvelhoeacolhidoporeste,inclusivepodendo servirsedesuaesposa.umaespciedetomaldcou,parafalaremtermosmaisrigorosos, umvnculoemqueambososinteratorestmtantoaliberdadedeparticiparquantoaobrigaode dar,receber eretribuir:daprpriaoperaodaddivaedeseusparadoxosconstitutivos, em termos maussianos, que se trata este jogo de hierarquizaes recprocas e instavelmente desequilibradas.245
245Sobreesteparadoxo,remetasediscussoarespeitodaddivaemtrabalhoanterior(Falleiros2005),sobretudoa partirdacomparaoentreosargumentosdeautorescomoFranaFilho(2001)eMarcosLanna(2001).FranaFilho apresentaaretomadadeumateoriadaddivapelogrupodeLaRevueduMAUSSapontandoseucarterdualoumesmo paradoxal:addivaseriaonexoentreinteresseedesinteresse,obrigaoeliberdade.Nessesentido,afirmaoporsea certavisounilateraldaddivaqueareduzaumsuporteparaumaculturapolticadomandonismo(FranaFilho 2001:1).Entretanto,nosedeveobliterarasrelaesdepoderenvolvidasnodomse,comodiriaMauss,odoador,
307
Eaindaquenohajasempreumainverso,aquelesqueservemhojeseroservidosamanh comopassardotempoedaidade,tornandoseadultos,pais,sogros,avsevelhos. AfiguraqueosA'uwXavantenosoferecemparaacompreensodestacadeiapredatria menosapirmidetradicionalarquiteturadashierarquiasdepodertraadaspelosensocomum euroamericanodoqueocrculo.Crculoquesemanifestademaneiramaisordeiranono parentesco,masnoparaparentesco,narelaoentreasclassesdeidade,queformamentresium aneldetrocageneralizadapeloqualcirculaaCasadosAdolescentesprojetadonotempo, havendooretornodopassadoaopresente.Talcircuitoimaginvelconformeogrficoabaixo (antihorrio,noqualasclassesdeidadedemetadesagmicasantagnicassoapresentadascomo crculosbrancosepretosalternados,cujassiglasnelesinseridasremetemsiniciaisdasclasses246):
Estecrculotemporaldasclassesdeidadenodeveserconfundidocomafiguraaseguir,a
atravsdaddiva,tempodersobreobeneficirio(Mauss2003:198),sugerindoumasuperioridadepolticaemoral implcitanoatodedar,ligadatambmaoatode tomarainiciativa (Lanna2001:10).Aconteceque,naeconomia simblicadapredaoa'uwxavante, ainiciativaencontrasemuitasvezesnasmosdotomador,dopredador.De modoqueeuarriscariasugerirqueapredaotemumelementodecontrapoder.LeveseemcontaacrticadeLanna (2005)noodeausnciadereciprocidadedachefiaamerndiadeClastres,nosentidodequeddivasunidirecionais podem envolvercontraddivas tambm unidirecionaisisto ,notantoumatrocaquantofluxosdeddivasem direesopostasquenosecancelamreciprocamente,gerandodvidadosdoislados(umendadivamentorecproco,eu arriscaria).Poroutrolado,seoEstado,comopropeLanna,endividadoe,portanto,dadivoso,apredaoparece constituirummovimentocontraoEstado.SenohEstadopropriamenteinstitucionalizado,havendoumaregiodo poderdeondefluemddivas(Lanna2005),podesevernapredaoumaatitudedeinversoecapturadestepoder daddiva. 246Nodz'u(domilho),Abare'u(dopequi),tpa(pedrachata),Tirwa(tipodeflecha),Htr(tipodepeixe), Ai'rere(tipodearbusto),Tsada'ro(raiodesol)eAnorowa(estrume).EstaseqnciaadosXavanteOcidentais, cujadiferenaemrelaodosXavanteOrientais(MayburyLewis1984[1967])sertratadanoprximocaptulo.
308
rodaformadapeloencontroentredoisanisdecorpospessoaissingulares:
OaneldosgrandesWadzapari'waedos(comparativamente)notograndesa'uw ouo semicrculodosdanhohui'waque,maiores,patrocinamoswapt.Noentanto,nessasrodastambm manifestamse,entreseusarcosopostos,inverseshierrquicas:osmenorescapturamosmaiores, pegandoos pelo brao, seja ao se adonarem dos Tsa're'wa, seja ao tomarem seus padrinhos especialmenteescolhidosporeles(adolescentes)comodatsimiwainh. Participardessasinverses,numpndulopessoalentreacondiodepredadoreacondio depresa,parecesermaisumelementoconstitutivodagentificaoa'uwxavante. *** A'uwuptabi O nome A'uw Uptabi foi traduzido por Giaccaria e Heide (1972) como povo autntico.Nessesentido,referiamseaumaespciedeetnnimoa'uwxavante,demodoaincluir todaumapopulaoquecomumentechamadapelosWaradzudeXavanteequeassimtambm costumaseautodenominaremsuasrelaescomos Waradzu ecomoutrospovosindgenas, balizadas,contudo,porsuasrelaescomasociedadeenvolventewaradzu,queconstituiulesum novocampodeaopolticaindigenistaapartirdoqualospovosindgenassovistosapartirde umasemelhanapolticojurdica.Masjsepodeadiantarqueemsuarelaocomoutrospovosda perspectivadashistriasdeantigamenteque,comovistocomLopes daSilva(1984:2023), englobam tanto o passado histrico (cruzado com o histrico oficial do contato com a sociedadeenvolvente,emesmoanterioraocontatopacfico)quantoopassadomtico,os A'uwXavantesehterodenominavamWaradzu'Riprre,Waradzudacabeaavermelhada,uma 309
refernciaasuaspinturasdistintivas.ConformemediriamosprpriosA'uwXavante,istoseria uma referncia ao modo como as outras gentes os veriam: como estrangeiros da cabea avermelhada. ValeressaltarqueoetnnimoXavantetemumaorigemcolonialremota(Ravagnani1978), quandoabrangiaumasrieimprecisadepovos.SegundoMayburyLewis,onomeXavanteera aplicadoindiscriminadamenteadiversastribosdocerrado,eacabourestritoatrsgrupos,osOti Xavante(localizadosemSP),osOfai(Opai)Xavante(localizadosnoMS)eosAkuenXavante. Entretanto,aalcunhaAkuenaplicadaaosXavanteumtermoqueindicatantoosXerentequanto osXavante,sendooriginriodoXerente,parasereferirsualnguaecomoautodenominao O correspondente Xavante [...] A'uw (MayburyLewis 1984: 40). Tendo isso em vista, evitandoconfusesterminolgicas,opteipelousodotermoA'uwXavantenestapesquisa. OsprpriosA'uwXavante,aindaqueseautodenominemXavante,costumamreferirseasi mesmos como A'uw ou A'uw Uptabi. A'uw, como indicado, tem na idia de gente sua traduomaisaproximada,demodoque a'uw uptabi queiradizeralgocomogentemesmo, gente propriamentedita.Aopopelafaltaoupeloacrscimodoqualificativo uptabi, como apresentoadiante,podeserrelativaisto,relacional,dependentodequemointerlocutoroua alteridadedereferncia.Demodoquepodeenglobar,deacordocomasituaoeaenunciao, outrospovosindgenaseatmesmoosWaradzu,comonasjcitadashistriasdeSerebureoutros narradoresa'uwxavante(1998),quandoreconhecemsurpresosqueWaradzugentetambm. Opontoderefernciaparaotornarsegente,humano,podesersituadonosprpriosA'uw Xavante como sujeitos. Mas com um porm: este ponto de referncia to instvel quanto a condiodesujeitoencontrasesempreemdevir,emviraser,emvirar. Portanto,falaremautenticidade,empovoautntico,spodeserconsideradovlidose sua autenticidade, como j dito anteriormente, levar em conta sua prpria heterogeneidade, orientadapelacapturadepoderescujaorigemestsemprealmdesimesmos. * DavidMayburyLewis(1984[1967])jteriaapontadoparaaheterogeneidadenadiferena entreXavanteOcidentaiseXavanteOrientais.Almdasvariaesdialetais,haveria,comoj sugerido, uma suposta mudana na regra exogmica sobre a qual acredito j ter dado apontamentossuficientesnocaptuloanterior,arespeitodastransformaesnasrelaesentreos cls e o terceiro includo entredois. H ainda na distino entre Orientais e Ocidentais a referncia a uma explcita alterao na ordem de algumas classes de idade em seu esquema 310
circulardesucesso,massemalteraracomposiodasmetadesagmicasformadasporelas.Essa diferenanotvelrealadanocaptuloseguintecomoefeitodanecessriainstabilidadenaordeme recusadaunificaodocorpopoltico,manifestaemumdosaspectosmaisordeirosdaorganizao a'uwxavante,asclassesdeidade. Emtermosmaisoumenosgeogrficos,AracyLopesdaSilvadistinguiu,comotambmj foi sugerido, trs grupos a'uwxavantes. O mais tradicional (terras de Arees e Pimentel Barbosa)associadoaimportantespontosdeorigemetravessiadoentrerioscentrobrasileiro,de modo que a proximidade da origem geogrfica tambm os torna mais prximos da origem tradicional , o dos crentes (na rea de Parabubure e na do rio Couto Magalhes) e o dos catlicos(terrasdeSoMarcos,SangradouroetambmParabubure).Taldivisogeogrficafoi baseada no percurso histrico de contato dos AuwXavante com o Estado brasileiro e com missionriosreligiosos(LopesdaSilva1986:p.3544). Outros pesquisadores teriam identificado uma separao populacional entre trs subgrupos:Auw aptseniwimh,Auw mariwatsdee Auw nortsu'r(adaptoagrafiados autoresusadaaolongodatese).Cadasubgruposendodefinidocomoumconjuntodefamlias [que]historicamentemantiveramalianaspolticasecelebraramcasamentosentresi(Leeuwenberg e Salimon 1999:23).Emcampopude notarqueestessubgruposreferemseacaractersticas geogrficas,respectivamente,dasregiesdePimentelBarbosa,Mariwatsde(quesetraduzpor selva ruim) e Parabubure (mais precisamente aldeia de Couto Magalhes, chamada de Nortsu'r,termoparacocodebabau,provvelrefernciaexistnciadestefrutonaregio), maspoderiamser maisdetrs,conformeoinformante.Suaseparaonopassadopodetertido algumainfluncianadistinoentreOcidentaiseOrientaispropostaporMayburyLewis(creio haverumaproximidadeentreoqueseriamosaptseniwimheoqueseriamosOrientais),masas migraesinteraldestmsidointensas(Vianna,2001:105)eaindahojeseconfirmam.Alguns informantesdizemhavercaractersticasdistintivasentretaissubgrupos,outrosdizemquejest tudo misturado. Tseredzar uma vez me disse que, antigamente, quando esses subgrupos se encontravam,eramcomovarasdeporcosdomato:guerreavamentresi.Mashojeissoteriamudado muitocomasintermigraes.Aindaassim,possvelencontrarnaAldeiaBelm,porexemplo, quem diga que aquela terra indgena no pertence a eles, que seriam majoritariamente a'uw mariwatsde,esimaos a'uw dePimentel.Portanto,essesqualificativos,almdeapontarpara umafragmentaoguerreiracontraestatal,tambmsugeremhierarquizaes(donosenodonosda terra)quepodemestarassociadassgraduaesentreosplosa'uwea'uwuptabi. 311
Poisoutroelementoapareceparacomporatensoentreunidadeefragmentao.Sabese queosignificadodotermo auw podeserodegenteque,adjetivadocomoenftico uptabi levariaumaidiadegenteverdadeira,gentemesmo.Masexatamenteaesterespeitonotamse discordnciassobrealegitimidadedousodoajetivouptabientreosauw. * A'uwuptabiapareceumecomoumanooquepodeternomnimodoissentidosdiversos, conformequemenuncia.Amaioriadosa'uwxavantecomquemconverseinasaldeiasemque circuleidisserammequea'uwuptabiopovoXavantecomoumtodo,diferentedeoutrospovos indgenas(quetambmseriama'uw).Nessesentido,a'uwuptabiseriamtantoaquelesquedefato seguemastradiesdosantepassadosquantoaquelesquenosedeixamperdernomododevida nondio, waradzu. A nfase na relao com os antepassados vai ao encontro do que disse Grahamaomostrar comoolderWarodieoutroshabitantesdesuaaldeiaemPimentelBarbosa atualizaram ritualmente um sonho mtico afim de identificaremse com a verdadeira gente, herdeiradosancestrais(Graham,2003[1995]). Emoutrotrabalho,Graham(2005:629)complementaestaafirmao,conectandoocarter a'uwxavantemanutenodesuaculturaoumododevidadahimanadzemreferncia ritualaoprincpiodavidaa'uwxavante.Almdosrituais,algunsmarcadoresdestadiferena, prossegueaautora,expressamseempinturas,cortesdecabeloetc.Isto,tcnicasdetransformao do corpo que fazem referncia origem, que levam comunidades rivais a reclamarem sua originalidadeemrelaoaoutras.Ou,parafalarnostermosdeMayburyLewis(1984[1967]), facesrivaispoderiamexpressarsuaprimeiridadeemrelaoaoutrasapartirdessasprticas. Aindaassim,estarivalidade,ouestaexpressodesuperioridade,podedividirosprprios A'uwXavante atravs de outro mecanismo. Um mecanismo que trata, a meu ver, de uma reivindicaodapartedotodo,atravsdeumenglobamentohierrquico.Afinal,comojindicado, alguns A'uwXavante consideramse a'uw uptabi a partir de certos princpios que lhes so peculiares. * NaterraindgenadeSangradouromedisseramquea'uwuptabinoeraumadenominao genricadetodososA'uwXavanteesimumacaractersticaoriginaldedeterminadas linhagens quepossuiriamumagrandecapacidadedepacificaoeadoodepessoasdesgarradasdesuas famlias,fossemvirtuosas(generosas,respeitadoras)enofizessembruxaria.Istosemprefoimuito enfatizadopormeu irmomaisvelho Hiprdie famlia,incluindoparentesseusporafinidade. 312
Vitrio,seu cunhado (tsa'omo)dissemequesvezes,porinveja,outrosA'uwXavantefazem guerraaosa'uwuptabie,reagindo,osa'uwuptabiprocurameliminaraquelesquenooso,mas nuncaconseguem,eestesa'uwproliferamsenovamente. Noemtodolugarqueseencontrama'uwuptabi.SegundoTseredzar,sobrinhodeHipa, porexemplo,nemtodasaspessoasquevisitamosjuntosemnossaviagempordiversasaldeiase terrasindgenasa'uwxavanteseram,defato,a'uwuptabi.Encontraraalgunsparentesquepodia dizer serem mesmo a'uw uptabi, dado o conhecimento que Tseredzar tinha a respeito da decendnciadaqueleesuasconexesgenealgicas,masnopodiadizeromesmoarespeitode quem no conhecia as histrias familiares. Pois a expresso da originalidade se d atravs do traadodoparentescoemdireoaorigem. NaaldeiaAbelhinha,osvelhosAdoTop'tiroeseu irmomaisvelho Duts,quevierada terraindgenadeParabubureemvisita,reiteraramquenoeraapenaslqueseencontravamos a'uw uptabi,mas emoutroslugares,comoParabubure,porexemplo...Almdoespalhamento geogrficorestritoedadelimitaodalinhagem,osa'uwuptabitambmseencontramentreseus afins.Vitrio,genrodeTop'tiro,seriaa'uw utpabicomoumdeles,porpertenceraumadasduas famlias quesecasamentresi desdeaorigem 247 . SegundoVitrio,comquemtivevriasconversasarespeito, tornarse a'uw uptabi um processolongo:vemdaorigem.Noseucasoespecfico,umaorigemligadaregiodePimentel Barbosa(dosa'uw aptseniwimh),deondeteriamvindoseus bisavs.Oquenoimpedeque, nestecaso,seusogro,AdoTop'tiro,sejaumenfticoa'uwuptabi,aindaqueosantepassadosdele sejamassociadosaParabubure(eaos a'uw nortsu'r)onde,segundotambmovelhoDuts, viveriammuitosa'uwuptabi. Notese,noentanto,queoargumentodestesa'uw uptabiligeiramentediferentedaquele queouvideoutraspessoas:segundoelas,osmoradoresdestaoudaquelaterraindgenaa'uw xavante seriam a'uw uptabi no por pertencerem a linhagens especficas mas sim por no abandonaremomododevidaa'uwxavanteemdireoaomododevidawaradzu.EmBelm,por exemplo, muitas pessoas diziam isto em defesa dos moradores de Pimentel Barbosa, Arees e Mariwatsde:seriampersistentesemrelaostradiesa'uwxavantes.Aodizerisso,pareciam suporqueoutrosA'uwXavanteteriamcedidodemaisaomododevidawaradzu.
247 Talvezestacaractersticafortementeendogmica,aindaquesobagidedaexogamiademetades,tenhagerado algunsdoscasamentosanormais,incomunsourarosidentificadosporVianna(2001:117),comoatrocade irms,entrehabitantesdaaldeiaAbelhinhaoupessoasligadasaestaaldeia,secomparadosaosdemaiscasamentosde Sangradouronosdadoscoletadospeloautor.
313
Seriataldivergnciadediscursosapenasumaquestodenfaseempartesquesesomamno mesmotipodeargumentoou,comoemoutroscasos,seriamtomadasdeperspectivasdiversasem relaomesmaestruturarelacional,umaenfatizandoseuaspectoprescritivoeaoutraseuaspecto performativo? Talveznosejaumaquestodeoptarpeloprescritivooupeloperformativo,massimuma questoarespeitodequalprincpioenglobaqualsegundocadaperspectiva. Naperspectivadosa'uwuptabiespeciais,prescritaarelaodalinhagemcomaorigem, masaindaassimpodeseentrarparauma linhagema'uw uptabi atravsdaadoo:ouseja,o elemento prescritivo engloba o performativo, mas no o elimina. O indicativo disto est na caractersticafundamentaldospartidriosdestanoosuplementarde a'uw uptabi:seucostume maiordepegar(mrami)eacolherestranhos,familiarizandoos.Pois,naquelapalestraqueouvide AdoTop'tiroeDuts,comaajudadeumintrprete,disserammequeeu,agora,era a'uwuptabi comoeles,conformeestesmesmosprincpios,afinal,eutinhaentradoparaafamliadeles.Ouseja, arelaocomaorigem,nestecaso,performativa,masdependedeumaadesoaumcaminho genealgicoprescrito:aoentrarparasuacadeiaalimentardefiliaoeaparentamento,adquiri umarelaoprivilegiadacomaorigem.Tamanhoprivilgiofazcomquesedemandemdemim grandesresponsabilidades. Esteenglobamentonoquerdizerqueaquelespreceitoselencadosnocaptuloanteriora cerca dos rituais narrativos de aparentamento no operem a. Retomese sua caracterstica: as distncias verticais, por assim dizer, entre as pessoas numa cadeia de filiao, sofrem encurtamentossemelhantesaoprocessodeaparentamentohorizontal(entreprimosquesetornam irmos,porexemplo).Talenglobamentoquerdizersomenteque,aosolhosdestes a'uw uptabi, nemtodososA'uwXavantepodemestabelecerumarelaopropriamentedita(uptabi)coma origematravsdareiteraodesuaprpriaheranalinhageiraeoutrosrituaisetcnicascorporaise que, para teremumarelaocomtalorigem,precisamseaproximardaquelesquejtm uma relaoprivilegiadacomela.Depreferncia,seremadotadosporestes.Istonoquerdizer,perceba se,que paraeles osdemaisnosejamcapazesdeestabelecerrelaocomaorigem,massim, imagino,quenosejamcapazesdeestabelecerumarelaopropriamenteditacomaorigem:uma questo denfaseegrauemrelao posiodesujeito(Viveiros deCastro1996)de uma perspectiva. Estes a'uw uptabi especiais reconhecem sua distino em relao aos outros A'uw Xavante como uma distino decididamente hierrquica. Alm de afirmarem que, antigamente, 314
todos os chefes eram a'uw uptabi,dizemqueconstituemsecomoum escalo ouuma classe superior.CertamentenonosentidodeclassesocialcomoconcebemassociologiasdeMarx, DurkheimouMaxWeber.Afinal,suasuperioridadeestcondicionadaporsuacapacidadeestendida tanto de capturar pegar e acolher quanto de pacificar, no que operam mecanismos de generosidadejabordados comoaquelesdo 'Wamartede'wa emsuma,umacapacidadede magnificarse. * Antes de explicitar a questo da classe ou escalo superior, algumas palavras sobre o 'Wamartede'wa. Este o cargo ritual ao qual essas famlias a'uw uptabi associamse: o do responsvelporpacificaraaldeiaemcasodeguerracivil. Na aldeiaBelm,conversandocomumoficiantedocargo 'Wamartede'wa ehomem de prestgio na aldeia,noobtivenenhumainformaoarespeitodanoosuplementarde a'uw uptabi defatoelepareceuintrigadoquandolhepergunteise a'uw uptabi teriaalgumsentido diversodepovoXavante.Ele,assimcomooutrosnaaldeia,quandopedilhemaisdetalhes,afirmou que a'uw uptabi aquelequerealmenteviveoscostumesoriginaisa'uwxavante,masnofez nenhumamenoaumaparcelaespecialdepessoas. Aindaassim,estecargotidoporaquelesquedefendemumacategoriasuperiordea'uw uptabicomomarcadesuacaractersticaoriginal. Nesse sentido, o contgio em relao ao cargo pode ocorrer, por sua vez, atravs do aparentamentoporafinidade:segundooquemeexplicouAdoTop'tirosobresua tsarina'rada (cadeiaalimentardeaparentamentoedescendncia),elaseriadosPahri'watede'waeafamliade seusafinsadeVitrioseria'Wamartede'wa.Aindaassim,aproveitandoestratgiasdecognao conjugadas possibilidadedetransfernciadeprerrogativas entrelinhagens(PoloMller1976, LopesdaSilva1986[1980]),algunsdescendentesdeTop'tiropodemconsierarse'Wamartede'wa. Percebeseque,portanto,entreessesa'uw uptabi,queopoderdoaparentamentoporcognao reforado.Eudiriaquereforadoporumaidiadeorigemcomum. * J a idia de que existem escales diferenciando os A'uwXavante foi expressa por Bernardina'Rnher (2010:42)arespeitodasfunesdo 'Wamartede'wa,odomdebolospara aplacarochorodoselutados:quatrodiasapsofalecimentodepessoaidosaouimportante,um bolograndepreparadoprpessoaindicadapormembrosdoprimeiroescalodaaldeia. Vitrio,porsuavez,afirmaqueosa'uwuptabisocomogentedeprimeiraclasse.Tem 315
asegundaclasse,aterceiraeaquartaestaltimaseriaadosquesquerembrigarafazer bruxaria.Nomeinformou,contudo,quaisseriamas classes intermedirias.Dequalquerforma, Vitrio manifestou que o uso deste vocabulrio era dito para mim, servia para que eu os compreendesseapartirdetermosqueelesabeseremwaradzu(comoaidiadeclasse),nouma tipologia propriamente a'uwxavante ainda que a maneira de se expressar repercuta, por exemplo,aformulaoa'uwxavantedestacadanocaptuloanteriorsobre primos deterceiroe quarto graus: existe uma coextenso entre estas operaes e as aproximaes do parentesco certamenteestorelacionadasaotornarsea'uwuptabi. Poroutrolado,VitrioreconhecequeosdemaisA'uwXavantenoadmitemquenoso a'uwuptabi.Segundoele,elessebaseiamemapenasumdossentidosdaexpressoque,paraele, tambmcorreto,masnodiztudo:a'uwuptabiopovoXavanteemcontrastecomoutrospovos. Elecompletadizendoqueestesentidodaexpressonovaleriasomenteparaosprprios A'uwXavante,masparatodoequalquera'uw aimwi:cadapovoconsiderase a'uw uptabi gente propriamente em relao aos outros povos, tratandoos como a'uw aimwi. Kayap, Karaj,Nambiquara,Bororo,Guaranietc.,disseme,cadaumconsideraasicomogentemesmoe osdemaiscomooutrasgentes.Afirmaoquemostraumantidaconscinciaperspectivista,todavia estendidasomenteparaaquelasentidadesatualizadasenquanto a'uw.Oquetendeaexcluir,por exemplo,acorporalidadehumanidedosmacacosassassinos(incapazesdedialogar),osces(com suaimoralidade,suadesorganizao,seusplos),aona(comseuegosmoeferocidade),deixando numamargemduvidosaosWaradzu(podematsergente,masocupamumaperigosaposiosobre aparagemdoplenopoder). bomnotar,ainda,queofatodeoutras lihagens A'uwXavantenoterem,aosolhos destesa'uw uptabi,umarelaodeaparentamentopropriamenteditocomaorigem,noostorna a'uwaimawi.Hiprdinegouquandopergunteilheseaquelesquenosoa'uwuptabiteriamse originadoapartirdeoutrospovos. Reforcese que a superioridade destas linhagens especiais no admitida pelos demais A'uwXavante.Osa'uwuptabiespeciaisdizem,contudo,queosoutrossabemdisso.Vitriome disse que mulheres que no so podem querer ter filhos com os a'uw uptabi, apesar destes evitaremsecasarcomquemnoa'uw uptabi.Omaridodeumamulherquetemrelaescom a'uwuptabipodequererdarcabodofilhodessauniosexual,masopaioacolhe,nodeixaque elemorra.Estefilhosecasa,ento,comumamulhera'uwuptabieassimsegueseoprocesso.Nas famliasa'uwuptabitambmpodemexistirirmosbriguentos,porexemplo,decinco,trsso 316
briguentos,masdepraxeosa'uwuptabisoosquebuscamapaz,nofazemfofocaetc. Tais percalos no impedem esses que se afirmam a'uw uptabi de colocarem em movimento seu impulso magnificante. Acredito que a prpria Associao War em seu movimentodecirculaopordiversasterrasindgenasealdeias,suasvriasalianaspolticas,suas propostasmacrocosmopolticasesuacapacidadedeentraremcontatocomestrangeirosemesmo acolherantroplogos(comoeu)estejaexercendoestepapeldea'uw uptabi,comoumapessoa moralmagnificada.Assimcomoochefeamerndioclastreano,contudo,seusmembrosestosempre sendocobradosesvezesacusadosdeumaproximidademuitointensacomosWaradzu.Demodo queestecaso,tratadocomodeextremagentificaoecomograumximodeautenticidade a'uw uptabi exatamente aquele em que as relaes exteriores se fazem mais presentes com sua , , capacidadedecapturareacolheresuaforteproximidadecomestranhosque,poroutrolado,lhe trazemoperigodocontgiopelaalteridadeextrema. * Recapitulando,umadasformulaes danoode a'uw uptabi soacomoummarcador distintivo (ns, os Xavante), que pode ser perdido por quem no tem a conduta correta ou se aproxima demais dos Waradzu; outra soa como uma maneira de distinguir os a'uwxavante especiais(generososehospitaleirospredadores,emcontatointensocomoestrangeiro...)dentreos outros.Humadisputapeloacessolegtimoaopoderquesetravanaatualizaodaorigem,masde doismodosdiversos.Umconflitoentreainsubmissodeunseasuperioridadedeoutros. QuestosemelhantefoiabordadaporCoelhodeSouzaparaosJ(2001,2002),sugerindoa diferenaentrehumanosehumanosdeverdadecomocompreensvelapartirdoenglobamento hierrquicodocontrrio. Havendoumcontrastehierrquicoenglobanteapartirdeumacategoriadeexclusividade comoadea'uw uptabi,anoodeenglobamentodocontrrio,nestecaso,fariasentidodentro dapropostalvistraussiana(1975[1958]))comoatransformaodeumaoposiodiametralnuma oposioconcntrica.Dessemodo,umadiferenadecadapartearespeitodarelaocomaorigem estariamisturadaaumadiferenainclusivaedeescalaquepoderiaserassociadanoodepessoa magnificada como repensada por Sztutman (2005) e Fausto (2008). Os a'uw uptabi especiais seriamumaespciededonosmximosdacapacidadedegentificao.Esteestadodecoisas,ou melhor,depessoascommaisacessoaopoder,devidoasuarelaoespecialcomaorigem,podeser comparado com a remisso feita por Fausto (2008) quele momento caracterstico de certas ontologias amerndias no qual ocorre a inflexo entre o mundo mtico das transformaes 317
descontroladas que precedem diferenciaes definitivas (mas no irreversveis) do mundo ps mtico, momento aludido por LviStrauss (1988) e Viveiros de Castro (2006). Fausto tambm associasrelaescomaorigemecomamagnificaoopoderdeadoo,queestclaramente presente na definio especial de a'uw uptabi. O adotado , de certo modo, um contrrio englobado.Masenglobadoapartirdeumaefetivaencorporao,umaparticipaosubstancialou, melhor, parescencial (para retomarmos a idia de Maia Andrade 2007) e no por laos enfraquecidosousociais248. Isso posto, retornemos noo mais elementar de gente, a'uw. possvel dizer que, dependendo da relao e do momento, um waradzu (estrangeiro, branco) como eu pode ser tratadocomo a'uw (ou a'uw uptabi numsentidomaislato)desdequecapturadoecontagiado pelosmodos a'uw:sermembrodeumaclassedeidade(tpa,nomeucaso),participardos rituais,entraremrelaesdeapadrinhamentoeamizadeformalizada,seradotadoporumafamlia a'uwxavante,fazendopartedesuametadeexogmica(Poredza'ono)etc.Eassim,sertambm chamadodea'uwemesmodea'uwuptabi. *** Paraumperspectivismoa'uwuptabi Conhecendoseessascaractersticasdahumanidadea'uwxavante,temseaimpressode queseviveumamaneiramuitopeculiardeperspectivismo. Mostrousequediversasformasdealteridadetmumarelaoincompletacomacapacidade deassumirumaperspectivaaindaqueseupoderpredatriomantenhasempreaameaaviva. Todassodotadasdeumaculturadahimanadzdiferente,caractersticadecadaespcie,de cadacorporalidadeespecfica,oquecolocaaculturaemidentidadecomohabitus,osaberfazere astcnicasdocorpo:cadaespcietemsuaculturaparticular,oquenoastornapropriamente humanas a'uw provavelmentenemparasimesmas,dadoquenosesabesevemmundos diferentesapartirdeumamesmavisodemundo.Sopotencialmentehumanasemsuarelao comopassado,comaorigem,apartirdaqualperderamsuahumanidade. Estapodevoltarase
248 LevoemcontaaapreciaocrticafeitaporCoelhodeSouzaarespeitodascontribuiesdeDaMattasobreo englobamentodocontrrioatravsdoparentescoapartirdeumesforoquevemsendofeitonaetnologiaamericanista nosentidodareconceitualizaodarelaoentreosidiomasculturaisdaconexofsicaedasubstnciapartilhada[] umareconceitualizaoquenoreduzessarelaoaummeroavatardodualismoentresubstncia(identidade)dadae relao(diferena)construda(CoelhodeSouza2004:43).
318
expressar,contudo,peladacapturademanifestaesdeseus dahibauptabi porpartedo dahiba uptabi dos a'uw .Assimpodem,predadas,compartilhardaperspectivadesujeito .Esteprocesso tambmseefetivano dahiba pelaadooepelacapacidadedoadotadoemmimetizaro a'uw dahimanadz,agindocomecomoosA'uwXavante,oquedemandaumaentregadesi.249 Contudofeitoestecortenarededavida,docontgioedoaparentamentopreceitosdo perspectivismoamerndioparecematuarnumcrculoespecficoderelaes:aquelequeenvolve a'uw uptabi e a'uw, levandoseemconsideraoanooespecialde a'uw uptabi:todosos humanos(eentendasesemprehumanoscomoinstveiseincompletos)vemasimesmoscomo humanospropriamenteditoseaosoutroshumanoscomoumahumanidademenor.Entretanto, h umaespciesuperiordehumanidadequedetmumacapacidademagnficadehumanizao.Uma capacidaderemetidapotnciapassadadaorigem,umapotnciaquealgumasentidadescomoos Wadzapari'wa detmemplenitude,situadosnoplodoalmhumano.Acapacidademagnficade humanizaoapartirdoenglobamento,contudo,sadmitidaporoutroshumanoscomrelutncia que,insubmissos,reforamacondiodiametraldotornarsehumano. * Quantoaolugardopoderedaorigem,algumasressalvasdevemserfeitas.Basicamente, deveseconsiderarqueopndulodasrelaesa'uwxavantesnooscilasempreemdireoaos mesmospontos,aindaqueessespontossejamexteriores.
249Assim,compactuoempartecomasconsideraesfeitasporTurner(2009),nosentidodequenecessriolevarem conta, em se tratando de habitus, sobretudo a partir da contribuio maussiana, tambm o aspecto cognitivo da corporalidade.IssomeparecemaisprximodasconcepesdosA'uwXavante,queequivalemohabitusculturaa partirdanoodedahimanadz.AssimcomoparaosKayapdeTurner(2009:29),paraosA'uwXavanteparece absurdaaidiadeummonoculturalismo,jqueconsideramquecadaespcietemumaculturaprpriamanifestaem suasformasexpressivasecomportamentais,bemcomoemsuacapacidadedeadquirirasexpressesecomportamentos dooutro.NotenhonotciadequeosA'uwXavantesuponhamqueoutasespciesconsideremse,emrelaos demais,comosefossemhumanas, a'uw,oucomosesuasprticasfossem,paraelas,asmesmasqueasdos a'uw, cadaqualapartirdaprpriaperspectiva.Inclusiveporque,paraosA'uwXavante,podemexistirdiversasculturas a'uw,indgenas.Poroutrolado,asdistinesquefazTurnerarespeitodecorpofsicoecorposocial(2009:30) meparecembastantedistantesdasidiasecorposa'uwxavantes,quenotraamessetipodedissociao.Seno animismoa'uwxavantetambmpossveldizerqueaformaencorporaaforaespiritualeaagnciadaentidade (2009:34)jqueestacorpomesmo,dahibauptabitodaviaaincapacidadedeespciesdiferidasdahumanaem controlaraperspectivadesujeitoestligadaaumadvidadosA'uwXavantearespeitodamanifestaoparaelas mesmas de seu dahiba uptabi, ainda que para os a'uw esses espritos corpos prprios dos outros entes manifestemsecomotal:comodiferentes.Asubjetividadepotencialdifereconformeoscorpos,masosa'uwparecem terumarelaoprivilegiadacomsuaefetividadepropriamentedita.
319
Nessesentido,arelaoentreantepassadoseestrangeirosumarelaoincompleta. Naperspectivadoscrculosconcntricos,encontramsenaparteexteriorenglobante(sese cosiderarcomoenglobantesuarelaoprivilegiadacomopoder).Todavia,apartirdeumaoutra figuratotalizante,comosefossemdoispontosdeumarcosemicircularquenoseencontram,de modoqueoacessodoestrangeiroaoantepassadodevessepercorrertodooarco,passandopelo a'uwdahimanadz.OsWadzapari'wa,porexemplo,noparecemsujeitosaestacondio,jque podemsetransformardiretamenteemoutroscorpos:tudosepassacomosepudessemsaltardeum pontoaoutro.Assim,seosWadzapari'wasodotadosdeplenapotnciatransformativaeoriginal dos antepassados, os Waradzu no so. Apesar de potentes, eles ocupam o plo inferior do semicrculododevir,noqualos Wadzapari'wasituamsenumplosuperior,pormdeslocado,j queelesmesmostiveramquesedeslocarparaquemantivessemopodertransformativooriginal250:
As figuras s quais tenho aludido: pndulos, crculos concntricos e diametrais, semicrculos, a garrafa de klein etc., ademais, devem ser consideradas, cada qual, como uma totalizaoparcial.Nenhumadelasexcluioutras,aindaqueintenteengloblas. * Enfim,emsetratandodasrelaesdeenglobamentodocontrrio,devesesugerirque,para
250 Dizerqueos Waradzu eos Wadzapari'wa sodiferentesemtermoscosmopolticos,apesardeapontaremparao mesmolimitepotencial,nosignificadizer,porexemplo,queumWaradzunopossaserconfundidocomumTsa're'wa, comofoiEstvoFernandes (2005:91)que,noprocessodetornase a'uw,foiperguntadosenoseriadefatoum Wadzapari'wa.Sobretudoporque,comosesabe,osTsa're'wa(Wadzapari'wa)podemassumirasmaisdiversasformas corpreas.reveladorodilogodeFernandescomumhomemA'uwXavantearespeitodisto.Ohomemafirmaque osTsa're'wasetransformamemoutroscomoseusassemalgumamscara,peruca,peledeona,peledealgumbicho obrancotambmfazisso,squeosbrancos nosabemdisso,somenteos Tsa're'wa (Fernandes 2005:90).Os Wadzapari'watm,portanto,umsabersobreessasmudanasdecorpo,pele,aparescncia.Umsaberfazerumsaber doprpriocorpo,dahibauptabiqueosbrancosnotm.Nessesentido,comoseobrancofossesemelhante ona,quetinhaofogomasnosabiafazlo.
320
ocasoa'uwxavante,nopareceaplicvelafrmulasegundoaqualaconsanginidadeenglobaa afinidadeprximamasenglobadapelaafinidadepotencialedistante251.Sobretudoemsetratando dasegundapartedafrmula. Afinal, as potentes entidades exteriores no so tratadas pelos A'uwXavante como se fossemafins.Certamentenodeixamdeterumarelaodeaparentamentopotencial(isto,sempre em devir, ainda que um devir passado) com os a'uw, mas este potencial parece encontrarse principalmente (no digoexclusivamente) em algum lugar entre aagnao, a germanidade e a cognao. Os Wadzapari'wa so tanto watsiwadi uma condio de germanidade potencial quantopodemsertratadoscomoum av (comoeraaona)da linhagem quesuadona,oque sugeretantoumafiliaodesegundograuquantoumacognao.JosWaradzu,senaorigemeram umparentedesregradoeabandonado,desgarradoeincestuoso(condioqueconfundedemaneira pejorativaaconsanginidadecomaafinidade),nocostumamserqualificadoscomoafinspelo discursoeprticaa'uwxavantes.Oprocessodeaproximao(capturaefamiliarizao)delessed pelaamizadeemesmopelafiliaoadotiva:aadoocondioparaquepossamserinseridosnas relaestantodeconsanginidadequantodeafinidade.Seaadooumaatualizao,entretantoo cativoaindacontmemsiumapotnciaindmitaeperigosa,principalmentequandodotadode mobilidadecomoeu:porissoqueosvelhosTop'tiroeDuts,emsualtimaconversacomigo, disseramqueeupodiaviajar,masqueeunofossemuitolonge...noquefossearriscadoeume transformaremumsupostogenrooucunhadooquenuncafoiexpressomassimplesmenteque eupoderiamedesgarrardahumanidade.Josraroscasamentosentrehomensa'uw emulheres waradzu sobretudoporpartedehomensinfluenteseatuantesnamacrocosmopolticaso exceo(Vianna2001:117)e,seindicamumaafinidadepotencial(justamenteporseremexceoe no prtica rotineiramente atualizvel)252 entre a'uw e waradzu, tambm no eliminam outras formaspotenciaisdeaparentamento.
**** 4Corporando
251Demodoqueretificoaaplicaodesavisadaquefizdafrmulaanteriormente(Falleiros2005),aindapoucoafetado pelosdadosdecampo. 252Almdofatodeque,quandoefetivado,ocasamentotornaseumaconsanginidade,comojfoidito,oqueno desmente,emparte,aprimeirapartedafrmula:adaconsanginizaodosafinsprximos.
321
Cabeagoratratardemaneiraresumidajquediversasrefernciasedadosaesterespeito foramapresentadosaolongodateseaquestodasclassesdeidade,comointuitodeexplanaro argumentodequeelasconsistiriam,paraosA'uwXavante,emumaexpressodeordem,trazida peloparaparentesco.Ordemdisciplinarquedevesercompreendidacomoumamaneiraldicade conteraguerra,controlandoosdesviosechoquesdoaparentamento,transformandoasdisputasem jogoserituais.Ordemqueumaexpressomximadaquelapartedotodoaquesechamoude sindoque.Certamenteumaordemque,dadoocaosealiberdadedequesealimentaamquina antientrpica a'uwxavante, tambm revela desequilbrios (Almeida 1999). Esse desequilbrio, umaespciederebeldiaperanteasexatidesmecnicaspropostaspelosistemacclico,quereluta contraaentropiadotempo,manifestaseexemplarmentenadiscrepnciaexistenteentreasclasses deidadedosXavanteOcidentaisemrelaoaosXavanteOrientais,comoapresentoaseguir, queteimaemtransformaremdualidadeaquiloqueseriaumatentativadetotalizaounitria.Esta variao num sistema programado para memorizar, utilizado como marcador mnemnico das travessiashistricasa'uwxavantesemdireoconstituiodeumaorigemcomumqualas travessiasdosriosAraguaiaedasMorteseareminiscnciadaaldeiadeTs'reprfazemreferncia (Paula2007)indicaque,mesmoa,emalgummomento,oesquecimentofezsenecessrioafimde potencializarosistemaembebendoonadiferena. Poroutrolado,asrelaesentreasclassesdeidadetambmparecemumaformadecontra podernosentidoemquetransformamainversodehierarquiasnumciclo,garantindoquetodasas classes tomem seus lugares inferiores e superiores na cadeia do paraparentesco. Elas tambm movemumarecusadoenglobamento,enfatizandoocarterdiametraldasrelaes. Chamarasrelaesentreclassesdeidadedemquinaantientrpicaporexcelnciaencontra paralelo,inclusive,emsuaoperaopropriamentemaquinalque,naspalavrasdeMayburyLewis, atuacomoumaengrenagem. Asclassesdeidade,almdisso,operamumamaneiradeaparentareencorporarquesuplanta asgradaeseasnebulosidadesfuzzydoparentesco,jqueconstituemgruposcomoconjuntos nosquaisaparticipaoinequvoca:ummembrodeumaclassenocostumasetornarmembrode outraporaproximaoeconvvioaocontrriodoquepodeocorrernasrelaesentrelinhagense naadoo , tantoporqueasregrasdeconvivnciasomaisrgidas,sobretudonapoca mais intensadeseusrituais(quevaidafasedoswaptfasedosdanhohui'wa)quantoporqueaadoo, aindaquesemanifesteaqui,umaespciedeparaadoo:osfilhinhosdeumaclassedeidadeso 322
osmembrosdeoutraclassedeidadequelhealterna.253 Asclassesdeidadeesuarelaointensacomossonhoseoscantos,poroutrolado,tambm cumprem papel importanteno sem prolde relaes (epredaes)pacficas internas, mas tambm das externas, como eixo de contato musical com os corpos propriamente ditos da alteridade.Aprpriarelaoentreinternoeexternoparecetornarsenubladaapartirdelas,no que seus cantos e danas circulares parecem constituir uma embocadura no limite sempre potencialentreodentroeoforadeumagarrafadeklein. *** Classesdeidadecomocorporaescorporais OsA'uwXavantedividemsenumsistemaagmicodeoitoclassesdeidade emquea participaofemininamnima254,eessasclassesseparamseemduasmetadesagmicas,formando duasengrenagensdequatrodentes.Asclassesdecadametadesosolidriasentresi,sobretudonas corridasdetora,eantagnicassdaoutrametade.Adiacroniaaparecenarelaoentreasclasses maisatuantes:adospatronosdosadolescentes(danhohui'wa),queduranteminhaestadiaemcampo eraados tpa;adosjovensrecminiciados('riti'wa), Abare'u;eadosadolescentes(wapt), Nodz'u.Aclassemaisvelhasolidriamaisnova(queapadrinhadaporaquela)eaclasse intermedirialhesadversria.Cadaclasseatualizase(conformeaordemcircularprdefinida) quando suas insgnias (tpa, Abare'u, Nodz'u etc.) encorporamse num novo grupo de adolescentesnoH,acasadossolteiros. O H circulaentreas oitoclasses comonumsistemadetrocageneralizadaprojetado diacronicamente,alternandoseentreasmetadesagmicasopostas. Cada grupo teriaumaexistnciaprviainiciaodosjovens:os grupos costumamser
253Noignoroqueoutrocomplexoritual,oDariniouWai'a,tenhacaractersticassemelhantessdasclassesdeidade comomostramPoloMller(1976)eWelsh(2010)emsetratandodaconstituiodegrupospelocritriodaidadee, sobretudo,demetadesque,nestecaso,sonominadas: Wedehri'wa e Um'rretede'wa,asquais,comoasclassesde idade,sopereneseopertencimentoaelaspermanente.Almdisso,reconheoqueasrelaesentreclassesdeidade nosomarcadasapenaspelasolidariedadeentreasdamesmametadeeantagonismoentreasdemetadesopostas,mas tambmporumamarcaodagradaodosestgiosvitais,comoidentificaPoloMllerapartirdoestudodasrelaes estruturaisentreaspinturascaractersticasdecadacategoriadeidadequeparticipadosrituaisedascorridasdetora. 254 Mulheresnosoconfinadasnacasadossolteiros,nopassamporiniciaesdeclasseeparticipampoucodos rituais.
323
sempreosmesmos,isto,comasmesmasinsgniasenamesmaordememcadeia(aindaqueesta cadeia apresente diferenas ao se comparar Xavante Ocidentais e Xavante Orientais de MayburyLewis 1984 [1967] sem, entretanto, alterar a composio das metades agmicas), constituindo um sistemacclico,dotado detemporalidadecircular,demodoque,aopassar das geraes,asmesmasclassesseriaminiciadoras,antagnicaseiniciadasumasdasoutras.Emcada metadeagmica,amesmaclasseiniciaumaoutraeiniciadaporumaterceira,iniciadaporuma quarta,fechandoocicloseminterromploquandoestaretornaposiodeinicianda. Cadaclassedeidaderecrutaseusmembrosoureconstitudareencarnadaotermo usadoporMayburyLewis(1984[1967]:207)apartirdapassagemdoswapt,peloH.Operodo desuaformao,outransformaoemhomens,durantesuapermanncianoH,podeserdetrs, quatrooucincoanos,depoisdoqueseusmembrossoiniciados,saindodelcomostatusde 'ritiwa. Tal processo seria patrocinado pela classe de idade na categoria dos jovens adultos, ipredupt, alternadamente mais velha que aquela. Ou seja, entre os wapt que habitam o H (chamadosde hwa)eaclassedeidadepatrocinadora,existeoutraclassedeidadejformadae adversriadeles,nacategoriade ritiwa.Essacategoriadeidadenosuportariamaisdeuma classedeidadeduranteomesmoperodo,anoserporumcurtotempodetransioritual.Comoj dito,asnoesdecategoriadeidadenodevemsertomadascomoumquadrodeclassificao rgido,jqueosA'uwXavantepossuiriamformasdesereferirasubdivisesdele(Giaccariae Heide1972:121),oucomsufixosdotipomaisnovo((a)pt)emaisvelho('rada). Esteesquemalistaascategoriasdeidademaisativasnosistemadeclassesdeidade,comas respectivasposiesdasclasses: Categoriasdeidade//Posiodasclasses//Classesqueaocuparamnomomentoetnogrfico dapredupt (dapredu )//classepatrocinadora( daohuiwa )dos hwa tpa // 'ritiwa classeadversriaaos // hwa Abare'u // wapt //classedos hwa Nodz'u // As classes de idade se relacionam ciclicamente conforme o esquema a seguir, uma engrenagem composta de duas rodas dentadas (que figuro na forma de estrelas de quatro pontas),comosugereMayburyLewis(1984:215216),cujaposiodosdentesbaseadanomeu momentoetnogrfico:
324
NotesequecadaumadasduasmetadesquenosonominadaspelosA'uwXavante, pintoasnascoresbrancaepretaparafinsdidticoscompostaporquatroclassesdeidadeque simbolizei,comoanteriormente,apartirdasduasprimeirasletrasdeseusnomes(oleitornodeve confundirasiniciaisHdaclasse Htr comapalavra H,CasadosAdolescentes).Oeixode encontroentreelascolocaemrelaoastrsclassesdeidademaisatuantesritualmente,sendoquea setaindica,nogrfico,osentidodomovimentogeracional.Combasenoperodoemqueestiveem campo,essasclassesso,damaisnova(encorporadaoureencarnadapeloshabitantesdoH)para amaisvelha:Nodz'u,Abare'u,tpa,Tirwa,Htr,Ai'rere,Tsada'roeAnarowa. MayburyLewisnotaumadiscrepnciaentrearelaodestasmetadesagmicasnotocante aosXavanteOcidentaiseXavanteOrientais,havendoumdescompassosesecomparararoda dentada preta dosOcidentaiscomarodadentada preta dosOrientais, comoseametade orientalestivesseatrasadaemumageraoemrelaosuaidnticaocidental preta .Emminha experinciaemSangradouroenaaldeiaBelm,asclassesorganizavamsedamaneiraocidental. Issoseexplica.ParaMayburyLewis,osXavanteOcientaisincluiriamaquelesdasterras hojeconhecidascomoSangradouro,SoMarcos,ParabubureeMarechalRondon,eosXavante OrientaisseriamosdePimentelBarbosa,AreeseMariwatsde.Noentanto,comopudenotar,os a'uwmariwatsde,fundadores(dentreoutros)daaldeiaBelm,almderepovoadoresdaterrade Mariwatsde,organizamsehojecomoosocidentais,talvezdevidosdcadasdeconvivncia em Sangradouro e So Marcos. Perguntei na aldeia Belm se nas outras aldeias de Pimentel Barbosaasclassesdeidadeseordenavamdaformaorientaleosmaisperspicazesconfirmaram quesim,reconhecendoquelos'riti'waeramTirwa. NotesequeoconvvioatualentreosmoradoresdeBelmcomosdePimentelBarbosano pareceserincomodadoporestadiscrepncia.ComojnotaraMayburyLewisarespeitodocontato 325
entreasdiversasaldeiasa'uwxavantes,odescompassoeraresolvido,naprtica,equiparandoseas classesqueestonamesmafasedavida.Ouseja,ummembrodosAnarowaorientalqueviajasse paraoocidentedescobririaqueosAirereleramomesmoqueosAnarowac,segundoa explicaonativa(MayburyLewis1984[1967]:191209).Estacondiomuitoimportantepara acapacidadedemagnificaorecprocaentreclassesdeidadeealdeias:porque,paraosgrandes rituais, moradores das mais diversas aldeias com quem se tem contato so convidados para participar,sobretudoparaascorridasdetoraquesucedemascerimnias.Ametadeagmicaquefor capazdeangariarmaiscolaboradorestermaiscondiesdevenceracorridadetoras,jqueesta bastante cansativa envolve revezamentos e a quantidade de corredores por time ilimitada. ParticipeideumacorridadessasemBelmemqueonmerodeTirwaeAbare'uqueacorreram eratantoquemeutimetevepoucaschancesdevitria. Estaspessoasparecematradastantopela obrigao de participar e ajudar membros da mesma metade agmica e pela possibilidade de engrandecersuaclasseeasimesmas,quantopelaaflunciadaposteriordistribuiodepresentes alimentares(bolos,carne,refrigerante).Outropontotambmbastantecomentadopeloshomensso asmulheres.UmcompanheirodeclassenaAbelhinhamedisseumavezque,namedidaqueeu fosseparticipandoderituaisejogosdefutebolentrealdeias,iriaficandomaisfamosoentreas mulheres.Outroscompanheirosmediziamquepreferiampermaneceremoutraaldeia(oquedefato faziam,jquemuitosnotmmoradiafixa)porcausadaquantidadedemulheresenamoradasque tinhaml.Aldeiasgrandes,commuitasmulheres(comoMariwatsdeouSangradouro),costumam atrairaindamaispessoas,maishomens,inflacionandose. Deveserpercebidoqueaperenidadedasclassesdeidadenosignificaque,porexemplo, noexistamoutrosNodz'umaisvelhosdoqueaquelesqueseconstituramcomocorpocoletivoa partir da entradano H. Aocontrrio,naprpriaaldeiaBelm,porexemplo,haviam Nodz'u velhos,chamadosde Nodz'umb'rada.Eassimpordiante.Soaquelesquejviramociclodas classesdeidadesecompletareque,agora,observamnorecomeando. E o que circularia entre esses grupos? O grupo iniciado receberia dos mais velhos, principalmentedogrupoiniciador,ensinamentosrituais,tcnicoseprticos,cantoseamaturidade. Jospatrocinadores,almdeadquiriremnovosmembrosparaseutime,parasuametadeagmica (noparasuaclassedeidade),tambmseriampresenteadoscomitenscomobolos,carnes,enfeites etc. Umadasformasdetransmissodeconhecimentosadoscantossonhados,quegeralmente intransitivaapesardoscantosentraremparaumamemriaatualizadaemperformancesnoptio 326
daaldeia,elesnosoretransmitidospelaclassequeosrecebeudeumamaisvelha eligaas classesdeumamesmametadeagmica. Vriasatividadescontribuemparaaconstituiodeumasolidariedadedisciplinadaentreas classes.Otrabalhocoletivoumadelas(queincluitambmacaa,consideradacomo romhuri, trabalho). Em poca de festas, em classes de idade que os A'uwXavante fazem os preparativos, limpam os caminhos e o ptio da aldeia, num clima de competio entre classes adjacentes e metades opostas. a troca de provocaes e os chamados por cooperao que disciplinamotrabalho,noquallideranasdecadaclassetantopodemfalarparafazerquantofazere darexemplo,numjogoquemisturaexposiopblicadetrabalhoamomentosdepreguiaemque nosedouvidosordemeprovocao. Cada classe costuma comer junta, principalmente naCasados Adolescentes,onde estes devemdividirentresiacomidaquerecebemdesuasfamliasealimentarseusdanhohui'wa.Outro momentodecomensalidadesoosfinsderituaisimportantes,quandoumaclassemaisnovad maisvelha(principalmenteosadolescentesparaos danhohui'wa)bolosdemilho,defeijo, de arroz,algumacarne(svezesanimaisinteirosevivos,comojabutis,consideradosiguarias),sacos demantimentosemuitosrefrigerantesemgarrafasdedoislitros(comosevnaimagemabaixo).
dos tpa boa parte dos bolos e refrigerantes que ganharam depois da furao de orelha dos Nodz'u,comopagaporterempreparadooterrenocircularemfrenteCasadosAdolescentesonde seriarealizadoo wa'i,lutacerimonialentrepatrocinadoresepatrocinados(que,nestecaso,toma ares jocosos). uma cadeia alimentar hierarquizada que, contudo, tambm pode ser violada. Quandorecebemosbolos,antesdeentreglosaoutrem,osdanhohui'waparecemficarnumcerto dilemasobrecomlosounocomlos:devemsepararumaparteparaoutros,masaquelequetoma iniciativaeavanasobrepedaosdebolocomendoosnaqueleexatomomentoouretirandoum pedaoparalevarparasuacasanorecriminadonempunido,comoobserveivriasvezes.Certa vez,pordesateno,tomeiumdospedaosdeboloquetinhasidoentreguepelosdanhohui'wade Belmaosdanhohui'wavindosdeoutraaldeiaparaajudarnumacorridadetora:elesexclamaram reclamandomas,quandofizmenodedevolverlhesopedao,insistiramprontamenteparaqueeu ficassecomele.Entretanto,depoisdejterdadoalgoparaasclassessuperiores,nosepodefazer omesmo:numensaiodecantoemquesejuntaram,afastadosdaaldeia,todososhomensadultose velhos com os danhohui'wa, pediramme que eu levasse garrafas de refrigerantes e acabei entregandotodaselasaosmaisvelhos.Umdemeuscompanheiros, watsi'utsu,reclamouqueos tpaiamficarsem,porquenopoderamospegarparabeberoquedemosaosmaisvelhos. Osentarsejuntotambmumfatordemanutenodessacorporao.Membrosdamesma classe,mesmoasmaisvelhas,tendemasentarsejuntosnowar,emtransportescoletivos,onde comumquemantenhamseuscorposencostados,eatnaigreja:presencieiumamissacatlicana qualprincipalmenteoshomensdastrsclassesdeidademaisativas,mastambmoutros,sentavam seemlocaispreviamentedemarcadosparasuaclasse. Outromomentoimportantedeconstituiodocorpocoletivodasclasses,principalmente devidosuaunidadertmicaetcnica,sooscantosedanas,melhoranalisadosadiante. Jobanhocoletivo,aoqualmereferi,chegaacongregarmaismembrosdeumamesma classedeidadedoqueaprpriadana.comumquetodososmembrosdeumaclassedeidade ativanosrituaissejunteparatomarbanhoderio.Emvrioshorrios,jqueosA'uwXavante tomambanhosaomenostrsvezespordia,comumqueoscompanheirosdeclassedeidade chamemse uns aos outros ao banho, como costumavam fazer comigo. Por outro lado, classes adversrias,sobretudoasadjacenteseempocaderituaisimportantes,evitamsenorio,umaclasse esperaaoutradeixaraguaparaentrar. * Almdisso,humaimportantemanifestaodecorporalidadecoletivadasclassesdeidade 328
atravsdoluto,comojindicado.EmBelm,comofalecimentodeJosPedroTsere'ri'rqueera Htrb'rada, isto , da mesma metade agmica da minha classe de idade e da classe dos adolescentes ocorrido pouco antes de um de meus retornos aldeia, notei que todos os adolescentes,no H,estavamdecabearaspada,sinaldeluto,fossemelesmembrosounoda mesmametadeexogmicaqueoantepassadofalecido.DentreostpaeosHtr,vriostambm tinhamraspadosuascabeleiras,umaespciededespesasacrificialdepartedesuavitalidade(da qualocabelopareceserumelementoimportante)emrespeitoaomorto,aparentandoseaele. Alfredo, tambm de luto, disseme que todos lamentavam a morte do nosso av. Notei que, contudo, dentre os demais habitantes da aldeia, nem todos os membros da metade exogmica oposta,bemcomoamaioriadosadultosquenoeraprximaobastantedalinhagemdeJosPedro, estavaenlutada. Porumlado,estasexpressesdelutomanifestamaquelecartercognticodasrelaesde parentescocomoav:muitosalipodiamtraarrelaescognticascomJosPedroapontode,com isso,manifestaremseuluto.Poroutrolado,dignodenotaquenemtodososmembrosdasfamlias dos adolescentes enlutados, por exemplo, manifestavam seu luto pela raspagem dos cabelos muitosusavam,simplesmente,ocordonopescooquetambmindicativodeluto.Tampoucoa maioria dos membros da classe de idade adjacente, os 'riti'wa, tinham raspado a sua cabea: somenteaquelesqueeramnetosdeJosPedro. Outroindciodesteparaaparentamentodasclassesdeidademefoimanifestoquandoentrei emlutonaAldeiaBelmpelofalecimentodemeusogrowaradzu,comojmencionado.Nofimda tardedodiaemqueeureceberaanotcia,tendoeumeretiradodoconvviodemeuscompanheiros, PaulinhoAndersonprocuroumeparadizerqueostpatinhamsereunidoedecididoque,como eu,elestambmiamficartristes.Aindaqueissomanifesteumadecisoarespeitodeumestadode esprito,estaeraumadecisoqueotornavaumestadodeespritodecorpocomooespritopara osA'uwXavanteedeespritdecorps,asolidariedadeincorporada(ouencorporada)das classesdeidadea'uwxavantecomoformuladaporMayburyLewis(1984[1967]:157)conforme atraduodeLopesdaSilva. Pois, ainda que MayburyLewis tivesse escrito sua obra antes de formulaes mais avanadassobreacorporalidadeamerndia(comoasdeSeeger,DaMattaeViveirosdeCastro1979 ouSeeger1980),parecequesuatradutorajrespiravaessesarescorporais. * A noo de grupos corporais foi formulada por Seeger (1980) a fim de superar 329
dificuldades existentes em noes como linhagem e descendncia para casos J que no correspondiamalinhaseheranasagnticas(ligeiramentediversosdocasoa'uwxavante,comose mostraabaixo).Seriamgruposunidospelasubstnciacomum,fluidoscorporais(smen,sangue), alimentaoetc.Proponhoalargarousodoadjetivocorporaisparaasclassesdeidade,tomando ascomocorporaescorporais,apartirdasubstnciacomum(viacomensalidade);datcnicado corpo (expressa nas danas e cantos); e da proximidade corporal, seja ao sentarse, seja ao combinaremseemisturaremseoscorposnobanhoedaexpressodoaparentamentonocorpo atravs das tcnicas de luto. Essas classes constituemse como verdadeiras relaes de paraparentesco, sendo que o vocabulrio do parentesco especificamente o de filiao, mas tambmorelativoaosbisavs,antepassados:wahi'radabastanteusado,comojfoiindicado. Se a entrecorporalidade um elemento fundamental do parentesco, ela tambm o do paraparentesco. ***
Mquinaorgnica Qualquer presuno de mecanicismo que poderia advir do vocabulrio maquinal de MayburyLewissobreaengrenagemdasclassesdeidadedeveserevitada,emrefernciaaeste mododevidaemqueoscorposseafetamesecontagiamdemaneiratocaticaeaomesmotempo toordeira.Seosistemadeclassesdeidadenoumamquinaisolada,masdependedesua relao com outras relaes, sobretudo com as relaes de parentesco, devese recuperar aqui algumasdessasrelaesdasvriasjexpostasaolongodateseeamaneiracomoseconectam entresi. Umaferramentatericainteressanteparalidarcomestamaquinariacorporala'uwxavante podeserencontrada,ameuver,emtextosdeMausssobreoquechamavadecoesosocial:A Coeso Social nas Sociedades Polissegmentares e Fragmentos de um Plano de Sociologia Descritiva, publicados em 1931e 1934respectivamente (Mauss 1981).Neles soapresentadas consideraesoriginaissobreaimportnciadastcnicascorporaisparaacoesosocialnoarranjo de subgrupos e esferas animadas de movimentos respectivos e solidrios entre si, sem a necessidadedeatosdeautoridadeabusivadetipoestatal,numadisciplinaquemisturacoaoe espontaneidadenoritmodamsicaedorito(tomandorituscomoordem),repartindoa 330
autoridade. Mauss trata a questo do que chama de subgrupos como compondo um tipo de solidariedade orgnica que no fruto de contratos entre indivduos, vai alm da adeso mecnicadeindivduossociedadeouagrupos.Ligasubgruposentresienoapenas indivduosentresieorganizaospormeiodealianas,influnciaseservios,maisdoque pelapresenadaautoridadesupremadoEstado(Mauss1981:105).255 O primeiro ponto de seu argumento trata da natureza polticodomstica da coeso, superandoadicotomiapblico/privadoarespeitodolugardeapariodopoder,aoapontarparao estatutodomstico,familiar,clnico,datransfernciadecargosepoder,quepodetenderformao deumaelite,umindciodeumaordemestatal,opostaconscinciadifusadaopiniopblicaeda aocoletiva.Osegundofocalizasenaquestodaaliana,nosomentematrimonial(comoo prprioautordiz):relaesentrefratrias,ajudasmilitares,religiosas,econmicas,relaescruzadas dos sexos e das geraes, hierarquias que se perpetuam para alm das geraes. O terceiro, continuidade do anterior, fala de arranjos de formaes secundrias que operam de outra maneiraquenoadadescendnciaedaaliana,quecompensamesta anarquia daspequenas comunidades polticodomsticas e que [...] organizam a sociedade por outros meios, rgos quasesoberanosanimad[o]sdemovimentosrespectivosesolidriosentresi(Mauss1981:05 106).AlgunsdosexemplosdadosporMaussreferemsessociedadesdoshomens,divisopor idadesegeraesesclassesdeidade. Vse a aliana sociopoltica englobando o parentesco, bem como essas alianas organizandose(nosentidodiscretamentesuigenerisqueMaussdorganizao)emalgum pontoalmdaanarquiadaspequenascomunidadespolticodomsticaseaqumdaautoridade supremaestatal. Soformulaesquepodemseraproveitadasaquinotocanteatrsaspectos:aimportncia doqueEduardoViveirosdeCastro(2002a,1993)chamoudeexterioraoparentesco,abarcando tambm relaes sociopolticas que, nesse sentido, tm algo de aparentamento potencial; a
255IssoparecesituaropensamentodeMaussalmdaslimitaesfuncionalistastidascomoherdeirasdeDurkheim,j queseufocomuitomaisaaliana(emsentidoamplo,nosomentedeparentesco)doqueasociedade,eosarranjos soconsideradosdemaneirafluida,poresferasdefinidasacadainstante(Mauss1981:105).Aopoporpalavras comoarranjoeousodapalavrasociedadeparatratardasociedadedoshomens(umsubgrupo,portanto,eno o socius)conotamsuadiferenaemrelaoaoqueseriamospecadosdofuncionalismo,quecontraecoaramnas crticasdicotomiaindivduo/sociedade,fundadasnanoodesocialidadeparaumapercepoantiatomistaeanti totalitriadasrelaesqueatravessampessoasecoletivosemdiversasescalas(confiraStrathern1988e2005[1991]e Ingold1996).
331
Devoltasclassesdeidadea'uwxavantes,elas nodevemserconsideradas,contudo, corposcoletivosequalizados,semsuasprpriashierarquiasinternas.Algunsdoselementosmais marcantes do parentesco enquanto poltica ou da esfera polticodomstica, para usar a formulao de Mauss (1981) so os cargos e posses cerimoniais, sobretudo aqueles que so adquiridosatravsdapassagempelaCasadosAdolescentes,jmencionados: Pahri'wa, Tbe e Aih'ubuni.Elessoumadasprincipaiscorrentesdeligaopolticaentreamquinaorgnicado paraparentescoeoparentesco. Retomandoalgumascaractersticasbsicasdestesttulos, Pahri'wa possedelinhagens Poredza'onoespodesertransmitidadentrodestametade;Tbepossedelinhagenswaw es podesertransmitidadentrodestametade.Ambososcargossooficializadosemrituaisapsa furaodeorelhamasenquantoaclassedeidadeaindapermaneceno H, acasadossolteiros. Ambosoperamcomonomesprprios.Sooscargosdoslderesprincipaisdasclassesdeidade, sendoqueosPahri'wasolevadosemmaisaltacontaqueosTbe. Escolhese dois de cada para cada classe de idade. A seleo definida por conselhos separados,reunindotodososhomensquejforam,emcadaumdoscasos,Pahri'waeTbe,bem comosuas linhagens.AcompanheiaoconselhofinalarespeitodestadecisoparaaldeiaBelm, realizado numa clareira de mata bem distante da aldeia, para evitar os ouvidos femininos. L, praticamentetodososhomensadultosdaaldeia(oqueincluiosdanhohui'wamasnoos'riti'wa) estavam reunidos e debatiam dando precedncia a longos discursos dos mais velhos que, inclusive,falavamaomesmotempo,cadaumdeumametadeodestinodessescargosdentreos Nodz'u, entremeados porensaios decantos dos tpa.Os waw acabarammais rpido sua decisoeumdelesmedissequeosPo'redza'onodemoravammaisporquePo'redza'onopiredi difcil,pesado. Apalavrafinaldosmaisvelhoseosescolhidossoosherdeirosdiretosdessaslinhagens que estiverem de acordo com o ideal moral e corporal dos cargos: oratria, liderana, pureza, 332
respeitoemrelaosmulheres(todososadolescentesdevempermanecervirgensatsaremda casadossolteiros)eforacorporal.Assimcomoamoral,aforaegrandezadessescorposto consideradacomoherdadadospaisquantodependedaperformancedapessoa:seutrabalho,sua participao nas corridas edanas,suahabilidadedecaa,suahabilidadedelutaejogo, seus banhosconstantesincluindo,aofimdoDanhono,abateodegua,wat'wa Os futuros Pahri'wa e Tbe, sobretudo os primeiros, como observei, costumam tomar liderananoincentivosatividadesaquticas,clamandoatodosparabatergua.Nesseprocesso tantoocorpodecadaumquantoodocoletivopostoemevidncia,eafraquezadeum,apreguia, afaltadeparticipao,colocaemjogoareputaodetodoocorpodaclassedeidade. Enfim, a escolha dos oficiantes do cargo para cada classe de idade envolve disputas e arranjosentrediferenteslinhagenspossuidorasdomesmocargo,oquevariaconformeainfluncia polticadecadaumanaaldeia,oqueforabemnotadoporMayburyLewis,percebendoqueos chefesdealdeiacostumavamconseguiralocarseusprpriosfilhosnessescargos.Segundooautor, essescargosajudamatreinarseusherdeirosparaumdiatomaremalideranadaaldeiaoudeparte dela.Issoporqueumaaldeiapodetermaisdeumchefe,oquehojeemdia,comasrelaescomo EstadobrasileiroeaFundaoNacionaldondio,setraduznapresenadeumcacique,umvice caciqueedepessoasproeminentesquesecomportamcomochefes,comopresidentesdeassociao indgena, por exemplo dando muitos presentes aldeia, atraindo recursos de fora atravs de projetos,organizandoreuniesentrediversasaldeias.SegundoMayburyLewis,ochefefazasvezes deummediadorentreasfacespolticasporsermembrodeumafacomaisforte. Asfacesnoentrariamemguerraduranteamaiorpartedotempo,segundoele,devido a uma situao semelhante de superpotncias modernas: uma faco forte, como uma superpotnciainternacional,temopoderdefazerguerracontraorestodacomunidade,ameaaque mantm,decertaforma,apaz.Oquenosremeteaumanoocorrentenosestudosderelaes internacionais,odeanarquiainternacional(confiraWaltz1979):nasrelaesinternacionaisno humcorposoberano,aindaqueapartemaisfortealterneentreumaposioameaadoraeuma posiomediadora.Masaameaadanaomaisforteumaameaadehegemonia,deriscoda supremaciadeumnicosobreosdemais:aesferapolticodomstica,apesardesuaanarquia, podeafetarosurgimentodeumaeliteemdireoaoEstadoatravsdomonopliodoscargosde chefia,comosugeriraMauss(1981). OutrodoscargosmuitodisputadosdelideranadeumaclasseodeAih'ubuni,quefuram asorelhasanosantesdafuraodosdemais.AescolhadosAih'ubunifuncionacomonoscargos 333
anteriores,mascomdiferenas:elespodemserdeambasasmetadesexogmicasesoescolhidos vriosdentrodeumamesmaclassedeidade,comojnotado,inovaoqueapontatantoparaa intercambialidadedaspossesdecargosentreaslinhagenseclsquantoparaumaformadedirimir asdisputasporcargos,dandopoderparamaispessoas.Aindaassim,oAih'ubunivaiparasegundo planoquandosonomeadososPahri'waeTbe. Estescargosde Pahri'wa,Tbe e Aih'ubuni soespecialmentechamadosporMaybury Lewisdelderescerimoniais,queoautordistinguedos dzu, lderespolticos(MayburyLewis 1971 [1967]: 190204). Dicotomia semelhante utilizada posteriormente por seu aluno Seeger, baseadanadiferenafeitapelosSuyentrelderespolticos(donos/controladoresdaaldeia, conforme o termo em lngua nativa) e lderes cerimoniais (donos/controladores das cerimnias)(Seeger1981:180205).EmambososcasosA'uwXavanteeSuyhuma presenadanoodedono/controlador(parausarostermosdeSeeger): datede'wa paraos A'uwXavantee kande paraosSuy.SeegerfazrefernciaanlisedeClastressobreopoder amerndio,conectandosuaprpriapercepodanoodepodernoosuydekande. Araizdotermodatede'watede,quesignificaconsistncia,dureza,epodeserusada nosentidodeterporexemplo,waratedealgumquecorremuito,quetemcorrida,comoos A'uwXavante traduzem. A particula te, somente, ajetivo possessivo. De modo que posse e consistncia,dureza,conectamseconcepoA'uwXavantedepossedepoder. InformaesqueobtivejuntoaosA'uwXavantecontrariamadicotomiafeitaporMaybury Lewisentrelderespolticosecerimoniais,conformeaqualnemtodoldercerimonialseriaum dzu, mas somente os membros da faco dominante (1971[1967]: 190204). O termo dzu, segundoalguns danhohui'wa,meuscolegasdeclasse,comquemconverseiarespeito,referese corpulncialigadaidiadeliderana.Disserammequedzuquemtemcorpogrande,comoo daanta.Oslderescerimoniaissodzu,tantoquantooutraspessoasqueassumemlideranaem situaesdiversasporexemplo,ospadrinhos danhohui'wa emrelaoaosadolescentes.Dizse doslderesemgeralqueelestmocorpograndeousograndes,tsa'etditermoqueserefere nosextensomasintensidade(umaatividadedifcil,pesadaourpidatambm tsa'et di). Sobreosanimais,ditoqueseuchefe tsa'et di,comonoscasosdasucuri chefe edagirafade brinquedo,supramencionados. Todos esses lderes, danhohui'wa, caciques etc., so tambm chamados de roti'wa, conselheiros.Rotitraduzidocomoconselho,aconselhar,ordem,ordenar,mandar.Os dzutambmsochamadosde'md''wa,vigilantes,observadores,guardas,zeladores. 334
Esseslderessoresponsveisnospelavigilnciamas,paraocasodarelaoentreos patronos danhohui'wa e os adolescentes,por uma quasepunio: aquelas pancadas com varas, esperadas pelos prprios adolescentes que, algumas vezes, chegam a revidar desafiando os danhohui'waparalutascorporais.Hnissotudoummistodebrincadeiraeseriedadequeremeteao jogodeHuizinga([1938]).svezesaagressoanterioraqualqueratoindisciplinado.Como quandoumhomemnoestgiodeguardadoWai'apisaospsdeumpuxadordecanto,quedeve aceitaraagressosemfugiroureagir,adultoque. Emcontrastecomdonatriosdoscargoscerimoniaisqueprocuravamportarsedemaneira exemplar, notei alguns titulares desses cargos agindo com indisciplina. Dizendo para os outros fazeremoqueelesnoestavamfazendo(trabalhar,batergua),portandosepreguiosamenteno trabalho, no participandodoscantos etc.Aindaqueaausnciadeatuaosatisfatriaem um requisitofossecompensadaporoutro(outrotipodetrabalho,atuaocomobomcorredordetoras etc.).Poroutrolado,jqueessesttulossovitalcios(aocontrriodocargodecacique,quepode ser destitudo pela comunidade), alguns tendem a se acomodar e a no agir de acordo. Nesse sentido,aindisciplinadolderpodetornloalgumquenofazoqueosoutrosfazemporele, aproximandoodeumacondioquasedecomandante. Aindaassim,lderesmalcomportadostendemaperderprestgioeaseremmarginalizados. ObserveiqueumimportanteAih'ubuni,quecomportavasedessamaneira,ocupavaoltimolugar da fila dos demais lderes, entre eles e os comuns (mas ainda assim, antes dos Aih'ubuni tercirios).Umoutrodonatriodecargoimportante,danhohui'wa,queseausentavadasdanas,por issotambmsemantinhaafastadodogrupoemoutrosmomentoseeraquaseignoradonahoradeir aobanho. Aquelesquenodanamsochamadosdeteirw'quenoqueremoestarbem,eque metraduziramcomoquenogostamdefesta,estragaprazeres.Sobreaobrigaodedanar,o caciquedeumadasaldeiasumavezdisseemportugus:comonaescola,temfalta,presena,as pessoastmdecumprir.Masnohfichrios,planilhas,anotaes,sacobranacoletiva.Eaa corporaocorporalinteiracobrada.Comoquandoaclassedos Htor,padrinhosdos tp (atuaisdanhohui'wa),chamavaosdegrupopadi,detamanduquedormemuito.Jacorujinha vermelha(prorotprre),completouAlfredo,numadessasocasiesmadrugaisdedanaeesforo fsico,nodormeemantmosolhosbemabertosporquecantaanoiteinteira.Quemtemocanto vigiadodevecantarparasertambmumvigilante.
335
*** Ouvir,falarecantar
Osmalcomportadossoadjetivadosdepore',quenoescutam.Issopodeserassociado conotativamenteaoritodepassagemdeentradanavidaadulta,afuraodeorelha. Acreditoqueoritodepassagemdafuraodeorelhadosadolescentespodeservistocomo umamorteritualsoboprismadomitodosParinai'a,supramencionado:exageraramemseupoder da palavra, sem dar ouvidos aos mais velhos, e foram mortos. No rito esperase que os adolescentespassemanoiten'guaparaamoleceroslbulos,quetalvez desmaiem (odesmaiar muitasvezescomparadoporelesmorte),quesoframcaladosaperfuraodaorelha(comumosso afiadodeonaparda)eacolocaodosbrincosquefazemdeleshomens.Talagressoetalsilncio ecoamatortura(Clastres2003[1974]),qualseentregamdeboavontadeequeimprimeemseu corpoamemriadopertencimentocoletivo.Memrialigadaaudio,comooexemploa'uw xavantelevaacrer. Podese contrapor o dever de ouvir e o silncio dos adolescentes ao poder criador e transformador da palavra, latente e espreita, da dupla mtica dos Parinai'a. O ritual parece sinalizar,combrincosnasorelhas,queparaqueapalavranosetorneperigosademaisnecessrio, antes,aprenderaouvir.Ouviroqueosadolescentesmaisfazemduranteosanosdesuaformao. Presenciei isso no H, onde os adolescentes dormem e so constantemente visitados pelos danhohui'waeoutroshomensmaisvelhos,quevmlhesdarconselhoseensinarlhescantos.Quem nocantadireitochamadodesurdo. Se,comodiriaClastres,ochefea'uwxavantetemodeverdapalavra,eudiriaqueesta palavra,aocontrriodoqueafirmaesteautor(2003[1974]:171),ditaparaserescutada.Todavia, oslderesquefalam,aconselham,ordenam,temdeser,antes,bonsouvintes.Nosbons ouvintesantesdetornaremsemadurosparafalaretransmitircantos,mastambmbonsouvintesno prpriomomentodafalaebonsouvintesemsonho,quandopegamoscantosqueiroretransmitir. MayburyLewis(1971[1967]:190204)jmostraracomoochefea'uwxavanteadaptaseu discursoesuasordensdodiaaosclamoresdaaudincia:olderreformulaoquedizconformeas reaesdosdemais.Presencieiissonosnasreuniesdo war, quandoocaciquefaziaseu discursofinalcombasenoqueforaditonareunio,masdiariamentequandolderesdeclasse perguntavamaseusparceirosqualdecisotomar,atitudesemelhantedosParinai'a. 336
importantesaberouvirtambmasvozesdedahibauptabiemsono.Parasesaberquem transmitiuumcantonosonho,perguntasee'wadzadawadabocadequem?. * ParaMausscantoedadanaatuamnoqueeleconsideraserocarterdesuperaoda anarquiadaesferapolticodomsticapresentenosgrupossecundrios(comoasclassesde idade)quegeramascoisaseosacontecimentos(Mauss1981:108)eamanutenodopoder,da paz,daautoridadeedadisciplinanecessriaparaacoeso.Oespritodeequipe,misturando coao e espontaneidade, manifestase no corpo (Mauss 1981: 109). [A] dana do chefe freqentementeadanadopovo.Ondecomeaosolo?Ondeacabaorefro?Oqueprecisoabrir osolhos,ouvir.[...][A]forafsicadochefe,emesmoadeseushomensdeconfiana[],adesua grandefamliaedeseusaliados,suaposionasociedadedoshomensnodesempenhampapel maisimportantedoquesuasalianasdesangueedecasamento,doqueseuspotlatch,suasdanas, seusxtasesesuasrevelaesdeespritos.(Mauss1981:109). Sehnodeverdeouvirumcarterdedisciplinaeautoridade,contudoaindisciplinado pore' nodetodomalvista,epodesinalizarparaumarecusadaobedincia. Pore' soas crianasquebrincamafastadasdaaldeia,equenosopunidasportaisatos.Ouaquelesquese deixamlevarpelapreguia(dawa'a)enocumpremcomastarefaspropostaspeloslderes.Pore' podesertambmalgumquequebraadisciplinadealgunsrituaisemqueabrincadeira,datoire, permitida. *** Aspectosdamusicalidadea'uwxavante
Acomposiomusicala'uwxavanteenvolveapercepodamsicacomocapturadado exterior,essencialmenterelacional.Produzirepredaraseconfundem.Podeseramsicasonhadae ligadaaosrituaisdasclassesdeidadeeamomentosdecongregaoedebatepoltico.Podevirde longa data, projetada nas origens a'uwxavante, como o Wanoridbe. Pode ser obra de compositoresqueutilizamtcnicaseinstrumentosacsticos,eltricoseeletrnicoswaradzu. Amsicacapturadaemsonhoaplicadaarituaisdiversos,comoosdasclassesdeidadee dasdanasquecongregamtodaaaldeiaemnoitesmaisalegreseinformais,comovriasdasquais tomeiparte. 337
depraxequeumhomemadultooumaisvelho,normalmentedamesmametadeagmica dosadolescentes,sonheumcantoetransmitaparaosadolescentesouparaalgum padrinho de classedeidade,quetambmpodeserosonhador.Quandoocantovemdeumterceiroparao danhohui'wa,estenormalmenteumtio,paiouav.MeupaiadotivoAdoTop'tiroconcedeume algunsdessescantosqueelesonharaparaqueeutransmitisseaosadolescentes. Ocantopassadoparaosdemaisdanhohui'waeadolescentesnormalmentenoH,antesde suaexposiopblica.cantadoaoalvorecerouoanoitecer,bemcomomeianoite.Omesmo tipodemsicausadonasdanasquesucedemcertosrituais,comoafuraodeorelhaouas corridasdetoraseque,devidocaractersticamatutinadosmesmos,acabamsendocantadasnas horasmaisquentes,aomeiodiaenocomeodatarde,podendoduraratoentardecer. Essas canes sopuxadas porumapessoa,predominantemente masculina, rapidamente ensaiadasecantadasemcoroecomraroacompanhamentodeumchocalhoamarradoaotornozelo dopuxadordocanto.Comosocanesnovasetodosdevemcantaraomesmotemponoha distinoentresoloecorodemodoqueahierarquiaentrequem puxaocanto equemcantaquase anulada ,necessriaboaescuta,memorizaoeimitaodosdemaisparticipantesparaquea msicasejareproduzidaconformesonhada.Apesardadificuldade,recmchegadosewaradzuso convidadosacantaredanarjunto,comofuidiversasvezes. Outras vezes, sobretudo noite antes do war, a reunio poltica noturna da aldeia, as canesreproduzidassovelhasconhecidasdospresentes,fazendopartedoestoquedemsicasdas classes de idadejmaduras (aprendidas naadolescnciadestas).vezes cantaseorepertrio inteirodeumaclassemaduranessasnoitesinformais,paraalegraraaldeia,comodizem.Nessas horas,asmulheressoexortadasaviraowar(lugarpreponderantementemasculino)eaajudarno cantoedana.umaquestotantodealegriaquantodeesforocoletivo. Essetipodecanocantadaemunssonoporhomensiniciados,emduasvozes(seguindo asmesmasnotas,masemoitavasdiferentes)porpadrinhosdanhohui'waeadolescentes,eemtrs vozes quando h presena feminina, como me disse uma vez Rmulo Tsereruu 256 aos adolescentesproibidoocontatocommulheres,portantocomumquehajasomenteduasvozes quandoasmulheresparticipam.Mascomotambmcostumeiro,adanapodeseraproveitada comomomentodenamoroeflerte,quandomulheresposicionamseentredoishomensparaflertar comumdeles(ecomissoexigirretribuiesdoflertenaformadepresentesposteriores)ougarotas so posicionadas entre rapazes solteiros j iniciados para lhes incentivar namoro e casamento.
256DesidrioAytainotaessasdiferenasdevozesmasafirma,aocontrrio,queosA'uwXavantenoareconhecem (1985:65).
338
Moasmaisvelhasemulheresmadurastambmaproveitamestesmomentosparaflertarpredando oshomens,dandolhesamoecomissodemandandomaistardealgumpagamento.Aindaassim, demodogeral,estamsicasobretudomasculinaenelasoenfatizadascaractersticasmasculinas, comovozgraveequasegutural,parasecantarforteealto(queaquinooopostodegrave),como elesdizem. Essas msicas se distinguem conforme a dana qual devem estar ligadas (dahipop, dapraba,dadzarono)257.Sodanadasnogeraldemosdadas,emeventossolenes,mastambm antes das reunies polticas noturnas, para congregar a aldeia, alegrla. Alguns membros da AssociaoWarmeresponderam,inclusive,queessescantossopuxadosedanadosnointervalo entremomentostensosdasreuniespolticasemBraslia,paracongregaratodosdeformapacfica, dirimirosconflitosexaltadosdodebate. Naaldeia,essasdanassofeitasnocentroouaoredordeledandoavoltafrentescasas movimentoconhecidocomo'ribaba(abaixo,crculodedanarinosemSangradouro).
258 Ainversohierrquicaaparece,assim,comoinversodopanpticoinvestigadoporFoucaultnaarquiteturada
sociedadedisciplinar(1997[1975]),conformejnotaraSztutman(2005:255):Ocuparumaposiopoltica,fazer
339
casas estse a salvo da vigilncia. So os prprios lderes, debatedores polticos (quando apresentadosnasreuniesdo war)ecantadoresquedanamnoptiodaaldeiaobservadospor quemestnascasassobretudopelasmulheres,quevigiamosvigilantes.Assimadivisopor sexoselementochavedacoeso,comodiriaMauss(1981:342),deumaentidadecoletivacuja apreensosempretotalizadademodoparcial,nessearranjodehierarquiascruzadaseinvertidas. * Houtrotipodecanesquefazempartedeumestoquemaisantigoedistribudo,atonde percebi, entretodososa'uwxavante,peas fixasqueserepetem,transmitidas degerao em gerao.AssimacanodoWanoridbe,danadosdanhohui'waduranteoperodoiniciticodos adolescentes,antesedepoisdafuraodeorelha,equetemseupicenacerimniaemqueso travadasnovasamizadesformalizadas,nestecasoentrehomensemulheres.ummomentotambm de trmino da vida cerimonial mais intensa,pois dizem quedepois dele afesta acaba para o homem,quepassaasedistanciardarotinadasclassesdeidadeeadedicarsemaissuavida polticodomstica.Talvez,porisso,sejaesteummomentodemanifestaodeindisciplinas. ParaoinciodoWanoridbe tocaseaflautaupaw, cada danhohui'wapodeterasuaea tocaconvocandoosoutrosaseaproximaremdoptiodaaldeia(naimagem,apostosparaoensaio naaldeiaBelm):
umaflautalargaecompridacomoumbrao,debambuouPVC,comumorifciolateral paraosopro,abertadoladooposto.Seusommontonoegrave,eosoprodeveserforteeem
visvelasuamagnificao,tambmpassaraservigiado.Tratase,pois,deumaespciedepanpticoinvertido.
340
seguida gerar ondulaes, depois dse o grito tpico a'uwxavante, kuuuw. Ento todos agachamseemrodaetocamaflautanovamente,juntos,egritandomaisumavez.Amsicado Wanoridbecomoumaseleo,dizemalguns,devriascanescurtas,entrecortadaspelogrito. Ocoroemunssonoeamaneiraforteeintensadecantarcomoadascanessonhadas. Adanaemcrculoformadopelos danhohui'wa e,eventualmente,mulheresdamesma classedeidade.Umadiferenaaquiqueoolharmasculinoreto,masasmulheresmantma cabeabaixa(revertendoavigilncia,talvez).Aocontrriodasoutrasdanasdospadrinhos,nesta elespodememesmodevemencararemse,preparandoseparasustosdeseusparceiros. Nomeiodecadasubcano,giraseparaoladoopostoe,nofinal,comogrito,tornasea girarparaooutrolado.Nomeiodestadana,membrosdemetadesexogmicasopostasprovocam sevezporoutra,fingindoataqueslargandoasmoseindoemdireoaooutrooudandotapinhas para assustar. Sofri vrios desses ataques, numa intensidade maior do que a de meus companheiros:aintensidadedeminhaalteridadetambmseriamaior.TalvezporserPo'redza'ono, noteiquequemtomavamaisiniciativadessesataqueseramoswaw jquemuitosdeleseram endereadosamim.Contraeles,meusirmosincentivavammeareagir,balanandosuasmosna minhaemdireodapossvelvtima,outrocandoolharescomigo.Talvezamaiorindisciplinapor partedos waw sedevapelofatodequetodooprocessodo Danhono,ocomplexoritualde furaodeorelha,depossewaw,elessoseusdonos,datede'wa. InclusiveerasempreumPoredza'onoquedeviafazeroserviodebuscarapalhausadapara enfeitarosdanarinos.Muitasvezeseumesmooquenodeixavadeserretribudo:Paulinho Anderson,lderdaturma,quasesemprevinhameenfeitar. Essas provocaes na dana aparecem como momentos de indisciplina mas, longe de gerarem reprimendas,geramrisosdos danarinos edaaudincianormalmente,homens mais velhosreunidosnoptiodaaldeiaparao war subseqente.Risosdevotadoscontraavtimado ataque. Talindisciplinareconhecidapoisquemapraticapodeserchamadodepo're'. Depoisdadanatodosos danhohui'wa,pertencentesmesmaclassedeidade,vojuntos tomarbanhoderioe,sobretudoaoanoitecer,soseguidosinclusiveporaquelesdanhohui'waque porummotivoououtronoparticiparamdoWanoridbe. Enfim,o Wanoridbe umacerimnialongaecomplexaparaquemcanta,eograude dificuldadedeexecuodocantoparecefazerpartedoesforoqueelerepresentajuntamentecoma dana.Omeioamensagem:umademonstraodecapacidade,defora,deentrega,etemum 341
teoragonsticoededesafiocontraasclassesdeidadedametadecerimonialoposta.Duranteo DanhononaaldeiaBelm,quantomaisprximosestvamosdosmomentoschavesdoritual(como odiadafuraodeorelha),maisintensosetornavaoagonismoentreasclassesdeidade.Assim, cadavezqueeraexecutado,sejanofimdatarde,sejademadrugada,aprimeirapartedocantoeda danaerarepetidamaisdeumavezparademonstraroesforodosdanarinos.Eracantadaumas vez de vez em quando, trs ou mais vezes freqentemente e, quando a inteno de desafio e demonstrao de fora estava mais aguada, cantavase mesmo dez vezes. Quem se ausentava dessesmomentosficavaenvergonhadoecirculavapoucopelaaldeianodiaseguinte.Daspoucas vezesquemeausenteicansadodoesforodetornarmegentefuihostilizadocomreprimendas nodiaseguinte. * Como j mencionado, as letras desses dois tipos de canes as sonhadas e as do Wanoridbe somarcadas,nogeral,porummistodepalavrascomsentidonalnguaa'uw xavanteepalavrasquenosopalavras.Babadidamreme,respondiamquandolhesperguntavao sentidodamaioriadasfrasesdoscantos:nopalavra,notempalavra.Aindaquesejam, comojsugerido,uma linguagemespiritual eaindaque,paraalgunsvelhos,elassejam,defato, damreme,palavra,e a'uw mreme,lnguadegente.Essamisturaentrealnguaeanolngua parece ser uma caracterstica importante da cano a'uwxavante como mediadora entre os humanoseseusoutros. Algumasdessaspalavrasfazem,poroutrolado,refernciasdisciplina.Trechodeumadas canesensinadasamimporAdoTop'tiro,porexemplo,diziaoseguinte:himana're,mawa'a dzede'. OsA'uwXavanteaquemeupediaesclarecimentossobreessasletras,namaioriadas vezesmeuscompanheirosdeclassedeidade,sempretinhamalgumainterpretaoarespeitodelas ouumamaneiradeaproximlaslinguagemcorrente.Estafrase,porexemplo,mefoitraduzida porMarcos,naAbelhinha,daseguinteforma:semcondutaousemvida,aquelequepreguioso no pode fiar. Re, sufixo de diminutivo, transforma a palavra sem contuda em sem condutinha, semvidinha; ma wa'a quer dizer aquele que preguioso e no fia interpretaoaproximadadapalavradzede',jquedzidifiare'no. Dessasletraspodem,ainda,brotarsignificadosinusitadoseengraados,comonumtrecho deumcantoquefalaquecertaclassedeidadeteria nomopipare barrigaassustadorazinha, barriga feiosa. O que no faz com que perca sua eficcia, nem que no seja cantada com seriedade.Dossonhosqueeutivecomcanesa'uwxavantesquecanteiparaosadolescentes,um 342
deles,talvezpelamtrica,talvezpelacombinaodepalavrasenopalavras,talvezmesmopor teremsidosonhadaspormimumdanhimidzamaeraparticularmenteengraado,talvezmesmo ridculo.Entretanto,nososadolescentescomoosdanhohui'wainsistiamparaqueeuocantasse semprequepodiam,cantavamnoporcontraprpria,numesforodememorizaoe,inclusive,na frianoiteemquetireiosho'wadacamaparacantaremnocomigopelaprimeiravezsobprotestos, muxoxos e mesmo risos um demeus irmos mais velhos saiu desua casa ansiosocom um gravadornamo,pedindoparaqueeucantassemaisaltoeforte.Eracomoseaeficciasimblica docanto,fundadanarelaocomaalteridade,fosseredobradavindodemim,umcativoaindato potenteemtermosderelaesexteriores.Istodescontaria,decertomodo,ospontosnegativosde minhaperformanceeaspossveisesquisiticesdacano.Inclusiveporque,sonhandoestacano (quemeveiodabocadeumdemeusirmosmaisvelhosuptabidaoutraaldeia)ecantandoa,eu apresentavalhes minha capacidade de tornarme sujeito atravs da experincia onrica de meu dahibauptabi. * Quanto ao ritmo, a diviso silbica dessas canes est ligada ao modo de alternncia mtricaentreoscompassos,variaesidentificadasporAytaicomocaractersticasdaalternncia mtricaentrecompassosdamsicaa'uwxavante(1985:7982),mtricaquesereplicanumnovo estilodecano. PoishojehoutrotipodemsicaentreosA'uwXavante,decantoressoloouduplas, envolvendoinstrumentosetcnicaswaradzu259.UmdosexpoentesdesteestiloMrcioTserehit, meu pai adotivoemBelm.Elequetocaviolo(comafinaoprpria260)etecladocombateria eletrnica,tendosidoapoiadovezporoutraporLeandro(seupatrocinadodeclassedeidade)nos chocalhosepandeiro. Mrciocriouumnomeparaseuestilomusical:Mariwatsihiba.Mar(i)metadedeseu nomeprprioinfantil(Mariwapo),equerdizermata(comvogaldeligaoi). Watsihiba querdizernossavida,nossocorpoeestreladavida(lugarparaondevoosmortos).Segundo ele,issosinalizaquesetratadeumamsicaparatodos,a'uw,waradzu,branco,negro.
259 AnovidadedesteestilofoiatestadanospelosA'uwXavantecomotambmporenfermeiros waradzu que, tendoumahistriadevidamuitoligadaaosA'uwXavante,viramesseestilosurgir.Aytai(1985),porsuavez,percebe aintroduodesseselementos waradzunoscantossacros,cantadosnasigrejasmissionriasque,contudo,mantm umaestruturadecompassosemalternnciasemelhantescanescerimoniais. 260 Aindaassim,insistiuparaqueeuafinasseparaeleoviolocorretamente,conformeopadro,dacordamais graveparaaaguda:Mi,L,R,Sol,Si,Mi.
343
Umadesuascanes,Ti'AiMeh,dizoseguinte: Ahti'aimeh(3/4)/Watsitsawidza'rana(4/4)/Aihiniwarob'remh(8/4)/(repetio)(7/4 ou8/4)/(repetio)(10/4)/ Row row row uptabina (5/4)/ Watsitsawidza'rana (4/4)261:aqui nestaterrasaudemosnostodosdentrodanossaaldeia.Fiquemosmuitobem,saudandonos. Atemticaparecesemelhanteadealgumascanessonhadas,apesardesertodaema'uw mreme,eamtricasilbicadasfrasesdecadaversocondicionaamsicadetalformaquesvezes acontecemvariaesnaspassagensdeumversoparaooutrodevidoaotempoderespiraodo cantor,quenofixadocomoseriaumcantodisciplinado.Abateriaeletrnicadotecladousada nestamsicaintitulasemerseybeat,clssico4/4derock'n'roll,tocadanumaaceleraoqueafaz parecer2/4.Umchocalhotambmcostumaacompanharacano,reforandoadivisoemdoisde cadatempo,enfatizadapelaaceleraodabateriaeletrnica.Demodoque,apesardacanonose encaixarperfeitamentenabatidadabateria,odesencaixedifcildenotarpoisacontecenomeiodo compasso.Umcantodemtricaindisciplinadaencaixasenumritmodisciplinadodeumteclado eletrnico.Masocorpodocantornosedeixadocilizar,aelaboraotemporaldeseuatopartede simesmo. Muitasvezesessascanesdecantoresouduplasservemcomoacompanhamentodaquelas competiesdeA'uw AimwiTsirenedanadeoutrosndios.Comojdito,essasdanasso tidascomocapturasdedanasdeoutrospovos,norteamericanos,andinosemesmo waradzu. A msicautilizadanessascompetiespodeserwaradzuoua'uw aimwinhimihrmelodiade outrosndios,sobretudoandinas. * Tomandoumadistinomaussianaentrecoroesolo(1981),podesedizerqueasmsicas cerimoniais,dosdoisprimeirostiposapresentados,performadassobretudopelasclassesdeidade, so canes semsolo,tmsomentecoro.Os participantes devemseesforarpormemorizar a msicaapresentadapelopuxadordocantoepormimetizlobem.Esseusodocantocontrastacom ousodavoznotipodediscussodialgicaexistenosdebatespolticosnowar(Graham1990e 1995). Rememorandoosestudossobreodialogismoa'uwxavante,sugeridospelapercepode MayburyLewis sobre a maneira sobreposta atravs da qual os opositores polticos travam sua conversaformalnowar(MayburyLewis1984[1967]),podesenotarocontrasteentreounssono
261Anumeraoumaaproximaodamtricadoscompassosdamsica,oprimeironmeroindicandoaquantidade detnicasoutemposdocompasso,eosegundoaunidadedetempo,asemnima.
344
deumaeorudodeoutra,oquevemaoencontrodoargumentodoautordequeasclassesdeidade estariamparaapacificaoassimcomoaslinhagensestariamparaoconflito,jqueodilogodos lderespolticosefaccionais,apesardetambmpossibilitaroconsenso,deixaoconflitoaparecer mais. Entretanto, o que j foi dito sobre a presena do conflito entre as classes de idade antagnicas(Vianna2001eFalleiros2005)tambmseapresentanocanto.Emalgumassituaes rituais,presenciaseclassesantagnicascantandoaomesmotempo,sobretudodepoisdecorridas comoo Uiwede (corridadetora)eo Tsa'uri'wa.Cantamaomesmotempo,verdade,masno exatamente no centro da aldeia e, tampouco, caraacara diferentemente, portanto, das manifestaesdedilogopolticoformalentreadversrios.Essescantossofeitosemrodasquevo circulandoaaldeiadecasaemcasa(sobretudodiantedecasasdevelhos),asrodasdasmetades agmicasopostascruzamoarcodaaldeia,cadaqualcaminhandoemsentidoopostodaoutra. Mas,quandosecruzamdiantedealgumaresidncia,umametadeagmicaesperaaque chegouprimeiroacabardecantarparacantardepois.Isto,oconflitoexiste,sim:masatenuado. *** Entreocaoseaordem Alinhagema'uwxavantecomocorpocoletivodoenredamentodecorposqueparticipam seentresi,esuarelaocomachefia,tambmapontaparaanoodepessoamagnificadatratada porRenatoSztutman(2005,2006a).AplicandoanlisesdeautorescomoMarilynStratherneRoy Wagner em conjuntocomconcepes clastreanasdechefia,Sztutmanpercebeoslderescomo pessoasmagnificadas,capazesdeatrairseguidores,concentrarrelaes,fazercomqueoutros faam.Entidadesligadasguerra,oquetocontraacoesoquantocontraestatal,impedindoa emergnciadeumpoderseparado,tambmpodefazerbrotaressepoderseparado,porexemplo, [n]aformaodeumaelitedeguerreiros,dizSztutman(2006b:2)apartirdeClastres. Creioquetambmasclassesdeidade,comocorporaescorporaisdeatuaotcnicae poltica,podemsercompreendidascomopessoasestendidas,senocomopessoasmagnificadas. Amsicascoloca,assimcomoocantorealideranaa'uwxavantes,prximasaochefe amerndiodeClastres,poisconseguemseapropriardemodosagazdaagnciaquevemdefora (Sztutman 2006b:3),entregandoaparaocoletivoaldeonaformadecantos.Humahtero 345
afirmaodocoletivopelavozdoslderesedosxamsouporintermdiodasprticasrituais (Clastres,2004[1980]:65104)dascorporaescorporais. Sztutmanreafirmaaimportnciadaguerranaconstituiodemltiplosplosqueimpeam acriaodeumaunidadedeformaEstado(2009a:19). Nestesentido,Mausstratanosda guerracomodapaz,apontandonossubgruposamultiplicaodosplosecentros,maisdeum regime poltico, mais de uma organizao do poder (1981: 110). Condies da possibilidade coletiva de diferenciarse internamente sem se cindir, num arranjo de foras em movimento, inibindopoderesestveis.Sovigilantesquevigiamvigilantes.Vigilnciaquesemanifestanum elementodeinversohierrquicapresentenasrelaesdegnero,levandosmulhereseperiferia daaldeiaumapotnciadecontroleepredaosobreoshomensqueestonocentro. E se as classes de idade so coletivos corporais de uma mquina orgnica que visa a pacificaomasjustamenteporqueconstituemsecomocorposcoletivosdeguerreiros,quetmo jogo(oagonismodoscantos,dascorridasemesmodovleiedofutebol)comofiguradaguerra guerraatenuada,masdistintadesta.Pacificarpelaguerra,comojapontado,umarecorrnciana falaenosmodosa'uwxavante.Entretanto,apacificaotambmsefazatravsdeumadisciplina ordenadora,unificadora,presentenocantoenadana:umatendnciaemdireoaoUmestatal, pensandocomClastres(2003[1974]:185192)ou,antes,comLaBotie(2008[1982])tendncia que esbarra, contudo, no dualismo, tanto das metades agmicas quanto na discrepncia entre ocidentais e orientais, que instabiliza a hierarquia. As classes so corpos coletivos que se relacionamentresiatravsdeumahierarquiamvel,circular.Acapacidadedestamquinadealiar, concentrar pessoas e de magnificarse: de federar aldeias em torno de corridas de tora, contrabalanceada pelo agonismo constitutivo de sua prpria engrenagem. Uma mquina anti entrpicaentreopacifismoeabeligerncia. Almdoque,comomquinadedisciplinalitrgicaecorporal(Sztutman2006b:3)sua ordenaocoexistecomaindisciplina.Ou,conformediriaMauss,comtiposopostosdedisciplina (1981:110),jqueasclassesdeidade,oparentescoemesmooutrasordensrituais,comooDarinie o supostamente esquecido Abadzi'rihidiba, entrecruzamse nas mesmas pessoas singulares, compondoseuscorposealmasapartirdeeixosesolidariedadesdiversas. * Emvezdeconceberachefiaamerndiaapenascomoposiopolticavazia,comoofaria Clastres,Sztutmanpropepensarcomocertaspessoassetornamchefes,lderespolticoseoque significaisso(2009a:20).Nessesentido,aconstituiodapessoaa'uwxavante,deseucorpo, 346
apontanosparaaguerraeparaoparentescomastambmparaapazeparaumaordemde alianasalmdoparentesco.Elementosque,magnificados,constituemtantoapessoasingulardo chefeatreladolinhagem,faco,mastambmclassedeidade,quantoapessoacoletivadesta corporaocorporalagmica,comseupoderparceladoentreseuscargosdeliderana. Haummovimentopendularentreaaguerraeapaz,adisciplinaeaindisciplina, a anarquia e o Estado, nunca plenamente estabelecidos, conforme a reconsiderao da poltica amerndiacomosituadaentreocontraEstadoeaformaEstado,doisvetorescapazesdeserem ativadosatodoomomento(Sztutman2009a:1516).Apresentaseaumdualismoemperptuo desequilbrioentreopodereocontrapoder,jogoentrepossibilidadesantitticas,[no]doisso ouaquilo,mas[...]doissoeaquilo,nobojodomovimentocontnuodeconcentraoedisperso que caracteriza a sociopoltica indgena (PerroneMoiss 2006: 89). Nesse sentido, tanto o parentescoquantooalmparentescocontmvetoresdaformaEstadoedocontraEstado. Nessa anlise,no huma identificao simplista entreindisciplina eanarquia ou entre disciplinaeEstado.Apontaseparaoarranjodessesprocessosquesemisturameseconfundemna emsuarelaotantopositivaquantonegativacomopodercosmopoltico. * Disciplina,enfim,tcnicadocorpo.Astcnicasdocorpo,oshbitoseossaberessobreo fazer oscilam entre a captura do estrangeiro e o aprendizado do antepassado. Oscilam entre a manutenoritualquesempreumaapreensodopassadoapartirdasvicissitudesdopresenteea inovaoritualapartirdooutroquejustamenteoqueosantepassadosfaziam.Balanamentreas danas dos antepassados e as danas de outros ndios. Variam entre os momentos de maior intensidadeeosdemaiorpreguia,osdemaiorentreganoptiodaaldeiaeosdemaiorfuganas expediesdamata,ouviceversa.umprocessoconstantedebusca,apreensoedistribuio, entreoretornoeodesvio,doisplosdeumvirarsempreinstvel,emmovimento. Senosodisciplinasunitrias,ento,tampoucosodisciplinassolitrias:elasdemandama participaodeoutrasdisciplinas,aparticipaodediversaspessoas,aparticipaocoletivaenos coletivos,aconstituiodapessoaapartirdaparticipao,nela,daalteridade.
****
347
5Magnificaoinconclusiva
Falavase,acima,sobreocartercoletivoeinterpessoaldadisciplinaedaparticipaona vidadosA'uwXavanteequinosnadeles.Umadisciplinaanimadapeloldicoepelo incentivocoletivo,pelodesavio,pelamsicaepelodilogo,pelosjogosdepalavrasepelasbrigas compalavras,pelaslutascorporaisepelaspegadinhas.Disciplinasque,seexigemumaparticipao intensa,compensampelamultiplicidadeepelachancededesvio,atdeperdadeconcentrao,por escolhasdecaminhosdiversosque,praticados,levamaoimediatoreconhecimentoprestigiosoe conseqente magnificao: ao participar de um ritual, cantar uma msica, carregar uma tora, executarumtrabalhooumesmotreinarparaumcampeonato,ensaiarumadanaouensinarum canto,meuscompanheiros(sobretudohomensjque,sendoeuhomem,respeitavaadivisode gnerodesuasatividades)estavamsempresendoobservadosesempreapresentandoseparauma audincia(sobretudoumaaudinciademulheres)eengrandecendosuapessoa,suaaparescncia, peranteasoutraspessoas.Mesmoperanteseuscompanheirosdecaaouparaaquelesquerecebiam deles uma poro de carne no final dodia. O que fazem eo quefaziam aparecer pareciame diretamenteproporcionalaoreconhecimentodequedispunham.Adoreocansaoqueissolhes custavaeramimediatamentecompartilhadoseexpostoaosdemais. Talvez,comparativamente,porcausadisso,oprocessodaescritaetnogrficasejaoume parea ser to penoso. Porque ele coloca aquele que escreve numa situao paradoxal de isolamento a fim de tratar de um mundo de dados que demandaram dele tanta participao e entrega.Necessidadedesolidoquecomeamesmoemcampo,nahoradaescritadoscadernos. Umetngrafomuitasvezesparecemesentirseatradopeloquehdediversonosoutros, partindoemsuabuscaemsuapesquisadevidoacertainadaptabilidadeemrelaoaoprprio mododevidadeondepartiu.Ummododevidacujadisciplinaparecetopoucofundadanesse movimentodeaberturaaooutroqueLviSrausscaracterizou,emHistriadeLince(1991)como ummovimentoamerndio.Chegandol,redescobrindoestaAmrica,contudo,eaestoparadoxo, spodeapreenderaquiloqueencontra(enquantoetngrafoeantroplogo),trazendoconhecimentos paradistribuirentreosseus,quasecomofaziamefazemosherismitoxamnicosa'uwxavante, seapesardetudoforcapazdeumadisciplinatocontrriaaesteprocesso,umadisciplinada qualeletentavaescapar:adisciplinadaescritaacadmica.262 262 Assim, faz algum sentido a afirmao de Michel Leiris, depois de sua viagem etnogrfica: retornei tendo
destrudopelomenosummito:odaviagemenquantomeiodeevaso(Leiris2003[1939]:186).Oqueecoaumpouco
348
Umadisciplinaqueexigeumtipodeconcentraopermanenteeperene,delongashoras, insubstituvel por outros processos. Uma disciplina em que quase todo o seu corpo deve ficar paralisado, quase imvel, movendo quase somente as pontas dos dedos pelo menos desde o adventodamquinadeescreveredocomputador.Eumadisciplinaquepodeexecutarsomente sozinho,aindaquesentadonumlaboratriocercadodeoutroscolegas,umapresenadeoutrosque quasedesnecessria,jqueaescritanodependedenenhumatcnicadocorpoqueenvolvaa movimentaoeotoquedeoutroscorpos(aocontrriodamaioriadasdanas,dosesportes,das artesmarciais,dosrituaiscerimoniososetantasoutrastcnicascorporais).Nosdesnecessria como,muitasvezes,desaconselhvel.Poisaescrita,nessesentido,temalgoemcomumcoma leitura:demandaumsilncioeumisolamentosemelhantesaoestadodeesprito(decorpo)presente numabibliotecapblica. Emais,otrabalho(ouoritual)daescritadeumaetnografiatalquenoexerceefeitosobre suaaudinciaduranteoprprioprocessodeexecuo:somenteaotrminodaescrita,eatravsde complicados processos de exposio e julgamento coletivos, gastos e acordos comerciais, publicaoedistribuiodaobra,queelapoderapresentarseaoleitor.Parecemmerarosos leitoresqueacompanhamesteprocessodeconstruodotextoquenosejamosrevisores. SeaInternetabriuumnovocampoparaumaformademanifestaoimediatadaescrita semelhantedeoutrosrituais,paraaapreciaoemtemporealdaaudincia(talvezsejaesteum dosmotivosdesucessodaschamadasredessociaisvirtuais)emesmoparaainterfernciadela comonasferramentaswiki,porexemplo,facilitandoaproduodetextoscoletivos,aindaassim aescritaetnogrficaeaproduoacadmicaautoralmantmmuitodeseuisolamento.Mesmoa escritaatravsdaInternetdependedeumisolamentodecadaescritordiantedeumcomputador pessoal. bemprovvelque,pormotivossemelhantesaesses,mesmoLviStrauss,umautorde pouca pesquisa de campo mas de muita pesquisa sobre a alteridade, ainda que atravs de leiturasembibliotecaspblicasearquivosrevelavaaDidierEribon(1988[2005])oquopenosoe sofrido era para ele escrever e o quanto sua dificuldade de relao com suas obras prontas e acabadasestavanofatodeseralgumvoltadoparaofazerpresenteeconcreto.Todoumfazerque,
opessimismodeLviStraussemrelaosviagens:Aoselocomoverdentrodeseuespao,ohomemtransporta consigotodasasposiesquejocupou,todasasqueocupar,devendo,nolimite,substituiraantropologiapela entropologia,dedicadaaestudar[]esseprocessodedesintegrao (LviStrauss2009[1955]:390391).No entanto,tomandoseomitonosentidoquelhedoosA'uwXavantesegundoMedeiros(1990),defatoaviagemnoo destrimasreplicaoseuprocesso:odefuga,capturaeretorno.
349
naescrita,semartiriza,spossibilitaoespetculodepoisdefindoosacrifcio. Poisbem,aoinvsdededicarsesdanas,aoscantosemesmoaostreinosejogosde futebol,aoinvsdepartirparaandanasecaadasoumesmopermanecerdeitadofazendonadaou quasenada(comofaziamdurantehorasosadolescentesdentrodo H),tomardiversosbanhose travarencontrosonricosafimdecapturarcantosquecolocaram,diaadia,todosessesrituaisem movimentocoletivo,oetngrafodeveapartarsedoconvviogeraleescrever. Quandoeufaziaisso,nasaldeias,chegavaasertratadocomdesdmedesconfiana.Porque eupassavatantotemposozinho,dentrodabarracaounoquartodo postinho?Estariadormindo? Estaria isolandome localmente assim como o primeiro Waradzu, Tserebutuw, isolouse distanciadamente? Estaria eu repondo, no lugar da proximidade, esta distncia? Contra essa possibilidade, eueraconstantementeprocuradopormeusparentes adotivos,pelascrianas, por meuscompanheirosdeclassedeidade,todospreocupadosemmeocupardesuavidacoletiva,em mechamarparabanhos,treinos,ensaios,jogos,ritos...nashorasmaiscansativaseinconvenientes paraquemprecisaescrever. Passavamseuma,duas,svezestrshorasdeescritaemmeuscadernosdecamponoite, sobaluzdevelasoudeumalanterna,namaioriadasvezesdepoisdeumareuniodowar que nemsempreacabavacedo.Enodiaseguintetambmnoteriamuitotempoparadormir.Tivede explicar essa situao diversas vezes para os A'uwXavante, principalmente para os outros danhohui'wa, tpa, que a entenderam com muito custo. Inclusive porque a fase da vida dos danhohui'waumadasmaisexigentesemconjuntocomadoswapteados'riti'waemtermos departicipaocoletiva,altimafasedeumprocessodeentregaritual,de festa,quemarca a magnificaopessoaldeumhomemeabrecaminhoparanovasmagnificaes. Eu,porpoucotempoquepasseientreeles,jpudesentirogostinhodetaismagnificaesna formadoscargosrituaisquerecebiAi'utmanhari'wae'Wamartede'wae,aindaquenadadisso sejadefinitivoafinaloprocessoa'uwxavantedetornarsealgumcontnuoedependedesua reiteradamanifestaoeuteriasempreachancedemeaperfeioaremsuasfunes,exerclas futuramentee,qui,usufruirdealgunslourosdoscargos.Osprprioscargos,emsi,jsograndes concessesdehonra. As honras que o antroplogo recebe de sua prpria sociedade ocidental ou euro americana,poroutrolado,noparecemserdasmaisreconhecidasanosernocasoderaras exceesdentrodaprofisso,nacondiodeintelectuaispblicoscomoFlorestanFernandes, GilbertoFreire,RobertodaMattaemesmoLviStrauss(quesegrandenaFrana,noBrasilfoi 350
at homenageado em msicas populares). claro que, proporcionalmente j que os A'uw Xavante no so uma sociedade de massas de milhes de habitantes , o antroplogo pode adquirirreconhecimentosemelhante:nolaboratrioemquetrabalha,emseucampodepesquisa, emsuareadeespecializao,emsuaaldeia,mastambmapartirdeumaredederelaesquese magnificaeamplia,nacionaleinternacionalmente.Nessenvelelepode,enfim,usufruirdettulose cargosmaseesteopontoquequerofrisarnoapartirdeumamanifestaoimediatadesuas qualidadestcnicasesensveis,comofaziamseusnativosmeuscompanheirosa'uwxavante. Talvez como professor, atravs de suas performances em sala de aula ou palestras, tenha uma experinciaprximadesta. * Ainda assim, a magnificao profissional do etngrafo acaba condicionada por um movimentopendularmuitosemelhanteaoa'uwxavante:eleprecisairevoltardecamposua fontededadosevitalidadeetnogrficaescrevereparticipardomododevidaacadmico,publicar e, em seguida, retornar novamente a campo, e de novo vida acadmica... A quantidade de pesquisas de campo que faz um antroplogo no exatamente correlata ao grau de sua magnificaoprofissional(eestaoexemplodeLviStraussque,mesmoacusadodeterfeito poucocampo,pdemagnificarsedemaneiratoexpandida),talveztendoavidaacadmicaum pesoatmaior. Por outro lado, como j foi indicado, a magnificao de um cativo, como eu, entre os A'uwXavante, parece dever muito a este movimento pendular de ida e volta propiciado pela Antropologia. Nessesentido,aoparticipardoinstveleinacabadoprocessodetornarsegentepeloqual passatodaequalquerpessoaA'uwXavante,docativopareceserdemandadoumesforomaior.O cativo antroplogo, por sua vez, acaba compensando esse esforo atravs das contnuas idas e vindasqueomuniciamdecargasdevitalidadeepoderqueeledevelevardevoltaaldeia,demodo queseuprocessodegentificaosetorna,talvezmaisintensamente,umprocessodemagnificao. Noqueissonosejaverdadeparaqualquerpessoa,jquetodapessoaconstitudaporessas relaespendularesmasaindamaisverdadeparapessoasquetomamolugarintensivodessas relaes, o lugar da mediao. De modo que o antroplogo, nesse processo, acaba adquirindo algumasemelhanacomochefe,older,odzu,obatedor,osonhador... Suaintensidaderelacionaltalvezsejamaiscarregadadoqueadealgunscativos,pormsua capacidadedetornarsegentetalvezsejapostamaisemrisco. 351
Diferentementedaquelescativosdocasomebengokr(kayap),porexemplo,estudadopor Cohn(2005),emqueainseronoconvvioenofazercomecomoosMebengokrnoparentesco, na vida ritual, atravs do recebimento de um nome e do aprendizado da lngua que, enfim, possibilitavaocasamento(poisssecasacomgente,comquemfalalnguadegente)faziacom quesetornassemdefinitivamenteMebengokraindaqueaprpriapessoaMebengokrconstitua se um fluxo sem final. Assim como aqui, l os cativos eram fonte de riquezas e vitalidades estrangeiras,objetos,enfeitesecantoselementosqueaautoradiscuteseremenglobadospelo termokukradj(2008)elelestambmacabavamsendocapturadosoupossudosporpessoas asquaispoderiachamardemagnificadas,lderesehomensimportantes(Cohn2005:115). Seria ocasoa'uwxavante coincidente aomebengokr,operando umprocessobastante semelhantedeinsero?MrcioTserehitalgumasvezesmedisse,nosemindiretas,queparase tornar a'uw nobastavaresidirnaaldeiaporalgumassemanasoualgunsmesesedepoispartir. Talvezanos?Equantoquelesantroplogosquemantmumrelacionamentodedcadascomseus sujeitospesquisa?Serqueseuscontnuosretornosseriamtantoseportantotempoaopontode queaprendessebemalngua,secasassee...?Responderaestaperguntanoseriamaisdoque especulao.Oquemeparecemaisntidoque acarreiradeantroplogopodecolocaralguns empecilhoscarreiradenativo,eviceversa.Entretanto,paradoxalmente,umatambmacaba potencializandoaoutra. Afinal,aprpriaantropologiacontmemsiumimpulsodetornarsenativa,deabsorvera teorianativaparaomagodesuaprpriateoria263. * Oantroplogo,aindaquenosetorneplenamentehumanoou,melhor,aindaqueesteja umpoucomaislongedissodoqueseusnativosqueocapturamnoprocessodedeviremhumanos ,passa,aomenosnomeucasoestudado,afazerpartedashierarquiasa'uwxavanteedesuas inverses,certamente. Hierarquias que envolvem relaes de filiao (e filiao putativa adoo, apadrinhamento),deafinidade,diferenasdeidadeetc. Gostaria de recuperar resumidamente, agora, a hiptese a respeito das relaes de aparentamento e hierarquia, incluindo os aspectos endocanibais figurados da cadeia alimentar
263 ViveirosdeCastro,ementrevistarecente(LagroueBelaunde2011),reconhecenaobramitolgicadeLviStrauss esteprocesso,umprocessodetornarseamerndia,cujopiceestariaemHistriadeLince(1991).Esperoque,apartir dasleiturasdesteautor(edestaobra)aquirecuperadasdentreoutroseoutrasopresentetrabalhotambmcontribua noprocessodeamerindianizao,porassimdizer,daantropologiaedapoltica.
352
a'uwxavente,fundadanoseguintepreceitobsico:osmaisnovos(emprocessodeiniciaovida adulta,distribudoemvriasfasescrianasaindanoentraramnessejogo)alimentam(em sentidoamplo)osmaisvelhos;osafinsquerecebemmulheresalimentamosquedoammulheres. Emsuma,quemveioprimeirodevereceberprimeiro. Essahierarquiapodeser,contudo,revertidapeloprincpiodeque,aquemtomaainiciativa deagiroupredar,nonegadooquefoiconquistado,pegooutomado.Osmaisvelhos,emcasa, recebem a comida primeiro; as classes de idade mais novas devem alimentar as mais velhas (sobretudo os adolescentes devem dar constantemente aos membros da classe de idade que os apadrinhaalimentosnoH);osirmosmaisnovosdevemalimentaroudarcoisasaosmaisvelhos; ditoqueosirmosmaisnovos,bemcomoosmembrosmaisnovosdasclassesdeidade(danhit'wa) devemtrabalharmuito(parateroquedaraosmaisvelhos...).Entretanto,umapessoadeatitude maisousada,quepegaalgoparasi,quepegacomidaparasiantesdosoutros,quechegaprimeiroou mesmo que toma o que no lhe deviam, no necessariamente punida. Muitas vezes considerada como brava (tsahi), um elemento importante da constituio a'uwxavante. Em algumas ocasies, quando pessoas pegaram o que no deviam de mim por exemplo, numa distribuiodeCDsdemsicaquefiznoptiodaaldeia,naqualnotaramquecertapessoatinha pegomaisdeumCD(quandooprejudicadofoioutroA'uwXavantequeficousempresente); outraquandotivemeucelularfurtado(quandooprejudicadoeraeu)disserammequeeudeveria deixarparal.Emsuma,apessoaquetomaumainiciativapredatriamuitasvezesvalorizadapor causadissoou,seno,deveserdeixadaempaz. Aoenredamentocorporalqueexistenombitodoparentesco,atransmissodecargose encargossuperveniente,isto,estligadaaelemasseguerumosprpriosconformeatransmisso decadacargoespecfico.Mesmoassim,feitafundamentalmentenosentidoinversodahierarquia acimaresumida:osmaisvelhostransmitemcargos,encargosepoderesaosmaisnovosatravsde vnculos de filiao, cognao (na relao entre avs e netos) e mesmo amizade formalizada (cognao e amizade formalizada relacionam membros de metades exogmicas opostas). A capacidade deconstituireatualizarlaos pelaconvivncia,comensalidadeegenerosidade est, assim,ligadasposiesprivilegiadasemagnificaopessoal. * Enfim,osA'uwXavantetendematransformaremgente,ndio,a'uw,osestrangeirosque atuamjuntoaeles,conformeaadoo,anominao,aentregapessoal,aparticipaocotidianae ritualqueesperadaelouvadaporseusamigosecaptores.Atomomento,hindciosdequeessa 353
transformao no plena, depende da relao em jogo e ocorre de maneira oscilante e ambivalente, o que marca principal do carter de mediao em que a figura do estrangeiro capturadoedopesquisadorseenquadram.Essacaractersticaaproximaaposiodopesquisador deelementosquetemdemarcadonoesdelideranaamerndiaconformeestudadaspelaetnologia, aopassoqueosituaemcargosrituaiseencargosdelideranaa'uwxavante. Oscargosdelideranasodiversosecontemplamumapluralidadedepessoasproeminentes a proeminncia do pesquisador vindo, sobretudo, de sua potncia estrangeira, assim como a proeminnciadelderesa'uwxavantestemavercomsuacapacidadedecapturaedecontatocom potnciasexteriores,estrangeirasouantepassadas.Cargosrituaisimportantes,comoPahri'wa,so atualizaes de pessoas mitooriginais. Assim tambm o cargo do 'Wamaritede'wa ou 'Wamaridzubtede'wa, o primeiro termo enfatizando o carter de sonhador do titular pois o 'wamari, rvore deondeteriam seoriginadoos primeiros A'uwXavante, matriaprima do brincousadoparasonhareosegundooseucarterdepacificador(umadasfamosasfunes teorizadasarespeitodachefiaamerndia)jqueopdo'wamari('wamaridzu)lanadopela aldeiaemmomentosdeconflitosinternos,afimdepacificla.Muitoscaciquesdealdeiapossuem cargosdotipo,masnoobrigatoriamente.OcaciquedaAbelhinha'Wamaritede'wa.Jocacique deBelm,poroutrolado,dotadodeconhecimentosestrangeiros,portervivido,quandojovem,no interiordeSoPauloefeitofaculdade. Quantogenerosidadeesperada,DavidMayburyLewis,primeiroantroplogoaestarentre osa'uwxavante,nanicaerpidacomunicaopessoalquetivemos,alertoumedequeelaera umaespciederegra:elespedemmuito.Demodoquequalquerproeminnciaadquiridapelo pesquisadorentreosA'uwXavanteno,demodoalgum,gratuita:envolveopoderdedare distribuir,inclusiveporqueos Waradzu soconcebidoscomopessoasquetmdinheiroemuitas posses.Porquetmrelaodiretacomumafontedevitalidadeepoderque,setomaarestotalitrios eestabilizantes,estatais(oucapitais),tambmdotadadeumacapacidadedistributiva. Assim,fuisolicitadoadarlhesmuito:dinheiro,roupas,camisetaseshortspararituaisetc.. NotardeparalembrarquePaulinhoAnderson,umalideranaentreos tpadeBelm, diziame vrias vezes, provocativamente, que eu era o chefe e o dono dos tpa: tpa danhimih'ae tpatede'wa,porserquem,aosolhosdosA'uwXavante,maistinhadinheiropara contribuircomdiversosgastosdenossaclassedeidade,comoocombustveldocaminhoquenos levavaequeeledirigiaparaascaadascoletivaseatividadesforadaaldeia.Eurelutavaem aceitaresseencargo,retrucandoqueo chefe eraele.Serum chefe a'uwxavante envolvetanta 354
responsabilidadequantoservido,ealideranadificilmenteadmitidaporaquelequeapontado como tal, como observei na atitude de alguns chefes de grupo (Pahri'wa, Tbe etc.), pois demandavatomarcorpoportodoo grupo. Poroutrolado,estaresponsabilidadeemrelaoao corpo coletivo tambm significaria uma capacidade de agregar, atrair gente, conforme diria Sztutman(2006a)arespeitodapessoamagnificadaamerndia.Aocontribuircommaisdinheiro paraocombustveldocaminho,porexemplo,eueracapazdelevarmuitagentecaa(talvezpor isso,alis,eutenharecebido,emcontrapartida,presasasquaiseumesmonotinhacaado)eera at mesmo responsabilizado (por Paulinho e outros) a coletar as demais (e bem menores) contribuies financeiras de outros participantes. Sentado na bolia ao seu lado, assistia ao motoristaPaulinho,comobomouvinte,perguntandoeacatandoassugestesderotadadaspelos outrosdacaamba,muitasvezesperguntandoatparamim,quepoucoconheciasuasterras. Experimenteiemcampoumanecessidadedeentregapessoalquebeiravaosacrifcio,no somentenoatendimentodosincessantespedidosesolicitaesquefazemosa'uwxavante,mas tambmnotrabalhocotidianoenaparticipaodosrituais,sobretudoporserdanhohui'wa,oque envolvediversasatividadesldicasporextenuanteshorassobosolesobaluaatividadesasquais outrospesquisadores,comoWelch(2010),porexemplo,tambmrelataram.Foinesseprocessoque participei da construodo H naAbelhinha,sendoimputadaamim,pelos A'uwXavante, a sugestodefazlo. Aobrigaodaentregadesi,principalmentenessesanosquevodowaptaodanhohui'wa, parecemesercoextensivaobrigaodesergeneroso,exigidadequalquerpessoaa'uwxavante, jqueumadaspioresofensasparaelessovina,tsti.Anecessidadededarparecepermanente, condiodacontnuaatualizaodagentificaoemprocessosemtermo.Mastaldoaoetal entregasomajoradasduranteesteperodomedialdavida,queMayburyLewisconsiderouserto importanteparaapacificaocoletiva. Oquelevaacrer,alargandoacomparaodocasoA'uwXavantecomteoriasdachefia amerndia,queaquielasetratamaisdeumaquestodegrautodosdevemsergenerosos,alguns devemsermaisgenerososaindaquedeumaquestodeinversodareciprocidadecomoafirmara PierreClastresemsuafilosofiadachefiaindgena(2003[1974]). Almdisso,aentregadoantroplogoumacontrafacedaadoopeloparentescoa'uw xavante.Ocostumedaadoofazdoestrangeiroum filho,um irmo etantosoutrostermosde parentesco, envolvendo agnao, cognao e afinidade, no podendo sua potncia ser reduzida somenteaumdessestermos. 355
Mas repitasequenos aadoo doparentescofazpartedoprocessodevirargente, a'uw,doantroplogo:tambmaparticipaoemrelaesquevoalmdoparentesco,comoadas classesdeidade. Canto e dana so elementos constitutivos do modo de vida dahimanadz a'uw xavanteconformeaparecemritualizadosnasclassesdeidade.Cantaredanarfazpartedomodode vidadospadrinhosdodanhohui'wahoimanadz.Almdeparticiparnoscantosedanas,tambm fui muitas vezes exortado a cantar (da mesma forma que era exortado a darlhes presentes) exaustivamentecanesdelesmesmos,emsualngua,bemcomoatrazercontribuiesmusicaisde meussonhos,oumesmocantarlhesmsicaspopularesbrasileiras.precisosaberfazer,conhecere manifestaressastcnicasdocorpo,poisocontroledosaberfazerquepermitequesetomeolugar dosujeitoedopredador. No somente a identidade do nativo que vai sendo construda ao se avanar o trabalhodecampo,mastambmapersonadoantroplogo(Rocha2006:103).Eoconhecimento queeleadquire,destemodo,constitutivodoprocessodesuatransformaoempessoa,desua participao, e viceversa: para conhecer, ensinam os A'uwXavante, preciso participar. Em campo,estaparticipaocabalmentecorporalou,melhor,oprpriocampotambmconstitudo pelocorpodoetngrafo(Rocha2006).Aqui,anoodeobservaoparticipantetomaumcarter radical de participao nas relaes, nos rituais e atravs de suas tcnicas corporais, na comensalidade, na convivncia, todos elementos da constituio da pessoa a'uw: dahiba ou, melhor,daprpriapessoaa'uw:dahibauptabi. Ademais, sendo cativo de uma importante famlia a'uwxavante a'uw uptabi: gente mesmoosmaisvelhosdafamliaafirmariamqueeutambmseriauma'uwuptabi. Nesseprocessodereconstruodapessoadoantroplogo,tambmrecebidiferentesnomes, apelidosemesmocargoscerimoniais.Todosessesnomesettulosdecertaformasituammenas relaes que fui travando com os A'uwXavante. Uma relao de proximidade e jocosidade ('Riwaw),umvnculodeparentescoetambmdecorpo(Tsa'rwaw),umvnculodeamizade formalizada (Ai'utmanhri'wa) etc.. Lopes da Silva, sobre o nome masculino a'wuxavante, considerao como formador da pessoa no sentido de sistema de relaes (LviStrauss apud LopesdaSilva1986). Enfim,naminharelaocomosA'uwXavanteounasuarelaocomigomanifestase aquelemovimentopendularidentificadoporFernandoVianna(2001),sobreasrelaesdosA'uw XavantecomosWaradzu,entreahostilidadeeaamizade,hipteseexpandidaapartirdapercepo 356
deLopesdaSilva(1986)sobreasrelaesdosA'uwXavanteentresimesmos.Estaimagemvolta a aparecer em proposies de autores como Sztutman e PerroneMoiss a respeito da poltica amerndia pendulando entre a conjuno e a disjuno, sem sntese, um constante jogo entre possibilidades antitticas (PerroneMoiss 2006), inspirada pela tese do desequilbrio instvel desenvolvidaem HistriadeLince (LviStrauss1991).Nomeucaso,opnduloseaplicaria caracterizaodoetngrafooracomoa'uw,oracomowaradzu,operandoumaambivalnciaentre conjunoedisjuno. O poder inventivo e transformista que atualizado assim parece ser o poder de criar vnculos,queparaosA'uwXavantetemavercomumaalternnciaentreocapturareodar.No meucaso,comocapturado,tratasedeumacapturavivaeaovivo,interessadanumfluxocontnuo deddivasnaformadeobjetosnosdeorigemmercantil.umamaneiradeencorporar(emseu corpo coletivo)o outro vivo,transformlo em semelhante sem, ao menos no meu caso (o do antroplogo),eliminarsuaalteridade.Amisturaeaseparaoagemjuntasnesseprocesso. Assimparecesecaracterizarumaatuaopropriamentepolticadoantroplogo,comoum especialistaemrelaes. Arelaoentreantroplogosecargospolticoserituaisamerndiostemsidoobservadah tempos,comonocasodahistriapessoaldeCurtNimuendajeoscargostradicionaisporele assumidosdentreosTimbira264edecomoconseguiuimpedirafissodeumaaldeiaCanela(confira Nimuendaju1946e2000);oumesmonoscadernosdecampodeEduardoGalvo,ondeoautor relataepisdioemquesevresponsvelporevitardissidnciasnaescolhadocapitodeuma aldeia kaio, influindo na resoluo poltica: foi levado a interferir, conforme os nativos esperavam que fizesse, promulgando que no haveria nenhum capito e que todos seriam iguais:Estamosassim,almdeantroplogos,encarregadosdefato(Gonalves1996:221).
264NimuendajufoiassimiladopelasociedademasculinatimbiraTamha'k,cujosmembrostmodeverdeserem bastantegenerosos,principalmentecomcomidapararituais,eporissosotambmtratadoscomottulodeHamrn (quequalificaumnvelhierrquicosuperiornasrelaestimbiras,eminnciasqueincluemchefesdealdeia,lderesde classesdeidadeegarotascompapisrituaisespeciais).Adentrouaestasociedademasculinaaotornaremnoum mehpa'hi,chefehonorrioqueagecomoumembaixadorsavessas:membrolocaldeumpovoquerepresentaum outropovonestelocal,cuidandotambmdahospedagemealimentaodessesvisitantes.Nimuendaju,adotadopelos Ca'kamekra, era mehpa'h dos Ramk'kmekra dentre os Ca'kamekra (1946: 9799). Funo que no tinha diretamenteavercomofatodeserbranco,massimcomofatodeserumconsangneoadotivodosCa'kamekra, poissalgumdedentropoderiaassumiressepapeldealgumdeforacomomehpa'hi.Entretanto,acreditoque seralgumcompotnciadeaquisioedistribuiodedonsestrangeiros(dosbrancos)favoreceuqueassumisseum cargoeadentrasseaumasociedadequedemandavammuitagenerosidade.
357
Almdediscorreramplamentesobreotornarsegentea'uwxavante,apresentotantouma anlisedecomosedatransformao,ambivalente,deumestrangeiroadotadocomogente,bem comoosmodospeculiares,emrelaodiretacomaatuaodoprprioetngrafo,deaproximlo daaoritualepoltica. Enfim,deparaseaquicomumaabordagemdapolticaetnogrficaemqueadistinoentre aetnografiacomotrabalhodeumautorexternoeachamadaautoantropologiaseesfumaa. Porque o processoetnogrfico pode ser tratado pelos nativos, como pelos A'uwXavante, comoumprocessodetransformaoambivalentedoetngrafoemgentemesmo,ema'uwuptabi. Esteprocessoenvolveacontrapartidapolticaporpartedoantroplogoparaosnativosda ddivanosdediversositens(dinheiro,roupas,comida,canes)comotambmdaddivadesi, cotidianaecerimonial. Htantoumamisturadepessoas(comodiriaMauss)peloaparentamentoentreetngrafoe nativosquantoalegitimidadeconcedidaaoantroplogoporelesvemdiretamentedopoderde captura,familiarizaoecontgioquemovemseudahimanadz,equeospossibilitainventareme transformarem antroplogo. Tornandose coautores da pessoa do etngrafo, tornamse metonimicamente coautores de seu trabalho. Pareceme que, graas a isso, diversas vezes, disserammeosA'uwXavantequeeuestavafazendoumbomtrabalho.
****
358
Glossrio
CompilaosimplificadadetermosemlnguaA'uwXavanteemordemalfabticaqueaparecem ao longo da tese.Asglosas,sumrias,nodevemserconsideradascomotradues nemcomo explicaesplenasdostermos,masapenascomorefernciasmnemnicasparaoleitor.Termosque variamconformeapessoapronominalouconformequalqueroutroprefixo,sufixooufonemade ligaoserografadosemsuaformamaisgenrica(radicalouindefinida): A'amo:Lua Abadze:animal,caa Abadzi:algodo Abadzi'rihidiba:festadenominaofeminina Abare'u:classedeidade,dopequi Adabatsa:comidadanoiva Ahdi:muito,muitas/os Ai'ri:cunhado,irmodaesposa Aib:macho,homem;sobrinho/filhodamesmametadeexogmica Aih:veado Aih'ubuni:primeirocargodelderdeclassedentreosadolescentes Aimawi:outro,diferente
359
Ai'rpudu:meninopradolescente Ai'rere:classedeidade,tipodearbusto Ai'ut:nenm,criana Ai'utmanhari'wa:palhao Ai'utre:brincadeiratola Anorwa:classedeidade,estrume 'Amo:outro,duplo Ap:volta,retorno,novamente A'uw:gente,ndio A'uwuptabi:gentemesmo A'uwtede'wa:donodegente B:urucum;pnis Bodi:sobrinho,neto Bd:Sol Butuhi:ossodepescoo Da'amo:amiga/oformalizada/o
360
Da'rewa:cunhado,irmodaesposa Dadub'rada:irm/omaisvelha/o Dadupu:gordo,panudo Dadzapari'wa:aquelesquenosesperam/assistem;Tsa're'wa Dahi:velho;osso Dahidiba:irmdehomem Dahitbre:irmodemulher Dah'apapa:padre,pelecomprida Dahiba:corpo,pessoa Dahibauptabi:alma,esprito Dahibauptabire:alma Dahimana:vida Dahimanadz:modo/lugar/instrumentodevida,cultura Dahimana'u':imortal Dahr:grito Damama:pai
361
Damama'amo:tio,outropai Damamawpt:tiomaterno Damaprewa:sogra/o Damro:esposa/o Dan:me Danpt:irmdame,dametadeexogmicaoposta Danhanapr:pinturavermelhadebarrigaecostas;intestinovermelho Danhimidzama:cativo,seguidor Danhimi'h'a:nossochefe,cacique Danhimipredu:filhodecriao Danhimite:entidadequedetiraavida,quedetiraaalma Danhimiwainh:chamamentorecprocoentreumpatronoespecficoeseupatrocinadoespecial Danhiptsaihuri:roubo Danhohui'wa:patrono Danhono:ritualdefuraodeorelha;sono Danho're:canto;garganta;vau
362
Danhorebdzu'wa:padrinhonominador,padrinhodecasamento,paisubstituto Dano:irm/omaisnova/o Dapoto'wa:criador Dapraba:danaafastar Dapredu:adulta/o,madura/o Dapredupt:jovemadulto Da'ra:filha/o Da'rada:av/ Da'rare:finhinha/o Da'rawpt:filhodairm/prima,dametadeexogmicaoposta Da'rn:vencer,deixarparatrs Darini:ritualxamnico,Wai'a;viglia Datbe:irm/primadopai,damesmametadeexogmica Dati':me,irmdame Dat:festa,rito,jogo,brincadeira;olho Datoire:brincadeira,brincadeirinha
363
Datsa:comida Datsana'rada:princpio,comeo,raiz Datsa'omo:cunhado,maridodairm Datsari:raiz Datsarina'rada:origens,raizfamiliar Datsi'a'uw:virargente Datsi'a'uwdz:modo,instrumentooulugardevirargente Datsidan:cunhadadehomem,parceirasexualpotencial Datsidaimama:cunhadodemulher,parceirosexualpotencial Datsihiba:parentemuitoprximo,consangneo Datsihudu:neto,sobrinho Datsiminhohu:termorecprocoentreclassesdeidadepatronaepatrocinada Datsimiwainh:vnculoespecialechamamentorecprocoentreumpatronoeumadolescente Datsirene:dana Datsiri:corao Datsitsanaw:primo,parentedamesmametadeexogmica
364
Datsiwabdzu:concunhadodamesmametadeexogmica Datsiwabdzuri:coito Datsiwadi:primo,parentedistante,damesmametadeexogmica Datsiwaihu:amiga/o,conhecida/o,entreconhecerse Datsiwai':danadanominaofeminina Datsiwaiwre:danadecura Datsiwapru:consanguinizarse,desposar Da'uh:pinturadoqueixada Da'upt:tipodepintura Da'upte:banho Da'upto:mancha Da'uptr:molharofetocomesperma Da'utsu:grupo,classedeidade Dawede:remdio Dupu'a:gordo,panainchada Dur:mas,tambm,ou,e,mais
365
Durih:antigamente Dzara're:mamacadela Dzara'repa:mamacadela Dza'u'e:tuiuiu,jaburu Dza'u're:tuiuiu,jaburu Dzmori:seminomadismosazonal tnhiritip:rochedocomumintervalonomeio;nomedeformaorochosa;nomedealdeia tnho'redza'a:rochedodagargantaelevada;nomedeformaorochosa tpa:classedeidade,pedrachata Hepr:parabns,agradecida/o Hireri'wa:certopovoindgenainimigo;eptetodadoaosadolescentesdeorelhafurada,emfase intermedirianoritodepassagem H:CasadosAdolescentes;pele;frio H'a:cacique;padre Hiba'rada:decorpovelho Hiwa:cu Hiwa'udu:renascer 366
Htr:classedeidade,tipodepeixe H'wa:moradordoH Hu:ona dzu:lder,corpulento tsitsaiwari:eucomoseusrestos M:ema 'Mad''wa:cuidador,vigilante Mariwatsde:selvaruim,nomedealdeiaeterraindgena 'Marowr:trucidar,vencernojogo Matsa:insetoquepica,quemorde Mrami:pegar,capturar,predar,acolher Mreme:fala,linguagem Nda:tio,av Nodz'u:classedeidade,domilho Nori:plural Oi':ritualdosmeninos 367
Oniwimh:dooutrolado;daoutrametadeexogmica tede'wa:donodagua Oti:sobrinha,neta waw:riogrande,nomedecl Padi:tamandu;comprido Pahi:medroso Pahri'wa:cargoritualpo'redza'ono,omaisprestigiadodasclassesdeidade Parabubure:nomedealdeiaeterraindgena Parap:pcomprido Paratuhi:ossodecanela Parinai'a:duplamticadecriadores/transformistas Pe'dz:saudade,sentirfalta,dornasentranhas Po'redza'no:girino,nomedecl Po're':quenoouve,desobediente 'R:cabea 'Rada:primeiro
368
'Ridupu:cabeacheia 'Riprre:dacabeaavermelhada Ram:minhame,mame 'Riti'wa:joveminiciado 'Riti'wat:jovemrecminiciado Robduri:automvel Romh:podermgico Romhtsi'wa:criador/transformista Ropts'wa:patrocinado,aquelequedmuito Rotsa'wre:sonho,sairdocorpoduranteosono Tbe:cargoritualwaw,lderdeclassedeidade Tede'wa:dono Tedzatsihiba:parentedistante,primo,viraserparente;voltarasergente Ti'a:terra Tirwa:classedeidade,tipodeflecha Tibo:pronto,acabou
369
Tibopari:cancelamentodedvida Topdat:olhonaface,supostoclTobratat Tobratat:gritodeave,supostoclTopdat Totsena:verdade,mesmo,realmente Tsada'ro:classedeidade,raiodesol Tsahi:bravo,corajoso Tsaihi:nora Tsamri':invisvel Tsa'otwaw:voltagrande,nomedealdeia Tsapr:troca Tsa'r:sombra Tsa're'wa:aquelesqueultrapassam,superhumanos Tsa'uri'wa:corridaritual,provadelongadistncia Tsawidi:querida/o,amada/o Tsawidzahi:proibido Tsawr'wa:batedor
370
Tsidupu:flautaduplaritualdoPahri'wa Tsimihpri:assombrao Tsi'no:cesto Tsi'thpo:cestogrande Tsipodo:criarse,brotarse,surgir,procriar,imagem Tsi'r:separado Tsiretede'wa:certopovoindgenainimigo,ndiopigmeu Tsi'r'wa:dooutrolado,dametadeexogmicaoposta Tsiwadzari:misturarse Tsiwap:competio Tsiwaw:guia Tsrebdzu'a:gravatadealgodo U':jaboti Ubd:capivara Uh:queixada Uhb:porcodomstico
371
Uhd:anta Uhre:caititu Ubd'wa'r:dentedecapivara,ritualdospatronosdosadolescentes Umrretede'wa:donodacabacinha,metaderitualdoDarini Upa:mandioca Uptabi:mesmo Uptab:enfaticamentemesmo Uptabih:enfaticamentemesmo U'utede'wa:donodasguasparadas Wadzuri'wa:rasgador,captoreassassinodebrancos Wahi'rada: nossos bisavs, nossos antepassados; classe de idade patrocinadora dos nossos patrocinadores Wa'i:lutacorporalritual Wai'a:ritualxamnico,Darini Waihu:saber,conhecer Wair:cocardeprestgio 'Wamar:paumgico 372
'Wamardzu'bre:jovemdonatriodocargo'Wamaridzubtede'wa 'Wamardzubtede'wa:donodopde'wamari,pacificador;'Wamartede'wa 'Wamartede'wa:donodo'wamar,sonhador;'Wamaridzubtede'wa Wamnhor:mscararitual Waniwimh:donossolado;danossametadeexogmica Wanoridbe:derradeiradanadospatronosdosadolescentes Wapru:sangue Wapt:adolescente Wapts:co Waptsi'wa:batedor War:ptiodaaldeia,reunio,nomedeassociaoidgena Waradzu:estrangeiro,branco WaradzuToro:certopovoindgenainimigo,ndiosaculturados War:cadver Watsetdi:quemau,ruim Watsiwadi:parentesdamesmametadeexogmica,primos 373
374
Bibliografia
ALMEIDA,MauroW.B. 1999. Simetriae entropia: sobreanoodeestruturaemLviStraussem Revista da Antropologia,v.42,n12. AGAMBEN,Giorgio 2004.HomoSacer:opodersoberanoeavidanua.BeloHorizonte.EditoraUFMG. AGLIETA,M.,ORLANA. 1990[1982].Aviolnciadamoeda.SoPaulo.EditoraBrasiliense. ANDRADE,DanielPereira 2007.Nietzsche:aexperinciadesicomotransgresso(loucuraenormalidade).SoPaulo. Annablume ATKINSON,JaneMonning 1992.ShamanismsToday.AnnualReviewofAnthropology.v.21.p.307330. AUERBACH,Erich 1976. Mimesis. A representao da realidade na literatura ocidental. So Paulo. Perspectiva. AUSTIN,JohnLangshaw 1975.[1962]HowtoDoThingswithWords.Cambridge.HarvardUniversityPress.168p. AYTAI,Desidrio 1985.OmundosonoroXavante.ColeoMuseuPaulista(Etnologia),5.SoPaulo,USP. 1999.AmsicacomoveculodecomunicaocomomundoparaleloinCARVALHO, Silviaetalii.Rituaisindgenasbrasileiros.SoPaulo.CPA. BAKHTIN,Mikhail 1988 [1981]. The Dialogic Imagination: Four Essays. Austin. University of Texas Press.444p. 1997[1929].MarxismoeFilosofiadaLinguagem.SoPaulo.EditoraHucitec.196p. BALANDIER,Georges 1974.Anthropologiques.Paris.PressesUniversitairesdeFrance. BARBOSA,GustavoB. 2004. A Socialidade contra o Estado: a antropologia de Pierre Clastres, Revista de Antropologia,v.47,n.2.USP,SoPaulo. 375
BATESON,Gregory 1972.StepstoanEcologyofMind:CollectedEssaysinAnthropology,Psychiatry, EvolutionandEpistemology.UniversityOfChicagoPress. BATESON,G.,BATESON,MC 1988.AngelsFear:TowardsanEpstemologyoftheSacred.UniversityOfChicagoPress. BENJAMIN,W.MagiaeTcnica,arteePoltica:ensaiossobreliteraturaehistriadacultura. 1994.TraduodePauloSrgioRouanet.SoPaulo:Brasiliense,(ObrasescolhidasEVol.I) BEZERRATEIXEIRA,MonaLisa 2003.OorvalhosperodeClariceLispector.(Dissertaodemestrado).ProgramadePs GraduaodeEstudosdaLinguagem.UFRN. BODENHORN,Barbara,RUCKGabrieleVom. 2006.TheAnthropologyofNamesandNaming.Cambridge.CambridgeUniversityPress. BOUQUET,Mary 1993.ReclaimingEnglishkinship.Manchester.ManchesterUniversityPress. BOURDIEU,Pierre 2004[1994].RazesPrticasSobreateoriadaao.Campinas.Papirus.224p. BRUMANA,FernandoGiobellina 1983. Antropologia dos Sentidos: introduo s idias de Marcel Mauss. So Paulo. Brasiliense. CAILL,Alain 2002[2000].AntropologiadoDomOTerceiroParadigma.Petrpolis.Vozes.325p. 2001.Unepolitiquedelanaturesanspolitique.proposdepolitiquesdelanaturede BrunoLatour.RevueduMAUSS.LaDecouverte.n.17.p.94116. CAMPOS,A 2008.PlsticacorporalxavantenoritualDanhn.RevistaImaginar.n.49.p.1521. CARNEIRODACUNHA,Manuela 1978.Osmortoseosoutros:umaanlisedosistemafunerrioedanoodepessoaentre osndiosKrah.SoPaulo.Hucitec. 1998.Pontosdevistasobreaflorestaamaznica:xamanismoetraduo.Mana.Riode Janeiro.v.4.n.1.p.722. 2004. "Culture"andculture:traditionalknowledgeandintellectualrights.MarcBloch conference(EHESS) 376
CARNEIRODACUNHA,M.eVIVEIROSDECASTRO,E. 1985.VinganaeTemporalidade:OsTupinamb.JournaldelaSocitdesAmricanistes. 71:129208. CARRARA,Eduardo 2010. MetamorfoseA'uwe(Xavante):olcooleodevirdosentimentocoletivo. (Tesede duotorado).ProgramadeEstudosPsGraduados.CinciasSociais.PUCSP. CEREDAGOMIDE,MariaLcia 2008.MrnBddiaterritorialidadeXavantenoscaminhosdoR.(Tesededoutorado). FFLCH/USP. CERQUEIRA,CamilaGauditanode 2010. Zomori:aconstruodapessoaeaproduodegneronaconcepoXavante. Weder, Pimentel Barbosa, Etenhiritip. Programa de PsGraduao em Antropologia Social,UniversidadedeSoPaulo,SoPaulo.Mestrado(dissertao).2010.154p. CHERNELA,JanetM.,LEED,Eric 1996.ShamanisticJourneysandAnthropologicalTravelsAnthropologicalQuarterly.The GeorgeWashingtonUniversityInstituteforEthnographicResearch.v.69.n.3.p.129133. CLASTRES,Pierre 2003[1974].AsociedadecontraoEstado.Cosac&Naify,SoPaulo. 2004[1980].Arqueologiadaviolncia.Cosac&Naify,SoPaulo. 2008[1982].Liberdade,MauEncontro,Inominvel.in CLASTRES,P.;LEFORT,C.; CHAU,M.DiscursodaServidoVoluntria.SoPaulo.Brasiliense.239p. CLIFFORD,James. 2002[1994].AExperinciaEtnogrficaAntropologiaeLiteraturanosculoXX.Riode Janeiro.EdituraUFRJ. COELHODESOUZA,Marcela 1995. Da Complexidade do Elementar: Para uma Reconsiderao do Parentesco do Xingu"in VIVEIROS DE CASTRO, E. (org.). Antropologia do Parentesco Estudos Amerndios.RiodeJaneiro.EditoraUFRJ.pp.121206 1997.ResenhadeGRAHAM,Laura.1995.PerformingDreams.DiscoursesofImmortality amongtheXavanteofCentralBrazil.Austin.UniversityofTexasPress.290p.Mana.Riode Janeiro.v.3.n.1.p.189191. 2001.Ns,osvivos:'construodapessoa'e'construodoparentesco'entrealgunsgrupos 377
j.RevistaBrasileiradeCinciasSociais.SoPaulo.v.16.n.46. 2002. OTraoeoCrculoOConceitodeParentescoentreosJeseusAntroplogos. (Tesededoutorado).RiodeJaneiro.MuseuNacional. 2004.Parentesdesangue:incesto,substnciaerelaonopensamentotimbira.Mana.Rio deJaneiro.10(1):2560 2007. Addivaindgenaeadvidaantropolgica:opatrimnioculturalentredireitos universaiserelaesparticulares.SrieAntropolgica.UnB. COHN,Clarice 2005. RelaesdediferenanoBrasilCentral:osMebengokreseusoutros.(Tesede doutorado,FFLCH/USP,SoPaulo.185p. 2008. "A traduodecultura:osMebengokrXikrin".InXXVIReunioBrasileira de Antropologia.PortoSeguro. COLLIERJ.F.,ROSALDOM.Z. 1981.PoliticsandgenderinsimplesocietiesinORTNERS.eWHITEHEADH.(orgs.) SexualMeanings:theculturalconstructionofgenderandsexuality.Cambridge.Cambridge UniversityPress. CONKLIN.B.A. 2000.Consuminggrief.Austin.UniversityofTexasPress. 2001. Womens blood, warriorsblood, and the conquestof vitality in Amazonia. in GREGOR T., Tuzin D. (eds.) Gender in Amazonia and Melanesia, 14174. Berkeley. UniversityofCaliforniaPress. CORRA,M.CARDOSODEOLIVEIRA,R.,BARROSLARAIAR. 2002.EntrevistacomDavidMayburyLewis.RevistaBrasileiradeCinciasSociais.So Paulo.vol.17no.50. CROCKER,J.C. 1979.SelvesandAltersamongtheeasternBororo.in Dialecticalsocieties:theGand BororoofCentralBrazil (ed.)MayburyLewis.Cambridge,HarvardUniv.Press,pp.249 300. CSORDAS,Thomas 1990.EmbodimentasaParadigmforAnthropology.Ethos.Vol.18.n.1.p.547. DAMATTA,Roberto 1976. Um Mundo Dividido: A Estrutura Social dos ndios Apinay. Editora Vozes, 378
Petrpolis. DAWSEY,JohnC. 2005.VictorTurnereantropologiadaexperincia.CadernosdeCampo.Universidadede SoPaulo.13.p.163176. DELGADO,PauloSrgio 2008. Entrea estrutura e aperformance: ritual de iniciao e faccionalismoentre os XavantedaTerraIndgenaSoMarcos.(Tesededoutorado).ProgramadePsGraduao emAntropologia.UniversidadeFederalFluminense. DESCOLA,Phillipe 1998.Estruturaousentimento:arelaocomoanimalnaAmaznia,Mana,vol.4(1),Rio deJaneiro. DIETSCHY,H. 1976."Espacesocialet'affiliationparsexe'auBrsilcentral(Karaj,Tapirap,Apinay, Munduruc)".Paris.ActesduXLIICongresdesamricanistes2.pp.297308. DUMONT,Louis 1966.Homohierarchicus:essaisurlesystmedescastes.Paris.Gallimard. 1975[1971]. Introduccinadosteorasdelaantropologasocial. EditorialAnagrama, Mxico. ELIADE,Mircea 1981[1949].Omitodoeternoretorno:arqutiposerepetio.Lisboa.Edies70. 1988[1951].Oxamanismoeastcnicasarcaicasdoxtase.SoPaulo.MartinsFontes. 1992[1956].Osagradoeoprofano:aessnciadasreligies.SoPaulo.MartinsFontes. EVANSPRITCHARD,E. 1978[1940].OsNuer,SoPaulo.Perspectiva. 1974[1950].ParentescoeacomunidadelocalentreosNuerinRADCLIFFEBROWNA. R.,FORDE,D.(orgs.) SistemasPolticosAfricanosdeParentescoeCasamento. Lisboa. FundaoCalousteGulbenkian. EWART,ElizabethJ. 2000.Livingeachother:selvesandaltersamongstthePanarofCentralBrazil.London. TheLondonschoolofeconomicsandpoliticalscience. FALLEIROS,GuilhermeLavinasJardim 2005.Addivaeocrculoumensaiosobrereciprocidadeauwxavante.Programade 379
PsGraduaoemAntropologiaSocial,UniversidadedeSoPaulo,SoPaulo.Mestrado (dissertao).136p. 2010.Casas,corpos,nomeseoutrasddivashiptesessobrereciprocidadeetradio auwxavanteinAMADO,RoseanedeS(org.),EstudosemlnguaseculturasMacroJ. SoPaulo.Paulistana.243p. FAUSTO,Carlos 1997. A dialtica da predao e da familiarizao entre os Parakan da Amaznia Oriental:porumateoriadaguerraamerndia.(Tesededoutorado).AntropologiaSocial. MuseuNacional. 2001.Inimigosfiis.Histria,GuerraeXamanismonaAmaznia.SoPaulo.Edusp. 2002.Banquetedegente:comensalidadeecanibalismonoAmazonia.Mana8:2,744. 2007.Feastingonpeople:eatinganimalsandhumansinAmazonia.CurrentAnthropology 48,497530 2008.Donosdemais:maestriaedomnionaAmaznia.Mana14(2):329366. FAVRETSAADA,Jeanne 2005[1990].Serafetado.CadernosdeCampo.UniversidadedeSoPaulo.n.13.155161. FERNANDES,EstevoRafael 2002.ETserebutuw criouobrancoPerspectivasxavantessobreocontato(Monografia degraduao).DepartamentodeAntropologia.UniversidadedeBraslia. 2005. Entre Narrativas, Estratgias e Performances: incurses Xavantes Funai. Antropologia.Mestrado(dissertao).170p.UniversidadedeBraslia. 2010.Do tsihuri ao waradzu:oqueasideologiasxavantesdeconcepo,substnciae formao da pessoa nos dizem sobre o estatuto ontolgico do outro? Horizontes Antropolgicos.PortoAlegre.ano16,n.34,p.453477 FERNANDES,Florestan 1949.Aorganizaosocialdostupinamb.SoPaulo.InstitutoProgressoEditorial. 1952."Afunosocialdaguerranasociedadetupinamb",RevistadoMuseuPaulista,n.s., SoPaulo,vol.6,p.7426. FERREIRA,MarianaKawallLeal 1998. O conflito entre a matemtica indgena e a matemtica escolar: os Xavante do Kuluene, Mato Grosso, in Madikauku, os dez dedos das mos: matemtica e povos indgenasnoBrasil.Braslia.MEC. 380
FEYERABEND,Paul 2007[1975].Contraomtodo.SoPaulo.EditoraUNESP. FRANAFILHO,GenautoCarvalhode 2001.Aforacrticadeumaconcepomaussianadaddiva,inOparadigmadaddivae as cincias sociais no Brasil (seminrio temtico). ANPOCS, XXV Encontro Anual, Caxambu. FORBESBROWN,Michael 1988. Shamanism and Its Discontents. Medical Anthropology Quarterly. New Series. AmericanAnthropologicalAssociation.v.2.n.2.p.102120 FORTES,Meyer 1953. "The structure of unilineal descent groups", American anthropologist, vol. 55, Washington. FOUCAULT,Michel 1997[1975].Vigiarepunir:nascimentodapriso.Petrpolis.EditoraVozes. 2010[1979],MicrofsicadoPoder.RiodeJaneiro.Graal. GALLOIS,DominiqueTilken 1988.MovimentonaCosmologiaWajpi.Criao,ExpansoeTransformaodoUniverso. SoPaulo.TesedeDoutoramento.FFLCH/USP. GARFIELD,Seth 2001. IndigenousstruggleattheheartofBrazil:statepolicy,frontierexpansion,andthe Xavanteindians,19371988.Durham.DukeUniversityPress. GAUDITANO,Rosa,CERQUEIRA,CamilaGauditanodeeWAIASS,Caimi 2003.AuwUptabiZariRazesdopovoXavante:tradioerituais.R.Gauditano,So Paulo. GIACCARIA,Bartolomeu 1990. Ensaios Pedagogia Xavante Aprofundamento Antropolgico. Campo Grande. MissoSalesianadeMatoGrosso.143p. 2000. Xavante Ano 2000: reflexes pedaggicas e antropolgicas. Campo Grande. UCDB.191p. GIACCARIA,BartolomeueHEIDE,Adalberto 1972.XavanteAuwUptabi:PovoAutntico.SoPaulo.EditorialDomBosco. 1991[1975].Mitologiaxavante.Mitos,leyendas,cuentosysueos.Quito.AbyaYala.360p. 381
1975a.JernimoXavanteConta.SoPaulo.EditorialDomBosco. 1975b.JernimoXavanteSonha.SoPaulo.EditorialDomBosco. GIUMBELLI,Emerson 1994.AntroplogoseSeusSortilgiosUmaReleiturade'EsboodeUmaTeoriada Magia'deMausseHubert.CadernosdeCampo.UniversidadedeSoPaulo.n.4,p.2139. GODBOUT,Jacques 1998.Introduoddiva.RevistaBrasileiradeCinciasSociais.v.13.n.38.p.3951. 2002.Homodonatorversushomoeconomicus,inMARTINS,PauloHenrique,Addiva entreosmodernos,EditoraVozes,Petrpolis. GOLDMAN,Mrcio 1999.LviStrausseossentidosdahistria.RevistadeAntropologia,SoPaulo.USP.v. 42no1/2. 2005.JeanneFavretSaada,osafetos,aetnografia.CadernosdeCampo.Universidadede SoPaulo.n.13pp.149156. 2006.AlteridadeeExperincia:AntropologiaeTeoriaEtnogrfica.Etnogrfica.v.X(1). pp161 173 GONALVES,MarcoAntnioTeixeira 1996.DiriosdecampodeEduardoGalvo:Tenetehara,KaioaendiosdoXingu.Riode Janeiro,UFRJ. GORDON,Cesar 2003.Folhasplidas:aincorporaoXikrin(Mebengokre)dodinheiroedasmercadorias. TesedeDoutorado.RiodeJaneiro.MuseuNacional.357p. 2006. EconomiaSelvagem:ritualemercadoriaentreosXikrinMebngkre.SoPaulo. EditoraUNESP/ISA/NuTI.452p. GOW.Peter 1991.Ofmixedblood.Oxford.ClarendonPress. 2000.HelplesstheaffectivepreconditionsofPirosociallife.inTheanthropologyoflove andanger:theaestheticsofconvivialityinNativeAmazonia(eds)J.Overing&A.Passes, 4663.London.Routledge. GRAHAM,LauraR. 1986/1987.UmaaldeiaporumProjeto.CEDI.AconteceuEspecial17PovosIndgenas noBrasil85/86.SoPaulo:CentroEcumnicodeDocumentaoeInformao.pp.34850 382
1990.TheAlwaysLiving:DiscourseandthemalelifecycleoftheXavanteindiansofCentral Brazil.AnnHarbor.UMI.433p. 1993.APublicSphereinAmazonia?Thedepersonalizedcollaborativeconstructionofthe discouseinXavante.AmericanEthnologist20(4):71741. 2003[1995].PerformingDreams.DiscoursesofImmortalityamongtheXavanteofCentral Brazil.Austin.UniversityofTexasPress.290p. 2005.ImageandinstrumentalityinaXavantepoliticsofexistentialrecognition:Thepublic outreachworkofEtenhiritipaPimentelBarbosa.AmericanEthnologist.Volume32.Issue 4.p.622641. GREGORY,C.A. 1982;GiftsandCommodities,StudiesinPoliticalEconomy.AcademicPress,London. 1992. Exchange and Reciprocity, in INGOLD, Tim Companion Encyclopedia of Anthropology.LondonandNewYork.Routledge. GROSS,D. 1979.ANewApproachtoCentralBrazilianSocialOrganization.InMARGOLIM.L., CARTER W. E. (orgs.). Brazil Anthropological Perspectives New York Columbia UniversityPress. HALL,Joan,MCLOAD,RutheMITCHELL,Valerie 2004[1987].PequenoDicionrioXavantePortugusPortugusXavante.Cuiab.Sociedade InternacionaldeLingstica.343p. HAMAYON,Roberte 1995. Pourquoi les jeux plaisent aux esprits et dplaisent Dieu. Ou le jeu, forme lmentairederituelpartird'exempleschamaniquessibriens,inTHINS,Georgese HEUSCH,Lucde(d.),Ritesetritualisation,Paris/Lyon,Vrin/Institutinterdisciplinaire d'tudespistmologiques,pp65100. 1998.Lpingledujeu.LaRevueduMAUSSsemestrielle,n.12. HRITIER,Franoise 1981.Lexercicedelaparent.Paris.HautestudesGallimard. 2000.ArticulationsetSubstances,LHomme154155,Paris.ditionsEHESS. HOBSBAWM,EriceRANGER,Terence 1997[1983].AInvenodasTradies.RiodeJaneiro.PazeTerra.p.316 HUMPHREY,Robert 383
1976.Ofluxodaconscincia:umestudosobreJamesJoyce,VirginiaWoolf,Dorothy Richardson,WilliamFaulknereoutros.TraduodeGertMeyer.SoPaulo:McGrawHill doBrasil. HUIZINGA,Johan 1980[1938].Homoludens.SoPaulo.Perspectiva.243p. INGOLD,Tim 1986.TheAppropriationofNature.Manchester.ManchesterUniversityPress. 2006[2000]. ThePerceptionoftheEnvironment.Essaysinlivelihood,dwellingandskill. LondonandNewYourk.Routledge.465p. 2007.Lines:abriefhistory.London.Routledge.188p. KARSENTI,Bruno 1994.Mauss,lefaitsocialtotal.Paris.PUF. KOHN,Eduardo 2007.Howdogsdream:Amazoniannaturesandthepoliticsoftransspeciesengagement. AmericanEthnologist.v.34n.1. KUPER,Adam 1978.AntroplogoseAntropologia.RiodeJaneiro.FranciscoAlves.228p. LABOTIE,Etiennede 2008[1982].ODiscursodaServidoVoluntriaouOContraUmininCLASTRES,P.; LEFORT,C.; CHAU,M.DiscursodaServidoVoluntria.SoPaulo.Brasiliense.239p. 2003.Romnhitsi'ubumroa'uwmreme=waradzumremeDicionrioxavante=portugus . CampoGrande.UCDBEditora. 2004a. Romnhitsi'ubumro waradzu mreme = a'uw mreme Dicionrio portugus = xavante.CampoGrande.UCDBEditora. 2004b. Damreme'uwaimramidz Estudos Sistemticos e Comparativos de Gramtica Xavante.CampoGrande.UCDBEditora.202p. LAGROU,Elsje 2000.HomesicknessandtheCashinahuaself:areflectionoftheembodiedconditionof relatedness.inTheanthropologyofloveandanger:theaestheticsofconvivialityinNative Amazonia(eds)J.Overing&A.Passes,15269.London:Routledge. 384 LACHNITT,Georg
LAGROU,E.,BELAUNDE,L.E. 2011.Domitogregoaomitoamerndio:umaentrevistasobreLviStrausscomEduardo ViveirosdeCastro.Sociologia&Antropologia.v.01.02.RiodeJaneiro.UFRJ.pp933 LANGDON,EstherJeanMatteson 1996. (org.). Novas Perspectivas sobre Xamanismo no Brasil. Florianpolis. Editora da UniversidadeFederaldeSantaCatarina.367p. LANNA,MarcosP.D. 1995.ADvidaDivinaTrocaePatronagemnoNordesteBrasileiro.Campinas.Editorada UNICAMP. 1996.ReciprocidadeeHierarquia.RevistadeAntropologia.SoPaulo.Universidadede SoPaulo.v. 39.n.1.p.111144. 2000.NotasobreMarcelMausseOensaiosobreaddiredeva.RevistadeSociologiae Poltica.Curitiba.n.14.p.173194. 2001.Trocas agonsticas, bens inalienveis e casas no Ensaio sobre a ddiva. in O paradigmadaddivaeascinciassociaisnoBrasil(seminriotemtico).XXVEncontro Anual.ANPOCS.Caxambu. 2005.AssociedadescontraoEstadoexistem?ReciprocidadeepoderemPierreClastres. Mana.vol.11,n.2,pp.419448. LATOUR,Bruno 2001.Rponseauxobjections....RevueduMAUSS.LaDecouverte.n.17.p.137152. LEA,Vanessa. 1992.Mebengokre(Kayap)onomastics:afacetofhousesastotalsocialfactsinCentral Brasil,Man.27.London. 1995.ThehousesoftheMbengokre(Kayap)ofCentralBrazilanewdoortotheirsocial organization,inCARSTEN,JaneteHUGHJONES,Stephen(orgs.). AbouttheHouse. Cambridge.CambridgeUniversityPress. 2002.Riquezasintangveisdepessoaspartveis:osMbengokredoBrasilCentral,IFICH, Campinas.UNICAMP. LEEUWENBERG,FranseSALIMONMrio 1999.ParaSempreAuwOsXavantenabalanadascivilizaes.Braslia.Unicef.64p. LEFORT,Claude 1979[1951].Asformasdahistria.SoPaulo.EditoraBrasiliense. 385
2008[1982].ONomedoUm.inCLASTRES,P.;LEFORT,C.; CHAU,M. Discursoda ServidoVoluntria.SoPaulo.Brasiliense.239p. LEIRIS,Michel 2003 [1939]. Aidadeviril:precedidoporDaliteraturacomotauromaquia.SoPaulo. Cosac&Naify. LEIRNER,Piero 1997.LEIRNER,PierodeCamargo.Meiavoltavolver:umestudoantropolgicosobrea hierarquiamilitar.RiodeJaneiro:EditoraFGV,124p. 2008.Sobrenomesdeguerra:classificaoeterminologiamilitares. Etnogrfica.12 (1):195214 LVISTRAUSS,Claude 1944. Reciprocity and Hierarchy, American Anthropologist. New Series. American AnthropologicalAssociation.46,n.2,part1.266268. 1976[1949].AsEstruturasElementaresdoParentesco.SoPaulo.EDUSP. 2009[1955].Tristestrpicos.SoPaulo.CompanhiadasLetras. 1975[1958].AntropologiaEstrutural.RiodeJaneiro.TempoBrasileiro.456p. 1988[1950].IntroduoobradeMarcelMaussinMAUSS,Marcel. Ensaiosobrea ddiva.Lisboa.Edies70.209p. 1976[1962].Opensamentoselvagem.SoPaulo.CompanhiaEd.Nacional. 2004[1964].Ocrueocozido.SoPaulo.Cosac&Naify. 2004[1967].Domelscinzas.SoPaulo.Cosac&Naify. 2006[1968].Aorigemdosmodosmesa.SoPaulo.Cosac&Naify. 2011[1971].Ohomemnu.SoPaulo.Cosac&Naify. 1999[1983].HistriaeEtnologia,IFCH/UNICAMP,Campinas. 1986.MinhasPalavras.RiodeJaneiro.Brasiliense. 1989[1973].AntropologiaEstruturalDois.RiodeJaneiro.TempoBrasileiro. 1991.HistriadeLince.SoPaulo.CompanhiadasLetras. LVISTRAUS,C.,ERIBON,D. 2005[1988].Depertoedelonge.SoPaulo.CosacNaify. LIMA,TniaStolze 2006.Umpeixeolhouparamim.OpovoYudjeaperspectiva.SoPaulo.EditoraUNESP, InstitutoSocioambientaleNUTI.399p. 386
LOPESDASILVA,Aracy 1986[1980].NomeseAmigos:daprticaXavanteaumareflexosobreosJ,SoPaulo. FFLCH/USP.313p. 1983.Xavante:casaaldeiachoterravida.in NOVAES,SylviaCaiuby(org.). Habitaesindgenas.SoPaulo.Nobel.Edusp.196p. 1984. A Expresso Mtica da Vivncia Histrica: Tempo e Espao na Construo da Identidade Xavante. Anurio Antropolgico / 82. Fortaleza/Rio de Janeiro: Edies Universidade FederaldoCear/EditoraTempoBrasileiro. 1992.DoissculosemeiodehistriaXavante.InCARNEIRODACUNHA,M(org.) HistriadosndiosnoBrasil.SoPaulo.CiadasLetras. 1999."Uma 'antropologia da educao' no Brasil? Reflexes a partir da escolarizao indgena".Olhar.v.1.n.1.SoCarlos.p.96102. LOPESDASILVA,Aracy,MACEDO,AnaVeraLopesdaSilva,NUNES,Angela 2002.CrianasIndgenas:ensaiosantropolgicos.SoPaulo.Global(coleoantropologia daeducao).280p. MACEDO,ValriaMendonade 2009. NexosdaDiferenaCulturaeafecoemumaaldeiaguaraninaSerradoMar. (Tesdededoutorado).ProgramadePsGraduaoemAntropologiaSocial.Universidadede SoPaulo. MAIAANDRADE,Ugo 2007.Orealquenovisto.XamanismoerelaonobaixoOiapoque.(Tesededoutorado). ProgramadePsGraduaoemAntropologiaSocial.UniversidadedeSoPaulo MALINOWSKI,Bronislaw 1996, Malinowski,coleoGrandesCientistasSociais(org.EuniceDurham).SoPaulo. tica. MARTINS,PauloHenrique 2008.Asredessociais,osistemadaddivaeoparadoxosociolgicoinRedesSociaise Sade.Recife.UFPE. MAUSS,Marcel 1981,EnsaiosdeSociologia.EditoraPerspectiva.SoPaulo.496p. 2003[1950].SociologiaeAntropologia.SoPaulo.Cosac&Naify.535p. MAYBURYLEWIS,David 387
1974[1967].AkwShavanteSociety.NewYork/London.OxfordUnivesityPress. 1984[1967].ASociedadeXavante.RiodeJaneiro.FranciscoAlvesEditora.400p. 1979. Dialectical societies: the G and Bororo of Central Brazil. Cambridge. Harvard UniversityPress.340p. 1990,Oselvagemeoinocente,Campinas.UNICAMP MCLEOD,RutheMITCHELL,Valerie 2003[1977]. Aspectosdalnguaxavante.Cuiab.SociedadeInternacionaldeLingstica 198p. MEDEIROS,SrgioLuizRodrigues 1990. Odonodossonhos(UmestudodasnarrativasdondioxavanteJernimoTsawe). (Dissertaodemestrado).TeoriaLiterriaeLiteraturaComparada.UniversidadedeSo Paulo. MELATTI,JulioCezar 1973.OSistemadeParentescodosndiosKrah.SrieAntropolgica.Braslia.UnB. 1976.Nominadoresegenitores:umaspectododualismoKrah,inSHADEN,Egon LeiturasdeEtnologiaBrasileira.SoPaulo.EditoraNacional. MENDONACOELHO,MariaHelenade 2000.OPodernoMito(AsRelaesdePodernaSociedadeXavante,Analisadasatravs dosMitos).(Tesededoutorado).PsicologiaSocial,PUCSoPaulo. MENEZES,Claudiade 1984. Missionrios e ndios em Mato Grosso (os Xavante da Reserva So Marcos). (Dissertaodemestrado).SoPaulo.FFLCH/USP. MENEZESBASTOS,RafaelJosde 1993. ASagadoYawari:mito,msicaehistrianoAltoXingu in CARNEIRO DA CUNHAM.,VIVEIROSDECASTROE.(orgs).Amaznia:etnologiaehistriaindgena. SoPaulo.NHII/USP.FAPESP.pp.117148 2007.MsicanassociedadesindgenasnasterrasbaixasdaAmricadoSul:estadodaarte Mana13(2).pp.293316 MONTEIRO,Marianna 2007. O Tempo na Performance e no Drama. in MEDEIROS, Maria Beatriz de, MONTEIRO, MarinnaeMATSUMOTO,Roberta.Tempoeperformance.Braslia.Editora daPsgraduaoemArte.UnB.158p. 388
MORIMDELIMA,AnaGabriela 2009.Opoderdoriso:ReflexessobreohumoremumaetnografiaKrah. Revistade AntropologiaSocialdosAlunosdoPPGASUFSCar,v.1,n.1,p.187197 NIETZSCHE,Friederich 1998. Genealogia da moral: uma Polmica. Trad. Paulo Csar de Souza. So Paulo: CompanhiadasLetras. NIMUENDAJ,Curt 1946.TheEasternTimbira.Berkeley;UniversityofCaliforniaPress. 2000.CartasdoSertodeCurtNimuendajparaCarlosEstevodeOliveira.Apresentao eNotasThekladeHartmann.Lisboa.MuseuNacionaldeEtnologia/Assrio&Alvim. NIMUENDAJ,C.,LOWIE,R.H. 1938. The Social Structure of the Ramko'kamekra. American Anthropologist. 40 (1). pp.51 74. NOVAES,SylviaCaiuby 1983.(org.)Habitaesindgenas.SoPaulo.Nobel;Edusp. 1993. Jogodeespelhos: imagensdarepresentao desiatravsdosoutros.SoPaulo. Edusp. 2008.Imagem,magiaeimaginao:desafiosaotextoantropolgico. Mana 14(2):455 475,2008 OLIVEIRA,Ester 2011. Danhno:IniciaodosadolescentesA'uwXavante. (Monografiadegraduao). DepartamentodeAntropologia.UniversidadedeBraslia. OVERING,Joanna 2002[1984],EstruturaselementaresdereciprocidadeUmanotacomparativasobreo pensamentosciopolticonasGuianas,BrasilCentraleNoroesteAmaznico,Cadernos' deCampo.UniversidadedeSoPaulo.n.10. PAULA,LusRobertode 2000. AdinmicafaccionalXerente:esferalocaleprocessossociopoliticosnacionaise internacionais.(Dissertaodemestrado)ProgramadePsGraduaoemAntropologia Social,UniversidadedeSoPaulo. 2007.TravessiasUmestudosobreadinmicascioespacialxavante.(Tesededoutorado) ProgramadePsGraduaoemAntropologiaSocial,UniversidadedeSoPaulo. 389
PEIRANO,Mariza 2000.AAnliseAntropolgicadeRituais.SrieAntropolgica.Braslia.n.270.29p. PEREIRA,LusFernando 2008.Msica,alimentoseoutrascomposiesdodramamtico:reflexessobreAorigem dosmodosmesa.CadernosdeCampo.UniversidadedeSoPaulo.N.17,pp1348 PERRONEMOISS,Beatriz 2005.Objets,sujetsdumythe,sujets.inGRUPIONI,Luis(org.).BrsilIndien.Lesarts desAmrindiensauBrsil.Paris.RuniondesMusesNationaux.p.8995. 2006. Notas sobre uma certa confederao guianense. Colquio Guiana Amerndia, HistriaeEtnologia.Belm.NHIIUSP/EREACNRS/MPEG.Outubro/Novembro. 2009.Extraitsdephilosophiepolitiqueamrindienne.ColloqueClastres.UNESCO PERRONEMOISS,P.,SZTUTMANR., 2009. Dualismo em perptuo desequilbrio feito poltica: desafios amerndios. XXXII EncontroAnualANPOCS.Caxambu. 2010."Notciasdeumacertaconfederaotamoio".Mana16(2).pp.401433 PINACABRAL,Joo 2010,Xar:NamesakesinSouthernMozambiqueandBahia(Brazil),InstitutodeCincias Sociais,UniversidadedeLisboa. POLLOMLLER,Regina 1976. APinturadoCorpoeosornamentosXavante:ArteVisualeComunicaoSocial. Dissertao(mestrado).AntropologiaSocial.UNICAMP 2000. Corpo e imagem em movimento: h uma alma neste corpo. Revista de Antropologia.SoPaulo.USP.v.43no2.pp165193 PONTES,Heloisa 2011.Undividedobject:language,ethnographyandsources.Vibrant.Braslia.Associao BrasileiradeAntropologia.v.8,n.1. PROUDHON,PierreJoseph 1986.Proudhon.ColeoGrandesCientistasSociais(org.ResendeePassetti).SoPaulo. Editoratica. RADCLIFFEBROWN,A.R. 1952,StructureandFunctioninPrimitiveSocietyEssaysandAddresses.London.Cohen andWest, 390
RAVAGNANI,OswaldoMartins 1978.AexperinciaXavantecomomundodosbrancos.EscoladeSociologiaePoltica,So Paulo.Tese(doutorado). REINHARDT,BrunoM.N. 2006. A ddiva da teoria: epistemologia e reciprocidade no circuito do dado antropolgico.RevistaCampos.UniversidadeFederaldoParan.v.7.n.1.p.135157. 'RENHE',Bernardina 2010. A Influncia Cultural na Alimentao do Povo Xavante. (Monografia de ps graduao). Faculdade Indgena Intercultural. Especializao em Educao Escolar Indgena.UniversidadeEstadualdoMatoGrosso. ROCHA,Gilmar 2006.Aetnografiacomocategoriadepensamentonaantropologiamoderna.Cadernosde Campo.UniversidadedeSoPaulo.n.14/15.p.99114. ROSABUENO,Ins 1998.Fogocruzado:prticasdecuraxavantesfrentesociedadewaradzu.(Dissertao demestrado).ProgramadePsGraduaoemAntropologiaSocial.UniversidadedeSo Paulo. S,Cristina 1982, AldeiadeSoMarcos:transformaesnahabitaodeumacomunidadeXavante. SoPaulo.UniversidadedeSoPaulo. SAHLINS,Marshall 1976[1972].StoneAgeEconomics,Aldine,Chicago. 1990[1985].IlhasdeHistria.RiodeJaneiro.JorgeZaharEditor.218p. 2001[1995].ComoPensamosNativos.SoPaulo.Edusp.347p. SANTOSGRANERO,Fernando 2006. Vitalidades sensuais. Modos no corpreos de sentir e conhecer na Amaznia indgena.RevistadeAntropologia.UniversidadedeSoPaulo.v.49.n.1.p.93131. SEARLE,John 1970[1969].Speechacts:anessayinthephilosophyoflanguage.Cambridge.Cambridge UniversityPress.203p. SEEGER,Anthony 1980.OsndioseNs,EditoraCampus,RiodeJaneiro. 391
1981.NatureandSocietyinCentralBrazil,HarvardUniversityPress,Cambridge. 2004[1987].WhySuySingAMusicalAnthropologyofanAmazonianPeople,University ofIllinoisPress,Chicago. SEEGER,Anthony,DAMATTA,RobertoeVIVEIROSDECASTRO,Eduardo 1979."Aconstruodapessoanassociedadesindgenasbrasileiras". BoletimdoMuseu Nacional,32:219. SEREBUR,HIPRU,RUPAWE,SEREZABDI,SEREIMIRMI 1998.WamremeZaraNossapalavra:mitoehistriadopovoXavante,Senac,SoPaulo. 179p. SHAKER EID,ArthurS.;RUPAW;SEREZABDI;SEREBURSERENHIMIRMI;HIPRU; SUPRETAPR,Paulo;PREP,Azevedo 2002.Romhsi'waOsSenhoresdaCriaodoMundoXavanteFundamentosPrimeiros ParaUmaAntropologiaEspiritual,ProgramadePsGraduaoemAntropologiaSocial, UniversidadeEstadualdeCampinas.Tese(doutorado).398p. SIGAUD,Ligia 1999.Asvicissitudesdoensaiosobreodom.Mana5(2):89124. SIQUEIRA,Paula 2005.SerafetadodeJeanneFavretSaada.CadernosdeCampo.UniversidadedeSo Paulo.n.13.p.155162. SPAOLONSE,MarceloBarbosa 2006. Uma tradio em performance: corporalidade, expressividade e intercontextualidade num rito de iniciao social entre os Xavante de Sangradouro. (Dissertao de mestrado). Programa de PsGraduao em Antropologia Social. UniversidadeFederaldeSantaCatarina. STOLTZELIMA,Tnia 1996.ODoiseseuMltiplo:ReflexessobreoperspectivismoemumacosmologiaTupi, Mana.RiodeJaneiro.Vol.2(2)2147. 2005.UmPeixeOlhouParaMim.OpovoYudjeaperspectiva.SoPaulo.UNESP/ISA/ NUTI.400p. STRATHERN,Marilyn 1988. The Gender of The Gift: problems with women and problems with society in Melanesia.Berkeley.UniversityofCaliforniaPress.422p. 392
1991.Onemanandmanyman.inGODELIER,MauriceeSTRATHERN,Marilyn(orgs.). Bigmenandgreatmen:personificationofpowerinMelanesia. Cambridge.Cambridge UniversityPress.328p. 1996."CuttingtheNetwork."JournaloftheRoyalAnthropologicalInstitute2.p.517535. 2004[1991].Partialconnections.WalnutCreek.AltaMiraPress.153p. STEWARD,JulianH. 1931.TheCeremonialBuffoonoftheAmericanIndian. Alma.PapersoftheMichigan AcademyofScience,Arts,andLetters,Vol.XIV. 1948[1945].HandbookofSouthAmericanindians.WashingtonDC.SmithsonianInstitute. SZTUTMAN,Renato 2002.Dodoisaomltiplonaterradoum:aexperinciaantropolgicadeDavidMaybury Lewis.RevistadeAntropologia.UniversidadedeSoPaulo.vol.45,n.2,pp.443476 2005. Oprofetaeoprincipal:aaopolticaamerndiaeseuspersonagens. (Tesede doutorado). Programa de PsGraduao em Antropologia Social. Universidade de So Paulo. 2006a."Denomesemarcas:sobreagrandezadoguerreiroselvagem".InXXXReunioda ANPOCS.Caxambu.p.127. 2006b,CartografiasxamnicasnasGuianas,ColquioGuianaAmerndia Histriae Etnologia,Belm.NHIIUSP/EREACNRS/MPEG. 2009a,Decarabasemorubixabas:Aaopolticaamerndiaeseuspersonagens,Revista deAntropologiaSocialdosAlunosdoPPGASUFSCar,v.1,n.1.SoCarlos. 2009b,ReligionmadeogermedoEstado?PierreeHlneClastreseavertigemtupi, NovosEstudosCEBRAP,n.83.SoPaulo. TAYLOR,AnneChristine 1993.Rememberingtoforget:identity,mourning,andmemoryamongtheJvaro. Man (N.S.)28,65378. 1996.Thesoulsbodyanditsstates:anAmazonianperspectiveonthenatureofbeing human.Journal oftheRoyalAnthropologicalInstitute(N.S.)2,20115. 2000,LesexedelaproieReprsentationsjbaroduliendeparent.Paris. LHomme, 154/155. TAUSSIG,Michael 393
1980.FolkhealingandthestructureofconquestintheSouthwestColumbianAndes. JournalofLatinAmericanLore.v.6.n.2.217278. 1991.TactilityandDistraction.CulturalAnthropology,Vol.6,No.2,pp.147153 1993. Mimesis and Alterity. A particular history of the senses. New York/London. Routledge.158p. TEIXEIRAPINTO,Mrnio 1997.IeipariSacrifcioeVidaSocialEntreOsndiosArara,SoPaulo.Hucitec/ANPOCS/ UFPR. THIEME,Inge 1999.OLeviatdaflorestatropical:simbolismoemtornodojaguarnoAltoXingu.(Tese dedoutorado).ProgramadePsGraduaoemAntropologiaSocial.UniversidadedeSo Paulo. TORAL,AndrA. 1985/86, Xavantao ou Funailao? Tentativas de cooptao por parte de uma FUNAI polarizada,inPovosIndgenasdoBrasil85/86.CEDI. TURNER,Terence 1988a.History,MythandSocialConsciousnessamongtheKayapof CentralBrazil. HILL,J.D.(Ed.)RethinkingHistoryandMyth:IndigenousSouthAmericanPerspectiveson thePast.Chicago:UniversityofIllinoisPress.pp.195213. 1988b.EthnoEthnohistory;MythandHistoryinNativeSouthAmericanRepresentations of Contact with Western Society. HILL, J. D. (Ed.) Rethinking History and Myth: IndigenousSouthAmericanPerspectivesonthePast.Chicago:UniversityofIllinoisPress. pp.235281. 2009.TheCrisisofLateStructuralism.PerspectivismandAnimism:RethinkingCulture, Nature,SpiritandBodiliness.TIPITI7(1).pp342. TURNER,Victor,BRUNER,Eduard 1986.(orgs).TheAnthropologyofexperience,Chicago.UniversityofIllinoisPress.391p. VANDERVELDEN,FelipeFerreira 2009.Sobrecesendios:domesticidade,classificaozoolgicaerelaohumanoanimal entreosKaritiana.Av.Posadas.n.15 2010. InquietascompanhiasSobreosanimaisdecriaoentreosKaritiana. (Tesede doutorado).Antropologia.UNICAMP. 394
VANZOLINIFIGUEIREDO,Marina 2008. Imagens do poder: a poltica xinguana na etnografia. Cadernos de Campo. UniversidadedeSoPaulo.v.17.p.89110 VIANNA,Fernando 2001. Abola,osbrancoseastoras:futebolparandiosxavantes. ProgramadePs GraduaoemAntropologiaSocial,UniversidadedeSoPaulo,SoPaulo.Dissertao (mestrado).254p. 2008.Boleirosdocerradondiosxavanteseofutebol.SoPaulo.Annablume.336p. VIDAL,Lux. 1977.MorteeVidadeumaSociedadeIndgenaBrasileira.SoPaulo.Hucitec.268p. VILAA,Aparecida. 2000.Oquesignificatornarseoutro?XamanismoecontatointertniconaAmaznia. RevistaBrasileiradeCinciasSociais.v.15.44. 2002.MakingkinoutofothersinAmazonia. JournaloftheRoyalAnthropological Institute(N.S.)8,34765. 2005.Chronicallyunstablebodies:reflectionsonAmazoniancorporalities.Journalofthe RoyalAnthropologicalInstitute(N.S.)11,44564. 2007.Culturalchangeasbodymetamorphosis.InWhentimematters:history,memoryand identityinAmazonia(eds)C.Fausto&M.Heckenberger,16993.Gainesville:University ofFloridaPress. VILLELA,JorgeLuizMattar 2001. A dvida e a diferena. Reflexes a respeito da reciprocidade, Revista de Antropologia.UniversidadedeSoPaulo.v.44.n.1.p.185220. VIVEIROSE.ViveirosdeCastro 1986.Arawet:osdeusescanibais.RiodeJaneiro.JorgeZahar 1992.Arawet,opovodoIpixuna.SoPaulo.CEDI. 1993.AlgunsAspectosdaAfinidadenoDravidianatoAmaznico in CARNEIRODA CUNHA, M e VIVEIROS DE CASTRO, E (orgs.) Amaznia: Etnologia e Histria Indgena,NHII/USP,SoPaulo 1996."Ospronomescosmolgicoseoperspectivismoamerndio",Mana2/2.p.127. 2001. AhistriaemOutrostermos. PovosIndgenasnoBrasil,19962000.SoPaulo. InstitutoSocioambiental.pp.1654 395
2002a.AInconstnciadaAlmaSelvagem.SoPaulo.Cosac&Naify.551p. 2002b.ONativoRelativo.Manavol.8no.1.pp.113148 2006.Aflorestadecristal:notassobreaontologiadosespritosamaznicos.Cadernosde Campo.UniversidadedeSoPaulo.n.14/15.p.319338. 2007.Filiaointensivaealianademonaca.NovosEstudosCEBRAP.n.77.p.91126. WAGNER,Roy 1981.TheInventionofCulture.Chicago.UniversityofChicagoPress.168p. 1991.Thefractalperson.inGODELIER,MauriceeSTRATHERN,Marilyn(orgs.).Big men and great men: personification of power in Melanesia. Cambridge. Cambridge UniversityPress.328p. Wai'aeomundoXavante. 2001.Direo:RodrigoGuimares.Produo:RodrigoGuimares.1videocassete,VHS, son.,color. WELCH,JamesR. 2010.Hierarchy,symmetryandthexavantespirituallifecycle.HorizontesAntropolgicos. v.34.pp.235260. WIENER,Norbert. 1948. Cybernetics: or the control and communication in the animal and the machine. MassachusettsInstituteofTechnology. 1968[1950].Cibernticaesociedadeousohumanodesereshumanos.SoPaulo.Cultrix.
396
ndice
2Aparentandop.87
Ocorpoemevidnciap.90 Ocorpointerior?p.97 Dahibauptabi,dahibauptabirep.106 Especulaesderiscop.111 Transformismoeaparentamentop.115 Asocialidadecontraoaparentamentoeafavorp.140 Rituaisdeaparentamentop.178 Rituaisnarrativosdeaparentamentop.183 SeriaofimdafarsadosTopdat?p.239
3Gentificandop.260
Quantagentep.261 Perturbadoramentehumanidep.265 Eunosoucachorro,nop.268 Almasechefesp.280 Aonaeapotnciap.289 Watsiwadip.302 A'uwuptabip.309 Paraumperspectivismoa'uwuptabip.318
4Corporandop.322
397
398