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Clóvis Moura e o Livro 'Rebeliões Na Senzala': Um Breve Panorama Sobre o Debate Da Resistência Escrava - Gustavo Orsolon de Souza

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REVISTA DE HISTRIA

Clvis Moura e o livro Rebelies da Senzala: um breve panorama sobre o debate da resistncia escrava
Gustavo Orsolon de Souza Graduado em Histria/UFRRJ gustavo.orsolon@bol.com.br
Resumo: Este artigo tem o objetivo de abordar as principais interpretaes sobre as revoltas escravas ocorridas no sculo XIX, com a finalidade de verificar o desenvolvimento do debate sobre o tema e posicionar o leitor diante do livro Rebelies da Senzala (1959) de Clvis Moura, que teve sua obra marginalizada pela historiografia. O debate tem como ponto partida o trabalho de Nina Rodrigues de 1930, considerado por alguns estudiosos como o pioneiro no estudo das revoltas escravas, passando posteriormente para os trabalhos de pesquisadores que se destacaram na dcada de 40 como Arthur Ramos, Donald Pierson e Edison Carneiro, e finalizando com trabalhos mais recentes como de Joo Jos Reis, Flvio dos Santos Gomes e Stuart B. Schwartz, que analisam as dcadas de 50 e 60. Palavras chave: Histria, Clvis Moura, Resistncia Escrava Abstract:This article aims to discuss the main interpretations of the slave revolts occurred in the nineteenth century, with the purpose of verifying the ongoing debate on the topic and place the reader before the book Rebellions of Slaves (1959) Clvis Moura, who had his work marginalized by history. The debate has as starting point the work of Nina Rodrigues 1930, considered by some scholars as a pioneer in the study of slave revolts, rising subsequently to the work of researchers who have excelled in the 40's and Arthur Ramos, Edison Carneiro and Donald Pierson , and ending with more recent work as Joao Jose Reis, Flvio dos Santos Gomes and Stuart B. Schwartz, who analyze the 50 and 60. Keywords: History, Clvis Moura, Slave Resistance
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MOURA, Clvis. Rebelies da Senzala. So Paulo: Edies Zumbi LTDA, 1959. MOURA, Clovis. Rebelies da Senzala.

ste artigo tem o objetivo de abordar as principais interpretaes sobre as revoltas escravas ocorridas no sculo XIX, com a finalidade de verificar o desenvolvimento do debate sobre o tema e posicionar o leitor diante do livro Rebelies da Senzala (1959) de Clvis Moura. Faremos isso seguindo uma ordem cronolgica, que vai de 1930 at 1959, data da publicao do livro. Mas preciso deixar claro que no pretendo apresentar todas as publicaes, somente aquelas que considero importantes para a construo desse artigo.1

Clvis Moura nasceu em 1925 no Piau em uma famlia simples. Somente em So Paulo, por volta dos vinte anos de idade, que comeou a se interessar por estudar os negros no Brasil, estudo este, que resultaria mais tarde em seu primeiro livro Rebelies da Senzala.2 O pesquisador concluiu o curso de Cincias Sociais em 1953, na Universidade Estadual de So Paulo (UNESP), se tornando um dos principais estudiosos da formao social brasileira, embora seu prestgio s tenha vindo alguns anos mais tarde.3 Ento, em 1959, o livro Rebelies da Senzala foi publicado pelas Edies Zumbi que, de acordo com o historiador Mrio Maestri Filho, foi uma microeditora de So Paulo fundada por uma militante poltica comunista de nome Antonieta Dias de Moraes. Uma editora que publicava obras rejeitadas pela editora Vitria do Partido Comunista Brasileiro.4

O livro Rebelies da Senzala est dividido em sete captulos: Caractersticas Gerais; Participao do Escravo nos Movimentos Polticos; Quilombos e Guerrilhas; O Quilombo dos Palmares; A Bahia no Tempo das Revoltas; Insurreies e Ttica de Luta dos Escravos. Mas, o captulo Insurreies conta com sete subcaptulos, que apresentam os principais movimentos insurrecionais ocorridos na regio da Bahia. Tambm faz parte do livro um apndice onde o autor explicita para o leitor os documentos de arquivo utilizados para a construo do mesmo como, por exemplo, fragmentos de jornais de poca.5 O primeiro captulo do livro intitulado Caractersticas Gerais visa apresentar um pouco da histria do Brasil: a chegada dos portugueses, a explorao de mo de obra indgena, o trfego de escravos, as transformaes ocorridas no sculo XIX e a explorao de mo de obra negra. A partir do primeiro captulo Caractersticas Gerais, os captulos seguintes seguem uma investigao da participao dos negros em quilombos, em insurreies e em revoltas ocorridas pelo pas tambm no sculo XIX. Em sua abordagem, Moura faz uso de fontes primrias e secundrias, num dilogo que permite observar a imagem do negro escravizado de uma outra maneira, nesse caso, atuante e participativo. Embora produzindo nesse perodo, Clvis Moura no era considerado pela elite intelectual um pesquisador importante. Essa elite era composta por aqueles que produziam dentro da academia, mais precisamente dentro da Universidade de So

Clvis Moura visto hoje como um grande pesquisador da questo negra, afirmao esta que pode ser comprovada pelos estudiosos que trabalham com o mesmo tema. Estes pesquisadores se posicionam no somente em relao ao livro Rebelies da Senzala, mas em relao a toda obra de Clvis Moura. Para a doutora em Cincias Sociais rica Mesquita, Moura valorizou a participao do negro na sociedade, tornando-o um portavoz dos negros na luta por sua cidadania. Cf: MESQUITA, rika. Clvis Moura: uma viso crtica da histria social brasileira. Campinas SP: UNICAMP , 2002. p. 187. J o Doutor em Cincias Sociais pela USP Kabengele Munanga, se impressiona com a complexa obra de Clvis Moura, que segundo ele, trouxe o negro em todos os ngulos e, no como apenas um objeto a ser pesquisado por uma classe dominante. Cf: MUNANGA, Kabengele. Professor Clvis Moura: autor de uma obra complexa e ininterrupta sobre a histria e os problemas do negro brasileiro. In: Clvis Moura Fragmentos de vida e obra. CD ROM. Braslia: Fundao Cultural Palmares, 2006. Para o jornalista Jos Carlos Ruy, Clvis Moura teve o objetivo de investigar com o livro Rebelies da Senzala o passado, para que dessa forma, pudesse compreender as lutas negras do presente. Ainda segundo o pesquisador, o livro o primeiro estudo onde a histria do negro passa a ser contada dentro da histria do povo brasileiro. Cf: RUY, Jos Carlos. Rebelies da Senzala lies de luta. In: ALMEIDA, Luiz Svio de (org). O Negro no Brasil: estudos em homenagem a Clvis Moura. Macei: EDUFAL, 2003. p. 149.
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MAESTRI FILHO, Mrio Jos. Clvis Moura: uma viso revolucionria precoce sobre o Brasil. In: Clvis Moura Fragmentos de vida e obra. CD ROM. Braslia: Fundao Cultural Palmares, 2006. p. 1 MOURA, Clvis. Rebelies da Senzala.

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Paulo. Clvis Moura estava fora de uma instituio acadmica, fato este que, segundo Joo Baptista Borges Pereira, antroplogo e doutor em cincias humanas pela USP , dificultava muito a trajetria de um pesquisador.6 E o livro Rebelies da Senzala vem justamente mostrar o escravo como um elemento atuante e participativo, que contribuiu para o desgaste do sistema escravista. Assim, como afirmou o historiador Manuel Correia de Andrade, o livro desmistificou a tradicional histria de que o negro era submisso e obediente, em contraposio ao ndio, que era rebelde e insubmisso.7 O intelectual que na dcada de 60 no foi valorizado e reconhecido, hoje considerado um importante pesquisador da questo negra no Brasil, tendo sido posteriormente convidado pela Universidade de So Paulo (USP) para participar de algumas bancas como professor notrio saber devido ao reconhecimento de sua vasta obra: Rebelies da Senzala (1959), O Preconceito de Cor na Literatura de Cordel (1976), O Negro: de Bom Escravo a Mau Cidado? (1977), Razes do Protesto Negro (1983), Dialtica Radical do Brasil Negro (1994), Os Quilombos na Dinmica Social do Brasil (2001) e entre outros.8 Seguindo a ordem cronolgica adotada neste artigo, o primeiro livro publicado sobre o tema da resistncia escrava de Nina Rodrigues, Os Africanos no Brasil (1932).9 Foi Nina Rodrigues, o pioneiro das questes afro-brasileiras e tambm das revoltas escravas, pelo menos o que indica alguns estudiosos.10 Para o antroplogo Arthur Ramos, Nina Rodrigues foi o primeiro autor a escrever sobre negros na Bahia, fazendo as primeiras descries do que mais tarde seria identificado como processo de aculturao.11 Ramos ainda aponta que o maior mrito da Escola de Nina Rodrigues foi ter inaugurado os estudos sobre a herana africana no Brasil e tambm sobre suas modificaes.12 Para o historiador Flvio Gomes, as primeiras abordagens sobre os temas afro-brasileiros surgiram a partir dos anos de 1930, sendo um desdobramento da Escola de Nina Rodrigues.13 Nina Rodrigues foi um mdico, mas o interesse que tinha em relao aos temas afro-brasileiros fez com que buscasse estudar os negros no Brasil. Em sua interpretao, Rodrigues faz um mapeamento das procedncias africanas dos negros brasileiros, assim como das sobrevivncias de determinados costumes, dentre estes, da lngua e da arte. Mas o que chamou mais ateno em seu trabalho foi sua dedicao a um dos mais importantes focos de resistncia escrava no Brasil, que foi o Quilombo dos Palmares. O pesquisador observou a estrutura formada pelos negros refugiados, utilizando, para isso, uma proposta de Rocha Pitta em Histria da Amrica Portuguesa (1930), que compara o quilombo dos

Palmares a uma Repblica. Alm disso, Nina Rodrigues evidencia a fora desse quilombo, que dificultou muito a ao repressiva das autoridades da poca, sendo, portanto, uma preocupao constante para a sociedade.14 Para Pedro Paulo Funari e Aline Vieira de Carvalho, em obra mais recente, Nina Rodrigues utilizou o mtodo comparativo para analisar as culturas presentes nos quilombos, utilizando-se de alguns aspectos como a religio e a alimentao, e as comparou com as prticas das comunidades africanas. O quilombo, ento, seria resultado de uma resposta contra-aculturativa dos negros escravos15 Ainda na dcada de 30, e na virada para a dcada de 40, pode-se destacar o trabalho de Arthur Ramos, que dava continuidade Escola de Nina Rodrigues. Em As Culturas Negras no Novo Mundo (1937), Ramos se preocupa em propor uma abordagem diferente para o tema negro, ou seja, procura observar as particularidades de cada povo africano que veio para o Brasil. Alm disso, o antroplogo mostra que o negro no pode ser visto como um elemento pitoresco, como por algum tempo foi visto pelos contadores de histria, que viveram nos perodos colonial e imperial.16 Ramos, ento, tenta desconstruir essa idia, mostrando que o negro no pode ser entendido como um elemento da moda, mas sim, como um assunto permanente, pois ele faz parte do material da casa. Assim, o pesquisador observa as vrias formas das culturas negras que vieram para o Novo Mundo, evidenciando as singularidades de cada uma.17 Na concluso de seu trabalho, Ramos propem pensar que ocorreram trs resultados de aculturao, sendo estes: a aceitao, a adaptao e a reao. No primeiro caso, o autor acredita que alguns povos que vieram para o Novo Mundo aceitaram a cultura local, com perda ou esquecimento da cultura antiga. O segundo, a adaptao, entendida como uma combinao harmnica entre as duas culturas, ou seja, a original e a estrangeira. E no terceiro e ltimo caso, o de reao, quando surgem os movimentos contra-aculturativos. Para Ramos, o processo de reao acontece quando os povos africanos no aceitam os traos culturais estrangeiros.18 atravs do conceito de reao que se ter, segundo Ramos, a formao dos quilombos. Isso significa que seria o resultado do processo contra-aculturativo. Na anlise de Flvio Gomes, Arthur Ramos observa que as comunidades de fugitivos e seus arranjos scio-econmicos tinham como propsito manter os Estados Africanos, sendo assim, uma reao contra opresso sofrida pelo regime escravista.19 Em 1943, temos a publicao de uma coleo de

6 PEREIRA, Joo Baptista Borges. O ltimo Legado de Clvis Moura. In: Instituto de Estudos Avanados da USP, v. 18, n. 50. So Paulo: USP , 2004. p. 1. Disponvel na Internet via : http://www.scielo.br/scielo.php?script =sci_arttext&pid=S010340142004000100027&lng=en&nrm=i sso. Acesso em 16/01/09.

ANDRADE, Manuel Correia de. Clvis Moura e a questo racial no Brasil. In: ALMEIDA, Luiz Svio de (org). O Negro no Brasil: estudos em homenagem a Clvis Moura. Macei: EDUFAL, 2003. p. 118.

8 Segundo o professor de Direito da Universidade Federal do Cear Hugo de Brito Machado, o ttulo de notrio saber tem sido uma prtica muito utilizada pelas universidades do pas para qualificar a pessoa que no fez curso de especializao, como doutorado, mas possui conhecimentos equivalentes. , portanto, um ttulo de reconhecimento pessoa que produziu fora do ensino formal. Cf: MACHADO, Hugo de Brito. Notrio Saber. Disponvel na Internet via: h t t p : / / b d j u r. s t j . g o v. b r / j s p u i / b i t stream/2011/947/1/Not%C3%B3rio_ Saber.pdf. Acesso em: 20/01/09.

RODRIGUES, Nina. Os Africanos no Brasil. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1932.

10 Dentre os estudiosos que consideram Nina Rodrigues como pioneiro no estudo das questes negras, os mais importantes so o antroplogo Arthur Ramos e o historiador Flvio Gomes.

11 RAMOS, Arthur. As Culturas negras no Novo Mundo. 3 ed. So Paulo. Companhia Editora Nacional, 1979. p .XX.

12 RAMOS, Arthur. Aculturao Negra no Brasil: uma escola brasileira. Revista do Arquivo Nacional. So Paulo, v. 83, 1942. p. 129-158.

13 GOMES, Flvio dos Santos. Histrias de Quilombolas mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, sculo XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 2006.

14 Cf: PITTA, Rocha. Histria da Amrica Portuguesa. Rio de Janeiro: W. M. Jackson Editores, 1952,

15 FUNARI, Pedro Paulo; CARVALHO, Aline Vieira de. Palmares, Ontem e Hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p. 35.

16RAMOS, Arthur. As Culturas negras no Novo Mundo. 3 ed. So Paulo. Companhia Editora Nacional, 1979. p. XXI.

17 RAMOS, Arthur. As Culturas negras no Novo Mundo. 3 ed. So Paulo. Companhia Editora Nacional, 1979, p. XXII.

18 RAMOS, Arthur. As Culturas negras no Novo Mundo, p. 245.

19 GOMES, Flvio dos Santos. Histrias de Quilombolas mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, sculo XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 2006, p 11.

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Arthur Ramos, que uma continuao de sua pesquisa, porm, com dados novos sobre o negro. A coleo composta de quatro volumes. No primeiro, As Culturas No Europias, analisa o ndio e o negro de uma forma sistematizada, tendo como foco principal a observao lingustica e cultural de quatro grupos indgenas: Tupi-Guarani, Ge, Aruak e Caribe. O segundo volume intitulado de As Culturas Negras, e examina as culturas africanas, com o objetivo de compar-las com as culturas sobreviventes no Brasil, como o grupo Nag, Geg, Mina, Mal e Bantu.20 O terceiro e quarto volumes so estudos sobre Culturas Europias e o Contato de Raas e Culturas, que visa observar os problemas gerais da imigrao e colonizao, como tambm as caractersticas culturais dos povos encontrados no Brasil.21 A tese de doutorado do norte-americano Donald Pierson foi defendida em 1939, mas s foi publicada no Brasil em 1943, com o ttulo de Brancos e Pretos na Bahia. um trabalho muito importante para a poca, pois seu objetivo consistia em reconsiderar a exata identificao da situao racial no Brasil. Isso porque, segundo o pesquisador, os vrios estudos que surgiram em torno dessa discusso traziam elementos contraditrios, que se devem principalmente falta de pesquisas empricas de qualidade e ao exagero nas abordagens de carter geral, no levando em conta a heterogeneidade e ocasionando, assim, um quadro distorcido do problema.22 Pode parecer um tanto pretensiosa a palavra reconsiderar, mas logo vemos que a inteno de Pierson apenas desconstruir alguns esteretipos em relao ao negro. Essa reconsiderao s foi possvel graas identificao de problemas de generalizao e de pouca pesquisa, que foram cometidos por alguns estudiosos.23 Embora as revoltas escravas no sejam seu foco principal, Pierson no deixa de mencion-las. Para o autor, os quilombos eram uma forma de proteo mtua entre os escravos. Um outro ponto que destacamos na interpretao do autor o fato de trazer um olhar diferente em relao ao negro, ou seja, o autor sugere pensar que nem todos viram os escravos como um elemento social oprimido e triste com sua condio.24 Tal observao pode ser conferida nos relatos de viajantes utilizados pelo autor, que mostram, por exemplo, que nem todos os escravos eram humilhados, ou, pelo menos, no transmitiam essa imagem. No caso do relato do ingls Hastings Charles Dent, o visitante diz que nunca encontrou outro tratamento que no fosse de muita bondade do senhor para com seu escravo. Para o outro viajante, chamado de Gilbert Farqwhor Mathison, a aparncia animada e as condies fsicas do escravo mostravam que eram muito bem tratados.25A proposta, sem dvida, gerou muita

polmica, mas para Jeferson Afonso Bacelar, doutor em Cincias Sociais, o trabalho de Pierson rompeu com os padres vigentes no universo intelectual, na medida em que estudava de uma forma mais concreta uma dada realidade social, enfocando as relaes entre brancos e pretos no interior de uma sociedade regional.26 No final da dcada de 40, mais precisamente no ano de 1947, foi publicado o livro O Quilombo dos Palmares, um grande avano na historiografia acerca da resistncia escrava, isso porque o livro analisou o Quilombo dos Palmares atravs de vrios ngulos: econmico, militar e cultural. Edison Carneiro, autor da obra, embora formado em Direito, teve grande interesse em estudar temas afro-brasileiros e, trouxe uma interpretao bem interessante para se pensar a reao do negro ao escravismo. Segundo o autor, essa reao do negro na Amrica Portuguesa teve trs aspectos importantes que so: a revolta organizada; a insurreio armada e a fuga para o mato.27 Para Carneiro, o quilombo era uma reao negativa de fuga e de defesa, ou seja, negativa no sentido de insatisfao ao rigor e violncia em que eram submetidos dentro das senzalas. E, particularmente no caso de Palmares, foi uma reao to forte que a comunidade conseguiu sobreviver por quase um sculo sem ser destruda pelas vrias expedies militares enviadas pelo governo. Para evidenciar a estrutura bem organizada de Palmares, Carneiro tambm faz uso, assim como Nina Rodrigues, do trabalho de Rocha Pitta, que compara o quilombo a uma espcie de Repblica Rstica.28 De acordo com o prprio Edison Carneiro, o seu objetivo com o livro trazer novamente vida o Estado negro e, ao mesmo tempo, eliminar as fantasias e espantar o silncio sobre o tema.29 Para Flvio Gomes, Edison Carneiro foi o primeiro a estudar a organizao poltica, econmica, militar, cultural e social do Quilombo dos Palmares.30 preciso destacar ainda o trabalho do norteamericano Stuart B. Schwartz, Escravos, Roceiros e Rebeldes (2001), que apontou que antes da dcada de 50, o estudo sobre o negro se voltava mais para a cultura escrava, como foi o caso dos trabalhos de Nina Rodrigues e Arthur Ramos e que no houve interesse por parte dos historiadores aps 1950 em dar continuidade a Escola de Nina Rodrigues. J a partir da dcada de 60, os trabalhos se voltaram para estudos comparativos da escravido, aumentando assim, o interesse no aprofundamento do tema.31 Segundo Schwartz, o objetivo, por exemplo, dos socilogos paulistas, era entender como repercutiu o escravismo no desenvolvimento da economia brasileira.32 Segundo Joo Jos Reis e Flvio dos Santos Gomes, em Liberdade por um Fio (1996), no final dos anos 50, os estudos sobre revolta e rebeldia

20 RAMOS, Arthur. As Culturas Negras. Rio de Janeiro: Livraria Editora da Casa do Estudante do Brasil, 1943.

21 RAMOS, Arthur. As Culturas Negras, p.35.

22 PIERSON, Donald. Brancos e Pretos na Bahia. 2 ed. So Paulo: Companhia Editora Nacional, 1971. p. 29.

23 Os esteretipos que Donald Pierson pretende desconstruir esto ligados aos cinco problemas destacados logo na introduo de sua pesquisa. So eles: 1) s caractersticas heterogneas dum pas imenso; 2) natureza sutil da situao racial no Brasil; 3) o papel desempenhado no processo de comunicao pelos significados de palavras; 4) ao restrito volume de pesquisas de qualidade emprica produzida em relao a este problema; e 5) s variaes nos objetivos, abordagens e mtodos dos escritores da especialidade, alguns dos quais, por terem indevidamente exagerado certos aspectos da situao total, ofereceram um quadro inconscientemente distorcido. Segundo o pesquisador, estes problemas impediram uma exata compreenso da situao racial no Brasil. Cf: PIERSON, Donald. Brancos e Pretos na Bahia, p. 29.

24 PIERSON, Donald. Brancos e Pretos na Bahia, p 127 e 157.

25 PIERSON, Donald. Brancos e Pretos na Bahia, p 157.

26 BACELAR, Jeferson Afonso. A Hierarquia das Raas: negros e brancos em Salvador. Rio de Janeiro: Pallas, 2001. p . 90.

27 CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1966. p. 03.

28 CARNEIRO, Edison. O Quilombo dos Palmares, p. 3-4.

29 CARNEIRO, Edison. O Quilombo os Palmares, p. 14.

30 GOMES, Flvio dos Santos. Histrias de Quilombolas mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, sculo XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 11-12.

31 SCHWARTZ, Stuart B. Escravos, Roceiros e Rebeldes. So Paulo: EDUSC, 2001. p. 26 e 42.

32 SCHWARTZ, Stuart B.. Escravos, Roceiros e Rebeldes, p. 26.

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tornam-se objeto da historiografia. O livro Rebelies da Senzala (1959) de Clvis Moura marca esse perodo, trazendo uma viso marxista em relao aos quilombos.33 Mas, alm de Moura, outros pesquisadores posteriormente, como Luis Luna, Jos Alpio Goulart e Dcio Freitas iro trabalhar com a temtica da resistncia.34 Para Reis e Gomes, esses pesquisadores tentam desconstruir a idia defendida na dcada de 30 por Gilberto Freyre, de que as relaes escravistas seriam harmoniosas35. O livro Rebelies da Senzala segundo Reis e Gomes - trouxe um rico material emprico com vasta pesquisa em arquivos. Na mesma poca, vrios trabalhos eram produzidos na Universidade de So Paulo a renomada Escola Paulista - mas deixavam a questo da resistncia escrava em segundo plano. Dentre estes autores, destacam-se Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes e Octavio Ianni, que representavam a elite intelectual nesse momento36: Stuart B. Schwartz concorda com Joo Jos Reis e Flvio Gomes, e tambm apontou que a dcada de 60 marcada pelos estudos de jovens socilogos de So Paulo, que seguiam a linha marxista, tendo uma viso materialista da sociedade. Segundo Schwartz, esses estudiosos paulistas elegeram como objeto de estudo as conseqncias econmicas e sociais da escravido, diferenciando assim da anlise de Clvis Moura, que embora tambm siga uma linha marxista, se preocupa fundamentalmente com a reao dos negros ao sistema escravista.37 Moura foi considerado por Flvio Gomes como o pioneiro em uma anlise mais sociolgica sobre as comunidades de fugitivos e suas relaes com a sociedade, ou seja, para Gomes, Moura buscou estudar as comunidades quilombolas para entender a sociedade escravista.:38 O trabalho de Clvis Moura no traz esta idia de isolamento ou de marginalizao. O escravo, em sua interpretao, no visto como uma figura calada e submissa, que aceitava passivamente as imposies do sistema escravista. Na anlise de Moura, o escravo lutava contra as condies a que estava submetido e participava ativamente das relaes sociais. Em depoimento, Clvis Moura afirmou que o seu objetivo com o livro Rebelies da Senzala foi demonstrar a atuao dos agentes sociais oprimidos, que mesmo no tendo conseguido vencer em muitas de suas revoltas, foram figuras importantes no processo de mudanas na histria do Brasil escravista.39 Essa preocupao com a recuperao da memria e da obra de Clvis Moura recente. Depois de cruzar as informaes da discusso bibliogrfica com os dados da trajetria de Clvis Moura, foi possvel observar uma relativa margina-

lidade de sua obra, desde o momento da publicao do livro Rebelies da Senzala, em 1959, at pelo menos no final da dcada de 70, quando, segundo Schwartz, o pas passa por um perodo de conscientizao sobre assuntos relacionados desigualdade racial, com crescente interesse pela escravido, o que faz com que os trabalhos sobre a resistncia escrava sejam revistos.40

33

MOURA, Clvis. Rebelies da Senzala. So Paulo: Edies Zumbi LTDA, 1959.

34 Cf: LUNA, Luis. O Negro na Luta Contra a Escravido. Rio de Janeiro: Leitura, 1968. FREITAS, Dcio. Palmares, a guerra dos escravos. 5 ed. Porto Alegre: Mercado Aberto, 1984. GOULART, Jos Alpio. Da Fuga ao Suicdio. Rio de Janeiro: Conquista, 1972.

35

Cf: FREYRE, Gilberto. Casa Grande Senzala: formao da famlia brasileira sob o regime de economia patriarcal. 2 ed. Rio de Janeiro: Schimidt, 1936.

36 REIS, Joo Jos. GOMES, Flavio dos Santos. Liberdade por um Fio. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. p.12-13.

37 SCHWARTZ, Stuart B.. Escravos, Roceiros e Rebeldes. Trad. Jussara Simes. So Paulo: EDUSC, 2001. p. 25-26.

38 GOMES, Flvio dos Santos. Histrias de Quilombolas mocambos e comunidades de senzalas no Rio de Janeiro, sculo XIX. So Paulo: Companhia das Letras, 2006. p. 13

39 Depoimento de Moura apud ALMEIDA, Luiz Svio de (org). O Negro no Brasil: estudos em homenagem a Clvis Moura. Macei: EDUFAL, 2003. p. 12.

40 SCHWARTZ, Stuart B.. Escravos, Roceiros e Rebeldes, p. 39.

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