Raízes Medievais Do Brasil
Raízes Medievais Do Brasil
Raízes Medievais Do Brasil
Talvez todo pas parea um pouco enigmtico aos olhos de seus prprios cidados, mas em alguns o fenmeno sem dvida mais intenso. Nesses casos, preciso certo distanciamento fsico e emocional do observador. No tocante ao Brasil no poderia ser diferente, da a importncia que tiveram para alguns de seus maiores intrpretes longas experincias no exterior. Seguramente se aplica ao nosso pas o comentrio de um poeta sobre o seu: [] a Rssia, como tudo que grande, s se v bem a distncia1. Distncia que deve ser tambm temporal, no apenas espacial. Ora, as clssicas interpretaes do Brasil partem sempre do fato de ele ter sido descoberto em 1500,
Verso brasileira, revisada e alargada, de texto publicado em Sincronie. Rivista Semestrale di Letterature, Teatro e Sistemi di Pensiero, 10, Roma, 2006, pp. 105-26.
no comeo da Idade Moderna, sem considerar a longa histria que seus colonizadores europeus, permanentes ou circunstanciais, traziam consigo. A opo em examinar o Brasil a partir do nascimento, e no da gestao, limitou de certa forma aqueles valiosos diagnsticos da crise de identidade que sempre nos acompanhou como nao2. De fato, toda personalidade coletiva constituda, mais do que as individuais, por inmeros fatores anteriores sua corporicao histrica. Negar-lhes cidadania analtica no os elimina do modo de ser brasileiro e reduz o alcance da compreenso pretendida.
1 Ivan Kireevskij, Polnae Sobranie Socinenij [1861], Ann Arbor, Ardis, 1983, vol. I, p. 48. Srgio Buarque de Holanda passou dois anos na Alemanha (1929-30) e dois na Itlia (1953-54), Gilberto Freyre, trs entre Portugal e Estados Unidos (1930-33), Caio Prado Jnior, dois (1937-38) na Frana. 2 Balano realizado por Jos Carlos Reis, Identidades do Brasil: de Varnhagem a FHC, Rio de Janeiro, Fundao Getlio Vargas, 2000. Cmodo e competente conjunto de snteses daquelas obras est em: Luis Dantas Mota (org.), Introduo ao Brasil. Um Banquete no Trpico, 2 volumes, So Paulo, Senac, 1999-2000.
3 Srgio Buarque de Holanda, Razes do Brasil, pp. 36-7, 80-1 e 40. 4 Idem, ibidem, pp. 44-7 e 959. 5 Idem, ibidem, p. 60. 6 Monique Bourin e Robert Durand, Vivre au Village au Moyen Age. Les Solidarits Paysannes du 11e au 13e Sicles, Paris, Messidor, 1984; Robert Fossier, Villages et Villageois au Moyen ge, Paris, Christian, 1995; Robert Durand, Les Campagnes Portugaises entre Douro et Tage aux XIIe et XIIIe Sicles, Paris, Centro Cultural Portugus, 1982, pp. 148-67, 196-8. 7 Orlando Ribeiro, Villages et Communauts Rurales au Portugal, Biblos (Coimbra), 16, 1940, p. 413; Ernesto Veiga de Oliveira, Trabalhos Colectivos Gratuitos e Recprocos em Portugal e no Brasil, Revista de Antropologia (So Paulo), 3, 1955, pp. 21-43. A estrutura agrria coletivista seria muito antiga, de origem celta, tendose mantido ao longo do tempo, at hoje, devido s condies geogrcas montanhosas do Norte portugus de acordo com Orlando Ribeiro e Hermann Lautensach, Geograa de Portugal. O Povo Portugus, Lisboa, S da Costa, 1989, vol. 3, pp. 631, 652 e 656. 8 Braslio Sallum Jr., Srgio Buarque de Holanda. Razes do Brasil, in Luis Dantas Mota (org.), Introduo ao Brasil. Um Banquete no Trpico, op. cit., vol. I, p. 238.
Bom exemplo desse procedimento um daqueles grandes livros, talvez o maior deles, Razes do Brasil, de Srgio Buarque de Holanda. Temos a uma interpretao plena de nesse e inteligncia, que nos parece, contudo, incorrer naquela mesma distoro de perspectiva. E no entanto a metfora razes indica como objeto no a rvore visvel, o Brasil histrico conhecido, bem ou mal, por todos, e sim a parte oculta sob a terra e que determina as caractersticas dessa rvore esfngica. O grande historiador no levou na devida conta, a nosso ver, sua prpria metfora. As razes do Brasil evidentemente antecedem o Brasil. Elas so anteriores a 1500. Elas encontram-se no perodo que h muito se convencionou chamar de Idade Mdia. verdade que Srgio Buarque percebe a mobilidade social portuguesa daquele perodo como geradora de uma burguesia mercantil que no precisou impor um sistema de valores prprios para forjar sua identidade, antes, pelo contrrio, adotou o modo de vida da velha aristocracia, que portanto no desapareceu e, assim, as formas de vida herdadas da Idade Mdia conservaram, em parte, seu prestgio antigo. Entretanto, se ele v no patriarcalismo lusitano um dos traos fundadores da organizao social brasileira e se reconhece que a cultura nacional procede de Portugal por tradio longa e viva, partilhando com a antiga metrpole uma alma comum3, o carter medieval desses fenmenos ca mais implcito do que revelado e o estudioso perde assim a oportunidade de aprofundar as reexes. Na mesma linha, ele recorta o tipo ideal do aventureiro lusitano sem associlo ao cruzado, de quem, contudo, procedia sociologicamente e de quem herdara o esprito. Ou, outro exemplo, para explicar o contraste entre as colonizaes portuguesa e castelhana, uma rural, outra urbana, no recorre ao essencial, a diferente histria urbana medieval nos dois reinos4. Estranha recusa ao legado medieval ocorre em relao ao mutiro (costume usado por camponeses para derrubar matas, plantar, colher, construir casas e ar algodo), ao qual atribui origem indgena por
se basear no auxlio recproco e ser depois acompanhado por festividades5. Sem negar provvel inuncia dos nativos nessa prtica de trabalho coletivo (a etimologia da palavra possivelmente tupi), no se pode minimizar o fato de os colonos europeus que aqui chegavam conhecerem h sculos tal costume. A economia senhorial da Idade Mdia tornava necessria a associao dos camponeses na realizao de tarefas para as quais cada famlia isoladamente no possua os meios requeridos. Era o caso da aradura, da colheita, da construo de moradias. Estas e outras formas de cooperao campesina ocorreram em toda a Europa medieval6, inclusive em Portugal, onde ainda h poucas dcadas podiam ser observadas, sobretudo no Minho, no Trs-os-Montes e na Beira7, regies de procedncia de muitos colonizadores do Brasil. Portanto, surpreende retrospectivamente que o estudioso tenha deixado de lado elementos importantes para sua reexo. Ainda mais porque o objeto do livro, j se notou com justeza, no era reconstituir linearmente a histria brasileira, e sim examinar formas de vida social, de instituies e de mentalidade que, nascidas no passado, ainda faziam parte da identidade nacional do presente do historiador. Tratava-se, pois, de examinar o tradicional, o arcaico8. Ora, para os lusitanos dos Descobrimentos e dos primeiros tempos da colonizao, tradicional era toda herana vinda da Idade Mdia. Logo, como vamos sugerir, no seria possvel a Buarque de Holanda realizar completamente seu projeto sem colocar no centro da cena a contribuio medieval. Por que, ento, nosso maior historiador deu pequena ateno quela poca? Provavelmente devido ao formato de ensaio sociolgico do livro, sua admirao pela cultura renascentista, s circunstncias histricas nas quais escreveu. Quanto ao primeiro ponto, basta lembrar que poucos anos antes, durante sua estada em Berlim, sofrera forte inuncia da sociologia alem, testemunhada pelas cinco referncias que faz a Max Weber, mais do que a qualquer outro autor. Quanto ao segundo ponto, j se notou a atrao do autor de Razes do
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Brasil pelo Renascimento, a cujo modelo de civilizao pretendia mostrar que o pas estava liado9. Talvez por isso ele remeta certas constataes diretamente Antigidade Clssica10, saltando a intermediao medieval que lhes deu tom prprio e existncia histrica para os colonos portugueses e seus descendentes. Quanto ao terceiro ponto, j se assinalou que um dos traos distintivos da obra de Srgio Buarque em relao de outros inventores do Brasil foi justamente sua viso do futuro naquele momento de acentuada transio econmica, social e poltica do pas11. E com efeito, se considerarmos as datas no somente da primeira (1936), mas igualmente da segunda (1947) e da terceira e denitiva edio (1955) do livro, e tambm o perl intelectual consciente e engajado de Srgio Buarque, pode-se pensar que o historiador no conseguiu escapar aos condicionamentos que lhe impunham aqueles momentos-chave na trajetria histrica recente do Brasil: Constituio de 1934, que atenuou o autoritarismo do Estado Novo, redemocratizao do pas em 1946, suicdio de Vargas em 1954, eleio presidencial livre no ano seguinte. De qualquer maneira, teria sido fundamental levar em conta que a experincia colonial moderna dos ibricos de certa forma prolongou sua experincia colonial medieval, com a conquista da Amrica aos pagos indgenas correspondendo reconquista da pennsula aos pagos mouros. O tradicional grito guerreiro desta, invocando Santiago, foi utilizado naquela, por exemplo no Maranho em princpios do sculo XVII12. Nos dois casos, o processo no foi obra dos setores mais progressistas da sociedade, embora estes tenham a partir de um segundo momento se beneciado dele. Enquanto a colonizao inglesa da Amrica foi realizada por segmentos sociais modernos, gente que buscava novos horizontes, a colonizao portuguesa foi obra de setores ainda medievais, que pretendiam reproduzir em outro palco, mais amplo e rico, o enredo histrico anterior. Isso no signica negar ou minimizar as rupturas, as novidades, os elementos
modernos presentes na colnia portuguesa desde os primeiros tempos. Mas justamente porque a supervalorizao historiogrca desses elementos impediu a percepo dos elementos medievais, o presente ensaio coloca a nfase nas continuidades. Ou seja, nos elementos histricos j ultrapassados na metrpole, ou em via de o serem, porm introduzidos com vigor na colnia, da terem sobrevivido separao poltica e gerado o clima de arcasmo ainda presente em muitas facetas do Brasil. Para que estas possam ser compreendidas, preciso deixar de lado o discurso imediatista que atribui os problemas nacionais ao presente ou no mximo a um passado recente, iludindo a sociedade quanto urgncia de um esforo coletivo global e contnuo ao longo de algumas geraes. A anlise do que o Brasil , e do por que o , deve ser redimensionada. Nenhum diagnstico portanto, nenhum prognstico do Brasil ser possvel sem considerar a herana medieval que ainda age sobre ns. Dentro de ns. A duplicidade do Brasil atual evidente mesmo ao visitante desavisado: favelas ao lado de edifcios imponentes, regies atrasadas ao lado de outras avanadas, prticas sociais e culturais tradicionalistas ao lado de prticas contemporneas. Denir tal situao contudo controverso. Buarque de Holanda fala em, aps a Abolio, um Brasil americano no Sul/Sudeste contraposto ao Brasil ibrico do Norte/Nordeste. Um socilogo em dois Brasis separados por diferenas de idade, um moderno, outro arcaico, que ele etiqueta como colonial. Um etnlogo, em terra de contrastes na qual as pocas histricas encavalam-se umas com as outras. Um economista, em Belndia, isto , pas que mescla uma pequena rea rica como a Blgica e uma imensa rea pobre como a ndia. Um jornalista, em diversidade estrutural, j que viajar pelo Brasil deslocamento no tempo, no apenas no espao. Um historiador, desenvolvendo a idia anterior, em justaposio de pocas, a contempornea das grandes cidades prximas ao litoral, a imperial das pequenas cidades do interior, a colonial das aldeias, a neoltica das zonas indgenas13.
9 Nello Avella, Il Ritorno del Maestro Cordiale, na traduo italiana do livro de Srgio Buarque, Radici del Brasile, Florena, Giunti, 2000, pp. 21-2 e 26. 10 Razes do Brasil, pp. 32, 38, 81, 89-90, 95, 141, 201 (n. 3). 11 Fernando Henrique Cardoso, Prefazione edio citada na nota 9, pp. 5-7. 12 Diogo de Campos Moreno, Jornada do Maranho por Ordem de S. Magestade Feita o Anno de 1614, Lisboa, Academia Real de Cincias, 1812 (Colleco de Notcias para a Histria e Geograa das Naes Ultramarinas que vivem nos domnios portugueses, 1-IV), pp. 32-3, 58. Tambm nas tentativas coloniais portuguesas na frica, no sculo XVI, mantinha-se o mesmo esprito cruzadstico e a mesma interveno de Santiago (cf. Trovas do Bandarra, 80, ed. de Nantes de 1644, Lisboa, Inapa/Academia Portuguesa de Histria, 1989, p. 33). 13 Respectivamente, Razes do Brasil, pp. 171-6; Jacques Lambert, Os Dois Brasis, Rio de Janeiro, MEC, 1959; Roger Bastide, Brsil, Terre des Contrastes, Paris, LHarmattan, [1957] 1999, p. 16; Edmar Bacha, Belndia, in Opinio, 1974, aproveitando Lambert (1959, p. 105), para quem no Brasil reproduzem-se os contrastes do mundo, com certos aspectos lembrando Los Angeles e Chicago e outros, a ndia e o Egito; Euclides da Cunha, Os Sertes, ed. Leopoldo M. Bernucci, So Paulo, Ateli, [1902] 2002, pp. 71-249; Pedro Calmon, Esprito da Sociedade Colonial, So Paulo, Nacional, 1934, p. 197 (idia seguida por Bastide, pp. 8-9).
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14 Curiosamente, essa recusa deu-se tanto por parte daqueles que exaltaram a colonizao ibrica (como Oliveira Vianna, Populaes Meridionais do Brasil, So Paulo, Nacional, 1920, ou Gilberto Freyre, Casa-grande e senzala, 31a ed., Rio de Janeiro, Record, [1933] 1996) quanto dos que viram nela um parasitismo econmico formador de elites retrgradas (Manoel Bonm, A Amrica Latina. Males de Origem: o Parasitismo Social e Evoluo, Rio de Janeiro, A Noite, 1905). 15 Nelson Rodrigues, Complexo de Vira-latas, in Sombra das Chuteiras Imortais. Crnicas de Futebol, So Paulo, Companhia das Letras, [1958] 1993, p. 52. 16 Luis Weckmann, La Herencia Medieval del Brasil, Mxico, Fondo de Cultura Econmica, 1993. Cf. tambm La Herencia Medieval de Mexico, Mxico, El Colegio de Mexico, 1984, 2 volumes. Mas, de forma geral, por motivos provavelmente opostos, tambm os estudiosos estrangeiros no levam em conta as razes medievais na formao do Brasil. Exemplo recente Bartolom Benassar e Richard Marin, Histoire du Brsil, 1500-2000, Paris, Fayard, 2000. Sobre as limitaes do Renascimento portugus, ver Jos Sebastio da Silva Dias, Os Descobrimentos e a Problemtica Cultural do Sculo XVI, Lisboa, Presena, 1973. 17 Marc Bloch, Les Caractres Originaux de lHistoire Rural Franaise, Paris, Armand Colin, [1931] 1976, vol. I, p. XIV; Apologie pour lHistoire ou Mtier de lHistorien, ed. tienne Bloch, Paris, Armand Colin, [1942] 1993, pp. 96-7; Jacques Le Goff, LHistorien et lHomme Quotidien, in Pour un Autre Moyen Age, Paris, Gallimard, [1972] 1977, pp. 335-48.
Como se v, a herana da Idade Mdia no foi levada em conta por nenhuma avaliao global da histria nacional, to em voga nas primeiras dcadas do sculo XX14. Mesmo o grande salto posterior da historiograa nacional no evitou que se continuasse a deixar de lado a contribuio medieval na formao do Brasil. Talvez no somente por tradicionalismo cronolgico, mas tambm diante do ainda arraigado preconceito em relao Idade Mdia por recusa inconsciente em aceitar nossas facetas medievais, em alimentar aquilo que Nelson Rodrigues chamou de complexo de vira-latas [] a inferioridade em que o brasileiro se coloca, voluntariamente, em face do resto do mundo15. Da ter sido um estudioso estrangeiro, o mexicano Luis Weckmann, que recentemente tratou com pouca repercusso, fato expressivo da presena da Idade Mdia na vida brasileira, mesmo tendo-a limitado ao perodo colonial. De toda forma, ele relembrou que as metrpoles ibricas no conheceram um Renascimento pleno que tenha representado, como em outras partes da Europa, transio da medievalidade para a modernidade. Mal tocados pela cultura renascentista, Espanha e Portugal continuaram a produzir, no sculo XVI, uma literatura cavaleiresca tardia, escritos msticos e uma espcie de novos monges-guerreiros, os jesutas. Na Amrica ibrica, conclui ele, o outono da Idade Mdia ocorreu apenas no sculo XVII16. Se essa constatao pode, em linhas gerais, ser aceita em certos planos, no o pode contudo em outros, especialmente no social, cultural, religioso e psicolgico. Diversos elementos medievais continuaram presentes nos tempos seguintes, e alguns at hoje. Mas, para capt-los, necessrio ampliar o campo temporal observado, o corpus documental examinado, o instrumental metodolgico utilizado. Deve-se alargar a ateno para a Europa medieval em geral e Portugal em particular. No basta, porm, o cuidado do historiador em ressuscitar os fragmentos mortos do passado, preciso tambm um olhar de etnlogo sobre as manifestaes vivas do presente que carrega aquela herana. Todo material disponvel,
mesmo aquele aparentemente menos nobre que crnicas, diplomas e peas arqueolgicas, deve ser analisado. Poucos estudiosos negariam atualmente que tanto o documento histrico quanto o etnogrco ganham esse estatuto ao serem utilizados como indcios explicativos das questes que lhe so colocadas: as fontes no criam o historiador e o etnlogo, mas o inverso. Esse material ampliado no revela, porm, por si s o objeto em questo. Ele deve ser processado por um mtodo adequado. Possibilidade interessante o mtodo regressivo de Marc Bloch, que propugna ir do mais ao menos conhecido, passar o lme em sentido inverso, fazer constantes idase-vindas entre passado e presente. Outra possibilidade a antropologia histrica, cujas perspectivas cronolgicas enfocam a longa durao, os fatos repetidos, o cotidiano, a mentalidade; cujas perspectivas sociolgicas valorizam o grupo e nele a dinmica de subgrupos sexuais, etrios, funcionais; cujas perspectivas culturais reavaliam o carismtico (ocial e marginal) e a civilizao material (tcnicas, saberes, corpo, alimentao, etc.)17. No cruzamento e adaptao das duas propostas podemos pensar numa antropologia histrica retrospectiva, isto , que examine os temas da segunda na seqncia da primeira. Dessa forma, pode-se esperar que a diacronia invertida abra janelas para olhares sincrnicos que no se deixem enganar por aculturaes recprocas. Com esse olhar abrangente e gil podemos, talvez, comprovar em certas manifestaes da vida brasileira a permanncia de uma Idade Mdia ainda mais longa do que aquela denida para a Europa por Jacques Le Goff. preciso, contudo, estar atento para distinguir duas situaes de sentido diverso embora prximas na aparncia. H determinados fenmenos da histria brasileira que se poderia estar tentado a classicar de medievais, mas que a rigor so realidades antropolgicas encontrveis em diferentes pocas e sociedades. O analfabetismo ou a violncia social, por exemplo, algumas vezes taxados de medievais, so-no apenas por metfora ou analogia. Outras caracte-
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rsticas brasileiras, pelo contrrio, podem ser legitimamente chamadas de medievais por resultarem de uma continuidade histrica, explcita ou latente, de longa durao. So frutos de nossas razes medievais. Mas tambm preciso considerar que alguns traos medievais por metfora ganham sentido mais literal em contextos globalmente medievais, caso dos dois exemplos acima citados. Falamos, portanto, no propriamente de uma Idade Mdia brasileira, e sim de um sistema de valores medievais no Brasil. Como Mrio Martins percebeu, a maneira medieval de ser e de sentir a sua mundividncia e tambm o seu contedo potico e social [prolongou-se] no nordeste brasileiro onde o poder central nem sempre conseguiu impor-se, dando origem a uma espcie de vida feudal, com a psicologia correspondente. Mas por pelo menos duas razes seria simplista qualicar o Brasil de hoje de medieval no Norte/Nordeste e moderno no Sul/Sudeste. Do ponto de vista epistemolgico, porque como aquele autor pertinentemente observou, a Idade Mdia no um tempo, mas antes certo modo de ser e de estar no mundo18. Ora, este modo de ser resulta de ritmos assimtricos de cada um dos nveis (modernamente chamados de poltico, institucional, econmico, social, cultural, religioso, mental) do viver coletivo. Quer dizer, possvel um grupo humano ter traos medievais no plano poltico, por exemplo, e modernos no econmico. Do ponto de vista factual, porque os colonos portugueses e seus descendentes dispersaram-se pela maior parte do territrio brasileiro atual, embora com intensidades diferentes conforme as pocas e os locais, e tambm porque mais tarde a migrao interna que envolveu 10% da populao total em 1950 em especial no sentido Norte-Sul, favoreceu numa fase inicial a circulao do sistema de valores medievais antes de este se enfraquecer numa segunda fase diante das presses da cultura dominante na regio de instalao. Logo, melhor denir o Brasil atual como resultado da interao de regies de medievalidade com enclaves de mo-
dernidade, e de regies de modernidade com enclaves de medievalidade. esse o contraste que chama ateno e explica a dinmica histrica prpria ao pas. As fortes oscilaes na trajetria nacional do sculo passado resultaram da difcil convivncia entre aquelas concepes de mundos, cujas relaes tornaram-se cada vez mais difceis com a vaga de imigrao europia e asitica na passagem do sculo XIX para o XX e com os progressos da industrializao e da urbanizao a partir de meados do sculo XX. De toda forma, as estruturas fundamentais que persistem na sociedade europia do sculo IV ao XIX19 so no essencial as mesmas que persistem no Brasil do sculo XVI ao XX.
A SOCIEDADE SENHORIAL
No contexto de pretendidas reformas no funcionalismo do Congresso, criticou-se no comeo de 2001 um deputado federal que quando da contratao de assessores tentou justicar a incluso de familiares argumentando que eles no podem ser punidos [no sendo contratados] por serem meus parentes. Meses depois se debateu tambm a resistncia do Judicirio reforma que impede a contratao de parentes at segundo grau. Mas no se costuma levar em conta que essa no apenas conduta pouco tica de segmentos fortemente corporativos: pesquisa do instituto Vox Populi realizada em princpios de 2000 tinha revelado que, enquanto 59% dos entrevistados eram contrrios contratao de parentes por parte de parlamentares, 46% no hesitariam em faz-lo caso ocupassem cargos pblicos20. Temos a uma verso nacional e atual de fenmeno bem analisado por Norbert Elias: aquilo que do ponto de vista externo visto como corrupo procedimento lgico da prxis social em certo estgio da formao do Estado, no qual o fato de algum galgar posio social de destaque e no favorecer a parentela considerado atitude moralmente reprovvel; traio21.
18 Mrio Martins, A Sobrevivncia da Epopia Carolngia no Brasil, in Estudos de Cultura Medieval, Lisboa, Brotria, 1983, vol. III, pp. 418 e 432. 19 Le Goff, Pour un Long Moyen Age [1983], in LImaginaire Mdival, Paris, Gallimard, 1985, p. 10. 20 Cf. Veja, no 1639, 8/3/2000, p. 20. 21 Norbert Elias, A Sociedade dos Indivduos, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, [1988] 1994, p. 148.
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22 A Carta de Pero Vaz de Caminha, ed. Slvio Castro, Porto Alegre, L&PM, 1985, p. 73. 23 Carlos Rodrigues Brando, O Trabalho de Saber. Cultura Camponesa e Escola Rural, So Paulo, FTD, 1990, p. 136. 24 Razes do Brasil, pp. 81-2; Jos da Silva Lisboa, Princpios de Economia Poltica, Lisboa, 1804, pp. 39 e 42, citado em Razes do Brasil, p. 85. 25 Andr Joo Antonil, Cultura e Opulncia do Brasil por suas Drogas e Minas, So Paulo, Nacional, s/d, p. 54. 26 Policraticus, V, 2, PL 199, col.540 cd; Lex Visigotorum, II,1.3, ed. Karl Zuemer, MGH. Leges, vol.I, p. 47, linha 11 (subtita membra), idia que na mesma poca ainda est presente em: Braulio de Saragoa, Epistola, 5, in Epistolario de San Braulio, ed. Luis Riesco Terrero, Sevilha, Universidad de Sevilla, 1975, pp. 67-71. 27 Marc Bloch, La Socit Fodale, Paris, Albin Michel, [1939-1940] 1973, p. 207. O paralelo com Portugal estudado, sob outro enfoque metodolgico, mas com informaes interessantes, por Armando Castro, Portugal na Europa do seu Tempo. Histria Scio-econmica Medieval Comparada, Lisboa, Seara Nova, 1970.
Tal viso comum a polticos e cidados na passagem do sculo XX ao XXI no estruturalmente diferente da dos senhores feudais servidos por parentes prximos. No deixa de ser curioso como a certido de nascimento do Brasil fecha-se com pedido de ares nepotistas quando Pero Vaz de Caminha pede ao rei que perdoe seu genro que tinha sido degredado, o qual vai ser no ano seguinte, com a morte do escrivo, nomeado para substitu-lo22. Trata-se, em ltima anlise, da concepo de familia (ou mansio, casa), conjunto de indivduos unidos por laos variados de solidariedade, concepo germnica que submete o comportamento de cada um de seus membros aos costumes da tribo. A, mais do que sociedade (Gesellschaft), existe comunidade (Gemeinschaft). Tal noo, grosso modo, a mesma no interior do Brasil de hoje. Neste, diz Carlos Rodrigues Brando, famlia a unidade de referncia que torna qualquer pessoa um integrante legtimo de uma parentela e da vizinhana de um bairro rural. Ningum ofende a Joo, mas ao lho de seu Vicente e dona Maria e, por extenso, ofende seus irmos, ascendentes, lhos e outros parentes. A ofensa se volta contra todo o grupo domstico, porque aquele sobre quem ela recai s uma pessoa por ser de tal famlia23. No interior da fechada famlia de tipo patriarcal, o poder do senhor imenso sobre a massa escrava, o grupo de agregados e os familiares mais prximos. A grande famlia, medieval ou brasileira, deixa autoridade quase ilimitada nas mos do patriarca. No Brasil colonial, e mesmo depois, o ptrio poder exercia-se at sobre a vida dos membros da famlia, sem que o poder pblico interviesse, lembra Srgio Buarque. Esse quadro levou a se comparar a sociedade ao corpo humano encabeado por um chefe de carter patriarcal. Ainda no sculo XIX, um erudito como o visconde de Cairu concebia o Estado como vasta famlia cujo patriarca a cabea do corpo social24. Na mesma concepo tinha se inspirado o cronista jesuta do sculo XVII brasileiro, para quem os escravos negros so as mos e os ps dos senhores de engenho25. Essa
analogia antropomrca era contudo bem anterior, tinha razes medievais e ibricas. No sculo XII, Joo de Salisbury armara que no corpo social os agricultores representavam os ps, aos quais especialmente necessria a ateno da cabea [] j que sem os ps nenhum corpo, por robusto que seja, poder caminhar por suas prprias foras. No sculo VII, uma lei denia o rei como a cabea que conduz os sditos membros26. O personalismo que governava as relaes sociais medievais engendrou e no Brasil ainda engendra fraqueza das instituies e das normas impessoais e gerais que devem comandar as sociedades modernas e democrticas. O perodo que assistiu ao orescimento das relaes de proteo e de subordinao pessoais [] foi igualmente marcado por um verdadeiro estreitamento dos laos de sangue: porque os tempos eram agitados e a autoridade pblica no tinha vigor, o homem tomava conscincia mais viva das suas ligaes com os pequenos grupos, fossem quais fossem, dos quais podia esperar algum socorro. Essa citao, que poderia se referir na histria do Brasil tanto sociedade aucareira do sculo XVII quanto cafeeira do XIX, fala no trecho que substitumos acima por reticncias em o estado social que chamamos feudalismo27. Nessa formao social havia certa indistino entre coisa pblica e coisa privada. A privatizao da primeira deu-se quando grandes detentores de terra apossaramse de funes (militar, scal, judiciria, monetria) que se tornaram patrimnio de algumas famlias. verdade que no plano terico a Idade Mdia conservou os conceitos vindos do Estado romano da Antigidade: publicus o pertencente ao povo, coletividade, aquele que age em nome de todos, aquilo que ocorre diante de todos, abertamente; privatus a esfera do particular, do pessoal, do familiar, daquilo que ocorre em casa, secretamente. No plano prtico, contudo, a sociedade feudal embota a fronteira entre os conceitos. Interpenetra-os. Nela tudo privado e ao mesmo tempo tudo se torna pblico.
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Exatamente como no caso brasileiro, no qual a coisa pblica vista no como pertencendo a todos, e sim como no pertencendo a ningum. Ou melhor, como sendo de quem se apossa dela antes dos outros. A moralidade da casa diferente da moralidade da rua; o que vedado no espao privado permitido no pblico, e vice-versa28. Apesar de dedicados produo voltada para o exterior, ao contrrio de seus antecedentes medievais, os engenhos lembravam na vida cotidiana os senhorios feudais. Tanto uns quanto outros eram organismos completos, quase auto-sucientes, que tinham capela, ocinas, horta, criao e tudo quanto se precisasse. Os engenhos de acar dos sculos XVI-XVII mantinham dezenas, em alguns casos centenas, de homens armados para sua defesa contra selvagens ou corsrios, da mesma forma que os domnios rurais dos sculos IX-X para fazer frente aos ataques dos selvagens (cruenti) normandos29 ou dos piratas sarracenos, e da mesma forma ainda que os senhorios dos sculos XI-XII contra os rivais locais. Os senhores de engenho, por segurana e precauo, enterravam nas suas casas jias e ouro, assim como tinham feito os senhores medievais at o sculo X30. No Brasil tal situao no foi apenas do Nordeste ou da poca colonial, sendo perceptvel ainda nos sculos XVIIIXIX em locais to afastados entre si como Maranho e Rio de Janeiro. O fenmeno conhecido entre ns por coronelismo nada mais do que a verso nacional do clientelismo e do patronato que existiu na Europa medieval. Os coronis so poderosos que atravs da distribuio de favores constituem uma famlia no sentido feudal. Cada pai simblico (correspondente ao senior), protetor, dispensador e comandante, em troca de delidade entrega a cada um de seus lhos adotivos (jovem, vassalus) bens e direitos para seu sustento. Na Europa da Idade Mdia esses vnculos recprocos instauravam uma conana pseudolial, permitiam a assimilao da functio, isto , do servio pblico amizade, ao reconhecimento do alimentado e submisso do cliente. No Brasil de hoje, para o sertanejo nordestino o ideal do rico
generoso e bom um dos constituintes do seu mundo31. Diante disso, no de estranhar que nos dois locais tenha se subestimado por sculos o esprito de rotina, de organizao e de esforo contnuo. o que comprova, no caso brasileiro, a epopia colonial das bandeiras, a loteria da minerao e mesmo o ciclo aucareiro. Este, apesar da aparncia de empreendimento racional, foi ocupao aventureira do espao, e no uma civilizao tipicamente agrcola32. A explorao predatria da terra, decorrncia da abundncia de espao e da pobreza de recursos tecnolgicos, tinha claros antecedentes medievais. E continua a ser praticada, em particular na Amaznia. Diante da impotncia do Estado e da dureza das condies de vida social, as relaes pseudofamiliares essncia do feudalismo ainda tm fora no Brasil atual. Neste, da mesma maneira que na Europa medieval, a sobrevivncia dos indivduos depende muito da proteo de um grupo. Em ambas as sociedades as corporaes tendem a se julgar acima das autoridades pblicas, e eventualmente se opor a elas. Na histria brasileira o exemplo mais claro o do Exrcito, a corporao por excelncia. Outro o do Judicirio. H poucos anos um ex-ministro da Justia defendeu um sistema especial de aposentadoria para os juzes alegando que isso no seria privilgio e sim prerrogativa, mais do que isso, direito do povo em contemplar sua magistratura, funo que sacricado apostolado33. No entanto, o mundo corporativo brasileiro, como o da Europa medieval, no homogneo, apresenta forte hierarquizao intra e intercorporaes, mesmo no seio do Estado34. Este, enquanto representante eqidistante dos interesses de todos os cidados, fraco. Mais do que um Estado, o que existe um encavalgamento de corporaes, legais e ilegais, ligeiramente articuladas entre si. Embora desigual, ou exatamente por isso, a sociedade senhorial brasileira signica forte possibilidade de mestiagem, realidade do Portugal medieval que, com elementos e propores especcas, foi transferida para as terras do Novo Mundo.
28 George Duby, Poder Pblico, Poder Privado, in Histria da Vida Privada. Da Europa Feudal Renascena, trad., So Paulo, Companhia das Letras, [1985] 1995, pp. 1925; Roberto da Matta, A Casa e a Rua. Espao, Cidadania, Mulher e Morte no Brasil, Rio de Janeiro, Rocco, [1984] 2000. Exemplo recente, e signicativo, a maior autoridade do pas, o presidente da Repblica, Lus Incio Lula da Silva, ter durante cerimnia na Usina Hidreltrica de Tucuru jogado ao cho, atrs da cadeira do governador do Par, o invlucro de um bombom que ganhara e acabara de comer (O Estado de S.Paulo, 26/11/2004, p. A5). 29 Casa-grande e Senzala, p. 95; Abbon de Saint-Germain des Prs, Bella Parisiaca Urbis, v. 178, ed.-trad. Henri Waquet, Paris, Belles Lettres, 1964, p. 28. 30 Casa-grande e Senzala, p. LX; Rene Doehaerd, Le Haut Moyen ge. Economies et Socits. Paris, PUF, 1971, pp. 319-23. 31 Respectivamente, Duby, Poder Pblico, Poder Privado, op. cit., p. 31; Alfredo Macedo Gomes, Imaginrio Social da Seca, Recife, Massangana, 1998, p. 107. Pode-se mesmo perguntar se, desse ponto de vista, a bolsafamlia distribuda atualmente no estabelece nos quadros da democracia formal em vigor laos de delidade recprocos entre os benecirios (eleitores contemplados) e o dispensador (governo federal). Este no representa para aqueles o ideal do rico generoso e bom? 32 Razes do Brasil, p. 49. 33 Saulo Ramos, Direito da Magistratura, Privilgio do Povo, in Folha de S. Paulo, 16/9/1997, p. A2. 34 Em outubro de 1998, o Superior Tribunal de Justia determinou (desrespeitando procedimentos constitucionais) aumento salarial dos juzes (desconsiderando a realidade econmica nacional e mesmo a comparao com a remunerao de seus pares em pases do Primeiro Mundo). O Supremo Tribunal Federal posicionou-se contrrio e abriu-se uma crise intracorporativa.
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35 Jos Mattoso, Identicao de um Pas. Ensaio sobre as Origens de Portugal, 1096-1325, Lisboa, Estampa, 1985, vol. I, p. 251; Antnio Henrique de Oliveira Marques e Joo Alves Dias, A Populao Portuguesa nos Sculos XV e XVI, in Biblos (Coimbra), 70, 1994, p. 187. 36 Oliveira Marques e Alves Dias, op. cit., pp. 190-1; Maria Jos Pimenta Ferro, Os Judeus em Portugal no Sculo XIV, Lisboa, Centro de Estudos Histricos, 1970; Antnio Brsio, Os Pretos em Portugal, Lisboa, Agncia Geral das Colnias, 1944; Charles Verlinden, LEsclavage dans lEurope Mdivale. Peninsule Ibrique-France, Bruges, De Tempel, 1955, pp. 550-1, 561, 566-71, 615-29, 838. 37 Vitorino Magalhes Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, Lisboa, Presena, [1963-1971] 1983, vol. IV, p. 161; Maurcio Goulart, A Escravido Africana no Brasil das Origens Extino do Trco, So Paulo, Alfa-Omega, [1949] 1975, pp. 7-28. 38 Casa-grande e Senzala, pp. 5-10, 201-20; Razes do Brasil, pp. 53-5, 64. Goulart (op. cit., p. 262) calcula em 3.600.000 o nmero de africanos introduzidos no Brasil do sculo XVI a meados do XIX. 39 Pierre Toubert, Les Structures du Latium Mdival, Roma, cole Franaise de Rome, 1973, 2 vols.; Miquel Barcel e Pierre Toubert, LIncastellamento, Roma, cole Franaise de Rome/Escuela Espaola de Historia y Arqueologia en Roma, 1998. 40 Razes do Brasil, pp. 146-51. 41 ilustrativa uma consulta lista de candidatos a vereador da maior cidade do pas nas eleies municipais de 2004 e a informalidade de suas alcunhas. Vrios nomes civis so usados no diminutivo: Alfredinho, Carlinhos Silva, Celinho, Chiquinho Faria, Chiquinho Kumagai, Claudinho, D, Edinho, Flavinho, Joozinho, Lla, Luizinho, Marinho, Netinho, Neuzinha, Osvaldinho, Paulinho Pauli, Paulinho Rodrigues, Paulinho Sobral, Paulinho Varotti, Rubinho, Soninha, Toninho, Toninho Alves, Toninho Campanha, Toninho Francisco, Toninho Meireles, Toninho Paiva, Toninho Souza. Outros no aumentativo: Cido, Cido Oliveira, Cido Tibrcio, Jorjo, Paulo Triguinoso, Zelo, Zezo. Muitos aparecem de forma condensada: Babu, Bel Leme, Ben, Beto Camargo, Beto Custrio, Beto Ramos, Chico Biasi, Chico Lopes, Chico
Na metrpole a dominao muulmana tinha estabelecido relaes inter-raciais inicialmente difceis, mas que com o tempo permitiram certo cruzamento, em particular entre escravas crists e senhores mouros. Com a Reconquista crist o quadro inverteuse e intensicou-se. De meados do sculo XI a meados do XIII cresceu tanto o nmero de escravos mouros, sobretudo usados em tarefas domsticas e artesanais, que pelo menos at o sculo XIV eles no devem ser considerados etnia e sim minoria religiosa, pois em termos raciais portugueses cristos e portugueses muulmanos no se diferenciavam35. Completada a Reconquista de seu territrio em meados do sculo XIII, os portugueses no podiam continuar a se expandir na Pennsula Ibrica, onde Castela consolidava seu domnio. Passaram ento a ambicionar terras fora da Europa, e assim, desde ns do sculo XIV, foi aumentando o nmero de escravos obtidos em operaes de corso, berberes, negros, europeus orientais, guanches (nativos das Canrias), alm da entrada de ciganos durante a segunda metade do sculo XV. Se a miscigenao com judeus (talvez 3% da populao em ns do sculo XV) parece ter sido insignicante, com os negros deu-se o contrrio36. Entre 1441 e 1505 foram levados para Portugal cerca de 150 mil africanos, em vora havia em 1466 tantos negros quanto brancos, na Lisboa de 1535 viviam mais escravos que homens livres, no sculo XVI eles constituam um quinto da populao total37. Ou seja, os portugueses j eram mestios ao chegarem Amrica, o que facilitou a mistura racial na colnia38. Entretanto, como a origem da mestiagem lusitana dera-se no quadro histrico da Reconquista, no qual prevalecera evidentemente a lei do mais forte, geradora de tenses psicolgicas e sociais, estas no deixaram de estar presentes na Conquista americana. Assim a mestiagem colonial no impediu o preconceito e o fosso entre a elite branca e a massa no-branca. O resultado que a violncia social e a fraqueza institucional, que na Europa em torno do ano 1000 tinham gerado o fenmeno conhecido por encas-
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telamento39, no Brasil levaram os proprietrios fundirios a tomarem a proteo de seus bens nas prprias mos. No campo os latifundirios coloniais e atuais contratam jagunos armados para impedir a invaso dos despossudos. Nas grandes cidades o fenmeno tardio (ltimo quarto do sculo XX) e assume formas atenuadas, mas no deixa de existir. Os ricos das manses e a alta classe mdia dos grandes apartamentos cercam-se de altos muros protegidos por grades, os eletricados, alarmes e, em pontos estratgicos, pequenas torres com guardas muitas vezes armados. O personalismo das relaes gerou a sociabilidade que Srgio Buarque de Holanda deniu como sendo a do homem cordial. Quer dizer, comportamento na aparncia hospitaleiro, generoso, franco, caloroso, que na verdade esconde emoes profundas e revela diculdade no estabelecimento de relaes sociais maduras. O brasileiro resiste noo ritualista de vida, civilidade que implica certa coero. A cordialidade brasileira o oposto da polidez. Preferimos as formas de tratamento familiar, que denotam intimidade, s de respeito, de reverncia. Da nosso hbito do uso exagerado do diminutivo, que pretende nos familiarizar com pessoas e objetos. A cordialidade seria, ento, a transposio para o plano societrio da mesma sociabilidade praticada no mbito da famlia patriarcal. Nessa anlise, sem dvida um dos pontos altos de seu livro40, ele detecta o carter medieval de hbito bem brasileiro. A tendncia omisso do nome de famlia no tratamento social continuidade e intensicao de hbito da Idade Mdia, pois os sobrenomes surgiram apenas a partir do sculo XII41. Falta, contudo, notar a identidade medieval das modalidades de tratamento social preferidas pelos brasileiros. Ao contrrio do que muitas vezes se pensa, o cristianismo desde suas origens estimulou um clima intimista entre mundo terreno e mundo sagrado. Mesmo no Antigo Testamento, mais formalista, o salmista dirige-se a Deus na segunda pessoa. Os cristos adotaram a prtica desde o incio. Como na inscrio da base do arco triunfal da Baslica de So
Neto, Cida, Cida Carvalho, Cida Macedo, Cida Santos, Dany, Deja, Geg, Giba, Jura, Lino, Miro Correia, Nene, Roni, Tio Bezerra, Tio Farias, Tilla, Tino, Tony Silva, Z Maria, Z Miranda, Z Wilson, Zoza. Em certos casos so antecedidos por uma qualicao prossional: Agente Valdir, Bispa Lenice, Bombeiro Caic, Capito Cosme Lopes, Coronel Nogueira, Delegado Arnaldo de Lima, Doutor Minan, Dra. Dirce do Projeto Rondon, Enfermeira Anglica, Engenheiro Ricardo Teixeira, Irmo Ansio, Irmo Francisco, Mestre Kim, Pai Marcelo, Pastor Saulo Rodrigues, Policial de Paula, Praa Clvis, Professor Carlos, Prof. Munhoz O Homem da Moto, Sargento Arajo, Sargento Nezinho-O Rco, Tenente Martan, etc. Em outros so seguidos de indicativo profissional: Afonso Camel, Beto do Lava Rpido, Chiquinho dos Correios, Cremilda Taxista, Dino Joalheiro, Ju da Imobiliria, Luiz dos Livros, Paulinho Nossa Caixa, Paulo da Manuteno, Regina Prata Tia dos Mousses, Telles Cabeleireiro, Toninho do Jornal, Toninho do Palcio, Zezinho Hospital So Paulo. Em outros incorporam a origem geogrca: Alcides Amazonas, Bahia, Bahia Santos, Carlo da Sade, Cear do PSDC, Manuel Pernambuco, Maranho, Mineirinho, Murilo Cear, Pino de Santana, Sindi da Leste. Inmeros so simplesmente apelidos pessoais tornados pblicos: Amarelo, Azulo, Betinho Corinthiano, Bigode, Biriba, Biro Biro, Bozo, Brasilino de Presente, Canarinho, Cascavel Guerreiro, Cheron, Chico do PV, Chorinho da Vila, Coelho da Toca do Coelho, Concheta, Dona Iza, Farid Furaco, Feijo Miranda, Garota da Lage, Gildo Capoeira, Gilmar do Prato, Girafa, Gisa Della Mar, Guerreiro, Homem da Cndida, Ivan O Terrvel, Jacar, Jaiminho Kixod, Jegue Dente de Ouro, Johnny Chocolate, Jubileu, Kojak, Maninho, Maria Helena A Fora da Mulher, Pampa, Pateta, Paulinho Esse O Caminho, P de Frango, Pel, Pezo, Pitoco, Pol, Porcina, Primo Preto, Pur, Quito Formiga, Rose de Ob, Seu Madrugada, Taa, Tia Ftima, Tia J, Tico, Tirrim, Toninho do Bolo, Tureba, Urso, Wado Caminha, Z do Caixo, Z do Povo, Z ndio, Zoza. Material etnogrco interessante, como se v, que permitiria diferentes consideraes que no podemos fazer aqui, e que no chega a surpreender quando o presidente da Repblica conhecido por um ntimo Lula.
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42 QUOD DUCE TE MUNDUS SURREXIT IN ASTRA TRIUMPHANS/ HANC CONSTANTINUS VICTOR TIBI CONDIDIT AULAM (cf. Ernst Diehl, Inscriptiones Latinae Christianae Veteres, Berlim, Weidmannos, 1925, vol. I, no 1752, p. 340). 43 Liber ordinum en usage dans lEglise wisigothique et mozarabe du cinquime au onzime sicle (ed. Marius Frotin, Paris, Firmin Didot, 1904 Monumenta Ecclesiae Liturgica, 5), por exemplo, em nota de 1039, tu es agnus dei, qui tollis peccata mundi (I, 4, p. 53), Domine deus omnipotens, sanctica huius aquam fontis aduentum spiritus tui (I, 15, p. 55), omnipotens sempiterne deus, tue glorie pietatem (XXXIII, 205, p. 93). De 1052, in tu nomine deus omnipotens ei iesu Christi lii tui domini nostri signo (I, 3-4, p. 69). 44 Missale mixtum dictum mozarabes, II, 444, PL 85, col. 988 D. 45 Alain Rey, Dictionnaire Historique de la Langue Franaise, Paris, Le Robert, 1992-1993; Joan Corominas, Diccionario Crtico Etimolgico Castellano e Hispnico, Madri, Gredos, 1983; Rafael Lapesa, Personas Gramaticales y Tratamientos en Espaol, in Revista de la Universidad de Madrid, 19, 1970, pp. 141-67; Mrio Marroquim, A Lngua do Nordeste, So Paulo, Nacional, 1934, p. 120. 46 Joo Alves Pereira Penha, Traos Arcaicos do Portugus Popular do Brasil, Franca, Iguatemi, 1971; Gladstone Chaves de Melo, A Lngua do Brasil, 4a ed., Rio de Janeiro, Padro, 1981; Heitor Megale (org.), Filologia Bandeirante, So Paulo, Humanitas/Fapesp, 2000; Seram da Silva Neto, Histria da Lngua Portuguesa, Rio de Janeiro, Livros de Portugal, [1952] 1970. 47 Brutus, 46, 171, ed. Henrica Malcovati, Berlim, Teubner, 1970, p. 50, linhas 24-5. 48 Albert Carnoy, Le Latin dEspagne daprs les Inscriptions: tude Linguistique, Hildesheim/Zurique/Nova York, Georg Olms, [1906] 1983; Kurt Baldinger, La Formacin de los Domnios Lingsticos en la Pennsula Ibrica, Madri, Gredos, 1962, pp. 87-101.
Pedro, do comeo do sculo IV, onde o imperador oferece aquela igreja a Cristo e seus apstolos: Porque sob tua direo o mundo se levantou triunfante para o Cu,/ Constantino, vitorioso, fundou para ti esta igreja42. Tratamento igual recorrente no Liber Ordinum, coletnea ibrica de oraes do sculo V ao XI43. Na mais importante suma hagiogrca medieval, a Legenda urea, de meados do sculo XIII, ocorre a mesma coisa. Em livro litrgico ibrico do sculo XV, a missa chamada de ritual ad tuum altare44. Nas nascentes lnguas vernculas a tendncia foi a mesma. No francs, o tu (c.980) anterior ao vous como singular de deferncia (c.1050), o verbo tratar-se por tu surgiu em ns do sculo XIII (tutoiser, 1280-1290; tutoyer, 1393), o tratar-se por vous no XIX (vouvoyer, 1834). No castelhano, entre o sculo XII e XIV, o vos de reverncia ganhou valor de t (que acabaria por substitu-lo na Espanha e certas colnias) e foi nessa acepo familiar que penetrou em outras colnias (como Argentina, Uruguai, Paraguai). No portugus, o vs singular (sculo XIII) foi sendo gradativamente eliminado pelo tu e posteriormente pelo voc (1665). No Brasil, o tu predomina nos extremos do pas e o voc no restante, salvo no Nordeste onde vs continua cotidiano e informal, com verbo na terceira pessoa do singular45. O sentido respeitoso do latim senior (o mais velho) penetrou nos idiomas romnicos e gerou em francs sire (c.1050, depois, com o possessivo, monsor, em 1297, monsieur, em 1314), em castelhano seor (1077), em italiano signore (1219) e apenas tardiamente em portugus senhor (sculo XIII). Quer dizer, as demais lnguas romnicas tm uma dupla lexical de considerao social (vous/Monsieur, usted/seor, Lei/signore), o portugus somente uma palavra para isso (senhor) e uma dupla para a familiaridade (tu/voc). Ou seja, por herana medieval o Brasil guarda formas democrticas de trato social no interior de sociedade senhorial, enquanto a Frana, por exemplo, preferiu formas aristocrticas de trato social no seio de sociedade democrtica.
A CULTURA ARCAIZANTE
Existem planos culturais to profundos, to integrados na vida brasileira, que habitualmente sua origem medieval sequer percebida. O mais importante deles o da lngua. Se um cidado portugus atual encontra na lngua falada no Brasil vocbulos e expresses em desuso, apesar do sprachliche Ausgleichung em curso devido aos atuais meios de comunicao de massa, porque aquela ltima guarda inegveis traos medievais. No plano sinttico, o uso brasileiro da prclise onde os portugueses adotam a nclise registra o estado da lngua nos sculos XV-XVIII. No plano lexical, um levantamento recente revela, na fala de idosos analfabetos do interior de Mato Grosso, Gois, Minas Gerais e So Paulo, formas do portugus dos sculos XIII-XVI (por exemplo, esmolna, demudar, pessuir, despois, preguntar, quaje, ge, mensonha, etc.), levadas queles locais pelos bandeirantes. No plano prosdico, o portugus brasileiro mantm a situao de 1200-1350, que sofreu poucas mudanas at o sculo XVI: por exemplo o nal o pronunciado como u e o e como i, fato que se conservou tambm no portugus de Aores e de reas perifricas de Portugal. Enraizada na Amrica, a tradicional pronncia das slabas pr-tnicas no desapareceu apesar de essa ter sido a tendncia em Portugal na passagem do sculo XVIII ao XIX46. Nada de estranho nesse quadro, pois bem conhecido o fenmeno de os idiomas transplantados serem mais conservadores do que os das suas regies de origem. Ccero j tinha chamado a ateno para o fato de na sua poca ouvir-se na Glia palavras em desuso em Roma47. Ademais, a tendncia arcaizante prpria da lngua portuguesa como um todo, porque o latim ibrico tinha sido menos evolutivo que o da Glia48 e o de Portugal mais resistente a certas germanizaes, como demonstra o fato nico entre os idiomas romnicos de nomear os dias da semana no a partir das divindades pags (luned, lundi, lunes, dia da Lua, etc.) e sim de orden-los com a
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palavra latina feria. Tal conservadorismo reforou-se no Brasil a partir de 1550 com a chegada de lusitanos oriundos dos Aores e da Madeira, locais em que a colonizao comeada por volta de 1430 havia criado devido ao isolamento um tipo de linguagem ainda mais arcaica, ento transferida ao Brasil. Em suma, arma Seram da Silva Neto, no ser exagerado classicar a lngua dos primeiros colonizadores como pertencente ainda ao sculo anterior, isto , representando um sistema lingstico muito antigo49. Da mesma maneira e pela mesma razo que a europia medieval, a cultura brasileira est baseada na oralidade. De fato, se ainda em 2006, segundo o IBGE, 9,6% da populao analfabeta absoluta e os analfabetos funcionais (pessoas incapazes de ler e escrever textos simples) constituam-se em 16,4% dos brancos, 27,5% dos negros e 28,6% dos mestios, essas cifras eram bem mais elevadas dcadas antes. Entende-se assim o sucesso da radionovela na primeira metade do sculo XX e da telenovela posteriormente. Essas literaturas orais cumprem de forma eletrnica e prolongada (duram meses) as tradicionais funes da literatura de cordel (sociabilizao de familiares e amigos reunidos em torno do rdio e atualmente da televiso; satisfao de necessidades psicolgicas bsicas atravs de arqutipos literrios). Elas so a performance denida por Paul Zumthor para a literatura medieval50. Todavia, o sucesso dos modernos veculos de comunicao no excluiu da sociedade brasileira a literatura de cordel. Embora tenha passado a ser impressa a partir de ns do sculo XIX, ela conservou sua inteno de oralidade, sendo lida em voz alta para um pblico no-leitor. Da ser literatura sempre arcaizante, na qual o poeta popular, ao contrrio do culto, to mais respeitado quanto menos original, quanto menos rebelde s formas e contedos tradicionais. Por meio desse processo criativo que preserva valores j abandonados pela sociedade global, ele realiza uma crtica a esta sociedade, mesmo sem o pretender conscientemente51. Ora, tais valores so
inegavelmente medievais, por isso aquela literatura representa janela privilegiada sobre nossas razes profundas. Da mesma forma que a literatura europia medieval, freqentemente o cordel brasileiro associa cavaleiros e clrigos, quer dizer, no ambiente nordestino, cangaceiros e lderes messinicos. Algumas vezes caractersticas dos dois tipos so reunidas no mesmo personagem. No ltimo quarto do sculo XIII a traduo portuguesa de A Demanda do Santo Graal atribui forte trao messinico a Galaad e clara supremacia do sacerdcio da virtude sobre o sacerdcio ocial. Galaad foi o modelo de D. Nuno lvares Pereira, o construtor da nacionalidade portuguesa em ns do sculo XIV e grande leitor das narrativas artricas. Por isso, se Galaad o cavaleiro desejado, forte e puro, protetor de humildes e mulheres, Lampio descrito como algum que no temia/ a ningum no mundo inteiro []/ ele protegia ao pobre/ com todo prazer que tinha/ defendia uma criana/ uma velha, uma mocinha52. A crena medieval de que o rei Artur no teria morrido e esperava escondido o momento de voltar foi reatualizada e reintensicada em Portugal quando D. Sebastio morreu na batalha de Alccer Quibir, em 1578, jogando Portugal em profunda crise poltica, com perda da independncia. O messianismo sebastianista no era apenas popular, mas tambm erudito, como provam o Vieira e os jesutas que o difundiram na colnia. O terreno era favorvel para tanto graas tradio que identicava o local de repouso de Artur como sendo a ilha Brasil e aos movimentos messinicos indgenas, da o sebastianismo ter se mantido vivo no Nordeste pelo menos at o sculo XIX, como indicam os eventos da Cidade do Paraso Terrestre, do Reino Encantado e de Canudos, todos baseados no mtico retorno do rei53. Tambm na literatura culta brasileira a Idade Mdia esteve e est presente. Os exemplos possveis seriam vrios 54. No sculo XVII, a poesia do baiano Gregrio de Matos trovadoresca tanto na sua stira quanto no seu misticismo, da ser consi-
49 Histria da Lngua Portuguesa, op. cit., p. 587. 50 A Letra e a Voz. A Literatura Medieval, So Paulo, Companhia das Letras, [1987] 1993. 51 Jerusa Pires Ferreira, Cavalaria em Cordel, So Paulo, Hucitec, 1979, p. 13. 52 La Queste del Saint Graal, ed. Albert Pauphilet, Paris, Honor Champion, 1980, pp. 7, 34, 77 et passim; Joo de Barros, Lampio e Maria Bonita no Paraiso do dem, Tentados por Satans, vv. 61-62, 73-76, s/c, s/ed., p. 3. 53 Harvey L. Sharrer, The Passing of King Arthur to the Island of Brasil in a Fifteenth-century Spanish Version of the Post-Vulgate Roman du Graal, in Romania (Paris), 92, 1971, pp. 65-74; Curt Nimuendaju Unkel, As Lendas da Criao e Destruio do Mundo como Fundamentos da Religio dos Apapocuva-Guarani, So Paulo, Hucitec/Edusp, 1987; Maria Isaura Pereira de Queiroz, O Messianismo no Brasil e no Mundo, So Paulo, Alfa-mega, 2a ed. 1977, pp. 217-41. 54 Antonio Candido de Mello e Souza, Formao da Literatura Brasileira, So Paulo, Martins, 1959; Pricles da Silva Pinheiro, Manifestaes Literrias em So Paulo na poca Colonial, So Paulo, Conselho Estadual de Cultura, 1961; Alfredo Bosi, Histria Concisa da Literatura Brasileira, 2a ed., So Paulo, Cultrix, 1975; Chico Viana e Maurice Van Woensel, Poesia Medieval, Ontem e Hoje, Joo Pessoa, Editora Universitria UFPB, 1998; Lnia Mrcia Mongelli, Entre Onas e Barbates: as Maravilhas Caboclas de Jos de Alencar, in Signum (So Paulo), 5, 2003, pp. 195-232; Massaud Moiss, Vestgios da Idade Mdia na Fico Romntica Brasileira, in ngela Vaz Leo e Vnia O. Bittencourt (orgs.), Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais, Belo Horizonte, Abrem/PUC-MG, 2003, pp. 59-73.
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55 Sobre este ltimo autor, talvez o mais medievalizante de todos, ver: Lgia Vassallo, O Serto Medieval. Origens Europias do Teatro de Ariano Suassuna, Rio de Janeiro, 1993; Ariano Suassuna Entrevistado por Lnia Mrcia Mongelli, in Signum, 6, 2004, pp. 211-39. 56 Marilyse Meyer, Tem Mouro na Costa ou Carlos Magno Reis do Congo, in Caminhos do Imaginrio no Brasil, So Paulo, Edusp, 1993, pp. 150-4. 57 Joo Guimares Rosa, Grande Serto: Veredas, So Paulo, Abril, 1983; Willi Bolle, Grandeserto.br, So Paulo, Editora 34, 2004; Hilrio Franco Jnior, Modelo e Imagem. O Pensamento Analgico Medieval, in Anais do IV Encontro Internacional de Estudos Medievais, pp. 39-55.
derado o Villon brasileiro; a prosa do padre Antnio Vieira expressa em vrios momentos o milenarismo-messianismo medieval prolongado no sebastianismo portugus (Histria do Futuro, 1649; Clavis Prophetorum, 1663). No sculo XVIII, modelos medievais inspiraram algumas vezes a cronstica (caso do franciscano pernambucano Antnio de Santa Maria Jaboato, 1695-1779), a genealogia (Pedro Pais Leme, 1714-77), a pica moralizante e plena de maravilhoso cristo do agostiniano mineiro Jos de Santa Rita Duro (Caramuru, 1781). No sculo XIX, a do maranhense Antnio Gonalves Dias oscila algumas vezes entre o lrico (Sextilhas de Frei Anto, 1848) e a gesta (I Juca-Pirama, 1851); a do mineiro Alphonsus de Guimares est centrada nos trs inimigos da alma (diabo, carne, mundo), como na obra dos eclesisticos medievais; na produo do cearense Jos de Alencar aparecem diversos elementos do imaginrio medieval, sobretudo em O Guarani (1857) e em O Sertanejo (1875). No sculo XX, o paulista Mrio de Andrade no se isentou de elementos medievais no seu Macunama (1928); nem o paraibano Augusto dos Anjos no poema Barcarola (1912) segue o subgnero potico medieval que d ttulo obra; ou o pernambucano Joo Cabral de Melo Neto em Morte e Vida Severina (1954-55), auto no modelo ibrico medieval; ou ainda o paraibano Ariano Suassuna, em seu romance armorial A Pedra do Reino (1971), amplo painel de temas medievais55. Tampouco o mineiro Joo Guimares Rosa, cujo Grande Serto: Veredas (1956) debaixo de sosticada criao literria reaproveita intensamente elementos medievais. Em especial, j se notou, da tradio carolngia, que, alm de motivos e temas, marca no romance a prpria estrutura narrativa, centrada na idia do combate entre mouros e cristos56. Mas no somente carolngia. H vrias passagens de forte sabor medieval de outras procedncias: a travessia dos jagunos pelo vale da Guararavac do Guaicu lembra uma estada no Paraso; eles vagam pelo deserto como exilados na Terra, da a ausncia do Pai, pois o heri e narrador, Riobaldo, rfo;
este assume diferentes nomes conforme as circunstncias, da mesma forma que santos, papas e cavaleiros; o grande amigo e paixo de Riobaldo, Diadorim, era mulher que vivia disfarada de homem, fato revelado pelos preparativos para seus funerais, topos da hagiograa medieval. Aquilo que levou recentemente um estudioso a considerar Grande Serto: Veredas como precursor da Internet forma narrativa no-linear, associativa, hipertextual, em rede nada mais na verdade do que um elemento central do mundo medieval, o pensamento analgico57. Quanto s principais manifestaes dionisacas da cultura brasileira, o futebol e o carnaval, a antropologia histrica retrospectiva pode mostrar que decorrem da viso de mundo de uma sociedade fronteiria e cruzadstica como tinha sido desde suas origens a de Portugal e a de sua extenso colonial. Predomina nela, de fato, o esprito que prefere o risco e no o planejamento, que coloca a esperana de sucesso em um golpe de sorte e no em esforo continuado, que valoriza atos de coragem e no de lucidez,
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que considera sinal de inteligncia enganar o outro. Logo, no por acaso as palavraschaves daquelas duas expresses culturais so improvisao e iluso. Bem entendido, a origem do futebol tal qual o conhecemos hoje recente, vem da Inglaterra de ns do sculo XIX, porm derivado de modalidades ldico-esportivas medievais das quais guardou certos traos de personalidade. Enquanto na maior parte da Europa aquele esporte est centrado no esprito de concorrncia capitalista e de fair-play protestante, no Brasil ele manifesta traos de nossas razes medievais. Aqui ele recebe a adeso que se conhece por permitir ao indivduo participar de uma corporao (equipe, torcida) que tenta superar outras (no interior das regras com o drible, fora das regras com a simulao de faltas ou mesmo a violncia). Por ser um jogo com o destino baseado para alguns na esperana de que uma situao favorvel seja prolongada, para outros que uma situao difcil no perdurar, para outros ainda que o mais forte no ganhar sempre. A deusa Fortuna, cara aos pagos antigos e tambm aos cristos medievais, instituio nacional: no h bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe, diz o conhecido provrbio. Porque a histria nacional relativamente curta para mostrar mudanas importantes no destino coletivo, o futebol parece signicar o melhor exemplo do equilbrio necessrio entre esperana e desesperana58. O carnaval, por sua vez, remonta sua genealogia Festa dos Loucos, que na Europa dos ltimos sculos medievais funcionava como exutrio das tenses sociais ao temporariamente suspender barreiras hierrquicas e interditos morais. No Brasil colonial, apesar de proibido, desde o sculo XVI, o Entrudo portugus cumpria papel semelhante59. No Brasil atual, a despeito de variantes regionais, o carnaval faz a mesma coisa por liberar abertamente a nudez, os gestos erticos, os excessos alcolicos. mundo ao contrrio por valorizar habilidades populares (msica, dana, fantasias, carros alegricos), por colocar no centro da ateno social gente dos estratos sociais desfavorecidos (na funo de compositores
e passistas). utopia de trs dias com sua falsa riqueza (fantasias de papel e pedras coloridas), sua ordem social efmera (denida pelo papel de cada indivduo no desle de sua escola de samba), sua vida bem compassada (o ritmo critrio fundamental entre as notas atribudas ao desle). Alis, se o ritmo talvez o trao mais marcante do futebol e do carnaval, porque embora essencial para todas as sociedades (socialmente e individualmente o homem um animal rtmico, notou Mauss) ele o ainda mais para as arcaicas, inclusive a medieval (nas modernas h certa desritmizao, constatou Michon)60. Com efeito, a Europa daquela poca no era tona, pelo contrrio, cantava, escandia, ritmava, por razes estticas e de memorizao. Ela tambm dava lugar de destaque ao ritmo gestual, presente na liturgia, na linguagem manual dos monges, nos torneios. O ritmo cromtico facilmente perceptvel no futebol e no carnaval herana indgena, africana e geogrca (sol, mar, vegetao, fauna), mas igualmente medieval61. Parte mais evidente ainda do legado medieval outra manifestao festiva, a cavalhada62. A despeito das variantes locais, pode-se descrev-la como simulacro de batalha entre um grupo representando os cristos e outro, os mouros. A encenao comea com os primeiros propondo aos segundos a converso, cuja recusa d incio luta feita de gestos beligerantes e palavras desaadoras, com msica e danas entremeadas, at que o confronto ldico se encerra com a vitria dos cristos. No secundrio que estes estejam fantasiados de azul e os mouros (grupo muitas vezes constitudo de negros e mestios) de vermelho, isto , de acordo com a oposio cromtica e valorativa entre a cor celeste e marial e a cor infernal e satnica, a cor do outro na denio de Michel Pastoureau63. Como toda rememorao, esta no era neutra, as velhas lutas entre mouros e cristos serviam no contexto colonial de estmulo submisso e converso de ndios e negros, e no contexto atual reforam a identidade coletiva, da os mouros de um ano voltarem na festa seguinte como cristos.
58 Hilrio Franco Jnior, A Dana dos Deuses. Futebol, Cultura, Sociedade, So Paulo, Companhia das Letras, 2007. 59 Jacques Heers, Festas de Loucos e Carnavais, Lisboa, Publicaes Dom Quixote, [1983] 1987; Julio Caro Baroja, El Carnaval, Anlisis Histricocultural, Madrid, Taurus, 1965; Roberto da Matta, Carnavais, Malandros e Heris, Rio de Janeiro, Zahar, 1979; Maria Isaura Pereira de Queiroz, Carnaval Brasileiro: o Vivido e o Mito, So Paulo, Brasiliense, 1992; Harvey Gallaghen Cox, The Feast of Fools. Essay on Festivity and Fantasy, Cambridge (Mass.), Harvard University Press, 1969; 60 M a r c e l M a u s s , M a n u e l dEthnographie, Paris, Payot, 1947, p. 85; Pascal Michon, Rythmes, Pouvoir, Mondialisation, Paris, PUF, 2005, especialmente pp. 101-32, 41359; Jean-Claude Schmitt, Les Rythmes de la Vie. LInvention de lAnniversaire, in Annales. Histoire. Sciences Sociales (Paris), 62, 2007, pp. 793838. 61 A acentuada cromaticidade medieval sugerida h muito por Jacques Le Goff (La Civilisation de lOccident Mdival, Paris, Arthaud, 1967, pp. 412-4), e comprovada por Michel Pastoureau (Une Histoire Symbolique du Moyen Age Occidental, Paris, Seuil, 2004, pp. 113-209), amplamente reconhecida hoje em dia, por exemplo, por Xavier Dectot (LArt Roman en France, Paris, Muse du Louvre, 2005, p. 116-25). 62 Theo Brando, As Cavalhadas de Alagoas, in Revista Brasileira de Folclore (Rio de Janeiro), 3, 1962, pp. 5-46; Mrio Gonalves Viana, As Cavalhadas em Portugal e no Brasil: Ensaio de Histria Comparada, in Boletim Cultural (Lisboa), 75-78, 1971. 63 Michel Pastoureau, Une Histoire Symbolique du Moyen Age Occidental, Paris, Seuil, 2004, pp. 197-209.
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64 Jean-Paul Sarraute, Trois Formes dInuence Portugaise dans la Musique Populaire dOutremer. Le Samba, la Morna et le Mand, in Congresso Internacional de Histria dos Descobrimentos. Resumo das Comunicaes, Lisboa, Comisso do V Centenrio da morte do Infante D. Henrique, 1960, p. 182. 65 Ricardo J. D. Azevedo, Abenoado e Danado do Samba, So Paulo, Universidade de So Paulo, 2004, tese de doutoramento mimeografada, vol. I, pp. 67-68 et passim; Paul Zumthor, A Letra e a Voz. A Literatura Medieval, op. cit. 66 Um dos fundadores do conjunto francs Fabulous Trobadors define o Nordeste do Brasil como un conservatoire naturel de trs anciennes traditions latines, Le Point/Paris, no 2770, 2/8/2004, pp. 32-3. 67 O Phaseolus vulgaris americano acabou por substituir na Europa o feijo antigo e medieval (phasiolus), de origem africana. No Alentejo muulmano j se consumiam diferentes espcies de feijo (Alfredo Saramago, Para uma Histria da Alimentao no Alentejo, Lisboa, Assrio e Alvim, 1997, p. 110), da mesma forma que em outras regies ibricas (Lucie Bolens, Agronomes Andalous du Moyen Age, Genebra, Droz, 1981, p. 130). curioso como receitas medievais de carne de carneiro ensopada eram chamadas de haricots mas no incluam a leguminosa, talvez porque a palavra viesse de aricoter, cortar em pedaos pequenos. Essa palavra pode, por homofonia, ter dado quela a acepo de feijo (Odile Redon, Franoise Sabban e Silvano Serventi, La Gastronomie au Moyen Age, Paris, Stock, p. 133-4), mas tambm pode ter havido associao entre a leguminosa e a carne picada que a acompanhava. 68 Por isso outras reas de colonizao portuguesa tm, alm do Brasil, suas feijoadas locais, que apresentam variao tanto nas partes do porco utilizadas e nos vegetais complementares (repolho, abbora, bananaverde, inhame e batata no Cabo Verde; nabo, cenoura e cebola em Moambique, abbora, maxixe e quiabo no Nordeste brasileiro) quanto na sua base (feijo-manteiga em Cabo Verde, feijo-branco ou vermelho em Moambique e Macau, feijo-vermelho em Timor Leste, feijo-fradinho em Goa). 69 Claude Lvi-Strauss, Mitolgicas. O Cru e o Cozido, So Paulo, Brasiliense, [1964] 1991.
A modalidade musical considerada mais tipicamente brasileira o samba , embora seja quase sempre denida como criao do sculo XIX a partir de elementos africanos, j foi vista como msica de origem portuguesa devido ao seu sistema harmnico e tonal, aos instrumentos musicais europeus, importncia da improvisao, possvel origem da sncope no 6/8 lusitano64. Um dos instrumentos mais usados para obter essa batida j era comum em Portugal de ns da Idade Mdia, onde, de acordo com Gil Vicente, havia em cada casa pandeiro. Uma das grandes caractersticas do samba fora do mbito comercial sua performance, a participao do pblico que transforma em obra coletiva a msica, mesmo quando de criao individual bem identicada, de forma semelhante que ocorria nas narrativas medievais, acompanhadas ou no por msica65. No s o samba que parece ecoar inuncias medievais. interessante notar que a revivicao da cultura occitana em ns do sculo XX revelou similaridades tanto entre o forr brasileiro e a cano trovadoresca (ambos tocados com acordeo, tringulo, violo e zabumba) quanto entre as improvisaes poticas dos emboladores nordestinos e as dos trovadores nas suas tenons, formas estticas que do Midi alcanaram a Galcia, da Portugal e, atravs deste, o Brasil66. Enquanto a culinria do Norte brasileiro possui inegveis traos indgenas e a do Nordeste claras razes africanas, a de Minas no nega sua liao portuguesa com abundante recurso carne de porco e de galinha, ao feijo, couve, ao ovo, banha suna. Podemos mesmo perguntar se o prato nacional por excelncia a feijoada no teria algumas razes medievais. Apesar de ele ter registro apenas no sculo XIX e de o feijo-preto ser de origem americana, desde o sculo XII a Europa conhecia diferentes preparaes cozidas de feijo (palavra atestada em portugus desde o sculo XIII), ou outras leguminosas67, com carne de porco, caso do cassoulet tolosano, da fabada asturiana, do cocido montas cantbrico, do feijes de Treviso veneziano, da feijoada trasmontana, do petit-sal ( base de ervilha) auvrnio. Na
mesma poca os muulmanos introduziam na Hispnia o arroz. Era comum por toda a Europa, de Portugal Polnia, a couve, geralmente usada sob forma de sopa, se possvel com algum embutido (preparao que com a batata americana viria a constituir o moderno caldo-verde portugus). Ou seja, os ingredientes da feijoada eram bem conhecidos desde a Idade Mdia. Destarte, no absurdo, como hiptese, denir a feijoada como prato estruturalmente medieval ao qual as regies coloniais portuguesas agregaram produtos regionais. Origem, longevidade e facilidade de preparo que explicariam, alis, sua adoo pouco adequada em clima tropical68. Essa possvel origem da nossa feijoada estaria conrmando as razes medievais do pas pois, diz Claude Lvi-Strauss, as estruturas de uma regio so inconscientemente traduzidas pela sua cozinha69.
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a ela, porm vivencia-a muito mais do que imagina, como estamos sugerindo. o caso do sincretismo religioso tpico do Brasil com sua mescla de catolicismo, xamanismo indgena, crenas africanas e, mais recentemente, religies orientais e seitas evanglicas, que prolonga, com outros componentes, a religiosidade sincrtica da Europa medieval. Assim como nesta ocorrera uma cristianizao do paganismo clssico e uma paganizao do cristianismo, na colnia portuguesa houve cristianizao dos negros e africanizao do cristianismo. Cristianismo que era mais medieval que ps-tridentino devido ao isolamento do Brasil e ao carter arcaico de sua populao e suas instituies71. No por acaso j foram encontrados nas tradies populares brasileiras hbitos, comportamentos e crenas presentes em Dante Alighieri. O Paraso hierrquico e feudal do poeta orentino corresponde concepo que dele tinham brasileiros entrevistados entre 1923 e 1945 por Lus da Cmara Cascudo. Embora este considere o homem psicologicamente regional, parece que, como comentou Giuseppe Cocchiara, as tradies populares [] so no povo sempre pura histria contempornea. Da por que existe larga faixa de encontro entre as supersties observadas pelo etnlogo brasileiro no Nordeste do sculo XX e aquelas da Europa medieval estudadas por Jean-Claude Schmitt72. Com efeito, campo cultural considerado do ponto de vista moderno como austero, a religio foi na Europa medieval freqentemente vivida de outra maneira, e no Brasil de ontem e de hoje tambm. Aqui como l, o poderio da Igreja e da religio institucionalizada no corresponde prtica e aos sentimentos religiosos. A origem disso pode estar no esprito e na estratgia de converso dos nativos americanos, que no foi essencialmente diferente dos da Alta Idade Mdia quando da evangelizao das populaes europias pags. Nos dois casos recorreu-se aculturao forada (batismos em massa, cristianizao formal de divindades locais, etc.) e mesmo pura violncia contra os pagos (germanos num caso, indgenas no outro). Em ambas as situaes importante
instrumento foram os sermes, como os do monge So Bonifcio no norte europeu altomedieval e os do jesuta Jos de Anchieta na colnia portuguesa americana. A formao territorial portuguesa feita s custas de terras reconquistadas aos muulmanos foi uma longa Cruzada, transferida para alm-mar quando aquela primeira etapa completou-se em 1249. As expedies ao litoral africano que comearam em 1415 receberam bula de Cruzada. A ocupao do Brasil teve inegveis aspectos cruzadsticos e evangelizadores. No relatrio que apresenta ao rei, Pero Vaz de Caminha parece mais entusiasmado com as possibilidades de converso os indgenas no tm nem entendem crena alguma, e por isso se faro cristos e ho de crer na nossa santa f, de acordo com a inteno do rei que tanto deseja acrescentar santa f catlica do que com as potencialidades materiais da terra recm-alcanada: o melhor fruto que dela se pode tirar me parece que ser salvar esta gente73. Segundo um estudioso do tema, uma das caractersticas do catolicismo brasileiro colonial ter sido patriarcal, ter estado a servio do senhor local, coerentemente com o quadro social de ento. verdade, e exatamente por isso no se pode concordar que ele tenha sido criao genuinamente brasileira74. Na Europa a Igreja esteve por longo tempo (888-1057) sob o domnio dos senhores laicos, que podiam vender, doar ou transmitir em herana as igrejas e mosteiros erguidos em suas terras; podiam apropriarse das esmolas e dzimos; podiam nomear sacerdotes, cuja funo desde o sculo VIII era atribuda a ttulo de benecium ou feudo75. O catolicismo patriarcal, prossegue aquele autor, estabeleceu na colnia uma espcie de sociedade de ordens. De novo a constatao correta, mas no se pode esquecer que a partir de longnquas origens indo-europias aquela tenha sido a forma medieval de organizao social, baseada em hierarquia tripartida de oratores (eclesisticos), bellatores (guerreiros) e laboratores (trabalhadores braais). Por m, o mesmo estudioso destaca que o catolicismo patriarcal escapava legislao
70 Hilrio Franco Jnior, A Idade Mdia, Nascimento do Ocidente, So Paulo, Brasiliense, 2006, pp. 150-4. 71 A carnavalizao religiosa brasileira que os puristas criticam no produto de um desrespeito inato, herana cultural. Embora o carnaval tenha aparncia anti-religiosa com seu comportamento ertico, alucingeno, incontinente, no deixa de ser o acontecimento religioso da raa na denio de Oswald de Andrade (Manifesto da Poesia Pau-Brasil, in Do Pau-Brasil Antropofagia e s Utopias, Rio de Janeiro, Civilizao Brasileira/MEC, [1924] 1972, p. 5). 72 Lus da Cmara Cascudo, Dante Alighieri e a Tradio Popular no Brasil, Natal, Fundao Jos Augusto, [1963] 1979, p. 52; Superstio no Brasil, Belo Horizonte/So Paulo, Itatiaia/Edusp, 1985; Giuseppe Cocchiara, Le Tradizioni Popolari Sono Preistoria Contemporanea?, in Preistoria e Folklore, Palermo, Sellerio, [1956] 1978, pp. 117-18; Jean-Claude Schmitt, Religion Populaire et Culture Folklorique, in Annales ESC, 31, 1976, pp. 945-6; Histria das Supersties, Lisboa, Publicaes Europa-Amrica, [1988] 1997. Muitas das supersties so fato antropolgico, outras tm trajetria histrica clara, vindas de Portugal medieval intermediadas pelas ilhas atlnticas: Lus da Silva Ribeiro, Supersties Comuns ao Brasil e aos Aores, in Boletim do Instituto Histrico da Ilha Terceira (Angra do Herosmo), 6, 1948, pp. 124-40; Walter Spalding, Supersties Comuns ao Brasil e aos Aores, in op. cit., pp. 283-90. 73 A Carta de Pero Vaz de Caminha, op. cit., pp. 94 e 98. 74 Eduardo Hoonaert, Formao do Catolicismo Brasileiro, 1550-1800, Petrpolis, Vozes, 1978, pp. 66-74. 75 mile Amann e Auguste Dumas, Lglise au Pouvoir des Laiques (888-1057), Paris, Bloud et Gay, 1948 (Histoire de lglise, direo Augustin Fliche e Victor Martin, vol. 7).
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76 Ernst Benz, Descrio do Cristianismo, Petrpolis, Vozes, 1995, p. 201; Robert Ian Moore, The Formation of a Persecuting Society. Power and Deviance in Western Europe, 950-1250, Oxford, Basil Blackwell, 1987; Graciano, Decretum, p. II, C.23, q.8, c.38, PL 187, col.1199 c. 77 Sermo de Ano Novo de 1642, citado por Charles Ralph Boxer, O Imprio Colonial Portugus, Lisboa, Edies 70, [1969] 1977, p. 410. 78 Laura de Mello e Souza, Intolerncia Legado Colonial, in Folha de S. Paulo, 20/3/2000, Caderno Brasil, p. 9; Edward Peters, The Magician, the Witch and the Law, Hassocks, Harvester, 1978; Maurice Kriegel, Les Juifs la Fin du Moyen Age dans lEurope Mditerranenne, Paris, Hachette, 1979; Jeffrey Richards, Sexo, Desvio e Danao. As Minorias na Idade Mdia, Rio de Janeiro, Jorge Zahar, [1990] 1993. 79 Hoonaert, Formao do Catolicismo Brasileiro, op. cit., pp. 31-58. 80 Hilrio Franco Jnior, Peregrinos, Monges e Guerreiros. Feudoclericalismo e Religiosidade em Castela Medieval, So Paulo, Hucitec, 1990, pp. 50-66, 170-2; A Idade Mdia, Nascimento do Ocidente, op. cit., pp. 146-50; Francisco Mrquez Villanueva, Santiago: Trayectoria de un Mito, Barcelona, Bellaterra, 2004, pp. 183-222. Ainda em 1725, o arcebispo de Goa, Incio de Santa Teresa, armou que Deus escolheu deliberadamente os portugueses de entre todas as outras naes para governarem e reformarem todo o mundo, com comando, domnio e imprio, tanto puro como mestio, sobre todas as suas quatro partidas, e com promessas infalveis para a subjugao de todo o globo, que ser unicado e reduzido a um nico imprio, do qual Portugal ser a cabea (citado por Boxer, O Imprio Colonial Portugus, op. cit., p. 412). 81 Jacopo de Varazze, Legenda urea. Vidas de Santos, ed. Theodor Graesse, trad. Hilrio Franco Jnior, So Paulo, Companhia das Letras, 2003, 48, 2, p. 298; 115, p. 683; 144, p. 840; Pe. Manoel Jos Gonalves Couto, Misso Abreviada para Despertar os Descuidados, Converter os Peccadores e Sustentar o Fructo das Misses, Porto, Sebastio Jos Pereira, 6a ed., [1859] 1868, III,1, p. 285; Additamento, 38, pp. 140-3. 82 Euclides da Cunha, Os Sertes, p. 268.
clerical, facilitando o sincretismo religioso e criando um catolicismo popular distinto daquele. Mais uma vez, a base desse fenmeno nitidamente medieval. A fraqueza institucional e certa indenio dogmtica que caracterizaram a Igreja at o sculo XI favoreceram a sobrevivncia de uma religiosidade crist autnoma, qual no escapavam os prprios eclesisticos. Somente a partir daquele momento a plasticidade do cristianismo medieval foi recuando diante da monarquizao do papado, da dogmatizao do pensamento, da liturgizao da sensibilidade, da canonizao dos santos, da erradicao das heresias. Se o cristianismo tem tendncia intolerncia, esta claramente se acentuou desde o sculo XII, quando se estabeleceu que os hereges devem ser induzidos a aceitar a salvao mesmo contra sua vontade76. Para tanto foi criada no sul francs a Inquisio, em 1229. Em 1252, em nome do bem da coletividade, ela recebe do papa autorizao de praticar a tortura para identicar, localizar e reprimir formas de pensamento diferentes da cannica. Introduzida em Portugal em 1547, subordinada autoridade monrquica, a Inquisio chegou ao Brasil em ns do sculo XVI com a mesma funo controladora das conscincias e repressora de idias no-ociais. Toda diferena deveria ser anulada: Vieira sonhava com o momento em que os portugueses poderiam banhar suas espadas no sangue dos hereges na Europa, no sangue dos muulmanos na frica, no sangue dos pagos na sia e na Amrica77. A atuao da Inquisio tanto na metrpole portuguesa quanto na colnia americana parece ter introduzido na psicologia coletiva uma razo da fora que no deixaria de ser utilizada sculos depois em certos momentos da vida poltica dos dois pases. Como bem viu Laura de Mello e Souza, na nossa histria a intolerncia legado colonial, ao que preciso acrescentar que esta tinha, por sua vez, inegveis origens medievais78. O fato no est descolado, claro, do catolicismo colonial que j foi denido como messianismo guerreiro dos portugueses colonizadores, religio penetrada pela idia
de guerra santa e de santos guerreiros, caso de Santo Antnio, que, no nosso contexto, tornou-se uma espcie de capito-do-mato caador de escravos foragidos79. Ora, esse belicismo mental tinha sido um dos grandes traos caracterizadores da psicologia coletiva do homem medieval, que no caso particular da Pennsula Ibrica levara o pacco apstolo Tiago a ser visto como matamoros80. Mas o principal campo de batalha deve ser na prpria mente, contra pensamentos impuros, e no prprio corpo, contra seus impulsos, da a necessidade da morticao, propugnada por muitos relatos de cordel e sobretudo por uma espcie de suma catequista bastante difundida no Nordeste brasileiro no sculo XIX, a Misso Abreviada. Para esta, prolongando o contemptus mundi dos monges medievais, ningum se despreza como deve81. por esse aspecto penitencial que Antnio Conselheiro carregava consigo a Misso Abreviada82.
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Se em regio menos tocada pelas culturas africana e indgena como era a Minas Gerais do sculo XVIII geralmente se comungava apenas na Quaresma, no se tratava de situao nova, colonial, pois tinha sido comum na Europa medieval como um todo, inclusive em Portugal, onde mesmo um devoto como Nuno Alvares comungava apenas quatro vezes ao ano83. Se o mistrio da transubstanciao sempre traz diculdades de compreenso na Minas colonial84, era porque desde a Idade Mdia a questo colocava problemas. Ao contrrio do conceito teolgico da transubstanciao, elaborado em ns do sculo XI contra hereges espiritualistas, a maioria dos is entendia a mudana de substncia do po em carne de Deus como ato mgico do sacerdote. Eles queriam ver a hstia no momento em que ocorria o mistrio divino, o que levou no sculo XIII generalizao do rito de elevao. Acreditava-se que olhar a hstia naquele momento trazia benefcios sade.
A prtica de roubar hstias consagradas para fazer amuletos foi comum tanto na Europa medieval quanto no Brasil colonial85. Outro claro medievalismo da vida religiosa brasileira so os muitos santos populares, guras reverenciadas pela populao mesmo sem terem recebido aprovao eclesistica. O caso mais conhecido o de padre Ccero, fervorosamente cultuado no Nordeste. Ele fez carreira poltica, ganhou fama de milagreiro, mas sempre despertou desconana das altas autoridades eclesisticas, que em 1893 cassaram-lhe as ordens sacerdotais. Sua popularidade no diminuiu, contudo, e aps sua morte ergueu-se em Juazeiro uma esttua dele com 27 metros de altura (menor apenas que a do Cristo Redentor do Rio de Janeiro), que atrai anualmente milhares de peregrinos. Santicaes espontneas e laicas como essa haviam sido comuns na Europa at ns do sculo XII, quando a Igreja passou a controlar e denir os processos de canonizao. Mesmo depois, porm, novos objetos de culto continuaram a surgir, inclusive um cachorro que curava crianas86. Em Portugal o processo no foi diferente, pelo que sugere a crtica do bispo Martinho de Braga no sculo VI, tanto que em 1640 uma imagem do sapateiro Gonalo Eanes Bandarra, considerado profeta da Restaurao, tenha sido exposta num altar da S de Lisboa segundo o testemunho do padre Vieira. Na sua anlise do homem cordial, Buarque de Holanda aponta com razo a intimidade quase desrespeitosa que se dirige aos santos, expresso de uma religiosidade de superfcie. E reconhece que tal procedimento vinha da Europa medieval87. Todavia no explora esse fato, e assim deixa de lado um material que poderia lanar luzes sobre a religiosidade mais formal que espiritual do brasileiro. De fato, pressionados por condies materiais difceis e impressionados pelas foras da natureza, os homens da Idade Mdia tendiam a exteriorizar seus sentimentos religiosos. A comunicao com o mundo divino dava-se por meio de gestos, palavras, objetos, mais do que atravs de reexo e interiorizao. Os santos eram respeitados no por suas
83 Adalgisa Arantes Campos, A Terceira Devoo do Setecentos Mineiro: o Culto a So Miguel e Almas, So Paulo, 1994, tese de doutorado defendida na Universidade de So Paulo, exemplar mimeografado, pp. 261-2; Karl Bihlmeyer e Hermann Tuechle, Histria da Igreja. Idade Mdia, So Paulo, Paulinas, [1958] 1964, p. 246; Antnio Henrique de Oliveira Marques, A Sociedade Medieval Portuguesa, Lisboa, S da Costa, [1964] 1971, p. 153. 84 Adalgisa Arantes Campos, op. cit., p. 255. 85 Oronzo Giordano, Religiosidad Popular en la Alta Edad Media, Madri, Gredos, [1979] 1983, p. 57; Andr Vauchez, La Spiritualit du Moyen Age Occidental, VIII-XIII Sicle, Paris, Seuil, [1975] 1994, pp. 18 e 171; Oliveira Marques, A Sociedade Medieval, p. 171; Adalgisa Arantes Campos, op. cit., p. 257; Laura de Mello e Souza, O Diabo e a Terra de Santa Cruz, So Paulo, Companhia das Letras, 1987, pp. 220-6; Magia e Religiosidade Popular em Minas no Sculo XVIII, in Norma e Conito. Aspectos da Histria de Minas no Sculo XVIII, Belo Horizonte, Editora UFMG, 1999, pp. 200-4. 86 Michael Goodich, Vita Perfecta: the Ideal of Sainthood in the Thirteenth Century, Stuttgart, Anton Hiersemann, 1982; JeanClaude Schmitt, Le Saint Lvrier, Paris, Flammarion, 1979. 87 Razes do Brasil, pp. 149-51. Tambm Freyre (Casa-grande e Senzala, p. 39) atribura ao patriarcalismo brasileiro perfeita intimidade com os santos.
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88 Vauchez, La Spiritualit du Moyen Age, op. cit., pp. 607, 169-75; Patrick J. Geary, LHumiliation des Saints, in Annales. ESC, 34, 1979, pp 27-42. Estudando uma regio europia que ainda guarda fortes tonalidades medievais, Giuseppe Cocchiara (Soppravvivenze Folkloriche nel Paganesimo Siciliano, in Preistoria e Folklore, Palermo, Sellerio, [1964-1965] 1978, p. 116), considera a punio aos santos ato de dcia, afeto e intimidade. Sobre Portugal, Eugnio de Andra da Cunha e Freitas, Costumes e Tradies do Sculo VI e da Actualidade, in Bracara Augusta (Braga), 8, 1957, pp. 300-2. 89 Patrick J. Geary, Furta Sacra. Thefts of Relics in the Central Middle Ages, Princeton, PUP, 1978. Em certas zonas de Portugal na passagem do sculo XIX ao XX os amuletos protetores deviam ser achados ou roubados (cf. Augusto Goltz de Carvalho, Amuletos de Buarcos, in Portuglia, Porto, 1, 1903, pp. 347-9). 90 Devemos esta informao ao nosso amigo e colega Flavio de Campos, a quem agradecemos. 91 Raul Manselli, Il Sogno come Premonizione, Consiglio e Predizione nella Tradizione Medioevale, in Tlio Gregory (ed.), I Sogni nel Medioevo, Roma, Ateneo, 1985, pp. 21944; Paulo Alexandre E. Borges, A Plenicao da Histria em Padre Antnio Vieira. Estudo sobre a Idia de Quinto Imprio na Defesa Perante o Tribunal do Santo Ofcio, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1995; Lus Filipe Silvrio Lima, Padre Vieira: Sonhos Profticos, Profecias Onricas, So Paulo, Hucitec, 2004; Ralph Della Cava, Milagre em Joaseiro, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1976, p. 26. 92 Anglica Hfer, A Floresta e a Salvao: Encantamento, Aventura e Profecia na Literatura Oral Nordestina, So Paulo, PUC-SP, 1999, dissertao de mestrado mimeografada, pp. 150-1, 159-62: o Horto no centro do mundo verso do folheto de Miguel Paulo de Almeida, O Padre e a Virgem Desejam Salvar o Mundo, p. 7 (citado p. 159). Foi do texto bblico (Deus realizou a salvao no centro da Terra: Deus autem rex noster ante saecula, operatus est salutes in medio terrae, Salmos LXXIII,12) que se desenvolveu a tradio de que o local em que Cristo morreu e ressuscitou seria o umbigo do mundo redimido (Cirilo de Jerusalm, Catachesis, XIII,28, PG 33, col.805
virtudes, mas por seus poderes. Quando um santo no atendia ao pedido do el era ofendido, maltratado e punido. Usava-se seqestrar imagens santas, mesmo de Cristo, para coagir os poderes superiores. Em Portugal no foi diferente do restante da Europa medieval, com tal prtica tendo se prolongado na longa durao histrica at, pelo menos, meados do sculo XX, apesar de combatida pelas Ordenaes do Reino de 1403 e pelas Constituies sinodais de Braga de 169788. Em toda a Europa da Idade Mdia, inclusive Portugal, restos de corpos santos procurados por seu pretendido poder miraculoso eram comprados, trocados, roubados, falsicados89. Outra importante expresso da sensibilidade coletiva, que, sem ser especca da Europa medieval crist, ali teve papel essencial, foi o messianismo milenarista. Assim, no estranho que ao longo da histria luso-brasileira largas parcelas populacionais tenham aguardado a vinda de um Messias e a conseqente instalao de uma sociedade perfeita que anteciparia a sociedade paradisaca. A crena veterotestamentria em um Messias-rei, a tradio mtica do retorno messinico do rei Artur e toda a atmosfera apocalptica medieval conuram, em 1578, no desaparecimento do rei D. Sebastio diante dos muulmanos, o que fez dele a sntese das expectativas messinicas portuguesas. Ele estaria, como Artur, em uma caverna ou em uma ilha esperando o momento de voltar e resgatar a grandeza de seu povo. A sensibilidade sebastianista no deixou, como se sabe, de ter desdobramentos na colnia americana, o mais importante deles o movimento liderado por Antnio Conselheiro em Canudos, no interior da Bahia, e duramente reprimido em 1897. A fora do fenmeno permaneceu no imaginrio nordestino, tanto que pouco antes da eleio presidencial de 1989, pelo que se noticiou, quando o ento candidato Lula estava em Canudos distribuindo po e comeou a chover, a populao local viu nele um novo Antnio Conselheiro90. O profetismo bblico e medieval freqentemente anunciava atravs de sonhos o Messias e uma Nova Era, e o mesmo
ocorreu com Vieira e o padre Ccero. Como os profetas bblicos, eles criticavam e orientavam os governantes, o rei de Portugal no primeiro caso, o governador do Cear no segundo91. No imaginrio nordestino, atestam muitos relatos de cordel, o profeta e o Messias fundiram-se na gura do padre Ccero. Este o prprio Cristo, que voltou ao mundo como um beb que a Virgem trocou com outro recm-nascido. Para os is, Juazeiro Jerusalm, o Riacho Salgadinho o bblico Rio Jordo, a Serra do Catol, onde ele orava, o Horto das Oliveiras e ca no centro do mundo segundo um cantador que desloca assim para o Nordeste brasileiro o topos de Jerusalm umbigo do mundo. nessa Jerusalm nordestina que se dar o Juzo Final, quando o santo reconduzir seus romeiros de volta ao Paraso92. O esprito milenarista que alimentava nos medievais uma expectativa escatolgica latente, aorada em datas simblicas, manifesta-se nessas mesmas circunstncias no Brasil. Em ns de 1899, a proximidade do m do sculo e a crena de que a passagem
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inaugurao da etapa messinica parece ter sido sintetizada na mxima adotada pelo Partido dos Trabalhadores aps sua vitria na eleio presidencial de 2002: A esperana venceu o medo.
do cometa Biela marcava o m do mundo enlouqueceram algumas pessoas, houve pelo menos um suicdio e uma morte por estado de choque. Um sculo depois, diante da proximidade do m do milnio, pessoas se mataram no Piau, presos foram libertados porque o mundo ia acabar93. Diante de suas diculdades concretas, tanto a sociedade medieval quanto a brasileira parecem se anestesiar com a imagem de um novo mundo messinico. Para um apcrifo bblico muito popular na Idade Mdia, nesses dias toda a terra ser cultivada com justia; toda ela car cheia de rvores e de bnos. Nela sero plantadas toda espcie de rvores aprazveis e de vides, [] cada semente produzir mil94. Para um homem simples do interior paulista no sculo XX, depois do Anticristo um anjo de Deus descer do cu e um boi assado vai correr a terra, de casa em casa, com um garfo e uma colher ncados95. Para um folheto de cordel, da por diante ser/ um viver de sensatez/ no haver mais misrias/ nem domnios de outros reis96. Arraigada, essa crena na superao da fase apocalptica com a
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99 Dissertatio Medica de Nostalgia oder Heimwehe, Ble, 1678, analisada por Fritz Ernst, Vom Heimweh, Zurique, Fretz & Wasmuth, 1949, pp. 63-72. Sobre a posterior histria do conceito, Andr Bolzinger, Jalons pour une Histoire de la Nostalgie, in Bulletin de Psychologie (Paris), 389, 1989, pp. 310-21. Consideraes psicanalticas sobre ele so feitas por MarieClaude Lambotte, Nostalgie, Enciclopedia Universalis, Paris, 1995, vol. 16, pp. 472-4. 100 Cancioneiro da Ajuda, no 389, vv. 13 e 20, ed. Carolina Michelis de Vasconcelos, Lisboa, Imprensa Nacional/ Casa da Moeda, [1904] 1990, vol. I, p. 765, linhas 8717 e 8724. 101 Em 10.391 versos eles usaram somente 1.200 palavras diferentes, conforme levantamento de Carolina Michelis de Vasconcelos (Glossrio, in Cancioneiro da Ajuda, vol. I, p. VIII). Essa estereotipia e despersonalizao da lrica amorosa galego-portuguesa so reconhecidas por todos os estudiosos e sintetizadas por Giulio Lanciani (Cantigas de Amor, in Giulia Lanciani e Giuseppe Tavani (coords.), Dicionrio da Literatura Medieval Galega e Portuguesa, Lisboa, Caminho, 1993, pp. 136-7). 102 Cancioneiro da Biblioteca Nacional, no 481, ed. Elza Paxeco Machado e Jos Pedro Machado, Lisboa, Revista de Portugal, 1952, vol. 3, pp. 94-5; Conto de Amaro, ed. Elsa Maria Branco da Silva, in Aires Augusto Nascimento, Navegao de S. Brando nas Fontes Portuguesas Medievais, Lisboa, Colibri, 1998, pp. 243-81. A datao de toda a obra trovadoresca do rei D. Dinis entre 1288 e 1301 de Michelis de Vasconcelos, Cancioneiro da Ajuda, vol. II, p. 603. A datao de o Conto de Amaro de Eugen Heinen, Die Altportugiesische Amaro Legende, Kritish Ausgabe der ltesten Fassung, Bamberg, Schadel und Wehle, 1973, pp. 44-7. 103 Cancioneiro da Biblioteca Nacional, no 481, vv. 6, 9, 12, 18, 20; Conto de Amaro, 1, op. cit., p. 265.
kholia = bile), aquele primeiro surgiu para indicar algo mais preciso. Talvez por isso, ele com freqncia confundido (sobretudo por no-lusfonos) com nostalgia, palavra criada em 1688 pelo mdico alsaciano Johannes Hofer para designar nosogracamente a falta da terra natal (Heimweh)99. O timo grego nostos, retorno, no deixa dvida quanto ao seu sentido espacial: trata-se de dor (algos) espera do retorno. Por isso mesmo o vocbulo foi rendido em francs (nostalgie) no sentido de maladie du pays, e ganharia acepo igual em ingls (nostalgia). Porque tinha saudade, a lngua portuguesa demorou a incorporar nostalgia a seu lxico (1836), bem depois do francs (1759), do italiano (1764), do ingls (1770). Saudade , portanto, sentimento de falta, de ausncia. Do qu? Aparentemente, da mesma forma que nostalgia quatro sculos mais tarde, de um espao amado e perdido: pero das terras averei soidade, cantava Nuno Eanes Cerzeo na segunda metade do sculo XIII. Mas, por sindoque, essa perda era tambm das pessoas que ali viviam: eu das gentes algun sabor avia, explicitava o mesmo trovador100. Ter saudade estar distanciado do objeto de amor. Como na pluma dos trovadores medievais, o objeto de amor idealizado, estereotipado101, menos uma mulher concreta que o prprio Amor, provavelmente tambm seria menos uma terra conhecida do que a Terra por excelncia, o den. Essa hiptese reforada pela comparao entre uma cano de D. Denis, de ns do sculo XIII, na qual se d a segunda ocorrncia da palavra (soydade), e uma hagiograa cujas particularidades lingsticas levam a pensar que seria do sculo XIV ou anterior102. A cano fala na saudade de uma senhora que leva o trovador a rogar a Deus que mh a leixe, se Lhi prouguer, ueer, caso contrrio ele pode enssanceder ou moirer con pesar, pois se a non uyr, non posso uiuer. A hagiograa, por sua vez, diz que o santo tinha gr desejo de veer o parayso terreall e que nuca folgava se n quando ouvya fallar e elle. E em seu cora senpre rrogava a Deus que lhe demostrasse aquell lugar ante que ell do mudo saysse103. Tambm interessante
notar que alguns anos antes de D. Denis, no comeo da dcada de 1260, as Cantigas de Santa Maria usaram trs vezes a palavra (grafada soidade duas vezes e soydade uma) na acepo de desejo104. Mas era possvel sentir saudade do den, espao no conhecido pessoalmente? Sim, porque cada homem Ado105. Dito de outra forma, a saudade manifesta-se no indivduo, porm, sentimento da espcie. Da a Europa medieval ter sido obcecada pelo desejo de regresso ao Paraso Perdido. Todo cristo se via neste mundo como exilado, estrangeiro, algum fora do seu lugar, em busca da ptria celeste. A idia partiu do Antigo Testamento (incola ego sum in terra), penetrou no Novo106 e atravessou toda a Idade Mdia. Para Gregrio Magno (540604), autoridade extremamente reputada, quando o primeiro pai do gnero humano foi afastado das alegrias do Paraso como decorrncia de sua falta, ele veio tristeza
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do exlio e da cegueira que sofremos [] e no foi mais capaz, como antes, de ver as alegrias da ptria celeste107. Um pensador do sculo IX faz eco e dene a vida terrena como perda da herana de nossa Ptria Celeste, da qual nos encontramos por muito tempo exilados108. Um cronista monstico annimo do sculo XI arma que esta vida peregrinao em terra estrangeira e no na ptria, priso de escravido e no lar de liberdade, exlio de catividade e no moradas da cidade e do reino celestes109. O mesmo conceito registrado por um divulgador bastante popular no sculo XII e um texto ocial do papado no sculo XIII110. signicativo que na primeira descrio da terra recm-descoberta pelos europeus, Pero Vaz de Caminha tenha enfatizado tanto o carter admico dos indgenas [] todos nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse as suas vergonhas. [] Andam nus,
sem cobertura alguma. No fazem o menor caso de cobrir ou mostrar suas vergonhas, e nisso so to inocentes como quando mostram o rosto. [] Ento se deitaram na alcatifa, para dormir, sem nenhuma preocupao de cobrirem suas vergonhas []. Ali andavam entre eles trs ou quatro moas, muito novas e muito gentis, com cabelos muito pretos e compridos, cados pelas espduas, e suas vergonhas to altas e to cerradinhas e to limpas das cabeleiras que, de as muito bem olharmos, no tnhamos nenhuma vergonha. [] E uma daquelas moas [] certamente era to bem feita e to redonda, e sua vergonha que ela no tinha! to graciosa, que a muitas mulheres de nossa terra, vendo-lhes tais feies, provocaria vergonha, por no terem as suas como a dela. [] Tambm andavam entre eles quatro ou cinco mulheres moas, nuas como os homens, que no se apresentavam mal [com] suas vergonhas to nuas e com tanta inocncia descobertas, que no havia nisso vergonha alguma. No por acaso, alm de dois degradados que a esquadra de Cabral deixou na nova terra, dois grumetes fugiram de noite para aqui car111. Sculos depois, alguns folhetos de cordel pregam como tinham feito os hereges adamitas em ns da Idade Mdia a volta ao estado admico, para o qual a habitao deve ser uma gruta, a vestimenta os prprios cabelos, a alimentao apenas vegetais112. inegvel que a identicao bblica entre exilado e estrangeiro atravessou os sculos. Sendo o exlio punio pelo Pecado Original, portanto penitncia, era tambm peregrinao longe do Senhor113. essa dolorida distncia os textos so unnimes em armar que a maior limitao fora do Paraso o afastamento da beatitude divina que fundia os conceitos de exilado, estrangeiro e peregrino no de solitrio. Alis, expressivo como nas lnguas romnicas o adjetivo e o adjetivo substantivizado surgiram antes do substantivo abstrato: solitaire/solitude (1190 e 1393), solitario/solitudine (1310 e 1518), solitario/soledad (sculo XIII e XV), so-
104 Cantigas de Santa Maria, ed. Walter Mettmann, Madri, Castalia, 1986, 48, 38; vol. I, p. 176; 67, 79; vol. I, p. 228; 379,11; vol. III, p. 271. 105 Agostinho, Enarrationes in Psalmos, 70, s. 2, 1, trad. Vincenzo Tarulli, Roma, Citt Nuova, 1990, p. 762. 106 Salmos, CXIX,19; 1 Pedro, II,11; Hebreus, XI,13. 107 Dialogues, IV,1, ed. Adalbert de Vogue, trad. Paul Antin, Paris, Cerf, 1980 (Sources Chrtiennes, 265), p. 18, linhas 1-5. 108 Jonas de Orleans, De Institutione Laicalis, I, PL 106, col.165 A. 109 Chronique ou Livre de Fondation du Monastre de Mouzon, I,3, ed.trad. Michel Bur, Paris, CNRS, 1989, pp. 148-149, linhas 7-10. A origem da imagem pode estar na tristeza pelo desterro de Jerusalm e a escravido em Babilnia, cantada em Salmos, CXXXVII. 110 Honrio Augustodunensis, De Vita Claustrali, PL 172, col.1247; Le Pontical de la Curie Romaine au XIII Sicle, XIX,20,1, ed. Michel Andrieu, trad. Monique Goullet, Guy Lobrichon e Eric Palazzo, Paris, Cerf, 2004, pp. 196-7. 111 A Carta de Pero Vaz de Caminha, op. cit., pp. 76, 78, 79, 81, 82, 86, 97. 112 Dentre os cordis, por exemplo: Joo Martins de Athayde, A rf Abandonada, s/c, Filhos de Jos Bernardo da Silva, s/d, p. 10; Jos Cordeiro, Histria do Reino da Pedra Azul, s/c, Manoel Caboclo e Silva, 1978, pp. 8 e 10. A recusa alimentao carnvora, sugerida tambm pela Misso Abreviada (Additamento, Pratica 35, pp. 131-2), tinha sido idealizada pela Alta Idade Mdia (Pierre Bonnassie, Consommation dAliments Immonds et Cannibalisme de Surviue dans lOccident du Haut Moyen Age, in Annales.ESC, 44, 1989, pp. 1.036-8) e praticada por grupos hereges por volta do ano 1000 (Hilrio Franco Jnior, Les Abeilles Hrtiques et le Puritanisme Millnariste Medieval, in Le Moyen Age, 111, 2005, pp. 67-89). 113 Assim aparece, por exemplo, nas bases da Idade Mdia, em: Agostinho, Consses, XI, 2, 4, trad. J. Oliveira Santos e A. Ambrsio de Pina, So Paulo, Abril, 1973, p. 236. Mas, sobretudo, em textos provenientes das duas ordens religiosas mais
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importantes na formao de Portugal. No sculo XI, Cluny, com: Raul Glaber, Cronache dellAnno Mille, I, V, 26, ed.trad. Gugliemi Cavallo e Giovanni Orlandi, Milo, Fondazione Lorenzo Valla/Mondadori, 1998, pp. 52-3. No sculo seguinte Cister, com: Guilherme de Saint-Thierry, Le Miroir de la Foi, I, 2, ed.trad. Jean-Marie Dchanet, Paris, Cerf, 1982 (Sources Chrtiennes, 301), p. 60. 114 Michelis de Vasconcelos, Glossrio, pp. 86. Em castelhano, soledad tem acepo de saudade desde a segunda metade do sculo XVI (cf. Corominas, Diccionario Etimolgico, op. cit., vol. V, p. 295). 115 Brao direito da Reforma Gregoriana e da imposio de um cristianismo mais rigorista, a ordem monstica de Cluny, originria da Borgonha, penetrou em territrio luso por Compostela (cuja peregrinao ajudou a organizar e estimular) e acompanhou em 1096 o novo conde portucalense, Henrique da Borgonha, sobrinho do abade Hugo de Cluny. 116 Cancioneiro da Ajuda, vol. II, pp. 550 e 622. Atualmente, contudo, prefere-se ver a designao do trovador como derivada do topnimo Cercio, comum na Galiza (cf. Antnio Resende de Oliveira, NunEanes Cerzeo, Dicionrio da Literatura Galego-portuguesa, op. cit., pp. 477-8). 117 Cancioneiro da Biblioteca Nacional, no 542, vol. 3, p. 211. 118 Domingos Maurcio, A Carta do Preste Joo das ndias e seu Reexo nos Descobrimentos do Infante D. Henrique, in Brotria, 71, 1960, pp. 218-44; Geo Pistarino, I Portoghesi verso lAsia del Prete Gianni, in Studi Medievali, 2, 1961, pp. 75-137; Jos Pereira da Costa, Socotor e o Domnio Portugus no Oriente, in Revista da Universidade de Coimbra, 23, 1973, pp. 323-71; Lima de Freitas, Consideraes Portuguesas em Torno do Preste Joo, in Cavalaria Espiritual e Conquista do Mundo, Lisboa, Instituto Nacional de Investigao Cientca, 1986, pp. 117-39; Jean Delumeau, Mil Anos de Felicidade. Uma Histria do Paraso, So Paulo, Companhia das Letras, [1995] 1997, pp. 176-90.
litrio/ solido/solitude (respectivamente sculo XIV, 1525 e sculo XVI). Por isso bastante verossmil a antiga proposta que faz soidade derivar de solitate114. Em todo caso, a conscincia coletiva crist medieval estava impregnada pela idia do exlio terreno, desenvolvida, defendida e comunicada pelo clero em toda a Europa ocidental, inclusive Portugal. Apesar de nvel intelectual globalmente inferior ao das regies no fronteirias da Europa, Portugal conhecia aquelas especulaes teolgicas por intermdio dos religiosos transpirenaicos que ali se instalaram desde ns do sculo XI, sobretudo cluniacenses115. No sem importncia notar que a primeira ocorrncia de saudade talvez tenha se dado na pena de um trovador clerical, caso aceitemos a hiptese de Carolina Michelis de Vasconcelos, que v no apelido Cerzeo uma derivao de crceo, isto , circinus (tonsurado)116. A segunda ocorrncia foi com D. Denis117, o rei-trovador que talvez tenha sido discpulo de Aymeric dEbrard, alm de inuenciado por Bertrand de Ventdorn e Jaufr Rudel. Colocados no extremo da Europa, diante da imensido do oceano, de um lado, e dos inis de outro, os portugueses tiveram talvez por isso a sensibilidade mais aguada pela expectativa de sair da Finis terrae para a Vera terrae. A gura medieval do homo viator foi a partir do sculo XV encarnada pelos portugueses, que correram mares e terras para grandeza e riqueza do reino, mas tambm para purgar a falta ancestral, para cumprir o fado (palavra que signicativamente surgiu naquela poca) humano. No casual, nem deve ser explicado exclusivamente por motivos materiais, que em ns do sculo XV e comeo do XVI dois diferentes monarcas lusitanos tenham enviado emissrios em busca do Imprio de Preste Joo. expressivo que se as circunstncias da expanso martima e dos interesses portugueses na frica levaram, no sculo XV, a identicar o Preste Joo com o imperador abissnio, os cronistas do sculo XVI negaram tal identicao118. Continuou-se a sonhar com o imprio
jonico do Oriente, quer dizer, limtrofe ao Paraso e por contgio cheio de caractersticas paradisacas119. A saudade foi se enraizando de tal maneira na alma coletiva portuguesa, que apesar de Portugal ser o nico lugar no mundo onde esse povo de emigrantes sente-se em casa, mesmo a so to estrangeiros como
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fora dele porque sua verdadeira ptria [] a do sonho adormecido mas nunca extinto no fundo do seu ser, como bem percebeu Eduardo Loureno120. Essa ptria onrica que explica a denio de Teixeira de Pascoaes, em 1911: a Saudade irm da Eternidade121. Natural, portanto, que a ausncia ednica tenha se transferido com
os portugueses para a vasta casa brasileira e aqui ganhado intensidade na escala do pas. Este se tornou o pas do futuro122, primeiro para a metrpole, depois para si mesmo, mas o amanh tarda a chegar pela pressa em alcan-lo. O imediatismo dos portugueses que viam na Reconquista e mais tarde na sua colnia americana a possibilidade de obteno rpida de terras e salvao continua presente no Brasil de princpios do sculo XXI. O pas no sabe esperar. O governo no investe a longo prazo, faz investimentos de fachada que no trazem solues reais, apenas adiam problemas: um tnel ou viaduto feito em meses preferido a novas linhas de metr, que demandam anos; uma poltica monetria que gera falsas riquezas por curto tempo preferida a uma poltica educacional que gere capital humano de qualidade por geraes, a prtica assistencialista que remedia a situao de milhes de pessoas politicamente mais remuneradora do que transformaes de fundo. O cidado comum prefere pagar juros altssimos e satisfazer de imediato certos desejos, mesmo hipotecando assim seu futuro. Como comentou Eduardo Gianetti da Fonseca, o Brasil precisa fazer a crtica da razo curta123. Mas para isso necessrio superar a fase dos debates realistas/nominalistas em que ainda nos encontramos. E a ultrapassagem dela no se d apenas por voluntarismo. Ainda forte o sentimento com que o Brasil foi construdo e que parte de um passado imemorial (a perda, a Falta primordial) e empurra para um porvir indenido (porque de tonalidades milenaristas) que paralisa pela envergadura do empreendimento (a reconquista do Paraso Perdido). A demora em alcanar o futuro parece ser prolongamento da frustrao de que a terra vista confessadamente nos primeiros tempos como sendo o Paraso logo se revelou bem diferente do sonho124. A frustrao no transplante de instituies, idias, hbitos, para outra realidade fsica levou ao sentimento difuso, bem percebido por Srgio Buarque, de que somos ainda hoje desterrados em nossa terra125. Dividido entre o desejo de acreditar na iluso herdada de que esta terra paradisaca ( qual se atribui os arqutipos medievais de
119 A clssica edio de Friedrich Zarncke (1879) est traduzida em portugus: Carta do Preste Joo das ndias, trad. Leonor Buescu, Lisboa, Assrio & Alvim, 1998. A melhor edio Die Epistola presbiteri Johannis lateinisch und deutsch: berlieferung, Textgeschichte, Rezeption und bertragungen im Mittelalter, ed. Bettina Wagner, Tbingen, Niemeyer, 2000. H uma cpia portuguesa, de princpios do sculo XIII, dessa carta: Biblioteca Nacional de Lisboa, cdice Alcobacense CCLVI/380, editada por Domingos Maurcio, Ainda a Carta do Preste Joo das ndias, in Brotria, 71, 1961, pp. 285-303. 120 Mitologia da Saudade, So Paulo, Companhia das Letras, 1999, pp. 11-12. Um italiano annimo que visitou Lisboa algum tempo entre 1578 e 1580 definiu os portugueses como sempre tristes e melanclicos, no usando rir nem comer nem beber com medo de que os vejam (Ritratto et Riuerso del Regno di Portogallo, ed.trad. Antnio Henrique de Oliveira Marques, in Portugal Quinhentista, Lisboa, Quetzal, 1987, pp. 240-1, cf. tambm 138-9, 242-3). 121 Marnus, ed. Jacinto do Prado Coelho, Lisboa, Bertrand, s/d. (Obras Completas, 3), p. 303. 122 A expresso ainda aparece com freqncia na boca de polticos, empresrios e cidados comuns, porm mais por parte de estrangeiros do que de brasileiros. Lembre-se do livro do austraco radicado no Brasil (e que aqui se matou), Stefen Zweig (Brasil, Terra do Futuro, trad., Rio de Janeiro, Guanabara, 1941). 123 O Brasil Est Sempre com o Horizonte Muito Estreito, in O Estado de S.Paulo, 12/12/2004, p. A8. 124 Srgio Buarque de Holanda, Viso do Paraso, So Paulo, Brasiliense/Publifolha, [1959] 2000. 125 Razes do Brasil, p. 31.
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126 Nelson Rodrigues, Complexo de Vira-latas, op. cit., p. 52. 127 Bloch, La Socit Fodale, op. cit., pp. 116-7. Cf. tambm Pierre Rousset, Recherches sur lEmotivit lEpoque Romane, in Cahiers de Civilisation Mdivale (Poitiers), 2, 1959, pp. 53-67. 128 Ferno Lopes, Crnica do Rei D. Pedro I, ed. Giuliano Macchi, trad. Jacqueline Steunou, Paris, CNRS, 1985: e el meesmo poinha em elles [malfeitores] mao quando viia que confessar nom queriam, rindo-os cruellmente ataa que confessavam (cap.VI, p. 44, linhas 21-22, p. 46, linha 1); ameaou de cruees aoutes (p.46, linha 42) at o bispo do Porto (VII, p. 52, linhas 32-33); mandou castrar um servidor que dormira com a esposa do patro (VIII, pp. 54-7), degolar dois ladres e assassinos (VI, pp. 44-9), queimar uma adltera, enforcar um violador da prpria esposa (IX, p. 58), decapitar quem prejudicara um lavrador, enforcar um corrupto (IX, p. 60). Sobre seu lado festivo, cap. XIV, p. 82. 129 Respectivamente, Retrato do Brasil. Ensaio sobre a Tristeza Brasileira, So Paulo, Brasiliense, [1928] 1944, p. 11; Casa-grande e Senzala, p. L. 130 Franco Jnior, Peregrinos, Monges e Guerreiros, op. cit., pp. 189-263; Jrme Baschet, La Civilisation Fodale. De lan Mil la Colonisation de lAmrique, Paris, Aubier, 2004, pp. 274-7.
natureza rica, clima agradvel, humanidade gentil) e a constatao da dureza da realidade imediata (secas no Nordeste, enchentes no Sul, violncia social por toda parte), o brasileiro desenvolveu se possvel sintetizar questo to complexa e de tantas nuanas regionais, grupais e temporais forte instabilidade emocional. Com muita freqncia oscilamos entre sentimentos extremos, seja em relao a uma tarefa cotidiana, a um amor, a um time de futebol ou ao prprio pas. Pouco antes de ganhar sua primeira Copa do Mundo, o maior cronista esportivo nacional constatava que o Brasil vacila entre o pessimismo mais obtuso e a esperana mais frentica [] em todos os setores e, sobretudo, no futebol126. Se nesse campo aquela vitria inverteu o quadro bom exemplo das bruscas modicaes de humor nacional e desde ento com o brasileiro no h quem possa, como dizia o hino comemorativo conquista da Copa de 1958, em outros domnios a auto-imagem nacional continua negativa. Tal instabilidade emocional era tpica da Europa feudal, como Marc Bloch mostrou h mais de meio sculo127. Em Portugal, bom exemplo Pedro I (1357-67), que como rei podia dar vazo a arroubos que nada indica que fossem percebidos como condenveis. Alis, se o cronista, que no disfara sua simpatia pelo monarca, registrou tais impulsos extremados, provavelmente porque sabia que seus leitores e ouvintes veriam no rei uma espcie de microcosmo da sensibilidade nacional. Se, de um lado, ele punia pessoalmente os malfeitores e no hesitava mesmo em tortur-los para obter consso, de outro, adorava danar e dar festas, e certa feita, insone, convocou alguns msicos e saiu de madrugada bailando pelas ruas da cidade128. No Brasil, essa alternncia fcil entre desespero e esperana pode ter sido acentuada (como causa? como efeito?) pela alta taxa de adeso declarada a alguma religio: conforme o Censo de 2002, apenas 12,5 milhes no total de 170 milhes de brasileiros negavam ter uma religio. As prprias tentativas de entender o pas no escaparam a cores fortes. Separadas por apenas oito anos, a viso de Paulo Prado
negativa (numa terra radiosa vive um povo triste), a de Gilberto Freyre positiva (a miscigenao que largamente se praticou aqui corrigiu a distncia social, [agiu] poderosamente no sentido da democratizao social no Brasil)129. O prprio carter de dependncia em relao ao exterior, que tem marcado nossa sociedade, prolonga atravs de outros instrumentos e conceitos a situao de Portugal medieval. Como sugerimos em outro trabalho e Jrme Baschet recentemente conrmou, a trajetria histrica dos pases ibricos levou-os a ter um feudalismo atpico decorrente em grande parte da tardia inuncia transpirenaica. De fato, a partir do sculo XI a revoluo feudal reorganizou a sociedade de alm-Pireneus, permitindo o crescimento demogrco e gerando uma dinmica expansionista interna (arroteamentos, conquista das zonas eslavas) e externa (Cruzadas no Oriente Mdio, colnias comerciais italianas no Imprio Bizantino e no Extremo Oriente). Nesse contexto, os territrios ibricos em grande parte ocupados pelos muulmanos revelaram-se atraentes a franceses, alemes, ingleses e italianos. Atravs de peregrinos que se dirigiam a Compostela, de monges da ordem de Cluny que se instalavam na Hispnia, de guerreiros que participavam na Reconquista e se casavam com mulheres da nobreza local, o feudalismo transpirenaico penetrou na pennsula. Porm, marcado por dois traos que zeram da verso ibrica algo diferente. De um lado, aquela penetrao deu-se em meados do sculo XII, j na etapa feudoburguesa da sociedade transpirenaica. De outro, a organizao feudal ibrica naturalmente no foi simples transplante de modelo estrangeiro, e sim adaptao s condies particulares daquelas regies, marcadas pela longa luta antimuulmana. O resultado foi, comparativamente ao alm-Pireneus, o surgimento de sociedades poltica e socialmente arcaicas, demogrca e economicamente dependentes130.
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