A Freira No Subterrâneo
A Freira No Subterrâneo
A Freira No Subterrâneo
A FREIRA
SUBTERRANE0
ROMANCE HISTORICO
TRADUZiDO POR
CAMILLO CASTELLO BRANCO
QUARTA EDIO
J
PORTO
LIVRARIA CHARDRON
lt Lellt A: lrmt, ediltrea
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HAIIVAIID C0LLE6E LIRRARY
COIJIIT OF SANTA EULALIA
COLLECTIOII
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~ ~ & ITETBell, Jr,
<).&I 2.. S",l<j L - ~
PROPRIEDADE ABSOLUTA DOS EDITORES
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ADVERTENGIA. DO TRADUGTOR
(DA. 2. I l!DrCO)
Os periodicos portuguezes trasladaram ha tres an-
nos, da imprensa de Frana, a noticia do f!ppareci-
mento d'uma religiosa carmelita, que por espao de
'\';nte annos agonisra no subterraneo d'um conven-
to, na cidade de Cracovia.
A succinta -descripo que ento se fez d'este fla-
gello, at certo ponto incrvel, dava a suppr que os
adversarios do catholicismo fantasiassem fabulas pa-
ra atravez do seraphico peito de Santa Thereza de
Jesus assetearem o vigario de Christo. Mas, aconte-
cendo que Luiz Veuillot,' e outros esculcas das in-
venciveis milcias do co, no desmentiram a noti-
cia, era de recear que no fosse de todo imaginaria
a historia da victima do fanatismo.
Volvidos tres annos, em 187!, sahiu dos prlos
francezes um livro relatando os pormenores do mr-
tyrio de Barbara Ubryk, a freira carmelita de Cra-
covia.
Quem escreveu este livro?
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No o dizem as apreciaes dos periodicos, nem
os catalogos das livrarias. O livro lido com es-.
panto e talvez com lagrimas; ao passo que o au-
ctor, que to cuidadosamente se occultou, deve ter ti-
do mysteriosas e fortssimas razes para esquivar-se
gloria de haver escripto um livr to precioso na
frma quanto virtualmente util.
Transpira a verdade do contexto do romance,
posto que a espaos a simpleza natural das coisas
estofada em pompas demasiadas da linguagem.
Isso, porm, no desdoura, antes redobra o qui-
late da obra para quem se deixa de bom grado ca-
ptivar e levar nas azas da dolorosa poesia que voeja
por alto. O que os bons espritos ho-de vr n'esta
pungente narrativa a substancia de tal e tamanho
flagicio praticado entre :t84i a 1.868, n'este tempo,
em nossos dias I A critica illustrada estremar da
religio divina, que ensinou Jesus, a protervia dos
sacrlegos que se abonam com ella, e lhe vo apa-
gando a.s luzes para que as trevas da idade mdia se
condensem e envolvam as instituies no. carimba-
das pela chancella pontifical.
O livro precioso porque verdadeiro; excel-
lente, porque bem escripto; util, porque encerra
uma lio.
O traductor abstem-se de . indicar as passagens
realadas de maiores bellezas, porque l est o claro
entendimento de quem l para as distinguir; e seria
tambem desaccordo antecipai-as, prejudicando o tal
qual prazer do imprevisto.
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Uma carta anQJlyma
Ao entardecer d' aquelle dia, passou-se um drama
intimo em casa de Zolpki, juiz do crime. Arrasta-
va-se aos ps do magistrado uma formosa menina
de dezesete annos, livida, suffocada pelas lagrimas,
com umas palavras descozidas, que a um tempo de-
notavam grande desespero e turbail.o.
Pae, exclamava ella, meu pae, nil.o faa a mi-
nha desgraa n' este mundo, e a minha condemnail.o
no o1;1tro I Eu estou til.o nova e desejo tanto a vida r
Deixe-me ser feliz, como meu pae ha sido r Quem
foi que escolheu a sua noiva, nil.o foi meu pae? Mi-
nha mil.e, amada obstinadamente, nil.o explicou bas-
tante a razil.o da sua ternura?. Meu pae amou,
consinta que eu ame tambem; nlo prohiba que eu
tenha o meu quinho de felicidade. . . Foi tio bom
para commigo at hoje. . . Tratou-me com tanto lJli-
mo, e quer n'um momento destruir . as caricias de
dezesete annos. Pense, meu pae I Olhe que vae fa-
zer a desgraa de sua filha, condemnal-a morte
peor que a dos crimino898 .
c Minha filha, respondeu o juiz, rasgas-me o .. .cora-
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8 A JfREIIIA NO I'UBTERRANlO
ilo, e fazes-me com as tuas lagrimas maior mal do
que tu imaginas ...
-_Ento enxugue-m'as, meu pae.
-No posso, porque a minha posio de pae me
obriga a fazer-te feliz embora no queiras ... Tu amas,
cra amar um homem de vinte annos, sem posio, po-
bre, sonhador de chimerss que te arrebatou a nlo sei
que_ mundo perigoso e falso, embriagando-te com pro-
messas tanto mais perturbadoras quanto ellas se des-
fazem no vago. Filtrou-te ao corao isso que os ho-
mens chamam poesia, e que tu bebeste a longos. bana-
tos ... Wladimir sabe que s rica, v-te formosa, que
admira que elle te queira?
-Quer-me, sim ; mas nlto pede dote.
-Mas sabe que eu no deixarei minha filha ser
pobre.
-E porque no, se eu antes quero com Wladimir
a miseria do que a opulencia com o conde de Sergy 1
Dou importancia riqueza como accessorio, mas como
base da felicidade'nlo. WJadimir no nobre?
-E'. -
- O pae sabe que elle trabalha incessantemente ;
e se a sua famlia, empobrecida pelas revolues, nada
lhe deixou, elle esfora-se por adquirir posio.
-Concedo.
-E bm sabe que ha-de alcanai-a honrosa com
a vontade e intelligencia- que tem.
-Talvez; mas em que tempo?
-Isso nlto importa; o essencial que elle consiga
um dia o logar que merece. Luctaremos unidos e am-
parados um pelo outro. A nossa felicidade materiAl_
lentamente adquirida custa de muitos trabalho
privaes, ha-de-nos ser por isso mais grata .. Eu
que minha mie era pobre quando meu pae casou; l
xe-me escolher um marido tambem pobre .
-E' diverso I Eu, apenas casei, enriqueci-a.lT
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A. FREIIU l'!O SUBTBRRA:Nl!lJ 9
que haja felicidade sem dinheiro; sem dinheiro nlo ha
talento que brilhe; honras e celebridades pagam-se.
Se Wladimir fosse rico, convinha-me; pobre? ... nlo
me serve. Se agora te queixas da minha dureza, mais
tarde te convencers de que eu tinha razio.
-No, meu pae, nunca I Falia-me da experien-
cia .. Quando tinha a minha idade, raciocinava as-
sim? Os trabalhos da vida, quando sito dois a sup-
portal-<>s, nlo custam. Os meus proprios soffrimentos
hlo-de ser causa a que Wladimir me adore mais. Cui-
da que eu posso ser feliz 11e me separa d'elle? Hei de
amaldioar a opulencia em que elle nl.o ti ver parte.
Amo-o I e no tenho outra ideia, outro pensamento
que nl.o seja i s t o ~ Amo-o I E' o instincto, talvez uma
loucura I Desgraa ou felicidade, tenho-a no intimo da
minha alma. E' amor que me arde no sangue : irre-
sistivel . nem meu pae pde apagai-o I Mate-me, que
nem assim o extinguir. Da sua parte est o poder
que ameaa, da minha a f ardente que salva, a espe-
rana inflexivel, a ternura humildosa. Ajoelho a seus
ps, primeiro porque meu pae, depois porque meu
mestre e arbitro da minha felicidade ... Se o pae sou-
besse quanto eu havia de amai-o se consentisse ... A
minha vida seria curta para lhe agradecer, e a d'elle
tambem, porque o venera e respeita, e o prsa como
pae de filha to querida.
E o juiz, desenlaando-se dos braos da filha que
o prendiam, replicou:
-V anda, at agora mostrei grande brandura e
extrema paciencia; esperei vencer com a razo as
suas repugnancias, e desfazer esses desvarios com
a minha generosidade. Vejo que nada consegui. Se
cuida que de dia em dia vae ganhando terreno, juro-
lhe que no conseguir abalar as minhas resolufles.
O que uma vez disse est dito para sempre. Pare-
ce-me que deve conhecer bastante o meu caracter
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A FRJ:lRA NO SUBTBRRANEO
para comprehender que a sua teima acabar por me
canar. Uma coisa lhe prohibo: no pense mais em ser
esposa de Wladimir.
-0 seu poder, meu pae, limita-se a dominar os
meus actos.
-Outra coisa quero.
-Qual?
- Ha-de casar com o conde Sergy Radzwil.
V anda levantou-se de golpe. n'ella to
rapida e completa transformao, que seria impossvel
reconhecer a donzella supplicante, ainda ha pouco, na
mulher que se aprumava severa frente a frente do
pae.
- Tenho dezesete annos -disse ella. - O pae re-
cusa que eu me case com o homem, cujos bens de for-
tuna so a fora e amor que o seu valor pessoal lhe
d : no lhe nego direito. E' rigoroso e cruel; mas
prostro-me, reconhecendo-lh' o . . A lei auctorisa-o :
o que basta; mas vir um dia em que a lei seja por
mim. A equidade tem alternativas .. mas impr-me
que case com o conde Radzwil, isso que no pde .
chega a minha vez de lhe dizer que no quero I E nin-
guem, nem meu pae, que representa a justia, pde
fazer que entre no meu dedo o annel nupcial do ho-
mem que detesto.
- Porque esse odio, V anda?
-Porque? O conde Radzwil meu inimigo logo
que meu pae o defende contra mim ... A riqueza d' elle
d realces pobreza de Wladimir. Que importa que o
pae me encarea a posio que elle occupa na socie-
dade, querendo aviltar o outro que no tem nenhu-
ma? Isso verdade ; mas tem vinte annos 1 Quando os
cabellos lhe encanecerem, tambem elle ter riquezas e
titulos, honras e renome. . . mas tem vinte annos, ca-
bellos negros?... alma de poeta, corao d'ouro, e algi-
beira vazia ! E o pae insulta esta mocidade ; despre-
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A FRBIR&. NO SUBTERRANEO 1l
zava a hombridade do pobre que ambicionava dois
amores, a Polonia e eu l Esperarei para esposar Wla-
dimir, mas, quantt> a mulher de Radzwil, nunca! nun-
ca l No ha caso algum que me faa acceital-o; contra
as sagest<$es da ambio, o meu amor me defender ..
E' isso que eu chamo fraqueza de obediencia.
- O lhe que est insultando o poder paternal.
-E o pae abusando.
-Vanda!
-Deixe-me fallar, meu pae ! Ha lances em que
tudo se diz e confessa. 8Qu honesta e leal ; se me re-
volto, seja-lhe isto prova da minha franqueza e
da<le I No sei mentir nem quero sabl-o, pouco im-
porta que meu pae me queira ensinar a fingir.
-Eu?
-Vou cenvencl-o. Uma noite, n' um baile onde o
pae me levava muitas vezes, vi Wladimir. Encontra-
ram-se nossas vistas, e contemplamo-nos em silencio,
porque tudo estava dito nos olhares . Um lance de
olhos, um relampago, uma flamma divina, o mun-
do, o co, tudo. Elle amava-me, e eu a elle.
Occultei-lh'o, meu pae? No. O pae, esperando trium-
phar do sentimento que lhe pareceu pueril, sorriu-se;
e no obstante, o amor venceu a sua logica de ferro ...
Levou-me M turbilho dos prazeres que poderiam
exltar uma cabea mais fraca do que a minha; mas
eu tinha um corao que defendia o cerebro. Re-
questou-me o conde Radzwil com approvao sua ...
Cuidava meu pae que o amor tinha a mesma signi-
ficao proferido por todos os labios; pensou que o
pobre moo habitando um soto no duraria muito
na minha memoria, logo que esse conde me offere-
palaoios, castellos, e riquezas Bem
- que se illudiu. . . O pae aconselha-me indigni-
-, e arrasta-me a um abysmo quando me induz
+r.a.hir uma alliana que me repugna e assom-
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12 A JIBEIRA NO SUBTERRANEO
bra. O conde velho, hediondo e triste: ha-de ser
forosamente cioso. No. posso aml-o, nem o amaria ln
nunca; ~ comtndo quem quer atirar-me aos braos r
d'elle meu pae; e no me pergunta se o pensa- ,o:
manto do outro to bello e adoravel me no seguir ;l
ao palacio d'esse velho ... Eu lhe juro que seguiria!
Quando o conde me dissesse: amo-te! eu fecharia os ~
olhos para imaginar que era a voz de Wladimir que
m'o dizia ... Eu amaria o querido da minha mocida-
de na proporo da repugnancia que tivesse pelo
marido imposto violentamente como um flagello. E
um dia, se o acaso, a fatalidade, a vontade, que sei
eu! me collocasse em frente de Wladimir, eu me
engolpharia na paixo como n'um abysmo. Havia de
aml-o medida das torturas que por amor d' elle
houvesse soffrido. Vingar-me-ia da velhice do es-
poso no calor juvenil do amante I Se no pude des-
folhar-lhe no seio a cora de esposa, dar-lhe-ia to-
das as virgindades da minha alma, flotescidas a um
raio dos seus olhos. . . Os casamentos semelhantes a
este que o pae me aconselha, so o primeiro passo
para o adulterio; mas eu no sou d'aquellas que o
premeditam : a mentira horrorisa-me. Se eu casar
com outro homem hei-de fatalmente trhil-o. O co-
rao vingativo. O corao detesta o juizo, rompe
os obstaculos; o jugo fomenta desejos de quebrar a
fronte mas no de a curvar. Compete-me 1\ mim di-
zer-lhe isto? Nem pensl-o devia! So palavras que
me queimam os labios como lufadas ardentes de tem-
pestade. Quero ficar o que sou: no me aconselhe o
precipcio, casando-me com Radzwil. No pense em
tal. Os beijos d'elle far-me-iam morrer de vergonha
e tedio ! O odio ao marido impelle para o amante ..
No queira que a sua filha se degrade.
-:-A sua educao ser bastante a defendl-a.
-No . Fraco estorvo a modestia contra
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A J'REIR.l NO SUBTERRANEO 13
violencia do amor I Que monta que a. bocca se ca.le
quando faliam os olhos? Que importa que os olhos se
baixem, se o corao palpita? J11ro-lhe que serei in-
digna esposa, se o conde fr meu marido.
O juiz passeava agitadamente na sala. Empalli-
decia-lhe a face, fulminavam-lhe ameaas os olhos;
nl.o fallava; mas a violencia dos tregeitos dizia mais
que longos discursos. '
V anda comprehendia que a sua gorte ia ser deci-
dida immutavelmente. E com os braos cruzados,
encostada parede, immovel como estatua, esperava
resignada. a condemnao.
Finalmente o pae arremetteu para ella, e bradou
vibrante de colara.:
- Tudo o que ahi disse uma loucura.
-Pois seja; estou louca.
-Os mentecaptos encarceram-se.
-Pois- encarcere-me.
- Recusa ca.sar com o conde?
-Recuso. .
-Obstina-se na sua paixl.o por Wla.dimir?
-Sou inalteravel.
-Disse ahi ha pouco que nem juiz nem verdugo
de tortura podem arrancar um sentimento d'alma.
Confessou que seria adultera se casasse com homem
que nlo seja o da sua paixo.
-Serei adultera.
-N'esse caso ser adultera para com Deus, por-
que manhl de madrugada entra n'um convento.
-Falta-me a vocao religiosa, meu pae.
-Bem sei.
-E' um carcere disfarado a que me condemna.
- Voluntario quanto sua durao.
-De que depende?
-Do seu consentimento a ca.sa.r com o conde.
-Tenho a optar entre a desgraa e a infamia!
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A. JB.l!l!RA NO SUBTJ!lB.B.ANEO
-Entre a obediencia e a rebellio.
-Meu pa.e sabe -replicou V anda aps uma cur-
ta pausa -o que alo as casas-matas na Russia; co--
nhece os padecimentos das gals da Siberia; leu nos
livros hiatoricos e nas memorias dos carrascos as des-
cripes dos supplicios d' outro tempo; sondou os mys-
terios da inquisio; e como legista e viajante sabe
o que o capaceta do meneio e o beijo da virgem, e
outroa refinamentos de crueldade ...
-Sei.
- Sabe o que um convento?
E ella disse isto com um tremor de voz que re-
tranziu o juiz. Todavia, como elle se no queria dei-
xar vencer na lucta, respondeu:
-Um convento uma casa cercada de muro tilo
1
alto que os amantes nilo vingam transpol-o; tilo es-
pesso que as suas lamurias e estribilhos de guitarras
no o penetram. O convento a manso de paz e ao-
cego. Ha ahi um silencio que refrigera as almas abra-
zadas ; a presena das virgens do Senhor faz crar de
pejo as donzellas amoriscadas ; o cantar dos psalmos,
a vida frugal, a insulao d'esses oasis perdidos no
deserto humano para que n'alguma parte se conser-
ve a celestial pureza, o fervor divino, emfim, exercem
poderes que lentamente acalmam, ineffavelmente con-
solativos. L, os coraes irritados dulcificam-se; as
frontes incendidas esfriam ; as mitos nervosas ajun-
tam-se supplicantes, e os labios, que vociferavam
palavras rebeldes, balbuciam confisses humildes ...
Quem l entra de fronte soberba, e alma tempestuosa
de paixes, sabe alfim resignada ao viver qual elle
n'este mundo, desprendida de chimeras, digna da
vista de Deus e da ternura d'um pae.
E V anda redarguiu placidamente:
-A sua definio no me convence, pae. . . Cedo
fora, e vou para o convento. P ~ e f i r o uma cella al-
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A li'REIR.A. NO SUI!TERRANEO 15
gida, penitencia, mortificao, tudo a um palacio es-
plendido, ao marido execrado J Mas meu pae v os
conventos atravez de illusllo extranha ... E' certo que
reina l o silencio; mas quem sabe de que lagrimas
elle se faz... O muro espesso, e ninguem o de-
vaBSa . . Quem lhe disse a profundeza das oellas e
dos carceres ... ? Ah J eu creio que ha ahi o sepulchro
em vida!
O juiz Zolpki baixou a fronte, absorto em peno-
so sentir. Estremeceu, correu a mllo pela testa, e dis-
se com um rumor quasi inintelligivel de voz :
-Ahi socega-se, eu t'o aflirmo, V anda .. Meni-
nas formosas e amantes como tu, l viveram ..
-E nunca desejaram de l sahir, meu pae?
A tal pergunta, accentuada morosamente, o juiz
no respondeu. Vibrou aos olhos da filha um olhar
escrutador, como quem sonda o alcance das palavras.
Mas o gesto de. V anda denunciou apenas dr enorme
e o que quer que fosse heroico.
Recusando esposar o conde Radzwil, V anda con-
formava-se ao existir das torturas lentas, immolava-se
ao amor sincero, palpitante, ao 6mor que a si smente
se contempla, e a si smente se est sempre devo-
rando. Era paixo que a ensoberbecia e amparava.
To timida no mais, era espantosa de vr-se arrostar
com a fora da ternura as iras do pae, e sobpr
sua paixo as mesquinhas considera5es do juiz.
E esperava.
Mas o magistrado, em cuja alma, V anda, sem o
emborrascra um escarceu de lembranas
pungentes, nem parecia pensar n'ella.
V tornou com amargura:
-Meu pae teve em sua vida terrveis miss&s a
cumprir ; muitos ros compareceram em sua presen-
a para darem conta de assassnios, roubos, e infamias.
Creio que nunca infligiu castigo aos innocentes. Aqui
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i6 A JI'REJRA. NO SUBTERRA.NEO
estou eu para que me julgue. Nlto tenho quem me de-
fenda .. Minha me morta . morreu, pedindo-lhe
que me fizesse feliz. Condemne-me, sentenceie-me
tortura lenta do mosteiro. Estou tranquilla, resi-
gnada, prompta I
-Estar l at ao dia em que resolver casar
com o conde.
-Nunca de l sahirei.. . ir-me-hei definhando
debaixo do vo. . . Em silencio me irei matando ..
as maceraes me iro dilacerando lentamente o cor-
,po. . . Bem! quando vou?
-A' manh cdo.
- Nlto quer que eu v j?
-Aproveite a noite para reflectir.
-As minhas noites quero-as l todas.
-Que convento escolhe, Vanda?
- O mais austero.
- Com que entlo .
-O niais austero deve ser o mais santo e per-
feito. Ouo fallar muito das carmelitas descalas.
Vou para l, se consente.
-Nol-exclamou Zolpki-para ahi nio. Ahi
nlo se pensa : soffre-se.
-Se o pae me quizesse feliz, nilo me enviava a
claustro nenhum, que basta a palavra para me ator-
mentar .. Consinto em viver n'esta casa ssinha, s ~
gregada de tudo, fechada, sem vr ninguem, sem
receber ninguem . A<"ha que seria conceder muito?,
Pois como queira. Mas, ao menos, se me prohibe
viver, nlto me tire a possibilidade de morrer.
O juiz nlto pde encarar a filha, quando respon-
deu seccamente :
- Pde entrar hoje mesmo no Carmelo.
A menina saudou profundamente o pae e sahiu.
Quando ella, transpunha o limiar da porta, o es-
deiro do pae entrava no gabinete, com uma ban-
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I
I I
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A J'REIRA NO SUBTER:RANEO 17
deja de prata. N'esta bandeja trazia nma carta la
crada de preto. O sinete era sinistro : um crescente
sobre fundo de prata e uma cabea de morto sobran-
ceira ao crescente.
O juiz reparou na carta, mandou sahir o criado,
e hesitou antes de quebrar o lacre. Todos temos ex-
perimentado momentos de turbalo perplexa durante
os quaes nos parece que em nossa vida arfa um vul-
clo de imprevistas desgraas. Como que perscruta-
mos alli o destino, vmol-o, palpamol-o. Se podsse-
mos, cerraramos, os olhos ourela de golphlo; mas
nlo ha vencer o abysmo: foroso que nos despe-
nhemos.
Zolpki rasgou o sobrescripto e procurou a assi-
gnatura de quem escrevera a carta.
Nlo a tinha.
c Carta anonyma h -disse elle com desprezo.
Ia rasgai-a e queimai-a ; mas susteve-se, e refle-
ctiu:
Um particular nlo deixaria de a lr; e o juiz
tem talvez necessidade de saber o que est aqui.
Leu algumas linhas, pz a carta na meza e ficou
oppresso por violenta dr, a ponto de turbar-se-lhe
a vista, tremerem-lhe as mllos e porejar-lhe o suor
fronte.
cOh l-exclamou elle-nlo ~ ' nlo pde ser is-
to. . Zombam da minha credulidade como juiz, e
torturam-me o corallo como homem. . Como I aps
vinte annos de silencio, vinte annos I nllo de esqueci-
mento mas de paz, ha quem atire este nome contra
o meu corallo. A mim, pae de famlias, ha ahi
quem recorde a memoria da grande paixito da minha
mocidade. . Porqu? Com que fim? Que significa-
llo tem isto? .. Ser. Wladimir que emprega tal ex-
pediente para impedir que eu recolha minha filha ao
convento? Que miseravel fraudei Talvez que V anda
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t8 A FREIRA NO SUBTERRANEO
o prevenisse . e lhe dissesse mas ella nada sa-
be! Quem ousaria contar-lhe a primeira inclinalo
de seu pae? Minha propria mulher nunca o descon-
fiou. . Tenho pois algum feroz inimigo que bate em
meu velho coralto a vr se lhe tira sangue e lagri-
mas? Pois bem I seja assim I Eis-me soffrendo I Nlo
ha remexer impunemente em taes cinzas sem que os
dedos se queimem nas mal extinctas brazas ... Tem
este nome para mim 88 vibraiJes d'uma harmonia, o
arquejar d'um soluo. . . Amei-a! E ella amou-mel .
Por oito ser infiel ao seu amor antes quiz a lenta.
morte e nlto a vida que outras mulheres invejariam.
O' amiga tantos annos adorada, e. tllo longo tempo
chorada, eu nunca pude esquecer-te! ... Quem pode-
ria escrever esta carta? Quem conhece ou recorda
a antiga historia dos nossos amores infantis? Ape-
nas duas testemunhas, dois amigos, que podem cada
dia fallar da minha primeira noiva. . . Quem escre-
veu isto conhece o presente, mas o passado no. Nlo
invoca. reminiscencias amorosas: dirige-se minha
justia de magistrado I Nlo me diz: Recorda-te.
Exclama: Vinga! Salva uma desditosa, cuja mise-
ria todos ignoram, excepto eu . Se todavia o que
esta carta diz fosse verdade .. Quem sabe? Eu at-
tribuia malquerena 88 sombrias noticias que me
davam a tal respeito .. Nllo podia crr . fignrava-
se-me que taes infamias se perdiam na escurido da
idade mdia . Mas se o seculo caminha, os mos-
teiros sllo immoveis. . Ha entes que no marcham
nunca. . So mortos. E que acontea isto em
Cracovia, no seculo dezanove, em plena civilisallo,
impossvel h
O magistrado retomou a carta. e seguiu a leitura
interrompida. Ao passo que ia lendo, luz terrvel lhe
escaldava os olhos, e, quando a terminou, rompeu
n' estes brados desvairados:
Dlgltized by Goog I e
A. li'REIRA NO BUBTJ:JlRA.NEO
19
cisto assim I Existe o crime! Dura a atroei- .
dade ha vinte annos I Ha vinte annos que tio perto
de mim agonisa a mulher que amei, e ninguem me
revelou o seu martyrio, quando eu a julgava no re-
pouso do co, quando os seus gritos desesperados em
. vlo me chamavam a soccorrel-al .. Hei-de sal-
. val-a! Eu decifrarei este espantoso enygma, o juiz
. vingar a martyr, e ai d'aquellas que torturaram a
mulher que amei !:t
Zolpki atirou-se a um soph e ahi ficou com a
. lace apertada nas mlos.
. O rodar d'uma carruagem que se afastava revo-
cou-o subitamente realidade.
Chamando um criado, ordenou-lhe com a voz vi-
brante de viva angustia:
Dize a minha filha que venha aqui j.
-Meu amo nllo ignora que a menina partiu.
-Partiu? J?
-E a menina mandou ao cocheiro que a con-
duzisse ao convento das carmelitas descalas.
-Corre atraz da sage. . . Ou vae antes buscar
uma, que irei eu mesmo.
-A senhora j vae muito longe; meu amo nlo
iria a tempo, e acharia fechadas as portas, que nlo
se abrem a ningaem.
-E' certo -balbuciou o juiz.
-D'aqui a algumas horas pde v. ex. procurar
a menina.
Zolpki apertou a fronte convulsamente, excla-
mando:
cEsperar! impossvel esperar!
-V. ex. tem ordens que me dar?-perguntou
o criado.
- Nlo, retira-te.
O magistrado a ss parecia prsa de immensa
dr. Passeava, retinha-se, vociferava rugidos inarti-
o;
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'20 A PREmA NO SUBTEl\B.ANJilO
. calados, chamava a .filha, e proferia o nome d'outra
mulher.
c Eis aqui onde eu mandei minha .filha- murmu-
. rava elle.-0 que eu ia fazer de Vanda, d'aquella
adoravel creana, tio smente criminosa por amar
um homem pobre Se a outra, a nobre martyr, me
nlo preferisse a tudo, estaria ella n'aquelle anteci-
. pado tamul o. . Ah I como as horas se arrastam len-
tas I Quando ser dia? Receio que estas pa-lpita3es
de ooralo me matem antes de ter feito justia I
Quanta razio nlo tinha contra mim a pobre menina,
espantada de que eu a encerrasse n'um claustro! ..
. Esta denuncia fatal e abenoada salvar duas victi-
. mas ao mesmo tempo.
Zolpki retomou a carta e leu-a em alta voz.
Continha isto :
cSenbor.
c Venho revelar,_ denunciar a um dos mais inte-
cgros magistrados de Cracovia, um facto de seques-
utralo odiosa que dura ha vinte annos. Uma reli-
cgiosa carmelita, Barbara Ubryk entrada no con-
cvento em 1841, est, desde 1848, fechada nlo em um
ccubiculo, nem sequer n'um carcere, mas n'um an-
dro infecto onde nlo entra ar nem luz. Que crime
c tem Barbara Ubryk? Ninguem sabe; s eu talvez
conheo o monstruoso facto, e em nome da justia
ce da humanidade lhe rogo que soccorra uma desgra-
cada que j nlo espera auxilio dos homens, e qne
ctalvez j perdesse tambem a confiana em Deus.
Ao terminar a carta, Zolpki ajoelhra, collando
os labios sobre o nome de Barbara.
E clamava:
Foi por mim que ella tanto ha padecido, e se
perdeu I Se necessario fr alarmar toda a oidade, e
derribar pedra a pedra esse convento infame, e ati-
rar face da soberania espiritual do papa o crime
o;
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A FREIRA NO SUBTERRANm 21
perpetrado em nome da religio da paz, hei-de ven-
eEIJ,' Entrarei em nome da lei nos claustros, e ar-
rancarei das prisOO& mysteriosas as victimas 'que l
gemem! O nome de Barbara soar na Europa, como
invocao a um castigo justo. E dir a todas e a to-
dos que a lei tem direito de :6.scalisar essas mansOO&
aferrolhadas pelo arbtrio I E o martyrio de uma s
talvez que salve milhares de victimas.
E o tempo arrastava-se com desesperador vagar.
Repontou emfim o dia. Zolpki, antecipando-se
hora das visitas e das occupa<Ses, devorado de an-
gustiosos sobresaltos, sahiu e correu a casa do com-
missario Pamza.
o ;
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; r ; z ~ d byGoogle
II
Uma casa murada
Estava no escriptorio o commissario. Dotado de
indole energica, recta, forte e perseverante, o chefe
da policia prestava sociedade no s os servios pro-
prios de seu emprego e attribui<Jes, senlo que exer-
cia o seu mister captivando de mil maneiras. Um
commissario de policia mais e menos que um magis-
trado criminal. . O juiz sentenceia sobre factos, o com
missario illucida-os, desembaraa-os, aproveita appa-
rencias insignificantes, deduzindo d'ellas optimas illa-
l5es. Cumpre-lhe possuir em grau supremo a facul-
dade de avaliar os homens ; sendo que o magistrado
acha quasi feita a prova, preparada pelo
Um lucta smente contra os argumentos, o outro
eacrifica-se pessoalmente muitas vezes. Pamza possuia
as qualidades necessarias ao seu emprego; mas de
mais d'isto era dotado de rectido natural e instincto
generoso e delicado. Mais d'uma familia de Cracovia
lhe devia a honra dos filhos. E' que elle exercia a au-
ctoridade de seu officio cortando abusos que nito de-
nunciava. A's vezes com uma palavra retinha um
mancebo j pendido ao abysmo. As raparigas impel-
o;
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24 A JI'B.EIRA NO SUBTEJili.ANEO
lidas voragem por um lapso, e ameaadas de cahi-
rem seduzidas nos braos da devassido, achavam
n'elle recursos em premio do seu trabalho, e com o
arrependimento restauravam a dignidade perdida.
Porm, se os crimes eram friament commettidos, a
indulgencia tornava-se excessiva severidade. Aos
olhos d'elle a paixo desculpava muito. Mas o crime
feito por amor ao mal, a vingana premeditada, a
peonha lentamente instillada, o rancor surdo desfe-
chando no homicidio, eram crimes que no perdoa-
va. Amavam-no e temiam-no. Ser justiceiro era para
elle paixlo em vez de officio ; todavil\, usava e no
abusava da justia.
Desde muito o conhecia o juiz Zolpki; e quando
a carta anonyma, delatando o encarceramento de
Barbara emfim o convenceu, toda a sua esperana
se fixou no commissario.
Ao entrar no gabinete d' elle, tremia tanto e tio
pallido ia, que Pamza lhe chegou cadeira, pergun-
tando-lhe com a voz commovida:
-Que o que o perturba?
Zolpki mostrou-lhe a carta.
Pamza leu de espao, sem a menor visagem. De- .
pois, disse a Zolpki:
-Esta BrArbara Ubryk no . ttma que v. ex.
amou apaixonadamente?
. -E'.
-Se me no falha a memoria, esta menina foi
mandada ao convento pela familia, que o nlo consi-
derou rico bastante para ser marido d'ella.
-E' verdade.
-Em 1841 soaram em Cracovia estranhos ru-
mores a respeito d'esta mesma senhora: disse-se que
v. ex. viera a esta cidade e diligenciava arrancar
a menina do convento.
-Assim foi.
o;
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A JI'BEIIU NO SUBTERRANEO
-Uma patrulha impediu a execulo do proje-
cto. . . mas nllo houve procedimento. A tentativa de
rapto ficou abafada em mysterio tllo importante ao
interesse de Barbara, como ao interesse do snr. Zol-
pki e da sua familia. . . Depois ..
-Casei-me, e o senhor sabe qual a minha vida
tem sido.
- Nlo suspeita que alguem lhe dsse este aviso?
-Nio.
-Examinemos, replicou o commissario. A carta.
est escripta em optimo papel, compacto, um verda-
deiro papel inglez. Logo, quem quer que lhe es-
creveu abastado .. O caracter da lettra redondo,
largo e grande ... e a margem enorme .. O auctor
da carta denota generosidade e excellente natureza.
Phrase breve e laconica. . . O auctor desculpa-se de
empregar tal meio para lhe transmittir a verdade .
logo, receia alguem .. O segredo nllo s
d' elle . . . Movido por amor . justia denuncia factos
que sabe; mas sem dvida, se nos dissesse o nome
levar-nos-hia no encalo de culpado que elle nlo quer
denunciar . E' talvez parente ou amigo .. Alguma
vez acharemos o auctor d'esta carta; e n'este rasto
vingaremos descobrir o nome de quem quer que seja
que elle nlo quiz expr, revelando-se completamen-
te ... SDa como fr, esta revelalo merece credito.
-Eu logo antevi que a desgraada seria sal
va, se me valesse do snr. commissario I -exclamou
Zolpki.
-Devagar-replicou tristemente Pamza-esta-
mos na vereda ... entrevemos o crime, sabemos onde
ae prtica, conhecemos os algozes e a victima, e, com-
tudo, quem nos diz que livrar uma e cas-
tigar os outros?
-A justia.
-Justia humana, que preponder em tudo e em
o;
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A raBUlA. MO 8UBTBRB.AMBO
todos, salvaate as ungidas do Senhor, enclausuradas
nos seus muros, e ligadas por votos V ae instaurar-
se pleito entre ns e as carmelitas. A lei estaca no
limiar da portaria; que o antigo direito de couto
8Ubaiste nos mosteiros. Nlo est em minhas attribui-
(Ses levar aguazis e tropa, intimar a prelada a abrir
as portas, ou, em ultimo apuro, arrombai-as . O meu
mandato ineflicaz contra as ordens monasticas. Dis-
ponho da fora contra toda a gente; mas lei e fora
nlo tem que v6r contra pessoas ecclesiasticas. Vivem
vida parte do commum; teem legislao propria,
castigos e supplicios particulariBBimos, bem v v. ex..
-Mas isso infame I bradou o juiz.
-Diga-o aos signatarios da concordata.
- Entlo. . nada pde fazer-se? nada?
-Resta-nos uma esperana.
-Qual?
-Recorrer ao bispo.
-O bispo nio punir freiras.
-Porque nlo, se justo?
- Re".eiar a religilo.
-Receiaria uma inepcia-diese gravemente o
commisaario. A religilo irresponsavel de taes aba.-
808 e cruezas. A religilo, d'isso, nlo deixar
de ser o codigo da mais pura moral. Entendem-na
mal, foram-lhe o sentido, desfiguram-na. Dizem que
a purificam, e tornam-a indigna do Mestre que a im-
plantou na terra, dulci88ima de caridade e inoffen-
siva. O bispo tem pleno poder snbre os mosteiros de
8U& diocese: basta que elle ordene, e as portas ser-
nos-hlo franqueadas.
-V amos entlo l j.
-V amos. Eu por mim sou a lei brutal qae baixa
a mio sobre o hombro do criminoso; v. ex. ajus-
tia que interroga, discute e sentenceia. Talvez que
Barbara esteja nas vascas da morte. Levemoa com-
Dlgltized by Goog I e
A FRElllA. NO SUBTERRANIW 27
nosco o doutor Blumenstock. . . Vamos de carro a
casa d'elle, e depois ao pao episcopal.
-0 senhor nlo sabe tudo ainda-disseojuiz, sua-
pirando. - Hontem noute, em momentos de irrita-
lo contra minha filha, dei-lhe a escolher entre casar
com o conde Radzwil ou entrar nas carmelitas.
-E ella escolheu ..
-0 convento, para onde foi logo.
- A'manhil, permitta v. ex. a a sua filha plena
liberdade. Nilo lhe basta na vida uma desgraa ?
-Pouco depois, juiz, commissario e doutor com-
pareciam no pao do bispo, com agentes que os se-
guiam distantes. O famulo de monsenhor Galecki
objectou debalde que era aquella a hora de sua ex-
cellencia estar meditando. O commissario insistiu em
fallar-lbe immediatamente, e accrescentou:
-Monsenhor depois de orar que faz?
-Diz missa.
-Nilo podemos espP.rar.
-Se caso reservado .. -balbuciou o famulo,
sahindo s recuadas.
O bispo veio logo.
E o juiz disse o seguinte:
-Monsenhor, a nossa auctoridade succumbe hoje
deante de uma porta que precisamos abrir. . . Fui
avisado de que uma freira detida ha vinte annos
no tronco do convento das carmelitas. Queremos
salvar a desgraada prsa, interrogar e c a t ~ t i g a r
aquellas que exercem o mister de verdugas.
-E' impossvel o que me diz I - clamou o bi&-
po-As religiosas do Carmo vivem edificantemente
austeras. O seu capellilo nilo cessa de nos elogiar a
pontualidade, modestia e zlo com que vivem.
-Quem sabe se o capellilo nilo cumplice d'el-
las? Observou o chefe de policia.
- Permitta Deus que se enganem, senhores ; 'mas
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28 A JI'REIRA NO SUBTDRANIW
eu toda a vida me reprehenderia se atravancasse a
acle da justia e estorvass o cumprimento d'um
acto de reparalo. Entrem; pois, quando quizerem
no convento das carmelitas, e para isso lhes vou dar .
plena auctoris4\lo. Nlo posso agora acompanhai-os,
porque est cheia a capella episcopal de fieis que ma .
. esperam : slo horas de celebrar o santo saerifi.cio da
missa. Mas antes que hajam concludo a sua visita,
irei encontrai-os, ou para, como espero, lhes ouvir
rehabilitar as religiosas, ou para me coadjuvarem no
castigo, se ellas o merecerem. Nlo sou d'esses pre-
lados que crem na impeccabilidade de todos os mem-
bros do seu rebanho. Temos ministros prevaricado-
res, padres indignos, e servos do Senhor que man- .
cbam a castidade do habito. Ha no clero de hoje,
como no tempo do Messias, lobos vestidos com a
pelle dos cordeiros, e vmos sepulchros branqueados
por fra pelo menos tanto como entre os phariseus.
Creio at que darei bom exemplo aos meus collegas
no episcopado, se conseguir desarraigar abusos con-
sideraveis e horrendissimas crueldades.
Monsenhor Galecki escreveu rapidamente uma or-
dem a favor dos magistrados investidos em commis-
slo judicial para que todas as portas do mosteiro das
carmelitas se lhes franqueassem por maneira que el .
les o examinassem como quizessem. Feito isto, sei- .
lou a ordem com as suas armas, e entregou-a ao com-
missaria da policia. .
Os guardas esperavam na ante-camara. Commis--,
sario, juiz e medico entraram n'uma sege, e chama-
ram dois dos mais recommendaveis cidadlos para
que os acompanhassem. Depois um guarda entrou na.
officina d'um disse-lhe que se apetrechas-.
se com os melhores utenslios do seu officio, e o se-
guisse.
Um quarto de hora passado, Zolpki e companhei-
o;
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A li'RJ:IRA 'NO SUBTICII.RANJ:O
roa entravam no arrabalde de W erola, onde est o
mosteiro de carmelitas descalas de Santa Thereza,
ahi fundado em 172.
Zolpki fagira sempre de atravessar eBBe arra-
balde e defrontar-se com tal convento. Havia mai-
tos annos que elle nllo vira aquella sombria porta.
Ao vl-a, agora, lembroa-lhe uma acena nocturna,
cqjas reminiscencias muitas vezes lhe deram n'alma
rebates dolorosos. Quando viu os alteros_os muros do
carrancudo mosteiro, ao juiz afigurou-se Barbara
Ubryk tal qual a vira na ultima vez que se encon-
traram, eile arquejante de esperana, ella tremente
de pavor ... Um instante a tivera nos braos, entlo
crendo que ella era sua por toda a vida. . Mas, de
subito, as grossas portadas fecharam-se com estrondo,
e ella ficou. . e ficou para sempre. Agora . . . ia
vl-a . vr-lhe a sombra . Vinte annos volvidos
por aquella face formosa, deviam tal-a desfigurado J
Vinte annos deviam ter-lhe encanecido as tranas
d'oiro, tio admiradas outr'ora! Vinte annos maL!, e
vividos aBBim I
Isto passava no intimo de Zolpki, emquanto se
esperava que a porta fosse aberta.
Finalmente, mio invisvel abriu um postigo, e,
atravez do crivo de ferro aberto em cruz na portada,
transluziu a figura d'uma irml conversa. Era palli-
do e comprido o rosto d'ella; olhos orlados e recon-
cavos; bca franzida nos cantos dos beios. Fallava
baixo por habito e preceito.
-Que querem os senhores? perguntou ella.
-Queremos fallar 4 prelada.
-A reverenda prioreza est a orar na sua cella.
-Que sia a receber-nos.
-Os senhores decerto ignoram-voltou a so-
. ror- que nenhum homem transp5a o limiar d'esta
casa.
o;
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A FllBIBA NO 8UBTBRRANEO
E o medico, sahindo frente, disse : .
-Sou o doutor Blumenstock, e n'esta casa est&
uma religiosa. doente.
-Nenhuma das minhas irms est enferma.
-Nem Barbara Ubrik?
- Nilo ha aqui freira com tal nome.
- Ha. vinte oito annos que aqui entrou -disse
Zolpki.
-Queira desculpar-me-negou a porteira-eu
sou uma pbre creatura que nada sabe . Nossa re-
verenda madre que conhece o nome profano das
freiras . . eu sei apenas o nome religioso que os se-
. nhores nomeiam - Barbara Ubryk. '
-Tanto montai-replicou o commissario-
, queremos entrar e entraremos. V prevenir a prio-
reza.
-E' inutil-redarguiu a soror, lenta e doce-
. mente - homens, nio entram aqui, tirante sua ma-
. gestade o imperador e o nosso santo bispo.
-Ou os enviados pelo bispo - disse o doutor.
-Isso entllo sim - concordou a porteira.
Zolpki sentia arder em si violenta colara, e al-
dravou de novo com o pezado martello na porta.
-Abra! -exclamou elle -abra em nome da
lei!
- Ns s conhecemos como lei a nossa santa re-
gra.
- ~ m nome do bispo, seu superior, que me en-
viou aqui!
-Traz ordem ? -perguntou a soror.
Zolpki tirou-a da algibeira, e deu-lh'a. A velha
. porteira. examinou-a, e, reconhecendo o sllo episco-
pal, disse:
-Esperem que eu vou avisar a prioreza.
O rumor das sandalias da soror ouvia-se ao longo
do lagdo at gradualmente se perder.
o;
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..
A FREIRA NO SUBTBl\1\ANBO Si
Ao cabo de dez minutos, a porta rugiu nos gon-
, zs e a porteira, frente da alada judiciaria, fez
signal aos membros d'ella que a seguissem a um lo-
cutorio.
-A prelada vem aqui - disse ella.
O locutorio era vasto, desmobilado, apenas de-
corado de bancos ao longo das paredes, e d'um re-
licario enorme envidraado, contendo um cadaversem
cabea de monge mumificado. Lugubres textos, laia
de frizos, corriam ao longo do rebordo do tecto. Um
Chri11t0 de tamanho natural, esculpido com severidade
quasi feroz, levantava os braos hirtos.asanguenta-
dos, e pendia a cabea, pintalgada de sangue rxo,
sobre a espadua ulcerada. Era verdadeiramente um
suppliciado ; mas, em verdade, aquella imagem nlo
representava um Deus! A bca estorcida pela angus-
. tia parecia cuspir maldies; o olhar convulsivo pe-
dia a fulminao dos verdugos, os ps esforavam-se
em escabujar de agonias para se arrancarem aos cra-
vos que os esfacellavam, Esta imagem da morte hor-
rida, medonha, sem consolao, com a esponja de
fel, cora de espinhos, beijo perfido, e multidlo enfu-
riada, era realmente hedionda de vr-se I Seria aquel-
le o Christo que chamava para si as creancinhas, e
rehabilitava mulheres perdidas, e saneava enfermos,
e dava a viso do co aos cegos, e desalojava dos
corpos a surdicia dos demonios? No., O Jesus dos
Evangelhos foi julgado indulgente e dulcssimo pelos
successores dos seus discpulos ... Vieram outros que
converteram dogmas de ternura em religio de pavo-
res. Ao servio de suas ambies secretas, dos seus
odios entranhados, ou por necessidade de infligirem
aos outros os soffrimentos que passaram, pozeram o
Redemptor, arvorando-o em mestre severo, trocan-
do-lhe a misso de Messis pela de juiz, e a de Je-
sus p e l ~ de inquisidor.
o;
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32 A li'RBIRA NO SUBTBRRANEO
Mas aquella imagem condizia com a casa.
A porteira quedou-se . entrada da salta. Li.,
se-lhe na fronte a rebellio suffocada. No enten-
dia o que taes homens alli vinham fazer. Com que
direito invadiam um convento? Esses Heliodoros,
profanadores do pavimento santo, que pretendiam?
O que seria do claustro sacratissimo, se aos magis-
trados- coisa inaudita I - bastra bater nas portas
dos mosteiros, para lhes serem abertas I
A porteira era uma pobre mulher completamen-
te abrutecida pela obediencia absoluta. Sabia smen-
te d' esta ~ d a que as ordens da prioreza eram leis,
e que a sua santa regra subvertia todas as in;;titui-
&s. Desprezava homens e mulheres que nlo per-
tencessem a Deus. O habito era para ella um trajar
de bemaventurada, como quem, no dia final, espera-
- va vl-o transformado em tunica de resplendores
perpetuos. Nlo havia ahi discutir com tal pessoa:
era mulher morta dentro de si propria, maquina mo-
vida por mio alheia. Faculdades de pensar nlo tinha
nenhuma. No admissivel crr que nos mosteiros
se consinta a cada freira licena de reB.ectir, medi-
tar, exercitar os dons do entendimento. Esta priva-
lo _ prerogativa das religiosas estremecidas, das
dilectas que Deus chama .s altas paragens da per-
feilo, das ovelhas predestinadas que devem pascer-
se nos uberrimos almargeaes onde serpenteiam rega-
tos de leite e mel. Apropria iniciailo orao men-
tal, ao culto do esprito, ao arroubo d'alma, se faz
gradualmente, como se usava nos mysterios antigos,
cujos vos se levantavam pouco e pouco para emfim
deixarem entrever, na sua radiosa nudez, a deusa
ou deus a quem se devotava o idolotra.
As freiras, semelhantes porteira, recitavamja-
eulatorias de cr. D'esta sorte, cingia-lhes o animo
um circulo restricto, d'onde se nlo extraviava a mi-
Dlgltized by Goog I e
.A. J'l\BUlJ.. NO SUBTlllll.li.ANJIO
nima ida. Bastava vl-as para logo se perceber que
a vontade lhes era subjugada por outra, que lh'a
comprimia e apagava. Taes mulheres, como. as fe
meas dos fakirs indiaticos, soffreriam a tortura, sem
proferirem grito que nilo fosse o .Ave de cada dia.
A. toada d'um andar compassado se ouviu no lo-
eutorio. A porteira recuou, prostrou-se e murmurou:
- A nossa reverenda madre.
Maria W enzyk appareceu.
Nlo era decerto mulher vulgar. Fronte intel-
gente e imperiosa; olhos nll.o desluzidos por macera.
(Ses, coriscando como carvi5es sob as arcadas cHia-
res. Bca retrahida e austera, desdenhosa no franzir
dos labios, e voluptuosa na carnadura d'elles. Esta
mulher devia ser d' extremos em tudo. Se amou, o
seu amor devia de ter sido ardente e sedento de sei
vagens volupias. Se odio, o seu rancor devia ser
glacialmente duradouro. Fulgia-lhe no olhar a
mina d'um punhal, e na bca espumava-lhe o sen
sualismo d'uma Laia. Os cilios descidos
riam esconder-lhe as fulgura<!es dos olhos; mas o
que ella nll.o podia era dissimular a lubricidade dos
labios.
Ao entrar na saleta, frchou uma vista indaga
dora sobre os que ahi viu. Cumpria-lhe medir a for
a do inimigo. -Aps rapido exame, abaixou o vo,
ficando a espiar ainda, sem que lhe vissem os olhos;
depois, cruzando ambas as mos nas amplas man ..
gas, disse laconicamente :
-Trazem os senhores ordem do bispo para visi ..
tar esta casa : podem dizer-me o que querem?
- Do.as coisas, senhora....:.. disse Zolpki.- Primei
ra, levar d'aqui minha filha.
-Eu pensei que ella entrra com o seu
timento. Descance : ser-lhe-ha entregue; e, no sen..:
ella ainda novia nem protestante, pde sahir j .
s
o;
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S4 A 11'1\EIRA NO SUBTERRANEO
Maga-me que v. ex. recorresse auctoridad.e para
objecto to simples!
E a prelada fez signal de retirar-se.
- Eu disse, senhora, que queria outra coisa.
Reclamo em nome da justia que faa chamar
11ossa presena Barbara Ubryk que professou n'esta
casa em 1840.
- Barbara Ubryk rendeu o esprito a Deus ha
quinze annos. .
-Quem m'o prova?
-Eu que o aflirmo. Temos um cemiterio onde
so enterradas nossas irms, sem advertir a aucto-
ridade nem recorrer a gente de fra.
- E s me d a sua aflirmalo como prova de
que Barbara morta?
- Creio que lhe basta, senhor.
-No basta. A senhora aflirma, eu nego. A se-
nhora occulta, eu procurarei.
-Tenciona entrar no interior d'esta casa?
-Demolil-a, se preciso fr.
-E o bispo?
-O bispo approva, e nlo tardar a vir auxi
liar-me.
A prelada ficou confusa por instantes; mas rea-
nimando-se, dirigiu-se porteira :
-As chaves, minha irm; e conduza esses se-
nhores aonde elles quizerem ir. Querem que eu os
acompanhe?
-Decerto- respondeu Pamza.
-Como queira- disse ella.
E serena, rigida, caminhou frente do commis-
aario, do juiz e do medico. E, como visse uma no-
via, chamou-a.
' -Minha filha, as religiosas que se ajuntem no
c8ro; eu farei tanger o sino quando houverem de
-aahir.
o;
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.A. FltmllA. NO SUBTERRANEO
35
Comeou a visita.
Os cenobios vasios de suas moradoras no offe-
reciam nada que vr. Uma. taboa engonada na pa-
rede, coberta pela enxerga, era o leito das carmeli-
tas. Sobre uma banqueta via-se um livro, a caveira
e o crucifixo. Um escano de pau e lavatorio de bar-
ro completavam a mobilia. Nada que convidasse ao
repousar, ao scismar e indolencia. O frio das cei-
las retranzia o corao ; sentiam-se calafrios ao en-
trar alli. Eram todas uma. Todo o rebanho se mo-
via tangido pela mesma vara.
Abriam as cellas para um vasto corredor. Em
cada porta via-se a imagem do santo ou santa cujo
nome apadrinhava as freiras. O nome com que sahi-
ram de suas familias esquecra, fra absorvido no
outro. Com renunciarem ao seculo, haviam tambem
abj arado nome de me, de pae e de irmos: era mis-
ter que tudo se renovasse, que todo morresse para
renascer sob outro aspecto.
Nenhuma d'estas portas tinha chave, para que a
toda. a hora a prelada e mestra de novias inspeccio-
nassem o dormir de suas filhas em Jesus Christo.
O refeitorio, situado na extrema d'esse corredor,
nlo offerecia fei!o notavel. Uma ingente banca de
madeira occupava o centro, e bancos adherentes
meza. corriam circularmente. O eido de cada freira
era assignal&do por um garfo de . ferro, uma escu-
de lia de pau e bilha de barro. A caveira sobre uma
peanha, e um palpito, destinado novia que lia;
completavam as alfaias do refeitorio.
O salo da communidade era grande e glacial.
Ao longo da parede enfileiravam-se cadeiras, e ao
centro bancas cobertas de cestinhos com lavores de
costura, indicando que esta sala era ao mesmo tempo
officina de costura e bastidor. Passado um largo cor
redor visitaram a lavanderia e rouparia. Ao passa-
/
o;
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36 A li'RBIRA NO SUBTBRRANBO
rem por diante de uma grande porta, o commissario
parou, a tempo que a porteira lanava de esconao
um olhar prelada. As janellas d'esta casa estavam
hermeticamente fechadas: fez-se mister recorrer ao
serralheiro para abrir uma. S depois de arrancar
uma espessa almofada-que nllo s impedia a en-
trada da luz, mas bastaria a abafar gemidos - con-
seguiram abril-a. Esta casa era abobadada ma-
neira de egreja. Um lampadario de ferro pendido ao
centro devia espal'gir claridade lugubre na immen-
sidade do recinto. De cada lado .da lampada, umas
correias de couro, suspensas do tecto, sustinham pe-
dras enormes, em bruto, que pareciam mosqueadas
de nodoas escuras. Via-se ahi uma cruz encostada
parede. Duas golilhas correspondiam aos braos, e
uma terceira, chumbada pranchta, era destinada.
aos ps. Causava horror este espectacnlo! De que
servia alli aquella cruz ? Havi mais dnas deitadas
no pavimento. Na parede fronteira, pendurados em
pregos, viam-se dois cilicios de malha de ferro, cada
um com sua. rosta agudissima., umas palmilhas de
ferro eriado de cravos, e tambem uma cora de es-
pinhos metalliL'OS que deviam sangrar a testa que a
cingisse. Depois por alli, em confusa desordem, dis-
ciplinas com balas de chumbo, cingulos de coiro, fla-
gellos de cordas nodosas, tudo quanto crudelissima
phantasia podra inventar para tortura.
-E existem coisas d'estas I- disse o commis-
sario.
E Zolpki pensava comsigo:
-Onde eu enviei minha filha!
-Como se chama este recinto?- perguntou
Pamza.
-A penitenciaria-respondeu a prioreza.
-E estes instrumentos de tortura servem para
as desgraadas mulheres?
o;
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;rized byGuogle
A I'RliUl NO SUBTJ:l\llAN'II:O 37
-E' que n6s fugimos s delicias do mundo para
abraar a mortificao -explicou a prelada.
Zolpki quiz interrogai-a sobre o uso dos diver-
108 instrumentos.
-0 senhor est aqui para vr-disse elia-
veja. O meu dever facultar-lhe o exame; mas nlo
de o iniciar na regra de nossa madre &nta The-
reza.
O doutor enxergou uma portinha no angulo mail
escuro da sala, e quedou-sP alli esperando que a por-
teira abrisse; ella, porm, buscando debalde na cam-
das chaves a que fechadura, voltou-
la para a prioreza.
Muria Wenzyk tirou da algibeira uma chavinha
e abriu a porta. Ao alumiar-Me aquelle recinto, dir-
ae-hia que ao p d'um antro de tortura resplandecia
'lUDa recamara elegante.
A quadra era pequena, decorada de estofos .mail
claros. Um leito, aenlo antes um diwan, occupa-
va-a quasi toda. Sobre este leito via-se deitado urn
Christo morto, obra prima de esculptura, primoro-
samente encarnado. Este nlo tinha o semblante ter-
rifico do crucifixo do locutorio. Parece que os olhos
d'esmalte lhe sorriam, os labios descerravam-se, os
braos pendidos ao longo rlQ tronco pareciam ter
ainda a flexibilidade vital. Este Cbristo era um pri-
mor d'arte. Nos cantos d'esta pequena camara, qua-
tro caoulas deviam vaporar frngrancias ernbriagan..;
tes. A lampada pendida do tecto semelhava uma in-
gente eatrella, destinada a radiar um clarlo pallido
sobre a imagem do Chri"to adormecido.
Zolpki encarou a revezes a penitenciaria e aquel-
la salta sombria. Procurou o ponto de contacto das
duas idas que lhe pareciam to oppostas e todavia
tio ligadas, mas nlo o descobriu.
A madre porteira restitniu a chavinha prioreza.
Dlgltized by Goog I e
A II'REIRA. NO SUBTERRANEO
-Falta-lhes smente visitar a egreja, senhores
-disse Maria W enzyk.
-Vamos.
A irmil conversa tangeu uma sineta, toada de
alarma que fez foragir as freiras do cro, e logo os
agentes da policia entraram.
A egreja do mosteiro tem dois coros sobrepostos.
O primeiro, especie de crypta mortuaria., encerra.
quatro cadaveres visveis, porque a tampa do sarco-
phago foi substituda por uma enorme lamina. .
-E os subterraneos da egreja?- perguntou
Pamza.
Logo os ver, senhor. E' o local onde deposi-
tamos os esquifes de nossas irms, visto que a terra
d'este convento no dissolve os corpos.
Da crypta passaram s catacumbas.
O cirio da porteira alumiava a custo aquella. es-
curido crassa e abafadora. Os tumulos alinhados em
andares, chegando do pavimento ao tecto, exhalavam
o fetido da morte. As catacumbas romanas nio po-
deriam conter maior numero de ossadas. Quanto ao
mais, nem nome, nem algum signal distinctivo. Os
mortos que ahi dormiam, bem mortos eram para suas
famlias, que nem sequer lhes podiam guardar mi-
nma recordao.
Um dos jazigos, separado dos outros e de diversa
dimenso, continha amumia de um homem I E s ~
ctaculo hedeondo I Aquelle cadaver estava decapi-
tado I Parece que o morto havia sido degollado.
Pamza, voltado para a prioreza, apontou-lhe
aquelle tumulo.
- Ha duzentos annos que este cadaver aqui jaz ,
-disse ella. - A historia d' elle !agendaria, e nin-
guem m'a soube contar.
Quando o juiz, o commissario e o doutor percor ..
riam o subterra.neo, disse-lhes Mllria Wenzyk:
o;
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l
'
,
A J'RBIRA NO SUBTBB.B.ANEO 39
-Agora conhecem os senhores este convento
tanto como eu.
Zolpki pegou da tocha que o doutor levava, e
.seganda vez a perpassou ao longo das paredes.
-Nada 1-murmurava elle- nada I
Eis que de subito despede um grito: que aca-
bava de vr duas fechaduras chumbadas na parede.
-Isto que ?-perguntou.
-Essa porta abre sobre um corredor.
-E o corredor?
- Vae dar aos esgotos.
-Abra!- disse o commissario porteira.
-Esta porta nunca se abre- disse a prioreza.
- Nlo tenho a chave d'ella.. J disse o que isto era:
ao fim do corredor est o cano dos despejos.
Zolpki chamou' o serralheiro e disse :
- Arrombe esta porta..
O artista observou attentamente a fechadura.
-Elia nlo est enferrujada - observou elle -
nlo ha muito tempo que foi aberta.
A prelada tremeu ligeiramente, e encostou-se a
o.m rebordo de sepultura.
A porta resistia, a fechadura era rija; o serra-
lheiro com difficuldade venceu arrancai-a: saltou
-emfim. E logo, ao claro fumacento da tocha, distin-
guiu-se uma escaleira sem rampa engolphando-se nas
profundezas da terra como um parafuso disforme.
Zolpki foi quem primeiro desceu, levando a to-
cha, cuja B.amma vasquejava carecida de ar.
Pamza e Blumenstock seguiram-no; e o artista
aps elles.
A prelada apertou a mo da porteira, e segre-
dou-lhe:
-Trata de encobrir a porta . bem sabes ..
A porteira fez um gesto imperceptvel, e as duaa
o;
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. --!
10
A II'RmllA NO SUBTJ:RRANBO
mulheres desappareceram cada qual por sua vez no
antro.
Quando os visitantes chegaram ao fundo da es-
ea.da, acharam-se outra vez n'um corredor tenebroso,
onde havia duas portas; uma abria sobre um esgoto
pestilencial;, a segunda estava encoberta pela por-
-teira, que obedecia ordem secreta da prelada.
- Nadai-repetiu Zolpki -nada I
E, j descorooado, ia dar o signal da sabida,
quando um gemido, apenas perceptvel,, pareceu re-
soar n'esse mesmo corredor. Nilo era um grito, era
um soluo, talvez o derradeiro estertor d'um agoni-
aante.
-Abra isto 1-bradou Pamza, desviando de re-
peU.B.o a porteira- O gemido d'este lado aqui
deve estar uma porta ..
De feito, uma porta de ferro, baixa e estreita,
appareceu de repente ao exame dos tres homens, e,
outra vez, o serralheiro teve de arrombai-a.
Quando, porm, esta porta rodou nos gonzos, os
tres homens recuaram. O que elles viram era coisa
de si to pavorosa, que lhes falleceu a coragem para
encarar semelhante espectaculo I
Digitized by Google
III
. O In pace
1
No espao de poucos ps quadrados, estava aga
cbada, recurva sobre si mesma, uma creatura talvez
humana. Dizemos talvez, porque a face contrahida
pelo so:ffrimento revelava uma expressilo medonha,
em que a loucura se- confundia com a raiva. d ca-
bellos, prematuramente embranquecidos, ondeavan-
lhe desgrenhados sobre os hombros; alguns farrapos
cobriam apenas a nudez da miseravel mulher. Ca-
biam-lhe os braos sobre os joelhos retrahidos. Rer-
via-lhe de leito alguma palha fetida. O unico postigo
do carcflre tinha sido ladrilhado. Nem ar, nem luz
n'esse tumulo : era o par.e da morte antes do tres-
passe. Nunca tilo lugubre agonia fedra a vista do dou-
tor Blumenstock ; nunca o juiz Zolpki tinha visto
1 ln pace. ABSim se designava antigamente o earcere
perpetuo du11 mnl'teiros onlie castigados os criminns.ll
de ennrmes rlelictns. oaetigo Elta precedido de granrlee
e oeremonias. A mesma expreBSlo, in pace,
era app1icarla u masmorras das prises civis. Eqniva.lia A
eterDa privaito de liberdade.
N. do traduot.
o;
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A FREIRA NO SUBTBRBANJ:O
nas prisC5es civis um criminoso tio deshumanamente
tratado.
A preza, quando viu a luz do cirio, abriu os
olhos offuscados e fechou-os subitamente.
Agitando-se violenta, ergueu-se hirta sobre o seu
muladar, e exclamou : ulfatem-me ! matem-me d'uma
s vez!
Depois, apontando com o brao descarnado con-
tra a prelada, exclamou convulsa:
-Deus julgar Maria Wenzyk ! Estou prompta
a comparecer na presena d'Elle l O meu inferno foi
n'este mundo.
Fez uma pausa, expediu uma casquinada sinis
tra, e bateu as mitos descarnadas, clamando : cElle
ha-de tornar, ha-de tornar aquelle que um dia quiz
salvar-me... Ha vinte annos que o espero e elle
ha-de vir trazer-me a liberdade, o dia e a luz. Oh I
que frio eu tenho - murmurou ella tiritante. - Nlo
apaguem a luz que me faz bem. Ha tanto tempo
que nlo vPjo o sol I E a luz to bonita ! ,
E sem transilo, a desgraada fechou os dois pu-
nhos, ameaando as testemunhas d' esta scena.
E exclamava :
-Querem torturar-me. . querem levar-me
penitenciaria .. bem me lembro ... as coras de
espinhos, o aoute, as dres na cruz . . e o capelllo
a escarnecer o meu suppli<'io I Perderam-me I Per-
deram-me e querem agora assassinar-me. Eu lucta-
rei, eu me defenderei com as unhas e com os den-
tes. No se cheguem para mim. Eu no sou freira,
nAo sou mulher, sou uma fera.
Um grito rouco rugiu na garganta contrahida da
preza.
Zolpki, custa d'um violento esforo, approxi-
mou-se d' ella e disse :
-Barbara Ubryk .
Dlgltized by Goog I e
A J'JlEllU NO SUBTBlllUNBO
A encarcerada cahiu de joelhos, perguntando :
Quem proferiu este nome? Quem se lembra d'elle?
Barbara era o nome que me dava minha me, o no-
me que me dava o meu amado. Quem que se lem-
bra d'um nome que eu julgava esquecido de todos?
-Venho procurai-a, Barbara, arrancai-a a este
inferno.
-No me enganem -murmurou ella com voz
enternecida.-& me querem matar, faam-no .. fa-
cil . . . aqui estou, Que supplicio no ser preferi
vel a esta vida?
-Ns viemos a salval-al-repetiuZolpki:-Em
nome da lei e da justia levante-se, que ns vamos
amparai-a para sahir d'este carcere.
Pamza acercou-se da prelada e disse : c D c o
seu manto para cobrir nquella desgraada.,
S n'este momento, Barbara divisou a prelada;
e ento, vibrando um grito estridente, corrf;u impe-
tuosa para o fundo da masmorra, bradando:
-Mentem I querem enganar-me, A furia est
alli, o supplicio est perto. Ah I sim, pois no sio,
matem-me aqui, d'um golpe, por piedade I E' mui
to. morrer a pedaos !
-Em nome de Deus lhe juro, que venho soccor-
rel-a- replicou Zolpki.
A preza no o acreditava. O relampago da ra
zllo, que parecia alumiar-lhe as palavras, apugra-se
sob a impresso do terror. E ella agora chmava co-
mo uma creana, logo rugia ferozmente; e s vezes,
cozida com a parede, livida e minacissima na sua iro-
mobilidade, estendendo os braos. cadavericos, amea-
ava os espectadores com as nnhas agudas,
Ouviu-se do lado da escada O commissa-
rio deu alguns passos, e percebeu a luz de dois cirios.
O bispo, consoante chegava acompa-
nhado de dois agentes,
o;
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A IIREIRA NO SUBTERRANEO
A indignao impallidecra-o; nobre e santa c-
lera fuzilava-lhe na vista. '
Cresceu para a prelada, e perguntou-lhe severa-
mente:
-Isto obra sna? E' assim que pratica a mise-
ricordia de Christo?
- Esta freira est alienada- respondeu Maria
Wenzyk.-Rasga os vestidos, e s com a. prislo po-
demos reprimil-a. .
- Alienada I ? -bradou o bispo- Alienada
1
f Sim,
actualmente decerto; mas estava-o eila quando a
trouxeram para aqui? Ento a senhora juiza e al-
goz n'esta casa? Como? Uma freira, uma filha da
me Pspiritual que a senhora devia ser d'estas reli..;
giosas, agonisa lentamente aqui por sua ordem? I ...
E ousam chamar-se as esposas do Senhor I E atre-
vem-se a approximar dos sacramentos I A senhora
merece ser fulminada por todos os raios da egreja,
ma11 eu no sei que haja anathemas bastantes que
a castiguem. Receio perder a razo se aqui estiver
vinte e quatro horas, e a senhora accusa de louca
uma creatura, a quem a sua cruza roubou a luz do
entendimento? ,
A louca nl1o comprehendia as palavras do bispo;
mantinha-se atrrada, empedernida contra a parede,
os olhos esgaziados e os punhos cerrados.
- Ah I - dizia ella- Eu pensava que s o ca-i
pelllto, o miseravel Onufre pertencia aos meus ver-
dugos, mas tam bem tu ahi ests, bispo I Tu, pastor
miseraveis padres que me torturam depois de
me aviltar I O' raa de vboras! Mercadores de boa-
tias e de indulgencias, vs polluis e crucificaes as
esposas de Jtsusl Se o mundo soubesse I Se o mundo
eoubesse. . seriam poucas as pedras da rua para vos
apedrejar. Vens aqui julgar-me e condemnar-me,
bispo? E' pena que eu j nlo seja linda; o
o;
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A II'REIRA MO SUBTERI\ANEO
culo do meu supplicio te daria przer como ao padre
Onufre. Ah I vingana divina, tu nlto s mais que
uma palavra l Colara celeste, que da tua justia?
Pois estes muros no se abatem para esmagar o ni-
nho dos escorpi<les? Deus nllo existe, ou absorveu-se
na sua eternidade impassvel I Elle j nllo olha para
a terra, senllo a terra seria pulverisada por causa
dos seus crimes. . . Que quereis fazer do meu corpo
espedaado, pharizeus I Vs j o amastes quando
a pelle era fina e as frmas elegantes; quereis agora
que eu acompanhe as gargalhadas das vossas orgias
com os meus gritos de angustia!. .. L em cima
tendes religiosas novas, e bellas novias . . . ide en-
sinar-lhes o qne vs chamaes amplecras do esposo.
Oh! a vida, a vida l Eu devia matar-me antes de
deixar lanar o vo sobre a minha cabea Eu era
tllo pura, Senhor I E vs fizeste de mim tllo enorme
peccadora, to miserava! martyr. Oh I os sacrilegios!
Os carrascos ! Os profanadores l
O bispo deixra correr a torrente das palavras.
Em meio das divaga<les da miserrima lonca, desco-
briu uma cada de factos sinistros. O que elle no
via, adivinhava-o. Esclarecido subitaneamente, pe-
netrava os mysterios de iniquidade que at quella
hora tinham fugido ao su entendimento. Dnrante o
seu episcopado crimes immundos se haviam commet-
tido. A religio tinha sido conspurcada, as leis mais
santas trahidas, a caridade, a humanidade, esta vir-
tude instinctiva do corao do homem haviam sido
sovadas aos ps. Em vez de gemebundas pombas
exalahdo para o co votos puros, a fim de obterem
o celeste perdo, onvia brados da devassido monas-
tica, a peor de todas as libertinagens, porque se faz
cumplice de Deus. Em vez de virgens prostradas so-
bre os ladrilhos, pedindo ao co perdo dos crimes
do seu povo, descobria mulheres loucas de sou corpo,
o;
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A li'B.EIJlA NO SUBTEB.B.ANEO
servindo-se da propria penitencia para cevarem de-
leites. Aquelle sagrado claustro, um dos mais a.dmi-
raveis modlos da regra, estava eternamente profa-
nado. O capello do mosteiro era o chefe d'esse ha-
rem de religiosas ... E elle bispo, padre, pastor, que
tinha o cargo das almas, e direito de direco e ins-
peco, confiado na rotina descurra de vr e ouvir.
Nunca se persuadira que algumas pobres meninas,
fechadas n'esse convento por pobreza, desesperana
ou sabmisso, se achariam no lance horrvel de d&-
negrir o que o claustro devia resalvar, ou ento se-
riam prsa de vinganas tanto mais requintadas
quanto mysteriosas. A primeira palavra d'este eni-
gma espantoso disse-lh'a Barbara: cumpria-lhe ave.
riguar o mais.
Galeeski chegou entrada do carcere, e diss&
com a voz cheia de tristeza e dignidade:
. -Tem direito de me accusar, Barbara Ubryk,
porque houve desmazlo no meu dever de pastor
Eu deveria confiar de mim s para bem ajuizar do
viver d'estas casas. Foi a confiana que me cegou.
l l l u d i u - ~ e a austeridade apparente d'estas mulhe-
res. Tamanhas infamias quem poderia crl-as I ...
Se os homens as contassem, e os escriptores as es-
crevessem, accusal-os-iamos de impiedade, e lastima ..
riamos que to mal julgadas fossem aquellas que fu-
giram do seculo para conquistarem o co em tempos
como estes. Confesso-me ro, Barbara ; mas, oh&-
gada a minha vez de juiz, vou chamar ao meu tri-
bunal Maria W enzyk primeiro e depois as suas cam-
plicas... Interrogatorios, livres e completo, vlo
dilucidar-me a verdade em todos os pontos. Serei
rigoroso e inflexvel. Castigando, vingarei no s6 o
seu longo supplicio, mas a injuria atirada religio,
cujo ministro sou. O prncipe da egreja vae armar-se
com todos os raios canonicos para fulminar as suas
DIQitized by Goog I e
A FIUm\A NO SUBTERRAN&O 47
perseguidoras. . Venha sem mdo, Barbara, e com-
penetre-se bem de que eu vim salvai-a d'este ca.r-
cere. _
- Por quanto tempo? -perguntou Ba.rbara.
-Nilo aqui mais.
-Nunca mais! Disse que nunca mais? . O' luz
do co I, O' celestial alegria I Ho-de dar-me vesti-
dos? Poderei comer? Sentirei acordar o meu cerebro,
iJ.Ue se atrophia? E hei-de vr o sol? A claridade
que eu j nlo conheo?
- Ha-de, Barbara, pde vir comnosco.
-L acima?
-Sim, mas sahirll. immediatamente d'esta casa.
A louca sorriu.
-Ponha esta capa- disse o bispo meigamente.
Mas Barba.ra, reconhecendo o habito religioso,
recusou.
E ento o bispo, tirando a propria capa lanou-
lh'a sobre os hombros.
Barbara envolveu-se, e das dobras negras resal-
tava-lhe a face lvida como cabea mumificada pela
morte.
Zolpki e Pamza
Dois esbirros ladearam a prioreza.
O serralheiro ia frente do grupo, levando a
tocha.
Quando Barba.ra chegou ao topo da escada, ca-
hiu, ajoelhou e soluou como creana.
-O dia 1-exclamava ella- O dia I
E os seus braos mirrados erguiam-se para o
co n'um extasia de gratidilo.
E ao mesmo tempo disse o bispo pr,elada :
-Faa reunir todas as religiosas na sala do
locutorio, e o capellilo tambem.
A prioreza dirigiu-se impassvel ao sallo onde
a esperava a porteira. Momentos depois, as religio-
o;
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A J'B.BIRA 'NO BUBTB.IUlAN.IIO
sas com seus vOs achavam-se reunidas, trmulas e
aterradas pela perspectiva d'um fnnesto acontecimen-
to. As mais moas choravam, as velhas espavoriam-
se por verem o bispo Era esta uma
visita natural, supposto que nenhum bispo de Craco-
via exercesse tal poder para no dr visos de suspei-
ta; mas que monsenhor Galeeski auctorisasse as
investiga5es da policia, ultrapaBBava os limites. Pois
que! no seriam inviolaveis os mosteiros carmelita-
nos? O nome de Santa Thereza d' A vila no
geria sttas filhas? A lei, forando as portas das re-
clusas, ousava esquadrinhar-lhes o modo de vinr to
parte? Em que pensava o santo padre, se no de-
fendia os mosteiros? Nllo seria melhor isto que es-
tar a reunir tropa em defeza d'um territorio que
Christo lhe nllo dra?
Todavia, entre as religiosas que abaixaram os
()lhos, algumas abenoavam a interveno das leis
disciplinares e civis. Uma novia muito na fl.r dos
annos, de joelhos na sala, orava como Daniel orou
na caverna dos lees.
As freiras velhas estorciam-se com frenesis de
raiva, e davam aos seus semblantes de pergaminho
a immohilidade do,s traos escu1ptur.aes. SabialD al-
.gumas que haviam de revelar terrveis lances; e a
si se pergnntavam se seria bom mentir, se confes-
sar, grangeando alguma indulgencia pela franqueza.
E d'esta sorte se premiam umas contra as outras co-
mo se assim podeBBem affrontar melhormente a bor-
rasca. A maior parte d'ellas ignorava a prislo de
Barbara : s religiosas novas havia-se dito que ella
morrra. Porm as que a conheciam e conjecturavam
(JUe o negocio entendia com ella, tremiam do resul-
tado. A chegada do padre Onofre, longe de as soce-
gar, dobrou-lhes o terror. Uma sahiu-lhe ao encon-
tro e disse-lhe :
o;
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A n\WIRA MO SUBTERRANBO 49
-Salve-nos, j que nos perdeu! .
Ao abrir-se a porta para- entrar o bispo, as frei-
ras recuaram at parede, como se ella podsse en-
gulil-as e defendei-as do opprobrio.
Monsenhor entrou primeiro.
Barbara, que tanto almejava a luz do dia, Dito
podia supporta.r-lhe o brilho. O ar vivo que lhe da-
va no rosto era forte de mais para aqaelles pul-
mes afeitos ao fedor do carcere; e por isso, camba-
leando, parecia bria.
Zolpki e Pamza levavam-na amparada.
O espectaculo porm da communidade reunida
..galvanisou-a a pouco e pouco. Retrocedeu vinte an-
nos; reminiscencias d'algumas feies lhe acudiam
.atravez dos destroos feitos pelo tempo; murmura-
va nomes conhecidos; e tanto quanto a razio vacil-
lante lhe concedia ia subindo na escaleira das suas
memorias. Embaada na capa, com os cabellos bran-
cos dispersos pelas espaduas, estendia o brao secco
-e mostrava ao bispo as freiras que ella conhecra.
Ainda o terror lhe paralysava a lingua, ou bem p-
-de ser que o rancor lentamente cumulado em seu
-corao nlo podsse ainda desafogar-se.
E os magistrados, sentados mez;a, escreviam.
- Como se chama?:.._ perguntou o commissario
. prioreza.
-Maria Wenzyk.
, -E' filha do defunto W enzyk, que exerceu al-
tas funces e deixou um grande nome litterario?
-Sou.
-Que edade tem?
-Trinta e sete annos.
-Ha quantos annos est no convento?
Entrei de vinte e um.
Por inclinao?
Que entende por essa palavra?
o;
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.....
50 .l JI'R'Rill.l NO SUBTBl\RANEO
- Pde entrar-se no convento por tendencia .
vida religiosa, ou por violencia da familia, ou pelas
grandes desespera&s que nos levam a. desejar uma
sepultura.
-Entrei por inclinalo.
-No est no mesmo caso a desgraada que
hoje nog interessa. Foi aqui arrastada por sua fami-
lia, e encarcerada como preza e no como freira ...
Mais tarde, saberemos que circumstancias a trou-
xeram a isto; o que hoje importa saber com que
direito e com que motivos a senhora usou com ella.
semelhante crueldade.
-Barbara est louca- respondeu friamente a
prioreza.
-Louca! At certo ponto aBBim ; mas quem a
tornou aBBim? Quem a exasperou? Quem obliterou
com a tortura aquelle cerebro exaltado, aquella
natureza ardente, senlo os fiagellos que a senhora
lhe fez soft'rer?
-Barbara foi prza depois que enlouqueceu.
-As freiras que a prenderam?
-No. Foi o sacristlo Casimiro.
- Quem empedrou a janella do seu carcere?
-0 sacristo.
-Quem dava de comer a esta desgraada?
- A sub-prioreza Thereza.
-As freiras conhecem as torturas infligidas a
Barbara?
-Algumas.
Zolpki, voltando-se para Barbara, diBSe suave-
mente:
- Faa um esforo para reatar a cada do pas-
sado. O que eu lhe pergunto importa ao seu livra-
mento e A salvao d'aquellas que imitalo da
senhora so ameaadas de prialo e martyrio. Se
lhe fr foroso fazer alguma penosa confisso, nlo
o;
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I
A JllU!IIRA NO SUBTERRANRO 51
tema. Tem . aqui a lei para protegei-a, e um sacerdo-
te para a livrar de escrupulos. A senhora foi
fechada no seu carcere ha vinte annos . Commet-
teu algnm delicto qne merecesse castigo -j nlo
digo como este, contrario justia e humanidade,
mas qualquer pnnilo?
Barbara passou as mos pela fronte e respondeu
com voz sonora :
-Sim, tenho uma culpa. . mas nlo son eu a
culpada. . O responsavel do crime outro. Quando
entrei no convento tinha um amor, um amor unico .
Guardei o puro em mim como fogo sagrado. . . Mas
um homem, um monstro. . . forou-me a violar o
meu voto de castidade.
-Um homem! Quem?-perguntou o bispo.
-Est alli I Est alli 1-disse barbara- En-
trou aqui para vr a victima da sua lubricidade .
Elle espera que a demencia embargue a accusaio
na minha garganta . Mas a raziQ reapparece-me ...
a razio que elles enfraqueceram, mas nlo :vingaram
extinguir. Eu comprehendo que me querem vingar,
e por \pso accuso o ro.
E apontava para o capelllo, a quem o bispo per-
guntou:
-Ouviu?
-Ouo, monsenhor. Esta mulher est possessa
d'um esprito mau, ~ eu nem seqner lhe refutarei as
calumnias. V. ex. j ouviu dizer que ella est doi-
da; julgue-a pelo que diz. Aponta-me como cumplioe
das suas culpas; capaz seria ella de aoousar tambem
os anjos e o proprio Christo.
-0 Christol . -balbuciou Barbara-O Chris-
to I... Ah I Ahl eu bem me lembro dos amplexo1
do esposo divino, d oratorio mstico, e do cantar
da :filha de Sulam . Elles nlo viram a alcova sa-
grada das monjas Miseravell lliseravel! Tu me
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5! A JI'UffiA. NO SUBTERRANEO
perdeste. . . e a edade ciosa das minhas rivaes fez o
resto. Prenderam-me, porque tu me preferias, e por-
que era assim preciso enterrar a minha culpa ..
:Mas, ahi as tem todas, senhor bispo I - proseguiu
ella, apontando para as freiras -No ha aqui uma
s6 que seja pura, uma s6 que seja virgem ! E o ardil
da. corrupo vae to longe que algumas nem sequer
sabem que estio prostitui das. . . A corrupo J Para
saber-se o que ella , faz-se preciso extmval-a na
alma d'uma freira, ou d'um confessor de religio-
sas.
Barbara emmudeceu, exhaurida de alentos; mas
depois, abeirando-se da prelada, insistiu :
-Deixaste-me sem po e sem vestidos; impe-
diste-me que eu invocasse soccorro e misericordia l
Mas chegou a hora de saldarmos nossas contas. As
minhas nllo alo as mais difficeis. . . Que vida eu
vivi I Que vida eu passei J
Os magistrados attendiam quellas palavras com
progressivo interesse. Barbara recuperava a sua lu-
cidez.
--Quer. a senhora sahir immediatamente d'esta
casa? ::.....perguntou Pamza- Eu a farei trnsferir
para o Hospcio de S. Lazaro.
-J-respondeu Barbara.-Mas aquellas ficam
no mosteiro?
-Em nome da minha auctoridade episcopal -
interveio o bispo-declaro interdicto este convento.
E' prohibido officiar n'esta egreja; so retirados os
sacramentos s religiosas que os profanaram; o ca-
pellilo passe para uma casa de penitencia, e ajustia
ecclesiastica punir as criminosas ao mesmo terr"'"'
que a justia secular a quem as entrego.
Zolpki acenou aos seus quadrilheiros, dizenc:
-Chamem um destacamento de hussards : p.
ciso decerto proteger estas miseraveis mulheres cc
o;
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..
A FB.BIIU. NO SUBTJ:RRANEO 53
tra o furor popular. As novas correm depressa, e o
que se est passando aqui deve j saber-se l fra.
Os quadrilbeiros retiraram-se.
Zolpki fallu ao ouvido de Pamza; e depois per-
guntou prioreza :
-Onde est minha filha?
-Espera-o na egreja.
Zolpki dirigia-se para l, emquanto Barbara o
seguia com obstinado exame, procurando dar um
nome quelle rosto; mas no podia.
lnstf!,ntes depois, o doutor, Barbar e mais duas
pessoas entravam n'uma carruagem e seguiam para
o proximo hospcio.
A tropa chegou logo. Como sempre acontece
quando se fazem arrestos, a noticia de que a fora
armada entrava no convento das carmelitas divul-
gou-se com extrema rapidez. A populaa apinhou-se
na rua, perguntando e esperando. Os odios velhos,
longo tempo represados, extravasavam, as Injurias
faiscavam das. lnguas dos homens e do mulherio.
Repetiam-se as velhas legendas do mosteiro, as cruel-
dades alli feitas, e citavam-se os nomes de meninas
que ninguem mais viu. O mysterio em que se aco-
bertam as ordens claustraes volve-as mais suspeitas
que quaesquer o u t r a s ~ A grade que defende do mundo
deixa ao mundo o direito de suspeitar. O silencio,
que reina n'esses serralhos celestes, agua a curiosi-
dade de conhecer o que ahi vae.
Apenas se proferiu o nome de Barbara Ubryk,
esta mulher incutiu terror ao esprito do povo, como
se fosse a imagem da morte; mas recordaram-se que
a tinham visto no dia da profisso, radiosa de moei-
e e belleza. Murmurios de piedade circularam
turbas que augmentavam, e impacientes espera-
j a sabida dos agentes da policia e o desenlace
hama.
o;
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A JltEUU. NO SUBTERRANEO
Abriu-se emfim a porta das carmelitas de par
em par.
Assomou primeiro o commissario, depois quatro
quadrilheiros escoltando a prelada e a sub-prioreza.
Os gritos, os urros, as ameaas da multidlo es
tralejaram assim que as viu; algumas mulheres apa-
nharam pedras para as arremessarem contra as duas
freiras.
Os hussards esforaram-se e debalde para defen-
der as carmelitas d'aquella horda aggressora: gri-
tavam todos repetindo o nome de Barbara, como
aquelle brado do Senhor fallando a Caim :
-Que fizeste do teu irmllo?
As duas religiosas desceram o vo para encobrir
a vergonha sob as dobras da estamenha; mas uma.
mulher do povo maia atrevida arrancou de repuxlo
o vo de Maria W enzyk, exclamando :
- Vde-as, as corruptoras das raparigas; caa-
mos esta miserava!, mas escaparam-nos milhares
d'ellasl Arrazemos a casa das carmelitas e a dos
jesutas; que s as miles sabem guardar as suas
:filhas. Fra da cidade com estas pestes, e faamos
justia por nossas mllos.
Os hussards tiveram de cerrar :filas e levantar
um maro vivo entre a multido e as duas carmeli-
tas, que immediatamente foram encarceradas.
o;
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IV
A virgem das tranas d'oiro
Por 1817, nascia em Czerniakow, nas cercanias
de Varsovia, uma d'essas esplendidas creanas das
quaes nos contos das fadas se diz : Elia era formosa
como o dia. A famlia dos condes de Ubryk era
()pulenta. Barbara, ao entrar no mundo, foi saudada
com extremos de alegria. Pae e me acariciavam-na
competencia, e a creana cresceu entre duas ter-
nuras, cujo defeito era a exagerao. Os haveres dos
Ubryks permittiram que Barbara fosse educada com
esmero, e bastante dizei-o assim, quando se falia
d'uma donzella do norte. Por muito soberbos que
8 ~ a m o s EUD Frana da nossa nacionalidade, talento
e viveza de esprito, mister reconhecer que a edu-
()&lo de noBSas filhas est muito quem da que re-
cebem as rUBBas e as polacas. Barbara, de natural
ardente, palpitante de vida e enthusiasmo, estudava
com paixilo. Assim que soube lnguas, dedicou-se
artes, e ahi mesmo a espantosa facilidade e facul-
dade de comprehenslo a. dotaram muito alm das
esperanas de sua familia. N'esse paiz das magias
melancolicas, poderia dizer-se que uma Elfe divina
o;
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~ I
A FB.BIRA NO BUBTElUlANRO
presidia vida da formosa creana. Cdo deixo11.
de o ser. Floresceu a mocidade n,ella. Ardia-lhe
nas veias generoso sangue; radiavam-lhe os olhos,
ostentava frmas tio vigorosas quanto flexveis ; e
sobretudo o que mais lhe realava os encantos, e
mais esplendidamente lhe alindava a face, eram os
cabellos d,oiro, em parte ondeados d'um colorid()
castanho, que contrastava com os esplendores sola-
res que lhe doiravam as madeixas. Trana longa,
fluida, fragrante, que se frisava no alto do pescoo,
e enealamistrava nas fontes como as ca.belleiras dos
anjos. Os olhos negros formaTam com estes cabellos
e a bra..ncura da pelle uma admiravel e formosa di-
vergencia-. Era de frmas fortes e flexas, com pro-
messas de contornos esplendidos, que a adolescencia
guardava ainda na virgindade da sua graa. Nos
braos dava a lembrar- as deusas, e nas mos as
madonas. O p, sem encarecimento de pequeneza,
era arqueado e subtil, feito para aquella nobre dan-
. a dos gregos, cuja tradio chegou at ns nas escul-
pturas dos templos idolatras. Porm alguma coisa
havia n'ella para maiores encantos que esta belleza.
perfeita : era a graa do sorriso, a caricia feiticeira.
do olhar, e o som melodioso da voz. Barbara no
agradava smente : fascinava. Dir-se-ia que ella res-
pirava um ambiente de amor. Sem o saber, tinha a
natureza das fadas. Os antigos, classificaQdo estas.
mulheres, extremaram-nas do commum dos sres,.
pela raridade d'ellas. Mlls, quer lhes chamem sereias
ou de outro modo, nada faz nome: a especie d'ellas
distincta. Ha mulheres sereias, nlo porque se fa-
am, mas porque assim nascem. Nlo se canam
attrahir: exercitam uma faculdade que possuer
Barbara com taes frmas, com tal belleza e diverr
dade de talentos, d'aquella quasi divi1
faculdade, pela qual as mulheres ae fazem conqu;
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A FRBlllA NO SUBTERRANEO 57
tadoras e despotas s vezes. Fascinava; mas me-
diante uma opposil.o sem duvida destinada a man-
ter oiro fio a balana. dos seus meritos ; - o corao,
sensvel aos males de outrem, doce e terno para os
seus, contrahia-se, fechava-se a qualquer outro sen-
timento. Nlo procurava dominar nem se servia cruel-
mente do seu predomnio ; no; mas a sua alma nllo
reflectia tanto quanto inspirava. Era alma candida
e fria como o glo. Talvez que n'esta indifferena
andasse exaltado orgulho ; mas em tal caso, este or-
gulho o escudo das mulheres ... Nunca ellas se
defendero o amor despeitado; porm o amor
que inspiram n!to lhes custa a repellir. Serilo injus-
tas ? Porque? Acaso o homem pergunta. a uma mu-
lher se lhe convm que elle a ame? Por ventura
indaga se ella o achou amavel, espirituoso e bom?
Nlo. Cede ao iman que o attrahe para uma mulher,
depois converte esse amor n'uma arma, e tenta ven-
cer. Mais d'um homem se deixou sed1,1zirpela for-
mosura de Barbara, muitos a pediram para casa-
mento, e ella glacialmnte os rejeitou, antevendo
que a sua hora de amar chegaria, e entl.o debalde
tentaria repulsar aquelle que desabrolhasse n'ella as
divinas fires da paixlo.
De mais d'isso, uma razilo impedia que a orgu-
lhosa menina poetisasse muito vida. O scismar de-
licias enerva ; e j dissemos que Barba11a era uma.
indoJe forte, simples e ao mesmo tempo enthusiasta.
Era ingenua nas relaOOs com familia e amigos ; o
enthusiasmo era todo da patria, d'aquella Polonia. es-
tagnada em sangue e lagrimas, crucificada eempre e
nunca vencida, a Polonia que ergue a fronte subju-
da e fita o co com a serena confiana dos marty-
l. Antes de conhecer as pessoaes, alvore-
a-lhe n'alma aquella grande paixl1o. Anhelava
'l pagina heroica na historia das pugnas que nlo
o;
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58 A II'&JIIIlU. NO SUBTIU\a.&NIDO
teem epopa escripta, pezava-lhe nlo representar em
seu paiz o papel d'aquellas bellieosas damas de que
a historia registra egregias prozas. Quando, perante
seu pae, fallava no aviltamento do seu paiz, da op
russa, da dr da nao, o pae abraa v a-a
com a altiva hombridade, e sacudia tristemente a
cabea.
E a mile dizia :
-Se Barbara revelar em todas as suas affeil5es
o fogo que a ineende n'esta, que destino ser o seu?
E tinha razio a mlle. Devem temer-se nas mu-
lheres os transportes, os sonhos d'arte e de poesia,
as ambi15es nobres, as aspira(}es santas. Tado lhes
resvaladio, at a propria virtude, e mrmente aa
demazias d'ella. Onde ellas entram de coralo, o
ideal da vida, o mais intimo da alma, o homem,
ser-lhes-ha inferior. Que o homem entll.o descr da
mulher. Depois que legenda reconta que Adio foi
enganado por Eva, todas as seduc3es feminis silo
consideradas perigos e armadilhas. As mulheres di-
tosas nll.o so grandes artist&l5 nem celebrados es-
criptores. Contra estas ha ahi o atirar-lhes o lixo
das ruas para lhes fazerem pagar sua gloria tio
amargamente, que ellas nunca aeeeitariam, se lhes
fosse dado prevr o futuro quando, pela primeira
vez, sentiram palpitar na fronte as i1;1spira<Ses espi-
rituaes. Barbara defrontava-se, pois, com muitos pe-
rigos; porque era bella, artista e enthusiasta de to-
das as coisas formosas e nobres.
Se ao menos lhe fosse dado amar a sua Polonia
querida, louvai-a e pranteal-a I. . Mas cada pala-
vra d'estas, poderia ser malsinada de rebellilo. A
Russia cr nas eonspira3es das mulheres. Na Polo-
nia se algaem ha revelado mais heroismo que os ho-
mens, alo ellas. E nunca lhes minguou dedicalo
causa fraternal, nunca uma polaca fez p atraz ao
o;
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.&. l'llmRA NO SUBTERRANEO 59
resgate d'um prisioneiro, acovardada pelos perigos
da tentativa. A lei do czar nlo distingue entre po-
lacos e polacas, quando os juizes os accusam de
conspirar; pelo que, se para o homem ha o knout,
para a mulher ha a plstte;
1
mas a Siberia d'am-
bos, e a morte, pelo supplicio, de ambos tambem.
. O destino de Barbara era soffrer os precalos de
todas as vantagens com que a natureza, a sociedade
e a famlia a tinham enriquecido. Antes de chorar
por si chorou pelos outros, antes de saber o que era
o captiveiro fremiu indignada contra a escravido da
Polonia; antes de abrir ao amor aquella fogosa alma
que devia gemer todas as angustias humanas, en-
cheu-a de novos a:ffectos, de sublimes compaix<Ses e
sagrados enlevos. Derramava os immensos thesou-
ros da sua rica imaginalo e dadivosa indole sobre
padecentes e os tristes, lamentando-os, ella que
mais tarde havia de ser tanto para lastimas. O pae
era homem austero nos princpios, e inflexvel nas
vontades. Nlo tinha limites o seu amor filha, e
no obstante bem sabia ella que se um dia anhelasse
coisa opposta vontade do pae seria vencida infalli-
velmente na lucta. Os odios de Ubryk guardavam
a da vingana ; para desaffrontar-se
d'uma injuria, a opport11nidade atravez dos
annos. E comtudo nlo era mau. Julgava a firmeza
a maxima das virta.des cvicas e moraes e toda a
energa fundada no stoicismo da alma. Confessava
que comprehendia Bruto condemnando os filhos
1
O lmotll um aoute de correias entranadas e no-
sas. A pleUt outro instrumento de tortura igual na mis-
.o de avergoar as carnes, mas de feitio distincto.
Noea do lraducC.
o;
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60
A IPRElRA NO BUBTERRANJ!lO
morte; e approvava o supplicio de D. Carlos en-
viado ao patbulo por Filippe n. E' verdade qti.e
applicava taes theorias politica, e nllo vida pri-
vada, mas apesar d'isso bem sabia a filha que elle
no regmen da fa.milia exerceria o despotismo que
desculpava nos outros.
Ubryk alimentava contra um homem de Craco-
via um rancor dos que empeonham as opiniles par-
tidarias. Ubryk ligra-se to excessivamente ao go-
verno russo que excitra por isso o odio de Zolpki,
e tanta era a raiva e grande o desprezo que tal ho-
mem lhe inspirou, que nem ao filho innocente per-
doava as opiniiJes do pae. O joven Zolpki fraterni-
sava com a mocidade polaca eternamente sonhadora
da liberdade ao seu paiz.
A fatalidade, que preside a tudo n'este mundo,
e talvez principalmente ao amor, approximou uma
noite Zolpki de Barbara.
A joven, sentada junto d'uma janella, prestava
o o u v i d o ~ primeiro desattento e depois curioso, con-
versao que trocavam, perto d'ella, dois homens j.
velhos. Um elogiava enthusiasticamente o mancebo,
o outro escutava-o a sorrir.
-Mas ento, o homem um horoe?- pergun-
tou elle.
-Tal qual; um horoe modesto e doce que
parece c6rar das suas bellas aces quando as faz ;
homem que se bateria como leo e que um elogio
acanha ; instruido, inspirado, om a eloquencia que
electrisa as turbas, sobremaneira digno de capita-
near uma revoluo.
-Sim, sei isso -replicou o interlocutor.- Con-
tam-me coisas d'elle admiraveis Mas sabe elle
calcular o perigo que o ameaa ?
-Calculou.
- E no desiste?
o;
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A B.BElRA. NO SUBTERRANEO 61
-Diz que o sangue dos martyres sustenta as
causas preclaras.
Continuou o elogio do moo algum tempo ainda,
por modo que Barbara se interessou por elle sem o co-
nhecer, porque nome nenhum se dra quelle retrato.
De repente um dos dois, mostrando ao seu amigo
um gentil rapaz, disse :
- Elle aqui vem para ns.
Decert_o ia para elles, mas com certeza nlo os
via: os olhos levava-os fitos em Barbara, cuja sober-
ba formosura o repassra de admirao. Nunca tio
. maravilhosa creatura tinha visto. Ia attrahido para
ella como para a luz. Barbara encarava-o tambem
com enlevo. Tal homem, que tanto enthusiasmava
os dois ancios, e o que elles haviam dito a respeito
d'elle, eram motivos a interessai-a docemente na
contemplao d'aquelle que tlto fixamente a olhava.
E d'este encontro de vistas fulgurantes relampa-
gueou aquelle magnetismo electrico do amor que
funde momentaneamente duas almas em uma s6
O mancebo, approximando-se dos seus amigos,
perguntou:
-Podem apresentar-me quella senhora?
Tocava ento a orchestra o peludio d'uma walsa.
- Aquella senhora- disse um dos amigos - nlo
a conheces?
-Bem sabem que eu no frequento bailes.
-E' Barbara Ubryk.
- Aquella?- murmurou o moo.
E passados alguns instantes meditativos incli-
nou-se respeitosamente diante de Barbara, e disse :
-Foi n'uma festa de Veneza que se encontra ..
am aquelles immortaes inimigos chamados Julieta
Romeu. Passados poucos dias, vou a uma ex-
ldio onde arriscarei a vida. . . Sou Ladislau Zol-
tti . Concede-me esta walsa?
o;
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62 A FREIRA NO SUBT"&RRAN'IIIO
Levantou-se Barbara, toda purplira e fogo nos
olhos.
-V amos -disse ella.
E os dous desapparecera.m no redomoinho das
danas.
O corao de Zolpki arfava de ebriedade desco-
nhecida; premia meigamente a cintura da virgem;
sentia nas faces o roar das louras espiras do cabei-
lo. E ella era to leve, que elle apenas a.. sentia re-
clinar-se-lhe no brao; e era tio bella que os vaga-
dos o tomavam, se a encarava a fito.
Barbara deixava-se ir como Zolpki ao sabor d'a-
quella perigosa embriaguez. Bem sabia ella que se o
pae a visse, havia de soffrer aspera invectiva. Fas-
cinAva-a porm a ida do perigo; como que j lhe
sorria a doura de padecer por elle. Em rapidos ins-
tantes, como tudo que felicidade, sentiu-se amada,
e amou.
-Quando entrei n'esta sala-disse Zolpki-o
meu intento era unir-me aos meus amigos que cons-
piram ; mas agora quizera eu ficar para vl-a ..
Tudo nos separa: a sua opulencia e a minha pobre-
za; a obrigalo de me devotar a uma causa sagrada,
a responsabilidade em que empenhei a minha cabe-
a, a vigilancia do governo. . . e com tudo sinto, adi-
vinho que as nossas almas se entendem, e j nlo
deixarei esta cid,ade sem immensa dr.
- Vae defender a Polonia, talvez salvai-a!-
disse Barbara.
-Ao menos vou fazer-lhe os funeraes pomposos.
-V, que o seguem os votos de todas as pola-
cas.
-De todas? E' de mais.
-Nio I A patria mie de todos ns.
~ P o i s , se eu succum bir na lucta tenha saudades
de mim.
o;
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,
A FREIRA NO llUBTERRANEO
'63
-Antes quero offerecer--lhe um talisman .. Ac-
eeite este raminho de urze .. Na volta m'o entre-
gar. J v por isto que tem obrigallo de v.oltar.
-E tornarei a vl-a?
-Ha-de vr.
-Talvez nlo saiba a historia das nossas fam-
lias ..
-Eu nlo acceito herana de odios; alm de que,
o ca"talheiro .serve a causa da patria, que o lao
santo da familia.
-E pensar em mim?
- Pois se eu o espero .
A fina mio de Barbara estremecra no brao do
mancebo.
- Ahi vem meu pae- disse ella alvoroada.
Zolpki desappareceu, mas nlo to rapido que
Ubryk o nlo reconheceBBe. Pelo que dardejou filha
um severo olhar.
- Sabes quem danou comtigo?
Barbara hesitou na resposta ; mas, vencida pela
franqueza do caracter, respondeu : '
-Sei.
- E nlo receias desobedecer-me?
-Pois que me prohibiu?
- Ha preceitos implcitos. Sabes de mais que
Gdeio a famlia Zolpki.
-E tambem sei que Ladislau estimado e
admirado; e sei tambem que estou n'um baile e que
dancei . nlo sei mais nada.
-A isso ajuntarei que a prohibo de fallar com
tal homem.
- Comprehendo, meu pae.
-E se transgredir esta ordem ...
- Nlo diga mais nada. . E' tarde .. quer que
'8 retiremos ?
E' o que Ubryk desejava.
o;
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A 11'1\EllU NO SUBTERRANEO .
Desde esta. noite Barbara teve um segredo para
seu pae.
O !_mor que lhe prohibiam implantou-se tanto
mais ellranhadamente quanto era o esforo para lh'o
arrancar. E ao mesmo passo que ella ouvia encare-
cer a coragem e o patriotismo de Zolpki, mai11 vi-
brava de jubilo ouvindo citar relances de generosa
intrepidez e nobre ardimento. A misso a que elle
se votra promettia imminentes perigos, que affron-
tava no s por enthusiasmo patrio pelo resgate da
Polonia, mas ainda com a serenidade heroica que
preside s resolu<5es formidaveis.
Ao cabo da precaria empreza negrejava-lhe a
morte, e, peor que a morte, o captiveiro na Siberia;
mas nlo havia fazei-o recuar. E, se algum estimulo
podia exaltar energia do moo audaz, era a ida
de m e r ~ r a estima de Barbara, estima profunda e
intima, sem a qual no pde haver amor sincero e
duradoiro. Esteve ausente tres mezes Zolpki. Quan-
tas vezes, n' esse longo espao, nlo perguntou elle, in-
quieto e desconfiado, se Barbara conservaria lem-
branas d'aquelle unico encontro I Uma walsa, uma
flr offerecida, uma promessa d'olhos .. Que mundo
de pensamentos, de sensa<5es! E todavia que insi-
gnificante penhor !
Tinha Zolpki um amigo, nlo companheiro de in ..
fancia, mas um camarada de folias que se encontra
alegremente, que se deixa com pezar, com quem se
bebem garrafas do g e ~ e r o s o vinho e se queimaa:b al-
guns charutos ; amigo, porm, no sentido perfeito
da palavra, que o mesmo dizer um ente com quem
pensava em voz alta, que lhe conhecia o amago da
alma, e cuja affeilo lhe era de todo o ponto insus-
peita.
Zolpki encarregou Casimiro de lhe fazer chegar
novas de Barbara. O moo, temeroso de a expr, nlo
Dlgltized by Goog I e
A ll'l\BIRA NO SUBTERRANEO 65
ousava escrever-lhe. Comprou um exemplar de Ma-
rya, admiravel poema que uma das obras-pri-
mas da litteratura polaca, sublinhou a passagem do
c:Jnramento -as sublimes estrophes que sabetn de
cr todos os aomntes slavos, e enviou o volume a
Barbara Ubryk. Elia comprehendeu-o ; mas era-lhe
desnecessaria sua confiana aquella prova : basta-
vam-lhe as palavras ouvidas. Um minuto lhe sobe-
jra ao completo reviramento de sua vida,
Findos tres mezes, o moo voltou.
Foi no templo que encontrou Barbara.
A menina ia alli todas as manhts, seguida de
uma aia que a crera, e cuja amisade tinha a pro-
fa.ndeza da ternura maternal.
Ajoelhou Zolpki beira de Barbara ; e, no ins-
tante em que os fieis acurvavam mais humildemente
as cabeas, interpz uma carta na pagina do livro
das oraes.
E ella nlo fingiu desperceber aquelle acto. Bai-
xou. as palpebras em signal de consentimento mu-
do; e quando sahiu 4& egreja estreitando o livro ao
seio, sentiu que lhe lavrava fogo na alma, -que
esse fogo radiava da carta de Ladislau. .
Depois, fechou-se no seu e leu a. carta.
Quem ha ahi que defina e analyse uma carta
d'amores? Silo todas parecidas, cheias de adoraveis
canda.ras, de enthusiasmos sublimes, por vezes pue-
ris e encantadores, jubilosos como um hossanah, e
tristes como um gemido. Umas vezes marejam os
olhos; outras fazem sorrir. O que as aformo
seia e divinisa o sentimento que nos infundem e
-- nammam. Se mais tarde o corao se resfria e in ..
3ra, l vae perdida a primeira impresso; porm,
11m bafejo generoso nos aviventa, se o seio arfa,
renascemos para o amor como para uma vida
slo ineffaveia os gosos qa.e nos dlo as nossa
o;
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66 A FREIRA NO SUBTERRANEO
amorosas. No nos vexamos de as lr, aco-
lhemol-as ao seio, beijamol-as sem pejo nem contra-
feito pudor. Aquelle que no estremece ao lr uma
carta d'essas, aquelle que oh'idou a vida ardente e
febril que ahi se reflecte n'esse papel, esse tal nlo
amou nunca, nem foi digno de ser amado.
Ladislau referia a Barbara o resultado da sua
viagem, iniciando-a em suas altas e legitimas espe-
ranas, e rogava-lhe que lhe confirmasse o sublime
alento de seu corao. No mandava, implorava,
supplicando-lhe que lhe concedesse vl-a todos os
dias na egreja, e licena para escrever-lhe, falta
de outro meio de lhe fallar.
Barbara permittiu tacitamente quanto elle lhe
pedira.
O amor, porm, insaciavel. O moo no se
satisfez com o prazer de a vr uma hora de cada.
dia. A virgem, ajoelhada ante o altar, parecia ser
mais de Deus do que d'elle. Por isso, Ladislau so-
licitou encontrai-a .em melhor local, e procurou os
meios.
A casa do pae de Barbara era murada devas-
tos hortos, e tllo amplos, que um d'elles entestava
em uma especie de 10atagal em que se emmaranha-
va:m mais arbustos que arvores corpulentas. Este
jardim frondente, accidentado e pittoresco, era o di-
lecto de Barbara com preferencia aos taboleiros flo-
ridos que no estio alcatifavam os arredores da casa.
A serra sobranceava aquelle bosquesinho, e d'ahi
perto havia uma porta estreita, que no servia nun-
ca, j velha e carunchosa, fechada com ferrugenta
fechadura, incapaz de resistir a um rijo empuxlto.
Quando Zolpki lhe pedia uma entrevista, Barbara.
pensou logo n'aquella porta; depois atemorisou-se,
e repelliu a ida tio formalmente que Ladislau no
ousou insistir. Era alma terna e melindrosa que fa-
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A li'REillA NO SUBTERRANEO
67
cilmente se retrahia em si mesma. Cuidou que Bar-
. bara o amava menos de que elle esperava, e d'ahi
seguiu-se o avassallal-o grande tristeza. Continuou,
n1o obstante, a frequentar a egreja; mas j longe
de sentir aquelle entranhado jubilo que lhe brilhava
na mente quando via Barbara. Depois, nos se118
olhos tristes parecia queixar-se a magna, e j no
sorriso lhe pungia o agro da duvida.
E no foi um dia ao templo, dizendo entre si:
-De que serve ir, se no sou amado?
No obstante, volvidos dois dias, cedendo a no-
vo impulso, tornou egreja. Viu Barbara pallida e
conturbada. Repercutira n'ella a dr de Ladislau.
E assim, ao perpassar, sem encarai-o, murmurou:
-A' noite.
Recolhida a casa, Barbara apavorou-se da sua
eoragem. Que promessa :fizera? que destino era o
seu? Como cumprir to imprudente acto? As cha-
ves da porta eram desde muito perdidas.
Fingiu que passeava, durante o dia, no bosque,
e, examinando a porta, entendeu que s havia um
recurso: despregar a fechadura; mas no tinha com
qu6. Esgarou as debeis mos, e quebrou uma faca
antes de poder desencravar dois prgos. Quando
conseguiu isto, ouviu ao longe a. voz do pae, e er-
gueu mio da tarefa. Correu aos braos d'elle, en-
treteve-o, com diversas coisas, e voltou empreza,
quando elle a deixou. Era noite. Emfim, a fecha-
dura eahiu. Barbara escondeu-a n'um tufo de ver-
dura e mais os e voltou sala. Por causa
da sua distracilo foi muitas vezes interrogada cari-
- Respondeu que soffria. E no faltava
,'erdade. Ardia-lhe a cabea, saltava-lhe o cora-
. A mie alvorotou-se. Ubryk mandou-a deitar-se.
"Barbara folgou com a ordem, para estar ssi-
a do ser interrogada pelos olhares, e por pa
o;
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6 A li'RELR.t. NO SUBTJ:RR.t.NBO
lavras, bem que intencionalmente inoffensivas. Sen-
tada no seu soph, escutava o silencio da casa. Pou-
co e pouco, deu tento de que a me se deitava, e o
pae entrava na livraria. Faltavam os criados. De-
ram dez horas. Barbara nada dissera a Zolpki so-
bre o modo de se vrem; mas a ida da porta com
todas as desejadas felicidades partira d'elle: era de
esperar que l estivesse.
A alcova de Barbara era tll.o contigua da mie,
que todas as eram precisas.
Cobrou o animo abriu a sua porta, e quedou-se
. momentos no corredor, afim de certificar-se de que
nll.o acordra ninguem. .
Depois comeou a descer s apalpadellas e em
palmilhas.
. Chegando porta que abria para o jardim, to-
mou flego. Era cerrada a do jardim.
Nll.o havia luar nem clarito nas janellas. Barbara
socegou; mas entrou-se d'outra especie de mdo. At
quelle instante, dra-lhe alma a febre causada pela
difficuldade do projecto. Chegado o lance de vr
Zolpki rosto a rosto, sentiu-se alvoroada pelo pu-
dor. Nada temia; que a castidade um instincto su-
blime que soffre receios e no os define. O amor que
Barbara sentia no lhe era estorvo a conhecer que
commettia grave culpa contra seu pae e contra os
bons costumes. Seria amaldioada pelo pae, se elle
lhe descobrisse a fragilidade; o mundo culpai-a-ia e
as mes prohibiriam a suas filhas que lhe fallassem;
e seria repulsa da sociedade onde ella tinha sido so-
berana at quelle instante.
Esmoreceu. Teve a ida de retroceder; mas fi-
gurou-se-lhe isto covardia. Receios& de que o pa-
nico a dominasse, e o remorso lhe sopezasse o amor,
correu para a extrema do jardim; e, chegada por-
ta, abriu-a subtilmente. .
o;
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A J'RllliRA NO SUBTERRANICO 69
olpki expediu um grito de alegria; e, envol-
vendo-a nos braos com ardentes carinhos, estrei-
tou- como um thesouro. E no lhe fallava, porque
sua commoo era indizvel. Apenas lhe acari-
ciava as tranas d'oiro com o bafejo. No reparava
na formosura material da mulher, porque tomava
posse d'uma alma. N'ella e n'elle a pureza aporfia-
vam a qual mais immaculada. Quantas grandezas
d'alma cabem n'um santo amor as tinha elle. Como
o seu intento era esposai-a, o pensamento do desejo
viria smente hora em que Deus lh'a pozesse nos
braos.
Quando se remiram de sua lethargia, bria e en-
cantada, Ladislau, que nllo a podia vr n'aquella
escurido, segredou-lhe ternuras, sonhos, amores,
com aquella divinl eloquencia que brota de cora-
&s amantissimos, e filtra n'elles luminosas convic-
&s. Foi o difundir-se d'uma alma n'outra enterne-
cida e heroica. Quando elle dizia que a amava, ella
respondia-lhe: cTambem eu te amo , : e quando
mais tarde elle disse: c At quando ? , - apertan-
do-a ao peito, a virgem respondeu : At manht.
o;
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v
O poema eterno
Afoitou-se Barbara a ponto de ir todas as noites
esperar o amado ao b_osque silencioso. Dll,ante as
horas que passavam juntos, esfolha.vam uma a uma.
as mais vicejantes fl.res da esperana. A felicidade
do momento off11scava-lhes os estorvos do porvir. A
exultao de se entreverem cada noite nlo os deixa-
va soffrer receios das privaes que se lhes antolha-
vam. Horas de casto enlvo, de effuso d'alma, de
apaixonados arroubos, de eloquentes promessas, eram
essas de Zolpki e Barbara I Os sentidos no tinham
parte n'aquella enchente de gosos espirituaes. . Os
anjos no se beijariam com mais candura. O f11turo
esposo no queria desluzir os mimos da predestinada
noiva. O futuro lhe centuplicaria as delicias de que
se privava. Q11ando o corao de Zolpki palpitava
ito, porque os cabellos de Barbara, roando-lhe
faces, as estremeciam voluptuosamente; -quando
tepida presso das mos da virgem lhe accendia
ras no sangue, levantava-se e despedia-se. E en-
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72 A li'Rl!IRA NO SUBTBRRANJCO
tio, com dulcissima e casta desenvoltura, ella se lhe
pendia do pescoo e murmurava:
-Amas-me tu?
-Doida I -respondia elle.
-E has-de amar-me sempre?
- At morte. ,
E ella agitava a loira cabea .
....;.As mulheres-dizia ella -slo mais leaes na
paixlo.
-E os homens mais intrepidos.
-E se nos separassem?
-Tempo vir em que sejas livre . Esperarei
-....E se eu morresse primeiro de tristeza?
- Seguir-te-ia eu.
- Assim seria, esposo da minha alma . Sei que
me amas. Tua voz e teu corao tem a mesma har-
m o n i ~ ; e eu tremo quando te escuto, porque as tuas
palavras espertam em mim sentimentos de fora,
valor e ternura.
Todas as noites, ao separarem-se, repetiam aquel-
las phrases incoherentes e adoraveis, balbuciavam as
palavras divinas que os beijos interrompiam. Todas
as noites, a ancia de se tornarem a vr lhes difficul-
tava a separalo, e prolongava essas tio perigosas
quanto querida.s entrevistas.
Ai I o amor attraia-se com as suas prop.rias de-
masias! A's vezes a estrella matutina ainda os en-
contrava juntos I O repontar do dia assustava Bar-
bara, que despedia a fugir atravez do jardim, subia
a tremer para o seu quarto, lanava-se cama, e
adormecia to profundamente que nlo ia missa
d'alva. A paixlo absorvia-lhe a f, at quelle
tempo tio candida I J nio sabia que dizer a Deus
desde que fallava, por largas horas, a um homem,
doido de amor da sua belleza, e encantado de se11
espirito e da nobreza do seu corao. Esta mudan
o;
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A JI'REIRA NO SUBTERRANEO 73
de habitos foi grande imprudencia. A mlte, impres-
ionada, intorrogou-a.
A filha attribuiu falta de saude a quebra nas
devoes. O mesmo foi inquietar-se a familia, e logo
Barba a entender que os cuidados com que ia ser des-
velada lhe seriam empecilhos s noitadas amorosas.
Ubryk, desde certo tempo, mostrava-se descon-
fiado da filha. Pela primeira vez, n'aquelle sarau em
que Barbara danou com Zolpki, conheceu que a fi-
lh herd.ra o seu caracter energico. Aterrou-o a ida.
da lucta. Nunca elle proferiu o nome de Ladislau,
nun a Iludiu brilhante sabida que elle dra
melind osa misso politica ; mas Ubryk, reparando
n'um certo rubor instantaneo, e subita pallidez, in-
feriu q11e ella nlto esquecra o cavalheiroso rapaz.
Nada disse a Barbara; mas invectivou d'esta arte
a mulher:
-Tu educas mal esta rapariga, deixando-lhe
nutrir no corao idas de independencia que mais
tarde nos dar Ao que soffrer. Oxal que no dispa-
rem em deshonra para ns ...
- Oh! -exclamou a me - pois tu desconheces
l ponto toa filha ?
- No sou cego ..
-Mas que tu pensas .
Tudo e nada. Uma walsa e um momento de
pales rs com esse Zolpki, que o co confunda .
- ...' um nobre coralo ...
- Tam bem tu I. . Parece-te que um heroe?
- Digo que . Nlo me compete averiguar se fi-
este bem ou mal em te submetteres ao governo
nsso, acceitando .empregos e medalhas. As polacas,
no passam de mulheres, divergem das opinii5es
. homens. Zolpki um bravo antagonista do op-
ssor. Conspira contra o czar, odeia-o, e toda a sua
a iar conspirando. Esta firmeza de proce_der
Dlgltized by Goog I e
A FREIRA NO SUBTERRANEO
espanta-me. Zolpki amado de toda a gente, con-
quistou a confiana d'um partido, e, se elle amasse
nossa filha ...
- Davas-lh'a I?-exclamou Ubryk.
-Immediatamente. Quem se immola por seu
paiz, saber. sacrificar-se sua familia e ventura
dos seus.
-Dizes sandices, e taes, que, se outro as ou ..
visse, bastaria isso a tornar-me suspeito. Creio que
sabes quantos perigos se envolvem n'esta palavra
8'11Bpeito
-Sei, e pde at ser que eu me abalanasse aos
perigos em vez de me estar gosando d'uma tranquil-
lidade que os nossos compatriotas nos fazem pagar
cara ..
-De sorte que tu animas tua filha em sua louca
paixo, se ests certa de que ella ama esse desati-
nado conspirador que ha-de acabar os dias na Si-
beria?
-Deus pae dos desgrados !
E como o marido fizesse um gesto de impacien-
cia, prosegui u:
-Perguntas-me se animo a paixo de minha fi-
lha? No. Pelo contrario, hei-de prohibir-lh'a. En-
lace no applaudido peleis paes funesto. Tran-
quillisa-te. Defenderei a paz e honra de minha fi-
lha; mas faltar-me-ha foras para amaldioai-a, s ~
o seu corao se obstinar.
-Bem ... j. sei a quem me hei-de atr. E, sem
mais delongas, interrogarei Barbara na tua pre-
sena.
-No o faas; peo-t'o em nome de Deus. Os
homens no tem bastante delicado o corao para
interrogar as filhas em taes casos.
-Sou pae.
-Pois sim ; 'mas s homem. Uma creana, em
o;
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A FREIRA NO SUBTERRANEO 75
vendo a ira nos teu olhos, no desdobrar deante
d'elles a sua alma. A minha ternura coiher mais
~ u e a tua severidade. O que tu queres saber, eu o
saberei. Mas peo-te que me deixes sondar o cora-
o da filha, a mim s. E' um direito meu. . e tu
sabes quanto eu, ordinariamente, uso pouco dos
meus direitos ...
-Seja assim, mas sem demora. Incommoda-me
a incerteza. Offerece-se-me excellente casamento
para a pequena. O conde Rastoi pediu-m'a.
-0 russo?
-Pois no somos ns todos habitantes da Polo-
nia russa?
- Nuncal-.-exclamou a condessa Ubryk.- Os
polacos no ratificam a usurpao, nem acceitam a
nova carta redigida pelo imperador. Nll.o digas tal,
se no queres que o corao se me parta de dr. O
~ u e fizemos foi deixar que o vgncedor absorvesse o
vencido, defendendo contra elle nossa f, nossa his-
toria, nossa lingua, e sobretudo nossa familia.
Quanto ao mais, socega, que que hoje mesmo te farei
a vontade.
O conde sahiu, deixando a mulher aterrada.
Bem suspeitav ella que seu marido no estava
de todo em todo illudido. Combinando pequenas coi-
sas conseguiria convencer-se. Se Ubryk tivesse dito
a v e ~ a d e ? Se Barbara amasse Ladislau? Se o en-
thusiasmo da menina houvesse esposado o patriotico
enthusiasmo do ardente polaco ? Tambem ella sen-
tia, como mulher, os poderosos encantos de Zolpki.
Comprehendia qual devia ser a influencia d'aquelle
cavalheirosQ moo, nobilitado por incessantes. arro-
jos, em um esprito varonil e ao mesmo te!DpO amo-
roso. Figurando-se no logar de Barbara, perguntava
a si mesma se, na mocidade, recusaria o amor de
Zolpki.
o;
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t
t
t
16 A li'RBIRA NO SUBTIIIRRANJ:O
Longo tempo se deteve encerrada, hesitando em
exercer poderes de mie sobre a filha que segredava
em si amor talvez forte bastante para lhe dar ener-
gia na lucta.
Depois, entrando na sua propria individualidade,
a condessa lembrou-se do muito que havia sido hu-
milhada pela situal.o do marido ; quanto ella, ar-
dente polaca, havia crado em presena dos seus
compatriotas que haviam rejeitado alliana com a
R u s s i a ~ e padeciam desterrados, roubados, mas nl.o
enfraquecidos na sagrada defeza da terra natal.
A condessa Ubryk virb. fenecerem-se lentamente
os seus mais bellos annos requeimados pela angus-
tia. A apostasia do marido fra-lhe o tormento de
cada hora. Acolhendo-se maternidade, ella devia.
a Barbara, seno o esquecimento, ao menos o torpor
de muitas magnas. Mas uma nova lucta comeava.
A ter de defender a filha, a mie revelaria coragem
sobrenatural.
Que tinha porm a ganhar com iBBo? Que faria
contra a vontade do marido? No s impugnava elle
que a filha amasse Zolpki, porque o moo lhe nlo
convinha para genro, mas ainda, e principalmente,
porque a sna politica se expunha. Se Ubryk con-
cedia a filha quelle fogoso defensor da liberdade
polaca, a Russia julgaria que elle se bandeava com
os perturbadores da ordem, e para logo as s u ~ i t a s
lhe andariam na espionagem. Entre suspeitar e ac-
cusar, a distancia curta. A situao que Ubryk al-
canra tinha-lhe sido bem penosa. Muitas vezes os
polacos incorrupto& o tinham accusado de dar o beijo
de Judas na face da Polonia atraioada. Se elle ti-
nha arriscado muito, cumpria-lhe guardar ao menos
os beneficias da trailo. Ubryk sacrificou sem ma-
gna a felicidade da mulher sua ambio, e pelo
msmo theor nlo duvidaria sacrificar a filha.
Dlgltized by Goog I e
:
A FREillA. NO SUBTERRA:MKO
Resolveu-se emfim a condessa. Pareceu-lhe cere-
monioso de mais chamar Barbara e ter com ella
uma explicao semelhante ao interrogatorio d'um
processo de famlia. Preferiu simplesmente subir ao
quarto da filha,
Barbara, ao ouvir o rumor da porta que se abria,
deu-se pressa em esconder o papel em que estava es-
crevendo. A condessa empallideceu ligeiramente; de-
pois, sentando-.se n'um soph, chamou a filha, a qual
pz ambas as mos no regao da mie, e esperou. A
condessa no sabia por onde comear. Pensativa, afa-
gava os cabellos doirados da filha, perplexa entre
perturbar aquelle corao infantil ou revoltar o co-
rao da mulher.
-Que tem, minha mile?-perguntou Barbara
docemente. ,
-Eu nada, filha.
-Nada 1-repetiu Barbara melancolicamente-
Olhe l se quer engabar a sua cara filha .. Eu bem
a vejo a sorrir nas salas; vejo-a coberta de brilhantes
que lhe invejam; mas vl-a chorar. . s Deus e eu I
-Tu!
-Eu I sim. E tenho pena que a le me nlo
faa sua confidente, e me diga : cConsola-me, que
eu soffro., E creia que eu havia de consolai-a, der-
ramando no seu corao todo o balsamo da minha
ternura, fazendo-me creana para lhe chamar o riso
aos labios e o COI\ tentamento ao esprito Meu pae
duro .. -disse Barbara, abaixando a voz.
-Minha filha I
-Oh! eu por mim rilo me queixo. Nunca lhe
ouvi palavras as per as. senlo uma vez; mas eu
conheo que a alma d'elle aspera Se a bran-
dura da mie nlo fosse tanta, os arrebatamentos d'elle
haviam de ser terrveis.
-Espero que tu nunca os mereas.
o;
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18 A li'RIURA NO IIUBTBRRANIW
Barbara oito respondeu.
-Em que meditas?- perguntou a mite.
-N'isto . Estava a pensar se foi a minha mite
que escolheu o marido.
-No, filha.
-L me pareceu .. Obrigaram-na
-Nunca tive que soffrer por isso.
-Isso a boa maneira de fallar a uma filha
A me quer que eu respeite meu pae, e por isso diz
que no teve pezar de ser soa mulher; pde ser, mas
custa-me tanto a A me, sendo to polaca, ha-de
por fora soffrer com a situao politic do pae.
-Era outra n'esse tempo.
-Pois sim ; mas por isso mesmo a desillusito e
a tristeza haviam de ser maiores.
-Resignei-me .. o dever das mulheres.
-Porqoe?-perguntou Barbara, fitando na mie
os seus grandes olhos.
-Porque o Evangelho nos ordena obediencia ao
marido, e a lei nos fora.
-Eu respeito o Evangelho e sigo a lei; mas, na
applicao d'estes dois codigos .. tenho duvjdas.
-Tui
-Tenho reflectido .muito.
-Reflecte, mas nlo raciocines.
-Porque no?
-Porque nos prohibido.
-Bem sei; mas nlo fao caso da prohibiito.
Quero obedecer a meu marido, quero amai-o muito,
seguil-o, ser a metade vivente, pensante e apaixo-
nada do esposo recebido perante o padre; mas quero
escolher esse marido que me ha-de dominar; quero
estimai-o, adorai-o antes de lhe sacrificar a vida. E
to pouco admitto o casamento de conveniencia como
o casamento de dinheiro.
-Que casamento queres tu?
o;
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A JI'REIRA NO SUBTERRANEO 79
O do amor.
Meu Deus ! meu Deus I -exclamou a condes-
sa, a filha ao coralto.
-A me deve comprehender isto .. O casa-
mento do amor .. a castidade da paixlto, a alegria
do dever, a escravido do esprito, e a egualdade da
razo, um esposo que nosso amante, um esposo
admirado de todos, que nos ama, que nos adora, e
que s de ns adorado!
-Ai, filha!
-Quer dizer que isto um sonho? Pois seja.
1\I s porque no havemos de continuai-o com a obsti-
nao do desejo I? A mim parece-me que, fora de
vont da, se vence o destino, e o que desejamos se
realisa por effeito d'uma lei de attraclto moral; eu
por im s me casarei por amor porque d'outra ma-
neira nunca acceitarei marido.
-Pobre creana! -murmurou a condessa.
- Nlto me lamente, approve.
- Quizera, mas nlto posso.
-Censura-me?
-A me nlto ousa dizer-te que tens razio.
Isso nito pde ser, permitta-me que lh'o diga,
no pde ser assim. O que eu penso. o que a
ll'.e pensa ou j pensou. Se fossem os ssinhas
qui, estava tudo decidido; mas ha um estorvo ..
-Um estorvo .
-Meu pae. . Sei que elle, fiel ao seu systema
impe1 tivo, ha-de querer impr-me casamento que
mere a a approvalto dos seus chefes e o suffragio do
partido russo. . . A me abaixa a cabea enten-
, -a. . nllo me responde nem eu quero que me res-
')nd ... -me dolorOI!IO expl-a. a mentir, a mim ou
elle . . Veio procurar-me ao meu quarto ; isto, .
imeira vista, parece simples. . mlte e filha teem
n pre necessidade de se vrem e confiarem insigni-
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A Jl\EillA NO SUBTERRANEO
ficancias, que so coisas grandes como tudo que per-
tence ao amor. . Entretanto, algum motivo aqui
trouxe minha me. nilo me engane. A maneira
como me abraou nilo era a do costume. . . O seu
lance d'olhos espreitava tudo o que est por aqui
Foi meu pae que a enviou. . Elle que quer? Que
eu me case? .. Adivinho que sim. Responda-lhe que
eu esperava o ensejo de lhe confessar o que vae no
meu corao e na minha intelligencia. . . J estou
vendo nos seus labios uma pergunta . Peo-lhe por
Deus que m'a no faa, porque me obriga a respon-
der-lhe... No lhe esconderei nada, porque a amo ..
A minha franqueza ser-lhe-ia penosa, quando a me
fallasse ao pae. . E' melhor que o no saiba.
-Desgraada creana 1-bradou a condessa.
-Feliz ! quer a me dizer. Muito feliz, porque
o sentimento que me enche o corailo d-me valor
para luctar com todo o mundo.
-Excepto contra mim.
-Oh I a me, essa ha-de estar sempre do meu
lado-exclamou Barbara, lanando-se-lhe nos braos.
E a me, abraando a filha com ardente carinho,
beijou-lhe a fronte e os cabellos; ao passo que Bar-
bara lhe agradeceu o abrao, to violentamente com-
movida, que a pobre mlle comprehendeu a profun-
deza do mal. Que dizer-lhe? Obter a completa con-
fissllo de Barbara era facilimo. Mas que fazer a esse
.segredo I ao marido? Exp r a filha s iras
homem que to mau havia sido para ella? A
reticencia de Barbara era bem mais habil e politica.
A mlle adivinhava; a esposa .. nllo era obrigada a
trahir. E mais tarde, qual viria a ser a sorte de
Barbara? Ninguem podia sabl-o. O que desde j
eumpria era salvai-a da situao presente; quanto
ao futuro, a Providencia .
-Que hei-de eu dizer a teu pae, a respeito de .
o;
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A li'RE!JlA. NO SUBTEI\RANEO 81
-Do casamento que elle me prope?
-Sim.
-A mie ainda me nl1o disse qu.em qu.e me
pretende.
-O conde Rastoi.
-Respondo simplesmente que nl1o casarei com
um russo. ,
-Deus queira que teu pae se d por satisfJito
essa resposta..
-Ha-de dar provisoriamente.
E nada mais disseram. Abraadas uma n' outra,
assim passaram a tarde.
O conde, vendo qu.e a mulher nl1o vinha, coo-
cluiu que as negocia&s se complicavam, e que era
a hora de pr a sua auctoridade na balana.
Su.biu; e, quando subitamente empu.rrou a portat
viu Barbara reclinada ao seio da mie e branda-
mente em balada por ella como se faz s creanas .
se lhes acalenta os vagidos. A condessa le-
vantou-se qu.ando ouviu o marido.
'Crispou ao beios de Ubryk uma pergunta ; mas
a esposa deu-lhe o brao e levou-o comsigo; e, como
-elle tivesse pressa de saber o acontecido, sahiu do
sem dizer nada filha. A anciedade da mie
e o silencio de Barbara dobraram a inquietao de
Ubryk. .
Quando porm se achou a ss com a condessa,
em vez de ouvir alguma coisa positiva, escutou phra-
ses anodynas, vagas promessas, fluctu.aes e diva-
gaes sem fim.
-Muito obrigado, sei tudo -disse elle sooea-
mente.
Sahiu, e s voltou hora do jantar.
Havia um certo embarao e desconfiana em toda.
a familia.
O conde jogou o xadrez com a filha, contrafez
I
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A ft\KIRA NO BUBTmlRANBO
alegria muito inversa das disposi&s de seu espri-
to; e, terminada a partida, disse que estava fatiga-
do e ia recolher-se.
Barbara deixou rapidamente a mie.
-Toca a rebate no campo-diBSe ella. -0 que
ir agora acontecer?
E entrou nos seus aposentos muito perturbada.
Como quer que fosse, os diversos rumores da.
casa extinguiram-se como sempre a pouco e pouco;
e ella esperava que o completo silencio lhe permit-
tisse sahir para ir ter com Zolpki.
Desceu as escadas com precauOOs infinitas, sal-
titou pelas aleas do jardim, e sumiu-se atraz dos
massios. .
Um momento depois, ouvia. o bater do coraloo
de Ladislau.
. -Como o teu seio pulsa I E' de jubilo? -disse
elle.
-Meu amado- respondeu ella. -O jubilo d()
presente nlo me esconde as tristezas do futuro ...
Aquelle anjo da minha mie propoz-me um marido
por ordem de meu pae. J sabes que recusei ..
Minha mie protege-nos. . . Primeiro, emquanto o si-
lencio fr possvel nlo diz nada; mas depois, defen-
de-nos. . Meu pae cruel e obstinado. Nlo me
ha-de perdoar nunca este amor.
-E que fars tu?
~ P e d i r e i a indulgencia do co, e continuarei a
amar-te.
-Ah I a minha linda corajosa I
-A t morte- ajuntou eHa.
-At morte! -repetiu Ladislau.
-Nio hlo-de esperar tanto tempol-disse um
voz oonva.lsiva de raiva.
E, ao mesmo tempo, o conde Ubryk assentou s1
o;
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j
~
'
'
A ll'li.BlRA NO SUBTEB.ll.A.NJCO 8S
bre o hombro de Zolpki a sua mio pesada, excla-
mando em voz cava:
-Corruptor de donzellas illustresl oovarde la-
drllo que entras no gremio das familias pela porta
falsa I a deshonra nunca denegriu mulher da minha
familia, e Barbara nlo ser tua viotima.
-Senhor conde-respondeu ZQlpki-estou em
sua casa, entrei aqui de noute como um Iadrlo, a
minha vida est s suas ordens. . Mas eu amo sua
filha extremosamente; e, receando ser repellido por
v. ex. , dirigi-me a ella, cuidando que assim conse-
guiria abrandar-lhe o coralo.
-Vou matar-te, que posso por direito fazl-o.
Barbara atirou-se de joelhos aos ps do pae, cla-
mando:
- Perdlo, perdlo I que eu amo-o I
-Ousa confessai-o?
- Confesso, proclamo-o, digo-lhe em alta voz
que o amo. Se meu pae o fere, o mesmo gelpe me
dar a morte I
A pallida menina quiz arrancar a pistola da mio
do pae; mas Ubryk repelliu-a tio brutalmente que
a fez cahir em cheio e desamparada no chio.
-Mate um homem- bradou Zolpki -mas nl'lo
mate essa creana I
Instantes depois, j Barbara se abraava s per-
nas do pae, e lhe dizia entre soluos estas P"lavras
maviosas:
-Piedade e perdlo para elle e para mim ..
Que pde fazer, meu pae, contra um amor tio for-
te? Nenhum de ns tem culpa. Se me separa d'elle
. . Mas esta fria crueldade nlo pde tl-a
l pae. . Nlo me condemne, nlo, meu pae? ..
be que eu a sua unica :filha. nlo me re-
lse assim . . meu pae I ...
-Cala-te 1-bradou o conde.
Dlgltized by Goog I e
r .. ~ ~ _ . ~
I -Barbara. -disse Ladislau- os teus rogoa alo
i inuteis ... Estou condemnado . No exacerbes a
irritao de teu pae.
. O conde apontou a pistola fronte do moo.
; Sabes que vaes morrer?
-Sei.
- Nllo te queres defender?
-Contra o pae de Barbara, nunca.
-Eu que o defendo I -exclamou ella..
- Sacrilega ! -bradou o pae.
-Zolpki, eu nllo quero que morras l-repetiu
ella -abandona-me antes; que a minha vida se per-
ca. . Sacrifico a ti o meu proprio amor. . Vive
para o teu paiz, para a tua cara Polonia, para to-
dos os que tu amparas com a esperana! Meu pae,
se eu desistir de o amar, no o mata?
-No.
-Bem .. no o amarei ..
-Nem o vers mais?
-Nunca mais.
-Antes quero a morte-interveio Zolpki-que
ouvir-te dizer que me nllo amas.
-Adeus! adeus! -clamou ella- No tenho a
IJ&crificar-te aenlo a minha futura felicidade.. . Essa
te dou ...
-Escuta, Barbara-disse o conde-a minha
vontade immutavel. . A'manh entrars no con-
vento .
. -Entrarei, meu pae.
-Ser eterno careere em expiao de tua culpa.
-Acceito.
-Considerar-me-has um executor da justia fa-
miliar.
-Agradeo-lhe a vida de Ladislau.
- Sia I-: ;lisse Ubryk a Zolpki-salvou-o a
obediencia d'ella.
o;
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A IJ'lU!:lRA NO SUBTII:RRANJ:O 85
-Ah I Barbara! -tu nunca me tiveste amor!...
-exclamou o moo.
A infeliz saltou-lhe aos braos, d'onde o pae a
arrancou de repell&o., lanando Zolpki fra do jar-
dim.
Quando voltou, Barbara, rgida e inanimada, es-
tava cabida em terra.
Ubryk tomou-a nos braos e levou-a camara
da mie.
-Aqui est como educaste tua filha-disse elle
-encontrei esta amorosa' no jardim, em galante en-
trevista com Zolpki. A'manU leval-a-hei ao con-
vento das carmelitas.
-Oh I ta nlo praticars semelhante crueldade I
-exclamou a mie.
-A'manhl-repetiu o conde.
No dia immediato a nova da entrada no Car-
melo da formosa Barbara nlo era a anica de que a
sociedade se preoccapava. Ao mesmo tempo era preso
em sua casa, sem processo algum, o joven patriota
Zolpki e conduzido ninguem sabia onde; talvez en-
carcerado n'algama fortaleza.
o;
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VI
Morta e viva
Chegou o dia da profisslto religiosa de Barbara.
E ell& no seu cenobio, contemplava com infinita
amargura o vestido branco da ceremonia. Uma aps
outra, 'examinou a saia de seda com flacidos refgos,
a cora de fl.res de larangeira e o vo de fil q ~
devia cobrir-lhe o rosto. No cuidou ella de vestir
aquelles trajos em ditosos dias? Quantas vezes, em
frente do seu espelho, no palacio de Ubryk, frizan-
do as tranas d'oiro, ella dissera entre si que seria
vaidosamente ditosa no dia em que cingisse na fron-
te o diadema nupcial! Mas, n'aquelle tempo, antolha-
va-se-lhe que a vista magica de Zolpki a banharia
de la.zentiBBima ternura, emqa.anto uma grata impa-
ciencia lhe faria parecer longa a hora de desfolhar
entre seus dedos aquella cora. Figurra-se-lhe ro-
agar no pavimento marmoreo da egreja a sua cauda
de set,im, emquanto famlia e amigos, commovidos da
sua ventura, a viam perpassar, e faziam votos p e ~
dlU'alo de sua felicidade, Era certo que parentes e
o;
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88 A Fl!.EIRA NO SUBTJillRANBO
amigos a esperavam j na egreja; j flres e cirios
e:x:ornavam o altar, e as galas da noivll. estavam
promptas; mas a noiva esperava Christo, e as vestes
do noivado iam ser trocadas pela mortalha.
Barbara havia jurado de entrar no convento:
cumprira. A vida de Zolpki valia bem o holocaust<>
da sua vida toda. Mas o absoluto silencio de homem
to amado perturbava-lhe s vezes o animo. Barba-
ra no podia deixar do sentir que elle to depressa
se resignasse a perdl-a I Ainda assim, nenhum quei-
xume murmuraram seus labios nem no corao a ma-
goa do-resentimento; porm, uma vaga impresso de
desencantamento a impelliu mais facilmente a cur-
var-se regra claustral.
No dia seguinte ao da sinistra acena no jardim,
o proprio conde levou a filha s carmelitas. No con-
sentiu que a me a acompanhasse, e declarou que a
condessa s no palratorio a veria. ?
Ssinha e com stoica valentia supportou Barbara
a primeira provallo. Invocando em seu soccorro a
fora moral, o seu amor, no esmoreceu nem hesitou.
O adeus que disse ao pae foi glacial: era, desde
aquelle momento, um homem morto para ella; matt
soffreu horrivelmente por nilo poder abraar a me.
A esperana de a vr no locutorio no lhe era consola-
o. Ella sabia que uma freira escondida atraz d'uma
cortina assistiria. s suas conferencias; tambem sabia
que as grades cerradas e espessas lhe nlo deixariam
sequer apertar a mo de sua mie. Oh I aquella e x ~
piao d'amor era uma bem completa oondemnal&
de morte I A ida de martyrio tamanho soft'rido pel&
homem da sua alma era-lhe amparo. A gloria d&
moo lhe seria galardlo do sacrificio; e a Polonia
lhe deveria a ella o seu heroe e talvez o seu liber-
tador.
O primeiro anno de noviciado passou-o Barbara
o;
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A li'RIIRA NO SUBTBRRANICO 89
como um sonho tormentoso. Nlo tendo sido levada
ao claustro pela vocao, obedecia pelo dever com
aquella pontualidade que empregam nas coisas mi-
nmas as pessoas incapazes de descerem a pedirdes-
culpa.
As postulantes slo nos conventos tratadas com
especiaes cuidados, que se tornam mais ntimos e
meigos quando ellas p88Sam a novias. Ha entlo
empenho em attrahil-as carinhosamente a De11s, tra-
_tal-as com privilegiado amor, e persuadir-lhes que
ellas sll.o objecto d'uma preferencia di.vina.
A boa mestra de novias deve fazer quanto em
si couber por persuadir s meninas q11e dirije que
a vocall.o o seu impulso. Quer ellas hajam entrado
no convento porque a pobreza as privou de marido,
quer entrassem victima d'uma pai:xll.o impossvel,
pouco importa. Concl11ido o anno de noviciado, o
ponto est em fazei-as caminhar ao holocausto com
-a alma enternecida, deslumbrada e fascinada.
Facil coisa dominar a imaginall.o d'uma no-
via. Bastam a. oommovela. a poesia e
magestade do culto catbolico; depois a religio sua-
visa-se-lhe, rodeando-a de poderosos attractivos; uma
ea.ndida vaidade, certas porfias piedosas, prefigu-
ram-lhe nas perspectivas do co um throno a con-
quistar. .
cQuando os anjos rebeldes cahiram, ficou vago
o logar d' elles, esperando homens, mulheres e vir-
gens, que victoriosos do mundo e do peeewlo haviam
de ganhai-os oom vida casta, mortificada e pobre.
E' o que diz a. mestra de novic;as. Respiga nos
padres os trechos admiraveis que laureiam a
virgindade ; touca as donzellas de lrios do co, di-
-zendo-lhes que ho-de ir no seguimento do espose
celestial: c As virgens seguem o Cordeiro por onde
-41uer que elle vae. A novia rodeada, premida,
o;
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J. 111\ElllJ. NO SUBTERRANBO
envolvida em tudo que possa abafar-lhe a reaclo
da vontade. Tiram-lhe a individualidade. Perfu-
mam-na com as vapora5es do incenso. Enfraqu&-
cem-na com os jejuns para lhe exaltarem o esprito,
aturdem-na de poesia, cujo lyrismo se desata em
paixes divinas, marasmam-lhe os sentidos, eluci-
dam-lhe a vista da alma, bafejam-lhe ao coralo as
delicias de extasia, de modo que, findo o anno da
prova, todo levado em seduces msticas, a novia
vae de bom grado immolar-se; Efigenia christl, sub-
mette o collo ao cutello; e,. mais altiva que a filha
de Jepht, nlo deplora a sua virgindade no cimo da
montanha. O jubilo de entregar a Deus o corpo sem
macula liga-se a uma hombridade modesta. E mais
tarde ver com piedade, senlo com desprezo, as mu-
lheres que seguiram as leis ordinarias da vida.
Barbara foi menos flexivel mestra de novias
do Carmelo. O seu silencio e observancia glacial das
regras, impressionou notavelmente soror S. Xavier.
N'aquella novia adivinhava-se, sem vr-se, um co-
ralo empedernido. A mestra, tentando obter a con-
fiana da nova pensionaria, interrogou& muitas v&-
zes. Barbara respondia que a sua consciencia estava
em paz, e que smente o seu confessor podia ler-lhe
na alma. Mas, se o CQDfessor a interrogava, Barbara
encerrava-se n'esta frmula:
cNenhum peccado me d remorsos, aooeitei pas-
sar a minha vida entre as carmelitas.
Queriam-na porm mais confiada, mais expansi-
va; e houveram de contentar-se, reconhecendo que
Barbara observava admiravelmente a regra, mos-
trando-se agraciada com as companheiras, respeitosa
com as superioras, e paciente em tndo que entendia
com os lavores da casa. Desvelaram-se durante se-
manas em fatigai-a com rudes trabalhos : ella cum-
priu-os sem queixar-se, nlo tio serena quanto se diz
o;
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91 A FlUlllU. NO SUBTERIUN"IO
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da predestinao das santas, mas com um absoluto
desprendimento de si propria. Foi afinal foroso co-
nhecer que Barbara era exemplar.
E todavia era menos amada que as outras. Nlo
se prestava a intimidades. Havia n'ellafriezainacces-
sivel s confidencias das outras.
A vida claustral, aquelle regular mecanismo de
exiatencia, iam-na vencendo sem que ella dsse ten-
to. Ao vestirem-lhe o habito, entendeu que a amor-
talhavam: deixou-se vestir. Nlo lhe chegava nova
alguma do mundo, nenhum ecoo lhe repetia o nome
de Zolpki. Debruou-se sobre um abysmo moral, e
fez quanto pde por se engolfar. A revolta interna
acalmou-se. Acceitou o martyrio que era a continua-
lo d'outro. E chegou a esperar remoto contenta-
mento, vendo que a maior parte das suas compa-
nheiras eram felizes.
A mestra de novias deu Jogo tino d'esta mudana.
A graa actua sobre esta menina-disse ella
prelada.- Havemos de fazei-a vaso de eleilo.
A prelada sorriu duvidosa.
Findou o anno. Barbara devia professar. Esta
ida j Dilo a espavoria. Tantas vezes lhe diziam
que logo que se entregasse a Deus se havia de sentir
mudada--como Paulo fulminado na estrada de Da-
masco, a ponto de volver-se discpulo quem tinha
sido perseguidor de Christo. -- que ella chegou a an-
ciar a hora em que morresse a si e ao mundo.
A memoria de Zolpki ainda lhe vivia na alma,
semelhana d'uma viso celeste divisada por entre
as neblinas d'um sonho ... E doce lhe era o sonhar,
que mais tarde e mais no alto havia de encontrai-o,
. para o amar sem pavor nem pejo no eterno amor do
co.
Muitas vezes sua mile tentra, mas debalde,
abrandar o conde de Ubryk.
o;
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92 A li'RI:IRA NO SUBTI:RRANJ:O
c Hei-de perdoar-lhe no dia da profi.sslo -di-
zia elle.
Quanto quella terna mie, perdoada jA ella tinha
ha muito a imprudencia da filha.
Chegado o dia solemne, a condessa Ubryk en-
viou os ornatos de noiva s carmelitas. Pediu para
ajudar a vestir sua filha, mas nlo o obteve.
Soror S. Xavier, com duas bellas novias, entra-
ram na cella de Barbara emquanto ella tristemente
contemplava aquelle vestido.
- V amos l-disse a soror- O orgllo j toca e
os thuribulos queimam o ibcenso. Nunca tamanho
concurso de eis e estranhos se viu em nosso mos-
teiro. Trate de vestir-se, minha filha, que o divino
esposo a espera.
Despiram-lhe o pesado vestido de burel, e logo
a mulher, em todo o esplendor da belleza, radiou
n'aquelle pobre cenobio. A seu pezar a formosa es-
tremeceu como se tivesse saudades da sua b e l l ~ a .
Nunca mais aquelles braos de jaspe, aq uelles admi-
ra veis cabellos seriam vistos por olhos humanos: a
noite e a morte iam tragar tio divinos primores
Quando se viu no espelho; receiou perder o alento..
A propria mestra de novias, espantada de fr-
mas to perfeitas, murmur,ou esta phrase d,o eantico
-dos canticos :
cO' minha bem amada, tio bella que tu s, e
tilo sem macula I .
-Como este vestido te vae bem !-disse uma
novia, chamada Santa Angela - Pareces-te tanto
com as Madonas de Italia I
- Deixa-me cingir esta cora nos teus lindos ca-
bellos - 11juntou a morena soror das Cinco Chagas
com jubilo infantil.- Ah I que feliz tu s em profea
Ar. . . A mim fazem-me esperar, e ha tanto tempo
que suspiro pelo esposo amad,o .
o;
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A. li'RBII\A. NO SUBTERUNBO 93
As duas meninas Santa Angela e Cinco Chagas
empregavam encantadora garridice no cuidado de ves-
tir a companheira. Uma, alma ardente, innocente e
exaltada, imaginava-se a gosar os ex-
tasia de Thereza de A vila; a outra; meiga e triste,
passava orla do altar infinitas horas absorvida no
sentimento da presena do seu Deus. Pombas amo-
rosas, volitavam ao Tabor', e pensaTam no santissi-
mo deleite da transfignrallo.
Barbara sabia que tinha de subir a encosta do
seu Golgotha. '
Era helio vl-a com o vo ondeante sob a cora
das e envolta nas magestosas dobras do alvia-
simo vestido.
Todas as pompas mundanas haviam entrado no
convento, porque aquelle dia era festa do co, e ea-
pectaculo curioso para a terra.
Estava cheio o templo. No arco do altar mr
via-se um genuflexorio de velludo, sobre o qual a
profitente ajoelhou. Quando ella appareceu, fez-se
um rumor de piedade e assombro. No seu rosto sem-
pre a mesma expressllo fria; porm, quando viu a
mlle, resvalaram-lhe no rosto duas lagrimas, que en-
xugou com o vo.
Principiou a missa, bem rapida para a profiten-
te. Era chegado o momento supremo: o terror pa-
recia suffocal-a.
Subiu o padre ao pulpito, exaltando a ventura
da novia eleita para as bodas de Jesus, apontando-
lhe no co a cora e palma que a esperavam; e, ao
mesmo tempo que os assistentes compadecidos pe-
diam a Deus a felicidade da professa, Barbara sen-
tia-se fallir de coragem.
Chegou emfim o momento fatal. A mestra de no-
vias approximou-se da profitente ; as duas postu-
lantes ladearam-na, e a prelada sahiu frente, le-
Dlgltized by Goog I e
A J.PRBillA. NO SUJITmlRANJIO
vando na mlo uma grande tesoura. Santa Angela
tirou-lhe o vo e a cora de flres. A prelada des-
atou-lhe os cabellos por sobre as espaduas: dir-se-ia
entlo que um manto d'oiro fluctuante, fluido, admi-
ravel, envolvia a virgem.
Um grito estridente estrugiu d'entre a multido:
era a condessa Ubryk que desmaiava.
Aquellas peregrinas tranas, aquellas rutilantes
espiraes que outr'ora com tanto amor alindava, per-
fumando-as, tranando-as, estrellando-as de flres e
perolas, iam ser cortadas sem piedade I
O gemido de sua mite angustiou tio profunda-
mente Barbara, que se voltou de subito sobre o seu
genuflexorio, e durante minutos mostrou a face
multido. Oh I como foi triste vl-a colher dos la-
bios humidos de lagrimas nas pontas dos dedos tr-
mulos um beijo que enviou mie I
Mas. mau foi que ella assim provasse que nllo
estava inteiramente morta para as coisas d'este mun-
do, porque a madre Xavier lhe disse em tom repre-
hensivo:
-Em que est a pensar?
Barbara curvou o collo, e a tesoura ringiu-lhe
no cabello. Um momento depois, aquella onda
loura jazia em terra ennovellada e morta.
E, quando as tranas cahiram Cinco Chagas poz ..
lhe na cabea um vo negro, e encaminhou-a sa-
cristia.
A infeliz D1o pensava : ia inerte, deixava-se le-
var.
Despiram-lhe o vestido de noiva, vestiram-lhe o
habito do carmo, sem que ella fizesse algum movi-
mento que lhe no fosse ordenado. Vestida. de car-
melita, olhou para si, e no se conheceu. Mu era
beDJ ella I pallida, anjo de infortunio, com o duplo
encanto da desgraa l
o;
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A IIRBJRA. NO BUBTDRANEO 95
-Como ella ditosa!-dizia soror Santa An-
gela -Tambem eu hei-de assim estar, semi-morta
de santos deliquios no dia da minha profisslo ...
-E eu por mim- murmurou soror Cinco Cha-
gas - cantarei o Nunc dimitt com o transporte daa
esposas escolhidas.
-Vinde!- disse a mestra das novias, dando
a milo a Barbara.
As duas novias, vendo que ella caminhava a
custo, abraaram-na pelos hombros, e assim a leva-
ram, esmaecida, mas formosa d'aquella morbidez.
Entrou no templo.
A' volta d'ella as freiras regougavam soturna-
mente.
N' esta ceremonia o mini mo enthusiasmo esmo
receu.
Levaram a professa ao centro da egreja; manda-
ram-na ajoelhar n'uma alcatifa, e prostrar-se.
Barbara abaixou-se, collou a face s lages, cru-
zou os braos, immovel, aspecto de
Cobriram-na de crepe funeral.
E o canto de-profund revoou no templo, su-
blime e terribilissimo I
Barbara tiritou debaixo do crepe. Parecia-lhe
que cada palavra d'aquelle plangente cantar lhe pre-
gava o caixo que ia descer as profundezas sem fim.
Desde este instante perdeu a oonsoiencia de si.
Fez-se parte n'aquella corporalo austera e despoti-
ca. No lhe rastava impulso mnimo de vontade pro-
pria. Esqueceram-lhe as horas durante as quaes ella
anhelra aquelle morrer. Sentiu tentaOOs de er-
'"'""r-se, _sacudir a mortalha, e gritar:
-Estou viva I estes responsos funebres nlo slo
Mas que escandalo nlo seria este desespero ! Que
para sua mie I Que colara para o pae l E
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A. l'llBIJlA. NO 8UBTERlUNE9
Zolpki? Zolpki decerto pagaria com a vida a covar-
dia de Barbara, que teve um dia o orgnlhoso pensa-
mento de o salvar !
E oahiu, como expirante, no momento em que
acabou o ultimo versculo.
Ergueram-na.
A ultima palavra do seu destino estava dita.
Levaram-na ao locutorio.
Esperavam-na a condessa e o conde de Ubryk.
A mile abraou-a desfdita em lagrimas;
O conde disse-lhe em voz baixa:
-Ests perdoada.
E ella nem se inclinou nem respondeu a taes
palavras: ficou de glo para o perdo; mas apertou
ao seio a mile com vehemencia da snprema ternura.
A prelada cortou estas expanes; porque, ao
:fim d'um quarto d'hora, a freira devia deixar a fami-
lia, e ir tomar posse do seu cubicule.
Estamos em um recinto quadrado, de tabique,
com janella para um pateo, e com o unico horisonte
de um alto muro. Um leito de bancos cobe1to oom
uma manta, uma cruz, uma banquinha e algumas
vasilhas de barro : eram o adorno da cella. Tudo
ahi era frio de trespassar. Havia mais um craneo, e
uma imagem de Santa Barbara com uma espada na
ml.o e a torre na outra grudada no tabique. A vista
nlto aphava alli nada consolativo. Era tudo assella-
do de soffrimento rigido, sem compensalto nem al-
livio. Era ahi o reduzir-se hora a hora a p o corpo
-em martyrio vagaroso, em lenta consunipllo.
-Filhal-disse a madre S. Xavier-a porta
de uma cella a entrada do co.
-Basta que seja a entrada da sepultura - dis-
$Barbara.
-Esta phrase destoou nos ouvidos da freira;
mas, reflectindo, cuidou que a julg.ra erradamente.
o;
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A J'B.EIRA NO. SUBTEB.RANEO 97
Talvez quizesse dizer que pela sepultura se entrava
no caminho do co.
-Deixo-vos com o Salvador -tornou a mestra
-os grandes jubilos querem-se saboreados em si-
lencio.
Barbara inclinou a. cabea sem responder.
A porta fechou-se surdamente.
A nova estava emfim s6sinha.
'Relanou um olliar espavorido gelida ta.rima,
achegou-se janella gradeada como a dos carceres,
circumvagou por tudo a vista n'uma especie de mu-
da desesperalo; depois, de repente, em extasia da
sua indole apaixonada, cahiu de tomou o
crucifixo entre as mos, e collou os labios nos ps
trespassados de cravos.
-Consola-me, Senhor!- balbuciou elia-que
me sinto desfallecer; ama-me, que a minha sde de
amor inextinguvel. Dizem-me que d'ora vante
s meu esposo, meu confidente e pae. . Remune-
ra-me de tudo que perdi : a me que me chora, e o
amado que eu invoco. Jesus, cede-me Jesus! No
vim aqui espontaneamente . . atiraram-me ao teu
altar como se atira ao aougue a ovelhina boa para
a degollalo . . Eu amava um homem, amava-o
quanto se p6de amar. . . Toda a minha alma lhe
dei .. meu peito ardia bafejado pelo seu halito. Sou
ainda pura; e, ainda assim, a minha virgindade j
nlo como a de minhas innocentes irms. Acolhe-
me, absorve-me, engolfa-me no abysmo das tuas
ternuras, na chaga aberta do teu coralo.
Eu quizera ser uma digna carmelita, e cumprir por
dever o que os outros cumprem por vocao ....
N'este mundo tenho-te s6 a ti, Jesus! e no outro
sers tu tambem. Sou a tua serva, a tua filha. Faz
de mim a tua Attrahe-me ao santuario das
tuas delicias . Que os divinos extasis do teu amor
'l
Dlgltized by Goog I e
98 A FREIRA NO
deslumbrem at a lembrana de outros amores tran-
sitorios.
Barbara calou-se suffocada pelos soluos.
O chorar deu-lhe allivio. Quando desceu ao refei-
tol'o, parecia socegada.
Deram-lhe legumes cosidos sem sal: nlto os to-
cou. Dispensaram-na. N'aquelle dia era Barbara a
predilecta. da casa. ter sido causa
de vir ao templo tanta gente com to ricas esmolas.
Se alguma nuvem escurecia o esprito da freira, era
cdo para reprehendel-a.
Barbara cantou em ero; depois, tornando cei-
la, adormeceu alquebrada pelas commoes do dia.
No dia seguinte sentiu-se algum tanto consolada,
pensando que o seu destino estava decidido. Era,
pois, tudo acabado. Nem j esperar lhe era permit-
tido. A serenidade succede sempre a uma certeza,
boa ou m.
A anciedade a maxima das torturas. Se elimi-
nassem a prisll'.o preventiva e o tribunal, a pena de
morte seria quasi nada : no aterraria o paciente.
nem os carrascos, nem os juizes.
Portanto esforou-se Barbara em sujeitar-se .
sua vida, achando-a supportavel.
No havia fugir-lhe: tanto montava acceital-a
como rejeitai-a. Esperou a visita do divino esposo;
e no emtanto curou de trnquillisar-se e esmaltar a
vida de mil vises occultas. Ao lr a Legenda dott
santos exaltavam-se-lhe as esperanas. Quando est-
va ssinha no seu cenobio, almejava a visita do se-
raphim que devia trespassar-lhe o corao com a sua
frecha ardente, e chamava o esposo que devia dar-
lhe o annel que Santa Catharina de Sena recebra
do Salvador; e espiritava as foras do cerebro e os
nervos do corpo n'aquelles radiosos enlevos que
transfiguram o semblante e vaporisam a,alma.
o;
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;rized by Goog I e
A. li'RERA. NO SUBTERRA.NEO
99
Muitas vezes, depois das noites passadas sobre o
grabato do seu leito, despertava com o corpo mace-
rado, todavia, sorrindo. E' que sonhra que um anjo
a tomava nos braos, emitallo dos cherabins nas
assumpes da Virgem. E aquelle anjo tinha uma
vaga semelhana com Zolpki.-Estranha analogia
que ella nllo podia comprehender.
A belleza de Barbara tinha o que quer que fosse
estranhamente novo.
A prelada e a mestra de novias contemplaram-
na um dia, e a primeira perguntou :
-Que faremos d'esta menina?
-Uma contemplativa, decerto -respondeu a
madre S. Xavier.
-Pois sim, uma crucificada ou esposa do cor-
deiro.
-Crucificada .. mas ella tllo bella I
-Veremos-disse a prelada meditando.-At
hoje nllo pude formar ida bastante exacta do seu
caracter; e apesar da sua sagacidade, parece-me,
minha irml, que nllo est ainda bem segura da di-
recllo que devemos dar a esta joven santa.
- Nlo seria melhor que ella escolhesse?
-A prova tem perigos.
-Mas dicisiva... Quando Barbara souber o q u ~
slo as noites da Penitenciaria, entlo ser occasilo
de introduzil-a no jardim daB delicitu.
-Pensa bem. E no emtanto-ajuntou soror Xa-
vier-continuarei a purificai-a na devoo.
-Quanto podr .. soror das Cinco Chagas pa-
rece-me que voeja nas alturas do co, como casta
--omba.
-E' preciso reprimir-lhe o zlo.
-E Santa Angela? .
-Passiva, um tanto fraca, crendeira, e facil de
'"elar-ae eomo cra.
o;
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A llllEIIU NO SUBTEllRANEO
-Nas suas prticas com Barbara, mostre-lhe a
entrada do cenaculo como elevada recompensa. Faa
que ella deseje ardentemente a inicialo dos nossos
. uns dolorosos, outros gozosos, passan-
do dos mais crueis aos mais suaves. . . Cite-lhe pas-
sagens escandecidas dos santos padres, que encare-
cem a castidade e a paciencia, principalmente S. Je-
ronymo; d-lhe a lr o Cant&co de Salomlo: pre-
ciso que esta alma em tormentas de nlo sei que tem-
pestade se nos entregue sem reserva alguma. E'
preciso. .
Soror Xavier sorriu-se, fez a reverencia, e sahiu.
A prelada era mulher de cincoenta annos, refeita
e robusta, apesar do regmen da vida carmelitana.
:Parece que os estatutos nlo enfraqueciam aquella vi-
gorosa natureza. Testa estreita, bca grande e sen-
sual, nariz dilatado, barba carnuda, eram fei<ies
que davam sua physionomia um complexo de tra-
os lascivos corrigidos pela unclo dos olhos e bran-
dura da voz. Se esta mulher vivesse na sociedade,
haveria muito quem dissesse ao vl-a:
-Que paix<ies nlo iro alli, e que tempestades
nlo ter desencadeado aquella mulher I
Todavia, como ella era freira, os juizos eram ou-
tros, assim exprimidos :
-Que appetites e que sdes voluptuosas ella nlo
ter vencido antes de chegar quelle abatimento I
Sujeitaram pois Barbara, sem que ella o suspei-
tasse, a um regmen moral e religioso. Prepararam-na
para a vislo e para a vida contemplativa. Prestou-se
innocentemente quella educa!o monastica, compra-
zendo-se no marasmo e enervamento das suas noites.
e no perdimento, durante os trabalhos do dia, da
lembranas do mundo.
Era-lhe prohibido vr a role. A porta que se f,
chra nunca mais se abriria. Como lhe disseram q
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A. ll'llEllU NO SUBTERRANEO 101
nlo tinha perspectiva senlo a do co, forcejava por
alcanai-a. Jejuava, orava, trabalhava, cantava no
cro, observava perpetuo silencio, e deixava ascen-
der a sua alma como ave solta para. alm do espao
e do tempo. Suspirando por vr ainda Zolpki na eter-
nidade, ceifava palmas de martyr e santa. A prelada
louvava-lhe o fervor, e as companheiras amavam-na.
Cinco Chagas e Santa Angela invejavam-lhe a dita
de ser tio favorecida da graa da prelada e da mes-
tra das novias. Mau grado seu, Barbara, bem que
nlo fosse orgulhosa, deixavase brandamente emba-
lar d'estas lisonjas. E quanto a lisonjas, nlo as ha
abi mais idoneas para seduzir almas tenras, que exa-
gerar-lhes as perfeil5es, e crl-as dignas do amor
d'um rei, e das nupcias d'um Deus.
Promettiam a Barbara como galardllo do seu fer-
vor admittil-a na primeira assembla de penitencia.
Para isto era-lhe mister edificar grandemente a com-
munidade, aferiorando-se mais. .Esta inicialo era
retardada at se confirmarem as virtudes das recen-
tes profeBBas; e sobretudo havia n'isto o proposito de
lhes sondar as disposies e obter a certeza de que
ellas se nlo recusariam celebrao dos sagrados
mysterios, os quaes, no dizer da prelada, indicavam
a verdadeira predestinao das carmelitas.
o;
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VII
O recinto da penitencia
E' noite.
Uma lampadazinha alumia froixamente o corre-
dor do convento das carmelitas.
O som d'uma sineta, funebre como a toada da
eampainha que tange no viatico, tilintava a espaos
e lentamente. Vo-se abrindo as cellas das freiras
uma aps outra. Algumas perguntam em tom afllicto
o que vae acontecer. As professas novas tentam em
vlo que as velhas religiosas lh'o digam. Grande nu-
mero d'ellas caminha ao longo do dormitorio, com
aspecto de mdo. As duas novias Santa Angela e
Cinco Chagas vlto pressurosas, procurando Barbara,
q_ue as espera transida do espanto causado por umas
palavras ouvidas na vespera .. Nlto pde recusar-se
quella reunio; mas segue-as com visivel repugnan-
cia. . .
E a sineta vae tangendo sempre .
Uma a uma, seguind aquella melodia da noite
e da angustia, semelhante ao Angelus pelo som ar ...
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~ I
104 A li'REIRA. NO SUBTERRANEO
gentino, e ao dobre a finados pelo lugubre das no-
tas, as freiras descem as escaleiras de granito. Reina
ainda escurido quasi absoluta. A prelada desenven-
cilha uma chave da cintura, abre uma porta de dois
batentes, e as monjas penetram n'um vasto recinto.
A meia-trev que ahi se condensa nlo deixa desde
logo entrever o local onde estio.
So enormes as dimens()es d'aquella quadra;. D
a lembrar um salito de tribunal. Ao vflr a variedade
de exquisitos objectos que ahi se amontoam, lembra
se aquillo ser um dos horrendos subterraneos que a
inquisilo decorava de instrumentos de tortura. Com
a dift'erena, qtie a inquisio agarrava da victima
para acorrentai-a ao potro, e alli -phenomeno in-
comprehensivel r-a victima supplicava aos ~ ! g o z e s
que a iniciassem nos mysterios da :O.agellalo.
As paredes negras no recebiam o menor reflexo
da lampada pendente ao meio. S de longe a lobge
uma faisca argentina reverberava em malhas de ferro
d'um camiza semelhante cota dos cvalleiros, ou
as puas das sandalias de ferro tremeluziam scintilla-
l}es.
As religiosas entoaram o plangente psalmo do
Mi1erere.
Esta poesia vibrante de gritos de angustia, coo-
clamada na escuridlo por mulheres prostradas, com
os braos em cruz e o rosto no pavimento, era hor-
rvel de ouvir-se I
A intervallos, a voz da prelada sobrelevava a
das freiras : era quando o poema de David tinha pa
lavras mais analogas situao.
-Asperge-me com o hyssope para que eu f1UJ pu-
rifique.
E as freiras respondiam :
-Asperge-me, e eu serei ma branca do fJUf
Jlet1e,
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A. li'RBIRA. NO SUBTERRA.NEO 105
Concluida. a psalmodia, a prelada ergueu-se.
Com os labios crispantes, a fronte lvida de py-
thonisa, soft'reando a voz scca e soturna, fallou as-
sim ao rebanho curvado a seus ps :
-E' chegada a hora do sacrificio sanguinolento
como o do Calvario.. . O Senhor no quer hecatom-
bas de cordeiros e de novilhas: quer que suas filhas
se lhe sacrifiquem at .ao sangue . . . Vs no sois es-
posas d'um Deus de gloria, mas do Christo agoni-
sante no Calvario. A' luz celestial, radiada de vossas
chagas voluntarias, que sereis reconhecidas no dia
final ! Concentrae toda a vossa f, espertae toda a
vossa coragem, meditae na constancia das martyres
bellas, novas e delicadas como vs. Quem no quer
aguentar sua cruz indigna de mim, diz o Senhor.
O' Virgens, salpicae de sangue vossas palmas e ar-
nezes. Invocae o martyrio como um favor, implorae
fora para soffrer dres excruciantes, a :fim de vos
tonardes mais dignas dos amplexos do esposo. . . De
sobre as runas do corpo que a alma se levanta es-
plendorosa. Odiae a carne para adquirir immortal re-
compensa. A sexta-feira anniversario da morte de ,
Jesus; morrei tambem, ou ao menos roae nos labios
o calix d'amargura. Estendei as mos aos craves, as
espaduas . cruz, deixae escorrer sangue por ps e
. braos; e, santamente crueis convosco, alentae-vos,
fortalecei-vos para uma nobre porfia. Quem me dra
vr-vos a disputar as lacinantes dres do DeliS do
Golgotha, e com as mos abertas para mim a implo-
rai-as . O' . vs, que conheceis as amargas delicias
da mortificao I Vs que conheceis a paga que Deus
vos d, e cujos deliquios vos egualam s santas, vin-
de exclamar com Santa Thereza: So.ffrer ou morrer/
Vinde repetir como S. Joo da Cruz : Eu fui recal-
deado no amor, como em fragoa. Vinde I ardei I sof-
freil morrei! se quereis ganhar o direito de reviver.
._.,
-'; \
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106
A Jl'aEIBA NO SUBTEalUNEO
A prelada fez uma. breve pausa.
As freiras erga.eram-se vagarosamente.
Algumas, acocoradas, ficaram com as m!tos cru-
zadas sobre o peito; outras, pendendo a fronte, pu-
nham as mitos supplicantes, e as mais ardentes esti-
ravam os braos para a prioreza.
Barbara escutou aquillo tudo estupefacta.
Cinco Chagas sorria em extasis, e Santa Angela
tremia de impaciencia, e8tendendo as alvas mitos
para a prelada, que proseguiu :
- :Meditae nas agonias do Christo no jardim das
Oliveiras ... Elle, em resgate do mundo, o:fferecia-se
como victima, e com tudo, tamanho para .a humani-
dade o preconceito da dr physica, que bradou : Meu
pae! afasta de mim ute ealix! E f rindo-se no peito
recebia a paixlto inexoravel como um decreto da jus-
tia divina No calculeis sobre a vossa fragilida-
de. . Eu soa. forte n'aquelle que me fortalece, diz
S. Paulo. Cada uma de vs peccou : fira-se cada uma
no proprio seio. As que se persuadem possuir ainda
a innocencia baptismal expiem os crimes do mundo
que se condemna a esta hora em que ns soffremos .
Mea culptl I Mea culpa I
E ento uma religiosa saltou para o meio da sa-
la, pegou da pedra suspensa na correia de couro e
deu com ella tlo fortemente no peito que soluou
um rouco gemido. Mas este grito de dr, longe de
aterrar a companheira, pareceu reanimai-a de tlto vi-
va inveja, que cahiu por terra, extenuada de so:ffri-
mento, espumando sangue.
E para logo irromperam todas n'um brado de
mea culpa homicida ; porm a voz da prelada domi-
nou os gP.midos das pacientes, clamando assim:
-Quem dir as agonias do 8alvador na noite
antecedente sua morte? Vdel-o errante de tribu-
nal para tribunal ? Aqui, vestido com tunica de hia-
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A li'RJIIRA NO SUBTBBRANBO 107
trilo; alli, esbofeteado por um soldado; por toda a
parte ludibrio de apupos, de escarneos e desprezos!
Eil-o chega a casa de Pilatos, do covarde, que o acha
innocente, e sacrifica-o, nlo ao urrar do povo, mas
o mdo dos romanos, de quem depende I Este ho-
mem est innocente, diz elle; e comtudo consente
que o flagellem. Vde-o, arrastado pela soldadesca,
chusma de algozes alli feitos de improviso. Vde-o
sem defeza e silencioso, emquanto as vestes lhes slo
esfarpadas por miseraveis que o maneatam coluro-
na dos aoutes. Eil-o, o homem das dres I Que si-
nistros verg(les esculpem os lategos n'aquellas carnes
virginaesl Quem contou o numero de aoutes que
verberaram o filho de Deus I A'quelle espectaculo 08
anjos cobrem o rosto, e a terra sorve convulsa o
sangue innocente do cordeiro immaculado . Eis
aqui o vosso pretorio ... Minhas filhas, a columna
est erguida. . . o supplicio espera-vos. Quem ama
bastante o Salvador para aquinhoar com elle o mais
sensvel dos seus tormentos? Quem vem maneatar-
se ao poste? Quem quer ser flagellada por amor a
Jesus?
Cinco Chagas sahiu frente com o rosto bri-
lhante de enthusasmo.
Blandina, a martyr lionza, devia ter aquella
casta formosura quando a prenderam columna,
em redor da qual tigres e le<5es chegaram a lamber-
lhe as plantas.
A mestra das novias, rapida como o pensamen-
to, introduziu as mlos de Cinco Chagas na golilha
de ferro chumbada na columna.
lmmediatamente uma freira descintou o seu ha-
ito e o deixou resvalar pelas espaduas. Eil-a in-
3iramente despida.
Cinco Chagas expediu um brado de pudor.
-As disciplinas, as varas, 08 tagantes de coiro,
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i08 4 li'RMBA NO SUBTBRRANBO
tudo que quizerdes ... Antes quero todos os marty-
rios que vr-me na.
-Filha-respondeu a prels.da-ainda nllo compre-
hendes o Christo I Lembra-te que Jesus, Deus da
castidade, foi exposto n deante da vil gentalha.
Feito certo signal, uma freira velha lanou mio
d'uma disciplina, e comeou a aoitar o corpo de
Cingo Chagas. Cada golpe ia progredindo em fora.
A menina estorcia-se, confrangida pela dr; gritava
por Deus; soluava escabujando; s vezes parecia
desmaiar, mas, de repente, ella mesma pedia que
lhe exacerbassem a tortura.
Quando o brao da velha fraquejou, a victima
recostou-se desfallecida columna. O habito cobria-
lhe os ps. As costas, cortadas de rOxos,
reumavam orvalhos de sangue.
- O meu vestido.! o meu ;vestido!- exclamou ella.
A prioreza pz-lhe na cabea uma corOa de
junoo com vo negro, e deixou-a assim.
Cinco Chagas chorava suffocada.
A dr da freira n!o impressionava as monjas
que j haviam passado por semelhantes proval5es. Ao
avesso da minima piedade, era horrvel vl-as a
despirem-se, e a proverem-se de disciplinas que ti-
nham nas extremidades balas de chumbo. Algumas
acolchetavam no alto dos braos ns braceletes de
lhama de ferro, com umas puas por dentro que en-
travam pelas carnes; outras, cingiam cintura um
cinto da mesma natureza, da largura d'uma mio, e
d'este modo estavam immoveis, orando. Ao-
gela, vendo que uma das suas companheiras calava
umas sandalias de ferro, tirou umas da parede.
calou-as, e ligou as pernas com as correias. Ao le
vantar-se, esteve para cahir. As solas dos ps san
gravam-lhe feridas nos cravos, de que as sandaliu
estavam eriadas.
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A FREIRA NO SUBTERRANEO 109
A voz da prelada sobrelevou s surdas lastimas
arrancadas pelo soffrimento, da seguinte frma :
Humilhae-vos ! Sde, como diz !saias, nlo en-
tes humanos mas vermes. Tomae sobre os bom-
broa fl.agellados a cruz do Salvador dos homens; e
como elle cahi sobre o pso esmagador. Que os vos-
sos debeis braos se cancem a sustentar o instru-
mento das torturas; nito importa, ide at ao fim da
vossa. paixo. Exaltem-vos as proprias dres ; lagri-
mas e sangue, tudo vos ser contado.
Uma das fl.agelladas acurvou-se, ergueu do chio
uma 'cruz de pau de pezo de oitenta kilogrammas,
levantou-se com muito custo, cahiu, ergueu-se outra
vez, sustendo-se difficultosamente ; e, arqueando-se
e gemebunda, arrastou-se at meio do recinto. Ahi
cahiu livida, extenuada., e ficou, meio-prostrada, so-
bre a cruz, buscando ainda com os braos cingil-a,
at que perdeu a consciencia. da vida.
Assim como os fanaticos indianos e os aissauas
se excitam mutuamente com o espectaculo de seus
so:ffrimentos, e aporfiam no requinte da. crueza, por
egual theor as religiosas encerradas na casa. peniten-
ciaria embriagavam-se contagiosamente no padecer.
As novas chamavam a si as velhas, investidas no
cargo de atormentar, e pediam aoutes, disciplinas,
coras de espinhos, espartilhos de ferro. Possessas
d'aquelle delrio, soluavam ao mesmo tempo que a
psa.ltnodi do Miserere cobria com a toada os cla-
mores das penitenciadas : era uma. vertigem, a de-
meneia sem nome, a hysteria sanguinaria. Aquelles
corpos tenros, alvos e :B.accidos atiravam-se ao mar-
tyrio mais sedento do que o fazem as amantes aos
braos que as acariciam.
A final distinguia-se claramente o conjuncto d'esta
scena : Cinco Chagas, na, amarrada columna ;
Santa Angela, esvada sob o pezo da cruz ; o maior
o,
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t10 A li'UIRA NO SUBTliiRRANlliO
numero meio vestidas, a.outando-se com disciplinas,
ou com uma das pedras suspensas no tecto.
Por fim, a voz da prela.da revoou de novo :
-Ao ca.lvario! ao calvario 1 as crucificadas se-
rio as queridas do crucificado I Quem sobe ao pati-
bulo? quem vae imitar o senhor do Golgotha? quem
arde em sdes do calix de fel para se embriagar de-
pois com as ineffaveis delicias que o esposo reserva
s suas amantes? Ao cal vario I
Santa Angela levantou-se como galvanisada, so-
bre os ps esgarados pelos picos das sandalias, e
avanou cambaleando at ao angulo mais escuro da
sala.
~ o b r e a parede negra via-se uma enorme cruz ; .
a prumo e lateralmente havia golilhas de ferro des-
tinadas a suspender o tronco e os braos. Na base
da cruz resaltava uma taboa sobre que a crucificada
havia de apoiar os ps.
- Minha filha, tu s a pomba dilecta de Jesus I
-disse a prioreza . pallida penitente.
Amparou-a, ajudou-lhe a pr os ps sobre a pran-
cheta, ageitou o apparelho das golilhas, e, instantes
depois, o corpo da formosa moa mostrava-se intei-
ro, sobresahindo por sua alvura cr negra da pa-
rede.
Instantaneamente conclamaram todas :
-Milagre I milagre I
Santa Angela j no se contornava sobre um
fundo escuro; um foco suavemente luminoso a au-
reolava d'uns alvores matutinos, mosqueados de raios
cr de rosa, resplendor maravilhoso como o do
diluculo, s definvel com as palavras escriptas nas
vidas dos santos, sempre que ahi se referem extasia
de bemaventura.dos, deliquios e arrebatamentos para
alm-mundo. Vistes as telas de Murillo e a NoitfJ
de Corregio ? Comprehendereis o effeito produzido
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A FREIRA NO SUBTERRANEO
por aquella claridade magica e subita. O corpo n
da juvenil religiosa parecia cercado de nimbo celes-
tjal. Com a fronte um pouco pendida e os joelhos
tanto ou quanto curvos, Santa Angela ficou immo-
vel.
Nada mais para assombro e dr que o
culo d'aquella mulher crucificada I O enthusiasmo
das monjas redobrou vista do prodgio. Era ento
o pedirem todas a cruz, todas a implorarem tortu-
ras, para parti c i parem da gloria de Santa Angela,
porque santamente a invejavam. Que doloroso lance
de olhos lhe fixa v a a Cinco Chagas !
A prelada andava por entre os grupos, acirrando
o zlo das froixas e alentando o fervor das zelo-
sas. . . A loucura da cruz allucinava todas vertigi-
nosamente, exceptuada uma.
A prioreza ; e, a pala-
vra, perguntou: .
-E tu, Barbara, nlto fars nada por Deus?
- Por Deus dei eu a minha vida clausura.
- Nilo humilhars teu orgulho imitando tuas ir-
mils?
-Receio deshonestar a minha castidade- res-
pondeu Barbara.
-Fizeste voto de penitencia- contrariou a pre-
lada.
- A vida aqui j de si longa penitencia, nossa
madre.
- comtigo; tive-te em conta de vaso
de eleio, julguei-te vencida por Christo, crucificada
por amor d'elle, e digna dos seus celestiaes abraos.
-Quero sahir d'aqui-disse Barbara com uma
: soturna.- a vista do sangue .. des-
.io com este enjoativo cheiro .
-Conserva-te, para que o exemplo te anime.
-Eu despresaria a dr se no houvesse n'ella a
o;
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112 A FllElRA NO SUBTJmRANIIO
impureza. . A nudez de minhas irmlts faz-me sof-
frer.
-S Deus as v -murmurou a prelada.
N'este momento, Barbara inteiriou os braos tio
rigidamente como se fossem de pedra, e apontou
para a parede que defrontava com a crucificada.
Um postiguinho se abrira n'aquelle momento.
E Barbara
1
_ apontando-o, exclamava:
- Alli I alJ.i r
E cahiu sem sentidos no sobrado.
o;
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VIII
As nupcias celestiaes
De repente, fez-se profunda escuridlo no recinto.
As freiras apanharam s apalpadellas os vestidos dis-
persos. Algumas gemiam, e bastantes nlo tinham
fora que as levantasse.
Santa Angela desmaira na cruz. Tres religio-
&as foram entlo desapertai-a destramente das goli-
lhas que a acorrentavam ao madeiro. Cahiu-lhes
inerte nos braos o corpo da meninA. Uma tomou-a
pelos hombros, outra pelos ps, emquanto a terceira,
procurando na parede certa mola, abriu uma porti-
nha que dava para um estreito recinto cavado na es-
pessura da parede.
As duas freiras velhas pozeram o corpo sobre um
leito formado de muitas almofadas juxtapostas, de-
pois humedeceram :finoslenoes de cambraia em agua
aromatisada d'um vaso que alli estava sobre uma
banquinha.
Estes objectos precisos ao enterramento da cru-
cificada estavam. preparados, porque j sabiam que
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UI A ll'llBIRA 1!10 SUBTmlllAI!IIIO
pelo menos uma das freiras novas levaria at
quelle extremo de demencia a prova da sua de-
voo.
Santa Angela permanecia immovel, com as pal-
pebras cerradas e o corpo hirto sobre almadraque&
de damasco escarlate. Parecia realmente morta. Ao
lavarem-lhe o peregrino corpo, cingiram-lhe na ca-
bea uma cora de rosas. .
As duas monjas contemplavam-na, quando por
entre os labios lhe ciciava um suspiro sibilante.
Depois sumiram-se por uina avenida que se fe-
chou logo tio hermeticamente que os mais perspica-
zes olhos nlo vingariam descobril-a, passados mo-
mentos.
Dissemos que Santa Angela estava deitada sobre
um fl.accido coxim. Em frente d'este havia outro,
coberto de velludo preto, sobre o tp:tal se estendia
uma imagem de Christo descido da cruz. E ~ a ma-
ravilhosa aquella esculptura I
N'esta funebre camara nlo se via o crucifixo re-
tezado, anguloso, atormentado como o do locutorio.
Este que acompanhava Santa Angela em seu retiro
era em verdade o mais gentil dos filhos dos ho-
menu. A cabea, esplendidamente bella, attrahia
com ineft'avel expresslo de ternura. Brilhavam-lhe
os olhos por entre as longas e sedosas pestanas; pa-
recia chamar com os labios; as azas do nariz como
que arquejavam; coroavam-lhe a fronte louros cabei-
los, semelhantes barba um tanto frizada. Braos
admiraveis cabidos ao longo do corpo com flexibili-
dade de vivos. As mll.os encarnadas nas palmas pare-
ciam cheias de ptalas de flores vermelhas, e nlo
manchadas de sangue na cisura dos cravos. Pernas
nervosas e ps de irreprebensivel delicadeza. Nlo era
estatua de homem, senlo d'um deus, quanto podem
artistas realisar um. typo sobrenatural; mas esta di-
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A 11'1\EillA NO SUBTEB.RANEO
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vindacle' seductora parecia vagamente maliciada de
idolatria pagan. Era Jesus morto ou Apollo ferido?
Aquelle admiravel corpo nlo e:xalava o pensamento.
E, se idas carnaes assaltassem o esprito contem-
plativo, com toda a certeza devera pensar-se que,
se um prodgio animasse tal estatua., qualquer vir-
gem se daria por contente de tal esposo.
A legenda de Voragine, a Vida dos santos de
Godescar, superabundam em milagres d'aquella na-
tureza. Umas vezes o caminheiro que pede agasB.'I"
lho, se transfigura de manhl na belleza de Jesus;
outras vezes uma formosa rainha, que levava em
braos um menino doente, o v transformar-se em
imagem do crucificado. O que j succedeu pde sue-
ceder de novo; ou, pelo menos, facil comprehender
que as freiras moas, afeitas aos contos de
taes visionices, milagres e se illudam
facilmente. Deram-lhes uma particular educalo de
que cdo ou tarde elo infalliveis as consequenoias.
A novia que vive em esperanas de gosar um dia
os amplexos do esposo divino, est sempre a ponto
de acceitar o prodgio em cada noite, porque as noi-
tes encerram favores mysteriosos, e de noite que
as ha-de visitar o amantissimo noivo. Sob qualquer
frma que lhe apparea, adoral-o-ha, em arrobos de
celestial prazer, e ao romper da aurora lhe estar
dando pranto de reconhecimento infindo. Os dias
passa-os a merecer preferenoias do Salvador ; as noi-
tes, a esperar signaes d'essa distinc!l.o. Se o corpo
soffre, o esprito reaccende-se-lbe. Elanguescem-na
dulcissimamente os perfumes do ar que respira.
Murmura palavras estranhas, cheias de blandcias
mysteriosas. Diz a Jesus o que amantes n!l.o ousam
dizer aos amados. Presta-se-lhe a lngua flexvel a
toda a variedade de express<>es 'amorosas. Est!l.o-lbe
continuas nos labios as palavras: extasia, deliq,uios,
o;
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;r;zed by Goog I e
tt.6 A J'R'KIBA NO BUBTJIRRANIIO
arroboe, prazeres divinos, esvaimentos, infaa<Jes an-
gelicas, exulta(les. Chama o amado, oft'e-
rece-se-lhe, d-se-lhe langoroaa. Sem saber como,
sente-se a .m tempo exaltada na phantasia e noe
sentidos. Arde, ama, arfa de mysteriosos desejos,
volateis como as auras, discretos como um sonho.
tio aby.tmados nas profundezas innocentes do sea
espirito, que julga sentir e:ffi.avioa de graa quando
o coralo lhe palpita mais forte e a respiralo mais
apressada. Bem sabe ella que perigos aft'ronta.
N'aquelle vago aspirar condemnalo, cr ganhar
o co. Crava os olhos no Christo sem sobresaltos
nem remorsos, sem mesmo- attentar na nudeza da
imagem resplendente. L& a relalo doa milagree,
que nlo aprofunda, e todavia lhe conturbam o in-
timo seio. Por exemplo, se folheia a vida de S. Ber-
nardo, ver que este mavioso servo de Maria, orna-
mentando o seu cubiculo com uma imagem da Vir-
gem Mie, nlo podia desfitar os olhos d'ella. Aquella
dce imagem o mantinha devoto e ajoelhado, es-
cravo submisso. Mas elle nl'i.o fixava tio smente a
vista no semblante da filha de Jud : o que mais
alli o enlevava e lhe incutia pios ciumes era vr o
formoso seio de Maria, tumido a um tempo de puro
leite e de virgindade. Aqaellas roseas carnes sem
macula tentavam-no como um fructo. E entlo ex-
clamava elle, fallando ao innocente Jesus, cujos la-
bios se collavam no peito de alabastro, emquanto
com as ml'i.osinhas lh'o acariciava maciamente.
-Que eu nlo esteja em vosso logar, divinal
menino! Porque nlo ha-de uma bocca sedenta ool-
lar-se tambem ao alvo collo que se d aos teu-
beijos?
. E um dia (l vem contado o caso na Vida do
santo) a Virgem, depondo no cho a creana, e a
rega!&ndo amplamente o seu manto de purpu1
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.L ll'llBIRA NO SUBTJ:BRANZO lt'l
permittiu que Bernardo se dessedentsse na taa
onde a creana hauria a vida.
Nlo ha commentos para semelhante parvoice 1
Sirva-nos ella unicamente como justificalo do pa
recer que temos cerca dos ensinamentos especiaes
que recebe uma freira : o que fazem nortear-lhe
os sentidos para outro porto, e prometterem-lhe de
procedencia celeste sensaes privilegiadamente ter-
reaes. Quanto mais a queimam desejos, mais ella
julga que Deus a chama vida contemplativa. E
acontece logo que as macera<Jes a deleitam, cuidando
que conquista a preferencia custa de torturas.
Immola-ee; mas espera ser recompensada. E' uma
virgem que arde em desejos de perder misticamente
a sua virgin4a,de. Nilo se acham perdidos os
n'ella: deslocados, sim. O clarilo do relampago tal-
vez lhe mostrasse a natureza em toda a sua ver-
dade, e entilo aconteceria que ella, antes de se v6r
cabida, nlo soubesse perceber como se fez a transi-
lo invencvel d'um sentimento para outro.
Santa Angela era um modelo consummado da
freira juvenil, ardente, amorosa, bella, bria do
amor divino, que ultrapassa o ideal. Para ser cor-
respondida em tal ternura, vimos que nenhuma dr
a retinha, sem exceptnar os tormentos da cruz.
Eil-a pois immovel sempre, eburnea como ases-
culpturas, com o marfim de suas carnes resaltando
do fundo escarlate dos estofos. Bruxoleava apenas
na camara uma luz pallida, caoulas aromaticas va-
poravam lentamente, e uma neblina de fragrante
fumo condensava um vo diafano.
O Christo, immovel tambm, estirava-se sobre o
almadraque negro.
No seio da menina arfavam suspiros.
Entreabriram-se-lhe as palpebras, expediu um
grito e fechou os olhos. O que ella divisra figa.-
o;
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118 .A. nKDU NO SUIITDlUNIIO
rou-se-lhe vislo, attribuindo a deliquio o appareci
mento d'aquella imagem.
O Salvador, em cqja paixlo dolorosa ella tinha
parte, chamou-a para o seu tumulo, dando-lhe tam-
bem parte n'elle: de sorte que, corrido algum tem
po, resuacitariAm juntos.
-Senhor I Senhor I-balbuciou ella.
E entlo, voz aeria, como murmnrio de brisa,
ciciou-lhe ao ouvido:
- Nlo s d'este mundo, querida I N'esta noite
de martyrio e gloria, aer-te-blo revelados os segre-.
doa do paraizo . , Vaes compartir nas ineffaveia deli
oiaa que eu liberaliso aos que me amam. o vir-
gem discreta! A tua lampada esU cheia d' oleo,
ftin
Santa Angela levantou-se; mas, tomacla de in-
definivel torpr, cahiu, exclamando:
-Leva-me, Jesus! leva-me I
-Esquece o mundo. . Cerra oe teus olhos car-
naes, abre oa da alma, deixa a casa de teu pae, en-
tra no jardim do rei, e nas adegas mysterioaas onde
te embriagar4s com o vinho de Engaddhi. En-
trega-te a esse divino quebranto que toda ~ e elan
guece. . Despenha-te cegamente no abyamo do
amor. Transp& montes e valles em busca do
amado, e cuida em o attrahir a ti com as mais sua-
ves palavras da tua prece.
E Santa Angela respondeu:
-Que helio s, meu querido I Que helio s
O meu amado desceu a colher lirioa do meu jar-
dim. Sou sua I
E a voz serapbica replicou :
-Teu seio maia alvo que os cordeirinhos, e o
teu perfume recende ao sinamomo. Que formosa
s, querida I Que formosa s. . . D-me um beijo
d tua boooa..
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Ut
Auras de estio perfumadas, e o ardor da braza
viva, eram a dupla impresslo que Santa Angela
sentia. Coava-lhe nas veias estranho fogo, era um
sentir qoasi doloroso, e todavia ella alongou os bei ..
os feilo do beijo .
E a voz continuou :
-Tu s a minha pomba, prendeste-me o cora-
lo n'um s lance d'olhos, com um s de teus ca-
bellos. . A toa bocca favo que distilla mel .
Mel e leite adoam tua lingua... E's um jardim
fechado, uma fonte defeza.
Santa Aogela balbuciou :
- Darmo, e meu corallo vela. Elaogueo de
amor. .
N'este lance, o bafejo que roou a face da ooda-
tica, foi por tanta maneira afogueado, que ella cui-
dou sentir uns labios nos seus.
E ao mesmo tempo os perfumes dos vazos de-
ram todos os aromas, a luz da lampada empallide-
ceu mais, e figurou-se freira que o Christo morto
ae levantava do seu leito mortoario . .
de todo, e aquella voz, mais cariciosa, accreacen.
too:
- E's semelhante palmeira na estatura ; e eu.
subirei palmeira a colher-lhe dos fructos. . O
teu pescoo semelhante a um cacho de uvas ...
A aza d'um anjo no seio arquejante da
e::datica? Santa Angela murmurou um gemido deli-
cioso de celestiaes volupias. .
E disse com voz expirante estas palavras :
-A soa mio esquerda est debaixo da minha
cabea, e com a direita tne abraa.
E, depois, ouviu-se este dizer :
- Minha querida, minha tio amada, eu colhi o
favo com o seu mel e colhi a myrrha oom os seus
olores.
o;
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'120 A II'UIRA. NO SUBTBlllU.Nm
E, logo maneira de eooo, um gemido prolon-
gado, e estas palavras:
-O meu amado como um raminho de myrrha,
.. e entre os meus dois seios o ter.
Depois, silencio, silencio de sopitamento, de mye
teriosa embriaguez ..
Passaram minutos e horas. A claridade fez-se a
-pouco e pouco na camara sagrada, cujo ambiente es-
tava nubloso de perfumes.
A imagem do Salvador, immovel sobre o cochim
negro, ssinha no retiro.
Santa Angela sahira, e como que despertra, ex-
tenuada na sua cella.
Languor estranho a alquebrava. Soffria, abafava,
Dito se reconhecia, palpava-se nos braos, percorria
-a fronte para certificar-se de que era viva. A existen-
cia normal parecia-lhe sonho : tantas e tio novas
sensa<Jes a exagitavam, desde que voltra a si.
Lembrava-se... Na casa penitenciaria, onde, louca
da loucura da cruz, se deixra ir, depz a alma ge-
nerosa, deu-se como Christo aos algozes, e, . como
elle, cahiu extenuada ;- depois, sentira-se transportada
ao co em navens de incenso, e ouvira a voz do
amado, e com elle dialogra as phrases sensualmente
amorosas do Cantico doa c:antico., escriptas pelo
mais apaixonado rei sob os olhos da Sulamita E ex-
perimentra a ebriedade do extasie quando a vida se
lhe escoava em tio violentas delicias, que todo o seu
ser lhe parecia engolfar.se por abysmos sem fim I
E assim fra decerto : primeiro o martyrio,
.pois as nupcias com o Cordeiro.
E entito, arraiada no palor da face pelas illumi-
Da<Jes dos recordados prazeres, dizia:
- Vem, querido, vem I. ..
Santa Angela nito sabia que hora era. la vestir
o habito, quando a porta se abriu subtilmente.
o;
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A J'llBIRA NO 8UBTB111\ANBO t2t
A prelada entrou, e, contemplando penetrante-
mente a freira, disae:
- Dispenso-te hoje do cro, e dou-te uma com-
panhia que te distraia.
Esta companheira era Barbara.
Tio radioso estava o semblante de Santa Angela,.
quanto quebrado e sombrio o da sua amiga.
As duas carmelitas approximaram-se.
Os olhos de Barbara inundaram-se de lagrimas.
-Pobre martyr!-disse ella- pobre martyr!
-Lamentas-me! ?-acudiu Santa Angela.
-Se te lamento! Ah! que horrivel demencia hon-
tem se apossou d'estas mulheres! Nunca poderei es-
quecer o que vi . nem jmais tornarei a vr ...
- Cega 1 cega I -disse Santa Angela, sorrindo.
-O que tu soffreste I
-No. . Dilo. Ests muito enganada com e
que dr physica. . Hontem, ao comear a tortura,
confesso que me entravam nas carnes agulhas de fo-
go . os nervos no podiam . . . senti.,me desfalle-
cer. . mas, se o miseravel corpo enfraquecia, o ea-
pirito venceu . Minha alma levantou-se logo como
ae tivesse immensas azas. Superei o corpo. a
ponto de j no sentir as mordeduras da :ftagellao ..
Quando me deitei na cruz, todo o meu eentir era am-
bio do co. Parecia-me vl-o abrir-se, e que o
Salvador me dizia: Irs hoje commigo ao paraizo.
Santa Angela, cuja voz se elevra gradualmente,
disse em ar de segredo:
-E o Christo me prometteu que
-Que ...
E cumpriu o que promettera- murmurou a
freira, purpurejando-ee como a noiva no eeu primeiro
dia de esposa. .
Barbara, que no podia tolerar a ida do soffri-
mento physico, achegou-se mais da amiga e disse-lhe.:
o;
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i_u ___________ __amBA ____
- Conta-me tudo.
-Nilo sei se deva . A Escriptura diz: cA bel-
leza da filha do rei toda intima. . e nlto deve re-
velar-se o segredo do rei Mas, se eu fallei, mi-
nha irml querida, para te convencer de quo a pe-
Ditencia, que recusaste, encerra prazeres infindos
- Qae prazeres? . -perguntou Barbara.
-Recorda-te dos dons sobrenaturaes concedidos
aos santos; os lumes da visito beatifica, as delicias do
os arrebatamentos d'amor de S. Francisco
Xavier, que, abrazeado em inextinguvel fogo, ex-
-clamava : -c Basta, Senhor, basta ! Lembra-te dos
-esvaimentos amorosos de Santa Thereza . Olha
tudo eu senti. . tudo
-Tu? .
-Eu, sim! Onde estive?. . Levaram-me .. nlo
.eei como era, talvez, um anjo que me envolveu
nas suas azas, e me levou a Deus. . Nilo o vi com
os olhos, nem meus ouvidos o ouviram. . O cora.
lo humano nilo pde imaginar o que o Salvador d
quelles que o amam ...
- Nilo te percebo. . Quando te levaram da sa-
la, sabes onde foste?
-Para aqui, decerto .
Barbara acenou negativamente.
- Entlo para onde?- tornou a extatica.
-Que sei eu I. Desde hontem noite que me
sinto trespassada d'um pesadelo horrvel. . Ests
.ahi fallando em transportes divinos, e eu penso que
assisti a uma scena do inferno. Dizes que os anjos te
levaram para longe da vida material, e eu, n'isso de
anjos, o que vi foi uma bengal de demonios. . Fal-
Jas em Caneico doa canlicoB
1
e o que eu tenho na lem-
brana a toada plangente dos psalmos de David .
Eu ensandeo, juro-te que ensandeo, se torno a vr
semelhantes quadros. Aooeito o convento na glaoiU
o;
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.A. ftBIRA NO SUBTBRR.A.Nao , lU
regularidade do seu viver. . curvo-me regra, nlo
q,uebrantarei os votos, isto e a isto farei . nlo po-
dem exigir mais de mim.
-Pois nlo queres merecer a e:ff11slo da graa?
-Falia-me da tua vislo, minha mytica duloi ..
:Sima, virgem di8Cl'eta, cuja lampada desborda de
olorentes oleos, conta-me tudo, mdo ...
-Quando despertei vi-me deitada sobre ama
cama, cercavam-me perfumes, nuvens de incenso que
q,uebravam a luz do co O Christo estava de-
fronte de mim .
-O Christo? 1-exclamou Barbara.
-Tal qual a gente o v8 quando as santas mulheres o
:aepultaram, belloelivido. Reconheceu-me, faltou-me
-Que sonho J que chi mera 1
Fallou-me, repito, e sua voz entrou-me n'alma
-como celestial harmonia. Depois, una goos. deaco-
. nhecidos me deram tremaras; a braza de lzaias eal-
cinava-me os labios; um esvaecimento me elangue.
cia todas as fibras ...
Barbara, ao recordar o primeiro beijo de Zolpki,
estremeceu.
-E depois? . -perguntou ella, reflexiva e con-
-centrada.
-Depois? sentia-me tio languidamente abatida,
como se me estivessem amollecendo as mloa dos an-
jos, n'aquelles dulciesitnos contactos que as virgens
devem sentir ao ascenderem para Deua, caricias di-
vinas, merc& de alto amor, que eu toda ancias me
:ia ao encontro d'ellas para as saborear melhor ..
Algumas vezes, abafava-me o excesso da delioia e
t-miam-me na garganta uns gritos inarticalados .
Ldando de natureza, as minhas seD88CSe& reyefa..
n-me deleites novos; e, alfim, um longo estreme-
me agitou, o rapto arrebatou-me, e oh 1. . . que
fallecimento I .
. o;
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1U A J'RBJIU. NO 8UBTEBIUNBO
-E depois?-perguntou Barbara.
-Depo1s, despertei aqui, com saudades da miW.
vislo que se esvaiu, e anciosa por que se abra outr
vez a sala da penitencia por onde vamos ao jardim
das delicias. Ah I Barbara, minha amiga, minha
irml, se tu podsses sondar o mysterio que esta noite
me foi revelado, nlo recusarias acceitar as passagei-
ras drea que pagam por certo semelhantes gosos.
-Ainda nito percebi o enigma- murmurou Bar-
~ ~ .
- Qual enigma?
-O que me embrulha a tua narrativa.
-Pois oito foi ella tito simples e admi88ivel?
- Escuta -disse Barbara, erguendo-se e tomande
nas suas as mlosinhas de Santa Angela- a tua alma
pura e a tua confiana infantil. Estimo-te e quero-te
por tua santa ignorancia, ainda que ella te bysme ..
Tu, n'este instante, desvairas, certamente . Esta-
vas fPbril quando pensavas sentir jubilos celeatia.e&,
ou entito
Barbara conteve-se, murmurando:
-Oh I . . . seria horrvel! .
-O qu?- perguntou Santa. Angela.
- Nlo terias animo que te fizesse descer ao fun--
do negro do que eu penso . Hei-de ir ssinha onde
est a ultima palavra do mysterio.
- Por onde eu fui .
-Deus sabe por onde eu irei.
E sahiu da cella, instantes depois.
- Eu Dito sonhei 1- dizia ella entre si no caminhe
do cro- s eu talvez possuoosegredodoqueae pa.saa-
va oh I se possuo 1. Eu bem vi . Mas Dito irei ferir
a q u ~ l l a pobre alma .. o que farei acautelar-me
E accrescentou, ao transpr o limiar do cro :
- E meu pae a receiar que a deshonra lhe en
tr&88e em casa, mediante as innocentes entrevista&
com Zolpki ..
o;
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IX
O aprisco do Se:Qhor
Desde aquelle dia, Barbara foi espionada cuida-
dosamente. Com toda a certeza, aquella mulher indi-
vidualisava-se de estranho modo : cumpria estudai-a
a preceito. No convento, a religiosa que se nlo doei-
lisa, tanto . regra escripta, como interpretalo que
lhe d a prelada, logo malsinada e suspeita. A su-
prema palavra da vida monastica, o maximo da per-
feilo, o esquecer-se de si em Deus, o despren-
der-se de vontade propria ilas mitos de quem lh'a
representa. Qualquer desfalque n'esta renunciallo
absoluta, n'este suicdio da individualidade, constitue
.rebeldia. O voto de obediencia o unico, de quantos
l se fazem, a que se nllo concedem subtraci5es.
O voto de pobreza, respeitado no individuo, ultra-
jantemente violado. no conjuncto da communidade.
E' certo que a menina rica, entrada ao mosteiro, lhe
dota os seus haveres, fruindo de seus rendimentos a
mini ma parte. Uma freira nllo chega a romper dois
habitos de burel. O segundo ha-de ser-lhe tambem
Dlgltized by Goog I e
126 .L ll'lllml.L NO SUBTBRIU.NJ:O
mortalha. Gosa, porm, como as irmls, a magnm-
eencia da casa conventual, onde ha prodigalidade de
marmores e bronzes de valor. Habita um palaoio onde
reverberam resplendores. A capella rebrilha como a
rampa d'um theatro ; recende como toucador de dama
casquilha ; os espaciados claustros recebem por de-
baixo da arcaria as fragrancias dos hortos ; a cella
decerto melancolica ; mas o aspecto dos cubiculos tem
um exterior magestoso.
O mosteiro possue enormes rendas, que se gas-
tam nas mais das vezes a enxamear novos cortios,
porque a cubia de cada ordem contar mais con-
ventos que a ordem mula. A pobreza dos mosteiros,
portanto, simplesmente uma palavra convencional
O voto de castidade! Nas chronicas e na his-
toria sobram person&gens, que nos dispensam de
phantasiar. Ha ahi realidades vivas, dramaticas,
mais para pavores que quantas fic<Jes cabem na mais
imaginosa vocalo de romancista.
O voto de penitencia particular de certas or-
dens. As ursulinas, as visitantes, as religiosas do Sa-
grado-Corao nlo o proferem. N'estas ordens, slo
raras as penitencias, e peculiares de certos dias.
S. Francisco de Salles, posto que aconselhasse uma
boa disciplina a quem quizesse dormir regaladamente,
nlo consentia que as suas filhas espiritUaes abusas-
sem d'isso, e receiava que o sangue remoado, e es-
candecido pela dr physica, tentasse desforra.
As claras, as calvaristas, as trappistas e carm&-
litanas constituem a maceraito, uma das vitaes con-
diOOB da ordem. A fogosa reformadora do Carmelo
viveu metade de sua vida sobre o calvario, e outra
metade em extasia de Thabor.
At onde chega o so:ffrimento das macerai5es ?
E' difficil abalisar. Talvez que, durante os primeiros
dias, os cilicios de ferro, os ltegos achumbados, as
o;
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A li'IlBIIlA. NO BUBTllllUlA.NJIO 12'1
ooras de espinhos penetrantes aterrem e exulcerem
4 carne da joven penitente ; mas a exaltalo moral e
febre da. pbantasia depressa subvertem o sentimento
da dr plenamente. Os fakirs da lndia nlo soffrem,
se os supplicios que se infligem sll'.o v.oluntarios. Ato-
tingiam os martyres dos primeiros seculos um grau
de enthusiasino que lhes absorvia o sentimento. Dei-
tados sobre grelhas ardentes, aftirmavam estar deita-
dos em leitos de rosas. O certo que elles retrabiam
ao intimo as torturas que lhes escalavravam os mem-
bros .A embriaguez da dr remata na insensibilidade.
O excesso atropbia. Estio cheias de allegoria.s poe-
ticas e graciosas, que pintam perfeitamente o estado
real dos martyres, a Legenda aurea e a Vida do.
santos. As. cha.mmas abatem-se nas fogueiras, des-
viando-se das virgens ; chuva de perfumes lhes refri-
geram os corpos invulnera.veis, anjos as envolvem
nas suas a z a ~ n' aquelles. infames paradeiros onde os
prefeitos de Roma as arrojam ao svo dos libertinos
e gladiadores. Lambem-lhes le!Jes os ps alvissimos,
e prostram-se no circo dea.nte das vencedoras inno-
centes. Leite em vez de sangue lhes deriva das cha-
gas. Quando morrem, l se lhes vae voando ao co
a alma em figura de nivea. pomba. No dia seguinte
ao do martyrio, as feridas desapparecem, porque en-
viados do co lh' as ungiram com divinos balsa mos.
Os estrepes de vidro transfiguram.-se em leitos jun-
cados de olorosas ptalas. Auroras maravilhosas ru-
tilam nas suas escurissimas masmorras. O especta-
enio de taes prodgios, e o reviramento das leis da
dr, assombra verdugos e espectadores, a termos de
alguns clamarem em frente das victimas : c Sou chris-
tlo I , para em seguida os imitarem na morte. A dr
torna-se attrahente, o martyrio contagioso, o amor
ao soffrimento pega-se como a febre. Em todos os
tempos foi assim.
Dlgltized by Goog I e
tt8 .A. RBIJI.A NO SUBTBIUlA'NBO
Quando se deram aquelles extravagantes casos
1ue foraram a auctoridade a fechar o cemiterio ,de
S. Medard, os discipuloa do dicono de Paria tortu-
ravam-se freneticamente. Nlo ha ahi aupplicio que
os taes fanaticoa nlto comportassem com enthusiasmo .
As propriaa mulheres se offereciam aos atormenta-
dores. Era geral o attractivo. Se o rei nllo pozeaae
cbro a tamanhos eacandalos, a torrente arrastaria a
Frana inteira.
Nilo se nega que algumas ordena religioaaa se
dlo a excessivas penitencias : provado est iBBo de
maia para que o discutamos. Porm, nllo temos sem-
pre em grande conta a dr da penitencia ; e funda-
mos esta dvida sobre o que a maior parte dos asce-
tas escreveu sobre o aaaumpto. Alm de que, crena
nOBBa que, se a exaltalo myatica de certos beatos
nlo se eleva ao alto ponto' em que o soffrimento se
.aniquila, a compensallo estranha, exquiaita, mixte
de visito e sonho, de peaadlo e extasia, basta de
maia a remunerai-os.
Ha a i n d a ~ voto de obediencia. Este sim, que
grave, fatal e inviolavel. A prelada de um mosteiro
fl. rainha absoluta, autocl"ata e sacerdotisa a um tem
po : reina e governa. O centurio diz ao seu servo :
c Faz isto. A prelada diz mais : Pense isto. Ab-
sorve na Bll& a vontade das vasaallaa. Veda-lhes ter
idas. Toda a sua politica funda-se em lhes suppri-
mir o pensamento.
E', ao mesmo tempo, cerebro e brao.
A qualquer hora lhe aBBiste o direito de pergun-
tar : Irmlt, em que pensa? ,.
E obrigatorio responder logo. Se a freira mente,
.corre-lhe o dever de confessar a mentira, e peniten-
-ciar-se em dbro.
Uma senhora de baixa condilo, sendo prioreza
-de um convento, comprazia-se em humilhar as frei-
o;
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A trJlBntA !10 SUBTBRRA!IIIO
ras de linhagem antiga. Uma noite, perguntou a uma
recente professa, que a precedia com o castial: .
. -Irmlt, em que vae pensando?
-Nossa madre, penso que, se estivessemos l
fra, era a senhora que me servia de criada.
A pobre menina decerto nunca mais teve penss-
mentos orgulhosos, porque foi encerrada no tronco .
Freira que seja voluntariosa, m freira. Entrar
alli morrer, sem mais resurreilo de individuali-
dade. Tal obediencia corta as azas da alma pro-
fessa juvenil. A' prelada incumbe apontar no seu
rebanho as que hlto-de ser Marthas e as que hi!lo-de
ser Marias; umas para a ''Vida activa, outras para a
contemplativa .
. As da vida activa silo as que moirejam na casa,
curando do bragal, da csinha, da portaria. Oram,
mas vocalmente- orallo labial, sem que o espirito
entenda n'isso. A orailo vocal restringue o intelle-
cto n'um circulo d'onde nlo ha sahir. As rezas ditas.
de cr slo sempre as mesmas; os hymnos do psalte-
r1o silo poucos. Ha freiras que em toda a sua vida.
nilo leram tres. volumes. Sllo amas que andam ata-
refadas em limpezas de casR, arranjos de claustro,
que vilo e vem, tangem sinos, sacodem tapetes, es-
covam, barrem, afadigam-se todas n'aquella admi-
ravel ordem que notaes nos conventos, e se identifi-
cam n'este monotono e ingrato mister at ao extre-
mo de se embrutecerem.
Silo as Marthas da casa.
Quanto s Marias, s dilectas, s amantes, essas
silo inversamente impellidas a tudo que do doml.
, espiritual.
Meditam, oram e contemplam.
E ahi comea a regilto sombria do mystil'ismo;;
Mas, energia de pormenores, impossivel per-
Ar a vida monastica.
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130 A JI'BBil\1.. NO SUBTJmBAIUO
A religiosa que medita, conhece as lettras. A
que ora, junta as palavras. A contemplativa l cor-
rentemente. Meditar analysar e um texto
grande ou curto: uma gloria pessoal, familiar,
que cada dia se renova sobre diveraos assumptos. A
oralo coisa de mais flego: imprMisar sobre
uma palavra ou um sentimento; nada de phrases de
livros; quando muito, uma citalo evangelica, um
recordar mysterios do christianismo, materialisal-os,
se isso convier. A concatenallo de ideias, invoca-
3es, fervores que brotam do espirito, con:stituem a
oralo: a alma l vae ter, levada por uma lem-
brana, um simples fio conductor.
A contemplalo vive de si mesma. Renasce in-
cessantemente, phenix divina. E' a alma que
na presena de Deus. Nlo falia nem actua: espera
passiva. Soffre dr, enlvo ou enthusiasmo, segundo
praz ao Espirito Santo. E' o ultimo grau do mysti-
oismo.
Acima d'isto, est o extasia, como fim logieo da.
contemplalo.
O extasia v, sente, saboreia e gosa.
O extasia tira ao corpo o pezo e a faculdade de.
padecer. Arrebata Elias no carro igneo, e Paulo ao.
terceiro co ; idealisa o purgatorio de Santa Perpe-
tua, o inferno de S. Brando, p(Je o Deus-menino-
nos braos de Estanislau Koska, d a Santa The-
reza o desmaio em que o seraphim lhe alanoeia o.
. corallo, permitte a S. Bernardo receber nos beios
as gOtas de leite virginal destinadas ao menino Je-
sus, passa ao dedo de Catharina o annel nupcial,
abre nas mlos de Franci11co d' Assiz as chagas san-
grentas, e larda de passagem' .. exoticaa de contest
vel moralidade as paginas de Voragine e
A vida ascetica procede por iniciao progressi v
Do mesmo modo que os sacerdotes de Isis leva1
o;
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.t. rREIRA NO SUBTEllRANEO
tavam um a um os vos da deusa, ao passo que os
profanos cabiam fulminados se lh'os queriam arran-
car d'uma vez, assim as freiras' entram mui devagar
na senda mystica. Ha d'ellas que topam, n'essas di-
versas phases, recompensas de suas prival'Jes. Mui-
tas vlo de boa f.
Logo que a prelada sondou, esquadrinhou e viu
por miudo a alma d'uma novia, fica sabendo o que
ha-de fazer d'ella. E o que factvel farse-ha: a
novilha ficar. no redil, ou ir ao deserto. Pergun-
tam-lhe o que sente e que deseja. Findos seis mezes
est predestinada: activa ou contemplativa-uma
das cousas, sem termo mdio. Ha ordens que tenta-
ram enlaar os dois modos de ser, fundindo Maria
em Martha: nllo se combinam bem. A alma assim
dupla do est plenamente satisfeita. Ou muita acti-
vidade, ou perigo de demasiada Por
mais que fa9a e possa, a prelada nlo vinga refandir
e vontades tllo a. ponto.
E, se nilo fosse aquella pujana de dominio, que
em uma s vontade cifra todas as vontades de um
convento, nlo seria possivel conter uma s no-
via.
No mosteiro carmelitano de Cracovia, o voto de
obediencia do era palavra vi.
A prioreza tinha envelhecido no exerccio da sua
ao'berania, fazia d'isso gala, e nlo permittia a mini-
ma transgresslo.
Assim, pois, que ella viu vontade tenaz em Bar-
bara Ubryk, aft'rontando-lh'a com armas eguaes
entendeu-se d'este theor com a mestra das no-
-Estudou mal esta rapariga ; figurou-m' a crea-
' branda, flexvel, e ahi a tem rebelde aos dois
.Jldes meios de submetter qae at hoje exercita-
, Barbara, por caasa da exaltallo qae lhe na-
o;
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________ A_F_R_E_tR_A_N_o __ su_BT __ ER_R_A_N_EO ____________
tarai e talvez ella mesma desconhea. devia entre-
sem reagir s santas crueldades da penitencia.
-Tel-o-ia feito-respondeu a mestra-se a
nossa madre lhe houvesse dado os instrumentos na
solidlo da sua cella .. Que impedimento pz ella?
O voto de castidade que lhe prohibia mostrar-se
na ..
--E Christo estava vestido na cruz?
- Barbara nlo attingiu por ora o grau de obe-
diencia que annulla a vontade alheia em nossas
mlos. Ha-de ser preciso muito tempo para desfazer
a memoria da scena a que a fizemos assistir prema-
turamente.
. -Ah I Eu tambem assim o pensava ... Quem
teve a culpa foi o padre Z6zimo. . . Era bem melhor
esperar alguns mezes. . . No lhe bastava o ardor
da Cinco-Chagas e a evangelica obediencia de Santa
Angelo.? A muita pressa pde perder tudo, quando
temos que lactar com naturezas de tempera to
rija. . . Que faremos agora para reconduzir esta me-
nina receiosa e desconfiada?
-Sim ... desconfiada .. --obtemperou a mes-
tra das novias.
-Que resultou da sua conversalo com Santa
Angela '/
-Nada que preste.
- EntB.o a joven sulamita. . . ,
- Ah I Santa Angela nla-se ao paraizo a todo o
voar de suas azas ... Nunca to my.stica pomba
poisou nas franas da oliveira; nunca mais fervente
virgem sua lampada para ir ao
encontro do esposo; nunca tito predilecta amante --
gosou na dos reaes celeiros onde o vin
do amor se bebe com perfumes de myrrha. . M
p.or fatalidade, o que devia coadjuvar-nos, nos e
barag, n'est.. conjunctura .. Quando Santa AngP
o;
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li. JI'REIRA NO SUBTERl\ANEO -1.33
enthusiasticamente lhe contava as suas delicias,
Barbara respondeu-lhe com um sorriso cheio de re-
ticencias ..
-E' que ella viu ... -disse a prelada.
A mestra das novias deu aos hombros.
-Ou julgou vr, que o mesmo.
o que devemos fazer convencl-a de
que se enganou. ,
-Decerto; mas quem h a-de convenc l-a?
-O padre Zzimo decerto no.
-Recorre-se ao confessor.
-Custa-me a submetter raparigas novas
recllo d'um padre. O confessor deveria operar, in-
fluenciado por ns.
- A nossa madre decidir segundo. o seu alto
discernimento.
-Por agora, d livros a Barbara, occupe-lhe o
esprito, empregue-a na egreja. No lhe falle em
Ptmitenciaria. No a misturemos com as outras, an-
tes de averiguarmos se ella digna de pascer-se nos
prados regados por correntes de leite e mel.
..__Entendi, nossa. madre.
O som do sino rematou este dialogo.
Cnsoante se convencionou, Barbara foi dispen-
sada da vida contemplativa. Deu-se-lhe officio de
preparar altares, e colher flres para. as jarras da
egreja. As companheiras viam-na 1aras vezes. Em
volta. d'ella redobrou-se a lei do silencio.
ram-lhe a ceHa de livros, que a freira lia para
treter o esprito. A pouco e pouco foi-se tranquilli.;
sando. Quando, porm, lhe perpassava na memoria
AI!1J.ella terrvel noite em que tantas nudezas virgi""
se lhe mostraram, tremia ainda de mdo; to-
Tia, como ardra em febre no dia seguinte, j
fundia a realidade com o delrio. '
'rrataram-na com brandura.
o;
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A PRKIBA NO SUBTBRRAN'BO
o director cas carmelitas, prevenido das caute-
las que era mister haver, mostrou-se reservado, e
Barbara por isso mais disposta a confiar n'elle.
Quanto ao padre Zzimo, confessor, iBBo era di-
verso.
Nas grandes communidades ha confessor e director.
O confessor ouve os peooados, absolve e impe a
penitencia.
O confessor, medianeiro entre Deus e as monjas,
menos considerado, est muito quem do director.
A freira, se tem socegada a consciencia, nllo tem
que vr com o confessor.
A relallo das miadezas sobre o maior oa meno1;
fervor da oallo' dos rapto movidos pelo Espirito
Santo, do a.ffecto qae sentem ao Salvador, do attra-
ctivo da penitencia, do encanto que as leva para aa
coneola3u eeneiveie, i880 pertence ao director s-
mente.
O director destrina as propensoos, jubilos, la-
grimas, exultaes das suas dirigidas, sondando-lhes
os seios da alma. Faz, a seu modo, santas e illami-
nadas. Arrasta com a authoridade da palavra ao
horto da agonia ou ao jardim das delicias. O dire-
ctor a alma do convento; o confessor um maqui-
nismo necessario ao ministerio dos sacramentos.
Exercem ac(Ses independentes. Na sociedade, as bea-
tas que aspiram perfeiilo, usam d'este laxo mys-
tico : director e confessor.
O confessor pde ser um padre simples, idiota,
igorante, tanto monta.
O director deve ser por egual theologo e elo-
quente, e, mrmente, poBBuir o que se chama Melo
das almas.
Francisco de Sallea, director de Joanna de
Chantal, converteu santidade a amavel filha de
Fremiot.
o;
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A J'a:KIRA NO BUBTDIUNIO
Pedro d' AJcantara, amigo e director de Santa
Tbereza, dirigia. e aconselhoa. a reforma do Car-
melo.
Um convento sem director vae desnorteado.
O padre Onufre, director das carmelitas de Cra-
-covia, era homem babii, prudente, reflexivo, poma-
reiro sagaz, que deixava amadurar os fructos antes
de os colher, differente do padre Zzimo com quem
a mia.do tinha graves questfJes. Barbara, porm, du-
rante bastantes mezes, foi smente dirigida pela pre-
lada.
Convinha remittir-lhe a febre moral e reconquis-
a confiana.
Dr e terror eram o duplo sentimento que a re-
concentravam desde a profunda impresslo qa.e lhe
deixou o revelado mysterio das macera(Jes.
Repulsa da famlia, esquecida por Zolpki, trahi-
Ga at certo ponto pela religilo que quizera abraar
em transes de naufragio, que lhe restava'/ A fora
GO esprito e a logica da consciencia.
lnvocoa. todas as energias para a lucta, e jurou
nD.o se deixar prostituir pelo exemplo das outras mu-
lheres, ainda qa.e a rebeldia lhe custasae a vida.
Contra a eapectativa, nlo se lhe azou o ensejo
(ie envida o aprumo do seu caracter. Espectaculos
perigosos nunca mais os .viu; revelaes de Santa
Angela nunca mais escutou alguma. Dir-se-ia que .
a prelada lhe concedra a liberdade de se dirigir.
Serenou-se gradualmente o esprito da freira. J
(ieacorooada de esperar a volta de Zolpki, julgou-se
para sempre. Desde abi, forcejou por
afaeer-se existencia imposta e repulsiva. Appli-
cou-se a esquecer, a refundir-se completamente na
regra de Santa Thereza.
N'este em meio, morreu a prelada.
Foi suecesao estrondoso no mosteiro.
o;
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A JI'REIR NO SUBTERRANBO
As freiras, o padre Onufre, director, o padre
Z6zimo, conf688or, fizeram frequentes oonciliabulos.
Duas carmelitas disputavam a soberania. Uma ainda
nova, bella, ardente. A outra j avelhada. A pri-
meira tinha as exaltaes de espirito aventuroso, e
os mal esfriados sentidos de mulher de vinte e cinco
anno11; a segunda, rspida por edade, invejosa do.
frescor e belleza. das suas companheiras, pellida.va
pelas auctoridades da regra, sem as attenuar com as
compensai5es de que era prodiga a fallecida prelada.
Sahiram a campo, n
1
esta eleio, seduees saga-
zes e ardis velhacos. O padre Onufre protegia a can-
didata velha, e o padre Zzimo dava o seu suffra-
gio a Maria Wenzyk, cujos haveres e ascendencia
illustre, segundo elle, realariam a honra do
vento.
Instaram vivamente com Barbara para que dase
o seu voto; ella porm fechou-se com o segredo da
sua preferencia. A rigidez de Santa ROII&lia atemo-
risava-a, ao passo que a mocidade de Wenzyk lhe
parecia de melhor ago11ro. O voto de Barbara por
fim decidiu a eleio. .
Pobre mulher I Se ella adivinhasse as torturas
que um dia lhe seriam feitas por aquella religiosa
qne o seu auffragio chamou prelazia do Carmelo I
Dir-se-ia que a nova el.eita comprehendia quanto
era obrigada a Barbara : tantas eram as delicadezas
com que a tratava, a ponto de sondar o segredo do
corao da sua amiga. A contriio d'alma da infe-
liz freira desafogava-se a pouco e pouco. Parecendo-
lhe impossvel qualquer futuro fra do co.nvento, snb-
mettia-se ao destino, repetindo o morior de
S. Paulo, que a grande divisa do christianismo.
Barbara foi mais adiante.
Comquanto nlo d'aquellas ma04
raes nocturnas que a tinham iadignado mais r'
o;
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l
A Ji'JlJ:lRA 'NO SUBTBBRA'NBO 137
(!Ue assombrado, quiz tambem matar o corpo a fim
de reviver a alma. Deu-se penitencia fervorosamen-
te. Mortificou o corpo desangrando-o, para espancar
a imagem de Zolpki. :No seu triste cenobio resoa-
ram muitas vezes os invluntarios gemidos que lhe
arrancava a dr. Estes supplicios eram mais e:x:cru-
ciantes, porque no tinham cumplices nem testemu-.
nhas. O frenesi da penitencia no era contagioso pa-
ra Barbara, que se mortificava porque assim o que-
ria sem o attractivo do exemplo. Era-lhe instinctiva-
mente odioso o soffrimento corporal. Figurava-se-
lhe commetter um crime de lesa humanidade- um
suicdio lento, com premeditao. Procurava nos li-
vros santos passagens idoneas que a absolvessem, tor-
nando-se discpula da loucura da cruz, com aquella
serenidade que redobra as torturas de quem volunta-
ria e solitariamente a ellas se condemna. A' custa.
pois de muito soffrer, esperava ella desfazer a viso
do fantasma adorado.
Maria Wenzyk prestou-se aos desejos da religio-
sa. Se a no amava. tanto como a outras, estimava-a.
por venerao ao respeito de si propria.. Bem sabia
a prelada que no era facil reduzir Barbara sub-
misso de adepta; mas esperava que ella fosse no
convento pessoa bastante considerada, de quem mais
tarde se colhessem as vantagens promettidas situa-
o que estava grangeando. .
Enganra-se Barbara, quanto a pensar que a fla-
gellao bastaria a dissipar a lembrana de Zolpki, e
que o socego d'alma iria. vindo proporo que o
corpo desfallecesse esvado de sangue.
Quando, consoante a praxe do c o n v e n ~ , esten-
dia os dois braos sangria, e que a fora ia aba-
tendo medida que os borbotes de sangue deriva-
vam, sentia-se exh.aurida, semi-morta, e de repente
mais deslumbrante e pura se lhe contornava a ima-
o;
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138 A JI'R.,IJI.A JoiO 8U11T1111.RAJIIBO
gem radiosa do amante da sua mocidade. Era portan-
to baldado luctar contra si mesma : o amor resistia
invencivel como a morte.
Suooumbiu, porm, o corpo. .
A freira foi atacada de febre ardentissima. Du-
rante alguns dias recearam que ella morresse.
A' imitalo de todas as freiras enclaustradas, as
carmelitas retardam quanto podem o recurso da me-
dicina. Estava pois quasi agonisante Barbara Ubryk,
quando a prelada. mandou chamar o dr. Wrobleski.
o;
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. =,
X
O afilhado do doutor
O medico acabava de metter-so ao caminho do
bairo de Wesola, quando um homem de cerca de
trinta annos, pallido e esbofado, bateu precipitada-
mente nb. sua porta.
A criada abriu a porta apressada, e, vendo o vi-
sitante, recnou expedindo u ~ grito de espanto:
- O senhor aqui!
-Julgavas-me morto, nlo verdade? .
- Como toda a gente, como seu padrinho, co-
mo .. Pobre menino l-ajuntou ella com ternura-
Muito ha-de ter padecido .
-Muito J Meu padrinho est em casa?
-Nilo, senhor, sahiu ha pouco.
- Esperarei. O' casa querida I Ha que tempos
eu no transpuz a tua hospedeira porta .. Tudo est
10 mesmo logar .. Os homens passam, e as coisas
le&m.
O mancebo seguiu o corredor e entrou no gabi-
lte do medico, atirou-se a um soph, e recolheu-se
. DigitizedbyGoogle
t40 A FREIRA. NO SUBTJ:RRA.NBO
em meditao profnnda, que a velha criada respei-
tou, afastando-se discretamente.
Meia hora depois chegou o doutor, que, ao entrar
no seu gabinete, deu subitamente de rosto com o
hospede, e exclamou :
- Zolpki I Zolpki I Meu caro Zolpki I
E abraaram-se com vehemente ternura.
-E' o mesmo homem. . Que bom agouro eu
tiro d'isto .. -disse Ladislau -Adi vinha o q ne a
minha vida tem sido. . Prso e longos annos enca-
vernado em carcere duro. Pnde sahir, porqne os meus
inimigos , consegniram o que queriam, e j me no
temem. . . Meu amigo, meu segundo pae, falle-me
com franqueza, diga-me tudo, o bom e o mau, que
en tenho soffrido tanto que j me julgo capaz de on-
vir tudo. Que feito de Barbara Ubryk ?
O doutor empallideceu.
-Casada? -exclamou Zolpki.
O padrinho fez um gesto negativo.
-Morta? I -bradou o mancebo, amparando-se
meza.
-Nem morta nem casada, mas para ti ... per-
dida.
-Quem ousa dizer que Barbara Ubryk est per-
dida para mim, se no est gelada na sepultura l ...
Se no casou, foi leal ao seu amor, como eu sua
memoria . . Onde est ella, meu amigo, meu pae,
onde est ella ?
-Podes escutar-me serenamente?
-Diga.
-Esperei que oito annos de exilio e soffrimento
te fizessem esquecer Barbara. . . Sim, isto esperava
eu, meu filho. . O amor da t.ua mocidade nllo
hoje a esposa de outro homem, e comtudo, nllo tor-
nars a vl-a. . Barbara, cedendo vontade des-
potica do pae, professou nas carmelitas .
o;
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A :trR'InRA NO SUBTII:RRANEO 141
-Desgraada menina I
-Mas o peor ser terrvel a austeridade da r.,_;
gra, e a melindrosa compleilo d'eeta senhora nlo
a sopporta ... Sabes d'onde venho? Do mosteiro on-
de ella est. . Venho de disputar . morte a tua
f.!Uerida Barbara. .
-Meu Deus! Meu Deus I-soluou Zolpki, ta-
- pando a face com as mlos.
-Depois levantou-se, e caminhando agitado no
gabinete do doutor, dizia:
-E' impossvel! E' impossvel!. . Eu soffreria
mil torturas por amor d' ella, e ella ter. soffrido
tanto por minha causa, e para que tanta paixlo e
tantas lagrimas fossem inuteis I Nlo I Existe Deus,
},ta uma justia providencial! Hei-de tornar a vl-a ..
Hei-de salva l-a da morte, e do captiveiro depois ..
Os muros do convento nlo slo mais altos do que os
do meu carcere. . Ha-de fagir. . . Nlo hei-de ser
s. n'esta empreza salvadora . o doutor ha-de aju-
dar-me.
- Pois esperas ...
-Creio que o padrinho me ama ...
. -Sim, amo-te I E este amor quem impede que
eu nlo coadjuve as tuas loucuras .. Que queres t1l
fazer contra o irremediavel? Barbara est tio intei-
ramente separada de ti, que ainda que fosses seu
irmlo; nlo poderias visitai-a na grade. . . O sepul-
chro ni'l.o JDais inviolavel que o seu claustro ..
....:.. O padrinho entra no convento?
-Como medico.
-E ella est. muito doente?
-Maito ...
- Pde morrer?
-Sim, porque nlo quer viver.
-E se ella quizesse?
-Salvai-a-ia a mocidade.
o;
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-Graas! graas, meu amigo! E' preciso que
Barbara queira viver. E' preciso que um vigoroso.
interesse como a esperana. a. impulse para a vida!
Diga-lhe, como o Cbristo quelles que levantava da
sepultura: c Ergue-te, e caminha ! Ella
viva e formosa I Como eu hei-de amal-o entlo I Ado-
rar-lhe a sua bondade I Vama I Faa o milagre.
Basta que lhe diga: c Existe Zolpki; existe, e ama-a.
-Mas, meu pobre filho, eu nlo fallo com Bar-
bara.
- Nlo lhe falia?!
-S, nunca. prelada e outra freira estio sem-
pre ao meu lado, e impOSBivel que eu diga doen
te palavras que .ellas nlo ouam.
Mas preciso que ella o saiba, preciso I
- Nlo I -disse o doutor com tristeza- Nlo &
preciso; e, se queres que eu te diga o que sinto, es-
cuta: melhor seria para aquella desgraada senhora
que a morte a colhesse nos seus braos maternaes,
que prolongar-lhe a tristeza dos annos que vlo se-
guir-se. . . O convento mata Barbara. Definham-
na as sombras dos altos muros: e a tua imagem ain-
da lhe est no coralo. . Se eu a salvar da morte,
augmento-lbe o martyrio . Se tu soubesses, Zolpkil
Eu vi-lhe nos braos e nos hombros, quando a au-
cultua, as cicatrizes das recentes feridas. . Bar-
bara dilaceraae com penitencias .
- lato horrinll
-Horrivell-Mas que fazer-lhe? O, meu dever
acalmar-lhe a febre; porm, sei de sobra que nlo
conseguirei suspender-lhe as pulsa&a do coralo.
-Fui eu, pois, que a matei I
-Meu pobre filho, sou fatalista: o que acon-
tece, devia acontecer.
- E' a phrase do homem resignado; mas eu es-
tou resolvido a lactar. Pois penaa que tendo eu atra-
o;
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A lll\EillA NO SUBTJ:l\1\ANBO
vessado tantos perigos, me deixari quebrantar ago-
ra por pequenas difficuldades. Se me no auxi-
liar, chegarei ssinho ao meu fim, ainda que o exi&o
me haja de custar a vida.
- Pobre amigo, nlo estamos em Portugal, no
tempo das escadas de corda.
- Ha um meio que fora os claustros mais re-
beldes a faanquearem11e.
-Qual?
-O fogo- disse tranquillamente o mancebo.
-Pois serias capaz?
-De tudo. . . As chamma" me darlo Barbara,
que a auctoridade da famlia me rouh9u e a egreja
me nega.
- Nilo queres ouvir nada?
-Nada, se nlo algum conselho que me ajude
nos meus projectos.
-Projectos d'um louco I
-Talvez I Mas que o amor senlo uma lou-
cura 1 Entre o crime e o suicdio, escolho. . Esta
que a verdade I Se nada consegnir fica-me o re-
curso da morte.
-O suicdio 1 Tu ! . . Pois nlo sabes que eu, ao
vrte agora, pensei que ficarias sendo o meu filho
adoptivo ! V em para mim J Envelheci na solidlo en-
tre os livros da sciencia . Tu sers n'esta casa o
contentamento e a vida. Fica, que eu te amarei e
compensarei das saudades do passado.
-Mas eu amo Barbara.
-Entilo que fazer? Que fazer?
-Quer-me servir?
-Nilo posso faltar misslo de confiana que
exero.
-0 seu primeiro dever salvai-a.
- Entlo que queres de mim? .
-Pouco-disse Ladislau, sorrindo.- Segundo
o ;
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; , ; ~ e d by Google
A JI'RElRA NO SUBTERRA.NEO
-
.a ana propria confisslo a sciencia nada vale n'esta
cura. , . Eu enlouqueo da doena que a mata a el-
la. O seu mal e o meu a paixo. . . Julga-me
morto, e pensa em morrer . para tornar a vr-me .
A'manbl, quando fr ao convento, e a prelada lhe
pergnntar o qne pensa da molest_ia, nito lhe occulte
a gravidade do mal, tenha a coragem de confessar
que nada p6de.
-Farei isso.
-E depois diga: 86 o co faz milagres, e eu
ouso propr reverenda madre um meio infallivel. . .,
A prelada querer onheclo. O padrinho mostra-
lhe ento um pequeno relicario de prata, recommen-
dando que a doente o tenha comsigo nove dias.
Nlo duvide qne a lance o relicario ao pes-
eoo de Barbara . E ella ser salva.
-Se s isso ...
-S.
-Consinto.
Zolpki abriu o relicario, tirou um embrulhinho
de papel amarellado que continha umas esquirolas
de osso, e escreveu dez linhas em caracteres micros-
copicos. Depois repz o papel volta da relquia,
e entregou o relicario ao padrinho. Este,
recia hesitar, quando o olhar snpplicante de Ladis-
lau consegniu venclo.
-Mas -volveu o doutor- se Barbara estivesse
morta para tudo, e at para o amor. . . Se recnzasse.
a liberdade que lhe queres dar?
- Se tal desgraa acabaria a minha
f n'ella, em todas, e d'ora .vante nllo haveria
mais amor em minha vida. Nlo se violenta um co-
rao ! Barbara far o que quizer. Se acceitar, sere:
feliz; se r.ecusar, matar-me-hei. ..
O doutor, de seu natnral refracta rio s grandf
paixl5es, olhoU: para Ladislau oom profnnda piedad
o;
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A li'BBIRA. NO SUBTBRRA.NEO 145
Depois, diligenciou desviar-lhe o animo para outro
Fallou-lhe do pae, cujo intimo amigo ha-
via sido, e de quem, na hora extrema, recebera o en-
cargo de proteger-lhe o filho. Serenou assim a pri-
meira perturbao do moo. Durante o jantar, quasi
.que esteve alegre. A' noite contou as suas aventuras.
Referiu o modo como o pae de Barbara o fizera pren-
denunciando-o como cumplice em con-
tra o imperador d' Austria. O ultraje feito familia
Ubryk pelo amoroso rapaz pareceu ao velho digno
dos mais atrozes supplicios, dando-lhe portanto di-
reito a vingar-se da seducilo moral de sua filha. Os
precedentes polticos de Zolpki eram de natureza bem
accommodada ao intento do conde. A authoridade
lanou mo do conspirador e aferrolhou-o sem mais
averigualJes.
Ubryk, antes de o deixar soltar, queria bem defi-
nir a posio da filha. Se ella a.cceitasse o conde Ras-
toi, perdoar-lhe-ia; mas Barbara vestiu o habito, fez
votos e professou sem dar signaes de submisso.'
Ubryk morreu antes de levar ao cabo a empreza
da. vingana, ou de reconsiderar a iniquidade. O go-
verno austraco deu liberdade a Zolpki, falta de
provas, julgando-o bastantemente castigado com a
priso preventiva de sete annos. Volt.ra, pois, La-
dislau a Cracovia, febril das recordalJes amantissi-
mas da sua querida. Ao saber que ella era freira,
balanou entre a consternao e o contentamento. Em
verdade fra-lhe mais facil varar o peito d'um rival
que arrancai-a do mosteiro. Um homem trahido
mais facilmente que Deust As esposas do Senhor adul-
teram mais raras vezes que as dos homens.
Ladislau desvelou a noite quasi inteira com o pa-
drinho. Fadiga e dr no o impediram de saborear-se
nas recordalJes da perdida mocidade. .
Quando na ante-manh do dia o dou-
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U6 A FREJR.\ NO SUBTERRANEO
tor sahiu do seu quarto, encontrou j de p o afi-
lhado.
-Quero acompanhai-o a Wesola-disse o moG
-no se assuste, que eu ficarei na sege : desejo vr
a casa em que morre a infeliz senhora.
W robleski, vendo que seriam baldadas todas as
advertencias, fez um gesto de consentimento.
Quando lanava mo do estojo, disse-lhe Zolpki :
-Que no esquea o relicario.
Um quarto de hora depois estavam em frente das
paredes negras do Carmelo.
O doutor apeou-se.
O moo ficou submerso em angustiosa contem-
plao.
Puxou o medico rijamente pela cadeia da sineta;
a porta rodou nos gonzos com um rangir surdo que
fez estremecer Ladislau.
O doutor caminhou apressado ao longo do claus-
tro. Ao visinhar-se da enfermaria, estugou o passo,
e conturbou-se. la ser instigador e cumplice d'um
rapto, e rapto religioso. . . Crime gravssimo I
E' verdade que Barbara estava alli violentada.
e, com toda a certeza, em risco de morte.
Apesar d'estas considerales o medico no ati-
nava a decidir se praticava uma boa aco, se pre-
meditava um crime.
A' cabeceira da enferma estava Maria Wenzyk.
Barbara parecia mais marasmada que na vspera.
Talvez, ainda assim, que uma forte commoo
podsse galvanisar aquelle corpo desnervado por je-
juns, macerales e dres. .
-Que lhe parece a doente?- perguntou a pre-
lada.
O doutor sacudiu a cabea.
-No ha remedio algum ?
-Na sciencia, no.
o;
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A FREIRA NO SUBTERRANBO
-Veja l, snr. doutor, pense .
-Onde acaba a sciencia principia a confiana
em Deus.
-J se orou muito n'esta casa.
-A senhora prioreza sabe que o Senhor se com-
praz em operar prodgios por intercesso dos santos,
da mesma sorte que mais benignamente acolhe os
preitos que se lhe fazem em alguns altares privile-
giados.
-Sei.
- Acho que nlto ha nada que fazer aqui ; mas te-
nho uma relquia de efficacia divina; consinta que eu
a lance ao pescoo da doente, e esperemos o prod-
gio impetrado pelas ora'Jes da senhora prioreza.
- Pois nlto I ... - disse Maria W enzyk.
O medico tirou do seio o relicario de prata.
A enferma fechra os olhos feridos pela demasia
da luz.
W robleski cingiu-lhe no collo a relquia, e afas-
tou-se com a prelada para o vo d'uma janella.
Instantes depois, Barbara eKpediu um grande
brado.
A prioreza e o medico acudiram.
Coruscavam os olhos da freira, sentada na cama,
com os labios pallidos collados no relicario.
-Que isto? -exclamou ella- Que isto?
digan-m' o por piedade I
- E' a esperana da cura, -disse o doutor -
o balsamo da sua ferida. . Descance, minha senhora,
e durma em paz.
-Em paz 1-murmurou a doente.
Barbara reclinou-se para as almofadas, com ore-
.rio sobre os beios.
-Tem razo, snr. doutor,-dissea prelada-as
'1Uias operam prodgios.
Antes de nove dias esta freira estar salva.
o;
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U8 A Jl'llBIRA NO SUBTDRANKO
Soror Maria acompanhou o medico, que sahiu,
prescrevendo que deixassem a doente completamente
s6ainha.
Sahiram todas as freiras da enfermaria.
Barbara sentou-se outra vez na cama. Nio so-
nhava! Aquelle relioario bem o conhecia ella! ..
Era uma joia de familia, que vira ao peito de Zolpki.
Por que lh'o dra o doutor? Cumpriria a sagrada
promessa feita a um moribundo? ou Zolpki estava
em Cracovia? Era ainda amada? Seria aquella rel-
quia o testemunho de ser amada ainda? Amada I
Entio queria viver. queria a grande coragem das
vidas desgraadas. Mas viver para qu, se o nio ha-
via de vr jmais ! ...
E, pensando assim, abriu o relicario.
Sobre um tecido de brocado, viu umas lascas de
osso, e o nome de 8. Marciano esoripto em uma fai-
xasinha ircumposta..
Barbara levantou a tira de papel, e deu um grito
de jubilo.
E leu:
Vive; resurge do fundo d'esse sepulchro, e pre-
para-te para me seguir na noite seguinte ao nono dia.
Estarei porta do convento das carmelitas com uma
sege, e o meu mais fiel amigo. 11
Subita reanimao aviventou a freira. Empurpu-
raram-se-lhe as faces lividaa, o sangue regirou-lhe
nas arterias rapido e calido. Era preciso viver! trium-
phar da doena e da morte I Amada ! . . . O' e:ffuso
do milagre peio amor ! O' triumphar das paix<Jes sO:.
bre todos, e sobre tudo ! 0' crentes infinitos, lou-
cos imperecedouros que vos chamaes amantes J
Ao entardecer d'aquelle dia, Barbara n:o tinha
febre.
o;
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XI
A reliquia de S. Marciano
lls rapidas nnelhoras de 1Barbara alvoroarann a
connnnunidade.
Todas as freiras quizerann vr o nnilagre. 1Bar-
bara prestouse graciosannente aos parabens das conn-
panheiras, respo.ndendo s perguntas. Dizia que ape-
nas sentira sobre o coraito o relicario, logo o allivio
e oura forann instantaneos. E ajuntava que, ao nnesnno
tempo, sentira unn jubilo desconhecido, conno se a ti-
rassem do tumulo ; e ento, penetrada de immensa
gratido, se voltra com todas as potencias de sua
alma pra Deus que lhe restitura f, saude e espe-
rana.
Erann benemeritas de confiana estas palavras por
serem textualmente as nnesmas de que usam as favo-
recidas por milagres, Em breve tempo, 1Barbara gran-
geou nlto s o preito que se dava s suas companhei-
-ras, mas, para Maria Wenzyk, objecto de
assignalada preferencia.
Enviado ao leito da enferma, o padre Zzimo
louvou o Senhor por tito nnaravilhosa cura. Deu-lhe
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150 A li'JlEJJU. NO SUBTERRA.NEO
a entender a prelada que seria proveitoso divulgar o
prodgio, e attrahir d'esta. arte ao mosteiro a visita
de. todos os fieis christos de Cracovia, cujas offren-
das sem duvida iriam em barda pelas portas dentro.
No dia seguinte encommendou-se um relioario
sumptuoso, e assentaram que no dia final da novena
se cantaria um solemne Te-Deum e depois se expo-
ria a reliquia de S. Marciano.
- Parece-m -disse o padre- que, A exceplo
do fragmento que Barbara possue, nilo temos mais
nada do santo.
Maria replicou, sorrindo :
-E' de opinio que o p humano, de quem quer
que seja, dva ser glorificado? O culto e a invocalo
dirigem-se alma que animou o miseravel corpo des-
feito em cinzas : logo, nada prejudicamos a honra de-
vida a S. Marciano, colloca.ndo no relicario a cabea
e o brao d'um homem cqja salvao custou o mesmo
a Christo.
-Pensa bem- disse o padre Zzimo.
-A communidade vlle trabalhar na bordadura
dos requifes de velludo que ho-de ornamentar as
relquias. Quantas piedosas damas nos nilo hito-de
enriquecer o relicario com as soas parolas l Antes
de dois annos, o cofre de S. Marciano ha.-de encerrar
metade das joias de Cracovia.
-Acho que ser bom- tornou o confessor -
que as pessoas piedosas possam vr Barbara, tanto
quanto a clausura o permitte. A noticia do milagre
far muito, mas o espectaculo da favorecida do santo
far muito mais. Esta menina to prodigiosamente
bonita, que s de per si parece um milagre de for-
mosura I
- Oh ! . . . eu bem sei - disse a prelada, accen-
tuando as palavras- bem sei que, desde certo tem-
po, a prefere em segredo .
o;
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A--
/
-I
A li'REIRA NO SUBTERRANEO 151
-Pois acredita? ... -exclamou o padre.
-Contaram-me que, antes de eu entrar n'esta
easa., Barbara Ubryk foi um dia destinada pelo snr.
padre Zzimo iniciao completa do so:ffrimento e
do extasis. . . Mais me contaram que ella, espavorida
pelo espectaculo de acenas cuja inteno e fim no
percebia, se recusAra constantemente ao que lhe pe-
diam. Dizia-se at que ella o vira com os olhos
samente fitos na penitenciaria, ao mesmo tempo que
Santa Angela, despida sobre a cruz, radiava em meio
de uma aureola de resplendores. Eu nadl) quiz apro-
fundar. . . reporto-me s a Zzimo. . . mas se a mi-
nha desconfiana fixar alguem ... desgraada d'a-
que eu suspeitar ...
Maria pregou os olhos coruscantes no padre, que
lhe aparou as frechas sem se perturbar.
- Entretanto, o seu parecer no me parece mau
-tornou ella adocicando a voz. -Barbara ter a
semana toda para convalescer-se.
Fez-se o que a prioreza indicou.
Barbara readquiriu o colorido da vida. A commu-
nidade via edificada a terna devoo da frt-ira a S.
Marciano; o fervor com que ella beijava a relquia e
parecia, n'aquelle enleio, absorta em profundo rapto.
Ao terceiro dia mostrou vontade de sahir da enfer-
maria. Obtemperaram aos seus dese-
jos. Permittiram-lhe que passeiasse no jardim,. claus-
tro e pateos. Como a dispensaram do cro, e a
varo como filha dilecta e enferma, aproveitou aquella
temporaria liberdade para melhor estudar a topogra-
phia do convento, e delinear aproxima fuga. O mi-
lagre, com que S. Marciano a honrra, adormecera
suspeitas. D'alli vante, Barbara seria tratada com
especiaes mimos, visto que attrahira para a commu-
nidade honra e proveito.
A religiosa que Batbara mais receia va era a porteira.
o;
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11\2 A FREIRA NO SUBTERRANEO
Esta mulher j desbotada de juventude, angu-
losa, enrugada e amarellenta, gwudava no seio do
claustro uma horrvel doena: a inveja. .
Sendo feiissima e indigna de qualquer marido,
abraou a vida religiosa, para noo soffrer a affronta
de envelhecer sem namoro. Chamava-se Martha. V o-
cao no tinha alguma, a no ser a do tedio por
tudo d'este mundo que lhe era defezo. Ambies, que
na sociedade lhe seriam matraqueadas, foi exercitai-as.
no mosteiro. A clausura no d preferencia s bellas.
Martha, fria e pontual, longo tempo aspirou ao ma-
ximo ponto da santidade. Estudou a vida dos bem-
aventurados no intento de os imitar servilmente; do-
brava-se aos caprichos da prelada sem murmurar; e.
apesar d'isso, no attingiu o almejado fim. Mingua-
va-lhe ardor no esprito e entbusiasmo na palavra.
Fizeram-n'a porteira logo que profeBBou: manteve-se
n'este posto, invejando as suas companheiras de no
viciado que iam vagarosamente subindo a escaleira
das dignidades conventuaes. Com ouvir dizer a miudo
que era grande o sacrificio de quem professava no
Carmelo, capacitou-se de que se havia immolado, e
accusava o divino esposo, a quem se unira falta
de homens, de ingratido para com a mais casta e
fiel das suas noivas.
Maria W enzyk no deu maior preo que a sua
antecessora aos raros meritos de Martba. Gemia,
pois, a porteira por se vr reduzida orao vocal,
aos encargos secundarios, e perguntava que mais va-
liam do que ella as freiras encaminhadas na vereda
da perfei!l:o, que conduz a todas as delicias das
amantes predilectas.
Barbara escrutou logo o que ia no corao de
:Martba.
A recente liberdade permittia-lhe girar no mos-
teiro. Foi ter-se com Martba sala onde ella estava
o;
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A 11'1\J:IRA NO BUBTJ:RRANJ:O 153
esperand9 sempre a aldravada do martello no por-
to.
Espantou-se Martha da honra que lhe fazia a
jove.n freira do milagre. Humilhou-se deante de Bar-
bara, louvou o Senhor p e ~ o prodgio operado na sua
serva, e disse que era bom que a f publica se re-
temperasse na crena de semelhantes successos.
-A h I -respondeu Barbara- muito certo
aquelle dizer da Escriptura: c O espirito sopra onde
lhe praz. Deus sabe que eu, longe de solicitar fa-
vores ostensivos, os temia e mil vezes antes quize
ra vl-os operados em mais perfeitas creaturas ...
Eu me abato e prostro, confessando minhas fragili-
dades e peccados. . . temendo muito esta especie de
ardil armado minha vaidade ..
-Ardil?-atalhou Martha.
-Certamente. No sabe quanto facil figurar-
se gente o esprito das trevas com apparencias de
esprito de luz?
-O Evangelho o diz.
-Quem me assegura a mim a verdade? . a
mim, peccadora. I . . No consta da Biblia que os
magos de Phara operavam milagres semelhantes
aos de Moyss? Simo Magico no espantou o povo
com prodgios analogos aos dos apostolos? A nossa
santa fundadora propriamente no temia sempre de
enganar-se com a qualidade dos espritos que lhe as-
sistiam, e tomar conta de conselhos angelicos as
tentaies do demonio?
-Tudo isso assim -concordou a porteira.
-Alm de que, se tal prodgio devia ter Jogar,
nnque se no deu em uma filha de Santa Thereza,
feitissima nas virtudes monasticas? Ha cinco ao-
. apenas que eu professei; ainda no caminho, mas
L de rojo na via da perfeio. . . Antes eu queria
os favores do co cumulados sobre uma alma ex-
o;
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154 A JI'RKIRA NO SUBTERRANEO
cellente, e que a refrigerassem como os orvalhos ee-
lestiaes ao vlo de Gedeo. O' minha irm, podere-
mos fallar confiadamente, abrirmo-nos as nossas al-
mas, como Santa Thereza com Pedro d' Alcantara?
Os divirtos segredos da consciencia querem-se expan-
didos, porque a confiana e a amisade os aviva. Ora
diga-me: nos vinte annos que tem de freira, foi fa-
vorecida dos favores do divino esposo?
-Nunca-respondeu Jlrlartba.
-Como assim ? A minha irm tem sempre es,.
tado no deserto arido ..
-Sempre.
-Sem consolao sensvel?
-Privada da minma consolao!
-Injustia!. . . Se tal pala na pde applicar-se
ao arbtrio de Deus . Ha vinte annos que exercita
as virtudes da pobreza, da castidade, da humildade,
da mortificao, da obediencia, e nunca taes sacrifi-
cios lhe' foram remunerados com uma viso celestial,
com divinas lagrimas, efHuvios d'afma, consolaes
iue:ffaveis, deliquios, afHuencias de graa. refrige-
rante? Nunca?
-Nunca I nunca I
- Minha irmll, permitte-me que eu pea ao Se-
nhor que lhe conceda alguma manifestao de seu
poder, alguma dadiva de consolativa graa?
-Pois a minha irm, a honra do convento, fa-
ria tanto por mim?
-Farei.
- Ab I ento j sei que h a-de ser attendida .
-Pelo menos, espero sel-o. - E accrescentou
com vehemencia : - Martha, encha-se de f; e quar-
ta-feira noite, depois do solemne Te-Deum, em que
ha-de fazer-se a exposio das relquias de S. Mar-
ciano, meu patrono, ser ento objecto d'um favor
do co.
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I
A JIREIIU. NO SUB"rERRANEO t55
-Deixe-me beijar-lhe as mllos e o habito, mi-
nha irm!
-Vamos .. No ha-de soffrer mais, Martha .
Vae abrir-se-lhe o co ... No tem a minha irmll em
si as prerogativas de Pedro que ata e desata? Quan-
do lhe vejo as insgnias de confiana de que est
investida, penso que deve occorrer-lhe a miudo a
lembrana de Jesus e dos apostolos .. Decerto que
as chaves do reino do co no silo ~ a i s pezadas ..
Que volumoso mlho l Estas chaves devem ser de
muitssimas portas I ...
-Esta a da portaria ; esta a da loja da le-
nha; e a mais grossa a do portllo de fra.
Barbara tomou-lhe o pezo.
-Eu nllo tinha bastante fora para desandar a
lingueta de uma fechadura tamanha!
A religiosa pousou as chaves beira de Martha,
e continuou fallando em milagres operados pelo fer-
vor, recompensas concedidas s almas humildes, ef-
fus<les de graa, e poder das reliquias dos santos,
particularmente de 8. Marciano, o qual, havendo
sido feiticeiro antes de converter-se ao christianismo,
revertra depois a sua prodigiosa sciencia ao allivio
e com10lallo do proximo.
Quando se apartou da porteira, recommendou-
lhe:
-Pea a Deus que a favarea com uma visllo
celestial.
Martha no cabia na pelle de contente. Nenhu-
ma duvida lhe passou pelo animo. O orgulho, sola-
pado n'ella inchou descompassadamente com a ida
edificar a christandade relatando os favores com
Deus a visitra. Quem sabe at se ella nllo viria
.ictar as suas memorias e vises, laia de Catha-
, Emerich, Maria d' Agrda, e quejandas? Agra-
--, portanto, ao Senhor o obsequio de servir-se
o;
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...
156
de Barbara como medianeira entre Elle e ella.
Orou pois com dobrada devolio, e, febril de santa
e orgulhosa impaciencia, esperou a hora promet-
tida.
Alguns dias volvidos, realisada a conjectura da
prelada, a cidade de Cracovia no fallava seno no
caso das carmelitas. Desde o amanhecer at ai noute
as curuagens rodavam no bairro de W esola. Quem re-
cebia no palratorio era o padre Zzimo. Como era de-
fezo o palestrar com as freiras, inaccessiveis ai curio-
sa indiscrio dos fieis, o confessor quem referia
o milagre. Pediam-lhe conselhos. Encommendavam-
lhe missas. Davam-lhe ricas esmolas para S. Jlrlal'cia-
no. O patrono de Cracovia S. Joo de Kenti perdeu
n'aquella semana qnasi todo o credito com Deus na
opinio dos cracovezes. O fervor seguiu as fiuctua-
~ e s da moda. A's temporadas, ha no mundo catholico
d'estas lufadas de devoo soprando para um ou outro
santo. As mais das vezes a egreja. quem as snpra.
Agora, a mumia de uma joven martyr achada nas
catacumbas, e logo o nome de Philomena ganha gran-
de poderio como intercessor&; logo, folheam-se ohroni-
cas para exhumar um santo pulvereo ai feio do bem-
aventurado Labre. E' de suppr que Labre, cujo
principal heroismo era ignorar que a agua lava as im-
mandicies, no comprehendia que tanto o velho como
o novo testamento recommendam a virtude da limpe-
za. Como que se curavam annualmente os enfermos
de Jerusalem ? Banhando-se na piscina. Como se
administrava o baptismo? Nas correntes dos rios. E,
nlio obstante, lde quantos livros asceticos ahi cor-
rem, estudae todas as regras dos mosteiros, e nota-
reis que o cuidado com o corpo tido em conta, D
s de perigo, mas at de imperfeilio. Ora, com
exemplo de Labre, nlto seria justo tirar do esqueci
martyrologio aquelle S. Marciano, o sabio confes
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I
.1
J
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A FREIRA NO BUBTERRANEO 157
da f? No se fallava, pois, de coisa em Cracovia,
que no fosse a resurreilto de Barbara Ubryk.
A clnica do doutor W robleski dobrou na se-
guinte semana.
O valor da reliquia tentava os enfermos tanto
como a sciencia do medico.
O honesto homem tinha farias intimas.
-Vs onde me leva a minha condescendencia?
-dizia elle a Ladislau- D'aqui a pouco estou sen-
do a fabula do povo.
-Porque, meu padrinho?.
-O' amoroso estupido! nlto vs o que por ahi
vae?
-Vejo que o preferem os outros medicos, por-
que meu padrinho o mais habil.
-Nilo isso-redarguiu Wrobleski batendo o
p.-Bem se lhe importa o publico do que eu sei e
do que estudei! O que me pedem que lhes applique
o maldito relicario. Catarrhaes, rheumatismo, dispe-
psia, tisica, paralysia, nevroses, que sei eu ! Querem
que tudo desapparea em vinte e quatro horas, do p
para a mito. J no sou senhor de tomar o pulso, de
estabelecer diagnost.ico e receitar. Quando me valho
d'estes expedientes, unicos que tenho, olham-me de
m catadura," e dizem-me: a Seja humano, doutor! J
-Ento que querem?-pergunto eu.-cAh! o dou-
tor bem nos entende .. J-No sei o que diz.-a:Nlto
me desampare ... -Encho-me de clera, e brado:-
E' preciso que a doena siga o seu curso regular.-
Hontem, um homem disse-me cara a cara: Quanto
quer voc por me curar de repente?- Nilo sou fei-
ticeiro, senhor; nlto posso.- E a freira carmelita?
e o reli cario de S. Marciano? J-Levantei-me furioso
e safei-me: Repito, Ladislau, tornaste-me ridculo, e,
d' aqui a pouco, odioso. No tardo a ser posto entre
os charlates e milagreiros.
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158 A FilEIRA NO SUBTERRANEO
-Meu bom e digno amigo- respondeu Zolpki
-responda aos que lhe pedem prodgios, que esses
prodgios se repetiro quando os supplicantes egua-
larem as carmelitas na santidade dos costumes.
-E' boa ideia essa; mas, meu pobre Ladislau,
tanto faz; da situao difficil que tu me no sal-
vas.
-Peo-lhe que por amor de mim so:ffra com
paciencia. D'aqui a pouco, tudo ser acabado, menos
o prazer de me ter soccorrido na empreza da minha
felicidade.
Zolpki no perdia tempo. Descobriu Casimiro,
seu fiel companheiro de infancia. Era este quem de-
via saltar para a almofada da sege em que Barbar&
havia de fugir. Resgatada do convento, esconder-
seia por alguns dias nos suburbios da cidade; de-
pois, iria. para Italia, Belgica ou Frana, para qual-
quer parte onde se podassem amar em paz.
Ladislau embolsou o seu patrimonio, herdado do
pae, com os rendimentos vencidos nos annos da sua
ausencia. Tinha pois dinheiro- esse ingente meio de
acalcanhar estorvos; e tinha tam bem inergica von-
tade para investir com as difficuldades da empreza.
Concorriam n'elle, portanto, a febre ardente do cora-
o, e a serenidade da fora, quando chegou o grande
dia esperado em Cracovia com diversas impaciencias.
Barbara fingira o seu ardil perfeitamente. A au-
sencia do cro, os passeios solitarios, as palestras
com Martha eram explicadas communidade pela
importancia do papel que a freira representava.
Ao oitavo dia prepararam-se os altares, e os or-
namentos da igreja.
Corria ento o mez de abril. Os jardins das ca-
sas nobres de Cracovia despojaram-se para aformo-
sear e perfumar o convento.
Sobejavam aafates de camelias, ramilhetes de
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A FREIRA NO SUBTERRANII!O 159
lilaz branco, e :B.res purpureas nascidas nos tropi-
cos e artificialmente aclimadas. Rendas de preo fa-
buloso, offerecidas por uma donzella em momento de
generosa devoo, adornavam o altar. Caoulas
enormes, cheias de vaporosos perfumes, recendiam
seus vertiginosos aromas.
A organista havia de ser uma carmelita de gran-
de habilidade.
Finalmente, como attractivo superior a todos,
dizia-se que Barbara Ubryk, concludo o officio,
cantaria um Magnijicat em aco de graas.
Depois seguirse-ia uma pratica do padre Z-
zimo, consagrado ao panegyrico de S. Marciano,
para corroborar a confiana nas reliquias cuja ex-
posio se faria depois.
O programma da santa ceremonia, em frma de
cartaz de espectaculo, foi profusamente espalhado na
cidade.
A' hora designada para o Te-Deum, o doutor,
vendo Ladislau a ponto de sahir, pergnntou-lhe:
-A que horas voltas ? '
-Talvez muito tarde. No sei quando termina-
ro t1s santas ceremonias.
- Vaes ouvil-a esta tarde, para ficr bem cert()
de que ella vive?
-Justamente; vou ouvir esta tarde aquella voz
querida! E ento, meu velho amigo, meu pae, o co-
rao de Zolpki o abenoar. ,
-E bem preciso que me ds essa compensa-
o, em desconto dos dissabores que vou tendo. S
feliz, Ladisla11 I
Zolpki apertou o doutor nos braos, accusando-s&
intimamente. da sua falta de confiana, porque no
ousava dizer-lhe que n'aquella noite raptaria Bar-
bara.
O doutor imaginava que o afilhado, certo da
o;
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.I
I
... I
i tiO A ll'llEffiA NO SUBTI!:llRANI:O
saude de Barbara, desistira dos perigosos inten-
tos.
Ladislau, querendo s6 para si a responsabilidade
e a censura que poderiam caber-lhe se a tentativa
se baldasse, desviava o doutor da minma cumplici-
dade, por entender que j bastantemente expozera
o honrado homem, levando-o a entregar o relicario,
que tamanho ruid causra na cidade.
Por volta das sete horas, comearam a repicar os
sinos do convento. A multido encheu logo a egreja.
Apesar do rigor da estao os devotos e curiosos es-
tanciavam deante da fachada do mosteiro. As ruas
convisinbas estavam cheias de trens. Na multidlo
de tantos vebiculos, ninguem reparou n'uma sege de
viagem, cujo cocheiro, envolto n'um ferragoulo que
o cobria at s orelhas, parecia impaciente sobre a
almofada.
Ao passo que as harmonias magestosas do orgllo
revoavam no templo, centenas de cirios se accende-
ram, radiando pelas naves uns clares magicos.
O padre Zzimo subiu ao pulpito, referiu a vida
de S. 1\Iarciano, animou os devotos a confiarem n'elle,
fez uma pathetica narrao do milagre, e qundo
abenoou o auditoria, um lisongeiro murmurio teste-
munhou o bom exito que elle obtivera com a sua
eloqnencia. .
Foi ento que, por detraz da grade que separava
as freiras do concurso do povo, se cantou quelle
cantico d'amor e triumpho que se chama MtJgnificat.
A voz de Barbara tinha grande volume; mas sobre-
tudo, o que mais a distinguia era o timbre metallico
e sonoro. Aquella voz no agradava s mente: des-
lumbrava, fascinava o auditorio, com inexprimvel
encanto.
Aquelle cantar enviava-o ella ao corao de La-
dislau, perdido na multido, esperando a hora de a
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w
I
J
-l
A li'RBIRA :NO SUBTBRRA:NEO 161
libertar. A alma extravasante de jubilo deixava
-exhalar .a sua alegria. Liberdade e amor vibravam
em todas as notas. O auditorio estremecia, palpitava,
porque a paixo de Barbara, trahindo-se na voz,
nltrav!' em todas as almas. o seu amor, que alli
chamavam devoo, era n'ella o exalamento verti-
ginoso da pithonisa antiga. Ao findar o sagrado
eantico, os fieis, electrisa.dos pela sublime artista,
estavam de p.
Correu-se ento uma cortina escarlate posta deante
do altar, e expz-se o cofre das reliquias de S. Mar-
(liano.
Cantou-se a beno do SS. Sacramento, o orglo
gemeu pela ultima vez os seus grandes suspiros, t?
depois lentamente os assistentes retiraram-se.
Entre os fieis havia dois homens, um dos quaes,
envolto no seu capote, to perto estava da grade
i}Ue encostava a face s rexas ; o outro, de braos
cruzados, parecia assistir pacientemente a um espe-
ctaculo.
Dir-se-ia que o homem do capote receava perder
uma s nota da voz da cantora. Durante o cantico,
a mo occulta comprimia as pulsaes do peito.
Quando se apagaram os ultimos brandes, sahiu
e l l ~ do templo, seguido do outro, e ambos se enca
minharam sege de viagem.
No havia j outra na rua.
O tropel dos cavallos, o rodar surdo das carrua
gens e o bradar dos cocheiros j resoavam longe.
Ladislau acercou-se do bolieiro e disse-lhe :
-Casimiro, agora vamos esperar. . Ouvi-lhe a
voz, e, pelo modo como. ella cantou, parece-me que
est prompta a sahir.
- Pois esperemos.
-Parece-me-disse o outro amigo de Zolpki, o
oonde Wenceslau- que seria prudente entrarmos
11.
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i62
ambos ua sege, para darmos menos que desconfiar.
Em emprezas d'este genero todas as cautelas e&<.
poucAs. -
Zolpki e Wenceslau entraram no trem.
No interior do convento comeava a reinar o si-
lencio do costume.
As freiras iam entrando para os seus eubiculos.
Maria Wenzyk, reconhecida a Barbara pela cele-
bridade que o mosteiro estava gosando, disse-lhe
separar-se algumas palavras affectuosas.
Barbara entrou na cella e assentou-se ua cama.
Uma freira passou pelo dormitorio, vigiando que
as freiras estivessem recolhidas com as portas fecha-
das. Barbara parecia dormir sobre a sua enxerga.
Logo que ella ouviu o rumor da ultima porta, e per-
cebeu que. a freira se tinha fechado, ergueu-se mui
de manso. Levantou com ambas as milos o alisar-
da porta para que os gonzos nllo rangessem, abriu o
bastante para sabir ao corredor, e s apalpadelas,.
e descala, desceu a escada.
Isto j era muito; mas a maior difficuldade es-
tava por vencer.
De que modo se apossaria ella das chaves d&
porteira? Era preciso seduzir a vaidade religiosa de.
Martha com os vll.os prestgios d'uma vislo. E' certe>
que a velha soror estava preparada para ella; mas,
se uma dvida, uma desconfiana lhe abalasse o ani-
mo, tudo estava perdido; porque ento Martha, irri-
tada por fazerem d'ella tola, romperia em furias
contra a desgraada Barbara.
Era mister representar esta oiystica fara com
rara destreza e imperturbavel velhacaria, ao
tempo que Ladislau esperava cheio de angustia e n
menos sobresaltado que ella.
Barbara atravessou o pteo e entrou no peque1
#'
'
o;
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A FREIRA NO SUBTERRAN'I:O
163
quarto habitado pela porteira. A lamparina eat v
apagada. Dormiria Martha ? Barbara esperou.
Nos conventos austeros em que o servio da. noite
interrompido pela.s rezas do cro, apenas as re i-
giosas se deitam adormecem logo. O pouco tempo
que teem de repouso no lhes permitte meditarem
antes de adormecer. Dormem para restaurar al o
tanto o equilbrio das foras corporaes. E n'aqu I a
noite, a festa mais demorada que o costume a.s ti ha
obrigado a velar mais duas hora.s; e por isso, u
bradas do canaso, haviam logo adormecido.
Barbara abriu a porta de Martha.
Conheceu que ella dormia pelo resonar egual d
respirao.
Martha costumava deixar as chaves cabeceira.
Barbara abeirou-se do leito : a porteira volto -se
n'este lance suspirando.
As mllos da freira procuravam na parede o mo-
lho das chaves.
Martha sonhava, murmurando:
-Vises! Quem me dra vises e consola es
espiritnaes I
A religiosa pz a mito sobre as pesadas chaves,
e pousou a outra na testa da porteira.
- Martha I Martha!- disse ella, com a voz ui
maviosa.
A porteira ia despertando, quando Barbara J es
tava de posse das chaves.
E a voz maviosa continuou:
-Eu sou Marciano. . . Venho reclamar as tu.1s
mais puras jaculatorias; e em paga eu te encherei
, t dons celestiaes. . . Sers a preferida. amante do
:sus, e toda a cidade maravilhada por em ti os
bos. . Ah I fecha tu os teus, cruza as mitos no
'to, reza piedosas litanias, e espera a realisa ito
minhas promessas.
o;
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164 A IPRIIIRA NO llUBT'I!lRRANI!:O
Martha, repartida entre a curiosidade e a ancia
de obedecer appariil.o, comeou a rezar; mas o
seu esprito fl.uctuando entre a realidade e o sonho,
nlo resistiu muito tempo ao somno : apenas teria no-
meado metade dos bemaventurados da ladainha, quan-
do adormeceu.
Barbara sahiu do quarto, e desafogou n'um sus-
piro immenso de exultao.
Estava livre I Ia abrir-se a pazada porta I D'ahi
a momentos estaria reclinada ao corao de Ladis-
lau.
Barbara achou a chave no mlho, fl-a rodar na
fechadura e a porta abriu-se vagarosa; transpz o li-
miar, entreviu uma sega na rua, e correu para ella,
exclamando: .
-Ladislau I Ladislau I
o;
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'
XII
A patrulha nocturna
Barbara. deixou a porta do convento aberta, para
evitar a bulha que e lia fizesse ao fechar. Pouco im-
portava que Maria W enzyk, ao chamai-a de manh,
:ficasse sabendo que a fugitiva deixra a porta e s c a n ~
carada.
Se uma religiosa das novas ou uma novia apro-
veitasse a liberdade de sahir, tanto melhor : em lo-
gar d'uma seriam mais as resgatadas.
Quando Zolpki apertou Barbara ao seio, tama-
nho foi o seu jubilo que as pulsaes do corao pa-
raram, a ponto de pensar que a sua alegria e a de
Barbara o matavam. .
A' claridade da lua, Zolpki viu-a mais bella que
nunca, n'aquella pallidez, envolta no manto escuro.
O vo tinha-se despregado, alvejava-lhe a touca na
fronte, adoando-lhe a fixidez penetrante do olhos.
Ladislau pde arrancar-se quella contemplao,
e tomando a freira pelo brao ajudou-a a entrar na
carruagem onde estava Casimiro.
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166 A FllEllL\ NO SUB'l'ElUUNBO
Nlo entrou, porm, tio depressa que uma patru-
lha, ao vtlr passar aquella sombra, nlo suspeitasse
algum mysterio nocturno. De salto, a religiosa so-
bresaltada sentou-se no fundo da sege; e Ladislau.
sahindo portinhola, exclamoll. a Casimiro :
-Marcha!
Mas o mancebo mal teve tempo de apanhar as
rdeas e dar alor aos e&Tallos. Um bando de guar-
das nacionaes desembocava da extremidade da rua.
Dissemos que corria entlo o mez d'abril de 1848.
Rebentra em Frana a revolulo de fevereiro.
A influencia d'aquella commolo abalou mais ou
menos todos os reinos da Europa, e tanto os impe-
radores como os reis, vendo que os povos despoja-
vam os thronos, tremiam por si, e redobravam te-
merosos a vigilancia da policia sobre a populalo.
A Polonia foi sempre dilectissima da Frana, e
d'ahi o crear esperanas de redemplo sempre que
um sopro de liberdade lhe bafejava d'alm.
A Polonia espera que a Frana a resgate. A AI
lemanha, cooperando na escravidlo da infeliz, nlo
lhe d motivo a confiar-se n'ella. A Hespanha de-
bil, e Portugal pobre. A It.alia tem muito que fa-
zer em sua casa. Nlo ha que esperar soccorro al-
gum do poder d'essas na3es.
A Irlanda catholica perseguida, imitalo da
Polonia, faz votos pela salvalo de sua irml. crucifi-
cada. Para salvar uma nalo nl.o basta a fora: o
q u ~ mais monta n'essa empreza o enthusiasmo.
A Frana arrojada. Ama a Polonia. Talvez
porque d'aqui lhe foi Henrique m? Ou porque lhe
deu Maria Leszinska? Nlo. A Frana folga de ser
invocada no livramento dos que padecem. Praz-lhe
atirar o seu gladio pezado ai. balana, a fim de a fa-
zer pender do lado dos vencidos. Quando a convi-
dam a ser arbitra, folga de ser a justia aa:mada, e
o;gitized by Goog I e
A J'REIRA NO SUBTERRA.NEO 167
:soberana reparadora. Foi em nome d'estes senti-
mentos que Carlos Magno declarou batalha 4 moi-
rama; e d'esses honrados intentos sahiu aquelle bra-
do de Pedr.o, o eremita, que arrebanhou a conjlll'a-
'lto senhorial dos cruzados.
A Frana traja luto quando a Polonia geme; e,
1
:se a aguia azul sangra e grita, a Frana responde.
Portanto, quando em 1848 o ecco da revolulo
repercutiu em Polonia, viria a ponto recitar estes
-versos de Barthlmy:
E os olhos fita no deserto iromenso
Do co profundo a aguia branca, e olhava
Me a aguia fraternal, que fere o espao,
Paira eobre Varsovia-a triste escrava I
O czar e o imperador d' Austria, os autcratas,
tremiam.
O throno do primeiro, bem solido em S. Pe-
tersbourg, vacillava mal equilibrado na Polonia.
Que farte sabia o imperador que povoar carceres,
.arruinar famlias, decimar a nobreza, nlo era extin-
.guir sentimentos de nacionalidade. Juncar a ~ i b e r i a
-de polacos nlo era esponjar a Polonia. Assim como
o sangue dos martyres, escalavrados pelas feras, nos
-circos de Roma, regou a arvore do christianismo,
do mesmo modo a perseguio redobra a vitalidade
das na<Ses captivas. Embora a Polonia fosse aspada
-d'entre os potentados, e agonisasse lentamente 4
mingua. de filhos capazes de a redimirem ; embora
-o congresso dos reis a retalhasse como objecto sem
-existencia pessoal- a desventurada resurgiria ainda
no esprito e corao de seus filhos. Piedade, res-
"eito e compaixo das na<Ses visinhas ser-lhe-iam
.as 1lres do tunulo.
O czar, entretanto, cobrava pavor.
A Astria nllo se dava por mais segura. Policia
o;
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168 A FREIRA NO SUI!TERRANEO
e patrulhas, formigando em Cracovia, exercitavam
-maior severidade. Farejavam conspiraes onde quer
que lhes negrejava um grupo nas ruas; se dois
ebrios se amparavam reciprocamente as
por alta noite, eram presos como jurados.
A demasia da desconfiana gerava a suavidade
arbitraria.
Era de vr que a patrulha, composta de guardas
nacionaes austracas, suspeitasse caso grave na seg&
que estanciava em frente do mosteiro.
O commandante mandou dobrar a patrulha, en-
viando metade dos soldados a rodear o convento, a
fim de que a sega fosse impedida, no caso de retro-
ceder.
Assim que descobriu tropa, Zolpki nil.o pde em-
bargar um grito de a:ffiicllo. Desceu rapidamente a
portinhola, e disse a Casimiro;
-Desandai
Com destreza e rapidez extremas, o mancebo-
conseguiu dar a volta. .
Barbara, cingida com Zolpki, murmurava an-
ciosamente:
Deus, meu Deus, eu nil.o estarei salva? ..
-Ests, ainda que eu perca a vidal-respon-
deu Ladislau.
Ao proferir estas palavras, estrugiu um grito de
furiosa angustia.
Os guardas haviam agarrado as cambas da sege,.
e Casimiro sacudira-lhes o chicote s caras;. depois,
desesperado, conhecendo que s a rapidez os salva-
ria, afoitou a fogosa parelha, que partiu a desapo-
derado galope, arrastando os dois soldados. N,..est&
lance, surgiram pela frente os dois que primeiro vi-
ram a sege, e lanaram-se s redeas, subjugando oa
cavallos, que estacaram eseabriando-se resfolegantes.
Casimiro saltou da almofada ; o encontro assu-
o;
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I
j
A JIREIB.A NO SUBTERRA!>"EE
t69
mia perigosas propor()es. Ladislau, com um brao
apertava a tremente senhora ao peito, e com a mo
do outro arrancava d'um punhal.
-Deus no quer ... -murmurou ella.
-Queremos ns!-respondeu Ladislau.
Depois, curvou-se portinhola, e disse com uma
pistola engatilhada :
-O primeiro que ergue um brao morto.
Honve um momento de pavor, e quasi desisten-
cia das patrulhas.
Pensavam alias que o reterem uma sega de via-
gem, sem ordem, poderia ser um arbtrio que o pro-
prio governo reprehendesse. Que era aquillo? Dois
homens e uma mulher que iam de viagem : coisa na-
turalissima.
O local onde estacionava a sege que no era
muito natural. Pois, se ella estava parada alguem
se esperava alli. A particularidade de estar postada
em frente do mosteiro das carmelitas, dava que pen-
sar. Alm d'isso, a freira, seno tinha o vo, dei-
xava vr a touca. Com toda a certeza era rapto, e
rapto de religiosa.
N'esta conjunctura, conspirava tudo para a per-
dio dos desgraados amantes.
Descobrir um mysterio d'amor, e dar-lhe frma
de escandalo religioso, foi para os soldados de Ora-
covia regalo que no cederiam a ninguem.
O momento do panico foi rapido. Quatro solda-
dos arremetterem s portinholas.
-Alto ahil- exclamou Ladislau- se so la-
dr5es que me assaltam a carruagem, recorro legi-
tima defeza.
-Para onde v !to?- perguntou um dos solda-
dos.
-Que lhe importa?-'- respondeu violentamente
Zolpki -A sua obrigao patrulhar as ruas de
o;
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i70 A J'&BIRA NO SUBTBRRANJro
Cracovia; ns nlo perturbamos ninguem, nem faze-
mos arrnidos. Larguem as rdeas aos cavallos, se-
nlo, eu nlo respondo pelo que acontecer.
-Eu que respondo que nlo passam adeante
que me digam os seus nomes, appellidos e qua-
lidades-respondeu um que parecia mais audaz e
um tanto alcoolisado.
- O meu nome- disse Ladislau com altivez-
Zolpki : sou polaco.
-Ol! um polaco que conspira desde creana 1
-Tem prudencia, por piedade I -disse Barbara
ao ouvido de Ladislau.
O moo sopezou a colera, e disse com grande es-
foro de serenidade :
-Os senhores j vem que a minha nacionali-
dade nada faz. Tanto monta que eu seja polaco co-
mo austraco. Os senhores parecem-me pessoas bem
educadas e idoneas para perceberem que n'esta car-
ruagem est ..
-Bem vejo.
-Respeitem uma dama; peo-lh'o em nome da
cortezia. '
-Queremos vl-a ... -disseram os guardas.
-Nuncal-exclamou Zolpki.
-Havemos de vl-a por fora -disse o com-
mandante.
Travou-se ento um conflicto horrendo. Abri-
ram-se ambas as portinholas a um tempo. Quatro
homens investiram com Casimiro, cujo punhal vi-
brou tres vezes; dois arremetteram a que
desfechou sobre um dos adversarios. Barbara, ape-
sar das supplicas e gritos, foi arrancada da carrua-
gem.
A lucta continuava. Casimiro batia-se desesp
radamente. Barbara, entre os braos dos guardas
escabujava de vergonha e angustia. A peleja era e-
Dlgltized by Goog I e
A FREIRA NO SUBTJ:l\RANEO 171.
carniada de parte a parte; mas desegual para Zol-
pki e seus amigos.
Os prodgios de valor prolongavam a lucta, e ex'-
tenuavam as foras dos defensores de Barbara. Zol-
pki, cercado de inimigos e j mal ferido, sustenta-
va-se ainda em p, terrvel e ameaador. Por fim,
() commandante fez-lhe um golpe de espada a uma
perna. O mancebo cahiu sobre um joelho; mas, com
um sabre arrancado a um dos g11ardas, e um punhal
na outra mo, exbauria os ultimos alentos com as
ultimas gtas de sangue.
-Barbara 1-murmurava elle- adeus. . que
eu morro! ...
Com desesperado esforo, a religiosa furtou-se s
mos brutaes que a retinham, e debruou-se sobre o
corpo de Zolpki.
- Ergile-te, Ladislau ! - exclamava ella - Tu
no podes morrer, porque eu sou livre e amo-te I
-O' minha amada filha I -disse elle, com a
j muito extenuada- foge aos ultrages d'esses
m1seraveis!
-No, emquanto viveres!
-Recebe o meu ultimo alento- disse elle, er-
guendo-se penosamente para appmximar os labios da
bca de Barbara.
Os labios d'ella foram como trespassados do frio
da morte.
Ladislau cahiu ...
E, apertando nos braos convulsos aquelle corpo
immovel, Barbara perdeu a de tudo que
a rodeava. .
-Ladislau 1-exclamava ella- reanima-te ..
vem. . . estes infames deixam-nos passar. . . Eu te
levarei nos braos. . . Ladislau, tu no me ouves?
O' Senhor, fazei um milagre I . Erguei-o, salvae-o,
meu Deus!
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t72 A FRIIIBA NO 8UBTICBRANIIO
Barbara, estirando os braos em vertiginosa ago-
nia, chorava torrentes de lagrimas.
-Ora vamos, lindinha I -disse um dos gaar-
das nacionaes---:- por cada namoro que se vae, vem
dez. E' nossa a menina por direito de conquista .
V-se que a galantinha nllo se d no convento, por
isso se escapuliu; mas amantes todos so uns! C&
estamos ns que sabemos amar tambem como se
quer!...
O soldado repuxou o brao de Barbara para a
leTar comsigo.
E ella, comprehendendo entlo o perigo que lhe
estava imminente, entendeu as ultimas palavras de
Zolpki.
O convento, a cujas austeridades fugira, j lhe
parecia o supremo refugio.
Morto o amante, que .lhe l entrar
para morrer ?
-Deixem-me, deixem-me I -exclamou ella-
que eu perteno nobreza ! Basta de crimes,
vadosl
-Deixai-a I restituir tio bella preza s car-
melitas! isso nlo andai Vamos ... Ns .. os ho-
mens do povo, tambem sabemos amar as lindas :fi-
dalgas.
A "freira, ao sentir-se aferrada pelo soldado, vi-
vrou um grito de pavor, arrancou-se-lhe dos braos,
e fugiu na direitura do convento. Mais dou.s passos,
e estaria salva. Transposto o adito do pateo, no te-
ria mais que receiar; mas o guarda seguiu-a, excla-
mando:
- Venha comnosco I
- Matem-me, se querem ..
E esforou-se por entrar a tempo que o sino d<J
segundo nocturno j chamava para o cro. Conseguir
desapo11sar-se dos acelerados ; entrou a portaria
o;
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A FREIRA NO SURTERRA.NF.O 1.73
mas, quando ia a fechar a porta, o chefe da guarda
estorvou-a, gritando:
-Ns vamos chamar a communidade, se nos
n o segue.
-Chame!- bradou ella, correndo para o inte-
rior do mosteiro.
austraco ainda lhe travou do habito, dizendo
a altos brados:
-Fechem as portas, que foge uma freira I
Na extrema do corredor perpassava ento uma
fileira e sombras: era o rebanhd dali religipsas que
ia entrando no cro, e todas se desgarraram ao ou-
virem a voz d'um homem. Porm, a prelada, a sub-
priore .a e a porteira, as tres mais responsaveis da
fuga., avanaram para a desgraada Barbara.
1t1 ria Wenzyk, dirigindo-se ao guarda nacional,
disse:
Quem quer que seja, senhor, grande o ser
vio que prestou religio, prevenindo um grande
escandalo; entretando, queira sahir sem demora
d'est casa, onde defeza a entrada de homens.
O soldado, primeiro fez um passo frente, depois
outro rectaguarda, e sahiu.
No mesmo instante, o sacristo Gregorchyk foi
direito a Barbara, obedecendo ao aceno da prioreza.
Jlriartha, errando os punhos, invectivou-a furio-
samente:
- Miseravell prometteste-me visitas de S. Mar-
ciano para te sahires bem dos teus infames proje-
ctos! No ha bastante penitencia que castigue a tua.
hypocrisia e malcia.
arbara no respondeu,
- As correntes 1-disse a prioreza. ao sacristo,
1 immediatamente sahiu.
J dissemos que estes succssos passavam por
a noite de abril, fria e clara. Terror, curiosidade
o;
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ll'llBIIl NO BUBTEilllANJIJO
e desejo de vingana retinham alli todas as freiras.
Nenho.ma pensava em ir ao cro. As monjas anti
gas aciamavam no rigor das penas infligidas s reli-
giosas delioqo.entes ; as novas, em c ~ j a s almas os
sentimentos humanos ainda nlo haviam morrido,
tremiam de susto e escondiam as lagrimas sob os
vos.
Santa Angela e Cinco Ch&oooas davam-se as rolos
em silencio.
O sacristllo chegou com as cadeias e golilhas de
enorme pezo.
-Prenda a criminosa- disse ~ prelada.
Barbara oifereceu os braos.
Quando os delicados pulsos comeavam a esver-
dear-se, apertados pelas golilhas, a prioreza fez esta
concisa indicao, mais para horrores que longas
phrases:
-Cova negra.
Gregorchyk solevou uma cadeia que rojava no
chio, e Barbara, cambaleando, seguiu.
As religiosas contemplavam-na.
Um grito de piedosa magna fagiu do coralo de
Santa Angela.
-Qual das senhoras em to pouco tem a honra.
d'esta casa, que lastima aquella miseravel?-per-
guntou Maria Wenzyk.
Uma novia afogou na garganta um soluante
gemido.
A prelada, alongando o brao na direclo do
cro, disse glacialmente:
-Vamos cantar o officio.
Minutos depois, na egreja alumiada, 'resoava a.
psalmodia. Ah I Foroso confessar que os psalmos
de David tem menos preceitos de amor e caridade
que sdes de vingana e sentimentos de odio. O
propheta-rei, que nunca perdoou injurias, nlo se sa ..
o;
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- ~ I
I
I
I
A FRZIRA NO SUBTERRANEO 115
tisfaz odiando: emparceira nas suas vinganas o Se-
nhor.
Em nome de tudo que fez bom, roga a Deus que
o ajude a fulminar os inimigos, <<Ho-de rojar-se-me
aos ps, diz elle. Pulverisal-os-hei como p que o
vento espalha; e farei que se sumam com a lama
do c minhos. Senhor, julgae quem me no faz jus-
ia. Arrancae do gladio, e atravancae o transito
aos que me perseguem; que trevas lhes obumbrem
o caminho, e o anjo do Senhor nil.o cesse de os ator-
m n ar. Esmagae meus inimigos com o peso que
elles querem sobrepr-me, e exterminae-os, consoante
promeLteste. , . Elles soffrerllo fome como eles; diva-
gar lo em volta da cidade, errarllo dispersos cata
de alimento, e nunca se fartaro. Que os olhos se
lhes escurentem a ponto de cegarem; fazei que o
dorso se lhes derreie para o cho; cubri-os de vos-
li& colara, e sobresaltae-os com o furor da vossa
indignao; que a sua habitao seja erma, e no
haj quem lhe pove as tenda&.
Os psalmos de David sempre nos pareceram as-
saz improprias para serem cantados nas egrejas ca-
holicas.
Primeifo, porque essas poesias sllo bblicas, sa-
turadas do esprito da lei antiga, que era a lei de
Ta li o, da colera e do rancor; depois, os psalmos
de David alo personalissimos para se ll.propriarem
generalidade dos fieis. Poucos so os cantares de
raa e triumpho que possam quadrar com a uno
religiosa.
Posto isto, vem de molde inquirir porque que,
ilurante os officios, fazem cantar nossas filhas inno-
ntes as phrases dos pesares de David, assassino e
lnl ero? D'esta anomalia o correctivo unico rea-
ndarem-nos que os psalmos so ditos em lingua
Boonhecida ao maior num.ero de christllos. Pois a
o;
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i76 A FREIRA NO 8UBTERRANEO
egreja catholica nlo pde formular preces, crear ex-
presses contrictas, compr as supplicas adequadas
ao seu esprito, culto e esperanas "/ No houve santo
ou doutor da egreja com tanta inspiralo para resu-
mir o pensamento do Evangelho. Praticamos um
culto, e pedimos emprestadas a outro culto as nos-
sas rezas. Pedimos vingana contra nossos inimigos
quando Christo nos mandou que offerecessemos uma
face logo que nos esbofeteassem a outra. Imploramos
o Messias, e o M e s s i ~ s ba dezoito seculos que veio.
Fallamos de sacrificios abolidos, usanas abrogadas,
leis de sangue mudadas em leis de misericordia.
Os psalmos de David, se os considerarmos clamo-
res humanos, lastimas de poeta, canticos doloridos e
lacrimantes, slo admiraveis. O poema de Job, com
eBBes outros poemas, representam a mais egregia ex-
presslo de magua. Vibra entbusiasmo grande nas
odes lyricas. Foi e eternamente ser um excellente
poeta David. Quem desconhece a poesia bblica ca-
rece do mais acrisolado elemento da poesia univer-
sal. Como quer que seja, as poesias do propheta-rei
devem ser lidas, pensadas, e admiradas como se admi-
ram todos os poemas notaveis. Somos, porm, de
parecer que a egreja catbolica deveria expungir es-
sas fezes de judasmo, e recompr oraes barmoni-
cas e congruentes com o culto que derruiu comple-
tamente o dos hebreus. No irracional coisa que
os israelitas e catholicos psalmodiem os mesmos ver-
sculos? As fadigosas intrepretaies dadas pelos pa-
dres a certos trechos de David e Salomlo alo nova
prova da insufficiencia do rito cbristo. J nlo faze-
mos caso do cantico dos canticos mysticamente ao-
plicado egreja : isso entlo um esforo de eng
nho que j nlo embaa ninguem. Mas tio altame
te injurioso que n'um templo se pea a Deus q
fulmine os nossos inimigos, como o estar-se ab:
o;
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A ll'1llmU. MO !11JBTJIIUlAKIIO 1T7
rememorar os deliquios da Sulamita, emquanto o
rei lhe pe a mo uqusrda aob a cabe9a e com a di-
rfJia a n' &la.
O concilio, que tantas cousas trata, nlo podent
reformar na egreja wna u.sana que nilo p6de ser des-
culpavel por ser muito anciil? Deixae que os psal-
mos de David se leiam como poemas ; mas expur-
gae-os ds ora&s christils. 08' pezares das multi-
d3es nlo se acham bem exprimidos nos clamores do
assassino de Urias e do amante de Bethsab. Se
existisse officio especial para uso dos grandes crimi-
nosos, convenho que a explosilo d'esses remorsos
viesse " ponto; porm, quando uma menina inno-
eente se ajoelha ante o altar, com a candura dos
quinze annos, parece-nos que a afi.nailo da sua al-
ma desta d'isso que canta, e que o excesso do re-
morso de David p6de dar-lhe vontade de querer sa-
ber que crimes elle expiava com as suas choradei-.
ras.
Em resumo : quizeramos que os padres
cos se servissem das ora(Jes catholicas. Porque que
88 muda o ornato dos templos e as ceremonias que l
se celebram, se os sentimentos, que ahi se exaltam,
slo os severamente reprehendidos por Jesus?
Mas emquanto esta logica Dilo entrar na chris-
tandade, invocaremos com David a colara celeste so-
bre os transviados, como se Christo nito houvese di-
to : c V ae mais alegria no co pela conversito d'um
que pela perseverana de noventa e nove
JUStos. :t
E n'aquella noite de abril de 1848, as religio-
sas carmelitaoas de Cracovia pediam a Deus que
trovejasse sobre a criminosa, e a esmagasse sob o
seu opprobrio
u
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XIII
O tribunal das carmelitas
Eram passados dias depois que Barbara fra en-
carcerada na priso donominada por Maria W enzyk
a Oooa Mgra. .
Era uma espeoie de ante-camara do I n - p a ~ .
Prendiam-se ahi d freiras incursas em algum de-
licto, emquanto no eram sentenciadas no tribunal
lllonastico.
N'esse tribuoal negrejavam ceremonias lugubres
com o intuito de aterrar as espectadoras do drama,
Ef espavorir a fantasia das novias e recentes profes-
sas. Qualquer successo avultava enormes propor008
aos olhos de mulheres privadas de distrac()es exter
nas. Maria W enzyk procurou nas tradi&s do con-
vento memorias deixadas por suas antecessoras do que
praticaram em arial9ga oceorrencia. Como no achas-
se alguma particularidade, tratou de copiar servil-
mente as excommnnhles usadas na idade mdia.
A communidade gastou dois dias nos preparati
'VOS funebres.
Parecia ter esquecido Barbara na COtJa negra.
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lSO
Esta masmorra, de frma quadrada, recebia a
luz por um postigo gradeado. O pavimento era de
ladrilho. Uma tarima, com sua manta, e um esca-
no, eram a mobilia do lobrego recinto. Nlo havia
ahi o pio da amargura, nem a agua das angustiaa:
era completa a abatinencia. A religiosa que entras-
se n'essa sepultura, fosse qual fosse a demora, soE-
fria Bde e fome. Barbara, em meio das grandes
d6res que lhe dilaceravam o seio, 8BC&8Bamente sen-
tia aquelles tormentos. De ai, do seu existir, do que
era e do que viria a ser, parecia de todo despreoo-
cupada. Apenas uma palavra lhe deacerrava os bei-
os requeimados : c Zolpki I
A morte absorvia aquella desgraada.
Era-lhe conaolalo a esperana de morrer exa-
nime 4 mingqa de alimento.
Envolta no seu habito, prostrada no oatre, co-
brindo as faces CQm as mlos, deixava passar aa ho-
ras. A escuridlo da ova negra era-lhe grata, por lb.e
parecer que alli comeava a noite d tumulo. Aben-
oava e nlo maldizia as mulheres que a condemna-
ram. Matavam-na, haviam com ella a miserioordia
de a matar, se lhe faltasse a coragem do auioidio.
J4 nlo existia para ella o sentimento da vida
actaal. Se a intervalloa as mloa lhe eatremeoiam no
seio, nlo saberia dizer que dres lb'o dilaceravam;
o q u ~ ella sabia ao certo que morria, acoeitando
sem resistencia o amargo calix da morte.
Ao cabo do segundo dia. a portinha da Cova,._
gN deixou passar uma sombra indecisa..
Um ente vestido de negro, cuJas vestes roavam
na parede, com ama lanterna de furta-fogo, entrou
na camara lugubre, JM!Ddurou a ~ m p a d a n'um pre-
. go que decerto conh8Cia, approltlmou um eacabello
para a beira do grabato da religiosa, e aaaentou-ae.
A encarcerada nlo abriu os olboa.
oigitized by Gqog I e
A :rRJ:IRA NO SUBTftllANBO
1(1{
-Barbara I Barbara! -disse uma voz trmula.
-Que me querem?-perguntou a freira levan-
tando-se.
-Confessai-a-respondeu o visitante.
Barbara ergueu-se de salto, exclamando :
-Fra! fra d'aqui!
-Porque recusa escutar-me, minha filha?- per-
guntou o padre Zzimo com perturbao.
-Porque nlo commetti falta de que me aecuae a
consciencia : .nlo tenho que confessar.
-E a infidelidade que quiz commetter contra
os seus votos?
-Isso com Deus e com migo.
-Pois em nome de Deus que eu pretendo fal-
iar-lhe.
Barbara sorriu desdenhosamente.
-Ousa appellar para a justia divina?
-Decerto ..
-Olhe-disae Barbara-eu vou morrer, e mor-
rer de fome n'esta cova, porque ha dois dias me nlo
deram nada ; pois creia que este supplicio nada em
comparalo do horror que me faz. a sua presena ..
Nlo sei porque, a sua visita a esta hora liga-se A
lembrana d'uma terrvel vislo .
-Qual? -perguntou Zzimo.
-Lembre-se da sala da penitencia.
-A minha filha est sonhando. . Mas o que
terrvel realidade. . . i castigo que lhe preparam,
e do qual s eu poderei lalval-a .
-Estou resignada. .
-Porque cuida morrer, como ha pouco disse ;
mas conhece mal a justia dos conventos, se cuida
que o seu castigo ha-de acabar tio depressa.
-Pois nlo me hlo-de deixar morrer de fome?
-Nio.
- Entlo que me fazem?
o;
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~ l l ' l l a l l ~ NO BUBTlllalU.N_,
-Ha-de ser julgada primeiro.
-Estou prompta; e nada responderei s accu-
sa3es que me fizerem .. Tentei fagir, a fatalidade
nlo quiz; sofrrerei o castigo.
- Entlo nlo teme o carcere perpetuo, a tortura
infinita, um trespasse dilatado gta a gta de sangue?
_:_zolpki est morto l-disse Barbara soluando.
-E' tio nova-replicou o padre Zzimo-de-
ve querer a vida. Deve amal-a seja como fr .
Faz-me compaixAo, Barbara. . Esqueo-me de que
nunca deixou vr ao confessor toda a sua alma .
Quero arrancai-a a este longo supplicio. . Confie-
me o seu destino. Deixe-me salvai-a.
-Para que?. . Nlo quero salvar-me.
-Mas queria fugir ...
-Sim, porque me seguia o homem que eu amava.
- Sacrlega l Ousa confessar esse crime I
;-Tanto importa confessai-o c o ~ o nlo. . . Ar-
guiu-me. ha pouco de que eu lhe nlo abrisse franca-
mente a minha alma. Vou agora oontar-lhe tu-
do ... Se quizer, absolva-me depois .. Eu nlo vim
para aqui por vontade. Amava um homem, quando
meu pae me trouxe a esta casa. O sacrificio da mi-
nha liberdade era a paga da vida d'esse homem.,
que eu tio barata comprava. . Trouxe para aqui a
imagem d'elle, no mais intimo da alma. Eu jurra.
de entrar no Carmelo, mas viver aqui nlo .. Espe-
rava que o meu amante, um dia, me arrancasse de
c. . . Passaram-se as sema\as e os mezes. Aca-
bou-se a esperana. . Ento esforcei-me por me su-
jeitar vida que me deram, humildei-me, silencio-
sa, casta, mortificada, e estudei o esprito da regra
para cada vez mais o observar. . E j quando
serenidade comeava em mim, entlo duvidei do.,
lor que tem n'esta casa as palavras virgindadf
pudor... '
Dlgltized by Goog I e
183
-Que quer Barbara?
-Eu no sonhava, no, n'aquella horrenda no.i-
te, em que fui conduzida s sturnaes dos supplicios,
seguidas de noutes, sacrlegos prazeres a mi-
nha lngua no ousa proferir. . Comprehendi, na
-casa das torturas, a voluptuosidade que ertas pes-
achavam na contemplao das minhas irms
nas, e no espectaculo da carne palpitante. Compre-
bendi que no se tratava s de penitenciar freiras,
mas sim de as suspender nas na cruz, parodian-
-9-o o drama do Redemptor do Calvario, em provei-
dos sentidos d'um homem. . . Comprehendi tudo
isso, que me indignou, e luctei para que me nito des-
pissem o meu vestido de estamenha; porque o meu
11eio seria indigno de palpitar, se uma vez se prosti-
tusse em semelhante assem bla. . . O meu futuro, o
meu amor, a minha felicidade tudo estava perdi-
do. . Restava-me s o corpo, que eu jurra guar-
dar casto e puro, apesar de todas as violencias .
E foi dentro d'estas paredes, erguidas para me prote-
gerem, que se tentou contra a minha virgindade .
Oh I que horror se fez na minha e me lanou
por terra, sem alento, quasi morta, quando o res-
plendor d'uma fingida aurora, mostrando Santa An-
gela crucificada, me mostrou, padre, a sua cara ar-
dente de lascvia, a espreitar por um secreto postig
da parede! ...
-Enganou-se, Barbara.
-Enganada I oxal 1 Pedi a Deus que me desop-
primisse de tal lembrana, que me arrancasse da
ida o phantasma que me perseguia sem descano !. ..
E sempre deante de mim aquelles olhos fulguran
tas que me horrorisavam . aquella incessante ten-
tao que eu debalde espancava I. E ainda mais ...
As confidencias de Santa Angela.
o;
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A J'llnll A l'fO I!Uli'MnlllA'NIIO
Zzimo estremeceu tofto desde as unhas dos ps
at raiz dos cabelloa.
E Barbara continuou:
-Cuidavam que eu fosse tio simples que m&
deixasse lograr por taes artimanhas. . Fizeram-me
o favor de me nlo dar importancia. . Eu vivia no
mosteiro como se nlo foBSe nada J me nlo fal-
lavam de mortica&s nem goaos de amor divino.
Graas dava eu a Deus por isso . E mais fervoro-
rosas lh'as dei, quando me senti morrer, morrer da
ooneumplo do claustro, do frio que reesumbra d'es-
ta.s paredes e congela a alma . Sentia-me
cer para sempre depois de amar, luctar e soffrer ..
Ia para Deus, sem macula, e coroada pelo meu mar-
tyrio . Aooeitava a morte com as mlos erguidas,
quando de repente uma palavra me resuscitou
O amado da minha mocidade voltra . Chamava-
me aos seus braos. . Fui, sem terror do passo que
dei, nem mdo de castigo, se a fugida se mallogras-
se .. Chamava-me . corri para elle J eu lhe
aentia o bater do coralo. . eramoa livres. ia-
mos esquecer oito annos de apartamento, quando
um raio nos subTerteu. . Elle cabia por terra en-
depois eu .. Mas que valho eu
j agora?. Estou perdida . . e resignada ...
-Perdida, sim, se se obstina a querer perder-se.
-Obstino-me s em querer morrer.
-Diga uma palavra, que eu salvo-a.
-0 senhor?
-Eu, sim, Barbara. Eu, que posso contra-
pr a minha vontade de Maria Wenzyk.
-Pois pde trahil-a?
-Sim. . . por sua cauaa. . posso I
-:-Santo Deus I e que horrvel preo quer por tal
881'V1O?
-Que me nlo odeie.
o;
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i'
I
A JPB.BJRA :NO SUIITBl\RANBO 11:!5
- Nlo ha odio onde ha desprezo.
-Deixe-me ser o director da sua alma e eu farei
que U renasa o amor vida. Quer sahir d'esta mas-
morra? quer voltar ao seu poeto no cro ? Diga que
sim, e Maria Wenzyk ser sua subdita ; o poder
que ella tem ser seu. . hei-de tornai-a indepen-
te de todas para que seja exclusivamente minha.
- Miseravel f -fremiu Barbara- Miseravell
vem aqui fingir piedades, prostituir compaixOO& no
carcere d'uma condemnada morte I Tem a o.usadia
de apresentar minha raslo que se perde, o quadro
das devassidOO& infames f Vae-te, acelerado I vae-te,
nllo manches este ergastulo que d'aqui a pouco ser
uma sepultura I vae pedir que me carreguem de fer-
ros, nlo peas o meu livramento. Apostata I sacr-
lego I devasso, torpissimo padre que tu a I Se a
eternidade vingadora existe, os teus crimes hlo-de
ser castigados f
Zzimo parecia impassvel ira de Barbara.
- Ha cinco annos -disse elle- n'aquella noite
em que quizemos contar uma nova eleita, como eu
visse a sua rebeldia e a julguei motivada por senti-
mentos de pudor, respeitei-a Hoje, porm, o caso
diverso. . Hoje sei que esta virgem do Senhor
nl9 se esquiva a ser d'uin homem, pois que fugiu,
de noite, do convento A sua castidade , portan-
to, uma impostura. . A menina j sabe o que alo
as delicias do amor e sabia em procura d'ellas. J
nlo vejo na senhora a esposa immaculada. A infide-
lidade moral consummou-se. O desejo venceu-lhe a
vontade... o seu peito sentiu as p u l s a ~ e s d'outro
peito. . uns braos a fizeram estremecer nos seus
apertos... as volupias arderam-lhe no sangue .
a sua virgindade est perdida. . e o meu respeito
cessou .
-Se assim , respeite-se a si proprio, padre.
o;
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11!6 A 1'011\A NO SUBTKBllANJ:O
Amei um homem livre, que nada devia sociedade
nem a Deus. O snr. padre Zzimo um sacerdote.
um confessor, um impudico, um sacrlego, um inces-
1uoso, um adultero, um infame dos que costumam
ser suppliciados no fogo.
- Tenciona denunciar-me? - bradou elle cres-
oendo para Barbara.
Elia afastou-o de si com um repello, apesar de
ter as mos algemadas, e gritou :
- Socoorro I meu Deus I soccorro ! Matem-me,
mas livrem-me d'este malvado homem I
No obstante, Zzimo agarrou da victima pelos
hombros, sobre a tarima chumbada na
parede.
N'este lance abriu-se a porta.
A prelada entrou.
Barbara arrastou-se at aos joelhos d'ella, que
lhe parecia j menos horrenda que o padre.
- Condemne-me I faa que eu morra nas maio-
res torturas ; mas tire-me este padre d' aqui . tire-
m'o, que a minha agonia nilo pde com a torpeza da
aua presena. .
-No ha que fazer d'esta rebelde-disse Z-
zimo com uma voz seraphica- est obstinadissima.
-Nilo era esta a hora nem este o logar para
ensaiar o triumpho- disse Maria Wenzyk em tom
de voz vibrante de colera- e estou quasi em dizer
que o seu excesso de zlo um abuso de confiana ..
Ora vamos, meu padre, n'este instante esta mulher
depende de mim e de Deus.
- Pensei que devia preparai-a para o castigo
que deve soffrer.
- Covarde hypocrita I -disse Barbara- Nem
sequer tem a coragem da sua villania I
-Maria-disse Zzimo a meia voz prioreza-
haja-se com ella sem piedade.
Dlgltized by Goog I e
A l'llBDlA NO SU.BTEIUlANEO
- D e s ~ n c e que ha-de ser o juiz.
O padre sahiu da Cova negra.
187
No corredor estavam Gregorczyk, a porteira e
-duas das mais cQrpulentas freiras.
Ai I nllo era precisa tanta gente para subjugar
a desgraada menina 1 Barbara exhaurira-se de for-
-as; estava para alli cabida nos ladrilhos sem voz
nem respirao.
Martha levantou-a.
Barbara cambaleava.
-Leve-a-disse a prelada ao sacristo.
Quando elle lhe pz a mo no brao, a freira
sacudiu-se d'aquelle contacto, recuando at parede.
-Irei ssinha. . digam-me para onde. ex-
clamou ella. .
A prelada e a porteira iam na frente ; depois
seguia-se Barbara, esooltada pelo sacristo e as duas
irms conversas.
Sahiram as escaleiras, foram ao longo dos corre-
dores e entraram no claustro.
O sacristo sahiu. Minutos depois, os sinos tan-
.geram um dobre a finados.
Martha abriu a porta da egreja. Estava orna-
mentada de negro. No altar um grande crucifixo e
um vaso de agua benta com o seu hyssope de buxo.
A porta do sacrario estava aberta, e l ao fundo
scintillava o ciborio. A toalha do altar, lanada sem
o costumado alinho, queria dizer que havia grande
perturbao nas aras do Senhor.
Por de cima dos brandlSes negrejava uma espe-
cie de escudo funerario sustendo uma caveira.
Este lugubre apparato espavori11 a religiosa e x ~
tenuada pela fome. Que vinha a ser aquelle acena-
rio? Qu.al seria o acto final do drama sinistro?
A prelada pz um vo sobre o rosto de "Barbara,
o vo que ella quando fagia tinha perdido.
o;
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t88 A J'llEillA NO SUBTERRANEO
-De joelhos I -disse-lhe-ella indicando-lhe o lo-
gar marcado no pavimento.
E o sino continuava a dobrar.
As religiosas entoaram o DtJ profun..
Acabada a funebre cantoria, as freiras ordena-
ram-se em circulo, e a prioreza, subindo o degraa
da balaustrada, e olhando de travez sobre a reli-
giosa ajoelhada, disse :
-Barbara Ubryk, confessas q u ~ professaste n'es-
te mesmo tribunal votos de obediencia, de clausura,
de penitencia e castidade?
- Confesso- respondeu Barbara, tendo como
coisa indigna de si lembrar n'aquelle local a vio-
lencia que seu pae lhe fizera.
E a prelada continuou: .
- Infringiste o voto de clausura transpondo o
limiar do mosteiro; infringiste o voto de castidade,
seguindo um homem ; o voto de penitencia, voltando
a procurar as delicias do seculo; o voto de obedien-
cia, infringindo todos os mais. Confessas?
-Confesso.
- Para salvarmos tua alma, que a teu pesar sal-
varemos, vamos castigar o teu corpo. Pois que
deixaste o Carmelo, sers preza toda a vida, co-
mendo o pio da amargara e bebendo a agua das la-
grimas. Pois que faltaste obediencia e quebraste o
jugo do Senhor, gemers at hora derradeira que
o co te dr. Nunca mais voltars ao gremio de tuu
irmls. Eu te repulso do rebanho, ovelha tinhosa;
eu te privo do vo, mulher sem pudor; eu te arran-
co dos hombros a veste das esposas de Cbristo, pros-
tituta de Silo I Em signal de castigo e a1frontamento
cada uma de tuas irmlls far gotejar de teu corpo
algumas gtas de sangne. Em signal de apartamento
absoluto nlo s6 do claustro} mas tambem do altar,
eu te privo da agua lustra , em que os teus dedoe
o;
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A Jl\BillA NO SUBTtilllANBO
189
nunca mais 86l'lo molhados, e regarei com ella o
cho do templo. . e apagarei com o meu p as lu-
zes santas que alumiam no88&8 santas ceremonias
Sers para sempre privada da Eucharistia, que as-
sim o vs no tabernaculo aberto e na custodia va-
sia. . Prohibo at que j.mais pouas beijar o cru-
cifixo. Maldita sejas em tua alma que concebeu o
crime, e que a bestial demencia de Nabuchodonosor
.se aposse d'esse cerebro que engendrou planos de
fuga. Maldita sejas em teus ps que transpuzeram
as grades sagradas; paralysem-t'os a dr; lancem
raizes nos ladrilhos do teu carcere I Maldita sejas
na belleza do teu rosto e das tuas frmas I Que teus
olhos se cavem . fora de chorar, que teus cabellos
alvejem precocemente, que tua cintura se curve e
retora, que tuas unhas cresam como as das bestas-
feras, que tua voz rouqueje fora de gritar I Mal-
dita sejas n'esses olhos que vir(l.m um homem, n'es-
ses labios que beijaram um rosto, n'esses peitos que
o cingiram a ai I Maldita sejas n' este mundo e no
Qutro, pelos homens e pelos demonios, privada de
absolvilo hora da e queimada eternamente
nas lavaredas da Ghenna I
Maria W enzyk, proferindo tal apostrophe, era
realmente medonha I A estatura do seu corpo
..cia maior, as dobras do habito eram como as azas
negras d'uma ave nocturna; em p, no meio dos va-
sos santos dispersos, dos cirios apagados, do crucifi-
xo arrojado ao sop do altar, parecia a imagem da
destruilo, a estatua animada do rancor. Consoa-
vam-lhe os olhos em meio da face acobreada. Tre-
miam-lhe as mos no vibrar das maldies.
Barbara fitava-a, escutava-a; mas nlo a via nem
ouvia.
A os beios da religiosa crispavam-se,
vagindo este murmurio :
o;
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i90 A li'BEUU. NO SUBTERRANEO
- Zolpki morto ! . . . mataram-no ..
Findas as formulas do anathema, quatro freiras.
se acercaram da condemnada.. D'est& feita, apesar-
da grande resistencia, despiram-na at cintura, e
cada freira, armada de disciplinas com pontas de
ferro, verberou-lhe as espaduas.
O sangue espirrava s faces das atormentadoras.
Nem um gemido nos la.bios da suppliciada! E'"
que Dito ha. comparar aquella dr physica indiz-
vel angl18tia que lhe ia na alma! A infeliz abenoa-
va a tortura, porque esperava morrer n'ella.. Alque-
brada pelos jejuns, pela desesperalo e pela luct&
com o padre, e vendo-se a braos com aquellas mulhe-
res mais encarniadas que verdugos, julgou que i&
acabar, que o frio que lhe inteiriava os membro&
era o da morte, que do spasmo em que sentia esvair..
se nlo acordaria jmais.
As freiras espancavam j uma coisa inerte, um
quasi cada ver. .
Quando o sangue borrifava o pavimento da egreja,.
a prelada ordenou freira que a seguisse.
Barbara nlo deu signa.l de vida.
Martha, debruando-se sobre ella, disse:
-Parece-me que morreu.
Cobriram-lhe o peito avergoado com um vo de
estamenha. escura, tomaram-na em braos duas frei-
ras, e outra pelos ps, e conduziram-na frente d'um
longo cortejo.
- Ao In pace!- disse a prelado..
Cessou o dobre a finados.
Desceram uma escada tenebrosa. Abriuse a porta
da masmorra. La dentro, no canto, uma pouca de pa-
lha, uma bilha d'agua, um pito negro.-.. o plo da.
amargura e a agua. das angustias ..
Barbara continu.Va desfallecida.
o;
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A FREIRA .NO SUBTBRRANB
t9t
As freiras deitaram-na sobre a palha; tirando-lhe
as algemas.
A prioreza encarou-a, e disse:
-JJ'ica em paz.
No mesmo dia, na cidade de Craoovia, soube-se
que o dobre a finados no mosteiro tangia quando se
estava sepultando Barbara Ubryk, morta na paz d
Senhor.
lN PACE!
Quando emergiu de sua lethargia, estava ssinha,
Era noite alta. Estendeu os braos, e roou as mitos
na parede. Levantou-se, quiz ter-se em p, nllo p-
de, recahiu sobre a palha que lhe era cama. O
sopitamento, nova frma. da alma aniquilada, fur-
tou-a por momentos crua realidade da vida. E,.
quer fosse consolao quer ironia, sonhou com o jar
diin de seu pae, e viu, claridade da lua, Zolpki.
o moo, o gentil, o amante arrebatado; e ouviu-lhe
as promessas de eterno amor, e viu que elle lhe des-
cerrava as portas do paraizo d'onde os anjos sito
desterrados. . . Jubilos ineffaveis e puros a endoude-
ciam, quando os beijos do amantissimo esposo lhe
sorviam o halito.
Raiou a estrella da manhit, e o presente lhe
avultou em toda a sua negrura. Abriu os olhos e
conheceu onde estava. Era um quarto subterreo,
caiado, sem moveis. D'uma fresta alta coava-se luz
froixa; apenas se entrevia o azul do co ; mas clari-
dade bastante para qualquer trabalho Dito a tinha.
13arbara forcejou debalde por espreitar pelb. fresta
em que parte do mosteiro jazia aquella masmorra.
As feridas nlo a deixavam redobrar esforos para
chegar ao postigo inaccessivel. Nl'l.o chegava alli som
de relogio, nem toada de sino. Suppz, portanto, que
fra soterrada nas profundezas do mosteiro, para a
banda da crca. A ida de que lhe dariam alimen-
o;
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tos alimentava-lhe esperanas de interrogar a freira
que lh'os trouxesse. Mas ninguem alli foi. Entendeu
entlo que a deixariam morrer de fome. Recordou-se
de que as V estaes infieis eram sepultadas vivas.
Conheceu que anoitecia. Pediu a Deus que a deixas-
se adormecer. E dormiu. Ao despertar, apezar de
tio infeliz, sorriu reste& solar que lhe tremeluziu
no carcere.
Ahi por meio-dia, pareceu-lhe ouvir rumor de
pa8808. Pulsava-lhe a impetos o coralo. Achegou-se
porta e pz o ouvido; era para l que os p&8808
se moviam. Ouviu uma estralada de abrir e desafer-
rolhar portas. Eis que assoma uma religiosa no ergas-.
tulo.
Era Martha conduzindo piO e agua. Barbara ex-
clamou:
-Minha irml, diga-me por piedade, minha irml.
onde que estou?
Martha encarou-a com expresslo de atroz rego-
sijo, e, sem lhe dar resposta, sahiu.
Barbara debulhou-se em pranto. Foi-se-lhe o res-
tante animo. Todo o seu desejo e unico alento era
morrer, morrer para ir ao ~ n c o n t r o de Zolpki.
-Hei-de suicidar-me Pela fome-di888 ella com-
sigo.
E, por mais que se agonisasse, nlo boliu no pio
nem provou gGta d' agua.
Pareceu-lhe infinito aquelle dia. Os mesmos pen-
samentos exulcerantee recresciam de hora a hora.
Quebravam-lhe as fontes d.-,. agudissimas; oira-
vam-na zunidos aftlctivos. Se fechava os olhos, via
horrendas vis&s creadas pela "Vertigem. E l por
deshoras, ouviu uma voz que lhe dizia:
-Barbara! Barbara I
A preza sentou-se no seu ninho, mais perturbada
o;
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A FREIRA NO SUBTERRANBO 19B
-que se visse ~ n t r a r Maria W enzyk e as suas car-
rascas.
-Barbara, ainda tempo- continuou a voz-
-queres salvar-te?
-V ae-te, miseravel! vaete I respeita, sequer
1
uma sepultura I -respondeu ella.
-Ouve . eu posso arrancar-te d'este carcere,
dar-te liberdade e a vista do co, entendes? a vista
-do co, a ti, que nunca mais resurgirs d'este antro
-de agonias Amo-te . Nlo me repulses, que eu
-serei teu libertador, teu escrAvo!
- Antes tnorrer I - respondeu Barbara.
E, muito ao longe, sumiu-se o soturno rumor de
passos.
Novo martyrio davam desgraada. Nlo lhe
bastava a priso. Era atrocissimo que ainda o padre
Zzimo alli fosse vibrar os clamores da sua paixo
dentro d'um sepulchro! Nem ao menos deixavam
que a infeliz senhora vasquejasse silenciosa nos seus
paroxismos! Era foroso que, emquanto a alma nlo
rompesse os liames do corpo, aquelle homem, brio
de sensualidades, alli entrasse, a polluir, a sobrepr
aos horrores da tumba a sordcia das suas impura-
~ I Este aupplicio exacerbava-lhe a dr mais que
todos. Que faria? que diria? orl-a-iam ? Desconfiou
Barbara dos ciumes da prelada; mas Maria W en-
zyk nlo iria alli, e Martha nada lhe diria se a pre-
za lh' o contasse.
Apoderou-se d'ella o maior terror. Entrou a
soismar que Zzimo podia alli penetrar quando lhe
aprouvesse, e que ella estava tio sem foras que nlo
poderia defender-se da lubricidade d'aquelle mons-
tro.
Martba levou-lha outro pio. A preza nada
lhe clisae. Ao anoitecer recresceu-lhe o terror, e for-
mou teno de nlo adormecer. Nlo obstante, os olhos
1ll
o;
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19.&
apesar do intento. Mas acordou estouvi-
nhada por um subtil rumor, semelhante ao apalpar
d'uma dstra mito que diligenciasse introduzir uma
chave em fechadura. Erguida, com a fronte a re-
sumbrar suor de aflliclo, attentando o ouvido, es-
perou. . Era com certeza o padre que tratava de e&
introduzir na masmorra ; porm, qualquer que fos-
se o motivo, o visitante retirou-se. O castigo da
prislo j nlo pesava nada nas dres de Barbara,.
nem sequer o da fome; todo o seu morrer-se de an-
gustia era o mdo da violencia. Esta mulher aman-
te e corajosa, que tio ardente se lanava aos braos
d'um homem, tinha a castidade das naturezas subli-
mes.
- Se eu teimo em nlo comer- dizia ella entre
si-mais um dia, e nito terei a maia pequena fora
que me salve contra a violencia.
E comeu para reter o vigor expirante.
As chagas cicatrisaram-se. Voltou-lhe a energia.
Era preciso viver para aft'rontar o opprobrio. Vive-
ria l Faria ainda a Zolpki o sacri1icio da tio suspi-
rada morte.
E' de presumir que o padre, cuja vinda tanto.
mdo incutia em Barbara, nlo conseguisse no espa-
o de um dia preparar chave que abrisse o antro da.
preza; ou talvez desistisse de luctar com o despre-
zo d' ella. Como quer que fosse, decorreram duas
noites, sem algum incidente.
Continuava Martha a levar pito e agua. Sempre
que Barbara fallava-lhe, mas em vio : a.
porteira permanecia incorruptivel. Comtudo, na oi-
tava noite, pareceu tentada a mover-se; uma luz
piedosa lhe adoou a vista pela primeira vez ; mas
este sentimento foi instantaneo, e de mais a mais, a
porteira, receiosa de ceder, fugiu.
Barbara rompeu o seu po, e achou dentro um
o;
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A RBIRA NO BUBTBRRANEO
195
objecto rijo e frio. A preza expediu um brado de
inesper da alegria.
-Uma chave 1- exclamou- uma chave I
E correu porta, introduziu a chave, e desan-
dou-a. Estava aberta. Sahiu, e tropeou no que quer
que osse. Era uma lanterna. Quem a deixaria alli? I
N o lhe oooorreu ida da perfidia, nenhum racio-
cinio lhe oooupou o esprito. Ia ao acaso pensando
que mo que lhe abrira a sepultura a levaria ao
ar da vida.
Perpassou-lhe na mente a lembrana do medico.
alve fosse elle o salvador, pelo muito que estima-
va olpki.
Se ella soubesse que era julgada morta em Cra-
covia, t 1 ida nlo lhe entraria na alma. Na situa-
o rrivel em que se via, qualquer esperana de
salvao era acceitavel com a energia do desespero.
ConJecturou tambem a louca que as freiras, tio cruel-
mente implacaveis com ella, haviam sentido remor-
sos, e annullavam o julgamento dando-lhe escpula.
Tudo isto e muito mais lhe lembrou em menos tem-
po que o preciso para referil-o. N'aquelle confl.icto a
sna ca be9a. era um cabos uin tumultar de idas an-
tagonistas. la febril, ao longo dos corredores, apal-
pando as paredes, como quem busca uma evasiva.
Evidentemente, devia existir uma; e se a nlo havia,
para que lhe deram a chave e a lanterna tanto
mio?
Emfim, descobriu um encaixe, empurrou uma
portada, e logo enxergou uma restea de claridade.
Oude ia dar aquella sabida? d'onde vinha aquella
1
--',) Barbara esteve a ponto de retrocer.
Mas, de repente, e com tal rapidez que lhe nlo
possvel fugir nem defender-se, cahitt-lhe a lan-
'la das mlos que dois robustos braos agarravam.
"Barbara voltou-se convulsa de pavor.
o,
9
,tized by Goog l,e
196 AFR_m_RA __ ___ R_A_mw ______________
Viu a face pallida do padre Zzimo.
A desventurada, sentindo-se no cume de horri-
vel perigo, forcejou por se arrancar s gargalheira&
que lhe cingiam os pulsos. lnutil esforo I A mo de
Zzimo era dura como as prsas d'ma tenaz.
Fito a fito, o algoz e a victima encararam-se.
Zzimo, entendendo que nlo venceria com pala-
vras, cingiu-a rapidamente com os braos.
- Escuta ... -disse elle - Repelliste-me e amea-
aste-me; cobriste-me de injurias e insultos. . Co-
mo nlo havia dobrar-te o orgulho com bons modos,
armei-te um ardil. Cessa de me resistir, que te dou
a liberdade . Nlo me afastes com o p, que eu
hoje mesmo te abro as portas do mosteiro. Fao-te o
que Se tanto fr preciso, perder-me-hei des-
afiando a vingana da prelada e de todas as frei-
ras. E olha que enorine o pezo da vingana que
vou arrostar.. 0' Barbara, eu luctei muito contra
mim, hesitando em disputar a Deus a mais pura das
suas virgens. . Mas tu quizeste dar-te a um ho-
mem. . repudiaste o Senhor, rasgaste da tua fronte
o vo que te defendia de mim. . descingiste o teu
cinto de esposa de Christo, e deste-te como' um
triumpho ao teu amante. . E' pois certo que tens
corao e sentidos. Nilo s uma novia de glo
nem uma estatua marmorea ! O corao falla, o
sangue arde, os desejos estuam em ti ! Queres vr e
amar e beber a longos tragos o prazer? Pois bem!
olha para mim, e v-me trmulo, perdido, louco I
Estou a teus ps! Os teus labios insultam-me, e
eu ardo em sde dos teus beijos I As tuas mos al-
gemadas repellem-me, e eu cada vez mais te cinjo
com o meu seio. . Ai I nlo te defendas I Renuncia
A ida da fidelidade . Nlo s tu que te d4s, sou eu
que te arrebato I Nlo queres que eu te ame; mas eu
roubo-te o amor. ao meu bafejo abra-
o;
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A. 111\EIRA. NO SUBTERRA.NEO 19'7
zado, e eu sou um ladrlto das tuas caricias. . . Tu
oito peccas contra Deus, nem trahes a memoria do
teu amor. . . Demais, Barbara, perdo-te o delicto,
de que sers apenas cumplice. Amo-te I Sabes como
feito este sentimento em mim? de mil frmas di-
versas, oppostas, terriveis. Reverte este furor em
ternura, Barbara I Porque nllo has-de ser
A freira estorcia-se semi-morta, afogada de des-
esperalto, de colara, de vergonha. Zzimo despeito-
rou-lhe o vestido, j quando ella do podia defen-
der-se dos olhares do cyoico verdugo. Gritou, cha-
mou, valeu-se at das snpplicas. Cahiu, rolou-se por
terra, implorou a justia do co, o soccorro dos an-
jos que outr' ora acudiam s martyres lanadas nos
bordeis de Roma. Estalou todas as cordas que vi-
bram n'alma, valeu-se de quantos sentimentos com-
movem cora(les; mas soluos, ameaas, rogos tudo
se mallogrou contra a vontade infrene do devasso,
cada vez mais encarniado na lucta repellente I Os
dentes de Barbara cravejaram-se-lhe nas mitos, e
elle do sentiu as dres, nem lhe ouviu as impreca-
&s. A final, vendo que oito sopezava aquella mu-
lher debilitada pela fome e pela estagnao do car-
cere, correu a um canto do quarto, pegou d'um fras-
co e approximou-lh'o do rosto. A desgraada conhe-
ceu que estava perdida.. . O terror esbogalhou-lhe
os olhos supplicaots ainda na vaga treva que os es-
curecia. tremente; mas as pernas faltaram-
lhe, e eil-a que veio a terra desamparada como morta.
No dia seguinte, quando Martha entrou cellala
da preza, viu-a prostrada na palha, com os vestidos
esfarrapados, e fria como cadaver. Foi chamar Ma-
ria W enzyk, porque tamanho foi o seu mdo que
julgou a coodemnada morta.
A prelada examinou vagarosamente a freira.
Depois disse porteira : ,
o;
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i98 A li'UilU. NO SUBTERRANBO
-Deixe-me ssinha. Basta en para guardai-a.
Martha sahin.
E ento a prioreza, operando como um juiz em
exame de corpos de delicto, pegou d'um castial,
examinou o quarto, encarou de novo a freira desfal-
lecida, alfriu a porta da prislo e, rastreando a luz
no pavimento, espreitou vestgios. .
Estalou-lhe na garganta um rugido mal abafado.
Acabava de encontrar pgadas; depois um phospho-
ro apagado de fresco; e mais longe tres pingos de
cra no chio.
Nlo procurou mais nada; sobravam-lhe
gios.
- elle- bramiu elia- o padre! O
dor ... a alcova ... Elle m'as pagar ... Quanto a
ella, se este carcere nlo basta, ns lhe cavaremos
-outro nas entranhas da terra, de modo que ninguem
lhe v no faro ...
Maria Wenzyk no sahiu logo da cova de Bar-
bara. De p, encostada parede, com as mlos
condidas nas largas mangas do habito, pregra um
-olhar negro sobre aquella victima de seu rancor,
d'ora em deante duplamente odiosa.
-Ohl-exclamou-antes de alguns mezes e
tal'l'ez. semanas, tornar-te-has tio repulsiva aos olhos
de todos, e at aos d'elle, que nlo haver quem se
nlo horrorise do cadaver vivo I
Nem a lividez d'aquelle rosto ainda aljofarado
de .lagrimas, nem a graa do formoso corpo, nem a
castidade d'aquelle collo que parecia sobreviver ao
.attentado, enterneceram a prelada. N'esta hora, a
alma de Maria W enzyk no sentiu os ailsomos da
authoridade, mas sim o ciume de mulher, ciume fe-
roz, doido, cego, engrandecido s propores que lhe
d o claustro, combinando-se, agigantando-se com
.mil diversos elementos, aguandose feramente
o;
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A !l'llBlRA NO SUBTm\RANEO 199
mingua de distraces, falta de outra escolha ;
formando-se do opprobrio, das affrontas e do cons-
trangimento do pudor. A sde de torturar a mulher
.que j victima, e perdoar provisoriamente ao ho-
mem que trahiu, abjurar o orgulho em proveito dos
sentidos, acurvar-se ao jugo dos appetites, perdoar
quando o odio est pedindo dilacerar, emmudecer
quando ha mpetos de gritar : que abjecta situao I
que dilacerante ignomioia I
Era esta a situao infamemente atormentada da
priorezal
Denunciar o pRdre? Pensou n'isso. mas a
.quem? Ao bispo. Porm, o padre, perdido e deses-
perado, fallaria . E depois, outra razio a impe-
dia .. Odiar Zzimo, ah I isso odiava-o; mas no o
vr nunca. . oito poderia. Um dia, talvez se sen-
tisse bastante forte. . A' quella hora, no
A infame sabia de mais que lhe perdoaria. A
impunidade d'este crime estava segnra nos outros
crimes .. E, quanto a estes, a prelada tremia se
pensava n'elles.
Repleta de odio, e meditando o meio de o satis-
fazer, sahiu.
F()i chamado o sacristo.
, o;
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I
XIV
Torturas
Ao p do cano de esgoto, n'um fosso humido, in
fecto de miasmas pestilenciaes, havia uma excavaio
anegrada, uma quasi noite perpetua. Esta latrina,
que media um metro de comprimento e sessenta c e n ~
timetros de largura, nilo era sobradada nem ladri
lhada; alli os ps escorregavam na terra lodosa e
diluida. Encerrar aqui um ente vivo era ida que
ni1o devia caber na mais perversa alma. As luras
das emparedadas deviam de parecer palacios, com
paradas quelle socavado ftido.
- Gregorczyk -disse a prelada- pregue um&
taboa n'este postigo.
Concludo este primeiro arranjo, a prioreza cha-
mou um serralheiro. A porta de terro do esconderijo
foi reformada com uma fechadura de. segredo, cuja
chave a .prelada pendurou das suas camandulas.
Um postigo, aberto sobre uma prancha pregada in-
teriormente, servia a introduzir os alimentos, de
modo que nllo fosse necessario abrir a porta. Termi
o;
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A J'llmJU. NO BUJITE\BA!OIO
nado isto, uma manta parda foi posta a um canto,
abre uma gabella de palha.
O sacristilo recebeu ordem de ir buscar Bar-
bara, e trazei-a quella cova immunda, sua habita-
~ eterna. A prelada nlo teve .sequer pudor para
-cobrir o corpo de Barbara meio n.
-Esta freira endoudeceu- diBBe a prioreza ao
aacristlo. -Veja o que ella faz aos vestidos! E' mis-
ter que a no veja ninguem, e pr em prtica meios
fortes para lhe domar os accessos de furia.
Ao passo que a levavam, Barbara recobrou os
eentidos.
A ida de que era levada por Zzimo alanceou-
lhe o cerebro amodorrado pelo chloroformio que res-
pirra.
Estrebuchou para fugir, e soltou um grito.
Maria Wenzyk tapou-lhe a bca, dizendo :
-Cala-te I cala-te!
O sacristlo deixou cahir a freira em terra.
Barbara viu tio densa noite volta de si qe
murmurou:
-Agora sim. . estou morta J
O sacristllo sahiu.
-Barbara-disse a prelada- o teu ultimo cri-
me exhauriu o resto de compaixlo que eu tinha.
por ti.
-Crime? O meu crime?. O meu? Quem
ousa fallar-me em castigo quando eu peo justi-
-a? .. Sabe que eu ... sou ..
-Uma freira infiel aos seus votos.
-Vingana divina, onde ests? Eu roguei, lu-
-atei, e pedi soccorro. . . Defendi-me com os den-
tes. . Fulminaram-me nlo sei com qu .. . No &
depois o que aconteceu. . . Tenho horrveis duv
das. . e no ouso j dizer que sou a mesma.
Maria J Maria I que o crime de Zzimo recia e
o;
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A FB.JI:IRA NO SUBTJI:llRANEO 203
bre elle, sobre ti e sobre esta. casa. amaldioada I
Estou innooente e sacrificada, humilhada, esmagada,
mas nlo vencida.. Fui ultrajada, mas sou casta .
Macularam-me, mas sou ainda virgem ! A minha
alma nlo teve parte nas manchas do meu corpo in-
quinado por um monstro. . Pde ser que eu expie
-o crime de Zzimo, mas eu appllo para a justia
de Deus I
-Espera pois que a eternidade se abra para ti.
A esta hora, ests nas entranhas da terra, sem ha-
lito de ar, sem raio de luz .. A palha d'este ninho
nlo ser renovada nunca. os teus vestidos desfa-
zer-se-hlo de pdres sobre o teu corpo, e a tua nu-
dez nunca mais se cobrir .. Os teus dentes cahi-
rlo, as tuas unhas crescero como as das fras, os
teus cabellos hlo-de encanecer n'esta caverna, que
a tua sepultura. Nlo haver creatura humana que
haja de soffrer o que tu vaes aqui amargurar. E o
teu proprio amante, se te visse alguma vez, recuaria
horrorisado de ti.
- Deus me v I -disse Barbara - A pesar da
tua crueldade a do teu odio, Maria, creio ainda em
Deus. Elle haver misericordia de QJim.
A prelada fechou o postigo; pouco depois, abriu-o
e disse:
-E' meio-dia, Barbara. Nlo vers jmais o
sol; nunca mais contars os dias.
D'esta vez, fechou-se o postigo para nlo mais se
abrir.
A prioreza atravessou os corredores, subiu a es-
cada de caracol, e fez chamar o padre Zzimo.
O que se passou entre elles? Ninguem o soube.
Mas o certo que o director e a prioreza continua-
vam na melhor conformidade.
O que mais terrificou Barbara, quando se viu a
s no seu infecto antro, foi este pensamento:
o;
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A JI'REIRA NO SUBTERRA!o.'l!JO
-Nunca mais verei o &ol; nito poderei mais con-
tar os dias!
O terror, a agonia, o stnpor moral, o spasmo
eram taes que nenhuma outra ida se lhe suggeri11
no esprito por tanta maneira atormentado.
Noite perpetua I
Ignorar infinitamente o resvalar dos dias! Nem
uma claridadesinha, nem uma gta d'agua por onde
ella podsse contar os segundos I Pensou em con-
tai-os pelas pulsa5es. Mas calcular as horas de que
lhe servia? Nlo haveria uma melhor que as outras
na sua vida I Quiz ergoor-se, mas nito se sustentava.
em p. O tecto era mais baixo do que ella.
Nem a palha chegava para se deitar toda. Era-
lhe preciso encolher-se, retrahir-se, arquear-se. Ar-
dia em febre .... bebeu a agua toda. Soffteu sde
cruel; mas medeou tanto tempo a ser-lhe dado ou-
tro pilo e outra agua, que ella calculou tres dias.
Nlo era tanto. O certo, porm, que lhe davam a
miseravel railo com intervallos irregulares, muito
de acinte para que ella nlo lograsse medir as horas
decorridas.
A desgraada; extorcendo-se em dres do corpo
e da alma, golpeada pelo sentimento de involuntaria
macula, asphyxiada por miasmas pestilenciosos, para
alli estava, agachada, absorvid, bebendo a longos
tragos a agonia, a vr se assim morria depressa.
O excesso da tortura da v a-lhe esperanas de nito
sobreviver muito ao seu vilipendio. Esperava, pois ..
Mas as semanas e os mezes dobraram-se. . A
morte nlo chegou. . . E Barbara, retranzida, deita-
da na palha pdre, meio na, tiritando, comendo
apenas pito e bebendo agua bastante para nlo expi-
rar . . . nlo morria I
Os martyrios cresciam com as horas, martyrioa
sem nome para a mulher vazada aos usos da boa so-
o;
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A numtA. NO SUJI'l'EIUlAN1W
ciedade, limpeza, ao luxo, aos esmeros da elegan-
cia. . Os bichos asquerosos, os ratos e as cento-
peias roavam-lhe nas carnes, mordidas pelos mos-
cardos creados nos esgotos.
Barbara reagia, quanto em si era, contra este
aupplicio. Poupava metade da sua agua para lavar
o rosto e as mitos. E, talvez porque o desconfiaram,
davam-lhe j s6 metade da rao. Baldaram-se as
supplicas que fez pessoa invisvel que lhe levava
o pio, para que lhe dessem alguma camisa, o mais
urgente ao vestir d'uma mulher.
Nlo lhe era menor soffrimento a grandeza das
unhas. Um homem, que soffreu semelhante suppli
cio, Tasso, disse que elle era horrendisiino.
O vestido da freira era um apontoado de farra-
pos, a desfazerem-se na palha humida e fetida.
A miserabilissima creatura j nlo era mulher,
j nlo era sr humano : era uma coisa immunda,
revolvendo-se n'um chiqueiro.
O animal irracional nlo tem consciencia de sua
immundicia; o cerdo que se retoua n'um enxurdeiro
nlo sabe que sabe d'alli esqualido e nauseabundo;
mas Barbara palpava-se, sentia-se asquerosa. Con-
tava os minutos da sua transformao na bestiali-
dade animal.
E a turvao do seu entendimento era-lhe mais
a:ffi.ictiva que todas as outras ignomnias. Sentia-se
ensandecer. Horas inteiras, com a cabea abafada
entre as mitos, recordava-se de todos os incidentes
da sua vida para certificar-se de que ainda tinha
idas e memoria. Outras vezes, rememorando coisas
que aprendra, repetia passagens historicas. Esta
lida intellectual occupava-lhe algum tempo de cada
dia. Depois, curava de avultar aos olhos da alma
imagens de pessoas que conhecra e logares onde
estivera.
o;
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206 A alm\A NO SUBTERBANEO
-Eu nlo quero sahir doida d'aqui l-dizia ell.
E uma vez accrescentou :
-Zolpki, a final, ha-de descobrir-me ha-de
arrancar-me d'esta sepultura
Esquecra-se de que Zolpki era morto .
Porm, quando se lembrou de que elle morrra,
passou por violenta crise de desesperalo.
-A horrvel doena vem chegando .. -pensou
ella .;_ Estas trevas a bafam-me a intelligencia .
Sinto que o esprito vae descendo ao abysmo onde
eu cahi .
Redobrou de energia contra o fl.agello da loucu-
ra. Durante tres annoa de prislo, nunca disse pala-
vra quando lhe traziam a comida. Depois, j suppli ..
cava que lhe dessem um livro e uma luz. Nem se-
quer lhe respondiam. Teve entlo ataques de faria;
gritava e bramia como fra; desangrava as mloa a
bater na porta, feriu o rosto de encontro parede,
espedaou a manta j apodrentada, mordeu os bra-
os e rasgou a carne com as unhas.
Job, todo ulcerado, no seu muladar, ao menos
tinha o sol a que via as suas chagas.
Quando abriam o postigo, Barbara desabafava
em injurias e ameaas. Accusava a prioreza, o padre
Zzimo, Martha, a communidade toda. Promettia
denunciai-os no tribunal dos homens, e dizia que s
o fogo poderia purificar o chio d'aquelle infame con-
vento. Outras vezes humilhava-se em rogativas. Pe-
dia que lhe dessem por uma hora smente o especta-
calo do co, algum vestido e bastante agua, jurando
submetter-se ao encarceramento sem se queixar.
- Aooeito tudo 1-clamava ella -Pequei contra
a regra porque tentei fugir. . Nlo me queixo .
estou bem condemnada e punida ... Mas todos os pra-
zos teem uma hora no dia em que respiram .
e contemplam o co. Luz I dem-me luz ao m4
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A li'1\IIIRA NO SUBTBRRANBO 207
nos! Tenho muito frio. . estou como debaixo da.
terra. . dem-me um vestido que me aquea ...
Tenham piedade e vergonha da minha nudez I Es-
tou na. . Se querem que eu morra, acabem com-
migo j. o o Eu lh'o agradeo, porque soffro horroro-
samente. No me respondem?. . Dem-me agua,.
s agua, no peo mais nada. E nem uma pala-
vra !. . . Pois nada me do, n a d ~ f. . E sabem que,
se ha falta perdoavel, a minha. . Eu amava Zol--
pki .. amava-o tanto! Que outro crime tenho eu?
Outro? nlto, Dilo I esse nlo o pratiquei eu. . Ap-
pllo para Deus I . . . E quem sois vs, para me jul-
gardes? O' impuras I devassas I monstros de tor-
peza e ferocidade I instrumentos cegos de sordidos
acelerados I Deus vos julgar o Deus ver as cha--
gas de vossas consciencias! Estas paredes ho-de fal-
lar. . Oh ! eu nilo sei que prodgio far Deus ..
mas ha-de faze l-o I hade fazei-o, infames!
E cahia esvada, lvida, estrangulada pela an-
ciedade dos gritos. .
Ento era o tomarem-na allucinaes, por modo
que j no destrinava entre sonhar e pensar. A de-
meneia cingia-lhe ferreamente a fronte convulsa.
Sentia o progredir da invaso, e j nilo podia reba-
t6l-a.
E nllo sabia que tempo era corrido desde que en-
trAra n'aquella caverna. Desmoronava-se a pedaos
o edificio d' aquella alma. Comearam a corroer-lhe-
o cerebro idas fixas. Pedia a brados caf, na espe-
rana d que o caf lhe reaccenderia a lucidez do
esprito vasquejan&e.
Ah I se ella podsse vr-se, contemplar-se I Se a
luz, que pedia, relampejasse n'aquella masmorra,.
decerto estalaria em maiores furores aquella loucura
nas trevas!
Que mudana, santo Deus!
Dlg:tized by Goog I e
208 A ll'lUIIlltA NO SUJill'Blll\ANKO
Quem reconhet:eria a futura condessa de Ubryk,
a formosa e esplendida Barbara, n'aquella coisa sem
nome na escala das miserias 1
Quem veria alli a mulher radiosa d'aquella noite
de baile I. a pallida professa submettendo os ca-
bellos doirados tesoira monacal! a tremente fugi-
tiva de jubilo nos braos de Zolpki J
Bem podra applicar-se-lhe aquelle dizer de Da-
vid: cCreatura humana j nito sou!. eis-me um
vrmeb
E aquelle ente desamparado, flagellado e atas-
cado n'um lamaal, mordido por animaes nojentos,
ainda tinha alma na qual brllXuleavam lampejos de
razio I
Aquella creatura ainda recordava. e quer por
memoria, quer por instincto, balbuciava ainda o no-
me de Zolpki 1
E que era feito d' elle?
o;
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XV
\
Zolpki
Entretanto que Barbara Ubryk, reconduzida ao
convento d' onde fugira., se sentia vergar vingana
das filhas de Santa Thereza, um lance deploravel
passava em casa do medico.
Ahi por volta das duas horas da manhl, parou
uma sege em frente da porta; o cocheiro apeou-se
da almofada, abriu a portinhola, e um mancebo des-
ceu. Este e o bolieiro tiraram ento da ege um
corpo sem alento, envolto na sua capa. Repetidas
aldrabadas na porta do doutor despertaram a criada,
que desceu ao pateo, e recuou de horror quando viu
dois homens amparando o ferido.
-Onde est seu amo?-disse o cocheiro-De-
pressa, que o snr. Zolpki est mortalmente ferido.
-Ferido I -exclamou a governanta.
A pobre mulher oirou. Com muito custo lhe fez
Casimiro perceber que a salvalo do moo dependia
da presteza d'ella.
Emfim, a criada acordou o amo. Wrobleski, in-
1 ~
o;
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210 A JrllEIRA NO SUBTERRANEO
formado de estar alli um homem ferido n'uma des-
ordem, ni'to lhe passou pela mente que se tratava
do seu afilhado. S depois que reconheceu Casimiro?
oomprehendeu o que era.
-E' Zolpki ! -disse elJe anciado.
-Fiz quanto pude para ajudai-o e defendl-o -
observou Casimiro, mostrando o peito e braos en-
sanguentados.- Tratemos d' alie- proseguiu o ami-
go-e depois fallaremos de mim.
Signal de vida nlo dava nenhum o ferido. Vol-
vida meia hora, porm, custa de esforos mais de
pae que de medico, recobrou o alento, circumvagan-
do um vagO lance de olhos.
O que primeiro reviveu n'elle foi o instincto dG
amor.
-Barbara 1-murmurou ; e depois, olhando para
Casimiro, disse: -Meu bom amigo ..
Bem que fossem graves, nenhuma ferida pareceu.
mortal ao medico; mas a perplexidade do ferido,
quanto ao destino de Barbara, aggravava grande-
mente o caracter dos ferimentos. Quando alie soub&
que a infeliz voltra para o mosteiro, suspirou com
anciosa pena e quasi perdeu os sentidos.
No dia immediato, os sinos dobravam a finados.
Com a subtileza auricular d'um selvagem, e a dolo-
rosa agudeza dos sentidos de um agonisante, Zolpki
exclamou:
- Alguem morreu nas carmelitas I
-D'onde te vem essa phantasia?-perguntou o-
doutor.
-0 som vem do lado de Wesola .. Barbara
morreu. . . Felizmente. . . que eu vou morrer taro-
bem ...
Ai! Zolpki nlo devia succumbir, nem: dr da
alma nem ao desangrar das feridas. A dr l lhe
ficou no c o r ~ l l o , como serpente, a devorar-lhe a
Dlgltized by Goog I e
A 11'1\JIIRA NO BUBTJm.RANJ:O 2U
seiva; as feridas cicatrisaram; e, poucos dias passa-
dos, Zolpki estava convalescente.
Do lugubre recontro de W esola nada transpirou.
Os soldados, que tinham abusado da fora, nlo
inter(lssavam no divulgar-se o caso : as consequen-
cias de sua curiosidade e pertinacia haviam sido fu-
nestas de mais para que elles ousassem gabar-se da
faanha, que ao principio lhes pareceu uma traves-
sura.
Impunha-lhes silencio o sangue derramado, um
homem morto-que assim o julgaram-e uma freira
expirando tres dias depois da aventura.
Pelo que respeita a Zolpki, tambem elle a nlo
dizia. Que valia espertar lembranas da desgraada
mulher, se estava morta?
O medico, tio paternalmente se desvelou, que
Zolpki, para lhe nlo desanimar a ternura, acceitou
todos os cuidados. Se Barbara nlo tivesse morrido,
os phrenesis do amante seriam mais desesperados.
A ancia de resgatai-a, a impossibilidade de tentar
segunda vez arrancai-a sepultura, levai-o-iam
febre, ao delirio e morte. Mas acabado era tudo!
Deus cortra a questo, de modo que nl.o havia em
foras humanas j Dda que fazr. Zolpki deixou-se
salvar por amor ao ancilo, que tanto lhe queria.
Todavia, o enthusiasmo juvenil, o vigor da alma, a
alta poesia do corao, isso morreu n'elle, e para
nlo mais resurgir. Na tumba de Barbara cahira
tambem a mocidade d'aquelle homem.
Ladislau ficou hospede do medico, com quem
unicamente fallava de Barbara, e recordava aquella
~ f a s t a noite de sangue e de lagrimas, em que, d'um
,nce, a recuperra e perdra I
Depois, deu-se a estudar. Sahiu. Explorou par-
lcularmente a sciencia do direito, e' publicou for-
'osos livros cerca de quest8es jurdicas. Como nlo
o;
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212 A JlllElR.A NO SUBTERllANBO
podsse fomentar nova rebelliilo, e visse que era
mister aguardar opportunidade, porque a Europa se
pacificava, e a Frana passra de republicana a im-
perial, quiz cooperar no progredimento das idas, se
nada podia na conquista da liberdade.
A placidez de Zolpki foi explicada por dissabo-
res da mocidade e trabalhos padecidos no praso de
oito annos de carcere duro. Nilo obstante, dizia-se
que, se o clarim da peleja soasse outra vez, elle se-
ria na vanguarda dos mais valentes.
E assim proseguiu pacientemente no assduo es-
tudo, como quem deseja tornar util ao menos uma
existencia viuva de alegrias. A soci.edade tem pha-
ses successivas de febre e repouso: o homem como
ella. As ingentes crises nlo duram. As multid<les,
imitao do individuo em separado, do actuam
longo tempo convulsas. As febres e as revolui5es
teem intermittencias.
Viu Zolpki resvalarem longos annos em apparente
calmaria politica. Aquelle .corao, onde o amor ha-
via chammejado, parecia exhatirido das douras dos
affectos. Morto o amor, o homem sobrevivia-se como
solitario em si proprio. Mas l estava o vacuo im-
menso do corao, augmentando a par e passo que
as saudades se iam refazendo por entre as nevoas
longnquas da lembrana. Era homem .. Barbara,
sombra querida, orvalhada de prantos, era a visilo
do passado. O presente, porm, erguia-se despotico.
Era homem ...
E o doutor, coadjuvando quanto em si cabia
aquella transformailo, pensou em casar o afilhado.
A' primeira vez que lhe tocou em tal assumpto,
Ladislau atalhou-o com desabrimento :
-Esquece a minha noiva immortal ! Barb.
espera-me no co.
-Nilo-replicou o doutor-do te espera 11
o;
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A li'REIRA NO SUBTBRRANEO 213
te chama. Se aquella pobre senhora, martyr dos
odios de famlia e preconceitos sociaes, te v do co,
folgar que entres na vida positiva, discreta e ra-
cional. Amaste-a at ao extremo de dar-lhe teu san-
gue. Ests desligado pela morte. Perante Deus, e
perante a memoria d'ella, s livrei E's hoje um ho-
mem j de annos reflexivos. No fiques assim ssi-
nho, quando te eu faltar. Bem vs quanto hei en-
velhecido. Pensa no triste porvir do homem sem lar
nem familia.
-No me falle mais em tal . -concluiu La-
dislau.
O doutor nada mais disse ao intento'; mas, cor-
ridos dois mezes, levou comsigoZolpki a um sarau
da senhora Zilmann, bellllo dama, me de duas me-
ninas que pareciam suas irmlls.
A senhora Zilman.,_ era viuva e pouco abastada.
As suas relaes com o medico procediam dos cui-
dados com que elle lhe assistira em grave enfermi:..
dada. No seio d'aquella familia era tanta a paz, a
honestidade, a magia da vida que o esprito
e os olhos Dito tinham mais que vr e admirar.
Conversavam ao fogo, ao sabor do animo, em-
quanto as senhoras bordavam. A's dez horas, uma
das meninas preparava o ch. Algumas vezes can-
tavam canonetas de poesia d'alma, sem
. preten<les nem desvanecimentos. O doutor admi-
ra:Va quanto possvel a viuva. Zolpki, a poucos
passos, deu em achar infinito encanto n'aquellas ren-
niaes, em que se estava tllo vontade e to respei-.
tosamente ao mesmo tempo. Quando Mina, a mais
nova, o fitava serenamente com os seus olhos azues,
Ladislau sentia-se dulcificado de paz intima. O con-
juncto. das tres senhoras inspirava por egual o sen-
tir respeitoso, a dedicao e o a:ffecto que deliciam
as rela<les- tllo raras vezes assim formadas; Zol-
o;
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2U A FUmA NO SUBTBl\RANBO
pki, alli, sentia a qnietao das nevroses, o refrige-
rio do cerebro.
Como elle era homem I ...
Quando Ladislau e o doutor entravam, a viuva
erguia-se graciosamente do seu soph, estendendo-
lhes a mo. Lisbeth ia com infantil enthusiasmo ao
encontro do velho, que ella chamava o seu amigui-
nho, e Mina, purpurea e enleiada, esperava a pri-
meira palavra do moo.
Mas que diverso nlto era este d'aquelle brilhante
rapaz que, aos vinte annos, excitava a admirao
dos homens e inspirava desvairado amor a Barbara
Ubryk I A fronte de Zolpki, sulcada pela medita-
o, amarellecida pela dr, fallava de so1frimentos
longos; os labios pareciam lacrados pelo sinete da
amargura indelevel ; os olhos smente, a espaos, se
animavam e rutilavam debaixo das pestanas sedosas
e negras.
Mina, ao principio, deu a Ladislau o importante
interesse de bello personagem de romance . V ~ o ao
travez do prisma da dr to attractiva dos corai'Ses
sublimes. Figurava-se-lhe persegnido por odios par-
tidarios, prezo, torturado. Deixou-se ir embevecida
pela aureola que veste a fronte dos heroes. Amou-o
silenciosa e secretamente ; mas o doutor desvendou
o mysterio no seio da resguardada allem.
Uma noite perguntou-lhe Zolpki se nlo iam a
casa .da senhora Zilmann. O medico respondeu ma-
goadamente:
-No, meu amigo, e bom ser que l vamos
pouquissimas vezes.
-Porque? 1-volveu Ladislau sobresaltado.
-Porque nlo devemos lev.ar o desassocego, em-
bora involuntariamente, ao seio d' esta famlia.
-No entendo, meu padrinho.
-As duas meninas so bellas, mas pobres: duaa
o;
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'
.. '
A li'REIRA NO SUBTEllRANEO 215
<londies que nos mandam ser prudentes. A re-
putao de Mina e Lisbeth pura como o orvalho
do co, e .
-Mas quem que lh'a macla?
- Ninguem que eu a defenderia. . cr, Zol
pki... N!o d'isso que se trata . E' que Mina
inquieta-me. . Est pallida e deperece visivelmen-
te . Esto com ella as primeiras tristezas da mo-
cidade ...
-E d'ahi?
-No adivinhas o mais? Se tu te consideras
velho, os outros julgam-te o que s : um rapaz com
trinta e quatro annos. Nada perdeste das antigas
il9duces, e tens de mais a mais o prestigio. Receio
que Mina scisme muito a miudo com Ladislau, e
aqui est porque me abstenho de visitas que pode-
riam suggerir n'aquella creana esperanas irreali-
.saveis.
-E cr que ella me
-Que te ame?. . . desconfio.
-Engana-se. . isso . uma apprehenso sua.
Quero sabl-o ..
-0 que devemos querer, primeiro que tudo,
~ socego d'estas senhoras.
-Mas, se o padrinho no se engana, alguma
imprudencia haveria da nossa parte.
-Talvez .
. ~ E , n'esse caso, deve dar-se a reparao .
A voz de Ladislau tremia. O doutor, como se
no dsse tento d'isso, replicou serenamente:
-Reparao de qu? Eu por mim estou velho
de mais para me casar, tendo alm d'isso a certeza
de que no inspirei amor a nenhuma .
. -Meu amigo-tornou Ladislau, pondo-lhe a
mio sobre o hombro- rogo-lhe que vamos hoje a
<l&Sa da senhora Zilmann. . Mortifica-me o receio
o;
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216 A RJmi.A ](0 8UBTERllANEO
de ter perturbado a paz d' esta senhora. . Se meu
padrinho tiver supposto a verdade. .
-Vamos ... -disse o medico, interrompendo o
afilhado- apraz-me dar-te provas de que me . nlo
illudi.
A senhora Zilmann, quando o medico e Zolpki
entraram, alisava animosamente o cabello de Mina,
fallando-lhe mui de manso.
A :filha tinha chorado : denunciavam-na os olhos
humidos.
Ao vr, ainda assim, Ladislau, alumiou-se-lhe
de improviso o semblante, como em co tempestuoso
um subito romper 4o sol.
Zolpki apertou a mito da menina com desacostu-
mada vehemencia; e, depois, com tanta gravidade
como ternura, disse-lhe :
-Eu desejava fallar-lhe e pedir-lhe um con-
selho.
-Dar eu conselhos! .. tom.ra eu quem m'os
dsse ; mas, se insiste .
-Com todo o meu coralo.
Sahiram para um terrao.
-E' certo que me ama?-perguntou-lhe elle.
-Quem lh'o disse?-exclamou Mina.
--: Mas psso eu crr tal I A menina bella, tlto
nova, sympathisar com um homem quebrantado e
vencido nas luctas da vida I Preferir-me a m i ~ , que
tlto desfeita sinto a alma nas irreparaveis tempesta-
des da minha juventude I. . Porque a no encontrei
eu quando tinha soffrido menos ; quando ..
-Amo-o justamente porque so:ffreu muito ..
-E acceita-me tlo triste, tllo desencantado ;&.
das illuses da vida. O' Mina, no se engane I.
Olhe que eu hoje sou um phantasma de mim pl
priol
-Se o acceito?. . Pois quer ..
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A FREIRA NO SUBTERRANEO 217
- Fazl-a minha esposa, se sua vontade.
Mina tremia por maneira que houve de ampa-
rar-se nos braos d'elle.
- Ah 1 _;,__murmurou ella- a alegria quasi
uma dr .
E assim estiveram algum tempo no terrao, mur-
murando apenas os sentimentos que lhes afll.uiam ao
corao. Zolpki no poderia commover-se a no ser
amado extremosamente ..
Quando voltaram sala, Mina entrou pelo brao
de Ladislau.
-Esta querida menina- disse elle me-
consente em ser minha esposa, se isso do gosto de
sua me. .
A senhora abraou o noivo, e Lisbeth abraou o
doutor, dando palmas muito alegre, e dizendo-lhe ao
ouvido:
- E olhe que Mina no chora uma lagrima ! ...
E a viuva disse ento gravemente:
-Sabe, snr. Ladislau, que somos pobres?
-Eu sou rico-disse Zolpki.
-E eu velho - ajuntou o medico.
O sarau correu muito intimo de jubilosa conver-
sao. A's onze horas o noivo e o padrinho sahiram.
-Ests, com effeito, casado - disse o doutor.
-Assim que fitei Mina, para logo me convenci
de que as suspeitas de meu padrinho eram justas.
Que outro proceder honesto me competia, seno fa-
zer feliz esta creana I Se me ama, acariciai-a-hei .
J no p6sso reviver a devorante paixo que senti
por outra; mas desvelar-me em lhe fazer ditosa a
existencia, creio que poderei. E, depois, meu padri-
nho fica sendo da noBBa famlia, de que eu vou ser o
chefe. A juventude de todo em todo se vae sumir nas
obriga(Jes de homem feito.
-Muito bem, meu amigo!....- applaudiu a doutor.
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A FilEIRA NO SUBTERRANEO
Toda a cidade ficou maravilhada com a noticia
das nupcias de Ladislau. Ao inverso dos usos alie-
mes, que estatuem longa durallo nos esponsaes,
Zolpki deu-se pressa no casamento.
Enriqueceu Mina de preciosissimas joias, e le-
vou-a para sua casa com o mais sincero e jubiloso
sentir de coralo, onde ella reclinou a formosa fronte.
Um incidente, porm, conturbou a felicidade
d'aquelle dia.
Quando jantavam, os sinos do Carmelo repica-
vam festivalmente, e Ladislau attentava o ouvido
quelles sons do bronze que j lhe haviam batido
no peito.
E um dos convivas disse :
-Houve hoje profisso no Carmelo. A professa
adorava um homem que a enganou, e IA foi sepul-
tar-se em vida.
-Pobre menina! Mina fitando os olhos
apaixonados no esposo.
Mas os olhos do marido nllo a viram, porque
lh'os vedava o pranto. E Mina viu aquellas lagri-
mas Nilo lhes adivinhou a causa; mas, desde
hora
1
desconfiou que entre as antigas paix&s
de seu marido havia um amor desgraado.
O casamento pacificou inteiramente a vida de
Zolpki. Mina era adorada; e, um anno depois, nos
braos d' ella, era tambem adorada uma filha que se
chamou V anda, nome de herona, verdadeiro nome
de polaca.
Se alguma coisa faltava A felicidade de Ladislau,
o nascimento d'aquella menina preencheu-lh'a.
Ai I Mina deu A creancinha mais do que a exis-
tencia, o leite e a ternura : deu-lhe a propria vida.
As fadigas da maternidade extenuaram-na: via-se a
morrer de dia para dia. Fez quanto heroicamente
pde por esconder dos olhos do esposo a hora do
o;
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A numtA. NO SUBTEIUlANEO 219
trespasse. Zolpki esperava no medico, o medico nlo
esperava nada.
Uma tarde, Mina aconchegou de si o esposo, que
se abeirava do leito, e disse-lhe :
-Meu querido, quero failar-te pela derradeira
vez, hoje, que manhl j ser tarde . Vou mor-
rer. . E porque vou tlo cdo? E' segredo do Alts-
simo. . Foste o meu amor unico ; e tu, se no po-
dste dar-me a parte de tua alma que se tinha avo-
lado, isso no impediu que eu fsse muito feliz ..
Soffri bastante quando soube que amaste ; e nunca
me deixou a lembrana das lagrimas que te vi no
dia do nosso casamento, quando ouviste 08 sinos das
carmelitas. Mas no tinhas culpa. As lembran-
as no as mata quem quer. . . Foste um fiel e bom
esposo ; eu t' o agradeo, e te abeno, filho I Vou
morrer; mas nlo te deixo s. . Tens a nossa filha.
Deus a faa ditosa ! . . . Sacrifica-te felicidade
d'ella .. Jura que eu serei amada em minha filha e
~ u e sobrevivo para ti no querido anjo .
-Juro l-disse Zolpki solemnemente.
-Agora ... posso ir . Tive o meu quinho de
alegria n'este mundo; e, para maior ventura, de
tuas mos o recebi . No esqueas a morta que te
vae esperar
E lanou ao pescoo do esposo 08 braos desfal-
lecidos.
Volvida uma hora, a senhora Zilmann e o medi-
co, chamados por Ladislau, entravam no quarto.
Mina reconheceu-os, pediu a creana, passou-a aos
braos do marido, expediu um grande suspiro, e re-
clinou a cabea para as travesseiras.
E no teve outra agonia
e e I e e e e e e e e e e e e e e e e e
V anda cresceu entre os afagos do pae e do me-
dico.
o;
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220 A Jl'l\BillA NO SUBTlCRB.ANl!lO
Tres annos depois, Lisbeth casou a transferiu-se
. para Berlim, levando comsigo a mlte.
Tinha .ento a menina cinco annos.
Era uma creana singularmente precoce.
Os seus grandes olhos interrogavam sempre bri-
lhantes de curiosidade, a sua alma impregnava-se,
digamol-o assim, tllo puramente de tudo que l tem
ao longe o destino impulsor dos altos sentimentos .
.AJJ dres de Zolpki e a morte de Mina influram na
compleio e educao de Vanda. Aos quatorze an-
nos dava ares do pae aos vinte. Ardente e ousada.
em frente do perigo, no obedecia senllo aos dicta.-
mes de sua. consciencia..
Havia n'ella o morgadio ds paix<Jes.
No comeo d'esta narrativa, vimol-a abatida. aos
ps do pae, e logo rebellada. em tom ameaador I Oh I
Zolpki devia. ter visto alli o seu sangue I Devia lem-
brar-se da logica infl.exa da sua paixllo, quando se
arrostou a defender Barbara contra todo a. mundo.
Devia vr alli . o odio oppresslo, o amor liber-
dade, a sde dos affectos e a febre da dedicalo sem
limites .
Todavia, hora em que o coralo de V anda se
abria florido, o do pae resfreava-se com os invernos
da edade ; e j entito elle nllo saberia entender a lin-
guagem que fallra outr'ora.
O achaque da nossa natureza est na palavra
mudana. Opra o tempo espantosas.
Cessamos de vr com os mesmos olhos, de sonhar os
mesmos sonhos. de amar com o mesmo corao. De-
luz-se-nos da alma o que mais amamos. Chega uma
hora em que os olhos n'algum dia inundados de ju-
bilosas lagrimas e fitos.n'outros olhos, encaram en-
xutos e friamente o mesmo rosto. O som de voz. que
nos fazia estremecer, difficilmente nos altera. E' en-
to o dizer-se cada homem a. si mesmo: cAlli est a
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A liRBll\A 'NO SUBTERRA'NEO 22l
mulher que eu amei tanto I .. , E alguem ter dito
l comsigo: c E porque foi que eu tanto a amei? I
Sujeito, pois, razoira commum, Zolpki, vendo
que o duro nivel do positivismo acaba por abater as
mais poeticas frontes, no permittia que Vanda ex-
perimentasse os juvenis ardores da paixlto. Queria-
lhe na alma a placidez da sua, a frieza, o racioc-
nio, o calculo, o amor ao demonio do ouro, o herois-
mo de sacrificar chimeras de amor aos interesses tan-
gi veis. Todavia, se por uma parte os paes. exigem
dos filhos coisas que s a edade experimentada pde
dar-lhes, por outra parte a logica do corao fa;,;
que os filhos deitem a mlto taa do amor, sem se
importarem se l dentro ha fel.
Vanda nunca ouvira fallar de Barbara Ubryk;
Este episodio da vida de seu pae nunca se divulgou.
Tudo corrra entre elle e a infeliz e o pae inabala-
vel. A sociedade ignorou sempre aquella walsa no
baile, os encontros no templo, as entrevistas no jar
dim, a tentativa de rapto. Nem Mina propriamente
entreviu o mysterio. Se sabia que Ladislau amra,
nunca descobriu o nome da sua rival. Alm de que,
se tal nome lh'o proferissem na sua presena, ella
nlto teria ciumes de Barbara, duas vezes morta, no
mosteiro do Carmelo.
Casimiro conhecia os pormenores do romance de
Ladislau; mas nunca mais lh'os recordou. A imagem
de Barbara esvaecia-se ao longe nas neblinas das
saudades. A rebellilto de V anda, porm, -:-a recllSa-
lto a casar-se com Radzwil, levantou deante do pae
a lvida larva de sua perdida mocidade. No queria
elle, todavia, succumbir. Esqueceu-lhe que Barbara
rejeitra por amor d'elle o conde Rastoi: attentou
principalmente na rebeldia da familia, e o seu pri-
meiro impulso foi mandai-a reconsiderar na clausu-
ra. Algumas palavras da filha, em verdade, abala-
o;
9
;r;zedbyGoogle .
- ~
222 A FUllU. NO SUBTDBANBO
ram-no profundamente; mas recusou crr que ella
antepozesse o convento a um enlace abominado.
A experiencia nada monta. A nossa propria ex-
periencia pouco nos aproveita. A lembrana do que
. j sentimos desfaz-se. A nlo ser assim tio triste e
to verdadeiro este aleijlo da alma, como deixaria
aquelle pae sahir a filha, uma noute, para o mos-
teiro do Carmo?
De prompto se entende o terror que o trespassou,
quando uma carta anonyma lhe disse que Barbara
nlo tinha morrido, e ha!ia vinte annos que gemia
torturada I
O passado entrou-lhe pela alma. Eil-a, em frente
d'elle, aquella formosa e apaixonada mulher! De-
rivaram-lhe copiosas as lagrimas do coralo. Ia
vl-a... Ah I como a veria? Envelhecida pelo sof-
frimento, enlouquecida pela desesperalo, e j nlo
podendo conhecer o homem que a exhumava da se-
pultura, o amante por quem duas vezes se abys-
mra !. . .
E por mais horrvel que se lhe afigurasse o qua-
dro, para maiores pavores lh'o mostrou a realidade.
A desgraa de Barbara seria ao menos util, par&
que elle salvasse a filha. Era o martyrio da amante
que pagava o resgate da nova victima I
Logo, pois, que Vanda entrou na casa paterna,
o pae abraou-a, estreitou-a ao seio, e disse-lhe:
-Socega, minha querida filha . Por emquan-
to, deixa q11e o magistrado siga a sua dolorosa mis-
so; que brevemente voltarei por ti com todo o amor
de pae. .
o;
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XVI
Expiao do padre Zzimo
Quinze dias antes do ac.ontecimento que encami-
nhou a justia em busca de Barbara, e fez levantar
de seu sepulchro aquelle esqueleto vivo, uma scena
de tragedia, intima, tanto mais pavorosa, passava
em uma casa insulada em Csezy.
Um padre, prostrado em uma othomana, arcava.
phreneticamente desesperado contra so:ffrimentos in-
comportaveis .. A espaos, os musculos do rosto con-
vulcionavam-se-lhe; a voz rugia-lhe nos gorgomilos
estrangulados; o peito arfava-lhe a transes de op-
pressiva asphyxia. Quando as crises redobravam vio-
lentas, vibrava-lhe na cara patibular uma visagem
diabolica l Perto d'elle, no vilo de uma janella, es-
tava outro homem, que de vez em quando olhava
para o padre, interrogando-lhe as posturas, o olhar,
as alteral'Ses do rosto; mas nlto lhe dizia palavra.
Reinava silencio havia mais de uma hora, quando
a porta se abriu e o medico entrou. O doente cra-
vava a :O.echa da vista nos olhos do doutor, e por
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A JI'RElRA. !110 SUBTBRRANZO
certo leu-lhe a sentena, porque, recurvando os de-
dos, raspou com as unhas no respaldo da otho-
mana.
O medico abeirou-se da testemunha muda da ago-
nia do padre.
-Senhor Gziprowski -LdiBBe elle-seu primo
pde pr em ordem as suas coisas n' este e no outro
mundo.
-Bem o receiava eu, doutor . Bem v com
que paciencia elle soffre as agudissimas dres . Fa-
cilmente se resignar._, E' um varo de Deus em
toda a extenso da palavra.
-Oh! sim l-respondeu o medico-a reputao
do padre Zzimo est feita. J era conhecido entre
ns quando deixou o mosteiro das carmelitas e se
retirou para aqui.
O primo do enfermo apertou a mito do doutor,
acompanhou-<? escada, e voltou para junto do re-
costo do padre.
O moribundo fez signal ao primo que puxasse
-cadeira e se sentasse ao p d'elle.
Quando se defrontaram face a face, Zzimo, fre-
mente de terror, perguntou:
. -Vou morrer? isso? o medico disse-te que eu
morria?
- Mei:t primo .
-No mintas, no me enganes ... Estou con-
demnado. . . perdido. Morrer! Ta no sabes que
horror e angustia ha n'esta palavra .. morrer! Nilo
quero I no quero. . Tenho mdo I
-Se o primo teme tanto o minuto que nos se-
para da eternidade, tendo sido toda a sua vida con-
.sagrada virtude e prtica.do bem, que faro aquel-
les que viveram indifferentes em religio, e no rasa-
ram, nem enfrearam suas paix<Ses? No o tenho eu
tantas vezes ouvido fallar aos agonisantes no anjo
Dlgltized by Goog I e
A FREIRA NO SUBTERRAN.EO 225
da morte que os acolhe nos braos e leva ao seio de
Deus! ;
-Cala-te! cala-te I
-E' certo, primo, que eu nllo sei exhortar nem
consolar: ignoro a linguagem mystica ... Haver um
mez que o primo me arguia por eu no me sujeitar
s prticas da religio que me pareciam piegui-
ces .. J se v que nada lhe saberei dizer cerca da
sua inquietallo e do se a. mdo de acabar. . . Com.,.
pete aos sacerdotes essa misso. . S elles tem fora
e a.no necessarias para o socegarem, convence-
rem, e insinuarem-lhe as esperanas celestiaes que
meu primo prodigalisava aos moribundos. . Quer
que eu chame o padre Ludwig?
-Esse!- bradou o agonisante-N a.nca I nunca !
-Eu suppunha-os amigos.
Esvoaou nos beios do padre um sorriso trucu-
lento.
V
.
- eJa se quer outro...
-Nenhum, nenhum I Tenho mdo de morrer,
confesso, . . mas antes quero morrer s, desesperado,
e nllo vr ao p de mim um homem assoldadado para
me dizer palavras hypocritas... Cuidas que estou
delirando? Pensas que estou doudo? Nito .. O ter-
ror subjuga-me sem me turvar o juizo .. Tenho
uma necessidade grande .
-Qual?
- Qa.eria confessar-me .
-Eu vou chamar .
-Confessar-me a um homem honrado ...
-Escolha quem quizer, primo.
-A confissllo, no seu principio, era um acto
grandioso e santssimo. . Emqa.anto foi publica foi
excellente. A volnntaria humildade a que o peni-
tente se condemnava, restaurava-o e influa-lhe paz
na alma. Sllo dois os elementos da confissllo : humil
15
Dlgltized by Goog I e
A. FB.ElllA. NO 8UBTERaA.NEO
dade e contrilo. O sacrificio do orgulho ennobrece.
A confisso foi proveitosa, austera, indispensavel:
era, para assim dizer, o eterno baptismo do esprito.
Ahi se lavavam nodoas. Logo que a fizeram secreta,
perdeu a ndole boa, abastardou-se lentamente. Mas
agora, ai I agora, quero confessar-me, porque vou
morrer e levo commigo um segredo que me despeda-
a. Porm que importa dizei-o a um padre ou a um
leigo? Deus me descontar o confessai-o. . . Se eu
disser a um padre o segredo que me tortura, elle
recuar decerto deante da reparao, e temer des-
acreditar a cleresia. . . E eu preciso. . . percebes?
preciso qae a reparao se faa ...
Gziorowski escutava Zzimo com doloroso as-
sombro.
Pois aquelle homem venerando, aquelle sacerdo-
te, exemplo dos ministros de Jesus, albergava no
seio um segredo criminoso? J no ha em quem se
fiar a gente I '
O primo, no emtanto, entendendo que era preciso
usar caridade com aqaelle homem acabrunhado por
dres physicas e moraes, apertou-lhe a mo para lhe
incutir coragem.
O padre bebeu uma poo, reanimou-se, e disse :
- 8 a ti direi tudo ..
-A mim?
-Fio-me na taa palavra ... Juras que me aju-
dars a reparar uma iniquidade, a castigar um cri-
me cuja responsabilidade minha em parte?
-Juro. ;
-Escuta-me com a placidez de juiz. E's mais
novo que eu, e, com tudo, tens mais senso. . . Eu,
apesar do meu caracter sagrado, humilho-me dea
de ti. . Porque ta s quem s, e nunca te mas
raste com a hypocrisia. Deante de ti arranco a m
cara. Antes de morrer, quero que me vejas qual -
o;
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I
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Si
A li'REIRA NO SUBTERRANEO 2.27
Tenho sde de desprezo e odio, como se estes ultra-
jes, flagellando-me a hora final, podassem ganhar al-
guma piedade n'aquelle que ine vae julgar e confun-
dir. Meu primo, eu tinha nas veias o sangue ardente,
e no corao as paixJes da nossa raa. Fiz-me pa-
dre, sem attender s prova<Ses que me esperavam,
sem attentar no que ao deant.e seria o voto de casti-
dade que me foraram a fazer. Quando soube o que
fiz, quando a minha carne e a minha alma se revol-
taram, maldio! ... era tarde I A tunica de Nessus
adheria-me aos membros. . . Queimava-me o estigma
do celibato. . . Desde a cabea at aos ps, todo eu
era da egreja. . . A minha cabea foi assignalada.
pelo ferro, e o meu corpo foi envolvido n'uma tunica.
negra. J ulgueime apartado do genero humano, mo-
ralmente amputado, guarda d'um harem, em rebeldia
perpetua, porque era perpetuo o martyrio. . . O meu
temperamento, degenerado, amollecido no seminario,
perturbou-se bestialmente. Inundou-me a onda dos.
desejos, que rompra os diques; repuxaram-me ao
cerebro jactos de sangue. Estorci-me entre as roscas
da serpente lasciva; escabujei, aguilhoado pelos far-
p(5es da carne que faziam gemer S. Paulo; tentei so-
pesar orgulhosamente as remettidas na natureza do
homem I Vos esforos! Lucta sem treguas nem es-
perana I. .. Cahi I Que raiva, que embriaguez diabo-
lica, que revelao e terror n'este cahir! Trovejou-me
na alma uma phrase de S. Jeronymo: Se um monge
cahe, um padre pedir por elle; se um padre eahir,
quem pedir pelo padre? EscrU:ciaram-me remorsos;
mas duraram pouco. Praticada a primeira culpa, es-
tava para sempre perdido I Restava-me sustentar a
minha reputao ... Era preciso conciliar a regulari-
dade apparente da vida com os prazeres de que eu
i nl1o podia abster-me .. Eu queria volta de mim
o;
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22.8
A. FR"CIR.A. NO SUBt1CR8.ANIIO
mulheres ... muitas mulheres .. Soube ento que as
carmelitas de Cracovia precisavam de capello.
-Meu Deus!-disse entre si o interlocutor.
-Nada direi dos mysterios d'esta casa, onde as
doutrinas de Molina tem uma grande influencia ...
As fragilidades do corpo so menos punidas do que
se cuida ... Mas mim nllo me contentavam as pom-
bas ,gemebundas .. Deixei-me vencer de uma louca
paixo por uma bella mulher ... paixo que me ex-
citou at ferocidade do crime. . . Elia era casta e
sem mancha. . . Um amor contrariado a levra ao
Carmelo. . Oito annos alli viveu chorando. . Ao
cabo d'este tempo quiz fugir. . Condemnada pelas
freiras a prislo perpetua, l a fui arrancar uma noite
ao seu covil; e, como era impossvel vencer-lhe a re-
sistencia, narcotizei-a ...
-Horror ! -exclamou o primo, recuando.
-Oh I ~ i m I .. foi horrivell E8sa desgraada
s tinha de seu. a castidade do seu corpo, e essa mes-
ma lhe roubei. . . como um ladro e algoz I Ainda
mais . A prelada soube tudo ... Esta mulher ama-
va-me como eu amava. a outra ... A vingana que
ella exercitou sobre a. desgraada foi infamissima. ..
Soterraram-na em uma cova tllo baixa, qne ella nlo
podia erguer-se, e tllo estreita, que nllo tinha espao
onde deitar-se. . . Ahi esteve emparedada, sem ar,
sem luz .
-E o primo deixou consummar tamanha atro-
cidade!
-A prelada aterrou-me .. e, depois, o meu
unico recurso era esquecer ..
-E esteve muito tempo n'essa cova a i.f.._
liz?
-E l est ainda l-disse o padre erguendo-sE
Estava l quando sahi de Craoovia. Eu quero, si
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I
A. FREIRA NO SUBTERRA.NJIO 229
quero antes de morrer, que a luz e a liberdade se-
jam restitudas a esta mulher ..
-Que devo fazer?
-Avisar a justia.
-E se o primo cumplice?
-Que importa? Vou morrer .. Escreve, escre-
ve, nllo te demores um instante, e manda a carta ao
juiz do crime ...
-Zolpki tem fama de ser o melhor.
-Zzimo passou a mo pela testa, e disse:
-Parece-me que ouvi pronunciar esse nome
desgraada mulher. . . Escreve, escreve ..
-Para. o no expr, ir anonyma a carta.
-Pois sim.
- E o nome da freira?
-Barbara Ubryk.
-E' aquella clebre formosa que ha vinte an-
nos vestiu o habito com grande admirao de Cra-
covia?
-E'.
Gziorowski escreveu a carta que os leitores vi-
ram no principio d'este livro. Aderessou-a a Zolpki
e levou-a caixa. postal.
A noite do enfermo passou serena.
Assim que foi dia, esperou os periodicos impa-
cientemente. Parecia-lhe que o facto da sequestrao
de Barbara havia de irritar a geral indignao, e
furar a justia a exercer violentas repressCies contra
os mosteiros, e em particular contra o do Carmelo.
Gziorowski no se apartava do criminoso, posto
que o affecto que lhe tivera estivesse extincto. As-
sim mesmo a confisso do padre commoveu-o. Era-
lhe, todavia, custoso occultar o involantario des-
prezo que sentia, ao passo que lhe suavisava os pa-
roxismos.
Ao quarto dia, o jornal Le Kraj, de Cracvia,
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230 A FREIRA NO SUBTERRANEO
referin que, por ordem de um magistrado, o snr.
Pamza, chefe da policia, com authorisalto do bispo,
as portas do convento de Wesola haviam sido ar-
rombadas, e ahi encontrada em um fosso subterra-
neo uma freira chamada Barbara Ubryk, encerrada
desde 1848; e accrescentava que o capelllo ~ r a pre-
so, juntamente com a prelada e com a sub-prioreza.
O artigo do Kraj, relatava miudamente a exas-
perao dos habitantes de Cracovia, as desordens
que tumultuavam na casa dos jesutas, o sentimento
de ira geral contra os conventos, e o proposito de os
supprimir que preoccupava o governo.
Z6zimo ouviu serenamente a leitura do Kraj.
-Barbara est livre- disse elle. -Metade do
meu dever est cumprido. A outra o meu proprio
castigo.
-Que intenta fazer?! -perguntou o primo.
-Deixa-me ficar .. tenho necessidade de me
recolher e pensar. . Soffro horrveis dres. Tem-
me sido preciso muita energia para domar o softH-
mento, a fim de ter este intervallo. . . Est feito o
que me cumpria fazer. . . A dr n!o tarda ahi ..
a morte no tardar tambem.
-Eu estarei perto; se precisar, chame-me.
-Aperta-me esta mo. . . e perda-me.
-c Quem se sentir innooente que te arremesse a
primeira pedrall, disse Jesus.
O padre ficou s6.
Prostrado na othomana, com os olhos cerrados e
os labios trementes, assim se quedou immovel por
espao de duas horas.
O que iria n' aquella alma atormentada por tan-
tas paixes perversas ? Que perdo pediria elle
justia divina? Que exame faria em sua vida an1
de ir dar contas d'ella? Segredos do co.
Mas duas lagrimas lhe rolatam nas faces.
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A FRBIRA NO SUBTERRANEO 23t
Depois, levou aos beios um frasco de opio.
Passaram mais duas horas. O primo, no que-
rendo contrariar a vontade do agonisante, esperava
na saleta visinha. A criada entrou ahi ento - en-
do que a justia estava na sala. Um dos mag"rotra os
disse, que vinha alli, depois da inquirio cita no
eonvento das carmelitas de Cracovia; por'lu nto
uma freira no hospital de S. Lazaro c-
eusava o director d'aquelle convento, justa uente
padre Zzimo, que elles procuravam.
-Queiram seguir-me, disse o dono da casn.; s
previno-os de que ao desgraado que vo inte ro ar
se deve a noticia do encarceramento de ll rb r
Ubryk.
E abriu a porta .
Os magistrados foram direitos otho nna do
doente.
-Queira acordai-o- disse um dos jui es o
primo.
- Este pegou na mo de Zzimo, e logo a de -
xou cahir, porque estava fria.
E murmurou:
-J est julgado por Deus, senhores.
Os magistrados sahiram sem proferir pBlavr
E depois que elles sahiram, voltou
ao quarto para cerrar os olhos d'aquelle criminoso,
agonia fra alumiada pelos terrveis cl roas do
remorso. Ao abaixar-lhe as palpebras sobre s pu-
pillas immoveis, quiz estender-lhe os braos o lon o
do corpo, e ento viu na mo do cadaver o r se
do opio, que estava vazio.
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XVII
Penultimo capitulo
1
Barbara Ubryk foi tratada com o maximo cari-
nho no hospital de S. Lazaro, para onde foi condu-
zida. O interesse que ella inspirava no provinha s-
mente do senti111ento piedoso pelas dres que soffre-
ra: que toda.,. cidade, e a Prussia, Austria e a
Frana foram commovidas pelo horrvel drama. Du-
rante muitas semanas, o Kraj, de Cracovia, a Nova
imprensa livre de Vienna, o Narodni, Liaty. o l!rein-
denblatt, a Correapondencia de Berlim, o Czar, e o
periodico La Lya publicaram vehementes artigos re-
latando no s os actos monstruosos relativos frei-
ra de Cracovia, mas tambem os factos do priso e
tortura, cujas provas augmentavam diariamente. Nilo
foi smente devassado o mosteiro de W esola. Todos
1 O auctor denomina penultimo este capitulo, como
quem diz que o ultimo est ainda pendente da vida de al-
guns personagens da medonha tragedia.
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234 A li'REIR.A. NO SUBTERRAN.IIO
()8 subterraneos dos claustros de carmelitas e trapie-
tas deram victimas comprovativas de eguaes infa-
mias. Foram theatro de analogas acenas o mosteiro
das irmlls da Misericordia, em Casolinenthall, mui-
tos conventos da Gallicia occidental, as carmelitas
de Kradshum, o convento de Kam, junto de Jedoi-
na, o convento dos benedictinos de Mogilno, na pro-
vncia de Pozen, e finalmente, o das carmelitas de
Courtroi.
O caso de Cracovia, semelhante a um rastilho
de polvora, derramou-se por toda a Europa. Um ge-
ral terror se apoderou dos espritos, que pergunta-
vam espavoridos de que servira abolir-se a inquisi-
o, e o sopprimirem-s os votos perpetuos., se os
crimes religiosos se perpetravam ainda, graas im-
punidade da concordata.
A effervescencia dos espritos foi tamanha em
Cracovia, que os habitantes tentaram derruir o mos-
teiro das carmelitas. Foi mister que a tropa o de-
fendesse.
No dia vinte e quatro de junho, passante de qua-
tro mil pessoas se reuniram no bairro de W esola;
e como a tropa impedisse a tentativa de invasito, o
povo voltou-se contra os outros conventos da cidade,
principalmente de jesutas. Os padres principiaram
por entrincheirar as suas agigantadas portas ; apaga-
ram as luzes nas cellas; e, tomados em todas as
avenidas, esperaram os effeitos da ira popular. A
gritaria, os apupos e as ameaas retumbavam roda
do convento. A porta cedeu aos empuxes, os vidros
voaram em hastilhas, e os jesutas a muito custo es-
caparam s prsas dos furiosos. Fizeram-se prises
de populares, cujo resultado foi augmentar a coleta
geral e o odio do povo contra freiras e padres. De
toda a parte sahiram reclamaes a pedir que a nova
legislaito providenciasse energicamente, e a . amea-
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A J'REIRA NO" SUBTERRANEO 235
ar que a sociedade faria justia, se os tribunaes a
no fizessem no processo de Barbara. Os interroga-
torios e depoimentos no cessavam; por maneira que,
em tll.o grave questo, todos os interesses eram pe-
quenos, incluindo propriamente a lacta diplomatica
com Berlim.
A opinio publica em Cracovia, em Praga, Tries-
te, Gratz, Linz e Vienna j proclamou repetidas ve-
zes e vivacissimamente contra o esprito geral dos
conventos, e mrmente contra o dos jesutas. Espe-
ra-se agora o resultado definitivo da reforma dos
mosteiros e seus estatutos.
Se monsenhor Galeski no mostrasse a firmeza e
esprito justiceiro que permittiram aos magistrados
de Craoovia penetrar o odioso mysterio do Carmelo
de Wesola, quem sabe por quanto tempo ainda se
perpetrariam semelhantes crimes? A Hespanba j
pede a suppresso dos conventos; a ltalia ha-de imi-
tai-a um dia. Chegar portanto a epocha em que de
todo desappaream esses refugios mysteriosos, em
que a vida se furta ao imperio da lei, e o escudo
d'um falso Evangelho rebate os golpes da espada da
justia.
Barbara recuperou pouco a pouco o socego de es-
prito. Recommendaram-lhe que no torturasse a me-
moria a renovar a cadeia dos acontecimentos passa-
dos. A mudana de vida devia produzir aquellas
melhoras. O primeiro allivio que recebeu a desgra-
ada foi uma sala espaosa, arejada, com muita luz,
e jariellas para um jardim. Era triste vl-a infan-
tilmente risonha com coisas insignificantes para pes-
soas que houvessem menos padecido. A irritao
acalmou-se lenta e progressivamente. J sentia mais
vigor e elasticidade no corpo. E j no rosto lhe
transpareciam uns traos d'aquella celebrada bel-
leza, que tio fatal lhe havia sido.
A J'BBIJlA NO SUBTZRBAN:IO
Zolpki ia todos os dias ao hospcio informar-se
do estado da enferma, sem ousar dar-se a conhecer,
receioKo da fraqueza em que ella estava. Era muito
para temer essa hora, to solemne quanto dolorosa.
Que diria quella martyr, elle, que no tivera cora-
gem de guardar os lutos do seu amor e da sua ju-
ventude?
Barbara faltava; mas no ligava conversalo
escorreita. Phrases breves, exclama(Ses, palavras
desatadas, e mais nada. Talvez que l no seu en- .
tendimento as idas se encadeassem; mas as pessoas,
que a escutavam ou interrogavam, no a percebiam.
Alm de que, Barbara enfadava-se quando lhe fa.
ziam perguntas, e respondia constrangidamente. U
o que ella dizia de si para comsigo, indicava que as
pessoas circumstantes lhe no davam o mnimo cui-
dado. No se queixava da prelada e do padre com
grande clera. Invocava contra o director a justia
divina, sem saber que o miseravel sacerdote se pu-
nira dos crimes velhos com um crime nov:o, eva-
dindo-se dos tribunaes pela P.Orta do suicdio.
Deliberou finalmente Zolpki, passados cinco dias,
entrar no hospital de S. Lazaro. Barbara estava ao-
cegada n'essa occasio, e dormitava. Pousava o rosto
lvido sobre a travPsseira menos alva que os seus ca-
bellos, e as mos translucidas e entrelaadas assen-
tavam sobre ~ coberta. Dir-se-hia uma estatua de
cra n'aquella pallidez e immobilidade.
O magistrado assentou-se convulsivo cabeceira
da d o t ~ n t e .
D'ahi a instantes, cuidou ouvir n'um suspiro o
nome oZolpki, ao mesmo tempo que Barbara des-
cerrava as palpebras.
-O senhor aqui l-disse ella.
-No me esperava?
- Ha dois dias .. antes d'isso no pensava quasi
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A FREIRA. NO' SUBTERRAI\"EO 237
nada ... Lembra-me que o vi. .. n'aquella noite do
IHI.bterraneo. . . ao claro das tochas. . . :Sim, vi ...
A religiosa tomou-se d'um profundo enlvo, e tor-
nou, depois de instantes :
-Se o homem que eu amei no fsse morto ..
-Fallemos d'elle- disse o magistrado, aper-
tando a mo da freira.- Quem lhe disse que elle
morreu?
-Vi-o eu cahir cortado de golpes defronte da
portaria do convento. . . Era j morto quando os
soldados me quizeram arrastar ... Foi ento que eu
me refugiei no mosteiro. . . Morreu I ...
-Barbara- replicou o juiz- a Providencia
mysteriosa e impenetravel nos seus desgnios. A mim
disseram-me que Zolpki no succumbiu aos ferimen-
tos, posto que padeceu lorigo tempo, e parecia agoni-
sa.r da vida quando nas carmelitas dobraram os si-
nos por aquella to sua amada ...
-Sim. . to amada 1 .
-Deus condemnou-os ambos a viver ...
-Tem a certeza d'isso?- exclamou a religiosa
- Zolpki vivo I Deus do co! . . . Mas ... j ago-
ra. . . para que? De que lhe serviria Barbara, este
medonho esqueleto, fugido dos calabouos do Car-
melo ? Poderia elle, ao menos, olhal-a com a pieda-
de de amigo?. No. . Zolpki morreu. . . Se elle
vivesse, estaria aqui ..
- Talvez que elle receie no ser perdoado ...
-Que hei-de eu perdoar-lhe? Que posso eu exi-
gir d'elle, seno uma saudade da mulher morta?
-E se elle, infiel a essa saudade, ou antes aba-
fando o seu luto no intimo da alma, carecido de fa
milia ...
Barbara sorriu meigamente, e disse :
-Receia dizer-me que elle casou ? O que eu
quero que elle viva. . no importa que seja com
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A li'REIRA NO SUBTERRANEO
outra. . . mas que viva! Desejo vl-o,. quero fallar-
lhe. . . Quero apertar as suas mos e fixai-o be111.
face a face . . Quero vl-o, como o estou vendo ...
O' meu Deus ! Porque est olhando assim para mim?
A minha memoria hesita .. Recordo-me .. reco-
nheo . . . Tu !. . . tu I. ..
E cahiu sem sentidos.
Desde este momento, era quasi seguro o restabe-
lecimento d'aquelle esprito. Quando voltou a si,
Zolpki e s t a ~ a ao seu lado:
-No me havias tu promettido a liberdade? ..
- disse ella.
Depois quiz saber a vida toda do querido da sua
mocidade ; estremeceu quando ouviu proferir o nome
de Mina, e alegrou-se quando lhe ouviu o nome de
Vanda.
- Tu has-de trazer-m'a, sim? E depois has-de
deixala casar com o homem que ama ...
N'esse mesmo dia, Vanda era auctorisada por
seu pae a dizer a Wladimir que seria recebido como
noivo em sua casa .
. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
O processo relativo ao enctl.rceramento de Bar-
bara Ubryk durou longo tempo. A sociedade recla-
ma o castigo de Maria W enzyk; mas a familia da
prelada poderosa; o clero faz supremos esforos
por abafar a infamia; os arcebispos e o papa entra-
ram n'esse conluio; e, por fim, baixou ordem do go-
-verno para que o processo fosse trancado.
FIM
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I
l
INDICE
Cap.
Pag.
I- Uma carta anonyma 7
II- Uma casa murada .
23
III-O lu pace .
41
IV- A Virgem das tranas d'oiro . .
V- O poema eterno . . . . 71
VI- Morta e viva . . 87
VII - O recinto da penitencia. 103
VIII- As nupcias celestiaes 113
IX- O aprisco do Senhor. 125
X- O afilhado do doutor. 189
XI- A relquia de S. Marciano. 149
XII- A patrulha nocturna. . . . 16
XIII-O tribunal das carmelitas 179
XIV- Torturas. . . . . 201
(
XV -Zolpki 209
I
. . . . . .
XVI- Expiaio do padre Z6zimo. 223
XVII- Penultimo capitulo . . . 233
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