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Olhar Viajante - Antropologia, Criança e Aprendizagem PDF

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Olhar viajante: Antropologia, criana e aprendizagem


Neusa Maria Mendes de Gusmo*

Resumo: O presente texto procura aproximar a Antropologia do percurso e do itinerrio de Mrio de Andrade e suas relaes com o universo infantil. Nesse intuito, assume, por princpio, que as crianas, de qualquer grupo, sociedade ou cultura, sabem de si, sabem onde esto, o que faz parte de suas vidas; conhecem seu mundo; e se confrontam com os princpios de pertena e identidade que lhes so atribudos. Assim, no mais profundo dos cotidianos sociais de diferentes grupos, opera a percepo de mundo, que se constri como parte de um conhecimento, por vezes naturalizado, e que exige ser desnaturalizado por meio da compreenso das mltiplas linguagens do social, inscritas nas dimenses ocultas do cotidiano, num trnsito entre o real institudo e o real instituinte. Ressalta-se que o trnsito e o itinerrio em que atuou Mrio de Andrade na sua busca pelo imaginrio da infncia so os mesmos que a Antropologia percorre no debate da infncia, da criana, da cultura e da sociedade. Palavras-chave: Antropologia; criana; aprendizagem; cultura; Mrio de Andrade.

A travelling look: anthropology, children and learning


Abstract: The discussion of Anthropology as a science in dialogue with other elds of knowledge, among them education, puts the science we practice in the center of discussion and its eects or consequences when it is used to go from one eld to another. The notion of culture becomes emblematic of this process, especially in American Cultural Studies which echoes in education more than it does in Latin America. Over there, the anthropological tradition is still recognized by its political and explanatory importance. This debate highlights the need for the anthropology of education to be modern and critical, a eld under construction. This new anthropology should be present in the training of educators and social scientists, in order to confer autonomy and social responsibility to those intellectual working professionals, who educate and search various social realities to build knowledge. Key words: anthropology; children; learning; culture; Mrio de Andrade.
E h sempre que distinguir entre ensino e aprendizagem: o primeiro feito pela escola e pelos adultos e a segunda s pela criana (Iturra, 1997)

Em minhas pesquisas, tenho trabalhado com os quotidianos marginais desvendados pelas crianas, em narrativas, em textos culturais expressos por diferentes

Antroploga e professora titular do Departamento de Cincias Sociais na Educao (Decise) da Faculdade de Educao da Unicamp, Campinas, SP , Brasil. neusagusmao@uol.com.br Pro-Posies, Campinas, v. 23, n. 2 (68), p. 161-178, maio/ago. 2012

162 formas e meios, por diferentes linguagens: da fala ao corpo, da ao representao, da escrita oralidade, dos gestos aos grasmos, dana e demais formas possveis de expresso, arte e comunicao, que constituem um complexo jogo de imagens. Trata-se das muitas linguagens do social que revelam a existncia de espaos de cultura e alteridade, produtos vitais do mundo concreto, do imaginrio e da imaginao1. A diversidade cultural presente nisto que chamo de textos culturais da infncia uma signicativa expresso de como se constri a alteridade, posto que outras imaginaes, outras subjetividades conduzem o olhar sobre a infncia, a compreender-lhes os interditos. Nesses textos, o real representa-se como parte do imaginrio daqueles que vivem sua infncia num contexto social marcado pela alteridade e pelo poder. O imaginrio diz respeito, portanto, parte cativa de nossa imaginao. Cativa pelos valores dominantes, pelo poder das mdias, dos meios de comunicao e aprisionada num modelo de sujeito humano que se espera todos e cada um venham ser. Para alm dos elementos presentes na cena emprica do cotidiano, nessas imagens visuais e textuais, sempre busquei o inusitado que incita a transgresso criadora que envolve a imaginao. Esta permite dimensionar as marcas, os ritmos das prticas culturais, num processo ambguo de armao e negao, de denncia e conscincia a que denomino Jogo de Imagens. Nesse jogo, as imagens revelam a experincia cotidiana, unida aos valores do social cujos signicados, numa forma de linguagem visual compartilhada, falam da vida em sociedade, do modo como os indivduos so classicados e de como podem ou devem relacionar-se entre si, com a natureza e com o cosmo (Vidal, l992, p. 284). Dois exemplos evidenciam como culturas diversas privilegiam conceitos e representaes, tambm diversas, presentes no cotidiano da vida ordinria. Num primeiro caso aqui ilustrado pela Figura 1 , os conceitos e as representaes ligam-se: - s relaes entre indivduos e grupos em sociedade O texto escrito e as imagens que o acompanham apontam qualidades diversas para negros e brancos, dizendo do comportamento esperado e sugerindo o que acontece nas relaes entre a criana negra e a criana branca: o branco chinga (sic) o negro. O segundo texto refora o prprio desenho, identicando a condio negra do autor, ao dizer: o preto mais escuro e no podemos (sic) chingar os outros (quem no pode? ns, negros). O desenho dessa criana revela a
1 Muitas passagens do presente texto foram compiladas de outros textos e de falas de minha autoria, j publicados, mas que aqui tm por funo aproximar a Antropologia do percurso e itinerrio de Mrio de Andrade e suas relaes com o universo infantil, conforme solicitado para palestra em evento promovido pelo Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP em 2010. Trata-se, portanto, de releituras entre novos argumentos em torno da temtica proposta.

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163 percepo de estar num grupo e fazer parte de uma dada realidade que se encontra dividida em segmentos com marcas sociais especcas, em relaes de poder diversas, conforme se faa parte de um ou de outro segmento. Figura 1 Desenho de criana negra

Fonte: Gusmo, 1999

Num segundo caso, a Figura 2 expe os conceitos e as representaes: - representam entidades sobrenaturais e conceitos cosmolgicos mais amplos Figura 2 Desenho de criana indgena

Fonte: Andujar, 1982

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164 O autor, uma criana Yanomami, arma que desenhou a vida de seus dedos, a fora vital emitida pelos seus dedos. O que diz claro: trata-se da viso de mundo Yanomami2 representada gracamente. O desenho fala, por si mesmo, da interioridade que habita o indivduo e da coletividade de que ele faz parte e que transcende sua exterioridade. O desenho dessa criana indgena diz de sua condio integral de SER, enquanto membro de um grupo e de uma cultura singular. Os dois exemplos so parte do caminho que escolhi para falar de algo que sabemos, mas que, com frequncia, esquecemos ou negamos em nossos discursos acadmicos e sociais: que as crianas, de qualquer grupo, sociedade ou cultura, sabem de si, sabem onde esto, o que faz parte de suas vidas; conhecem seu mundo; e se confrontam com os princpios de pertena e identidade que lhes so atribudos. Os exemplos acima evidenciam que
antes de qualquer coisa, os desenhos como imagens constituem a legitimao e a memria que reete as condies sociais. Reete, tambm, a conscincia social que prevalece mesmo de modo indireto e que se expressa por meio de contedos manifestos ou latentes, cuja interpretao supe o conhecimento exaustivo da realidade concreta. (Gusmo, 1993, p. 53)

As imagens expressam as relaes, as associaes e os sentimentos em relao ao vivido e permitem associar signicados do que se e do que se poderia ser na relao com o outro, um igual ou um diferente. Revelam, ainda, a partir da experincia concreta, a representao e a expectativa de que somos portadores diante da vida. Portanto, grasmos e desenhos so gritos silenciosos que, via imagens e representaes, ligam aes concretas com experincia. E ainda, abstrao, cognio, comunicao que esto referidas s mltiplas possibilidades de interao social e comunicativa. Isso quer dizer que a sociedade moderna e dominante, sociedade da escrita que caa a palavra de quem menos, que no o deixa falar, no nem pode ser absoluta em seus propsitos. Mostra que, tendo-lhe sido negado o direito a uma vida plena, ela, criana, encontra outras formas de expressar o que sente. Diz, assim, de outra forma, o que no pode dizer, pura e simplesmente pela fala. A reao dos sujeitos sociais, suas transgresses, mesmo nas brechas do sistema, revela que a cultura nunca inteiramente fechada e a criana sabe o que vive e comunica aquilo que sabe. o adulto que no a ouve ou v, deixando de aprender com ela, e, assim, no estabelece a comunicao e o trnsito entre vivncias, saberes, aprendizagem e ensino.
2 O texto que acompanha a imagem explica que os Yanomamis acreditam que tudo no mundo, animal, vegetal ou mineral, consiste numa casca que contm a energia da vida. O desenho a energia da vida que sai do homem e flui pelos dedos dessa criana.

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165 Neste prembulo, cabe perguntar: o que esse pensar e reetir tem a ver com Mrio de Andrade e com a Antropologia?

Mrio de Andrade e a Antropologia


O olhar em torno de diferentes imagens, sejam elas de lmes, desenhos, fotograas ou outras quaisquer, permite uma viagem pela imaginao e a descoberta de mltiplas linguagens do social. Uma viagem que se debate entre contextos, situaes e fatos, mas que pressupe a possibilidade alternativa daquilo que ela prpria representa. Nesse sentido, as imagens no dizem tudo, mas sempre dizem algo a respeito de alguma coisa. O que dizem e o como dizem operam nossas mentes culturais e colocam-nos como sujeitos de imaginrio prprio, resultantes de uma dada cultura, de uma dada sociedade, de um grupo e lugar. Assim, estabelece-se um divisor de guas entre imaginrio social, sempre cativo do mundo da ordem, e a imaginao, espao de criao e liberdade. Nesse contexto, o desao est em compreender a mente humana, conformada de forma aberta pela natureza, pela sociedade e pela cultura. No h, portanto, um absoluto imaginrio que opere a mente humana, posto que esta seja, sempre, produto de condies histricas concretas e determinadas e, como tais, sempre relativas. Nesse sentido, o espao da produo social, ainda no inteiramente cativo das convenes e do campo de poder, torna-se um espao potencial de descoberta e transformao. A, constitui-se a Antropologia via a descoberta de outras lgicas sociais e das muitas possibilidades de realizao do viver humano. Um viver que se expressa de diferentes formas, em mltiplas prticas, em atos constitutivos de mltiplas imagens e linguagens. Pode-se dizer que as prticas sociais de indivduos que compartilham uma dada realidade conformam imagens cujas formas, por mais diversas que sejam, constituem linguagens que dizem do grupo, da sociedade e da cultura. Assim, o mundo real e a realidade de diferentes sujeitos so o centro do olhar antropolgico que, muitas vezes, olha para o aparentemente banal e insignicante das prticas humanas, para descobrir que a onde o homem, a mulher, a criana, o indgena, o ser humano em geral, melhor se expressam. Assim, o que um grupo, uma sociedade, uma cultura dizem encontra seu limite e suas possibilidades no mbito das relaes entre os homens, de maneira situada no tempo e no espao. Portanto, cabe reconhecer que o caminho do imaginrio ocidental penetra no mais profundo dos cotidianos sociais de diferentes grupos e neles opera a percepo de mundo, percepo esta que nem sempre, ao contemplar o outro, o v em sua dimenso e realidade. Assim, muitas vezes, v-se o corpo dos sujeitos sociais, mas no sua alma. Com isso, o que se constri faz parte de um conhecimento compartimentado que ora v uma coisa e no v outra; v um cotidiano pleno de marcas e alegorias, mas o naturaliza e passa ao longe de poder compreender os fatos,
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166 compreender as mltiplas linguagens do social, inscritas nas dimenses ocultas do cotidiano, num trnsito entre o real institudo e o real instituinte. Nesse trnsito opera a Antropologia, e atuou Mrio de Andrade, em seu projeto e em sua busca pelo imaginrio da infncia, com suas danas e seus desenhos representativos da especicidade da criana como sujeito e de sua relao com o outro, o adulto, a cultura, a sociedade. Para Mrio, as mltiplas linguagens do social, como desenhos infantis, contos, danas e cantos populares, tidos como folclore, teriam a condio de permitir apreender a realidade brasileira e compreend-la em seus prprios termos, ou seja, dentro de uma concepo nacionalista, no desejo de pensar o Brasil e seu povo3. Por outro lado, como intelectual polivalente, Mrio pe em prtica seu projeto, no apenas por aquilo que se encontra no desdobrar de sua vida, de sua obra e de sua atuao em diferentes campos, como aponta Gobbi (2010). Ele o faz, tambm, porque, entre os anos de 1929 e 324, torna-se um estudioso dos assuntos culturais brasileiros e busca conhecer a Antropologia brasileira que se pratica. Como diz Valentini (2011), a motivao principal do namoro com a Antropologia foi o projeto de uma arte inteiramente nacional para consolidar um iderio de nao brasileira, presente tambm nos modernistas da poca. Nessa medida, torna-se, ele prprio, um turista aprendiz a caminhar por diferentes paragens (Gobbi, 2010, p. 71, nota 2, grifo da autora). Como aprendiz, no apenas ir transitar por lugares distantes da sociedade brasileira, coletando e sistematizando inmeras manifestaes culturais, como tambm ir se aproximar do mundo acadmico paulista em formao, particularmente na USP, e dos professores franceses que chegam com a misso francesa a So Paulo. Entre estes, Claude Lvi-Strauss, ainda preocupado com a Sociologia, mas que se far antroplogo em solo brasileiro, e sua esposa, Dina Dreyfus Lvi-Strauss. As intensas trocas, os fecundos dilogos e as experincias partilhadas entre o casal Lvi-Strauss e Mrio de Andrade so, assim, constitutivos da Antropologia brasileira daquele momento. Pode-se armar que os interesses em comum no campo das artes e das cincias sociais em constituio no Brasil os conduzem, tal como demonstra o trabalho de Valentini (2011), a conformar um laboratrio de Antropologia que ser o embrio da Sociedade de Etnologia e Folclore, fundada no ano de 1937. Assim, a possibilidade de reconstruo histrica da vida cultural, seja dos amerndios, seja do povo brasileiro, atravessa as indagaes de Lvi-Strauss, Dina Dreyfus e Mrio (Valentini, 2011, p. 84) e transita deles para os modernistas, possibilitando, nessa experincia compartilhada, criar condies para excurses
3 4 A discusso sobre o nacionalismo de Mrio de Andrade e dos modernistas est presente em vrias obras, algumas das quais se encontram citadas no presente trabalho. O mestrado de Vianna (2002) um exemplo. Ver, a respeito, o trabalho de Tel Ancona Lopes (1972) referenciado ao final deste trabalho.

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167 pelo territrio nacional e para o fazer das etnograas de domingos, em passeios pela cidade de So Paulo, com a preocupao de retraar as origens das culturas, como diz Valentini ( 2011, p. 85). Em suas viagens em torno do que se denominou Misso de Pesquisas Folclricas pelo norte e nordeste do Pas, segundo Tel Ancona Lopes (1972), que Mrio se faz visitante que conta o que v, na melhor tradio dos textos etnogrcos elaborados por antroplogos. Rene, assim, uma imensido de elementos folclricos regionais, tais como contos, danas, mitos, msicas e outros tantos, constitutivos da chamada cultura popular. Busca nessas mltiplas linguagens compreender o povo brasileiro e dizer dele por seus prprios termos. No imenso acervo de fotos e imagens dos lugares por onde passa ao longo das viagens, rene um signicativo conjunto de desenhos infantis e tambm o faz em creches infantis que funda na cidade de So Paulo, quando assume o Departamento de Cultura e Recreao do Municpio de So Paulo. Do olhar que tudo registra, descreve e reete emerge a concepo avanada para a poca, da criana como sujeito social, produtor de cultura; e o mundo da infncia ser compreendido por ele como espao de manifestao de uma ou mais culturas da infncia e um dos espaos fundamentais para colocar em prtica aquilo que Mrio pensa em termos de outra nao brasileira. O iderio de outra nao brasileira e de justia social que o leva a criar as creches para as mes operrias na cidade de So Paulo parte do mesmo motivo que o leva a percorrer grande parte do territrio brasileiro. Nesse movimento copila canes folclricas e costumes das gentes comuns, num abrao fraterno com a Antropologia, que comea a ensaiar seus passos no Brasil. O cotidiano do brasileiro comum que desaou Mrio de Andrade , assim, o mesmo que desaou Lvi-Strauss e sua esposa Dina e que desaa a Antropologia em seu percurso, no seu fazer diante da imensa diversidade humana. por esse parmetro que se podem apontar alguns aspectos a respeito da criana, da infncia e sua relao com o mundo adulto, tanto nas preocupaes de Mrio de Andrade como na Antropologia. Contudo, qual o olhar desta cincia sobre a criana e a infncia? Como esse olhar dialoga com os caminhos e as iniciativas que marcaram a atuao e a obra de Mrio de Andrade?

Territrios de aprendizagem: questes da alteridade


Tratamos, aqui, das chamadas relaes perigosas, quer a relao entre saberes diversos o saber cientco e o saber popular , quer as relaes que ensejam a apropriao dos fatos sociais, cuja reinterpretao depende to somente da imaginao, esta, sim, ponto de fora, de transgresso criativa e libertadora, na qual o homem no apenas imita, reproduz, mas inventa e cria. Este o territrio das sociabialidades humanas, espao frtil da cultura como produo e produto, como
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168 equilbrio e conito, como trama e textura do social. o territrio, por excelncia, da criana e seu mundo de infncia. Nele, a cultura se faz enquanto acontecimento, rotina e ruptura, parte do revestimento mais de superfcie da sociedade, mas tambm seu cerne, a parte profunda que a constitui enquanto emoes, hbitos, sentimentos, representaes e conitos. Para o sujeito social, a cultura e representa a experincia vital de seu tempo e de seu espao em termos de si mesmo e do outro. A alteridade constitutiva da prpria condio de humanidade , assim, fundamental para a vida social, para a vida em sociedade. Contudo, em sociedades como a nossa, a alteridade da infncia est em relao direta com o mundo adulto; e, em muitos momentos, o mundo de uma e o de outro, ainda que se toquem e se cruzem, permanecem separados, no permitindo compreender a natureza poltica que os constitui como sujeitos em relao. Essa invisibilidade ou negao da infncia ser denunciada por Mrio em termos do adultocentrismo das relaes com a criana, e a intensa busca por mapear a realidade do mundo infantil o levar a armar como sujeito de cultura, a criana e o seu mundo, um mundo pleno de culturas singulares. Cohn (2005, p. 8) sintetiza bem o olhar antropolgico sobre a questo, ao armar que preciso entender a criana e seu mundo a partir de seu prprio ponto de vista e que por isso que uma Antropologia da Criana se faz importante nos dias de hoje. Arma, ainda, que a Antropologia reconhece a criana como sujeito social ativo e atuante, produtor mais que receptor de cultura (Cohn, 2005, p. 42). Nesse sentido, Mrio foi precursor dessa Antropologia da criana em construo no Brasil de agora, como bem mostra Gobbi (2010, p. 74), ao armar:
Mrio de Andrade, no perodo histrico em que escreve [sobre criana e infncia] encontra-se na interseco entre concepes que apontam a criana vista e dita somente por adultos, que, ao traduzirem seus comportamentos, revelam a percepo da criana como uma no falante, logo, no desenhista, no expressiva, e outros modos de compreender a infncia que procuram represent-la em seu universo, ouvindo suas vozes para apreenderem suas formas de ver o mundo.

Para alm do adultocentrismo hoje criticado na apreenso do mundo da infncia e do reconhecimento das mltiplas formas de ser criana, por vezes, ainda acontece de as crianas serem vistas, pelos adultos e tambm pelos educadores, como iguais, homogneas, tendo os mesmos interesses e necessidades, tpicas desta ou daquela idade. Como tal, deve aprender este ou aquele contedo, independentemente de compreender sua razo e seu funcionamento. So, assim, somente crianas, crianas de pouca idade. Mas o que a idade, seno aquilo que levamos conosco? Que herdamos ao nascer e que vamos criando enquanto vivemos a partir do que o mundo nos diz e tal como se nos apresenta?
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169 Diante dessa questo, deve-se ter em conta que o adulto, ao no levar em conta at por no perceber a trama de relaes existentes entre sujeitos diversos em tempos e espaos os mais diferentes, bem como os mltiplos sentidos construdos na vida que temos, acaba por considerar a criana apenas enquanto ser de cognio e, mesmo assim, de forma equivocada, posto que a v apenas com maior ou menor capacidade de aprender contedos e comportamentos; com maior ou menor disciplina na casa, na rua, na escola. O que no levado em conta que a criana um sujeito sociocultural sujeito de experincia e de cultura prprias ou, como dizia Mrio de Andrade, com capacidade de ler o mundo e criar suas culturas (Gobbi, 2010). Como, ento, permanecer no saber institudo, se a criana tambm capaz de produzir o mundo em que est e em que vive para alm do que lhe dado? Ao fazer tal questionamento, a Antropologia e o antroplogo, segundo Cohn (2005, p. 50), devem dar conta de que no h imagem produzida sobre a criana e a infncia, ou pela criana, que no seja, de algum modo, produto de um contexto sociocultural e histrico especco. Em sociedades como a nossa, sociedade de classes, no caminho pelo qual a criana adentra o mundo adulto o mundo a sua volta e no qual se acredita seja o adulto detentor de um saber , prope-se a ela ser nele iniciada. Nesse processo, a criana, segundo o adulto, deve ser preparada para repetir o que [os adultos] fazem, num processo de ensino, mas no de aprendizagem (Iturra, 1994, p. 31). O ensino , assim, repetir criando uma subordinao; a aprendizagem descobrir, criando uma relao de comunicao (Iturra, 1994, p. 31, grifo meu), na qual criana e adultos interagem. O prprio Iturra, em entrevista, exemplica com sua experincia em campo tal situao. Diz ele (1994, s.p.):
as crianas de uma aldeia onde passei muitos anos de estudo Vila Ruiva, na Beira Alta no sabiam quem era So Joo. Quando perguntaram aos pais, eles apenas lhes souberam dizer que foi um santo que viveu h muito tempo, para a h cem anos.... Eu expliquei-lhes a verdade atravs do mtodo comparativo: z com as crianas clculos sobre a idade do pai, do av, do bisav que j estava morto, e elas perceberam que cem anos no era tanto tempo como parecia. S depois lhes disse que So Joo tinha baptizado Cristo. Este mtodo abriu os seus entendimentos, e hoje aqueles midos esto todos no secundrio ou na universidade. H uma aprendizagem da cincia na vida pragmtica.

Para a criana, portanto, o que est em jogo a possibilidade de experienciar o mundo, descobri-lo em seus elementos, o que ela faz por meio da comparao entre o que sabe, v, ouve e observa, entre iguais, as outras crianas; e com este outro, diferente dela, o adulto. Este , porm, um sujeito contraditrio. Como
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170 dizem Sarmento e Pinto (l997, p. 13), para o adulto e para o mundo que ele representa, as crianas so importantes e sem importncia; espera-se delas que se comportem como crianas, mas so criticadas nas suas infantilidades; suposto que brinquem absortas quando se lhes diz para brincar, mas no se compreende porque no pensam em parar de brincar quando se lhes diz para parar; espera-se que sejam dependentes quando os adultos preferem a dependncia, mas deseja-se que tenham um comportamento autnomo; deseja-se que pensem por si prprias, mas so criticadas pelas suas solues originais para os problemas. Assim, na contemporaneidade, a criana e a infncia tornaram-se um paradoxo: fazem parte de uma complexidade social e de uma heterogeneidade fruto das condies de vida, e sobre elas incidem imagens, concepes e atitudes igualmente contraditrias. A criana percebe isso e sabe disso, e acaba por no se ver ou se reconhecer naquilo que os adultos colocam como razo de ser de seu mundo. Por essa razo, a criana foge ao adulto para construir, com outras crianas, sua compreenso das coisas. Como ela o faz? Comparando o que v, ouve e experimenta na relao com todos aqueles que esto em seu mundo. Comparar se faz, ento, como parte do aparato prprio do pensamento humano diante das informaes e dos fatos dispostos na realidade social por meio de seus pares, outras crianas, e pela relao com o adulto. Aqui sobrevm a importncia da sociabilidade que se expressa em meio a brincadeiras, jogos, cantos e danas, entre muitas outras formas de expresso no mundo infantil. No por acaso ser esse universo um dos espaos de maior observao, registro e referncia na obra e na atuao de Mrio de Andrade, dela resultando um imenso acervo de cantigas, desenhos, contos, etc. atribudos ao mundo da infncia. Assim, segundo Gobbi (2010, p.74), a infncia retirada do silncio que tanto a ocultou na histria, e que, consequentemente, ocultava suas criaes, conquistando um espao e status diferenciado. Nesta nova compreenso e apreenso do mundo da infncia, no se nega, seno que reconhece a presena do adulto, porm, no mais como referncia absoluta. Como diz Cohn (2005, p. 35), as crianas no so apenas produzidas pelas culturas, mas so produtoras de cultura e, mais que isso, as crianas tm autonomia cultural em relao ao adulto. O que a anlise da farta coleo pessoal de desenhos de crianas e de jovens coletados e organizados por Mrio de Andrade proporciona reexo antropolgica a descoberta do mundo da infncia como parte de outras lgicas estruturadas pelo ato de comparar. Ato no qual a criana estabelece um conhecimento de si mesma, do outro, do mundo no qual est. O processo, em si, consiste numa aprendizagem. Cabe, porm, compreender que a criana e o adulto tm em comum esse procedimento, que parte do pensamento humano. Comparamo-nos uns aos outros para formar a imagem que temos do que somos, do que queremos e do que no queremos para compor nossa compreenso das coisas. Quando o fazemos a partir
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171 de nossa trajetria, da nossa histria de vida, reetindo sobre ela, conseguimos melhorar qualitativamente o prprio conhecimento e o entendimento das coisas, tornamo-nos pessoas reexivas e investigativas e, como tais, transgressoras e criativas. Para Iturra (1992), a transgresso a marca fundamental da infncia. a forma e a maneira pela qual a criana comprova se o seu julgamento das coisas razovel ou no diante do que diz e manda o adulto, porm no claro ao seu entendimento infantil. Ento rebela-se, zanga-se e cria um mundo onde espelha o que recebe e o redimensiona com seus iguais. No se trata de desobedincia, mas , como diz Iturra (1992, p. 496), a procura do entendimento do que lhe mandado, posto que v e percebe o mundo adulto como cheio de regras e de normas, as quais nem sempre correspondem ao comportamento do prprio adulto. Trata-se de um modo de ver, ouvir e perceber o mundo a sua volta. Pode-se dizer, para investig-lo e coloc-lo a sua altura e medida. O processo de investigar exige se saber quem se , quem se quer ser e como e quem so os outros (Vieira, 1999, p. 140) com os quais vivemos e com os quais construmos e experimentamos o mundo. nesse sentido que a criana pergunta muito e tambm age, muitas vezes, de modo que o prprio adulto no compreende. Essa a razo sobre a qual importa reetir, em relao ao adulto que educa e ao papel que desempenha como mediador entre o saber produzido pela sociedade e por seus grupos um saber legitimado e esse outro saber que emerge da experimentao e da observao do mundo a nossa volta enquanto vamos vivendo. Pode-se dizer que o olhar de Mrio sobre as produes infantis vem marcado por ambas as dimenses o saber adulto e legitimado pela ordem social e aquele que resulta da prpria vivncia da criana com os pares e tambm com o prprio adulto. Nesse contexto, compreende-se que a criana queira aprender, no s porque ser aprovada e aceita pelo adulto, coisa que no nega e deseja, mas porque, por esse caminho, comea a entender tudo que a envolve. O acesso ao saber , assim, o caminho pelo qual crianas e adultos se tornam capazes de entender o mundo em que vivem, compreendendo suas contradies e seus limites.

A Antropologia, a comparao e a escola


A admisso da heterogeneidade do mundo social nos coloca diante das diferenas o que eu sou, o que o outro e, aqui, tudo se complica. A imagem do outro uma contradio e, nesse sentido, diz Larrosa (l998, p. 67), as crianas se tornam seres estranhos dos quais nada se sabe, so seres selvagens que no entendem nossa lngua e como tais devem ser educados, ou melhor, ensinados. A questo : a escola ensina ou educa? Ou deve ensinar e educar a um s tempo? Para a criana, a aprovao e o respeito social resultam do saber ocial, sistemtico e abstrato, com o qual ela ganha aprovao dos adultos. pelo saber formal e
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172 abstrato, e s por ele, que aceita o que se passa em torno de si mesma, ainda que no o compreenda. Essa relao, baseada no ensinar e no memorizar, prprios do mundo adulto e da escola, , ento, uma relao de poder que cinde a experincia que a criana traz consigo, como parte de sua histria e do grupo ao qual pertence, negando outro saber, produzido por relaes marcadas pelo experimento e pela experincia; negando a afetividade entre sujeitos no processo educativo que vai alm da escola. nesse sentido que a escola, com seu saber institudo, tal como o ser adulto, nega a criana como sujeito da histria, produto e produtor de cultura; nega sua especicidade, fazendo tbula rasa de suas experincias e de suas narrativas, no permitindo que se ponha em movimento a possibilidade da comparao e, por meio dela, a descoberta e a aprendizagem. A escola se esquece de que a criana no uma folha em branco, sobre a qual a sociedade imprime seu texto, j que, folha e texto so gerados juntos (Rodrigues, l992, p. 122). Isso signica armar que a criana traz consigo sua mente cultural, que no considerada no interior da escola. Deixa, assim, de se fazer matria-prima do processo educativo escolarizado, de modo a permitir, ao adulto que ensina, educar atravs da ordenao de questionamentos e informaes que permitam a aproximao organizada entre saberes vale dizer, pela comparao e, com isso, deixa tambm de obter o prazer da descoberta e a efetiva aprendizagem, tal como acontece fora da escola na rua, no quintal, em casa, nos espaos de lazer partilhado. Nesse sentido, a Antropologia e seu mtodo, a comparao, propem colocar aprendizagem e ensino em relao, na escola e fora dela, no interior dos mais diversos processos educativos a que o ser humano est submetido desde que nasce. Contudo, a Antropologia aponta, tambm, para os limites da escola moderna, estruturada to somente como ensino; e prope que se recupere a importncia da transmisso cultural entre crianas, o papel das brincadeiras aprendidas entre pares, seja na escola, no ptio, fora das salas de aula ou ainda em canes e danas, que, como diz Cohn (2005), buscam dimensionar a simbologia que as embasam e que conformam diferentes modalidades de produo cultural. Se isso importa Antropologia da Infncia, tambm foi importante para Mrio de Andrade em suas pesquisas com crianas nas creches infantis, como bem apontam os trabalhos de Faria (1999) e Gobbi (2010), entre outros autores. Para a Antropologia, espaos especializados de aprendizagem podem ser encontrados ao redor do mundo, transmitindo conhecimentos os mais diversos, em modalidades as mais diversas (Cohn, 2005, p. 37); e a comparao, como mtodo, ou seja, como procedimento sistemtico, pode fornecer instrumentos necessrios organizao do pensar sobre o real, de modo a no subtrair a experincia e a subjetividade do olhar da criana, mas a incorpor-lo de forma objetiva na construo de sua percepo de mundo, que cabe ao adulto intermediar, como ensino e como aprendizagem.
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173 Conto-lhes um pequeno episdio que vivi em uma creche portuguesa. Duas crianas bem pequenas colhem matos do jardim mal cuidado como se fossem ores, fazendo com eles pequenos buqus. Eu, em p, as observo. Elas tambm me olham, cochicham e riem. Aproximam-se e me oferecem o buqu de ores. Abaixo-me e o recebo. Elas, ento, riem, brincam e me afagam o rosto e os cabelos. Perguntam-me quem sou e onde moro. Digo-lhes meu nome, que no sou dali e que moro bem longe, do outro lado do mar. Alguns segundos depois, aps perceptvel reexo, diz-me uma delas: Eu sei. Outro dia eu fui l, bati na porta de sua casa, mas voc no estava e eu vim embora. Resolvida a questo: do outro que sou, uma estranha, passo agora a integrar seu mundo, torno-me familiar. Sou um outro e um mesmo, condio insuspeita da totalidade do SER, sem adjetivos ou divises. A intolerncia que divide um componente do mundo adulto, do mundo do poder, do mundo moderno e capitalista, marcado por suas divises de classe, idade, etnia e outras. Assim, na nossa sociedade,
toda criana que nasce entra j no mundo das classicaes feitas e das hierarquias estabelecidas. O seu papel, goste ou no, saiba ou no, o de reproduzir, da forma mais perfeita possvel, o mundo que os adultos lhe organizam (Iturra, 1992, p. 493).

No entanto, o exemplo citado e toda a discusso de Mrio sobre a infncia podem ser sintetizados no que diz Larrosa (l998, p.71) sobre a criana:
a experincia da criana como outro: o encontro com uma verdade que no aceita a medida de nosso saber, como uma demanda de iniciativa que no aceita a medida de nosso poder e com uma exigncia de hospitalidade que no aceita a medida de nossa casa.

Por essa razo, no verdade que a criana tenha medo do adulto, este que tem medo da criana e necessita, portanto, coloc-la sob controle por meio de muitos mecanismos, entre eles, a educao que homogeneza e nega as diferenas, uma educao que subordina e impede outras descobertas, possveis pelo universo no cativo da imaginao. Compreender o outro, portanto, seja ele uma criana ou no, no consiste s em falar sua lngua para ouvir e perceber, mas exige tambm conhecer sua cultura, ou melhor, sua mente cultural, o seu contexto, a sua mentalidade, porque signicados h que restam subjacentes ao discurso verbal, to ou mais importantes para a decodicao da mensagem a entender (Vieira, 1999, p. 133). Segundo Vieira, compreender a criana entrar no seu contexto, no interior de sua mente cultural, participar desse crescimento e crescer junto. Partilhar a
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174 essncia de uma educao intercultural e emancipadora; nela no se nega o outro, fazendo-o nossa imagem e semelhana, mas assume-se o que somos de modo a nos fazermos sujeitos signicantes uns com os outros, uns atravs dos outros, por meio de nossos smbolos o mundo da cultura; de nossos poderes o mundo da poltica; e de nossas instituies sociais, entre as quais se insere o espao educacional com as prticas que lhe so prprias, ou seja, as creches, as escolas, as famlias, etc. A pergunta que nos interpela como educadores , ento, como efetivar uma prtica que d conta de tudo isso? Como saber escutar a criana e receber dela a verdade daquilo que nos diz? O que fazer diante de crianas inconformistas e transgressoras? O que fazer diante dos processos educativos, pautados em valores gerais e abstratos, que no reconhecem a criana como produtora de cultura? Como responder a isso tudo, se na sociedade moderna a vida adultocentrada reconhece a condio de produtivos apenas aos jovens e aos adultos, relegando a criana condio de no ser ou de algum que ainda no ? Aqui, antropologicamente, a produo de Mrio de Andrade ganha intenso sentido e signicado, pois permite compreender a criana como sujeito que desaa a compreenso de si mesma perante a ordem instituda, uma vez que o ciclo de vida um elemento importante na construo da percepo de si e do outro, tanto para o indivduo como para o coletivo. Nessa medida, criana e infncia nem sempre correspondem ao que delas se pensa ou se espera. Seus atos, comportamentos e atitudes, muitas vezes incompreensveis ou desaadores do espao do adulto e de suas concepes, so um desao paradoxal e presente. Constituem, antes de tudo, um enigma que coloca em risco a reproduo do mundo moderno e a segurana de sua continuidade. Diante desse desao, o adulto toma em suas mos a infncia como matriaprima de realizao das expectativas postas pelo sistema como futuro. Deixa de reconhecer as especicidades de que a infncia portadora no aqui e agora de suas vidas e, num ato de poder, busca fazer da criana um igual a si mesmo, algum de quem se espera possa, no apenas repeti-lo, mas ir alm e, assim, realizar o que ele, adulto, no conseguiu em sua prpria trajetria diante das exigncias de seu mundo. Como diz Larrosa (1998, p. 78), as crianas so assim sacricadas a esse dolo vido de sangue infantil cujos nomes so Progresso, Desenvolvimento, Futuro ou Competitividade. O desao do educador encher-se de coragem, tomar as mos da criana e seguir com ela5. Isso exige abandonar o imaginrio cativo, prprio do mundo da ordem, e permitir-se dar asas imaginao, territrio constitutivo da liberdade e das possibilidades de SER, de modo total e sem amarras. Um educador sem a imaginao daqueles que educa, em confronto com a sua prpria imaginao, no
5 Sobre esta temtica, ver Gusmo,2003.

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175 compreende a natureza do que observa, do que v e experimenta na relao com esse outro sujeito que com ele partilha a vida. Cabe ao educador o exerccio constante de compreender-se a si mesmo, resgatando sua infncia na infncia do outro; resgatando as experincias vividas por ele prprio e pela criana; e resgatando, tambm, os adultos signicativos que mediaram seus caminhos em busca de outros horizontes. Buscando compreender a razo de suas prticas e tambm seus limites; questionando o que acredita ser correto e abrindo seu esprito a outras narrativas, em particular, quelas contadas pelo mundo da infncia. Mrio de Andrade, intelectual, homem pblico e educador, foi sensvel ao mundo da infncia, soube ouvir e captar-lhe as vozes, como armam Faria (1999) e Gobbi (2010), de modo a pr em prtica o que diz Nunes:
se deve dar ateno ao que a criana tem a dizer sobre o que est vivendo e aos vrios modos de como ela expressa a compreenso de tudo isso. A criana vive e se manifesta dentro de limites e at amplitudes que lhe so prprios, muito embora existam zonas de intercmbio com o mundo adulto. (Nunes, 1997, p. 4)

Por tudo isso, pode-se armar que


a criana no uma verso reduzida do adulto nem este uma reproduo ampliada da criana. No podemos deixar que a nossa habitual perspectiva adultocntrica nos limite. Precisamos deixar de olhar as crianas como adultos em potencial, como algum que ainda vir a ser. (Nunes, 1997, p. 4).

No se deve, tampouco, fazer o culto criana e correr o risco de um utopismo na busca de um ser humano diferente. preciso olhar a criana como outro e como um mesmo, preservando a realidade daquilo que a infncia e seu mundo na relao com o mundo adulto, de modo real e concreto. A reexo permanente sobre o outro exige, assim, pens-lo como algo que nos inquieta e nos surpreende, mas preciso deixar-se surpreender e querer ser surpreendido. Nessa medida, a criana e a infncia que lhe prpria so tambm o enigma que nos desaa, desaa nosso conhecimento e nos coloca diante da circunstncia de ter que admitir que no sabemos tudo, no detemos todo o conhecimento disponvel sobre a realidade e as coisas. Devemos, portanto, relativizar nossas convenes, crenas e valores; desnaturalizar a infncia e, para alm de seu escopo biolgico e psicolgico, compreend-la enquanto uma construo da vida em sociedade. Razo que moveu Mrio em suas pesquisas sobre o mundo infantil e que move a Antropologia diante desse mesmo universo. Contudo, importa termos clareza de que esta sociedade, nossa sociedade,
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176 do passado e do presente, no uma sociedade qualquer. Falamos de sociedades modernas que, segundo Giddens (1995), so sociedades cerradas, sociedades da negao, que discriminam e separam por esteretipos diferentes sujeitos sociais, entre estes, a criana. preciso ver que isso constitui uma ideologia que precisa ser desvendada e implodida, para apreender a realidade social em nova dimenso. Vale, portanto, relembrar o poeta Fernando Pessoa e seu heternimo Alberto Caieiro e reetir com ele.
POEMAS INCONJUNTOS A criana que pensa em fadas e acredita em fadas Age como um deus doente, mas como um Deus Porque embora arme que existe o que no existe Sabe como que as coisas existem, que existindo Sabe que existir existe e no se explica Sabe que no h razo nenhuma para nada existir Sabe que ser estar em um ponto S no sabe que o pensamento no um ponto qualquer. (Alberto Caieiro, 1917)

Para um concluir, inconcluso...


A ambiguidade do concluir, inconcluso aqui um recurso para dizer das ambivalncias e ambiguidades que percorrem o fazer cientco; neste caso, a Antropologia e o saber popular visto em Mrio de Andrade como folclore , principalmente quando postos a dialogar. Presentes na Antropologia como cincia; na vida e na obra de Mrio de Andrade; e em tudo aquilo que, de alguma forma, constituiu seu percurso de homem pblico e intelectual, tal dilogo faz dele um autodidata em folclore e Antropologia, como diz Maria Laura Viveiros de Castro Cavalcanti (2004). Segundo a autora, Mrio utilizou a Antropologia contempornea nos estudos do folclore, e pode-se dizer que seu interesse pelo folclore e pelos elementos tnico-culturais est bem retratado em Macunama: o heri sem nenhum carter (1988). Nessa magnca obra, Mrio fala, pelo personagem, de um pas nascente, por se fazer. Fala de outra infncia, a da nao brasileira. Macunama o personagem que diz do povo brasileiro e de sua cultura, tal como dizem os contos, a arte, o folclore, as msicas e os desenhos das mltiplas infncias possveis, num mundo feito por crianas e adultos; por jogos de interesse e de poder; pela complementariedade e contradio de imaginrios cativos e imaginaes possveis. Macunama ou as infncias das creches paulistas ou o contexto do interior do nordeste evidenciam um campo de tenso e de vida, de realidade e experincias, no qual se debatem,
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177 se confrontam e se contradizem os adultos e as crianas, a infncia e a adultez, a sociedade brasileira constituda e um Brasil em construo. Permanecem em debate o saber institudo e legitimado como conhecimento e ideologia e o saber em movimento e em construo diria, no fazer e ser dos sujeitos sociais em relao, entre eles a criana e sua infncia. assim que, concordando com o poema do alter ego de Pessoa, Alberto Caieiro, pode-se armar que o pensamento, como a vida que lhe d consistncia, no um ponto qualquer; e sua natureza, sua razo e seu funcionamento cabem ao educador, ao adulto mediar de modo crtico e reexivo nas relaes que tem com o mundo da infncia, com a criana, no prprio mundo e naquilo que ela sonha como nova realidade. Deslocam-se, portanto, o olhar e sua centralidade, postos no mundo adulto e constitudo, para instaurar a reexibilidade e a comparao, to caras Antropologia. E tornam possvel a descoberta da alteridade e, com ela, a compreenso do que cada um tem a dizer sobre si mesmo crianas e adultos e, tambm, do mundo no qual esto e vivem, porm, de modo contextualizado e historicamente dado. Isso exige uma abertura para pensar quem somos e o que no somos, reconhecer o mundo do outro no nosso mundo, a vida do outro como parte de nossa vida e estabelecer pontes, abrir portas para que o trnsito no espao comum seja solidrio e democrtico. Para que seja possvel outra sociedade, mais plural e mais justa.

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