Robin Cook

O Jovem Mdico
CRCULO DE LEITORES
Ttulo original: THE YEAR OF THE INTERN Traduo de: MARIA LUSA GONALVES DOS SANTOS Sobrecapa de: MANUEL DIAS 1972 by Robert Cook

Este livro dedicado ao ideal da Medicina que todos ns acalentamos ao entrarmos para a escola mdica.

AGRADECIMENTOS

Este livro foi escrito sob as guas do Oceano Pacfico, quando o seu autor se encontrava a efetuar uma operao de patrulha a bordo do submarino "Polaris U.S.S." e a sua execuo no teria sido possvel sem a gentileza e a compreenso do comandante James Sagerholm. Para ele aqui fica a minha profunda gratido. Os agradecimentos vo tambm para Craig Van Dyke, mdico psiquiatra em formao, cuja experincia pr-profissional permitiu apoiar o autor ao longo de muitas noites sombrias de dvida e reviso.

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A PRIMEIRA PALAVRA
Os americanos agarram-se aos seus mitos. Em parte alguma esse fato se toma mais evidente do que no reino altamente emocionante da medicina e da assistncia mdica. As pessoas acreditam naquilo em que sempre acreditaram e ignoram ou rotulam de falso tudo o que ameaa a cmoda confiana que depositam nos seus mdicos pessoais ou no tipo de tratamento mdico que possam receber. S h muito pouco tempo e com relutncia o pblico comeou, de um modo geral, a libertar-se da suposio complacente de que o pessoal e a assistncia mdica dos Estados Unidos so os melhores do mundo. E at mesmo este despertar forado foi despoletado mais por motivos de carter econmico do que pela razo em si, mais pela subida dos custos da assistncia mdica do que pela qualidade desta. Embora a Sra. Brown possa reconhecer que h coisas que no esto bem, continua a apegar-se, no obstante, convico de que o seu querido mdico pessoal da esquina da rua o melhor da cidade. Um homem to extraordinrio! E todos aqueles jovens internos, Deus os abenoe! To dedicados e benfazejos! A base que sustenta esta admirao pelo mundo mdico tem razes profundas na psique do americano moderno. O seu romance com a medicina demonstrado pelas horas que, diariamente, passa em frente do televisor, assistindo ao triunfo do diagnstico e da teraputica dos mdicos oniscientes. Tal romantismo, com a credibilidade que lhe est associada e, conseqentemente, a tolerncia limitada de que se reveste, torna a apresentao de idias contrrias extremamente difcil. Esse , apesar de tudo, o objetivo a que este livro se prope retirar a mitologia e mstica contemporneas ao ano de internato mdico e demonstrar a dura realidade que lhe inerente. Os efeitos psicolgicos que o internato exerce sobre o mdico so profundos. (Ento imaginem as conseqncias que o mesmo no tem sobre um exrcito interminvel de doentes!) Peo fervorosamente ao leitor que adote um esprito aberto, pondo de lado essa tendncia quase irresistvel de glorificar a medicina e as pessoas nela envolvidas e tente compreender os verdadeiros efeitos que o internato exerce sobre o indivduo em si. As pessoas que se encontram inseridas no mundo da medicina so pessoas comuns, dominadas por toda uma srie de fraquezas: ira, ansiedade, hostilidade, egocentrismo. Quando colocadas num meio ambiente adverso, reagem como pessoas, no como curandeiros super-humanos. E apesar dos dramas apresentados na televiso, o internato, tal como hoje se processa, um meio ambiente adverso. (As horas de sono insuficientes podem, s por si, explicar toda uma srie de comportamentos aberrantes; estudos recentes demonstraram que o indivduo privado de horas de sono suficientes depressa se toma esquizofrnico.) Todos os acontecimentos aqui descritos so reais. Eles fazem parte dos dias tpicos, no espordicos, da vida de um mdico interno. O prprio Dr. Peters representa uma sntese das minhas prprias experincias e da daquelas que foram vividas pelos meus colegas internos. Assim ele possui facetas de vrias pessoas reais. Embora no demonstre as aberraes de qualquer personalidade psicossocial em particular representa, no obstante, em maior ou menor grau, todos os internos. O fato de aparecer, muitas vezes, como um indivduo vencedor e reivindicativo que falha socialmente ao mesmo tempo em que progride profissionalmente, no deve surpreender. certo que o Dr. Peters evolui consideravelmente em termos de conhecimentos e experincia mdica; adquire, de igual modo, uma atitude mais objetiva em relao morte.

Simultaneamente, contudo, verifica-se uma intensidade concomitante na sua raiva e hostilidade, que conduz a um isolamento mais profundo, a um comportamento mais alheio ao mundo exterior, a fortes sentimentos de auto-compaixo e a uma incapacidade de estabelecer relacionamentos interpessoais significativos. So apresentados aqui outros aspectos da prtica da medicina que iro colidir com crenas estabelecidas. Volto a implorar ao leitor que ignore os preconceitos; que se lembre de que a maior parte da impessoalidade e da anonimidade que caracteriza o relacionamento com os pacientes apenas o resultado inevitvel da familiaridade que existe em relao aos males humanos. Essa impessoalidade pode, como evidente, ser levada a extremos em que o paciente cessa inteiramente de ser um indivduo e transforma-se num mero objeto a ser tratado. Este comportamento , sem dvida, patolgico. O perigo potencial de se atingir este estado bem real para o interno. De fato ele , virtualmente, levado a adotar (normalmente sem que o orientem nesse sentido) essa atitude, impelido pela sua natureza. Antecipando-me a uma crtica especfica: como o Dr. Peters comeou a exercer a sua profisso num hospital-escola regional em vez de o fazer num centro mdico universitrio, alguns podero objetar que as concluses porventura retiradas deste livro s devero ser aplicadas a esse meio. Talvez esse comentrio tenha algum mrito, no entanto no acredito que diminua a validade do meu argumento central. Pelo contrrio, as experincias vividas por Peters poderiam, perfeitamente, ser intensificadas se tivessem tido lugar num centro universitrio. O esprito de competio que nesses locais existe entre os mdicos internos, o jogo de se adiantar sempre ao tipo que vai na frente, , na maior parte dos casos, mais severo, e nesse contexto muito provvel que o trabalho de investigao e pesquisa na literatura mdica ocupem, no sistema habitual de valores, uma maior ateno do que os pacientes em si. Penso que as experincias vividas pelo Dr. Peters se aplicam, na sua essncia, tanto aos programas de ensino comunitrios como aos universitrios. Os acontecimentos que tiveram lugar na sua vida so consubstanciados por uma convincente similaridade de incidentes que me foram relatados por vrios mdicos de cada um dos dois tipos de internato existentes. O meio hospitalar que no aqui representado o do hospital que no exerce as funes de escola, de universidade. Assim, possvel que essa crtica se aplique, efetivamente, ao internato efetuado nesse gnero de instituies. O manuscrito deste livro foi lido por oito mdicos, nenhum deles com mais de trs anos passados sobre as respectivas experincias de internato. Foram unnimes em concordar, com exceo de um nico, que o seu contedo autntico, friamente realista e totalmente representativo da situao vivida por cada um deles. O dissidente afirmou que os mdicos que se encontravam a prestar servio no hospital em que fizera o seu internato tinham sido mais eficientes e prestimosos nos ensinamentos administrados, mais sensveis s suas necessidades do que aqueles que aqui so descritos. Este mdico fizera o seu internato num centro mdico universitrio da costa ocidental. Talvez a lio a retirar deste fato seja a de que todos os mdicos recm-formados deveriam passar a sua fase de internato hospitalar em locais semelhantes quele em que ele esteve. Volto a afirmar que se trata de um livro onde so relatados casos verdicos. Se no representa todos os mdicos internos de todos os hospitais, f-lo, no entanto, em relao maioria em muitos desses estabelecimentos. Reflete, com toda a honestidade, uma situao generalizada, que desanimadora no mnimo e perigosa na pior das hipteses. Razo suficiente para ter escrito Jovem Mdico.

Dia 15 CIRURGIA GERAL

J estava a dormir que nem uma pedra quando, uma hora mais tarde, o telefone voltou a tocar. Estendi instintivamente a mo, agarrando no auscultador, mal o primeiro toque tinha acabado de se fazer ouvir, quase em pnico, deixando escorregar para o cho o livro de cirurgia que me pusera a dormir. Santo Deus, que seria daquela vez? A enfermeira estava desesperada. Doutor Peters, o doente que ontem esteve a ver deixou de respirar e no se sente nenhuma pulsao. Vou imediatamente para a. Atirando desajeitadamente o telefone para o descanso, iniciei os gestos de rotina: calas, bata, sapatos, uma corrida pelo corredor fora em direo ao elevador a puxar pelo fecho da braguilha. Carreguei no boto e ouvi o queixume agudo do motor eltrico. Aguardando impacientemente, dei-me conta, de sbito, de que no sabia a que doente ela se referira. Eram tantos! A imagem mental daqueles que vira naquela noite passoume, clere, pela cabea. A senhora Takura, Roso, Sperry; o que chegara h pouco, um homem idoso com um cancro no estmago. Devia ser esse. Era um doente particular e a primeira vez que o vira fora na altura em que me tinham arrancado ao atendimento das novas admisses porque ele se queixava de uma sbita e forte dor abdominal. Depararase-me um indivduo to emaciado e dbil que mal se podia mover, e mostrava uma dificuldade terrvel em responder s perguntas... Frustrado com a lentido do elevador, bati com a mo na porta. As informaes que tinha em relao ao velho eram escassas. A enfermeira que tomava conta do caso no estava de posse de dados apreciveis. A histria clnica no figurava no quadro de registros, onde apenas havia uma pequena nota a informar que tinha setenta e um anos de idade e sofria de cancro gstrico h certa de trs anos; o seu estmago fora cirurgicamente removido dois meses atrs, Segundo o quadro de registros, daquela vez o homem dera entrada no hospital por se queixar de dores, tonturas e mal-estar geral. Chegando ao fim das suas cogitaes mecnicas, o elevador deteve-se e a porta de cor castanha abriu-se. Entrei, premi o boto e voltei a aguardar, impacientemente, que o desajeitado monstro me levasse ao rs-do-cho. O exame que fizera ao velho no revelara nada de inesperado. Encontrava-se, nitidamente, em grande sofrimento e tinha boas razes para tal: o cancro alastrara, obviamente, para o interior do abdmen, Depois de tentar, em vo, contatar com o seu mdico pessoal pelo telefone, decidi-me simplesmente a mandar dar-lhe mais soro e um pouco de Demerol para o ajudar a dormir. Nada mais me acorrera. Finalmente, o elevador deixou-me no rs-do-cho. Atravessei rapidamente o ptio e entrei no edifcio hospitalar principal, utilizando as escadas secundrias para chegar ao andar onde se encontrava o paciente. Ao entrar no quarto avistei, sob a luminosidade tnue da lmpada da cama, a enfermeira ao lado desta, sem saber o que havia de fazer. O homem era to franzino que cada uma das costelas lhe sobressaa sob a pele esticada da caixa torcica. Logo a seguir o abdmen afundava-se. Mantinha-se completamente imvel; tinha os olhos fechados. Olhei atentamente para o peito dele. Estava to acostumado a v-los moverem-se ritmadamente que os meus olhos devem ter-me enganado, levando-me a pensar que tambm aquele se erguia e baixava

ligeiramente, o que no correspondia realidade. Vi-lhe o pulso. Nada. Mas h pessoas que tm a pulsao muito fraca. Reparei bem se estava a agarrar nas zonas corretas do pulso e depois repeti o gesto no outro. Nada. No houve paragem cardaca, doutor. A responsvel disse-me que no devamos considerar que se tratou de uma paragem cardaca. A enfermeira parecia, nitidamente, na defensiva. Cala-te, pensei, irritado e ao mesmo tempo aliviado. O que me preocupava no era declarar uma paragem cardaca. Queria apenas ter a certeza absoluta, pois aquela era a primeira vez em que me cabia, exclusivamente, a responsabilidade de declarar um doente morto. Claro que se tinham verificado muitas mortes durante a minha estada na escola mdica, mortes sem conta, mas nessas alturas - no ano anterior ainda eu por l andava, no entanto parecia j ter decorrido muito tempo - o pessoal da casa estava sempre presente para dar uma ajuda, ou um mdico interno ou um residente; no era tarefa deixada nas mos de um estudante. Naquele momento eu que era o pessoal da casa e tinha de tomar a deciso sozinho; era uma espcie de julgamento, pensei, estranhando a comparao, em que tinha de defender a minha causa, sem apelo nem agravo. O homem estava morto. Ou... no estaria? Demerol, indivduo dbil e idoso, anestesia profunda: a combinao podia provocar um estado de animao suspensa. Lentamente, peguei no estetoscpio, protelando a deciso at que, por fim, coloquei as hastes nos ouvidos, encostando em seguida o diafragma ao peito do homem, por cima do corao. Ouvi uma srie de ligeiros estalidos quando os cabelos do peito se dobraram sob a presso do instrumento, devido ao prprio tremer das minhas mos. No conseguia ouvir o corao, ou estaria a senti-lo tenuemente, muito ao longe?... A minha imaginao sobreexcitada continuava a dar-me a iluso de ouvir o bater vital, rtmico, da vida. At que me apercebi de que era o meu prprio corao a ecoar nos ouvidos. Pondo o estetoscpio de parte, voltei a experimentar os pulsos, a virilha, o pescoo. No havia a mnima vibrao; no entanto eu tinha a estranha sensao de que o homem estava vivo, de que ia acordar e eu acabava por fazer figura de parvo. Como podia ele estar morto se ainda h poucas horas tnhamos estado a falar? Detestava aquela situao. Quem era eu para dizer se ele estava vivo ou morto? Quem era eu? A enfermeira e eu trocamos um olhar na semi-obscuridade do quarto. Estivera to absorvido nos meus pensamentos que quase me surpreendi ao v-la ainda ali. Mantendo as plpebras do homem abertas, perscrutei as pupilas castanhas, de aspecto perfeitamente normal no fora o fato de se encontrarem dilatadas e de no se contrarem quando o feixe de luz incidiu na crnea gasta. Tinha a certeza de que o homem morrera; esperava que estivesse morto porque ia pronunci-lo como tal. Penso que morreu disse, olhando para a enfermeira. Esta, no entanto, principiara a afastar-se. Provavelmente pensava que eu no passava de um inepto. Este o primeiro paciente, daqueles que so diretamente colocados minha guarda, que me morre disse-me, voltando de sbito para junto de mim. As mos pendiam-lhe, inertes, ao lado do corpo. S passado um bocado que percebi que estava a implorar-me que fizesse alguma observao sobre o Demerol, que lhe dissesse que a quantidade que lhe dera no causara a morte do homem. Mas como ia eu saber o que o tinha morto? No conseguia afastar da mente a imagem de um filme que uma vez vira, em que um cadver se erguia, lentamente, da laje da morgue. Estava a ficar furioso comigo mesmo, mas no podia deixar de o auscultar novamente. Voltei a colocar o estetoscpio. Sentia, na noite tranqila, o som da minha prpria respirao a ecoar-me nos ouvidos. Morte, morte,

fria, silenciosa, sussurraram os centros racionais do meu crebro. Senti obrigao de dirigir um reparo simptico enfermeira. Deve ter sido muito suave e fcil. Morreu dignamente. Estou certo de que lhe ficou muito grato pelo Demerol. Grato? Que observao mais esquisita... Ali estava eu, debatendo-me com as minhas prprias incertezas, mal conseguindo manter-me ao de cima, e ainda tentava persuadir algum a acalmar-se. Fazendo os possveis por ultrapassar a vontade de lhe tomar novamente o pulso, tapei-lhe o rosto com o lenol. melhor chamarmos o mdico dele disse, saindo do quarto. O mdico particular do falecido atendeu ao telefone, to rapidamente que a sua voz deu-me a sensao de que levara com um pano molhado na cara. Disse-lhe quem era e a razo que me levava a ligar para ele. timo, timo. Avise a famlia e, pelo sim pelo no, mande fazer uma autpsia. Quero ver o que aconteceu ligao que estabeleci entre a bolsa do estmago e o intestino delgado. Foi uma anastomose feita apenas com uma camada nica de suturas. Penso que a tcnica da camada nica , realmente, a melhor; faz-se com muito maior rapidez. Seja como for, o velhote no deixou de ser um caso curioso, sobretudo porque viveu bastante mais tempo do que espervamos. Portanto arranje-lhe uma autpsia, est bem, Peters? Okay! Vou tentar. Voltando a remeter-me ao silncio dos meus pensamentos depois da jovial conversa unilateral, tentei reorganiz-los. O mdico particular queria uma autpsia. timo! Formidvel. Onde estava o nmero de telefone da famlia? Um brao feminino estendeu-se, por cima do meu ombro, apontando para uma linha no quadro de registros: Parente mais prximo: filho. Que situao aborrecida, realmente. O idiota de um interno qualquer a telefonar para casa das pessoas a meio da noite. Tentei pensar numa expresso neutra capaz de transmitir o fato sem empolar o seu significado. "Morreu", "expirou"... no: "faleceu." Do outro lado da linha, atenderam o telefone com um jovial ol! Daqui fala o doutor Peters e... Lamento inform-lo de que seu pai faleceu. Fez-se um longo silncio; talvez ele no me tivesse compreendido. At que a voz voltou a fazer-se ouvir. Era de esperar. H mais uma coisa... Tinha a palavra autpsia na ponta da lngua. Sim? Bem... no interessa. Falaremos do assunto mais tarde; no entanto devo pedirlhe que passe pelo hospital ainda esta noite. A enfermeira estivera a fazer-me sinais frenticos para acrescentar aquele pedido. Muito bem, iremos a. Obrigado. Lamento muito e obrigado. Uma enfermeira mais velha materializou-se na obscuridade do corredor e metendo-me uma srie de documentos oficiais mesmo em frente do nariz, indicou-me onde devia assinar e indicar a hora do falecimento. Tentei lembrar-me da hora a que o homem tinha morrido. Mas que no me lembrava mesmo. A que horas expirou ele? perguntei, olhando para a enfermeira, que se colocara minha direita.

 Expirou na altura em que o declarou morto, doutor. Aquela enfermeira, a responsvel pelos turnos da noite, era conhecida pela sua retrica enrgica e pela opinio preconceituosa que tinha em relao aos internos. Mas nem mesmo o tom cido da sua voz e o bvio zombar da minha ingenuidade conseguiam apagar da minha mente a cena do homem morto a levantar-se da laje. Chame-me quando a famlia chegar disse-lhe. Sim, doutor, e obrigada. Bem, obrigado retribu. Anda toda a gente a agradecer a toda a gente. O meu cansao era de tal ordem profundo que as mais pequenas coisas assumiam um carter excessivo e absurdo. No conseguira libertar-me ainda da vontade de ir auscultar novamente o homem, mas, fazendo um esforo, passei ao largo do quarto onde ele se encontrava; as enfermeiras podiam estar a ver. Porque continuava eu a preocupar-me com a possibilidade de ele acordar? Ser que o homem como pessoa no importava? Sim, claro, mas eu no o conhecia. Parei no patamar das escadas. certo que era um estranho, mas no deixava de ser uma pessoa. Um velho de setenta e um anos, sem dvida, mas um homem, um pai, um ser humano. Comecei a descer as escadas. No podia enganar-me a mim mesmo. Se ele acordasse eu passaria a ser o bobo do hospital. A confiana nas minhas aptides profissionais estava a chegar muito lentamente; isso acabaria com ela. De volta ao elevador, tentei recordar-me da altura em que tinha mudado, mas apenas me ocorreram cenas, possivelmente pequenos pontos de viragem, tais como a minha primeira visita enfermaria do hospital durante a estada na escola mdica e da menina de onze anos que, da sua cama, olhava esperanada para ns. Sofria de fibrose cstica, doena que quase sempre fatal. Ao ouvir o pessoal da casa a discutir o caso, sentira-me desfalecer, incapaz de olhar para o rosto da pobre criana. "Talvez haja hiptese de a mantermos viva at ao fim da adolescncia", dissera o mdico de servio ao afastar-se. Nesse momento, quase optei por me tomar fundeiro. A porta do elevador abriu-se. Algures, fosse de que maneira fosse, as minhas reaes tinham mudado. Agora, o que me preocupava era que algum pudesse acordar na morgue e arruinar a minha imagem, ridicularizando-me. Pois bem, no restavam dvidas de que me modificara nitidamente para pior, mas que podia eu fazer? De volta ao meu quarto, a cama rangeu sob o meu peso. Na semi-obscuridade, recordei todos os detalhes do cadver enfezado. Ralar-se-iam os outros internos daquela maneira? No fazia a mnima idia, mas tambm no sabia o que lhes passava pela cabea. Pareciam to convencidos; to certos, mesmo quando no tinham o direito de o estar. Antes de entrar para a escola mdica, imaginara a crise do internato mdico diferente: algo mais nobre. O problema andara sempre roda da perda de um paciente meu depois de uma longa luta, a angstia de uma vida perdida. Mas ali estava eu, cheio de suores frios s de imaginar a possibilidade de um doente que nem sequer era meu poder comear novamente a respirar; e o que me preocupava era o fato de ser capaz de me abstrair do aspecto humano da questo. Faltava um quarto para as dez. Inclinei-me para o telefone, peguei no auscultador e liguei para o alojamento das enfermeiras. Naquele momento necessitava de algum ao p de mim, de algum que me provasse que a vida continuava. Ligue-me menina Stevens, por favor. Jan, podes vir ter comigo? No, no h nenhum problema. Claro, traz as mangas. isso mesmo, estou de servio. Distingui algumas estrelas por entre as cortinas. Iniciara o internato h duas semanas, as duas semanas mais longas dos meus vinte e cinco anos, o culminar de tudo, liceu, faculdade, escola mdica. Como eu sonhara com ele! Agora quase todas as

pessoas que conhecia se encontravam no abenoado estado de internato, situao que era complicada e quando no era complicada era uma grande confuso. "Pois bem, Peters, l conseguiu chegar ao fim. Desejo apenas lembrar-lhe que muito fcil cair em desgraa, mas quase impossvel voltar ao ponto de partida." Esta a citao que me fora particularmente dirigida pelo meu professor de cirurgia quando soube que me decidira a fazer o internato num centro no universitrio, longe da torre de marfim do circuito mdico, em plena selva. E na opinio mdica do continente, no podia haver selva pior do que o Hava. Em termos do imutvel sistema de colocaes, por computador, dos internos, eu fora destinado a fazer o internato em qualquer dos estabelecimentos da Ivy League. Nessa escala de valores, era certo que ficara a perder. Mas vendo bem as coisas, no podia deixar de fazer aquela opo. Durante o tempo passado na escola mdica tivera oportunidade de ver que ser mdico significava abdicar da prpria personalidade em favor do sistema, semelhana de um pedao de madeira numa mquina de lascar. Quando chegasse ao fim, a mquina ter-me-ia alisado as arestas, tomando-me provavelmente vendvel, cheio de sabedoria. Mas ao mesmo tempo em que as lascas fossem saindo, com elas desapareceriam os traos "improdutivos" da personalidade: empatia, humanidade, o instinto para me preocupar com os outros. Tinha de evitar o desencadear dessa situao, se no era j tarde de mais. De modo que, no ltimo minuto, saltara para fora da mquina. "Pois bem, Peters, l conseguiu chegar ao fim." A perda do velhote enfezado deixara-me com os nervos flor da pele e saltei da cama mesmo antes de Jan bater porta. Graas a Deus, no era o telefone. Tinha medo dele. Jan, como bom ver-te, com mangas e tudo! Era precisamente de mangas que estava a precisar. Claro que podes acender a luz. Estava apenas aqui sentado, a pensar. Est bem, deixa-a apagada. Facas e um prato? Queres comer essas mangas j? No me estava a apetecer comer aquilo, mas no valia a pena arranjar uma discusso por causa da fruta e, de qualquer maneira, ela tinha um aspecto delicioso com a luz difusa que lhe arrancava reflexos dourados do cabelo, e cheirava como se tivesse acabado de sair do banho, mais docemente do que qualquer perfume. Mas o que Jan tinha de mais bonito era a voz. Talvez ela se dispusesse a cantar um pouco para mim. Fui buscar um prato e duas facas e sentamo-nos no cho a comer as mangas. A princpio no falamos e aqueles modos reservados constituam um dos motivos por que gostava dela. Tambm era extremamente agradvel vista, apesar de terrivelmente jovem, conforme suspeitava. At quela noite j tnhamos sado juntos duas vezes, sem que, no obstante, tivesse havido qualquer outro tipo de aproximao entre os dois. No importava. Bem, no era bem assim, at porque estava interessado em conhec-la melhor, especialmente naquele momento. Havia algo de potico nos seus cabelos loiros e nas feies midas; precisava urgentemente de estabelecer um contacto mais profundo com ela. A manga era pegajosa. Descasquei-a toda e fui ao lavatrio passar as mos por gua. Quando voltei para junto dela, no estava a olhar para mim e a luminosidade que entrava pela janela traava-lhe faixas prateadas no cabelo. Inclinara-se sobre um brao, de pernas encolhidas contra o corpo. Por pouco no lhe pedi que cantasse Try to Remember, mas no o fiz, provavelmente porque ela teria aceite. Satisfazia-me quase sempre qualquer pedido que lhe fizesse para cantar. No entanto, se ela comeasse, naquele momento, a faz-lo, todas as pessoas que se encontravam naqueles alojamentos

a ouviriam. De fato, era at provvel que nos estivessem a ouvir comer as mangas. Ao sentar-me a seu lado, virou a cabea para mim e pude ver-lhe os olhos. Esta noite aconteceu-me uma coisa confidenciei-lhe. Eu sei disse ela. Aquela observao quase me fez parar. Eu sei. Sabia uma ova, e eu no s tinha a certeza de que ela no s no sabia como nem eu ia ser capaz de lho explicar. De qualquer modo, decidi-me a prosseguir. Declarei que um pobre velhote esqueltico que sofria de cancro morreu e agora estou cheio de medo de que o telefone toque e seja a enfermeira a dizer que ele, afinal de contas, est vivo. Virando a cabea para o outro lado, desviou os olhos dos meus. Disse ento a coisa certa. Disse que era engraado! Engraado? No achas ento que uma perfeita loucura? Bem, sim, acho que uma loucura, mas que tambm no deixa de ter a sua piada. Imagina que uma pessoa morreu esta noite e que a nica coisa que me preocupa a possibilidade de ela ainda estar viva e de eu me poder transformar num motivo de grande chacota. Ela concordou que essa situao no deixaria de me levar a ser gozado por toda a gente. A sua anlise do assunto ficou-se por a. Insisti. No achas que estranho eu encarar de forma to estpida o fim de algum? Aquilo era demasiado para ela, penso eu, porque logo a seguir perguntou-me se no gostava de mangas. Claro que gostava, mas naquele momento no me apetecia; at lhe ofereci um bocado da minha. Apesar das pequenas desincronizaes, sentia-me deveras melhor, como se a tentativa de transmitir os meus pensamentos me tivesse afastado o velhote franzino da idia. Saberia Jan cantar Aquarius? Aquela rapariga fazia sentir-me feliz com a sua simplicidade. Rodeei-a com um brao e ela enfiou-me um pedao de manga na boca com um gesto cmico, derrubando, sem querer, a barreira que, entretanto, se erguera entre ambos. Pois bem, no falaramos do meu velho esqueltico, pensei. Beijei-a e quando me apercebi de que ela estava a retribuir-me o beijo, veio-me idia de como seria agradvel fazer amor com ela. Voltamos a beijar-nos e ela encostou-se a mim, fazendome sentir o calor tpido e a macieza do seu corpo. Ainda tinha as mos pegajosas da manga, mas isso no me impediu de lhe afagar as costas, interrogando-me se ela estaria disposta a fazer amor comigo. A perspectiva afastou tudo o mais da minha cabea. Era ridculo faz-lo no cho e estava a estudar a melhor maneira de chegarmos cama quando me apercebi de que ela no levava nada por baixo do vestido fino; estivera demasiado ocupado a acariciar-lhe as costas para reparar nesse pormenor. Ela sentiu o meu desejo de irmos para outro stio e pusemo-nos os dois de p ao mesmo tempo. No momento em que me preparava para lhe tirar o vestido, ela deteveme, pousando-me as mos nos braos. Em seguida desabotoou as costas do vestido e saiu de dentro dele, radiosa sob a luminosidade suave. Talvez no tivesse entendido o problema que me assediava, mas no havia dvida de que me desanuviara a cabea. Toda a poesia com que costumava idealiz-la estendeu-se tambm aos seus seios. Tirei a bata, deixei o estetoscpio cair no cho e precipitei-me para ela, com medo de que desaparecesse. O telefone tocou. A magia do momento fora quebrada e l tinha eu o velho esqueltico de volta minha vida. Jan deitou-se na cama enquanto eu ficava a olhar para o telefone. Dez segundos antes sentira a cabea desanuviada, no se me pondo seno um

objetivo bem definido; agora o caos voltara a imperar e de entre a confuso entretanto gerada emergiu um pensamento: o homem recomeara a respirar. Deixei o telefone tocar trs vezes, na esperana de que desistissem. Quando atendi, era a enfermeira. Doutor Peters, a famlia chegou. Obrigado. No demoro. Senti-me invadir por uma sensao de alvio; era apenas a famlia. O velhote continuava morto. Afaguei as costas de Jan; a suave calidez da sua pele desviava-me a ateno e a curva graciosa das ndegas no me deixava pensar claramente na melhor forma de pedir licena famlia para mandar fazer uma autpsia ao falecido. Encontrar a bata branca foi fcil, mas s descobri o estetoscpio quando tropecei nele. Jan, tenho de ir ao hospital num instante. No devo demorar muito. Pestanejando, sa do calor do meu quarto para a luz fluorescente do corredor, a caminho, mais uma vez, da provao que era o elevador de porta castanha. H algo de agoirento na obscuridade e no silncio de um hospital a horas mortas. J eram dez e meia e o edifcio entrara j na rotina noturna, uma espcie de atividade a meio gs onde imperavam as luzes suaves e as vozes sussurradas. Caminhei ao longo do comprido corredor em direo ao posto das enfermeiras, passando em frente dos quartos assinalados apenas pelo brilho discreto das luzes de presena. Ao fundo via duas enfermeiras a conversar, embora no me chegasse qualquer rudo. Daquela vez o corredor parecia nunca mais acabar, como um tnel, e a luminosidade que despontava ao fundo do mesmo fez-me lembrar a pintura de Rembrandt: reas de luz intensa rodeadas de sombras ferruginosas. Sabia que a tranqilidade podia ser quebrada a qualquer momento, levando-me a correr para fazer face a alguma crise, mas, de momento, aquele mundo mantinha-se calmo. Autpsia. Tinha de pedir uma autpsia. Recordei-me da primeira que fizera, no segundo ano da escola mdica, no incio do curso de patologia, numa altura em que ainda pensava que a medicina podia curar toda a gente. "Alinhem-se aqui, rapazes, em volta da marquesa." Parecamos todos iguais dentro das nossas batas brancas, marchando como meninos de escola bem-comportados, o que, suponho, correspondia realidade. A seguir avistara o cadver, no o que amos examinar, mas outro na marquesa ao lado, destinado autpsia seguinte. Tinha a pele cinzento-amarelada e viase-lhe uma mancha de herpes zoster1 que se estendia no brao direito, passando-lhe pelo peito at meio do ventre. A herpes uma terrvel doena de pele caracterizada pelo aparecimento de vastas leses cobertas de crostas. O seu efeito visual era duplamente chocante naquele ambiente. A mulher jazia numa pedra de cimento manchada de mil tons diferentes. A gua jorrava debaixo e ao lado do corpo, correndo ao longo de canais longitudinais, afastados do corpo, cerca de sete centmetros e indo cair num escoadouro situado ao fundo, por onde desaparecia com um rudo de suco obsceno. Tinha uma etiqueta amarrada ao brao direito, onde se viam uns rabiscos a lpis. O cabelo era fino e quebradio. Mas o que mais me impressionou foi o tom da pele. Devia ter uns trinta anos, quase a minha idade, pensei. A viso daquele corpo no me fizera sentir fisicamente agoniado, como acontecera a alguns dos meus colegas, mas mentalmente derreado. Ela estava inegavelmente morta, indiscutivelmente morta e, no entanto, se no fosse a cor, poderia dizer-se que parecia viva. Morta, viva, morta... aquelas palavras, perfeitamente antagnicas, pareciam fundir-se na minha cabea. O corpo que dissecara no meu primeiro ano de anatomia no tinha a menor parecena com aquele. Estava
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Herpes zoster: Doena vulgarmente conhecida por zona. (N. da T.)

morto e sobre isso no restava a menor dvida. Dissera a mim mesmo que o ambiente que tornava tudo aquilo to desagradvel, a sala velha e escura e a luz fraca que mal conseguia penetrar pelas janelas encardidas. Que diabo queres tu, Peters? Um esquife de veludo, velas e rosas? Mas no era a paciente que nos levara ali. Esgueirando-me por entre as batas brancas agrupadas em redor da outra marquesa, consegui entrever rgos carnudos e ouvir os sons gorgolejantes que acompanhavam as incises que o professor ia fazendo para demonstrar a sua tcnica. No consegui ver o suficiente para tirar proveito da lio e, fosse como fosse, o que me interessava estava atrs de mim. Todos os outros pareciam transfigurados pela viso dos rgos que lhes iam sendo apresentados; eu no conseguia desviar o olhar do cadver errado. No fora minha inteno tocar-lhe, o que acabei por fazer, piorando as coisas, pois verifiquei que ainda estava morno. A sensao de choque desaparecera, restando apenas o medo, medo que me ficara no pelo fato de a ter tocado mas por ter constatado, muito simplesmente, que a diferena entre a vida e a morte era uma questo de tempo e de sorte. Nenhum desses elementos tinha j importncia para ela. Assustado tambm, porque ela fora uma mulher jovem, possivelmente desejada e com todo um mundo de possibilidades sua frente, no passando agora de um cadver amarelado que jazia sobre uma laje de cimento manchada, num asqueroso compartimento subterrneo. Uma coisa era lidar com o sexo quando este estava sintonizado vida, ao calor, energia. Mas com aquilo, no. Ocorreram-me inmeros pensamentos alguns dos quais relacionados, inegavelmente, com as minhas prprias recordaes do amor sexual. Mas tudo aquilo fora h muito tempo e a muitos quilmetros dali. Naquele momento havia que lidar apenas com o problema da autpsia do velhote. A famlia est ali, doutor, no sof disse uma das enfermeiras, quando cheguei rea da recepo. Duas pessoas pareceram, de repente, materializar-se do nada. Ao aproximarmo-nos, a palavra "autpsia" trouxe-me memria os cabelos quebradios e a herpes zoster. Talvez devesse chamar-lhe post mortem; soava melhor. Lamento muito. No se preocupe, j estvamos espera. Gostaramos de lhe efetuar uma autpsia. Afinal a palavra sara naturalmente. Com certeza. o menos que podemos fazer. O menos que podemos fazer? Admirei-me que sentissem que tinham de fazer, sequer, alguma coisa. Ficara cheio de problemas por ter sido eu a telefonar-lhes a meio da noite e a dar-lhes a notcia do falecimento do pai e naquele momento sentia-me ainda mais culpado por ter de lhes pedir autorizao para uma autpsia. Mas, aparentemente, tambm eles se sentiam culpados. Como a causa da morte no podia ser atribuda a ningum, todos partilhavam do sentimento de culpa. O menos que podamos fazer? Parecia-me que estava a complicar demasiado uma simples observao. Que outra reao esperara eu deles? Acusaes? Acessos de raiva? A maior parte das pessoas, conforme viria a aprender, fica completamente varada perante a morte e adota um comportamento normal, civil, instintivo. Ns encarregamo-nos do resto da papelada, doutor ofereceu-se uma das enfermeiras. Obrigado disse. Ficamos-lhe muito gratos pelo trabalho que teve, doutor disse o filho quando sa do posto das enfermeiras. De nada.

Gente simptica, pensei ao afastar-me; e que felizardo eu sou por eles no serem capazes de me ler os pensamentos. At mesmo naquele momento tinha vontade de ir sentir o pulso ao cadver do velho. Se por acaso eles viessem a descobrir o meu medo secreto, ficariam zangados ou, muito simplesmente, chocados? Provavelmente chocados a princpio e, em seguida, zangados. Mas que pensariam se o pai acordasse na morgue? A idia fez-me sorrir, porque, como era evidente, quase ningum ia agora para a morgue. A maior parte dos mortos seguia para casa, onde se realizavam os funerais. Aquelas idias eram o resultado de demasiados programas de televiso e de filmes medocres. Era um idiota, matutei, sobretudo quando estava cansado, e naquele momento encontrava-me exausto. Doutor, tem aqui uma chamada para si. A voz chegou-me j eu ia quase ao fundo do corredor escuro. Devia ser Jan, pensei, lembrando-me de repente de quo bela parecera depois de tirar as roupas, no meu quarto. A imagem dela fundiu-se com a sala de autpsias da escola mdica, o cadver amarelado e a herpes zoster no peito deste. Mas a chamada no era de Jan: era da Enfermaria A; mais uma enfermeira frentica. Algo sobre a tenso de algum que estava a aproximar-se de zero. O filho do velho franzino ainda ali se encontrava. Reparei que olhava para mim uma ltima vez e por alguns instantes, o que me fez sentir, subitamente, orgulhoso por estar ali e, logo a seguir, um palerma por estar com semelhantes pensamentos. Correndo pelo corredor oposto quele por onde viera, considerei que a minha situao era tudo menos gloriosa. Tenso sangunea? O conhecimento que tinha da questo consistia numa definio zelosamente decorada: "A presso venosa a presso que se faz sentir no interior das principais veias do corpo." Para alm dela, quase nada sabia. Apesar de tudo, no hesitei um minuto, como se fosse portador da soluo. Era o meu dever. A pouca coragem que conseguira reunir desvaneceu-se ao ver as enfermeiras que enchiam o quarto de Marsha Potts. Esta era considerada a tragdia do hospital. Fora precisamente no primeiro dia da minha estada no hospital h duas semanas atrs, que, ao fazer a ronda, entrara no quarto em que ela se encontrava, onde lera a sua histria clnica. Fora conduzida clnica por apresentar sintomas de lcera e esta depressa ali fora detectada, enorme, por meio dos raios X. Todos ficam muito felizes sempre que se consegue ver uma lcera. O radiologista estava satisfeito porque obtivera boas provas e os cirurgies ficaram extasiados, cumprimentando-se uns aos outros, pela argcia dos seus diagnsticos, comeando a afiar os bisturis. Foi uma ocasio esplndida. Normalmente tambm o era para o paciente, mas tal no aconteceu com Marsha. Os mdicos tinham-lhe feito uma gastrectomia, removendo parte do estmago e fechando a extremidade do intestino delgado que normalmente parte do estmago. Depois escolheram uma zona, alguns centmetros abaixo do intestino delgado onde, depois de abrirem uma concavidade, coseram uma pequena bolsa feita com as partes aproveitveis do verdadeiro estmago, dando assim a Marsha um novo, se bem que diminuto, recipiente estomacal. Esta operao, conhecida pelo nome de Billroth II, requer um enorme trabalho de incises e suturas, sendo, conseqentemente, muito popular entre os cirurgies. Marsha suportara razoavelmente a operao (pelo menos todos o supunham) at ao terceiro dia, quando a ligao entre o intestino e a pequena bolsa se rompeu. Este fato permitira que os sucos pancreticos e gstricos escorressem para o interior do abdmen e ela comeara a digerir-se a si prpria. As enzimas digestivas comeram-lhe literalmente os tecidos que conduziam inciso e o seu abdmen abriu uma ferida de escoamento com cerca de trinta centmetros de dimetro. As enfermeiras mantiveram-na coberta de comida para beb, na esperana de conseguirem absorver parte do suco pancretico e

neutralizarem as enzimas. H semanas que o odor ptrido vinha enjoando toda a gente. Mas para mim, o pior aspecto daquele caso era o fato de saber que no sabia como resolv-lo. Nem de longe. Quando entrei no pequeno quarto onde a senhora se encontrava isolada, a situao estava o pior possvel. A sua pele apresentava um terrvel cinzento-amarelado de ictercia e as mos pendiam-lhe, sem foras, ao lado do corpo. A enfermeira parecia aliviada por um mdico ter aparecido, mas, em vez de eu voltar a ganhar confiana com esse fato, s consegui pensar: "Oh, palerma, se pudesses ver o que se passa dentro da minha cabea a nica coisa que verias era um enorme vazio!" Marsha Potts sofrera, aparentemente, um colapso fsico total. Folheando as folhas apensas ao quadro de registros com os vrios dados e resultados laboratoriais, tentei entender minimamente o que se estava a passar, ao mesmo tempo em que ganhava algum tempo para me recompor. Na parede, atrs da cama, estava uma enorme barata negra, fato que no me incomodou; tratava-lhe da sade mais tarde. Era desagradvel pensar que a vida, independentemente da forma em que se apresentasse, estava dependente dos meus pensamentos. No obstante, pequenas informaes tinham j comeado a fluir ao meu crebro. O pulso, sim. Verifiquei-o e descobri que estava forte, com setenta e duas batidas por minuto, quase normal. timo! Ora bem, se a presso venosa baixara para zero quando o corao parecia estar a trabalhar to bem, isso devia significar que as reas venosas no estavam a receber sangue suficiente. Pelo menos, era o que eu pensava. A ltima coisa que desejava fazer era remover a enorme compressa ensopada que ela tinha sobre o abdmen. Gotas de transpirao rolaram-me pelo rosto. Fazia um calor dos diabos ali dentro. Tenso sangunea. A enfermeira dissera que estava a 11O/9O. Como podiam a tenso sangunea e a pulsao serem to boas sem presso venosa? Na ausncia desta o corao no enchia e sem esta operao nada sairia dele, da a inexistncia de tenso sangunea ou pulso. Era assim que as coisas se deviam passar, mas, naquele caso, obviamente, no era o que estava a acontecer. Os professores de fisiologia que fossem dar uma volta. No laboratrio de fisiologia da escola mdica tinham um co com uma srie de tubos ligados ao corao, artrias e veias. Ali tudo funcionava s mil maravilhas, como habitualmente acontecia em qualquer laboratrio. Quando os professores reduziam o acesso de sangue ao corao do animal, deixando cair a presso venosa, a presso sangunea seguia o mesmo destino, diminuindo rapidamente. Era automtico e reproduzvel, como se o co fosse uma mquina. Marsha Potts no era nenhuma mquina. Apesar disso, por que motivo no funcionava como os animais do laboratrio, em vez de me apresentar toda aquela trapalhada insolvel e complicada? Nem sequer sabia por onde devia comear a examin-la. No se verificava nenhuma sudao na sua pele devido reteno de fludos, com exceo das costas; zona onde, habitualmente, se formavam edemas devido longa permanncia do corpo de barriga para o ar. Marsha jazia de costas h cerca de trs meses. Inclinei-lhe a mo esquerda para trs e esta deu um safano para a frente. Fantstico. Ela sofria de insuficincia heptica. Quando o fgado falha, o paciente desenvolve um curioso reflexo: se lhe inclinarmos as mos em direo ao pulso, estas saltam para a frente como as de uma criana a dizer adeus. Experimentei uma certa alegria por ter descoberto um dado positivo e fui consultar novamente o quadro de registros. Aquele sintoma no fora mencionado. No sabia grande coisa de presso venosa, mas podia escrever pginas e pginas sobre a insuficincia heptica, anomalia que, at ali, ainda s encontrara uma vez. Repeti o gesto com a outra mo e o reflexo voltou a manifestar-se. Isso significava que aquela mulher estava em muito mau estado.

O fato que, enquanto deambulava pelas cogitaes acadmicas do meu diagnstico, ela estava a morrer minha frente. Na realidade, ela podia ser considerada virtualmente morta; no entanto, sob o ponto de vista tcnico, continuava viva. Tinha amigos e familiares que pensavam nela como um ser vivo. Conseguiria pensar? Provavelmente, no. Ocorreu-me, por um momento apenas, que mais valia que estivesse morta, mas apressei-me a afastar esse pensamento. Como podemos ns saber se a morte a soluo mais aconselhvel para uma pessoa? impossvel, pura presuno. O caso de Marsha Potts estava a tornar-se confuso a nvel fsico. A mulher com a herpes no peito parecera estar viva quando, de fato, morrera. Aquela que se encontrava minha frente no pequeno quarto abafado, vivia, mas... Que lhe teriam dado na intravenosa? Que quantidade de soro de manuteno tomou nas ltimas vinte e quatro horas? perguntei enfermeira. Est tudo aqui na folha de entradas e sadas, doutor. Foram cerca de quatro mil cc. Quatro mil! Tentei no parecer surpreendido, embora me parecesse excessivo. Qual foi a composio? Bem, na maior parte tratou-se de soro fisiolgico, mas tambm levou um pouco de Isolito M respondeu. Que raio seria o Isolito M? Nunca tinha ouvido falar naquilo. Virando a garrafa cujo contedo estava a ser aplicado por via intravenosa, li Isolito M e, um pouco mais ao lado, "sdio, cloridro, potssio, magnsio... No precisava de ler mais nada; tratava-se de um soluto de manuteno. A folha de entradas-sadas era uma amlgama aparentemente desconexa de nmeros, fatos, que at me agradava. Desde o incio da escola que me sentia fascinado pelo balano de fludos e eletrlitos, to fascinado que s vezes dava mais ateno ao sdio do que ao doente. Os dados relativos quela paciente mostravam a existncia de um equilbrio entre as entradas e as sadas, excetuando o que ficara retido na enorme compressa que cobria a ferida. Tinham-lhe aplicado uma bomba de suco que extraa o lquido do fundo da ferida abdominal, o que no parecia muito eficaz. Tudo indicava que tambm as substncias alimentares que ela estava a receber no lhe faziam grande proveito. Eram conduzidas ao estmago por meio de um tubo que lhe entrava pelo nariz; como os prprios sucos digestivos tinham formado uma fstula, ou passagem, entre o estmago e o clon, o alimento estava, na realidade, a ir diretamente do estmago para o intestino grosso e deste para o reto, por onde saa praticamente intacto. Embora no parecesse desidratada, a urina apresentava sinais evidentes de infeco sob a forma de sangue, blis e pequenas partculas de matria orgnica que flutuavam no interior do saco ligado ao cateter. Perante tal quantidade de impurezas, a nica maneira de saber se a urina estava demasiado centrada era testar a sua gravidade especfica. No devemos ter nenhum hidrmetro neste andar, pois no? A enfermeira desapareceu imediatamente, aliviada por lhe ter dado uma tarefa para fazer, independentemente do mrito potencial da mesma. Continuava a no encontrar explicao para a presso venosa de Marsha. Prossegui o exame, tentando descobrir, debalde, algum indcio de deficincia cardaca que pudesse explicar o fenmeno. Parecia que o inevitvel se aproximava: ia ter de dar uma vista de olhos ferida. Referia-se a isto, doutor? A enfermeira entregou-me um frasco com papis destinados a testar o grau de acar no sangue.

 No, quero um hidrmetro, um pequeno instrumento que se pe a flutuar na urina. Parece-se com um termmetro. A enfermeira voltou a desaparecer enquanto eu ficava a ler o rtulo do frasco que me tinha dado. De qualquer modo, podia determinar o nvel de acar; no havia nenhuma razo para que o no fizesse. isto, doutor? Exatamente. Peguei no hidrmetro e tirei o cateter do gancho. Sustendo a respirao para no sentir o cheiro, deitei num pequeno recipiente a poro que me pareceu suficiente para fazer flutuar o instrumento. Cuidadosamente, mergulhei-o no lquido, mas no consegui obter nenhuma leitura. O maldito teimava em ficar encostado s paredes do vaso em vez de flutuar livremente como se supunha que devia acontecer. Segurando-o com a mo esquerda, bati ligeiramente no vidro com o n do meu indicador direito, tentando libertar o instrumento. A nica coisa que consegui foi derramar um pouco mais de urina no brao. Depois de acrescentar mais um bocado, consegui, finalmente, fazer com que o hidrmetro ficasse a balouar. A gravidade especfica encontrava-se dentro dos valores habituais; podia at mesmo dizer-se que estava absolutamente normal, o que demonstrava que Marsha no estava desidratada. Por alguma razo o pessoal mdico se acanhava sempre de referir a palavra "normal" sem a complementar com um qualificativo; era sempre "dentro dos valores normais" ou "essencialmente normal". Marsha voltou a gemer. Ao suspirar fundo, fui invadido pela sinfonia de odores que enchiam o quarto. Tanto quanto me lembrava, nunca fora capaz de suportar cheiros desagradveis. Um dia, na escola primria, um dos meus colegas vomitara e eu no fizera mais nada seno seguir o seu exemplo, levado por um reflexo de simpatia, assim que o cheiro me chegara s narinas. Na escola mdica, apesar das trs mscaras e de toda a espcie de truques mentais, ficara conhecido por me ir abaixo a meio das aulas prticas no laboratrio de patologia. Continuando a matutar nas causas que poderiam justificar as condies fsicas em que Marsha Potts se encontrava, lembrei-me da possibilidade de ela ter bactrias gram-negativas na corrente sangunea; quem sabe se no at uma infeco bacteriana como a pseudomonas, por exemplo? Esta afeco conduz, muitas vezes, a uma doena denominada de "sepsis gram-negativa", uma das anomalias mais terrificantes em medicina. Num minuto a paciente est muito bem; no minuto seguinte estremece e tem uma recada espetacular. Talvez a explicao do problema da presso venosa daquele caso residisse a. Mas no observava indcios de sepsis. Marsha comeara a gemer baixinho, de forma contnua, cada gemido como que uma nova acusao erguida contra mim. Por que no conseguia eu dar com o problema? Dirigindo-me para o outro lado da cama, chamei a ateno da enfermeira para a barata, que se movera alguns centmetros. Dando um pulo, saiu a correr do quarto para voltar, logo em seguida, com uns quantos metros de papel higinico, que depressa fizeram desaparecer o inseto. Bicharocos daqueles no me incomodavam; no tanto como os ratos do hospital em que trabalhara, em Nova Iorque. Ali, as pessoas que se encarregavam dos trabalhos de limpeza diziam que tinham conhecimento do problema e estavam em vias de o resolver, coisa que eu nunca chegara a ver. Talvez a torneira de trs sadas no estivesse a funcionar bem. Quando a abri a fim de verificar a presso venosa, esta no se deslocou do zero. Voltando a fech-la, enchi o recipiente de soro de manuteno, ligando-o depois paciente. O nvel permaneceu elevado durante alguns segundos, antes de descair rapidamente e, logo a seguir, mais lentamente, como a enfermeira disse que aconteceria, primeiro para 10 cm

e, finalmente, para zero. Aquele instrumento era um tanto complicado, sobretudo as torneiras de trs sadas. Nunca fora capaz de as regular corretamente, nem nunca sabia exatamente que boto rodar para que ligao. Pedi enfermeira que me desse uma seringa cheia de soro fisiolgico e desprendesse todo o emaranhado de tubos que, atravs do cateter, estabeleciam ligao com a veia femural, logo abaixo da virilha. Marsha andava a ser alimentada por via venosa h tanto tempo que as veias dos braos j no estavam em condies, o que levara os mdicos a comearem a utilizar-lhe as das pernas. Para minha surpresa, no vi sangue nenhum da veia subir pelo tubo do cateter, nem mesmo depois de a presso exercida pelo soro de manuteno ter desaparecido. J tinha introduzido 10 cc de soro fisiolgico no cateter, com a seringa, quando senti uma resistncia definida; logo em seguida e de repente, o lquido comeou a correr mais livremente. Ao puxar o mbolo da seringa, vi aparecer um fiozinho de sangue no cateter. Verificara-se, obviamente, uma obstruo na extremidade do cateter, oriunda do interior das veias de Marsha, possivelmente um cogulo de sangue, que atuara como um tampo que no impedia a entrada do soro de manuteno, mas impedia a sada fosse do que fosse. Informei a enfermeira do que acontecera, omitindo apenas a possibilidade de o cogulo se encontrar naquele momento nos pulmes de Marsha. Mas se assim fosse porque ele era, felizmente, muito pequeno. Voltando a pendurar o recipiente, enchi-o e regulei-o em relao doente. Depois de me certificar de que a presso venosa estava normal e assim iria permanecer, restabeleci a entrada do soro de manuteno. Desculpe, doutor, no sabia disse a enfermeira. No tem de pedir desculpa, no houve problema. Sentia-me satisfeito por ter resolvido uma das dificuldades, apesar de pequena. Considerando que comeara por no ter a mnima idia do que devia fazer, o feito parecia notvel, embora o estado da paciente no se tivesse alterado. Esta voltou a gemer, crispando os lbios. Na verdade, no passava j da sombra do que fora e a minha conscincia desse fato apagou qualquer sentimento e proeza que pudesse estar a sentir. Naquele momento s me apetecia desaparecer dali, o que no viria a acontecer. Doutor, j que est aqui, no se importa de dar uma olhada ao senhor Roso? Os soluos dele no deixam ningum dormir. Enquanto acompanhava a enfermeira pelo corredor em direo enfermaria onde Roso se encontrava, reparei como a construo daquele hospital era diferente da daqueles em que j estivera. As suas paredes comunicavam diretamente com o exterior, pelo menos na parte mais baixa e antiga, e a relva estendia-se mesmo at a beira do piso do corredor. Havia uma enorme rvore no meio do ptio, que baloiava e cuja folhagem se agitava sob a ao do vento. As reas verdes encontravam-se impecavelmente ajardinadas e entremeadas de enormes rvores tropicais. Que diferena dos outros hospitais onde trabalhara... Na escola mdica de Nova Iorque havia apenas uma rvore que, ainda por cima, foi cortada antes de me vir embora. O resto era tudo cimento e azulejos, em tons de amarelo. Mas a desgraa das desgraas encontrara-a eu em Bellevue, onde fizera o meu quarto ano de aprendizagem clnica (trabalhando essencialmente como interno, embora fosse, oficialmente, apenas um estudante). A as paredes estavam cobertas por uma deprimente cor castanha que estava a descascar por tudo quanto era lado. O contato com as mesmas era to desagradvel que tnhamos de ter o cuidado de caminhar pelo meio dos corredores a fim de no lhes tocarmos. O quarto que me fora destinado para os servios "de chamada" tinha um vidro partido e a canalizao deixava muito a desejar. Ficava situado no extremo do hospital, e para chegar s enfermarias tinha de atravessar

o pavilho onde se encontravam instalados os tuberculosos. Durante a referida "travessia", era habitual suster, inconscientemente, a respirao, de modo que, quando chegava ao meu destino, ia completamente ofegante. Se Dante pudesse ter visto Bellevue, ter-lhe-ia certamente destinado um lugar de eleio no inferno. Como detestara aqueles dois meses! Certa vez vira um filme que me fizera lembrar Bellevue; foi O Julgamento, de Kafka, em que as personagens se moviam incessantemente atravs de interminveis corredores. Assim era Bellevue: corredores que nunca mais acabavam, sobretudo quando se sustinha a respirao. Qualquer janela suficientemente limpa para deixar ver o que estava do outro lado, mostrava apenas mais um edifcio com mais corredores. At mesmo o mais inocente ato da natureza podia ser perigoso. Um dia entrara precipitadamente na casa de banho dos homens, j de fecho aberto e tudo. Pois ca, literalmente, no meio de um grupo de doentes que se encontravam, muito atarefados, a injetarem-se com seringas do prprio hospital. Fora a primeira vez que recebera ameaas de morte, mas no a ltima. O Hava no tinha nada a ver com Bellevue. Ali no recebera qualquer ameaa, pelo menos durante o tempo em que l estive e as paredes estavam limpas e cuidadosamente pintadas, incluindo os tetos. Convencera-me de que todos os hospitais eram iguais, mas, naquele local, eles eram limpos, brilhantes mesmo. No sei porque tinha tanto receio dos tuberculosos. Tratava-se provavelmente, daquele pedao de irracionalidade que todos temos quando decidimos que h coisas que nos fazem mal e outras que no nos afetam. Depois de conhecer os efeitos malignos da hipertenso, de cada vez que tinha uma dor de cabea pensava logo que era derivada desse problema. Talvez a mim me impressionasse particularmente porque o primeiro doente a quem fizera um diagnstico padecia desse mal. Todos ns, estudantes de medicina, tnhamos andado a auscultar os peitos uns dos outros, o que resultava sempre em boas doses de gargalhadas e muito pouca aprendizagem. Depois recambiaram-nos para um hospital de doentes crnicos, a fim de nos estrearmos diretamente na auscultao de doentes. O local dava pelo nome de Goldwater Memorial e, comparado com ele, Bellevue parecia o Waldorf. Depois de agarrar ao acaso num carto onde estava escrito o nome de algum, aproximara-me da cama do indivduo em questo, sentindo-me to transparentemente um novato que era o mesmo que levar um letreiro na cabea a dizer "Aluno do 2 ano de medicina, 1 ensaio". Tudo correra bem at lhe ouvir o seio costofrnico esquerdo, depois de me colocar no lado direito da cama. Inclinando-me sobre o seu peito, pedira-lhe que tossisse, o que ele fez, diretamente para o meu ouvido, permitindo-me ouvir, bem no interior da cabea, todo aquele gotejar de muco amarelo fervilhante de organismos antibiticos resistentes tuberculose. Nem mesmo o sabo lquido da casa de banho dos homens conseguira fazer com que me recompusesse. Ao voltar para o meu apartamento tivera de lavar as mos com sabo vezes sem conta, semelhana de Lady Macbeth. At ver, ainda no tivera de tratar de nenhum dos doentes pulmonares deste hospital. Talvez no os houvesse. As minhas divagaes terminaram. Olhei para a enfermeira que seguia ao meu lado para junto de Roso. Pertencia ao pessoal nativo da ilha; era muito bonita, uma mistura de sangue chins e havaiano, supus, com um belo corpo esguio, olhos amendoados e magnficos dentes. Gosta de fazer surf? perguntei-lhe, ao chegarmos porta da enfermaria onde se encontrava o homem. No sei respondeu, suavemente. Vive perto do hospital? No, moro no Vale Manoa com os meus pais.

Que pormenor mais inconveniente! Queria ouvi-la mais um pouco, mas j estvamos ao p da porta que dava para a enfermaria de Roso. Roso tem vomitado? No, nem uma nica vez, so s soluos. Nunca pensei que isto pudesse trazer tantos problemas. Ele est desesperado. Olhando de relance para o relgio de pulso antes de entrar na enfermaria, vi que j era quase meia-noite. Apesar da hora tardia, no me importava de ver Roso. Ele era, em muitos aspectos, o meu doente preferido. Rasando o pavimento, pequenas luzes de presena espalhavam uma luz difusa que parecia fundir-se com o som tnue das respiraes e do ressonar. De sbito, a tranqilidade foi quebrada por um soluo e os vrios matizes sonoros perderam o ritmo. No teria a menor dificuldade em encontrar Roso na mais completa escurido por causa daqueles soluos. Tnhamo-lo operado na segunda manh do meu internato naquele hospital. Para dizer a verdade, a operao no tinha sido exatamente feita por "ns": fora, sim, efetuada pelo residente-chefe e por um residente do segundo ano, enquanto eu ficava a agarrar nos separadores durante trs horas. Era o primeiro a reconhecer a minha inaptido para a sala de operaes; e da maneira como as coisas iam, a minha ignorncia era ponto assente. Ao contrrio de muitos estudantes de medicina que, de um modo geral, se mostravam ansiosos por se estrearem na cirurgia, eu tinha pouca experincia nessa rea, sobretudo porque no a quisera obter, mas tambm porque me interessara sempre mais pelos eletrlitos e pelos problemas de fludos que podiam surgir aps as operaes. Esta circunstncia agradava a todos. Os outros estudantes do sexo masculino no aprofundavam os aspectos qumicos, enquanto eu tinha grande dificuldade em agentar seis horas na sala dos observadores a ver os outros a cortarem e a coserem. Especialmente depois da cena que teve lugar na segunda vez em que me "preparei", em Nova Iorque. Tratava-se de uma operao a um cancro, onde se procederia remoo total dos seios, ou de uma masectomia radical, como lhe chamava o famoso cirurgio a cujas operaes tivramos o privilgio de assistir. Eu no passava, na altura, de um simples estudante do segundo ano, circunstncia que me fazia ter uma srie de conceitos errados na cabea; fato acrescido pela maior ou menor ansiedade que se notava em todos os presentes, incluindo os residentes, o que s servia para me tomar ainda mais ansioso. De sbito, o grande cirurgio entrara de rompante na sala de operaes, com todo o seu aparato magnificente, e atrasado como era costume. Depois de examinar alguns dos instrumentos que se encontravam no tabuleiro do enorme esterilizador, pegara neste e atirara com tudo para o meio do cho, praguejando e dizendo que estavam todos riscados e retorcidos, completamente imprprios para utilizao. O estardalhao assustara de tal maneira o anestesista que este dera um pulo e deixara cair a mscara que tivera sobre o rosto do doente. No que me dizia respeito, desapareci num pice, esperando que ningum desse pela minha falta, o que, efetivamente, aconteceu. Comecei depois, como no podia deixar de ser, a assistir, do princpio ao fim, a algumas operaes, mas ainda hoje no consigo entender muito bem os cirurgies. Tambm me lembro de um outro que conheci nessa altura, por todos considerado um indivduo muito calmo e prazenteiro at entrar na sala de operaes, onde uma vez o vi atirar com uma pina ao anestesista residente porque o paciente se mexera. Numa outra ocasio, o mesmo tipo ordenara a um dos residentes de cirurgia que sasse da sala de observaes sob a acusao de que estava com a respirao demasiado pesada. De qualquer modo, poucos eram os incentivos que me teriam levado a passar mais tempo na sala de operaes, fato pelo qual estava um tanto verde em cirurgia quando passei fase do internato.

Apesar da minha inexperincia, conhecia a rotina da "preparao", que consistia em lavar e desinfetar rigorosamente as mos, sec-las e depois enfiar a luvas e a bata; conseguia mesmo fazer uns quantos ns cirrgicos. Tudo isto tinha aprendido atravs de muitas tentativas e erros. A minha primeira "preparao" tivera lugar no terceiro ano de escola mdica e destinava-se a efetuar um trabalho de sutura na sala de emergncias do bloco operatrio. Passei os dez minutos da praxe a esfregar as mos e os antebraos e a limpar meticulosamente as unhas antes de enfiar, desajeitadamente, a bata. Depois de j ter as calas especiais vestidas, assim como o barrete, a mscara e todos os demais acessrios habituais, a enfermeira fora ajudar-me a enfiar as luvas de borracha. Depois de vinte e cinco minutos de esforos concentrados ficara, finalmente, pronto; as minhas mos estavam to esterilizadas como um pedao de rocha lunar. Em seguida, pegara, distraidamente e ao acaso, num instrumento e dirigia-me para o paciente, contaminando, conseqentemente, as mos, a bata, tudo. A enfermeira e o residente tinham desatado a rir histericamente; at mesmo o desnorteado paciente fizera coro com eles, enquanto eu era obrigado a voltar exatamente ao princpio. No caso de Roso, apesar do local pouco propcio onde me encontrava, por trs dos afastadores, no deixava de me aperceber da dificuldade com que a remoo daquela lcera estava a ser feita. O residente-chefe amaldioava o pobre protoplasma e eu no podia deixar de concordar que os tecidos de Roso sangravam excessivamente. Ao fundo da inciso, perto do pncreas, surgira uma hemorragia, mas os dois operadores acabaram por conseguir completar o Billroth I, ou seja, unirem o estmago ao intestino delgado de modo a que estes rgos ficassem tal e qual como tinham estado antes da operao, com a nica diferena de que se tinham visto livres da lcera. Depois competia-me suturar a inciso feita na pele de Roso. A operao no tinha nada de especial para ningum exceto para mim; para mim, ela era tudo. Ainda pensei em pedir a um dos residentes para pr o dedo sobre o n da primeira laada, como se estivesse a atar um presente de Natal. Por um segundo, a idia pareceu-me divertida. O fato que apesar de se tratar de um processo bastante simples, tivera problemas diablicos a apertar aquele n. Os fios da sutura so, geralmente, muito finos e difceis de sentir atravs das luvas de borracha, sobretudo nas pontas, onde o tecido mais espesso e onde, precisamente, necessrio ter uma maior sensibilidade. Sabia que tinha de fazer o n de modo a que as bordas da inciso se juntassem suavemente, sem qualquer presso excessiva ou qualquer outra impreciso que levasse a pele a enrolar-se para dentro. Tambm sentia toda a gente a observar-me, a julgar-me. Embora os meus conhecimentos sobre a matria no se ficassem por ali, sabia que aquele n era particularmente importante, pois se aquele pormenor no ficasse impecvel, toda a operao poderia, literalmente, sofrer uma rotura. A extremidade da linha de seda preta que tinha na mo direita desaparecera no interior da pele, num dos lados da ferida, reaparecendo no outro. Juntei essa ponta a outra, segurando-as na mo esquerda, e dei a primeira laada, apertando-a de modo a que as duas bordas ficassem ligeiramente unidas. Passei segunda laada. Mas assim que aliviei a tenso, a ferida escancarou-se. Voltei a fech-la, dando a segunda laada o mais depressa que pude, na esperana de vencer a tendncia natural para se abrir. Lamentavelmente, as duas bordas da inciso ficaram perigosamente afastadas uma da outra. Foi nessa altura que, para minha vergonha, uma mo se estendeu para pegar numa tesoura e com ela cortar o n, ao mesmo tempo em que se ouviam risadas abafadas l atrs. Uma outra mo comeou novamente a suturar, no mostrando qualquer dificuldade em espetar a agulha recurva nos tecidos e em retir-la do outro lado. Ergui

os olhos, em ar de splica, para o teto; de que servia eu estar ali se nem um n conseguia dar? A minha segunda oportunidade surgiu quando da segunda fiada de pontos em Roso, que se estendiam na direo oposta. Ao dar a segunda laada, a sutura ficara to apertada que a pele, ao unir-se, ficou enrugada e a presso fez as arestas ficarem enroladas para dentro. L voltou novamente a tesoura, cortesia do mesmo residente do segundo ano que me cortara o primeiro n, e a ferida, aliviando, voltou a abrir-se. Parecia extremamente fcil e rtmico quando eram os outros a faz-lo. No entanto, detectara j um truque aqui e ali, uma pequena toro depois da primeira laada, por exemplo. Em vez de se deixar a sutura plana na primeira laada, havia que pux-la ligeiramente, mantendo ambas as pontas na direo da pessoa que estava a coser. Mas isso era s metade da operao. Voltei a tentar, obtendo melhores resultados, embora continuasse a ficar um pouco apertado demais. At que, por fim, Roso ficara despachado, pelo menos daquela vez. O primeiro indcio de anomalia surgiu com os soluos, que tiveram incio trs dias aps a operao. Desencadeando-se regularmente, de dezoito em dezoito segundos eram, a princpio, divertidos. Roso tomara-se, na verdade, no alvo da curiosidade de todo o hospital, com os seus soluos cronometrados. Tinha apenas cinqenta e cinco anos, mas o tempo passado nos campos de anans tinham-no transformado num indivduo de aspecto muito mais velho, de compleio franzina e ombros encurvados; sempre que deambulava pela enfermaria, empurrando o suporte da intravenosa, tinha de segurar constantemente as calas para que estas no lhe cassem. Tambm as suas veias superiores, semelhana das de Marsha Potts, tinham deixado de poder ser utilizadas, sendo necessrio por isso, ligar-lhe um cateter virilha. Este pormenor causava-lhe problemas ainda maiores. Se apertasse demasiado o cordo das calas, para que no cassem, interrompia o fluxo de soro. Era, portanto, obrigado a andar com uma mo a puxar o suporte e a outra a manter as calas no lugar. Roso era filipino e o seu vocabulrio de ingls limitava-se a sessenta ou setenta palavras distintas, que utilizava para transmitir conceitos emocionais. Corpo no mais forte diria, o que era perfeitamente suficiente, tal como acontece na poesia haiku. No tinha qualquer dificuldade em compreend-lo e gostava muito do sujeito. Havia algo de tremendamente nobre e generoso nele. Alm do mais, penso que tambm ele nutria uma certa afeio pela minha pessoa, fato que, como tive oportunidade de verificar mais tarde, constituiu uma faceta importante no esforo por mim desenvolvido para o manter vivo. Sempre que me via nas rondas matinais, Roso dirigia-me um sorriso rasgado, apesar dos soluos que lhe faziam saltar todo o corpo. O estado de exausto em que se encontrava era bem evidente. Eu j tentara todas as drogas que vinham indicadas nos compndios cirrgicos, mdicos e farmacolgicos, at mesmo alguns mtodos caseiros: encher um saco de papel no o ajudara. Inspirando-me em processos mais cientficos, filo inalar um frasco contendo cinco por cento de dixido de carbono, o que tambm no produziu efeito. A aplicao de nitrito e de pequenas doses de Torazina mostrou-se igualmente infrutfera, o mesmo se podendo dizer do clcio, a que recorri numa tentativa de correlacionar os soluos com o seu estado hipernervoso geral; os seus reflexos eram to bruscos que quando lhe batiam com o martelo de borracha no joelho atirava com o chinelo pela sala fora. O meu grande erro foi sempre o de no considerar os soluos como um sintoma de algo mais profundo. Continuava a encar-los isoladamente, quando de fato e infelizmente, eles no passavam de um efeito secundrio da catstrofe que se desenvolvia no interior do seu corpo. O segundo palpite sintomtico ocorreu na altura em que o residente mandou retirar todos os tubos que se encontravam ligados ao estmago de Roso, passando os

lquidos a serem introduzidos pela boca. Uma hora mais tarde, o estmago inchara-lhe para o dobro do tamanho e Roso comeara a vomitar. No poderamos ter-lhe arranjado problema pior, para alm dos soluos e da impossibilidade de dormir; qualquer deles teria sido suficiente para levar uma pessoa loucura, mas o pequeno e valente filipino continuava a sorrir estoicamente de cada vez que me via. "Corpo no mais forte" repetia sempre as mesmas palavras, mas com um significado ligeiramente diferente de cada vez, consoante a entoao com que as proferia. "Corpo mais forte depressa"; comecei a servir-me do seu vocabulrio, naquele jeito curioso com que nos dirigimos a algum que no fala muito bem o ingls. Comeamos a pensar que nos faremos entender melhor se tambm cometermos erros. Durante a escola mdica, onde tive de tratar inmeros doentes de lngua espanhola, dava comigo a dizer: "Operao voc precisa na barriga." Claro que esta tcnica no tinha sentido porque se o paciente compreendia as palavras, com certeza no deixaria de as entender na ordem devida. Tratava-se, sobretudo de uma tentativa de nos fazermos perceber por essas pessoas; de estabelecermos contato. De modo que o pobre Roso comeara a ser alimentado por via intravenosa, ao mesmo tempo em que um tubo lhe desaparecia pelo interior do nariz, em direo ao estmago, onde sugava permanentemente os seus sucos digestivos. Derreado pelos soluos constantes, vomitava sempre que tirvamos o tubo do estmago, quer o alimentssemos ou no. Ainda h poucos dias o tubo ficara completamente obstrudo, levando a que nada menos o alimento permanecesse entre Roso e a morte. Ao irrigar-lhe o tubo nasal numa tentativa de o desentupir, vira sair uma substncia que fazia lembrar borras de caf. Era sangue coagulado, j antigo. Foi uma sorte eu ser to dado ao balano dos fludos e eletrlitos, porque tinha de, vrias vezes ao dia, calcular as quantidades de sdio e cloridro que se encontravam nos fludos que saam dele, procedendo sua substituio, acrescida do habitual soro de manuteno. Cheguei mesmo a dar-lhe magnsio, na esperana de o ajudar, depois de ter encontrado um artigo na biblioteca do hospital que falava sobre a depleo desse elemento mineral. Mas o grande problema de Roso estava dentro dele, fora do meu alcance. semelhana de Marsha Potts, a zona onde a anastomose fora efetuada, a ligao entre o intestino delgado e a bolsa do estmago, deixava passar lquido. No caso de Roso, contudo, havia uma diferena: a inciso no sofrera nenhuma rotura. Limitava-se apenas a deixar escoar, de forma constante, lquido para o interior do seu abdmen, bloqueando-lhe o estmago e provocando os soluos, no permitindo a absoro do lquido nutritivo e levando o seu peso a baixar diariamente, ao ponto de, naquele momento, no ter mais de trinta e seis quilos. Lutando desesperadamente contra a perda de peso, que significava, de igual modo, uma perda de energias, pus-me a vasculhar os compndios procura de informaes sobre solutos de protenas dotados de um elevado teor de glicose, experimentando tudo o que ali sugeriam; apesar disso, continuou a emagrecer, passando do indivduo meramente franzino que era para um homem de aparncia esqueltica nitidamente causada pela falta de alimentos. Apesar de todo aquele inferno por que estava a passar, no deixava de sorrir e de falar o seu haiku. Gostava dele. Alm de que era meu paciente, e estava disposto a ir v-lo sempre que precisasse de mim. Roso, como passa voc? perguntei, baixando os olhos para o homenzinho. Que aspecto ele tinha, ali estendido na penumbra, sem mais nada a cobrir-lhe o corpo do que as calas do pijama, com um tubo ligado virilha e outro a sair-lhe do nariz. Cada dezoito segundos que passavam, o seu corpo era sacudido por um soluo. Doutor, no mais forte, fraco demais j. Conseguira dizer tudo aquilo sem a interrupo de nenhum soluo. Tnhamos de fazer alguma coisa. Andava constantemente atrs do mdico de servio, do residente-

chefe, de toda a gente, mas sem resultado. Diziam-me para esperar. Mas eu sabia que no podamos esperar. Roso ainda confiava em mim, mas a sua fora de vontade estava a esgotar-se. Doutorr, no querer viver mais... soluo... demais. Nunca ainda ningum me dissera uma coisa daquelas, pelo que fiquei completamente varado. Embora compreendesse o estado de esprito em que ele se encontrava, no quisera admitir a possibilidade de ele chegar quele ponto porque sabia o que acontecia aos doentes que desistiam de lutar. Morriam; deixavam-se ir sem opor resistncia. Algo no esprito humano levava as pessoas a suportarem as situaes mais adversas, at mesmo os colapsos psicolgicos mais graves, mas quando esse estado de esprito cedia arrastava o corpo consigo at a derrocada final. Por vezes o desespero do doente era to bvio que no havia possibilidade de se lhe pedirem respostas racionais, mas Roso fizera-o, o que tomava o caso diferente. Disse para comigo mesmo que ele quisera apenas transmitir-me o fato de estar prestes a desistir, mas que isso ainda no acontecera. Ele precisava desesperadamente de dormir. Embora lho pudesse proporcionar, tratava-se de uma espada de dois gumes. Havia a Sparina, um fortssimo tranqilizante, capaz de o pr a dormir e de lhe anestesiar at mesmo os soluos. Mas a circunstncia de ele ter um tubo enfiado pela garganta punha-o sob o perigo constante de apanhar uma pneumonia, especialmente no caso de ficar inconsciente e, se inclusivamente vomitasse durante esse espao de tempo, corria o risco de aspirar as substncias expelidas. Tambm o caso do Demerol e do velhote franzino l de cima ainda no tinham deixado de me perturbar. Os parentes tinham tido um comportamento esplndido, no se dando conta, nem uma nica vez, das dvidas que me assaltavam, acreditando piamente nas minhas palavras e nem sequer levantando qualquer obstculo ao pedido de autpsia. Que teria acontecido se lhes tivesse dito que apenas pensava que o pai deles estava morto? Como poderiam eles saber que a diferena entre a vida e a morte se situa, por vezes, no entre o branco e o preto, mas sim entre o cinzento e o indistinto? Marsha Potts, por exemplo: estaria viva, ou a meio caminho entre a vida e a morte? Penso que talvez pudesse consider-la entre o nmero dos vivos porque, se melhorasse, talvez viesse a ficar boa; por outro lado, o mais provvel que essas melhoras no chegassem a registrar-se, mesmo que fosse esse o caso, pelo menos metade do seu crebro estaria morto. A insuficincia heptica j lhe destrura, com certeza, parte do fgado; no que se referia aos rins, era a mesma coisa. Tambm aqui as coisas no se encontravam muito definidas, tal como acontecia com a possibilidade de dar Sparina a Roso. Mas este necessitava de repouso urgente e eu sentia-me irresistivelmente compelido a fazer alguma coisa nesse sentido. Fazer alguma coisa, a estava uma tendncia humana qual era muito difcil resistir, como acontece quando algum desmaia no meio de uma multido, aparecendo sempre pessoas que se prontificam a ir buscar um copo de gua, outras que providenciam um apoio para a cabea. Sob o ponto de vista mdico, ambas as atitudes so ridculas; no entanto, as pessoas sentem-se melhor se fizerem alguma coisa, mesmo em situaes que exijam um tipo de cuidados em relao aos quais elas no se encontram preparadas. J tive essa sensao vrias vezes. Acontecera-me, certo dia, ao participar num jogo de basebol do liceu, ser envolvido num amontoado de jogadores, exatamente na altura em que um tipo partira uma perna com um estalido bastante audvel, aps o que o membro ficara retorcido. Apesar de, naquele momento, as dores no serem muito violentas, o grupo entrara em pnico e eu, obedecendo ao impulso habitual em qualquer pessoa, tentei arranjar-lhe um copo de gua para beber. Penso que foi precisamente naquela altura que, inconscientemente, me decidi a encetar caminho para a escola

mdica. A idia de querer saber o que fazer, de satisfazer a nsia de desenvolver alguma ao tendente resoluo do problema, era assoberbadora. "Portanto, muito bem, Peters, eis-te transformado num mdico... fazer alguma coisa por Roso. isso mesmo, vais dar-lhe Sparina." Assim que tomei essa deciso, senti-me submergir numa onda de felicidade derivada do fato de ter tomado uma medida positiva e bem definida. Roso, eu fazer tu dormir, ficares mais forte. Ao sentar-me no balco das enfermeiras, a de olhos amendoados colocou-me o quadro de registros de Roso frente. chinesa? perguntei-lhe, sem a fitar. Chinesa e havaiana. O meu av, do lado da me, era havaiano. Pensei que devia ser agradvel conhec-la melhor. Por que razo vive em casa dos seus pais? No obtive qualquer resposta. Bem, pouco importava. Abri a folha de registros para prescrever a aplicao de Sparina. Era pena, contudo. Ela tinha mesmo o aspecto das raparigas que esperara ver sob as quedas de gua havaianas. O problema residia apenas no fato de ainda no ter podido dispor de tempo suficiente, fora do hospital, para ver as tais quedas de gua, e a minha vida sexual, se que se lhe podia dar essa designao, limitava-se a Jan. Ainda l estaria, apesar de j ser meia-noite? O melhor pr-me a andar daqui para fora, pensei, ao mesmo tempo em que escrevia: "Sparina, 100 mg." Pus um sinal no quadro, indicando uma nova ordem, e atirei-o para cima da bancada. Da ltima vez em que lhe dera essa quantidade, ficara a dormir durante dezoito horas. Doutor, j que est aqui a velha pergunta do costume no se importa de ir ver o homem do gesso e tambm o tetraplgico? Conhecia este ltimo, mas no fazia a menor idia de quem era o doente do gesso. Que se passa de errado com o gesso? perguntei com alguma hesitao, receando um pedido de mudana de gesso quela hora. Ele diz que lhe doem as costas quando se mexe. E o tetraplgico? Esse recusa-se terminantemente a tomar o antibitico. Aquela no era, para dizer a verdade, a resposta que esperara ouvir. As pessoas paralisadas causavam-me ainda mais problemas psquicos do que as que sofriam de tuberculose. Veio-me idia a lembrana do edifcio mais atrativo do servio mais deprimente da escola mdica, neurocirurgia e neurologia. Recordei-me de um dia interrogar um doente que s respondia s minhas perguntas quando o picava com um alfinete. Parecera-me to normal que quase me admirei de o ver hospitalizado at que, ao voltar a pic-lo, os olhos lhe rolaram nas rbitas e a parte direita do corpo ficou hirta, empurrando-o para a esquerda e quase fazendo-o cair da cama. S lhe via o branco dos olhos e sentia-me to paralisado quanto ele, sem saber o que fazer. Nem sequer me restava a satisfao de poder ir a correr buscar um copo de gua. O paciente estava apenas a ter uma convulso, mas isso ainda eu no sabia na altura. Bem poderia estar a morrer que eu continuava ali especado, de boca aberta. No h ningum que, estando de fora, possa compreender o que uma crise daquele gnero significa para um estudante de medicina. Fica-se de tal modo acanhado que se tenta nunca estar por perto quando alguma coisa corre mal. Dos estudantes de neurologia seria de esperar que ficassem de mos nos bolsos, desfrutando calmamente do diagnstico sapiente do professor: "H determinadas zonas

da espinal medula que se cruzam antes de penetrarem no crebro. Outras no o fazem. Quando se tem uma leso que corte, efetivamente, um dos lados da medula, as extenses que a atravessam transversalmente continuaro a funcionar. Neste caso, reparem como o doente capaz de sentir esta alterao de temperatura, mas no possui qualquer sensibilidade proprioceptiva, fato que se v porque lhe movo o polegar para qualquer direo e ele no d por isso." E foi assim que as coisas se passaram. Toda a gente se entusiasmou com grandes discusses em tomo daquelas pequenas e enganadoras fibras de temperatura que cruzavam a comissura ventral branca e corriam ao longo da extenso lateral-espinotalmica at ao ncleo ventral do tlamo. Travaram-se grandes discusses sobre o fato de essas fibras serem mielnicas ou no. No h rea nenhuma da medicina que se preste tanto como a neurologia para grandes e acesas discusses. Entretanto, nunca mais ningum se lembrava do paciente. Bem, mal se tinha tempo para tal, tentando fixar todas as extenses e ncleos e, de qualquer modo, nada se podia fazer. Era talvez aquela falta de possibilidades que me tornava os casos de paralisia to difceis de suportar sob o ponto de vista emocional. Recordava-me em especial de um, do foro neurolgico, que se me deparara na escola mdica, embora no fosse muito raro; tratava-se, na verdade, de um caso deveras tpico. O paciente, cujos msculos faciais se moviam incessantemente, jazia diante de ns, numa tenda de oxignio. Todas as restantes partes do seu corpo se encontravam completamente imveis: era totalmente incapaz de controlar fosse que zona fosse do corpo porque todo ele no passava de um enorme amontoado de tecidos e ossos insensibilizados, estando completamente indefeso e dependente da tenda de oxignio para viver. O professor dissera: "Os senhores vo achar este caso extremamente interessante. Trata-se de uma fratura no processo odontide, que provocou uma ruptura na espinal medula, exatamente no ponto onde esta sai da cabea." O professor sentia-se deliciado com tudo aquilo. Como muito orgulhosamente nos dissera que o seu diagnstico triunfante fora determinado s aps um delicado raios X tirado atravs da boca. Em seguida perdeu-se, enfunado que nem um peru e arrulhando autenticamente, numa longa dissertao sobre as causas a que poderiam ter levado a primeira vrtebra que sustenta a cabea a deslocar-se do seu eixo. Eu no fora capaz de desviar os olhos do paciente, que olhava fixamente para o espelho que tinha por cima da cabea. Tinha mais ou menos a minha idade e era j um caso desesperado. Saber que o corpo dele e o meu eram essencialmente iguais, que a nica diferena jazia numa minscula desconexo ocorrida ao fundo do pescoo e que esta diferena fracional era determinante, fizera-me, naquele momento, ter conscincia do meu corpo como nunca antes me tinha acontecido, o que me levou, ao mesmo tempo, a ficar envergonhado com esse fato. Tivera ento fome, uma impresso nas pontas dos dedos, uma dor nas costas, sensaes que ele nunca mais voltaria a ter. Deixara-me invadir por uma raiva impotente e uma espcie de melancolia. O movimento uma parte to importante do viver, quase a vida em si que no dia a dia as pessoas normais no tm conscincia do que representar este tipo de morte. No obstante, tinha ali, diante de mim, a morte em vida, no podendo deixar de gritar para mim mesmo que o meu corpo tambm balouava no mesmo fio frgil que se quebrara e jazia minha frente, sob a tenda de oxignio. A partir de ento, nos momentos mais sombrios, pensara que a morbidez da medicina tomava essa rea pouco recomendvel para mim, no a abandonando, apesar de tudo. Tero os outros mdicos dvidas deste gnero? Naquele momento, no entanto, o homem do gesso estava primeiro; veria o tetraplgico mais tarde. Tirei uma ferramenta de corte do armrio e segui pelo corredor ao lado da enfermeira. Ao entrar no quarto, deparou-se-me um homem metido num

enorme aparelho de gesso que se estendia desde a regio do umbigo, apanhava-lhe a perna direita e ia at aos ps. A perna esquerda encontrava-se livre. O indivduo fraturara o fmur naquela manh, mais ou menos a meio da coxa, tendo-lhe sido imediatamente colocado o gesso. Como era habitual no primeiro dia passado dentro de um aparelho to apertado, o homem sentia-se dolorosamente incomodado. Descobri a extremidade que o estava a incomodar e comecei a lasc-la. Se tivesse podido dispor do cortador eltrico da sala de urgncias a operao teria sido mais rpida, mas meianoite no era a altura mais prpria para pr a funcionar um instrumento que faz um barulho to grande que parece uma serra de cadeia. Alm disso, a vibrao deixava sempre o doente morto de medo, apesar de lhe assegurarmos de que o cortador eltrico vibrava rapidamente e, conseqentemente, s cortaria algo duro e no mole como a carne. O homem pareceu compreender e o cortador entrou em ao, penetrando facilmente no material de consistncia bastante rija. Ao terminar a minha operao, o doente do fmur fraturado recostou-se com um suspiro de alvio, movendo-se gratamente de um lado para o outro. Est muito melhor, doutor. Muito obrigado. Coisas pequenas como aquela fazem uma pessoa sentir-se bem. claro que qualquer leigo seria capaz de desbastar a parte que estava a incomodar, mas no importava. Saber que agora o homem j podia descansar sem problemas fez com que me sentisse justificado e tomou vlida a minha presena naquele local. Tinha vindo a aprender que nem sempre permitido ao interno tomar os pacientes mais confortveis. O que ele faz, normalmente, mago-los, espetarlhes agulhas, introduzir-lhes tubos pelas narinas, obrig-los a tossir depois de uma operao, para lhes expandir os pulmes. Essa tosse coerciva essencialmente difcil e dolorosa para os que padecem de problemas de peito. Na cirurgia torcica, normal o operador laquear o esterno e voltar a uni-lo, com o auxlio de arames, no fim da interveno. Quatro ou cinco horas mais tarde, era minha tarefa enfiar fora um pequeno tubo pela traquia do doente, irritando-lhe a membrana e obrigando-o a tossir fortemente. O mtodo era infalvel. Como qualquer um que tenha um objeto estranho na traquia, o doente era, invariavelmente, levado a tossir, pensando a certa altura que a convulso o iria despedaar; tentando, debalde, parar, e acabando finalmente por se aquietar, encharcado em suor e exausto, enquanto lhe puxava o tubo para fora. A longo prazo talvez aquele meu gesto tivesse impedido o paciente de vir a ter uma pneumonia ou pior, mas, no imediato, fizera-o passar pelas brasas do inferno. De modo que o fato de ter aliviado o homem do gesso no era to insignificante como podia parecer. Contudo, a minha euforia no durou muito, pois teria de ver em seguida o tetraplgico. Completamente paralisado do pescoo para baixo, jazia sobre a barriga, numa cama especial. De todo ele emanava uma torrente de revolta e angstia. De debaixo do corpo saa-lhe um tubo que se encontrava ligado a um saco de plstico transparente, semi-cheio de urina. Esta excreo sempre constitura um problema naqueles casos. Como o doente paralisado perdia o controle da bexiga, precisava de estar ligado a uma sonda. Esta dava, por sua vez, origem a infeces. A maior parte dos casos de sepsis gram-negativa provinha de infeces do trato urinrio. Os abortos provocados faziam parte das excees, que no eram to raras como isso. Ao terminar o meu servio em ginecologia, por volta do terceiro ano da escola mdica, vinham-nos parar s mos tantos casos de infeces provocadas por abortos ilegais que Nova Iorque parecia estar a ser devassada por uma epidemia. Na maior parte das vezes eram raparigas muito jovens, que, de um modo geral s depois de a infeco j ir em estado adiantado que recorriam aos hospitais e, mesmo assim, no nos forneciam qualquer ajuda para o diagnstico. Nunca. Algumas morriam sem nunca

admitirem o fato de terem feito um aborto. Penso que, com a legalizao do aborto, o quadro foi alterado, mas, anteriormente, muitas foram as ocasies em que deparei com casos agudos de sepsis gram-negativa, irreversivelmente combinados com uma presso sangunea zero, rins progressivamente inoperantes e fgados moribundos. As bactrias gram-negativas apreciam particularmente a urina, sobretudo depois de o doente ter tomado os antibiticos habituais. Ao olhar para aquele tipo que para ali estava a chorar e a praguejar, todas estas coisas me passaram pela cabea. Figurativamente, tinha as mos enfiadas nos bolsos, sem saber o que dizer ou fazer. Que desejaria eu se tivesse vinte anos e jazesse naquela geringona com toda a gente a dizer-me que tivesse calma, que tudo iria correr bem, sabendo que era mentira? Penso que talvez gostasse de ter algum forte, que no estivesse a tentar enganar-me, que reconhecesse a verdade nua e crua dos fatos. Ento, fazendo um esforo para me mostrar firme, ordenei-lhe que tomasse o antibitico, afirmando-lhe que sabia que era duro, mas que ele no podia deixar de o fazer. Tinha de aceitar a responsabilidade de ser humano. Por vezes surpreendemo-nos a ns prprios fazendo vir superfcie facetas at ali desconhecidas. Nem sabia se acreditava ou no no que estava a dizer, mas foi assim que a coisa me saiu. O rapaz parou de chorar o tempo suficiente para que a enfermeira lhe desse a injeo. De repente, tomou-se importante para mim saber se ele ficara aliviado, se apenas furioso, mas no lhe podia ver o rosto e ele tambm no disse nada. Eu tambm no. A enfermeira quebrou o silncio pedindo-lhe que tentasse dormir um pouco. Como no me ocorresse nada para dizer, limitei-me a pousar-lhe a mo no ombro, suavemente, no sabendo se ele conseguia sentir o meu toque e a minha mgoa. Tinha a noo de que ou saa imediatamente da enfermaria ou tinha um colapso. A qualquer altura, em qualquer hospital, havia sempre um milhar de pequenas tarefas a realizar como, por exemplo, verificar o dreno de algum doente, observar uma inciso, resolver um problema de pescoo rgido, restabelecer uma intravenosa. Para dizer a verdade, as enfermeiras do Hava eram bastante eficientes a restabelecer intravenosas; nos meus tempos da escola mdica, essa era uma das principais incumbncias dos estudantes. Nem a chuva nem a neve nos poupava a uma chamada s trs e meia da manh, que nos fazia arrastar penosamente pelas ruas desertas de Nova Iorque para irmos restabelecer o fluxo de alguma intravenosa. Certa noite invernosa, desafiei os elementos apenas para auxiliar um homem que j no tinha veias utilizveis. Aps muito procurar, conseguira finalmente enfiar-lhe uma agulha muito fina nas costas de uma das mos. Depois de voltar para casa no meio de uma grande chuvada e de me ter esgueirado para dentro da cama, mais morto que vivo, depois de ter estado a p mais de uma hora, no que o telefone toca outra vez! Era a mesma enfermeira, meio na ofensiva, meio na defensiva: ao colocar um pouco mais de adesivo para reforar o tubo, cortara-o acidentalmente. De qualquer modo, h sempre um mundo de coisas a fazer em qualquer enfermaria. Embora normalmente as enfermeiras colaborem, se h algum mdico por perto, certificam-se sempre de que este tem com que se entreter, e eu estava naquele momento a sofrer um desgaste muito acelerado. Havia s mais uma coisa que eu queria fazer antes de voltar para o meu quarto: ver a senhora Takura, que se encontrava na unidade de servios intensivos. Esperava que Jan tivesse tido presena de esprito suficiente para se enfiar debaixo dos cobertores antes de adormecer. J passava bastante da meia-noite. Nunca chamvamos a unidade de cuidados intensivos pelo seu nome completo, utilizvamos sempre a sigla UCI. Dentre todas as designaes, iniciais, abreviaturas e diminutivos utilizados na gria profissional, nenhum fazia saltar um interno mais

depressa do que a UCI porque era a que a ao tinha lugar, nessa dependncia em estado de crise permanente. A possibilidade de se ser chamado UCI pelo menos duas vezes por noite era muito grande, assim como eram incomensuravelmente elevadas as hipteses de no se saber o que fazer. O fato de as enfermeiras serem eficientes e muito experientes s tornava as coisas mais complicadas. Uma pessoa comea a ter dvidas sobre o que andou a aprender nos quatro dispendiosos anos passados na escola mdica. Reao Schwartzman, segundo nos tinham ensinado. Duas aulas sobre essa maleita sem ningum ter, sequer, a certeza de que existia. estranho um mdico saber tudo o que se relaciona com uma doena que pode nem ser real, mas quando se trata de qualquer situao que se esteja a passar na UCI, no chega com certeza aos calcanhares de uma enfermeira. Claro que, se por acaso o paciente estivesse com uma Reao Schwartzman, depressa eu me transformava num sucesso: podia discursar interminavelmente sobre o aspecto que o pequeno tubo do rim tem quando examinado ao microscpio, entre outras coisas. No que se referia a medidas prticas, contudo, no tnhamos tido tempo para as aprender na escola mdica nem o patologista se preocupara com isso, fato que me incomodava verdadeiramente. As enfermeiras passavam o tempo, na maior parte das vezes, a carregar arrastadeiras durante os trs anos de treino. No era justo, pensei, mas, apesar de tudo, o treino destas era trivial quando comparado com as pilhas de livros sobre os mecanismos, as enzimas e as Reaes Schwartzman que tinha de decorar. No entanto, havia alturas na UCI em que podia andar a mudar arrastadeiras. s vezes tinha vontade de me pr a mexer antes que acontecesse alguma coisa que exigisse uma resposta inteligente. Parte-se do princpio de que o interno vai ganhando prtica medida que avana na sua carreira, mas quanto mais ele aprender na escola mdica melhor se sai e melhor ficam os doentes por ele tratados. Num hospital atarefado, ningum quer saber dos conhecimentos que podemos ter sobre a Reao Schwartzman. O cirurgio olha para os nossos ns. "Fraco", diz; "terrivelmente fraco." A enfermeira quer saber que quantidade de Isuprol deve pr em 500 cc de dextrose e gua. "Bem, quanto que tem utilizado neste paciente?" "Normalmente 0,5 mg" "Hum, penso que est bem." No se tem coragem para perguntar se o Isuprol mesmo que o Isoproterenol. Ser que ela gostaria de saber o que so as radiaes talmicas do ncleo ventral do cerebelo? No, e com toda a razo, j que isso no iria ajudar nenhuma das pessoas que se encontram na UCI. Mas que vida aquela! Estes os pensamentos que me acompanhavam ao dirigir-me para as portas giratrias da UCI, sentindo-me, como de costume, vagamente maravilhado diante daquele misto de fico cientfica e dura realidade. Das paredes e do teto pendiam estranhos instrumentos adornados de incontveis botes, alavancas e crans oscilatrios. Os bip-bip, semelhantes aos de um sonar, formavam uma sinfonia com o click-clak rtmico dos respiradores e o som abafado dos soluos de uma me que se encontrava inclinada sobre uma das camas, a um canto. Movendo-se e piscando ao montarem guarda vida, aquelas mquinas pareciam, muitas vezes, mais vivas do que os pacientes que jaziam imveis, cobertos por volumosas roupagens que faziam lembrar as das mmias e cheios de tubos de plstico ligados a garrafas que pareciam cachos a cair do alto dos suportes. Aquela amlgama formava um meio ambiente aliengena e misterioso. O pessoal no mdico reage fortemente UCI. Esta representa a encarnao slida, fsica, dos pavores que tem em relao morte e ao hospital como um local fnebre. O cancro, por exemplo, , sem sombra de dvida, a doena mais temida dos nossos dias, mas s se a pessoa for a vtima desse mal, ou um parente prximo ou um

amigo; mal se d conta dele fora dos hospitais. Na UCI o cancro paira no ar como uma nvoa maligna, primitiva. Quando se est ali a trabalhar h muito tempo, fcil esquecer que o hospital um local onde a vida tanto principia como termina. Mas os bebs no nascem naquela sala e a maior parte das pessoas, com razo, associam-na com o ominoso, o desconhecido e o fim, onde a vida est presa por um fio. Embora o ser humano normal no goste de entrar em hospitais, uma vez na UCI no pode deixar de sentir o fascnio magntico que esta unidade exerce sobre ele, apesar da sua morbidade ou, quem sabe, precisamente por causa disso. Os olhos vagueiam, absorvendo a fantasia, erguendo monumentos de imaginao sobre o poder abstrato da medicina. Esta cincia deve ser poderosa, na verdade, para ter todas aquelas mquinas a trabalhar para si. Caso contrrio, para que as teria? O bom observador, contudo, no deixa de se aperceber da discreta torrente de receio que se mistura com a respeitosa reverncia do visitante, levando-o a desejar, simultaneamente, permanecer ali e desaparecer o mais depressa possvel. Senti a mesma ambivalncia, por razes diferentes. Sabia que a maior parte daquela maquinaria no fazia quase nada. Algumas das mais pequenas, apesar do seu aspecto vulgar, desempenhavam um papel fundamental. Aqueles pequenos respiradores verdes, por exemplo, com os pequenos rudos caractersticos que soltavam ao mesmo tempo em que respiravam pelas pessoas que precisavam delas, valiam mais do que todas as outras juntas. As de aspecto complicado, cheias de crans e "blips" eletrnicos s faziam alguma coisa quando eram observadas. Na escola mdica tinham-me ensinado a ler os osciloscpios. Sabia que uma subida brusca no cran significava que as clulas musculares do corao estavam a sofrer o impacto de milhes de ions de sdio. Em seguida, o ponteiro dava um pulo, no cran, quando as clulas se contraam enquanto o citoplasma trabalhava furiosamente para expulsar os ons de volta ao fludo extracelular. Fantstico de seguir, em pensamento; mas aquela magia cientfica era apenas metade do trabalho. Com base em todas aquelas curvas e oscilaes, o mdico tinha ainda de fazer o diagnstico e depois a prescrio. Era precisamente esse o aspecto que me deixava desnorteado, o querer estar ali para aprender muita coisa em pouco tempo e, no entanto, sentir-me aterrorizado s de pensar que podia ser obrigado a tomar a responsabilidade total de algum problema que aparecesse por ser o nico mdico presente. De fato, os meus receios tinham j sido justificados vrias vezes: por exemplo, durante a primeira noite de chamada que passara naquele hospital como interno, em que me puseram perante um problema de hemorragia na UCI. Correndo pelas escadas acima, tranqilizara-me com a noo de que uma presso localizada deteria qualquer anomalia daquele gnero. Em seguida entrara na sala. vista do homem, detive-me, de chofre. O sangue saa-lhe s golfadas da boca, afogando-o num mar de sangue, No era vmito; era sangue puro. Aterrorizado, limitara-me a ficar ali parado, a olhar, completamente aturdido, enquanto ele me dirigia um olhar suplicante. Mais tarde disseram-me que nada podia ser feito. O cancro corroera-lhe a veia pulmonar. Mas o que me interessava, sobretudo, era o fato de me ter sentido perdido, sem reao, imobilizado. A cena no me abandonou nas noites que se seguiram e ainda hoje tenho a obsesso de que podia ter feito alguma coisa, mesmo que isso no tivesse ajudado o paciente. A senhora Takura encontrava-se numa das camas do canto. Tinha quase oitenta anos e a cabea estava rodeada de lindos cabelos brancos. Da narina esquerda saa-lhe um tubo Sengstaken, firmemente seguro por um pedao de espuma de borracha que lhe franzia e entortava o nariz. Viam-se-lhe algumas gotas de sangue seco num dos cantos da boca. O tubo Sengstaken tem cerca de 6,4 mm de dimetro e que no o torna nada

fcil de suportar. No interior do tubo mais largo encontram-se trs, mais pequenos, denominados de lmens. Dois dos lmens tm bales presos, um no princpio e o outro na extremidade. A aplicao do tubo Sengstaken exige que o doente engula todo este aparato, o que nunca tarefa fcil, sobretudo se est a vomitar sangue, como normalmente acontece. Uma vez o tubo instalado, o balo colocado na ponta do tubo incha, em pleno estmago, at ficar mais ou menos do tamanho de uma laranja; serve como uma espcie de ncora, permitindo que tudo fique nos stios exatos. Um pouco mais para cima est o segundo balo; quando insuflado, fica com a forma de um cachorro quente, alojando-se na parte inferior do esfago. O terceiro lmen, pequeno, mas comprido, fica apenas pendente no estmago, servindo para evacuar fludos indesejveis, como o caso do sangue. O aparelho destina-se, em termos gerais, a exercer uma presso constante nas paredes do esfago, nomeadamente atravs do balo em forma de cachorro quente, de modo a deter qualquer hemorragia que possa surgir. S uma vez ainda, na escola mdica, tratara de um doente que necessitava de um tubo Sengstaken. O problema de alcoolismo de que sofria, provocara-lhe uma tremenda cirrose e, provavelmente, o colapso do fgado. Claro que a senhora Takura no era uma alcolica; o seu problema vinha de uma hepatite ocorrida h anos atrs, mas ambos os casos tinham um aspecto em comum: um fgado danificado impede a passagem do sangue, de modo que a presso no interior dos vasos sanguneos que conduzem ao fgado aumenta progressivamente. Quando o sangue volta para trs vai dilatar as veias do esfago e, em casos extremos, pode at romp-los. Chegado a este ponto o doente vomita copiosas quantidades de sangue. Embora s tenha tido o alcolico a meu cargo durante um dia ou dois, lembro-me com toda a nitidez de tentar ajud-lo a engolir os bales. Ao ver que ele no o conseguia fazer, foi levado para a cirurgia, donde no sara vivo. A hipertenso portal, conjugada com varizes do esfago que sangravam, era um problema muito srio, mas at ali tnhamos sido capazes de estabilizar a senhora Takura atravs da insero do tubo. Ela iria ser operada dali a cerca de oito horas. No parecia oriental apesar do nome e do bom humor e calma interior, traos que possua em grande abundncia e eu comeara a encontrar em todos os orientais. Sempre que falvamos encontrava-a lcida e alerta, ciente do que lhe estava a acontecer e sem nunca alterar o tom da voz. Penso que no teria problemas em falar dos seus geramos no meio de um furaco. Quando me perguntava como ia passando, o que nunca falhava, parecia verdadeiramente interessada na resposta. Dvamo-nos muito bem um com o outro. Alm disso, eu estava convencido de que ela ia recuperar. dos tais pressentimentos que se tm em relao a alguns doentes, simples palpites irracionais. s vezes acerta-se. Certa vez, algumas horas depois de dar entrada no hospital, os mdicos tinham tentado retirar-lhe o tubo Sengstaken, mas essa iniciativa provocara-lhe uma hemorragia enorme e pusera-a novamente em estado de choque antes de conseguirem reinserir o tubo. Como estivera de folga nessa noite, escapara ao sangue e ao drama. Na manh seguinte, contudo, apanhara um susto de morte ao ver que a tenso lhe baixara subitamente para 8/5 e tinha as pulsaes a cento e trinta por minuto. Tive a presena de esprito suficiente para ordenar que lhe administrassem mais sangue, apercebendo-me por fim de que a sua perda constante acabara por lhe afetar a tenso. Quando esta voltou a subir, tambm eu me senti melhor. Causa, efeito, cura. Aquele acontecimento deveria ter-me dado um pouco mais de confiana, mas, curiosamente, a tomada de conscincia de que por detrs de cada situao h uma deciso correta a tomar, s serviu para me pr mais nervoso. Dar-lhe sangue fora uma deciso acertada, mas que nada tivera de complicado; da prxima vez poderia ser diferente.

Naquela noite a senhora Takura estava bem disposta e calma, como de costume. Verifiquei-lhe a tenso sangunea e tambm a dos bales, afadigando-me no meio dos instrumentos para tentar justificar a minha presena ali, embora o que desejasse verdadeiramente era conversar com ela. Ento, sente-se pronta para a sua pequena operao? Sim, doutor; se estiver pronto, eu tambm o estou. Aquela observao constituiu um choque para mim. Tinha a certeza de que ela se quisera referir ao coletivo, a todo o servio cirrgico. No devia estar a dirigir-se apenas minha pessoa. No me sentia pronto de longe nem de perto, apesar de ter bastantes conhecimentos sobre a operao, pelo menos em teoria. Podia ficar a falar, durante vinte minutos, das gradaes da presso da veia porta, dos vrios benefcios e desvantagens de uma interveno cirrgica conducente anastomose da veia porta veia cava inferior, ponta com ponta ou ponta com lado. Lembrava-me, inclusivamente, dos diagramas da juno espleno-renal: essa era ponta com lado. A idia genrica era aliviar a presso sangunea no esfago, estabelecendo contato entre o sistema venoso onde havia provocado a hemorragia e uma veia onde a presso ainda fosse normal, como a veia cava interior ou a veia renal esquerda. Tambm me recordava com preciso dos nmeros comparativos da mortalidade verificada nos vrios processos adotados, mas naquele momento no queria pensar nisso. Como possvel estarmos a olhar para um doente e pensarmos num ndice de mortalidade de vinte por cento? Ns estamos prontos, senhora Takura. Acentuara propositadamente a palavra ns, quando, de fato, queria dizer "eles", porque eu nem nunca sequer assistira a uma operao daquele tipo, a que davam o nome de desvio da veia porta. Sob o ponto de vista terico, era fantstico. Nada entusiasmava mais os professores do que falarem daquelas alteraes de presso e das ligaes disto com aquilo. Uma vez lanados em plena dissertao, deliciavam-se a esmiuar alguns dos artigos escritos por Harry Byplane da universidade tal (Harry era, evidentemente, sempre um bom amigo), o que mostrava que um outro artigo de George Litliechump, da universidade tal, errara ao partir do princpio de que as gradaes que se verificavam entre a presso da veia intralobular heptica e o plexo portal interiobular no eram importantes. Ali estava uma das "ensaboadelas" que freqente levarmos nas rondas pelas enfermarias, quando andamos na escola mdica. Se queremos ganhar o jogo, temos de citar o artigo mais obscuro que possa haver sobre determinada alterao gradativa da tenso (eles gostam sobretudo das flutuaes da tenso ou do pH), dizendo que Fulano de Tal demonstrou conclusivamente (a mais pequena dvida significava desastre imediato) que num grupo de cento e sete doentes ( necessrio apresentar um nmero exato, mesmo que seja inventado) nenhum deles escapava com vida se eram mandados para o hospital. O que se dizia posteriormente pouca importncia tinha, desde que se fornecesse muitos nmeros, gradaes e referncias pessoais ao autor; ficvamos ento rodeados de grande prestgio, sendo imediatamente chamados para a frente da classe. Da a observao dos grandes: "Bem, Peters, no h dvida de que se saiu muito bem." E quanto senhora Takura? Esquece a paciente, homem, estamos a falar apenas de ions de hidrognio no sangue e isso pH, com um p pequeno e um H grande. Lembro-me de, um dia, na escola mdica, estarmos reunidos em volta de determinada cama, a meio de uma das habituais rondas pedaggicas. Os de bata branca curta eram estudantes, como qualquer um podia ver. As batas brancas curtas e as calas brancas marcavam os internos e os residentes. Depois, ocupando a posio mais importante, vinham as longas batas brancas, impecavelmente engomadas; eram um

primor de lavanderia, to imaculadamente brancas que faziam os lenis da cama parecerem cinzentos. Precisarei de dizer a quem pertenciam essas batas? Algum mencionara o nome da doena do paciente, e em breve estvamos todos metidos numa animada discusso sobre o pH, os ions de sdio e as emisses de glucose, recorrendo a artigos de Houston, da Califrnia e da Sucia. Os nomes voavam de um lado para o outro, numa espcie de jogo de pingue-pongue acadmico. A quem caberia acertar? Estvamos ofegantes de expectativa quando, de sbito, algum reparou que estvamos diante da cama errada. O doente que se encontrava nossa frente no sofria da doena em debate. Isso acabara com o jogo sem que se tivesse chegado a apurar o vencedor, de modo que nos dirigimos calmamente para a cama ao lado. O que eu no conseguia perceber que raio de diferena havia, dado que nem tempo tivramos de olhar para o doente! Talvez todos se sentissem acanhados em discutir uma doena em presena de outra. Tente dormir um pouco, senhora Takura. Vai correr tudo bem. Olhei de relance sobre o meu ombro para ver se a costa estava livre. As enfermeiras no me tinham prestado grande ateno, principalmente porque se encontravam muito atarefadas com o homem do canto oposto. Este encontrava-se ligado a um monitor de eletrocardiograma que mostrava a existncia de uma atividade muito irregular naquele corao. A mulher continuava a chorar suavemente junto da cama onde se via um adolescente todo coberto de ligaduras. Este sofrera um traumatismo craniano, em resultado de um acidente de carro; o pobre tipo no voltara a recuperar a conscincia. Encaminhei-me para a porta, empurrei-a e sa para o exterior. Ao fech-la atrs de mim, cortara bruscamente a luminosidade ofuscante, o som dos aparelhos e a azfama das enfermeiras. Estava de volta penumbra silenciosa do corredor. esquerda via-se uma enfermeira sentada no seu posto, o rosto iluminado pela luz que incidia diretamente nela. Tudo o mais se encontrava mergulhado na obscuridade. Virei para outro corredor, este completamente s escuras. Tudo quanto me faltava fazer era acender as luzes, descer as escadas e atravessar o ptio em direo ao meu quarto. Ainda tinha algum tempo para dormir. De repente uma luz incidiu sobre mim e uma voz gritou: Uma paragem, doutor. Houve uma paragem. Venha depressa! Ao virar-me, vi que a luz tinha desaparecido, deixando apenas uns pontos cintilantes no centro do meu campo visual. Cerco de Berlim, crise dos msseis cubanos, baa de Tonquim: crises, certo, mas no to prximas umas das outras nem to perto de casa. Tratava-se, para mim, de um alerta vermelho, do tipo de catstrofe que mais receava. A princpio lembrei-me de que talvez no fosse o primeiro mdico a l chegar, mas, provavelmente, como estvamos a meio da noite, o nico. Se me deixassem escolher, teria sado disparado para o lado oposto, pouco me importando com o fato de ser um cobarde ou um realista. Mas l ia eu, correndo para junto do paciente, quase um clich do jovem interno a precipitar-se pelo corredor fora com o estetoscpio seguro ao acaso nos dedos crispados. Tudo cenas j vistas nos crans da televiso ou do cinema no ? Em muitos pontos semelhantes ao toque do clarim e imediata carga de cavalaria. Mas em que estar este interno a pensar? Depende do stio para onde corre. Se reina uma escurido de breu, tentar l chegar inclume. Tudo o mais depende do tempo de internato que j tem. Se no longo, apenas de algumas semanas, ento corre assustado, aterrorizado, para ser mais exato. No quer ser a primeira pessoa a chegar. At que finalmente chega, um tanto ofegante, mas fisicamente intacto. O que se passa na sua cabea outra coisa; as poucas informaes apropriadas situao de que

est de posse esfumaram-se subitamente, sob o choque da responsabilidade. No se devem preocupar em aprender o nome de remdios ou dosagens, insistem os professores de farmacologia, fixem apenas os conceitos. Mas como dizer a uma enfermeira para dar 10 cc de conceito a um paciente moribundo? Ao empurrar de novo a porta da UCI, voltei a emergir naquele mundo bizarro, verificando que, como no podia deixar de ser, era o nico mdico presente, para alm das duas enfermeiras que se encontravam ao lado da cama onde estava o indivduo do ECG irregular. Soltando uma obscenidade inaudvel, pousei, involuntariamente, os dedos na borda da cama, como que em busca de apoio. Deixara de ser um daqueles internos que passam na televiso para me transformar num outro, a transbordar de inexperincia e terror. Quem me apoiaria se aquele homem morresse? As enfermeiras? Os professores da escola mdica? Os assistentes? O hospital? Acima de tudo, ainda no aprendera a perdoar os meus prprios erros. Olhei rapidamente para a porta, na esperana de que aparecesse algum residente; aconteceu lembrar-me das razes que levam alguns estudantes de medicina brilhantes e dedicados, que fazem todo o seu percurso pela escola mdica e que depois, chegados fase de internato, mudarem subitamente de curso e optarem pelo campo da investigao ou de alguma cincia paramdica. Nada devia ser melhor do que o internato. Havia ali alguma coisa de errado. Por que no h-de o interno saber o que deve fazer quando, durante as primeiras semanas, corre para a UCI? Por que no o apoiaro os mdicos assistentes? At mesmo os mais prestveis pouco mais so do que calmamente agressivos. Parecem dizer: "Ns j passamos por toda essa merda! Agora a tua vez, desenrasca-te." Bom, era precisamente o que eu estava a fazer naquele momento na UCI, sem perspectivas de qualquer ajuda. No entanto, daquela vez tive sorte. O monitor cardaco ligado ao osciloscpio movimentava-se de forma perfeitamente errtica, fazendo lembrar as garatujas de uma criana zangada. Ao mesmo tempo, o som das batidas aumentava cada vez mais, at se transformar num rpido stacatto. No tive dvidas de que o doente estava a ser vtima de uma fibrilao ventricular; o msculo cardaco no passava agora de uma massa descoordenadamente tremulante. J sabia o que tinha a fazer! Iria "choc-lo". Para dizer a verdade, antes de tomar essa deciso, j as enfermeiras se tinham adiantado. Sempre um passo frente, j tinham o desfibrilador carregado e uma delas estendia-me as extremidades em forma de p. Que carga lhe ps? perguntei, pouco me importando com a resposta, mas necessitando do controle que a pergunta me conferia. A carga mxima respondeu-me a enfermeira que segurava nas ps. Coloquei-lhe uma sobre o peito, mesmo em cima do esterno, e a outra na zona esquerda do trax. Estranhamente o homem no deixara de respirar por completo; to pouco estava inconsciente. O nico sinal de anomalia, para alm da respirao ofegante, era uma espcie de olhar esgazeado, como se lhe tivessem tirado o ar de dentro do peito. Carreguei no boto que se via ao cimo do manpulo das ps. Todo o seu corpo se contraiu violentamente e as mos elevaram-se, baixando logo em seguida. O ponteiro do ECG saltara para fora do osciloscpio devido tremenda descarga eltrica, mas voltou de novo sua posio, parecendo normal. Fiquei mais descansado quando o "bip" tambm reapareceu indicando uma pulsao normal e o homem inspirou profundamente. Durante cerca de dez segundos tudo pareceu normalizar-se. De repente deixou de respirar e a pulsao regressou novamente ao zero, enquanto o ECG continuava a fazer ouvir-se ao ritmo normal. Aquilo era de endoidecer. Os sons espaados do ECG e a ausncia de pulso eram uma combinao que no vinha nos

livros. Os conceitos aprendidos rodopiavam-me dentro da cabea, de um lado para o outro, como se de um jogo de tnis se tratasse: atividade eltrica, atividade eltrica, mas no h pulso, no h pulso. Tragam-me um laringoscpio e um tubo endotraqueal. Uma das enfermeiras j tinha ambos na mo. Ele tinha de ter oxignio. Oxignio e dixido de carbono, e para isso ramos obrigados a inserir-lhe um tubo endotraqueal e respirarmos por ele. Este tubo introduzido com a ajuda de uma espcie de lanterna comprida e fina chamada laringoscpio. Este instrumento dotado de uma pequena esptula na ponta, com cerca de quinze centmetros, que utilizada para erguer a base da lngua e pr a descoberto a entrada da traquia por onde o tubo deve penetrar. medida que a esptula escorrega pela garganta h que tentar localizar a membrana que cobre a traquia durante a deglutio, a epiglote. Durante toda a operao, necessrio estar-se atrs do paciente, empurrando-lhe a cabea bastante para trs, lutando contra matrias estranhas como sangue, muco ou vmito. Assim que a epiglote fica vista, o instrumento passa por ela, descendo um pouco mais depois de a levantar. Com um pouco de sorte, estar ento a olhar para a traquia e para as cordas vocais, que so de um branco-cremoso, em contraste com a mucosa vermelha da faringe. Esta a situao desejvel. Na prtica, -se obrigado, muitas vezes, a abrir caminho com a mo livre, procurando a traquia e, por vezes, nunca chegando a encontr-la. E mesmo quando isso acontece, os problemas no esto terminados porque fazer escorregar o tubo pela traquia abaixo pode ser diabolicamente difcil. O precioso orifcio que se encontra entre as cordas vocais ficar oculto, no ltimo segundo, pelo tubo de borracha. No h mais nada a fazer seno empurr-lo s cegas. Muitas vezes os clculos saem furados e o tubo vai para o esfago, o que faz com que, na altura em que tentarmos ventilar o paciente (forar a entrada de ar para dentro dele) o estmago que incha, em vez dos pulmes. Nesse mesmo instante h algum que comea a pressionar o peito do homem e o laringoscpio sai disparado, batendo-lhe nos dentes ou saltando da boca, e toda a zona poder ficar rapidamente cheia de um dos fludos habituais. Introduzir um tubo endotraqueal era, para mim, um autntico pesadelo. Mas no havia mais ningum para faz-lo, de modo que afastei a cama do homem da parede e coloquei-me cabeceira de laringoscpio na mo. Qual o problema bsico? perguntei apressadamente, puxando-lhe a cabea para trs. De vez em quando o corao no obedece ao pacemaker disse uma das enfermeiras. De sbito, as coisas comearam a fazer mais sentido. Que tem ele estado a tomar? Que h na garrafa? inquiri, fazendo um gesto para esta, que se encontrava pendurada no suporte. Isuprol foi a resposta. Disse-lhes ento para acelerarem a entrada do fluxo. Sabia que aquele composto fazia o corao aumentar as suas contraes e era especialmente til em casos em que aquele rgo no conseguia trabalhar sozinho. Aumentamos para quanto? Para quanto? No fazia a menor idia. deix-lo correr. No me lembrava de nada de mais preciso para dizer. J conseguira introduzirlhe o laringoscpio na garganta at uma profundidade razovel, mas no conseguia ver as cordas vocais. Tragam-me um bocado de bicarbonato.

Assim que uma das enfermeiras desapareceu da periferia da minha viso, apercebi-me de que, finalmente, pensara em algo s para mim. Nesse momento apareceram as cordas vocais. Os seus contornos brancos salientavam-se notavelmente no meio do vermelho circundante, fazendo lembrar os portes de uma cmara subterrnea. Daquela vez consegui introduzir o tubo na traquia sem grande dificuldade. Mas assim que acabei de fazer deslizar o tubo, o paciente estendeu uma mo e puxou o dispositivo para fora. Durante um breve segundo senti-me indignado, at que me dei conta de que ele voltara a respirar. O pulso batia-lhe forte e compassado. A enfermeira voltou com o bicarbonato. Estupidamente, tive vontade de o dar ao doente porque fora eu a pensar nele e no as enfermeiras e, sobretudo, porque sabia bastante sobre eletrlitos, pH e ions. Mas tinha dvidas sobre o efeito que ele iria ter sobre o nvel de clcio. Tanto o clcio como o potssio podiam provocar alteraes traioeiras sobre o pH. Corria o perigo de complicar as coisas e estragar tudo, de modo que decidi abster-me do bicarbonato; mais valia deixar as coisas como estavam. De repente, o anestesista irrompeu porta dentro, seguido de outro interno, de um residente, e ainda de outro residente. Todos eles vinham com ar ensonado. Um no trazia meias e viam-se-lhe vincos da almofada no rosto. A multido continuou a aumentar com a chegada de mais um residente. Era naquela altura que eu gostava de entrar, quando a situao j estava sob controle e podiam-se tomar decises em coletivo. Na realidade, comeara j a acalmar, embora o meu pulso continuasse acelerado. O pessoal recm-chegado comeou a instalar-se no balco e nas cadeiras. Eu permaneci ao lado do doente, que comeara a falar. Chamava-se Smith. Obrigado, doutor. Penso que agora j estou bem. Sim, o seus sinais apresentam-se todos bons. Estamos muito satisfeitos por t-lo conseguido ajudar. Os nossos olhos encontraram-se; os dele mostrando mais gratido do que aquela que eu pensava merecer e os meus a tentar esconder as minhas incertezas interiores. O Isuprol continuava a correr para dentro do corpo dele como louco e eu no sabia se devia diminuir o fluxo ou no. Os outros que se encarregassem agora das coisas. O Sr. Smith queria falar. Esta j a terceira vez para mim, quero dizer, a terceira vez em que o meu corao resolve no seguir o pacemaker. Quando acontece, no tenho tempo para pensar, mas depois, como agora, tudo se me apresenta muito claro. Primeiro a garganta que se contrai, a seguir no consigo respirar nem um bocadinho, e tudo minha volta fica cinzento e se transforma numa sombra. Fazia um esforo para o escutar com ateno, mas s conseguia compreender metade do que ele dizia. Era incrvel estar ali a falar com ele quando, ainda poucos minutos, estivera s portas da morte. 1 Uma sombra, essa a palavra mais indicada que consigo encontrar, mas uma sombra que no desaparece. Vai ficando cada vez mais densa at se transformar na mais perfeita escurido. Calou-se abruptamente. Mas sabe qual a parte pior, doutor? Abanei a cabea, no querendo interromper. A parte pior quando se sai do pesadelo, porque isso acontece muito lentamente; no como ir-me abaixo, o que rpido. Primeiro sonho com as coisas mais disparatadas. No consigo encontrar-lhes o mnimo de sentido at que finalmente, o quarto, a cama e as pessoas entram no sonho e, normalmente, tomam conta dele. No sei explicar, mas a ltima coisa que me chega a conscincia da minha prpria pessoa, quem sou, onde estou, e a dor. Sinto o peito metido para dentro, como se me tivessem tirado todo o ar, especialmente se tenho algum tubo metido na garganta.

 Deve ter sido por isso que puxou o tubo para fora. J foi sujeito a outras operaes? perguntei. J nem tm conta. Apndice, vescula biliar... Interrompi-o: Recorda-se das sensaes que teve ao ser anestesiado? J alguma vez lhe deram ter? Era uma das experincias de que me lembrava mais vivamente, embora j tivesse sido h muito tempo, quando tinha quatro ou cinco anos. Nessa altura toda a gente era operada s amgdalas e lembro-me do terror que senti quando me puseram a mscara no rosto: a sala comeou a desaparecer e senti um zumbido insuportvel nos ouvidos. Em seguida apareceram crculos concntricos que se moviam cada vez mais rapidamente at se transformarem num ncleo de um vermelho ofuscante, em seguida foi o nada, at acordar, aos vmitos. Tirei o apndice em 1944 disse o Sr. Smith, recordando. Nessa altura estava na Marinha e penso que me deram ter. Essa sensao tem alguma coisa a ver com a que tem quando o corao lhe pra? E em relao ao acordar? No, nem pouco mais ou menos. A anestesia no de todo desagradvel, no se parece nada com a luta que travo com o meu corao. Impedi-lo de saltar do peito, mant-lo controlado, isso sim, constitui, literalmente, uma luta. No me lembro do que sentia ao acordar dessas operaes, mas quando o corao me comea aos pulos um autntico pesadelo que parece no ter fim. Estendeu a mo para tocar na minha, que estava apoiada beira da cama. Santo Deus, espero que no volte a acontecer! Sabe, no posso ter a certeza de ter sempre algum ao p de mim para me ajudar. Mas olhe, doutor, sucedeu uma coisa estranha: desta vez tive a impresso de que estava a observar o meu corpo de outro lugar, fora de mim mesmo, como se estivesse levantado aos ps da cama. J alguma vez teve essa sensao? perguntei, curioso. Sentirmo-nos fora de ns mesmos um sintoma de esquizofrenia. Nunca. Foi uma sensao nica. Aquele homem estava a falar-me da morte, mas punha as coisas de tal maneira que a transformava num processo de vida, algo que se podia estudar num compndio. Claro, se no tivesse sido aquele desfibrilador, ele estaria morto, e com ele todos aqueles pensamentos. Naquela noite, a linha que separa a vida da morte mal existira para trs pessoas: ele, Marsha Potts e para o velhote com o cancro. Tinha uma certa dificuldade em pensar na vida e na morte ao mesmo tempo, mas estava muito satisfeito por aquele homem no ter morrido porque era uma tima pessoa. Que pensamento mais estpido! De qualquer modo, no conseguia imagin-lo morto. Independentemente do que se tivesse passado, ele no morrera porque se encontrava vivo naquele momento. Faria algum sentido? Para mim, fazia. Quem era eu para pensar que podia mudar o destino? Estar vivo, a pensar e a falar to diferente de estar morto e imvel que a transio parecia-me, naquele momento, impossvel. Fora to simples, apenas uma descarga com o desfibrilador, como dar uma palmada nas costas de algum que est engasgado ou correr a buscar um copo de gua. Talvez ele no tivesse sido desfibrilado; talvez se tivesse recuperado a si mesmo. J no era a primeira vez. Nunca o saberia. O mdico residente e o outro interno ainda ali estavam, falando entre si e ajustando os tubos de plstico, coando a cabea e examinando as folhas do ECG. Pareciam felizes e interessados. Antes de sair olhei para a Sra. Takura, que me dirigiu um enorme sorriso e acenou com a mo livre.

O estranho mundo da UCI voltou a desvanecer-se quando virei a esquina do corredor e desci as escadas. Todas as formas de vida pareciam adormecidas. Pensei nas noites passadas na escola mdica, em que tinha de me arrastar do hospital para o meu apartamento enfrentando toda a espcie de intempries que o Inverno tinha para dar. Ironicamente, as noites como aquela, calmas e estreladas, eram ainda mais difceis de suportar, to solitrias que se tinha vontade de praguejar. No Hava, quase todas as noites eram lmpidas, iluminadas por milhares de estrelas e refrescadas por brisas suaves. A lembrana de Jan no meu apartamento fez-me acelerar o passo. Naquela altura, quando a tenso profissional comeava a desvanecer-se, s conseguia pensar em escapar solido, estar com uma pessoa viva e saudvel, conversar com ela, am-la. Vrias vezes me acontecera, na escola mdica, deixar uma rapariga minha espera no apartamento enquanto ia a correr atender a alguma chamada, o que tornava sempre o regresso extremamente agradvel. Mas na maior parte das vezes ela limitava-se a soltar um resmungo, meio adormecida, quando eu escorregava para junto dela. Havia "uma coisa" em que a minha escola mdica era perita: fazer-nos levantar s horas mais esquisitas da madrugada para procedermos, na maior parte das vezes, a exames laboratoriais. A necessidade de fazer contagens sanguneas e anlises de protenas parecia ocorrer, para os residentes, principalmente depois da meia-noite. De modo que no tinham conta as vezes em que acabvamos por gastar o resto das horas destinadas ao repouso entre aquilo a que se podero chamar as entranhas do navio mdico, a contar minsculas clulas sanguneas, que se tomavam cada vez mais diminutas medida que o tempo ia passando. Entretanto, o residente que estava na ponte de comando orientava o paciente, queixando-se freqentemente da lentido com que se processava a contagem dos glbulos. A verdade que, uma vez feita uma contagem ao sangue, todas as outras so mais ou mais ou menos iguais. Qualquer tipo de aprendizagem muito fraco, principalmente quando so trs da madrugada e no se pensa em mais nada seno em voltar para o quarto e, nunca se sabe, para a jovem senhora que nos aguarda. Certa vez fizera, num perodo de vinte e quatro horas, vinte e sete contagens sanguneas, um recorde pessoal que no era, apesar de tudo, um recorde do hospital. As ltimas, executadas nas horas mais tardias, no passavam, como evidente, de alvitres semi-cientficos. Era assim que as coisas se passavam nos grandes centros hospitalares, em que o treino de um mdico ficava por quatro mil dlares por ano e onde este pouco mais fazia do que aprender a ser um bom tcnico de laboratrio. Todos ns imaginvamos cenas fantasiosas em que atirvamos com a urina cara do residente e lhe dizamos que enfiasse o frasco por um certo stio acima, ou amos para a cafeteria fazer greve de braos cruzados. Nenhuma destas cenas se desenrolava fora da nossa cabea porque, para dizer a verdade, nos sentamos todos bastante intimidados. Corno os professores nunca se cansavam de nos lembrar, havia muitos outros l fora espera de poderem envergar aquelas nossas pequenas batas brancas. O que, na realidade, acontecia que, s altas horas da noite, quando nos sentamos lixados e explorados, contvamos aqui e ali, inventando resultados plausveis. Mas estas situaes eram pouco freqentes e s se verificavam a horas tardias. Mas o pior era no ter, mais tarde, ningum com quem conversar. O mundo inteiro parecia estar a dormir e perfeitamente indiferente convico de que o ensino mdico era deficiente e irrelevante. De modo que s havia que regressar o mais depressa ao quarto e rapariga adormecida, grato, finalmente, pelo seu corpo quente. Havia muitos estudantes que se casavam no incio da freqncia da escola mdica. Penso que a presena constante de um corpo quente os fazia sentir menos

solitrios. E os primeiros dois anos eram timos: aulas durante o dia e estudo noite, Se calhar at faziam bailaricos. Mas quando, nos ltimos dois anos, as contagens sanguneas chegavam a meio da noite, juntamente com todo um mundo de pequenas tarefas, as coisas comeavam a mudar. A pouco e pouco, penso mesmo que alguns desistiam de tentar comunicar as suas frustraes. O corpo quente deixara de ser o suficiente. De qualquer modo, muitos j tinham desfeito os casamentos quando nos davam o pedao de papel a dizer que estvamos formados em Medicina. O que tnhamos sido, na verdade, era campees na contagem de glbulos, peritos em teoria e em trivialidades laboratoriais. Nenhum de ns saberia referir qual a dose de Isuprol necessria para salvar uma vida. Ao abrir a porta, ainda no me tinha decidido entre fazer muito barulho ou ser silencioso. Os instintos mais benvolos prevaleceram e assim que a luz do corredor entrou pela porta entreaberta, rodei com rapidez para dentro do quarto, fechando-a imediatamente. Tirei os sapatos. A dependncia encontrava-se mergulhada no mais perfeito silncio e depois da luz fluorescente do corredor ter-me-ia sido totalmente impossvel movimentar no meio daquela escurido cerrada se no conhecesse a disposio dos mveis. E que mveis! Como no podia deixar de ser, a cama do hospital onde dormia era dotada de interessantes caractersticas. Podia ser levantada, na zona da cabeceira, proporcionando-me uma posio mais confortvel para ler livros de estudo em que nunca conseguia adiantar mais de um ou dois pargrafos antes de adormecer. O resto do mobilirio consistia numa cadeira desdobrvel feita num material duro como pedra, numa estante e numa secretria inicialmente concebida para uma criana pequena. Se lhe punha os cotovelos em cima, ficava sem espao para o livro, sobretudo se se tratava de um daqueles enormes volumes de quase trs quilos to em voga entre os editores de publicaes mdicas de hoje. Ao mover-me no meio da escurido sabia que o nico obstculo potencialmente srio com que poderia deparar era a prancha de surf que pendia do teto. A pouco e pouco, a minha vista foi-se ajustando e j era capaz de ver os contornos da janela e a cama, para a qual me dirigi. Pousei uma das mos sobre as cobertas, movimentando-a de um lado para o outro, cada vez mais rapidamente, at me certificar de que ela tinha partido. Sentando-me na berma, raciocinei que, de qualquer modo, eu estava demasiado fatigado e que ela provavelmente tambm no teria vontade de conversar. J passava das duas e eu no podia comigo; mas que no podia mesmo! O telefone tocou mais trs vezes antes de a manh chegar. As primeiras duas no eram suficientemente importantes que justificassem a minha deslocao, tratando-se apenas de enfermeiras a esclarecerem uma ordem de aplicao de remdios relativamente a um paciente que queria um laxativo. Em matria de laxantes, fizera um pequeno estudo por minha conta.. Este provara conclusivamente, que cinco em cada seis enfermeiras tm dez probabilidades mais de pedirem uma ordem de laxativo entre a meia-noite e as seis da manh do que em qualquer outra altura do dia. Quanto s razes, estas so um tanto difceis de determinar, estando talvez relacionadas com alguma interpretao freudiana dos dispositivos anais ligados profisso da enfermagem. Fosse como fosse, acho que era um ato quase criminoso acordarem-me por causa do pedido de um laxativo. De cada vez que o telefone tocava, sentava-me na cama, hirto, ao mesmo tempo em que uma descarga de adrenalina me atravessava as veias. Quando levava o auscultador ao ouvido, j o corao batia fortemente. Mesmo que no tivesse de sair do quarto, levava trinta minutos, depois de cada chamada, at conseguir acalmar o

suficiente para voltar a adormecer. Numa das noites anteriores, ao atender ao telefone, morto de sono, apenas conseguia ouvir um murmrio distante. "Fale mais alto!", gritara, fechando os olhos com fora e concentrando-me, mal conseguindo perceber o que diziam do outro lado. Tinham estado a dizer-me que houvera engano na extenso. A terceira chamada apresentou-me um problema que se situava na extremidade mais longnqua do espectro do meu receio de no saber o que fazer. Sem dvida que podia resolv-lo; tambm uma criana de quatro anos no teria dificuldade. A Sra. Fulana de Tal "cara" da cama. No costume os doentes magoarem-se ao carem da cama; esto demasiado medicados e, alm disso, as enfermeiras sabem perfeitamente o que devem fazer. Nenhum desses aspectos tinha a menor importncia para a administrao do hospital. Desde que houvesse uma "queda" da cama, o interno tinha de ser chamado para dizer ol, independentemente das horas que fossem. De modo que l me levantei sentindo... como explic-lo? Bem, no era bem uma nusea, embora a sensao que se tem no estmago no seja nada agradvel, e tambm no febre, embora a testa tenha temperatura tima para estrelar ovos. A nomenclatura ideal reside numa descrio. Uma pessoa sente-se exatamente como no poderia deixar de estar ao ser acordada s quatro da manh depois de cerca de duas horas de sono, no decorrer das quais despertada, de cada vez que adormece (quando finalmente, depois de quase vinte horas de trabalho, consegue, deitar-se, emocional e fisicamente exausto), para ir pegar na mo de uma pessoa que "caiu" da cama e no se magoou. Na realidade, a maior parte destes doentes limita-se a perder as foras quando se levanta para ir casa de banho. Mas independentemente do motivo que os fez chegar ali, mesmo que estivessem a seis metros da cama, as enfermeiras nunca deixam de considerar que se trata de uma queda e l vai o desgraado, no cumprimento de uma regra perfeitamente absurda. Este formalismo ainda mais idiota quando nos pomos a pensar que um hospital se encontra, em todos os outros aspectos, dependente destas mesmas enfermeiras para determinar o estado fsico do paciente e proceder ao chamamento do mdico em caso de necessidade. Mas, no se sabe por que razo misteriosa, elas no tm autonomia suficiente para verem se o doente, ao cair no meio do cho, se magoou ou no. No entanto, a est algo de intil e arbitrrio que no podemos deixar de fazer. Cerca de metade do tempo passado na escola mdica gasto na execuo do intil e do arbitrrio, que indispensvel para se ser um estudante de medicina ou um interno, e depois ascender formatura. Tretas. Este tipo de exigncia no passa de uma descoordenao e de um tormento, uma espcie de rito de iniciao para a entrada na Associao dos Mdicos Americanos. Mas no h dvida de que o sistema funciona; Santo Deus, se funciona! Louvada seja a profisso mdica, moldada na perfeio, sujeita a lavagens ao crebro, estreitamente programada, da ala direita em termos de poltica e totalmente devotada aos ganhos materiais. Estes eram os pensamentos que rolavam caoticamente na minha cabea ao dirigir-me para o elevador e ao bater violentamente no boto, meio esperanado em partir aquela geringona toda. Ao regressar ao hospital atravs dos corredores adormecidos, em direo aos distantes pontos de luz, tentei no acordar completamente. Certa vez disse a um amigo, que no cursava medicina, quais os motivos por que me faziam levantar da cama s quatro e meia da manh. No acreditou. Era demasiado inquietante para ele; destrua a imagem colorida que tinha do mdico interno despertado subitamente, pressurosamente lanado pelos corredores na sua flamejante bata branca, subindo as escadas aos trs e quatro degraus de cada vez, para ir salvar uma vida. Mas ali estava eu, em plena realidade, assoberbado com uma sensao de desnimo, aos encontres s paredes, praguejando com a respirao ofegante, a caminho do

cumprimento da minha obrigao que seria limitar-me a dizer: "Como est, senhor doente? ... "Muito bem, doutor ... "timo... Descanse bem e, por favor, no volte a cair da cama. Quando o telefone voltou a tocar j era dia, cinco e quarenta e cinco. Pousando os ps no cho e sentando-me na beira da cama, utilizei as mos para me levantar. Sentia a mesma sensao de enjo e uma tontura momentnea antes de o cho frio afastar essas sensaes de mim. Apoiando as mos em cada um dos lados do lavatrio, ficara inclinado sobre este durante um segundo. No espelho, os meus olhos faziam lembrar vistas areas de lava incandescente a correr para um lago lamacento. A nica razo pela qual as bolsas que se viam debaixo deles no se juntavam aos cantos da boca era a de que no podia sorrir. Ah, da torneira saa um fiozinho de gua! Pondo uma das mos em forma de concha, passei algumas gotas pela cara. No havia nada de particularmente notrio ou diferente naquela manh. Era apenas uma manh como tantas outras. O dficit de sono acumulado em duas semanas era to grande que mesmo que conseguisse dormir seis horas seguidas ficaria na mesma. A lmina de barbear, muito mais eficiente do que eu, deixou vrios cortes sangrentos na minha garganta. O sangue misturado com a gua que me escorria do rosto, parecia ser em muito maior quantidade, o que, juntamente com os meus olhos e as olheiras sob os mesmos, me dava o aspecto de quem acabara de levar uma boa carga de pancada da Mfia. Passados mais ou menos trinta segundos, sentira-me suficientemente recomposto para me vestir. Estetoscpio, lanterna de bolso, vrias canetas de cor, bloco de notas, pente, relgio, carteira, cinto, sapatos, percorri mentalmente a lista dos artigos. Certificar-me de que as meias so da mesma cor. No se deve alterar a harmonia do local. Uma ltima vista de olhos pelo quarto para ver se faltava mais alguma coisa, algum papel, algum livro. Satisfeito, sa do quarto, desci pelo elevador e desemboquei no ar da manh. Fizera sempre questo em dar a volta pela frente do hospital, a caminho da cafeteria. Ficava um pouco mais bem disposto. Naquela manh, o cu estava de um azul lmpido, salpicado aqui e ali por pequenas nuvens e ainda ligeiramente banhado, a oriente, por tons de vermelho-dourado; para oeste as cores desvaneciam-se em rosa e violeta. A relva resplandecia, ainda mida do ar da noite; at as rvores brilhavam e havia pssaros por todo o lado, produzindo uma barulheira incrvel. Eram duas as espcies de aves predominantes, as mynas, que voavam de um lado para o outro em movimentos desordenados e soltando pios desarmoniosos e agudos, e as andorinhas, mais discretas, lentas, quase delicadas, algumas delas parecendo balanar para cima e para baixo, ao mesmo tempo em que abriam a cauda em forma de leque e soltavam gorjeios melodiosos. Gostava daquela espcie de passeio matinal. Era apenas de alguns metros, mas proporcionava-me uma agradvel sensao de bem-estar. No considero as seis da manh a altura ideal para um copioso pequeno-almoo, particularmente depois de uma noite passada quase em claro. Mas obriguei-me a comer, atafulhando a boca de alimentos e depois empurrando-os para baixo com o auxlio de gua. Sabia, por experincia prpria, que se no comesse dali a mais ou menos uma hora estava cheio de fome, altura em que no seria possvel arranjar nada para o problema. Alm disso, falhava quase sempre o almoo por causa do horrio das operaes. Nunca se sabia se no se passariam oito ou dez horas antes de poder tomar a prxima refeio. Depois do pequeno-almoo, tinha cerca de trinta minutos para ver os meus pacientes antes das rondas, que tinham incio s seis e quarenta e cinco. Era importante

ter tudo em ordem antes dessa hora, tomar conhecimento das ltimas alteraes ocorridas. Em primeiro lugar estava a UCI. Relativamente a esse local, no me importava absolutamente nada de l ir de manh ou a qualquer outra altura do dia. O fato de ter outros mdicos por perto diminua aquela sensao de que se caminha sozinho numa corda bamba. A senhora Takura dormia tranquilamente, depois de ter tomado a sua medicao; o tubo continuava enfiado na narina, enrugando-lhe o nariz devido presso. Pulso, urina, presso sangunea, ritmo respiratrio, temperatura, eletrlitos, protenas, bilirrubina... todos os dados recolhidos nos ltimos testes tinham sido registrados. Fazendo uma pausa para escrever uma observao sobre o estado da doente na folha de registros, fiz votos para que esta se encontrasse preparada. De volta ao seu canto da sala, a aparelhagem ligada ao Sr. Smith continuava a trabalhar regularmente, mostrando um ECG aparentemente normal, embora eu no fosse nenhum s a ler aquele tipo de dados, especialmente quando fornecidos por um osciloscpio. Tambm ele estava a dormir. Desci s enfermarias. Ali, a jogada baseava-se fundamentalmente nos nmeros e na diversidade, no propriamente em crises. Tinha vrias dezenas de pacientes, todos eles representando outros tantos tipos de pessoas e problemas. A maioria fora submetida a intervenes cirrgicas e encontrava-se a atravessar vrios graus de recuperao psoperatria, tendo drenos inseridos para a descarga de impurezas. O comprimento dos drenos constitua, normalmente, indicao segura do nmero de dias que se tinham j passado desde que a pessoa deixara a mesa de operaes. Estes dispositivos, apesar de ligeiramente desajeitados, so parte imprescindvel da prtica cirrgica. Introduzidos at ao fundo da inciso, servem de canal de escoamento para qualquer fludo indesejvel que possa aparecer, ajudando a evitar a instalao de infeces. A idia ir puxando o dreno para fora, centmetro a centmetro, a partir do segundo dia ps-operatrio, permitindo assim que a ferida sare da base para a superfcie. Os pacientes tm sempre muita dificuldade em compreender estes drenos. Para eles, as extenses pendentes de borracha clara constituem alvo de interminveis conversas e desconforto, sobretudo mental. O Sr. Sperry fora operado, havia dois dias, a uma lcera gstrica, e chegara a altura de se comear a puxar o seu dreno. Agarrando nele com uma pina, dei-lhe um bom safano. Mas este no cedeu, limitando-se a ficar um pouco mais retesado. Sentado na cama, recostado a duas almofadas, o Sr. Sperry observava, dominado por uma atrao temerosa, os meus esforos, tendo os olhos abertos como duas bolachas e as mos crispadas nos lenis. Puxando-o novamente, comecei a ter dvidas de que o tubo no tivesse sido acidentalmente cosido ferida; eis seno quando comeou a sair gradualmente, movendo-se alguns centmetros e deixando escapar um pouco de soro sanguinolento que foi prontamente embebido por uma compressa. Doutor, tinha de fazer isso? Bem, no quer ir para casa com este tubo pendurado em si, pois no? No. Coloquei um alfinete de segurana no dreno, logo a seguir ferida, para evitar que o tubo voltasse a penetrar nesta. Em seguida, com o auxlio de tesouras esterilizadas, cortei o tubo excedente. Era importante seguir uma ordem determinada naquele processo aparentemente simples. Certa vez, ainda eu no tinha conhecimento desse pormenor, cortava o dreno antes de colar o alfinete de segurana. O paciente, que at ali tinha sustido a respirao, respirou fundo fazendo com que o tubo desaparecesse no interior do seu abdmen. Passaram-me imediatamente pela cabea perspectivas de uma nova operao, mas felizmente um residente conseguiu agarr-lo depois de tirar trs pontos e andar pesca dele com um frceps.

 Por que no me pe a dormir enquanto o puxa? O Sr. Sperry olhava para mim, interrogadoramente. Senhor Sperry, adormec-lo no to simples como supe. Alm disso, a anestesia sempre motivo de risco, coisa que no ocorre quando lhe puxamos o dreno. Sim, mas se fosse anestesiado nem sequer dava por isso. Di assim tanto quando lho puxamos? Um pouco, e tambm sinto uma impresso esquisita l dentro, como se me estivesse a desfazer. No se est a desfazer, senhor Sperry; est at a recuperar muito bem. Mas tem de puxar com tanta fora? insistiu. Olhe, senhor Sperry, amanh ponho-lhe estas luvas, dou-lhe as pinas e o senhor mesmo o puxa. Que tal? Sabia que aquela proposta no poderia deixar de resultar. No, no, no era minha inteno passar eu a tir-lo! Mas eu sabia bem o que ele queria dizer. Depois de uma operao a que, certa vez fora sujeito; depois de recuperar o uso das pernas senti que o mdico me tirava os pontos com demasiada brutalidade. Mas no queria ser eu a faz-lo. extremamente til o mdico passar, de vez em quando, pela situao de paciente; f-lo tornar-se mais sensvel aos medos irracionais que assaltam os doentes. A soluo est em dizer-lhe tudo o que se est a fazer, at mesmo as coisas mais simples, porque, muitas vezes, aquilo que para ns evidente o que os assusta mais. Senhor Sperry, pode andar por aqui a p o tempo que quiser. Para lhe dizer a verdade, o movimento s lhe far bem. Esteja descansado que a ferida no abre. O dreno apenas um processo habitualmente utilizado nestes casos. Permite a sada de lquidos prejudiciais enquanto decorre o restabelecimento. O alfinete de segurana destina-se somente a impedir que o tubo escorregue para dentro do seu abdmen. Tudo indicava que o Sr. Sperry ficara convencido, embora tivesse a certeza de que lhe dera motivo de conversa para o resto do dia: como o doutor fora cruel, puxandolhe o dreno com tanta fora que fizera com que a ferida se abrisse e sangrasse. Assim era a rotina nas enfermarias: verificao dos drenos, mudana de compressas, resposta a perguntas, anlise das temperaturas registradas nos grficos. Apesar de Marsha Potts no ser minha paciente, detive-me, instintivamente, diante da porta do quarto onde se encontrava. Naquele momento parecia pior, devido ao fato de a luz do dia lhe fazer ressaltar o tom de ictercia e de a pele estar to esticada que os dentes se mantinham mostra, num sorriso permanente. Estava em muito mau estado; apesar de fazermos tudo o que nos era possvel, isso parecia no ser, contudo, suficiente. Fora do quarto, que dava mesmo para o relvado, viam-se os pssaros, que no prestavam ateno a nada, e trauteavam, depenicando pedaos de tosta atirados pelos doentes que se podiam mover. J eram sete horas e a enfermaria despertara, de sbito, cheia de carrinhos com o pequeno-almoo e de suportes ruidosos que eram arrastados por aqueles que se dirigiam s casas de banho. As enfermeiras corriam de um lado para o outro transportando arrastadeiras, agulhas, pomadas e almofadas. Imerso fora naquele mundo, deixara de me sentir fatigado, pelo menos enquanto andasse de p. Havia alegria naquela rotina; parecia dizer: "Aqui ningum morre, est tudo sob controle." No meio de toda aquela brilhante eficincia, Roso continuava desacordado, graas sua Sparina. Tive de o sacudir vrias vezes antes de conseguir obter qualquer reao. Mas uma vez meio acordado, concordou que se sentia mais forte, antes de voltar a mergulhar no sono.

Uma tcnica de laboratrio pediu-me para a ajudar a tirar urna amostra de sangue a um doente com muito ms veias. J tentara trs vezes, sem sucesso. Com certeza que a ajudava, e com muito gosto, porque era, para mim, uma fonte de muito conforto ver aquelas tcnicas retirarem sangue pela manh. Para os leigos na matria poder parecer pormenor de pequena importncia, mas os estudantes de medicina ressentiam-se muito por passarem a maior parte do tempo que antecedia as rondas matinais a tentar sugar sangue das veias dos pacientes; quando elas principiavam, no tinham tido tempo de ver nenhum dos seus doentes, ignorando, conseqentemente, a sua evoluo. Quando as perguntas comeavam a chegar ("Qual o hematcrito deste doente, Peters?"), havia que alvitrar, pois tambm no tinha havido oportunidade de olhar para o quadro de registros. Mas no devia parecer uma suposio. Ripostar, sem hesitao: "Trinta e sete!", como se no tivssemos a menor dvida. No se punha, ali, nenhuma questo de honestidade. Era melhor aparar a jogada em vez de desafiar a desgraa dizendo que no se sabia, fosse qual fosse a razo. Ningum se ralava com o fato de se ter passado a noite a fazer vinte e sete contagens, exceto se no as tivssemos feito. De modo que havia que dizer trinta e sete rapidamente, o que, metade das vezes, fazia com que o professor passasse ao seguinte sem sequer se deter a pensar. Mas se se detinha, estava-se metido num bonito sarilho, a no ser que se conseguisse distra-lo fazendo referncia a um artigo recentemente publicado sobre aquela doena. Claro que se ele fosse verificar o registro, uma pessoa ficava perdida, situao que s poderia ser salva se o hematcrito fosse, efetivamente, de trinta e sete; caso contrrio, era necessrio dar uma desculpa qualquer como a de se estar a pensar noutro paciente. Isto poderia dar origem ltima e fatal pausa, em que o professor folhearia o quadro, em busca de outra pergunta. E a bilirrubina, Peters? Ento a que uma pessoa ficava encostada parede, sem sada possvel. Se tambm o nmero atribudo bilirrubina estivesse errado, a suspeita do professor relativamente possibilidade de nos estarmos a descuidar com os cuidados a atribuir ao doente espalhar-se-ia rapidamente por todo o hospital. Mas na feliz eventualidade de termos acertado, retomava-se o estado de graa e passava-se ao paciente seguinte a fim de assistirmos ao interrogatrio do prximo estudante. A hemoglobina difere do hematcrito na medida em que este varia bastante de pessoa para pessoa, enquanto o valor do primeiro , habitualmente, o mesmo em todas as pessoas, exceto em presena de anomalias hepticas ou sanguneas. Assim, decidimo-nos a entrar com a nossa cartada: "Era de cerca de um, doutor." Na escola mdica a maior parte do pessoal aprende a participar naquele tipo de jogo; se for feito como deve ser, ganha-se mais do que se perde. No Hava, os tcnicos tinham aligeirado o fardo das recolhas de sangue e eu no me importava de os ajudar de vez em quando. Alm disso, era bastante bom naquilo. Nem podia deixar de ser, depois de ter feito uns bons milhares de recolha na escola mdica. Ns, estudantes, tnhamos comeado por tirar sangue uns aos outros, o que, geralmente, no era complicado, embora alguns mostrassem bastante dificuldade. At mesmo este exerccio no fora levado prtica sem os seus momentos dramticos. Uma vez, depois de ter apalpado vigorosamente a veia do brao de um outro estudante do segundo ano, tivera-a ali, minha frente, to saliente que fazia lembrar um charuto barato. O torniquete j estava posto h quatro minutos, enquanto eu me enchia de coragem. Finalmente quando ia a enfiar a agulha, o meu amigo, pura e simplesmente, desapareceu. Aconteceu tudo muito rapidamente. Eu, que estivera to concentrado na

ao de espetar a agulha na pele vi-me, de repente, sem brao. O meu "paciente" encontrava-se estendido ao comprido no cho, desmaiado. Todos ns detestvamos aquelas sesses prticas, mas sempre era mais fcil do que cada estudante tirar o sangue a si mesmo. Nunca esquecerei a primeira vez em que colhi uma amostra sangunea a um verdadeiro paciente. Aconteceu no princpio do terceiro ano, na altura em que ns, estudantes, damos incio aos servios mdicos de enfermaria. Para cmulo do azar o nosso primeiro dia na enfermaria coincidira com uma mudana de internos e residentes. Para os novos residentes a oportunidade era irresistvel. Decidiram verificar os diagnsticos de todos os doentes, necessitando, para isso, de provas: fatos precisos, dados laboratoriais incontroversos. Em resultado, ns, estudantes, tivemos de tirar cerca de meio litro de sangue a cada um dos pacientes que nos estavam destinados. O primeiro que me coube, um pobre tipo, era um alcolico crnico que padecia de uma cirrose heptica em estado avanado. As suas veias de superfcie tinham desaparecido h anos e tive de o picar doze vezes, andando s voltas com a agulha na zona interior do brao e sentindo-a, de cada uma das vezes, abrir caminho, com um som estranho por entre estruturas internas desconhecidas. Tivera, finalmente, o bom senso de desistir e recorrer orientao de um interno, que me ensinou a introduzir a agulha na grande veia femural da virilha, um processo que conhecido como desbridamento da femural. Agora era a tcnica de laboratrio que estava a ter o mesmo problema com um tal Sr. Schmidt, a quem apalpei o brao em busca das habituais veias, enquanto ele me segurava na seringa. O motivo por que no tinha conseguido retirar uma nica gota de sangue saltava vista: no encontrava uma nica veia decente nos braos do homem. De modo que procedi a um desbridamento fmural e o assunto ficou resolvido num pice. Um pouco mais ao fundo da enfermaria, fui ter com o Sr. Polski, que era um problema para mim, sobretudo porque no fora capaz de estabelecer o mnimo relacionamento com ele. Padecia de diabetes, de uma circulao perifrica extremamente deficiente e de uma grande infeco no p direito. Na semana anterior tnhamos procedido a uma simpatectomia, cortando-lhe os nervos que eram responsveis pela contrao das paredes dos vasos sanguneos da extremidade das pernas. Mas estava a mostrar poucas melhoras. Por causa da dor, insistia em ter a perna direita pendurada na beira da cama, o que apenas limitava ainda mais a j deficiente circulao que lhe restava. A princpio, tentei uma aproximao amigvel, explicandolhe cuidadosamente o que acontecia quando tinha a perna pendente. Apesar disso, todas as manhs o ia encontrar na mesma posio. Mudando de tctica, fingi estar furioso, gritando-lhe pretensamente enraivecido, o que no alterou a situao, tendo apenas feito com que ele gostasse ainda menos de mim. O p, agora negro e gangrenado, j fora escalonado para amputao. Inclinei a cabea senhora Tang, uma chinesa idosa que tinha um cancro a crescer-lhe dentro da boca. No sendo capaz de falar, limitava-se a acenar com a cabea. O cancro estava to desenvolvido que at j lhe dissolvera alguns dentes e o maxilar inferior do lado esquerdo, transformando-se, por fim, numa massa fungosa, incontrolvel, que ocasionalmente lhe abria caminho atravs de um dos lados da garganta. Ela era como muitas pessoas de idade chinesas, que consideravam o hospital apenas como um local para onde se ia morrer, s l indo quando estavam j muito prximas do fim. Pouco mais podamos fazer pela senhora Tang para alm de tentarmos aplicar-lhe alguma terapia de raios X. Cada dia que passava, o cancro estava maior e, estranhamente, a pobre senhora parecia cada vez menos real, talvez porque no podia falar, ou talvez porque se mostrava to resignada.

Havia outros: uma bipsia a um ndulo linftico, uma bipsia mamra, duas operaes a hrnias. Cumprimentei cada um dos doentes, passando de cama para cama, chamando-os pelos nomes; agora j os sabia de cor. At conhecia mesmo os familiares de muitos daqueles que j se encontravam conosco h mais tempo. O outro interno acolheu um grupo de residentes que acabara de chegar, incluindo o chefe destes, e a ronda matinal principiou. Era uma operao rpida; provavelmente, fazamos lembrar um bando de pssaros, movendo-nos desajeitada e rapidamente, quase nos pisando uns aos outros na nossa pressa, enquanto amos de cama em cama. A rapidez era imprescindvel, pois tnhamos s meia hora at a primeira operao marcada. No se discutiam pormenores; no fazamos muito mais do que contar as cabeas para nos certificarmos de que estavam todos. Gastrectomia, cinco dias passados sobre a operao, recuperao lenta. Hrnia, trs dias ps-operatrios, possvel alta. Veias varicosas, trs dias, alta tambm provvel. lcera gstrica, raios X completo, marcado para cirurgia. Os raios X mostravam a lcera? Sim. timo. Na enfermaria seguinte, mantivemo-nos pelo meio do corredor, caminhando um pouco mais lentamente. Um politraumatizado, uma sndroma mediastnica e um outro caso que aguardava os resultados do aortograma. Descrevi rapidamente o estado de cada um dos doentes que estavam a meu cargo. O outro interno fez o mesmo. As enfermeiras eram quatro e terminamos o ltimo caso exatamente dezessete minutos depois de termos comeado. Peters, faa mais um desbridamento Potts enquanto ns vamos UCI e pediatria. O pequeno grupo desapareceu esquina do corredor e eu virei-me para o quarto de Marsha Potts, confuso e irritado, protestando silenciosamente. Ela nem sequer era minha paciente. Sabia que tinha sido escolhido porque s tinha a primeira cirurgia marcada para as oito, em vez de ser, como era habitual, s sete e meia, mas mesmo assim no tinha vontade nenhuma de me voltar a envolver com aquela doente, depois da triste figura que fizera na noite anterior com a presso sangunea da pobre. Alm disso, aquele tipo de inciso podia ser traioeira. Ainda fizera muito poucas, independentemente do fato de, naquele caso, ser particularmente desagradvel. Fosse como fosse, Marsha Potts precisava de que lhe fizssemos um desbridamento porque era urgente providenciarmos-lhe mais fludo e alimento intravenosos; no dispondo de mais veias utilizveis, tnhamos de, atravs de uma inciso, procurarmos uma mais profunda. Ao entrar no quarto, a agradvel luminosidade da manh desvaneceu-se. At mesmo a chilreada dos pssaros se tomou inaudvel para mim, embora, evidentemente, eles ainda se encontrassem l fora. O cheiro era quase avassalador, to pungente e repulsivo que parecia tornar o ar mais pesado. Era o cheiro forte dos tecidos em decomposio, misturado com o suor e o odor enjoativo do p de talco que era utilizado numa v tentativa de disfarar o fedor. Para mim, o talco s tornava as coisas ainda piores. Tentando no olhar para o rosto da pobre mulher, coloquei trs mscaras cirrgicas para atenuar o cheiro, mas as maiores dificultavam a inspirao do ar espesso. No queria tocar em muitas coisas ali dentro. A morte parecia ter-se espalhado por todo o lado, quase contagiosa. Levantei o lenol do fundo da cama, destapando-lhe o p direito. Viam-se ulceraes na barriga das pernas e no calcanhar. A verdade que a mulher tinha chagas espalhadas por todo o corpo, onde quer que este tocasse nos lenis de baixo. Depois de fazer incidir o foco intenso de uma lmpada na zona mdia do calcanhar, enfiei as luvas de borracha e abri o armrio dos instrumentos esterilizados.

O bisturi penetrou-lhe na carne sem encontrar a menor resistncia. Tinha um pequeno edema no p, de modo que em vez de sangue saiu-lhe um pouco de lquido claro. Tive sorte em encontrar imediatamente a veia e em no a cortar acidentalmente. Depois de fazer uma pequena abertura na parede da veia, introduzi o cateter sem dificuldade e logo primeira tentativa enquanto gotas de suor me apareciam na fronte devido ao calor da luz forte. Prendi o tubo com o auxlio de seda e depois fechei a ferida, vendo o soro de manuteno a correr livremente. Afastei o carrinho do esterilizador com o p, tirei rapidamente as luvas e sa o mais depressa que me foi possvel do quarto, em direo luz do sol e aos pssaros. Olhando para as mos, senti-me muito desgostoso comigo mesmo, no sabendo exatamente porqu. Ela era um ser humano; era meu dever ajud-la. Mas as condies em que ela se encontrava despertavam-me uma repulsa de tal modo incontrolvel que tinha dificuldade em aceitar essa responsabilidade. Que era feito da minha compaixo; para onde estava ela a ir? A minha primeira "preparao" foi s oito horas. Tratava-se de uma colecistectomia ou remoo da vescula biliar, que ia ser levada a cabo com um cirurgio particular. A minha paciente, a senhora Takura, estava destinada a outra sala de operaes, onde seria submetida a uma remoo de gnglios; esta deveria comear s nove, exceto se se verificassem complicaes com os gnglios. Como no podia deixar de ser, ia chegar atrasado interveno da senhora Takura, mas isso j era costume. O interno uma espcie de peo no jogo de xadrez mdico; a primeira linha de defesa, sacrificado sem remorso, dispensvel no fim, mas necessrio, ao que parecia, no meio. Entrei no compartimento reservado aos cirurgies e comecei a vestir uma bata verde. Estava to cheio que todos levavam o seu encontrozinho bem-humorado de vez em quando. De fato, o sentimento de igualdade e de aceitao de que todos gozavam como pessoas tomava aqueles preparativos num autntico prazer. Na velha escola mdica, os estudantes e o pessoal da casa vestiam-se numa rea completamente diferente, separada por portas e uma escada do sanctum sanctorum que era o vestirio dos chefes de clnica. Era quase como se a imagem do cirurgio se desfizesse se o vssemos no seu estado natural. Um dos chefes de clnica da escola mdica era to antiptico que os estudantes tremiam autenticamente sempre que tinham de lhe apresentar os seus casos. Um amigo meu (um mdico excelente, embora com tendncia para se enervar diante das audincias) teve, uma vez, um lapso de memria total na altura em que ia a comear a fazer referncia aos dados de determinado doente em frente desse tal chefe de clnica. Eu sabia que ele estava perfeitamente a par de todos os aspectos, mas no parecia capaz de os expressar. Esta mulher apresenta um... hum... ah... Ficou terrivelmente ruborizado e a pulsao comeou a fazer-lhe latejar a base da nuca. O chefe de clnica podia perfeitamente ter facilitado a situao sugerindo que voltssemos mais tarde ao caso ou ento, referindo uma palavra-chave do quadro de registros, desse um empurro a memria do estudante. Nem pensar nisso. Tivera um acesso de raiva, gritando que no era possvel que uma pessoa to estpida tivesse conseguido entrar na escola mdica, ordenando em seguida ao rapaz que lhe desaparecesse da vista at conhecer os seus pacientes suficientemente bem para lhos apresentar. Nem todos os chefes de clnica eram assim, mas ainda havia um nmero significativo deles e, por vezes, at o prprio responsvel mximo. Claro que depois de um ou dois episdios deste gnero, as relaes entre o estudante e o paciente ficavam em muito mau estado quando chegava a altura de lhe tirar sangue na manh seguinte. medida que o tempo ia passando, muitos dos detalhes vividos na escola mdica ficavam diludos no tempo, com exceo, penso

eu, das cenas bombsticas e cheias de fria desencadeadas por cirurgies arrogantes. Alguns deles comportavam-se to violentamente que pareciam odiar os estudantes de medicina e, no entanto, estes homens eram os nossos mentores, os nossos professores e modelos. Depois da bata verde, calcei umas botas de lona e atravessei, desajeitadamente, o longo corredor que ia dar cirurgia. Algumas das portas das salas de observaes estavam fechadas e, ao passar em frente das pequenas janelas de vidro, vislumbrava grupos que faziam lembrar adeptos do Ku Klux Man reunidos no meio das salas. Algumas portas encontravam-se abertas, umas j com casos a seguirem o seu destino, outras preparadas para aqueles que ainda haviam de chegar. Dezenas de enfermeiras deambulavam de um lado para o outro, altamente organizadas e atarefadas, muitas bastante bonitas, coisa que no era fcil com aquelas batas grosseiras e o cabelo escondido debaixo das toucas prprias para as salas de operaes. Outras, porm, sairse-iam muito bem como guarda-rede da equipa dos Gigantes de Nova Iorque, nem precisando de equipamento, bastando assustarem o adversrio at o submeterem. Toda a gente dava os bons-dias; era um local amigvel. Quando me dirigira para o lavatrio a fim de me "preparar", o cirurgio e o residente j ali se encontravam. Este era oriental, pequeno, silencioso e cheio de respeito. Sorri para mim prprio lembrando-me da descrio que o meu amigo Carno tinha feito daquele residente, dizendo que era to pequeno que tinha de correr de um lado para o outro, no chuveiro, para conseguir ficar molhado. O sorriso provocou-me ccegas, debaixo da mscara. Estranho como aquilo sempre acontecia. Quando acabava de me preparar vinha a comicho, quase sempre num dos lados do nariz ou ao canto da testa. Claro que s depois de a operao terminar que me podia coar. Franzir o nariz e a testa provocavam-me um alvio ocasional, mas a comicho permanecia, flutuando ao sabor do meu grau de concentrao. Aquilo era, para mim, o que de mais desagradvel podia acontecer na sala de operaes, para alm dos afastadores. Voc chama-se Peters, no verdade? Onde que estudou? Oh, um dos rapazolas do continente, hem? L estavam os preconceitos. Tudo aquilo me parecia agora um disparate, j que um dos motivos mais fortes que me levara a optar pela medicina fora precisamente o desejo de entrar para um grupo social cujos membros gozassem de um ambiente altamente fraterno e polido, um grupo cuja dedicao e treino o colocasse acima das trivialidades e da mesquinhez da sociedade vulgar. Escusado ser dizer que j me deixara a muito de iluses; ficara tudo bem claro logo nos primeiros tempos da escola mdica. No obstante, a competio para a entrada nela era to violenta que se consegussemos ser aceites numa das poucas escolas mdicas principais, isso queria dizer, quase sempre, que havamos conseguido passar na faculdade, sobretudo com os valores mximos. Da que os tipos que eram obrigados a ficar nos ltimos lugares da bicha para escolherem a escola para onde iriam se sentissem, normalmente, vtimas de um sistema em que o desempenho era determinado pela dura e imutvel realidade do que vinha escrito nos papis. Imaginavam que os tipos da torre de marfim olhavam para eles como se fossem cidados de segunda classe. Era um perfeito disparate. Toda a gente saa no outro extremo da enorme mquina de fazer mdicos parecendo e pensando exatamente da mesma maneira, e com o mesmo diploma para exercer medicina. De fato eram precisamente as semelhanas entre estes homens o que me assustava e no as suas diferenas, que eram superficiais. Comeara a desconfiar, tarde demais, que a mquina estava a produzir um produto defeituoso. Os preparativos pr-operatrios eram, invariavelmente, montonos, levando cerca de dez minutos a executar. Primeiro, era o interior das unhas, depois uma lavagem

geral, em seguida a escovadela, que se estendia aos cotovelos, passando primeiro por cada um dos dedos. Voltava-se depois ao princpio. Terminados os preparativos l ia eu de rabo para a porta; o smbolo perfeito da posio do interno: de mos no ar em sinal de rendio ou submisso. Que coisa mais teatral! Mas o certo que j estava resignado. No fim de contas, eu que optara por seguir medicina! Nunca nenhum Romeu perseguira mais arduamente a sua Julieta. Pena que ela acabasse por se mostrar uma cabra. Estas divagaes pseudofilosficas no levavam a lado nenhum, no mudavam nada, mas ajudavam a passar as interminveis horas na SO. Toalha, bata, luvas, artigos que me foram dados por uma enfermeira de gestos perfeitamente mecanizados cujos olhos nem consegui ver, e a rotina estava completa. Comeamos a preparar o doente, enquanto o cirurgio, que era meio havaiano, e o anestesista, um oriental, mantinham uma conversao meio inteligvel que era um misto de ingls e chins. Vou a Las Vegas na prxima semana. Queres vir? perguntava-lhe o anestesista de rosto inexpressivo, do outro lado da mesa. O qu, tu pensas que eu sou um jogador desse tipo?! Tu cirurgio, fazer esse tipo de jogo... Vai-te lixar, amarelo. Pelo menos no sou nenhum fornecedor de gs caloteiro. Ah! Sem gs no haver trabalho para ti, nativo. Eu estava do lado direito do paciente, entre o cirurgio e o anestesista, de modo que toda aquela inestimvel sabedoria extica lingstica havaiana tinha de passar por mim. O residente encontrava-se do outro lado, inescrutvel. Depois de tudo pronto, o cirurgio pegou no bisturi e fez uma inciso na pele, logo abaixo da caixa torcica, do lado esquerdo. J ia a meio do corte quanto todos se aperceberam de que o doente ainda no estava completamente anestesiado. De fato, torcia-se e movia-se como se fosse vtima de uma comicho generalizada e insuportvel. O cirurgio e o anestesista soltaram, ao mesmo tempo, pequenas gargalhadas nervosas; a do cirurgio um pouco cnica, porque o que na verdade lhe apetecia era dizer ao anestesista que este no sabia o que diabo estava a fazer. No sei por que motivo este se riu, talvez para neutralizar o sarcasmo do cirurgio. Estes so conhecidos pela falta de tacto e pela embirrao que sentem em relao aos anestesistas. Hei, irmo, que se passa contigo? Ests a poupar gs para o doente que vem a seguir? D-lhe, homem, d-lhe! Como se este no respondesse, o cirurgio continuou. Parece que vamos ter de resolver este caso sem a ajuda do fornecedor de gs. Eu era, sem dvida, o rbitro de todo aquele pugilismo verbal, literalmente esmagado de encontro aparelhagem da anestesia pelo cirurgio. S depois de a abertura para o interior do ventre estar completamente aberta que me entregaram o familiarssimo manpulo do afastador, a alegria e a raison d'tre2 de qualquer interno. Existem milhares de tipos de afastadores, mas todos eles tm um nico objetivo: manter as bordas da ferida e os outros rgos afastados para que o cirurgio possa atingir o seu objetivo. Colocando os afastadores a seu gosto, fez-me sinal para que pegasse neles, erguendo-os ligeiramente em vez de os puxar para trs. Pois bem, ainda estive dois ou trs minutos a pux-los para cima, mas acabei por faz-lo para trs. Tinha dificuldade
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- Em francs, no original: razo de ser. (N. da T.)

em controlar a posio dos afastadores devido ao local onde me encontrava. Dois ou trs minutos eram o limite. Raios, levante isso! Veja, vou mostrar-lhe como se faz. O cirurgio tiroume os afastadores das mos. Assim! Por entre outros comentrios sobre a minha falta de jeito, manteve os afastadores levantados durante cerca de dois segundos antes de mos passar novamente, depois do que os mantive na posio desejada durante um, dois ou trs minutos e depois voltei a pux-los para trs. Era inevitvel. Mostrem-me um homem que seja capaz de erguer, em vez de puxar, as bordas de uma inciso durante uma colecistectomia de cinco horas, que estarei disposto a segui-lo at aos confins do mundo. A colecistectomia apenas o termo mdico que se d remoo da vescula biliar. Este rgo encontra-se inserido no fgado, debaixo deste, e o interno necessrio para puxar o fgado e as bordas da inciso de modo a que o cirurgio possa, com a ajuda do residente, proceder sua ablao. A vescula biliar um rgo muito traioeiro, o que toma a sua extrao um dos processos cirrgicos mais freqentes. Um dos auxiliares de memria que aprendi na escola mdica foi o das caractersticas normais do doente da vescula: gordura, fmea, quarentas e flatulncia. Durante toda a operao, os meus braos permaneceram, mais ou menos, debaixo do brao esquerdo do cirurgio. Este encontrava-se de p, minha frente, de costas para mim e inclinado, tapando completamente a inciso com o ombro esquerdo. Quando o anestesista ligou o rdio porttil e comeou a dar uma vista de olhos no jornal enquanto o cirurgio ia trauteando e cantarolando alternadamente, fora do tom em ambas as coisas, a cena diferia cada vez mais do silncio tenso da escola mdica, exceto naquelas exclamaes de desagrado que o cirurgio soltava de vez em quanto. Essas eram as mesmas. Muito bem, Peters, d uma olhadela. Inclinei-me sobre a inciso, um buraco sangrento com adesivos cirrgicos a manterem os rgos abdominais afastados. Ali estava a vescula biliar, o canal cstico, o canal comum, o... Okay!, chega. No quero estrag-lo. O cirurgio retrocedeu, afastando-me ao mesmo tempo e rindo-se com o anestesista. A sala de operaes um mundo feudal onde reina o respeito mais absoluto pela hierarquia e sistema de valores, que atribuem ao cirurgio a qualidade de rei todopoderoso, ao anestesista a do seu prncipe subserviente e ao interno a de seu escravo, pressupostamente grato por qualquer parcela de informao que considerem por bem conceder-lhe: uma rpida olhadela ao interior ou at mesmo a oportunidade de dar um ou dois ns. A olhadela que fora concedida servira de compensao ao fato de estar ali a segurar nos afastadores e a olhar ora para as costas do cirurgio ora para os ponteiros do relgio da parede que se arrastavam lentamente. No entanto a atmosfera que reinava era a habitual at o cirurgio pedir um colangiograma, um estudo de raios X que serve para ver se o canal comum se encontra livre de clculos biliares. Isto pode ser determinado atravs da injeo de um lquido contrastante nos canais, procedendo-se, em seguida, ao exame da rea atravs de raios X. Se houver mais pedras, elas no deixaro de ser notadas. Quando nenhum tcnico desse servio apareceu magicamente ao estalar dos seus dedos (encontravam-se todos ocupados a tratar de outros casos), o cirurgio praguejou e brandiu o bisturi no ar, ameaando o desencadear de terrveis represlias. As enfermeiras eram imunes a toda aquela exibio, assim como o anestesista, cujo rdio continuava a fazer ouvir a sua programao musical e noticiosa. Aquela cena, j

familiar, vinha baila sempre que, por fora das necessidades, era preciso proceder a um raios X a meio de uma operao. O tcnico chegou finalmente e tirou a prova, regressando passados alguns minutos com uma radiografia indistinta que o cirurgio declarou imediatamente tratar-se da tentativa mais falhada de todos os tempos. Queria outra prova? No! O cirurgio um mundo de surpresas. Pensei para comigo que tinha quase a certeza de que ele quisera aquele exame porque lera algures em algum jornal que o mesmo ficaria bem em qualquer registro operatrio. O resultado prtico dos raios X era quando muito neutro, o mesmo se podendo dizer no fim de contas da utilizao que lhe fora dada. No dia seguinte o radiologista ver-se-ia aflito para descobrir qual era a parte de cima da prova e a razo por que o hemostato aparecia no meio do sistema de canais. O seu relatrio basear-se-ia em puras suposies. O final desagradvel deste episdio viria mais tarde, quando o cirurgio dirigisse alguma observao sarcstica ao radiologista, que por sua vez sorriria de esguelha e replicaria que se os cirurgies fossem um pouco mais organizados talvez a radiologia pudesse fazer alguma coisa. Para dizer a verdade, o cirurgio anda constantemente em guerra com toda a gente: com o radiologista, o patologista, o anestesista, o programador das operaes, os residentes, as enfermeiras, os internos; constantemente rodeados, sentiam, por um pessoal ingrato e incompetente. Numa palavra, a maior parte deles era completamente paranica. Uma vez cumprida a misso dos afastadores, pedi licena para me retirar, explicando sucintamente que precisava de assistir operao da senhora Takura. Fui dispensado do resto da colecistectomia. Quando sa da sala de operaes para o corredor, ainda o cirurgio estava a refilar com os raios X e o anestesista continuava absorto na leitura do seu jornal. Os trabalhos com a senhora Takura j tinham principiado quando comecei a "preparar-me" pela segunda vez. Do stio onde me encontrava podia ver o cirurgiochefe residente e o residente do primeiro ano, Carno, muito atarefados a inserirem pinas subcutneas. Carno e eu tnhamos vindo para o Hava ao mesmo tempo e pela mesma razo: para nos afastarmos do stress e divertirmo-nos um pouco. Nos primeiros dias a coisa tinha resultado e estvamos at a pensar em arranjar um apartamento para os dois. Mas agora os nossos horrios no permitiam que nos reunssemos com freqncia. A amizade tambm era difcil e ilusria entre o pessoal mdico, muito mais do que na faculdade. O tempo para dispensar a esse tipo de coisas muito pouco. Toda a gente tende a introverter-se cada vez mais; a tornar-se mais alheia aos outros, at mesmo quando se afasta dos seus deveres profissionais. Nos ltimos anos da escola mdica os horrios de chamada so to diversificados que no se pode contar com quem quer que seja para jantar ou para uma festa. s vezes nem comigo mesmo podia contar. Era freqente fazer planos que depois era obrigado a abandonar por me encontrar demasiado assoberbado de trabalho para os cumprir. Havia tambm a inevitvel competio. Instalara-se dentro de ns desde o primeiro dia, como os esporos de um fungo, comeando pela premissa de que a medicina se encontrava no seu znite no centro universitrio orientado para a pesquisa. Era ali que os "bons rapazes" desapareciam. Para conseguir l entrar era necessrio, antes de mais nada, ir residir para um centro universitrio e, para isso, havia que conseguir um internato num dos poucos grandes hospitais existentes. Tinham-nos dito que os primeiros quatro ou cinco da classe seriam convidados a ficar como internos; o bilhete dourado para avanar mais um passo de gigante! Tenso! ramos cento e trinta

ao todo, na faculdade todos bons estudantes, a bater com a cabea nas paredes tentando empinar fatos o mais depressa que nos era possvel e aceitando o sistema de valores que nos dizia que tnhamos de nos manter no cimo. A alternativa, demasiado horrvel para ser contemplada, era de FALHARMOS e acabarmos por ir parar clnica geral de uma pequena cidade. Aquilo fora preparado para soar mal, to mal como ir da sute dos executivos para a caixa do correio. No fazia a menor diferena que nos sassemos bem; todos os elementos do grupo eram capazes disso. No fim de contas, no passvamos de cavalos treinados para correr, coisa que fazamos que nem uns loucos. A verdadeira questo estava em sairmonos melhor do que o parceiro do lado. Essa atitude no tornava o ambiente muito propcio criao de amizade, principalmente quando se tinha pouco tempo e quando desejvamos, normalmente, passar esse pouco que nos restava com uma rapariga. O sistema tambm afetava esse aspecto, sobretudo nos dois ltimos anos. A princpio, o fato de sermos estudantes de medicina d-nos uma certa mstica nas festas; toda a gente estava convencida de que haveramos um dia de conquistar fama e sucesso. Mas, a pouco e pouco, o horrio apertadssimo no nos permitia estar no stio prprio na altura prpria e acabavam por nos considerar pessoas com quem no se podia contar. Acabavam-se os convites, que passavam a ser dirigidos para terrenos mais frteis. Virvamo-nos ento para as raparigas que ali estavam; as que tinham horrios to loucos como os nossos. E elas viravam-se para ns. O hospital estava cheio de raparigas: tcnicas, instrutores, enfermeiras, estudantes de enfermagem; muitas delas francamente bonitas e a maior parte convenientemente disponvel. medida que o nosso treino nos forava a ajustar ao molde, fechvamo-nos dentro de ns mesmos e do mundo artificial da escola mdica e do hospital. A alterao era imperceptvel, quase inconsciente, mas firme; uma vez iniciada a escalada que conduzia torre de marfim, ali ficvamos, intelectualmente. Apesar de ter vindo para o Hava, ainda no me dividira totalmente. Nunca o faria. Ainda tinha um p na porta de volta ao continente; pelo menos, assim esperava. No era um rebelde ou um revolucionrio, preocupava-me apenas em ver para onde ia. Naquele momento estava a ir para a SO onde se encontrava a senhora Takura, novamente de rabo contra a porta e mos no ar, pronto a ser vestido e enluvado. Tinham apenas comeado a abrir o abdmen e o residente-chefe fez-me sinal para que me colocasse sua esquerda. Depois de deslizar para o meu lugar, entre ele e a aparelhagem do anestesista, entregou-me os lendrios afastadores e demos ento incio ao trabalho que, daquela vez, duraria oito horas. Foi difcil reconhecer a velhinha simptica que era a senhora Takura. Em vez da presena habitualmente agradvel e atenciosa, sangrava abundantemente. Fora sujeita a uma colecistectomia h alguns anos atrs e era difcil operar atravs de todas aquelas aderncias e do tecido fibroso. Passadas duas horas de operao, tivemos de dispor de algum tempo para fazer uma pequena sutura no intestino, altura em que se verificou uma forte "sangria" que encharcou o peito de Carno. A presso sangunea da senhora comeava a baixar e houve que substituir os frascos de sangue, j vazios, por outros cheios. O processo era duro e prolongado, mas o residente-chefe parecia estar a fazer um bom trabalho. Qualquer ligeireza de esprito que pudesse ter existido ao princpio desaparecera, medida que a fadiga se instalava em ns. Embora os filmes que se viam na televiso nunca o mostrassem, o humor desempenhava um papel importante na sala de operaes. Claro que este , muitas vezes, de gosto duvidoso, e feito custa do paciente, que jaz inconsciente e completamente alheio a tudo. Muitos cirurgies so capazes de deleitar o grupo operatrio durante horas, com as mais extravagantes historietas do passado. A minha

experincia limitada e, conseqentemente, o repertrio curto faziam com que me mantivesse calado a maior parte do tempo que duravam estes desempenhos; no entanto daquela vez, antes de me comear a preocupar com a senhora Takura, numa altura em que todos se sentiam bem-humorados, aventurei-me a relatar um episdio que fora o meu preferido na escola mdica. Constava que, certa vez, tinha aparecido no hospital uma senhora imensamente obesa, no tempo em que a SO ainda era coberta apenas por dois internos e um residente. Queixava-se de uma horrenda dor abdominal. Enfiando os braos at ao cotovelo no meio de todas aquelas banhas, os trs examinaram-na, conferenciaram entre si, reexaminaram-na, voltaram a conferenciar entre si, incapazes de chegarem a um diagnstico consensual. Finalmente, aqueles que eram de opinio de que ela estava com uma apendicite levaram a sua avante e l foi a senhora para a sala de operaes, onde se esparramou por toda a marquesa. Ouvindo falar da interveno, na altura em que o residente comeou a abrir caminho por entre as camadas de tecido adiposo at chegar cavidade peritonal, j um pequeno bando de seis ou sete membros do pessoal se tinha reunido em volta da mesa de operaes. Depois de ajustar a posio dos afastadores vrias vezes, medida que avanava para o interior, deteve-se, de repente, pedindo que lhe ajustassem o foco da luz de cima. Depois pediu uma pina e enquanto todos olhavam, em franca antecipao, ele tirou de dentro da senhora um pedao de pano branco. A assemblia mergulhou num silncio estupefato at que, simultaneamente, todos se deram conta de que o residente tinha cortado os tecidos at chegar mesa de operaes. A camada de gordura que cobria o abdmen da paciente era to vasta, que o residente comeara a escorregar para o lado, acabando por falhar completamente a cavidade abdominal. Mas as gargalhadas provocadas pela histria tinham-se, de h muito, desvanecido. Trabalhvamos agora no interior da senhora Takura e eu tinha os msculos dos braos e das mos dormentes de os manter tantas horas a fazer fora nos afastadores. Quando a hora do almoo veio e se afastou, o meu estmago revoltou-se, protestando, juntando-se comicho do nariz. Tinha a bexiga to cheia que no me atrevia a encostar-me marquesa. O tempo arrastava-se. Raramente conseguia ver a ferida, embora soubesse o que se estava a passar devido aos comentrios que o cirurgio ia fazendo. Os vasos iam sendo fastidiosamente cosidos uns aos outros (uma anastomose lado-com-lado) e a sutura final foi feita com dedos fatigados. Quando, finalmente, me vi livre dos afastadores, nem sequer conseguia abrir os punhos; mantiveram-se meio fechados at endireitar os dedos um a um e mergulh-los em gua morna. Embora fossem quase quatro da tarde, ainda no tnhamos terminado. Ainda era necessrio fechar. Tal como os outros, sentia-me exausto, esfomeado e no tinha posio para estar. Sutura aps sutura, agulha, seda, agulha, cosendo lentamente a longa inciso, principalmente pelo fundo e subindo at superfcie com laadas rpidas, at chegar sutura facial. Terminada. Em seguida, a pele. Quando tiramos as luvas j passava das cinco, altura em que principiava a minha gloriosa noite de folga. Urinei, assentei todas as indicaes ps-operatrias, mudei de roupa, comi alguma coisa, tudo pela ordem indicada. Ao atravessar a sala de jantar, sentia-me como se tivesse sido pisado por uma manada de elefantes selvagens em cio. Estava exausto e, o que era muito pior, frustrado. Assistira, durante nove horas seguidas, a intervenes cirrgicas. Oito horas tinham sido as mais importantes da vida da senhora Takura; no entanto, no me sentia minimamente realizado. Limitara-me a assistir, sendo provavelmente a pessoa que eles teriam menos dificuldade em dispensar. Claro que precisavam dos afastadores, mas, qualquer esquizofrnico catatnico o poderia ter feito

sem dificuldade. Os internos esto sempre ansiosos para trabalharem duramente, at mesmo para sacrificarem-se; acima de tudo para serem teis e para poderem aplicar os seus talentos especiais; para aprenderem sempre mais e mais. Mas eu no sentia nenhuma dessas satisfaes, apenas um vazio amargo e uma horrvel exausto. Depois do jantar, apesar de no estar de chamada, havia ainda que fazer o habitual trabalho nas enfermarias, pelo que me desloquei mecanicamente por entre uma srie de compressas, drenos e suturas. Escrevi novas ordens para a aplicao de intravenosas, dei uma olhadela aos relatrios que tinham vindo do laboratrio e escrevi a histria clnica, fsica e pr-operatria de um novo paciente, este com uma hrnia. Os soluos de Roso tinham voltado assim que este sara da hibernao em que a Sparina o mergulhara. Ignorei o que muito bem me apeteceu refugiando-me no meu cansao, racionalizando. At evitei olhar para o quarto de Marsha Potts. Dormir era impossvel, apesar de o no fazer h mais de vinte e quatro horas. Alm disso, queria afastar-me para longe do hospital, falar com algum. Os pensamentos que me enchiam a cabea eram demasiado confusos e deprimentes para os suportar sozinho. No consegui encontrar Carno em lado nenhum; provavelmente, estava com a sua namorada chinesa. Mas Jan, graas a Deus, apareceu, e disponvel. Apetecia-lhe ir dar um passeio e, talvez, um mergulho. Estava disposta a fazer tudo o que me desse na real gana. Dirigimo-nos para leste, rodando em direo ao violeta-prateado que cobria o crepsculo. A estrada levou-nos pelo Pali, em direo zona da ilha situada a barlavento, comeando a subir, gradualmente, at depararmos com as cores do Sol que principiava a desaparecer no horizonte, por detrs da imensido ocenica que se estendia diante dos nossos olhos. A cena era de tal modo potica que nos mantivemos em silncio at atravessarmos o tnel e desembocarmos novamente na sombra, em Kailus. Ali fomos encontrar uma praia onde podamos estar a ss. A minha cabea comeou, a pouco e pouco, a afastar os pensamentos hostis, e a priso vivida durante o dia, como o relgio de parede cujos ponteiros mal se moviam e os dedos crispados, pareciam j muito longe quando me pus a flutuar nas guas pouco profundas, deixandome embalar ao sabor das pequenas ondas. Mais tarde, deitamo-nos num cobertor e ficamos a ver as estrelas a nascer. Sentindo vontade de ouvir Jan falar, comecei a fazer-lhe perguntas sobre ela prpria, a famlia, os seus gostos e averses, os livros que preferia. De repente, dera-me aquele desejo de saber tudo sobre ela, de ouvi-la falar de si naquela sua vozinha doce. Passado pouco tempo cansou-se e perguntou-me como me tinha corrido o dia. Passei-o todo em cirurgia. Foi mesmo? Nove horas. Caramba, isso uma maravilha! Que fizeste? Nada. Nada? Bem, praticamente nada. Quero dizer, segurei nos afastadores, mantendo as bordas das incises abertas e o fgado de lado para que os mdicos autnticos pudessem operar. s um pateta! disse ela. Esse trabalho foi importante e tu sab-lo bem. Sim, foi importante. Mas o problema que qualquer pessoa, absolutamente qualquer pessoa o podia ter feito. No acredito.

 Sim, sei que no acreditas. Nem tu nem ningum. Toda a gente pensa que s o interno pode executar as tarefas do interno. Mas deixa-me que te diga: naquela sala de operaes, ningum poderia ter feito o trabalho da enfermeira seno outra enfermeira, o mesmo se passando com o anestesista e o cirurgio. Mas eu? Qualquer um! O primeiro tipo que aparecesse na rua. Perfeitamente qualquer um! Mas tens de aprender. Tocaste no ponto fulcral do problema. O interno plantado num nico stio, eternamente atrs dos seus afastadores. Chamam a isso aprender... essa a racionalizao que fazem em relao ao assunto... o que uma treta! Basta um dia para se aprender tudo o que diz respeito aos afastadores. No se necessita de um ano. H tanta coisa para saber, mas porque h-de isso acontecer a este passo de caracol? Uma pessoa sente-se to diabolicamente explorada! Deviam contratar pessoas para segurarem nos afastadores e porem os internos ali ao lado, a dar ns e a observar o trabalho do cirurgio. J consegues dar bons ns? perguntou ela. Aquilo deteve-me. No me lembrava de alguma vez lhe ter falado na minha dificuldade em dar ns, mas de qualquer maneira o comentrio dela foi extremamente desencorajador. O que queria dizer que no estava a conseguir que ela me entendesse e que no valia a pena tentar. Apesar disso, senti-me melhor, como se os meus prprios pensamentos tivessem, finalmente, clareado. Disse-lhe ento que ainda no era muito eficiente a atar ns, mas que, com a continuao, podia vir a aprender. Ela comeara a aproximar-se novamente de mim, excitando-me extraordinariamente. Acabamos por correr atrs um do outro pela beira da gua. Ela era to linda, to cheia de vida que me dava vontade de gritar de alegria. Beijamo-nos e mantivemo-nos abraados, rolando por cima do cobertor. Sentia-me ansioso por ela, sabendo que acabaramos por fazer amor e que ela me desejava tanto quanto eu a ela. Mas antes sentiu-se na obrigao de conversar um pouco mais, de me fazer algumas confidncias sobre a sua pessoa. Por exemplo, que fizera amor com um nico rapaz antes, mas que se sentira enganada porque acabara por descobrir que ele no a amava. Assim se passaram cerca de cinco minutos, findos os quais eu perdera todo o incentivo, chegando concluso de que, no fim de contas, fazer amor talvez at nem fosse l muito boa idia. Ela no acreditou quando lho disse e quis saber porque mudara de idias. A verdadeira razo, a minha frustrao interior, no a teria satisfeito. Disselhe que adorava o brilho dos seus cabelos e a sua forma de encarar a vida, mas que ainda no sabia se a amava. Isso pareceu agradar-lhe tanto que quase me fez mudar novamente de idias. Conduzindo de volta ao hospital, foi todo o caminho a cantar Where Have All the Flowers Gone? e eu senti-me em paz. Ests convencido de que no fizeste nada de til hoje, mas olha que isso no verdade disse ela de sbito, virando-se para mim. Ento o que foi? inquiri. Bem, salvaste a vida da senhora Takura. Pelo menos, contribuste para isso, apesar de pensares que devias estar a fazer outra coisa qualquer. No pude deixar de concordar com o ponto de vista dela que, por sinal, era muito simptico e que eu quase esquecera. Pela senhora Takura estava disposto a segurar em afastadores durante semanas. Chegado ao hospital, enfiei a bata branca e corri em direo UCI para ver como ela estava. A cama estava vazia. Olhei interrogativamente para a enfermeira, tentando no pensar no que podia ter acontecido. Morreu. Morreu h cerca de uma hora.

 Quem que morreu? A senhora Takura? Sim. A senhora Takura. Dirigi-me, a cambalear, para o meu quarto, sentindo os pensamentos a amontoarem-se dentro da cabea at se transformarem num caudal de lgrimas que me deixou vazio de tudo menos da idia de que aquele dia fora, todo ele, um horrendo aborto nem sequer redimido pelo ato do amor. Na cama, mergulhei num sono agitado.

Dia 172 URGNCIAS

Os meus ouvidos encontravam-se treinados para diferenciar os seus sons. No tinha dificuldade em ouvir as inconfundveis modulaes agudas e cclicas que iam aumentando progressivamente de intensidade e clareza medida que se aproximavam. O relgio marcava nove e um quarto da manh. Eu estava sentado atrs do balco da seo de urgncias, espera. Para algumas pessoas, at mesmo para aquelas que se encontravam mais prximas da ambulncia do que eu, a sirene continuava a ser audvel, misturada com o rudo de fundo generalizado. Outras, cientes da boa sade de que gozavam ou alheias falta desta, contentar-se-iam em deixar a sirene diluir-se no seu subconsciente, confundindo-se com o barulho dos carros, rdios, vozes. Para essas, tratava-se de uma coisa distante. Relacionava-se com os outros. Para mim, tomava-se invariavelmente mais alta porque eu era o interno responsvel pela seo de urgncias, a SU para aqueles que a conheciam e amavam. Os deveres que na SU me competiam podiam resumir-se sob a designao de servio oficial de boas-vindas hospitalar para todos os que aparecessem. E no havia dvida de que eles apareciam mesmo: os novos, os velhos, os que sofriam de insnia, os depressivos, os nervosos, ocasionalmente at mesmo os feridos e os doentes. Era ali que eu trabalhava, muitas vezes no meio da maior azfama; corria freqentemente, sentavame de vez em quando. Mas raramente dormia, sempre espera da temida ambulncia. O som da viatura significa problemas e eu no me sentia preparado para lhes fazer frente, nem acreditava que alguma vez o viesse a estar. Embora tivesse sido designado para a SU h mais de um ms, o estado emocional que, acima de tudo, continuava a prevalecer em mim era o de medo. Medo de que se me deparasse um problema que no fosse capaz de resolver e fizesse asneira. O irnico que fora atirado para aquele novo meio, o qual exigia opes mdicas radicalmente diferentes, precisamente na altura em que comeava a desenvolver um certo grau de confiana no meu trabalho e nas enfermarias e na sala de operaes. Excetuando aquele grupo de enfermeiras altamente competente que trabalhava comigo na SU, estava completamente entregue a mim mesmo, responsvel nico por tudo o que podia acontecer. Durante o dia no era mau de todo, pois nessa altura os mdicos andavam por ali e o pessoal auxiliar da casa mantinha-se apenas uns segundos afastado, mas noite podiam passarse cinco, dez minutos, sem que aparecesse uma nica alma. A as coisas podiam tomarse cruciais. Por vezes era obrigado a ser pouco agradvel. Nas urgncias, at mesmo os horrios eram diferentes. Fazia servio durante vinte e quatro horas e passava o dia seguinte de folga. O esquema no parecia muito mau, no entanto mudvamos de idias ao fim de uma semana de servios contnuos. Se essas nossas semanas de trabalho comeam s oito da manh de domingo, quando chegamos s oito de quarta-feira j temos quarenta e oito horas de trabalho em cima e ainda nos faltam outras quarenta e oito horas at completar a semana. O resultado que,

em duas semanas, ficamos com o nosso sistema nervoso s avessas; aparecem dores de cabea, os intestinos funcionam mal e trememos ligeiramente. O corpo humano foi concebido para trabalhar apenas um determinado nmero de horas, findas as quais necessita de dormir, no de ficar a funcionar at ao fim das vinte e quatro horas. A maior parte dos rgos do corpo, particularmente as glndulas, tm de repousar; as suas funes obedecem a um horrio regular, quer o resto do corpo durma ou no. Assim, depois de dezesseis horas de sono, as nossas glndulas ficam mais ou menos adormecidas, mas h que tomar as mesmas decises e assumir as respectivas conseqncias. A vida no menos inflexvel s quatro da manh do que ao meio-dia. De fato, alguns estudos sugerem mesmo que mais frgil a essa hora. O paciente que nos vem parar s mos mal parece existir, tudo feito com enorme esforo, a mais pequena contrariedade transforma-se numa terrvel fonte de irritao... A sirene aproximava-se, agora j bastante audvel. Ouvia-a com toda a ateno, na esperana de notar aquela ligeira alterao de tonalidade do som que nos mostrava que, daquela vez, a ambulncia seguia para um dos hospitais mais pequenos da rea. O que no aconteceu daquela vez. No a podia ver, mas pela maneira como a sirene se ia ouvindo cada vez mais

nitidamente, no havia dvida de que a viatura acabara de entrar nos terrenos daquele hospital. Dentro de poucos segundos desembocaria, de marcha atrs na entrada, e eu ali estava para a receber. No tinha dificuldade em ver, atravs do vidro da porta das traseiras, os caticos esforos de reanimao que o pessoal desenvolvia no interior da ambulncia. Um deles estava a aplicar massagens cardacas atravs da compresso do esterno do paciente, outro tentava, em vo, manter-lhe a mscara de oxignio no rosto. Assim que a ambulncia parou, corria abrir a porta. Iam a passar algumas pessoas, que se detiveram a olhar. Para elas, o acontecimento estava encerrado. A ambulncia chegara, o doutor encontrava-se a postos com uma srie de estranhos e miraculosos instrumentos mo, tudo estava bem encaminhado. Para mim era apenas o princpio. Ainda bem que ningum podia ler o que me ia no pensamento enquanto tentava preparar-me para o que estava para vir. Tragam-no para dentro do quarto gritei ao pessoal, ao mesmo tempo em que estes abrandavam o ritmo das suas tentativas de reanimao. Ajudei a tirar rapidamente a maca rolante para fora, empurrando-a atravs do pequeno corredor e informando-me de quanto tempo decorrera desde que o paciente mostrara alguns sinais de vida. No deu nenhum e j estamos junto dele h dez minutos. Tratava-se de um homem de barbas com cerca de cinqenta anos e to forte que fomos todos precisos para o passar para a mesa de examinao. Os segundos arrastavam-se, parecendo horas, enquanto a necessidade de tomar uma deciso se tomava cada vez mais imperiosa para mim; uma espcie de deciso que muito pouco falada fora dos hospitais. Devia declarar uma paragem cardaca ou que o doente fora vtima de um simples caso de MAC - morte chegada. Era, sem dvida, injusto exigirem-me uma tal deciso baseando-me nos dados que recolhera nos livros de estudo! No entanto, tomava-se imperioso faz-lo, e rapidamente. Que aconteceria se declarasse uma paragem cardaca? Seis semanas atrs tnhamos devolvido um homem vida j com oito minutos passados sobre a sua morte clnica. Agora jazia na unidade de cuidados intensivos transformado num autntico vegetal, vivo no sentido legal do termo, mas morto em qualquer outro sentido. Observar

aquele homem, dia aps dia, levara-me a sentir que ao proporcionarmos-lhe a semi-vida que a tecnologia tomava possvel, tnhamo-lo, de certo modo, privado da sua dignidade. O corpo funcionava h seis semanas: as batidas do corao, o bombear mecnico dos pulmes, os olhos dilatados e vazios; e os seus parentes estavam a ser levados at ao limite das suas reservas emocionais e financeiras. Que mo se atreveria a desligar a mquina respiratria, a cortar o fornecimento das substncias fornecidas por via intravenosa, a abrandar a ateno necessria para manter o nvel de concentrao inica da corrente sangunea estvel de modo a que o corao pudesse bater eternamente sem o crebro? Ningum deseja matar o gro de esperana que perdura at na mente mais objetiva. Mas h o problema da cama. necessria para outras pessoas que, provavelmente, esto mais vivas e que, no obstante, no tardaro em morrer se privadas dos recursos da UCI. Acabamos por ter de tomar uma deciso baseada em sutis e indefinidas gradaes da vida contra a morte. No se trata de uma questo de preto ou de branco, mas de vrios tons de cinzento. Que significa, verdadeiramente, estar vivo? Uma pergunta complexa, a que a mente nublada pela fadiga tem dificuldade em responder. Aonde que o mdico interno exausto pode acorrer nestes momentos, em busca de orientao? Aos colegas, onde conceitos estreis de verdade, religio e filosofia conduzem, invariavelmente, a uma aceita ao da vida como o oposto da morte? Ali no h ajuda possvel escola mdica? Talvez, mas na torre de marfim as complexidades da Reao de Schwartzman e a seqncia dos ciclos aminocidos relegaram as questes fundamentais para segundo plano. To-pouco podemos contar com alguma ajuda da parte do chefe de clnica. Este mantm-se, normalmente, em silncio, talvez perplexo, mas endurecido pela infinidade de casos semelhantes. E o familiar ou o amigo que est presente? Que diria essa personagem se lhe sugerssemos, humildemente, que podem existir pontos que se situam a meio caminho entre a vida e a morte? Alis, ele mal pode libertar-se da lembrana do que , ou foi, o pobre tio Charlie. Completamente entregue a si mesmo, o interno fecha-se ento dentro de si e toma, por vezes, decises arbitrrias que dependem do estado de exausto em que se encontra, do fato de ser manh ou de ser noite, de estar apaixonado ou de levar uma existncia solitria. E depois tenta esqueclas, o que no difcil se est muito cansado; e como est sempre cansado, esquece sempre, exceto a ltima vez, que a memria ainda pode fazer ressaltar do subconsciente. Furioso e indeciso, ele , mais uma vez, posto prova sem se sentir preparado... Paradoxalmente, apesar de ter seis pessoas em meu redor, sentia-me sozinho, ali de p, ao lado do vulto corpulento do homem de barbas que deixara de respirar. As extremidades do corpo deste estavam frias, o que no sucedia ao seu peito, que se conservava bastante quente; no tinha pulso, respirao, as pupilas mostravam-se fixas e dilatadas. Um dos membros do pessoal de assistncia da ambulncia continuava a falar comigo, pondo-me ao corrente dos fatos que o vizinho que tinha assistido o homem lhe contara. Este chamara o seu mdico depois de ter um ataque de asma naquela madrugada, mas depois piorara, ficando realmente to mal que se metera no carro e sara para o servio de urgncias do hospital. A meio do percurso, contudo, tivera um terrvel ataque de dispnia qu o deixou perfeitamente incapaz de respirar. Parara o carro, sara dele, andara alguns passos e cara no meio do cho. O vizinho, que o acompanhava, correu em busca de ajuda e chamaram a ambulncia. MAC disse, firmemente, tentando no mostrar indcios da menor dvida. A minha mente estava, para dizer a verdade, transformada numa amlgama de pensamentos desconexos, que corriam desordenadamente em busca de uma linha de orientao. Estranhamente, as manhs passadas na sala de urgncias so, para o interno,

os perodos de tempo mais vulnerveis. Apesar do revigoramento proporcionado por uma noite de sono, a sua capacidade para tomar decises encontra-se diminuda pela exausto provocada pelo ciclo de vinte e quatro horas. A sua experincia no basta para que tome as decises mais acertadas, com a certeza de que as tomar no atravs do pensamento racional, mas sim do puro reflexo. Consideramos como certo o velho aforismo segundo o qual o hbito faz o monge. E assim . freqente ao interno, no incio da sua carreira, deparar-se situaes em que tem a mente suficientemente clara para pensar, mas que, apesar disso, no consegue encontrar respostas. Como acontece com o esquizofrnico que no consegue controlar a quantidade de dados sensoriais entrados, a informao permanece, desassociada, dentro da sua cabea. De modo que o interno absorve toda a srie de experincias que desaba sobre ele; estas juncam-lhe a cabea em conglomerados dispersos at ele se sentir suficientemente fatigado para as relegar para o seu subconsciente, podendo at chegar a um ponto em que a experincia d origem familiaridade e a familiaridade resulta na aceitao sem raciocnio. Nessa altura j uma grande parte da sua humanidade se desvaneceu... Toda aquela atividade teve lugar em milsimos de segundos. No me mantivera imvel a ponderar e a lutar com as minhas incertezas enquanto o homem de barbas jazia diante de mim. Desde o momento em que abrira a porta de trs da ambulncia e a altura em que pronunciara MAC, no tinham sequer chegado a escoar-se trinta segundos. Mas parecia ter sido muito mais tempo e o acontecimento ficou a afetar-me durante horas. Numa coisa devia, contudo, estar grato. O meu treino fizera j com que evolusse o suficiente para no me dar vontade de voltar para trs a fim de lhe experimentar, mais uma vez, o pulso. A pergunta fulcral e determinante continuava, no entanto, a subsistir: porque deveria ser eu a tomar semelhantes decises? Sentia-me como que cmplice do mal, um agente desencadeador da morte daquele homem. certo que se no fosse eu a declar-lo morto, alguma outra pessoa o faria; eu no era indispensvel ao drama. fcil tomarmos esta atitude quando no estamos diretamente envolvidos, mas, no meu caso, no me sentia capaz de dar a questo por terminada to rapidamente. Acabara de tomar uma deciso sem a qual o homem de barbas no estaria naquele momento, sob o ponto de vista tcnico, morto. Naquela altura j o teramos todo cheio de tubos e agulhas, respirando por ele, mantendo-o legalmente vivo. De modo que o fato de ter cortado esta possibilidade fazia-me sentir responsvel pela sua morte. Teria eu sido demasiado precipitado ao pronunci-lo MAC, em optar pela sada mais fcil? Assim que o alvitrei, todas as portas mdicas se fecharam na minha cara. Tivesse a deciso seguido pela outra via, a favor da tentativa de reanimao, portanto, o primeiro passo a dar teria sido o de inserir um tubo endotraqueal que simulasse a respirao natural. Sempre considerara aquela tarefa um tanto complicada. Talvez o tivesse pronunciado MAC para me poupar ao trabalho. Ou talvez porque soubesse que todas as camas da UCI estavam ocupadas e calculasse que, mesmo que o reanimssemos, ele ficaria reduzido a mais um vegetal. Hoje penso que todas aquelas perguntas no tinham resposta, mas naquele tempo punham-me verdadeiramente louco. Foi nesse estado que, ao dirigir-me pelo corredor fora, dei de caras com a mulher e a filha. A primeira era alta e magra, quase esqueltica, de olhos escuros e encovados. Levava sandlias e uma espcie de vestido antigo a rasar o cho. Por entre as amplas dobras da saia, verdadeiramente embrulhada por elas, via-se uma menina de cerca de sete anos. A situao fazia lembrar um dos episdios que passava na televiso, Os Internos ou Os Jovens Mdicos, temperado com todos os ingredientes necessrios a uma confrontao dramtica ou terrivelmente sentimental. A realidade aqui, porm, no

tinha nada a ver com a situao com que Ben Casey poderia ter-se confrontado. Dar de chofre com a esposa e a filha, obviamente assustadas e preocupadas, no era nem dramtico nem sentimental, apenas mais um obstculo a ser ultrapassado por mim. Talvez uma terceira pessoa, mais onisciente, pudesse fazer algo mais. Mas eu no me tinha nessa conta. Sabia o que acontecera na sala que se encontrava por detrs daquelas cortinas, mas no fazia a menor idia do que aquelas pessoas pensavam, do que necessitavam de ouvir. E o que ainda era pior eu prprio me sentia desesperadamente deriva no meio dos pensamentos loucos que alimentava sobre a morte e a responsabilidade, sobre o que poderia ter acontecido. Tinha vontade de lhes suplicar que me ouvissem, os estudos que fizera sobre o ciclo Krebs ou sobre qualquer outro requinte da medicina. Que mal que a escola mdica me preparara para aquele gnero de situaes! Aprenda s os conceitos, Peters. O resto vem depois. O resto - morte amos aprendendo nossa custa de tentativas e erros at, finalmente, se cair no confortvel stock de frases como as que se ouviam na televiso. Lamento profundamente. Fizemos todos os possveis, mas o seu marido faleceu disse, suavemente. As palavras banais rolaram-me para fora, aparentemente eficientes, mesmo bastante satisfatrias dadas s circunstncias. Talvez tivesse futuro na televiso. A nica coisa que me preocupava era dizer que tnhamos feito todos os possveis, quando a verdade era que no tnhamos feito nada. As minhas palavras limitaram-se, no entanto, a ser uma estpida hipocrisia auto-apaziguadora. Serviriam perfeitamente. Mulher e filha ficaram ali paradas no meio do corredor, hirtas, e eu, virando-me, principiei a afastarme. Felizmente, no tinha mais nenhum paciente para ser visto. Assinei a folha de papel que oficializava a minha comprovao daquele bito e dirigi-me rapidamente para o gabinete destinado ao mdico de servio, atirando com a porta atrs de mim. A meio do percurso esbarrei contra a parede onde se encontrava um quadro que um laboratrio de medicamentos nos tinha dado, mostrando um grupo de incas a abrir o crnio a um desgraado qualquer; mas o calendrio da Playboy apenas baloiou ligeiramente, em protesto, e Miss Dezembro pareceu continuar impassvel. Deixei-me afundar num enorme cadeiro de couro. O quarto era grande, de paredes nuas, com exceo dos incas e do calendrio com a Miss Dezembro. Num dos cantos via-se uma estante baixa a abarrotar de livros e no outro, uma pequena cama e um candeeiro. O cadeiro em que me sentara ficava virado para a parede, pintada de verde-claro, onde se via a Miss Dezembro. Desejava ardentemente que a minha mente se tomasse to vazia como aquele quarto e igualmente plcida. Miss Dezembro ajudava; de fato, ela levava-me a ficar especado a olh-la. Que teria a Playboy contra os plos pbicos? Para alm de requerida abundncia no cimo da cabea, Miss Dezembro era lisa como um pedao de mrmore: no tinha plos debaixo dos braos, nas pernas e, aparentemente, nem vestgios deles entre as pernas, embora fosse difcil de ver ao certo devido ao presente de Natal engenhosamente embrulhado. Talvez a Playboy andasse a subestimar uma boa parte do seu mercado. No sabia que os plos pbicos eram to maus. De fato, recordando a noite anterior, cheguei concluso de que o tringulo pbico de Joyce Kanishiro era uma das suas particularidades mais atraentes. Sem ofensa para ningum; que esse pormenor era, nela, muito bonito e abundante. Quando se punha nua era bem visvel, independentemente da posio que adotasse. Calculei que fosse difcil colocar Joyce num calendrio da Playboy. Miss Dezembro, Joyce e os aspectos estticos do revestimento capilar do corpo no me conseguiram afastar inteiramente a imagem da cabea do homem de barbas

morto. Claro que no era aquela a primeira morte que se me deparava nas urgncias. Para dizer a verdade, logo no primeiro dia em que fora para aquele servio, ainda ficava todo a tremer s de ir ver um paciente com um pequeno ataque de asma. Parara uma ambulncia diante da entrada, apresentando-nos um rapaz de vinte anos a quem o pessoal assistente tinha vindo a fazer respirao artificial e massagens cardacas. Ficara virtualmente parado a torcer as mos e a esperar que algum chamasse um mdico. Que situao ridcula! Eu que era a pessoa com quem eles tinham vindo ter correndo, de luzes vermelhas a piscar, arriscando o prprio pescoo. Olhara para o rapaz, reparando que este tinha o olho esquerdo semi-desfeito. A pupila distorcida no mostrava sinais de vida. Que diabo poderia eu fazer com aquele olho? Mas no tive de esforar muito mais a cabea porque o rapaz no respirava nem tinha pulsao. O pessoal da ambulncia apressou-se a informar-me de que ele ainda no se mexera desde que, a pedido de um seu vizinho, o tinham ido buscar. Ao viraremno para a mesa de observaes, reparei numa ferida que se via na parte de trs da cabea. Tentei examin-la melhor, mas o orifcio, que tinha cerca de dois centmetros e meio de dimetro, encontrava-se obstrudo por partculas de massa enceflica, o que, de sbito, me fez perceber que ele tinha sido alvejado, que uma bala lhe entrara pelo olho esquerdo e sara pela parte de trs do crnio. As enfermeiras e o pessoal da ambulncia comearam a lamentar a sua sorte, tantos esforos para nada!, e eu prossegui a operao de rotina. Era um puro disparate auscult-lo, nada poderia j ser alterado, mas falta de outra estratgia pousei-lhe o estetoscpio no peito. A nica coisa que ouvi foi o som dos meus pensamentos, interrogando-me sobre o que haveria a fazer em seguida. Estavam sempre espera de que o interno fizesse vrias coisas, mas aquele rapaz estava to morto que j comeara at a arrefecer. Morreu disse, finalmente, depois de lhe apalpar os pulsos. Refere-se a uma situao de MAC, doutor? No houve paragem cardaca? Assim era, morte chegada. A sigla mdica era reconfortante: fazia-me sentir seguro. O rapaz com o orifcio na cabea fora um caso muito diferente do homem barbudo. Claro que o buraco me deixara meio morto de susto, mas depois ficara aliviado por me ver livre da responsabilidade de tentar descobrir o que fazer quele olho. O principal, sobretudo, que havia um grande orifcio na cabea e que o mesmo anulara, logo partida, qualquer necessidade de iniciativa da minha parte; conseqentemente, sentira pouca responsabilidade. Por outro lado, se daquela vez no tivessem retirado o lenol que cobria o homem barbudo, este ter-me-ia parecido bastante normal, como se estivesse a dormir profundamente. Trata-se de uma caracterstica comum s mortes provocadas pela asma. Tambm a autpsia no conduz a nada de especial, a no ser que a vtima tenha tido um violento ataque de corao. Sentado no gabinete dos mdicos, tentei imaginar Joyce Kanishiro no calendrio da Playboy. Faria um efeito sensacional. At cabelos negros ela tinha em redor dos mamilos. Seriam obrigados a retocar ligeiramente a fotografia. Joyce era uma tcnica de laboratrio com um horrio to esquisito como o meu. Isso no constitua problema, no entanto tinha um contra muito grande em seu desfavor: a companheira de quarto nunca saa. Sempre que acompanhava Joyce a casa, das primeiras vezes em que samos, l estava ela, sentada em frente do televisor a comer mas. Havia uma casa de banho, mas nunca era oportuno irmos para l. De qualquer modo, quando de l sassemos s cinco da manh, era certo e sabido que dvamos de caras com a companheira de quarto, uma noctvaga inveterada, que certamente ainda estaria a p a fazer alguma coisa. Depois de algumas noites repletas de situaes cmicas a que se seguiam sempre as ltimas notcias e a sesso de cinema, antes do fecho, na televiso, cheguei concluso de que Joyce e eu teramos de mudar de poiso.

As minhas divagaes sobre Joyce foram interrompidas por uma outra recordao, um episdio que tivera lugar ao fim de certa tarde, algumas semanas depois de ter entrado para aquele servio. A rotina fora a mesma de sempre: sirene, luzes vermelhas faiscantes e um tipo que, aparentemente, tambm parecera normal. Os assistentes foram me informando, ao mesmo tempo em que descarregavam o homem e o levavam para dentro, de que ele cara de uma altura de quinze andares, sobre um carro estacionado. Mexera-se? No. Tentara respirar? No. Mas parecia normal, repousado, fazendo lembrar vagamente o homem de barbas, mas um pouco mais jovem. Quanto tempo tinham levado a chegar com ele ali? Cerca de um quarto de hora. Exageravam sempre para menos. Observei os olhos do indivduo com um oftalmoscpio, no desviando a luz at descobrir os vasos sanguneos. Concentrando-me nas veias, no tive dificuldade em detectar pedaos de sangue solidificado que apenas poderiam ser cogulos. MAC dissera. No houve paragem cardaca. Tambm andara bastante preocupado com aquele caso, embora a queda de um dcimo-quinto andar fosse, de um modo geral, determinante. Depois a famlia comeara a chegar, aos magotes; no a famlia mais chegada, inicialmente, mas primos e tios, at mesmo vizinhos. Parecia que o homem (chamava-se Romero) escorregara enquanto pintava o exterior de um edifcio. Depois de as enfermeiras telefonarem esposa a inform-la de que Romero estava muito mal, a notcia do acidente espalhara-se velozmente, e quando a senhora Romero chegou ao local este estava cheio de gente a querer saber do estado do Romero e espera de o ver. Ao informar a senhora d falecimento do marido no meu tom de voz mais calmo e confidencial, ela ergueu as mos aos cus e desatou numa grande lamria. Aproveitando a deixa, o resto da multido comeou tambm a lamentar-se. Durante cerca de uma hora assisti ao espetculo mais incrvel e assustador que alguma vez me fora dado ver, desempenhado pela famlia Romero e os seus amigos, que afluam como uma massa contnua aos servios de urgncia. Batiam nas paredes, arrancavam os cabelos, gritavam, choravam, lutavam uns com os outros at, finalmente, comearem a partir a moblia da sala de estar. No tive tempo para divagar sobre as implicaes metafsicas do caso, estando demasiado atarefado em me proteger a mim e aos restantes elementos do pessoal. J no era a primeira vez que mdicos internos eram mortos nas urgncias. A srio! Mais tarde, o relatrio apresentado pelo patologista que procedeu autpsia revelou que a aorta de Romero sofrera uma ruptura. Aquilo fez com que me sentisse um pouco melhor. Mas eu sabia que o patologista no encontraria provavelmente nada to notoriamente avariado no homem de barbas. Estes os pensamentos que me assediavam ao estar ali esparramado no velho cadeiro de couro, enquanto os gigantescos, quase hilariantes, seios de Miss Dezembro pareciam tornar-se cada vez maiores. Joyce no tinha o peito assim. Tnhamos passado ento a ir para o meu quarto a fim de evitarmos a viciada em TV, e lembro-me vagamente de acordar s quatro e meia da madrugada, na altura em que ela se esgueirava pela porta das traseiras antes que mais algum se levantasse. A idia fora dela; eu pouco me ralava com o assunto. Mas fora assim que nos livrramos da menina das mas e da TV. Era um horrio estupendo. Durante as minhas vinte e quatro horas de folga passava a tarde a fazer surf, depois lia at ao cair da noite. Por volta das onze, Joyce chegava do trabalho e amos para a cama. Era uma rapariga atltica, que gostava de experimentar tudo quanto era lugar. Extremamente resistente e dotada de grandes apetites. Quando a tinha por perto, sentia-me incapaz de pensar noutra coisa.

Mas a cama do hospital que tinha no meu quarto fazia um barulho diablico e, alm disso, era muito pequena. Quando, por volta das quatro e meia, Joyce se levantava para sair, estendia-me, deliciado e luxurioso, por todo aquele espao. Durante uns tempos levantara-me ao mesmo tempo do que ela; parecera-me um ato minimamente delicado e ficava a dizer-lhe adeus enquanto ela descia as escadas e se metia no carro, afastando-se. Mas nos ltimos encontros limitava-me a apoiar-me sobre um dos cotovelos, ficando a v-la vestir-se. Ela no parecia importar-se. Naquela manh aproximara-se da cama, toda vestida de branco, e dera-me um beijo ligeiro. Disse-lhe que em breve nos voltaramos a encontrar. Era uma belssima companheira de folguedos. Quando, trs horas mais tarde, o telefone tocou a acordar-me, passara ainda to pouco tempo que quase esperara ver Joyce ainda ali. Devia ter adormecido antes de ela sequer sair. Eram sete e meia da manh de sbado, o dia mais atarefado das urgncias. Embora tivesse estado na cama durante oito horas, sentia-me, fisicamente, beira do colapso total. Ia ter um daqueles fretes de vinte e quatro horas. Seguira a rotina habitual, que comeava ao apoiar as mos no lavatrio, estudando os olhos raiados de sangue, e terminava chegando s urgncias um minuto depois das oito, como de costume. Estranhamente, apesar da habitual tendncia para os atrasos, conseguia chegar sempre a tempo de render o meu colega, que se retiraria furtivamente com a roupa toda suja de sangue e as plpebras a fecharem-se. Aquele sbado decorrera com relativa tranqilidade at chegada do homem de barbas, com a habitual preciso de pessoas que tinham deixado cair o ferro de vapor em cima de um p ou dado um encontro em alguma janela. Tudo casos fceis de resolver. J se escoara meia hora desde a questo do homem de barbas e, obviamente, nada de especial acontecera ainda, caso contrrio no me teriam deixado estar ali sentado, perdido em devaneios. O meu relgio de pulso marcava dez horas. Sabia que era apenas uma questo de tempo. Depois de uma pequena batida na porta, a enfermeira entrou para me informar de que tinha alguns pacientes minha espera. Sentindo-me quase aliviado por ser arrancado aos meus pensamentos, regressei luz do dia e peguei nas "histrias clnicas" que a enfermeira tinha preparado. Estas so profissionais de se lhe tirar o chapu. Acompanham rotineiramente cada um dos doentes que aparecem sala de examinao, tomam nota de todos os detalhes administrativos, desde a presso sangunea at temperatura, se acharem que necessrio. Por outras palavras, estudam muito bem o paciente. No que decidam quem eu devo ver ou no, porque tenho de assistir a todos, mas tentam estabelecer prioridades se h muita gente ou proporcionar-se alguma paz ocasional quando as coisas esto mais sossegadas. Sempre que chegava um novo interno, penso que a maior parte do pessoal ficava tentado a resolver tudo sozinho, sobretudo porque a maioria dos casos que apareciam no eram considerados de emergncia. Mas o interno era eu, vestido de bata, calas e sapatos brancos, estetoscpio guardado no bolso esquerdo segundo uma disposio muito especial, equipado com canetas coloridas, uma pequena lanterna, um martelo de reflexos, um oftalmotoscpio e quatro anos de escola mdica, aparentemente pronto para fazer frente ao que desse e viesse. O fato, na verdade, s acontecia em relao s doenas que j tivesse visto e tratado. Considerando que a variedade dos males do corpo humano tende para o infinito, no se podia dizer que estivesse, de forma alguma, preparado. A minha incapacidade era to grande que sentia vontade de fugir quando enfrentava uma sala de bebs a chorar e suturas para fazer. Depois de dez horas de trabalho, era normal ficar to estoirado que

mesmo que no houvesse pacientes no conseguia pensar. A manh era, portanto, a parte mais dura do dia, at ao princpio da tarde; o resto do tempo parecia decorrer com relativa facilidade. O primeiro dos dois pacientes recm-chegados era um praticante de surf que tinha sido atingido pela prancha na cabea, que lhe fizera um corte de cerca de cinco centmetros por cima do olho esquerdo. No apresentava qualquer deficincia motora ou visual. Podia mesmo dizer-se que estava timo, excetuando a lacerao. Telefonei ao seu mdico particular, que, como era de prever, me disse que avanasse e o cosesse. Era assim que as coisas funcionavam. Os pacientes chegavam, eu via-os e depois telefonava aos respectivos mdicos particulares. Se no tinham mdico, tratvamos de lhes arranjar um desde que, como evidente, tivessem dinheiro para pagar. Caso contrrio eram considerados pacientes do pessoal hospitalar e eu ou um dos residentes ficava com a responsabilidade de os tratar. suturar era a resposta habitual que os mdicos particulares davam relativamente aos casos de lacerao. Durante os primeiros dias interrogava-me muitas vezes se os mdicos privados apresentariam, ou no, a conta da sutura aos seus doentes, embora no fssemos encorajados a investig-lo. O certo que eu j era bastante eficiente a dar ns e a suturar, em virtude de ter forado a minha participao em vrias intervenes cirrgicas, incluindo hrnias, um par de hemorridas, uma apendicectomia e uma extrao de veia. Na maior parte dos casos, contudo, limitara-me a agarrar nos malfadados afastadores e, ocasionalmente, a cortar algumas verrugas. A remoo de verrugas era uma espcie de recompensa que o interno recebia por ser bem-comportado; a remoo de hemorridas tambm o era, embora num ponto mais elevado da escala. Tnhamos extrado dezenas de verrugas durante a permanncia na escola mdica, na cadeira de dermatologia, pois tratava-se de um processo que, para alm de no apresentar praticamente nenhum risco, estava bem aqum da dignidade de um cirurgio. A minha primeira verruga havaiana surgiu com o "Superchato". Andou s voltas durante cerca de uma hora antes de mandar uma amostra de tecido para a patologia. Eu fiquei espera, na esperana de que o tumor fosse benigno (felizmente era) e, em seguida, o "Superchato" fechou a inciso. Fazer de assistente a uma bipsia ao seio no tem absolutamente nada de extraordinrio, seja em que circunstncias for; daquela vez a interveno foi-me particularmente penosa porque no mexi uma palha, nem sequer nos afastadores segurei. Quando o "Superchato" acabou de dar o ltimo n, retrocedeu, tirou as luvas e informou-me, magnanimamente, de que podia remover a verruga que a paciente tinha no pulso, ordem a que obedeci reverentemente, dando origem a uma srie de observaes desagradveis da parte do "Superchato", que no entendia como era possvel eu no me mostrar mais agradecido. A minha operao seguinte dera-me, no entanto, uma maior possibilidade de participao; para ser mais preciso, posso at dizer que ia dando cabo de mim. Tratavase de uma operao s varizes e o cirurgio era um mdico particular com quem nunca trabalhara antes. Durante a operao de lavagem, disse-me que esperava de mim um trabalho cuidadoso na parte que me tocava, o que me fez pestanejar ligeiramente, ciente de que ele me confundira com um residente, erro que no esclareci. Ao responder-lhe que faria os possveis, respondeu-me que fazer os possveis no bastava, ou o fazia bem ou nem sequer tentava. No tive coragem de lhe dizer que nunca fizera nenhuma extrao de varizes em dias da minha vida. J assistira a vrias, mas s por detrs dos afastadores; alm disso, queria tentar. No me podendo dar ao luxo de abdicar das primeiras orientaes do cirurgio, fui-me deixando ficar um pouco para trs, at ele iniciar a interveno. A paciente era uma mulher de cerca de quarenta e cinco anos, com veias varicosas em muito mau

estado. O fato de s me terem designado para aquele caso alguns minutos antes do incio da operao no me dera possibilidade de ver a doente, pelo que s pude imaginar o estado em que as suas varizes ficavam quando se punha de p. Embora reconhecesse a teoria no tinha prtica de espcie alguma. Era como ter lido tudo sobre natao, saber o nome de todas as modalidades, ter observado outras pessoas a nadar, e depois ser atirado para guas onde no havia p. A minha tarefa consistia em fazer uma inciso na virilha, encontrar a veia superficial chamada veia safena e cortar o fluxo de todas as pequenas tributrias. Em seguida devia fazer outra inciso no tornozelo, isolar a mesma veia e prepar-la para a extrao. Esta era efetuada por um pequeno pedao de arame que eu introduziria nessa veia at chegar virilha; depois de atar o arame extremidade da veia, puxaria ambos pela abertura feita na virilha. Estes os passos que me competiam dar e que eu sabia de cor; lera, observara e pensara vezes sem conta no processo. Quase sem exercer a menor presso, o super afiado bisturi abriu caminho na pele da zona da virilha. Iniciei a operao de cortar com as tesouras, mas no conseguia control-las muito bem. Optei por utilizar antes uma pina hemosttica, no para laquear algum vaso, mas para separar rapidamente os tecidos depois de a introduzir entre as camadas adiposas. O mtodo atenuou a hemorragia e comecei ento a avanar, aprofundando progressivamente as camadas de gordura espessa. Chegado ao fundo da virilha no vi nada que reconhecesse, absolutamente nada; era como tatear no meio da escurido, at que encontrei uma veia. No fazia a menor idia de que veia se tratava, mas remexendo lentamente em redor desta, acabei por encontrar uma outra, mais larga, que calculei ser a veia femural. Se assim fosse, a primeira veia encontrada era a safena, no entanto no tinha a certeza. Estava trmulo, tendo j deixado cair os instrumentos uma vez ou duas, nervosssimo com o papel que me coubera desempenhar. No fim de contas, que diria o cirurgio se lhe confessasse que nunca tinha operado, com exceo de pequenas incises destinadas a permitir a entrada de intravenosas nas veias e a remoo de verrugas? Ainda pensei em lhe perguntar se era aquela a veia, mas o reconhecimento da minha ignorncia s iria fazer com que suspendessem a minha participao. De qualquer modo, segui em frente, esperando ter encontrado a veia safena e no um nervo. A tarefa comeou a tomar-se cada vez mais difcil. Para dizer a verdade, era uma confuso. Empurrava e puxava a veia, tentando extra-la, regulando o hemostato e limpando rapidamente o sangue com compressas, a fim de manter o campo de ao ntido. A veia abriu por vrias vezes e o sangue jorrou, mas consegui deter o fluxo com o auxlio de uma pina hemosttica, depois de vrias tentativas ao acaso. A nica coisa que me consolava no meio de toda aquela sangria era o fato de estar provado que a estrutura que isolara era, sem sombra de dvida, um vaso sanguneo. Talvez a tarefa mais complicada tivesse sido a de tentar atar os hemostatos que colocara no fundo da inciso para tentar estancar a hemorragia. Enrolar o fio de seda em redor da ponta do hemostato no era especialmente complicado, mas tentar segurar a primeira laada para depois dar a segunda parecia perfeitamente impossvel. E que assim que soltasse o hemostato, o fio ficaria lasso e o sangue recomearia a correr. De vez em quando, num rebate de conscincia, olhava para o cirurgio, mas este parecia completamente alheio aos meus esforos e atento s suas tarefas, onde tudo estava sob controle. Que maneira aquela de aprender, pensei. Mas parecia ser a nica sada. Se ele soubesse que eu era um novato na extrao de varizes, no me teria permitido fazer a operao. Era to simples quanto isso. De modo que continuei a avanar, libertando, finalmente, todas as tributrias que iam dar veia safena.

O fato de as ter j isoladas no me impedia de estar nervoso com o receio de cortar a veia ao meio, o que seria irrevogvel. De modo que me dirigi para o tornozelo, onde fiz uma inciso, no tendo qualquer dificuldade em localizar a veia safena porque era a mesma que utilizava, naquela zona, para fazer incises para a introduo de sondas para as intravenosas. Fiz passar lentamente o arame pelo interior da veia, puxando-o depois para fora atravs do corte inguinal. Depois de atar a veia ao mesmo, do lado do tornozelo, puxei-o, juntamente com a veia, extraindo ambos. Um esguicho de sangue, um pequeno som e a veia saiu toda, enrugada em redor do arame. O cirurgio tinha, de h muito, terminado a outra perna, desaparecendo logo em seguida para tomar um caf, deixando-me todo o trabalho de sutura. No me chegou aos ouvidos nenhuma notcia posterior de que tinha havido algum problema com a perna que me coube da senhora, pelo que deduzi que no ficou mal servida com a minha estria. Apesar de ter cosido centenas de incises na sala de operaes, as primeiras laceraes a que tinha tido de acorrer nas urgncias foram demasiado complicadas para as minhas possibilidades; por um lado, quase todos os acidentados que acorriam a esta seo hospitalar estavam despertos e observavam tudo com grande ateno. No meu primeiro dia de servio, quando a enfermeira me perguntou, depois de me acordar, que espcie de sutura eu queria, foi o mesmo que pedir-me o nmero da populao de Madagscar. Nas urgncias o cirurgio quem estipula o tipo de material com que deseja coser, antes de a interveno comear; na sala de operaes, limita-se a utilizar o que a enfermeira deixou preparado antes de se ir embora. Mas nas urgncias h vrias hipteses de escolha: nylon, seda, mersilena, categute; cada qual com a sua espessura. A enfermeira no estava a tentar rebaixar-me; queria apenas instrues. Que suturas vai utilizar, doutor? No fazia a menor idia. As do costume, enfermeira. As do costume, doutor? Obviamente, no as havia. Hum... nylon alvitrei. Que tamanho? Quatro O disse, no tendo muito bem a certeza do que estava a pedir. Escusado ser dizer que depressa aprendi tudo o que era necessrio sobre suturas e tambm sobre a tcnica em si, mas s depois de vrias tentativas e erros. Na primeira vez pus demasiados pontos e na segunda sobrou-me pele. A pouco e pouco, mas de forma segura, fui aprendendo pequenos truques tais como extirpar pequenas bordas irregulares e at coisas mais sofisticadas como dar pequenos pontos em Z para alterar o eixo da lacerao e produzir cicatrizes mais pequenas. Acabei por gostar bastante daquele trabalho porque se tratava de um problema objetivo para o qual havia uma soluo clara e determinada que eu aprendi a providenciar com razovel rapidez. Fez com que me sentisse til, uma sensao rara e inestimvel. Toda essa aprendizagem ficara j para trs. O do surf estava estendido minha frente, com a cabea coberta por um lenol. Comecei a desinfetar a lacerao que se via atravs da pequena janela aberta no tecido, anestesiando-a em seguida com xilocaina. Guiado pelo movimento rotativo do meu pulso, introduzi a agulha com a linha de nylon enfiada numa das bordas da ferida, tirando-a do outro lado. Puxei o fio para o lado por onde tinha comeado e dei um n, que deixei ligeiramente lasso para que os tecidos, ao fecharem, unissem as duas extremidades. Mais quatro suturas deram o trabalho por terminado.

O outro paciente era uma rapariga algo misteriosa, de vinte anos, que apresentava sintomas de uma doena crnica. Confessou ter sido diagnosticada e tratada de lpus heritematoso disseminado. S que o nome da doena bastava para assustar e o certo que o lpus uma doena muito sria. Era uma das tais maleitas por ns discutidas ad nauseum na escola mdica porque o fato de ser to rara e ainda mal conhecida tornava-a propcia a grandes especulaes acadmicas. Da que no me sentisse totalmente inepto; mas o pior que ela queixara-se de dores abdominais, o que no sintoma habitual em algum que sofre de lupus. Tentando estabelecer uma ligao entre os dois fatos, apalpei-lhe o abdmen e fiz-lhe algumas perguntas sobre o estado em que se sentia, a que ela ou a me responderam. Em seguida, precisando de refletir, voltei para a secretria-balco que fazia de recepo de urgncias e dei voltas cabea procura de algumas associaes entre a dor e a doena bsica. Enquanto tentava descortinar algum teste laboratorial suficientemente extico para aquele caso, me e filha aproximaram-se, disseram-me que a dor tinha desaparecido e saram porta fora. E foi assim que terminou o meu desafiador diagnstico-mistrio e um dos poucos casos de urgncia que os quatro anos de escola mdica me tinham preparado para tratar. Foi nesse momento que Quase chegou a correr, tendo praticamente um colapso minha frente, apoiando a testa no balco e ofegando assustadoramente. O verdadeiro nome desta personagem era Fogarty, mas chamvamos-lhe Quase porque se tratava de um homem que tinha o costume de esperar mesmo at ao ltimo momento antes de vir s urgncias para lhe tratarem da asma. Era como esperarmos que o combustvel do carro acabasse para acostarmos a uma bomba de gasolina. As enfermeiras conduziramno, azulado e estertorante, para uma das salas, enquanto eu ficava a preparar um pouco de aminofilina. J tivera oportunidade de tratar Quase vrias vezes, a primeira das quais fora logo ao segundo dia do incio do meu trabalho nas urgncias. Aprendera bastantes coisas sobre a asma na escola mdica, em termos de gradaes de presso pulmonar, alteraes no pH, diminuio do funcionamento muscular, conhecendo at as drogas que eram teis a estes casos: epinefrina, aminofilina, bicarbonato, THAM e esterides. Mas no percebia patavina de dosagens. De modo que, na primeira vez, enquanto Quase ficava noutra dependncia a respirar atravs de uma mscara de oxignio, eu ia a correr biblioteca do pessoal consultar um livro sobre o assunto. Tudo menos perguntar s enfermeiras. Para dizer a verdade, os casos a que assistira na enfermaria tinham-me dado uma idia da quantidade que devia ser dada a um doente acamado. Mas aquele movimentava-se pelo seu p, o que era uma grande diferena. No se utilizam as mesmas doses. Perguntar s enfermeiras mais alguma coisa deixar-me-ia completamente desmoralizado. De qualquer modo, eu e o velho Quase j nos tnhamos habituado um ao outro e a aminofilina resolveu o problema, como de costume. Embora as urgncias ficassem por vezes to apinhadas que os pacientes tinham de se sentar no cho ou apoiar-se s paredes enquanto esperavam pela sua vez, era mais comum haver um fluxo permanente durante o perodo das vinte e quatro horas, atingindo por vezes os cento e vinte, ou coisa do gnero, nos dias de semana e do dobro aos sbados. Eram quase dez e meia da manh. A corrente comeara a fluir e eu movimentava-me rapidamente de um caso para outro, chamando os mdicos particulares e no tendo sido ainda obrigado a dar muitas voltas cabea, quase esquecido do onipresente receio do prximo caso complicado que pudesse aparecer. Num dos quadros de registros lia-se Principal queixa: depresso. Tratava-se de uma senhora de trinta e sete anos. Ao entrar no quarto vi-a acender um cigarro colocando as mos em forma de concha, como se estivesse muito vento. Levantando a cabea com o cigarro precariamente preso ao canto da boca, olhou para mim sem expresso.

 Desculpe, minha senhora, mas no pode fumar aqui dentro. Aquelas garrafas verdes que ali v esto cheias de oxignio. Est bem, est bem! Obviamente irritada, esmagou implacavelmente o cigarro num pequeno prato de ao inoxidvel acidentalmente esquecido sobre a mesinha de cabeceira. Ficou em silncio. Quando o cigarro ficou totalmente destrudo, olhou para cima, fitando-me com um olhar fixo, pronta a explodir, segundo me pareceu. O seu nome Carol Narkin, no verdade? Exato. Voc o nico mdico de servio aqui? Estava nitidamente a tentar hostilizar-me. Sim, o nico neste momento. Mas tambm chamamos o seu mdico. Chamase Laine, segundo consta no registro. Exatamente, e tambm um mdico diabolicamente bom disse, na defensiva. Viu-o h pouco tempo? Estava a tentar acalm-la com perguntas de rotina, na mira de descobrir o motivo que a tinha levado s urgncias. No arme em esperto comigo. Desculpe, menina Narkin, mas no posso deixar de lhe fazer algumas perguntas. Pois eu no respondo a nenhuma! Limite-se a chamar o meu mdico. Furiosa, desviou o olhar. Menina Narkin, que hei-de eu dizer ao seu mdico? No se mexeu. Menina Narkin? Era evidente que no a podia ajudar, de modo que resolvi sair do quarto, pensando ali voltar depois de ver o ltimo paciente. O que a teria levado ali? No fazia sentido chamar o mdico particular sem ter nada de novo para lhe dizer. Quando, passados alguns minutos, voltei para a ver, tinha desaparecido, Caso que no era raro nas urgncias: contactos breves, inconclusivos e um perfeito desperdcio de tempo. Em seguida, a enfermeira colocou-me cinco quadros de registros nas mos e apontou-me, um tudo nada timidamente, para o quarto seguinte, onde fui encontrar uma famlia inteira me, pai e trs filhos minha espera. Doutor, viemos c porque aqui o Johnny est com febre e tosse. Olhei para o registro. Indicava uma temperatura ligeiramente elevada. E j que estamos aqui, pensei que talvez no se importasse de dar uma vista de olhos a estas manchas que a Nancy tem na lngua. E o Billy deu uma queda na escola a semana passada. Est a ver este arranho no joelho dele? Bem, tem sido obrigado a ficar em casa e preciso um papel para apresentar na escola. E George, o meu marido, sofre das costas, ainda no arranjou trabalho e viemos a pouco da Califrnia, de modo que necessita de um certificado para apresentar na assistncia. E eu h duas ou trs semanas que ando com problemas nos intestinos. Olhei para os cinco rostos. O marido desviou o olhar e as crianas encontravamse demasiado atarefadas a treparem pela marquesa, mas a me estava a adorar a situao, olhando-me excitadssima. O primeiro impulso que tive foi p-los a todos fora dali. De qualquer modo deveriam ter-se dirigido ao posto mdico, no s urgncias. No tratvamos de casos menores. Mas se perdesse as estribeiras tinha a certeza de que a me se iria queixar administrao do hospital de que me recusara a atend-los numa hora de aflio. O administrador relataria o caso ao chefe de clnica e quem se tramava era eu. Ali estava o apoio com que podamos contar.

Alm disso, ainda era manh: o sol brilhante faiscava atravs das janelas e eu sentia-me otimamente. Para qu estragar tudo aquilo? Assim, em vez de me zangar, olhei superficialmente para as manchas e para o arranho, receitando alguns comprimidos. Mas recusei-me terminantemente a passar o papel para a assistncia. Quanto ao problema das costas do homem no dispunha de recursos ali nas urgncias para o comprovar; e j no tinham conta as vezes em que tratara de indivduos a queixarem-se desse problema e depois os vira, no dia seguinte, a andarem de motorizada de um lado para o outro. O paciente seguinte, um alcolico chamado Morris, tambm era uma visita habitual das urgncias. O seu registro referia "Intoxicado, escoriaes mltiplas". O homem tinha, aparentemente, cado por um lano de escadas, alis, como era hbito seu. Quando entrei no quarto, ergueu-se sobre os cotovelos com grande dificuldade, os olhos semi-cobertos pelas plpebras, e berrou: Quero um mdico e no um interno! Era fantstico como observaes como aquela tinham o poder de penetrar nos recessos mais ntimos do meu crebro e de provocar to grande devastao. Ento no que aquele bbado estpido estava a ferir os meus sentimentos! Fez-me recordar, mais uma vez, que ainda tinha de ir a correr freqentemente consultar os livros por causa das dosagens e que muitas outras vezes me assaltava o receio de ter andado a memorizar um milho de teorias durante quatro anos, parecendo no saber nada. Daquela vez no fui capaz de me conter. Voc cale-se, seu velho bbado nojento! gritei. Eu no estou bbado! Se faz mais alguma observao como essa, mando correr consigo daqui! No estou bbado. H anos que no toco numa bebida. Voc est to bbado que nem os olhos consegue ter abertos. No estou nada. Quase caiu da marquesa ao tentar levantar-se, de dedo apontado para mim. Ai isso que est. O nosso nvel de comunicao no era elevado. Prosseguimos a nossa infantil troca de palavras enquanto eu o examinava superficialmente, batendo-lhe com o martelo dos reflexos no tendo de Aquiles com poucos resultados, mas observando que ainda lhe restava alguma sensibilidade. Acabei por mand-lo para os raios X, mais para me ver livre dele durante um bocado do que por querer ver-lhe os ossos que tinha por baixo de todas aquelas escoriaes. Ao fim da manh o nmero de pacientes que acorriam quele servio comeou a ultrapassar o habitual. Um punhado de bebs chegou ao mesmo tempo, como se se tratasse de uma conspirao, e foram distribudos por vrios quartos. Para dizer a verdade no tinha grande prazer em tratar bebs. Existiam vrias semelhanas com o conceito que eu tinha da medicina veterinria: comunicao zero com o paciente. Metade das vezes era obrigado a ignorar a criana e a tentar chegar a alguma concluso atravs das informaes dadas pelas mes. Alm disso, considerava quase impossvel ouvir o que quer que fosse com o estetoscpio colocado no peito de um petiz de dois anos em pleno berreiro. As anomalias que normalmente ali apareciam eram constipaes, diarrias e vmitos; nada de srio. Estas criancinhas pareciam antecipar-se minha chegada, contendo-se de modo a poderem urinar ou defecar enquanto os observava. Essa manh de sbado no constituiu exceo. Havia crianada por todo o lado, padecendo das maleitas do costume.

O primeiro beb tinha o ouvido direito a purgar h vrios dias, infeco que a me julgara ser de pequena importncia, no entanto comeou a desconfiar de que se tratava de algo mais grave porque apesar de ter alterado a alimentao do beb, esta manteve-se. O aspecto pouco higinico dos dois levou-me a concluir que se devia tratar de uma otite, mas acabou por se ver que era pus. O beb tinha uma tremenda infeco na seo mdia de ambos os canais auditivos, logo a seguir aos tmpanos. O da direita tinha sofrido uma ruptura, dando origem descarga; o da esquerda ainda estava intacto, ressaltando para fora devido presso que se fazia sentir do outro lado. Teria sido conveniente proceder a uma pequena perfurao no tmpano direito para libertar o pus, mas no sabia como faz-lo e quando telefonei ao mdico particular, este quis que me limitasse a fazer o tratamento atravs de medicamentos penicilina, como de costume, e gantrisina, um remdio com sulfamidas. Ao chamar-lhe a ateno para a gravidade do que se estava a passar com o ouvido direito, devido ao fato de o tmpano ainda no ter libertado o pus, arrumou-me imediatamente dizendo que veria a criana segunda-feira de manh. Passei obedientemente a receita para a penicilina e a gantrisina. O beb seguinte no comia h uma semana. Mas que urgncia. O outro tivera diarria, mas s uma vez. Parecia incrvel que uma me pudesse correr com o seu beb ao hospital s por este ter tido um nico desarranjo intestinal, mas depressa cheguei concluso de que, nas urgncias, nada era impossvel. Havia mais umas quantas crianas, ora com constipaes e narizes tapados, ora com pequenas elevaes de temperatura. Para que o meu exame fosse o mais completo possvel, tinha de observar todos os ouvidos, espreitar para o fundo de todas as gargantas. Este trabalho assemelhava-se mais a luta livre do que ao exerccio da medicina. As crianas, at mesmo as muito jovens, so surpreendentemente fortes, e embora eu recomendasse s mes que segurassem bem os filhos durante o exame, elas deixavam-nos quase sempre agarrar no estetoscpio, puxando-o e trazendo com ele uma pequena gota de sangue do meu canal auditivo. Claro que aquilo fazia com toda a gente ficasse contente e confiante, mas eu l voltava a fazer outra tentativa, espreitando depois para o interior das pequenas aberturas que eram as bocas daqueles infantes que se contorciam aos berros. Se algum deles tinha realmente temperaturas elevadas, pedia s mes que lhes dessem banhos de imerso tpidos. Naquela manh j eram dois casos. A seo de urgncias transformava-se, muitas vezes, numa autntica clnica peditrica. Surgiam emergncias de quando em quando, evidentemente, mas no to freqentes como o pblico pensa. A maioria dos problemas eram triviais, coisas que poderiam ter sido tratadas na clnica. Certa vez algo horrvel aconteceu e o pessoal andou cabisbaixo e retrado durante vrias horas. Nessa manh entrara tranquilamente ali uma senhora baixa e de vestes escuras levando ao colo, envolto num cobertor cor-de-rosa, um beb. Na altura no lhe prestara nenhuma ateno, encontrando-me atarefado com uma outra pessoa. Uma das enfermeiras agarrou numa folha de registros nova e desapareceu com a senhora. Alguns segundos mais tarde aparecera a correr, dizendo-me que devia ir ver a criana imediatamente. Quando entrei no quarto, esta ainda estava embrulhada no cobertor rosa. Abrindo-o e afastando-o, deparou-se-me um beb de cor arroxeadaescura, cujo abdmen estava o dobro do tamanho normal e duro que nem uma pedra. No podia dizer ao certo h quanto tempo ele morrera, mas calculei que fosse h cerca de um dia. A me ficara sentada no corredor, imvel. No trocamos palavra; no havia nada a dizer. Limitara-me a olhar para o beb, a marcar o bito na folha de registros e a sair.

Era costume, mais ou menos uma vez por semana, aparecer nas urgncias um par de pais histricos com uma criana em convulses. A criana era, normalmente, bastante pequena e a primeira vez que me apareceu um caso destes, quase me deu um ataque, de tal maneira fiquei cheio de ansiedade. Tratava-se de uma menina de cerca de dois anos de idade. Estava dobrada sobre si mesma, os braos apertados contra o corpo; saa-lhe saliva e sangue da boca e todo o corpo lhe estremecia aos saces rtmicos, sincronizados e convulsivos. Como era habitual acontecer nestes casos, a criana no tinha qualquer controle tanto sobre a urina como sobre as fezes. Ainda aterrorizados, mas j aliviados pelo fato de o mdico se encontrar presente, os pais deitaram a pobre menina na marquesa. Como estavam ambos demasiado nervosos para terem alguma utilidade naquele momento, pedi-lhes que aguardassem fora do quarto de observaes. Tambm queria evitar o julgamento que pudessem fazer das minhas aes, ou ausncia das mesmas, porque na verdade no sabia o que fazer. Foi ento que uma daquelas enfermeiras extraordinrias me tirou de apuros entregando-me uma seringa e oferecendo-se para segurar na criana enquanto eu tentava encontrar uma veia. De sbito recordei-me: amobarbital intravenoso. O problema que tive de enfrentar em seguida foi o de enfiar a agulha na veia. At mesmo numa criana tranqila essa operao difcil. Numa que se encontra em convulses, pode ser praticamente impossvel. A quantidade de droga a injetar tambm outro dilema, mas pensei que lhe daria apenas um pouco e veria a reao. Depois de vrias tentativas falhadas, consegui, finalmente, entrar numa veia e, imediatamente aps injetar um pouco de lquido, verifiquei que a criana acalmava e em seguida parava; a respirao permaneceu forte, felizmente. Depois dessa experincia, o terror que sentia em relao s crianas com convulses diminuiu um pouco, sobretudo depois de ter aprendido a utilizar Valium ou paraldedo e fenobarbital intramuscular. Mas dessa primeira vez, as coisas tanto poderiam ter corrido para um lado como para o outro. Passei ainda um outro grande susto com uma criana, num caso aparentemente rotineiro. Serviu para reforar o meu receio de que uma situao vulgar podia rapidamente deteriorar-se diante dos meus olhos, deixando-me indefeso. O rapazinho tinha seis anos, era um amor de criana e fora trazido assustadora seo de urgncias pelos excessivamente solcitos pais. No se sentia muito bem, fato que era evidente pois vomitara trs vezes e apresentava outros sintomas reveladores de uma sndroma gripal. Tanto para tranqilizar os pais como a criana, apliquei-lhe uma droga anti-hemtica chamada Compazine, algo que utilizara com xito centenas de vezes depois de operaes. No entanto, daquela vez, obtive uma daquelas reaes secundrias adversas que se lem ao fundo do papelinho do laboratrio farmacutico que acompanha o produto; o tipo de episdio de que os delegados de propaganda mdica no gostam nada de falar e em que os mdicos raramente reparam. Dois ou trs minutos depois de a criana tomar a injeo, teve uma convulso: os olhos rolaram-lhe nas rbitas, perdeu o equilbrio e manifestou um tremor nitidamente rtmico. Os pais estavam horrorizados, principalmente porque lhes explicara que o menino no tinha nenhuma doena especial. Desvairado decidi aplicar um sedativo criana, dando-lhe um pouco de fenobarbital; tambm devia ter dado algum aos pais e a mim mesmo. Acabei por admitir a criana no hospital, para internamento. Escusado ser dizer que os pais no ficaram nada satisfeitos com esta atuao e eu tambm no. Assim foram passando as primeiras horas de sbado, uma combinao de glorificada clnica peditrica, fbrica de suturas e, de vez em quando, uma verdadeira crise. Os poucos casos de sutura tinham sido resolvidos com rapidez e dentro da rotina. O nico problema que tivera a preocupar-me fora o do tal indivduo de barbas, mas as horas e o tdio diluram-no o suficiente para que o dia se tomasse como os outros, cheio

de uma monotonia generalizada, que ia sendo pontuada por momentos pouco freqentes, mas memorveis, de terror e incerteza. Estava a comear a gostar da rotina rpida e desprendida das urgncias. Nenhum paciente exigia uma ateno to profunda e constante que me imobilizasse as emoes. Lembrava-me de como as coisas tinham sido diferentes, seis meses antes, por altura do incio do meu internato. A senhora Takura, por exemplo, prendera-me bastante. Tnhamo-nos tomado amigos; a longa operao a que fora submetida, durante a qual segurara nos afastadores, incapaz de olhar para a ferida aberta no seu corpo, fora para mim um trauma fsico e emocional. Quando, por fim, depois de a operao terminar, me afastara e fora para a praia com Jan, a minha intuio segredara-me que ela iria sobreviver. Encontr-la morta ao voltar fora a ltima gota no desencantamento que sentia relativamente ao que me estava a acontecer como interno. Revoltara-me contra o sistema, contra os pequenos tormentos do dia a dia, os afastadores, a ausncia de ensino e o constante, insuportvel, medo de falhar. Levara muito tempo a libertar-me dos sentimentos com que ficara depois do que acontecera senhora Takura, at que acabara no apenas por aceitar o destino que lhe coubera, mas tambm por afastar o fato da minha mente, fazendo votos para que no voltasse a envolver-me emocionalmente. Tornara-e mais fcil, a partir de ento, no permitir que os pacientes penetrassem no meu ntimo. Comecei a pensar neles em termos frios e clnicos, como se no passassem de hemorridas, apndices ou lceras gstricas. Roso tambm fora um tormento. Ao contrrio do pouco tempo que estivera com a senhora Takura, o meu relacionamento com ele prolongara-se durante vrios meses. At chegara a dar-lhe um corte de cabelo, pois o homem estava conosco h tanto tempo que o cabelo j lhe chegava ao meio das costas. Como no tinha dinheiro para o barbeiro, ofereci-me para lhe fazer o corte, se fosse da sua vontade. Ele ficara deliciado; Empoleirando-me em cima de um banco no trio ensolarado que ficava em frente da enfermaria, parecia orgulhoso em estar vivo. Todos foram de opinio de que cabelo mais mal cortado do que aquele nunca tinham visto. Roso nunca deixara de sorrir, nem mesmo quando se sentia pessimamente, o que era quase permanente. De fato ele padecia de quase todas as complicaes que eu encontrara nos compndios e de algumas at, que nem l se encontravam. Os vmitos e os soluos mantiveram-se durante tanto tempo que se tomou imperativo proceder a outra interveno cirrgica. Fiquei na posio do costume, ambas as mos a agarrar nas peas de metal e tendo na minha frente a viso das costas do residente-chefe durante seis horas e meia, enquanto o Billroth I de Roso era transformado em Billroth II; a sua bolsa estomacal estava agora ligada ao intestino delgado num ponto cerca de vinte e cinco centmetros mais abaixo do que era habitual. Esperava-se que este processo desse os problemas de Roso por terminados porque a obstruo no seu sistema digestivo que estava na origem dos mesmos, situava-se precisamente na ligao que fora feita na primeira operao, entre o estmago e o intestino. Mas mesmo depois desta segunda operao tudo indicava, no quadro de registros, que ele estava muito mal; a sua evoluo era como uma onda agitada. Soluos, vmitos, perda de peso e vrios outros episdios de hemorragias, gastrintestinais, continuavam a manter-me ocupado, sobretudo as hemorragias Uma semana depois de lhe terem instalado o Billroth II, Roso vomitou sangue vivo, entrando rapidamente em estado de choque. Fiquei junto dele vrias noites seguidas, irrigando-lhe constantemente o estmago com soro fisiolgico frio, retirando-lhe o tubo nasogstrico quando entupia, e voltando a coloc-lo em seguida. Ele conseguiu sobreviver, ainda hei-de saber como, apesar de todos os nossos erros e das minhas tentativas nem sempre bem sucedidas, e apesar da sua prpria evoluo lenta e atribulada.

Depois da hemorragia nada lhe passava pelo estmago, mas tive a sorte de conseguir fazer-lhe passar o tubo nasogstrico atravs da anastomose, at chegar ao intestino delgado. Utilizando essa via, para comear, alimentei-o diretamente para o intestino com um produto especial. Parte dele ficava e seguia o seu curso normal, mas apareceu-lhe uma diarria. At que, um dia, espirrou e deitou o tubo fora. Mantive-o ento com alimentao intravenosa durante quatro meses a fio, doses equilibradas de sdio, potssio e magnsio. Teve uma infeco numa ferida, uma inflamao nas veias das pernas, um princpio de pneumonia e uma infeco na bexiga. Depois apercebemonos de um abscesso que lhe aparecera sob o diafragma e lhe provocava os soluos; l voltou ele de novo cirurgia. Depois de tudo isto, no s conseguiu sobreviver como, tambm, recuperar. Levei quatro horas a elaborar o relatrio da sua alta; o seu quadro de registros pesava vinte e dois quilos: vinte e dois quilos da minha prpria escrita, freqentemente manchada de sangue, muco e vmito. Quando deixou o hospital fiquei satisfeito por v-lo vivo e francamente aliviado por se ter ido embora. Para alm dos problemas decorrentes da minha situao, o caso dele e a entrega que exigira de mim tinham sido superiores quilo que me era possvel suportar. Houve alturas em que, durante as hemorragias, ao administrar-lhe o soro fisiolgico frio, me comecei a interrogar se no o estava a encarar como um desafio s porque toda a gente afirmava que no escaparia. Talvez me estivesse nas tintas para ele, utilizando-o apenas para provar a mim mesmo que era capaz de dar conta de um caso difcil. Com o tempo, porm, passei a no analisar as minhas motivaes e a tratar os meus pacientes em funo das suas hrnias ou do que quer que tinham; era infinitamente menos cansativo. Nesse aspecto a seo de urgncias era tima. Uma pessoa estava sempre demasiado ocupada, fatigada ou assustada para pensar... Onze e quarenta e cinco da manh. Estava prestes a ir almoar quando entrou uma mulher jovem, muito plida, acompanhada por duas amigas. Aps uma consulta rpida com a enfermeira, a que estava plida acompanhou-a at um dos quartos de observao. As outras duas sentaram-se e acenderam nervosamente cigarros. Ouviu-se o som de uma voz com acento nova-iorquino, vinda do mesmo quarto, enquanto eu escrevia a ltima frase no registro de um beb, atirando-o em seguida para o cesto que dizia "Terminado". Ansioso por sair dali e ir almoar, entrei rapidamente no quarto para onde a enfermeira levara a rapariga. A folha de observaes indicava hemorragia vaginal de h dois dias, cogulos naquela manh. A rapariga pegou num cigarro. Por favor, no pode fumar aqui. Desculpe. Voltou a guardar cuidadosamente o cigarro e olhou para mim, afastando os olhos em seguida. Era de constituio mediana e vestia uma blusa de mangas curtas e uma minissaia. Com alguma cor no rosto, devia ser uma linda rapariga. A sua forma de se expressar indicava que no tinha mais do que o liceu. H quantos dias est a sangrar? Trs respondeu. Desde que fiz o aborto. Estvamos ambos nervosos. Ignorando se a minha incerteza era visvel, tentei no me mexer muito e parecer conhecedor do problema. Por que razo fez a raspagem? No sei. O mdico disse que tinha de a fazer, portanto fi-la, no ? Parecia irritada. Onde que a fez, aqui ou em Nova Iorque? Nova Iorque. Depois veio imediatamente para aqui? Sim disse.

A sua pronncia era indiscutivelmente daquela zona. O fato de ter vindo to depressa para o Hava no fazia sentido. Uma viagem de tantos milhares de quilmetros logo aps uma raspagem no parecia estar de acordo com a opinio mdica padro. Foi feita por um profissional? perguntei. Claro! Que quer dizer, um profissional? Quem mais haveria de ser? Que fazer? Se ela fizera um aborto, e no tinha dvidas de que assim fora, sabia que ia ter alguma dificuldade em arranjar-lhe um mdico particular. Tambm me recordava, com bastante nitidez, do tempo da escola mdica, de uma fiada de raparigas que por l tinham aparecido em choque de endotoxinas provocado por infeces que tinham arranjado ao fazerem abortos. O problema pode instalar-se com bastante rapidez; os rins deixam de trabalhar e a tenso sangunea desaparece. No entanto a tenso daquela rapariga estava nitidamente equilibrada naquele momento. Para dizer a verdade, ela at nem mostrava qualquer anomalia exceto o fato de estar deveras nervosa e um pouco plida. Estaria ela a tentar seguir os meus pensamentos? No tinha inteno de indagar de que modo se metera naquele problema; apenas me interessava descobrir como tir-la dele. As hipteses que tinha de encontrar as verdadeiras causas daquela hemorragia eram muito diminutas. Ela teria, provavelmente, de se submeter a outra raspagem. Assim sendo, tentaria localizar um ginecologista particular, mas eram poucos os que gostavam de se meter em semelhantes questes, apanhar os restos deixados pelos outros, por assim dizer. De qualquer forma, no me podia furtar a um exame plvico, precisamente a ltima coisa que me apeteceria fazer antes de almoo. A recordao da minha primeira observao plvica veio-me memria. Tivera lugar num curso a que assistira no segundo ano da escola mdica, sobre o diagnstico fsico. No me preocupara com preconceitos, o que fora uma sorte porque a minha paciente era uma senhora deveras corpulenta. Era uma paciente habitual que ali ia fazer um checkup. A princpio no acreditei que o meu brao fosse suficientemente comprido para alcanar o tero e o tipo que se seguiu a mim afirmou ter perdido o relgio, embora o viesse a encontrar mais tarde, no saco para onde atirvamos as luvas. Nessa altura ainda no tnhamos estudado obstetrcia ou ginecologia, de modo que contatar assim com aquela senhora fora estranhamente desconfortvel. Mas depois de cerca de uma centena, o exame plvico transformava-se numa rotina como qualquer outra. O nico problema encontrar a crvix, o que poder parecer absurdo porque ela no foge do stio em que est. Mas em presena de sangue e cogulos, a tarefa pode ser difcil, especialmente se a paciente no cooperar. Alm disso, no se pretende mago-la andando s voltas no interior do seu corpo. De modo que compensa dispor de alguns minutos extra e fazer um bom trabalho. Mas nunca antes do almoo. Quanto tempo tinha de gravidez? perguntei subitamente rapariga de Nova Iorque. O qu? Mostrava-se de novo excitada e nitidamente surpreendida. Como era importante que soubesse, deixei a pergunta pendente. Seis semanas disse finalmente. E foi um mdico ou outra pessoa? Um mdico em Nova Iorque respondeu, resignadamente. Muito bem, vamos fazer o que podemos disse, ao que ela anuiu, aliviada. Abandonando o quarto, disse enfermeira que a preparasse para um exame plvico. Passados poucos minutos, esta voltou para me dizer que estava tudo pronto, e quando entrei novamente no quarto, a paciente tinha uma bata vestida e tinha as pernas colocadas nos trips e a saia levantada at a cintura. Enquanto me preparava para inserir o espculo, no pude deixar de me lembrar de uma noite, seis semanas atrs, em que

fora acordado por uma enfermeira que me dizia no ser capaz de introduzir uma sonda num doente de idade que tinha a bexiga repleta, por no ser capaz de encontrar o orifcio correto. Levantara-me e j ia a meio caminho do hospital quando o ridculo da situao me atingiu. Se a enfermeira no o conseguia encontrar, como poderia eu fazlo? Mas l o consegui, depois de algumas tentativas; era uma questo de persistncia. Encontrar aquela crvix foi a mesma coisa. Persistncia. Rodeado de sangue e cogulos, que removia o melhor que me era possvel, descobri, de repente, a dita. O orifcio estava fechado e no vi aparecer sangue novo quando a limpei com uma compressa colocada na ponta de uma pina. Pressionei o abdmen, para grande desconforto da rapariga, e nada vi. Nessa altura reparei num pequeno fio de sangue que corria lentamente da zona posterior da crvix. Quase de certeza que era ali que estava o problema. Cauterizei a ferida com nitrato de prata, chamei o ginecologista, expliquei a questo e fui almoar, com um sentimento nico de realizao. Miraculosamente, ainda tinha fome. O almoo resolvia-se rapidamente; quinze minutos para enfiar duas sanduches e uma dose de leite, a meio de umas despreocupadas disputas de surf, as horas de consulta e o sexo. Nada srio, no havia tempo para isso. Combinei ir fazer surf com Hastings ao fim da tarde do dia seguinte, por volta das quatro e meia. Carno estava a comer numa mesa afastada; com exceo das vezes em que nos vamos no hospital, era agora muito raro sairmos juntos. Conversei tambm com Jan Stevens durante alguns minutos. Ultimamente no a via muito, apesar de em julho e agosto, na primeira fase do meu internato, nos termos divertido bastante juntos, o que culminara com uma original viagem de fim-de-semana a Kauai. O primeiro dia, sbado, fora estupendo. Carregamos o carro com cerveja, carnes frias e queijo, e dirigimo-nos para o grande desfiladeiro de Kauai. A meio do caminho, a estrada eleva-se e baixa por entre as nuvens, levando-nos por entre breves rajadas de vento com chuva mistura, ao mesmo tempo em que os campos de cana-de-acar desfilavam de ambos os lados. O desfiladeiro era ainda mais extenso e espetacular do que imaginara. A certa altura, descobri um stio bonito para pararmos e Jan transformou os artigos de mercearia que trouxera em sanduches. Pedi-lhe que no falasse; uma precauo necessria porque medida que a nossa relao fora evoluindo o mesmo acontecera com o desejo que ela tinha em comunicar. A vista era magnfica, com a chuva a cair aqui e ali, as cascatas e os arco-ris a brilharem nos cantos dos vales profundos que se espraiavam para alm do grande desfiladeiro. Sentia-me totalmente em paz. Ao fim da tarde framos at ao fim da estrada, para o norte da costa, exatamente at ao comeo da costa. Armei a tenda que nos tinham emprestado, no meio de um bosque de rvores verdejantes e quando o sol se preparava para desaparecer por entre as pequenas nuvens enfunadas que se avistavam no horizonte, nadamos nus nas guas calmas rodeadas de recifes protetores. Pouco me importava que houvesse campistas na outra extremidade da praia, embora me admirasse o fato de estarem instalados to perto da gua, em vez de terem ficado, como ns, em terreno mais elevado, no meio dos pinheiros. Um tanto conscienciosamente subimos para o carro. Vesti uns jeans brancos e Jan enfiou um fato de treino. Nem mesmo outra refeio de carnes frias e cerveja tiveram poder para destruir a atmosfera. A noite desceu rapidamente e o som das ondas a baterem nos recifes misturavam-se com o sussurro suave da brisa que serpenteava atravs das copas frondosas das rvores que se espraiavam por cima da nossa cabea. As criaturas noctvagas deram incio s suas estranhas sinfonias que, aumentaram de tal modo de intensidade que acabaram por se sobrepor at mesmo ao barulho das ondas. A

oeste, o cu ficara reduzido a uma nesga de vermelho. Jan estava linda naquela meia-luz e a idia de que no tinha nada por baixo daquele fato de treino era fantasticamente sexy. O fato que eu estava perfeitamente em delrio com a sensualidade do momento. Mais uma vez nus, voltamos para a praia. Ao deslizarmos para dentro de gua a lua cheia havaiana flutuou sobre um amontoado de rvores; a cena era to perfeita que parecia irreal. No podia agentar um segundo mais que fosse. De mos dadas corremos para a tenda e camos abraados nos cobertores. Queria devor-la, guardar para sempre na memria aquele momento. Lenta e relutantemente, das profundezas daquele abrao molhado, tornei-me ciente do zumbido dos mosquitos. No nosso desejo de fazermos amor, tentamos ignorlos a princpio, mas alm de zumbirem doidamente, comearam tambm a picar. Paixo alguma do mundo teria resistido a semelhante flagelo. Toda a atmosfera sensual desapareceu em segundos pavorosos e Jan correu para o Volkswagen em busca de abrigo. Ainda a tremer de desejo resolvi no arredar p da tenda, recusando-me terminantemente em ir dormir todo encolhido para um carro que parecia ter sido construdo para anes. Enrolei-me cuidadosamente no cobertor de modo a s deixar o nariz e a boca destapados. Mesmo assim os mosquitos foram to incansveis a morderme que o meu rosto comeou a inchar. Finalmente rendi-me, arrastando-me penosamente para o carro rodeado por uma nuvem de mosquitos que pareciam to frustrados quanto eu. Bati no vidro da janela e Jan sentou-se, de olhos muito abertos, abrindo a porta aliviada por ver que era eu. Atirei-me exausto para dentro do carro e disse-lhe que voltasse a dormir. Depois de esmagar os mosquitos que tinham entrado comigo, acabei tambm eu por adormecer enrolado debaixo do volante. Cerca de duas horas mais tarde acordei a suar. A temperatura e a umidade tinham atingido nveis de sauna; esta era to densa que se condensara em todas as janelas. Abrindo uma das do lado, senti entrar uma lufada de ar fresco e cerca de cinqenta mosquitos tambm. Chegava! Pus o motor a funcionar, disse a Jan para estar descansada e dirigindo-me para a estrada principal, voltei a Uhue e procurei um stio elevado onde soprasse um bom vento, e foi a que consegui dormitar at o sol nascer. O meu pequeno-almoo consistiu em po, queijo misturado com formigas e areia e empurrado para baixo com a ajuda de cerveja quente, tudo comido sobre o carro. Em seguida acordei Jan e voltamos para a cidade. Depois desse episdio e no sei por que razo, Jan e eu afastamo-nos um pouco um do outro. No que eu a culpasse pelo fim-de-semana. Era mais porque ela comeara a incomodar-me excessivamente com perguntas, sobretudo depois de termos comeado a dormir juntos, querendo saber se a amava e porque no, e em que estava a pensar. s vezes sentia que a amava, de uma forma que era difcil de explicar; quanto ao que pensava na maior parte das vezes em que estvamos juntos, a minha mente limitava-se a divagar. De qualquer modo, no conseguia agentar as perguntas dela. Achara simplesmente mais conveniente deixar que tudo voltasse aos caminhos da amizade casual. Mas foi agradvel v-la na cafeteria. Continuava a ser uma linda rapariga. Durante os quinze ou vinte minutos que levara a almoar, a seo de urgncias mudou por completo. Havia um novo grupo de pessoas espera e eu tinha oito novos registros a aguardar no cesto. No havia nenhuma emergncia, ao que parecia, ou as enfermeiras ter-me-iam chamado imediatamente. Apenas mais alguns casos de rotina. Um dos recm-chegados era um dos habituais freqentadores daquela seo, ali presente para a habitual injeo de xilocana que, segundo afirmava, lhe aliviava as dores provocadas no se sabe por que mal das costas. As suas visitas eram to freqentes e os motivos das mesmas to imprevisveis que as enfermeiras tinham

sempre uma seringa cheia de xilocana pronta, minha espera, no tabuleiro colocado ao lado do doente. O Dom Xilocana, como lhe chamvamos, desenvolvera uma certa percia em relao ao mal que o atormentava e aquela era a sua altura de brilhar, orientando-me para o stio onde devia espetar a agulha, a maneira como devia introduzir e a quantidade a administrar. Sentindo-me de certo modo condicionado por aquele ritual, fiz, no obstante, o que ele queria; suspirando com aparente alvio, saiu. Dirigindo-me ao quarto B 1, fui de novo saudado pelo meu amigo alcolico Morris, que voltara finalmente da seo de raios X. Desajeitadamente deitado na marquesa e preso por um largo cinto de segurana, Morris segurava num enorme sobrescrito castanho no qual se encontravam as provas acabadas de tirar. Cumprimentou-me. S me do o raio de um interno. Nem sei porque voltei. O almoo tornara-me mais brando e, de certo modo, capaz de ignorar aquele desaforo. Tirei-lhe o sobrescrito da mo e comecei a observar as provas, mantendo-as erguidas contra a luz que entrava pela janela. Tal como esperava, no encontrava nada de especial, exceto talvez uma acentuada descolorao na zona superior do brao esquerdo. J anteriormente, quando lhe erguera o mesmo brao, Morris me compensara com uma torrente de obscenidades. Era capaz de haver ali algum problema. Corri todas as radiografias: joelho esquerdo, joelho direito, pulso direito, cotovelo esquerdo, p esquerdo, vrias vezes, sem nada encontrar no brao e ombro esquerdos. Ali no havia nada. S me restava mandar a enfermeira levar Morris novamente radiologia. Eles vo ficar a ador-lo l em cima, doutor Peters disse a enfermeira. Ele aterrorizou o departamento de raios X toda a manh e inutilizou duas caixas de pelcula. Isso no me surpreende disse, pegando numa mo cheia de novos registros e encaminhando-me para o quarto C. Os bebs da tarde pareciam-se muito com os da manh, sofrendo, na maioria dos casos, de obstipaes ou diarrias. Um teve de levar uma lavagem esponja por estar com um pouco de febre, e um outro precisou de uma sutura numa lacerao no queixo. O terror que sentiam por serem trazidos ao hospital, muitas vezes a sangrar e cheios de dores, s podia ser piorado pela espcie de camisa-de-fora em que eram enfiados para se manterem quietos. Pois nem esse mtodo foi capaz de imobilizar o queixo daquele rapazinho; era como estar a fazer pontaria a um alvo mvel. Para ele o pior era ainda ter de estar debaixo de um lenol cujo nico orifcio se destinava ao queixo. Depois da aplicao de xilocana deixou de ter sensibilidade naquela zona, sentindo quando muito, uma presso e um ligeiro repuxar na pele. Isso no o impediu de gritar com quanta fora tinha, odiando tudo aquilo. Eu tambm. No quarto seguinte encontrava-se um indivduo de trinta e dois anos que tinha todo um rosrio de queixas a apresentar, comeando pela garganta seca e continuando pelo corpo abaixo. O verdadeiro objetivo a que se propunha era o de ser admitido no hospital e quando se apercebeu de que a garganta seca no me causara grande impresso, orientou a origem dos seus males para uma dor que disse sentir no lado direito do peito. Com a inteno de testar a sua reao, disse-lhe que o hospital j estava superlotado, o que o levou a ter um ataque de raiva e a queixar-se de que quando uma pessoa precisava de ir para o hospital este estava sempre cheio. A tarde decorreu de forma descuidadamente atarefada. Naquele momento j tinha atendido dezesseis pacientes de nvel mais ou menos semelhante, no tendo sido obrigado a gastar com eles demasiadas energias. Mas a noite de sbado aproximava-se e a que eram de prever complicaes. Entretanto, entraram dois homens de idade com

um ataque de asma, e as enfermeiras conduziram-nos a quartos individuais onde os puseram sob a ao dos aparelhos adequados. O homem do quarto C respirava a custo, movimentando se o esterno violentamente. Estava sentado, de costas muito direitas e as mos nos joelhos. Perguntei-lhe se fumava. Respondeu-me que no o fazia h anos. Estendi a mo lentamente e tirei-lhe o mao Camel do bolso da camisa, enquanto os olhos dele seguiam os meus movimentos. Quando ergueu a cabea para olhar para mim, a expresso do seu rosto apesar do sofrimento era to cmica e, no entanto, to profundamente humana que no pude deixar de sorrir. Era como ter apanhado um rapazinho em falta. Grande parte da atrao da seco de urgncias derivava da prdiga diversidade dos tipos humanos que por ali surgiam. Os velhos amigos continuavam a aparecer. Chegou outro alcolico, um nosso conhecido de longa data, que entrou pela sala dentro aos tropees, queixando-se de que dera uma queda por cima de uma cadeira de balano e que isso lhe deixara uma lcera crnica nas pernas. Eu j tivera oportunidade de observar a referida lcera algumas semanas atrs, na altura em que o homem estivera numa das enfermarias, um perodo deveras agitado para todo o pessoal. Apesar das rigorosas medidas de segurana, ele conseguira manter-se permanentemente embriagado e a sua falta fora provavelmente acelerada depois de o residente-chefe o ter apanhado nas traseiras do banco de sangue com duas garrafas de Old Crow e uma paciente do sexo feminino. Dessa vez fizera-lhe um penso na lcera e dera-lhe instrues para voltar clnica na segunda-feira seguinte. Entre os alcolicos e os bebs chorosos e obstinados, apareceu uma ambulncia, sem se fazer anunciar e sem sirena nem luzes de aviso. Aquilo significava que a urgncia no devia ser grande. Quando a maca foi puxada para fora, deparou-se-nos uma mulher extremamente franzina, de cerca de cinqenta anos, envolta numas roupas sebentas e rasgadas. Fui atrs de uma das enfermeiras que me disse no estar a conseguir obter qualquer reao daquela doente. Os meus esforos tambm foram debalde. A mulher limitava-se a olhar para o teto, respirando pesadamente. Tinha uma pequena lacerao na testa, mesmo na base do couro cabeludo, que nem valia a pena suturar. Apesar de conservar uma imobilidade total, parecia perfeitamente consciente. Comecei a fazer-lhe um exame neurolgico, testando-lhe primeiro as pupilas e, em seguida, os reflexos. Os sinais eram normais. Mas quando tentei fazer-lhe o teste de Babinski, raspando-lhe ligeiramente na planta do p com uma chave, ela quase deu um pulo no ar e gritou-me que no tinha nenhum problema no p, o que lhe doa era a cabea, e porque estava eu a fazer-lhe ccegas no p? Saltou da maca e desapareceu pelo corredor fora com uma enfermeira no seu encalo. Acabamos por ter de ligar administrao do hospital e polcia, que veio busc-la, levando-a quase de rastos por entre gritos de protesto em que afirmava estar tima. No quarto F encontrava-se um homem de idade a quem se tinham acabado os diurticos, ou comprimidos eliminadores de gua dos tecidos, cujas pernas se mostravam muito inchadas pela reteno de lquidos. Era uma daquelas pessoas dotadas do notvel talento de estarem sempre a falar de forma contnua e aparentemente lgica, mas que nada diziam. Ainda assim tentei examin-lo, soltou uma torrente de palavras. Falou da sua percepo extra-sensorial e das muitas vezes em que fora capaz de a utilizar, especialmente a comunicar com a sua mulher, morta h alguns anos. Contra vontade, fiz uma pausa para o ouvir dizer que considerava a Terra como uma pequena poro de uma molcula de que no se sabia que objeto gigantesco de outro universo numa outra dimenso. Um tanto pasmado, dei-lhe um novo fornecimento de comprimidos, recomendei-lhe que repousasse as pernas e peguei no registro seguinte. Era importante ouvir estes pacientes, apesar das suas loucuras e trivialidades. As suas divagaes eram, no raras vezes, sintomticas. Uma vez, ainda eu estava na escola

mdica, um homem dera entrada nas urgncias queixando-se de que tinha comido vrios pedaos de vidro sem o habitual complemento de po. O residente e o interno tentaram acompanh-lo at a porta de sada, pedindo-lhe que voltasse na manh do dia seguinte, quando o departamento de psiquiatria estivesse a funcionar. Vendo que no acreditavam nele, o indivduo enfiou a mo no bolso da bata do interno, dali tirando um tubo de ensaio e uma esptula de madeira prpria para examinar gargantas, objetos que se apressou a mastigar e a engolir enquanto o pessoal da casa ficava a olhar, no querendo acreditar no que os seus olhos viam. Voltaram ento com ele para dentro e conduziramno a um dos quartos de observao, sugerindo-lhe suavemente que passasse ali a noite. Levado aos raios X, o seu abdmen fazia lembrar um saco cheio de berlindes esmagados. Maldito hospital! No volto a pr aqui os ps. Da prxima vez vou para o Saint-Mary. A exclamao viera do onipresente Sr. Morris, a quem estavam a ajudar a estender-se de novo na marquesa. Pelos vistos, estava condenado a ter de o aturar o dia inteiro, embora ficasse um pouco mais esperanado ao ver que trazia a radiografia do tero superior do brao esquerdo. Talvez pudesse, no fim de contas, ver-me livre dele. Doutor, tem uma chamada para si na extenso oitenta e quatro disse uma das enfermeiras. J tinha o auscultador no ouvido, escutando o sinal de interrompido da terceira tentativa que fazia para contatar com um tal Dr. Wilson, mdico de um doente que ali dera entrada com uma infeco no trato urinrio. Sentindo-me frustrado, carreguei no boto 84. Daqui fala o doutor Peters. Doutor, o meu filho est com uma terrvel dor de cabea e no consigo encontrar o meu mdico. No sei o que fazer. As palavras da senhora misturaram-se com a sinfonia que os bebs, que choravam na sala ao lado, faziam. O que menos falta fazia naquele momento era mais um caso de aspirina, mas no havia hiptese de dizer senhora que no viesse. Relutantemente, respondi-lhe. Se tem a certeza de que o menino est doente, no hesite em traz-lo s urgncias. Doutor, uma chamada no oitenta e trs. Disse enfermeira que mandasse aguardar a pessoa enquanto voltava a ligar para o Dr. Wilson, preparando-me para mais um sinal de impedido. Em vez disso ouvi sinal de chamada e o Dr. Wilson atendeu. Doutor Wilson, tenho aqui nas urgncias uma paciente sua, a senhora Kimora. Senhora Kimora? No me lembro de nenhuma senhora com esse nome. Tem a certeza de que minha doente? Bem, o que ela diz, doutor Wilson. Era freqente os mdicos no se recordarem do nome dos pacientes. Talvez a descrio do problema que a afetava lhe avivasse a memria, o que, na verdade, aconteceu. Est com uma infeco no trato urinrio, queixa-se de grande ardor na mico, e a temperatura... D-lhe gantrisina e mandea estar no meu consultrio na segunda-feira disse, interrompendo-me. Fiz uma pausa, tentando vencer a vontade de desligar. Por que no quereria ele ouvir a descrio do caso: a temperatura, o resultado da anlise urina, a contagem sangunea?

 Que acha de mandar fazer uma anlise? Sim, arranje uma. Okay! Carreguei no boto 83 para receber a chamada que estava espera. Doutor exclamou uma voz lamurienta do outro lado acabei de ir casa de banho aliviar os intestinos e deitei sangue. O que viu no papel higinico era sangue vivo? Sim. Chegamos concluso de que a causa provvel residia no fato de sofrer de hemorridas e que no havia razo para vir para as urgncias, bastando-lhe ir na segunda-feira ao seu mdico. Suspirando de alvio e no meio de uma profuso de agradecimentos, a mulher desligou. A enfermeira j estava com outro telefone na mo minha espera, mas como aquele gnero de esquema podia durar indefinidamente ignorei-a. Preferi voltar para junto da senhora Kimora, a quem expliquei pormenorizadamente como devia tomar a gantrisina, ou seja, dois comprimidos quatro vezes ao dia. Uma das enfermeiras recolheu uma amostra de urina para mandar analisar. Chegara a vez do Morris. Imvel sobre a marquesa e aparentemente um tudo nada mais sbrio do que anteriormente, recebeu-me com a saudao do costume. Quero pr-me a andar daqui para fora. Pelo menos nisso, os nossos desejos coincidiam. Pegando nas novas radiografias, observei-as contra a luz e vi imediatamente, para grande desapontamento meu, que ele tinha uma pequena fratura a meio caminho entre o cotovelo e o ombro, como se tivesse recebido um bom golpe de karat. Iramos ter de o aturar durante um pouco mais de tempo. Senhor Morris, o senhor tem um brao partido. Olhei para ele severamente. Ai isso que no tenho contraps. Voc no percebe patavina do que anda a fazer. Querendo evitar nova discusso, retirei-me e escrevi uma guia canalizando Morris para as mos do ortopedista residente. A enfermeira ligou para a telefonista e fez a marcao. A meio da tarde vi-me rodeado por uma autntica multido. Eram umas quatro horas quando caiu sobre as urgncias um grupo de entusiastas de surf com contuses na cabea, cortes nos dedos e ferimentos profundos provocados por corais. O surf estava em plena produo! Os bebs pareciam nunca mais acabar, chorando por tudo o que era canto com as suas pequenas temperaturas, diarrias e vmitos. Eu suturava que nem um louco, enviando pessoas para os raios X e tentando, desesperadamente, espreitar para dentro de ouvidos de criancinhas muito pouco cooperantes. A certa altura chegou uma me, perfeitamente em pnico, dizendo que o seu beb cara do terceiro andar sobre um monte de lixo. Estive tentado a perguntar-lhe como que, exatamente, aquilo tinha acontecido. Limitei-me, no entanto, a estar calado e a tirar rodelas de cebola das orelhas do mido e borras de caf do cabelo deste. Surpreendentemente, ficara intacto. Mas preferi envi-lo para a radiologia porque o brao direito parecia um pouco frouxo, e ainda bem, pois tinha uma pequena fratura no mero direito, o mnimo que se podia esperar depois de uma queda de um terceiro andar sobre um monte de lixo. Entretanto, as radiografias comeavam a amontoar-se, englobando todos os tipos de crnios e ps. Eu era o primeiro a admitir que no tinha grande jeito para ler aquelas

coisas. Mas a culpa era do sistema: o interno s decifrava radiografias noite ou aos fins-de-semana. No fazia diferena nenhuma que no estivssemos devidamente preparados para esse trabalho; tnhamos de o fazer o melhor que podamos. Ciente da minha falta de qualificao para semelhante tarefa estava sempre com receio de perder alguma coisa importante, sobretudo depois da humilhante experincia que tivera com o polegar. Esse incidente ocorrera numa outra noite de sbado, com uma rapariga que ali aparecera a coxear, apoiada ao brao do namorado. Magoara um dedo do p. Enviei-a para os raios X e o namorado foi com ela. Cerca de uma hora mais tarde, no meio de um grande pandemnio, olhei para as radiografias que me trouxeram, focando a minha ateno no metatarso, e disse-lhe que, aparentemente, estavam negativas e que... Foi a que o namorado da moa me interrompeu, calmamente, para dizer que lhe parecera ver uma fratura quando observara as provas. Fiz uma pausa e engoli em seco. "No me diga!" De volta ao mostrador luminoso das radiografias, apontou para uma linha que se estendia pelo meio da falange do terceiro dedo do p, linha sem dvida suspeita e que poderia ser na verdade era uma fratura. Coisas que acontecem na experincia de aprendizagem do dia a dia. Morris j se encontrava convenientemente longe, na sala de ortopedia, fora do meu raio de alcance sonoro. O ortopdico residente respondera chamada, examinandoo e sua resma de radiografias e em seguida desaparecera, depois de tentar, infrutiferamente, contatar o pessoal assistente de servio naquela seo. Morris ficaria portanto na sala de ortopedia at o assistente aparecer. De modo que ainda no era daquela que me via livre dele, embora de momento o tivesse longe do meu pescoo. Afastei-o dos meus pensamentos. Por volta das cinco e meia, comearam a chegar os acidentados. Aquilo j era costume acontecer sempre que o trfego se tomava mais denso e os carros comeavam a chocar uns contra os outros nas auto-estradas. Algum que por ali aparecesse vtima de um acidente de carro necessitava de uma cuidadosa apalpao ao pescoo, de um meticuloso exame neurolgico e de uma radiografia coluna vertebral antes de se poder chamar o respectivo mdico particular. Todas aquelas radiografias se pareciam assustadoramente umas com as outras e quando coloquei uma delas no gigantesco mostrador luminoso que estava instalado no meio da seo de urgncias, senti-me to vulneravelmente transparente como o prprio negativo. Alm do mais, os pacientes estavam sempre ali, espreitando ansiosamente por cima do meu ombro enquanto procedia verificao. S esperava que ficassem impressionados com a minha magia em conseguir obter tantas informaes de todas aquelas imagens enevoadas em tons de negro, branco e cinzento formadas pelos ossos e tecidos. Era geralmente por eles que simulava uma anlise minuciosa, demorando mais do que o necessrio a observar determinadas partes dos negativos. O fato que tudo quanto tinha possibilidade de diagnosticar ou saa muito do habitual ou estava claramente partido em dois, o que apenas demorava dez segundos a determinar. Tudo o mais era uma tirada de sorte. Mas havia que no deixar a casa mal vista, pelo que no me restava outro remdio seno olhar para os negativos com ar entendido, murmurando para mim mesmo e tomando notas, enquanto o paciente se agitava, nervoso, espera do pior. medida que o ponteiro do relgio se aproximava das seis o nosso trfego decrescia acentuadamente, proporcionando-me umas trguas. Comecei at a ficar adiantado e depois de desenterrar um anzol de pesca de um indivduo de meia-idade, vi que no tinha ningum espera. A seo de urgncias ficara, subitamente, tranqila; l fora o sol dourado da tarde lanava uma longa sombra violeta atravs do parque de estacionamento. Era a calma que antecedia a tempestade, o armistcio temporrio entre

batalhas. Sentindo-me exausto e solitrio, estranhamente solitrio apesar de ter tanta gente minha volta, sa a passo lento para jantar. No exterior passei por algumas pessoas que esperavam pelo seu transporte. Aquelas que tinham acabado de sair das urgncias acenaram-me delicadamente com a cabea e sorriram; retribui-lhes o sorriso, satisfeito por aquela oportunidade rara de um segundo contato, e esperando t-los servido bem. Contatar com os pacientes no exterior do hospital fazia-nos sentir a todos mais reais e libertava-nos de parte do medo que nos consumia por estarmos sempre espera da iminncia de um malogro. Sentar-me foi uma experincia extraordinria. Estendi as pernas por baixo da mesa, pousando os ps na cadeira que estava do outro lado. Joyce aproximou-se e ficou a fazer-me companhia, o que era agradvel apesar de no termos grande coisa a dizer um ao outro. Vinha cheia de mexericos de laboratrio e de contagens sanguneas, o que punha em perigo a minha digesto; to-pouco me apetecia falar das urgncias. Comi com rapidez, sabendo que cada pedao podia ser o ltimo que engolia naquela noite. Pelo menos essa parte da viso que a TV d da medicina corresponde exatamente verdade. Acabamos por falar de surf com outro interno, de nome Joe Burnett, que era de Idaho. Todo o interno precisa de ter uma vlvula de escape, uma forma de evaso; o surf era a minha. Proporcionava-me a mais completa libertao e fuga. O meio ambiente no diferia apenas no som, na viso e nas sensaes; no topo de uma bela onda, lutando e concentrando-nos em direo praia, no era possvel dar lugar a qualquer outro pensamento. medida que os meses passavam e eu me mostrava cada vez mais dedicado quela forma de desporto, comecei a dar-me conta das razes que levam algumas pessoas a irem atrs do sol em busca das belas ondas. Penso que sempre mais saudvel do que tomar drogas e lcool, mas o domnio que tal exerce sobre ns igualmente poderoso e o mais pequeno descuido pode ser fatal. O Hava tem o hbito de omitir este pormenor nas suas campanhas publicitrias. Mas no importa. Mesmo que as ondas no fossem as ideais para aquele desporto, estvamos rodeados de beleza. E quem sabe? A qualquer momento podia aparecer alguma vaga enorme a desafiar-nos. O surf um desporto dotado de caractersticas muito prprias, diferindo, basicamente, de qualquer outro desporto embora, superfcie, se assemelhe ao ski. A diferena que, no ski, a montanha permanece imvel; sobre uma onda, tudo se move: ns, a montanha, a prancha, o ar em nosso redor; e quando galopamos com a prancha na crista de uma onda enorme, nunca sabemos onde iremos parar. A nica coisa que sabemos que nos encontramos num elemento que no o nosso. E assim ficamos a falar, Joe e eu, sobre surf, descrevendo entusiasticamente pequenos episdios, acompanhando a descrio com movimentos dos ps e das mos, descrevendo a forma como as ondas nos enrolavam, como podamos ficar apanhados no meio delas ou sermos projetados para fora: tudo. E esqueci-me completamente das urgncias. O curioso que o surf s se toma um desporto socivel quando estamos fora de gua a falar nele. L no cimo, sobre a nossa prancha, mal proferimos palavras. Fazemos parte de um grupo de pessoas que partilham do mesmo amor pela gua, mas no damos conta destas, exceto para praguejar se algum vai parar nossa onda. Toda a onda que apanhamos , de certo modo, a nossa onda, mesmo que no estejamos a fazer surf sozinhos. Vai-se sempre com algum, mas no so necessrias palavras. O telefone tocou a chamar-me e tive de interromper a conversa com Joe; a seo de urgncias estava a ficar concorrida. Quando regressei, toda a tranqilidade desaparecera. No decorrer dos meus trinta minutos de ausncia, tinham chegado mais bebs que choravam com as mesmas queixas. Uma adolescente afirmava, pesarosa,

estar cheia de cibras. Perguntei-lhe se a aspirina a tinha aliviado. Disse-me que ainda no experimentara tomar nenhuma. Dei-lhe duas. Outra cura milagrosa, digna de quatro anos de escola mdica. E as constipaes! Encontravam-se presentes vrias pessoas atacadas com as velhas variedades de constipao: nariz a pingar, garganta irritada, tosse, o habitual. A razo que as tinha levado s urgncias encontrava-se para alm da minha capacidade de compreenso. Embora tivesse vindo bem-disposto do jantar, o caricato daquelas situaes no me permitia encar-las com humor. Tantos feridos minha espera para serem cosidos e eu a ter de tratar de narizes a pingar! Um dos trabalhos de sutura saa um pouco do habitual. Uma senhora tinha cortado a ponta do dedo indicador com uma faca de trinchar. Fora suficientemente previdente para levar o pequeno pedao consigo, o qual, depois de cuidadosamente limpo, cosi no lugar devido com linha de seda muito fina. Toda a operao foi feita sob a orientao que o mdico particular da senhora me ia fornecendo pelo telefone. Teria eu encarado com seriedade a hiptese de ele vir ao hospital? Um dos ltimos quartos estava ocupado por um indivduo de idade, que se dizia atormentado por dores nas costas e pela incapacidade total de reter a urina. Este ltimo sintoma era suficientemente perceptvel pelo cheiro que se fazia sentir no quarto, pormenor que quase me fez sucumbir enquanto examinava o homem aos bocados, correndo para o corredor de vez em quando, em busca de ar fresco. Os maus cheiros continuavam a ser o meu calcanhar de Aquiles. Pensei que seria melhor ele ser hospitalizado, pois tinha uma infeco no trato urinrio e no estava, obviamente, em condies de cuidar de si prprio. No entanto, o primeiro mdico para quem telefonei j o conhecia e no quis ficar com ele como paciente. Disse-me que arranjasse outro. Segundo parecia, o velhote j era conhecido como doente difcil, tendo-se tomado famoso por desaparecer do hospital sem ter alta e depois regressar, sempre aos fins-desemana ou a meio da noite. O mdico com quem contatei a seguir tambm recusou, sugerindo-me ainda um outro. Finalmente, depois de ligar a cinco mdicos, descobri um que acedeu a ficar com ele, mas quando as enfermeiras estavam a preparar o homem para a admisso no hospital descobriram que se tratava de um veterano de guerra. Todos os meus esforos foram por gua abaixo; agora havia que o despachar para um hospital militar. Passando pela entrada quando ia ver outro doente, quase fui de encontro a uma jovem aparentando cerca de vinte anos, que levava um co-d'gua agarrado de encontro a si. Estava aos gritos, dizendo que no queria falar com nenhum dos malditos mdicos. Por mim, no havia problema; segui o meu caminho, rumo ao quarto para onde pretendia ir. Mas, de qualquer modo, acabaria por ter de a ver, e quando tal aconteceu recusou-se a dirigir-me a palavra; teria sido mais fcil comunicar com o co-d'gua, ainda apertado de encontro a ela. Decidi deix-la sentada no quarto durante um bocado, mas foi um erro porque alguns minutos mais tarde a jovem precipitou-se para o corredor e desapareceu. Eu estava demasiado atarefado para conceder demasiada ateno ao fato, at o psiquiatra da famlia chegar, pouco depois, com os pais da rapariga. Parece que algum do hospital avistara a rapariga a apanhar flores em frente deste e telefonara polcia. Fiquei um pouco surpreendido ao ver ali o psiquiatra; era sempre com grande dificuldade que os fazia ir ali aos fins-de-semana ou depois das quatro da tarde. E ao sbado noite era certo e sabido que me caam ali dois ou trs doentes, m altura para eles. Como nunca conseguia arranjar um psiquiatra para atend-los, fazia o que estava ao meu alcance para mant-los calmos e confortveis; mas um sedativo ligeiro e palavras gentis no lhes faziam grande efeito.

 Doutor, extenso oitenta e quatro gritou-me uma enfermeira, do balco principal. Peguei no telefone que ficava porta do quarto B e carreguei no boto 84. Peters, daqui fala Sterling. Sterling era o ortopedista residente. Consegui finalmente falar com o doutor Andrews, que o responsvel pelo pessoal da ortopedia este ms, e ele de opinio de que um gesso pendente resolve o problema de Morris. Fez-se uma pausa. Comecei a desenhar crculos concntricos no pequeno bloco de apontamentos que estava ao lado do telefone. Aquele filho da me do Sterling no tencionava vir ali abaixo colocar o gesso pendente ou l o que raio era! Por que no tenta voc, Peters? E se tiver algum problema contata comigo, est bem? Ainda tenho cerca de oito pacientes para ver. Bem, se ele tiver de esperar muito, telefone-me. Por amor de Deus, Sterling, o homem est aqui desde as dez da manh. No acha que tempo de mais? Olhe que j l vo nove horas! Est bem, mas tambm serve para o pr mais sbrio. Discutir com Sterling exigia, naquele momento, mais esforo e concentrao do que eu estava disposto a gastar e, alm disso, ia contra a recente determinao por mim tomada no sentido de manter as distncias. Est bem, est bem, eu fao-lhe o gesso assim que puder. Desliguei o telefone e organizei mentalmente a minha prxima meia hora. Enfermeira, mande preparar gua quente e tenha uma boa quantidade de ligadura gessada pronta na sala de ortopedia. De que largura, doutor? Cinco e sete centmetros, quatro rolos de cada. Adotando o meu ar mais negligente, dirigi-me ao gabinete dos mdicos e passei rapidamente os olhos pelas prateleiras de livros, procura de um sobre ortopedia. Felizmente no demorei a encontrar um, que abri imediatamente no ndex. L estava: gesso pendente, pg. 138. Tratava-se de uma explanao sobre fraturas do mero proximal, exatamente aquilo de que andava procura. Apesar da apreenso que me causava o fato de ter sido compelido a executar, mais uma vez, uma tarefa que me era estranha, fiquei impressionado com a simplicidade do processo, que funcionava, no fim de contas, na base de uma espcie de trao. Em vez de envolver todo o brao e ombro do paciente, o gesso seria colocado de modo a rodear apenas a rea situada por cima e por baixo do cotovelo, onde o seu peso exerceria uma fora de cima para baixo sobre o osso fraturado, facilitando o seu realinhamento. Enfaixando ento o brao de encontro ao corpo, este manter-se-ia imvel, mas o ombro poderia movimentar-se. Espantoso. Uma enfermeira meteu a cabea por uma frincha da porta. Doutor, tem nove doentes sua espera. Sabia que as enfermeiras depressa me informariam do aparecimento de qualquer emergncia autntica; chegara a altura de me livrar de Morris de uma vez por todas. Depois de arrumar o livro no seu lugar, encaminhei-me para a sala de ortopedia, um pouco mais bem preparado para fazer o gesso do que h minutos atrs. Quando entrei apercebi-me imediatamente da razo porque Morris fora to fcil de esquecer ao longo da ltima hora. Deitado na marquesa dormia profundamente, ressonando ao de leve, preso ao lugar por uma enorme faixa de couro. Quando o pus na posio de sentado, segurando-lhe na cabea para que no casse para a frente, nem sequer acordou. Diabos levassem Sterling; aquele trabalho pertencia-lhe! Ouvira o barulho da televiso do outro lado, enquanto falava com ele. Depois de cortar a manga esquerda da camisa de Morris

at ao ombro, arranjei um pedao de tecido de malha para colocar na parte de baixo do brao e enfiei-a de modo a no interferir com a fratura. Doutor, h uma chamada na oitenta e trs. Nem sequer me dei ao trabalho de responder enfermeira, esperando que o que quer que fosse se resolvesse por si. Ohhhhh... Morris acordou quando lhe ajeitava o brao para colocar o gesso. Senhor Morris, o senhor quebrou o brao ao cair pelas escadas e eu estou a colocar-lhe um gesso. Mas eu no... Sim, tem o brao partido! Agora no diga nem mais uma palavra. S queria que Sterling me pedisse algum favor um dia. Depois de embeber as ligaduras gessadas na gua o tempo suficiente para que as bolhas de ar desaparecessem, enrolei-as em seguida no brao de Morris, construindo o molde de gesso camada a camada. Fi-lo grande, quase com trs centmetros de espessura. J que aquele mecanismo funcionava na base do peso, o meu iria ser muito eficiente. Agora fique onde est, senhor Morris. No se mexa. Deixe o gesso secar. Dirigindo-me para a zona principal das urgncias, atendi a chamada da extenso 83, mas j tinham desligado. Boa estratgia. Eram apenas sete e meia; j tinha onze doentes minha espera e sabia que aquilo ainda no era nada. Agarrando num monte de registros, olhei para o que vinha ao de cima: "Erupes na pele." Os problemas de pele sempre me tinham levantado muitas dificuldades, por muito que lesse e relesse a descrio das erupes ppulo-vesculo-eritematosas com prurido. As palavras perdiam todo o sentido, retorcendo-se e dando voltas na minha memria, de modo que se se me deparasse um doente que padecesse de outra anomalia que no fosse acne ou alguma erupo cutnea derivada do contato da pele com plantas venenosas estava perdido. E tinha na minha frente um indivduo que apresentava um violento eczema eritematoso. Sabia do que se tratava porque tinham sido essas as palavras utilizadas por um dermatologista para descrever o meu bronzeado quando voltara de um fim-de-semana em Miami durante a escola mdica. Aquilo significava o mesmo que comicho, umidade e vermelhido, mas os dermatologistas preferiam utilizar um complicado palavreado cientfico. De fato a dermatologia o nico ramo da medicina que ainda utiliza o latim em to larga escala, o que era apropriado de certo modo, pois no me apercebia de que a cincia tivesse evoludo muito mais desde os tempos da alquimia. Embora a terminologia e o diagnstico dos problemas de pele fossem complicados, o tratamento no podia ser mais simples. Se a leso estava mida, utilizvamos um agente seco; se estivesse seca, mantnhamo-la mida. Se o paciente apresentava melhoras, prosseguamos o mesmo tratamento; caso contrrio, tentvamos qualquer coisa at acertarmos. O paciente que tinha diante de mim era um tipo magro, de aspecto doentio, cabelo escuro, farto e mal cuidado. Olhando para as suas mos e braos, no podia pensar noutra coisa que no fossem os meus parcos conhecimentos de dermatologia. No tinha mdico particular, o que queria dizer que me caberia a mim chamar um. Que poderia eu dizer-lhe que no me fizesse parecer um idiota? Tambm reparei que a erupo lhe chegava palma das mos, o que me fez comear a vislumbrar o problema de que se tratava. So muito poucas as anomalias dermatolgicas que ocorrem na palma das mos. A sfilis um dos males que pode dar origem a esse fenmeno. Hummm... Estava de tal modo embrenhado nos meus pensamentos que mal ouvi o homem dizer que sofria de neurodermatite e precisava de mais tranqilizantes. Continuava a tentar lembrar-me da lista exata das doenas que se

manifestam na palma das mos quando as palavras dele me soaram, de repente, na cabea. Neurodermatite. A prtica levara-me a desenvolver a capacidade de no mostrar qualquer sinal de surpresa ou gratido quando semelhantes ddivas de diagnsticos me eram feitas, pelo que continuei a olhar para os braos dele com ar de entendido, at se passar o tempo que considerei suficiente. Aquilo fez-me sentir que os meus conhecimentos de dermatologia igualavam, pelo menos, os dele quando calculei, corretamente, que estava a tomar Librium. Ficou muito agradecido por lhe prescrever mais algum. medida que a tarde chegava ao fim, os meus passos comearam a tornar-se lentos e custosos, ao mesmo tempo em que os meus receios aumentavam fazendo-me antever, imaginariamente, toda uma srie de casos desesperados prestes a desabarem sobre mim. O fluxo de pacientes era contnuo e fazia com que tivesse sempre cinco ou seis pessoas minha espera. As minhas suturas tomaram-se mais rpidas, numa combinao da necessidade de despachar com a diminuio de interesse. Sempre que tinha algum caso para suturar, as pessoas comeavam a amontoar-se, de modo que era obrigado a ser veloz, dispensando pormenores mais sofisticados. No que fosse descuidado. Era apenas menos minucioso e mais fcil de contentar. Foi o caso, por exemplo, do homem que ali me apareceu com uma lacerao no brao. Se aquilo me tivesse aparecido durante o dia, teria, provavelmente, cosido a ferida juntando as bordas cuidadosamente. Assim, tive de fech-la sem grandes preocupaes com a cicatriz que pudesse ficar, esperando pelo melhor. Na sala de otorrinolaringologia estava um rapazinho de quatro anos, sentado, com ar infeliz, na marquesa. Junto dele encontrava-se o av. Ao ver-me entrar, ps-lhe os braos em redor do pescoo choramingando, enquanto este o abraava. O registro dizia: "Corpo estranho no ouvido direito." Depois de falar calmamente com a criana durante alguns minutos, convenci-a a deixar-me espreitar para o ouvido. Ao fundo do canal via-se uma coisa preta; parecia uma passa de uva ou um pequeno seixo. Como o av no conhecia nenhum especialista naquela rea, escolhi um ao acaso da lista que estava na recepo, um tal Dr. Cushing, a quem telefonei imediatamente. Doutor Cushing, daqui fala o doutor Peters, da seo de urgncias. Tenho aqui um rapazinho de quatro anos com um corpo estranho num dos ouvidos. Qual o apelido da famlia, Peters? Williams. O pai chama-se Harold Williams. Sabe se esto inscritos nos Servios Sociais? Como? Se esto nos Servios Sociais? No fao a menor idia. Bem, ento v perguntar-lhes, meu rapaz. Que cena aquela, pensei, voltando sala de otorrino. Uma dzia de pessoas minha espera e ainda tinha de andar a saber de inscries nos Servios Sociais. No, disse o av, no estavam. No tm caixa, no, doutor Cushing. Ento veja se algum dos adultos est empregado. L voltei, mais uma vez, sala de otorrino, a interrogar o preocupado av. Mas o certo que eu sabia que aquela recolha de informaes era mais fcil do que telefonar a uma dzia ou mais de mdicos at encontrar um que no tivesse tanta preocupao em receber os seus dividendos; mas isso no impedia que tudo aquilo parecesse grosseiro e desumano.

 Ambos os pais trabalham, doutor Cushing. timo. Vejamos, qual o problema? O pequeno David Williams tem um corpo estranho num ouvido, algo de cor negra. Consegue tir-lo para fora, Peters? Creio que sim. Posso tentar. Muito bem. Mande-os ao meu consultrio na segunda-feira de manh e telefone-me se tiver algum problema. Mais uma coisa, doutor. Sim? Esta manh tive aqui uma menina com uma infeco nos dois ouvidos mdios. Lembrara-me, de sbito, da criana com a otite. Um dos tmpanos tinha uma ruptura e o outro estava cheio, mas intacto. Acha que o devia ter drenado? Sim, penso que sim. Como que essa operao se faz? Utilize um instrumento especial chamado bisturi de miringotomia. Limite-se a fazer uma inciso minscula na zona mais baixa e posterior do tmpano. muito simples e o paciente fica imediatamente aliviado. Obrigado, doutor Cushing. De nada, Peters. Obrigado uma ova, Dr. Cushing! Depois de todo aquele disparate, ainda por cima era eu quem tinha de tirar o corpo estranho. Quanto inciso, considerei-me instrudo quanto ao processo a empregar. De volta sala de otorrino, imobilizei a criana e debrucei-me sobre o ouvido, tentando agarrar no pequeno objeto. Ao prend-lo com o frceps, reparei que se partira. Quando olhei para ver o que tinha sado, no queria acreditar nos meus olhos. Era uma das patas traseiras de uma barata. O rapazinho comeara a soluar enquanto eu ia tirando a barata para fora, pedao a pedao, sentindo-me cheio de pena da criana e desejando ver-me livre daquilo depressa, ao mesmo tempo em que me continha para no vomitar de nojo. Os ltimos restos saram com um jato forte de irrigao. O choro da criana comeou a diminuir gradualmente e lavei-lhe ento o ouvido com desinfetante. Ele parecia estar bem, mas eu que no me sentia l muito bom. Durante esta ltima parte, apercebera-me de que nas minhas costas se encontrava uma enfermeira aparentando grande impacincia. Um tanto secamente informou-me de que Morris ainda continuava espera na sala de ortopedia. Havia alturas em que aquelas enfermeiras me davam cabo da pacincia, sobretudo noite. No entanto, sentia-me um pouco culpado em relao a Morris, porque o homem j ali estava h quase doze horas. Penso que o meu sentimento de culpa deve ter ajudado a aumentar a minha animosidade para com a enfermeira. Profundamente adormecido, Morris pouco ou nada se importava com o problema. O gesso estava seco. Infelizmente, fui obrigado a acord-lo a fim de lhe prender o brao engessado ao peito com a ajuda de fita adesiva, o que me custou os desaforos verbais do costume, de um nvel inferior, contudo, ao que era habitual em Morris. O que me preocupava um pouco era o fato de no saber se o homem seria, ou no, capaz de mover o ombro apesar de ter o brao esquerdo to fortemente apertado de encontro ao peito. Mas eu estava a seguir as regras e na segunda-feira o especialista trataria de retificar alguma pequena imperfeio que tivesse escapado. Voltando seo principal das urgncias, notifiquei a enfermeira

impaciente de que Morris podia ir para casa se ela tivesse tempo, num dos intervalos do seu caf, de lhe dar uma injeo contra o ttano. s dez da noite, o local j estava apinhado de todos os gneros de enfermidades fsicas. O aumento de clientela fizera-me ficar com um atraso de cerca de doze registros. Calmamente instalada no meio da sala de estar principal estava uma mulher que queria que lhe examinasse uma pequena perfurao que, h cerca de oito horas atrs, tinha feito na cana do nariz com uma tesoura de podar. O seu apelido era Josephs. No compreendia por que motivo a senhora Josephs esperara tanto tempo, mas de qualquer modo, o mdico mandara-a s urgncias para levar uma injeo contra o ttano. At ali, o caso no tinha nada de especial. No obstante, a nica funo das anatoxinas a de ajudarem o corpo a adquirir imunidade; alm do mais, atuam muito lentamente. Parecia aconselhvel a injeo contra o ttano com alguns anticorpos que fornecessem uma proteo temporria, sobretudo por se tratar de um ferimento j com oito horas de existncia. Tnhamos acabado de receber um novo carregamento de um timo soro anticorpos humano chamado Hypertet, mas no o podia dar senhora Josephs sem telefonar primeiro ao seu mdico, um tal Dr. Sung, muito conhecido pela lngua afiada e pelos mtodos antiquados que utilizava na prtica da medicina. Liguei o nmero, um tanto nervoso. Doutor Sung, daqui fala o doutor Peters do servio de urgncias. Tenho aqui a senhora Josephs e estou a preparar-me para lhe dar uma injeo antitetnica, mas penso que tambm devia tomar algo que a ajudasse a agentar-se at a droga fazer efeito. Sim, tem razo, Peters. D-lhe uma dose de antitoxina de cavalo e rpido, por favor. No a quero espera. Temos uma tima globulina humana que cria imunidade contra o ttano chamada Hypertet, doutor Sung. No seria melhor do que o soro de cavalo? muito mais rpida e alm disso... No discuta comigo, Peters! Voc no sabe tudo. Se quisesse Hypertet terlhe-ia dito. Mas, doutor Sung, se utilizar soro de cavalo h perigo de alergia e assim terei de lhe fazer primeiro um teste cutneo. Tudo isso leva tempo. Bem, para que raio lhe pagam? Toca a faz-lo! O estalido seco do telefone a ser desligado soou nos meus ouvidos. Ora, ele que fosse dar uma curva. O velho Dr. Sung deixava muito a desejar na medicina que praticava e algum dia ainda se saa mal. Porque havia de estar a ralar-me? Era uma pena no poder aplicar Hypertet, tendo-o ali mo pronto a ser injetado. Apostava em como o velho filho da me no fazia a menor idia de que remdio se tratava. E era para aquilo que me pagavam, pensei cheio de azedume, enquanto procedia aos necessrios preparativos para fazer o teste, e tendo l fora quinze pessoas para serem atendidas. Mas no fui muito longe com o soro de cavalo. Uma sirena distncia, trouxeme de volta aos meus velhos medos. Para meu horror e incredulidade, trs ambulncias pararam simultaneamente em frente das urgncias e o respectivo pessoal saltou para fora a fim de comear a descarregar pedaos de pessoas, todas elas vtimas do mesmo desastre de automvel, indo p-las em quartos onde j havia gente espera. Um corpo destroado teria sido aterrorizador; cinco era simplesmente catastrfico. Enquanto as enfermeiras corriam ao andar de cima a pedir ajuda ao pessoal de servio, tentei fazer alguma coisa, qualquer coisa, antes que a situao me fizesse entrar em transe. Um dos sinistrados era um rapaz jovem com um dos lados da cabea amolgado. Respirava muito a custo, j em estertor; por vezes parava por completo, recomeando apenas alguns segundos mais tarde. Comecei imediatamente a prepar-lo para uma intravenosa de que

o rapaz no iria, provavelmente, precisar de imediato. Mas como podia vir a acontecer, apressei-me, ao mesmo tempo em que lhe retirava uma amostra de sangue para determinar qual era o seu tipo sanguneo. Seguiu-se a inevitvel insero de um tubo endotraqueal. Tratava-se, em geral, de um processo que me levantava bastantes dificuldades, mas daquela vez no foi assim porque o maxilar inferior do jovem encontrava-se de tal modo partido que eu prprio o teria podido arrancar do rosto. Depois de lhe aspirar a boca, de onde retirei fragmentos de ossos e bastante sangue, coloquei-lhe o tubo por onde passaria a respirar. Surpreendentemente a sua tenso sangunea estava impecvel. A minha vontade era ficar junto do rapaz, mesmo que nada mais pudesse fazer por ele naquele momento, mas os outros pacientes jaziam por todo o lado gritando por ajuda e, de qualquer modo, o neurocirurgio vinha a caminho. Mais tarde ouvi dizer que o rapaz morrera poucos minutos depois de sair da sala de operaes. O fato preocupou-me durante momentos at que, raciocinando, cheguei concluso de que ele estava virtualmente morto quando chegara s minhas mos. Naquela altura, passados que eram tantos meses, j me era mais fcil no me deixar envolver emocionalmente com determinados casos. Havia que atender a outros problemas, dar ateno a outras coisas. A senhora no quarto ao lado, por exemplo, tambm ela se encontrava em estado crtico. Uma vasta rea da sua pele e do coiro cabeludo, estendendo-se da orelha esquerda ao topo da cabea podia ser levantada, revelando uma rede de mltiplas fraturas cranianas que fazia lembrar um ovo cozido pronto a ser descascado. A pupila do lado esquerdo estava muitssimo dilatada. Por onde comear? Enquanto lhe examinava o crnio, deitou subitamente uma grande golfada de sangue, que saltou para a mesa e depois para cima das minhas calas e sapatos. Dei graas pela intravenosa que me ajudou a pr os meus caticos pensamentos em ordem. Apressei-me a lig-la, aproveitando a oportunidade para retirar um pouco de sangue para a determinao do tipo sanguneo, depois do que poderia pedir algum para transfuso. Como ela tinha vomitado sangue, pensei que talvez fossem necessrias oito unidades em vez das habituais quatro, embora a sua tenso fosse surpreendentemente forte. O problema das tenses aceitveis, at mesmo normais em face de colapsos fsicos evidentes, tinha comeado a perturbar-me. Todos os compndios referiam que a tenso sangunea um indicador fundamental e seguro da funo sistmica geral, mas a maior parte dos casos que me passavam pelas mos parecia contradizer essa regra. De qualquer forma, apalpei o abdmen mulher, tentando descobrir de onde poderia vir todo aquele sangue. Foi precisamente nessa altura que uma enfermeira me chamou com urgncia a um dos outros quartos, onde um homem mal conseguia respirar e, segundo lhe parecia, estava com convulses. Aparentemente atingido no estmago, calculei tratar-se de um dos condutores. A enfermeira passou-me algum barbital para fazer passar a convulso, mas antes de lho conseguir dar apercebi-me de que, em vez de convulses, ele estava era a fazer uma espcie de esforo para vomitar. Finalmente conseguiu-o, em pouca quantidade e sem sangue, apenas um bocado de lquido a cheirar a lcool, que tambm conseguiu cair-me em cima dos sapatos. Quando o Dr. Sung voltou a telefonar, no meio de toda aquela confuso, a querer saber se eu j tinha dado o soro de cavalo sua paciente, senti-me tentado a descarregar para cima dele, mas limitei-me a dizer-lhe que no; que estvamos muito ocupados. O mesmo acidente tinha envolvido uma motorizada. O condutor fora, virtualmente, esfolado vivo. Tinha escoriaes em todo o corpo, exceto na cabea. Era um dos poucos que usava realmente capacete. Todos os fins-de-semana apareciam vrios aceleras acidentados. Ningum os igualava em danos fsicos; ficavam em to mau estado que at corria uma velha anedota no meio

hospitalar, que falava de um acidentado de motorizada que chegara ao hospital em vrias ambulncias. Contuses por todo o corpo e fraturas mltiplas constituam a melhor descrio para aquele que ali se encontrava. Se pudessem falar, aqueles tipos continuariam a insistir firmemente que as motorizadas no eram to perigosas como se pensava porque quando havia um acidente, a pessoa era cuspida. Mas ser cuspido a cem quilmetros hora para o asfalto, de cabea, e depois ser atropelado, no nos deixava muito com que trabalhar. Aquele no estava apenas cheio de feridas por todo o corpo; a extremidade da sua perna esquerda tambm fora esmagada. Os dois ossos erguiam-se formando um ngulo reto com a perna, estando o p preso apenas por alguns tendes. O ferimento era uma amlgama de calas, meias, pedaos de alparcata e asfalto. Surpreendentemente, estava consciente, embora entorpecido. Sente alguma dor? No, dores, no. Mas tenho uma coisa qualquer na vista direita. Santo Deus, to maltratado e ainda se preocupava com um cisco no olho! Tireio. A sua tenso sangunea estava boa e o pulso um tanto alto, a 120. Tirei-lhe sangue e enviei-o para o laboratrio, onde lhe analisariam as caractersticas e o tipo sanguneo e em seguida pedi, um pouco ao acaso, para me enviarem cinco unidades de sangue, o qual lhe seria aplicado em caso de necessidade. Aparentemente no iria necessitar to depressa de sangue, mas era bvio que se impunha uma operao urgente. Tentei deter um pouco o sangue que lhe saa dos msculos expostos da perna com ajuda de um hemostato. Admirava-me de que sangrassem to pouco. Voltei para junto da senhora que vomitara sangue e fiquei aliviado ao observar que a sua tenso continuava estvel. Talvez apenas tivesse engolido aquele sangue, raciocinei; no fim de contas, sangrava de ambas as narinas. Tinham-se passado vinte minutos, desde a chegada das ambulncias e j tnhamos pessoal extra a ajudar a estabilizar os pacientes. Mandei vir o radiologista com a sua aparelhagem para ali, a fim de tirar raios X a uma srie de cabeas, trax e outros ossos. Teria sido completamente impossvel descrever a confuso que reinava no local. Era o caos absoluto, onde constipaes, diarrias, bebs e asmticos se misturavam com narizes partidos e cabeas amolgadas. Nem as coisas melhoraram quando os chefes de clnica comearam a chegar e a dar ordens em toda a gente. A sala de operaes, j alertada, comeou finalmente a absorver os acidentados do desastre de automvel. O Dr. Sung voltou a ligar ameaando apresentar queixa ao hospital se eu no desse imediatamente o soro de cavalo sua paciente. Naquele momento estava-me perfeitamente nas tintas para o soro de cavalo, de modo que lhe desliguei o telefone na cara. Esta ousadia trouxe-o at s urgncias, passados vinte minutos, disposto a transformar-me a vida num inferno, precisamente na altura em que transportvamos o ltimo sinistrado para a cirurgia. Ali fiquei, coberto por uma mistura de sangue e vmito, ouvindo-o, vagamente, barafustar. Aquele luntico podia mesmo meter-me em sarilhos, pelo que resolvi no lhe responder, limitando-me a sugerir-lhe, mais uma vez, o Hypertet, e a referir-lhe a rapidez de atuao deste medicamento. Isso f-lo enfurecerse ainda mais e saiu porta fora com a paciente a reboque. Como no podia deixar de ser, alguns dias mais tarde recebi uma reprimenda por escrito. Ao que me levaram as prioridades. Quando as onze horas chegaram o ciclone j tinha passado, deixando a habitual srie de pacientes que se queixavam de males menores, desta vez em nmero muito superior ao que era habitual devido ao que acontecera pouco antes. Estavam espalhados por todo o lado: ali dentro, l fora, sentados na plataforma das ambulncias, no cho, em cadeiras. Comecei a saltitar de quarto em quarto, ouvindo as coisas vagamente, atuando como uma mquina gasta. Um homem dera uma queda na piscina durante uma festa,

quebrando o nariz ao bater na prancha de saltos e cortando o polegar num copo de gim tnico. O nariz estava direito, de modo que no lhe mexi. Suturei rapidamente a lacerao, depois de telefonar ao mdico particular respectivo a contar a triste notcia. At ele parecia bbado. Foi, de fato, uma grande noite para os alcolicos; a maior parte sofrera cortes e escoriaes menores ou ressacas prematuras com nuseas e vmitos. J passava a muito da hora de ir para a cama, mas as crianas continuavam a chegar com as suas diarrias, os seus narizes a pingar e as suas temperaturas. Por acaso apareceu-me uma com uma febre razoavelmente elevada, mas no fui capaz de lhe detectar nada de errado. O fato deixou-me bastante incomodado. A nossa qualidade de seres humanos d-nos uma tendncia quase irresistvel para tratarmos de quem est doente; de ns esperam que tratemos quem est doente. Era costume os pais pedirem que dssemos penicilina aos filhos, mas eu era suficientemente sensato para no lhes fazer a vontade na maior parte dos casos. Tratar de um sintoma como a febre sem um diagnstico firme praticar m medicina; e, no entanto, a nica coisa que estava ao meu alcance era dar uma olhadela rpida e bastante limitada aos ouvidos e garganta daqueles chores em miniatura. Umas vezes tratava-os, outras no; s me era possvel fazer palpites semi-cientficos. As horas continuavam a correr com todas as caractersticas inerentes noites de sbado. Por volta da uma da manh, a multido tornou-se sensivelmente mais pequena. A partir dali aparecer-nos-iam, cada vez em menor quantidade as vrias anomalias que afastam as pessoas de diante dos seus aparelhos de TV durante a noite para procurarem a santidade das urgncias; anomalias como constipaes, diarrias e ferimentos de pequena gravidade. Dali a cerca de uma hora os problemas que estavam a impedir as pessoas de dormir comeariam a surgir. As mesmas indisposies que tinham ignorado durante todo o dia e o princpio da noite, mant-los-iam, evidentemente, acordados, obrigando-os depois a irem s urgncias a meio da noite para consultarem o sagaz e compreensivo mdico interno. Tal como acontecia com os casos de sarna. Numa outra noite de servio, conseguira ir dormir um pouco por volta das cinco da manh para depois ser acordado a fim de atender um paciente qualquer que por ali aparecera a queixar-se de sarna. Mal passara da uma, chegara uma ambulncia de sirena calada, cujo pessoal descarregara uma rapariga que devia andar volta dos vinte anos, tranquilamente mergulhada num sono que se aproximava muito do coma. Ingesto de medicamentos. O habitual, como vim a saber: doze aspirinas, dois Seconal, trs Librium e uma mo cheia de vitaminas. Todas aquelas drogas, com exceo, talvez, das vitaminas, podiam ser perigosas especialmente o Seconal, um soporfero, mas era preciso tomar bastantes para se ficar verdadeiramente em perigo de vida. Caso contrrio no passaria tudo de um gesto, de um grito infantil a chamar a ateno no seio da textura social em que se processava a vida do indivduo; os casos mais freqentes de ingesto de medicamentos verificam-se entre as jovens que vivem perdidas no mundo fictcio dos romances corde-rosa. Poderia ter-me interessado e sido complacente, mas no no estado em que me encontrava; sentia-me to exausto e irritado que qualquer sensao de empatia se tinha, de h muito, transformado em irritao. Como poderia a estpida da rapariga ter cometido to tresloucado ato quelas horas da madrugada de domingo? Por que no decidira ela dar antes aquele seu pequeno espetculo numa tera-feira de manh? Como era habitual, vrios membros da famlia e amigos comearam a aparecer aps a chegada da ambulncia. Ficaram na sala de espera, conversando e fumando nervosamente. Baixei os olhos para a rapariga que jazia, adormecida, sobre a marquesa.

Em seguida agarrei-lhe no queixo e abanei-lhe a cabea, chamando-a pelo nome, Carol. Abriu os olhos lentamente, mostrando apenas metade das pupilas, e gemeu. Tommy... "Tommy uma ova" pensei para comigo. De irritado passei a furioso, depondo armas diante da exausto que sentia. Disse enfermeira que me trouxesse um vomitivo e resolvi meter-lhe uma sonda no estmago. O processo no era brincadeira nenhuma nem para ela nem para mim, mas queria que nunca mais se esquecesse daquela sua ida s urgncias. Alm disso, sabia que, de manh, quando telefonasse ao seu mdico, este me perguntaria o que lhe tinha tirado do estmago. O tubo apropriado lavagem ao estmago tem um centmetro e meio de dimetro. Depois de conseguir p-la sentada, enfiei-lhe o referido tubo pela narina esquerda. Abriu imediatamente os olhos, ao mesmo tempo em que comeava a debaterse e a lutar para se livrar das auxiliares que a estavam a segurar. Vomitou um pouco por fora do tubo quando lho empurrei mais para dentro do estmago e, de repente, todo o contedo deste foi expulso, incluindo um Seconal ainda no dissolvido e parte de uma cpsula de Librium. Ao retirar-lhe o tubo, o pouco que l ficara acabou por sair. Passados alguns minutos o vomitivo fez efeito, levando-a a vomitar vrias vezes apesar de j ter o estmago vazio. Naquela altura Tommy j viera juntar-se aos outros na sala de espera. Talvez ele tambm desejasse um pouco daquele vomitivo para desempenhar, desse modo, um papel mais adequado quele melodramtico acontecimento. Depois de enviar para o laboratrio uma amostra de sangue a fim de ver se a aspirina tinha alterado o nvel de acidez do sangue, vim a saber, pouco depois, que assim no acontecera e telefonei imediatamente ao mdico de Carol. Informei-o do que esta tomara e de que, para alm do fato de estar sonolenta, j se encontrava fora de perigo e perfeitamente tranqila. Que foi que lhe tirou do estmago? Um Seconal, restos de Librium e pouco mais. timo, Peters, bom trabalho. Mande-a para casa e diga ao pai que me v ver na segunda-feira ao consultrio. Pouco depois Carol era levada para casa em toda a sua glria, coberta de vmito. Nunca me preocupei muito em saber se tinha sido justo, ou no, na atitude que tivera para com ela, mas pelo menos penso que no teria podido proceder de outro modo depois de dezoito horas de trabalho nas urgncias, e embora o fato no me deixasse motivos para me sentir orgulhoso foi assim que as coisas se passaram. Pouco antes da meia-noite, um novo grupo de enfermeiras viera substituir o turno anterior. Naquele momento j eram duas da madrugada e eu sentia-me muito em baixo, ao contrrio das novas enfermeiras, que vinham frescas e cheias de uma loquacidade e de uma agilidade notveis para horas to tardias. O contraste fez-me sentir ainda pior, como uma sombra. E a paciente que se seguiu tambm no ajudou nada. O seu registro dizia: Depresso, dificuldades respiratrias. Ao entrar no quarto, a minha consternao acentuou-se instantaneamente ao deparar com uma sombra, de cerca de cinqenta anos, de nglige azul-claro. Encontrava-se deitada na marquesa, premindo dramaticamente uma das mos um pouco acima do peito opulento. A seu lado estavam outras duas senhoras, que ao verem-me se apressaram a informar-me, e enfermeira que me acompanhava, que a amiga no conseguia respirar. Oh, doutor gemeu a senhora deitada, com um forte sotaque na voz. Mal consigo respirar. Tem de me ajudar.

Cheirava a Martini que tresandava. Uma das suas histricas amigas mostrou-me um frasco de comprimidos. Olhei para o rtulo. Seconal. Oh, essas pilulazinhas vermelhas. Tomei duas. Acha que fiz bem? A senhora sulista fixou em mim os olhos sobressaltados; eram duas da manh e no havia dvida de que estava a divertir-se grande. Senti uma vontade enorme de a pr a andar dali para fora. Contudo, esse gesto cairia como uma bomba na administrao; talvez at significasse o suicdio da minha carreira profissional. Apesar do desencantamento que me dominava em relao ao sistema, no chegara a esse ponto. Ouve alguma coisa de esquisito, doutor? Estava a esforar-me por auscultar-lhe o peito, que me parecia no apresentar nenhuma anomalia. Oh, agora vai-me medir a temperatura e a tenso, no vai, doutor? disseme jovialmente. Sinto-me realmente muito fraca. No consigo perceber o que me est a acontecer. Enrolei-lhe a faixa do tensimetro do brao e enfiei-lhe o termmetro na boca, conseguindo, finalmente, silenci-la. Animei-me um pouco com a oportunidade de poder afastar-me dela durante alguns minutos, pois tinha de ir telefonar ao mdico que era responsvel pelo hotel em que se encontrava hospedada. Este aconselhou-me a darlhe Librium. De volta presena da mulher, esforcei-me por ser delicado. Minha senhora, o mdico do hotel sugeriu-me que lhe desse Librium. Librium, doutor? Refere-se quelas pilulazinhas verdes e pretas? Bem, lamento muito, mas sou-lhes alrgica. Provocam-me imensos gases, de tal modo que, s vezes disse, sentando-se a fim de melhor poder contar a sua histria s vezes fazem-me sair as hemorridas. Seguiu-se um interminvel desfiar de histrias relacionadas com as plulas e entremeadas de detestveis pormenores sobre o seu trato gastrintestinal inferior. A meio do seu recital, um desempenho digno de uma Bianche Dubois, interrompi-a para lhe dizer que talvez a Thorazina de laranja lhe fizesse bem. Thorazina de laranja! Guinchou de puro deleite. Nunca ouvi falar nesse remdio. No sei como lhe agradecer, doutor. Foi um amor. E l se foi embora, tagarelando animadamente com as amigas sobre as maravilhas da medicina. Entrou uma enfermeira, vinda de uma das sees de doentes particulares, que coxeava ligeiramente. Cara de um lance de escadas sem que, aparentemente, isso lhe causasse qualquer dano grave, mas achava mais conveniente certificar-se de que assim era. Concordei. Chamava-se Karen Christie e parecia em perfeitas condies fsicas, no entanto sugeri-lhe uma radiografia plvica para termos a certeza absoluta. Os hospitais eram, compreensivelmente, muito sensveis a qualquer ameaa de queixa derivada de acidentes pessoais por parte dos seus trabalhadores. Quando, um quarto de hora mais tarde, as radiografias da menina Christie chegaram, coloquei-as na montra luminosa, entre uma srie de crnios e ossos partidos. Tinha os olhos um tanto enevoados quando os passei pelo fmur, a cavidade cotilide, o ilaco, o sacro e da por diante. Estava tudo normal. Por pouco escapava-me a pequena serpentina branca que se via mais ao centro, e quando a avistei no consegui perceber que raio de artefato estranho o radiologista conseguira apanhar naquela imagem. De repente, fez-se luz no meu esprito entorpecido e cheguei concluso de que se tratava de um dispositivo intra-uterino, particularidade que fez com que o caso da menina Christie se tornasse muito mais interessante e que a minha disposio ficasse, por momentos, mais aligeirada.

Infelizmente, o paciente seguinte depressa me fez voltar ao mau humor. Sentado num dos quartos, soluava silenciosamente porque magoara o nariz quando o carro em que seguia embatera numa bomba de incndio. Apesar de no lhe dar qualquer encorajamento, contou-me animadamente a sua histria. Ia muito bem metido na sua vida quando apanhou uma boleia de uma lsbica que vinha de tal maneira furiosa com a companheira de quarto que acabou por atirar com os dois para cima de uma bomba de incndio. No fiz questo em saber o que tinha acontecido lsbica, grato por no a ter tambm ali. Pensei, seca e demasiado friamente, que aquele tipo representava, em mais de um aspecto, o refugo da noite. Atur-lo era quase mais do que podia suportar no estado de compaixo nulo em que me encontrava. No me sentia com foras para enfrentar outros problemas que ultrapassassem o campo exclusivo da medicina: diagnstico e cura. Aquele sujeito necessitava de mais do que isso. O homem recusavase a fazer outra coisa que no fosse estar para ali sentado a chorar e a chamar pelo tio Henry. Quando este chegou, nem mesmo ele foi capaz de o convencer de que os raios X no eram letais. Finalmente, depois de o tio Henry concordar em no se afastar um minuto do seu lado, dirigiram-se ento os dois para a seco de radiologia. Chegou-se concluso de que o nariz estava fraturado e o seu mdico particular, contatado telefonicamente, admitiu-o no hospital. Um pouco mais tarde chegou um polcia com a histria verdadeira. Tratara-se, simplesmente, de uma briga ocorrida num bar gay; a lsbica no passara de pura imaginao. Mais uma vez detectei, a distncia, o som fiel de uma sirena, esperanado no entanto de que a ambulncia a que correspondia no parasse naquele hospital. Mas esta deteve-se ruidosamente defronte das urgncias, recuando rapidamente de marcha atrs em direo plataforma. No me encontrava em condies para o que se me deparou; os destroos humanos de mais um acidente de automvel. As duas raparigas que vinham nas macas tinham, nitidamente, sido cuspidas pelo vidro da frente. Ensangentadas da cintura para cima, traziam ligaduras provisoriamente colocadas sobre a cabea e o rosto. A seguir a estas saram dois homens pelo seu p, com contuses de pouca gravidade. Ao afastar a ligadura de uma das raparigas, saltou-me um esguicho de sangue para o rosto e para a bata. Tratava-se, nitidamente, de um caso de hemorragia arterial, pensei, voltando a colocar a ligadura no lugar. Calcei um par de luvas esterilizadas e, em seguida, retirei rapidamente as ligaduras comprimindo de imediato um pedao de gaze no ferimento, verificando, com o auxlio da outra mo, a profundidade da lacerao, que se estendia da testa, seguindo por entre as sobrancelhas, at boca. De vrias zonas do ferimento saltavam pequenos esguichos de sangue, que se estendiam em vrias direes. Consegui, com grande dificuldade, colocar-lhe alguns hemostatos, mas antes que os conseguisse atar a rapariga arrancou-os. Estava embriagada. O cruel e sangrento ritual prolongou-se por um minuto ou dois, em que ela arrancava os hemostatos assim que eu lhos colocava. S a minha persistncia e teimosia me fez levar a melhor, fechando finalmente os vasos que sangravam, mas deixando, como no podia de ser, muito trabalho para ocupar o cirurgio plstico. Entretanto, chegara um residente para tratar da outra rapariga. Foi nessa altura que descobrimos que ambas eram funcionrias militares e como o seu estado se mantinha estvel, ou seja, no se esperava que morressem nas horas seguintes, l seguiram para um hospital militar. Fiquei ento com os dois indivduos que se encontravam em relativo bom estado. Limpei-lhes as escoriaes e suturei mecanicamente, sem proferir palavra, duas pequenas laceraes que tinham no coiro cabeludo. s trs e meia j s havia um paciente para ser visto, um beb de dezesseis meses. Nessa altura j eu estava de rastos, e poucas recordaes me ficaram do caso,

exceto a de que os pais tinham levado ali a criana porque ela andara a comer muito mal na semana anterior. Pensando que provavelmente me tinha escapado alguma coisa, filos repetir as indicaes vrias vezes. Entretanto j a criana se sentara, toda sorridente e atenta. Com um toque de sarcasmo, perguntei se no achavam o comportamento de ambos um tanto estranho. Estranho por que? quiseram saber; estavam preocupados. Sentindo-me invadir pela clera, limitei-me a examinar, em silncio, o beb perfeitamente normal, e em seguida telefonei ao mdico particular, que ficou igualmente irritado por estarem a incomod-lo s trs da manh por uma coisa daquelas. Acabei por entregar o caso s enfermeiras, que os mandaram para casa. No fui capaz de os ver novamente na minha frente. Depois de a criana sair, fui at plataforma, perscrutando inexpressivamente o negrume silencioso. Sentia-me agoniado e no limite da exausto, mas a experincia amarga dizia-me que muito pior havia de ficar se me acordassem para o paciente que, inevitavelmente, se apresentaria para que o atendesse quinze ou vinte minutos depois de adormecer. Todas as enfermeiras se encontravam ocupadas a executar pequenas tarefas, menos uma, que tomava um caf. Senti-me estranhamente alheio ao que me rodeava, como se os meus ps no estivessem firmemente pousados no cho, e imensamente s. At mesmo o medo desaparecera, banido pela exausto. Se naquele momento surgisse algo de verdadeiramente srio, tudo o que conseguiria fazer era manter a pessoa viva at outro mdico chegar. Bem, desempenhar esse papel j no era mau de todo. Claro que continuaria a fazer milagres com os bbados, as vtimas de stress e as criancinhas que no andavam a comer muito bem a minha verdadeira clientela. Algures de ali perto e aproximando-se cada vez mais, chegou-me o som do buzinar de um Volkswagen, perturbando a enganadora tranqilidade das urgncias. medida que o rudo se aproximava, aumentando de volume, comecei a lembrar-me da personagem dos desenhos animados chamada Beep-beep; uma associao absurda mas deveras apropriada ao estado mental em que me encontrava. Beep-beep. Talvez fosse mesmo ele. Trinta segundos mais tarde a fantasia foi substituda por um VW que estacionou defronte da plataforma, ainda a apitar. De dentro do carro saltou um homem a gritar que a mulher estava a ter o beb no banco de trs. Depois de dizer a uma enfermeira para trazer a maleta de pronto-socorro para partos, corri para o VW e abri a porta do lado direito. No havia dvida de que estava ali uma mulher, deitada de lado, obviamente nos ltimos momentos do trabalho de parto. A luz era muito fraca, no iluminando suficientemente a rea onde o nascimento se estava a processar; tudo teria de ser feito atravs do tato. Ao vir-lhe outra contrao, senti a cabea do beb mesmo junto do perneo. As cuecas da mulher estavam de permeio, de modo que as cortei com uma tesoura, e enquanto ela gemia sob o impacto de uma nova contrao, mantive a mo na cabea do beb para o impedir de saltar para fora. Depois de a convencer a virar-se de barriga para cima, afastei as costas do banco para a frente, coloquei-lhe uma das pernas na pequena plataforma que dava para a janela de trs e a outra sobre as costas do banco do condutor. Naquele momento as minhas mos moviam-se por reflexo, deixando-me a mente entregue s coisas mais absurdas como, por exemplo a lembrana de uma velha piada: que h de mais difcil do que meter um elefante fmea grvida num Volkswagen? Terminada aquela contrao, agarrei na cabea do beb acabada de sair e, lentamente, rodei-a de modo a permitir o aparecimento do ombro esquerdo, depois do direito at que, de repente, fiquei a segurar num volume escorregadio. Quase o deixei cair ao tentar recuar para fora do carro. Felizmente nesse momento o beb comeou a chorar. O pai, no sabendo o que fazer no decorrer de todo aquele processo, estivera a comportar-se muito estranhamente; interrompendo as lamrias angustiadas por causa do forro dos assentos, naquele momento j bastante

conspurcados, perguntou se era rapaz ou rapariga. A escurido no me permitiu dar-lhe a referida informao. No devia ser o primeiro filho do indivduo, pensei. Queria limpar a boca do recm-nascido com o instrumento prprio, mas o beb estava demasiado escorregadio para o segurar apenas com uma mo. Preferi entreg-lo a uma das enfermeiras com instrues explcitas para que o mantivesse perto da me e, depois de colocar algumas pinas, cortei o cordo umbilical. Em seguida todos, auxiliares, enfermeiras e pai, ajudaram a tirar a me do carro. A expulso da placenta e os demais pormenores finais tiveram lugar j dentro das instalaes. Fiquei espantado por no se terem verificado laceraes. Todo o grupo desapareceu em direo seo de obstetrcia. O beb redimiu a noite. Talvez lhe dessem um nome igual ao meu. Mas o mais provvel que lhe viessem a chamar Volkswagen. Quase no me importei de atender o bbedo imundo que entrara durante a agitao que rodeara o nascimento. Tinha uma lacerao no coiro cabeludo, que cosi sem anestesiar, ouvindo-o praguejar contra mim. Para dizer a verdade, comeara a praguejar e a descompor-me assim que me vira aparecer. A bebedeira era to grande que lhe tirara toda a rstia de sensibilidade dor. Terminado o ltimo ponto, fui para o gabinete dos mdicos e atirei-me para cima da cama, adormecendo instantaneamente. Eram quatro e quarenta e cinco; s cinco e dez uma enfermeira foi acordar-me para dizer que tinha uma doente minha espera. A princpio fiquei desorientado, absolutamente incapaz de me recordar do local onde me encontrava, ciente apenas do martelar do meu corao. Aqueles vinte e cinco minutos de sono, o grande mdico para tantos males, tinham-me incapacitado, deixando-me, literalmente estonteado e sem foras, com cintilaes na periferia do meu campo visual. Estas desapareceram quando comecei a mover-me. Mesmo assim o meu olho esquerdo recusava-se a focar os objetos e quando abri a porta tive a sensao de que a luz do hall provinha de uma lmpada de cem watts. Sentia-me de rastos, mas, mesmo assim, funcionava. A paciente, onde estava a paciente? O registro que tinha na mo dizia: "Dor abdominal, doze horas." Jesus! Aquilo significava que tinha de registrar toda a histria e ainda aguardar os resultados laboratoriais. Entrei no quarto e olhei para a doente. Devia andar volta dos catorze anos, o cabelo caa-lhe at aos ombros, franzina, de nariz grande. A me encontrava-se a um canto, sentada. A lista de perguntas que se devem fazer para a deteco de uma apendicite longa, de modo que me apressei a darlhe incio. Quando que a dor tinha comeado? Em que altura a sentira pela primeira vez? Mantinha-se no mesmo stio? Assemelhava-se s dores de estmago? S vinha de vez em quando ou era fixa? Entretanto, comecei a apalpar-lhe casualmente, o abdmen por baixo dos cales, pea de roupa muito prpria para o clima do Hava, mas debaixo destes havia algo estranho, o contorno distinto de uma cinta; seria? Tolice. Comera alguma coisa naquele dia? Naquela noite? Sentira vontade de vomitar? O estmago parecia macio. O problema no devia estar ali, pois os movimentos da minha mo no lhe provocaram nenhum desconforto. Os seus intestinos tinham funcionado? Fora normal? Peguei no estetoscpio. A urina era a de sempre? Coloquei as hastes nos ouvidos e a extremidade no abdmen da paciente, ouvindo as respostas que esta me ia dando atravs da barreira dos auscultadores. J alguma vez tivera dores abdominais? J sofrera de alguma lcera? No sei por que, mas deixava sempre as perguntas referentes ao ciclo menstrual para o fim. Era apenas uma questo de decoro. Quando que lhe viera o perodo pela ltima vez? A resposta foi um tanto histrica: "Sou um rapaz!" Olhei para ela (ele) durante um minuto, levando algum tempo a apreender o significado do que ouvira. Cabelo comprido e sedoso, camisa larga de tecido aveludado e cor dourada. No, era uma blusa. Cinta! Metendo-lhe a mo por baixo da cinta,

levantei a ponta desta, quase o erguendo da mesa. No havia dvida de que era verdade, estava ali um pnis. A me limitou-se a olhar para o lado. Eu no estava preparado para semelhantes e to inesperados contratempos. Tudo aquilo parecia uma enorme e cruel brincadeira. Eu ali a esforar-me por proceder a um sofisticado diagnstico intraabdominal e nem sequer acertava com o sexo. De qualquer modo ele no tinha apendicite ou qualquer outra coisa terrivelmente sria. Tratava-se, provavelmente, de um caso simples de clicas intestinais. Se lhe tivesse dito que eram clicas menstruais, at teria ficado satisfeito. No tendo aprendido com o que me acontecera, da outra vez, voltei a adormecer; Trs! A porta abriu-se e apareceu uma enfermeira que, encantada, me informou de que tinha uma paciente l fora. Foi o mesmo processo, o mesmo esforo agonizante para me levantar, pestanejar e, gradualmente, voltar a mim ao sair para a luz. Daquela vez era uma senhora nativa que trazia consigo a me doente, e no falava uma palavra de ingls. Com tantas lnguas a serem utilizadas na ilha, estvamos habituados a servir-nos de intrpretes, mas naquele caso o ingls da filha nem sequer aos rudimentos chegava. Alm disso, as queixas eram to numerosas que todos os rgos pareciam estar envolvidos. Tinha dores aqui, ali, na cabea, fraqueza, dificuldade em dormir e sensao geral de fadiga. Parecia eu. Perguntei cuidadosamente filha se a me tinha alguma dor quando urinava e fui brindado com um olhar inexpressivo. Reformulando a pergunta quis saber se a me tinha alguma dor quando fazia Pi-pi, ui-ui, chi-chi, um-um... at que se me acabaram os sinnimos... quando vertia guas. Pensei que tinha conseguido, daquela vez, trazer-lhe um vislumbre de compreenso, de modo que repeti a pergunta. "A sua me tem dores quando verte guas?" A resposta foi tima, fez-me desejar desistir totalmente da medicina. Disse que no sabia. O lxico da lngua inglesa no possui nenhum vocbulo que possa descrever a frustrao que me invadiu. Disse-lhe que, por amor de Deus, ento lhe perguntasse. Portanto, ela perguntou-lhe. Sim. A resposta foi sempre a mesma para cada pergunta. Sentia ardor quando urinava, as suas mices eram freqentes, tinha nuseas, vmitos, corrimento vaginal, diarria, dores de barriga, dores no peito, tosse, dores de cabea... Como a me parecera particularmente enftica em relao s dores no peito, tentei fazer-lhe um eletrocardiograma, mas o aparelho avariou-se. Quando, l fora, os pssaros comearam a cantar, foi como se me atacassem com os seus trinados; mas claro que estavam apenas a anunciar o nascer do dia. Sentia-me to estoirado que, pura e simplesmente, no queria saber da velhota, de nada. Firmemente convencido de que ela no morreria nas prximas horas, dei-lhe um pouco de Gelusil, que ela adorou imensamente, e marquei-lhe uma consulta para essa manh. Quando saiu, j a manh nascera, gloriosa. Antes de poder desaparecer mais uma vez, dentro do gabinete dos mdicos, entrou um beb e, ao mesmo tempo, um homem de idade. A me deixara cair o beb sobre o brao, que se mostrava um pouco inchado, e o homem dera um mau jeito s costas uns dias atrs. Depois de mandar os dois para os raios X, deixei-me adormecer numa cadeira, ao p do balco, mesmo no meio das instalaes. Quando o meu substituto chegou, deixou-me dormir. Quarenta e cinco minutos mais tarde, acordei sentindo-me to mal como antes, mas sabendo que, daquela vez, podia ir para a minha prpria cama. Onde esto as cmaras da televiso agora? murmurei para com os meus botes ao arrastar-me penosamente para o meu quarto, todo coberto de muco seco, vmito e sangue. Tirar as roupas e escorregar para dentro dos lenis frescos e ligeiramente speros foi uma experincia estranha e gratificante. E assim comearam as minhas vinte e quatro horas de folga. Depois de mais de um ms inserido na rotina das urgncias, ainda no conseguira adaptar-me nem fsica

nem mentalmente. Recuperei a lucidez por volta da hora do almoo, ao ser acordado por uma combinao de pssaros, sol e fome. Depois de fazer a barba e tomar um duche senti-me um pouco mais humano e quando sa para o quente sol do meio-dia a fim de ir almoar senti-me novamente de regresso ao mundo real. A seguir ao almoo assaltou-me o desejo imperioso de me afastar do hospital. O ato mais prudente teria sido dormir mais um pouco, mas a experincia ensinara-me que, por muito fatigado que estivesse, se passasse a maior parte da tarde no meu alojamento dificilmente conseguiria adormecer. Vesti, pois, os cales de banho, meti a prancha de surf no carro, atirei alguns livros de medicina para o banco de trs e zarpei em direo praia. Foi um alvio sair dali e deixar-me envolver pelo tumulto das cores e do movimento. As pessoas pareciam estar em todo o lado, todas elas estranhamente inteiras e saudveis. No hospital, freqente termos a sensao de que todo o mundo sofre de diarria e tem dores no peito. Mas ali esto elas, movimentando-se atarefada e alegremente de um lado para o outro, o riso entremeando a. atividade fsica, bronzeadas, biqunis magnficos. Aquelas pessoas pareciam to normais! Os pensamentos sombrios que me dominavam faziam com que fosse, de certo modo, um estranho, algum que no pertencia quele meio. Demasiado cansado para nadar ou jogar voleibol, instalei-me em cima da prancha de surf, de rosto virado para o Sol, e deixei correr o tempo. No tentei entabular conversa com ningum e ningum se aproximou de mim, o que foi timo. Estava to impregnado das urgncias que depressa teria afastado qualquer pessoa no seu juzo perfeito com lamrias sobre sangue e ossos partidos. Mas esse no seria o meu verdadeiro tema; este teria sido a minha raiva, exausto e medo. V, deixa-te de todos esses adjetivos lgubres e dramticos, pensei, pra de chafurdar em tanta autocomiserao. No tens feito outra coisa, nos ltimos tempos, que no seja sentires pena de ti mesmo. E ento, que tem de especial o fato de o trabalho do interno ser to malfadadamente difcil? Muda essa situao se puderes. mas deixa de ter pena de ti mesmo. Isso no ajuda ningum, muito menos a tua pessoa. No entanto continuava a desejar que a nossa cultura nos aliviasse de um pouco da tenso, tomando a conscincia de que uma bata branca e um estetoscpio no conferem sabedoria s pessoas que os usam. Grandeza, muito menos. Ora, que se danasse! O melhor que tinha a fazer era tirar uma soneca. Adormeci ao sol, sozinho, no meio de todo o esplendor e alegria que me rodeavam. O certo que aquela cena repetia-se todas as tardes em que saa de servio de urgncias. Dormir de manh, comer, dormir de tarde, comer. No fazer nada durante um bocado, depois dormir para s acordar e descobrir que o ciclo das vinte e quatro horas de servio iam comear de novo, no percebendo como o tempo passara to depressa. Quando acordei a tarde j ia longa; as pessoas tinham comeado a dispersar e o sol estava muito mais fraco. Ningum pareceu reparar em mim e eu continuei sentado a apreciar o reflexo do sol na gua. Era como observar uma fogueira. A sua atividade parecia desculpar a minha imobilidade e disperso de pensamentos. No que estivesse inconsciente; tinha percepo de tudo o que se passava em meu redor: os movimentos, os sons, as cores. S no as associava mentalmente. Hastings teve de sacudir a mo em frente dos meus olhos vrias vezes para eu me aperceber da sua presena. Surf! Claro, porque no, se conseguisse entrar, juntamente com a minha prancha, na gua. Senti-me incapaz de me mover, como se o sol me tivesse exaurido de todas as energias. Aquele era mais um dos aspectos que faziam parte da rotina das tardes de folga. Hastings ia ter comigo praia, perto do fim da tarde, para irmos os dois fazer surf, mal falando um com o outro exceto para dizer algumas palavras como "fora", por exemplo, se alguma onda grande se aproximava.

No percebia por que motivo fazamos planos to complicados para nos encontrarmos e depois passvamos o tempo a ignorar-nos um ao outro. Mas gostvamos os dois de que as coisas se passassem assim. O remo era o ponto alto do dia, uma espcie de catarse. Era ali que conseguia funcionar novamente como um todo. Utilizava os braos e os ps para remar, sentindo a fora que deles se desprendia e o contacto da gua debaixo de mim, movendo-se, suave e fresca. A imensido do oceano que se estendia em meu redor, aparentemente at ao infinito, fazia com que me sentisse minsculo e, no entanto, real, o verdadeiro centro. As pessoas desapareciam; as suas vozes mudavam-se, transformavam-se em murmrios que de to distantes pareciam ter sido varridas pelas ondas. O sol poente pintara toda a faixa de cu, a oeste, de suaves tons de laranja e vermelho, que emitiam milhares de reflexos sobre a gua, fazendo lembrar uma pintura de Monet. Para leste, azuisprateados e violetas comeavam a aparecer por entre os longnquos rosas e verdes. minha volta o mar estava salpicado de barcos vela, pequenas manchas coloridas contrastando com a gua e o cu. A ilha erguia-se abruptamente a partir da orla da gua, e a luz do Sol lanava sombras entre os desfiladeiros, criando uma textura suave como veludo e fazendo os arrojados cumes erguerem-se como os esteios de uma catedral gtica. Nuvens de um violeta intenso pairavam sobre a ilha, escondendo os picos, formando reflexos prismticos de arco-ris no sombreado dos vales. Independentemente do efeito que pudesse ter nos outros, toda aquela beleza me empolgava, esvaziando-me de todos os outros pensamentos e transformando-me novamente num todo. As ondas contribuam, com a sua impetuosidade e o seu ritmo, para criar aquela atmosfera; num minuto, uma vibrao organizada de movimentos harmoniosos, no seguinte, uma massa rodopiante confusa e desconexa. Apanhei uma das vagas. Senti o seu poder, o vento e o som. Torcendo-me sob o impulso da prancha, trabalhei o corpo contra a tendncia de queda; velocidade e milsimos de segundos cruciais. Segui a curva descendente da onda, e depois de uma contoro ao corpo, passei a mo ao longo da fina muralha de gua e deliciei-me com a queda e a viragem, no entanto sem cair, os ps assentes na prancha e perdidos num torvelinho de espuma branca. Finalmente veio o impulso para sair depois de uma violenta, mas controlada toro no sentido contrrio, que me deu vontade de gritar com a alegria de estar vivo. A escurido comeou, a pouco e pouco, a cobrir o cenrio, obrigando-nos a voltar para a praia. Hastings seguiu o seu caminho e eu o meu, regressando ao hospital para tomar um duche. De volta ao mundo geomtrico dos soalhos limpos, dos chuveiros utilitrios e das luzes fluorescentes, vesti-me para voltar a sair logo em seguida. Conduzi o carro em direo a Motint Tantalus, preparando-me, satisfeito, para a noite em perspectiva. Ela chamava-se Nancy Shepard e conhecera-a, de que outra maneira poderia ter sido? - atravs do hospital. O pai fora operado bexiga e eu acompanhara a sua evoluo de perto, depois de ter assistido e participado na operao, esta executada por um mdico particular. Sempre que lhe mudava o penso dizia-me que gostaria que eu conhecesse a filha, contando-me, no sei quantas vezes, que esta fora estudar um ano para a Universidade de Boston a fim de tirar o mestrado em Histria de frica. O certo que eu j andava a ficar farto de ouvir aquelas histrias, embora continuasse interessado em encontr-la. At que, um dia, antes de o indivduo sair do hospital, ela aparecera e eu pudera verificar que era simptica, muito simptica at. De fato, pareciase at ligeiramente com uma outra rapariga com quem andara nos meus tempos de faculdade. De qualquer modo, fomos algumas vezes praia juntos, sadas que apreciamos bastante. Ele era capaz de falar praticamente de qualquer assunto; era agradvel estar com uma pessoa culta e inteligente. Licenciada em cincias polticas,

adorava discutir acesamente pequenos aspectos da governao, especialmente no que dizia respeito a frica. Apesar de uma srie de sadas bem sucedidas e da minha admirao por ela, comecei a diminuir a freqncia dos convites, principalmente por letargia e falta de tempo. De fato, o convite para jantar naquela noite aparecera de improviso... No que eu no desejasse ver Nancy. O problema que tinha muito pouca disponibilidade para aquele esquema e, entretanto, Joyce e eu tnhamos iniciado uma relao muito agradvel. O jantar esteve timo. Os pais de Nancy e dois irmos seus, tambm presentes, eram timos conversadores. Depois do caf, Nancy e eu fomos dar uma volta pelo amplo e verdejante ptio, comeando a discutir sobre Jorno Kenyatta e a Tanznia. Por que deixara a frica de produzir mais Kenyattas? Ela entusiasmou-se com o tema; era bom ver-lhe o rubor subir s faces medida que se entregava ao calor da discusso, pormenor que a tornara ainda mais bonita. Mas depois comeara a fazer-me perguntas sobre medicina. O fato de estar verdadeiramente interessada e no, como muitas outras, querendo apenas passar o tempo, levou-me a esforar-me bastante para a fazer compreender, respondendo-lhe o melhor que podia s questes que me punha. Como no podia deixar de ser, perguntou-me porque fora para medicina. Perante esta pergunta, o interno arranja muitas respostas. A maior parte delas no passam de meias verdades evasivas. Mas decidi ser totalmente verdadeiro com ela. Bem, Nancy, no me parece que eu prprio saiba muito bem porque. A princpio, penso que tinha a vaga noo de desejar ajudar as pessoas entrando para uma profisso nobre. Mas hoje, depois de j ter andado uns tempos nesta vida, tenho idia de que fui atrado, sobretudo, pelo conceito de que o ser mdico me proporcionaria uma espcie de poder de que as outras pessoas no usufruem, poder sobre as pessoas e tambm sobre a doena. Poucas coisas tm mais importncia para os Americanos do que a boa sade, e aqueles que a tm para dar, ou afirmam t-la, tomam-se, automaticamente, figuras de prestgio da nossa sociedade. A que poder e autoridade te referes? Apenas a isso, suponho. algo que se assemelha ao poder de que o feiticeiro gozava nas sociedades tribais primitivas. Ele s detinha o poder na medida em que fosse capaz de jogar com os medos dos seus companheiros de tribo e de faz-los pensar que o controle da natureza estava nas suas mos. uma espcie de embuste legtimo; legtimo porque desempenha, com maior ou menor utilidade, uma funo til, e embuste porque a nica coisa que na verdade controla a psicologia tribal. Penso que a medicina moderna a herdeira afortunada desse tipo de falso juzo psicolgico. Os meus pacientes no caem prostrados diante de raios e troves, mas sentem-se, sem sombra de dvida, aterrorizados pelo cancro e por outras doenas que no compreendem. Quando vo ao hospital, esto procura, em mais do que uma maneira, do feiticeiro. Antes de ter enveredado pela medicina eu era como qualquer dos tipos que passam na rua. Quero dizer, acreditava no poder quase infinito da medicina e queria esse poder, queria ser encarado como um agente desse poder. Mas com certeza que te referes ao poder para ajudar as pessoas, no ? Claro, posso ajudar as pessoas. No tanto como gostaria e nem por sombras do modo como elas esperariam, mas, ainda assim, fao alguma coisa. Mas esse tipo de poder est severamente limitado. A medicina continua a ser deveras primitiva. Os nossos conhecimentos ainda no so, simplesmente, suficientes. do outro tipo de poder, do mais abstrato, que estou a falar. Esse quase ilimitado. Por exemplo: joguei um pouco de futebol no liceu, e uma vez um tipo partiu a perna a meio de um jogo. Eu

estava mesmo ao lado dele e dei comigo a olhar para o meu colega, desejando ardentemente fazer alguma coisa, mas no sabendo o qu. Quando, mais tarde, o caso me voltou memria lembrei-me da inveja que senti em relao ao mdico. Hoje sei que ele no fez mais do que proferir algumas palavras reconfortantes, administrar um analgsico e despachar o tipo. Mas para mim, para todos ns, ele foi o rei dos deuses. Quanto mais pensava nisso, mais forte se tornava o desejo de vir a partilhar de uma parcela desse poder. Mas ento a idia com que optaste por esse curso a de que a medicina era uma nobre profisso, de ajudares o rapaz com a perna partida. Que lhe aconteceu? A partir de uma certa altura, ficou tudo misturado. De qualquer modo fui para a faculdade com intenes de vir a ser um bom mdico. Embora, depois disso, vrias alternativas se tenham aberto para mim, nenhuma delas foi suficientemente importante. De modo que l fui para a escola mdica, sem nenhuma idia especial formada, desejando ambas as formas de poder e apercebendo-me de que as poderia alcanar na profisso mdica, para alm de um status social e de proventos razoveis. Agora que j consegui, mais ou menos, tudo isso, todas essas noes abstratas caram por terra. No tenho nenhum status especial, dinheiro nem v-lo, a teoria do poder divino parece totalmente vazia e quanto ao poder sobre a doena em si, Deus queira que nunca tenha de fazer nenhuma operao cirrgica. Conheo demasiado bem as limitaes da medicina. Devia ter sido suficientemente arguto para me aperceber da ligeira frieza que Nancy comeara a mostrar, mas assim no aconteceu. Ela estava espera da histria "desde rapazinho" to do agrado da televiso e de outros relatos fictcios da medicina. Mas fizera-me ir ao mago de mim mesmo, em busca de respostas, e o rapazinho no aparecera. Achas portanto que no eras dotado de nenhuma qualidade especial que te tenha feito seguir medicina? Nenhuma vocao, por assim dizer? Ela ainda estava procura de Ben Casey3 No, no tinha nenhuma vocao especial. O mais que posso dizer, nesse sentido, que, na faculdade, tirei boas notas tanto na cadeira de cincias como na de estudos sociais, e a medicina a combinao lgica de ambas. Bem, no me parece que tenhas as mesmas motivaes que os mdicos que eu conheo. Ela estava a comear a ficar furiosa. E eu tambm. Ento e quantos mdicos conheces, Nancy? O meu mundo feito deles. Vivo com eles: internos, residentes, chefes de clnica, a populaa da escola mdica, e posso dizer-te, com toda a certeza, que o que me aconteceu a mim acontece-lhes a eles, e que o que sinto se aproxima bastante do que eles sentem, se algum os conseguir levar a que sejam sinceros. Pois bem, eu acho que isso uma vergonha. A que te referes? Ao fato de a nossa sociedade te ter deixado chegar to longe. No s pessoa indicada para seres treinado para mdico porque no te preocupas o suficiente em ajudar o prximo. Acabei de te dizer que quero ajudar as pessoas, e que o fao; mas o problema muito mais complicado do que possas imaginar. Caramba, no sou diferente dos outros! No me move nenhum objetivo absorvente que anule tudo o mais. Tambm

Personagem da srie de televiso americana sobre a vida de um mdico. (N. da T.)

quero viver. Alm disso, muito do idealismo que me animava foi deitado por terra na escola mdica. As coisas no esto orientadas para que acontea o contrrio. No gostas de ser mdico interno? contraps-me. No, nem por isso. Voltou a ficar surpreendida. Por que? Para comear, ando sempre muito cansado, verdadeiramente exausto. Mas, apesar disso, no sinto qualquer sensao de utilidade real. Dou-me conta de que a maior parte do trabalho que eu fao podia ser realizado por qualquer pessoa que no tivesse tido o mesmo treino que eu. Alm disso, ando permanentemente com medo de fazer alguma asneira e passar por incompetente. Sabes, tudo indica que a escola mdica no me preparou como devia ser. A intensidade do momento fizera com que a minha inteno de manter a boca calada falhasse. Bem, penso que compreensvel. A escola mdica no pode fazer tudo disse ela. Talvez possa ser considerado compreensvel distncia, mas quem est no meio da questo no consegue compreender o que acontece. E quando me detenho para pensar que a maior parte dos meus anos passados na escola mdica foi um desperdcio no que se refere aos cuidados a ter com os pacientes, e que tenho andado a ser explorado sob o disfarce da aprendizagem, o fardo psicolgico torna-se demasiado pesado. Fico furioso com o sistema (a forma como a escola mdica, o internato e a prtica da medicina esto interligadas) e com a sociedade que o permite. Estar furioso no se pode considerar como o estado de esprito mais adequado a um mdico observou Nancy. Concordo em absoluto contigo e espero que tambm o sistema se d conta desse fato. s vezes chegamos a um ponto em que passamos a estar perfeitamente nas tintas para tudo. J me tem acontecido, depois de me chamarem a meio da noite para atender a uma paragem cardaca, aperceber-me, de sbito, que desejo que a pessoa morra para poder voltar depressa para a cama. Por aqui vs at que ponto chego a ficar estoirado e farto. Deixei de certo modo, de considerar os doentes como pessoas, o que, evidentemente, s serve para aumentar o complexo de culpa. Ao olhar para ela no era difcil ver at que ponto as minhas palavras a revoltavam. Mas no me detive. Penso que esta questo de no considerar os pacientes como pessoas a parte mais difcil de explicar. Talvez alguns mdicos consigam suplantar indefinidamente o problema. Eu no. No o suporto. Neste momento para sobreviver s quero encarar os meus pacientes na qualidade de bexigas, hrnias ou lceras. Claro que isso abrange tudo o que afetar o processo das respectivas doenas e penso que estou a tornar-me, sob o ponto de vista tcnico, num bom mdico. Mas, para alm disso, no quero envolver-me. No estou vocacionado para tal. Uma vez tive um doente chamado Roso do qual me fartei de tal maneira que fiquei mais aliviado por ele se ir embora do que por saber que sobrevivera aos seus males. O silncio era glido. Fiquei a olhar para o cu, desviando propositadamente os olhos dela. Depois prossegui. Outra coisa, muito importante. O fato de sermos internos faz com que sejamos explorados do mesmo modo que um pas subdesenvolvido opera no mbito das relaes mercantilistas que tem com uma potncia colonial. Por exemplo, a nica coisa que fao na sala de operaes, noventa e nove por cento das ocasies, segurar nos afastadores, muitas vezes para o mais nabo dos cirurgies que devia andar a fazer tudo

menos aquilo. Estou ali para ser utilizado. Tudo o que possa aprender apesar do sistema, no por causa do mesmo. E se no fao o que me mandam ou me queixo demasiado do sistema medieval, puf!, l se vai a oportunidade de me especializar num bom hospital. Portanto quando digo que tenho medo de cometer um erro, no tanto pelo paciente que me preocupo, embora isso tambm acontea, mas sobretudo porque posso ser mandado para alguma cidadezinha da parvalheira dar injees contra a febre tifide. Isso , em medicina, o mesmo que vegetar. Alm disso, no tm conta os muitos problemas que nos surgem e em relao aos quais ningum nos d, ou at mesmo, oferece algum conselho. como o que se passa na sala de urgncias no que se refere a reanimar um doente ou a deix-lo em paz. A nossa qualidade de internos inexperientes faz com que sejamos totalmente vulnerveis em relao a coisas desse tipo. E no se trata, inteiramente, de um problema mdico. E ento as ticas em jogo? Se a pessoa reanimada e se transforma num autntico vegetal, o que significa que fica a ocupar uma das camas da unidade de cuidados intensivos que to necessrias so privando uma pessoa dessa cama, algum que pode ter melhores oportunidades de se curar. uma deciso demasiado importante para ser tomada s por ns. A escola mdica nunca nos ensinou a desempenhar o papel de Deus. E depois, todas... Estivera a discorrer com o olhar pousado nas rvores, ordenando aqueles pensamentos pela primeira vez. Estava, de certo modo, a falar para mim mesmo, e quando me virei para olhar para Nancy, esta explodiu, levando-me a calar a meio da frase. s um inacreditvel egosta! No me parece. Limito-me a ver as coisas como so. Para mim, s um egosta... frio, desumano, indiferente tica, imoral e desprovido de empatia. E no so essas as caractersticas que gosto de encontrar num mdico. No havia dvida de que ela no tinha papas na lngua. Olha, Nancy, o que te disse a verdade, e uma verdade que no se circunscreve apenas minha pessoa. Represento um pouco de cada um dos mdicos internos que conheo. Ento tu e toda essa cambada devia ser posta na rua! Isso mesmo, querida! Se te sentes assim to revoltada, por que razo no vais passar uns dias s urgncias? muito fcil ter-se compaixo quando se dorme oito horas por noite. Na maior parte das vezes gozo de menos de metade dessa quantidade. O resto do tempo passo-o a verificar as hemorridas que tanta comicho causam "senhora Chata". No me venhas com moralidades, tu que passas uma vida fcil! E assim continuamos, acabando por ficarmos ambos a ferver de clera. Fui-me embora depois de prometer, com muito pouca convico, que voltaria a telefonar-lhe. De volta ao meu quarto geomtrico e branco, atirei-me para cima da cama, todo alterado, com menos de nove horas pela frente antes de voltar ao holocausto das urgncias. Dormir estava, claramente, fora de questo. Liguei ao laboratrio e foi Joyce quem atendeu. Queria ela aparecer ali por volta das onze? Disse que sim e eu senti-me melhor.

Dia 3O7 CIRURGIA GERAL SERVIO PARTICULAR DE ENSINO

Para o mdico que praticou medicina interna durante a segunda metade do sculo XX, Alexander Graham Bell o maior vilo de todos os tempos. Claro que a culpa deve estender-se um pouco mais alm, de modo a incluir no s o homem que inventou o telefone, mas tambm o sdico que concebeu o modelo. E depois todos aqueles companheiros de trabalho de Bell que perpetuaram aquela infernal mquina de fazer barulho; tambm esses foram coniventes. Como funcionariam os hospitais antes da inveno do telefone? Era freqente considerar-me, nos dias que iam correndo, como uma extenso desse pequeno objeto de plstico negro. Infinitamente mais aterrorizador do que a ambulncia e um bom bocado mais repentino; era sempre algo esperado no fundo do meu subconsciente e, no entanto, conseguia sempre apanhar-me desprevenido. No existe, em todo o mundo, som que se lhe compare para perturbar a paz. A minha paz consistia, naquele momento, em adormecer docemente ao lado de Karen Christie, no apartamento desta, depois do que acredito ter sido um encontro mutuamente satisfatrio. Quando, s duas da manh, o telefone tocou, ambos estendemos o brao para ele. Deixei-a atender, no porque, provavelmente, fosse para ela. Como estava de servio, era natural que se tratasse da telefonista do hospital a convidar-me para voltar de novo aos corredores. Mas poderia ter sido aquele que era considerado o namorado de Karen. Era, na verdade, a telefonista do hospital, que me ps em contato com uma enfermeira. Doutor, no se importa de vir imediatamente? Um dos doentes particulares do doutor Jarvis est a ter dificuldade em respirar e o doutor quer que seja o senhor a tratar do assunto. Virando-me de costas, olhei para o teto e praguejei interiormente, mantendo o telefone afastado do ouvido. Conhecia o Dr. Jarvis de ginjeira. No era outro seno o nosso velho amigo "Superchato", famoso pelas carnificinas que desencadeava nas salas de operaes, principalmente bipsias ao seio. Ainda est a, doutor? perguntou a enfermeira. Sim, enfermeira, ainda estou aqui. Sabe se o doutor Jarvis tenciona c vir? No sei, doutor. Tpico. No s em relao ao "Superchato" como tambm maioria dos mdicos ligados quele hospital. O interno iria ver o paciente, descobrir o que se passava e depois telefonaria ao seu mdico particular, que, evidentemente, diria ao interno para fazer o que pensava ser mais aconselhvel. Na maior parte das vezes os tipos nem sequer se preocupavam com as delicadezas. Uma vez passara cerca de uma hora com um dos casos do "Superchato". Ao telefonar-lhe para lhe fazer o meu relatrio, tinha sado do consultrio e eu tive de deixar recado recepcionista para ele me ligar assim que chegasse. No h dvida de que telefonara, mas para a enfermeira do andar, no para mim. Quando ela o informou, de que eu tinha muita urgncia em falar com ele, respondeu que no tinha tempo para conversar com cada um dos internos que existiam no hospital. Rapidez, rapidez, para ganhar mais alguns dlares: este o jogo do "Superchato". Esta personagem tinha ainda um outro hbito deveras encantador. Admitia quase todos os seus pacientes no chamado programa de ensino. Seria de esperar, naturalmente, que um programa de ensino providenciasse, de fato, alguns ensinamentos. Deus sabia at que ponto ns, os internos, andvamos necessitados deles. Na prtica, o programa de ensino no passava de uma brincadeira de mau gosto. Significava apenas que eu ou um dos outros internos tomava conta de todo o processo de admisso do doente; o trabalho de "faxina". Como recompensa tambm nos permitiam que nos juntssemos aos outros

e, na sala de operaes, o nosso trabalho consistia em segurar nos afastadores, remover verrugas e, possivelmente, se o mdico estivesse de bom humor, atar alguns ns. A ltima do Superchato" tinha sido a do caso da bipsia ao peito que ele orientara de forma to deficiente. No registro de admisso, dada a particularidade do caso, escrevera uma pequena nota a dizer que quando o pessoal da casa, quer dizer, o interno, comeasse a trabalhar no caso, no devia examinar os seios. Ora esta, como podia eu fazer convenientemente a histria de uma doente a ser submetida a uma bipsia ao peito sem lho examinar? Que farsa! E agora queria que eu fosse a correr, s duas da manh, resolver mais uma das suas trapalhadas. A enfermeira continuava espera, do outro lado da linha. O paciente j foi operado? perguntei-lhe. Sim, esta manh. Uma hrnia respondeu . E no est muito bem. As dificuldades respiratrias j esto a verificar-se de h algumas horas para c. Muito bem, estarei a dentro de alguns minutos. Entretanto mande vir uma mquina de raios X ao quarto para fazermos uma radiografia ao trax. E tire-lhe algum sangue para uma anlise completa e certifique-se de que tem a no andar uma mquina para deficincias respiratrias e outra para eletrocardiogramas. No queria passar o resto da noite espera daquele material. Talvez no viesse a precisar dele, mas o melhor era prevenir. Quando sa da cama, Karen nem se mexeu. No que isso me importasse. Enquanto ia vestindo as roupas, voltei a pensar no quanto ela me era conveniente. Tinha o apartamento mesmo em frente do hospital, o que o tomava ainda mais prximo do que o meu prprio quarto nas acomodaes do pessoal. Continha todos os confortos que uma criatura podia desejar: aparelho de televiso, giradiscos, um frigorfico bem fornecido de cervejas e carnes frias. Karen e eu tnhamos comeado a ver-nos j ia para quatro meses, logo depois de lhe ter visto a singular radiografia plvica na noite em que cara das escadas. Fora mudada, pouco depois, para um turno diurno, data a partir da qual tnhamos comeado a encontrar-nos nos intervalos para o caf. Uma coisa conduziu outra e as idas ao seu apartamento tornaram-se um hbito precisamente na altura em que Joyce deixou de o ser. Joyce, que tambm tinha mudado para o turno do dia, comeou a querer armar em turista e conhecer todos os cantinhos noturnos. Paralelamente a isso surgiu uma certa presso para que me encontrasse com os pais dela e um detestar crescente daquelas escapadelas sub-reptcias s primeiras horas da manh. Tentei acompanhar o ritmo dela, mas a companheira de quarto, a viciada da TV, continuava presente e o nosso relacionamento, que, para comear, nunca tinha sido muito saudvel, tomou-se, por fim, totalmente insuportvel. De qualquer modo Joyce e eu decidimos acalmar durante uns tempos, a fim de termos oportunidade de pensar um pouco. Karen tinha outro namorado, namorado este que continuava a intrigar-me. Ela via-o de vez em quando, talvez duas ou trs vezes por semana, alturas em que iam ao cinema ou at mesmo a um clube noturno. Dizia-me que o indivduo queria casar com ela, mas que ainda no se decidira. Eu no o conhecia, ou pelo menos no sabia grande coisa sobre ele, embora certa vez tivssemos falado um pouco e por acaso, quando ele telefonara para casa de Karen. De qualquer modo eu no estava disposto a fazer perigar uma boa situao procedendo a investigaes mais aprofundadas. A caminho de ir ver o doente do "Superchato", reparei que a noite estava estranhamente calma, quase sem vento, embora, por cima da ilha, pairasse um denso amontoado de nuvens baixas, obscurecendo o cu. Ao dirigir-me para a ala oeste do hospital, olhei de relance para as urgncias e a lembrana dos tempos da cega e exausta azfama ali passados vieram-me imediatamente memria. Podia ver a atividade

intensa que ali reinava, com pessoas a sair e a entrar e as enfermeiras a aparecerem fugazmente no meio de toda aquela confuso aparente. Parecia mais atarefado do que era habitual para uma noite de tera-feira e desejei que no chegasse ao ponto de terem de me chamar. Sempre que recebia uma chamada noturna das urgncias isso significava, normalmente, uma admisso ao hospital, provavelmente cirurgia, e podia ser mau. O corredor da enfermaria encontrava-se lugubremente silencioso e escuro, com exceo das pequenas luzes de presena que espreitavam dos quartos medida que passava rapidamente por eles em direo ao balco das enfermeiras, que ficava ao fundo distinguindo progressivamente a claridade. Naquela altura j no estranhava atravessar aqueles corredores sem luz, em que o silncio era cortado apenas pelos sons habituais num hospital, o ligeiro tinido de uma intravenosa, algum murmrio ocasionalmente emitido durante o sono; sons que tinham sempre o condo de me fazer sentir s no mundo. Conheci outros mdicos que me falaram de sensaes semelhantes. Na verdade, deixara de analisar o hospital e os efeitos que este produzia em mim da mesma forma como costumava fazer nos primeiros tempos, tendo-me tornado, num certo sentido, cego ao que me rodeava. E tal como um cego, limitava-me a seguir os marcos, as vrias portas e voltas, chegando muitas vezes ao meu destino sem dar conta do caminho ou dos pensamentos tidos ao longo do percurso. H alguns meses atrs a telefonista tinha-me chamado para atender uma paragem cardaca. Levantara-me, vestira-me e correra para o hospital, antes de me aperceber de que ela no me dissera de que paciente se tratava e a que enfermaria pertencia. Felizmente calculara bem a localizao, atravs de uma espcie de sexto sentido que faz com que, ao acordarem-nos, saibamos imediatamente de que informao se trata sem que da mesma nos dem elementos. Este processo tinha as suas desvantagens ocasionais, como aconteceu, por exemplo, numa das freqentes chamadas noturnas para ir ver um paciente que cara da cama. Corri automtica e insensatamente para a enfermaria para o encontrar no meio do cho, em tima forma, evidentemente. Depois de telefonar ao mdico respectivo, deixara ordens para lhe darem uma injeo de Seconal, certificando-me assim de que no voltava a cair, e voltei imediatamente para a cama. Tudo isto sem ter chegado a acordar verdadeiramente. Voltei a ser chamado um pouco mais tarde, pela mesma enfermeira, que me disse que o mesmo doente tinha voltado a cair, desta vez pelas escadas. L me levantei novamente e me pus a caminho. A meio do percurso, ao subir um lano de escadas, deparou-se-me uma massa inerte cada nos degraus. Fiquei ali parado, estonteado, e precisei de uns bons dez segundos para me reprogramar sobre o fato de, diante de mim, se encontrar o paciente que ia ver. Ele devia estar no andar de cima! Mas, claro, estava onde estava porque tinha cado pelas escadas. A total flacidez do corpo durante a queda permitira-lhe sair ileso. Chegou-se concluso de que todas as injees, o analgsico, o anti-estamnico, o relaxante muscular e o meu Seconal, tinham sido administradas ao mesmo tempo pela enfermeira e tinham atuado simultaneamente, precisamente na altura em que pousara o primeiro p nas escadas que conduziam ao andar de baixo. Nem sempre acorria quelas situaes meio a dormir. Desenvolvera, simplesmente, um mecanismo que me permitia continuar a dormir a caminho de alguma tarefa estpida que se me deparasse a meio da noite. As coisas eram diferentes quando era chamado para socorrer algum caso grave ou quando me enfurecia. Mas como o nosso hospital sofria de uma epidemia de doentes que passam a vida a cair da cama, aprendi a desempenhar essa misso apenas num estado de semi-sonolncia.

Depois daquela longa caminhada na escurido, o posto das enfermeiras parecia to iluminado como um estdio de televiso. A enfermeira que me chamara alegrou-se efusivamente quando me viu chegar e ps-me ao corrente das providncias que tomara. O sangue fora mandado para as anlises, a radiografia estava tirada e os aparelhos pedidos j se encontravam no quarto do paciente. Tirei-lhe o registro das mos e dei uma vista de olhos s notas, que, pelos vistos, tinham sido feitas por um dos meus colegas internos. Havia uma caixa de chocolates em cima do balco e eu enfiei dois na boca. A temperatura estava normal. A tenso elevada e o pulso acelerado. As coisas pareciam mais ou menos normais para um recm-operado a uma hrnia. Voltei para o corredor e segui o mesmo caminho no sentido contrrio, rumo ao quarto indicado. Entrando nele, acendi a luz, iluminando um homem de aspecto plido deitado numa cama, que respirava a custo. Ao aproximar-me pude verificar que estava deveras diafortico, a testa perlada de transpirao. Olhou de relance para mim durante um segundo e depois desviou o olhar como se tivesse de se concentrar no seu ritmo respiratrio. Olhando rapidamente para a janela, apercebi-me de que dali se via o edifcio de apartamentos que ficava em frente, e a janela de Karen, que era a segunda a contar da direita, no terceiro andar. Provavelmente, ainda nem dera conta de que eu j tinha sado. Com o estetoscpio nos ouvidos, ajudei o doente a sentar-se e auscultei-lhe os pulmes. O som da respirao era ntido; no se ouviam estalidos, crepitaes, roncos ou assobios. Estavam limpos. Talvez a rea dos pulmes me soasse um pouco elevada; isso talvez se devesse ao fato de o abdmen estar intumescido e rgido. No lhe encontrava flexibilidade, contudo. Auscultando-o ouvi o familiar e reconfortante gorgolejar. As batidas do corao eram normais; no apresentava sinais de sncope cardaca. A nica coisa que achava de anormal era o estmago cheio de gases. A dilatao gstrica era um problema que surgia freqentemente aps uma anestesia geral. Disse enfermeira para ir buscar um tubo nasogstrico e, entretanto, liguei o homem ao aparelho dos eletrocardiogramas. Estas geringonas eram motivo de irritao para mim sempre que tentava servir-me delas noite, no dispondo de tcnicos para fazerem o trabalho. Como no parecia capaz de arranjar um bom campo eltrico, o traado vagueava por toda a largura da pgina. Mas consegui dispor as coisas de modo a que o traado no sasse muito mal, enquanto o doente continuava deitado a respirar pesadamente. A enfermeira j estava de volta com o tubo nasogstrico antes de o eletrocardiograma ter terminado. Besuntei o tubo, no resistindo ao pensamento de que o mdico daquele doente estava comodamente refestelado em casa enquanto eu que tinha de estar ali a enfiar o tubo. Uma coisa ficara comigo dos passados ltimos meses, tornando-se cada vez mais forte: a satisfao de alcanar um resultado rpido e desejado, e senti-me aliviado ao fazer evacuar uma enorme quantidade de fludo e ar do estmago daquele paciente. O meu alvio foi nfimo, no entanto, comparado com o dele. Ainda estava a enfrentar algumas dificuldades, mas tinha a respirao muito mais facilitada. Ao agradecer-me o alvio que lhe proporcionara, precisou de duas inspiraes para conseguir dizer a frase. Voltei a auscultar-lhe os pulmes, s para me certificar de que j no tinham mais lquido no interior. Estavam lmpidos. As pernas tambm se encontravam normais, no mostrando nem sinais de edema nem de perigo de tromboflebite. Dei uma vista de olhos inciso, levantando o penso, e esta pareceu-me tima, sem drenagem excessiva. Disse enfermeira para arranjar uma mquina de suco para o tubo nasogstrico e procedi respectiva ligao, voltando em seguida ao posto das enfermeiras com o papel do eletrocardiograma. Ainda tinha um bocado de dificuldade em ler eletrocardiogramas, mas aquele parecia-me normal. Pelo menos, no se verificavam arritmias. Havia, talvez, um

pequeno indcio de tenso na parte direita do corao, mas no era nada de especial. Decidi tomar uma medida de precauo e telefonar para o mdico residente e pedir-lhe apoio na leitura do grfico. Depois de um minuto ou coisa parecida, de atrapalhao, durante o qual expliquei o problema ao residente, este acabou por dizer que viria ali ver o eletrocardiograma por dizer respeito a um paciente particular sujeito a cirurgia. No tinha dificuldade em compreender a sua relutncia. Assemelhava-se que eu sentia sempre que o mdico interno de servio me telefonava a meio da noite a pedir ajuda para fazer alguma coisa mais complicada ao doente de algum mdico particular. Tivessem os responsveis feito sentir-nos que se tratava de uma cooperao recproca, de uma entreajuda, e todas aquelas pequenas tarefas ingratas seriam muito mais fceis de levar a cabo. Mas na medicina americana, muita da diferena que existe entre o mdico interno e aquele que j passou por todas as fases de aprendizagem , literalmente, a que vai da noite para o dia. Deixavam-nos fazer virtualmente tudo depois de o Sol baixar no horizonte, quando o ensino era inexistente, mas nada durante o dia, altura em que poderamos aprender alguma coisa. Como sempre, verificavam-se sempre algumas honrosas excees para comprovar a regra, malfadadamente poucas, no entanto. Nos primeiros tempos do meu internato, encarara esta relao senhor-escravo com muita ingenuidade, pois nada sabia sobre os direitos que me assistiam. At acabar por ficar de rastos, tentava sempre ver todos os pacientes, particulares ou no, pertencentes ao servio de ensino ou no, por muito insignificantes que fossem as suas queixas. At que a partir de certa altura, o problema se transformou numa questo de sobrevivncia. A partir de uma certa altura sempre que era chamado noite para algum trabalho de rotina relacionado com um doente particular (um aumento de temperatura, por exemplo) perguntava sempre pelo nome do mdico. Se a resposta no fosse aquela que, no meu entender, devia ser, o que acontecia na maior parte dos casos, dizia enfermeira que ligasse ao mdico em questo dizendo-lhe que os internos s eram solicitados para atender casos particulares, com exceo das emergncias. Esta situao no se punha, evidentemente para os casos particulares do servio de ensino. Nesses casos eu era obrigado a ir, fosse qual fosse o mdico particular. Os mdicos de meia-idade ou mais velhos adoravam fazer comparaes individuais entre a nossa pressuposta boa vida e os dias espartanos por que tinham passado. Quase se poderia dizer, ao ouvi-los falar, que, trinta anos atrs, os internos viviam bem abaixo do nvel da pobreza. Os nossos suntuosos salrios, que eu estimava serem cerca de metade do que era pago a um ajudante de canalizador, deixavam-nos simplesmente enraivecidos. Aonde que este mundo vai parar? diziam. Por que razo tnhamos de atender todos os pacientes, independentemente do seu status, nunca dormamos, no tnhamos todas estas mquinas sofisticadas de agora, e isto e aquilo. A atitude que assumiam em relao a ns era uma simples questo de veneno: eles tinham sofrido, portanto tambm ns devamos passar por isso. E assim que a aprendizagem mdica dos tempos esclarecidos que vivemos vai transitando de gerao para gerao; cada um delica-se com a sua doce vingana. Em que lugar ficava o doente no meio de tudo isto? Apanhado no meio; uma posio imensamente incmoda, em que as granadas e as bombas das guerras desencadeadas entre os mdicos caam sua volta. O curioso que grande parte da legislao sada de Washington s servia para tomar as coisas ainda piores. A tendncia era cada vez mais forte no sentido de incentivarem a medicina privada custa do governo, sem qualquer tentativa, no entanto, nem para controlarem a qualidade da assistncia mdica nem para educarem o paciente em potncia. Subitamente armados com o poder do dlar, pacientes anteriormente

indigentes eram atirados para o mercado mdico sem terem a mnima noo do especialista que deviam escolher, parecendo convergir, enganadoramente, para os profissionais incompetentes cuja prtica dava mais importncia quantidade do que qualidade. O resultado imediato era o de que o gnero de pacientes que os internos e residentes costumavam tratar estava agora a aparecer nos andares particulares, sob os cuidados inadequados de mdicos que, semelhana do "Superchato", s estavam vocacionados para o ensino. At o velho Roso voltou a aparecer por ali, para tratar de um problema de menor importncia, agora sob os cuidados de um mdico particular que no queria que o pessoal da casa metesse o nariz no quadro de registros. Assoberbados por esta vaga de dinheiro, os internos eram obrigados a cair nas garras destes mdicos arcaicos se queriam ganhar experincia a lidar com determinados tipos de doena. Todos sofriam. Em anos anteriores quando aqueles pacientes eram admitidos no pessoal de servio, recebiam o tratamento e o apoio dos melhores especialistas do hospital. Era natural que, logicamente, os chefes de clnica mais capazes e conhecedores tambm fizessem parte do pessoal do servio de ensino, porque a comisso para o ensino do hospital e o pessoal da casa selecionavam o melhor a que podiam deitar mo. E os chefes de clnica que estavam mais interessados em ensinar eram, quase sempre, os mais competentes. Se por acaso calhava ser chamado a meio da noite para ir ver um dos seus pacientes, no hesitava em faz-lo, independentemente da razo. Mas agora, em vez de serem admitidos nos servios normais do hospital, onde eram inestimveis para fins de ensino e, simultaneamente, desfrutavam de melhores cuidados do que quaisquer outras pessoas no hospital, estes antigos pacientes normais estavam todos a cair em massa num tipo de assistncia mais primitivo. Como era possvel que uma rea to vital como era a da formao e assistncia mdicas fosse to maltratada? A questo parecia-me especialmente assustadora, sobretudo em cirurgia, rea em que os ingleses, suecos e alemes pareciam consideravelmente mais avanados. Nestes pases, somente os cirurgies tinham permisso para operar nos hospitais. Nos Estados Unidos, qualquer idiota com o diploma de medicina podia efetuar todo o gnero de cirurgia que quisesse, desde que o hospital o permitisse. Eu tinha conscincia de quo inadequado o meu treino na escola mdica fora em relao aos cuidados a administrar aos pacientes; no entanto, tambm sabia que podia obter uma licena para medicina e cirurgia em qualquer dos cinqenta estados. Que se passa na psique americana que permite que gastemos bilhes a policiar o globo, mas que, no entanto, nos faz aceitar de bom grado um sistema de medicina criminosamente retrgrado? semelhana de qualquer outra dvida surgida durante a minha fase de internato, tambm esta acabou por ser passada para trs pela exausto. Comecei a aceitar a situao como se no existissem alternativas. De fato, neste momento no h alternativa. O problema vierame cabea naquela altura porque se avizinhavam problemas, problemas que eu ia ter de certeza com o "Superchato" por causa das radiografias e anlises que mandara fazer ao homem operado hrnia. Mais uma vez me interroguei sobre a razo por que no optara antes pela pesquisa. Antes de telefonar ao "Superchato" a acord-lo, queria dar uma vista de olhos s radiografias que tinham sido tiradas no aparelho porttil. O mais provvel que ele explodisse quando, de manh, viesse a saber do caso, mas pouco me importava com o fato. O corredor ia-se tomando cada vez mais escuro medida que me dirigia, atravessando o labirinto do hospital, para a seco de raios X. Estava tudo to silencioso e escuro quando l cheguei que no consegui dar com o tcnico. Por fim, em desespero de causa, pequei no telefone e liguei um dos nmeros do departamento de raios X.

Cerca de uma dzia de telefones comearam a tocar, de repente, minha volta. Algures algum atendeu um deles, silenciando os restantes. Disse pessoa que se encontrava do outro lado do fio que me encontrava na sua sala de trabalho e queria ver a mquina porttil que utilizara apenas h uma hora atrs, depois do que ele apareceu numa porta, a menos de trs metros de distncia do stio onde me encontrava, a pestanejar e a enfiar a bata. Segui-o at junto de uma srie de caixas, aguardando que rebuscasse num monte de negativos. O departamento de raios X tinha uma particularidade: nunca sabia onde tinha as coisas. A radiografia que eu pretendia tinha menos de uma hora de existncia e, no entanto, ele no a conseguia encontrar. Disse-me no compreender o que se passava. Diziam sempre o mesmo e eu no pude deixar de concordar com ele. Durante o dia, as secretrias eram muito eficientes a darem com as malditas provas, mas a coisa ficava por a. Enquanto o tcnico saltitava de um monte de negativos para outro, encostei-me ao balco e aguardei. Era como assistir reposio interminvel de uma cena incompleta. Por fim tirou um filme de um monte que se supunha j ter sido visto. Colocando-o no quadro luminoso dos raios X, acendeu a respectiva luz que, depois de piscar vrias vezes, ficou ligada. A prova ficara de pernas para o ar, de modo que a coloquei na posio correta. Estava uma desgraa! A radiografia, no o paciente. Os aparelhos portteis para aquele fim no eram, de fato, muito bons, e estou certo de que o radiologista me diria que tinha sido ridculo fazer uma porttil quando o doente podia muito bem deslocar-se ali para tirar uma boa prova. Nunca tentei explicar que as radiografias portteis se justificavam porque podia mand-las fazer por telefone, do meu quarto, e depois t-las prontas, partindo do princpio de que no as perdiam, na altura em que chegasse junto do paciente. Caso contrrio acabaria por ter de ficar de rabo sentado durante uma hora, a meio da noite, espera de que o doente tirasse uma radiografia normal. Aquele raios X parecia normal para uma porttil, o que era o mesmo que dizer que se via apenas uma mancha borrada, com exceo dos gases do estmago e do fato de o diafragma parecer elevado. At mesmo esse aspecto era enganador porque com a pessoa deitada numa cama, nunca era possvel dizer em que posio o tcnico de raios X tirava a radiografia. De qualquer modo, no parecia m. Em seguida liguei para a tcnica do laboratrio e pedi os resultados da anlise sangunea. Este servio funcionava bastante bem; era costume encontrarem os resultados dos exames logo a seguir. Mas naquela noite a tcnica ali de servio pretendeu a minha identificao porque o hospital no tinha permisso para fornecer esse tipo de informaes a pessoas que para tal no estivessem autorizadas. Que problema mais ridculo! Quem mais poderia estar a telefonar a pedir os resultados de uma anlise ao sangue s trs da manh? Identifiquei-me como Ringo Starr, o que pareceu satisfazer a rapariga. A contagem sangunea tambm estava normal. Armado de todas estas informaes, liguei para o "Superchato". O som do telefone a tocar do outro lado foi um deleite para os meus ouvidos. Quatro, cinco, seis vezes ele tocou. O "Superchato" tirava proveito da fama de grande dorminhoco que tinha. Finalmente, atendeu. Daqui fala o doutor Peters, do hospital. Examinei o seu doente da hrnia que estava a ter dificuldades respiratrias. Bem, e como est ele? Muito melhor, doutor. Tinha o estmago bastante dilatado, mas tirei-lhe uma quantidade razovel de fludo e gs atravs de um tubo nasogstrico. Sim, creio que era da que vinha o problema.

Que grande charada, pensei, plenamente convencido de que o "Superchato" no fazia a menor idia de onde o problema poderia ter estado. Prossegui. Achei que tambm era aconselhvel fazer um exame aos outros sistemas, de modo que j tenho comigo os resultados da contagem sangunea, da radiografia ao trax e do eletroencefalograma. Todos eles parecem razoveis. Tudo exceto o diafragma, que... Atravs do telefone chegou at mim uma exploso. Santo Deus, rapaz, essas muletas no so precisas para nada! O meu paciente no nenhum milionrio nem esse estabelecimento uma clnica de luxo. Que diabo est a fazer? A mim bastava um estetoscpio e um pouco de percusso para saber onde estava o problema. Vocs, putos, pensam que o mundo foi feito para as mquinas. Nos meus tempos, quando fazia o mesmo que voc, ns no... No tinha dificuldade em imaginar o rosto dele, a tornar-se cada vez mais vermelho, as veias a sobressarem-lhe do pescoo. Esperava, sinceramente, que tivesse insnias durante o resto da noite. E que fez voc com o tubo nasogstrico, Peters? Deixei-o ligado ao aparelho de suco, doutor. Voc no percebe nada de nada? O homem vai arranjar uma pneumonia com aquela coisa enfiada. V tirar-lha imediatamente! Mas, doutor, o paciente ainda est com problemas respiratrios e tenho receio de que o estmago volte a dilatar-se logo a seguir. No discuta comigo. V tir-lo. Nenhum dos meus operados hrnia precisa de aparelhos desses. uma das minhas regras bsicas, Peters, bsicas! Clique! O auscultador que tinha na mo ficou mudo. Voltei enfermaria e retirei o tubo. O paciente ainda estava a ter dificuldade em respirar, mas no to fortemente como h pouco. Quando ia a sair entrou uma enfermeira, que ficou nitidamente surpreendida e preocupada por me ver ainda ali. Trazia uma seringa. Sentindo-se um tanto culpada, disse-me que o "Superchato" tinha telefonado a mandar dar-lhe um pouco mais de sedativo. Fiquei to fora de mim que nem sequer me dei ao cuidado de lhe perguntar do que se tratava; fui-me imediatamente embora. Agora havia que decidir para onde ir, se para o meu quarto se para o apartamento de Karen. A ltima hiptese no fazia sentido porque Karen ainda estava, de certeza, a dormir. Alm disso, no tinha l nenhum material para a barba; sistema que seguamos para evitarmos ter de dar explicaes ao outro tipo. Se voltasse para o meu quarto, poderia barbear-me quando me levantasse, de manh, dali a poucas horas. J passava das trs. Assim fiz, avisando a telefonista de que j no me encontrava no nmero que tinha dado anteriormente. Disse-me que compreendia. Senti curiosidade em saber at que ponto ela compreendia. Mal tinha acabado de saborear o fofo da almofada quando o telefone tocou outra vez. Jesus, pensei, provavelmente era a admisso de algum doente de urgncia no hospital. Que malfadada noite de tera-feira aquela! Mas era a mesma enfermeira a dizer que o doente da hrnia tinha piorado novamente e que o seu mdico particular queria que eu o fosse ver imediatamente. Estava a ficar farto daquela rotina: para cima, para baixo, e tudo aquilo para ir ver doentes em relao aos quais a minha responsabilidade era to confusa e indistinta que nunca sabia em que p estava. A ironia da situao era considervel. Por um lado, o "Superchato" apressara-se a passar-me uma reprimenda por ter mandado fazer os testes laboratoriais e por ter deixado o tubo inserido no paciente, telefonando depois para a enfermeira a quem, no a mim, ordenara a administrao de um medicamento; e agora queria que eu fosse ver novamente o doente. A coisa s comeou a fazer sentido quando me apercebi de que eu era apenas o

instrumento de que ele se servia para poder continuar a dormir descansado. Era bvio que o paciente estava a receber aquilo que pagava. E eu? Bem, eu estava a receber menos que zero em matria de aprendizagem. Um dia, se tivesse sorte, poderia aspirar a ser um mdico como ele e estar-me nas tintas para o interno, o paciente e a assistncia mdica em geral. De modo que l voltei a descer pelo elevador e a atravessar o corredor mergulhado na luminosidade azulada e discreta que envolvia o hospital adormecido, ao mesmo tempo em que os meus passos ecoavam distintamente no meio do silncio. No me sentia muito mal naquele momento, mas no estaria em muito boa forma quando, s sete e meia, tivesse de ir para a cirurgia. Sentia-me mesmo a precisar de me enfiar no hospital para fazer uma recuperao. Perdera sete quilos desde que iniciara a minha fase de internato. De sbito, nas minhas costas o mundo pareceu explodir em tinidos frenticos de vidro e metal. Virando-me de imediato, vi o interno de servio s urgncias a correr na minha direo, envolvido pela luminosidade azulada do corredor, de laringoscpio e tubo endotraqueal na mo. Atrs dele vinha uma enfermeira a empurrar o carrinho dos tilintantes instrumentos. Paragem cardaca disse-me, ofegante, fazendo-me sinal para o seguir. Agora corramos os dois; eu cheio de curiosidade em saber se se tratava do doente da hrnia. Em que andar ? perguntei. No dos doentes particulares de cirurgia, neste andar. Continuou a correr frente, passando pelas portas giratrias. No quarto de onde eu acabara de sair havia luz e ns apressamo-nos a entrar. O paciente encontrava-se no cho, ao lado da sanita. Tirara a intravenosa do brao e sara da cama. A seu lado estavam duas enfermeiras; uma tentando fazer-lhe massagens cardacas. Agarrei na prancha trazida pela enfermeira que viera atrs de ns e atirei-a para cima da cama, a fim de arranjar uma superfcie firme que facilitasse a massagem. Vamos p-lo aqui em cima gritei. Agarramos os quatro no homem e erguemo-lo para cima da prancha. No se lhe notava o pulso nem a respirao. Tinha os olhos desmesuradamente abertos, as pupilas muitssimo dilatadas e a boca grotescamente escancarada. O interno das urgncias premiu-lhe violentamente o peito; no houve qualquer reao. Belisquei-lhe o nariz, coloquei a minha boca por cima da dele e expirei-lhe ar para dentro dos pulmes. No houve resistncia e o peito ergueu-se ligeiramente. Voltei a soprar para dentro da boca do homem e fiz sinal para que me passassem o laringoscpio, enquanto o outro interno dava incio massagem cardaca, subindo para cima da cama e pondo-se de joelhos ao lado do paciente para trabalhar melhor. De cada vez que lhe empurrava o peito, a cabea do homem baloiava violentamente. capaz de lhe manter a cabea imvel? perguntei a uma das enfermeiras. Esta tentou, mas era impossvel. No intervalo de duas sacudidelas, introduzi-lhe o laringoscpio na boca e atravs da garganta. A epiglote aparecia e desaparecia alternadamente. Avanando um pouco mais, empurrei ligeiramente o instrumento para cima, o que fez com que o metal retinisse de encontro aos dentes do homem. Nada. No conseguia orientar-me no meio das pregas avermelhadas da membrana mucosa. Retirei rapidamente o laringoscpio e fiz-lhe um pouco mais de respirao boca a boca, entre compresses. O interno das urgncias estava a obter bons resultados; o esterno movia-se ligeiramente, forando sem dvida, o sangue a correr razoavelmente para o corao. Tentei inserir novamente o laringoscpio at a epiglote, fazendo vrias tentativas para obter uma viso mnima. Por um segundo avistei as cordas vocais.

 Tubo endotraqueal. Uma das enfermeiras estendeu-mo. No afastei os olhos da garganta do homem. Carreguem-lhe na laringe disse, fazendo sinal para a parte da frente do pescoo. A enfermeira assim fez. Com mais fora. De repente vi as cordas vocais e enfiei o tubo. O Ambu! Liguei-o ao Ambu, que iria fazer entrar ar para o interior dos pulmes do doente, e, olhando para o seu peito, premi-o. Em vez do peito, foi o estmago que se elevou ligeiramente. Maldio! Falhei os pulmes. Puxei o tubo para fora, fiz um pouco mais de respirao boca a boca. Depois voltei ao laringoscpio. Daquela vez, tinha de o enfiar, sem falta. Carreguem-lhe outra vez na laringe. Levantei-lhe a entrada da traquia com fora e vi que as cordas vocais apareciam entre cada compresso. Pra. Okay, pra a compresso. O outro interno suspendeu o ritmo por breves momentos, enquanto eu voltava a enfiar o tubo; em seguida recomeou novamente as massagens. Depois da ligao ao Ambu e da compresso deste, vimos nitidamente o peito a erguer-se. A enfermeira das urgncias colocara os fios condutores para o eletrocardiograma e ouvimos um blip no osciloscpio. O contato no estava a ser bem estabelecido. Volte a fazer a ligao disse-lhe o interno das urgncias. Melhorou. Estava eu a comprimir o Ambu quando uma enfermeira-anestesista chegou. Tomou conta do saco de foles. Medicut. A enfermeira passou-me um cateter e eu coloquei uma tira de borracha a apertar fortemente a parte de cima do brao do doente. Os medicuts podem ser traioeiros, sobretudo quando se est com pressa, mas so muito mais rpidos do que os desbridamentos porque basta introduzi-los diretamente nas veias, atravs da pele, em vez de se proceder a uma inciso, como acontece com o desbridamento. Introduzi o medicut no brao do paciente, empurrando-o at me parecer que chegara veia; afortunadamente, o sangue subiu pela seringa; mas isso era apenas metade da batalha ganha. Empurrei o cateter pelo meio da agulha, esperando que este no sasse de dentro da veia. Em seguida, movendo a agulha para trs e para a frente, tentei fazer avanar o cateter at um pouco mais longe. Quando puxei a agulha para fora, saiu tambm um bocado de sangue vivo, que escorregou pelo cateter, indo sujar o brao e a cama. A enfermeira ainda estava a esforar-se para tirar o tubo de plstico do recipiente contendo o lquido que ia ser introduzido na veia. Deixei o sangue correr um pouco mais; no fazia qualquer diferena. Depois de ligar a extremidade do tubo ao cateter, pude observar que o sangue recuava, empurrado pelo fluxo da intravenosa. Desapertando o torniquete de borracha, regulei o gotejar de modo a que corresse moderadamente. Adesivo. Prendi o cateter ao brao. O eletrocardiograma continuava a mostrar uma fibrilao rpida mas irregular. Epinefrina gritei. Pensei que um estimulante cardaco lhe poderia diminuir a fibrilao, antes de tentar p-lo a bater regularmente atravs do mtodo eltrico. E se a introduzirmos diretamente no corao? sugeriu o interno das urgncias.

 Tentemos primeiro a intravenosa. No tinha muita confiana no mtodo intracardaco. A enfermeira entregou-me uma seringa e disse que continha 1:1000 diludos em 10 cc. Injetei-a rapidamente na nova entrada da intravenosa atravs de uma pequena extenso adjacente de tubo de borracha tendo o cuidado de comprimir a tubagem principal de modo a impedir que a epinefrina retrocedesse para o recipiente donde estava a correr. Bicarbonato disse enfermeira, estendendo a mo que tinha livre. Esta deu-me uma seringa dizendo que continha 44 miliequivalentes. Que tal se sente com as massagens? perguntei ao outro interno. Estou timo respondeu. Injetei o bicarbonato pela mesma entrada da intravenosa e piquei o dedo na operao ao enfiar mal a agulha. Chupando o indicador, observei o eletrocardiograma. Comeou, lentamente, a mostrar indcios de uma forte fibrilao. No ser melhor passarmos imediatamente desfibrilao? sugeriu o outro interno. O aparelho j estava carregado e pronto a ser utilizado. A enfermeira segurava as ps, devidamente untadas por baixo. Suspendendo as massagens, o interno das urgncias pegou nelas, colocando uma sobre o corao e a outra do outro lado do peito. Afastem-se da cama! A enfermeira-anestesista largou imediatamente o Ambu. Wham! O paciente saltou, os braos flutuaram no ar e o blip do registro eletrocardiogrfico desapareceu. Ao voltar, no mostrava grandes alteraes. Entretanto, chegou um mdico residente, ofegante, que ficou rapidamente a par da situao. Introduzam cinco por cento de bicarbonato na intravenosa e dem-me um pouco de xilocana. A enfermeira entregou ao residente 50 ml de xilocana. Este passou-ma para as mos e eu apressei-me a injet-la. Voltamos a desfibril-lo novamente. O fato que tentamos quatro vezes antes de a fibrilao desaparecer. Mas em vez de o ritmo cardaco normalizar, todos os indcios de atividade do corao desapareceram, ao mesmo tempo em que o blip eletrnico do cran eletrocardiogrfico ficava reduzido a uma linha contnua. Maldio! Paragem cardaca! exclamou o residente ao ver o blip. Epinefrina, isuprol, atropina, pacemaker: tentamos tudo o que havia para aqueles casos. Entretanto, as pupilas do homem recuperaram o tamanho normal, perdendo a tremenda dilatao que tinham tido quando nos pusramos ao trabalho. Pelo menos aquilo queria dizer que o crebro estava a receber oxignio; que a nossa massagem cardaca estava a fazer efeito. Chegou outro interno, que veio substituir o das massagens de modo a que o desgraado do colega pudesse voltar ao seu posto de trabalho. Depois foi a minha vez. E se tentssemos o clcio? sugeriu o interno recm-chegado. O residente administrou um pouco de clcio. Eu mandei vir outro tubo nasogstrico, mas s o poderia introduzir se o interno suspendesse rapidamente a massagem. Pouco mais do que ar havia no seu estmago, e o mais provvel era at que este tivesse resultado daquele que, anteriormente, lhe insuflara por engano ao introduzir erradamente o tubo endotraqueal. Disse ao residente que aquele paciente era o do eletrocardiograma lhe tinha falado anteriormente. Tambm o informei de que a radiografia porttil que lhe fora tirada estava, de um modo geral, lmpida. Ao olhar para trs de mim fiquei surpreendido ao ver o "Superchato" ali parado a observar calmamente a nossa efervescente atividade. Devia ter sido chamado pelas

enfermeiras. No proferiu uma palavra. O residente injetou vrias vezes o corao com epinefrina intracardaca. Apesar disso, o corao continuava sem reagir e ns j estvamos sem saber o que fazer. Prosseguimos os nossos esforos durante mais quinze minutos e vimos aparecer uma linha contnua no osciloscpio. Muito bem, basta. Agora parem. Era o Superchato que, finalmente, se dispusera a falar, depois de ali estar em silncio durante quase meia hora. As suas palavras surpreenderam-nos e no surtiram efeito imediatamente, de modo que continuamos a desenvolver os nossos esforos como se ele nada tivesse dito. J chega repetiu. A enfermeira-anestesista de servio ao Ambu foi a primeira a parar. Em seguida, foi o interno que nessa altura estava a fazer a massagem. J estvamos todos muito cansados, s nos apetecendo voltar para a cama, conscientes do fato de que teramos parado antes se as pupilas do homem no tivessem diminudo de tamanho to bem. A constrio das pupilas um dos sinais de reanimao; isso fizera-nos continuar. Mas era claro que, daquela vez, se tratara de um falso aviso. De modo que paramos e o homem estava morto. O "Superchato" saiu e desapareceu pelo corredor fora em direo ao posto das enfermeiras, onde preencheu a papelada relativa ao bito e telefonou para os familiares. As enfermeiras desprenderam os dispositivos do monitor eletrocardiogrfico, enquanto eu retirava a comprida agulha intracardaca. Que tal j se sai a atingir o corao? perguntei ao outro interno. J o consigo fazer a cem por cento, embora ainda s tenha tentado duas vezes. Eu ainda s o fao a cinqenta por cento confessei. Depois de colocar a agulha numa seringa de 10 cc, aproximei-me do paciente e apalpei-lhe o trax em busca do ngulo de Louis, situado mais ou menos a seguir ao esterno. Deste modo fiquei orientado relativamente caixa torcica. A partir dali era simples encontrar o quarto espao intercostal, esquerda. A agulha penetrou sem qualquer dificuldade e quando puxei o mbolo para cima apareceu sangue. Errara o alvo. Penso que o meu problema tem residido no fato de ter andado a utilizar o quarto espao intercostal aventurei. Fiz mais uma tentativa, desta vez no terceiro espao intercostal e quando aspirei no apareceu qualquer vestgio de sangue. isso mesmo. Okay! Agora tente voc. Entreguei-lhe a seringa e vi-o acertar no corao logo primeira. Retirei o tubo endotraqueal do morto e limpei-lhe a extremidade, onde se via um bocado de muco bastante espesso, ao lenol, onde deixou um rasto acinzentado. Fazer uma endotraquia a este tipo foi muito complicado. Quer experimentar? Segurando cuidadosamente no tubo com o indicador e o polegar, passei o ao outro interno. Eu j estava com bastante prtica a entubar porque fizera questo, nos ltimos meses, em praticar sempre que se me deparava uma tentativa de reanimao mal sucedida como aquela, o que era bastante freqente. Pegou no laringoscpio e introduziu-o. Disse-me que no conseguia ver nada. Espreitando por cima do ombro dele, apercebi-me de que no estava a levantar suficientemente a ponta da esptula. Empurre para cima at ter a impresso de que lhe vai deslocar o maxilar. Vi que o brao lhe tremia com o esforo. Ainda havia qualquer coisa que no estava bem.

 Deixe-me experimentar. Fiz fora para cima, utilizando a mo direita e, em seguida, carreguei na laringe. As cordas vocais ficaram vista. Ele tem um lindo ngulo oblquo ali em baixo comentei. Volte a tentar, mas empurre um pouco mais a laringe. A enfermeira meteu a cabea por entre a abertura da porta e disse-nos que precisava do laringoscpio para poder voltar s urgncias com o carrinho completo. Fizlhe sinal com a mo para que aguardasse uns segundos, enquanto observava as tentativas do meu colega. Este, ao avistar, finalmente, as cordas vocais, soltou uma exclamao de satisfao. Depois afastou-se e entregou o laringoscpio enfermeira, que "cacarejou" desaprovadoramente. De sbito vi-me sozinho, enquanto a atividade prosseguia agora noutras reas do hospital, dirigida aos vivos. Tive novamente dvidas entre ir para o apartamento de Karen ou para o meu quarto. Sentia-me isolado, sobretudo porque o homem morrera. Fora uma das ltimas pessoas a v-lo com vida. Mas fizera tudo o que estava ao meu alcance; todos fizeram e penso que ningum se poupou a esforos. Alm disso, fora o "Superchato" quem me obrigara a tirar o tubo e mandara dar-lhe no sei que droga. A responsabilidade no era, portanto, minha, embora o mais provvel que fosse essa a opinio dele. Sem dvida que haveria de atirar as culpas para cima de todos aqueles exames dispendiosos. Esse era um dos problemas mais comuns nos casos dos doentes particulares. Eu estava disponvel para ver o paciente, mas no me cabia nenhuma responsabilidade concreta em relao ao mesmo, da que ela pertencesse ao chefe de clnica, apesar de este se encontrar ausente. O fato tomava a minha posio, no mnimo, ambgua. Tudo muito complicado para as quatro da manh. Ainda assim tinha curiosidade em saber que injeo teria ele mandado dar, por ltimo, ao doente. A enfermeira dissera tratar-se de um sedativo. Se voltasse atrs para ir ver ao registro, corria o risco de encontrar o filho da me, o qual teria, certamente, alguns comentrios a fazer a propsito das dispendiosssimas contagens sanguneas. Mas, a meio do corredor, pensei que valia a pena tentar. O "Superchato" j se tinha retirado. Foi um alvio; era tambm um indicativo do seu interesse pelo ensino. A ordem que constava no registro dizia ter-se tratado de Seconal. A informao no acrescentava nada ao que eu j sabia. Voltando a ler todo o processo, reparei que o homem no tivera antecedentes de problemas cardacos. O estmago e os rins tambm eram normais. Depois fiquei a saber que a hrnia no fora um problema nada fcil de resolver devido sua gravidade; isso no parecia explicar, contudo, a evoluo e o desfecho do caso. Algo contribura para provocar ao doente a insuficincia respiratria que, por sua vez, dera origem falha cardaca. A distenso gstrica que, inadvertidamente, provocara, talvez tenha contribudo para o agravar do problema, mas no estivera na sua origem. E quanto anestesia? Procurando os dados que diziam respeito a esta, li que a induo fora provocada por pentotal, a que se seguira xido ntrico, no se tendo verificado nenhuma complicao. Lutei, em vo, para ordenar todas as peas soltas, mas estava demasiado fatigado para raciocinar. O melhor que tinha a fazer era seguir rapidamente para a cama a fim de l estar quando, dali a pouco, pensei ironicamente, a telefonista me telefonasse a acordar para o trabalho. Muito divertido. Mas fora uma pssima noite de tera-feira. Nesses dias, as noites costumavam ser, de um modo geral, ativas, tal como as de segunda-feira, porque ambos os dias tinham um programa de operaes muito preenchido e isso significava incontveis problemas relacionados com pensos, dores e drenos; no obstante, conseguia dormir sempre alguma coisa. O que no acontecera naquela vez; mal pousara a cabea na

almofada, l tocou novamente o telefone. Era das urgncias; surgira um caso de amputao e eu era necessrio para assistir interveno. As amputaes, principalmente as das pernas, sempre me tinham perturbado de modo particular. As apendicectomias, colecistectomias ou quaisquer outras intervenes efetuadas no interior das pessoas deixavam-nas exteriormente intactas. Mas tirar um p e uma perna de cima de uma mesa de operaes e lev-los para longe da pessoa a que pertenciam, era um ato irreversvel. Por muito insensvel que me tivesse tomado, nunca fui capaz de olhar para a remoo de um membro do corpo humano com os mesmos olhos com que encarava qualquer outro processo mdico. Mas tinha de ser feito. Portanto, levantei-me com a maior falta de motivao que se possa imaginar, e arrastei-me para a sala de operaes. L enfiei a bata, o barrete e a mscara. Depois de colocar esta ltima pea de indumentria, puxei-a para baixo e olhei-me no espelho. Mal pude reconhecer o homem de ar devastado que me olhava. Felizmente, descobri ao entrar na sala de operaes que no se tratava de nenhuma amputao, mas sim de tentar salvar uma perna cujo joelho fora esmagado por um camio. Apenas os nervos e as veias estavam intactos, estendendo-se pelo buraco onde antes estivera a rtula. As artrias, os ossos, tudo o mais, desaparecera. Para minha surpresa fui encontrar dois cirurgies particulares em volta do acidentado, ambos excelentes especialistas em questes vasculares. Perguntei se era preciso, apesar de ali se encontrarem os dois, e responderam-me que talvez. No tive outra alternativa seno ir preparar-me e enfiar a bata e as luvas esterilizadas. A minha tarefa consistia em ficar cabeceira da mesa de operaes, do lado oposto ao do anestesista, e segurar no p rgido com ambas as mos. Os dois cirurgies tinham, logicamente, de estar do meu lado para trabalharem no joelho. Mas estavam de costas viradas para a minha pessoa, como de costume, principalmente o cirurgio do meu lado esquerdo, que se inclinava sobre o paciente. O relgio da parede, minha direita, indicava que j eram quase cinco da manh quando a operao realmente comeou. Pelo que diziam, deduzi que estavam a pr um enxerto na artria principal que corre por detrs do joelho em direo ao p. Passou-se uma hora, inexoravelmente lenta, o ponteiro dos minutos arrastando-se lentamente na sua volta ao mostrador. Assim que colocaram o enxerto, a pulsao comeou novamente a sentir-se no p, diminuindo e desaparecendo poucos minutos depois. O que significava que os cirurgies tinham de abrir o enxerto e retirar o cogulo de sangue recm-formado. Voltaram a sentir o pulso, que desapareceu novamente. Outro cogulo. Nova abertura. Cogulo. O processo repetiu-se vezes sem conta. Estava perfeitamente espantado com a fria persistncia que demonstravam. O fato de nada ter para fazer e ver para alm do relgio da parede, e de ser obrigado a estar ali imvel, mantendo as mos na mesma posio, fez com que comeasse a sentir-me incontrolavelmente ensonado. O som das vozes dos cirurgies vagueava, entrando e saindo da minha cabea, juntamente com a imagem do quarto. Apenas semi-consciente, lutei fortemente para permanecer acordado, mas no consegui: adormeci agarrado ao p. No ca para o lado. Em vez disso, a minha cabea inclinou-se lenta e suavemente para o ombro do cirurgio que estava minha esquerda. Isso fez-me acordar imediatamente e dei comigo to prximo da bata do cirurgio que lhe podia ver os fios entrelaados do tecido. Este olhou em volta e, com o cotovelo, empurrou-me at eu me endireitar. Por cima da mscara, os frios olhos azuis fitaram-me em tom de clara desaprovao. Eu no estava em condies de me preocupar particularmente, mas o incidente serviu para me despertar, trazendo-me de volta a velha fria recalcada. J eram oito da manh e eu ali, depois de uma noite passada em claro, com um preenchido programa de cirurgia minha frente, ainda sem me ter sentado e a segurar

naquele p pesadssimo, trabalho que teria sido feito com muito mais eficincia por um saco de areia. Para dizer a verdade, um saco de areia teria sido infinitamente mais eficaz; eles no cabeceiam nem se encolerizam. No era a primeira vez que adormecia na sala de operaes. Uma vez, ao ajudar numa interveno cirrgica de um caso de tiride, depois de uma noite passada sem ir cama, comeara a sentir-me vencer pelo sono quando segurava nos afastadores. Fora apenas uma questo de segundos, penso eu, porque dera, de repente, uma daquelas sacudidelas bruscas, o que sobressaltou o cirurgio. Este perguntara-me, apenas por gestos, se me ia dar algum ataque epilptico. Mas no me parece que se tenha dado conta do meu adormecimento. Este apercebera-se e estava irritado, embora, tal como o seu parceiro, tenha continuado a ignorar-me. Por fim, depois de tudo terminado e quando eu me preparava para sair, passou-me o esperado raspanete. Bem, Peters, se adormecer durante uma operao sinal indicativo do seu interesse pela cirurgia, penso que o fato devia ser levado ao conhecimento da direo. E eu, em vez de lhe dizer que fosse para o diabo, recalquei o orgulho e desculpei-me com o fato de no ter dormido toda a noite e de no ter sido capaz de ver a operao. No se mostrou impressionado. Previno-o de que melhor no deixar que isto volte a acontecer. Com certeza que no, doutor. Sa da sala com a cabea cheia de pensamentos assassinos que lamentava no poder concretizar. O horrio normal de operaes tinha comeado h mais de uma hora. De fato, perdera j o meu primeiro caso, o que no me preocupava muito. Devia ter assistido a uma colecistectomia. Pura rotina. Alm disso, estava escalonado para mais duas intervenes naquela tarde. Esgueirando-me para a sala de descanso dos cirurgies, surripiei uma fatia de po, o primeiro alimento que ingeria em quinze horas. Quanto a dormir, tambm no estava muito melhor: uma hora de sono nas ltimas vinte e seis horas. Sentia-me um pouco fraco. A perspectiva de mais um dia repleto de intervenes cirrgicas no era nada animadora. Na sala de descanso fui abordado por um irritado residente-chefe que quis saber que motivo me tinha levado a faltar ronda. O interno aprende, desde bem cedo, que impossvel satisfazer todos. Mais tarde, contudo, vim a saber que no valia a pena esforar-me demasiado para agradar a toda a gente, muito menos a mim mesmo. Pus o residente-chefe ao corrente dos poucos casos que tinha a meu cuidado. Como estava no servio de ensino particular, eram poucos; apenas aqueles em cuja interveno cirrgica tinha participado. Ambas as hrnias estavam a evoluir lindamente; o doente da gastrectomia j ingeria alimentos slidos; a senhora das veias estava em franca recuperao e j andava; nenhum dos operados s hemorridas voltara a ter problemas. Fui referindo os vrios casos sem os relacionar com as pessoas a que diziam respeito. Quase me esqueci de mencionar o doente de aneurisma que tinha uma aortografia marcada para aquele dia. Fora-nos enviado de uma das ilhas vizinhas porque as suas radiografias mostravam uma sombra suspeita na rea do pulmo esquerdo. Tratava-se, provavelmente, de uma dilatao localizada na parede da artria principal que atravessa aquele rgo. Se no extrado cirurgicamente, o aneurisma acaba, geralmente, por rebentar no espao de seis meses e o paciente no tarda em morrer com uma hemorragia. Era, portanto, urgente agir rapidamente e estar certo do diagnstico, o que s seria possvel verificar atravs de um aortograma. Este processo, deveras simples, teria lugar na sala de raios X, onde se injetaria uma substncia contrastante na artria do indivduo, mesmo acima do corao. Durante alguns momentos, antes de ser varrida pelo sangue, permitiria delinear os contornos da artria e as radiografias, tiradas

numa rpida seqncia, detectariam qualquer deficincia que existisse. S depois dessa operao que poderamos saber se era necessrio recorrer cirurgia. Como tinha sido eu a fazer a histria clnica do homem, queria estar presente, fato que referi ao residente-chefe. Claro disse-me. Se o programa de cirurgia o permitir. Aquela particularidade do sistema no sofrera qualquer evoluo nos ltimos nove meses. Ns, internos, continuvamos a ser atirados de um lado para o outro, ao sabor do programa de cirurgia; ramos, muitas vezes, obrigados a deixar de ver os nossos prprios doentes. Se estamos a acompanhar o caso de um paciente desde o incio, deviam-nos permitir que o segussemos atravs de todos os seus processos de diagnstico e de cirurgia. Ningum se daria ao trabalho de argumentar contra esse fato, tanto do ponto de vista acadmico como no que se refere ao bem-estar do prprio paciente. Apesar disso, sempre que era necessrio recorrer a um par de mos suplementar em alguma extrao de vescula biliar (nunca nos pediam opinio), ramos sacrificados sem qualquer preocupao relativamente s conseqncias que esses atos poderiam ter em relao nossa aprendizagem ou aos efeitos psicolgicos que os nossos prprios pacientes poderiam sofrer. Era uma outra forma de nos mostrarem at que ponto ramos dispensveis. O residente-chefe desapareceu e, poucos minutos depois, telefonavam-me do posto das enfermeiras a informar que tinha sido designado para participar numa gastrectomia que j tinha principiado. Aparentemente, estavam a precisar das tais mos suplementares. Terminei a refeio de po roubado e dirigi-me, uma vez mais, para a sala de operaes, planeando, mentalmente, o resto do meu dia em cirurgia. Depois daquela gastrectomia tinha uma nefrotomia marcada (remoo de um rim) no quarto 10 e, a seguir, duas colecistectomias. Ao passar em frente do quarto 5 reparei que a nefrotomia j tinha comeado e que ia perd-la. Nakarno, um outro interno, estava j a preparar-se para assistir quele caso. Que filho da me cheio de sorte! Aquela operao tinha mais interesse do que todas as outras juntas. O paciente sofria de um tumor num dos rins e este tinha de ser removido, embora no fosse maligno. At a bem pouco tempo, o cirurgio que tomasse conta de um caso semelhante seria forado a retirar o rim inteiro; hoje os processos de radiologia permitiam a localizao exata desses tumores, havendo apenas que proceder depois exciso da zona afetada. Ora, ficaria para a prxima. Prossegui corredor fora rumo minha gastrectomia. Em tempos normais sentir-me-ia desanimado perante a perspectiva de ter de assistir a operaes daquele gnero, em que as possibilidades de aprender mais alguma coisa eram nulas. Mas naquele dia estava com um pouco mais de sorte porque ambas as intervenes estavam escalonadas com um cirurgio que era considerado bom professor. Aquele homem era como um osis num deserto de conservadorismo. Claro que havia sempre a possibilidade de a operao em que naquele momento ia participar se sobrepor primeira colecistectomia com o tal cirurgio. Esperava bem que isso no acontecesse. Mal dando conta da azfama que se gerava em meu redor, segui lentamente para o quarto 4, sem pressas, fazendo um esforo sobre mim mesmo. Depois de lanar um olhar lista de operaes que estava pendurada no quadro de avisos, fiquei ainda mais desanimado. semelhana do Superchato tambm aquele cirurgio era um homem de idade avanada, pouca percia e falta de modstia. Igualmente dado a longas histrias sobre o trabalho que realizara nos velhos tempos, dava a entender que, durante anos, carregara nos ombros o fardo de grande parte dos servios mdicos americanos, levando a cabo atos de percia e resistncia de dar cabo da cabea a qualquer um. Um residente brincalho pusera-lhe, uma vez, a alcunha de "Hrcules" e esta pegara. "Hrcules" era

dos tais que admitia sempre os seus pacientes no servio de ensino para que o pessoal da casa fizesse os processos clnicos por ele. Se alguma vez um mdico se lembrasse de mandar fazer uma radiografia ou at mesmo uma contagem dos glbulos, ele bradava aos cus contra a utilizao extravagante de dispendiosos exames laboratoriais. Constava que noventa e nove por cento das anlises feitas nos laboratrios tinham comeado a ser incrementadas depois de ele ter terminado o seu curso de medicina, na altura em que os Curie andavam s voltas com a uraninite. Alm do mais, tinha o hbito de prescrever penicilina e tetraciclina para todos os casos de gripe que apareciam nas urgncias prtica que, virtualmente, todas as autoridades mdicas eram unnimes em considerar, nos dias que corriam, como sendo pior do que no fazer nada. Que ele fosse um dos nossos professores no passava, pura e simplesmente, de uma piada de mau gosto. Participara, h alguns meses atrs, na remoo de um clculo renal realizada por "Hrcules". Nessa altura, acabara de ler, segundo dizia, um artigo publicado recentemente num jornal de temas ligados cirurgia, onde se recomendava um novo mtodo a utilizar nesse gnero de operaes. Eu tinha muitas dvidas quanto aos hbitos de leitura de "Hrcules", mas aquele artigo intrigara-o particularmente, embora no parecesse capaz de se lembrar do nome do autor ou do jornal, ou at mesmo do local onde a experincia fora levada a cabo. medida que ia abrindo caminho em direo ao rim, pondo em prtica o novo processo, deixara-se levar pelo hbito costumeiro de cortar as artrias indiscriminadamente, para depois recuar um pouco e dizer: "Rapaz, pe ali um hemostato", mal interrompendo o fio das suas divagaes. L teria o residente de remexer na ferida, aplicando compressas e hemostatos, enquanto o cirurgio pontificava. O novo mtodo de remoo dos clculos biliares de "Hrcules" englobava a aplicao de uma sutura de crmio 2-0, um fio bastante espesso, atravs do rim e, sem seguida, segurando em ambas as extremidades desta, manipul-la de modo a voltar a pass-las pela mesma costura, de frente para trs. Supunha-se que aquele mtodo reduziria a hemorragia. O processo parecia-me um pouco estranho e demasiado simplificado. Como se veio a verificar, o meu cepticismo teve razo de ser. "Hrcules" esquecera-se de um aspecto vital que o artigo salientara vrias vezes: antes de coser com a sutura, o cirurgio devia ser capaz de controlar o pednculo renal (a fonte de sangue que irriga o rim), de modo a que o afluxo de sangue ao rgo fosse detido o melhor possvel. Pois bem, o nosso ousado inovador seguiu em frente, no tomando medidas para controlar o afluxo de sangue, limitando-se a coser indiferentemente o rim para "minimizar a hemorragia". O resultado foi a hemorragia mais incontrolada a que eu alguma vez assistira numa sala de operaes, com exceo de uma ocasio em que o cateter artrial direito de um pulmo artificial saltara do doente. Mas, nesse caso, tratarase de um erro legtimo. O desastre que se estava a verificar com o rim no o era. A ferida ficou instantaneamente repleta com o sangue que saa dos vasos que irrigavam o rim, sangue que ultrapassou as bordas da inciso e inundou a mesa e todo o grupo operatrio. Comeamos de imediato a introduzir sangue no homem atravs da intravenosa. Depois de trs litros e meio, tnhamos finalmente conseguido laquear os vasos, limpar toda a ferida o suficiente para que a pedra pudesse ser removida, efetuando em seguida, suturas enormes ao longo do crtex do rim. Como o corpo humano contm cerca de cinco litros e meio de sangue, tivemos praticamente de drenar o pobre homem e ench-lo de novo. Ficamos todos diabolicamente assustados. At mesmo o anestesista, normalmente num mundo aparte, por detrs do mostrador, com um olho no respirador automtico e ambas as mos no jornal, estava preocupado.

Da que, naturalmente, no estivesse muito ansioso por participar naquela gastrectomia com "Hrcules", a quem j vi a preparar a interveno, enquanto eu me desinfetava e vestia para a operao. Esperava que ele no tivesse lido mais nenhum artigo recente. Tambm ali se encontrava O'Toole, um interno meu colega, mas no se via nenhum residente. Ao entrar de costas para a porta, apercebi-me de que a atmosfera reinante era tudo menos agradvel. Quero uma pina decente! gritou "Hrcules" enfermeira de servio operao, ao mesmo tempo em que atirava a que tinha na mo contra a parede, por cima do ombro. Peters, ponha-se a andar imediatamente para aqui! Como que uma pessoa pode fazer cirurgia sem assistncia? Havia cirurgies que no resistiam a fazer aquela encenao. Comportavam-se na maior parte do tempo, como crianas petulantes, especialmente quando se tratava de instrumentos, que tinham tendncia para atirar para onde calhasse, e de utilizar os processos mais inesperados, como cortar fio de sutura com tesouras de dissecar. No entanto, quando, numa outra ocasio, lhes entregassem um dos instrumentos que eles mesmos tinham ajudado a danificar, teriam um ataque de fria, no se eximindo aos maiores improprios sobre a falta de equipamento em boas condies. Nunca ningum ousara comentar aquelas exploses de raiva. Passado algum tempo habituvamo-nos a elas. Ao aproximar-me de "Hrcules", agarrou-me nas mos e pousou-mas nos afastadores, dizendo-me que os levantasse, no que os puxasse para trs. Um processo habitual. Para dizer a verdade, no tive dificuldade em fazer de conta que obedecia s suas instrues, porque, naquele momento, nada havia para afastar. O estmago em que "Hrcules" trabalhava, estava bem visvel, logo abaixo da inciso. Viria a necessitar dos afastadores mais tarde, quando se procedesse ligao entre a bolsa do estmago e a zona inicial do intestino delgado, o duodeno. Esperava fervorosamente que ele j tivesse cortado os nervos que vo dar ao estmago e so, em parte, responsveis pela secreo de cido. Estes nervos, cuja localizao difcil de determinar, estendem-se em redor do esfago e o interno tem de erguer a caixa torcica para que o cirurgio possa cort-los; detestava ter de fazer aquilo. L estava eu de novo no meu posto do costume na sala de operaes, olhando para o ponteiro dos minutos que parecia no sair do lugar. Enquanto fazia esforos enormes para me manter acordado, os olhos enchiam-se-me de lgrimas depois de cada bocejo e tinha ccegas incontrolveis no lado esquerdo do nariz, um pouco abaixo do olho, como se estivesse a ser picado por um inseto sdico. A posio da minha mscara era uma tortura igualmente sdica. De cada vez que bocejava, esta ia-me descendo lentamente pelo nariz. Passados cinco bocejos caiu completamente, e ficou a cobrir-me a boca. O fato chamou a ateno da enfermeira de servio. Aproximando-se de mim, levantou a mscara, tocando nela to ao de leve para evitar o contacto com a minha pele que quase parecia que eu tinha alguma doena infecciosa. Com o intuito de aliviar a comicho, tentei empurrar o nariz de encontro mo dela vrias vezes, enquanto me ajustava a mscara. Mas ela era demasiado rpida para mim e afastava-se de cada vez em que mo e nariz corriam o risco de se tocar. "Hrcules" encontrava-se ainda mais nervoso e desordenado do que era costume. Nenhum dos presentes volta da mesa de operaes podia antecipar-se ao seu passo seguinte. Felizmente, eu estava imobilizado pelos afastadores e no contavam comigo para que desse qualquer outro contributo, mas o pobre O'Toole parecia um rato num labirinto, sendo chamado a desempenhar impossveis atos de antecipao.

 O'Toole, voc est do meu lado ou contra mim? Tenha-me esse estmago quieto! Ao mesmo tempo em que apostrofava O'Toole, "Hrcules" bateu-lhe nas mos com as tesouras Mayo. O'Toole rangeu os dentes e segurou melhor o estmago. Por amor de Deus, Peters, ainda no aprendeu a pegar nos afastadores? Agarrou-me nos pulsos pela sexta vez, reajustando a posio dos afastadores, embora estes nada tivessem que ver com o que se estava a passar naquele momento. De fato, eu at nem estava a ser necessrio; no entanto, ele exigia que eu estivesse ali. Assemelhava-se a muitos cirurgies, que se sentem diminudos se no so assistidos tanto por um residente como por um interno, independentemente da falta que estes possam fazer. Era um smbolo do status. Hrcules fora rodando minha frente de modo que acabou por ficar com as costas viradas para mim quando deu incio segunda camada de suturas na bolsa do estmago. No via nem o campo da operao nem as minhas prprias mos. De repente, o anestesista falou. Peters, por favor, no se incline sobre o peito do paciente. Est a dificultarlhe a ventilao. Estendendo a mo empurrou-me de modo a impedir que eu embaraasse a tubagem ligada intravenosa. Mas eu no tinha por onde me movimentar, encontrandome j espremido contra "Hrcules". Nesse preciso momento O'Toole deu um pulo para trs com uma expresso de espanto no rosto, mantendo a mo direita no ar. Viam-se-lhe gotas de sangue a cair de um golpe que, atravessando-lhe a luva, lhe chegara ao indicador. Se tivesse o seu dedo no stio em que devia estar nada disso teria acontecido, O'Toole. Vamos a acordar! trovejou "Hrcules". O'Toole nada disse, virando-se para a enfermeira, que lhe enfiou novo par de luvas. Penso que ainda dava graas a Deus por no ter perdido o dedo. Apesar de todos os contratempos, o cirurgio acabou por dar a interveno por terminada, e comeamos a fechar. Uma das minhas tarefas consistia em irrigar a sutura com uma seringa de bojo largo, depois de a forte e fibrosa parede abdominal ter sido cosida com suturas de seda distanciadas entre si cerca de sessenta e trs milmetros. Naquele momento, j O'Toole e eu nos sentamos um pouco mais aliviados, e enquanto Hrcules lavava as mos, ergui a seringa por cima do paciente e atingi O'Toole na barriga com um jato de soro fisiolgico morno. Trocamos um olhar de entendimento; ramos companheiros numa situao infeliz. Reunindo-se a ns junto da mesa de operaes, "Hrcules" tornou-se, de repente, jovial. Pensava, obviamente, que acabara de levar a cabo, mais uma vez, o impossvel. uma pena que a minha arte tenha de ficar coberta pela pele, em vez de o paciente poder v-la. A nica coisa que ter para mostrar esta pequena inciso. O'Toole levantou os olhos para o teto em forma de espanto zombeteiro. Dado que tanto O'Toole como "Hrcules" estavam a ultimar a operao, reuni toda a minha coragem, preparando-me para a retirada. Doutor, ainda tenho vrias operaes pela frente. Pode dispensar-me, por favor? O velhote no ficou l muito satisfeito, mas acedeu, com um gesto de noblesse oblige. Primeiro esfreguei o nariz, longa e fortemente, o que me proporcionou uma experincia imensamente sensual. Em seguida, urinei, o que foi igualmente satisfatrio. Eram onze e trinta e cinco e como o paciente da nefrotomia j ia a sair do quarto 10,

ainda me restavam alguns minutos antes de a primeira das colecistectomias estar preparada. porta da sala de recuperao avistei Karen, o meu anjo de refgio e sexo, impecvel no seu uniforme branco. Viera buscar um paciente para o levar para a enfermaria, e quando me viu sorriu rasgadamente, perguntando-me, com um trao de sarcasmo, se tinha dormido bem naquela noite. Disse-lhe que se deixasse de graas seno fazia-a cair da cama numa das prximas noites. Lanando um olhar em volta mandou-me calar e informou-me de que dissera ao namorado que no queria sair naquela noite; estaria, portanto, em casa, depois das onze, caso eu estivesse livre. Arquivei a informao, mas no me pareceu que nessa altura j estivesse em condies de tirar proveito, fosse de que maneira fosse, da situao. A aortografia ao meu aneurisma fora marcada para as onze e meia da manh, de modo que desci a fim de ver como as coisas estavam a decorrer. Entrando na sala do fluoroscpio, vi que o residente-chefe j ia na fase final dos preparativos para o exame. Est dez minutos atrasado, Peters. Podia ter utilizado a sua ajuda para enfiar a sonda na artria. E eu teria aqui estado se no tivesse tido de assistir a outro caso. Omiti conscienciosamente o "graas a si". Bom, aqui tem a posio da sonda. Ponha primeiro uma proteo de chumbo. Este fluoroscpio emite muitas irradiaes. Tem de proteger as suas velhas gnadas. Seguindo o seu conselho, peguei numa das pesadas vestimentas revestidas a chumbo e vesti-a. Quando as luzes se apagaram, ouviu-se um click sonoro e o fluoroscpio ficou automaticamente ligado. A imagem era extremamente fraca, como de costume. Para se ver bem por um fluoroscpio necessrio adaptar os olhos usando, durante cerca de meia hora, uns culos de lentes vermelhas. O fato de no ter tido possibilidade de proceder adaptao da minha vista no me permitia ver muito bem no cran o que se passava de errado com o meu doente de aneurisma, distinguindo razoavelmente, no obstante, a linha opaca da sonda. C est a extremidade da sonda. O residente-chefe apontou com um dedo, cuja silhueta se destacou contra a luz do cran. Est na aorta, mesmo acima do corao. Est a v-la saltar com cada contrao do corao? No tinha dificuldade em observar os referidos movimentos. Agora vamos injetar uma quantidade suficiente de lquido contrastante na artria para obtermos uma imagem, e para isso temos de utilizar o injetor de presso. Apontou para uma pequena mquina que fazia lembrar, vagamente, uma bomba de bicicleta deitada de lado. Tinha trs ou quatro torneiras de fecho dispostas na extremidade; pensei que uma ou duas teriam sido suficientes para impedir qualquer azar. A nica coisa que temos a fazer premir este manpulo, que, por sua vez, injetar rapidamente o contrastante para o corao. Simultaneamente, a cmara Schonander estar a disparar os raios X velocidade de um em cada meio segundo, durante dez segundos. Veremos o resultado no cran. O residente-chefe atarefou-se com os preparativos finais, perguntou aos tcnicos do departamento se estavam prontos e colocou-se, ele prprio, por detrs do brao do injetor de presso. Desejando proteger-me o mais possvel, coloquei-me por detrs do cran principal junto da tcnica de raios X, que era uma coisinha pequenina e slida. Ficamos a ver atravs da pequena janela de quartzo.

A um grito do residente-chefe, a tcnica ligou a cmara Schonander, que comeou a trabalhar tirando radiografia aps radiografia numa seqncia rpida, ao mesmo tempo em que o residente-chefe carregava no injetor at ao fundo. O lquido contrastante entrou rapidamente para as torneiras de fecho e em seguida, em vez de ser projetado para o interior do corao do paciente, ergueu-se, num gracioso jato, at ao teto, onde se espalhou e alongou at comear a pingar sobre o residente-chefe, o paciente e os vrios aparelhos. Ele esquecera-se de abrir a ltima torneira de fecho. Quanto ao paciente, este limitava-se a olhar, pestanejando, em seu redor, tentando perceber que exame estranho era aquele. O residente-chefe estava em estado de choque, no tardando em ficar exasperado. Como todo o processo teria agora de comear do princpio e eu j estava ligeiramente atrasado para a colecistectomia, aproveitei a oportunidade para uma sada rpida e apressei-me em direo sala de operaes. Trabalhar com um verdadeiro profissional , sob todos os aspectos, diferentes do que faz-lo com "Hrcules" ou com o "Superchato" e o Dr. Simpson era o melhor que aquele hospital tinha ao seu servio. Tendo o residente de um lado e eu do outro, preparamo-nos todos ao mesmo tempo, conversando e rindo. Simpson contou-nos a piada do professor de Colmbia que descobriu maneira de criar vida no laboratrio. Tudo correu s mil maravilhas at a mulher descobrir. Uma piada simples; talvez, vendo bem, nem sequer muito boa. Mas no contexto das horas passadas com "Hrcules", da imagem da substncia opaca espalhada pelo teto e do meu cansao, a brincadeira provocou-me um acesso de riso histrico. Ainda amos a dar as ltimas risadas quando entramos na sala de operaes, onde a atmosfera assumiu imediatamente um ar de adequada concentrao. Prontos para comear, no nos tnhamos ainda libertado da superficialidade de h pouco, mas o nosso interesse pela tarefa que se desenhava diante de ns era intenso. A enfermeira entregou um bisturi a Simpson. Era interessante a forma como este iniciava as operaes. No se verificou nenhuma pausa. O bisturi abriu imediatamente caminho no abdmen, cortando em diagonal. No parou para colocar hemostatos na inciso. Para qu andar a debicar em volta como uma galinha? diria, completando a inciso rapidamente com o mesmo mtodo de dissecao determinado e preciso, medida que os tecidos se iam abrindo. O residente segurava ento nos tecidos que ficavam do seu lado, o cirurgio nos que se encontravam do outro, utilizando ambos frceps, e com um ltimo golpe do bisturi chegavam ao interior do abdmen. S nessa altura que se apanhavam e fechavam os vasos abertos. Da pele cavidade peritonal no se tinham passado mais do que trs minutos. Perfeito. Daquela vez, contudo, no foi Simpson a fazer o primeiro corte. Surpreendeunos aos dois optando por entregar o bisturi ao residente. A vescula biliar sua disse. Um movimento em falso e ficar a fazer clisteres durante um ms. Sob a vigilncia do seu olhar atento, o residente procedeu ao mesmo tipo de inciso, utilizando quase a mesma velocidade. O cirurgio observou rapidamente o interior desta, a seguir o residente e eu fizemos o mesmo. Estmago, duodeno, fgado, vescula biliar (conseguia sentir as pedras), bao, intestinos. O exame foi superficial, mas meticuloso; nem o fato de termos o brao enfiado no abdmen de uma pessoa nos permitia que fssemos mais demorados. Disse a Simpson que estava com dificuldade em sentir o pncreas. Este indicou-me uma protuberncia. Senti-o imediatamente.

O residente, utilizando a mesma tcnica de Simpson, colocou cuidadosamente as toalhas brancas ensopadas em soro fisiolgico que so utilizadas para separar a vescula biliar da massa formada pelos intestinos. A mim deram-me os afastadores do costume. Obedecendo a uma sugesto de Simpson, o residente desviou-se um pouco para o lado, permitindo-me ter a viso da ferida. Tudo decorreu rapidamente sob o incentivo de Simpson, mas sem que este tivesse tido de intervir diretamente. A vescula saiu sem qualquer problema, a base foi fechada, em seguida a pele, tudo no espao de trinta minutos. Sentindo-me agora muito melhor, felicitei o residente quando amos a caminho da sala de recuperao. Ele fizera um trabalho de profissional. Dispondo de trinta minutos at ao caso seguinte, eu e Simpson fomos ver alguns dos pacientes deste, um deles submetido a uma gastrectomia que eu estava a acompanhar de perto por ter ajudado na cirurgia. Tinham-me dado liberdade total para prescrever todos os medicamentos que fossem necessrios ao tratamento daquele caso, embora me limitasse a seguir as preferncias de Simpson, que, na altura, j sabia serem seguras e adequadas. Quando ele mudava alguma das minhas ordens, como ocasionalmente acontecia, escrevia quase sempre uma pequena nota explicativa ou uma opinio sobre determinado remdio ou processo. Era um professor nato. Depois de terminada a nossa visita enfermaria, comeamos de novo a prepararnos para a operao seguinte, daquela vez sem o mnimo de histeria da minha parte. Depois de alguma reflexo, decidi utilizar antes Betadine naquela desinfeco; a sua tonalidade amarelo-plida sempre oferecia um pouco de variedade, em relao ao descolorido pHisoHex, que normalmente utilizvamos. Ao entrar na sala de operaes, deparou-se-me a mesma rotina hierrquica de sempre. Em primeiro lugar entregaram uma toalha a Simpson, depois outra ao residente e em seguida uma a mim. Passou-se o mesmo com as luvas. Assim que nos colocamos em redor do paciente, a enfermeira entregou um bisturi a Simpson, que, para grande confuso da minha parte, mo passou para as mos logo a seguir. Muito bem, Peters, tire-me essa vescula biliar para fora logo primeira ou tiro-lhe eu a sua sem anestesia. Como era evidente, nunca fizera uma colecistectomia em dias da minha vida e a evoluo dos acontecimentos no estivera dentro das minhas previses. Sentira-me ansioso por participar noutra sesso na qualidade de espectador interessado, observando dois profissionais (o residente tambm j o era) a trabalharem juntos. Contudo, naquele momento ia deixar de ser um espectador para passar a ser um figurante; na verdade, o ator principal. De repente o homem estendido na marquesa e o bisturi que tinha na mo assumiram, diante dos meus olhos, uma realidade diferente. Interiormente varrido por uma grande incerteza, sabia que se naquele momento hesitasse corria o risco de ficar demasiado receoso para voltar a tentar. L consegui vencer o tremor que ameaava apossar-se da minha mo direita e, segurando firmemente no bisturi, tentei imitar o primeiro golpe dado por Simpson na superfcie do abdmen, seguindo sempre em frente e depois descendo em diagonal pelo abdmen abaixo, mesmo por baixo das costelas, direita, tentando manter a lmina num ngulo de noventa graus em relao pele. Queria agradar a Simpson do mesmo modo como um filho deseja agradar ao pai. Caramba, no est nada mal disse este, ignorando at que ponto aquelas palavras me sabiam bem. Ao repetir a manobra, msculos e camada adiposa dividiramse e afastaram-se. Saiu algum sangue, mas pouco. Frceps. A enfermeira entregou-mos, passando outro par ao cirurgio. Ergui uma das bordas da inciso, ele a outra. J nos encontrvamos muito prximos da fina membrana

peritonal que envolve a cavidade abdominal. Estvamos a erguer os tecidos circundantes de modo a protegermos os rgos subjacentes diante do avano da lmina do meu bisturi. Pop! Apareceu um orifcio no abdmen e eu larguei o frceps. Mantenha o frceps sugeriu Simpson e v cortando at onde a visibilidade lho permitir. Tentei seguir a indicao, munindo-me de todo o cuidado, pois o fgado e os intestinos j se encontravam vista, no interior da abertura escancarada. Correu tudo bem. Agora teria de mudar de tcnica em relao parte inferior da inciso. Largando o frceps, fiz escorregar a mo para o interior da ferida e abri o resto do peritoneu com a ajuda dos meus prprios dedos. O corao batia-me desordenadamente. J no me sentia cansado nem dava pelo movimento dos ponteiros do relgio, pelo rdio ou pelo anestesista. Estava assustado, mas resolvido a ir at ao fim. Simpson tateou o interior e eu e o residente fizemos o mesmo a seguir, depois do que este agarrou nos afastadores enquanto eu me desviava um pouco para lhe proporcionar uma viso mais ntida do campo operatrio. Tambm tentei seguir a tcnica de Simpson relativamente aos adesivos abdominais. Este ajudou-me a colocar o ltimo e depois, com a mo, desviou o duodeno o suficiente para que eu visse a ligeira concavidade que se estendia da parte superior deste at a vescula biliar. Depois de colocar pinas na vescula e pux-la para cima, utilizei as tesouras Metzetibaum para abrir caminho atravs do tecido delicado. Algures por ali estava uma artria que transportava o sangue para a vescula biliar. No podia cort-la. Sentia os msculos do pescoo duros como pedras ao inclinar-me para tentar ver melhor. Simpson aconselhou-me a endireitar-me, caso contrrio no agentaria mais de quinze minutos. A artria apareceu, mais ou menos com o tamanho que as artrias csticas costumam ter, e eu isolei-a com uma pina prpria. Envolvi-a num fio, cujas extremidades puxei para cima. Dei o primeiro n. Mantive-o firme com a ajuda do dedo indicador. timo. Dei o segundo. At que ponto o deveria apertar? Pensei que assim ficava bem. No queria que se soltasse. Mais um n, s para ter a certeza de que ficava bem preso. Com a ajuda da pina especial, passei outro fio em redor da artria cstica. Daquela vez tinha de fazer o n mais abaixo, perto do ponto em que aquela artria entrava no fgado. A artria cstica partia da artria heptica e ao puxar ligeiramente o fio, j atado em redor da primeira, no tive dificuldade em avistar a ramificao que seguia para o lado direito do fgado. O fato fez-me sentir melhor porque havia sempre o perigo de confundir aquela velhaca com a artria cstica e at-la. Fiquei muito preocupado com aquele segundo n na artria cstica. Era o mais importante de todos os que seriam dados naquela operao. Se se desprendesse alguns dias mais tarde, o paciente poderia ter uma hemorragia interna que o conduziria morte. Tendo bem presente esse fato, dei a primeira laada e em seguida inspecionei bem o orifcio. Parecia normal. Olhei de relance e involuntariamente para Simpson, que no considerou nada em contrrio. Passei portanto parte final, cortando a parte da artria que ficara entre os dois ns e comecei a isolar a vescula. Seguiu-se o canal cstico, atravs do qual a blis normalmente circula. Procedi da mesma maneira, atando-o com duas suturas e depois cortando a poro situada entre ambos os ns. Uma vez a vescula isolada, passei suavemente com o bisturi em redor da cavidade em que se encontrava instalada de modo a desprender apenas a camada exterior de tecidos escorregadios. Com o auxlio das tesouras procedi ao afastamento da vescula biliar do fgado. Ele est a fazer de conta que isto muito complicado brincou Simpson. Se demora muito mais, ainda provoca alguma gangrena. Mal o ouvi. A operao decorria apenas h vinte e cinco minutos.

Mais um pequeno corte, um puxo, e a vescula desprendeu-se. Atirei-a para o recipiente que a enfermeira me apresentou. Esta deu-me, com a outra mo, uma agulha onde estava enfiada uma linha de crmio 3-0. Puxando, com uma pina, os tecidos que faziam parte da extremidade da reentrncia onde estivera a vescula e com eles cobrindo o canal heptico que estivera exposto, assim como a artria heptica direita, dei uma laada firme. Demasiado firme. A sutura quebrou. Coloquei outra no mesmo stio, atando-a desta vez com mais cuidado e menos tenso. Em seguida fechei a zona com uma fiada de pontos. Depois de retirar as toalhas que utilizara para separar a rea da vescula biliar dos outros rgos internos, comecei a fechar. As enfermeiras contaram imediatamente as compressas e os instrumentos, certificando-se de que no deixara nenhum l dentro. Estava tudo em ordem. Identifiquei, cuidadosamente, todas as camadas da parede abdominal, principalmente a dura camada fascial, que se retrara a perder de vista. Ponto aps ponto, fui cosendo a inciso, ajudado nos ns pelo cirurgio e pelo residente. Introduzi a agulha recurva na camada inferior, puxei-a atravs da ferida, reajustei a sua posio com a mo esquerda e depois fi-la sair pelo lado de cima. Fechei a inciso camada a camada, vendo-as unirem-se e sobreporem-se. Cheguei, finalmente, pele. Depois de tudo terminado, fui invadido por uma sensao de confiana muito parecida com a que sentimos no cimo de uma boa vaga, quando a nossa prancha rompe a gua espumejante. Enquanto tirava as luvas, o residente retribuiu-me as felicitaes que lhe dedicara anteriormente. O mundo pertencia-me. Acompanhando o paciente ao longo do corredor em direo sala de recuperao, ainda me sentia repleto da mesma euforia. Duas enfermeiras encarregaram-se do paciente enquanto eu escrevia as ordens ps-operatrias e ditava a nota operativa. Foi a que me deixei vencer pela fadiga. Tambm estava esfomeado e resolvi ir comer porque no o fazia desde as duas fatias de po que roubara na noite anterior, j l iam dezenove horas; eram duas da tarde. Estava a chover; assim acontecera durante todo o dia, calculei, porque ainda se viam poas de gua nos locais mais baixos. No cu rodopiavam nuvens cinzentas que o vento forte atirava sobre a ilha. Chovia to densamente que mal conseguia ver o caf que ficava a alguns metros dali. Corri em frente, ao mesmo tempo em que o vento agitava as poas de gua. Senti que a sorte me abandonava ao avistar Joyce ao fundo do estabelecimento e, como no podia deixar de ser, esta veio logo ter comigo. A princpio, Joyce no falou grande coisa por causa de toda aquela gente que nos rodeava falando animadamente da chuva e de no sei que mais, o que me foi extremamente conveniente. Depois, como se obedecessem a um sinal, todos saram deixando-nos a ss, ocasio que Joyce aproveitou imediatamente. Tens pensado no assunto? perguntou. Em que assunto? inquiri, curioso. Sabes muito bem; sobre ns, tal como disseste que farias. Oh, sobre ns! Sim, tenho pensado um bocado disse. Bem, eu tambm tenho acrescentou ela, endireitando-se ligeiramente. E acho que devamos ser mais francos um com o outro. Ah ? Fora ligeiramente sarcstico, mas no o suficiente para que ela desse por isso. Acho que no temos andado a ser sinceros um com o outro relativamente aos nossos sentimentos e nossa maneira de pensar acrescentou. A que ela se enganava. Ela fora suficientemente clara comigo, especialmente acerca da forma horrvel como eu me sentia sempre que tinha de me esgueirar por

aquelas escadas das traseiras. Dei-me conta, pouco vontade, de que ela estava a um passo de me propor uma resoluo instantnea do problema das escapadelas: casamento. Mostrava-se um pouco alterada. J me informaste perfeitamente do que pensas disse eu. Nunca paravas de falar naquelas escadas e em como tudo aquilo era desagradvel. Bem, as coisas estavam a tornar-se bastante incmodas observou ela imediatamente. Incmodas?! Bem, isso verdade. Por que no tomas providncias em relao tua menina das mas e da televiso para podermos ir para o teu apartamento como pessoas normais? A minha companheira de quarto no tem nada a ver com o assunto! A tua companheira de quarto que est a causar todos estes problemas. Se no fosse ela podamos utilizar o teu apartamento e no teramos de nos esgueirar pelas escadas. No te importas nada comigo disse ela, petulantemente. Claro que me importo, mas a questo no essa. Se tu... Essa que a questo interrompeu-me. Ests a mudar de assunto! protestei. Pois bem, trata-se do nico assunto que me interessa disse firmemente, levantando-se e arrastando a cadeira para trs. Seja como for resolvi que podes deixar de pensar em ns e ires cair morto noutro lugar! E afastou-se, indignada. Cair morto. Boa sugesto. De fato, a idia continha mesmo uma espcie de seduo mrbida. Tal era o cansao. Depois de Joyce ter partido, a sala pareceu afastar-se, subitamente, de mim. Ainda havia muita gente sentada nas outras mesas, mas nem uma alma se encontrava junto de mim. O som de centenas de vozes fundia-se distncia, ininteligvel. Observando a chuva atravs da janela, ia mastigando automaticamente, subjugado pela solido. Nada restava da bela sensao que experimentara depois da extrao da vescula biliar; passada esta, sentia-me apenas vazio de qualquer emoo. Olhando para o relgio, apercebi-me de que j estava em atividade h trinta horas seguidas. Pensei na clnica e na obrigao que tinha em ir para l. Os internos deviam ocupar os seus "tempos livres" a ajudar a atender os pacientes externos. Mas eu no teria nenhuma utilidade no estado em que me encontrava. A clnica que fosse para o diabo! Caam gotas de gua da berma do avanado medida que o vento as varria para reas abrigadas. Estava surpreendentemente frio. O corpo, quando fatigado, tolera menos as alteraes de temperatura. O que queria dizer que os arrepios que eu sentia eram, provavelmente, mais uma conseqncia das minhas condies fsicas do que do tempo. Apressei-me, concentrando-me totalmente na minha cama e antecipando o prazer. Todos os internos desenvolvem um apreo extraordinrio por coisas simples de que os outros nem tm conscincia: liberdade de movimentos, o direito de aliviar uma ccega, esvaziar a bexiga ou os intestinos, refeies mais ou menos regulares, dormir uma boa quantidade de horas. Na cama, senti o corpo a afundar-se, a crescer tremendamente e a encher o quarto at um e outro se tornarem um s. Nessa altura, adormeci. ...Quando comecei, o abscesso era pequeno, pouco maior do que uma borbulha. Agora estava enorme, cobrindo a maior parte do brao esquerdo e no parando de crescer. Por muito que cortasse, ia sempre aparecendo mais; naquele momento j subia para o ombro. Por detrs de mim, "Hrcules" sussurrava ao "Superchato": "Ele no vai ser bem sucedido. Nem o paciente.

Olhei para Simpson em busca de encorajamento e este disse: "Faa-o logo primeira, Peters, ou vai direito para Hicksville." Num ltimo esforo desesperado, abri caminho at ao osso, atravs dos tecidos, e, para meu horror, danifiquei o nervo ulnar, imobilizando aquela mo para sempre. Acabou-se o tempo, pensei, quando a campainha tocou; reprovado! Era, evidentemente, o telefone. Estendi a mo para ele, ainda no meio do sonho e encandeado pela luz. Teria faltado s rondas? No, elas s eram s cinco horas e o meu relgio indicava trs. Era da cirurgia. Fora escalonado para um caso que teria incio dali a quinze minutos. Desligando, recobrei, lentamente, o sentido de orientao. Porque teria acordado to aterrorizado? Depois relacionei o sonho com a laqueao e a drenagem feita na vspera a um monstruoso abscesso num cotovelo. Depois de o abrir com um bisturi afiado, provocando um fluxo espontneo de pus, introduzira a ponta da pina hemosttica na abertura para assegurar uma boa drenagem. Mas o abscesso era muito mais profundo do que esperara; parecia estender-se at zona do nervo ulnar. De modo que fora aprofundando a inciso sem conseguir chegar ao fundo do abscesso e depressa desistindo com receio de danificar o referido nervo, se que o no tinha j feito. De qualquer modo, decidira parar com aqueles receios e verificar o caso quando fosse a caminho da sala de operaes. O reflexo de medo fizera-me saltar da cama, mas o estado de fraqueza fsica em que me encontrava comeara a fazer-se sentir. Depois de tantas horas a p, o fato de ter dormido uma hora, s fora piorar ainda mais as coisas. Nada parecia funcionar corretamente na minha pessoa; senti-me tonto e ligeiramente nauseado quando me levantei, depois de calar os sapatos. Olhei-me no espelho; erro grave, pois dei-me conta de que teria de me barbear antes de me juntar aos vivos. Tremia-me a mo e, como de costume, cortei-me vrias vezes, no gravemente, mas o suficiente para o sangue insistir em correr apesar da compressa, da gua fria e de uma espessa aplicao de um produto prprio para estancar pequenas hemorragias cutneas. Dirigi-me rapidamente enfermaria. Parara de chover, embora as nuvens ainda pairassem cerradas e sombrias sobre as colinas. O meu paciente do abscesso deve ter ficado um pouco espantado por me ver entrar a correr na sala e pedir-lhe que levantasse as mos e abrisse os dedos. Assim que o fez, tentei comprimir-lhe todos os dedos e obtive resistncia; isso indicou-me que tinha o nervo ulnar intacto. No tive tempo para ver mais ningum exceto o meu doente do edema provocado por excesso de gua nos tecidos, cuja cama ficava logo a seguir do homem do abscesso. Tinha uma dvida quanto aos seus comprimidos diurticos e achei que no devia ignor-la. Eu ganhara grande respeito pelos casos graves de edema do gnero daqueles que requerem a diminuio do nvel de gua dos tecidos atravs da utilizao de um diurtico. O meu despertar para este tipo de afeco fora sbito e brutal um doente de carcinoma, transferido de uma enfermaria mdica, a quem tinha aparecido um edema to forte que lhe inchara todo o corpo devido a uma anomalia que dava pelo nome de anasarca. Chegara concluso de que o estado da doente era devido a uma falha do departamento mdico; sempre houvera uma pequena frico entre aqueles que cortam os cirurgies - e aqueles que tratam com medicamentos - os tipos da medicina. Esta doente padecia de cancro, diagnstico feito a partir de uma bipsia a um ndulo linftico. Embora a zona do corpo onde o processo teve incio tenha sido descoberta ou determinado o tipo exato de cancro, algum decidira submet-la, sem mais delongas, a radioterapia, que nada fez ao cancro, e em seguida a um tratamento de quimioterapia,

que se mostrou igualmente ineficaz. Entretanto, a paciente comeou a ser alimentada por via intravenosa e a rapaziada mdica permitiu-lhe armazenar tanta gua que os nveis de sdio e cloridro baixaram at um ponto que a fez entrar, praticamente, em delrio. E ignoraram o nvel de protenas do seu plasma, que tambm decresceu significativamente. Quando a doente me veio parar s mos, estava decidido a livr-la de toda aquela gua. Administrei-lhe alguma albumina e um diurtico, terapia que lhe provocou uma ligeira diurese e, conseqentemente, uma ligeira melhoria no edema. Mas eu queria mais. Ao tentar aconselhar-me com outros colegas, ningum se mostrou particularmente interessado, incluindo o chefe de clnica. Como a urina dela era alcalina, decidi dar-lhe uma boa dose de cloridro de amnia juntamente com o diurtico e, daquela vez, os resultados foram espetaculares. Que diurese! A gua jorrava dela medida que a sada de urina aumentava. Era terrfico, espantoso, exceto que no havia meio de parar e, da noite para o dia, ficou seca como uma ameixa. Instalou-se imediatamente uma broncopneumonia e passado dia e meio morreu. Nunca falara muito mais do caso aos meus colegas de farmcia, mas fiquei de preveno contra os agentes diurticos. Estava a ter muito cuidado com este homem que se encontrava ao lado do que tinha o abscesso. Tomava apenas comprimidos. O fato que tambm aprendera a olhar os abscessos com muito respeito. Houve um paciente, no meu, apesar de o ir ver sempre que fazia a ronda, que fora admitido no hospital por causa do aparecimento progressivo de celulite na perna direita devido a um abscesso existente naquela zona. Quando chegou s nossas mos, a maior parte dos msculos das pernas j se tinham liquefeito. Reunimos vrias culturas de organismos retirados desse abscesso; todos eles pareciam estar a lutar em conjunto contra o paciente. Um dia o interno que tomava conta do assunto adoecera e tivera de ser eu a drenar o abscesso. O cheiro era indescritvel; recorri, mais uma vez, minha mscara tripla para no vomitar. Ao tentar abrir a cavidade do abscesso, apercebi-me de que esta se espalhava em todas as direes, e to longe quanto o hemostto conseguia chegar. Durante as rondas as opinies tinham-se dividido sobre se a perna devia ser amputada ou no, mas os defensores de um novo mtodo de asperso contnua com antibitico tinham levado a melhor (pelo menos ganharam na discusso) e despejaram litros de antibitico na perna do doente, o que pareceu estabiliz-lo durante alguns dias. Mas, de sbito, quando o examinvamos durante uma das nossas rondas matinais, o homem morreu. Tnhamo-nos acabado de aproximar da cama onde ele estava instalado e um dos internos comeara a dizer que o doente se encontrava "essencialmente estvel." Estranha a freqncia como a palavra "essencial" era utilizada nas rondas. Aquele homem tivera um colapso heptico, cardaco e renal; na verdade, colapso fsico total. Mas precisamente na altura em que o interno fazia o seu neutro relatrio sobre o doente, este comeara a estrebuchar e morrera. Parecia um ato de terrvel mau gosto. Ficamos diante da cama, perfeitamente aturdidos. Ningum fez nenhum esforo para o ressuscitar porque todos ns nos tnhamos habituado j ao fato de se tratar de uma situao desesperada. Os nossos insignificantes remdios tinham-no mantido precariamente vivo durante algum tempo at a base ruir, tal como acontecera com os casos de sepsis gram-negativa que se me depararam na escola mdica. Era como se ele no tivesse defesa absolutamente nenhuma contra a infeco. Foi assim que comecei a ter grande respeito pelos abscessos. De fato, medida que o tempo foi passando, aprendi a respeitar todas as doenas, por muito incuas que estas pudessem parecer. Naquele momento dirigia-me apressadamente para a sala de operaes, j atrasado. Reinava grande atividade no andar dos mdicos. Passei por internos, residentes e outros mdicos que, em redor de camas, falavam entre si, coisa que estavam

sempre a fazer; situao que se repetia quando se sentavam, conversando no gabinete que lhes era destinado. A maioria das conversas centrava-se nos tratamentos, nas drogas que deviam ser utilizadas. Quando as opinies comeavam a ser unnimes em relao a determinado medicamento, um dos participantes apontaria determinado efeito secundrio, depois do que seria sugerido outro remdio para contrariar o efeito secundrio, o qual, por sua vez, teria o seu prprio efeito secundrio. A questo que se seguia era saber o que era pior, se o primeiro efeito secundrio ou se o estado original. Iria o segundo medicamento tornar os sintomas de base piores do que estavam antes de o primeiro os ter melhorado? A discusso prosseguia interminavelmente, em redor do mesmo assunto at se tomar de tal maneira complicada que parecia melhor iniciarem a experincia de novo, com o prximo paciente. Era aquela a viso que eu tinha do corpo mdico. Conversa, conversa, conversa. Pelo menos em cirurgia fazamos alguma coisa. Mas os mdicos das outras especialidades salientavam, com alguma razo, que nos limitvamos a mandar tudo para a faca quando a cura podia, s vezes, ser feita atravs de medicamentos. Contrapnhamos com o argumento de que, muitas vezes, o intervirmos cirurgicamente curava, de fato os doentes. A discusso prosseguia, inconclusivamente, para trs e para diante, sempre conduzida de forma inteiramente amigvel, at mesmo jovial, mas as suas razes iam mais fundo. Enfiar-me noutra bata desinfetada proporcionou-me uma profunda sensao de dj vu4 1. Estava a comear a viver permanentemente dentro daquelas fatiotas. Como no havia nenhum tamanho mdio, tive de vestir urna que me estava demasiado grande e as fitas das calas deram-me duas voltas cintura. Empurrei as portas giratrias e entrei na rea da sala de operaes. Enquanto calava os meus sapatos de lona lancei um olhar ao quadro para ver quem iria conduzir a interveno. Zap! No era outro seno o "Todo-Poderoso" cirurgio cardaco. Mas que estava ele a fazer ali? No processo constava a designao de "abscesso abdominal" e, obviamente, o "Todo-Poderoso" trabalhava geralmente na rea torcica. No entanto, eu j deixara de me espantar com o inslito de determinadas situaes. Ao desviar os olhos, avistei-o e ele cumprimentoume pelo nome, mostrando-se muito amistoso, mas eu mantive-me de sobreaviso para o que desse e viesse. Era apenas a primeira jogada, um ato de condescendncia no incio do jogo, especialmente porque ele gritara a saudao do fundo do corredor, de modo a certificar-se de que toda a gente notava a sua boa disposio e esprito de camaradagem. Lembro-me amargamente de uma altura em que eu e um residente fomos designados para assistir a uma interveno a um caso cardaco, no com um, mas dois destes cirurgies. Estes indivduos, de modos completamente iguais e escondidos por detrs de mscaras, s podiam ser distinguidos um do outro pelo tamanho das respectivas cinturas, pois um deles era mais gordo. A interveno principiara no meio de um ambiente razoavelmente descontrado, onde tinham imperado a afabilidade e as palmadinhas nas costas. De repente, sem qualquer aviso, um dos cirurgies comeara a arengar com o residente por este ter dado sangue a um paciente que estava a morrer de cancro nos pulmes. certo que a deciso era discutvel, mas no suficientemente sria para desencadear semelhante tirada em frente dos presentes. A inteno fora, notoriamente, uma tentativa de mostrar a sua importncia, de melhorar a sua imagem. Assim foi decorrendo a operao, no meio de louvores logo seguidos de censuras, cada qual mais forte do que o anterior at se alcanar uma espcie de crescendo frentico de invectivas que, gradualmente, foi esmorecendo at o bom humor voltar a instalar-se. Fora uma cena digna de um verdadeiro manicmio.
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- Em francs, no original: familiar, habitual. (N.daT.)

Estas caractersticas podem ser encontradas em muitos cirurgies: uma espcie de vivncia imprevisivelmente passivo-agressiva. Num minuto somos grandes e valiosos amigos; no minuto a seguir, quem sabe? Era quase como se estivessem emboscados, espera de que pisssemos alguma linha invisvel, e quando isso acontecia wham! apanhvamos com uma saraivada de improprios. Talvez se tratasse de uma conseqncia natural do sistema, do resultado final de excessiva intensidade e represso exercidas durante demasiados anos de treino. Eu j comeara a senti-lo em mim prprio. O interno que deseja avanar cedo aprende a manter a boca calada. Mais tarde, quando chega a residente, j tem a lio to bem assimilada que esta passa a fazer parte da sua prpria essncia. L no fundo, contudo, vive quase sempre revoltado. Por muita razo que eu tivesse em mandar um tipo pentear macacos, nunca o fizera, nem eu nem ningum. Situados no fundo da escala, aspirvamos, naturalmente, a subir mais alto, e isso significava entrarmos no jogo. Naquele jogo, o medo fazia uma simbiose com a raiva. Mas a parte que representava o medo era, apesar de tudo, mais complexa. A nossa qualidade de internos faz-nos viver num estado de medo quase permanente; pelo menos, era o que acontecia comigo. A princpio, tal como qualquer humanista que se preze, temos medo de cometer erros porque isso poder afetar o paciente, at mesmo tirar-lhe a vida. Passados seis meses, contudo, o paciente comea a passar para segundo plano, tomando-se menos importante, ao mesmo tempo em que a nossa carreira sobressai. Nessa altura j ns sabemos que nenhum interno corre o risco de sofrer um recuo por as autoridades oficiais no aprovarem a sua prtica da medicina, por muito ineficaz e incompetente que seja. O que no se tolera qualquer crtica ao sistema. No interessa que estejamos exaustos, que aprendamos a passo de caracol, se que aprendemos mesmo alguma coisa, que aproveitem todas as ocasies para nos explorar. Se queremos ser destacados para um local onde possamos passar uma boa fase de residncia (e eu desejava-o desesperadamente), h que aceitar as coisas sem um murmrio. Havia muitos ambiciosos espera de tomar o nosso lugar. De modo que eu segurava ps e retratores, e agentava todas as outras porcarias. A maioria de ns no acreditava na diablica teoria da histria ou numa noo extrema de pecado original, portanto sabamos que aqueles velhadas que tanto detestvamos deviam ter sido, um dia, como ns. Idealistas a princpio, depois revoltados e em seguida resignados, tinham acabado por se tornar maus como as cobras. Finalmente, a raiva e a frustrao de h tanto contidas nos seus ntimos extravasavam de dentro deles numa grandiosa manifestao de auto-indulgncia. E custa de quem? De quem mais havia de ser? Era sobre ns, os filhos do sistema, que recaam os pecados dos pais e dos avs. Viria aquilo a acontecer-me tambm? Pensei que sim. Para dizer a verdade at j tinha principiado porque eu ultrapassara a fase de idealismo que trouxera da escola mdica. O fato de existirem to poucos cavalheiros entre os cirurgies j no me surpreendia; para dizer a verdade, o que me admirava que algum mdico conseguisse sair dali preservando todas as suas qualidades como ser humano. Aparentemente, acontecia a muito poucos. O "Todo-Poderoso", que eu estava prestes a enfrentar, no se encontrava entre esse nmero. Deu-me uma palmadinha nas costas, querendo saber como me corria a vida. Parecia mesmo que estava prestes a dar-me rebuados ou a beijar o meu filhinho pequeno como o poltico corrupto das grandes cidades cata de votos. O certo que andava procura de pontos que fortalecessem o seu ego. Sentia-me to fatigado que tanto me fazia o que ele dissesse ou fizesse. Mantendo a cabea baixa, compenetrei-me na operao de lavagem e desinfeco das mos e dos braos. Vesti a bata e, em seguida, as luvas. A cena que decorria em meu redor era irreal. A voz do cirurgio

ecoava, falando de tudo e de nada, vamos decibis acima da das outras pessoas presentes. O anestesista, ou gozava de uma imunidade especial ou colocara verdadeiros tampes nos ouvidos; alheio ao cirurgio, prosseguia calmamente as suas tarefas. At a enfermeira ignorava o "Todo-Poderoso". Quer este pedisse delicadamente uma pina ou desse um berro pela mesma, o instrumento era-lhe entregue por ela com a mesma eficincia reservada, continuando depois a ajustar a sua disposio no tabuleiro. S esperava que ele estivesse ocupado a ouvir-se a si mesmo porque, aparentemente, no dispunha de outra audincia. Tratava-se de uma segunda operao, necessria devido a uma inflamao que aparecera nas pequenas bolsas que os idosos por vezes criam no baixo clon. Aquele paciente azarento fora j operado sua diverticulose, nome que se dava referida afeco, ia fazer um ms. Normalmente recomendam-se trs estdios operativos, mas o primeiro cirurgio que operara o homem tentara fazer tudo de uma vez. O resultado fora um enorme abscesso, o qual ia agora ser drenado por ns, e uma fstula fecal que se estendia desde a primeira inciso at ao clon, e que estava a deitar pus e a deixar sair fezes. Misericordiosamente, o processo foi curto. Atei alguns ns, nenhum deles do agrado do cirurgio. Durante o resto do tempo permaneci em silncio e imvel, enquanto ele continuava a divagar sobre as vicissitudes dos seus tempos de interno. Realmente duros, aqueles dias... fazer as histrias clnicas... todos os doentes... pela porta... e alm disso... um quarto do salrio... e vocs, seus malandros, ganham... Mal o ouvia. A exausto de que me sentia possudo tomara-me verdadeiramente imune, fazendo com que os comentrios dele me entrassem por um ouvido e sassem pelo outro. Terminada a operao, sa da sala e vesti a bata normal. Eram quase quatro da tarde. Pela janela esgueirava-se um pouco do sol que tinha conseguido romper atravs das espessas nuvens que pairavam no cu. Os raios incidiam nas gotas de gua que escorriam pelo vidro, lanando cintilaes ao refratarem-se. Fiquei com vontade de ir fazer surf. Mas ainda faltavam as rondas da tarde; s depois ficaria livre. Descendo a uma das enfermarias dos doentes de cirurgia particulares, examinei o meu paciente da vescula biliar, que estava a ir muito bem. Tenso, pulso, quantidade de urina; tudo normal. A intravenosa estava a correr normalmente e as ordens dadas eram as adequadas para a noite. Fiz uma nota no quadro de registros e dirigi-me para o outro doente que fora submetido ao mesmo tipo de operao, embora tivesse a certeza de que o residente j o vira. Assim acontecera. Passei pelos raios X e pedi assistente que me procurasse a aortografia tirada ao meu doente de aneurisma naquela manh, para lhe dar uma rpida vista de olhos. Tudo indicava que o residente-chefe acabara por levar a misso a bom fim depois de uma grande luta. A assistente encontrou imediatamente as provas e eu comecei a coloc-las no visor. Eram tantas que no cabiam no cran ao mesmo tempo. Felizmente, a numerao permitiu-me disp-las em seqncia. Agora havia que descobrir o problema; normalmente fazia-o um pouco ao sabor do acaso. Mas daquela vez consegui distinguir uma dilatao de tamanho razovel na parede da aorta, precisamente por detrs da artria subclavicular esquerda. Apercebendo-se da minha presena, o radiologista chamou-me para me passar o habitual sermo sobre as radiografias obtidas atravs da mquina porttil, fazendo referncia especial ao homem da hrnia da noite anterior. Mas daquela vez coube-me a mim a ltima palavra. O radiologista ficou varado ao saber da morte do paciente em questo. Talvez agora j pudesse reconhecer que eu no teria

podido envi-lo para cima a fim de seguir o processo normal. A vitria soube-me bem, embora, evidentemente, no pensasse que as radiografias, boas ou ms, pudessem ter resolvido o problema. Todos os doentes da enfermaria estavam sob controle. Ambas as hrnias iam evoluindo normalmente, estando j a p; a gastrectomia j tomara uma refeio completa; as veias estavam prontas a ter alta na manh do dia seguinte; uma das hemorridas funcionara dos intestinos. O meu doente do abscesso queria saber, no sem razo, por que motivo lhe apertara os dedos, e o homem do edema voltou a fazer perguntas sobre os comprimidos, curioso com o fato de estes o fazerem perder gua. Gracejei com ambos os doentes, utilizando respostas simples. S tinha um problema para resolver: um novo paciente ou, para dizer a verdade, um novo-velho paciente. Tratava-se de um indivduo que sofria de uma lcera decbita, e que tinha uma histria de vinte e cinco hospitalizaes anteriores. Uma fora por ter engolido lminas de barbear, outras por tentativas de suicdio atravs de mtodos mais tradicionais e por reaes psiconeurticas, convulses, alcoolismo, dores abdominais, lcera gstrica, insuficincia renal; o seu quadro de registros continha uma lista das doenas primrias e secundrias. Andara, igualmente, a fazer tratamento, mais ou menos regular, no hospital psiquitrico durante os ltimos dez anos. Era s o tipo de doente que me faltava no estado de frescura e bom humor em que me encontrava. Falar com ele era impossvel porque estava to intoxicado que s conseguia lembrar-se de pequenos detalhes desconexados relativamente aos acontecimentos das ltimas horas. Tentar examin-lo e tomar conhecimento do que constava nos registros levou-me uma hora. Em seguida tive de lhe limpar a lcera, processo conhecido por dbridement5, palavra francesa de som romntico. Inclinado para o traseiro do homem e olhando para a negra e gotejante lcera necrtica que este contrara por ter estado demasiado tempo deitado na mesma posio, desejei ter optado antes por Direito. Com esse curso j poderia estar a ganhar a vida h dois anos. Um guarda-fato completo, um escritrio impressionante, papis estaladios e limpos, uma secretria, horas de sono longas e seguidas; tudo isso teria sido meu. Agora nem de um desses aspectos gozava. Em vez disso, debruava-me sobre o traseiro malcheiroso de um alcolico, chafurdando em tecidos mortos, tentando ignorar o cheiro e a desencorajadora nusea que me assaltava. Fora excitante vestir a bata branca pela primeira vez, na escola mdica, e fazer de conta que pertencia ao atarefado e misterioso complexo hospitalar. E como invejara os estudantes mais velhos e os internos, com os seus estetoscpios, os livrinhos de capa preta e os ares resolutos e sapientes. Conseguira l chegar, subindo lentamente os degraus da medicina e transpondo os obstculos que lhe eram inerentes, at a realidade se abrir diante dos meus olhos. Rabos como aquele eram a realidade, as traseiras da vida, onde eu vivia. Ao cortar, a lcera comeou a sangrar nas arestas. Quando os ns dos dedos do paciente se tomaram brancos de tanto crispar as mos no lenol, quando este comeou a suar e a dar murros na almofada, cheguei concluso de que tinha chegado aos tecidos sos. Aspergi a ferida com Elaze, remdio cujas enzimas se esperava que fossem prolongando a operao de limpeza atravs dos tecidos mortos; depois tapei-a com gaze embebida em iodofrmio, cujo odor no era exatamente parecido com Chanel N 5, mas que, pelo menos, dominava os restantes cheiros, fazendo pass-los de doentiamente agonativos para desagradavelmente qumicos. Preferia os ltimos. O Elaze? No sabia se iria

- Em francs, no original. Operao atravs da qual o cirurgio, utilizando instrumentos prprios, vai "afastando" os tecidos at chegar ao seu objetivo. (N. da T.)

resultar, mas aplicara-o inspirando-me num artigo lido recentemente; fez com que sentisse que estava a fazer algo cientfico. Diante de mim tinha agora a alegria das rondas da tarde. Ningum gostava daquelas rondas e poucos achavam que era necessrio que estivssemos todos presentes, porque todas as medidas essenciais j tinham, por assim dizer, sido tomadas pela comisso. No obstante, todos participvamos na ronda da tarde como se se tratasse de um dos Dez Mandamentos. Obrigados a permanecer de p durante longos e fastidiosos minutos ora num p ora no outro, falvamos e gesticulvamos, indicando um caso de hemorroidal aqui, uma gastrectomia acol. Verificvamos todas as feridas para nos certificarmos de que estavam fechadas e no apresentavam nenhuma infeco. Os pensos eram rapidamente colocados nos mesmos lugares, descuidadamente, enquanto os doentes se submetiam como vtimas silenciosas sacrificadas num altar. Quando um deles se aventurava a arriscar uma pergunta, esta era normalmente ignorada, perdendose no meio da tagarelice: "Quantos dias j tem de operado?" "Devemos mudar para uma dieta ligeira ou continuar nos fludos completos?" Tal como os outros, tambm eu apresentava os meus casos em tom de voz montono. Hemorridas, dois dias ps-operativos, dreno fora, sem hemorragia, dieta normal. Aproximamo-nos da cama seguinte; dois dos mdicos pareciam muito interessados numa fenda que se via no teto, perto de um dos interruptores. Gastrectomia, seis dias ps-operatrios, dieta ligeira, ferida a sarar bem, pontos tirados amanh, alta antecipada. Algum perguntou se a operao tinha consistido num Bifiroth I ou II. Claro que o inquiridor se estava nas tintas; era uma das tais perguntas da praxe sempre que se tratava de gastrectomia. Billroth II. Algum perguntou se se verificara alguma vagotomia. Sim, houve uma vagotomia. O paciente mostrou-se, de sbito, interessado e perguntou o que era uma vagotomia, mas ningum lhe prestou ateno. Em vez disso, um dos residentes perguntou se a vagotomia fora seletiva; mais uma pergunta oportuna que conduziria a uma tremenda confuso. No, no foi seletiva. O relatrio da lcera confirmou o diagnstico de uma afeco pptica. Ao fornecer, subitamente, informaes concretas no diretamente associadas ao tema da conversa, conseguira efetivamente, mudar de assunto. Dirigimo-nos para a cama seguinte. Prosseguimos solenemente, cada vez mais fatigados e impacientes, desarranjando todos os pensos. O chefe de clnica disse que tudo parecia estar sob controle e que nos veria mesma hora, no dia seguinte. Fazendo lembrar um jogo muito em voga nos tempos do liceu, todos se dispersaram nas vrias direes, com exceo da minha pessoa. Aparentemente, fora eu quem ficara com a bola, porque limitei-me a permanecer ali especado, no pensando em nada de especial, olhando apenas, fixamente, para o canto amachucado de uma mesa que, por esse fato, oferecia uma perspectiva um pouco estranha. Quando quebrei o meu estado de semitranse, estava indeciso quanto ao que fazer. Podia voltar a examinar os casos particulares, ou podia sentar-me em qualquer stio, perto da enfermaria, e aguardar a chegada de novos casos de internamento, ou ento voltar ao quarto e dormir uma soneca. A ltima opo foi imediatamente posta de parte por motivos supersticiosos. Se adormecesse, o mais certo era chamarem-me para

tratar de alguma entrada no hospital, ao passo que se permanecesse na enfermaria talvez no entrasse ningum. Um ponto de vista muito cientfico... De qualquer modo, fui fazer tempo para o posto das enfermeiras e pus-me a folhear alguns nmeros atrasados da revista Glamour que uma das raparigas ali deixara. No estava a registrar absolutamente nada do que via. Passando as pginas e olhando para o colorido das fotografias que entremeavam o texto, encontrava-me perdido no meu prprio mundo, consciente dos sons e dos movimentos que me rodeavam, mas indiferente aos mesmos. Mas houve um fato que penetrou na barreira: comeara novamente a chover. Curiosamente, o som da chuva despertou-me a vontade ir fazer surf; uma ou duas boas vagas talvez afastassem para longe os pensamentos deprimidos que me enxameavam a cabea. Estava exausto e sabia que no conseguiria descansar se fosse diretamente para a cama. Alm disso, ainda restava uma boa hora de luz antes do anoitecer. Sentia a chuva fria a cair-me nas costas nuas enquanto amarrava a prancha ao porta-bagagens do VW. Uma vez dentro do carro, liguei o aquecimento e tentei ver atravs da janela da frente. Chovia torrencialmente e os limpa-pra-brisas estavam a ter dificuldade, como de costume, em agentar toda aquela gua. Tinha grande f nos Volkswagen, excetuando os limpa-pra-brisas. Nunca mantinham o vidro limpo sem provocarem distoro; um curioso defeito de engenharia num carro que, em todos os outros aspectos, no era nada mau. medida que me ia aproximando da praia, a chuva redobrava de intensidade, dificultando-me a viso da estrada. De vez em quando estendia a cabea para fora da janela do meu lado para recuperar a perspectiva. O limpa-pra-brisas do lado do passageiro comeara a trabalhar um pouco melhor e apercebi-me de que podia ver razoavelmente se me inclinasse para esse lado. A chuva comeou, de certo modo, a confortar-me, fechando um pouco o mundo em meu redor e dominando fortemente todos os outros pensamentos. Lutando por tirar a prancha do tejadilho do carro, senti a chuva a cair-me, ainda mais fria, no dorso. O calor do carro no fora boa idia. No entanto, assim que consegui colocar a prancha na cabea, fiquei protegido das gotas geladas. Ansioso por ver as vagas, atravessei a estrada e entrei no areal, mas como era de prever, a visibilidade era m e no me permitia vislumbrar para alm de alguns metros, por entre o cinzento do ar e do cu. Era a primeira vez que me acontecia encontrar a praia deserta. Arremessando a prancha para a gua, saltei para cima desta, colocando-me de joelhos e comeando a remar furiosamente com as mos, numa tentativa de trazer algum calor aos meus ossos enregelados. A chuva, cuja fora era suficiente para me fazer doer o nariz, obrigava-me a manter a cabea baixa e a perscrutar minha frente por entre os sobrolhos franzidos. A gua estava picada e agitava-se desordenadamente, medida que eu ia avanando. Quanto mais me adiantasse, mais difcil se tornava manter a velocidade e a direo sob o vento fortssimo que soprava para terra. Remei, remei, mantendo o olhar baixo, na maior parte do tempo, para a zona da prancha que se estendia diante dos meus joelhos. volta, a gua revolteava. Sempre que a ponta da prancha saa para fora, dava a impresso de estar seca devido ao encerado da madeira, mas depressa voltava a desaparecer quando me inclinava para furar uma onda. A zona de rebentao, a praia e toda a ilha tinham-se desvanecido sob a cortina de chuva e umidade. As vagas provocadas por aquela tempestade eram picadas, sacudidas pelo vento e totalmente imprevisveis. Sempre que apanhava uma onda, no tinha possibilidade de prever a direo desta, se acabaria por quebrar ou apenas desaparecer. Tivera de desistir das habituais noes de harmonia e dos familiares pontos de referncia em terra. Estar ali ou no meio do oceano era a mesma coisa. Os nicos sons que me rodeavam eram os do vento, da chuva e das vagas. A minha mente

comeou a imaginar formas fantsticas nas ondas e na cerrada cortina cinzenta que desabava sobre mim. Ao ter a impresso de ver tubares a patrulhar sob a superfcie turbulenta da gua, recolhi os braos e as pernas e mantive-me ao comprido na prancha. De repente, apareceu-me uma onda por trs que rebentou em cima de mim, virando-me. Em pnico, esbracejei de volta prancha como um gato de orelhas baixas, receoso de olhar para trs. Deixei que a fora das ondas e o vento me empurrassem para a praia, enquanto procurava descortinar sinais da ilha, fato que me daria a certeza de que no andava deriva no mar deserto. Senti-me aliviado ao aperceber-me dos contornos de um edifcio que, a pouco e pouco, foi ganhando forma. A parte de baixo da minha prancha raspou no coral. Em seguida, apareceu a praia deserta, transformada, pela chuva, em milhes de minsculas crateras. Havia pessoas a correrem apressadas fora da praia fazendo lembrar gotas grotescas e sem rosto tentando abrigar-se da chuva e do vento. Uma vez no carro, liguei o aquecedor com os dedos engelhados e saboreei o delicioso ar quente que saa do ventilador. Quando cheguei ao hospital ia azulado e a tremer, depois de ter sido novamente obrigado a inclinar-me para o lado a fim de ter o mnimo de visibilidade. Continuava a chover torrencialmente e as luzes dos outros carros faiscavam contra o pavimento molhado, lanando mil reflexos. Nestas ocasies, no h nada como um bom duche quente. O compartimento encheu-se de ondas de vapor de gua que me livraram do sal, do frio e dos estpidos medos que a minha mente exausta tinha evocado. Permaneci nele durante quase vinte minutos, deixando que a gua quente casse em jato sobre o alto da minha cabea, percorrendo depois todas as reentrncias e salincias do meu corpo. Sentindo-me um pouco mais descontrado, comecei a pensar no programa da tarde. Dormir. No podia deixar de o fazer. Sabia-o. Mas tambm sentia um fortssimo impulso para me afastar do hospital e procurar a companhia de outras pessoas. Karen dissera que, afinal de contas, j no ia sair. Karen. Era isso: refastelar-me-ia em frente do seu televisor a beber cerveja e a deixar que a minha mente vegetasse. Sempre que no estava de servio, o telefone permanecia mudo. Era um prazer saber que no tocaria. Aquela noite iria ser mais uma noite sossegada. Ahhhh! Enxuguei-me lenta e voluptuosamente e depois voltei para o quarto com a toalha enrolada em volta dos rins. A cama parecia tentadora, mas tinha medo de que se dormisse seis horas ou perto disso, e depois me levantasse e no conseguisse ser capaz de voltar a adormecer. Era melhor ficar de p e dormir mais tarde. Foi nessa altura que o telefone tocou. Inocentemente, peguei no auscultador, mas no o devia ter feito, porque era o interno de servio. Tinha um problema e era obrigado a ir a casa durante uma hora, duas no mximo. Tratava-se de algo que no podia esperar. Desculpe, Peters, mas tenho mesmo de ir. No se importa de me substituir, pois no? Desligando, pensei amargamente que se tivesse de participar em mais alguma cirurgia me daria um colapso. Tinha a certeza de que se fosse forado a enfrentar mais uma sesso, fosse ela qual fosse, ficaria fsica e mentalmente desfeito, sobretudo se tivesse a participao de algum cirurgio com as caractersticas do "Superchato", do "Hrcules" ou do "Todo-Poderoso". Resolvi vestir a bata laia de preveno, esperando que, aqueles preparativos me ajudassem a espantar o azar. Ao ligar para Karen, ningum atendeu e lembrei-me de que ela fizera uma referncia qualquer s onze horas, mas no tinha a certeza. falta de outra coisa melhor para fazer, continuei deitado e abri um compndio de cirurgia, apoiando-o no meu peito. O seu peso dificultou-me um pouco a respirao. No

conseguindo concentrar-me no livro, deixei os pensamentos divagarem para Karen. Que estaria ela a fazer s sete da tarde se me tinha dito que no ia sair com o namorado? No podia dizer que tinha grandes motivos para confiar nela. Contudo, que conceito tinha eu sobre a confiana? Porque haveria aquela palavra de fazer parte de semelhante arranjo? Falar de confiana numa situao em que no existia nenhum compromisso entre ambos era uma perfeita infantilidade. As minhas divagaes tinham-me feito adormecer quando, de sbito, o telefone me acordou. O maldito do compndio de cirurgia continuava em cima do meu peito e eu estava a utilizar os msculos abdominais para respirar. Era das urgncias. Doutor Peters, daqui fala a enfermeira Shippen. A telefonista diz que est a substituir o doutor Greer. Exatamente concordei, relutante. O interno de servio est com muito trabalho. Importa-se de vir at aqui dar uma ajuda? Quantos registros esto espera? Nove. No, dez respondeu. O interno pediu realmente ajuda? Caramba, quantos registros eu no tivera minha espera nas noites de sexta e sbado dos meses em que estivera de servio s urgncias... No, mas ele muito lento, e... Se ele acumular quinze ou coisa do gnero e se for o prprio a solicitar ajuda, ento telefone-me. Desliguei, farto at a ponta dos cabelos daquelas enfermeiras das urgncias, sempre a quererem mandar em tudo e a tomarem decises. Aquela seo era, naquele momento, territrio do interno de servio; talvez ele at ficasse mal impressionado por me ver l aparecer de repente. Este raciocnio no me parecia de todo descabido. No entanto, nem uma vez eu pedira ajuda ao interno de servio quando estivera os dois meses nas urgncias. No conseguia perceber por que motivo uma noite de quarta-feira conseguia ter uma afluncia de doentes to grande. Tentei ler um pouco mais, mas no passava da mesma folha e sentia-me cada vez mais nervoso e preocupado. As minhas mos tremeram ligeiramente - novidade para mim - ao tirar o livro de cima do peito. Os pensamentos vagueavam-me desconexamente entre a cirurgia e Karen, passando pelo pssimo bocado que vivera a pouco no surf, voltando novamente cirurgia. Levantei-me e fui casa de banho aliviar-me de uma ligeira diarria; coisa que era freqente de h algum tempo para c. Quando o telefone tocou novamente era, mais uma vez, a enfermeira das urgncias, que me informou, satisfeita, de que o interno solicitara ajuda. Fiquei to furioso que desliguei o telefone sem proferir palavra. Antes mesmo de ser capaz de sair do quarto, o aparelho voltou a tocar. Era a mesma enfermeira, que perguntava, irritada, se eu ia ou no. Concentrando a maior quantidade de azedume de que era capaz, respondi-lhe que depressa l estaria se eles fossem capazes de agentar as coisas at eu calar os sapatos. No surtiu efeito. Ela encontrava-se para alm de todos os insultos e eu quase me sentia para alm de qualquer preocupao, no me esforando, sequer, em apressar-me; talvez as coisas j estivessem mais calmas quando l chegasse. No me teria importado de fazer uma ou duas suturas simples ou algo que se parecesse com isso. Mas tinha a certeza de que ia apanhar com algum acidentado de viao ou com algum a sofrer uma convulso.

A chuva parara e via-se o tremeluzir de duas ou trs estrelas por entre as concentraes violeta-escura das nuvens. O vento voltara a amainar, afastando a tempestade. Assim que cheguei s urgncias, tive de reconhecer que as coisas estavam longe de ser calmas. O interno e os dois residentes ali a trabalhar no tinham mos a medir. E como tal no bastasse, tambm ali se encontravam quatro ou cinco chefes de clnica a verem os seus prprios doentes. Uma das enfermeiras entregou-me um registro, dizendo-me que o indivduo a quem se referia j estava espera h algum tempo; no tinham conseguido encontrar o seu mdico particular. Peguei no registro e encaminheime para um dos quartos de examinao, ao mesmo tempo em que ia lendo. Principal queixa: "Nervosismo; comprimidos esgotados." Cristo! Detive-me e olhei mais atentamente para o registro. O mdico particular era um psiquiatra; no era de admirar que no o conseguissem localizar. E o paciente, um indivduo do sexo masculino e trinta e um anos de idade, encontrava-se no quarto dos problemas psiquitricos. Ficava no sentido contrrio, direita. Que sorte a minha, pensei, um doente psiquitrico! Porque no me teria antes calhado uma simples lacerao do couro cabeludo; algo que eu pudesse remediar, em vez de uma anomalia psquica? Entrei no referido quarto e sentei-me, deparando-se-me um homem de aspecto jovem, que se sentara na cama. Esta e a cadeira em que eu me encontrava sentado eram as nicas peas de mobilirio existentes no quarto, de paredes nuas pintadas a branco. Tanto a cama como a cadeira tinham sido presas ao cho, como medida de precauo. A diviso encontrava-se impecavelmente limpa e a luz, profusa, era fornecida por vrias lmpadas fluorescentes, colocadas no teto. Depois de olhar novamente para o registro, fixei os olhos nele. Era um indivduo de aparncia agradvel, olhos e cabelo castanho; este impecavelmente penteado. Tinha as mos no colo, crispadas, o nico sinal do seu nervosismo; premia-as uma de encontro outra, como se estivesse a moldar gesso. No se est a sentir bem? perguntei. No. No me estou a sentir nada bem respondeu, pousando as mos em cima dos joelhos e desviando o olhar. O doutor interno, no ? O meu mdico no vem? Mirei-o durante alguns segundos. A experincia ensinara-me que o melhor a fazer naqueles casos era deix-los falar, mas notava-se que aquele doente estava com vontade de me fazer algumas perguntas. Sim, sou interno disse, um pouco na defensiva. Quanto ao seu mdico, no conseguimos encontr-lo. Apesar disso, penso que podemos ajud-lo e depois vlo- mais tarde, talvez amanh. Mas agora que estou a precisar dele! insistiu, tirando um cigarro, que permiti que acendesse. Os doentes psiquitricos tinham autorizao para fumar se o desejassem; no havia contentores de oxignio naquele quarto. Por que no me fala do que o preocupa e talvez depois o nosso psiquiatra residente o possa ajudar? Tinha a certeza de que no conseguiria a presena do psiquiatra residente ali, mas pelo menos tinha esperana de poder falar com ele pelo telefone. Estou nervoso disse. Todo eu sou uma pilha de nervos e no consigo manterme quieto. Tenho medo de fazer alguma coisa. Houve uma pausa. Ele olhava para mim, fixamente. Apesar de ter acendido o cigarro, ainda no o levara boca, mantendo-o entre os dedos, o rosto na trajetria da espiral de fumo. Os seus olhos, muito abertos, mostravam umas pupilas bastante dilatadas. No cimo da testa brilhavam gotas de suor. Que tipo de coisa tem medo de fazer?

Queria dar-lhe toda a corda de que ele necessitasse. Alm disso, no me importava com o tempo que precisasse de ali gastar. Os outros problemas que as urgncias enfrentavam, no meio do pandemnio que reinava fora do quarto, teriam de se resolver sem mim. Era bem feito por me terem dado um doente psquico. No sei que hei-de fazer. Isso s meio problema. S sei que quando fico desta maneira no tenho muito controle sobre o que penso... sobre o que penso. Penso. Olhava em frente, fixamente, sem pestanejar. Em seguida esboou um sorriso sbito, os lbios tensos. H quanto tempo tem esse problema? perguntei, tentando quebrar o transe e mant-lo a falar. Desde quando que anda a ser tratado por um psiquiatra? A princpio pareceu no ouvir a pergunta e eu ia a repeti-la quando se virou novamente para mim. H cerca de oito anos. Diagnosticaram a minha doena como sendo esquizofrenia, do tipo paranico, e j fui hospitalizado duas vezes. Tenho andado a ser vigiado por um psiquiatra desde a primeira entrada no hospital e as coisas estavam a correr bem, principalmente neste ltimo ano. Mas esta noite sinto-me tal e qual como me sentia nos primeiros anos. A nica diferena a de que, agora, sei do que se trata. por isso que preciso de mais Librium e tenho de ver o meu mdico. Se no paro com isto ainda me descontrolo. A sua capacidade de auto-anlise surpreendeu-me. Calculei que tivesse andado em tratamentos intensivos, possivelmente at num psicanalista. Era inteligente, sem dvida. Embora eu fosse um novato naquele gnero de problema, sabia o suficiente para tentar mant-lo a falar, a comunicar. Teria sido mais fcil dar-lhe um pouco de Librium e esperar que o medicamento fizesse efeito. Mas acabara por me interessar pelo caso e, por outro lado, era uma forma de me manter afastado do resto dos problemas que estavam a decorrer no exterior. De fora do quarto chegou-me o som estridente de um grito de criana. Por que motivo precisou de ser hospitalizado? perguntei. Respondeu, cheio de ansiedade. Estava em Nova Iorque, na faculdade, e tinha algumas dificuldades com os meus estudos. Vivia com a minha me. O meu pai morrera quando eu era ainda beb. Foi ento que, durante o segundo ano de faculdade, a minha me comeou a ter uma ligao com um indivduo e isso perturbou-me imenso, embora a princpio no soubesse porqu. Ele era muito delicado, de aparncia agradvel, simptico e todas essas coisas. Acho que devia t-lo apreciado. Mas isso no aconteceu. Hoje sei porqu. Para dizer a verdade, odiava-o. A princpio tentava convencer-me de que gostava dele. O que eu me sentia era atrado por ele. Hoje reconheo-o. Estava a comear a ter uma idia do problema que afetava aquele homem; a mesma que a psiquiatria lhe tinha dado, um enquadramento para as suas ansiedades. Como eu o tinha incentivado, continuou a falar. Quanto minha me, bem, tambm comecei a detest-la por vrias razes. Era s dio a nvel do subconsciente, claro Uma das razes foi a de ter comeado a andar com aquele homem e me ter deixado entregue a mim mesmo. A outra foi a de o ter guardado para ela. Penso que tenho tendncias homossexuais latentes. Mas adorava a minha me. Era a nica pessoa a quem me sentia ligado. No tinha muitos amigos, nunca tive, nem achava grande piada a sair com raparigas. Pois bem, entretanto o presidente Kennedy assassinado e ouo dizer que por um jovem. Voltava, na altura, da faculdade e ia de metr para casa. minha volta s via jornais com grandes cabealhos: KENNEDY ASSASSINADO POR JOVEM. J andava nervoso h uns dias e, de

repente, como era um jovem, achei, no me pergunte porqu, que fora eu quem matara Kennedy. Os dias que se seguiram foram verdadeiramente infernais, tanto quanto me posso lembrar. No fui para casa. Estava aterrorizado, pensando que andava toda a gente minha procura. O que tomou as coisas piores foi o fato de s ver pessoas a chorar por todo o lado. Tinha medo de que descobrissem que eu era o assassino, de modo que andei dois dias a fugir, temendo cada pessoa que encontrava, e pode ter a certeza de que em Nova Iorque muito difcil ficar-se isolado. Por sorte, acabei por ir parar ao hospital. Precisei quase de um ano para me acalmar, e de outro de tratamentos intensivos para compreender o que me acontecera. Depois as coisas comearam a... De repente, calou-se, a meio da frase, e ficou a olhar fixamente para a parede. Em seguida encarou-me e perguntou: No se importa de me medir a tenso? Receio que esteja demasiado elevada. Claro que no me importava de o fazer, mas no tinha ali os instrumentos necessrios. Sa para ir buscar um tensimetro, ligeiramente atarantado com a inesperada, ntida e acabrunhante histria de esquizofrenia paranica que se me deparara. Uma enfermeira veio atrs de mim tentando entregar-me um registro, mas eu despachei-a com um sinal de mo, dizendo-lhe que ainda no tinha terminado de atender o paciente que tinha entre mos. Ao voltar ao quarto, vi que o homem j tinha a manga enrolada para cima. Mostrou-se intensamente interessado quando lhe coloquei a tira em volta do brao e tentou ver a escala quando comecei a bombear. Tinha a presso a 14/9. Disse-lhe que estava ligeiramente elevada, mas que tal no era de espantar devido agitao em que se encontrava. O fato que me sentia um pouco surpreendido por ele ter a tenso to alta. Perguntei-lhe o que lhe acontecera depois de sair do hospital. Em que altura? quis saber. Foi hospitalizado mais de uma vez? Duas vezes. J lho tinha dito. Que se passou depois da primeira ida para o hospital? Correu tudo bem. Via o meu psiquiatra regularmente. De repente, sem saber porqu, comecei a andar nervoso, como estou agora, sentindo-me cada vez pior, at que fui obrigado a ser novamente internado durante mais quatro meses. Qual foi o espao de tempo que decorreu entre as duas hospitalizaes? perguntei. Mais ou menos um ano e meio. O verdadeiro problema residiu no fato de nunca conseguirmos descobrir por que motivo eu tive aquela recada. No estava paranico, apenas nervoso. Sofria do que eles chamam um estado de ansiedade intrnseco. Depois o meu psiquiatra comeou a falar de esquizofrenia pseudoneurtica, mas eu no percebia muito bem do que se tratava, apesar de ter lido bastante sobre o assunto. Por isso ando to preocupado com esta situao. Agora estou nervoso, verdadeiramente nervoso. Sinto a mesma ansiedade de quando fui parar ao hospital pela segunda vez e no o suporto. No quero endoidecer novamente. No percebo porque isto havia de me acontecer agora. A vida tem estado a correr-me to bem ultimamente. At o meu negcio vai de vento em popa. Apercebi-me de que ele devia ter sido bastante compensado a nvel psicolgico. Fora capaz de criar um lar no Hava e, at, de arranjar um negcio. Estranhamente, tambm me sentia nervoso, embora as razes fossem outras e num grau diferente, como bvio. Estava exausto, mas os meus problemas podiam ser resolvidos com umas horas de sono e repouso. Os dele eram a longo prazo e, alm disso, tinha receio de perder, de repente, o controle. Uma enfermeira abriu a porta, comeou a dizer algo, mas, vendo que estvamos a falar, fechou-a imediatamente.

 Tem muitos amigos aqui? perguntei. No, nem por isso. Nunca fui de arranjar muitos amigos. Prefiro ficar em casa a ler. No gosto nada de me sentar nos bares e beber. Parece-me uma grande perda de tempo. Penso que no tenho muitas coisas em comum com as outras pessoas. Gosto de fazer surf de vez em quando e tenho alguns tipos com quem costumo ir praticar esse desporto, mas s de tempos a tempos. Na maior parte das vezes, fao-o sozinho. Por momentos, senti-me divertido. Um praticante de surf esquizofrnico. Mas o estilo dele assemelhava-se, de certo modo, ao meu. E a sua me? Onde que ela vive agora? Voltou para Nova Iorque. Casou com o tal tipo com quem andava. O meu psiquiatra sugeriu-me que me afastasse durante uns tempos. Foi por essa razo que vim para o Hava. E no h dvida de que a minha vida agora mudou, para melhor. Levantei-me e dirigi-me para a porta. Uma das pernas comeara a ficar dormente e sentia um formigueiro no p. Qual o ramo do seu negcio? Fotografia respondeu. Trabalho por conta prpria, mas tambm fao algum trabalho industrial. Isso o que me mantm ocupado. Tambm ele se levantou, espreguiando-se ligeiramente e caminhando para o fundo do quarto, onde estava a cadeira. Virei-me, pus as mos atrs das costas e encostei-me porta. Ele parecia um pouco mais calmo, ligeiramente aliviado da sua ansiedade. E quanto a mulheres? inquiri, um pouco hesitante, curioso em relao s tendncias homossexuais latentes a que se referira anteriormente. Olhou para mim rapidamente assim que acabei de proferir a pergunta e depois sentou-se na cadeira, mirando o cho. timo, timo! Nunca as coisas estiveram to bem. Para dizer a verdade, at tenciono casar brevemente com uma bela rapariga. Por isso quero certificar-me de que no tenho nenhum problema. No pretendo passar mais tempo no maldito de um hospital. No agora. Compreendia a sua preocupao. Fazendo referncia mesma, passara, de sbito, a conversa para um plano mais pessoal. No que, at ali, esta tivesse exprimido o que lhe ia no esprito; mas o fato de ter ligado o desejo de se casar s suas dificuldades mentais fez com que o compreendesse mais facilmente. No fim de contas, se ele conseguisse libertar-se daqueles problemas e estabelecer uma ligao autntica com a noiva, talvez esta lhe proporcionasse o equilbrio necessrio. Pelo menos essa hiptese era possvel. Ao contrrio de muitas das pessoas que sofriam de perturbaes mentais, aquele tipo tentava, verdadeiramente, ultrapassar o problema. O fato agradava-me. Sentei-me na cama, perto da cadeira onde ele estava. Isso timo disse-lhe. Vejo que est a conseguir ultrapassar o seu problema bsico. Sim, maravilhoso concordou, sem grande emoo. De repente, recordei-me de ter lido numa obra qualquer de carter psiquitrico que os esquizofrnicos so capazes de se dedicarem a afetos cegos. Esse fato proporcionou-me, momentaneamente, uma nova capacidade de compreenso e um prazer acadmico. Quando que est a pensar casar-se? perguntei, para ver se conseguia obter alguma reao emocional dele. Bem, esse um dos problemas disse. Ela ainda no se decidiu por uma data. Aquele comentrio, no sei porqu, fez-me ter um sobressalto.

 Mas ela concordou em casar consigo, no foi? Claro que sim! Mas ainda no quis decidir nada sobre a data do nosso casamento. De fato, estava a fazer conta de insistir com ela, esta noite, para casarmos no vero. Gostaria muito de que fosse este vero. Ento, e por que no? perguntei. Comecei a ficar com a impresso ntida de que se tratava de um caso de hipersensibilidade esquizofrnica que se desencadeava perante qualquer sinal de rejeio. Talvez o estado de ansiedade dele tivesse aumentado devido ao receio de no ser aceite pela rapariga. Tudo indicava uma situao do gnero. Esta noite no posso disse ele. Por que no? Aquele ponto era crucial. Se as coisas corressem bem, ele sentir-se-ia o mais feliz dos homens; mas se ela no o aceitasse, os resultados podiam ser devastadores. Tambm ele tinha a noo dessa realidade. Porque ela telefonou-me hoje de manh a dizer que no podia estar comigo esta noite. Quando lhe perguntei pela razo, disse-me apenas que tinha uma coisa importante para fazer. De vez em quando diz-me isso. Reconhecia que a posio dele no era nada fcil. Quanto mais fora fizesse, mais a sua estabilidade mental viria a depender da noiva. No sabia que dizer. Tnhamos chegado a uma espcie de impasse e pensei que era altura de lhe dar um pouco de Librium ou coisa do gnero. Mas ele comeara de novo a falar. Talvez a conhea disse. enfermeira neste hospital. Como se chama? inquiri, curioso. Karen Christie disse. Vive aqui perto, mesmo do outro lado da rua. As palavras dele vieram esmagar-se no meu crebro, despedaando muralhas de defesa cuidadosamente construdas e arrastando tudo na enxurrada. Senti o maxilar inferior pender-me involuntariamente e os meus olhos tomarem-se vtreos, refletindo a confuso e a descrena que me ia no ntimo. Fiz um esforo tremendo para recuperar uma aparncia impassvel. Ele estava demasiado imerso nos seus prprios problemas para dar conta da minha inquietao. Continuou a falar, descrevendo a sua relao com Karen. Naquele momento, vinte segundos aps a revelao, conseguira j recuperar a compostura e ouvia-o atentamente. Dentro de mim, no entanto, a minha prpria confuso no me permitia apreender o sentido das palavras que me chegavam. ramos como dois homens a falar do mesmo assunto, mas em lnguas diferentes. Ento era aquele o "namorado", o "noivo". Partilhava Karen com um esquizofrnico que dependia totalmente dela para o seu equilbrio mental, um homem cujo mundo ruiria se essa compensao lhe fosse negada, como acontecera com a deciso que Karen tomara em ficar em casa comigo naquela noite. De forma grotesca, mas bastante real, tnhamos trocado de papis: agora ele era o terapeuta e eu o paciente. Como calhava bem eu estar sentado na cama e ele na cadeira... H cerca de meia hora atrs, sentira-me rejeitado por Karen s poder receber-me mais tarde, depois das onze. Ao mesmo tempo regozijara-me, irracionalmente, por ela ter algum que a levasse a sair, mas que a trouxesse a casa a tempo de beber cerveja e fazer amor comigo. O fato de a ter vindo a partilhar com um esquizofrnico deu-me a tentao de me identificar com ele, de me ver mesma luz. Refleti, curioso, no grau de esquizofrenia que a minha prpria personalidade teria. Mas de certeza absoluta que eu no padecia desse mal; a noo que tinha da realidade era demasiado boa. No me acreditava portador de quaisquer iluses, at porque, quanto mais no fosse, era um realista, especialmente em relao ao meu papel como interno. Alm disso, nunca tivera alucinaes. Se o fosse, daria por isso, pensei. Ou no daria?

De repente, apercebi-me de que estava com dvidas acerca de mim prprio. Pedi-lhe, com os olhos, que repetisse a pergunta. Conhecea? insistiu. Sim disse, mecanicamente. Faz os turnos do dia. Comeramos novamente a falar em lnguas diferentes, enquanto ele prosseguia o relato da sua vida semi-partilhada com Karen e eu voltava s minhas especulaes. No, no havia dvida de que eu no era esquizofrnico, mas talvez estivesse a tender para esquizide. Perscrutando mentalmente aulas e pginas de livros, tentei recordar-me das caractersticas da personalidade esquizide. A maioria dos portadores desta anomalia, lembrava-me, evitavam o estabelecimento de elos profundos ou prolongados. Aplicar-se-ia aquela caracterstica a mim? Sim, sem dvida, ultimamente. Decerto ningum descreveria o meu relacionamento com Karen, Joyce ou at mesmo com Jan, profundo ou caracterizado pelo respeito e pelo afeto. As coisas passavam-se mais ao nvel das convenincias de ambos os lados em que eu, e possivelmente tambm as raparigas, no tinha investido grande emoo ou estabelecido laos profundos. Tinha de admitir que, para mim, elas eram mais vaginas ambulantes do que pessoas na verdadeira acepo do termo, servindo-me no como um meio para me aproximar, mas sim como tubo de escape. Passava-se o mesmo em relao aos meus pacientes. O passar dos meses modificara a minha atitude para com eles. Cada caso tinha-se transformado num rgo, uma doena especfica, ou num processo. Desde Roso que evitava todos os contactos mais ntimos e possibilidades de envolvimento com os doentes. At isso me parecia, naquele momento, sinal de esquizofrenia. Pensamentos repentinos, desprezveis e doentios invadiram-me a mente, envenenando-me, e eu dei-me conta de que tinha de sair rapidamente daquele quarto e afastar-me do hospital, para um lado qualquer onde pudesse respirar. Matutando nos meus pensamentos, concentrei-me na realidade que tinha diante de mim. Que tipo de tranqilizante tem estado a tomar? perguntei apressadamente. Librium, vinte e cinco miligramas respondeu, um pouco confundido. Era notrio que o tinha interrompido. timo! observei. Vou dar-lhe algum, mas recomendo-lhe que procure o seu mdico esta noite ou amanh. Entretanto, vou mandar administrar-lhe uma injeo de Librium, que lhe far efeito imediato. Antes que ele pudesse dizer mais alguma coisa, levantei-me rapidamente da cama, abri a porta e sai do quarto, apressando-me em direo ao posto das enfermeiras. Passei, mecanicamente, uma ordem para irem dar uma injeo de Librium ao doente que deixara no quarto dos casos psquicos. No me cansava de pensar no absurdo de o paciente se ter transformado no terapeuta. S isso parecia quase uma iluso esquizofrnica. Disse a uma outra que fosse dar a injeo intramuscular de Librium ao homem. Tinha apenas uma vaga noo da atividade que me rodeava. Ento, antes de sair, no pude deixar de voltar para trs e olhar, mais uma vez, para o esquizofrnico a fim de me certificar de que no fora alucinao minha. Abri a porta. L estava ele, efetivamente, a olhar para mim. Fechei a porta e segui para o meu quarto. Era tudo demasiado verdadeiro; todas as coisas que pensara acerca de mim mesmo nos segundos que se tinham seguido ao pronunciar o nome de Karen. Eu era um filho da me frio e desprendido e cada vez mais empedernido. Tudo o que pensara sobre a questo tinha-o confirmado. O meu relacionamento inicial com Carno, por exemplo; limitara-se a desaparecer numa simulao de inconvenincia. De fato, eu fora demasiado egosta e preguioso para a manter. O surf era, possivelmente, a faceta mais esclarecedora de todas, sobretudo porque tudo indicava que o estava a utilizar como desculpa e justificao para a minha

vida cada vez mais isolada. E a prpria Karen, uma relao vazia e sem sentido, se que era real. Sentimentos de que mal me dera conta, o vazio e a ansiedade; tudo isso eu procurara, em vo, reprimir com os meus encontros com Karen, Joyce e at Jan. Ao sentar-me, s escuras, na cadeira do meu quarto, procurando respostas, tive a horrvel noo dessa realidade. Contudo, nem sempre fora assim. No na faculdade, onde no tinha tido dificuldade em fazer amizades duradouras. E a ansiedade solitria que agora fazia parte de mim? Talvez tivesse sofrido um pouco dela durante o meu primeiro ano na faculdade, mas depois no. A escola mdica viera a seguir. Teriam as sementes da mudana sido plantadas nessa altura? Sim. Afinal de contas, fora durante esse perodo que os amigos tinham seguido cada um para seu lado, que as atitudes e o modo de proceder para com as mulheres tinham mudado, por fora das circunstncias, motivado pelas dificuldades econmicas e pela falta de tempo. Mas s depois da fase de internato que as sementes da mudana tinham germinado. Naquele momento a minha vida sexual e social encontrava-se muito limitada, mas tambm era preciso no esquecer que vivia num hospital e no no mundo real. Como as coisas tinham mudado! O telefone tocou, mas eu fiz de conta que no o ouvia. Tirando as vestimentas brancas, vesti uns jeans desbotados e uma camisola preta. Por que me teria acontecido aquilo? Seria s dos horrios que regiam a minha vida naquela fase? Ou haveria uma combinao com o medo e a raiva que sentia constantemente no meu ntimo? Seria, basicamente, a minha auto-reprovao por no me insurgir contra as coisas que no achava bem no sistema, em me deixar levar na onda, agentando com tudo? Estaria o meu crebro to emperrado pelo cansao que j no conseguia raciocinar? No sabia. Quanto mais pensava, mais confuso e deprimido me sentia. Confuso com as causas, no com os efeitos. Em termos de perspectiva, os efeitos eram claros: transformara-me num tipo sem escrpulos. De repente, lembrei-me de Nancy Shepard, da forma como a empurrara para fora da minha cabea, rejeitando as suas perguntas e acusaes. Na noite em que tnhamos discutido, ela tentara dizer-me exatamente o que eu acabara de aprender com o meu terapeuta; o meu terapeuta, o esquizofrnico. Que tringulo, pensei: uma enfermeira com uma vida dupla, um esquizofrnico carenciado e um mdico interno que no estava bom da cabea. Nancy Shepard dissera-me que eu era um egosta incrvel, uma criatura que s pensava em si e que por aquele andar nunca haveria de saber o que era o amor. E tivera razo. Que importava que as coisas no fossem assim to lineares; que esse comportamento no fosse inato minha personalidade, mas que se tivesse desenvolvido; que eu tivesse sido encorajado a proceder desse modo no dia a dia, a fim de evitar qualquer envolvimento emocional genuno porque faz-lo era a nica defesa natural a que podia recorrer para fazer face raiva, hostilidade e exausto? Que importava que a rotina do interno fosse uma monotonia sem sentido ou que o sistema mdico tivesse sido concebido para utiliz-lo e atorment-lo? Para Nancy Shepard, para qualquer pessoa, o que importava era a personalidade que se aparentava. Ela arejara-me ligeiramente com algumas verdades e eu dera-lhe um pontap, tirando-a da minha vida. Deitado na cama, congeminei no que fazer em seguida. De momento, dormir. Quantos obstculos mais teria de ultrapassar? E Karen? No sabia. Talvez a voltasse a ver, talvez no. Esperava que no, mas sabia que, provavelmente, acabaria por faz-lo.

Dia 365 DE PARTIDA

O apndice encontrava-se no recipiente de ao inoxidvel onde o tinha colocado antes de voltar para a mesa de operaes. O cirurgio estava a acabar de coser a extremidade a que este estivera agarrado. A nossa concentrao era to intensa que nenhum de ns viu a mo a arrastar-se para o campo operatrio e a comear a tatear em volta, ao acaso, tocando nos intestinos midos e expostos. A mo no tinha nenhuma luva calada; estava indiscutivelmente deslocada no nosso campo operatrio, anteriormente esterilizado. Parecia um objeto aliengena a aparecer de debaixo dos panos cirrgicos. Eu e o cirurgio olhamos um para o outro alarmados e depois para Strauss, o interno recm-chegado, mas este no conseguia afastar os olhos da mo. Os segundos que se seguiram rodopiaram no meio da maior confuso mental que se possa imaginar, enquanto lutvamos os trs para relacionar a intrusa com algum dos elementos da equipa de operao. Precisamente no momento em que eu largava a agulha e fio para agarrar na mo e afast-la da inciso, que o cirurgio percebeu o que se passava. Deus me valha, George, o tipo tem a mo na barriga! Arrancado s suas divagaes, George, o anestesista, espreitou por cima do mostrador e exclamou: Diabos me levem! em tom reservado, antes de se deixar cair novamente no seu banco. Com uma destreza que desmentia o seu aparente torpor, injetou no doente um poderoso paralisador muscular, chamado Sucinilcolina, por via intravenosa. S depois disso que a mo abrandou e se recolheu rea situada por detrs dos panos cirrgicos. Quando me disse que ia dar uma anestesia ligeira ao paciente, nunca supus que viesse a ter de lutar com ele disse o cirurgio. George, em vez de responder, acelerou a entrada do medicamento com a mo direita, enquanto abria um pouco mais a sada do recipiente de xido ntrico com a esquerda. Depois de vrias compresses foradas no saco de ventilao destinadas a acelerar a entrada do xido ntrico nos pulmes do doente, olhou para cima, para se juntar refrega. Sabe, George, esta sua anestesia epidural tem muita graa. Traz o desafio de novo cirurgia. De fato, este caso no tem grande diferena de uma apendicectomia feita no sculo dezesseis. Oh, no sei se ser bem assim retorquiu George. Nesse tempo eles no atacavam s com as mos; tambm davam pontaps. J reparou como este p tem estado sossegado? Temos feito muitos progressos na rea da anestesia. Os disparates continuaram at que, a certa altura, o cirurgio decidiu no ripostar. Em vez disso, dirigiu a sua ateno para a tentativa de remediar o que se passara no campo operatrio. Enquanto, como medida de preveno, ele mantinha a mo inoportuna do paciente bem segura, eu passava uma toalha esterilizada e embebida em soro fisiolgico pela inciso. Strauss, a enfermeira e eu ainda nos encontrvamos esterilizados como refere a terminologia reinante na sala de operaes. Romper a esterilizao do campo operatrio era um problema srio porque aumentava, substancialmente, as probabilidades de infeces ps-operatrias atravs da proliferao de estafilococos. H cirurgies que so uns verdadeiros manacos com a esterilizao, mas nunca, parece, de forma consistente e racional. Eu, por exemplo, tive um professor na escola mdica que exigia que internos, residentes e estudantes estivessem na sua operao de limpeza e desinfeco exatamente durante dez minutos. Algum que se atrevesse a entrar na sala de operaes aps preparativos inferiores a dez minutos, tinha de comear tudo desde o princpio. Estas exigncias no se estendiam, no entanto, ao cirurgio em causa, que no gastava, numa estimativa generosa, mais do que

trs ou quatro minutos nessa operao. Aparentemente, os outros estavam mais contaminados do que ele, ou as bactrias que o povoavam eram menos tenazes. O rigor fastidioso que votava esterilizao dera origem a um episdio memorvel. Tratara-se de um caso interessante que girava volta de um ferimento no pulmo direito provocado por uma bala. Rodeando a mesa de operaes, profundamente embebidos no que estava a decorrer, encontravam-se trs elementos, entre residentes e internos. Um dos estudantes do grupo que estava a assistir, um tipo de grandes ideais, mas pouca altura, metera na cabea observar todos os detalhes. Colocou vrios bancos de quatro ps em cima uns dos outros, subiu para cima deles e, agarrando-se lmpada que pendia do teto, pde ento inclinar-se para olhar diretamente para o campo operatrio. Esta engenhosa vantagem resultou at os culos lhe escorregarem pelo nariz e irem cair em cheio na inciso com um inocente plop. O acontecimento enervou de tal modo o professor que este mandou o residente prosseguir a operao. Felizmente, Gallagher, o cirurgio que conduzia a apendicectomia, tinha um controle mais firme sobre as suas emoes do que aquele que o professor da escola mdica tivera. Apesar de obviamente perturbado, continuava a funcionar. George, veja se pode tirar o brao de debaixo dos panos e mant-lo bem seguro disse Gallagher, olhando para mim e fazendo rolar os olhos nas rbitas perante o absurdo de tudo aquilo, ao mesmo tempo em que o anestesista metia a cabea por debaixo dos lenis. E voc, Strauss, afaste-se um pouco mais da mesa disse eu. O pobre Strauss estava, nitidamente, confuso. Olhava, ora para o cirurgio, ainda s voltas com a mo do paciente, ora para a massa agitada dos panos, que indicavam os progressos do anestesista, ou a ausncia dos mesmos. Strauss retrocedeu, grato pela indicao. Com alguma dificuldade, o anestesista conseguiu, finalmente, devolver a mo do doente ao seu stio devido, tentando depois prend-la mesa de operaes. Em seguida, o cirurgio deu um passo atrs e deixou que a enfermeira lhe retirasse a bata e as luvas, enquanto outra lhe entregava um novo conjunto de roupas esterilizadas. Que maneira aquela de terminar o meu internato, pensei. Era a ltima operao para que estava escalonado como mdico interno; talvez a ltima que fazia nessa qualidade, embora estivesse de chamada naquela noite, e corresse o risco de ser solicitado para participar em alguma interveno cirrgica fora de horas. De qualquer modo, aquele caso parecera um autntico circo logo desde o princpio. Por um lado, o paciente tomara o pequeno-almoo porque eu me esquecera de escrever "nada pela boca" no registro, e as enfermeiras, que j tinham obrigao de saber como as coisas eram visto tratar-se de ordens pr-operatrias, tinham-lhe dado alimentos slidos. Strauss, d-me uma ajuda aqui nos panos esterilizados pedi. Inclinei-me sobre o paciente e estendi uma das pontas de um pano esterilizado acabado de trazer ao interno. Aquela operao era, para ambos, muito especial: para ele era a primeira, para mim a ltima. Eu continuava a ser, oficialmente, um interno, embora tivesse idia de que tinha vindo a atuar sobretudo na qualidade de residente desde a chegada dos novos internos. Parecia um bom grupo, to ansioso para aprender e inexperiente como ns o tnhamos sido. Strauss e eu framos designados para fazer o servio juntos, o que me permitia ajud-lo a familiarizar-se com o ambiente. De fato, at estvamos os dois de turno aquela noite. Mantenha-o bem para cima orientei, erguendo a ponta do pano que estava do meu lado at ao nvel dos olhos e pousando-a depois sobre aquele que tinha sido posto no incio da operao. timo observei. Agora deixe a parte de cima cair sobre o mostrador.

Strauss parecia assimilar rapidamente as indicaes e eu entreguei-lhe o pano de baixo. Mas o cirurgio, j vestido de lavado, estava impaciente para continuar e tirou o pano das mos de Strauss, ajudando-me a completar rapidamente a colocao das novas coberturas sem proferir palavra. Eram duas e um quarto no grande e velho relgio de parede. Ainda no me compenetrara de que dali a vinte e quatro horas terminaria o internato. Como aquele ano se passara depressa! Algumas recordaes pareciam, no entanto, ser muito mais antigas. Roso, por exemplo. No teria ele sempre feito parte de mim? E... E que tal uma ajudinha, Peters? Gallagher j tinha na mo a agulha com o delgado filamento de linha enfiado. Mas no podia comear porque a toalha esterilizada que fora colocada sobre a inciso ainda se encontrava no mesmo stio. Uma pina grande e uma bacia pedi. Estendi a mo para a enfermeira e esta pousou violentamente a pina pedida na palma da minha mo. Aquela mulher era um demnio no que dizia respeito ao seu comportamento na sala de operaes. No restavam dvidas de que vira muita televiso, pois dava-nos os instrumentos com tal fora que chegava a doer, e quando nos calava as luvas parecia querer enfi-las at ao cotovelo. Peguei na toalha com a pina e retirei-a sem lhe tocar diretamente, atirando-a em seguida para a bacia. O conceito de esterilizao que vigorava nas salas de operaes deixava-me perfeitamente perplexo, de tal modo que preferia sempre jogar pelo seguro. No sabia se Gallagher considerava a toalha contaminada ou no, mas mais valia prevenir, portanto preferi no lhe tocar. Claro que depois de o paciente ter andado a remexer na ferida com a mo nua, todas aquelas precaues eram um perfeito disparate. Retirada a toalha, Gallagher virou-se para a inciso donde o apndice fora retirado. Felizmente, o paciente escolhera uma altura boa para a sua excentricidade; o apndice no s fora removido como a concavidade onde se encontrava tinha sido tapada. Gallagher estava a preparar-se para suturar a segunda camada quando a misteriosa mo aparecera. George, o anestesista, tivera uma recuperao fantstica. As coisas j tinham voltado ao normal na sua rea; o som do seu rdio porttil competia com o do pulmo artificial que fora trazido para ali depois da aplicao da Sucinilcolina. No se tratava de uma mera precauo. Este produto anestsico era to forte que o paciente estava, naquele momento, completamente paralisado e a mquina respirava por ele. Quando, depois da luta com o brao, Gallagher deu o primeiro ponto, a atmosfera voltou a ser, em termos gerais, aquela que reinava antes do desencadear da crise. At uma pausa fizemos para escutar o relato das condies atmosfricas especialmente dado para os praticantes de surf, que o rdio de George deixara ouvir por detrs do mostrador. Mas a minha prancha j tinha sido vendida. Gallagher era, dentre os cirurgies mais jovens, um dos que se dedicava, esporadicamente, quele desporto. J tivera oportunidade de o ver algumas vezes em Waikiki, mas era, sem dvida, melhor como cirurgio do que como praticante apesar dos modos afetados que o caracterizavam. Tinha o hbito, j clebre no meio hospitalar, de pegar nos instrumentos cirrgicos com o dedo mnimo esticado, da mesma maneira como as senhoras dos clubes femininos pegam na chvena de ch. Foi assim que ele deu o ponto seguinte: separando o seu dedo mindinho o mais possvel do resto dos dedos e retirando habilidosamente a linha do buraco da agulha, que em seguida depositou na minha mo. Como eu era o primeiro assistente, cabia-me a mim dar o n. Strauss segurava nos afastadores. Dei a primeira laada com extrema rapidez, como sempre acontece quando um ato se tomou reflexo. As paredes opostas do

intestino grosso aproximaram-se, cobrindo a zona de onde fora tirado o apndice. Ao apertar a sutura, Gallagher fez de conta que no olhava, mas eu tinha a certeza de que ele estava atento operao. Como no disse nada, parti do princpio de que aprovava o grau de fora que eu colocara na primeira laada. Em seguida, enquanto eu dava o segundo n, tirou a agulha recm-enfiada das mos da enfermeira assistente. Hei, Strauss, e que tal levantar um pouco mais esses afastadores para eu conseguir ver o meu n? observei, um tanto preocupado por observar que era aquele o momento que Strauss escolhera para comear a divagar. Dei o segundo n ao mesmo tempo em que ele olhava para a inciso e erguia um pouco a mo direita, aumentando a abertura da ferida. Isso permitiu-me colocar a segunda laada por cima da primeira, com o auxlio do meu indicador direito, apertando depois o que me pareceu suficiente. Uma terceira laada, desta vez sob a orientao da minha mo esquerda, permitiu que o n ficasse firmemente preso, no correndo o perigo de abrir. Cinco suturas semelhantes a esta completaram a cobertura da rea interna do apndice, de modo que estvamos agora prontos a fechar. Strauss, voc fez um timo trabalho disse Gallagher, piscando-me o olho ao mesmo tempo em que tirava os afastadores ao novo interno. No o teramos podido fazer sem a sua ajuda. Strauss, no sabendo muito bem se Gallagher estava a gozar com ele ou no, preferiu no responder. Aonde que aprendeu a utilizar os afastadores? inquiriu Gallagher. Participei em algumas operaes na escola mdica respondeu, calmamente. J calculava retorquiu Gallagher, com um sorriso arrogante a levantar-lhe os lados da mscara. Peters, voc importa-se, juntamente com o nosso jovem cirurgio, de fechar a inciso? Claro que no, doutor Gallagher. Este hesitou, olhando a ferida. Pensando melhor, talvez seja melhor eu ficar. Se o doente vier a ter alguma infeco ps-operatria, quero o menor nmero possvel de pessoas implicadas: s George. George, est a ouvir? O qu? perguntou o anestesista desviando os olhos do registro que tinha na mo, mas Gallagher ignorou-o e afastou-se para ir lavar as mos ao lavatrio. Strauss, que tal voc a dar ns? No sou l muito bom. Bem, est disposto a dar alguns? Creio que sim. Okay, quando chegarmos pele, voc que os ata. As suturas faciais foram executadas com rapidez. A minha percia a dar ns j igualava a do cirurgio e a enfermeira assistente tinha de se apressar para conseguir acompanhar o nosso ritmo. Assim que as suturas subcutneas foram colocadas e os ns feitos, as bordas escancaradas da inciso uniram-se. Muito bem, Strauss, vejamos do que capaz disse Gallagher depois de colocar a primeira sutura da pele no centro da inciso e estendendo as duas linhas de seda sobre o abdmen do paciente. A primeira sutura que colocada na pele, ao centro da abertura, a mais difcil porque at os pontos adjacentes estarem aplicados est sujeita a uma grande tenso e esta toma as laadas muito difceis de dar com correo. Quando Strauss pegou nas duas pontas da linha, Gallagher piscou-me o olho. Strauss nem sequer tinha as luvas caladas

como devia ser, pois estas formavam pregas de borracha na ponta dos dedos. No entanto, no ergueu os olhos do que estava a fazer; o que foi timo porque eu sabia o que lhe ia acontecer e tinha um enorme sorriso de antecipao cravado nos lbios. Pobre Strauss! Ao dar a segunda laada j transpirava e as extremidades da pele ainda distavam mais de um centmetro e meio entre si. Alm disso, enrodilhara de tal maneira a linha em redor dos dedos que tnhamos a impresso de estar a assistir a um ato cmico. Mas, ainda assim, no olhou para ns, um bom sinal. Viria a ser um bom cirurgio. Strauss, voc tem a teoria bem sabida. As suturas da pele no devem ficar demasiado apertadas observou Gallagher, soltando uma risada. Mas centmetro e meio capaz de ser demais. Vocs podem gastar o tempo que quiserem. O paciente vai continuar paralisado um bom bocado mais por causa da Sucinilcolina acrescentou George. Cortei a sutura lassa, puxei-a e deixei-a cair no cho. Gallagher f-la substituir por uma outra, tirando a linha da agulha com um movimento quase imperceptvel da mo. Strauss agarrou silenciosamente nas pontas, comeando novamente a atrapalhar-se. No a primeira vez que vejo uma mo nua numa inciso abdominal disse eu, olhando para Gallagher. Uma vez, na escola mdica, estavam cerca de oito estudantes na sala de operaes a tentarem ver alguma coisa do caso que estava a decorrer, quando o cirurgio disse: "Apalpem esta massa. Digam-me o que pensam." Todos os residentes passaram a mo pela abertura, anuindo em sinal de concordncia, at que, de repente, apareceu uma mo, sem luva, por entre dois deles, que tambm procedeu a uma palpao. Era de algum dos estudantes de medicina? perguntou o anestesista. Provavelmente. Nunca chegamos a saber exatamente, porque fomos todos corridos para fora da sala pelo residente-chefe, que tentava acalmar o cirurgio. Strauss continuava s voltas com a segunda sutura, prendendo os dedos na linha, deixando cair as pontas e procurando dar um jeito ao corpo que lhe permitisse alcanar o efeito desejado. No estava muito certo de que aquilo ajudasse, mas reconhecia a mesma tendncia em mim prprio. Esse doente arranjou alguma infeco ps-operatria? perguntou Gallagher. No. Fez uma recuperao desprovida de quaisquer complicaes disse. Esperemos que com este caso suceda o mesmo. Em silncio, desprendi a linha dos dedos de Strauss e fiz rapidamente o n, puxando-a depois imediatamente para o lado de modo a mant-la afastada da inciso. Strauss continuava de cabea discretamente baixa, enquanto Gallagher preparava nova sutura. E que tal mais um n, cirurgio prometedor? disse Gallagher, esticando os braos e fazendo estalar os dedos. No havia dvida de que aquele Strauss era um indivduo pouco falador; nem um som saiu dele enquanto se concentrava na sutura seguinte. O certo que eu j estava cansado do jogo, de v-lo s voltas com a linha. J eram quase trs e ainda tinha montanhas de coisas para fazer, arrumaes de ltima hora e outros pormenores. Depois de lanar um olhar confirmador a Gallagher, voltei, mais uma vez, a desatar o n de Strauss e a d-lo corretamente, unindo as arestas da inciso com suavidade. Bem, penso que vocs dois podem acabar o que falta. Lembrem-se de que quero aqui um penso muito fino.

Aps estas palavras, tirou ruidosamente as luvas e saiu porta fora. Strauss olhou para cima pela primeira vez desde que tnhamos iniciado as suturas da pele. Prefere atar ou enfiar? perguntei, mirando o rosto fatigado e coberto de suor do novo interno. Para dizer a verdade no podia dizer o que ele fazia pior, se atar se enfiar a linha. Apetecia-me sair dali o mais depressa possvel. Eu enfio retorquiu ele, estendendo a mo para a enfermeira, que, obedecendo ao seu estilo habitual, lhe estatelou a pina que segurava a agulha na palma. O som peculiar do choque entre o metal e a borracha esticada ecoou nas paredes nuas da sala. Strauss deu, literalmente, um pulo, assustado pelo impacto. Em seguida pestanejou e, depois de me lanar um olhar rpido, inclinou-se para a inciso e tentou enfiar a agulha numa das arestas da inciso. Strauss. Sim? Levantou a cabea para mim, mantendo a posio inclinada. Segure na agulha de forma a que a ponta fique perpendicular pele e a seguir rode o pulso; por outras palavras, siga a curva da agulha. Ele bem tentou, mas quando rolava o pulso, fazia girar a pina que segurava a agulha sem ter em considerao a distncia que ia desde a extremidade da pina ao cimo da agulha. O resultado foi um tnue som de metal a partir quando a agulha se quebrou na pele. A mo imobilizou-se-lhe, ao mesmo tempo em que os seus olhos, mal podendo acreditar no que tinha acontecido, se desviavam bruscamente da agulha partida para mim. "Bolas!", pensei. Muito bem, Strauss, no toque em nada. O "Big Ben" marcava trs e cinco. Pontas de agulha, na verdade, agulhas inteiras, eram quase impossveis de encontrar uma vez perdidas. Por sorte conseguia ver aquela superfcie da pele. Pina-mosquito pedi. Estendi a mo para a enfermeira assistente sem desviar os olhos da ponta, quase invisvel, da agulha. O impacto do delicado instrumento enviou-me uma onda de choque atravs do brao que fez estremecer o meu campo de viso. A agulha quebrada desapareceu. Lancei um olhar furibundo enfermeira. Esta, que era enorme e desajeitada, praticamente esfrica, devia pesar uns bons dez quilos mais do que eu e a sua expresso estava, naquele momento, to cheia de malcia que declinei a oportunidade de lhe fazer alguma observao. Em vez disso, preferi concentrar-me na delicada pina-mosquito que, apesar de tudo, escapara ilesa para a minha mo latejante. Colocando o indicador da mo esquerda dentro da inciso e empurrando ligeiramente os tecidos em que a agulha estava enfiada para cima, consegui obter alguma resistncia antes de tentar agarrar na ponta do fragmento de metal. Ainda assim, a primeira tentativa apenas me permitiu afundar mais a maldita agulha. Foi a que decidi terminar eu mesmo tanto a implantao da linha tal como os ns da mesma. A segunda tentativa foi mais bem sucedida; ao puxar a pina, fiquei aliviado por ver a ponta prateada da agulha firmemente segura entre as duas hastes. Munindo-me da meticulosidade de um relojoeiro, depositei o fragmento num dos cantos do tabuleiro dos instrumentos, juntando-lhe a parte de cima com a finalidade de me certificar de que no faltavam segmentos. Satisfeito, pedi uma sutura, evitando olhar para Strauss. A pele cedeu sob a agulha perpendicular quando aumentei a presso e, com um plop, abriu caminho atravs dos tecidos. Rolando o pulso num arco cujo centro se deslocava para eliminar a fora de toro na ponta da agulha, a fora que Strauss ignorara, fi-la sair do outro lado da inciso. Segurando na ponta emergente da agulha com a pina, puxei-a para fora. Destaquei o fio, erguendo a pina de modo a que o olho

da agulha ficasse virado para cima; segurando na outra ponta do fio, libertei a agulha da linha. Seguindo a rotina preconizada, deixei cair a pina e a agulha no espao que ficava entre as pernas do paciente. A enfermeira assistente apressar-se-ia a retir-las. Entretanto agarrei nas pontas do fio e dei um n firme. S depois olhei para Strauss. Importa-se de cortar, Strauss? perguntei. Este moveu-se sem responder, cortou o fio e manteve os olhos fixos na inciso. Foram colocadas mais dez suturas, de modo semelhante, rapidamente e sem palavras pelo meio. Depois de colocar um penso muito fino sobre a ferida que acabara de ser cosida, virei-me para Strauss. Porque no escreve voc as ordens ps-operatrias? Algum dia ter de o fazer. Dou-lhe uma vista de olhos depois de mudar de roupa. Depois irei apresent-lo aos seus pacientes. Okay? Okay disse, finalmente, em tom neutro. Tambm posso prossegui dar-lhe algumas indicaes sobre suturas e ns, se quiser. Strauss no proferiu palavra. Que tipo este, pensei. Se j est farto, vai ter um ano muito comprido pela frente. Mas o problema era dele e aquela atitude no me preocupou durante muito mais tempo; tinha mais que fazer. Deixando cair as luvas no cesto da roupa suja que estava atrs da porta, sa da sala de operaes pela ltima vez na qualidade de mdico interno, sem a mnima sensao de nostalgia. De fato, at estava eufrico. Sentia que tinha cumprido o meu tempo e estava pronto para passar fase de residente; perfeitamente pronto. A prtica da medicina encontrava-se, finalmente, vista. Ao seguir pelo corredor da rea de cirurgia, comecei a pensar se iria comprar um Mercedes ou um Porsche. Sempre quisera ter um Porsche, mas aqueles carros tinham, vendo bem, algumas limitaes. Um Cadillac? Que carro mais obsceno! apesar de ser o favorito dos cirurgies. "Hrcules" tinha um e o "Superchato" tambm. De qualquer modo, estava mais inclinado para o Mercedes. A ementa chamava-lhes croquetes de vitela, mas, para ns, no passavam de almndegas-mistrio; o ketchup era o antdoto. Como acontecia na grande maioria das cantinas dos hospitais, tambm ali a comida exigia uma enorme imaginao e uma tremenda boa vontade da parte do comensal. Se a lista dizia vitela, o melhor que havia a fazer era uma pessoa apegar-se tenazmente idia de que era mesmo vitela, apesar de qualquer evidncia em contrrio relativamente ao gosto, textura e aparncia. Era igualmente vantajoso ignorar qualquer conhecimento das prticas menos corretas do matadouro de modo a ter-se algum apetite e ser-se abenoado com uma conversa agradvel. Para ser justo, penso que a cozinha da cantina do hospital do Hava at nem era muito m comparada com as que tivera oportunidade de experimentar nos hospitais de Nova Iorque durante a escola mdica. No entanto at mesmo no Hava a cozinha valiase, ocasionalmente, de misteriosos pastis de carne picada e, como se tivessem querido contribuir para a celebrao da minha sada, tinham escolhido aquela noite para servir vitela, um dos pratos de que eu mais gostava de falar. Alm disso, eu ainda estava de turno. Mesmo assim, a refeio foi para mim um autntico banquete. Era a minha ltima noite como interno e j me encontrava com um p fora do campo de batalha. Strauss estaria, sem dvida alguma, na primeira linha de defesa se e quando a batalha comeasse. O clima que reinava na sala de jantar era agradvel. Por entre as aberturas das persianas corridas, que estavam viradas para sudoeste, o sol espreitava lanando

pequenas faixas refrescantes de luz que se espalhavam pela sala. Partculas de poeira danavam no ar, por entre os feixes dourados de luz, fazendo lembrar bactrias vistas ao microscpio. Uma comparao mesmo prpria da mente de um mdico. Uma das desvantagens derivadas de um treino tcnico muito profundo como o que feito em medicina, e a de que a nossa mente analisa todas as coisas baseada na sua experincia tcnica. A poeira poderia ter feito lembrar, de igual modo, peixes no oceano ou aves no cu. Mas, para mim, pareciam bactrias numa anlise de urina. ramos um grupo e estvamos sentados numa enorme mesa redonda, colocada perto da janela. Tinha Strauss minha esquerda logo a seguir a Jan, que estava a meu lado. Num contexto social, longe dos terrores da sala de operaes, este mostrava-se tudo menos calado e reservado, como a princpio o classificara. Para dizer a verdade, falava animadamente e de forma, digamos, litigiosa. Parecia discordar de tudo o que eu dizia, quer se tratasse de automveis, medicamentos ou de medicina em geral. Como muitas vezes acontece, a conversa acabou por incidir, inexoravelmente, na questo da assistncia mdica nos Estados Unidos. Havia mais seis ou sete pessoas mesa, para alm de Strauss, Jan e eu, mas por qualquer razo, tinham preferido, j desde o incio da refeio, escutar em vez de participar, limitando-se a comer e a beber o caf em silncio, deixando-nos entregues nossa tagarelice. A nica participao a que se permitiam era uma ou outra gargalhada ocasional de incredulidade, acompanhada de muito rolar de olhos e acenos de cabea, demonstrando o ridculo do que acabara de ser dito. Obviamente, no se propunham contribuir com nada de concreto ou relevante. Comecei a ignor-los e a concentrar toda a minha ateno em Strauss, que ia voluvelmente lanado de vento em popa nas suas afirmaes. A nica maneira de a assistncia mdica poder ser igualmente distribuda de modo a que todos possam usufruir dos seus benefcios reestruturar todo o sistema dizia Strauss, erguendo alternadamente as mos abertas ou baixando-as de modo a reforar os pontos que achava mais importantes. Quer dizer que s deitar para o lixo o presente sistema de mdicos, hospitais, etc, e tentar algo novo? perguntei. exatamente isso. Acabar com tudo isso. Sejamos realistas. A medicina est muito atrasada em termos de organizao e distribuio da assistncia. Pense na evoluo que a tecnologia conheceu nos ltimos quinze ou vinte anos. E a medicina, mudou? No. Claro que estamos de posse de mais dados cientficos, mas isso no ajuda o homem da rua. Os benefcios vo para os gatos gordos que podem recorrer aos recmdescobertos exames de isoenzimas, assistncia mdica em qualquer hora do dia, a tudo quanto novidade. E o pobre tipo do gueto? Esse no leva nada. Sabia que h quarenta milhes de americanos que nunca viram um mdico nos dias da sua vida? Nem sequer esperou pela resposta, continuando o seu ataque, cada vez mais inclinado para a mesa. Tinha toda a convenincia em no parar porque quarenta milhes parecia-me um nmero diabolicamente elevado e queria esclarecer melhor a questo. Alm disso, que poderia aquele nmero representar, diante do conhecimento comum de que inmeros americanos passavam, literalmente, fome? De que servia uma medicina sofisticada se as pessoas no comiam o suficiente? Mas a estatstica perdeu-se no prosseguimento da conversa. O que temos uma cambada de mdicos vendedores ambulantes que andam s voltas de carrinho de mo em plena era espacial. E a culpa deles mesmos! Essa agora, espere um segundo! disse eu. No podia permitir aquela generalizao. As coisas podem no estar muito boas, mas h mais dedadas na torta.

 Exato, muitas dedadas de mos ricas e gananciosas. Quero com isto dizer que, quando a assistncia mdica, m como , consome sete por cento de setenta mil milhes de dlares por ano; mais que certo que existam muitas partes interessadas. Mas o fato que, nos Estados Unidos, os mdicos que fizeram o sistema e so eles que o governam. Fazem-no em relao aos hospitais, s escolas mdicas e maior parte das investigaes. E, o que ainda mais importante, so eles que controlam o fornecimento de mdicos. E que me diz das companhias de seguro mdico e dos laboratrios farmacuticos? Companhias de seguro? Bem, as mos dessa gente tambm no andam muito limpas, mas, seja como for, no interferiram na relao mdico-paciente, penso eu que com receio da Associao dos Mdicos Americanos. Ou seja, se uma companhia fizesse demasiada presso, a Ordem poderia, possivelmente, recusar-se a tratar dos doentes dessa companhia. Oh, seja razovel, Strauss. Olhei em volta em busca de apoio, mas ningum mo concedeu, com exceo de Jan, que anuiu vigorosamente. Pensa ento que a AMA no era capaz de fazer uma coisa dessas? inquiriu Strauss. No me parece. Ah, Ah, meu amigo! Est a par da gloriosa histria da Associao? A que que se refere? Sei algumas coisas dessa organizao O certo que estava longe de me poder considerar uma autoridade no assunto, por um lado porque fora tema ignorado na escola mdica, por outro porque, bem, porque tambm no me interessara muito. Que quer dizer com a afirmao de que sabe algumas coisas sobre a Associao? membro dela? Bem, mais ou menos. Sabe, ns, internos e residentes podemos inscrever-nos, com algumas limitaes contudo. Foi o que eu fiz. Mas no tenho participado em nada. Quero dizer, no fui a nenhuma reunio, no votei ou tive qualquer papel ativo. A tem um dos problemas. membro dessa organizao. Faz parte das suas estatsticas. Eles gostam de considerar todos os seus associados ao mesmo nvel, mas uns so mais ativos do que outros. Mas a Associao afirma que representa uns duzentos mil mdicos de todo o pas, e sabe que mais? Que mais? Strauss, dava, sem dvida, a impresso ntida de quem sabia o que estava a dizer. Os nmeros que apresentam so fictcios. Em muitos estados, sabe-se que o mdico obrigado a associar-se organizao mdica local se quer usufruir dos privilgios hospitalares e depois disso surge a inscrio compulsria na AMA. E pensa que a maior parte desses mdicos se preocupa ou sequer quer saber o que se passa nessa organizao? Pois bem, creia que se esto perfeitamente nas tintas. Dizem a si mesmos que tm mais que fazer. Ou talvez tenham o pressentimento, embora no o examinem com muito cuidado, de que a Associao no passa de um antro de politiquices. Nisso tm razo. Mas a sua apatia no impede que a adorvel AMA se insurja em Washington, afirmando que fala em nome de duzentos mil mdicos; mdicos estes que nunca contradizem esta alegao. Para piorar ainda mais as coisas, no s fala por eles, como tambm desbarata o dinheiro que lhes pagam, a seu bel-prazer. J se deu conta de que o oramento da Associao dos Mdicos Americanos de mais de vinte e cinco milhes de dlares anuais, pago em dividendos pelos mdicos que dizem no ter tempo para saber do que feito a esse dinheiro?

 Est bem, est bem! Fui obrigado a interromp-lo porque estava a ficar demasiado excitado. Dois dos residentes que estavam do outro lado da mesa levantaram-se, deixaram cair os guardanapos nos respectivos tabuleiros e saram. J passava das seis e tinha de ir fazer as malas. No podia, contudo, ignorar Strauss. Naquele momento ele inclinava-e para mim, literalmente em frente de Jan, que tivera de se afastar para trs a fim de o acomodar. Via-lhe os olhos. Era um tipo franzino, nervoso, e estes ardiam-lhe de entusiasmo. Strauss, no vou defender a Associao, mas toda a gente sabe que ela tirou a medicina do caos em que se encontrava no sculo dezenove. Antes do relatrio Flexner, em 1910 o treino mdico era uma brincadeira e foi a AMA que tomou sobre os seus ombros o fardo de alterar essa situao. Sim, claro que foi. Mas permita-me que lhe pergunte, com que propsito? Que quer dizer? Com certeza que para retificar uma situao lamentvel. Talvez, mas tambm para servir os seus prprios fins. Que fins? Por um lado, diminuram o nmero de escolas mdicas e melhoraram-nas, com isso tambm concordo. Mas, ao mesmo tempo passaram a ter o controle absoluto sobre essas mesmas escolas. Traduzido, significa que so eles que mandam no fornecimento de mdicos e no curriculum destes. Por outras palavras, determinam a via social em que os mdicos em potncia se devem inserir e certificam-se de que os estudantes se acomodam ordeiramente ao sistema. Eu quero ser mdico e se houvesse alguma outra maneira de o conseguir, no hesitaria em faz-lo. Mas mudando de assunto, diga-me, Peters, tem conscincia do fardo histrico que recai sobre as suas costas ao entrar para a classe mdica da Amrica? Aonde que quer chegar? Os dois ltimos colegas que tinham continuado silenciosamente sentados em frente de ns, arrastaram ruidosamente as cadeiras para trs e foram-se embora. Somente Strauss, Jan e eu tnhamos ficado na mesa repleta de pratos sujos e tabuleiros desarrumados. Strauss no desanimou, continuando a falar. A Associao responsvel por um recorde quase inigualvel de fracassos no apoio, quanto mais na iniciao, de mudanas sociais progressivas. Por exemplo, a AMA insurgiu-se contra o fato de os Servios de Sade Pblica darem vacinas contra a difteria e instalarem clnicas para o tratamento desses casos. Tambm o fez em relao Segurana Social, ao seguro voluntrio de sade e a formao de grupos de trabalho. At chegou a classificar esses grupos, em plenos anos trinta, de sovietes! Tentei falar, dizer alguma coisa, mas no conseguia expressar-me. H mais alguns aspectos. Sabia que a AMA lutou contra a criao de chefes hospitalares a tempo inteiro e tambm contra a atribuio de emprstimos com juros baixos, por parte das autoridades federais, aos estudantes de medicina? Que me est a dizer? Ia a interromper Strauss quando este recomeou a sua lista de injustias, e foi nessa altura que as palavras "emprstimos" e "estudantes" se ligaram urna outra na minha cabea. Ainda tinha em meu poder uma quantidade razovel de dinheiro dos meus tempos de escola mdica. Eles eram contra os emprstimos aos estudantes de medicina? perguntei. Pode ter a certeza. Por qu? Na verdade, no estava surpreendido.

 Deus sabe porqu! Penso que, desse modo, a medicina ficaria fora do alcance das classes menos privilegiadas. Mas um dos aspectos mais caricatos desta questo residiu no fato de, depois de estas reformas terem sido aceites pela sociedade e de a Associao ter sido forada a submeter-se s mesmas, esta organizao tentar, mais tarde, fazer acreditar que esteve na sua origem. Faz-nos lembrar a mudana de discurso de Orwell em 1984. Em minha opinio, o sistema deve ser todo alterado. E o governo tem de o fazer. Muito bem, Strauss. Est a querer dizer-me que depois de todos estes anos de estudo e de todos aqueles que ainda tem pela frente, est disposto a trabalhar para o governo federal. o que me parece que est a sugerir. No necessariamente. Quero apenas dizer que os mdicos tiveram o controle na mo e estragaram tudo. A sua responsabilidade muito mais vasta, no se limita prtica solitria da medicina que cada um leva a cabo, tratando de urna sucesso de pacientes individuais. Tm de ter em considerao a totalidade dos cuidados de sade, incluindo o tratamento do homem que vive no Harlem e da famlia que est em Appalachia... to importante cuidar deles como do presidente da direo do maior grupo de empresas. Se os mdicos voltarem a falhar, o governo tem obrigao de tomar conta das coisas e fazer com que a profisso mdica desempenhe o papel para que foi criada. No fim de contas, todos os cidados tm direito assistncia mdica. muito fcil de dizer, mas no estou muito certo de que seja assim. Se virmos bem, se algum se lembra de tirar o seu mdico da cama s quarto e meia da madrugada porque est com uma dor de cabea e tem o direito de recorrer a assistncia mdica, ento onde est a defesa dos direitos do mdico? Quero dizer, at que ponto os direitos de uma pessoa podem colidir com os de outra? Claro que o mdico tambm tem os seus direitos. E outra coisa, se o rim de algum deixa de funcionar, mas todas as mquinas que podero suprir essa falha estiverem ocupadas, quem que o paciente deve processar? A sociedade no pode ter um rim artificial disponvel espera de cada cidado. O cerne da questo reside no fato de que os servios de sade so uma indstria que necessita de pessoas altamente especializadas e de equipamento sofisticado, requisitos que esto sempre em falta. No possvel prometer assistncia mdica para todos quando se dispe de recursos limitados. No discuto esse ponto, Peters. O governo federal definiu muito claramente que todos os cidados tm direito assistncia mdica atravs da publicao da Lei da Assistncia Mdica e Medicamentosa. Bem, Strauss, gostaria de voltar a falar consigo depois de terminar a sua fase de internato. At agora foi estudante e, verdade seja dita, se as coisas se tornassem muito ms, poderia ter-se ido embora e deixar a responsabilidade para os outros. Gostaria de saber se ainda manter a mesma opinio quando chegar ao fim deste seu ano como interno. Jan. estivera a ouvir atentamente, partilhando, mais ou menos, dos meus pontos de vista, pensei. Mas decidiu intervir. Podem existir alguns problemas em relao distribuio dos cuidados mdicos, Strauss, mas no h dvida de que temos a melhor medicina que se pratica no mundo. Toda a gente o sabe. Um disparate retorquiu Strauss. Veja o exemplo da mortalidade infantil. Os Estados Unidos esto em dcimo-quarto lugar na preveno da mortalidade infantil, em dcimo oitavo na longevidade e em dcimo segundo... Espere um pouco, Strauss! disse, recusando-me a ouvir mais uma estatstica que fosse.

 Est s em dcimo-quarto lugar na preveno da mortalidade infantil!? perguntou Jan. Strauss tocara-lhe num ponto fraco. Jan, querida, no te deixes enganar pelas estatsticas. Pode-se provar quase tudo atravs das estatsticas se se lida com diferentes amostras de populao. Podem ser manipuladas. Strauss, quer ns estejamos em dcimo-quarto lugar ou no na preveno da mortalidade infantil, isso tem provavelmente, mais a ver com o fato de mantermos registros to rigorosos neste pas. Muitos pases limitam-se a faz-los em relao aos nascimentos nos hospitais. Todos os restantes no so registrados. Na Sucia so muito bons a fazerem registros retorquiu Strauss com um sorriso. Bem, nesse caso existem diferenas nos registros relativamente altura em que, no decorrer da gestao, a criana nasceu... quer se tenha tratado de morte da criana nascena, de morte in tero, ou de casos em que os bebs morreram algum tempo depois de nascerem. A forma como os pases fazem as suas estatsticas pode basear-se nos fatos mais diversos. Strauss levantou as mos para mim, baixando-as lentamente ao mesmo tempo em que continuava a falar. Tambm no discuto consigo em relao aos detalhes tcnicos das estatsticas. Mas no deixa de ser verdade que os Estados Unidos no esto frente deste tipo de preveno. E estarmos em dcimo-quarto lugar uma posio muito baixa se tivermos em conta que, na maior parte das reas ligadas tecnologia e aos servios, ocupamos um lugar cimeiro. Para falar com franqueza, a Sucia faz-nos parecer bastante doentes. A Sucia no se debate com os mesmos problemas que ns referi friamente. Eles tm uma populao relativamente pequena e homognea, enquanto os Estados Unidos so uma sociedade pluralista. Quer dizer que acha que num sistema de segurana social socialista como o da Sucia que est a resposta para sanar todas as enfermidades sociais e a soluo para o nosso caso? Parece ser melhor em relao mortalidade infantil, assistncia dentria das crianas e longevidade. Isso quer dizer que possvel melhorar a assistncia mdica deste pas e a ns que cabe zelar pela concretizao dessa possibilidade. Bem, no se pode criar uma indstria de servios como o caso da medicina, a partir do nada, nem se pode legislar a atitude das pessoas. Estas so lentas e tm a ver com as foras educacionais organizadas para lidarem com elas. As pessoas esto habituadas relao mdico-paciente. No me parece que a queiram ver alterada. Por amor de Deus, Peters, quarenta milhes de pessoas nunca viram um mdico! Como podem elas assumir semelhante atitude? Que desculpa mais despropositada, homem! Sim, e tambm muito tpica de vocs. Os seus colegas e vocs arranjam sempre um nunca acabar de argumentos para defenderem a permanncia do atual sistema. E por isso que toda a estrutura tem de levar uma volta. Caso contrrio, o problema continuar a ser camuflado por compromissos parecidos com os da Lei da Assistncia Mdica e Medicamentosa. Quer ento dizer que at mesmo essas medidas podem ser consideradas nocivas? Strauss, voc um espanto. Segundo o seu ponto de vista, tudo negro. Pois eu penso que essas leis so bastante boas. O nico problema que encontro nelas o de que do cabo do sistema de aprendizagem porque possibilitam a passagem da maior parte dos pacientes que comeamos a tratar, para os mdicos particulares, que no permitem que os internos e os residentes levem esse tratamento at ao fim. Como resultado, perdemos, efetivamente, um vasto nmero de pacientes, em termos de aprendizagem.

 Bem, isso muito importante disse Strauss. E um indicativo da soluo "tapa-buracos" que foi dada para resolver uma das mais gigantescas enfermidades sociais. No entanto, o maior problema destas leis de sade tem sido o de atirarem mais dinheiro para a rua, criando mais procura. E se a procura aumenta e o fornecimento estabiliza, os preos sobem. Claro, claro. J estava a comear a ficar aborrecido com tudo aquilo. O que voc pretende mais um governo monoltico e burocrtico, com milhares de gabinetes de arquivo e datilgrafas. Mas isso iria custar muito dinheiro. Os gastos com a sade iriam, provavelmente, subir, no descer, com to grande burocracia. E suponho que consideraria a hiptese de salrio igual, dado pelo governo a todos os mdicos. Seria muito interessante! A sociedade iria ter um choque quando descobrisse o dinheiro que preciso para pagar a esses mdicos. A retribuio financeira teria de aumentar assim que o mdico rapidamente aprendesse a comparar-se com algum como um piloto de avies sindicalizado, que consegue tirar cerca de quinze mil dlares por ano fazendo sessenta horas mensais. Quantos mdicos no seriam precisos para o sistema de assistncia mdica se cada um deles trabalhasse sessenta e cinco horas por ms? Alm disso, quereriam reformas beneficiadas... Isso um... Deixe-me s acabar, Strauss. Pondo todos os mdicos a ganhar um salrio teria outras conseqncias mais sutis. Quando se aufere um salrio, independentemente da profisso que se tenha, esse fato influencia a motivao de cada um relativamente a situaes marginais. Olhe, Strauss, se voc for obrigado a sair da cama s quatro da manh, com certeza h de querer algo mais em troca desse sacrifcio do que a satisfao que este lhe possa proporcionar. Muitas vezes no se obtm mesmo qualquer satisfao. Muito pelo contrrio. No fim de contas, o homem do lixo, o piloto de avies, todos os outros trabalhadores tm horrios de trabalho. Pois bem, o mdico tambm vai querer t-los, ou no se levantar da cama Deixe-me pr a questo de outra maneira. Quando se trabalha por um salrio, tem-se horas especficas para tal. Em chegando as cinco da tarde, o mdico assalariado lava as mos e vai para casa. Acontece que sei, pondo de parte muita mitologia, que o mdico um ser humano como os outros. J posso falar? perguntou Strauss. Faa favor. So vrios os aspectos a considerar. Nmero um: o servio nacional de sade no a nica resposta para a soluo deste problema. Est a tirar concluses demasiado apressadas. Servios de sade privados pr-pagos, por exemplo, tambm dariam bom resultado, para alm de melhorarem, por outras razes, a produtividade individual de cada mdico. O papel do governo poderia limitar-se ao de garantir a cobertura de todos os cidados, de uma maneira ou outra, pelo menos com medidas de sade bsicas de boa qualidade. E nmero dois: no concordo consigo no que se refere s horas de sono dos mdicos. Penso, no entanto, que o mdico teria de ser pago segundo uma escala que o favorecesse comparativamente que rege os pilotos, canalizadores ou quem quer que seja, tendo em conta a durao e o investimento feito no seu trabalho, assim como as horas mortas em que poderia ser forado a trabalhar. Mas acima de tudo isso, creio que o prazer profissional de praticar medicina lev-lo-ia a ultrapassar os escolhos do dia a dia, especialmente se estivesse liberto do fardo da papelada e de outras tarefas menores que absorvem vinte e cinco por cento do tempo do mdico que trabalha sozinho. Alm disso... Doutor Peters, doutor Peters!

O meu nome soou subitamente nos altifalantes que estavam junto ao teto, ecoando na sala. Strauss prosseguiu ao mesmo tempo em que eu me dirigia para junto do telefone que estava ao canto. Alm disso, a prtica em grupo continuou ele permitiria uma maior possibilidade de sucesso. Os mdicos podiam manter o olho uns nos outros, dar conselhos e fazer crticas sempre que fosse necessrio. E registros. Os registros sobre os pacientes seriam muito melhores porque os organizariam e completariam quer o doente consultasse um mdico de clnica geral ou um especialista. Strauss j estava literalmente a gritar quando peguei no auscultador e comecei a falar com a telefonista. Nessa altura, graas a Deus, acabou por se calar. A telefonista ps-se em contato com o andar da cirurgia particular, e depois tive de esperar que procurassem uma enfermeira ligada queles servios. Doutor Peters. Sim. Temos uma doente do doutor Moda que est com problemas respiratrios. Ele quer que a senhora seja vista por um interno. Preciso tambm que me indique um laxante para dar a um dos pacientes do doutor Henry. Qual a gravidade da insuficincia respiratria? No muito grande. Sente-se melhor quando se senta. O doutor Strauss segue imediatamente para a. Obrigada. Voltei para a mesa, reparando ento que a cafeteria se esvaziara por completo, com exceo de ns dois. O sol desaparecera e a iluminao da sala passara dos acentuados contrastes entre luz e sombra para uma luminosidade difusa. O ambiente estava tranqilo, e eu sentia-me possudo pelo mesmo esprito, sobretudo porque sabia que podia mandar Strauss ver a senhora do problema respiratrio e tratar do caso da obstipao intestinal. Peters. Sim? A voz que soava do outro lado da linha parecia-me familiar. Daqui fala Strauss. No teria adivinhado. No h dvida de que parece muito atarefado. No o consigo evitar. Anda tudo mal-disposto por aqui disse Strauss. Olhei de relance para o relgio. Eram dez e meia. Ento, qual o problema agora? perguntei. Morreu uma senhora de idade. Tinha cerca de oitenta e cinco anos. Era uma doente particular da enfermaria F, segundo andar. Fez-se uma pausa. No disse nada, espera de que me fornecesse mais informaes sobre o problema. A respirao de Strauss era audvel na outra extremidade do fio, mas, aparentemente, no tinha nada para acrescentar. Resolvi ser eu a falar. Okay, ento a senhora de idade morreu. Qual o problema? No nenhum problema, para dizer a verdade. Mas importava-se de vir at aqui e dar uma olhadela? Olhe, Strauss ela morreu, no ? Sim. Ento que espera da minha pessoa? Algum milagre? Fez-se, mais uma vez, silncio, desta vez breve. Pensei que talvez quisesse v-la. Muitssimo obrigado, meu velho, mas creio que vou privar-me desse gosto. Peters?

 Ainda estou aqui. Que fao agora em relao famlia e aos papis que so precisos? Basta perguntar s enfermeiras. Elas j so velhas nesses pormenores. S tem de assinar alguns papis, avisar a famlia e mandar fazer uma autpsia. Uma autpsia? A sua surpresa era genuna. Claro, uma autpsia. Acha que o mdico particular quer uma autpsia? Bem, sem dvida de que devia quer-la. Se no concordar, pode recus-la. Mas devemos fazer autpsias a todas as pessoas que falecem no hospital. Pode no ser fcil, mas tente convencer a famlia. Est bem, vou tentar, mas no garanto nada. No estou muito certo de conseguir obter muito entusiasmo pela execuo da autpsia. Tenho a certeza de que no vai ter problema. Ciao. Ciao. Ele desligou e eu fiz o mesmo, lembrando-me, mais uma vez, da mulher amarelada que vira na sala de autpsias da escola mdica. Jan interrompeu os meus pensamentos. Algum problema? perguntou. No. Morreu uma pessoa e o Strauss quer que eu lhe diga o que deve fazer. Vais at ao hospital? Ests a brincar comigo, no? Jan estava a ajudar-me a fazer as malas. O certo que isso era apenas uma desculpa para ela estar ali, embora no precisssemos de desculpas para estar juntos; ultimamente tnhamos vindo a passar bastante tempo um com o outro. De tal maneira que... de fato, a minha partida iminente lanava uma sombra no ambiente, apesar de termos desistido de falar no assunto. A questo estava em saber se eu a amava o suficiente palavras dela para lhe pedir que fosse comigo para o servio de residncia. J o sugerira vrias vezes, mas algo me impedia de lho pedir diretamente. O que andara a tentar dizer-lhe era que desejava que ela tomasse aquela iniciativa sem a minha interferncia direta. No queria arcar com a responsabilidade de a forar a seguir-me. Era assim que eu encarava as coisas. Ento e se resolvssemos separar-nos quando eu passasse a residente? Influenciando-a a sair do Hava, ver-me-ia, nesse caso, preso por uma espcie de compromisso, coisa que no estava disposto a fazer. Sem dvida que desejava que ela me acompanhasse, mas de sua prpria e livre vontade. Jan e eu tnhamos passado bons bocados juntos. Fora um alvio construir uma relao significativa com ela depois do triste desfecho do romance com Karen Christie e do caso do seu namorado paranico. Embora tivesse voltado mais algumas vezes a casa de Karen aps a confrontao com o referido indivduo, acabei por me dar conta de que no podia continuar a v-la. Portanto, acabei com a ligao. O telefone voltou a tocar. Fala da morgue disse, atendendo em voz alta e prazenteira. voc, Peters? Ao seu servio, Strauss, meu velho. Por momentos conseguiu confundir-me. No faa isso disse Strauss. Est bem, tentarei ser mais delicado. Que se passa? Recebi uma chamada das urgncias. Est l um doente com problemas respiratrios. A enfermeira disse que talvez seja edema pulmonar. Parece que o mdico particular est com receio de uma falha cardaca.

 Que eficientes que so as enfermeiras ali, no , Strauss? O diagnstico j vem feito e tudo. Servio impecvel, hein? E concorda com elas? Ainda no vi o doente. Vou s a caminho, mas queria falar consigo para o caso de querer estar presente quando a ao comear. Strauss, a sua cortesia enternece-me. Mas por que no corre at l, v o que se passa e depois me d uma apitadela? Okay! J volto a ligar para si. timo. Jan estava entretida a tentar enfiar a minha livraria mdica nas vrias malas. Tratava-se, obviamente, de um problema deveras complexo que requeria uma soluo igualmente drstica. Tinha de me decidir sobre os livros que deixaria ali; uma verdadeira tragdia para qualquer mdico. H muita gente que gosta de livros, mas os mdicos idolatram-nos e mantm com eles uma relao quase sensual. Se o mdico minimamente realista, depressa se apercebe de que nunca poder competir com a sua biblioteca. Conseqentemente, rodeia-se de livros, procurando avidamente razes para comprar um novo texto, quer j o tenha lido ou no. Os livros so o cinto de segurana do mdico e aqueles eram o meu. A simples idia de ter de me desfazer dos meus livros parecia-me um sacrilgio, at mesmo dos de carter psiquitrico, ou do de urologia. Esta especialidade no era propriamente a minha preferida. No raras vezes interrogava-me como era possvel haver gente que conseguia passar o resto da vida s voltas com o sistema hidrulico do ser humano, embora a rea no devesse ser m porque os urologistas davam mostras de ser na generalidade um grupo razoavelmente feliz. O melhor reportrio de piadas obscenas era, sem dvida, o deles. Nunca conseguirs meter todos estes livros aqui disse Jan. Tem de ser. Vamos tir-los todos e comear tudo do princpio. Tentaremos at p-los de p em vez de os deitarmos. Fiz-lhe uma demonstrao, arrumando aproximadamente vinte e dois quilos de Psiquiatria num dos cantos da mala. Nessa altura o telefone voltou a tocar. Era Strauss; a sua voz tinha um tom de urgncia. Peters? Qual agora o problema, Strauss? Lembra-se do doente de que lhe falei h pouco, aquele que as enfermeiras pensaram que sofria de um edema pulmonar? Que se passa com ele? Bem, acho que ele tem realmente um edema pulmonar. Quando lhe aplico o estetoscpio oio rudos em ambos os pulmes. Okay, Strauss. Acalme-se. J telefonou ao residente de servio? Sim. E que disse ele? Disse para eu ligar para si. Oh, belo!! Hesitei, refletindo um pouco no que devia fazer. O doente particular? Sim, de um tal doutor Narru, ou coisa parecida. um caso para aprendizagem? No sei. Bem, ento tente saber se , Strauss.

Tamborilei um pouco com a ponta do estetoscpio enquanto Strauss abandonava a linha para se ir informar. Jan estava a obter bons resultados com os livros; comeava a ter esperanas de os poder levar a todos. Sim, um caso para aprendizagem, Peters disse Strauss. J telefonou ao doutor Narru? Claro. Foi o que fiz em primeiro lugar. E que foi que ele disse? Que avanasse e fizesse o que fosse necessrio e que depois passava por c, quando fosse fazer a ronda da tarde, a fim de ver a evoluo do caso. Puxei o relgio para cima com a ponta do indicador, de modo a poder ver o mostrador. Eram sete e cinco. Ou Narru estava a gozar com Strauss ou fazia realmente rondas tarde pelos seus doentes; muito tarde. De qualquer modo, no podia saber ao certo. Jan, porque no metes esse compndio de cirurgia antes daqueles, que so mais pequenos? S um minuto, Strauss. aquele grande de capa vermelha. Esse mesmo. Talvez coubessem todos. Muito bem, Strauss, a que tipo de interveno cirrgica foi o tipo sujeito? No tenho bem a certeza, mas creio que foi ao abdmen. Tem um penso na barriga. Tem febre? Febre? No sei. Est a tomar digitlcos? No sei. Olhe a nica coisa que fiz foi auscultar-lhe o peito. Ouviu-lhe o corao? Mais ou menos? Estava com arritmia? No tenho bem a certeza disse, evasivamente. Santo Deus, aquilo que era um tipo zeloso! pensei, sarcasticamente. Strauss disse-lhe quero que examine o paciente tendo em conta trs diagnsticos provveis: edema pulmonar, que provavelmente o que ele tem, embolia pulmonar e pneumonia. Leia o quadro de registros e inteire-se da sua histria cardaca. Entretanto, mande fazer uma radiografia ao trax, uma anlise completa ao sangue, outra urina, um electrocardiograma e tudo o mais que achar necessrio. O homem est semi-inconsciente? No, est perfeitamente desperto. Okay, ento d-lhe dez miligramas de morfina e ponha-lhe uma mscara de oxignio. Mas esteja muito atento reao dele quando lhe der o oxignio. Assim que tiver tudo organizado, telefone-me. Ia a desligar quando me lembrei de outra coisa. Mais um pormenor. Se ele nunca tomou digitlicos, pelo menos nas ltimas semanas, d-lhe um miligrama de digitoxina por via intravenosa. Mas ponha-a a correr lentamente. Strauss, voc ainda est a? Sim, estou aqui respondeu. Devemos ter de lhe dar tambm um diurtico para o livrarmos do excesso de lquidos. Experimente vinte e cinco miligramas de cido etacrnico. Sabia que aquela droga era to forte que at era capaz de fazer uma pedra urinar. Forte... o meu medo dos diurticos fez-me pensar duas vezes e mudei de idia. Vendo melhor, no administre o diurtico at estarmos certos do diagnstico de edema pulmonar. Se est com uma pneumonia, no iria ajudar muito.

A velhota do cancro, que eu tinha morto com aquele diurtico, veio-me, por momentos, lembrana; morrera de pneumonia. Finalmente, desliguei o telefone. Ei, Jan, que maravilha! Ela conseguira enfiar todos os livros menos um, de pequenas dimenses. O volume que sobrava era um daqueles que costumvamos deitar fora; fora oferecido por um laboratrio de farmacologia na esperana de convencer algum de que os seus medicamentos eram a resposta para todos os males patolgicos. Nunca o lera nem tencionava vir a faz-lo. No entanto, acabei por met-lo, fora, numa das minhas malas de raspa, j cheias. Com exceo dos meus materiais de barba e de outros artigos de toilette, das roupas que iria envergar de manh, da bata e restantes peas que naquele momento tinha vestidas, toda a minha tralha j estava emalada. Combinara j tudo com os carregadores que viriam ali buscar as coisas de manh; as malas de viagem iriam comigo, juntamente com a bagagem de mo que inclua um pedao de coral. At que, finalmente, tudo ficou pronto. Podia agora descontrair e gozar o que me restava do ano passado no Hava. Jan escolheu aquele momento para deixar cair a bomba, ao informar-me de que ia para casa. Precisamente na altura em que nos podamos esquecer da arrumao das coisas e estar juntos que ela decidia ir-se embora. Obviamente, aquele gesto foi uma verdadeira surpresa para mim na medida em que calculara, alegremente, que dormiramos juntos como era habitual. Caramba, Jan, por que te vais embora? Por favor, fica. a minha ltima noite. Precisas de dormir bem antes da viagem disse, evasivamente. Ora esta! Fiquei a olhar, espantado, para o rosto bronzeado. Ela mirava-me, inclinando ligeiramente a cabea para o lado, "flirtando" conhecedoramente e querendo dar-me a entender que a sua sbita timidez se baseava em complicadas razes femininas. Contudo, eu no tinha bem a certeza de que o problema fosse esse. Poderia compreender o desejo dela de partir se reconhecesse que no queria submeter-se ao artifcio da rotina da ltima noite, de no desejar reduzir o nosso ato de amor a uma espcie de ritual destinado a celebrar uma era que ia acabar. Era possvel que, de qualquer forma, a intimidade de que habitualmente gozvamos no estivesse presente, na medida em que estaramos preocupados com outras coisas. Beijou-me ao de leve, disse-me que me veria de manh e saiu sem fazer rudo. Tudo aconteceu demasiado rapidamente para que eu pudesse reagir. Ainda pensei em dar um pulo s urgncias, embora, no fundo, no tivesse vontade nenhuma de o fazer. Ao lembrar-me de que Strauss tinha de comear a desenvencilhar-se sozinho, acabei por resolver no ir. De modo que fui tomar um duche e mal tinha acabado de me meter debaixo dele quando o telefone tocou. A nica maneira de no ouvir o som estridente era meter a cabea mesmo debaixo do chuveiro. No devia ter deixado a porta da casa de banho aberta. Mas o hbito venceu. Ao quarto toque, voltei para o quarto e peguei no auscultador, ao mesmo tempo em que, no cho, em volta dos meus ps, se formava uma poa de gua, que se ia estendendo rapidamente para a periferia. Peters, daqui Strauss. Que surpresa! Sabe uma coisa? Tenho boas notcias! Estou mesmo a precisar delas.

 Afinal o doente do edema pulmonar de que lhe falei est no servio mdico, no no cirrgico, e o interno j tomou conta do assunto. Mas ento a operao que lhe fizeram? perguntei, deveras surpreendido. No fez nenhuma operao. Pelo menos recentemente. O penso estava a cobrir uma colostomia a que foi submetido h alguns anos. Parabns, Strauss! Acabou de alcanar o primeiro sucesso clnico na qualidade de interno. Mas por que no fica por a mesmo? A no ser, evidentemente, que tenha mais alguma coisa para fazer. Desculpe, mas no posso ficar. Recebi uma chamada da cirurgia. Est marcada uma operao rtula. Acidente de automvel, suponho. Mas se quiser ir voc, eu posso ficar aqui. Uma patelectomia, um caso de ortopedia! J estava a comear a ter a noo exata do quo maravilhoso era ser residente e no interno. Imaginem o que poder mandar outra pessoa fazer uma patelectomia meia-noite! Uma verdadeira felicidade. No o privaria desse prazer por nada deste mundo, Strauss. V andando para se preparar. A cirurgia ortopdica fazia-me confuso. Antes de entrar para a escola mdica tivera sempre a iluso de que a cirurgia era uma cincia rigorosa e delicada. Depois viera o holocausto da minha participao num caso cirrgico onde se me deparou o mais grosseiro martelar, brocar e moer de ossos que alguma vez poderia imaginar. No apenas isso: a mutilao fora acompanhada de comentrios do gnero de "Tira um raios X aqui a isto para ver se descubro para onde foi o estupor do prego"; em seguida, depois de olhar para o resultado da radiografia, "Diabos me levem, deixei escapar completamente o fragmento da bacia. Vamos enfiar outro, mas desta vez melhor orientarmo-nos pelo umbigo". Semelhantes experincias depressa eliminaram a cirurgia ortopdica da minha lista de opes. Seguiu-se a neurocirurgia, pouco depois, ao ver o melhor cirurgio de Nova Iorque fazer uma pausa, no decorrer de uma interveno, para espreitar pelo orifcio que abrira no crnio de um doente, e perguntar: "Que aquilo cinzento-claro?" Ningum lhe soube responder; no fundo, estava apenas a falar com os seus botes, mas aquilo fora o fim da neurocirurgia para mim. Se ele ainda tinha dvidas depois de vinte anos de experincia, no havia esperana de que eu viesse alguma vez a aprender tudo. Guardados todos os livros, no me ficara nada para ler e, portanto, para adormecer mais depressa. Depois lembrei-me do livro do laboratrio farmacutico que pusera em cima de uma das malas de roupa. Fui busc-lo e voltei a instalar-me sobre a fresca almofada branca. O livro chamava-se, nem de propsito, A Anatomia do Sono. Passando uma vista de olhos pela contracapa, fiquei a saber que fazia publicidade a comprimidos para dormir. Abri-o ao acaso e comecei a ler. Tinha tanta coisa na cabea que consegui chegar ao fim da pgina antes de os olhos comearem a fechar-se. O toque estridente do telefone soou antes mesmo que tivesse tido oportunidade de comear um sonho decente. Arranquei o auscultador do descanso com o pnico do costume, como se a minha vida dependesse daquele gesto. Quando a telefonista me ps em contato com a enfermeira que pedira a chamada, j eu estava ciente das horas, do local e da pessoa em questo. Doutor Peters, daqui fala a enfermeira Cranston, da enfermaria F-2. Desculpe acord-lo, mas a senhora Kimble caiu da cama. Importa-se de vir examin-la, por favor? O mostrador luminoso do meu despertador informou-me de que estivera a dormir uma hora. Enfermeira Cranston, esta noite temos um novo interno. Chama-se Strauss. E se o chamasse para tratar desse problema?

 A telefonista j tentou informou-me mas o doutor Strauss est numa operao. Merda! Que disse, doutor? A paciente est bem? esquivei-me. Sim, parece no ter nenhum problema. O doutor vem? Resmunguei algo que podia ser considerado como uma afirmativa e desliguei. Pelos vistos, ainda no sara da fase de internato. At me colocar fisicamente distncia, haveria sempre mais um doente a cair da cama. Continuar deitado a pensar no assunto foi um erro. Voltei a adormecer. .Quando o telefone tocou de novo, reagi com o habitual pnico, interrogando-me sobre o tempo que estivera a dormir. A telefonista esclareceu-me: vinte minutos, disse; perspicaz como era, poupou-me o esforo de arranjar uma desculpa, sugerindo que talvez me tivesse deixado adormecer. Vendo bem, era uma coisa que acontecia a qualquer pessoa, at mesmo nas emergncias. Se no pousasse imediatamente os ps no cho frio, as hipteses que tinha de me levantar ruam estrondosamente. Durante uns tempos, o meu truque fora colocar o telefone a alguns metros da cama, de modo a ter de sair de dentro dela para atend-lo. Contudo, as chamadas em que se limitavam a perguntar-me o que se devia fazer em relao a determinados doentes eram tantas que acabei por voltar a colocar o telefone ao lado da cama. Depois da segunda chamada, pus-me imediatamente de p e vesti-me com rapidez. Com um pouco de sorte, estaria de volta cama dali a vinte minutos. O meu recorde era, no entanto, de dezessete. De novo as luzes fluorescentes do hall, as portas do elevador, as escadas em cu aberto; de fato, fiz o percurso at enfermaria F com o esprito completamente ausente. S comecei a funcionar conscientemente quando me encontrei diante da senhora Kimble. Como est, senhora Kimble? perguntei, tentando calcular-lhe a idade atravs do plido fulgor proporcionado pela luz de presena. Pareceu-me que teria uns cinqenta e cinco. Aparentava ser muito limpa e arranjada e tinha ar de pessoa extremamente meticulosa. O cabelo, entremeado de fios prateados, estava preso num carrapito impecvel. Sinto-me muito mal, doutor, muito mal disse. Aonde que se magoou? Bateu com a cabea em algum. lado ao cair? Santo Deus, no. No me aleijei absolutamente nada. Nem sequer ca verdadeiramente da cama. Sentei-me, apenas. No caiu da cama? No, senhor. Tinha acabado de voltar da casa de banho e estava a abaixar-me neste stio apontou para o cho, junto dos meus ps. Tentava tirar o meu livrinho de notas da mesa-de-cabeceira quando perdi o equilbrio. Bem, ento agora tente dormir um pouco. Doutor? Sim? Olhei para trs, pois j ia perto da porta. Importa-se de me receitar alguma coisa para os intestinos? J no funcionam decentemente h cinco dias. Olhe, vou mostrar-lhe. Estendeu a mo, com grande esforo, para a gaveta da mesinha-de-cabeceira e tirou de dentro desta um pequeno livro de notas de capa preta. Mas teve de se esticar de tal maneira para executar aquele gesto que fui obrigado a aproximar-me da cama e a agarrar-lhe o dorso com os braos. Olhe, doutor.

Abriu o livrinho e percorreu com o dedo uma lista de dias impecavelmente escrita. Cada um dos dias era seguido de uma descrio completa da sua atividade intestinal: forma, cor e esforo despendido. De sbito, o dedo deteve-se num dos dias. C est, o ltimo movimento normal ocorreu precisamente h cinco dias. At mesmo este j no foi como de costume, porque no veio castanho. Era verde-azeitona e s um, deste tamanho. Ergue a mo esquerda e, com o polegar e o indicador, definiu um crculo de cerca de um centmetro e meio de dimetro. Que poderia eu dizer-lhe que demonstrasse competncia e preocupao da minha parte e, o que era ainda mais importante, me fizesse sair airosamente daquela situao? Desviei os olhos do livrinho de apontamentos para o rosto da senhora idosa, tentando, debalde, encontrar uma resposta adequada. Resolvi passar a batata quente. Estou certo de que o seu mdico particular saber dizer-lhe, melhor do que eu, o que mais lhe convm tomar, senhora Kimble. Agora tente dormir mais um pouco. De volta ao posto das enfermeiras, assentei uma observao qualquer no registro, relativa queda; havia sempre que fazer uma referncia a estas "quedas." Depois iniciei a minha viagem de retomo cama que me esperava. "Bem, Strauss", ruminei, "quanto valeria um episdio destes no teu novo sistema? Prazer profissional, uma ova! A minha f nos avies muito limitada. Para ser sincero no acredito, verdadeiramente, no princpio da aeronutica. Mas tinha de admitir que o som dos motores Pratt & Whitney que me chegava aos ouvidos era vigoroso e firme. Ouvi-os ronronar suavemente ao fazerem descolar do solo o enorme 747 que deixava o Hava e o meu internato para trs. Ia sentado junto da janela, do lado esquerdo do aparelho, junto de um casal de meia-idade vestido de igual com tpicas camisas havaianas s flores. A minha bagagem de mo levantara alguns problemas: onde colocar todos os volumes? Acabei por me sentar com o pedao de coral, que a natureza no concebera para andar nos modernos transportes pblicos, em cima dos joelhos. As despedidas finais foram, no fim de contas, bastante discretas. No aeroporto, Jan colocou-me quatro colares de flores ao pescoo, como manda a tradio havaiana. Trs deles eram feitos com flores pekaki e o seu delicado aroma flutuava em meu redor. Jan e eu no tnhamos voltado a falar em termos de futuro. Escreveramos um ao outro. Deixar o Hava despertava-me vrias emoes, mas nenhuma delas me deixava esquecer o fim da minha fase de internato. Apesar disso, comeava j a notar em mim uma curiosa tendncia para recordar e engrandecer os momentos altos, a alegria de ter cumprido aquele ano, e esquecer todas as coisas desagradveis que, na realidade, tinham dominado aquele perodo. O corpo tem uma memria muito curta. Quando o avio guinou para a esquerda, avistei, pela ltima vez, a ilha de Oaliu. A sua beleza era inegvel. Montanhas escarpadas e alinhadas sobressaam de encontro ao cu, cobertas por uma vegetao que fazia lembrar veludo e rodeadas por um reverberante mar azul-escuro. Premindo o nariz contra o vidro, consegui avistar as ondas a rebentarem contra o recife mais avanado de Waikiki, formando longas orlas de espuma brancas. Aquelas j eu no iria gozar. Pensei em Strauss, a iniciar o seu internato com todo um ano de trabalhos sua frente. Estava naquele momento a viver a mesma experincia por que eu passara. A vida como que se repetia a si mesma. Strauss e "Hrcules"; que confrontao no iria haver! Quase no me restavam dvidas de que, depois de quatro ou cinco colecistectomias com "Hrcules", depressa as arestas agudas do idealismo de Strauss seriam limadas.

Fazendo lembrar um pssaro monstruoso visto em cmara lenta, o avio endireitou-se, adotando a posio horizontal, e encetou a rota que nos levaria para a Califrnia. O nico indcio que nos mostrava estarmos em movimento era uma quase imperceptvel vibrao. A ilha j desaparecera, substituda por um horizonte indistinto em que a extenso imensa do oceano se fundia com o firmamento. Pensei na senhora Takura, no beb que nascera nas urgncias, em Roso e, mais uma vez, em Strauss. No concordava com tudo o que este dissera, mas, pelo menos, dera-me conta do pouco que sabia e conhecia do sistema, exceto, claro, no que dizia respeito aos pontos que me tinham afetado pessoalmente. Imaginem a Associao dos Mdicos Americanos a tentar bloquear-me o meu emprstimo federal de juro baixo para a escola mdica! Impulsivamente, inclinei-me para a direita, agarrando no coral com uma das mos e, com a outra, tirei a carteira de um dos bolsos. Voltando a recostar-me no assento, percorri os vrios cartes e licenas at dar com ele. "O mdico cujo nome e assinatura constam neste carto, membro, em pleno uso dos seus direitos, da Associao dos Mdicos Americanos." As palavras eram impressionantes. Pressupunham uma ligao a uma instituio poderosa. Trabalhara cinco longos anos para chegar ali. Foi nesse momento que senti o primeiro solavanco, logo seguido de outro, mais ligeiro e reprimido, ao mesmo tempo em que o aviso se acendia. Senhoras e senhores, queiram apertar os vossos cintos, por favor. Esperamos alguma turbulncia local disse a hospedeira com voz montona e confiante. L ia sentado ao lado do casal das camisas floridas, de pedao de coral nos joelhos e dobrando e desdobrando nervosamente o carto da AMA, at que, de repente, a dobra estalou e o carto se partiu ao meio.

A LTIMA PALAVRA
O Dr. Peters finalizou a turbulenta viagem que o levou da fase de estudante de medicina, atravs do internato, at ao ponto em que a sociedade o passar a reconhecer como um mdico perfeitamente capaz de levar prtica os conhecimentos adquiridos. Pode a partir de agora, solicitar e, sem dvida, receber, uma licena para praticar medicina e cirurgia em qualquer dos estados dos EUA. Esse ato assinalar a sua preparao, sendo-lhe confiadas todas as responsabilidades que uma licena mdica confere. O treino rigoroso a que foi sujeito permite-nos partir do princpio de que o Dr. Peters se encontra academicamente preparado. Mas estar ele psicologicamente equipado para exercer medicina de acordo com as exigncias de uma sociedade moderna? Os mdicos da "velha-guarda" concordaro que est. Para a maior parte destes, as aberraes da sua personalidade no passam de meras garantias de que as "dvidas" que o atacaram durante o internato acabaram por inici-lo na irmandade. A fase de internato foi muito dura para eles e, portanto, tambm no dever deixar de o ser para a gerao seguinte. No sugerir esta lgica que os homens mais velhos podero estar a sofrer dos mesmos problemas psicolgicos que o Dr. Peters, e pelas mesmas razes? E que acontece ao paciente durante estes exerccios juvenis? A tradicional, na verdade, antiquada, posio majestosa de que o mdico goza na escala mundial de valores sociais e, nos Estados Unidos, o respeito que, nos dias que vo correndo, tem vindo a ser difundido relativamente aos progressos da tecnologia, conduziram a um aumento na venerao dirigida a todos aqueles que exercem medicina. Como corolrio direto da idolatria que existe em relao a tudo o que diz respeito

medicina, tomou-se impensvel pr em dvida o controle que a profisso mdica exerce sobre a educao do mdico em embrio. As escolas de medicina e os programas de treino ligados a esta rea tm sido relativamente deixados ao sabor das convenincias. Ningum coloca interrogaes. Contudo, nem sempre as coisas se passaram deste modo. J uma vez, no princpio deste sculo, a instruo dos mdicos nos Estados Unidos da Amrica foi, muito seriamente, posta em causa por um grupo extramdico designado para estudar a formao mdica americana. Este grupo, cujas concluses foram apresentadas num documento que ficou a ser conhecido como o Relatrio Flexner, denunciou nua e cruamente as abominveis condies ento existentes. A maioria das escolas mdicas, referia, no passavam de simples fbricas de fazer diplomas em que o controle acadmico se encontrava totalmente ausente. O relatrio inculpava, indiretamente, a profisso mdica em si de ter feito mau uso da carta branca que um pblico venerador lhe passara. O documento teve efeitos de logo alcance. Desencadeou uma lenta, mas sensvel melhoria nos padres acadmicos ento vigentes nas escolas mdicas. Mas nem todos os seus efeitos foram benficos. Por um lado, o relatrio possibilitou que a profisso mdica, por intermdio da Associao dos Mdicos Americanos, ainda apertasse mais a sua rdea em tomo da formao dos mdicos, atravs, concretamente, da diminuio do nmero de escolas de medicina e de facilidades de treino, medida necessria, segundo foi afirmado, para elevar o grau de qualidade da instruo. E a melhoria e a estandardizao do curriculum que o relatrio instigou levou a que o pndulo se inclinasse para a incluso de mais cadeiras de laboratrio e cincias no estudo da medicina. Mas o pndulo s parou de oscilar quando comeou a interferir na medicina clnica. (Ter-se- algum detido a pensar no doente?) Um dos resultados foi o de que os mdicos que hoje se formam se encontram amplamente equipados com os conhecimentos mais atualizados para fazerem face s doenas mais estranhas e aos processos metablicos mais raros que existem, mas muitas vezes no esto a par de simples fatos clnicos que lhes permitam tratar da vulgar gripe ou de lidar, em termos humanos, com o moribundo que se encontra para l de estrito auxlio da medicina. Est cada vez mais difundida na Amrica a idia de que se aproxima a altura de fazer um outro Relatrio Flexner que desencadeie reformas na instruo dos mdicos. Nunca se levou a cabo nenhum estudo objetivo sobre a educao psicolgica destes. Qualquer anlise que prime pela maturidade, pela retido e pelo desejo de progresso, no poder deixar de considerar este fator com a mesma seriedade que atribuda ao rigor acadmico. O pblico no tem conscincia da inclinao que alguns mdicos possuem para as particularidades pessoais, as birras infantis dos cirurgies, por exemplo. A maior parte das pessoas deve, provavelmente, pensar que quando o estudante entra para a escola de medicina leva, normalmente, a cabea cheia de vises idealistas acerca do alvio do sofrimento, da ajuda aos desgraados e do desempenho do bem no seio da sociedade. No entanto, poucos se do conta das discrepncias existentes entre o nmero de idealistas que entram e a minscula percentagem que desemboca do outro lado com as idias ainda intactas. E quase ningum estabelece uma ligao entre os ideais perdidos e os disparates antiquados dos cirurgies. Ou entre os ideais perdidos e a preocupao que muitos mdicos recm-formados tm em se candidatar, finda a longa aprendizagem, a um grupo de pacientes financeira e socialmente compensador e aquisio de casas e automveis luxuosos que possam contrabalanar as privaes passadas durante os anos de preparao.

Obviamente, a possibilidade de os ideais de um mdico poderem mudar entre a escola mdica e o comeo da atividade aps a formatura diametralmente oposta quilo em que as pessoas desejam acredita, e ao que lhes apresentado pelos mass media. O cinema, a televiso e os romances de "mdicos" tm contribudo para reforar o mito de uma sade psicolgica e de uma bondade inerente aos mdicos, especialmente aos mdicos jovens. Voltemos, assim, credibilidade que o Dr. Peters nos pode oferecer relativamente ao fato de dar uma idia dos internos em geral. Mais uma vez reafirmo a minha crena de que ele representativo. No pertence minoria dos indivduos aberrantes. E o tpico novato que comeou por ter objetivos medianamente idealistas. o tpico estudante e interno cuja personalidade comeou a sofrer determinadas mudanas graduais, mudanas essas que acabam por transform-lo no indivduo vencedor, reivindicativo e egosta que ficamos a conhecer; o que compreensvel, mas no louvvel. A alegao de que o mundo mdico est cheio de doutores Peters uma plula difcil de engolir. Se, em adio, se puder aceitar o fato de que quase todos aqueles que optam pela carreira mdica vm a padecer das mesmas chagas na personalidade, ento talvez a se comece a desconfiar de que o mal est no sistema e no nas pessoas que nele entram. E no sugerir este fato, por sua vez, que o sistema precisa de ser analisado relativamente aos efeitos psicolgicos que exerce e alterado no sentido de acalentar, e no extinguir, o idealismo e a sensibilidade dos seus estudantes? A mudana inevitvel e os homens e mulheres de boa vontade tm esperana de que o seja para melhor; melhor para a sociedade e melhor para o indivduo. A reforma voluntria uma maneira mais lgica e saudvel de mudar as coisas do que a imposio de medidas explosivas tomadas em conseqncia de abusos. Se a medicina, que simultaneamente uma cincia e uma arte, pretende ir ao encontro das necessidades do nosso tempo, j tempo de analisarmos e reformarmos as nossas escolas e centros mdicos, onde internos e residentes so treinados. Nem mesmo a anlise mais atenta e profunda ser perfeita. Nem mesmo as solues mais seriamente procuradas alcanaro xito total. Mas se no conseguirmos alcanar uma situao ideal podemos aproximarmo-nos dela. Pelo menos teremos tido o senso e a coragem de tentar.

Fim

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