A VIOLNCIA SEXUAL INFANTIL INTRAFAMILIAR: A REVITIMIZAO DA CRIANA E DO ADOLESCENTE VTIMAS DE ABUSO1

CLUDIA BALBINOTTI
Sumrio: INTRODUO; 1. ABUSO SEXUAL INFANTIL. 1.1 Conceitos bsicos e consideraes sobre abuso sexual infantil; 1.2 Diferenciao entre abuso e incesto; 1.3 A sndrome do segredo e da adio; 1.3.1 A sndrome do segredo na criana e nos familiares; 1.3.2 A sndrome da adio no abusador 2. SISTEMA INQUIRITRIO VIGENTE. 2.1 Etapas de encaminhamento do abuso sexual infantil; 2.2 A oitiva da criana e do adolescente abusados; 2.2.1 O despreparo dos operadores de direito para a oitiva da vtima infantil; 2.2.2 Quem deve ser entrevistador e como realizar as entrevistas da vtima infantil; 3. ALTERNATIVAS DE SOLUES. 3.1 Problemas possveis na produo da prova; 3.2 Produo antecipada de prova criminal; 3.3 Novas alternativas ao procedimento de inquirio da criana vitimada; 3.4 O projeto Depoimento sem Dano; 3.5 Projetos de Lei sobre o tema.

RESUMO O presente estudo tem por objetivo abordar o tema do abuso sexual de crianas e adolescentes dentro do ambiente familiar e a conseqente revitimizao qual o menor submetido no vigente sistema de inquirio judicial e extra-judicial. Visa tambm demonstrar que possvel proteger psicologicamente os menores, evitando a repetio excessiva de interrogatrios e os danos provocados na produo de provas. Para maior compreenso do tema, define alguns conceitos bsicos, destaca como a atual sistemtica de oitiva destes menores vitimados, a necessidade do preparo dos profissionais aos danos emocionais causados, assim como o elevado nmero de absolvies de abusadores por falta de provas ou nulidades. Na seqncia, demonstra novas alternativas para inquirio, rene algumas proposies sobre mudanas legislativas. Por fim, a guisa de concluso destaca que um novo mtodo para abordar menores nessas circunstncias se faz necessrio e iminente, uma vez que a sociedade se mostra cada vez mais consciente dos maus-tratos e das seqelas enfrentados por eles, no seio da prpria famlia, onde, justamente, deveriam encontrar apoio e proteo. ABSTRACT The main objective of this study is to analyze the sexual abuse committed against children and adolescents in the family context and the consequent
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Artigo extrado do Trabalho de Concluso de Curso da aluna Cludia Balbinotti, apresentado Banca Examinadora da Faculdade de Direito da Pontifcia Universidade Catlica do Rio Grande do Sul, como exigncia parcial para a obteno do grau de Bacharel em Cincias Jurdicas e Sociais. Aprovao com grau mximo pela banca examinadora, composta pelo orientador, Prof. Paulo Ricardo dOliveira, Prof. Maria Elisa Algayer e prof. Dora Venturini, em 19 de junho de 2008.

revictimization that they are submitted in the present system of judicial inquiry as well as extra-judicial. Our aim is also to demonstrate that is possible to protect physiologically underage victims, avoiding the excessive recurrence of interrogatories and the damages that are caused in the productions of the proofs. We highlight the present by hearsay system of young people that are victims of sexual abuse, the fact that the law operators are not prepared to deal with those emotional problems caused, as well as the number of abusers that is absolved without proofs. After that, we demonstrate the inquiry. We also gather some propositions about legislative changes. Finally, we conclude that is necessary and urgent the creation of a new method in order to deal with the underage victims, since the society are aware of the way many of them have been treated in their families nowadays and the consequences of it. Naturally, children and adolescents should be protected and supported by their families. INTRODUO Este estudo objetiva tecer consideraes sobre a dinmica do abuso sexual infantil e sobre a inquirio das pequenas vtimas nos processos de apurao do delito; averiguar a existncia de equvocos na forma como so realizadas as entrevistas para obteno da prova e pesquisar as possibilidades de aplicao de procedimentos mais adequados. Diante disso, o tema foi limitado violncia sexual infantil intrafamiliar, por ser a mais freqente e a mais danosa ao menor, uma vez que ele espera e tem direito ao amor e proteo no seio familiar. O trabalho foi disposto em trs captulos, onde so abordados conceitos, viso histrica, o sistema inquisitrio vigente e algumas alternativas de soluo para a oitiva das pequenas vtimas, sem danos secundrios.

1. ABUSO SEXUAL INFANTIL

1.1 Conceitos bsicos e consideraes sobre abuso sexual infantil A problemtica abordada neste trabalho de concluso focaliza vtimas menores de idade, que, pelo seu desenvolvimento incompleto, ainda no alcanaram o discernimento necessrio para integral autodefesa. Refere-se a pessoas com menos de dezoito anos, entituladas crianas e adolescentes, segundo o artigo 1. do ECA2. Para fins prticos, neste trabalho, ser utilizada a expresso criana para reportar-se s duas faixas etrias. Atualmente, a violncia um dos piores problemas enfrentados pela sociedade. Manifesta-se das mais diversas formas. Embora presentes ao longo dos
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Considera-se criana, para os efeitos desta Lei, a pessoa at doze anos de idade incompletos e adolescente aquela entre doze e dezoito anos de idade.

tempos, somente nos dias de hoje, frente conscincia da relevncia dos direitos humanos, tornou-se prioridade combat-la. Violncia o ato ou efeito de violentar, de empregar fora fsica (contra algum ou algo) ou intimidao moral contra (algum).3 Pode-se afirmar que violncia domstica contra menores de idade
[] representa todo ato ou omisso, praticados por pais, parentes ou responsveis, contra crianas e adolescentes que sendo capaz de causar dano fsico, sexual e/ou psicolgico vtima implica, de um lado, uma transgresso do poder/dever de proteo do adulto e, de outro, uma coisificao da infncia, isto , uma negao do direito que crianas e adolescentes tm de serem tratados como sujeitos e pessoas em condio 4 peculiar de desenvolvimento.

J a violncia sexual ou explorao sexual, conceituada genericamente, significa o ato sexual, relao hetero ou homosexual entre adulto e criana ou adolescente, objetivando utiliz-la para obter uma estimulao sexual.5 tambm definida como:
[] envolvimento de crianas e adolescentes, dependentes e imaturos quanto ao seu desenvolvimento, em atividades sexuais que no tm condies de compreender plenamente e para as quais soam incapazes de dar o consentimento informado ou que violam as regras sociais e os papis familiares. Incluem a pedofilia, os abusos sexuais violentos e o incesto, sendo que os estudos sobre a freqncia sexual violenta so mais raros do que os que envolvem violncia fsica. O abuso pode ser dividido em familiar e no familiar. Aproximadamente 80% so praticados por membros da famlia ou por pessoa conhecida confivel, sendo que cinco tipos de relao incestuosa so conhecidas: pai-filha, 6 irmo-irm, me-filho, pai-filho e me-filha.

H diferena entre o abuso sexual intrafamiliar e o extrafamiliar. Este configura-se quando a violncia acontece fora do lar, ou tem como abusador algum no prximo famlia. Aquele transcorre dentro do seio familiar, envolvendo o menor e parente prximo, muitas vezes pessoa do convvio dirio. O abuso sexual infantil intrafamiliar apenas um dos diversos tipos de violncia a que a criana est exposta no lar. Vem sendo praticado, ao longo dos tempos, sem distino de raa, cor, etnia ou condio social. Ocorre de forma velada e, na maioria das vezes, no relatado s autoridades competentes. Devido a constrangimentos, o tema no vinha sendo tratado em doutrina, at poucos anos atrs, dificultando, assim, as estatsticas e a comprovao do fato ilcito. uma das formas mais cruis de se maltratar uma criana e consiste na utilizao de um menor para a satisfao dos desejos sexuais de um adulto. Segundo literatura mdica ,
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HOUAISS, Antnio; VILLAR, Mauro de Salles; FRANCO, Francisco Manoel de Mello. Dicionrio Houaiss da lngua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001, p. 2.866. 4 GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo. Violncia de pais contra filhos: a tragdia revisitada. 3 edio. So Paulo: Cortez, 1998, p.32.
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GABEL, Marceline. Crianas vtimas de abuso sexual. So Paulo: Summus Editorial, 1997, p. 20.

[] abuso sexual consiste no uso de uma criana para fins de gratificao sexual de um adulto ou adolescente cinco anos mais velho, criana imatura em seu desenvolvimento e incapaz de compreender o que se passa, a ponto de poder dar o seu consentimento informado. O consentimento informado est vinculado capacidade ou incapacidade do indivduo para tomar decises de forma voluntria, correspondendo direta ou indiretamente - ao grau de desenvolvimento psicolgico e moral da pessoa. A autonomia ocorre quando o indivduo reconhece as regras, que so mutuamente consentidas, as respeita e tem a noo de que podem ser 7 alteradas.

A autora Carla Faiman, por sua vez, acrescenta:

Abuso sexual todo relacionamento interpessoal no qual a sexualidade veiculada sem o consentimento vlido de uma das pessoa envolvidas. Quando se verifica a presena de violncia fsica, o reconhecimento do abuso pode ser mais claro, pela objetividade dos fatos que indicam que o 8 abusador fez uso de fora para vencer a resistncia imposta pela vtima.

Ao examinar aspectos legais do abuso sexual infantil, Furniss define:

A explorao sexual das crianas refere-se ao envolvimento de crianas e adolescentes dependentes, imaturos mentalmente, em atividades sexuais que eles no compreendem totalmente, s quais so incapazes de dar um consentimento informado e que violam os tabus sociais dos papis familiares, e que objetivam a gratificao das demandas e desejos sexuais 9 da pessoa que comete o abuso.

As conseqncias do abuso sexual so distintas, variando caso a caso. Dependem de fatores, entre outros, como a idade da criana poca do abuso sexual, o elo de ligao existente entre ela e o abusador, o ambiente familiar em que a criana vive, o impacto que o abuso ter aps a sua revelao, a reao dos conhecidos, as decises sociais, mdicas e judicirias que interviro no caso.10 Podem ocorrer, de acordo com Mari Lucrcia Zavaschi, os seguintes sintomas e manifestaes:
[] automutilao e tentativa de suicdio, adio a drogas, depresso, isolacionismo, despersonalizao, isolamento afetivo, hipocondria, timidez, distrbio de conduta (roubo, fuga de casa, mentiras), impulsividade e agresso sexual , assim como freqente a presena de sndromes dissociativas, transtornos severos de personalidade e transtorno de estresse 11 ps-traumtico.

Conforme Marceline Gabel, so comuns tambm psicossomticas e desordens no comportamento, tais como:

as

reaes

[] pesadelos, medos, angstias, anomalias no comportamento sexual, masturbao excessiva, objetos introduzidos na vagina e nus, GUERRA, Viviane Nogueira de Azevedo, op. cit., p. 31. FURNISS, Tilman. Abuso sexual da criana: Uma abordagem multidisciplinar. Traduo: Maria Adriana Verssimo Veronese. Porto Alegre: Editora Artes Mdicas, 1993, p. 10. 8 FAIMAN, Carla Jlia Segre. Abuso sexual em famlia: a violncia do incesto luz da psicanlise. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2004, p.102. 9 FURNISS, Tilman. op.cit., p 12. 10 GABEL, Marceline. Crianas vtimas de abuso sexual. So Paulo: Summus Editorial, 1997, p. 23. 11 ZAVASCHI, Mari Lucrcia Scherer et al. Abuso sexual na infncia: um desafio teraputico. Revista de Psiquiatria, So Paulo, n 13, p. 136-145, set/dez. 1991
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comportamento de seduo, pedido de estimulao sexual, conhecimento 12 da sexualidade adulta inadaptado para sua idade.

Em determinadas situaes, a violncia sexual resulta em leses genitais e outros danos fsicos, fazendo-se necessria a hospitalizao. Nestes casos, a revelao inequvoca, gerando inevitveis responsabilizaes. H, entretanto, abusos mais difceis de serem diagnosticados, onde os ferimentos no so visveis, tornando a palavra da criana menos ou no acreditada. 1.2 Diferenciao entre abuso e incesto Nem toda relao incestuosa pode ser considerada abusiva. As prticas sexuais entre familiares nem sempre possuem violncia fsica ou psicolgica. Muitas vezes, dependem do aculturamento local. De acordo com Patrcia Calmon Rangel, em relaes incestuosas podem estar presentes a afeio ou a atrao sexual mtua, que descaracterizam o abuso, na ausncia de desigualdade de poder inerente relao pai-filho, quando este filho ainda uma criana ou adolescente.13 A mesma autora ainda conceitua:
O incesto qualquer tipo de contato sexual entre parentes do mesmo sangue e afins, desde que sejam adultos e a relao no seja atravessada pelo poder. Neste caso, eles apenas infringem uma norma social. J o sexo 14 com crianas um abuso, porque ela no tem capacidade de consentir.

O ato de incesto considerado pela criana como um segredo sujo. Considera-se cmplice e mantm em sigilo das demais pessoas. De acordo com Carla Faiman, pesquisas americanas relatam o porqu da preferncia dos agressores sexuais por crianas:
- Crianas pequenas ope pouca resistncia ao abuso, so mais facilmente ludibriadas e intimidadas e tm um respeito culturalmente aprendido em relao autoridade do adulto, que facilita a perpetrao do abuso; - quanto s circunstncias s quais as crianas abusadas se encontravam, a autora alerta que as crianas pouco vigiadas, deixadas por sua prpria conta ou que tm carncias emocionais e afetivas so mais vulnerveis e 15 constituem provavelmente o alvo preferido dos autores de abusos. (sic)

Em entrevista para o artigo Inocncia Violada, o geneticista Ranato Zamora Flores - Doutor em Gentica e Biologia Molecular, professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul -, relata que o incesto no ocorre entre os animais. Refere que
[] a freqncia das relaes incestuosas entre a maioria das espcies de aves e mamferos e da gentica do comportamento de apenas 1% a 2% e a estimativa para o homem de 20%. Em algumas famlias de bichos, as fmeas deixam de ovular quando s h parentes disponveis para a procriao, movidas pelo instinto de que sexo entre iguais enfraquece a GABEL, Marceline. op.cit., p. 25. RANGEL, Patrcia Calmon. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Curitiba: Editora Juru, 2001, p.19 14 Ibidem, p.49. 15 FAIMAN, Carla Jlia Segre. Abuso sexual em famlia: a violncia do incesto luz da psicanlise. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2004, p.73.
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espcie e reduz as chances de sobrevivncia. O incesto essencialmente 16 humano e isso o que parece assustar as pessoas.

1.3 A sndrome do segredo e da adio Aps muitos anos ignorando o grave problema social do abuso sexual infantil, a humanidade alcanou hoje uma maior conscientizao sobre a urgncia em enfrentar este problema. Para tanto, tcnicas de proteo a crianas vtimas de violncia sexual vm sendo desenvolvidas e a conscincia dos Direitos Humanos corrobora para o enfrentamento deste drama. Faz-se necessrio, portanto, o conhecimento, por parte dos operadores do direito, de conceitos e tcnicas bsicas sobre abuso sexual. A realizao dos procedimentos jurdicos nestas situaes ser mais eficiente e menos danosa s pequenas vtimas, se houver um preparo por parte destes profissionais, evitando, assim, a revitimizao. As sndromes do segredo e da adio tm fundamental relevncia dentre os princpios bsicos e diferenciam o abuso sexual infantil das demais formas de violncia contra os menores. 1.3.1 A sndrome do segredo na criana e nos familiares Trata-se de violncia sexual extrafamiliar quando o agressor pessoa no pertencente esfera familiar, mesmo que desta conhecido e com prximas relaes. Intrafamiliar o abuso cometido pelos pais biolgicos ou adotivos, padrasto, madrasta, irmos, avs ou tios. Naquela situao, denunciar o abusador atitude menos penosa. Tal conduta no to simples, quando envolve laos afetivos. Nestes casos, o fenmeno chamado sndrome do segredo bastante comum. Consite na ocultao da verdade dos fatos, tanto pela criana quanto pelos prprios familiares (quando cientes), com o intuito velado de manter inalterada a rotina domstica. A no revelao, muitas vezes, por grande espao de tempo, d-se pelas mais diversas motivaes. Tilman Furniss enumera os fatores externos e internos que levam sndrome do segredo:
[] a falta de evidncias mdicas e de elementos para comprovar o abuso sexual infantil, a necessidade de acusao verbal por parte da criana, a falta de credibilidade ao menor, as consequncias da revelao, ameaas fsicas e psicolgicas, distoro da realidade, medo de punio pela ao que participou, a culpa da criana, a negao 17 e a dissociao. (grifo nosso)

As evidncias mdicas comprovam com maior facilidade o fato declarado pela vtima, mas inexistem na maioria dos casos. Nem sempre, entretanto, revelam a identidade do abusador diante de um processo judicial. Quando possvel, o exame

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INOCNCIA Violada. Zero Hora. Porto Alegre, 9, 10, 11 de nov/97. FURNISS, Tilman. Abuso sexual da criana: Uma abordagem multidisciplinar. Traduo: Maria Adriana Verssimo Veronese. Porto Alegre: Editora Artes Mdicas, 1993, p. 29.

de corpo de delito evita retificaes posteriores, resultantes de presso psicolgica familiar. Na falta de evidncias mdicas, torna-se indispensvel a acusao verbal para comprovar a violncia sofrida. Esta atitude bastante difcil para a vtima e freqentemente negada pelo agressor. Ocorrem ainda casos de confuso nos sentimentos do menor, que no tem claro o que se passa exatamente. Neste sentido, como exemplo desta confuso, a manifestao de Ana, uma criana de 9 anos de idade poca do incio dos abusos, em depoimento autora Patrcia Rangel:
[] Quando Ana comeou a ser assediada por Orlando, seu padrasto, com 9 anos, seus sentimentos em relao ao que estava acontecendo eram confusos. Ela conta que gostava dos carinhos e da ateno que lhe eram dispensados, mas sabia que havia algo de errado naquilo. No entanto, 18 nunca contou a sua me, nem a ningum, o que estava se passando.

A ausncia de credibilidade da criana se estende no s dentro do mbito familiar, quanto no sistema legal. A crena de que crianas mentem e adultos falam a verdade ou de que a comunicao das crianas menos vlida ou menos confivel traz prejuzos no processo judicial. Dificilmente uma criana suporta demasiado tempo sem tentar relatar a um familiar sobre a violncia que est vivendo. Conforme ensina Furman,
Eu ainda no vi casos de prolongado abuso sexual da criana dentro do contexto familiar em que a criana no tenha tentado comunicar o abuso a algum dentro ou fora da famlia. Ns freqentemente encontramos crianas que dizem ter tentado contar s suas mes, a outros membros da famlia ou a pessoas de fora, apenas para no serem acreditadas, serem 19 chamadas de mentirosas e serem castigadas pela revelao. (sic)

Uma das piores conseqncias que levam sndrome do segredo o prosseguimento do convvio com o agressor e a reincidncia do abuso. A imposio do silncio se d sob a ameaa de ser a criana responsabilizada pelo trmino do casamento dos pais, desintegrao familiar, priso do abusador, expulso da criana do lar, sua morte ou mesmo do prprio descrdito da palavra do menor.20 Mentem sob a ameaa de castigo, pois lhe imposto que o ocorrido um segredo entre ela e o agressor. Nossa cultura dificulta a defesa do menor molestado, pois impelido a crer no que falam os adultos:
As concepes sobre a criana ainda so bastante impregnadas pela percepo de que criana no sabe de nada, no vai lembrar no futuro o que lhe aconteceu e que, por esse motivo, no lhe trar consequncias
18

RANGEL, Patrcia Calmon. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Curitiba: Editora Juru, 2001, p.105 19 FURNISS, Tilman. Abuso sexual da criana: Uma abordagem multidisciplinar. Traduo: Maria Adriana Verssimo Veronese. Porto Alegre: Editora Artes Mdicas, 1993, p.30. DOBKE, Veleda. Abuso sexual: a inquirio das crianas, uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Ricardo Lenz Editora, 2001, p.33.

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mais srias. Esquecer a palavra chave da reao defensiva dos adultos 21 mais prximos s crianas.

Entre as reaes mais comuns esto a culpa que a criana carrega por ter participado da vivncia abusiva e o medo das conseqncias da revelao dentro de sua famlia. Temem o castigo, o descrdito e a no proteo, mantendo, assim, a omisso dos fatos de forma consciente. A crena de que so, de alguma maneira, responsveis pelo ato vivido, intimida as crianas a no revelarem o que esto ou estvam sofrendo. Alm disso, muitas vezes, os menores tm forte apego pelo abusador, pois possuem vnculos parentais prximos e significativos. Em pesquisa de campo, feita pela autora Patrcia Rangel, Cludia relata uma passagem de sua infncia:
[] E uma coisa eu nunca contei isso tambm para minha me eu j contei uma vez para o Rodrigo, ela tem um irmo que ele eu no sei exatamente que idade eu tinha. Eu devia ter uns 7, 8 anos, por a. Esse irmo da minha me ele tinha uns 18, 19 anos sempre que a gente estava assim, deitada, eu andava muito de calcinha ele chegava l, ele ficava passando a mo em mim, assim na minha vagina. Ento qual a reao da criana? Eu nunca esqueci disso, nunca contei tambm para minha me, talvez at por medo, no sei. Mas a reao da criana de ela fica amendrontada. Ela fica sem entender o porqu est fazendo aquilo 22 com ela. (sic)

A culpa, como fator interno da sndrome do segredo, tambm alcana a criana envolvida no abuso, como bem orienta Tilman Furniss:
O aspecto psicolgico de sentir-se culpado est ligado ao aspecto relacional da participao e resulta do fato de que a pessoa que cometeu o abuso e a criana esto igualmente envolvidas no abuso em termos interacionais. A distino entre o aspecto legal e psicolgico de culpa significa que apenas o progenitor pode ser considerado culpado. Mas a pessoa que cometeu o abuso e a criana podem sentir-se igualmente culpados, como uma expresso dos eventos psicolgicos que se derivam da experincia na 23 interao abusiva.

So ameaadas, pelo abusador, a se calarem, numa tentativa de transferncia da responsabilidade pelas conseqncias da revelao. O temor ao castigo, ao descrdito, ao rompimento da famlia, ao desamor do agressor que muitas vezes pessoa a quem ama e confia so fatores que levam as crianas a mentirem ou a omitirem a tortura vivida. Postura grave e, infelizmente, muito adotada a negao do episdio, pela me no abusiva (sndrome da alienao parental). Sua incapacidade de acreditar na revelao leva a criana a crer que ningum se preocupa com ela e que seu relato sobre os fatos abusivos no interessa. Ainda ocorrem casos de a me preferir
RANGEL, Patrcia Calmon. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Curitiba: Editora Juru, 2001, p.118. 22 RANGEL, Patrcia Calmon. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Curitiba: Editora Juru, 2001, p.111. 23 FURNISS, Tilman. Abuso sexual da criana: Uma abordagem multidisciplinar. Traduo: Maria Adriana Verssimo Veronese. Porto Alegre: Editora Artes Mdicas, 1993, p. 35.
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a companhia do marido-agressor, em decorrncia da sua situao de desamparo e subalternidade. Ainda sobre este ponto, lembra Furnis sobre a possibilidade de o abuso sexual infantil ter o papel de evitar ou regular conflitos existentes na famlia. Com tal funo, o abuso se mantm em segredo, como forma de manter o grupo familiar integrado.24 So muitos os motivos que levam as crianas a silenciar sobre os maus tratos. O espao temporal entre o incio do abuso at sua revelao erroneamente interpretado: minimiza sua importncia, em favor do abusador, com o falso entendimento que no acontecimento demasiadamente grave 25, conforme alerta Veleda Dobke. Crianas que sofrem abusos sexuais e desamparo reagem das mais diversas formas. Uma delas a dissociao. No incomum a adaptao psicolgica situao intolervel. De acordo com o entendimento de Furniss, uma defesa inconsciente do menor pode lev-lo a estados alterados de conscincia para desligar-se da dor ou para dissociar-se de seu corpo, como se estivesse olhando distncia para a criana que est sofrendo o abuso.26 Algumas fingem que no so elas que esto sofrendo a violncia, na busca de ela sobreviver, pois, muitas vezes, perdura por longos anos. E so as seqelas resultantes que causam problemas emocionais na fase adulta. O abuso sexual da criana com sndrome do segredo, frequentemente, gera distrbios de personalidade e trauma permanente devidos aos momentos de terror sofridos na infncia. Como bem ensina Zavaschi, trata-se de dissociao, o mecanismo que separa o corpo da psique, utilizando estados alternados de conscincia para expulsar a dor que se expressa, aps, atravs de sintomas dissociativos.27 Em complemento problemtica, versa Patrcia Rangel:
Em relao s vtimas do sexo masculino, molestadas por agressores do mesmo sexo, onde h inverso de papis sexuais, no momento do ato abusivo, quando o menino colocado na relao em posio que seria feminina, inibe ainda mais a fala sobre o abuso, o que pode ser um dos 28 fatores que explicam os percentuais estatsticos to reduzidos . (sic) (grifo nosso)

A partir do exposto at ento, possvel concluir que quanto menor a idade da criana, maior a sua dependncia em relao ao agressor e mais restrito seu

FURNISS, Tilman. Abuso sexual da criana: Uma abordagem multidisciplinar. Traduo: Maria Adriana Verssimo Veronese. Porto Alegre: Editora Artes Mdicas, 1993, p. 30. 25 DOBKE, Veleda. Abuso sexual: a inquirio das crianas, uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Ricardo Lenz Editora, 2001, p.23. 26 FURNISS, Tilman. op.cit., p. 35. 27 ZAVASCHI, Mari Lucrcia Scherer et al. Abuso sexual na infncia: um desafio teraputico. Revista de Psiquiatria, So Paulo, n 13, p. 136-145, set/dez. 1991, p.141. 28 RANGEL, Patrcia Calmon. Abuso sexual intrafamiliar recorrente. Curitiba: Editora Juru, 2001, p.118.

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entendimento do mundo externo do seu lar, ocasionando, assim, a manuteno do segredo. Como triste concluso do problema do sigilo, narra Zavaschi:
Devido ao segredo que cerca as relaes incestuosas de longa durao, ausncia de testemunhas e de evidncias fsicas, estes casos raramente tm sucesso em processo criminal. Alm disso, fortes laos emocionais e sociais entre a criana e o abusador iro, geralmente, aumentar a relutncia daquela em testemunhar contra seu pai. A maioria das crianas simplismente deseja que o abuso cesse, que tenha alvio da coero que 29 sofre e que haja ajuda para o pai e para a me.

1.3.2 A sndrome da adio no abusador A sndrome da adio manifesta-se no abusador e complementar sndrome do segredo na criana e na famlia. As pessoas que abusam sabem que isso incorreto e prejudicial ao menor, mas no tm auto-controle. Apesar de no proporcionar uma experincia prazerosa - apenas o alvio de tenso -, o processo conduzido pela compulso repetio. H uma forte dependncia psicolgica, ocasionando o impulso reiterado, semelhante ao que os viciados em entorpecentes tm quanto s drogas. Aspectos de adio tambm ocorrem nas vtimas de abuso. So sintomas aditivos comuns a drogadio, o uso precoce de lcool e cigarro e, algumas vezes, a dependncia em tranqilizantes. A respeito das caractersticas dos personagens da adio, Maria Regina Fay Azambuja elucida:
A literatura refere que a maioria dos pais abusadores que tm relaes incestuosas com suas filhas so pessoas introvertidas, que tendem a viver isolados e muito mais voltados para a famlia. As mes, por sua vez, normalmente desempenham um importante papel facilitador da ocorrncia do incesto entre o pai e a filha. Freqentemente, as mes, dependentes, esto ansiosas para manter o marido ou companheiro, devido s suas prprias necessidades e ao apoio financeiro que recebem do varo, vendo na filha uma maneira de proporcionar uma atrao sexual ao marido que ela prpria no tem condies de oferecer. Esta ocorrncia mais observada nos casos em que a mulher frgida, rejeitada sexualmente ou possui 30 comportamento promscuo.

O abusador sexual, segundo reportagem feita por Eliane Brum, no tem cara; pode ser qualquer um. O perfil destes homens, geralmente, de uma pessoa que possui padres morais e religiosos rgidos, uma vida regrada fora de casa, comportamento agressivo com a famlia e perturbaes sexuais, como no conseguir fazer sexo com a esposa ou qualquer outra pessoa adulta.31 Situao concreta, melhor esclarece o conflito:

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ZAVASCHI, Mari Lucrcia Scherer et al. op.cit., p.142. AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violncia sexual intrafamiliar: possvel proteger a criana? Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2004, p.130. 31 INOCNCIA Violada. Zero Hora. Porto Alegre, 9, 10, 11 de nov/97.

O pai, que era juiz, comeou a estimular sexualmente a filha, com doze anos, quando estava deitada, mantendo regularmente relaes sexuais. Aos quatorze anos, mantinha relaes sexuais com uma freqncia de seis vezes por semana. A me, desde o incio, sabia o que estava acontecendo. Os animava sutilmente, negando-se, mais adiante, a discutir o assunto. Sempre que a menina ameaava abandonar o lar, sua me a fazia desistir, dizendo-lhe que era ela que mantinha a famlia unida e que seus dois irmos menores ficariam eternamente gratos por haver impedido um 32 divrcio. (sic)

Pelo exposto, resta evidente que surge um ciclo vicioso entre o abusador dependente do menor abusado e a criana, pois precisa desta para sua satisfao e mantena do sigilo diante da famlia e da sociedade. ainda pior a situao, se o abusador o pai da criana, pois esta cresce sem o entendimento da proibio do incesto, podendo transformar-se, no futuro, igualmente, em um abusador. Pode-se concluir que, para que muitas crianas hoje maltratadas no se transformem em abusadores no futuro, faz-se necessrio o tratamento familiar ou individual do agressor sexual, independente do grau de responsabilidade nos atos denunciados. A possibilidade de ouvir seu sofrimento psquico , sem dvida, uma maneira de solucionar este grave problema social. 2. SISTEMA INQUIRITRIO VIGENTE

2.1 Etapas de encaminhamento do abuso sexual infantil No vigente sistema inquisitrio, os esforos costumam concentrar-se na investigao do crime e na punio do agressor, despreocupando-se com o sofrimento e as seqelas da vtima. A responsabilizao do abusador se d, atravs de medida judicial, qual procura impor-lhe uma perda, atravs de sano penal, mostrando sociedade a inconformidade com o seu agir.33 A comunicao da violncia sexual infantil desencadeia uma srie de providncias, de vrias reas profissionais e por diferentes rgos: Conselho Tutelar, Ministrio Pblico, rede de sade assistencial, Delegacia de Polcia, Juzo Criminal. O foco principal dos procedimentos deveria ser, antes, proteger a pequena vtima e, aps, castigar o abusador. No o que ocorre, entretanto, no atual contexto da nossa sociedade. O abuso costuma ser informado a um amigo, vizinho, familiar, professor, mdico. Em qualquer dos casos, deve-se dirigir primeiramente, ao conselho tutelar34
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GABEL, Marceline. Crianas vtimas de abuso sexual. So Paulo: Summus Editorial, 1997, p.130. CEZAR, Jos Antnio Dalto. Depoimento sem dano: uma alternativa para inquirir crianas e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p.18. 34 Art.131: O Conselho Tutelar rgo permanente e autnomo, no jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criana e do adolescente, definidos nesta Lei. (BRASIL. Estatuto da Criana e do Adolescente: Disponvel em:< http://www.presidencia.gov.br >).

e, por tratar-se de um crime, delegacia de polcia prxima ao local de residncia.

Cabe ao Conselho Tutelar receber notcia, entre outras situaes de ameaa ou violao dos direitos da criana e do adolescente, de casos de suspeita ou confirmao de maus-tratos, praticados contra a referida populao, mostrando-se de extrema urgncia a sua criao e instalao, em todos os municpios, para a efetivao da poltica de atendimento criana e adolescente, tendo em vista assegurar-lhes os direitos bsicos, 35 em prol da formao de sua cidadania.

As medidas de proteo criana sero providenciadas, conforme regra o artigo 101 do ECA36, e o Ministrio Pblico ser avisado sobre a infrao penal ocorrida37. A autoridade policial promover, concomitantemente, a abertura do inqurito, pois necessrio prvio procedimento investigatrio. Neste momento, a criana vitimizada tem que cumprir formalidades periciais - como o exame de corpo de delito -, muitas vezes desnecessrias face presuno da violncia. Sero realizados os referidos exames, assim como o atendimento de sade.
Sempre que estiver presente notcia de fato que constitua infrao aministrativa ou penal sobre os direitos da criana ou do adolescente (Art. 136, inciso IV, do ECA), bem como se mostrar necessrio o ajuizamento de aes de suspeno ou destituio do poder familar (Art. 136, inciso XI, do ECA), independente das medidas de proteo ou aplicveis aos pais (Art.101 e 129 do ECA), o Conselho Tutelar encaminhar ou representar ao Promotor de Justia. De posse das informaes, o Ministrio Pblico avaliar a necessidade do ajuizamento da ao de suspenso ou destituio do poder familiar, assim como a adoo das medidas legais cabveis. Ao propor a ao, no mbito cvel ou mesmo criminal, o Ministrio Pblico aciona o sistema de Justia, dando incio a uma nova fase na vida 38 da criana ou do adolescente e de seus pais.

Da mesma forma, se o abuso for revelado na escola ou no hospital, obrigatria, aos profissionais da sade e da educao, a comunicao do fato delituoso s autoridades competentes39, imposta pelo ordenamento jurdico brasileiro, a partir de 1990, sob pena de cometimento de infrao administrativa.40
35

CARVALHO, Rose Mary de, Comentrios ao artigo 136 do ECA. In: CURY, Munir; SILVA Antnio Fernando Amaral e; MENDEZ, Emlio Garcia (Coord.). Estatuto da Criana e do Adolescente Comentado: comentrios jurdicos e sociais. 1 edio. So Paulo: Malheiros, 1992, p.102. 36 Art.98, inciso I: As medidas de proteo criana e ao adolescente so aplicveis sempre que os direitos reconhecidos nesta Lei forem ameaados ou violados por falta, omisso ou abuso dos pais ou responsvel. (BRASIL. Estatuto da Criana e do Adolescente: Disponvel em: < http://www.presidencia.gov.br >). 37 Art.136, inciso IV: So atribuies do Conselho Tutelar encaminhar ao Ministrio Pblico notcia de fato que constitua infrao administrativa ou penal contra os direitos da criana ou adolescente. (BRASIL. Estatuto da Criana e do Adolescente: Disponvel em:< http://www.presidencia.gov.br >). 38 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violncia sexual intrafamiliar: possvel proteger a criana? Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2004, p.132. 39 Qualquer pessoa que tomar conhecimento desse crime obrigada a fazer a imediata comunicao da ocorrncia delituosa ao Conselho Tutelar, ou ainda ao juiz da Vara da Infncia e da Juventude, ou mesmo ao Promotor daquela Justia. O silncio poder ser caracterizado como crime de omisso de socorro (art. 135 do Cdigo Penal) ou outro tipo mais grave, conforme o caso. Poder a pessoa omissa ser tida como conivente, sujeita ento s mesmas penas dos autores do crime. 40 Art. 245: Deixar mdico, professor ou responsvel por estabelecimento de ateno sade e de ensino fundamental, pr-escola ou creche, de comunicar autoridade competente os casos de que

O Conselho Federal de Medicina, atravs do Parecer 13/1999, afirmou que o mdico tem o dever de comunicar s autoridades competentes os casos de abuso sexual e maus-tratos, configurando-se como justa causa a revelao de segredo profissional, demonstrando que, somente a partir das disposis contidas no ECA, os profissionais da sade comearam a voltar o olhar, de forma mais explcita, para a preocupante demanda. A falta de comunicao, por parte dos profissionais da sade e educao, dos casos de suspeita ou confirmao de maus-tratos, acarreta a infrao administrativa prevista no artigo 245 do ECA, com previso de pena de trs a vinte salrios-referncia, aplicando-se em dobro em caso de reincidncia. A escolha do legislador recaiu sobre estas duas categorias profissionais, porque a criana, desde cedo, freqenta o consultrio do pediatra, o posto 41 de sade ou mesmo as emergncias dos hospitais.

Faz-se necessrio redobrado cuidado, tanto na Delegacia de Polcia, quanto em Juzo, para se conversar com a vtima de violncia sexual. Alm do risco de violar a prova, a possibilidade de revitimiz-la com to penosa situao bastante grande, pois danos psicolgicos podem ser de igual ou maior proporo que o prprio abuso sexual sofrido. Neste sentido, Osnilda Pisa e Lilian Stein salientam:

A vtima, a princpio, relata os fatos ao ente de sua confiana, familiar ou no, e aos diversos profissionais das referidas instituies. No bastasse esta repetio de entrevistas, tambm pode haver a interveno dos meios de comunicao, que entrevistam vtimas, agressores e testemunhas, correndo o risco de ampliar possveis distores. S aps tudo isso, a pequena vtima chega ao juzo criminal para relatar o fato criminoso. As diversas intervenes podem produzir um dano e traumatismo maior nos relacionamentos familiares e nas crianas individualmente do que o alegado abuso original. Alm de reproduzir a revitimizao, a repetio de entrevistas, como demonstram as pesquisas cientficas, poder fragilizar a 42 confiabilidade da declarao da vtima como prova no processo criminal.

Cabe ao promotor de justia, por conseguinte verificando a prova e a presena de autoria, apresentar denncia do fato delituoso para o processamento da devida ao penal contra o agressor, iniciando-se, assim, nova etapa: o processo judicirio. Novamente as partes sero ouvidas, inquiridas pelo juiz de Direito, at que haja, por fim, sentena penal, talvez, resultando em uma soluo ao drama familar vivido.

tenha conhecimento, envolvendo suspeita ou confirmao de maus-tratos contra a criana ou adolescente. (BRASIL. Estatuto da Criana e do Adolescente: Disponvel em:< http://www.presidencia.gov.br >). 41 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de.op.cit., p.134. 42 PISA, Osnilda. Abuso sexual infantil e a palavra da criana vtima: pesquisa cientfica e a interveno legal. REVISTA DOS TRIBUNAIS. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 96, volume 857, maro 2007, p.464.

2.2 A oitiva da criana e do adolescente abusados

2.2.1 O despreparo dos operadores de direito para a oitiva da vtima infantil Nos ltimos tempos, com a crescente ateno social sobre o tema neste trabalho abordado, a falta de preparo dos integrantes do sistema de justia para enfrentar a questo emocional que est adjacente ao trmite de um processo desde a fase informativa at a sentena do caso tem sido ponto de questionamento entre as reas envolvidas na temtica. A exposio da criana e do adolescente a uma nova forma de violncia, em nome do Poder conseqncia grave e constante no sistema vigente. Na mesma linha, incorre, muitas vezes, o magistrado em erro de postura. Ao assumir a posio fsica do cargo superior a da vtima, ladeado pelo promotor de justia e pelo defensor, apesar de garantir os direitos constitucionais do denunciado, pode ocasionar danos psicolgicos ao inquirido, que resultam ser at mais prejudiciais que o prprio abuso sexual sofrido. Se conduzir a oitiva da vtima-infantil de abuso sexual da mesma forma que procede aos demais crimes, no conseguir penetrar no universo desta criana. Ocorre, freqentemente, de o juiz se sentir envergonhado em abordar o tema ou mesmo no conhecer a dinmica do abuso. Muitos referem-se ao ato sexual como "aquilo", "um problema". Diante destas dificuldades, acabam evitando falar sobre o fato ocorrido atravs de linguagem explcita com a pequena vtima. Alm disso, no se deve usar uma linguagem sexual agressiva ou que crie sensao de constrangimento insupervel, ao tratar com as crianas e adolescentes. Alm de causar grave conseqncia emocional, poder ser impelido a absolver o acusado por falta de provas. Portanto, [] nominar o abuso sexual de forma clara e transparente, sem parecer criana que o profissional que a interroga teme dizer as expresses em seu contexto, e ter a sensibilidade de no fazer colocaes desnecessrias e abusivas []43 a postura ideal a ser assumida pelos inquiridores, durante os questionamentos sobre o abuso sexual infantil. Em pior equvoco incide o juiz que dispensa a oitiva da criana abusada, no momento em que ela inicia a chorar. Apesar aparentar assumir postura protetora, no falar sobre a experincia vivida a faz concluir que o juiz est negando sua vivncia. Ao deixar de examinar seu relato, mesmo que de forma bem-intencionada, refora o abuso, corroborando com a sndrome do segredo. No ouvi-la, portanto, uma forma de rejeio e gera dano secundrio adicional. Para melhor compreender estas reaes, h de se perceber o contexto em que a vtima inserida, ao enfrentar o momento do depoimento judicial: as salas de audincias so ambientes frios e formais, planejadas fisicamente com o objetivo de mostrar a subservincia entre a autoridade estatal e a testemunha; em alguns casos,
BORBA, Maria Rosi de Meira. O duplo processo de vitimizao da criana abusada sexualmente: pelo abusador e pelo agente estatal, na apurao do evento delituoso. Disponvel em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3246 >. Acesso em: 04 abr.2008.
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o depoente depara-se com seu abusador no interior do recinto ou mesmo no corredor, antes de encontrar o juiz; no momento da inquirio, h muitas pessoas presentes, todas estranhas criana, voltadas a cumprir seu papel burocrtico. Diante de tais condies, comum que as vtimas fiquem amedrontadas, no consigam falar, chorem, declarem verses superficiais ou incoerentes, evidenciandose, com isso, a falncia do atual sistema de coleta de testemunhos, principalmente nestes casos to peculiares.

2.2.2 Quem deve ser entrevistador e como realizar as entrevistas da vtima infantil Romper a sndrome de segredo que atinge a criana vitimizada pelo abuso sexual no tarefa simples. Tambm no faz parte da seara de conhecimentos ordinrios de operadores de Direito, por tratar-se de uma especialidade. H, entretanto, razes relevantes que motivam a necessidade destes profissionais atuarem pessoalmente nesta atividade, entre elas: A garantia do contraditrio, oportunizada na audincia de instruo probatria; A convico que resulta sobre a conscincia do julgador, ao ouvir, da prpria vtima, o relato do abuso sexual sofrido.

Sem esta persuaso ntima, est o juiz impossibilitado de condenar o abusador acusado e se v obrigado a absolv-lo, diante de inegvel falta de provas. Situao contrria ocorreria se operadores de Direito atentassem para a peculiar condio de que a criana vitimada necessita de licena explcita para contar o que lhe ocorreu, usando, para tanto, o que os psiclogos chamam de Linguagem Sexual. So requisitos essenciais para compreender a dinmica do abuso sexual e obter segura avaliao sobre a prtica abusiva: noes sobre a sndrome do segredo, a sndrome da adio e da interao abusiva; posicionamento adequado fsico e emocional - diante da criana, para alcanar-lhe a confiana; clara permisso para revelar a histria vivida; utilizao da mesma linguagem do entrevistado, aproveitando, inclusive, as deixas por ele indicadas, durante as entrelinhas da conversa. Alm de saber ouvir, tambm essencial estar emocionalmente preparado para a entrevista. Compreender a experincia vivida com as prprias emoes e tratar o assunto abertamente expressa vtima que o profissional realmente quer ouvir o relato do abuso e no apenas precisa faz-lo. Maria Helena Mariante Ferreira chama ateno para os cuidados a serem dispensados aos profissionais que trabalham com abuso sexual:
necessrio salientar a necessidade de apoio e de cuidado constante do profissional e da equipe que atende a criana abusada, em funo do aumento importante de estresse que este tipo de trabalho traz. semelhante estresse que comina com as equipes que trabalham com pacientes em centros de tratamento intensivo, ultrapassando os limites do

ambiente profissional e contaminando a vida familiar e pessoal dos 44 cuidadores.

H doutrinadores que possuem entendimento antagnico quanto a quem deve realizar a oitiva da testemunha. Acreditam que quando uma criana ouvida por um expert (psiclogo ou assistente social), ela lhe confia preocupaes, inquietudes ou interrogaes, que podem vir acompanhadas do pedido de no divulgao.45 Sentem-se inibidas ou intimidadas com a possibilidade de que membros familiares em especial os pais tomem conhecimento de suas afirmaes. Entre a vtima e o profissional se estabelece um ambiente afetivo seguro, de cumplicidade invivel entre a criana e o juiz - , pois aquele foi treinado para isso, enquanto que o magistrado no dispe de tcnicas e recursos para oportunizar a referida confiana. Alm do mais, o juiz jamais poder ser um confidente, devido ao exerccio de justia com o qual comprometido. Seu ofcio exige reduo a termo de todas as informaes recebidas, assegurando transparncia processual e imparcialidade em sua postura. Nesta tica, tendo em vista o bem estar da criana e o respeito ao seu direito de segredo, alguns autores defendem que ela seja ouvida por terceira pessoa, designada pelo juiz, j que o profissional no obrigado a reproduzir expressamente tudo o que foi dito pela criana. H de se ter clara a diferena entre as oitivas das crianas nos processo criminais - em que se apura a existncia de violncia sexual, atravs de entrevista forense e a proposta inovadora trazida no Art. 28, 1, do ECA46. Neste caso, busca-se conhecer os sentimentos e traumas das vtimas, quanto ao crime em que foi passiva, oportunizando ao juiz uma maior convico em sua sentena. Naquelas hipteses, conforme entendimento de Maria Regina Fay de Azambuja:
A oitiva da criana visa essencialmente produo da prova da autoria e materialidade, em face dos escassos elementos que costumam instruir o processo, com o fim de obter a condenao ou absolvio do abusador, recaindo na criana uma responsabilidade para a qual no se encontra preparada, devido a sua peculiar condio de pessoa em desenvolvimento ou, ainda, nos termos da Conveno, em razo de sua imaturidade fsica, 47 cognitiva e psicossocial.

FERREIRA, Maria Helena Mariante. Algumas consideraes sobre a perplexidade compartilhada diante do abuso sexual. Revista de psicoterapia da infncia e da adolescncia. Porto Alegre: CEAPIA, n.12, nov.1999, p.42. 45 LEITE, Eduardo de Oliveira. A oitiva de crianas nos processos de famlia. Revista Jurdica: rgo nacional de doutrina, jurisprudncia, legislao e crtica judiciria, Porto Alegre, Ano 48, n. 278, p. 2238, dez. 2000, p.22. 46 Art.28, 1: Sempre que possvel, a criana ou adolescente dever ser previamente ouvido e a sua opinio devidamente considerada (BRASIL. Estatuto da Criana e do Adolescente: Disponvel em:< http://www.presidencia.gov.br >). 47 AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violncia Sexual Intrafamiliar: interfaces com a convivncia familiar, a oitiva da criana e a prova da materialidade. Revista dos Tribunais, So Paulo, ano 95, v. 852, p. 424-446, out. 2006, p.435.

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A entrevista forense busca evidncias do delito. Como ensina Tourinho Filho, o sujeito passivo do crime, de regra, quem melhor poder fornecer Autoridade Policial elementos para o esclarecimento do fato.48 Preocupa-se o investigador em apropriar-se dos fatos, atravs dos depoimentos da vtima e testemunhas. A entrevista teraputica enfatiza a ajuda ao entrevistado. Observa a realidade do paciente antes de decidir qual a abordagem lhe ser mais benfica. O mais importante, ao se ter clara a diferena entre estas tcnicas, no utiliz-las de forma inadequada, oportunizando a contaminao de declaraes e, conseqentemente, propiciando injustias, como a absolvio de culpados e, mais grave, a condenao de inocentes. Obter informaes sobre suspeita de abuso sexual tarefa delicada. necessrio ajudar a criana a falar sobre experincias sentimentais e ntimas, tentando diminuir seu desconforto para que possa exprimir a verdade. A pesquisa experimental em Psicologia do Testemunho identificou algumas cautelas que podem maximizar a qualidade da entrevista forense com crianas: utilizar voz ativa, palavras e frases simples, evitar duplos negativos e perguntas mltiplas, bem como prestar ateno se a criana compreendeu a pergunta.49 Inicialmente, deve o entrevistador, tanto forense como teraputico, estabelecer um vnculo de confiana com a criana, desenvolvendo uma conversa agradvel, sobre assuntos amenos. Neste momento, observa-se a maturidade do menor vitimado e o seu grau de compreenso sobre os fatos. O ideal que as entrevistas sejam gravadas. Alm de garantir a veracidade das informaes prestadas, o registro eletrnico da conversa torna-se relevante indcio de prova no processo a ser instaurado, bem como se evitar a repetio de lembranas dolorosas vtima infante. No Brasil, no h exigncia legal das gravaes e, por conseguinte, nem sempre este sistema adotado. Torna-se, muitas vezes, duvidosa a veracidade da palavra da vtima. Resta ao magistrado confrontar as verses da vtima e do agressor. No incomum ocorrer confuso nos relatos por parte das vtimas de abuso sexual infantil: a diferena entre recordaes de um evento experimentado ou falsas memrias implantadas em entrevistas inadequadas torna-se obscura, quando o emocional de uma pessoa encontra-se abalado. A vtima pode narrar como verdico um fato no real, por realmente acreditar que vivenciou determinada situao, da forma ao qual ora relata. Por isso, os cuidados devem alcanar no s inquiries formais (polcia e juzo), mas englobar todos os questionamentos, como aqueles
TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Manual de Processo Penal. 8 edio. So Paulo: Saraiva, 2006, p. 203. 49 PISA, Osnilda. Abuso sexual infantil e a palavra da criana vtima: pesquisa cientfica e a interveno legal. REVISTA DOS TRIBUNAIS. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 96, volume 857, maro 2007, p.470.
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realizados pelos pais, familiares, professores, jornalistas e outras pessoas que, sem o conhecimento e a adoo das melhores tcnicas, acabam destruindo a confiabilidade da palavra da vtima, restando como soluo a absolvio do acusado.50 Na dvida sobre deciso inacertada, o julgador profere sentena em desfavor penal, pois, pior que libertar um culpado condenar inocente. 3 CAPTULO III - ALTERNATIVAS DE SOLUES

3.1 Problemas possveis na produo da prova Prova a soma dos motivos geradores da certeza dos fatos. Sua finalidade formar a convico do juiz sobre os elementos necessrios para a deciso da causa.51 So regradas em nosso ordenamento jurdico:
A prova pode ser pessoal (arts. 185-230 do CPP), documental (art. 232 do CPP) e pericial (art. 159 do CPP). A prova pessoal constituda pelo interrogatrio do acusado, declaraes da vtima e depoimentos das testemunhas. No Processo Penal, ela imprescindvel, porque, s em casos excepcionais, os fatos delituosos so comprovados com outros elementos. Diante da importncia dessa prova que a Psicologia Forense, termo que engloba aplicaes como Psicologia do Testemunho, entre vrias outras, desenvolve pesquisas cientficas com o objetivo de oferecer aos operadores do direito importantes contribuies, como a natureza das declaraes pessoais. Na vasta maioria dos processos pela prtica de crimes contra a liberdade sexual, geralmente cometidos s escondidas, e muitas vezes sem evidncias fsicas, a palavra da vtima de extrema relevncia. No entanto, examinar a confiabilidade dessas declaraes mais complexo quando se trata de criana, porque muitos fatores podem contribuir para a inexatido 52 de seu relato, especialmente em situaes envolvendo a sexualidade. (grifo nosso)

Constata-se, em casos judiciais, a ocorrncia de falsos testemunhos por crianas e adolescentes, sejam decorrentes de falsas memrias ou mesmo de mentira intencional sobre os fatos. Falsas memrias so as recordaes de algo que jamais aconteceu. Ocorrem quando de a criana narrar como verdadeira uma situao mal interpretada por um adulto, que a leva a acreditar que realmente foi vtima de um abuso sexual. Tambm comum o testemunho falso, resultante da distoro proposital de um acontecimento, ocorrido ou no, por motivos diversos. A mentira, muitas vezes, pode decorrer da tentativa de impedir outras formas de maustratos fsicos ou psicolgicos que o menor esteja enfrentando em casa. Portanto,
PISA, Osnilda. Abuso sexual infantil e a palavra da criana vtima: pesquisa cientfica e a interveno legal. REVISTA DOS TRIBUNAIS. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 96, volume 857, maro 2007, p.472. 51 TOURINHO FILHO, Fernando da Costa, Manual de Processo Penal. 8 edio. So Paulo: Saraiva, 2006, p. 435. 52 PISA, Osnilda. Abuso sexual infantil e a palavra da criana vtima: pesquisa cientfica e a interveno legal. REVISTA DOS TRIBUNAIS. So Paulo: Editora Revista dos Tribunais, ano 96, volume 857, maro 2007, p.465.
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[] o testemunho infantil pode ser verdadeiro ou falso. A criana mente quando lembra o que realmente aconteceu, porm, conscientemente, distorce a informao, s vezes, de forma deliberada, e, em alguns casos, at por vingana.53 Podem ocorrer tambm mentiras sobre relatos de abuso sexual em casos de coao ao menor. Este pode vir a ser obrigado, atravs de graves ameaas, a acusar falsamente terceiro inocente, atribuindo-lhe um crime para desvirtuar a acusao do verdadeiro agressor. Entre tantos casos possveis, difcil para o juiz criminal distinguir entre acusaes verdadeiras e falsas. A alternativa , ento, inquirir a vtima infantil com a tcnica necessria para tentar evitar o falso testemunho e conseqente falta de confiabilidade nos relatos prestados. 3.2 Produo antecipada de prova criminal Alm da necessidade de a entrevista judicial da criana abusada ser revestida dos cuidados j expostos para a sua no revitimizao, cabe destacar ser de suma importncia que, ao longo do tempo - entre o fato criminoso, a revelao do delito e o ajuizamento da ao penal -, no se provoquem danos emocionais ao menor e no se oportunize o fenmeno humano do esquecimento. Para atender tantas etapas previstas em nosso ordenamento, em alguns casos, mais de ano transcorre. To longo perodo desqualifica a prova e expe a criana, pois esta, em inmeros casos, prossegue morando sob o mesmo teto que o abusador, sem entender o que est ocorrendo, pois contou algo muito importante e nada aconteceu nos mundo dos fatos para sua proteo. Difcil para o julgador extrair o correto e isento exame de mrito da acusao, decorrido muito tempo entre o abuso e o oferecimento da denncia para tramitao do processo criminal judicial. Soluo existente no ordenamento jurdico encontra-se inserida no artigo 3. do Cdigo de Processo Penal54, a qual permite expressamente a aplicao da analogia para casos por ele no disciplinados.55 Assim, a utilizao da lei processual civil, em seus artigos 846 a 851, viabiliza a inquirio da testemunha antes da propositura da ao, j que, de acordo com a previso do Cdigo de Processo Penal, artigo 36656, faz-se necessrio o oferecimento da denncia para a produo antecipada de prova testemunhal. Alm disso, este ordenamento trata de forma geral da produo de prova realizada em
Ibidem, p.466. Art.3. : A lei processual penal admitir interpretao extensiva e aplicaao analgica, bem como o suplemento dos princpios gerais de direito. BRASIL. Cdigo de Processo Penal. Disponvel em: < http://www.presidencia.gov.br >. Acesso em: 10.mar.2008
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CEZAR, Jos Antnio Dalto. Depoimento sem dano: uma alternativa para inquirir crianas e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p.99.

Art.366: Se o acusado, citado por edital, no comparecer nem constituir advogado, ficaro suspensos o proceso e o curso do prazo prescricional, podendo o juiz determinar a produo antecipada das provas consideradas urgentes e, se for o caso, decretar a priso preventiva, nos termos do disposto do artigo 312. BRASIL. Cdigo de Processo Penal. Disponvel em: < http://www.presidencia.gov.br >. Acesso em: 10.mar.2008

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juzo, no criando, em momento algum, modelos diferenciados para inquirir crianas, adolescentes e adultos. Isso desatende por completo a proteo integral infantil, regrada na Carta Magna e no ECA. Ignora a condio peculiar dos menores em desenvolvimento, quando deveriam ser ouvidos em juzo com absoluta prioridade, conforme artigo 227 da Constituio Federal. Uma nova proposta versa que, o abusado relate o fato ocorrido a um profissional especializado, assistido pelo Ministrio Pblico, para que este ajuze a produo antecipada de prova contra o suposto abusador, se presentes indcios suficientes. Esta entrevista seria utilzada tambm pelas demais instituies envolvidas com este perfil de delito. Coletadas as emoes do entrevistado em momento recente ao fato, impediria a retomada da dor em momento futuro, pela necessidade da criana relembrar e relatar novamente o drama vivido no decorrer do processo. Potencializaria a verdade dos fatos e evitaria novas oitivas nos mbitos administrativo, policial e judicial, salvo em momento posterior citao do ru, em juzo, visando respeitar o princpio do contraditrio e da defesa tcnica. Ainda h muita discordncia sobre o referido aspecto. Alm de ser quase inexistente a jurisprudncia sobre a possibilidade de produo antecipada de provas no processo criminal, opinies dividem-se entre esta inovadora interpretao analgica e o prejuzo do ru na instruo, uma vez que o abusador tem o direito de, somente aps definidos os limites da acusao, ter iniciada a produo de provas.57 Alteraes legislativas quanto forma de inquirio de crianas e adolescentes, assim como o momento mais adequado e as seqelas decorrentes da invasiva forma atual de produo de provas esto presentes em Projetos de Lei apresentados na Cmara dos Deputados. Sobre estes projetos, trataremos em subttulo especfico deste trabalho de concluso. 3.3 Novas alternativas ao procedimento de inquirio de criana vitimada Com o passar dos anos e a crescente conscincia social quanto necessidade de enfrentar o problema dos maus-tratos infantis, mais especificamente o drama vivido no interior das famlias com o abuso sexual de menores, iniciaram-se estudos voltados a desenvolver melhores mtodos para abordar as vtimas deste grave delito. O que se busca so formas de proceder a oitiva da criana sexualmente abusada, sem lhe causar novos danos psicolgicos e, ao mesmo tempo, garantir ao acusado o direito ao devido processo legal e seus consectrios.58 Diante do que se debateu at hoje, j existem posturas e procedimentos considerados essenciais para uma oitiva sem revitimizao. Entre eles, est a
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CEZAR, Jos Antnio Dalto. Depoimento sem dano: uma alternativa para inquirir crianas e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p.102 BORBA, Maria Rosi de Meira. O duplo processo de vitimizao da criana abusada sexualmente: pelo abusador e pelo agente estatal, na apurao do evento delituoso. Disponvel em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3246 >.Acesso em: 04 abr.2008.
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interessante sugesto da promotora de justia Veleda Dobke de nomear um profissional qualificado para entrevistar crianas e adolescentes vtimas de abuso sexual. Utilizando-se, de forma analgica, do artigo 223, do Cdigo de Processo Penal onde vtimas e testemunhas estrangeiras so ouvidas com o auxlio de um tradutor compromissado - temos um procedimento completamente legal. Ao observar os equvocos em que incidem os operadores de direito, nesta espcie de depoimento, concluiu que a sabedoria tcnico-jurdica no suficiente para realizao deste ato processual especial de maneira satisfatria. Nas inquiries analisadas, constatou que, muitas vezes, o juiz comea a audincia perguntando diretamente a respeito do abuso, sem conversar antes sobre outros assuntos.59 Falta, portanto, estabelecer o vnculo de confiana com a criana. Assim exemplifica, ao relatar sua experincia profissional:
Num dos casos avaliados, o juiz iniciou a audincia lendo a denncia e questionando se aqueles fatos eram verdadeiros. Imagina a cabea da criana, que no conhece o juiz, muitas vezes ele homem e o abusador 60 tambm; h uma identificao por parte dela.

Tcnica consagrada em outros pases e de acessvel custo financeiro para implantao nas instalaes do poder judicirio brasileiro a inquirio atravs da Cmara de Gessel. Assim, profissionais que atuam no feito - juiz, promotor, defensor, alm do acusado -, no so vistos pela vtima, pois se posicionaro do lado externo e se comunicaro com o profissional habilitado, com perguntas autorizadas pelo juiz, atravs de intercomunicadores.61 A substituio da inquirio da vtima por avaliao tcnica sugesto tambm defendida por estudiosos do tema. Trata-se de relatrio e laudo elaborado por profissional habilitado na rea de sade pblica -, sobre a entrevista realizada com metodologia especfica, anexado aos autos do processo. Para que haja esta substituio, necessria a concordncia de ambos os plos da relao processual, sob pena de nulidade. J existe proposta aprovada pela Cmara de Deputados sobre alterao legal neste sentido: a realizao de um laudo psicossocial, pela equipe interprofissional de que trata o Art.151, da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 Estatuto da Criana e do Adolescente62 (grifo nosso). Sobre este ponto, trataremos especificamente na seqncia do texto.

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SUCUPIRA, Fernanda. Projeto no RS busca diminuir efeitos negativos do depoimento infantojuvenil. Disponvel em: <http://www.agenciacartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=13115 >. Acesso em: 10 mar.2008 60 DOBKE, Veleda. Abuso sexual: a inquirio das crianas, uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Ricardo Lenz Editora, 2001, p.89. 61 BORBA, Maria Rosi de Meira. O duplo processo de vitimizao da criana abusada sexualmente: pelo abusador e pelo agente estatal, na apurao do evento delituoso. Disponvel em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3246 >.Acesso em: 04 abr.2008.

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Projeto de Lei n4.126 de 2004. Disponvel no ANEXO-A deste tabalho e tambm em: <http://www.mp.rs.gov.br/infancia/projetosdelei/id2877.htm >. Acesso em: 05 mai. 2008.

E, por fim, importante a necessidade de estabelecer competncia processual em razo dessa matria a Varas e Delegacias especializadas para o atendimento de crianas e adolescentes vtimas de crimes de abuso sexual, ocorridos dentro ou fora das famlias. O nmero de ocorrncias do citado delito elevado e a tendncia das estatsticas ser de crescimento. Cabe aos Tribunais de Justia dos Estados brasileiros, portanto, enquanto no houver reforma por parte do legislador, a anlise desta nova forma de proceder com relao ao cometimento de crimes desta natureza. No se pode ignorar que, no poucas vezes, a vtima narra sua experincia na delegacia de polcia, escola ou conselho tutelar e, diante do juiz, no consegue falar sobre o fato. Tal situao pode resultar do sentimento de intimidao ou medo diante da presena do abusador, antes ou durante a audincia, sem nada conseguir relatar. Existem sugestes da prtica judiciria com este tipo de abordagem que no se pode deixar de observar. o caso relatado pela magistrada Maria Rosi de Meira Borba, juza de Direito do Estado do Mato Grosso:
Em alguns casos em que tenho trabalhado na apurao de abuso sexual infantil, tive como providncia primeira buscar uma aproximao com a criana, iniciando o trabalho por sentar-me prximo vtima ou testemunha impbere. Despir-se da beca essencial, j que a representatividade de poder que ela impe chega a assustar alguns adultos, imagine-se a repercusso na alma de uma criana. Nessas audincias tenho primeiro buscado adentrar no universo dos pequenos, buscando afinidades entre a sua famlia e a minha e entre a minha filha e a vtima, procurando saber o nmero e a idade dos irmos, as brincadeiras que gosta, etc. Outro ponto que entendo relevante nominar os rgos genitais pelo apelido que a vtima lhes d e isso varia de famlia para famlia, de regio para regio e de classe social. Chegar ao nvel da criana e dela buscar uma proximidade faz com que a criana acredite que a sua histria importante e que o profissional que a questiona se preocupa com ela. A criana deve ter certeza de que o seu relato no lhe trar punies ou rejeio pelos membros de sua famlia e pelo profissional que a interroga. A permisso para relatar o ocorrido deve ser explcita e a mensagem de que, apesar de no ter culpa, no sentido legal, a criana participou dos fatos e os 63 conhece, podendo assim ajudar a esclarec-los, com suas informaes. (sic) (grifo nosso)

Portanto, utilizar a linguagem correta para conversar com a vtima essencial para o sucesso da entrevista sobre episdio to dramtico na vida da criana vtima do abuso. Pode, inclusive, diminuir a dificuldade que o menor tem de confiar em adultos, uma vez que foi violentado por um deles. Contudo, alm de ser muito difcil falar sobre o trauma vivido, deve-se ter clara a presso psicolgica que estes meninos e meninas vivenciam dentro de casa para no quebrar o pacto estabelecido: a sndrome do segredo.

BORBA, Maria Rosi de Meira. O duplo processo de vitimizao da criana abusada sexualmente: pelo abusador e pelo agente estatal, na apurao do evento delituoso. Disponvel em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3246 >. Acesso em: 04 abr.2008.

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3.4 O projeto Depoimento sem Dano Depoimento sem dano um projeto idealizado pelo juiz Jos Antnio Dalto Cezar, institudo na 2. Vara da Infncia e da Juventude de Porto Alegre, Rio Grande do Sul, em maio de 2003. Tem como principal objetivo evitar a revitimizao de crianas e adolescentes que sofreram abuso sexual, pelo menos na fase judicial. Sua principal funo proteger psicologicamente meninos e meninas, evitando a repetio excessiva de interrogatrios e os conseqentes danos provocados na produo de provas, assim como o contato direto com seu agressor. Conta com o apoio de profissionais especializados para as entrevistas e tcnicas adequadas, sem faltar com as exigncias legais do processo judicial. Este projeto vem favorecendo a responsabilizao dos acusados, uma vez que busca a qualidade das inquiries, auxiliando no combate impunidade destes crimes64. Diante da realidade dos meios fsicos e humanos utilizados pela justia criminal, Dalto constatou que as informaes prestadas pela criana na fase policial no se confirmavam nos depoimentos judiciais, ocasionando um grande nmero de absolvies por falta de provas. Com auxlio de outras reas do saber - psicologia e psicanlise - e com a experincia de seu ofcio, tem contato dirio com os problemas ocasionados pela inadequada inquirio de crianas em juzo , e, de outro lado, tem conscincia da importncia da indispensvel observncia dos princpios constitucionais do contraditrio e da ampla defesa. Evidenciou que o atual sistema precisava ser modificado. Ao dedicar-se a leituras sobre a temtica, decidiu colocar em prtica entrevistas com a atuao de profissionais habilitados em outras reas, assim como utilizar um sistema semelhante Cmara de Gessel65, j referida. Assim, advogado, parquet e magistrado poderiam acompanhar as entrevistas, garantindo as imposies constitucionais do devido processo legal e a qualidade na inquirio das vtimas. Mesmo diante das dificuldades que advinham da falta de recursos, iniciouse um projeto-piloto, no Foro Central de Porto Alegre, com apenas uma sala especial para a inquirio de crianas e adolescentes vtimas de abuso sexual, interligada sala de audincias da 2. Vara da Infncia e da Juventude. O projeto consiste em colher os depoimentos infantis em espao especialmente preparado para este fim, retirando os menores do ambiente hostil das tradicionais salas de audincias e evitar o enfrentamento com o acusado. O local possui udio e vdeo instalados, atravs dos quais o magistrado, promotor e defensor podem interagir durante o depoimento, intermediado por profissional habilitado, seguindo metodologia elaborada para essa espcie de depoimento. Evitam-se, assim, indagaes inapropriadas, agressivas ou incoerentes com as condies do menor entrevistado. A gravao reduzida a termo e juntada aos

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CEZAR, Jos Antnio Dalto. Depoimento sem dano: uma alternativa para inquirir crianas e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007. p.59. 65 Sala de vidro espelhada unidirecional, utilizada em algumas aes da psicanlise. (Ibidem, p. 61)

autos, assim como uma cpia em disco, para que possa ser revista pelas partes e magistrados de 1 e 2 graus, sempre que necessrio. A primeira audincia do projeto Depoimento sem Dano ocorreu em 06 de maio de 200366, com atuao de psicloga judiciria. Apesar da precariedade da tecnologia disponvel, foi inquestionvel a convenincia desta forma de inquirio, devido tranqilidade da vtima antes, durante e aps a oitiva. No ano de 2004, assumiu o projeto carter institucional, atravs da aquisio, pelo Tribunal de Justia do Rio Grande do Sul, de qualificados equipamentos para a sala, permitindo uma melhor qualidade de som e imagem e a utilizao de recursos tcnicos at ento inexistentes.67 A partir de ento, foi a referida sala disponibilizada para que outros juzes a utilizassem, tanto da comarca de Porto Alegre como do interior do Estado gacho. Atualmente, o projeto est sendo expandido para muitas comarcas do interior do Rio Grande do Sul, onde j se encontram juizados regionais da infncia e da juventude.68 Alm disso, outros Estados esto implantando o modelo ou estudando as possibilidades, como Goinia, Rondnia, So Paulo, Mato Grosso do Sul e Rio de Janeiro.69 Projeto de Lei, apresentado pela deputada federal Maria do Rosrio (PTRS), em outubro de 2006, visando a modificao na forma de ouvir as crianas, atravs da regulamentao deste procedimento na legislao brasileira. Recebeu o apoio da Secretaria Especial de Direitos Humanos (SEDH).70 Segundo Dalto, as inquiries no projeto Depoimento sem dano so feitas em trs etapas. Inicialmente, no acolhimento inicial, a criana e o responsvel so recebidos pelo psiclogo ou assistente social, antecipadamente ao horrio aprazado pelo juiz, sem oportunizar o encontro com o acusado. Uma conversa informal e amistosa sobre assuntos gerais estabelecida atravs do profissional, para que haja aproximao e confiana com o entrevistado. Se possvel, a sala deve ser preparada com decorao apropriada e brinquedos, facilitando o bem estar do menor. Na seqncia, explicado ao depoente, em linguagem compatvel com seu desenvolvimento etrio e social, como ser a entrevista. Este o momento apropriado para o profissional descobrir o vocabulrio infantil especfico,
CEZAR, Jos Antnio Dalto. Depoimento sem dano: uma alternativa para inquirir crianas e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p.63. 67 Ibidem, p.63. 68 O coordenador do Centro de Apoio Operacional Infncia e Juventude do Ministrio Pblico do RS revelou que Santo ngelo passa a integrar os sete municpios gachos - Porto Alegre, Pelotas, Santa Maria, Canoas, Uruguaiana, Passo Fundo e Santa Cruz do Sul - que j operam com o Depoimento sem Dano. Entrevista disponvel em < http://www.mp.rs.gov.br/notcias_id=44329 >. Acesso em: 20 mar.2008. 69 SUCUPIRA, Fernanda. Projeto no RS busca diminuir efeitos negativos do depoimento infantojuvenil. Disponvel em: <http://www.agenciacartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=13115 >. Acesso em 10 mar. 2008. 70 SUCUPIRA, Fernanda. Projeto no RS busca diminuir efeitos negativos do depoimento infantojuvenil. Disponvel em: <http://www.agenciacartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia_id=13115 >. Acesso em 10 mar. 2008.
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compartilhando as palavras utilizadas pela prpria vtima para nominar os genitais masculino e feminino. A etapa seguinte o depoimento propriamente dito. O entrevistador passa a abordar os fatos contidos nos autos, auxiliando a testemunha a relatar o ocorrido, utilizando questes abertas, para que o relato da criana seja o mais espontneo possvel. O magistrado que se encontra do lado externo da sala - pode interrogar a criana, atravs dos intercomunicadores, assim como o promotor e o defensor, intermediados pelo profissional, que adequa as perguntas condio do entrevistado. Fantoches e bonecos so bons recursos para auxiliar a vtima pequena que no consegue expor o que vivenciou. Ao assumir um personagem e demonstrar atravs dele gestos e posies - como se fossem de outra pessoa - torna-se mais fcil para ela o relato. Em caso de sentir-se muito culpada e iniciar a chorar, essencial uma conduo confortante do profissional-entrevistador, mostrando-lhe que no responsvel pelo ocorrido e que o adulto agiu errado. Finalizada a oitiva, a transcrio do depoimento juntada aos autos do processo. Aps a entrevista, j com os equipamentos desligados, ao invs de ser simplismente dispensada, o terceiro momento dedicado ao conforto e acolhimento da vtima. O responsvel-acompanhante retorna sala e feita uma avaliao do depoimento. Se o menor apresentou visveis dificuldades, ser encaminhado ao atendimento especializado, para tratamento psicolgico apropriado. O idealizador do projeto, acredita que h muitas vantagens com esta forma de questionar as vtimas de abusos sexuais. Entre elas, a filtragem, por parte do juiz e do entrevistador habilitado, de indagaes impertinentes, que costumam ocorrer em audincias convencionais. Para ilustrar a gravidade que isso pode representar, relata a lembrana de caso ocorrido:
Eu me lembro de um caso em que uma menina de 12 anos tinha sido estuprada por um cara de uns vinte anos. Ela chorava, chorava, na audincia, e o advogado dele fez uma pergunta horrvel: queria saber se ela gozou. Eu indeferi, s que ela ouviu; o estrago j tinha sido feito. No 71 bastou ela ser estuprada, foi agredida dentro da sala de audincia.

Tal metodologia abriga as garantias dos princpios constitucionais do direito ao contraditrio e ampla defesa; possibilita o afastamento da vtima dos embates jurdicos entre juiz, promotor e defensor, normalmente regados de tenso, e produz o registro permanente da entrevista, que pode ser assistida inclusive por julgadores de segunda instncia.

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CEZAR, Jos Antnio Dalto. Depoimento sem dano: uma alternativa para inquirir crianas e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007, p.92.

3.5 Projetos de Lei sobre o tema O abuso sexual intrafamiliar vivido por crianas e adolescentes tem sido tema freqentemente abordado nos ltimos tempos. Depois de tantos sculos, onde este grave problema transcorreu silenciosa e impunemente, acobertado no seio familiar, sem que fosse enfrentado como uma questo social gravssima, iniciou-se, nos ltimos anos, a busca da soluo para este delito. Crimes infelizmente sempre ocorrerro nas sociedades, mas iniciativas para solucionar este tipo de violncia urgem. A exemplo disso, foram propostos os seguintes Projetos de Lei: PL-4126, no ano de 2004, PL-5329, em 2005 e o PL-7524, em 2006.72 Inicialmente, houve proposta de alterao legislativa, em 2004, atravs do Projeto de Lei 4.126, elaborado pela Comisso Parlamentar Mista de Inqurito (CPMI). Abordou no s o tratamento invasivo dado aos menores na realizao de laudo mdico-pericial, mas preocupou-se tambm com os aspectos amplos da ofensa dignidade humana das crianas e adolescentes. Na tentativa de minimizar as seqelas decorrentes da atual forma de produo de provas, props o acrscimo do artigo 161- A73 ao Cdigo de Processo Penal:
Nesse dispositivo, primeiro, em caso de crime contra a liberdade sexual de criana ou adolescente, o exame pericial ser realizado em local separado preservando-se a imagem e a intimidade da vtima, garantindo o acompanhamento dos pais ou responsveis legais. Segundo, o pargrafo nico determina ao juiz solicitar elaborao de laudo 74 psicossocial pela equipe interprofissional, prevista no art. 151 do ECA. (grifo nosso)

No ano de 2005, foi apresentado o Projeto de Lei 5.329, pelo Deputado Federal do PT/RS, Paulo Pimenta. Objetivou acrescer pargrafos ao artigo 201 do Cdigo de Processo Penal75, onde trata da oitiva do ofendido. As incluses versavam sobre a dispensa da oitiva da criana ou adolescente vitimado, quando
72 73

Os referidos Projetos de Lei encontram-se no ANEXO-A deste trabalho.

O Decreto- Lei n 3.689 de outubro de 1941- Cdigo de processo penal, fica acrescido do seguinte art. 161- A: No caso de crime contra a liberdade ou o desenvolvimento sexual a envolver criana ou adolescente como vtima, o exame pericial ser realizado em local separado, preservando-se sua imagem e intimidade, garantido o acompanhamento dos pais ou responsveis legais. Pargrafo nico. O juiz solicitar ainda a elaborao de laudo psicossocial pela equipe interprofissional de que trata o art. 151 da Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990 Estatuto da Criana e do Adolescente, com vistas a apurar outros elementos indicativos do abuso sexual. (A ntegra do PL-4126/04 encontra-se no ANEXO-A deste trabalho). 74 A ntegra do PL-4126/2004 encontra-se no ANEXO-A deste trabalho. O Art. 201 do Decreto-Lei n 3.689 de 3 de outubro de 1941, passa a vigorar com o acrscimo dos seguintes 2, 3 e 4, remunerando-se o atual pargrafo nico para 1. 2 A oitiva da vtima da Criana ou Adolescente ser dispensada se j hover nos autos laudo de profissional qualificado na sade mental ou equipe interprofissional integrada contendo a verso por ela narrada que demonstrem a existencia do crime. 3 Quando a vtima for criana ou adolescente, sua oitiva ser condicionada a um laudo elaborado por perito judiciario mdico psiquiatra, psiclogo ou equipe interdisciplinar integrada afirmando suas condies favorveis para prestar depoimento em audiencia judicial. 4 A Criana e ao Adolescente vtima de crime ser assegurada sua defesa por advogado nos autos do processo crime. (A ntegra do PL-5329/05 encontra-se no ANEXO-A deste trabalho).
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existentes nos autos do processo laudo de profissional ou equipe qualificada em sade mental, contendo a verso do menor sobre o crime:
Nossa proposta de mudana na legislao processual penal, a fim de que haja, no art. 201 do CPP, pargrafos que excluam a criana ou o adolescente vtima da regra geral de depoimento obrigatrio. Prev-se que a avaliao seja feita caso a caso por perito nomeado pelo juizo, preferencialmente mdico psiquiatra ou psiclogo. O objetivo dessas novas regras o de preservar a criana e o adolescente como pessoas em 76 formao, priorizando-os em atendimento ao mandamento constitucional.

A Deputada Federal Maria do Rosrio elaborou, em outubro de 2006, o Projeto de Lei 7.524. Ofereceu em plenrio proposio, sugerindo que os meninos e meninas vtimas de abusos sexuais fossem inquiridos a partir da metodologia do Depoimento sem Dano. Com esta indita iniciativa legislativa, intencionou normatizar, em todo o territrio nacional, o referido mtodo em sua ntegra. Este Projeto de Lei tinha como objetivo acrescentar o Captulo IV-A ao Cdigo de Processo Penal77, dispondo sobre o processo e julgamento dos delitos tipificados no Ttulo VI, Captulo I, do Cdigo Penal, com vtima ou testemunha criana ou adolescente78. Tratava-se de texto pormenorizado sobre a postura a ser seguida em casos de vtimas de abuso sexual menores de idade. A Comisso de Seguridade Social e Famlia (CSSF), votou pela aprovao deste Projeto de Lei e pela conseqente rejeio do PL-5329/2005. Em 17 de maio de 2007 - um dia antes da comemorao ao Dia Nacional de Combate ao Abuso e Explorao Sexual de Crianas e Adolescentes (datado em 18/05, conforme Lei Federal n 9.970/2000) - a Cmara dos Deputados aprovou o PL-4126/04. Este Projeto de Lei prev procedimento especial para exame pericial de crianas e adolescentes em caso de abuso sexual, alm da elaborao de um laudo psicossocial para apurar elementos indicativos de abusos. 79 Com este feito, a proposta altera texto do Estatuto da Criana e do Adolescente e no do Cdigo de Processo Penal, como inicialmente previsto. Contudo, em 25 de setembro de 2007, a deputada gacha apresentou requerimento ao plenrio da Cmara , solicitando a retirada do Projeto de Lei de sua autoria (PL-7524/06), nos termos do Art. 104 e Art. 114, VII, ambos do Regimento Interno da Cmara dos Deputados - RICD. Justificou-se com o fato de possuir a

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Projeto de Lei 5.329, de 2005. Disponvel no ANEXO-A deste trabalho e em:<http://www.camara.gov.br/sileg/integras/310467.pdf>. Acesso em 05 mai. 2008.
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A ntegra do PL-7524/2006 encontra-se no ANEXO-A deste trabalho.

Projeto de Lei 7.524 de 2006. Disponvel em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/421972 >. Acesso em 05 mai. 2008. 79 ARTIGO Cmara aprova projeto que combate abuso sexual contra crianas e adolescentes. AditalAgncia de informao Frei Tito. Em 21 de maio de 2008. Disponvel em <http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=27635 >. Acesso em: 05 mai. 2008.

mesma matria contida no aprovado PL-4126/04.80 A Mesa Diretora da Cmara assim o excluiu, em 09 de outubro do mesmo ano.81 CONCLUSO Diante da revitimizao da criana e do adolescente nas inquiries sobre abuso sexual onde so parte, o presente estudo objetivou demostrar ao leitor noes conceituais sobre a sistemtica, para uma melhor compreenso de sua dinmica, inclusive sob a tica multidisciplinar ; realizar uma anlise consciente da atual forma de inquirio; apontar algumas solues para a oitiva de menores, sem impor vtima um novo processo de vitimizao, atravs de novos danos psicolgicos; ao mesmo tempo, preservar ao acusado as garantias do devido processo legal. Portanto, tentou-se buscar o equilbrio entre a verdade dos fatos e a preservao dos princpios constitucionais ao ru. Verificou-se a clara dificuldade dos operadores de direito, advogados, promotores e magistrados, na realizao da oitiva dos menores sexualmente abusados. importante que todos os profissionais integrantes da Justia tenham presente que ocorrem desacertos no trato com este tipo de abuso ocorrem, devido complexidade da tarefa. Nos tempos atuais, j se percebe a importncia do papel judicial e da interdisciplinariedade para proteger a criana. Conclui-se, assim, que, para proteger a vtima de violncia sexual infantil intrafamiliar, so necessrias alternativas condizentes com as novas regras constitucionais de proteo ao menor. Uma nova conduta se impe. A colocao em prtica das possibilidades reunidas neste trabalho tornar mais efetiva e no traumatizante a comprovao do abuso sexual.

REFERNCIAS ARIS, Philippe. Histria social da criana e da famlia. Traduo: Dora Flaksman. 2. edio. Rio Janeiro: Editora LCT, 1978. AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violncia sexual intrafamiliar: possvel proteger a criana? Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2004. AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violncia Sexual Intrafamiliar: interfaces com a convivncia familiar, a oitiva da criana e a prova da materialidade. Revista dos Tribunais, So Paulo, ano 95, v. 852, p. 424-446, out. 2006.

ntegra do requerimento disponvel no ANEXO-A deste trabalho e tambm em: <http://www.camara.gov.br/sileg/integras/500473.pdf >. Acesso em 05 mai. 2008.
81

80

Disponvel em <http://www.camara.gov.br/sileg/PropDetalhe.asp?id=334860 >. Acesso em: 05 mai. 2008.

AZAMBUJA, Maria Regina Fay de. Violncia Sexual Intrafamiliar: Possvel Proteger a Criana? Revista Brasileira de Direito de Famlia, Porto Alegre, v.8, n. 36, p.32-51, jun-jul, 2006. BORBA, Maria Rosi de Meira. O duplo processo de vitimizao da criana abusada sexualmente: pelo abusador e pelo agente estatal, na apurao do evento delituoso. Disponvel em: < http://jus2.uol.com.br/doutrina/texto.asp?id=3246 >. Acesso em: 04 abr.2008. BRASIL. Constituio (1988). Constituio da Repblica Federativa do Brasil. Braslia, DF: Senado Federal, 1988. Disponvel em: < http://www.presidencia.gov.br >. Acesso em: 10 mar.2008. BRASIL. Cdigo Penal: Decreto-Lei n. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Disponvel em: < http://www.presidencia.gov.br >. Acesso em: 10 mar.2008. BRASIL. Cdigo de Processo Penal: Decreto-Lei n. 3.689, de 03 de outubro de 1941. Disponvel em: < http://www.presidencia.gov.br >. Acesso em: 10 mar.2008. BRASIL. Estatuto da Criana e do Adolescente: Lei Federal n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Disponvel em:< http://www.presidencia.gov.br >. Acesso em: 10 mar.2008. CARVALHO, Rose Mary de, Comentrios ao artigo 136 do ECA. In: CURY, Munir; SILVA Antnio Fernando Amaral e; MENDEZ, Emlio Garcia (Coord.). Estatuto da Criana e do Adolescente Comentado: comentrios jurdicos e sociais. 1. edio. So Paulo: Malheiros, 1992. CEZAR, Jos Antnio Dalto. Depoimento sem dano: uma alternativa para inquirir crianas e adolescentes nos processos judiciais. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2007. CINTRA, Arajo Antnio Carlos; DINAMARCO, Cndido Rangel; GRINOVER, Ada Pellegrini. Teoria Geral do Processo. So Paulo: Malheiros, 1993. COMISSO PARLAMENTAR MISTA DE INQURITO. Projeto de Lei n. 4.126 de 2004. Disponvel em: <http://www.mp.rs.gov.br/infancia/projetosdelei/id2877.htm>. Acesso em: 05 mai. 2008. DOBKE, Veleda. Abuso sexual: a inquirio das crianas, uma abordagem interdisciplinar. Porto Alegre: Ricardo Lenz Editora, 2001. FAIMAN, Carla Jlia Segre. Abuso sexual em famlia: a violncia do incesto luz da psicanlise. So Paulo: Casa do Psiclogo, 2004. FERREIRA, Maria Helena Mariante. Algumas consideraes sobre a perplexidade compartilhada diante do abuso sexual. Revista de psicoterapia da infncia e da adolescncia. Porto Alegre: CEAPIA, n.12, nov.1999.

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