Curta Metragem
Curta Metragem
Curta Metragem
. O Dicionrio Houaiss define curta-metragem como "filme com durao de at 30 minutos, de inteno esttica, informativa, educacional ou publicitria, geralmente exibido como complemento de um programa cinematogrfico". Disponvel em:< https://pt.wikipedia.org/wiki/Curta-metragem>
Ao exibir a cada ano quase 100 curtas do mundo todo em suas mostras Latina e Internacional, o Festival de Curtas de So Paulo nos ajuda a traar um verdadeiro mapa do mundo na produo do formato. Mas, facilmente, este mesmo mapa do mundo pode se tornar um manual de como fazer um bom curta. Claro que a simples noo do que seja um "bom curta" vai variar de espectador para espectador, portanto toda e qualquer concluso a seguir absolutamente parcial e pessoal. No entanto, o principal destacar que uma mostra desta amplitude permite que cada espectador bem disposto (ah, sim, preciso disposio...) trace seu prprio mapa, e portanto, seu manual. Bem vindos ao meu. Bom, ao contrrio da maioria dos manuais que s ensinam o que fazer, este meu humilde exemplar vai ousar comear da forma como mais podemos aprender: O QUE NO FAZER. Lio 1: VOC EST FAZENDO UM CURTA!! Parece bvio, mas um nmero imenso de realizadores parece no conseguir superar o fato de no estarem realizando seu projeto de longa metragem. Com isso, cismam em condensar demais uma histria que devia ser mais longa, ou simplesmente contam longamente uma idia curta, criando esta aberrao insuportvel que se convencionou chamar o "mini-longa". Certamente o erro mais cometido, que atrapalha alguns filmes at interessantes como o australiano A Telephone Call for Genevieve Snow, o franco-senegals Une Femme pour Souleymane ou o canadense Passengers. Em outros casos, este "approach" amplia os defeitos de filmes j frgeis como o francs Claquage aprs tirements, o macednio Veta ou o grego (ganhador de Clermont Ferrand, mesmo primariamente dirigido) Ela na Sou Po... E, finalmente, torna insuportveis trabalhos mal intencionados no seu moralismo mais careta e preconceituoso como o mexicano Quiero Ser (que reafirma o quanto o Oscar no sabe nada de curtas), o peruano Un Minuto de Silencio, o espanhol El Puzzle ou o constrangedor costa-riquenho Once Rosas. Lio 2: NUNCA DEIXE SUA SACADA TCNICA SOBREPUJAR O QUE VOC QUER DIZER No curta, o risco de uma "sacada de linguagem" ser maior do que o que o cineasta quer dizer ainda maior, ainda que menos danoso, do que no longa, onde este mesmo problema j est ficando cada vez mais comum. O mais impressionante ver que ainda hoje este tipo de coisa engana a cada dia mais pessoas e at mesmo jris de festival que cismam em premiar meras brincadeiras bobas, e , francamente, cansativas. Maiores exemplos neste festival, mas os maiores: o austraco Copyshop com sua brincadeirinha de repetio; o americano Jungle Jazz: Public Enemy #1 com seu jogo de reutilizao de imagens antigas; e o chileno Ekos com sua obsesso pela filmagem "virtuosa". Lio 3: SE VOC VAI CONTAR UMA PIADA, QUE ELA SEJA NO MNIMO NOVA OU INESPERADA Poucas sensaes so mais insuportveis do que a de saber que se est assistindo uma piada filmada, e que j se entendeu o final. A comdia pode sim ser subversiva, vanguardista, at mesmo transcendental. Mas tambm pode ser altamente irritante. Filmes como o escocs Sex and Death ou o cubano El Valor de la Amistad so uma verdadeira prova de fogo pacincia e disposio de um pblico numa longa sesso de curtas. Lio 4: SEJA EXPERIMENTAL. MAS NEM SEMPRE.
O curta o meio ideal para a experimentao no cinema, j afirmou um homem sbio. Mas da experimentao para a picaretagem a linha muito tnue, e constantemente cruzada. A verdade que muitos curtas deixam no ar a sensao de que "tudo vale", ou seja, na rapidez da durao estamos liberados para qualquer tipo de coisa, sem necessidade de cuidados com a linguagem, com o espectador, com o discurso. Assim que filmes como o francs Ya Rayah ou o dinamarqus Helgoland podem sempre pedir o salvo-conduto da "obra de arte" para se defenderem de qualquer oposio a seus pretensiosamente vazios projetos. Embora no dem conta de todos os erros, estes so sem dvida os mais comuns, e portanto mais irritantes. Deve-se entender que um festival de curtas pode se tornar uma exasperante experincia dadas suas longas sesses de inmeras procedncias e idias diferentes. Uma m sesso de curtas muito mais cansativa que um mau longa. Com isso, cada pequeno pecado acaba ampliado. Mas isso no desculpa, porque no geral houve inmeros outros cineastas acertando na mosca, quase o tempo todo. Para tentar entender alguns dos seus "golpes" que tornam os curtas pequenas delcias, vamos a eles: Lio 1: NA DVIDA, SEJA MRBIDO. impressionante como funciona num curta ser simplesmente estranho, diferente, talvez um pouco cruel, porque no. Tirar o espectador da sua "zona de conforto" garante a ateno dele por toda a curta durao de um filme. Assim que a morbidez ou a crueldade explcitas tm grande aceitao, porque em doses homeopticas so muito mais aceitveis. Difcil imaginar que um longa na linha do escocs Daddy's Girl ou o ingls To Have and to Hold pudessem sustentar o nvel de tenso e estranheza com o espectador que estes estabelecem. Portanto, so filmes que tm a durao que devem ter, e este o maior elogio que se pode fazer. Mas os sditos da rainha no detm exclusividade na terra da estranheza: o polons Mamo Zobacz e o mexicano Hasta los Uesos so dois outros exemplos de perfeita adequao entre durao e morbidez. LIO 2: CRIAR CLIMA SEMPRE UM PONTO A FAVOR. Manter esta caracterstica to inexplicvel quanto facilmente perceptvel que o "clima" no possui manual possvel. Alguns simplesmente sabem fazer, outros no. Claro que sustentar um clima por 10 a 15 minutos mais fcil do que durante 90, mas isso no diminui o mrito de quem o faz. Filmes como o noruegus A SE en Bat med Seil ou o holands Reis Door de Nacht praticamente devem todo seu interesse capacidade de criarem tamanho clima que o espectador nada mais pode fazer alm de ficar grudado no que assiste. Lio 3: PIADAS ORIGINAIS SO BEM VINDAS Existe uma idia de que o filme-piada necessariamente ruim. Ora, claro que no. A piada como tudo na vida: quando boa, mais que desejvel. O que se pede muitas vezes que o humor tenha algo mais do que uma simplria histria sem qualquer atributo intrinsecamente cinematogrfico, seja de linguagem, seja de construo narrativa. A, os humoristas fazem melhor. Mas so mais do que desejveis jogos de linguagem surpreendentes como o brilhante filme sueco Music for One Apartment and Six Drummers ; construes narrativas desconcertantes como o noruegus Bla Java; ritmo preciso como o americano For the Birds; texto e linguagem absolutamente em unssono como o tambm excepcional americano Bike Ride; ou simplesmente o subversivo e quase surreal humor ingls de A Heap of Trouble. Lio 4: POR QUE NO CONTAR UMA HISTRIA? Outro preconceito bobo que o "mini-longa" entranhou que todo curta que s "conta uma histria" ruim. Mentira, contar bem uma histria requer muito mais talento e criatividade do que muitas experimentaes. S que as histrias precisam, acima de tudo, serem histrias que estejam adequadas ao tempo do cuurta. Que possam ser contadas precisamente no tempo que dispem, sem faltas nem sobras. No Festival houve exemplos de sobra. O francs Faux Contact talvez seja o melhor de todos, ao misturar humor com domnio narrativo com uma observao sutil do mundo moderno. Mas podemos pensar ainda no belssimo belga Raconte, no uruguaio Nico & Parker ou no dinamarqus Kuppet. O alemo Zwei im Frack (Dois de Fraque) deixava um pouco a desejar na sua durao mais longa, mas sem dvida mistura humor e morbidez o suficiente para compensar. Lio 5: DOCUMENTAR POSSVEL Usar o formato do curta para fazer um documentrio um risco enorme, porque dificilmente h tempo suficiente para desenvolver idias, documentar fatos, expr lados de questes complexas. Mas, usando muita criatividade na forma (ser careta num documentrio curto garantir a morte do filme), alguns realizadores sempre mostram
que possvel sim documentar em curta. Este ano os destaques foram o mexicano Los Zapatos de Zapata, o lindssimo e criativo iraniano Bouy-e Gougerd, e em especial o russo Et Cetera, um verdadeiro soco no estmago. Lio 6: UMA PORRADA DI BASTANTE Um longa metragem dificilmente se sustenta em torno de uma idia com a fora de um soco, uma imagem poderosa, um momento de completa surpresa. O curta pode se dar a este luxo. Saber dosar e criar o clima para esta porrada to importante quanto saber terminar o filme aps esta. Este foi o grande problema do filme esloveno Hop, Skip and Jump e do finlands Nolla Astetta, que aps exibir duas das mais fortes imagens vistas em muito tempo, se alongam por mais longos minutos de puro anti-clmax. J o suio Einspruch II e o cubano Rogelio do o soco e se retiram na hora certa. Lio 7: ARRISQUE, POR QUE NO? O jogo da linguagem, o frescor, a estranheza, so muito mais aceitos no formato curto do que no longa. Uma brincadeira de 90 minutos pode se tornar insuportvel, mas em 10 minutos ela pode ser adorvel. Da mesma forma, um filme estranhssimo de fico cientfica e insana como o mexicano Crebro dificilmente se sustentaria por mais tempo do que a sua durao, que o torna s intrigante ao invs de confuso e chato. assim que a bizarrice do franco-blgaro Mon Pre ou a galhardia do francs Je t'Aime John Wayne ficam do tamanho exato antes de tornarem-se reptitivos. Lio 8 e final: QUANDO NADA MAIS TIVER EM MOS, SEJA GENIAL. Em ltima instncia, se seu filme no se aplicar em nenhuma destas categorias que podem ajud-lo acima, reze apenas para que o Papai do Cu tenha te dado o talento e a viso dos cineastas que realizam filmes excepcionais. Havia entre os 93 filmes vistos na mostra internacional/latina deste ano apenas 4 que podiam receber esta alcunha. Mas, s eles j valem mostras inteiras. Como se v acima, havia inmeros outros timos filmes (no geral, a seleo internacional foi muito boa, embora a latina bem mais fraca), mas se no houvessem estes 4 j bastavam: - Motorcycle, de Aditya Assarat (Tailndia). To mais impressionante por ser de um pas com pouca tradio de cinema, um filme de estria, e um filme de escola! Mas seu diretor mostra uma sensibilidade do tipo que no se aprende na escola, fazendo da sua linguagem tosca e pobre parte integrante do que conta, e emprestando ao filme tamanha pungncia, dor, e cor local. Impressiona. - Afta, de Kornl Mundrucz (Hungria). O ttulo significa "Cotidiano", s que o cotidiano deste hngaro nada tem da repetio desimportante de um Jarmusch inicial nem o ritual de um Ozu. Tem sim a dureza, a violncia, o vazio de uma gerao em crescimento. Estranhamente enrgtico e passivo ao mesmo tempo, o filme transpira "necessidade" de ser feito. - Camera, de David Cronenberg (Canad). T bom, algum pode dizer que colocar Cronenberg aqui covardia. Mas, deve-se lembrar que ele recebeu uma encomenda para fazer um curta para abrir o Festival de Toronto. Para ele fazer uma burocrtica picaretagem que todos adorariam da mesma forma no precisava muito. No entanto, o que ele faz um poema de 6 minutos, uma declarao de amor ao cinema, mas acima de tudo, ao futuro do cinema. Filmado com a maestria esperada, tem ainda uma atuao simplesmente desumana do seu protagonista. - Helicopter, de Ari Gold (EUA). Disparado o melhor filme de todo o festival. Como se pode compreender que algum resolva fazer um filme sobre a morte da prpria me, misturar animao, encenao, comdia, documentrio, e no soar nem piegas nem exagerado. Acertar em todas as transies de clima, em todas as misturas de linguagem, e no meio disso tudo fazer uma declarao de amor sua prpria me, dor e sua superao, ao cinema como arte maior, e ao poder humano de encontrar sentido no incompreensvel. Um filme como poucos, possivelmente como nenhum, e que nos faz obrigatoriamente prestar ateno no seu diretor de agora em diante. Ningum faz um filmes destes por acidente!