Barquinha - Espaço Simbólico de Uma Cosmologia em Construção
Barquinha - Espaço Simbólico de Uma Cosmologia em Construção
Barquinha - Espaço Simbólico de Uma Cosmologia em Construção
CONSTRUÇÃO
Wladimyr Sena Araújo1
PRIMÓRDIOS
Daniel Pereira de Mattos, o fundador da missão, nasceu em São Luís do
Maranhão e era filho de escravos. Ainda criança foi colocado em uma escola de
aprendiz de marinheiro, onde adquiriu conhecimentos do mar. Entretanto, a sua
trajetória de vida antes da chegada ao Acre ainda é bastante obscura. Sabe-se que o
mesmo chegou a região acreana em meados do século, onde se instalou no bairro 06
de Agosto e, em seguida, na zona de prostituição por nome de Papôco, que ainda está
situada à margem do rio Acre.
Era um senhor bastante habilidoso e conta-se que sabia desempenhar com
qualidade doze tarefas: construtor naval, cozinheiro, músico, barbeiro, alfaiate,
carpinteiro, marceneiro, artesão, poeta, pedreiro, sapateiro e padeiro.
Extrememente sensível, era considerado um grande boêmio das noites de Rio
Branco. De suas mãos fluíam canções que falavam de amor, amizade e da mulher
desejada. Em uma de suas andanças boêmias, adormeceu sob uma forte chuva muito
próximo ao rio Acre. Ainda bêbado recebeu uma mensagem na qual dois anjos
desciam do céu com um livro para ser entregue a ele. Anos depois, recebeu a mesma
mensagem ao cair enfermo e ser tratado pelo conterrâneo Raimundo Irineu Serra,
fundador do Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (CICLU), um dos maiores
responsáveis pela difusão do chá para a zona urbana.
Após a revelação, Daniel resolveu criar a sua própria linha doutrinária formando
assim a “Capelinha”, que atendia nos seus primórdios aos caçadores e suas famílias
que por lá passavam. Este espaço era rústico, assim como são as casas dos
seringueiros da região Amazônica. Pouco a pouco, a “Capelinha” ou “Capelinha de São
Francisco” como assim era chamada, foi ganhando corpo e arrebanhando mais fiéis
que passaram a fazer parte da doutrina. Hoje a Barquinha conta com
aproximadamente 500 fiéis.
1
Mestre em Antropologia Social pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e professor da
SEC/SEMEC (AC).
SÍMBOLOS FUNDANTES
Uma das características marcantes do Centro criado por Daniel reside no fato
de muitos dos símbolos da casa estarem relacionados ao mar. A história de vida deste
homem reforçou estes elementos, os quais fazem referências a seres aquáticos e a
uma nau, chamada carinhosamente pelos adeptos de “Barquinha”. A barca para os
seus integrantes tem dois significados. O primeiro é o de que ela representa a própria
missão deixada por Daniel e a segunda expressa a viagem de cada um. Esta barca é a
viagem de suas vidas, em resumo, uma viagem dentro da grande viagem.
Ainda assim, os praticantes acreditam que a embarcação da Igreja, local onde
eles se reúnem para realizar as sessões é a própria barca. É preciso considerar que a
barca é comparada às embarcações típicas que constantemente cortam os rios desta
região. É dito ainda que o proprietário da Barquinha é Deus e esta é pilotada por São
Francisco das Chagas, Mártir São Sebastião, São José e Daniel Pereira de Mattos, que
tem como missão conduzir a nau ao encontro de Jesus, tentando, juntamente com os
fiéis, evitar grandes tormentas, ou seja, as profanações que ocorrem neste mundo.
É uma barca que tem a designação de “barca Santa Cruz” e reflete um caráter
escatológico. Por isso os fiéis recebem constantemente instruções de planos invisíveis
para continuar a viagem mar a dentro.
“A viagem nada mais é do que a provação, onde a água agitada reflete as
tentações do mundo de ordem mundana. A água se agita porque a sociedade humana
quebrou determinadas regras divinas. As águas marítimas exprimem o sentimento
descontrolado dos seres humanos e o desgosto do criador” (Araújo Neto, 1995: 13).
De forma mais ampla, ela é considerada a missão deixada por Mestre Daniel e
vida de forma plena. Deus é o proprietário da barca, mas quem definirá o seu rumo
são os fiéis através de suas atitudes.
A barca viaja em três planos cosmológicos: o céu, a terra e o mar. Aqueles que
fazem parte da grande barca são chamados de marinheiros do mar sagrado e recebem
este título no momento do “fardamento”.2 Fardados, eles desempenham tarefas para
alcançar um grau de luz mais elevado no momento da desencarnação (morte) de cada
um. Os adeptos afirmam que se houver uma boa preparação, os marinheiros passam a
ser chamados após de oficiais após a morte.
Determinadas entidades também são chamadas de oficiais, como é o caso de
Dom Semião, que chefia parte dos trabalhos das Obras de Caridade. Estes oficiais
quando chegam para “trabalhar” usam determinados instrumentos referentes às forças
armadas tais como lanças, espadas, algemas, cachorros, etc. Os registros destes
instrumentos são revelados nos salmos entoados pelos presentes.
Essas forças armadas, compostas de entidades de luz, visam combater
entidades do mal. Há portanto, um duelo entre entidades de luz e entidades das
trevas; logo, a barca, juntamente com os marinheiros e oficiais, vem a ser um
receptáculo de conversão de entidades maléficas e entidades benéficas. Esta
conversão se dá através de batalhas mar a dentro.
O mar na qual esses marinheiros constantemente navegam é chamado de mar
sagrado, devido ao fato de o Daime ser considerado água sagrada. Viajam, portanto,
nas ondas do Daime sobre o balanço do barco Santa Cruz.
2
O fardamento representa a adesão do participante ao grupo na qual ele está participando. Na concepção
de Paskoali (1998), é também um renascimento, visto que, através dele, os indivíduos obedecem a certas
regras de conduta para que possam ser reconhecidas realmente como adeptos da doutrina.
É destacado ainda enquanto luz. Ela (a luz), é associada ao conhecimento,
logo, àqueles que experimentam o Daime, estão ingerindo a Santa Luz e adquirindo
novos conhecimentos, enxergando a si mesmo, o outro e outros mundos. Além disso,
o chá sagrado representa a renovação, a revitalização e cura. O homem ao “navegar”
com ele nasce novamente e com isso se reintegra.
Em duas das visões de Daniel, notamos a presença da água, isto porque o
mesmo encontrava-se deitado às margens de um rio ou à beira de um igarapé. A
primeira sem o uso do Daime e a última sobre o efeito deste enteógeno. Estas visões
mostram uma passagem, a ligação com os tempos primordiais, com Deus e o início da
missão.
O Daime é considerado uma substância de poder. Todavia, esta água sagrada
não é acessível a qualquer momento. O homem terá que passar por uma série de
provas, demonstrando assim que é digno dela.
A bebida também é tida como um instrutor que ensina os participantes dos
rituais que a utilizam. Estes ensinamentos estão presentes desde o momento em que
Mestre Daniel resolveu formar a missão através da visão do livro azul. O livro azul
compreende os ensinamentos e é onde os fiéis recebem sintetizadas as instruções
provenientes de planos sagrados elevados. Estas instruções são passadas através de
lindas melodias, ricas em símbolos, chamadas de salmos.
3
Apresentação e representação caminham juntas, isto porque o praticante pode representar o sagrado
durante uma performance ritual. Por outro lado, entidades podem apresentar-se nos rituais, inclusive,
usando o corpo dos adeptos. A arquitetura, os gestos, as melodias representam outros planos e outros
seres, mas quando sentidos, tornam-se apresentados.
As obras de Caridade constituem o principal trabalho da casa e performance na
qual a mesa é usada. É importante destacar que o trabalho emerge da mesa em forma
cruz, decorrendo daí uma ampliação espacial, onde as cortinas são abertas fundindo o
restante do espaço.
Esta ampliação espacial tem o seu ponto de partida do centro da Igreja, que
torna-se o principal canal de ligação entre os planos verticais e o horizontais, ou seja,
os planos míticos sagrados e os seres sagrados, com o restante dos lugares do espaço
arquitetônico e os homens religiosos. Gradativamente, e de forma sutil e harmônica,
os lugares que estão em torno da mesa vão ganhando importância durante o processo
ritual.
A primeira parte do ritual consiste apenas na execução de preces e salmos
entoados pelos presentes. A segunda é a abertura das Obras de Caridade, onde 7
entidades são chamadas para realizar a caridade. Estes seres pertencem aos mistérios
do céu, terra e mar.
Atrás da Igreja há um salão de atendimentos (terreiro) com 7 gabinetes
(congá) onde três médiuns trabalham, incluindo aquele que incorpora a entidade
responsável pelo salão de atendimentos. O responsável pelo salão é uma entidade por
nome de Dom Semião. Este ser era incorporado por Francisca Gabriel, um dos
médiuns que trabalhou com Daniel Pereira de Mattos. Hoje a mesma é uma das
autoridades de um Centro criado por ela chamado de Centro Espírita Príncipe
Espadarte, localizado nas proximidades do primeiro.4
Os médiuns aplicam passes nos clientes que procuram o local em busca de
tratamento para enfermidades, problemas familiares e encostos. Dependendo da
gravidade do problema, é aconselhado que os indivíduos retornem em um trabalho
para desfazer serviços de quimbanda.5 Estes trabalhos são realizados durante as
quintas-feiras.
Os serviços para desfazer trabalhos de quimbanda já eram executados no
Centro de Mestre Daniel nas décadas de 40 e 50. Neste período o Centro Espírita e
Culto de Oração Casa de Jesus Fonte de Luz já contava com três médiuns: Francisca
Gabriel, Maria Baiana e Dona Inês. Eram estas senhoras que prestavam as Obras de
Caridade da missão de Daniel, bem como desmanchavam trabalhos maléficos,
considerados por eles de magia negra.
Para os espíritas apostólicos cristãos (marinheiros do mar sagrado/ soldados
dos exércitos de Jesus), quando o paciente chega para ser tratado traz consigo uma
entidade quimbandeira, uma entidade trevosa, que por motivos diversos tenta
prejudicar a vida material e espiritual do indivíduo.
4
Além do Centro Espírita Príncipe Espadarte, formado em 1994, houve também a criação do Centro
Espírita Daniel Pereira de Mattos, fundado por Antônio Geraldo, sua família e simpatizantes. Há ainda, o
Centro Espírita Fé, Luz, Amor a Caridade (Centro de Maria Baiana), localizado na Estrada do Amapá
(zona rural de Rio Branco). Este espaço foi criado em 1962 por Juarez Xavier e sua esposa Maria Rosa.
Já o Centro Espírita Santo Inácio de Loyola é criado em 1994, sendo um dos menores e estando situado
no bairro da Sobral. Este local é presidido por Antônio Inácio da Conceição. Finalmente, o Centro
Espírita Nossa Senhora Aparecida, instituído em 1998 no município de Porto Acre. Este Centro é
presidido pelo casal Sheila e José do Carmo, que antes pertenciam ao Centro Espírita e Culto de Oração
Casa de Jesus Fonte de Luz.
5
A quimbanda para os fiéis expressa o lado oposto da umbanda. Desta maneira, as entidades
quimbandeiras são vistas como pertencentes ao lado da magia negra. Os trabalhos para desfazer serviços
de quimbanda tem como principal finalidade de retirar da matéria, do corpo os exus. Os exus podem ser
convertidos por entidades de luz.
Os trabalhos para desfazer malefícios acabam acarretando um duelo entre o
bem e o mal, entre entidades de luz e entidades das trevas. Estas últimas são
consideradas arrogantes e teimosas. Estes seres desviantes e trangressores, quando
convertidos através de entidades de luz, voltam para trabalhar na Barquinha.
Esta atividade ritual começa no próprio salão de atendimentos e somente os
médiuns que trabalham nos gabinetes de atendimentos (congá) são autorizados a
tomar o Daime; entretanto, podem realizar também as suas atividades sem o auxílio
da substância.
Cada gabinete é composto por três médiuns: um deles é o responsável pelo
trabalho naquele local e recebe a entidade que está a frente do congá. Os outros
médiuns recebem entidades em seus corpos, ou seja, incorporam entidades que não
são batizadas na casa e que não são entidades de luz.
Através da incorporação, a entidade sem luz é levada para uma pequena sala
onde é determinado que faça um ponto riscado que a represente e sobre este
materiais diversos. Estabelecido o ponto, a própria entidade queima o trabalho que ela
realizou contra a pessoa. Em seguida, o ser quimbandeiro é aprisionado em uma
morada no Astral chamado de “campo de concentração” e quando estiver preparada
retorna como entidade de luz, realizando serviços benéficos na Barquinha.
A mesa em forma de cruz, além das Obras de Caridade, serve também para os
trabalhos de concentração realizados às quartas-feiras. Esta sessão é feita com
exclusividade no interior da igreja, logo, não há abertura de cortinas. Essa
performance ritual dura entre uma hora e uma hora e meia e não existe nenhuma
restrição ao posicionamento daqueles que participam das Obras de Caridade para
estas sessões de concentração.
Algumas diferenças, entretanto, são notadas entre os trabalhos de Obras de
Caridade e as sessões praticadas durante os dias de quartas-feiras. Uma das distinções
está explícita na própria concentração, pois segundo a concepção dos praticantes, a
“Barquinha” é uma escola e o Daime, o mar sagrado, trazendo consigo entidades
professoras. Tal conceito relaciona-se ao emprego que os caboclos vegetalistas (cf.
Luna 1986) fazem desta substância.
Isto explica qual a principal finalidade do trabalho de concentração: o
desenvolvimento mediúnico, que por sua vez, visa a preparação do indivíduo da casa
para trabalhar durante as Obras de Caridade e em trabalhos para desfazer serviços de
quimbanda. O desenvolvimento mediúnico é uma das tarefas mais difíceis realizadas
pelos adeptos.
Um outro fator é que durante o ritual, a quantidade de Daime servida é maior
do que no trabalho de Obras de Caridade. Neste sentido, foi mencionado pelos
adeptos que a proporção ingerida nas quartas-feiras destina-se ao “trabalhos” das
pessoas. É um dia de “instrução”, portanto, de reflexão.
2 - O Cruzeiro é o grande pilar do barquinho Santa Cruz. Nele, podemos
perceber um coração com 12 estrelas expressando os mistérios da paixão e morte de
Cristo. Além disso, este lugar tem 4 portas de acesso, representando os 4 pontos
cardeais.
Juntamente com as 12 colunas ele expressa também um terço, que pode ser
visto nos dias de trabalho no interior da Igreja através do posicionamento de velas.6
6
É também o grande mastro que sustenta a Barquinha nos dias de festas oficiais.
Neste local realizam-se as doutrinações de almas no dia 02 de novembro (dia
dos mortos). O principal objetivo destas doutrinações é a de preparar almas dentro de
uma certa norma cristã, que constitui a maior parte dos conceitos da casa.
As almas são arrebanhadas por Frei José Joaquim, o Pastor das Almas. É ele
quem as leva para serem doutrinadas por intermédio de São Francisco. As almas são
recebidas durante as sessões e são, desta forma, chamadas para serem doutrinadas. A
doutrinação, por sua vez, não implica que a alma esteja salva mas que a mesma foi
colocada em um estado de preparação dentro de um processo evolutivo, onde irá
passar por um período de penitência para aliviar os seus pecados. Com isso, ela estará
se preparando para o julgamento final.
São os praticantes que recebem as almas e é o Presidente do espaço que as
envia para um salão de luz. Lá elas farão um preparo de vários dias para receber a
doutrina. Quando estiverem doutrinadas, o Pastor das almas as leva novamente nos
dias certos de trabalho para concretizar a doutrina.
Alguns fiéis dizem ter visitado o salão de luz onde habitam as almas penitentes.
Essas viagens são marcadas por uma ampla subjetividade, mas é importante salientar
que enquanto símbolo do contexto do espaço, o salão tem uma importância coletiva e
as viagens individuais reforçam a sua existência.
Dentro do cruzeiro ficam as pessoas que participam da composição da mesa
nos trabalhos realizados no interior da Igreja. Nas imediações do lugar ficam os
demais integrantes e participantes que entoam salmos e rezam preces.
Semelhante ao trabalho de doutrinação é o batismo de eguns sem luz, os exus,
considerados por eles “entidades das trevas”. Para o Presidente do local, Manuel
Hipólito de Araújo, existe uma diferença entre doutrinação de almas e batismo de
eguns sem luz. Isto porque as almas, em sua grande maioria, já foram batizadas.
Porém, segundo ele, falta a elas um preparo cristão.
Os exus são convertidos em espíritos de luz quando são levados a um lugar
mítico no Astral designado de campo de concentração. Assim como as almas, estes
exus passarão por um processo de re-significação simbólica e terão inclusive troca de
nomes.
3 - O terceiro eixo consiste no parque. Este foi criado em 1959 por Antônio
Geraldo da Silva. O lugar foi destinado as “brincadeiras” da irmandade com as
entidades dos três mistérios. Ele assume arquitetonicamente duas formas: a primeira
como barca e a segunda enquanto cálice. Este cálice é um instrumento de
consagração, porque ao tomar o Daime o indivíduo comunga e estabelece um elo de
ligação com Deus.
O lugar do parque é composto por uma série de símbolos. Existem doze
colunas que circulam o salão de baile. As doze colunas representam sempre os
apóstolos de Cristo, mas, durante os festejos, são colocados estandartes simbolizando
entidades dos mistérios do céu, terra e mar sobre estas colunas.
O coreto que está no centro do salão de baile representa Jesus Cristo ou Oxalá
durante as festas. Acima do coreto encontra-se uma pequena embarcação semelhante
aos barcos que cortam os rios da Amazônia e acima desta barquinha é possível
observar uma luz amarela. A luz é o Daime, o mar sagrado, por onde viajam os seus
marinheiros.
Os bailados realizados no parque são considerados uma extensão dos trabalhos
realizados na Igreja. Existe uma mobilidade espacial, isto é, pela dinâmica
apresentada, o espaço torna-se móvel.
A finalidade do bailado é a de satisfazer as entidades que trabalham nas Obras
de Caridade em datas específicas santificadas. Os seres chamados para brincar têm a
permissão para se satisfazerem dos gozos materiais - neste caso, a dança - e se
utilizam dos “aparelhos” para bailar pontos que as identificam. As entidades também
tem o poder de enviar pontos através dos aparelhos, que os recebem e os escrevem
na sequência. Estes pontos louvam entidades dos três mistérios.
As “brincadeiras” servem também para a iniciação a incorporação, porque
muito raramente há este tipo de prática nas dependências da Igreja. O bailado, por
deixar as pessoas mais descontraídas através do Daime, dos pontos e, principalmente
através do movimento, auxilia as pessoas a desenvolverem a sua mediunidade. É
necessário frisar que a incorporação pode ocorrer sem o uso da substância.
Pois bem, o bailado tem essa finalidade de atender as entidades que se
dispõem a prestar caridade naquela casa e os indivíduos que trabalham no Centro
utilizam o lugar para efetuar uma brincadeira que resulta também em uma auto-
análise da vida. A “brincadeira” produz trilhas para pensar os problemas de cada um
através das instruções recebidas. A dança serve ainda para curar, arrebanhar
entidades trevosas e estabelecer um dom, pois os homens trocam com outros homens
e também com seres divinos.
O lugar do parque torna-se dinâmico porque os corpos são envolvidos por eles.
Ele é um companheiro de dança. Desta maneira, aqueles que participam do bailado
percebem o lugar, o círculo sagrado, porque através do olhar sobre este, é
perfeitamente possível ver outros mundos e torná-los visíveis através dos gestos de lá
para cá; é quando começam a circular no disco, na borda do cálice sagrado ou na
barca, símbolos de realidades sagradas que vem e vão. Aqueles que bailam em
conjunto com o espaço tornam-se escultores dançarinos porque dão forma a realidade
invisível.7
Elementos internos tais como sentimentos e pensamentos aliam-se aos
externos (música, cheiros, luzes, etc) e produzem movimentos que falam de outras
realidades e de outros seres. O Daime pode estabelecer uma conexão, um canal de
ligação às outras dimensões dos três mistérios.
O bailado, assim como as demais performances rituais, servem como um
dinamizador da cosmologia onde os símbolos são transmitidos e/ou modificados. Os
trabalhos de Daniel tentam dizer alguma coisa: os diversos atos inscritos nas
performances rituais constituem ação, logo, expressão; expressam não só idéias, mas
sentimentos. Neste caso, a missão deixada por ele ultrapassa a fronteira que separa o
mundo sagrado do mundo profano. Isto porque as pessoas retornam para a vida
cotidiana embriagadas pelo aprendizado do sagrado.
COSMOLOGIA EM CONSTRUÇÃO
A Barquinha insere-se no chamado ecletismo religioso, segundo a literatura
antropológica, que propicia ao indivíduo uma experiência que se dá:
“Por uma operação (...) através da qual são ecleticamente reaproximados,
sobrepostos e/ou refundidos elementos oriundos das várias tradições, nativas e
importadas, que a mobilidade geográfica das pessoas e dos produtos culturais põe
hoje a sua disposição. Novas entidades coletivas apontam no horizonte dessas
operações, mas elas tendem a ser transconfessionais, ameaçando desde já, nesse
7
Concepção de Arruda (1988) para o relacionamento entre o performer e o espaço.
sentido, redesenhar nessas sociedades centrais o mapa do campo religioso
contemporâneo. Parece possível esperar das consequências desse fenômeno uns
efeitos de transformações mais radicais que as do tradicional ‘sincretismo brasileiro’
(Sanchis 1995).
Neste sentido, pensamos que a idéia de ecletismo religioso se encaixa muito
bem para a formação de um pensamento religioso para as religiões não-indígenas que
fazem o uso da ayahuasca. Mas acreditamos que ao invés desta circulação do
indivíduo, mais fluída por várias religiões, sem ter a preocupação de se sedimentar em
uma, respeitando desta maneira a diferença das religiões, os adeptos da Barquinha
mantém com esta uma relação mais regular. São as práticas religiosas que circulam
neste tipo de religião amazônica que são mais fluídas.
Pensamos que se trata de uma cosmologia em construção. Por cosmologia em
construção denomino um conjunto de práticas religiosas que tendem a formar uma
doutrina específica onde existe uma grande velocidade na incorporação e retirada de
elementos de práticas religiosas diversas.
Além disso, o hinário é um outro reforço para tal concepção, isto porque os
integrantes da Barquinha não falam do livro como algo que está completo. Suas letras
são repassadas para eles como instruções e quando novos salmos são recebidos é
sinal que novas instruções acabaram de chegar.
A composição simbólica desta linha doutrinária está elaborada, em parte, pela
proposta de Mestre Daniel, bem como pela visão de mundo desses líderes religiosos
que são provenientes de lugares distintos e de culturas diversas. Portanto, o Centro
torna-se um aglutinador de culturas. Mas o termo aglutinador por si só não basta, isto
porque ele torna-se um ordenador de elementos culturais, constituindo algo autêntico,
novo e dinâmico. E neste caso, a Barquinha é uma nau de re-significação pela incrível
flexibilidade do espaço - daí a metáfora cosmologia em construção.
Para melhor exemplificar o que queremos dizer por cosmologia em construção,
vamos pegar como exemplo a construção de uma grande barca. A barca para ser
construída terá vários tipos de madeira em vários locais. Desta forma, vamos encontrar
as vigas, tábuas, mastro, leme etc, todos com madeira compatível com a barca. Da
mesma forma, encontramos o suporte de encaixe para a sua construção: os parafusos,
os pregos e outros. Após a construção da barca, da grande barca, pode-se afirmar que
a mesma está “estruturada”.
Mas a finalidade da barca é navegar, viajar mar a dentro, dias e noites, no calor
ou no frio. Seu proprietário resolve deixá-la diferente e começa a colorir e a desenhar
formas geométricas na cabine onde pilota a nau. São pequenas alterações de grande
significado que aos poucos vão sendo comungados pelos tripulantes da embarcação.
Este barco viaja a lugares diferentes e enfrenta grandes tempestades. Logo, a
embarcação precisa de reparos urgentes para continuar viajando. As viagens
continuam e os tripulantes, em especial o proprietário da barca, conhecem lugares
diferentes e, consequentemente, pessoas distintas. Passam a dialogar, estabelecem a
troca, dão e recebem, experienciam, aprendem, voltam mudados. Resolvem lembrar,
dinamizar a memória, buscar os fios de significados e com isso traçam novos
desenhos, motivos através dos quais fazem lembrar o outro.
Mas a barca muda ao longo do tempo. Apesar da estrutura interna de suporte
da nau, os tripulantes procuram a cada dia que passa dar uma nova roupagem a ela. E
assim continuam além da linha do horizonte a navegar com as lembranças presentes.
Esta re-significação parte do pressuposto das viagens por parte dos dirigentes a
outros planos e, com isso, as visões desses lugares míticos são manifestadas na
arquitetura. As viagens são as mirações que eles tiveram para a construção simbólica
do local, porque foram nestas mirações que estes líderes tiveram visões sagradas e
essas revelações justificam um agregado de símbolos que foram incorporados no
decorrer de décadas.
O homem religioso da Barquinha está imerso em símbolos e está marcado
consciente ou inconscientemente por eles. Esses lugares são vividos, experienciados
individual ou coletivamente durante um longo período de atividades. Resta lembrar
que a Barquinha é a linha ayahuasqueira que realiza o maior número de performances
rituais apresentadas na região acreana e adjacênscias.
Os trabalhos constituem a ação do sujeito dentro dos lugares do espaço. A
ação do sujeito enquadra-se naquilo que podemos denominar de espaço performático
e, juntamente com este espaço performático, a ampliação espacial, na qual os lugares
são fundidos no decorrer dos rituais.
Os rituais da Barquinha marcam profundamente o reencontro de tradições
européias, indígenas e africanas. O ritual funciona como manifestação dessas culturas
que estão presentes através da prece, miração e incorporação.
Na primeira, a prece representa um elemento católico oriundo da Europa e
remodelada no nordeste brasileiro. A miração relaciona-se ao xamanismo indígena e a
incorporação aos cultos africanos. Para exemplificar melhor o que queremos dizer,
podemos mencionar a doutrinação de almas onde os três aspectos relacionam-se ao
espaço performático. Enfim, o reencontro dessas tradições culturais marca a
permanente construção da sua cosmologia.
É preciso observar que durante os rituais os homens da Barquinha dinamizam o
processo de re-elaboração simbólica. É quando algo novo pode ser visto durante os
trabalhos da missão de Daniel. A mobilidade da barca provocada pelos sujeitos que a
compõe produz esta dinâmica, pois voltam mudados, transformados. Esse é o sentido
da construção, não só de produzir efeito sobre a arquitetura do local, mas tocar os
sujeitos envolvidos, os marinheiros do mar sagrado.
BIBLIOGRAFIA
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Laban na dança e ação humana. São Paulo: PRN Gráficos e Editores associados
Ltda.
GROISMAN, Alberto (1991). Eu Venho da Floresta: Ecletismo e Práxis Xamânica
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LUNA, Luis Eduardo. Vegetalism: Shamanism among the Mestizo Population of
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Daime: Um Ritual de Transcendência e Despoluição. Recife: UFPe (dissertação
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SANCHIS, Pierre (1995). “As Tramas Sincréticas da História”. In Revista
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PASKOALI, Vanessa Paula (1998). Navegar é Preciso, Morrer não é Preciso. Rio
Branco: UFAC (monografia de conclusão de curso em Ciências Sociais).