Texto 1 - RAJAGOPALAN, Kanavillil. Apresentação. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, 30, Jan Jun, 1996
Texto 1 - RAJAGOPALAN, Kanavillil. Apresentação. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, 30, Jan Jun, 1996
Texto 1 - RAJAGOPALAN, Kanavillil. Apresentação. Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, 30, Jan Jun, 1996
1996
O AUSTIN DO QUAL A LINGSTICA NO TOMOU CONHECIMENTO E A LINGSTICA COM A QUAL AUSTIN SONHOU KANAVILLIL RAJAGOPALAN (UNICAMP)
Na histria da investigao humana, a filosofia tem o lugar central do Sol do princpio, seminal e tempestuoso; de tempos em tempos, ela despeja partes de si que vo se estabelecer como uma cincia, um planeta, frio e bem regulado, evoluindo com determinao, para um longnquo estado final. Isso ocorreu h muito tempo por ocasio do nascimento da matemtica, e de novo com o nascimento da cincia da fsica; apenas no sculo passado testemunhamos o mesmo processo de novo, lento e ao mesmo tempo quase imperceptvel, no nascimento da cincia da lgica matemtica, graas ao trabalho conjunto de filsofos e matemticos. No seria possvel que o prximo sculo presenciasse, graas a esforos conjugados de filsofos, gramticos, e muitos outros estudiosos da linguagem, o nascimento de uma verdadeira e abrangente cincia da linguagem? Teremos ento nos desvencilhado de mais uma parte da filosofia (ainda sobrar muita coisa) na nica maneira que temos de desfazer da filosofia, que chutando-a para cima. J.L. Austin (1911-1960)
impossvel ignorar a derradeira influncia que J.L. Austin tem exercido sobre os rumos da Lingstica contempornea. Praticamente tudo o que se faz hoje em dia na rea de Pragmtica, o subdomnio da Lingstica que mais cresceu nas ltimas duas ou trs dcadas, traz marcas inconfundveis do pensamento desse filsofo ingls. Contudo, conforme venho sustentando j h algum tempo1, no mnimo dbio o aproveitamento que a Lingstica tem feito das idias filosficas de Austin (Cf.
1 As reflexes apresentadas neste trabalho - algumas das quais j divulgadas em outras oportunidades - so fruto de uma linha de pesquisa que venho realizando desde o final da dcada de 70 e que, nos ltimos anos, conta com a apoio do CNPq na forma de uma bolsa de pesquisa (Processo n 306151/88-0). Meus agradecimentos a Viviane Veras e Dercir Pedro de Oliveira pela leitura crtica de uma verso anterior deste texto, e pela reviso da redao.
Rajagopalan, 1983, 1984, 1989, 1990, 1992, 1994). O presente trabalho tem por objetivo (a) falar de um outro Austin, um Austin que ficou completamente ignorado em meio ao entusiasmo exagerado no sentido de instrumentalizar seus conceitos e categorias verficado nos ltimos tempos e (b) especular sobre as perspectivas para a Lingstica a partir de um contato com este outro Austin.
AUSTIN E A PRAGMTICA LINGSTICA certo que o termo Pragmtica em si foi cunhado e posto em circulo pelos estudiosos da rea de Semitica, notavelmente pelo norte-americano Charles Morris, na esteira do trabalho pioneiro do seu conterrneo Peirce. E igualmente incontestvel que Austin demonstrou pouco interesse em identificar seu prprio trabalho sob o rtulo de Pragmtica e fez questo de se distanciar do movimento de Pragmatismo2 cuja histria se confunde, ao menos nos Estados Unidos, a sua terra natal, com a histria da difuso de trabalhos em Pragmtica. Todavia, trata-se de um erro afirmar, como o fazem certos autores de livros introdutrios sobre o assunto, que as investigaes de ordem pragmtica na Lingstica deram-se no rastro de trabalhos pioneiros no campo da Semitica. Como afirmam Haberland e Mey (1977:1), A cincia do uso da linguagem no tem nenhuma ligao direta com o uso histrico do termo. O fato que a questo pragmtica surgiu na Lingstica em razo do intenso intercmbio que houve entre esta e a Filosofia, sobretudo da inspirao austro-anglo-americana (a assim-chamada Filosofia Analtica). Tanto isso verdade que a linha divisria que separa os linguistas que se interessam pela questo da significao e os filsofos que se interessam pela linguagem est se tornando cada vez mais tnue e, no entendimento de muitos acadmicos, uma barreira puramente institucional3 . Convm ressaltar o papel importante que coube ao filsofo e lgico Rudolf Carnap, um dos mais influentes defensores do movimento chamado Positivismo Lgico. Fiel seguidor e admirador de Frege e Russell, com quem compartilhou o sonho logicista,Carnap abordou a Pragmtica como a subrea de investigao onde se faz referncia explcita ao falante, isto , ao usurio da lngua. A Semntica e a Sintaxe seriam, por sua vez, frutos de uma abstrao progressiva, isto , no caso da primeira, concentrar-se-ia nas expresses lingsticas e seus respectivos designata , deixando de lado qualquer meno ao usurio, ao passo que, no segundo caso, toda a ateno recairia exclusivamente sobre as relaes entre as expresses em si, esquecendo para tal fim tanto do usurio como dos designata.
2 Trata-se de um movimento filosfico associado aos nomes como William James, F.C.S. Schiller, e John Dewey, alm do prprio C.S. Peirce. Este ltimo, porm, acabou distanciando-se dos outros e, por achar que o prprio termo pragmatismo havia sido distorcido demais, comeou a usar o novo termo pragmaticismo para designar seu prprio trabalho. Hoje em dia, a maior expresso do movimento o filsofo norte-americano Richard Rorty. 3 Como afirma Searle (1975: 90): There are now a large number of topics which are construable as common territory of either philosophy or linguistics; for example, presupposition, conversational implicature, meaning, modality, and reference - to mention just a few.
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Para Carnap, a Sintaxe antes e em sua verdadeira essncia, a sintaxe lgica. Conseqentemente, o cerne, o mago da linguagem a lgica. Na passagem da Sintaxe para a Pragmtica, via a Semntica, haveria um certo afrouxamento da exatido que s a lgica matemtica seria capaz de nos assegurar. Quando o autor de um livro relativamente recente sobre falcias da vida cotidiana afirma que Sem dvida podemos, sem cairmos em contradio, fazer sentido da idia de que a pragmtica, enquanto rea de estudo, , num certo sentido, menos formal do que a semntica (Walton, 1987: 294-5), est ele apenas confirmando a forte influncia do pensamento carnapiano at os dias de hoje. Por um lado, o sonho de, quem sabe, um dia a linguagem humana vir a ser inteiramente regida pela lgica em todo o seu esplendor matemtico (e, lembre-se de que a matemtica foi considerada por Leibniz como a linguagem atravs da qual o prprio Deus se comunica!) - ainda que, para conseguir tal proeza, fosse necessrio colocar a linguagem na proverbial cama de Procrusto. O nome que se d a esse sonho Positivismo Lgico. Por outro lado, e em reao direta ao primeiro, a tentativa de repensar o prprio cerne, partindo de uma convico de que a polpa e a casca no podem ser descartadas como um simples adendo semente, ou ainda, quem sabe, de um pensamento de que a metfora no caso talvez tenha nos despistado das questes mais importantes. Da tenso acima referida, nasce, por volta da dcada de 30 do nosso sculo, o movimento chamado Filosofia da Linguagem Ordinria. E esse movimento que comeou na Universidade de Oxford na Inglaterra, tem na pessoa de J.L. Austin, seu maior e mais respeitado defensor. Sua crtica implacvel da doutrina positivista acha-se documentada na obra Sense and Sensibilia (Austin, 1962a), na qual o autor desfecha contra-argumentos dos mais contundentes tese defendida pelo seu conterrneo A.J, Ayer, acerca da questo de aparncias e percepo. Este ltimo , por sinal, algum que tido como o apstolo do Positivismo Lgico na Gr-Bretanha. Cabe lembrar, contudo, que a obra mais lida, comentada, e citada de Austin, e certamente a que mais influenciou os rumos da Lingstica nos ltimos tempos, How to Do Things with Words. Afinal, o nome do filsofo imediatamente associado ao termo atos de fala, tema central das XII conferncias proferidas na Universidade de Harvard nos E.U.A., cujos manuscritos (devidamente revisados postumamente) compem os XII captulos do livro. E, sem sombra de dvida, o conceito de ato de fala est entre os conceitos mais fecundos dos ltimos tempos, no s na rea de Lingstica, mas em reas conexas das mais variadas tais como a Psicologia, a Sociologia, a Teoria Literria, e, quem diria, a Economia e at mesmo o Direito - sem falar, claro, da prpria Filosofia. justamente aqui que urge uma ressalva que se constitui em um ponto chave para este ensaio. O conceito de ato de fala, tal qual ele vem sendo trabalhado e divulgado, algo que passou pelo crivo de uma re-leitura de Austin nas mos de seu mais ilustre discpulo, o filsofo norte-americano John R. Searle, por muitos considerado como o herdeiro intelectual legtimo do mestre ingls (Cf. Rajagopalan, 1995).Ou seja, preciso no perder de vista o fato de que uma grande parte daquilo que vem sendo
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creditado a Austin na verdade fruto dessa re-leitura da sua filosofia, a qual venho me referindo como a leitura oficial.
O AUSTIN QUE SEARLE NOS APRESENTOU A leitura oficial de Austin, aquela que Searle promoveu e divulgou dentro e fora do mbito da filosofia, tem como o primeiro pressuposto a idia de que a obra de Austin uma obra inacabada. Como prova disso so apontados fatos histricos como o da morte sbita do filsofo que obrigou a editora do livro a entregar os manuscritos de Austin a terceiros para serem revistos e as vezes completados com auxlio de anotaes feitas por diversas pessoas, assim como o de que as idias veiculadas ao longo da srie de conferncias em Harvard j vinham sendo cuidadosamente trabalhadas por Austin desde o princpio da dcada de 40, se no antes, isto , ao longo de quase qinze ou vinte anos (dando a entender que o texto final certamente teria sofrido modificaes substanciais se o Destino assim o permitisse). Acrescentam-se a esses fatos histricos argumentos igualmente contundentes como o de que o estilo coloquial de Austin denuncia idias em formo e a espera de transformao (Cf. Rajagopalan, 1993), ou, o de que as freqentes exclamaes do tipo Devemos comear tudo de novo, Voltamos, pois, estaca zero (Austin, 1962b), que Austin faz o tempo todo ao longo das conferncias, so claros indcios de que, na melhor das hipteses, o filsofo estava, nesses momentos, pensando em voz alta, estando, portanto, bem longe do momento de elaborao de uma tese bem articulada e acabada. Ora, diante de argumentos poderosos como os mencionados acima, no restaria nenhuma alternativa se no a de subtrair do texto de Austin todos aqueles trechos que demonstram vacilaes, indecies, recuos etc., a fim de filtrar as poucas certezas e concluses definitivas que, por sua vez, possam servir de base para, agora sim, a eventual elaborao de uma tese propriamente dita dos atos de fala - a tese para cujo aprimoramento o filsofo se empenhou durante tantos anos. Para Austin, uma misso inacabada; para Searle, discpulo e autodenominado herdeiro intelectual, a honra e o dever de realizar o sonho do mestre. A aceitao da leitura oficial em meio comunidade acadmica tamanha que livros didticos introdutrios registram como fato consumado a idia de que a contribuio de Searle, sobretudo na fase inicial (isto , a de Searle 1969), se resume em dar o acabamento final e alguns retoques de ltima hora ao trabalho incompleto deixado por Austin. Ou seja, nos olhos do mundo acadmico, Austin se realizou por intermdio e graas dedicao e determinao do seu discpulo preferido, John Searle. Vejamos alguns dos traos principais desse acabamento efetuado por Searle. Diante da impossibilidade de sustentar a dicotomia inicial entre os enunciados constativos e enunciados performativos, o prprio Austin, como sabido, deu o primeiro passo em direo a uma teoria mais ampla, mais global, de atos de fala4. Como
4 Na verdade, esta afirmao precisaria ser reformulada. Conforme procuro mostrar em Rajagopalan (1990), Austin no estava, em momento algum, interessado em produzir uma teoria bem acabada e definitiva. Ele at desconfiava de teses definitivas. Este fato foi destacado por Katz, para quem, ... the
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sabido tambm, o mestre nunca esteve plenamente satisfeito com as mudanas, pois no sabia bem como dar conta da dimenso veritativa que atos como o de afirmao continuavam a comportar, ainda que a fora ilocucionria de um ato se distinguisse pela imunidade contra qualquer averiguao em termos de verdade e falsidade. Com a misso auto-outorgada de pr ordem no terreno, Searle sustenta que o cerne de um ato de fala deve ser um contedo proposicional. Entre os argumentos mais fortes em prol de sua tese est o fato de Austin nunca ter achado uma taxonomia satisfatria para os atos ilocucionrios, fato este que Searle atribui ao descuido por parte de Austin de no postular nenhum contedo comum aos atos (Cf. Rajagopalan, 1984). Um outro argumento apontado por Searle o de que, ao reinscrever no arcabouo austiniano a noo de proposio - velha conhecida da filosofia ocidental estaria sendo reincorporada tradio austro-anglo-americana de pensar filosfico, a tese inacabada de Austin. Efetuada a manobra, torna-se fcil argumentar que, afinal de contas, Austin um continuista em relao tradio fregueana, de vez que toda a lgica de Frege estaria em perfeita sintonia com a Teoria dos Atos de Fala, que por sua vez, pode perfeitamente ser considerada como complementar e no competidora com respeito tradio logicista. E por falar em logicismo e o sonho fregueano de dar conta de toda a linguagem com os recursos de formalismo e das leis da lgica, foi o prprio Searle quem acenou com possibilidades concretas quando, em co-autoria com o lgico canadense Daniel Vanderveken, publicou The Foundations of Illocutionary Logic (Searle e Vanderveken, 1985)5 como o encoroamento do trabalho iniciado em Speech Acts. (Searle, 1969). A interveno decisiva de Searle teve como principal consequncia o efeito de assegurar que Austin permanecesse na respeitvel tradio da Filosofia Analtica como um praticante exemplar - o fenmeno que chamei alhures de domesticao de suas idias (Rajagopalan, 1994). Do ponto de vista institucional, os efeitos foram bem mais marcantes. A partir da leitura de Searle, foi possvel acoplar toda a investigao austiniana no terreno dos atos de fala ao modelo de gramtica em franca asceno naquela poca, a saber, a Gramtica Gerativo-Transformacional (estamos nos referindo dcada de 70). Pois, como chegaram a pleitear um grupo entusiasmado de linguistas na poca, bastaria simplesmente acrescentar um nvel ainda mais abstrato na anlise na estrutura profunda de uma sentena, abrindo espeao para que o chamado prefcio performativo pudesse ser devidamente postulado bem no incio da derivao sinttica, antes mesmo que a primeira bifurcao do ndulo S em um sintagma nominal e um sintagma verbal. E, pronto, tudo estaria resolvido. Conforme preconizava Searle, a teoria dos atos de fala estaria, no em conflito com a gramtica, mas, sim, em perfeita harmonia. Descobre-se dessa forma que Austin foi, na verdade, um linguista, embora nunca tivesse sabido disso.
whole orientation of ... ordinary language philospphy [is] anti-theoretical (nfase acrescida) (Katz, 1966: 88). 5 Este livro no obteve uma boa recepo na comunidade acadmica e algumas das resenhas foram bastante negativas. Em comunicao pessoal, o prprio Searle confessou no estar mais tanto entusiasmado quanto linha de pesquisa.
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O AUSTIN QUE RESISTE LEITURA OFICIAL Quais os aspectos do texto austiniano que foram deixados de lado, ou melhor, estrategicamente recalcados, para que suas idias pudessem ser adoadas e incorporadas tradio filosfica dominante e ao pensamento lingstico do momento? Em primeiro lugar, houve um grande esforo no sentido de minimizar os efeitos do estilo, da retrica, do humor, do modo narrativo de sua filosofia (Rajagopalan, 1992c). J vimos as justificativas que foram utilizadas para suprimir tais efeitos que ameaavam a meta consagrada da leitura oficial, a saber, a de encarar o texto de How to Do Things with Words como um tratado (ainda que mal-acabado) como manda o figurino da Filosofia Analtica. Jamais se quis saber por que o folsofo ingls tanto insistiu naquele estilo jocoso e irreverente, prprio de quem no se preocupa com o desfecho das suas reflexes. Jamais foi levada a srio a pergunta que certamente passou pela cabea de qualquer leitor do texto austiniano: Ser que este ingls espertalho, gozador incansvel, no est brincando com a nossa inteligncia, dando-nos a impresso de que esteja prestes a formular uma tese filosfica da maior importncia, mas logo em seguida, desapontando-nos dizendo que era preciso comear tudo outra vez a partir da estaca zero - e, o que pior, rindo toa o tempo todo por detrs das nossas costas! Fora do Establishment, houve quem fizesse perguntas do gnero. Esses leitores concentram-se justamente naqueles elementos do texto de Austin que foram negligenciados ou totalmente ignorados pela leitura oficial. Por exemplo, Stanley Cavell (1995), da Universidade de Harvard, deixou-se impressionar pelos ecos que escutou no texto austiniano de vozes de autores menos esperados como Ralph Waldo Emerson e William Shakespeare. Jacques Derrida detectou as marcas do discurso jurdico que subjazem s reflexes do filsofo, chegando a especular se no estaria Austin o tempo todo preocupado com a dimenso tica das suas prprias preocupaes. Stanley Fish e Barbara Johnson, por sua vez, concentram-se no estilo descontraido do filsofo,sendo que o primeiro enfoca as indecises e freqentes reviravoltas que marcam o texto de How to Do Things with Words , enquanto a segunda chama a ateno para a metfora de teatro que domina praticamente toda a terminologia nova que Austin prope (ato, performativo, mscara etc.) no mesmo instante em que condena como no-srio o discurso produzido no palco ou na poesia. O que empolga leitores como Shoshana Felman e John Forrester o aspecto sedutor da retrica austiniana, como tambm as vrias questes de interesse do ponto de vista psicanaltico que suas reflexes suscitam. Uma discusso mais detida e detalhada dessas leituras heterodoxas ter que ser descartada por hora diante da escassez do espao. Convm ressaltar, porm, dois aspectos dessas leituras: primeiro, em termos quantitativos, elas so to numerosas quanto os esforos individuais (em grande parte, na forma de remendos e retoques) que se deram ao reboque daquilo que chamei de a leitura oficial; segundo, quase sem exceo, todas elas se deram fora do mbito estrito da Filosofia Analtica. O que talvez explique por que tais leituras tiveram, at agora, pouco impacto sobre os rumos da Lingstica, posto que, conforme observamos no incio deste trabalho, a principal fonte 110
de inspirao para a lingstica contempornea, sobretudo em suas subreas como a Semntica e a Pragmtica, tem sido, nos ltimos tempos, a Filosofia Analtica. A filosofia analtica, fortemente influenciada pelo Positivismo Lgico, destaca-se pela nfase na anlise conceitual, mtodo eleito como o nico procedimento para solucionar todos os problemas filosficos. Os conceitos so entes de pura cognio (ou, inteleco, para lembrar o termo em voga nos outros tempos), desvinculados, portanto, de qualquer materialidade que seria prpria s palavras que se encarregam de veicul-los. Donde a tendncia de fincar o conceito de conceito nos assim chamados universais. Austin, como alis declara no prprio ttulo de sua obra prima, se prope a abordar a questo de como fazer coisas com as palavras. Esto sob a sua mira as prprias palavras em toda a sua materialidade e historicidade (Rajagopalan, 1993); eles no so - como encaravam-nos os filsofos analticos dos mais ferrenhos entes secundrios que s se interessam enquanto materializaes corpreas dos conceitos. Ademais, elas so objetos, como diz Austin reiteradas vezes, a serem encontrados nos dicionrios, e no apanhados com cuidado dos arquivos mentais dos filsofos em momentos de contemplao solene.
O AUSTIN DA LEITURA HETERODOXA E AS POSSVEIS LIES PARA A CINCIA DA LINGUAGEM, A LINGSTICA Cabe aqui, antes de mais nada, um alerta. O nome de Austin se acha freqentemente associado, no sem procedncia, ao ramo da Filosofia Analtica conhecido como a Filosofia Lingstica (Linguistic Philosophy), movimento que floresceu na Inglaterra em meados do sculo corrente, em grande parte, em reao ao Atomismo Lgico que imperou nas dcadas anteriores. Os outros nomes mais destacados ligados Filosofia Lingstica so os de Gilbert Ryle e Ludwig Wittgenstein (este ltimo tambm teve participao decisiva no desenvolvimento do Atomismo Lgico numa fase anterior da sua trajetria). A Filosofia Lingstica (que no deve ser confundida com a Filosofia da Lingstica, que a filosofia de cincia dirigida Lingstica) se distingue da Filosofia da Linguagem, a despeito das bvias ligaes. A primeira aposta em que todos os problemas da filosofia podem ser resolvidos a partir de uma anlise criteriosa das palavras, com destaque s que fazem parte da nossa linguagem corriqueira; a segunda, a Filosofia da Linguagem, tem como meta enfocar a linguagem, encar-la como o prprio objeto de estudo filosfico. Como a chamada virada lingstica (linguistic turn) promovido pelo filsofo alemo Gottlob Frege, a linguagem passou a ocupar lugar de destaque na ateno dos filsofos, de modo que possvel dizer que, a partir da virada do sculo XIX, o campo da Filosofia da Linguagem tornou-se praticamente co-extensivo ao do da prpria Filosofia. O alerta que fao contra a seguinte armadilha de raciocnio: pois, algum pode argumentar que os Filsofos Lingsticos (isto , aqueles que seguem a linha de Filosofia Lingstica - termo no muito divulgado em portugus) se distinguem dos demais filsofos apenas em razo da sua insistncia em comear a investigao 111
filosfica a partir de uma anlise da linguagem, para quem sabe, posteriormente, poder desvendar os mistrios dos conceitos subjacentes a palavras. Ora, dentro dessa tica, Austin enquanto filsofo lingstico, estaria somente pleiteando a anlise de palavras como um primeiro passo e, conseqentemente, o estudo da linguagem como um meio de estudo filosfico, e no um objeto propriamente dito. Completo engano! Pois, embora seja autor de clebres frases de efeito como A linguagem ordinria nos fornece a primeira pista, mas nem sempre a ltima (Austin, 1956: 182), Austin tambm chegou a declarar com todas as letras que no fazia menor idia que tipo de coisa fossem os conceitos e, muito menos ainda, os to-decantados universais que historicamente foram sempre invocadas na explicao destes (Austin, 1939:45). Ou seja, no entender de Austin, a filosofia havia de se contentar com o estudo minucioso do comportamento de palavras que se encontram na linguagem ordinria, porque esta se constitui em um verdadeiro depsito de todo um pensar filosfico que o ser humano vem desenvolvendo desde os primrdios dos tempos, um depsito que abriga todas as distines que, em algum momento histrico, serviu a propsitos especficos. evidente que o Austin que comea a emergir do tipo das consideraes feitas nesses ltimos pargrafos irreconhecivelmente diferente daquela caricatura estampada na leitura oficial. , no mnimo, um problematizador, algum cujas idias se revelam visceralmente conflitantes com respeito a certos dogmas da Filosofia Analtica e da Lingstica contempornea. Por certo, foi por meio de uma violncia interpretativa escacancarada que os pensamentos de um filsofo que desconfiava at mesmo dos conceitos e dos universais vieram ser, em nome de meros retoques finais e de uma reviso puramente formal, interpretados como desembocando numa teoria, em cujo arcabouo estariam, pasmem, nada mais e nada menos que os contedos proposicionais, entes translingsticos que servem como portadores de valores veritativos. Por que devemos, na qualidade de lingistas, escutar a voz deste outro Austin que a leitura oficial de sua obra nos impediu de ouvir? A resposta simples: O Austin que Searle e seus epgonos no quiseram ouvir e no quiseram que outros ouvissem traz tona uma srie de questes, quase todas milenares, porm nunca resolvidas de forma satisfatria, acerca da linguagem. E o que mais impressionante ainda, dos escritos de Austin podem ser depreendidas algumas das idias mais originais e ousadas, e por incrvel que parea, atuais a respeito dessas questes fundamentais.A seguir, em poucas palavras, abordarei o tema da atualidade do pensamento austiniano e sua relevncia para as grandes questes que concernem as reas de conhecimento que, de uma forma ou de outra, lidam com o fenmeno da linguagem. Sabemos que, um pouco antes do fim do sculo XIX, a Filosofia se viu atravessando um perodo de transformao profunda. A epistemologia, que nos sculos anteriores fora a principal preocupao (alm, claro, da ontologia) dos filsofos, cedeu lugar para a questo semntica. a famosa virada lingstica, assim batizada pelo filsofo norte-americano Richard Rorty. Com Frege, o autor dessa faanha, percebeu-se que no havia como estabelecer um contato direto entre a palavra e a coisa, sonho de toda a filosofia desde Plato. A referncia (Bedeutung), a ligao com o 112
mundo, tinha de passar antes pelo filtro do sentido (Sinn), pois a primeira se dava em funo do segundo, e jamais ao contrrio. Ora, pela primeira vez aps Kant, a filosofia estava encarando para valer o carter envolvente da linguagem humana, isto , a impossibilidade de pensar o mundo sem a intermediao da linguagem. Ocorre que a virada lingstica de Frege foi apenas um comeo; ela era destinada a ter desdobramentos, ao que tudo indica, jamais vislumbrados pelo sbio alemo. Uma vez que a questo de significao fora colocada no centro da ateno filosfica, no faltavam muitos passos para que os filsofos comeassem a perceber que a linguagem simplesmente no poderia continuar a ser encarada como um meio, em condies ideais perfeitamente transparente, atravs do qual se possa ter um contato com o mundo. Segundo a metafsica milenar, a transparncia da linguagem seria a nossa garantia de acesso sem distores ao mundo real, l fora. Com a mudana em curso no campo da filosofia, percebeu-se que a to-condenada opacidade da linguagem (tradicionalmente atribuda redao escolar malfeita e, no menos freqentemente, ao estilo do poeta, mestre em prevaricao e emprego de linguagem tortuosa) no um mal que deve ser evitado; mas a condio natural e prpria da linguagem, em todas as suas manifestaes e empregos, que por sua vez, longe de ser um mero veculo encarregado de transporte dos significados, cheio de artimanhas e comportamentos imprevistos, quase sempre resistente ao mando do seu usurio. A linguagem, em outras palavras, no mais um simples instrumento, mas um fenmeno poderoso em si, alheio vontade humana e, freqentemente, s suas intenes (e pretenses) conscientes. A linguagem nos fala, como chegou a sintetizar o novo pensamento, o filsofo alemo Martin Heidegger. a pense, o autor dessa clebre afirmao crptica e enigmtica , como sabido, o psicanalista Jacques Lacan que, raciocinando de forma anloga a Heidegger, identifica no inconsciente freudiano a fala do Outro. Desfaz-se, dessa forma, a autonomia do sujeito e a certeza, o consolo, proveniente do cgito cartesiano. Por outro lado, com a idia sem fim dos significantes que a linguagem nos impe, fica definitivamente descartada toda a esperana de ancorar a linguagem em qualquer espcie de significado transcendental. No seria difcil demonstrar que a psicanlise representa um estgio muito pontual no desenvolvimento da filosofia ocidental, embora os indcios mais claros nesse sentido sejam detectveis, no na tradio analtica, mas na vertente denominada continental (a perspectiva dos ingleses, que costumam referir-se ao resto da Europa como the Continent), ou mais precisamente, no pensamento de filsofos como Heidegger e, no momento atual, de pensadores como Jacques Derrida. Quem advoga essa tese com bastante poder de persuao Stanley Cavell (1987), para quem a psicanlise se constitui em a realizao (fulfillment) da filosofia - a despeito das reiteradas tentativas do prprio Freud no sentido de dissociar seu trabalho da tradio filosfica. Evidentemente, seria ingnuo afirmar que a figura de J.L. Austin, isto , aquela que a leitura oficial se esforou para esconder de ns, aglutina em torno de si todas essas tendncias e perspectivas que vm despontando no horizonte acadmico. por outro lado, o simples fato de seus pensamentos terem despertado tanto interesse em reas de conhecimento to variadas em si um fator que pede para ser levado em considerao quanto a qualquer especulao a respeito dos futuros rumos da 113
Lingstica. Quem sabe, dessa forma, a cincia da linguagem dos sonhos de Austin (Ver a Epgrafe deste trabalho) esteja, enfim, prestes a traduzir-se em realidade graas, como imaginava o filsofo ingls, a esforos conjugados de filsofos, gramticos, e muitos outros estudiosos da linguagem. Um possvel argumento contra uma lingstica de inspirao genuinamente austiniana (em oposio leitura de Austin motivada pelos interesses institucionais da Lingstica) teria a seguinte forma: Por que devemos nos preocupar com questes historicamente alheias aos interesses mais especficos da Lingstica que, desde os tempos dos antigos gregos ou de Panini, sempre manteve como objetivo principal, se no nico, a construo de gramticas das lnguas naturais, ou em momentos de maior autoconfiana e ambio, a construo de uma gramtica de todas as gramticas, a chamada gramtica universal? Por que repensar as metas consagradas de uma disciplina, se at agora nada parece indicar que os atuais rumos estejam esgotados ? A meu ver, o melhor modo de abordar a pergunta acima colocar em discusso um dos pressupostos que sustenta a prpria pergunta. Trata-se da idia de que uma rea de estudo qualquer - como a Lingstica - deve ter alguns princpios doutrinrios inegociveis, sob pena de no poder garantir sua prpria sobrevivncia institucional. Ora, para facilitar a discusso, seja tal princpio o de que a Lingstica jamais pode e deve abdicar seu perfil de uma cincia da linguagem, sendo que no qualquer tipo de investigao que pode ser caracterizada como verdadeiramente cientfica. Ocorre que o prprio termo cincia comporta muitas definies, muitas das quais so incompatveis entre si. Dito de outra forma, o que vem a ser uma cincia uma questo a ser decidida invariavelmente por aqueles que, naquele momento histrico em que a questo colocada em discusso, so considerados como estudiosos exemplares daquela rea de estudo. No nos esqueamos tambm de que os momentos mais vibrantes da histria recente da Lingstica foram aqueles em que houve uma vontade de enfrentar questes mais amplas e gerais, quando se evidenciou um grande interesse em dialogar com as demais reas de conhecimento, no pondo obstculos de antemo quanto ao tipo de questes abertas a discusso. Foi o que aconteceu com a revoluo chomskiana que fez sentir seu impacto em reas to diversas como a psicologia, a biologia, a filosofia, a matemtica, a teoria de informao, a inteligncia artificial etc. Isso se deu precisamente em virtude de grandes debates que mobilizaram alm dos linguistas, filsofos, matemticos, psiclogos, bilogos etc. Ainda a ttulo de mais um exemplo, convm lembrar que no foi por acaso que, no incio deste sculo, a Lingstica foi unanimemente acolhida como a Rainha das cincias humanas, fornecendo o modelo de anlise e conduta metodolgica para outras reas de estudo como a antropologia, sociologia, psicologia etc. Foi graas variedade e amplitude das questes que foram suscitadas pela interveno de Saussure, Jakobson e outros, num cenrio que no conhecia discusses de tal magnitude havia j um bom tempo.
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