Este documento é uma tese de doutorado apresentada à Universidade Federal Fluminense sobre a história do comércio e dos comerciantes da cidade de Parnaíba, no Piauí, entre 1700-1950. A tese aborda o desenvolvimento inicial do comércio em torno da charqueada e da exportação de gado, a chegada de comerciantes portugueses, e as posteriores atividades comerciais em produtos agrícolas e extrativos. Também discute as infraestruturas necessárias ao progresso comercial da c
Este documento é uma tese de doutorado apresentada à Universidade Federal Fluminense sobre a história do comércio e dos comerciantes da cidade de Parnaíba, no Piauí, entre 1700-1950. A tese aborda o desenvolvimento inicial do comércio em torno da charqueada e da exportação de gado, a chegada de comerciantes portugueses, e as posteriores atividades comerciais em produtos agrícolas e extrativos. Também discute as infraestruturas necessárias ao progresso comercial da c
Título original
DOS SERTOES AOS MARES - HISTORI DO COMERCIO E DOS COMERCIANTES DE PARNAIBA.pdf
Este documento é uma tese de doutorado apresentada à Universidade Federal Fluminense sobre a história do comércio e dos comerciantes da cidade de Parnaíba, no Piauí, entre 1700-1950. A tese aborda o desenvolvimento inicial do comércio em torno da charqueada e da exportação de gado, a chegada de comerciantes portugueses, e as posteriores atividades comerciais em produtos agrícolas e extrativos. Também discute as infraestruturas necessárias ao progresso comercial da c
Este documento é uma tese de doutorado apresentada à Universidade Federal Fluminense sobre a história do comércio e dos comerciantes da cidade de Parnaíba, no Piauí, entre 1700-1950. A tese aborda o desenvolvimento inicial do comércio em torno da charqueada e da exportação de gado, a chegada de comerciantes portugueses, e as posteriores atividades comerciais em produtos agrícolas e extrativos. Também discute as infraestruturas necessárias ao progresso comercial da c
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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE
INSTITUTO DE CINCIAS HUMANAS E FILOSOFIA
PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
Junia Motta Antonaccio Napoleo do Rego
DOS SERTES AOS MARES: HISTRIA DO COMRCIO E DOS COMERCIANTES DE PARNABA (1700-1950)
Niteri 2010 16
Junia Motta Antonaccio Napoleo do Rego
DOS SERTES AOS MARES: HISTRIA DO COMRCIO E DOS COMERCIANTES DE PARNABA (1700-1950)
Tese apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Histria. rea de concentrao: Histria Contempornea I Orientador: Prof. Dr. Tho Lobarinhas Pieiro
Niteri 2010
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DOS SERTES AOS MARES: HISTRIA DO COMRCIO E DOS COMERCIANTES DE PARNABA (1700-1950)
Tese apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Histria da Universidade Federal Fluminense, como requisito parcial obteno do grau de Doutor em Histria. rea de concentrao: Histria Contempornea I. Orientador: Prof. Dr. Tho Lobarinhas Pieiro
Aprovado em: / / 2010
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________________________ Dr. Tho Lobarinhas Pieiro orientador UFF
_______________________________________________________ Dra. Ana Maria Mauad de Sousa Andrade UFF
_______________________________________________________ Dra. Teresinha de Jesus Queiroz Mesquita UFPI
_______________________________________________________ Dr. Francisco de Assis Veloso Filho UFPI
Para Libero e as Antonaccio's. Para Artur, Beatriz, Andr, Joo e Gabriel.
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AGRADECIMENTOS Este trabalho no poderia ter sido realizado sem o generoso auxlio de incontveis pessoas que compartilharam comigo seus conhecimentos em suas reas de especialidade. Meus sinceros agradecimentos aos professores do Departamento de Histria da Universidade Federal Fluminense, com quem tive o privilgio de trabalhar, Dr.Tho Lobarinhas Pieiro e Dra. Ana Maria Mauad de Sousa Andrade. Aos professores doutores Francisco de Assis Veloso, Marcelo Cheche Galves e Fabiano de Souza Gontijo, por aceitarem o convite para participar da Banca de Defesa. Gostaria de expressar a minha carinhosa gratido Profa. Dra. Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz, por sua orientao imprescindvel a este trabalho. Profa. Dra. Vilma Chiara pela eterna amizade, sugestes valiosas e contribuies. Profa. Francimlia, do Departamento de Contabilidade da UFPI, que me ensinou a transcrever uma contabilidade antiga. Aos que generosamente disponibilizaram seus acervos particulares, Marc Theophile e Roger Jacob, Ingrid Clark e Oswaldo Almendra. Aos entrevistados Marizinha Almendra, Pdua Ramos, Ena Clark e Eloi Portela Nunes. Aos colegas Junior, Antnia Valtria Melo Alvarenga, Sonia Maria Campelo, Elizangela Barbosa Cardoso, pela amizade, estmulo, apoio, sugestes, crticas e pacincia. A todos vocs, manifesto meu profundo agradecimento.
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RESUMO Este trabalho estuda o comrcio e os comerciantes da cidade de Parnaba (Piau) no perodo compreendido entre 1700 e 1950. So abordadas as razes econmicas que levaram o desenvolvimento do Porto das Barcas, porto inicial da Vila de So Joo da Parnaba. A vila atraiu o gado criado no interior da provncia para as oficinas de charqueada e com isso tornou-se um significativo plo de exportao do produto. Com a chegada de comerciantes portugueses a tcnica de charquear foi aprimorada e o comrcio intensificado. Com a falncia das charqueadas, Parnaba conheceu outras empreitadas comerciais de vulto em torno de produtos derivados da pecuria, da agricultura e de atividades extrativistas que seguiram o mesmo percurso fluvial e de portos internacionais. As atividades econmicas desenvolvidas em Parnaba a partir de produtos vindos do serto ditaram a necessidade de uma infra-estrutura para o progresso do Piau: a navegao a vapor pelo rio Parnaba, a construo do porto martimo de Amarrao e a construo da Estrada de Ferro Central do Piau. abordada a instalao de duas casas comerciais estrangeiras: a Casa Inglesa representada por Paul Robert Singlehurst e James Frederick Clark e a Casa Comercial Marc Jacob do francs Marc Jacob. Os registros de suas atividades comerciais atestam o impressionante desenvolvimento do comrcio importador e exportador com portos europeus. Os estrangeiros legaram algumas influencias culturais europias, entre elas o futebol e a edio de um Almanaque nos moldes dos franceses. A classe dos comerciantes de Parnaba tomou o carter de lder incentivador de vrias lutas incluindo as que visavam melhorias na infraestrutura da cidade e reformas educacionais. Abordamos as lutas travadas ao longo deste perodo entre os comerciantes e as autoridades governamentais para conseguir obras e projetos pblicos condizentes com o desenvolvimento almejado para a cidade.
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ABSTRACT This work studies the trade and traders of the city of Parnaba (Piau) between the period of 1700 and 1950. It approaches the economic reasons that have lead to the development of Porto das Barcas, primary port of the village of So Joo da Parnaiba. The village attracted the cattle owners from the inner countryside to the slaughterhouse and therefore became a significant export complex of the product. With the arrival of the Portuguese traders the slaughter technique was improved and the trade intensified. With the bankruptcy of the slaughterhouses, Parnaba met other huge trade ventures around the products which came from cattle raising, agriculture and other extraction activities which followed the same river route of the international ports.The economic activities developed in Parnaba from the products which came from the bush country dictated the need of an infra-structure for the progress of Piau: shipping line, the construction of the sea port at Amarrao as well as of the Central Railway of Piaui. Two foreign trade establishments are approached: the Casa Inglesa represented by Paul Robert Singlehurst & James Frederick Clark and the Casa Comercial Marc Jacob owned by the french Marc Jacob. The foreigners bequeathed some of European cultural influences, among them, football and the edition of an Almanac in the French style. The traders of Parnaba became responsible for leading several battles including the improvement of infra-structure of the city and educational reforms. We have also approached the battles along this period between the traders and the government authorities to obtain public works and public projects keeping up with the development longed for the city.
Keywords: ; trade, traders, Parnaba, foreigners.
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LISTA DE ILUSTRAES Figura 1 - A Vila de So Joo da Parnaba, 1788...................................... 33 Figura 2 - Mapa exato da Vila de So Joo da Parnaba, 1798................. 34 Figura 3 - Vila de So Joo de Parnaba, 1809.......................................... 37 Figura 4 - Capela de Monte Serrath........................................................... 40 Figura 5 - Casa Grande da Parnaba / Casaro de Simplcio Dias............ 40 Figura 6 - Casa Inglesa............................................................................... 42 Figura 7 - Portada principal da Casa Inglesa de Parnaba......................... 44 Figura 8 - Solar do Mirante......................................................................... 45 Figura 9 - Solar da Poeta............................................................................ 46 Figura 10 - Casario do Porto das Barcas...................................................... 47 Figura 11 - Detalhe da parede em pedra...................................................... 48 Figura 12 - Verga reta, de descarga, com emprego de tijolos grandes e pequenos....................................................................................
48 Figura 13 - Arco de volta perfeita.................................................................. 49 Figura 14 - Alfndega de Parnaba............................................................... 49 Figura 15 - Igreja Matriz de Nossa Senhora Me da Divina Graa.............. 51 Figura 16 - Igreja Nossa Senhora do Rosrio.............................................. 52 Figura 17 - O rio Parnaba............................................................................ 69 Figura 18 - Projeto de melhoramento do Porto de Amarrao..................... 89 Figura 19 - A descarga no Porto Salgado..................................................... 99 Figura 20 - Porto das Barcas........................................................................ 100 Figura 21 - Estao Ferroviria de Parnaba................................................ 108 Figura 22 - Os irmos Marc e Lazare Jacob................................................. 172 Figura 23 - Casa Marc Jacob........................................................................ 178 23
Figura 24 - Nota de conhecimento................................................................ 187 Figura 25 - Quadro estatstico de 1930 - Roland Jacob............................... 198 Figura 26 - Posto de Puericultura Suzanne Jacob....................................... 200 Figura 27 - Loja Rosemary........................................................................... 201 Figura 28 - Palacete do Dr. Mircles Veras.................................................. 206 Figura 29 - Palacete...................................................................................... 206 Figura 30 - Detalhe do teto........................................................................... 207 Figura 31 - Detalhe do teto........................................................................... 207 Figura 32 - Avenida Getlio Vargas.............................................................. 208 Figura 33 - Chal.......................................................................................... 208 Figura 34 - Antigo Ginsio Parnaibano......................................................... 209 Figura 35 - Janelas de Parnaba................................................................... 210 Figura 36 - Praa da Graa.......................................................................... 211 Figura 37 - Parnaba Sport Club................................................................... 215 Figura 38 - Internacional Sport Club............................................................. 217 Figura 39 - Grupo Escolar Miranda Osrio................................................... 222 Figura 40 - Grfico 1 - Dados de Ensino - Matrculas 1930-1931................ 225 Figura 41 - Grfico 2 - Dados de Ensino 1940 Nmero de Colgios......... 226 Figura 42 - Grfico 3 - Estabelecimentos de Ensino -1943.......................... 227 Figura 43 - O Bembm................................................................................. 248 Figura 44 - Fachada da Santa Casa de Misericrdia................................... 251 Figura 45 - Quadro do Resumo Geral do perfil das edies de 1924 a 1929 do Almanaque da Parnaba..............................................
2 INTEGRAO POLTICA E DESENVOLVIMENTO ECONMICO......... 28 2.1 A Vila de So Joo da Parnaba.............................................................. 28 2.2 Parnaba Capital Econmica do Piau.................................................... 53 2.3 Um Rio, um Porto, uma Estrada de Ferro.............................................. 68 2.4 O rio Parnaba e a Navegao a Vapor.................................................. 69 2.5 Os Portos e as Companhias de Navegao Fluviais e Martimas....... 85 2.6 Os Portos Martimos e as Operaes Comerciais................................ 95 2.7 A Estrada de Ferro Central do Piau....................................................... 111
3 O COMRCIO E OS COMERCIANTES DE PARNABA.......................... 117 3.1 Os Charqueadores e as Charqueadas................................................... 123 3.2 Novos Produtos, Novos Comerciantes.................................................. 140 3.3 O Comrcio com Caiena, Guiana Francesa........................................... 145 3.4 O Comrcio Interno e Externo do Couro e de seus Derivados............ 147 3.5 Comerciantes ingleses no Piau............................................................. 153 3.6 A Casa Inglesa.......................................................................................... 159 3.7 Singlehurst e Clark - respectable merchants em Parnaba.............. 160 3.8 Comerciantes franceses no Piau........................................................... 163 3.9 Os Jacob: franceses em Parnaba.......................................................... 176 3.10 Os Exportadores...................................................................................... 206
4 PARNABA: CENRIOS URBANOS E SOCIAIS.................... 210 4.1 Hbitos e Costumes Novos: influncia estrangeira na cidade de Parnaba....................................................................................................
219 4.1.1 O football.................................................................................................... 219 4.2 A Associao Comercial de Parnaba.................................................... 223 4.3 Educao em Parnaba: a modernizao do sistema escolar............. 225 4.4 Os servios pblicos da cidade............................................................. 235 4.5 As crnicas de Goethe e Pena Boto 236 4.6 Cinema em Parnaba................................................................................ 243 4.7 O Almanaque da Parnaba 244 4.8 Almanaque................................................................................................ 247 25
4.9 O Fundador do Almanaque da Parnaba Benedito dos Santos Lima...........................................................................................................
252 4.10 As Charadas e os Enigmas..................................................................... 253 4.11 O Almanaque da Parnaba nos anos 1920............................................. 255 4.11.1 A capa........................................................................................................ 258 4.11.2 Os artigos................................................................................................... 259 4.11.3 Fotografias e outras ilustraes................................................................. 262 4.11.4 Calendrio e informaes referentes......................................................... 263 4.11.5 Lazer.......................................................................................................... 263 4.11.6 O ano de 1925........................................................................................... 265 4.11.7 O ano de 1926........................................................................................... 268 4.11.8 O ano de 1927........................................................................................... 267 4.11.9 O ano de 1928........................................................................................... 271 4.11.10 O ano de 1929........................................................................................... 274
1 INTRODUO O interesse em trabalhar como o tema dos comerciantes estrangeiros e o movimento comercial da cidade de Parnaba, no Piau, surgiu a partir do contato com os arquivos privados de duas casas comerciais estrangeiras instaladas em Parnaba, a Casa Inglesa e a Casa Comercial Marc Jacob. O ponto de partida da elaborao do tema proposto foi a constatao de que os arquivos, raros e ainda no pesquisados, forneceriam informaes sobre o movimento comercial da cidade de Parnaba com o mercado nacional e internacional. A opo pelo tema e pelo recorte temporal tambm considerou a carncia de dados em geral sobre a Histria do Piau e especialmente ao que se refere cidade de Parnaba, expoente do desenvolvimento econmico e social do Piau no perodo em estudo. O objetivo deste trabalho explicar de que forma comerciantes estrangeiros, estabelecidos em Parnaba, porto exportador e importador, articularam a integrao da economia do Piau a partir do sculo XVIII. Explicar como a economia do Piau se articulava, por intermdio dos comerciantes de Parnaba, ao mercado nacional, notadamente a economia do Cear, Maranho e Par e a economia internacional, caso de pases como a Inglaterra e a Frana. O trabalho tambm tem como objetivo mostrar a integrao da cidade de Parnaba dinmica do capitalismo internacional a partir das primeiras dcadas do sculo XX, e quais os reflexos desta integrao sobre o desenvolvimento econmico e a vida social e cultural da cidade de Parnaba. Para investigar o papel do comrcio e da atuao dos comerciantes de Parnaba nas transformaes econmicas e sociais, no perodo de 1700 a 1950, partiu-se das seguintes questes de pesquisa: Qual a origem da Vila de So Joo da Parnaba? Que mapas e gravuras documentam o ncleo original da Vila de Parnaba? De que forma a vocao comercial da vila interferiu na obedincia as normas coloniais estabelecidas para o traado urbano da vila? Que posio poltica e econmica a Vila de So Joo da Parnaba ocupou no contexto colonial e provincial? Qual o papel da pecuria e da agricultura no movimento comercial de Parnaba? Que problemas o governo provincial enfrentou para garantir o desenvolvimento e o progresso do Piau? O que foi feito pelo governo imperial para 27
dinamizar os setores produtivos? De que forma a posio geogrfica de Oeiras comprometia o desenvolvimento geral da provncia? Que razes os comerciantes de Parnaba e outras autoridades alegaram para transferir a sede da capital de Oeiras para Parnaba? Qual a importncia da mudana da capital de Oeiras para Teresina? De que modo trs elementos estruturais foram considerados essenciais integrao econmica de Parnaba ao comrcio nacional e internacional o rio Parnaba, os portos martimos e o fluvial, a alfndega, as companhias de navegao fluviais e martimas e a Estrada de Ferro Central do Piau? Como se deu a entrada de Parnaba no circuito comercial nacional e internacional a partir do sculo XVIII? Qual a importncia da pecuria extensiva, base da economia do Piau, no comrcio provincial? Como Parnaba progrediu tendo como base o comrcio do gado e de seus derivados? Quem foram os primeiros charqueadores? De que forma as charqueadas de Parnaba integraram-se ao ciclo das charqueadas do Maranho, Cear e Rio Grande do Norte? Como se deu e qual a importncia do comrcio exercido pelos negociantes de bons fundos como o portugus Domingos Dias da Silva e seu filho Simplcio Dias da Silva? O que se pode perceber acerca da vida social e cultural de Parnaba, a partir da leitura do inventrio dos Dias da Silva? Quais as causas da falncia das charqueadas e do esquecimento da tcnica de charquear? Aps a falncia das charqueadas, quais novos produtos passaram a ser comercializados em Parnaba? A que portos eram destinados e quem eram os comerciantes? Como se deu a integrao de Parnaba dinmica do capitalismo internacional a partir da chegada de comerciantes ingleses e franceses a Parnaba? Qual a importncia do comrcio ingls para o Brasil a partir da chegada de D. Joo VI em 1808? Quando se deu a chegada de comerciantes ingleses a Parnaba? Quais atividades comerciais exerciam? Qual a importncia do comrcio da Frana com o Brasil? Quando se deu a chegada de comerciantes franceses a Parnaba? Quais atividades comerciais exerciam? De que forma a leitura de cartas comerciais do negociante francs Boris Frres, sediado em Fortaleza, fornece informaes a respeito das parcerias comerciais entre Parnaba, Teresina, Fortaleza e a Europa? Quando chegou a Parnaba o comerciante francs Marc Jacob? Que motivos levaram Marc Jacob a estabelecer uma casa comercial em Parnaba? Que produtos a Casa Comercial Marc Jacob importava e exportava? O que se sabe da atividade comercial e vida particular de Marc Jacob a partir da 28
leitura de seus livros comerciais? Como foi que Marc Jacob consolidou seu patrimnio, e, com o seu falecimento, como a Casa Comercial Marc Jacob passou a ser propriedade de Roland Jacob? Qual a importncia do comerciante Roland Jacob no conjunto dos comerciantes de Parnaba? Como se deu a expanso comercial da cidade de Parnaba sob o predomnio do extrativismo vegetal? Como o desenvolvimento econmico e cultural da cidade se manifestou? Que influncias estrangeiras passaram a vigorar na cidade de Parnaba? Qual a importncia da Associao Comercial de Parnaba e quais as suas aes em prol da cidade? Que registros existem de habitantes da cidade? O que as edies de 1920 do Almanaque da Parnaba revelam sobre a cidade? Na tentativa responder a esses questionamentos, selecionou-se um corpus documental. As principais fontes de pesquisa so compostas pela documentao conservada nos acervos particulares das famlias de descendentes das antigas casa comerciais estrangeiras a Casa Inglesa e da Casa Comercial Marc Jacob sob a guarda de Marc Theophile Jacob e Ingrid Clark. E a correspondncia comercial entre comerciantes de Teresina e Parnaba com a Casa Boris Frres, de Fortaleza, localizadas no Arquivo Boris Frres, sob a guarda do Arquivo Pblico do Cear. O corpus documental que permitiu o desenvolvimento do tema tambm formado por documentos obtidos junto ao Cartrio Almendra de Parnaba. Acrescente-se que, documentos oficiais, como mensagens e relatrios governamentais, foram conseguidos por meio da bibliografia j publicada sobre a histria do Piau. Outros estudos publicados esto relacionados temtica, com destaque para o Almanaque da Parnaba. Excetuando-se as informaes contidas nesta documentao, foram realizadas entrevistas com membros das famlias Clark e Jacob e outros parnaibanos - a inteno era perceber que leitura eles faziam de suas famlias e de sua cidade. O recorte cronolgico, relativamente longo, justifica-se, em primeiro lugar, pela escassez, na historiografia piauiense, de estudos relativos cidade de Parnaba no perodo; e, em segundo lugar, por ser um recorte que permite explicar algumas ocorrncias importantes: o incio do movimento de exportao dos produtos vindos do interior da provncia, tanto para o mercado interno quanto para o externo, e o declnio do movimento exportador de produtos extrativistas do Estado. O recorte permite tambm explicar o surgimento e o adiantamento da Vila de So Joo da 29
Parnaba, a partir da atividade comercial ali desenvolvida, e o processo de modernizao da cidade de Parnaba, decorrente do impacto do extrativismo na economia da cidade. O litoral do Piau, mais precisamente o delta do rio Parnaba j era um ponto de atrao comercial para piratas europeus, segundo menciona o cronista Gabriel Soares de Sousa (1587). O perodo de desenvolvimento econmico do Piau, no entanto, se deu quando os criadores de gado das regies mais longnquas do litoral mudaram a via de escoamento das reses pelos caminhos terrestres, penosa e onerosa para adotar a via fluvial pelo rio Parnaba. Foi o incio da trajetria do serto ao mar, abrangendo, alm dos portos brasileiros, outros mais distantes, atravs da comercializao dos produtos da atividade pastoril. A chegada das reses no porto fluvial no delta do Parnaba foi aumentada pela instalao de charqueadas no Porto das Barcas. O aproveitamento de couros, peles e outros derivados como crina animal, chifres etc. foi acrescentado ao comrcio da carne seca na exportao. Nascia e prosperava a Vila de So Joo da Parnaba, cujo papel expoente na economia do Piau ocorreu devido viso e iniciativa de comerciantes voltados para a exportao desses produtos. significativa a presena do comerciante, Domingos Dias da Silva, como um marco da histria econmica e social do litoral do Piau. Fidalgo da corte portuguesa, ele foi o tpico representante do colonizador no sentido de manter, com ela, laos culturais alm dos comerciais. Domingos Dias inaugurou uma clivagem no clima social de Parnaba. O sucesso das charqueadas das quais ele se dedicou a aprimorar as tcnicas deu-lhe margem para manter e transmitir seu padro de vida a seu filho, Simplcio Dias. O luxo e as extravagncias exibidas em festas promovidas para acolher figuras importantes do panorama poltico do Brasil, da poca imperial, marcaram a historiografia da cidade. A estrutura do comrcio de exportao fundada pelas charqueadas permitiu a comercializao de outros produtos, oriundos da agricultura e da atividade extrativista, que passaram a ser requisitados no mercado internacional, mais precisamente para a indstria europeia em plena revoluo. Artigos como o algodo, o couro para a fabricao de correias, de calados, cintos etc., a borracha da manioba, a cera de carnaba e as resinas de jatob e do angico, coco da palmeira babau vinham do serto via rio Parnaba para o porto Salgado. Chegavam, a 30
princpio, em embarcaes vela ou a remo, barcaas cobertas de folhas de babau, balsas de buriti, barcas, e, mais tarde, em navios a vapor, fazendo funcionar o Porto Salgado vinte e quatro horas por dia. A intensidade da exportao levou instalao de comerciantes estrangeiros em Parnaba, o que deu continuidade ao canal social aberto pelos Dias da Silva. A ele aderiram comerciantes ingleses e franceses, e suas famlias, criando uma camada social economicamente situada no topo da sociedade. O padro de vida dessas famlias contrastava com o dos outros habitantes da cidade. Esse fato est impresso na iconografia de Parnaba, com o seu traado urbano, seus edifcios residenciais de tipo, sobrados e casas trreas at as mais modestas. Certamente, as habitaes mais representativas dessa classe abastada estavam repletas de mveis, decoraes e comodidades vrias, o que era no s imitado pelas famlias, cujas atividades comerciais internas o permitiam, mas tambm encaminhado para as cidades de onde vinham os produtos regionais. Teresina, desde sua elevao a capital, recebeu esse tipo de influncia da cultura europeia. Outro aspecto da histria de Parnaba o poltico-econmico, documentado pelas insistentes demandas dos comerciantes exportadores/importadores para a construo de um porto martimo em territrio piauiense altura do seu volume de comrcio. Unidos por organizaes comerciais e guiados pelas ideias capitalistas da Europa e Estados Unidos, ressentiam-se com a obrigao de utilizar o porto maranhense, o que lhes causava prejuzo direto e, indiretamente, diminua as verbas estaduais convenientes para prover outros servios pblicos de alta necessidade, como a construo do Porto de Amarrao. Expressiva tambm foi a exportao da cera da carnaba, do babau e do algodo, principalmente durante a Primeira Guerra Mundial, quando o preo dessas mercadorias cresceu, colocando o Piau como um dos maiores exportadores do Norte-Nordeste (MENDES, F., 1995, p. 57). A cera de carnaba passou a ter valor com a descoberta de sua utilizao no fabrico de graxas para sapato, ceras para assoalho, discos e outros produtos. Antes, a cera era utilizada sobretudo na fabricao domstica de velas de iluminao. Por volta de 1907, ocorrem as primeiras vendas de cera ao Exterior. Contudo, elas s tomam impulso aps 1910, tornando-se a Alemanha seu principal mercado. Com a 31
aplicao industrial da cera ganhando importncia, esta passa a ocupar lugar de destaque entre os produtos de exportao piauiense. As exportaes de babau, produto cujo primeiro grande comprador foi a Alemanha, tiveram incio em 1911; porm, ao contrrio da cera de carnaba, que registrou aumento das exportaes durante a Primeira Guerra, precisamente depois do conflito que as oleaginosas vo firmar sua cotao no mercado internacional (MENDES, F., 1995, p. 59). As zonas preferenciais de crescimento da carnaubeira (Copernicia cerifera) e do babau (Orbignia martiana) localizavam-se na bacia oriental do Parnaba, e sua navegabilidade proporcionou a exportao da cera de carnaba, do leo de babau e da borracha de manioba. No incio do sculo XX, com a exportao da manioba (1900-1915) e sobretudo da cera de carnaba e da amndoa do babau (1910-1950), o Piau teve um perodo exportador de alcance considervel. A exportao da borracha de manioba se estende apenas at 1915. Maior durao e maior impacto tiveram a comercializao da carnaba e do babau. Em 1907, a cera de carnaba j ocupava o segundo lugar na ordem de importncia dos produtos exportados. O babau comeou a ser exportado a partir de 1911. Os dois produtos alternaro a liderana nas exportaes piauienses, por toda a primeira metade do sculo. O perodo do extrativismo vegetal associado ao comrcio exterior proporcionou, desde o final do sculo XIX, um perodo de prosperidade singular na histria do Piau. As exportaes da cera de carnaba, iniciadas em 1894, as de borracha de manioba em 1900, e do babau em 1911, colocaram o Piau em posio de destaque no conjunto das exportaes brasileiras. Em 1937, o valor da produo dos principais produtos do extrativismo vegetal dava ao Piau a terceira posio entre todos os Estados, passando para o segundo lugar em 1938 e, para o primeiro, de 1942 at 1947 (MENDES, F., 2003, p.177). A cidade de Parnaba consolida-se, ento, como o principal entreposto comercial do Piau e como importante centro do comrcio internacional, graas ao esprito empreendedor dos comerciantes estimulados, certamente por ter a oportunidade do contato com o resto do mundo (MENDES, F., 1995, p. 59). O descompasso entre os interesses dos comerciantes exportadores e a viso dos polticos se faz presente no desenrolar da tese. O governo da provncia e, 32
mesmo depois, o governo estadual, desfalcado de verbas pblicas, no obstante as crescentes e lucrativas atividades dos comerciantes, encaminhavam os apelos dessa classe para a instncia superior e no eram acatados. Apesar de tudo, a cidade crescia como base no comrcio internacional. Para compreender o papel da cidade de Parnaba no contexto poltico e econmico do Piau, recorre-se bibliografia publicada sobre a histria do Piau. Quando se trata do estudo da historiografia piauiense, tem-se como primeira fonte de referncia a Introduo: historiografia piauiense, de Wilson de Andrade Brando, de 1981, a terceira edio do livro Memria cronolgica e corogrfica da provncia do Piau, de Jos Martins Pereira de Alencastre, publicada pela primeira vez em 1857 (BRANDO, 1981 apud ALENCASTRE, 2005, p.11-35). Nesta Introduo, Wilson Brando aponta os principais estudiosos da histria do Piau e suas obras. Para esta pesquisa foi analisada a contribuio de cada um deles ao presente tema. Jos Martins Pereira de Alencastre, historiador baiano, deixou um conjunto de obra variada e histrica. Sua obra Memria cronolgica, histrica e corogrfica da Provncia do Piau trata das origens do territrio do Piau, no sculo XVI, at o final da primeira metade do sculo XIX. Foi considerado a base dos estudos piauienses durante largo tempo. Suas fontes de pesquisa so documentos do perodo colonial 1
e sua metodologia consiste em interpretar cuidadosamente o documento. Francisco Augusto Pereira da Costa, pernambucano, esteve ocasionalmente no Piau, em 1884-1885, como secretrio do governo de Raimundo Teodorico de Castro e Silva, e dedicou-se histria da provncia. Rene subsdios dos arquivos pblicos, coligindo densa massa de informaes de ordem social, poltica e econmica. Publica no jornal A Imprensa artigo de carter histrico, e, em 1885, a Notcia sobre as comarcas do Piau. Nasce desses ensaios a Cronologia histrica do Estado do Piau, publicada em Recife, em 1909, s expensas do governo piauiense. Em registros abundantes, do sculo XVI Proclamao da Repblica, dispe o autor os fatos mais importantes da histria do Piau (Ibid., 2005, p.27).
1 Os documentos esto hoje no Arquivo Pblico do Piau e Arquivo Nacional (Rio de Janeiro), nos arquivos de Pernambuco, Cear e Bahia, em arquivos de Portugal, especialmente no Arquivo Histrico Ultramarino (Lisboa). 33
Entre os principais monografistas esto Clodoaldo Freitas e Padre Joaquim Chaves (BRANDO, 1981 apud ALENCASTRE, 2005, p.27). Clodoaldo Freitas (Oeiras, 1855 Teresina, 1924) tem extensa bibliografia poema, conto, crnica romance, folclore, crtica religiosa, crtica literria, filosofia, tradues. Sua grande contribuio a este trabalho foi a Histria de Teresina, publicada em vrios nmeros do Dirio do Piau de 191 2 . A contribuio do Padre Joaquim Chaves (Campo Maior, 1913) historiografia piauiense notvel, pela riqueza de fatos narrados em estilo gil e livre. So obras do autor analisadas para esta pesquisa: Teresina, subsdio para a histria do Piau (1952); Como nasceu Teresina (1971) e Apontamentos biogrficos (1981). Renato Castelo Branco (Parnaba, 1914 So Paulo, 1995) inicia o gnero ensaio histrico-cultural, em 1938, publicando, em 1942, A civilizao do couro, 3 e em 1970 o autor escreveu: O Piau: a terra, o homem, o meio (Ibid., 2005, p.33). Odilon Nunes, historiador clssico, publicou diversos trabalhos, 4 entre eles Pesquisas para a histria do Piau, com 4 volumes, em 1975, que abrangem a histria do Piau, a respeito dos aspectos polticos, econmicos e sociais, dos primeiros tempos ao sculo XIX (BRANDO apud ALENCASTRE, 2005, p.34). Os autores supracitados focalizam principalmente o perodo colonial, no qual a cidade de Parnaba aparece de forma embrionria e incipiente. Raimundo Monteiro de Santana, economista, escreve, em 1964, a Evoluo histrica da economia piauiense. Seu grande esforo no sentido de periodizar a histria da economia piauiense. Santana criou e dirigiu a Fundao de Apoio Cultural do Piau e a revista Econmica Piauiense; produziu inmeras obras, organizou livros de autoria de vrios intelectuais da terra, que incluem artigos que versam sobre a cidade de Parnaba. Felipe Mendes, economista, da Fundao Cepro, criada nos anos 1970, pela Secretaria do Planejamento, publicou estudos importantes sobre o Piau, em uma perspectiva multidisciplinar, nos quais encontramos vrias anlises da economia
2 Outra obra do autor: Histria do Piau. Teresina, 1902. 3 O autor escreveu: O Piau: a terra, o homem, o meio. Teresina, 1970; Pr-histria brasileira: fatos & lendas. Teresina, 1971; e Os Castelo Branco daqum e dalm mar, Teresina, 1980. 4 Nunes escreveu: O Piau, seu povoamento e seu desenvolvimento. Teresina [s.d.]; Smula da histria do Piau: devassamento e conquista do Piau. Teresina, 1972; Um desafio da historiografia do Brasil. Teresina, 1979; Depoimentos histricos. Teresina, 1981. 34
parnaibana. Teresinha Queiroz tambm levantou questes de natureza econmica em suas pesquisas. Miridan Britto Falci Knox e Clis Portella Nunes, trabalhando dentro da perspectiva sociocultural, dialogam com a demografia histrica. Nos trabalhos de Pe. Cludio Mello, 5 Miridan Britto Falci Knox, 6 Clis Portella Nunes, 7 Teresinha de Jesus Mesquita Queiroz 8 e Felipe Mendes, 9 a cidade de Parnaba tambm aparece de forma incipiente. O professor Francisco Iweltman Vasconcelos Mendes publicou trabalhos sobre Parnaba, abordando principalmente questes ligadas educao e ao Porto Martimo de Amarrao. Assim, no que tange cidade de Parnaba, no conjunto da historiografia piauiense, as informaes so esparsas e pulverizadas em diversos trabalhos, no sendo o foco central de nenhum dos historiadores mencionados, com o que a sua histria apresenta inmeras lacunas. 10
Para compreender a atuao e a integrao dos comerciantes estrangeiros ao mercado internacional recorre-se leitura de Gilberto Freyre e Denise Monteiro Takeya. Ambos publicaram trabalhos que tratam das relaes comerciais internacionais e explicam a forma de atuao dos comerciantes estrangeiros no
5 Mello publicou: A prioridade do Norte no povoamento do Piau. Teresina: Grfica Mendes, 1985; As duas capitais. In: SANTANA, Raimundo Monteiro de (Org.). Piau: formao, desenvolvimento, perspectivas. Teresina: Halley: 1995. 6 Knox publicou: O Piau na primeira metade do sculo XIX. Teresina: Projeto Petrnio Portella, 1985; Escravos do serto: demografia, trabalho e relaes sociais, 1826-1888. Teresina: Mons. Chaves, 1995. O ilustre senhor da Parnaba. Cadernos de Teresina, 1994; A urbanizao no sculo XVIII e a fronteira no serto do Piau, Teresina, 2002. 7 Nunes publicou: Vilas e cidades do Piau. In: SANTANA, Raimundo Monteiro de (Org.). Piau: formao, desenvolvimento, perspectivas. Teresina: Halley, 1995. 8 Queiroz publicou: Os literatos e a repblica. Teresina, 1997; A importncia da borracha de manioba na economia do Piau, 1900 a 1920. Teresina: UFPI, 1994. Economia piauiense da pecuria ao extrativismo. Teresina: APECH, 1993. 9 Felipe Mendes publicou entre outros artigos sobre economia piauiense, Formao econmica. In: SANTANA, Raimundo Monteiro de. Piau: formao, desenvolvimento e perspectivas. Teresina: Halley, 1995. 10 Algumas lacunas vm sendo aos poucos preenchidas, no Curso de Mestrado em Histria do Piau da UFPI, criado em 2004. Francisco de Assis de Sousa Nascimento foi o autor da primeira dissertao e desenvolveu estudos sobre a Cultura escolar e a histria da educao em Parnaba. No Curso de Mestrado em Educao da UFPI, Valdinar da Silva Oliveira Filho defendeu dissertao sobre O ensino comercial e a formao de guarda-livros de porta-vozes da riqueza do Piau a guardadores da memria de Parnaba (1900-1960). Alunos do Curso de Especializao de Histria do Brasil da UFPI, do Campus Ministro Reis Velloso, em Parnaba, publicaram uma coletnea de artigos que versam sobre a histria da regio Norte do Estado, em Fragmentos Histricos, experincias de pesquisa no Piau, 2005. Em 2010, a aluna do Curso de Mestrado em Histria da UFPI, Leda Rodrigues Vieira, apresentou a dissertao Caminhos de Ferro: a ferrovia e a cidade de Parnaba, 1916-1960. 35
Brasil. Para compreender o processo de urbanizao e modernizao de Parnaba, buscou-se apoio em estudos que enfocam estas temticas. Conforme Raminelli (1997, p.185-202), o crescimento e a proliferao de cidades marcaram profundamente a histria europeia do sculo XX. O caos urbano, favorecido pela Revoluo Industrial, incentivou as primeiras tentativas de planejamento urbano e de construo de uma cidade ideal. poca, alguns intelectuais, como Fustel de Coulanges, Max Weber e George Simmel comearam a refletir sobre o passado da cidade, sobre as formas de ordenamento e funes da urbe ao longo dos tempos. Reflexes acerca da histria da cidade foram feitas por historiadores, socilogos, filsofos e urbanistas, como Walter Benjamin e Lewis Munford. Na historiografia brasileira, segundo Raminelli (1997, p.200), a definio de cidade permaneceu por um longo tempo atrelada ao mbito econmico. 11 Capistrano de Abreu considerava a cidade um mero aparelho administrativo, ou um meio caminho entre os engenhos e os centros europeus de comercializao do acar. Srgio Buarque de Holanda ressaltava a presena avassaladora do campo sobre a cidade. Por ser a vila improdutiva e secundria na economia colonial, os estudiosos relegaram a um segundo plano outras vocaes dos primeiros ncleos urbanos, esquecendo as contribuies da cidade para o avano das fronteiras da cristandade. Ao longo do sculo XIX, a Amrica Latina sofreu transformaes profundas na economia: lei da terra, Abolio da Escravatura e reformas variadas de cunho liberal. Romero considera as alteraes em duas perspectivas: a primeira, ditada pelo modelo europeu, denominada desenvolvimento heterogneo; a outra, de desenvolvimento autnomo, era o resultado de alteraes da estrutura interna, da relao dos diversos grupos sociais e entre a cidade e a regio. Nas ltimas dcadas do sculo XIX, o desenvolvimento heterogneo explica as principais alteraes no perfil urbano das cidades latino-americanas (Ibid., p.201). A historiografia brasileira tambm salientou as reformas urbanas e a politizao do espao pblico. Srgio Pechman e Lilian Fritsch escreveram um artigo sobre a cidade do Rio de Janeiro e as reformas empreendidas pelo prefeito Pereira Passos.
11 Sombart, Weber e Pirenne procuram caracterizar a cidade como um espao econmico e autnomo em relao ao campo. 36
O planejamento da cidade obedeceu a algumas premissas, de um lado procurava modernizar e europeizar a antiga urbe colonial; por outro lado, a reforma pretendia ordenar e disciplinar a populao pobre, trazendo as luzes para seres bestializados. Jos Murilo de Carvalho analisou a cidade do Rio de Janeiro, no incio da Repblica, por intermdio da Revolta da Vacina. Seu estudo enfatiza as transformaes sociais, polticas e culturais trazidas pelo fim do sculo. Examina as vrias concepes de cidade, vigentes poca da mudana do regime. Revela em sua pesquisa a grande irritao popular com as prticas pblicas na rea da sade, principalmente no que se referia vistoria e desinfeco das casas (CARVALHO, 1987). Nicolau Sevcenko analisa o impacto das novas tecnologias nos processos de metropolizao da cidade de So Paulo nos anos 1920. Trata da urbanizao acelerada de So Paulo e das avassaladoras mudanas que se desencadearam. Revela as ambiguidades das engrenagens do advento no Brasil de uma cultura europeia de massa e, mais especificamente, o seu choque com o esprito modernista de experimentao e de busca de novas possibilidades culturais. Descreve condies novas de vida material e novas formas de representao do provisrio, do contingente e do fragmentrio: o devir das coletividades, a diluio dos valores comunitrios herdados, o choque com os pressupostos do individualismo racionalista e da cultura ilustrada, a busca de novos condicionamentos e formas de expresso (DIAS apud SEVCENKO, 1992, p. 11-23). Ana Maria Daou, ao discorrer sobre o perodo ureo da riqueza da borracha (1880-1910) e a decorrente euforia social e cultural que tomou conta das cidades de Belm e de Manaus, mostra como as elites amaznicas inseriram-se na dinmica do mercado mundial, e como viveram uma belle poque na selva. As elites de Belm e Manaus esforaram-se por impor, pelas reformas urbanas, os sinais de conforto material e do progresso facilitado pelos negcios da borracha (DAOU, 2000). Teresinha Queiroz estuda as transformaes espaciais e culturais de Teresina, entre o final do sculo XIX e as primeiras dcadas do sculo XX, quando a cidade se no passou por agressivas transformaes demogrficas ou por alteraes profundas em sua estrutura produtiva integrou-se de forma mais efetiva rede urbana regional, abriu-se para os intercmbios internacionais e sofreu alteraes sociais de sentido modernizador (QUEIROZ, 1998, p.16). 37
Muitos trabalhos abordaram as questes mencionadas. As anlises recorrem, comumente, aos estudos sobre modernidade, comparando as transformaes urbanas ocorridas na Europa e nos Estados Unidos com as alteraes ocorridas nas cidades brasileiras. Para Brescianni: As cidades so antes de tudo uma experincia visual. Traado de ruas, essas vias de circulao ladeadas de construes, os vazios das praas cercadas por igrejas e edifcios pblicos, o movimento de pessoas e a agitao das atividades concentradas num mesmo espao. E mais, um lugar saturado de significaes acumuladas atravs do tempo, uma produo social sempre referida a alguma de suas formas de insero topogrfica ou particularidades arquitetnicas (BRESCIANNI, 1998, p.237). Alm de uma experincia visual, a cidade tambm objeto de muitos discursos, a revelar saberes especficos ou modalidades sensveis de leitura do urbano: discursos mdicos, polticos, urbansticos, literrios, poticos, jurdicos. Tambm objeto de produo de imagens fotogrficas, pictogrficas, cinematogrficas, grficas a cruzarem ou oporem sentidos sobre o urbano (PESAVENTO, 2004, p.80). Com base na documentao e na bibliografia mencionadas, procurou-se explicar a atuao dos comerciantes no processo de integrao da cidade de Parnaba ao Piau e ao mercado nacional e internacional, bem como o papel que tiveram no desenvolvimento econmico, social e cultural da cidade de Parnaba. O trabalho foi dividido em trs captulos. O primeiro captulo apresenta uma anlise iconogrfica da Vila de So Joo da Parnaba, com suas igrejas, sobrados e casas trreas; descreve as tcnicas de construo empregadas e detalhes arquitetnicos reveladores no somente do aspecto fsico da vila, mas tambm do social. Explica as razes econmicas que levaram ao desenvolvimento do Porto fluvial das Barcas, localizado na foz do delta do rio Parnaba, ponto inicial da Vila de So Joo da Parnaba. Destaca como o gado vindo do interior da provncia foi comercializado com outras provncias. Explica como o incremento da atividade comercial da vila demandou a necessidade de uma infraestrutura de transporte eficiente, o que foi cobrado do governo pelos comerciantes parnaibanos. Cita e explica os problemas que o governo provincial teve que enfrentar para garantir a integrao econmica e o desenvolvimento poltico do Piau, entre eles: a transferncia da capital, a navegao a vapor pelo rio Parnaba, a construo do Porto martimo de Amarrao, em Parnaba, e a construo da Estrada de Ferro 38
Central do Piau. Aponta as lutas dos comerciantes importadores-exportadores de Parnaba para obter apoio governamental, a fim de melhorar a infraestrutura dos transportes e, com isso, mais eficcia nas suas atividades comerciais. O segundo captulo aborda o comrcio e os comerciantes da Vila de So Joo da Parnaba. Menciona a importncia da pecuria extensiva no serto do Piau e como Parnaba progrediu com o encaminhamento do gado e seus derivados para o Porto fluvial das Barcas, onde foram instaladas as primeiras charqueadas. Descreve a poca do apogeu das atividades dos charqueadores Domingos Dias da Silva e seu filho Simplcio Dias da Silva, ligados Corte portuguesa. Mostra de que forma as charqueadas de Parnaba integraram-se ao ciclo das charqueadas do Maranho, Cear e Rio Grande do Norte. Aponta as causas da decadncia dessa atividade comercial, e o advento da comercializao de novos produtos e de novos mercados internacionais, caso da Guiana Francesa, da Inglaterra e da Frana. Explica como se deu a integrao de Parnaba dinmica do capitalismo internacional a partir da chegada de comerciantes ingleses e franceses. Descreve a atividade comercial de duas casas estrangeiras sediadas em Parnaba: a Casa Inglesa, representada por Paul Robert Singlehurst e James Frederick Clark; e a Casa Comercial Marc Jacob, do francs Marc Jacob. O terceiro captulo mostra a expanso comercial da cidade de Parnaba sob o predomnio do extrativismo vegetal. Demonstra como esta atividade propiciou o desenvolvimento econmico e cultural da cidade, impresso nas transformaes estticas das fachadas dos edifcios pblicos e residenciais. Detalha evento desportivo provido pelos lderes do comrcio internacional o football. Aponta a importncia da Associao Comercial de Parnaba e sua ao em prol da modernizao do sistema educacional da cidade com a criao de importantes instituies de ensino: o Grupo Escolar Miranda Osrio, a Escola Normal de Parnaba e o Ginsio Parnaibano; e da urbanizao, especialmente da infraestrutura da cidade. Esclarece que no obstante as melhorias urbanas a cidade sofria com a falta de servios bsicos. Registra e compara duas crnicas que tratam da cidade e de seus habitantes, escritas por Goethe Pires Lima Rebelo e Carlos Pena Boto. Destaca a chegada do cinema em Parnaba, e, por fim, apresenta e analisa o Almanaque da Parnaba.
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2 PARNABA E SUA INTEGRAO NO ESPAO REGIONAL 2.1 Parnaba, de Vila a Cidade A Vila de So Joo da Parnaba foi oficialmente criada, segundo Carta Rgia 12 de 19 de junho de 1761. O ato solene de sua instalao, conduzido pelo governador da Capitania do Piau, Joo Pereira Caldas, com a presena do Ouvidor Geral da Capitania, teve lugar a 18 de agosto de 1762, na Igreja Matriz de Nossa Senhora de Piracuruca, 13 vila da qual o territrio constitutivo do termo da de So Joo da Parnaba foi desmembrado. Bastos (1994, p. 418) considera que a origem da Vila de So Joo da Parnaba remonta ao incio do sculo XVIII, quando das tentativas, segundo o governador do Maranho Joo da Maia Gama, do proprietrio de terras na Bahia e no Piau, Pedro Barbosa Leal, de fundar, no delta do rio Parnaba, uma vila. Nela se edificou uma capela dedicada a So Bernardo, a cinco lguas, aproximadamente, da barra do Igarau, dando incio a um aglomerado de casas. Era uma povoao conhecida, a princpio, por Arraial Novo e, em seguida, Vila Velha. 14 Foi nesse local que a Vila de So Joo da Parnaba cresceu e foi elevada categoria de cidade pela Lei Provincial n. 166, no dia 16 de agosto de 1844. Antecede a essa resoluo de se criar uma vila, 15 no litoral da Capitania do Piau, a existncia de um porto fluvial bastante ativo chamado Porto das Barcas, para onde eram enviadas reses do interior da Capitania em barcaas pelo rio
12 Segundo Delson (1979), esta carta se insere no quadro de medidas adotadas pela Coroa Portuguesa, para solucionar a ocupao das terras do Nordeste brasileiro. A construo de vilas seria uma maneira de proteger a Colnia contra ataques espanhis e estabelecer a autoridade da Coroa. Na Carta, alm de conferir Vila da Mocha (Oeiras) os foros de cidade e capital da capitania, ordenava o rei que fosse criada, em cada uma das oito freguesias ento existentes, uma vila (DELSON, 1979 apud FIGUEIREDO, 2001). 13 Em Piracuruca estava situada a Igreja Matriz datada de 1743, 27 anos antes da Vila de Parnaba e provavelmente a maior concentrao de moradores da freguesia, considerando o apuro tcnico e as dimenses do templo (SILVA FILHO, 2007, p. 27). 14 Odilon Nunes (1972, p. 24) afirma que a Vila Velha, fundada por Pedro Barbosa Leal, estava abandonada quando da criao das primeiras vilas no Piau, em 1762, tendo Joo da Maia Gama julgado conveniente restaurar a vila para acudir com preciso e defensa as ditas barras como para comunicao e comrcio da outra vila que acima aponto [...]. 15 Para a criao de uma vila bastavam seis ou sete famlias, igreja, pelourinho, casa da cmara e cadeia (SILVA FILHO, 2007, p. 27, v. III). 40
Parnaba, meio de transporte preferido ao envio de boiadas por terra, que era demorado e desgastante para homens e animais. Ali se dava o abate de doze mil reses 16 e o preparo de carnes secas e courama, j em 1762, conforme calculado pelo prprio governador do Piau, 17 Joo Pereira Caldas (PAULA NETO, 2000, p. 20). O nmero de casas no Porto das Barcas em 1762 compunha-se de 330, e a populao era formada por 1.747 brancos livres e 602 escravos. 18 Havia ali armazns e uma ermida, possivelmente a capela de Monte Serrat, padroeira dos navegantes. No obstante essa estrutura, o governador escolheu como sede da nova vila uma pequena povoao, j existente, denominada Testa Branca, que no contava com uma igreja e era formada por apenas quatro residncias, oito brancos livres e onze escravos (MENDES, I., 2001; FIGUEIREDO, 2001, p.18). Testa Branca ficava na plancie em que se estendiam os campos onde pastavam as reses que, abatidas, eram exportadas nas embarcaes que entravam no Porto das Barcas (NUNES, O., 1972, p.10). Tendo em vista a insignificncia do lugar escolhido para a sede do municpio, ordenou o governador que se levantasse o pelourinho (FRANCO, 1968, p. 28), 19 no povoado do Porto das Barcas at que, em Testa Branca, se desse incio construo de algum edifcio, e pudessem haver as primeiras acomodaes. A opo do governador por Testa Branca no foi compreendida pela populao local, pois, segundo o Procurador da Cmara, o Porto das Barcas, em 1763, era frequentado todos os anos por mais de dez embarcaes que consumiam muito mais de treze mil bois. Em 1764, o governador refere-se ao consumo de mais de doze mil reses por ano (NUNES, O., 1972, p.11). O Porto das Barcas
16 Existe na literatura local um certo consenso sobre o nmero de reses abatidas no perodo. possvel verificar esses dados em trabalhos como Nunes (1972), Brando (1995) Mendes (1996) e outros. 17 O Piau foi elevado categoria de Capitania em 1718, mas a efetivao s se deu em 1758. Joo Pereira Caldas, primeiro governador do Piau, foi ajudante de sala do governador do Estado do Gro- Par, Francisco Xavier de Mendona Furtado, irmo do Marqus de Pombal, que protegeu em lugares de destaque toda a sua famlia. A vinda de Pereira Caldas para o Piau tem dois objetivos: a apropriao legal das fazendas dos Jesutas para os bens nacionais e a estruturao administrativa da Capitania. 18 Chaves (1998, p. 425) d o nmero de 2.335 habitantes em Parnaba e 3.615 habitantes em Oeiras, 1867 habitantes em Campo Maior (MENDES, 2001, p.19). 19 No Piau os forais, o pelourinho e outros smbolos do poder portugus foram poucos, tendo sido erguido pelourinhos somente em Campo Maior (mantido at 1844) e Valena. 41
apresentava uma prspera indstria de charque e fornecia a carne do serto (DURO apud GANDARA, 2009) 20 s principais provncias: Par, Pernambuco, Bahia e Rio de Janeiro (PAULA NETO, 2000, p. 19). Sobre esta questo, assim se expressa Pereira da Costa (1974, p. 151): Incontestavelmente o povoado de Porto das Barcas oferecia mais vantagens para o assento da nova vila; era ento uma feitoria com estabelecimento de charqueadas, cujos produtos se exportavam para Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Par, deixando grande interesse s rendas pblicas, pelo movimento comercial que resultava de semelhante indstria; [alm de contar] com uma populao crescente e ativa, algumas casas e armazns e uma pequena ermida fundada pelos habitantes da localidade. Ferreira (1959, p. 151) considera que Joo Pereira Caldas, ao escolher para sede da vila o Porto de Testa Branca, situado a 6 quilmetros abaixo de Porto das Barcas, teria levado em considerao as condies geogrficas do local, a sua constante comunicao com o Exterior, Sul e Norte, facilidade de fiscalizao dos impostos de exportao de charque e outros produtos piauienses, e aplicao direta desses impostos nos servios do novo municpio (Id. ibid.). Possivelmente, Joo Pereira Caldas tambm buscava instalar a sede da vila em local limpo, alto e prximo da Foz do rio Igarau, a fim de facilitar o embarque e desembarque de mercadorias (MENDES, I., 2001, p.20). Segundo relata o ouvidor da Capitania, Antonio Jos de Morais Duro, o Porto das Barcas no oferecia condies higinicas adequadas (SILVA FILHO, 2007, p. 82), 21 alm de estar situado em terreno alagadio. Nesse perodo, os administradores portugueses, segundo Figueiredo (2001), tinham a preocupao de instalar as casas longe dos currais e dos matadouros, pelas razes apontadas por Duro (1772, p. 31 apud FIGUEIREDO, 2001): Como o principal negcio que nela se faz consiste nos gados que se matam nas feitorias [...], natural que padeam as epidemias [...] porque o ftido que causa o sangue espalhado e mais midos de tantos milhares de reses que se matam no pequeno espao de um at dois meses corrompe o ar com muita facilidade e produz o dano apontado. As moscas e as sevandijas so to inmeras que causam inexplicveis molstias aos habitantes [...] s
20 As carnes secas e couramas seguiam de sumacas ou barcos para a Bahia, Pernambuco e outros portos, trazendo dos mesmos algumas fazendas. 21 A mudana da sede da Vila de Testa Branca para o Parnaba suscitou normas e posturas, alm das prescritas na Carta Regia, de Dom Jos I, levando o governador Gonalo Loureno Botelho de Castro a ordenar [...] que fossem mudados para lugares mais distantes os estabelecimentos de charqueadas que ficavam mais prximo povoao). 42
no tempo de vero se pode caminhar por aquele distrito, pois no inverno por ser baixo e alagadio, se cobre de lagoas e faz absolutamente impraticveis os caminhos. Como o lugar do Porto das Barcas continuava a progredir, em 1769 a Cmara baixou um edital proibindo a construo de casas, sem prvia licena, naquela localidade, ao tempo em que facilitava as construes em Testa Branca, atravs de um acordo entre o governador e os comerciantes do Porto das Barcas, no sentido de serem construdas 59 casas; mas esse acordo nunca foi cumprido. Em Testa Branca, no mais se havia edificado nenhuma casa, apesar de muitas pessoas terem-se oferecido e mesmo se comprometido a construir naquele local. Em vo, o governador remeteu, em 20 de dezembro de 1762, Cmara do Senado uma planta para regular o arruamento da vila, e baixou, depois, as mais terminantes e ameaadoras ordens no sentido de reavivar-se a edificao de casas, e tornar-se efetivo o estabelecimento da nova vila no lugar determinado (PEREIRA DA COSTA, 1974). Mas as ordens no surtiram o efeito esperado, porquanto nem mesmo as poucas construes ali iniciadas foram concludas, e, das atividades realizadas em decorrncia daquelas ordens, a nica a tornar-se permanente foi a mudana do pelourinho. Por oito anos perdurou essa situao, e, somente aps a sada de Joo Pereira Caldas do governo da Capitania, cogitou-se sobre a mudana do local, sendo a sede da vila de So Joo da Parnaba transferida oficialmente do lugar Testa Branca para a denominada feitoria ou Porto das Barcas, em 3 de agosto de 1770, pelo governador Gonalo Loureno Botelho de Castro. 22
A vila, includa entre outras criadas por iniciativa real (FRANCO, 1986), 23 era a mais prspera das fundadas, e a que prometia maior adiantamento (NUNES, 1975, p.129 apud MENDES, F., 2003, p. 116), 24 e tomou a denominao de So
22 Nunes afirma que as primeiras vilas no Piau no foram criadas por uma imposio demogrfica (j que no havia lastro demogrfico), ou econmica (a pecuria caracterizava-se pelo extraordinrio poder de dispersar a populao), elas foram criadas por iniciativa nica do Governo, com o objetivo de satisfazer imposies do fisco e policiamento (NUNES, O., 1972, p. 24). 23 A instalao das oito primeiras vilas foi autorizada por Dom Jos I, pela Carta Rgia de 19 de junho de 1761, mas somente sete foram instaladas. As vilas instaladas foram: Parnaba, Parnagu, Campo Maior, Jerumenha, Marvo, Valena. 24 Mendes refere uma breve descrio da economia e da sociedade do Piau, feita em 1775, num relatrio da Junta Trina que governou a Capitania, e aponta que das vilas criadas no ano de 1762 s a de So Joo da Parnaba [...] tem tido aumento e o promete cada vez mais no s pelo negcio do porto do mar [...] seno pelas fbricas e manufaturas com as que se acha; as mais esto no mesmo 43
Joo da Parnaba (PAULA NETO, 2000, p. 17). 25 Assim ficou sendo conhecida a zona ribeirinha do rio de mesmo nome, pertencente freguesia de Nossa Senhora do Carmo de Piracuruca. Ali prosperou o comrcio e a exportao de artigos provenientes das atividades pastoril e agrcola-extrativista (Ibid., p. 21) 26 do interior da Provncia. Dali a produo da carne tomava o rumo da Europa por via das sumacas (Ibid., p. 37) 27 que faziam a ligao Parnaba-Lisboa-Parnaba (Id. ibid.). A Vila de So Joo da Parnaba, como muitas vilas coloniais no Brasil, foi planejada seguindo posturas urbansticas, estabelecidas nas Ordenaes Reais, impostas pela Coroa portuguesa. No Piau, o cdigo de planejamento de D. Jos I foi prescrito indistintamente para todas as vilas, mas algumas particularidades distinguem Parnaba das demais povoaes: Parnaba caracteriza-se como a primeira Vila da Capitania que teve um plano regulador previamente implantado [...] Parnaba se estruturava em ruas certas e alinhadas do urbanismo cartesiano, o cardus e o decumanus romanos. Por isso sua paisagem mais ordenada que nas outras [...] Parnaba tambm o nico ncleo urbano do Piau que rene duas igrejas na mesma praa. Outra particularidade distingue Parnaba das demais povoaes: enquanto aquelas evoluram a partir de um nico centro referenciado pela igreja, essa teve dois ncleos: o Porto das Barcas prefixao porturia de origem comercial; e a Praa da Matriz ps-fixao de natureza institucional, na qual se concentrava a autoridade religiosa e o poder civil (SILVA FILHO, 2007, p. 36). Alguns marcos dessa origem persistem, como certos detalhes arquitetnicos que permanecem quase que intactos, ao lado daqueles que foram alterados de acordo com o desenvolvimento socioeconmico dos habitantes. Mapas, gravuras, desenhos, documentam as transformaes da Vila de So Joo da Parnaba. As imagens procuram mostrar os diferentes traados que foram sendo criados no estabelecimento da vila, seguindo orientaes definidas pela Coroa portuguesa.
estado em que se lhes deu aquele nome, conhecendo-se unicamente por vilas em razo de terem Pelourinho, ou um pau cravado na terra a que se lhes deu aquele apelido. 25 No princpio do sculo XIX, Robert Southey descreve a Vila de So Joo da Parnaba como uma das mais importantes do Piau e informa que, quanto a sua localizao, a 4 lguas do mar, margem direita do brao oriental [...] colocaram-na numa posio privilegiada. 26 Amostras de quina, pedra-ume e capa-rosa foram enviadas de Lisboa em 1763 pelo secretrio de Estado da Marinha e Negcios Ultramarinhos, Francisco Xavier de Mendona Furtado, que informava da grande quantidade das mesmas existentes na freguesia de Parnaba. 27 As caractersticas geogrficas do litoral piauiense, com especial incidncia para a pouca fundura da sua costa, dificultavam significativamente a penetrao de navios de calado superior, sendo o sumaca o barco mais habitual para esse tipo de costa. 44
As normas estipuladas pela Coroa portuguesa, 28 para a construo das vilas coloniais brasileiras, com as casas em lotes pr-traados, obedecendo a rgidos planos retangulares, demonstravam a preocupao de garantir uma ordem controlada, e transmitir a impresso de autoridade estabelecida (FIGUEIREDO, 2001, p. 15). Analisando o plano da vila, buscamos apontar as dificuldades que, a princpio, os parnaibanos tiveram quanto a seguir as regras do urbanismo impostas por Portugal. Apresentamos o traado das avenidas largas, o alinhamento das ruas, praas, igrejas e casarios, procurando entender as questes prticas referentes organizao das atividades sociais e econmicas; as tcnicas construtivas empregadas nas diversas edificaes, bem como as questes estticas ou de embelezamento relacionadas ao aspecto das fachadas e grandiosidade de certas construes. Trs reprodues iconogrficas podem ser analisadas na tentativa de reconstruir a Vila de Parnaba nos finais do sculo XVIII (Figuras 1, 2 e 3).
28 Conforme Figueiredo, foi com a vila cearense de Aracati que a Coroa iniciou uma poltica baseada no sistema de planificao, que se expande para as vilas de todas as regies do Pas durante o sculo XVIII, inclusive ao Piau, atravs da Carta Rgia de 1761 (FIGUEIREDO, 2001 apud ARAJO et al., 2006, p.15). Figura 1 A Vila de So Joo da Parnaba, 1788. Fonte: A carreira martima Parnaba - Lisboa, 1779-1793. Teresina, 2000.
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A Figura 1 data de 1788 e ilustra a vila de forma bidimensional, com um casario geminado, marcado com telhado em duas guas e uma torre, possivelmente da primeira igreja da Vila de Parnaba, a Nossa Senhora Me da Divina Graa. A presena marcante da torre da igreja nos faz lembrar a forte influncia exercida pela Igreja Catlica, que se dava para alm da composio desta imagem, influenciando nos mais diversos aspectos da vida social. No Piau, a igreja ou capela era frequentemente o marco de origem das vilas. Com base em Franco (1968, p. 31), a igreja, erguida junto aos currais, foi, no Piau, o sinal que demarcava a criao dos municpios, tendo os padres jesutas, os procos e as misses religiosas dado os passos iniciais na sua organizao. Observa-se tambm a importncia do rio neste contexto, uma vez que este aparece ocupando grande espao da composio da imagem. A Figura 2, datada de 1798, uma planificao arquitetnica da vila, traada seguindo ordens diretas do prprio governador da Capitania, Joo Amorim Pereira: a praa como as ruas devem ser alinhadas e demarcadas antes se principiar reedificar casa alguma (REIS FILHO, 2006, p. 22). Conforme detalhou: Aproveitando antigas tradies urbansticas de Portugal, nossas vilas e cidades apresentavam ruas de aspecto uniforme, com residncias construdas sobre o alinhamento das vias pblicas e paredes laterais sobre os limites dos terrenos As dimenses e o nmero de abertura, a altura dos pavimentos e o alinhamento com as edificaes vizinhas foram exigncias correntes no sculo XVIII e tinham como finalidade manter o aspecto portugus nas vilas brasileiras (Id. ibid.).
Figura 2 - Mapa exato da Vila de So Joo da Parnaba, em 1798. Fonte: Reis Filho (apud FIGUEIREDO, 2001).
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Por sua vez, Paula Neto (2000, p. 20) acrescenta que estamos diante de uma arquitetura que obedece aos cnones da arquitetura do perodo: linhas retilneas e perpendiculares, convergindo em direo ao porto, considerado como o polo estratgico da vila. A maneira como as casas eram dispostas lado a lado com as cornijas contnuas protegia as empenas e garantia a estabilidade dos edifcios. Nota-se que em algumas vilas coloniais foram adotados padres comuns de fachadas para os edifcios com o objetivo de criar um conjunto urbano harmnico, o que dava a impresso de monotonia. Por outro lado, sua aparncia uniforme, 29 pela forma e disposio simtrica de portas e janelas, sugere a inteno de anular qualquer manifestao de liderana entre as famlias nelas alojadas. No caso de Parnaba, porm, essa ideia subjacente no vingou, pois a forte vocao comercial da vila imprimiu o clima de riqueza das famlias que passaram a liderar o destino do lugar. Dessa feita, as normas coloniais no tinham como ser mantidas com rigor. 30 o que transparece vista no mapa da vila de 1809 (Figura 3). A Carta Rgia de 29 de julho de 1761, que transformava as freguesias existentes no Piau em vilas, instrua o governador Pereira Caldas sobre os passos a serem dados na sua implantao: Convoqueis todos para determinados dias, nos quais sendo presente o povo, determineis o lugar mais prprio para servir de praa a cada uma das ditas vilas, fazendo levantar no meio delas o pelourinho, assinando rea para se edificar uma igreja, capaz de receber um competente nmero de fregueses, quando a povoao se aumentar, como tambm as outras reas competentes para as casas das vereaes e audincias, cadeias e mais oficinas pblicas, fazendo delinear as casas dos moradores por linha reta, se sorte que fiquem largas e diretas as ruas (ALENCASTRE, 2005, p.171).
29 A tendncia padronizao se devia s normas fixadas em Carta Rgia ou posturas municipais. Segundo a Carta Rgia de 1761, s com a obrigao de que as ditas casas sejam sempre fabricadas na mesma figura uniforme, pela parte exterior, ainda que na outra parte interior as faa cada um conforme lhe parecer, para que desta sorte se conserve a mesma formosura das vilas (FIGUEIREDO apud ARAJO et al., 2006, p.16). 30 Segundo Figueiredo (2001, p. 21), embora nem todas as disposies fossem cumpridas, a formao do centro urbano da Vila de Parnaba obedece, em linhas mais gerais, ao modelo traado pela Carta Rgia de 1761, cujas instrues insistiam na demarcao em linha reta. 47
O traado urbano da Vila de Parnaba (Figura 2) mostrado por uma viso tipo area, tendo como destaque o rio Igarau, o que, segundo Figueiredo (2001, p.20), revela a sua primazia como ponto de referncia da localidade; o rio a ligao com outros centros, a porta de entrada de gneros e pessoas, o meio de comunicao e transporte que propicia a troca de mercadorias. O mapa da Vila de So Joo da Parnaba, datado de 1809 (Figura 3), uma reproduo tridimensional e bidimensional que acusa a rigidez no traado ortogonal (SILVA FILHO, 2007, p.39), 31 com ruas estreitas alinhadas, quadras dimensionadas com variaes, talvez decorrentes de seus distintos usos. margem do rio Igarau, os armazns so desenhados com poucas aberturas horizontais. Em torno da praa central, de desenho regular, esto as duas igrejas, as casas trreas e os sobrados: solues caractersticas das cidades coloniais, baseadas no urbanismo renascentista, clssico e equilibrado, possuidor de uma praa central, que tem como ponto focal da paisagem urbana a Igreja.
31 Pela praticidade, os traados ortogonais tornaram-se comuns em vrias cidades do Brasil, e foram influenciados pelas Colnias Militares, por sua vez, inspiradas em cidades de colonizao espanhola. 48
Figura 3 - Vila de So Joo de Parnaba, 1809. Fonte: Reis Filho (apud Figueiredo, 2001). No que diz respeito s habitaes, elas obedeciam a dois tipos caractersticos do perodo colonial: o sobrado e a casa trrea. Elas denotam a diferena de status econmico entre as famlias que as ocupavam. Nas casas trreas edificadas com 49
tcnicas construtivas primitivas, as paredes podiam ser de pau-a-pique, adobe ou taipa de pilo, sendo o piso de cho batido. Nos sobrados coloniais eram utilizados materiais como a pedra e o barro, tijolos ou pedra e cal. O piso era de madeira, assoalhado. Evidentemente, a sua construo demandava a mo-de-obra escrava. Chama a ateno (Figura 3) o trecho esquerda da futura Rua Grande, onde todos os lotes esto ocupados por quatro grandes sobrados. Na praa tambm esto localizados dois sobrados, um de frente para a Igreja do Rosrio, e outro sua direita. O sobrado: Era smbolo de poder e, com as mulheres em recluso, o desconforto de subir e descer escadas, de abrir e fechar portas, de ferver e esfriar gua, de acender e apagar o lampio, de levar e trazer recados era resolvido com o trabalho escravo. O funcionamento da casa antiga dependia desse suporte (SILVA FILHO, 2007, p. 84). Importa dizer que a quantidade de sobrados nos remete ao nmero de famlias que desejavam marcar, na paisagem urbana, a sua posio social, e distinguir-se por uma residncia mais suntuosa, ostentando assim, deliberadamente, seu poder econmico. Ao contrrio do que se observa na representao do casario das casas trreas, com fachada quase padronizada, nos sobrados, os respectivos proprietrios imprimiam detalhes requintados de acordo com seu perfil, seu gosto e suas posses. Eram pessoas dispostas a investir uma boa parte de sua renda para ostentar sua riqueza. Considerando o nmero de sobrados e desses requintes arquitetnicos, avaliamos a prosperidade da Vila de Parnaba frente s demais vilas da Capitania. Diferentementes das referidas vilas cuja origem estava ligada a vida rural 32
autosuficiente, baseada nas fazendas de criao de gado, onde os fazendeiros e seus familiares residiam e permaneciam a maior parte do ano, s utilizando sua residencia na vila por uns poucos dias, por ocasio dos festejos religiosos, ou para trocar produtos da fazenda por outras mercadorias, j que a vila no entusiasmava o homem aficionado ao campo (Ibid., 2007, p. 33) em Parnaba, j se encontravam instalados cidados dotados de esprito progressista e empreendedores, que usufruam da uma vila que auferia quela poca os benefcios da civilizao urbana (FRANCO, 1968, p. 28).
32 Na sede a populao era muito pequena, porquanto o grosso da populao era rural; os donos da terra, os senhores, viviam no alpendre, dando ordens para a administrao local e vendo dali a manada de gado para comerciar com os compradores (FRANCO, 1968, p. 37). 50
As trs documentaes iconogrficas situam a vila nas proximidades do rio Igarau, sendo que duas delas (Figuras 2 e 3) mostram um traado de quarenta e quatro quadras retangulares ao redor de uma praa quadrada, onde figuram duas igrejas a de Nossa Senhora Me da Divina Graa e a de Nossa Senhora do Rosrio alm da capelinha de Monte Serrat e o pelourinho. 33 Desse primeiro ncleo, parte da beira do rio, esquerda, uma larga rua, a antiga Rua Grande (atual Avenida Presidente Getlio Vargas). No mapa de 1809 aparece uma segunda praa com o pelourinho. Algumas edificaes que aparecem na Figura 3 existem ainda hoje, como o Sobrado de Simplcio Dias e o Sobrado do Mirante ou da Dona Auta este retratado no mapa de 1809 com seu ptio interno e nele uma forca , as igrejas e a capela de Nossa Senhora de Monte Serrat (SANTANA, M. apud RAMOS, 2008, p. 96), 34
padroeira dos navegantes (Figura 4). Vrios sobrados fazem parte do stio histrico de Parnaba, como o Solar da Poeta e o Sobrado Vista Alegre (IPHAN, 2008). 35
Outras construes desapareceram. Renato Castelo Branco (1981, p.25) lembra que, ao longo dos anos, muitos casares se perderam, entre eles a Casa dos Miranda Osrio, famlia que disputava com os Dias da Silva o domnio econmico da vila. O nicho da Casa Grande apontava para a Casa dos Miranda Osrio.
33 As duas igrejas e a capela so indicativas do status da Vila de So Joo da Parnaba, j que, segundo o autor supracitado, quanto mais e maior a igreja, mais importante o local (SILVA FILHO, 2007, p. 35). 34 A pequena ermida, situada na Rua Duque de Caxias, motivo de controvrsia entre historiadores e estudiosos locais, que encontram dificuldades para esclarecer a histria da capela que traz em seu frontispcio a data de 1711. Segundo Mario Pires Santana (2008, p. 96), de concreto, sabemos que o rico fazendeiro portugus coronel Pedro Barbosa Leal, vindo da Bahia, chegou ao Delta do Parnaba no incio do sculo XVIII. Ficou extasiado com as possibilidades de implantar na regio uma charqueada. O Instituto Histrico, Geogrfico e Genealgico de Parnaba possui em seus arquivos cpia de um documento conseguido nos arquivos do Maranho assinado pelo coronel Pedro Barbosa Leal em 11 de junho de 1711, onde solicita Curia Diocesana do Maranho permisso para construir uma capela para a Parquia de Nossa Senhora de Monte Serrat, padroeira dos navegantes. Da em diante tudo so conjunturas. Comenta-se, mas sem nenhuma confirmao comprobatria, que Pedro Barbosa Leal construiu a capela e trouxe de Portugal a imagem de Nossa Senhora de Monte Serrat. Como os ndios Tremembs invadiam constantemente o arraial, Pedro Leal levou a imagem para a Igreja de Nossa Senhora do Carmo, na freguesia de Piracuruca, onde se encontra at hoje, mas no h confirmao de que estava em Parnaba, e se foi levada por Pedro Barbosa Leal. 35 O tombamento federal do Conjunto Histrico e Paisagstico de Parnaba faz parte da proposta de tombamento do conjunto de Cidades do Piau testemunhas da ocupao do interior do Brasil durante o sculo XVIII. Nele esto includos o tombamento do Porto das Barcas e Galpes Porturios; Conjunto Praa da Graa; Conjunto Avenida Getlio Vargas (antiga Rua Grande); Conjunto Praa Santo Antnio; Conjunto Estao Ferroviria e o Conjunto Santa Casa de Misericrdia. 51
Figura 4 - Capela de Monte Serrat Fonte: Junia Rego (2006). Figura 5 - Casa Grande da Parnaba / Casaro de Simplcio Dias. Fonte: Junia Rego (2006).
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Ramos (2008, p.78) assinala que o portugus Domingos Dias da Silva imigrou para o Brasil muito jovem. Ao chegar, instalou-se na Vila de Parnaba, e comeou a construir o complexo arquitetnico da Casa Grande dos Dias da Silva (Figura 5), localizado na esquina da antiga Rua Grande com a Rua Monsenhor Joaquim Lopes. Eram ento dois edifcios contguos construdos com pedra, argamassa de cal de ostra e leo de baleia, ambos com trs andares: o trreo era destinado ao comrcio e os outros dois famlia. Assim como outras edificaes de seu tempo, seguiram o padro de alinhamento frontal com ausncia de afastamento lateral. O edifcio da Rua Monsenhor Joaquim Lopes est atualmente bastante descaracterizado; o outro, voltado para a Rua Grande, encontra-se destroado, mas guarda muito de sua imponncia com suas paredes enormes, de um metro de largura. digno de nota o nicho na quina do primeiro andar, feito em pedra de Lioz, 36 que abrigava a imagem de Nossa Senhora da Conceio. 37 O andar trreo tem 10 portas, sendo algumas delas mais largas, com abertura para as dependncias comerciais. Uma escadaria d acesso aos andares de uso familiar. O primeiro andar tem na fachada dez portas do tipo porta-janela, dando para balces ornados com guarda-corpo de ferro fundido; no ltimo andar, dez janelas. Renato Castelo Branco (1981) afirma que a Casa de Simplcio Dias da Silva foi o smbolo da grandeza histrica de Parnaba, e o centro de toda a vida da Provncia, com seu fausto, sua grandeza, sua imponncia. Diz esse autor que a cidade crescera praticamente em torno dela, sombra do poder incontestvel de seu proprietrio. Simplcio Dias, ao presidir na cidade a adeso conspirao da Independncia no Piau, recebia os emissrios das provncias vizinhas que vinham com ele confabular (Ibid., p. 23). Gandara (2008, p. 234) ressalta a importncia da famlia Dias da Silva no crescimento comercial da vila, e o quanto promoveu mudanas sociais de ordem vria: A Casa Grande de Parnaba a representao da conformao urbana parnaibana. Entre outras singularidades, a Casa Grande de Parnaba teve
36 Lioz ou pedra lioz a designao dada em Portugal a um tipo de pedra calcria, geralmente bege. Esta rocha foi largamente utilizada em Portugal como rocha ornamental na construo de elementos estruturais, como padieiras e ombreiras. 37 Outros autores dizem que o nicho abrigava a imagem de Cristo (Cf. CASTELO BRANCO, RENATO, 1981, p. 24), ou dizem apenas um santo protetor (Cf. RAMOS, 2008, p. 78). 53
o poder e a funo de uma beira, ou seja, foi o elemento influenciador e definidor da estrutura espacial da cidade (Id. ibid.). O comrcio proporcionava um contato mais ntimo com a Europa e drenava artigos e costumes que eram prezados por sua diferena com relao aos padres rsticos do interior da Provncia. A Vila de So Joo da Parnaba passou a liderar o fluxo cultural do litoral para as principais vilas da Provncia. Alm do papel cultural com sabor portugus e francs que a famlia Dias da Silva imprimiu na nascente e prspera Parnaba, convm assinalar a confluncia dos aspectos culturais da Inglaterra, prodigalizados pela Casa Inglesa de Parnaba (Figura 6), da firma Andrew Miller & Co. Fundada em 1849, logo se tornou ativa exportadora/importadora de especial grandeza no perodo imperial. Posteriormente, a firma passou a ser Singlehurst Nicholson e Co., e, em seguida, apropriada pelo ingls James Frederick Clark. Este estabelecimento comercial ocupava o monumental sobrado de trs andares e mais de 3.000 metros quadrados construdo em 1814, localizado na antiga Rua Grande.
De acordo com Renato Castelo Branco (1981, p. 25), a construo do sobrado data de 1814, 38 mas s h registro de sua histria do perodo de 1854, quando foi adquirido pelo ingls Robert Brocklehurst de seu ento proprietrio, o
38 Observando os mapas de 1809 (Figura 3), chama a ateno o fato de que todos os lotes j estavam ocupados, inclusive o local onde se ergue a Casa Inglesa. Podemos pensar em reforma, aproveitamento ou demolio de um imvel preexistente, o que evidencia o processo de crescimento da vila. Figura 6 - Casa Inglesa.
Fonte: Acervo pessoal de Ingrid Clark [s.d.].
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engenheiro Major Eleutrio Antonio Soares Braga. 39 O referido ingls, por sua vez, vendeu o sobrado a outro ingls, Paul Robert Singlehurst, que o vendeu a James Frederick Clark. Na explicao de Renato Castelo Branco (1981, p. 25): boa maneira lusitana, seu andar trreo era ocupado pela casa comercial, a Casa Inglesa, que se tornou uma das principais firmas exportadoras do Piau e do Nordeste. Os andares superiores, com mirante, varandes e mveis importados da ustria e da Inglaterra, eram a parte nobre do sobrado, residncia da famlia (Id. ibid.). Essa descrio coincide com a da maioria dos sobrados coloniais como habitao tpica da elite regional: dos dois ou mais pavimentos, o primeiro abrigava o comrcio (espao dito pblico), s vezes alojamentos para escravos e animais; o superior (privado e ntimo) abrigava a famlia do proprietrio. O sobrado da Casa Inglesa apresenta caractersticas neoclssicas muito apreciadas na Colnia e no Imprio. No andar trreo, podem ser vistas nove portas- janelas, com as bandeiras em madeira. A portada principal, diferente das demais, com vergas retas, bem mais alta do que o normal, e demarcada com a verga em arco pleno, o que lhe d imponncia. A portada traz a data de 1814 -1920 (Figura 7), e assinala a data da construo ou do incio da utilizao do prdio, e a data de uma reforma feita na Casa, por ocasio do casamento do filho de James, o Dr. Oscar Clark, com Lucy Mendona, em 1921. No segundo andar, vemos cinco janelas; as bandeiras trabalhadas com caixilho de vidro, e dez balces com guarda-corpo de ferro ingls, de onde a famlia Clark certamente assistia s procisses religiosas e a outros acontecimentos da vida social. Eram momentos em que a famlia no s via, mas tambm era vista pela sociedade. Dos balces se avistava o sobrado dos Miranda Osrio, e, do outro lado da rua, na esquina, a Casa Grande de Parnaba. A Casa Inglesa, 40 o Casaro de Simplcio Dias da Silva e o casaro dos Miranda Osrio (que no mais existe), todos imponentes sobrados de grandes
39 Documento localizado nos arquivos da Casa Inglesa informa a compra da casa de Eleutrio Antonio Soares Braga e mais herdeiros de D. Ana Maria dos Prazeres Braga por Robert Brocklehurst, em 24 de setembro de 1853. 40 preciso fazer uma distino entre o estudo da histria do casaro colonial que foi sede da Casa Inglesa e o estudo da firma Casa Inglesa, que ocupou o sobrado. interessante notar que um sobrado com aquelas dimenses no mencionado por viajantes (caso do Casaro de Simplcio, citado por Henry Koster, em Viagem ao Norte do Brasil, de 1809 a 1815, ou por Tollenare, em Notas Dominicais) nem por historiadores piauienses clssicos. No localizamos nenhum documento, e por isso no sabemos o nome ou nomes de seus primeiros proprietrios ou do construtor original. 55
comerciantes exportadores, ocupavam esquinas na Rua Grande, a artria comercial da vila. Esse tipo de construo, em esquina com duas fachadas, oferecia a seus proprietrios mais liberdade criativa, a possiblidade da utilizao de maior variao de detalhes arquitetnicos e de uma quantidade maior de elementos decorativos nas fachadas. Enfim, dava a eles maior oportunidade de distiguir-se pelo visual, pelo aparato de suas moradias. o caso da caracterstica colorao rosa que reveste as fachadas da Casa Inglesa. Foi feita durante a reforma de 1920, 41 quando operrios vieram do Exterior para execut-la, por ocasio do casamento de Oscar com Lucy, em 1921.
41 Segundo depoimento de Ena Clark Nunes, neta de James Frederick Clark e Ana. Figura 7 - Portada principal da Casa Inglesa de Parnaba. Fonte: Fonte: Acervo pessoal de Ingrid Clark [s.d.].
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O Sobrado do Mirante (Figura 9), que consta no mapa de 1809, tambm conhecido como Sobrado de Dona Auta, 42 apresenta, na fachada principal, um beiral e seis janelas com sacada de ferro, o todo coroado com um mirante, acima do nvel do beiral lateral. O sobrado, cuja data de construo e primeiro morador so desconhecidos, teve diversos proprietrios e usos: abrigou um quartel; foi propriedade do coronel Manoel Antnio da Silva Henriques, portugus, comerciante, e sobrinho de Domingos Dias da Silva; foi residncia dos irmos franceses Marc e Lazare Jacob; abrigou o Banco do Brasil; um educandrio (no segundo andar funcionou o Grupo Escolar Miranda Osrio, de 1927 a 1979); uma casa comercial (Casa Comercial Tote Machado); um restaurante (Casa Grande) e uma boate (Senzala). 43 Foi adquirido em 2001 pela Prefeitura Municipal, que cedeu parte do pavimento trreo Biblioteca Municipal e o restante do prdio sede do Instituto Histrico Geogrfico e Genealgico de Parnaba.
42 O sobrado ficou assim conhecido por haver pertencido, nos idos de 1880, senhora Auta Cesria Castelo Branco Ferreira (SANTANA, M., 2008, p. 100). 43 O Casaro, nesse perodo, pertencia a Jos Alexandre Caldas Rodrigues. Figura 8 Solar do Mirante Fonte: Paulo Roberto de Melo Freitas (2008).
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Outros sobrados coloniais ainda existem. Na Avenida Presidente Vargas, junto Ponte Simplcio Dias, est o Casaro dos Azulejos ou Solar da Poeta (Figura 9), com construo datada 44 da segunda metade do sculo XIX, em estilo oitocentista, e que, esclarece Silva Filho (2007, p.170), muito se aproxima dos sobrados luso-maranhenses, especialmente pelo paramento de azulejos estampilhados, de manufatura portuguesa. No imponente solar, viveu parte de sua vida (1838-1898) Luiza Amlia de Queiroz Brando, 45 a primeira poetisa do Piau. Com fachada de azulejos azuis, o Solar de dois pavimentos um dos poucos exemplares desta arquitetura no Piau. O azulejo foi usado de forma extremamente modesta, sendo encontrado em poucos imveis de Parnaba, Amarante e Teresina. Sua parte trrea j foi adaptada para espaos comerciais, e o segundo piso atualmente abriga uma escola. Uma escada em madeira de lei, de frente para a ampla porta principal, d acesso ao pavimento superior, de piso de tabuado corrido
44 O Sobrado de Azulejos foi construdo em 1880, e, assim como o Sobrado dos Dias da Silva, no possui quintal, apenas poo de iluminao e ventilao (SILVA FILHO, 2007, p.170). 45 Luiza Amlia de Queiroz Brando (1838-1899). Primeira poetisa piauiense. Poetisa inata, romntica, de exuberante lirismo. Patrona da Cadeira n. 24 da Academia Parnaibana de Letras e da Cadeira n. 28 da Academia Piauiense de Letras (GONALVES, 2003, p. 80). Figura 9 Solar da Poeta Fonte: Paulo Roberto de Melo Freitas (2008).
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e forros ripados. De suas sacadas com gradis de ferro importado e portas em arco pleno, destacadas com pedra de Lioz, Luiza Amlia olhava o Igarau passar, e via o ruidoso Porto das Barcas, local onde a saudade naval irradiava sentimentos para seu corao partido (MAVIGNIER apud RAMOS, 2008, p. 24). O dinheiro para a construo das edificaes supramencionadas foi proveniente da riqueza acumulada por seus proprietrios/negociantes, no comrcio de importao/exportao, com o interior da Provncia e com o alm-mar, tendo como ponto de chegada e partida das mercadorias o Porto fluvial das Barcas. Localizado s margens do rio Igarau um dos braos do Parnaba , conhecido tambm como Porto Salgado, o Porto das Barcas um conjunto arquitetnico de 10.000m formado pelo cais, os diques, a alfndega, galpes porturios e casario. O casario do Porto (Figura 10) descrito da seguinte maneira: As edificaes trreas, com p-direito baixo e sem presena de platibandas, com cimalhas simplificadas fazendo o acabamento dos beirais. Nestas edificaes destacam-se o ritmo das aberturas, a espessura das paredes em alvenaria de pedra, a implantao no alinhamento do lote e os telhados em duas guas, recobertos por telhas tipo capa-e-canal, com as cumeeiras paralelas rua, sendo utilizados troncos de carnaba como caibros (IPHAN, 2008, p.16).
Figura 10 Casario do Porto das Barcas. Fonte: Junia Rego (2006). 59
Nos galpes porturios, predominam as linhas sbrias e a pouca ornamentao. Neles eram armazenados os produtos que chegavam do interior o charque, os couros, as peles, algodo, arroz, e, mais tarde, os sacos de cera de carnaba, amndoas de babau, de tucum, e outros produtos destinados ao Porto martimo para exportao. Foram construdos, como era de praxe, em alvenaria de pedra e cal extrada dos montes de resduos de conchas, sinais de presena de antigos habitantes indgenas, os sernambis 46 (Figura 11). Na descrio desses galpes consta um detalhe especial: o teto era feito sob forma de arco de volta, o que o tornava mais seguro. Era armado com pedras de diferentes tamanhos, vindas como lastro das embarcaes (Figura 12).
Outro detalhe: as ombreiras de madeira do tronco da carnaba (usado tambm como caibro) tinham funo parecida, isto , sustentavam o peso da verga.
46 Sernambi uma das muitas denominaes dadas acumulao de restos de moluscos, um tipo de stio arqueolgico encontrado geralmente nas reas litorneas. Figura 12 - Verga reta, de descarga, com emprego de tijolos grandes e pequenos. Foto: Junia Rego (2006). Figura 11 - Detalhe da parede em pedra. Foto: Junia Rego (2006). 60
Ripas eram tiradas da casca da mesma palmeira. Como se pode notar na Figura 13, eram empregados tijolos nos pisos e nas vergas.
A respeito do Porto das Barcas: O complexo de edificaes resistiu fora do tempo com muitas de suas caractersticas intactas. So formas arquitetnicas singelas, austeras, expressando um lirismo que dialoga com as guas do rio e se nutre dos ventos que sopram por essa terra (RAMOS, 2008, p. 30). Detalhes sobre a construo do casario e dos edifcios utilitrios do Porto das Barcas mostram como a prosperidade advinda do comrcio, da indstria de produtos extrativos e da criao de gado contribuiu para a solidez do conjunto. Um exemplo dessa sbria opulncia de um Porto de ligao entre o interior da Provncia e sua projeo internacional o prdio da Alfndega. Seu estilo de sobrado colonial expressa-se pelo telhado abatido e grandes janelas com arco pleno e bandeira com caixilho de vidro (Figura 14).
Figura 14 Alfndega de Parnaba. Foto: Junia Rego (2006). Figura 13 Arco de volta perfeita. Foto: Junia Rego (2006).
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Voltando ao mapa de 1809, no muito longe dos galpes, est desenhado o espao da Praa da Graa, onde foram implantadas obedecendo influncia da Igreja na concepo urbanstica de qualquer aglomerado duas igrejas que datam do final do sculo XVIII: A Igreja de Nossa Senhora da Graa e a Igreja Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos de Parnaba (SILVA FILHO, 2007, p.13). 47
A Igreja de Nossa Senhora da Graa (Figura 15) foi suntuosamente concebida e iniciada pelo charqueador Joo Paulo Diniz 48 (1791) e concluda em 1795 (CARVALHO, 2005, p. 94), 49 por Dias da Silva. Nela repousam os restos mortais da famlia Dias da Silva. Seu porte e requintes arquiteturais e decorativos justificaram sua elevao Catedral da cidade. O altar-mor folheado a ouro abriga a imagem barroca portuguesa de Nossa Senhora das Graas. Na anlise de Silva Filho (2007, p. 342), ela segue as caractersticas neoclssicas que marcaram o perodo de D. Maria, em que se destaca a silharia de azulejos da Capela do Santssimo. Sua planta retangular segue a tradio ibrica da Igreja Basilical, capelas intercomunicantes no transepto, capela-mor profunda, coro e sacristia. Pereira da Costa (1974) faz referncia bela igreja, cuja construo terminou em 1795, o que constitua, seno o primeiro templo da Provncia, pelo menos o rival da majestosa matriz de Piracuruca, 50 donde foi transladada a imagem de sua padroeira. Coberta de lousa com duas alterosas e elegantes torres, um prtico de mrmore com esculturas, assim como todas as ombreiras e vergas das portas e janelas, pilastras e cornijas o so tambm internamente e externamente, com uma nave de 21 metros de comprido sobre 9m,40 ditos de largo, capela-mor e mais duas laterais, notando-se a do S.S. Sacramento pela beleza das obras de escultura em madeira, com dourado finssimo, tudo isso, e suas alfaias riqussimas, as lmpadas e vasos de prata, pia batismal e lavatrio de mrmore, e outros de valor e gosto artstico, do igreja um aspecto de beleza e de riquezas dignos de nota (NUNES, O., 2007, p. 289).
47 Apenas em Parnaba as igrejas se encaixam em quadras domsticas, sendo tambm a nica vila com duas igrejas alm de uma capela. 48 Segundo Mavignier (2005, p.55) coube a Joo Paulo Diniz a construo da capela-mor, enquanto Domingos Dias da Silva comprometeu-se com a capela do Santssimo, e ao povo coube a tarefa de edific-la. 49 Essa informao dada por Carvalho Jr. (2005, p. 94). J Paula Neto (2000, p. 20) diz que ela comeou a ser edificada em 1770. Segundo Pereira da Costa (1974, p. 199), a igreja foi concluda em 1795, quando a imagem da padroeira foi transladada da matriz de Piracuruca. 50 A Igreja de Piracuruca, consagrada a N. S. do Carmo, cuja construo teve incio em 1743, como promessa dos irmos Dantas, libertos milagrosamente do poder dos ndios truculentos (NUNES, 2007, p. 289). 62
Para a ornamentao da igreja, Dias da Silva trouxe da Europa parte do material, objetos decorativos e contratou artistas que vieram de Portugal e da Frana (MAVIGNIER, 2005, p. 55). A Igreja das Graas era ligada Casa Grande de Dias da Silva, por meio de galerias, dando acesso exclusivo a seus patrocinadores.
A imagem seguinte a da Igreja Nossa Senhora do Rosrio (Figura 16), nela observa-se na composio do frontispcio uma verticalidade dos traos, e um jogo simtrico na disposio das torres e esquadrias. O fronto, com arremates em volutas e o braso na porta principal, conferem composio um diferencial rigidez simtrica do frontispcio. 51
51 Foto publicada na srie Arquitetura Piauiense, do Grupo de pesquisa Amigos do Patrimnio que formado por alunos do curso de Arquitetura e Urbanismo da UFPI, com o objetivo de resgatar a memria arquitetnica piauiense, atravs de esboo que divulga o acervo rural, urbano, com tipologia que varia entre igrejas, casa de fazenda, cenrios urbanos, detalhes construtivos. Figura 15: Igreja Matriz de Nossa Senhora Me da Divina Graa. Fonte: Olavo Pereira da Silva Filho (2007). 63
Silva Filho (2007, p. 350) acrescenta que as vergas ogivais, abatidas e de arco pleno refletem o apelo ecltico acentuado no interior, especialmente na capela- mor e laterais, enquanto tesouras de linha alta, torres com cobertura piramidal e cimalhas em boca de telha confirmam o emprego de tcnicas tradicionais (Id. ibid.). A Igreja Nossa Senhora do Rosrio dos Homens Pretos de Parnaba foi construda em ateno aos dois mil negros escravos da famlia Dias da Silva. O mencionado nmero de escravos, mercadorias vivas, aponta para o significativo patrimnio pessoal de Dias da Silva, e tambm sinaliza o seu status social, j que a quantidade de escravos de um senhor pode ser considerada como um smbolo de distino social. A praa em que esto localizadas as duas igrejas, denominada primeiramente como Largo da Matriz, passou a chamar-se Praa Municipal, e posteriormente, Praa da Graa. Devido sua localizao central, e sendo a mais antiga, era considerada o corao da cidade, embora sem benfeitorias expressivas poca em que Parnaba foi elevada condio de cidade. Segundo Humberto de Campos, em 1895, o Largo da Matriz era um descampado, com buracos e poas dgua no Figura 16 Igreja Nossa Senhora do Rosrio. Fonte: Juliana Alves (s.d.).
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inverno. Era um grande quadrado, onde havia uma lagoa com gua barrenta, chamada Lagoa da Ona. Reza a lenda que, em noite enluarada, a ona saa do mato, indo mirar a lua e saciar a sede (ABREU, 2005, p. 200). A Vila de So Joo da Parnaba no se limitava a essas construes. Da Praa da Graa, partem algumas ruas com sobrados e casas trreas, tpicas do estilo colonial, constando como um ncleo original do Brasil Colnia. Em 1866, segundo relato do Inspetor da Alfndega, havia em Parnaba 178 casas trreas, 10 sobrados, 4 armazns, entre eles a casa inglesa de Singlehurst Nicholson & Cia. e a francesa de Naeff Nadler & Co. 2.2 Parnaba, Capital Econmica do Piau Para compreender a posio poltica e econmica ocupada pela Vila de So Joo da Parnaba no contexto colonial e provincial, preciso o entendimento de alguns marcos da histria do Piau o papel da pecuria, da agricultura, do extrativismo vegetal e os eventos que consideramos pontuais para a sua compreenso, entre eles o processo de transferncia da capital da Vila de Oeiras. H ainda trs elementos que podem ser considerados fundamentais para o desenvolvimento e progresso do Piau: a navegao a vapor pelo rio Parnaba, a anunciada mas nunca realizada construo do Porto martimo de Amarrao e a construo da Estrada de Ferro Central do Piau. Para Brando (1995, p. 35), a insero do Piau no contexto colonial brasileiro ocorreu na segunda metade do sculo XVII. A regio definiu-se, desde ento, como zona de produo pecuarista, cujo produto destinava-se ao abastecimento do mercado brasileiro. O comrcio do gado foi responsvel pela dinmica da economia piauiense at a dcada de 1870. Os meados do sculo, sobretudo as dcadas de 1850 e 1860, podem ser caracterizados como uma fase de bom desempenho das exportaes (QUEIROZ, 1998, p.19). Na concepo de Mott (1985, p.55), as vantagens econmicas atribudas pecuria eram grandes; ou, segundo ele, representavam para a zona sertaneja no s uma sada, mas um grande negcio (Id. ibid.), apesar de a pecuria extensiva ser uma atividade em que tudo acontece devagar. O ciclo da produo se completa aps quatro, cinco ou mais anos, quando 65
o boi encontra-se no ponto de ser abatido. Uma fazenda de gado emprega menos mo-de-obra e o proprietrio pode estar ausente (MENDES, F., 2003, p. 30). O governo imperial enfrentou srios problemas para garantir o crescimento e a integrao do imprio, cujo ponto crucial seria a ampliao das atividades econmicas das provncias voltadas para o comrcio nacional e internacional; ou, como analisou Queiroz (1998, p.14), o objetivo mais geral, expresso em nvel de poltica nacional, era consolidar a posio do pas enquanto exportador de matrias- primas. O Imprio, que buscava um projeto de desenvolvimento para o Pas articulado expanso das provncias, era entendido como elemento alavancador e dinamizador das mudanas estruturais necessrias integrao da nao ao processo mundial do capitalismo mercantil. No caso da Provncia do Piau, era preciso criar estratgias (GANDARA, 2008, p.116) para superar grandes obstculos polticos, econmicos e sociais. At ento, o Piau, pela falta da ao governamental, era marcado por srios empecilhos ao progresso e modernizao: a economia rural e primitiva baseada na pecuria extensiva, e na agricultura de subsistncia (MENDES, F., 2003, p. 62); insuficincia demogrfica e um alarmante isolamento 52 geogrfico (BRANDO, 1995, p.33), 53 o que representava colocava-a em uma situao de estagnao, atraso e pobreza.
52 Na Carta Rgia de 19 de junho de 1761, o rei d. Jos j se mostrava preocupado com a situao dos habitantes da Capitania, que viviam em grandes distncias uns dos outros sem comunicao, como inimigos da sociedade Civil e do comrcio humano. Alencastre (2005, p.170) e Mott (1985, p.46) transcrevem as informaes do Vigrio por volta da metade dos setecentos, em que expressa a esperana de que os sertes se urbanizassem: acha-se situada esta freguesia de Nossa Senhora da Vitria no centro do serto do Piau; no tem outra povoao, vila ou lugar mais que a Vila da Mocha, que consta de 60 moradores, pouco mais ou menos, e pouco ou nenhum permanentes, por serem os mais deles solteiros; e se hoje se acham nela, amanh fazem viagem e o que avultam nela so os oficiais de justia. [...] Como a maior parte dos fregueses so criadores de gado vacum e cavalar e no podem comodamente morar junto da vila, se acham dispersos por vrios riachos, morando com suas famlias para com comodidade tratarem da criao de seus gados. Mott acrescenta que mesmo com a determinao do rei d. Jos, de criar 8 vilas nas existentes freguesias na Capitania, ainda por muito tempo a populao do Piau vai preferir construir suas moradias pelas brenhas e sertes, e no no permetro das vilas e povoaes. As fazendas de criao de gado estavam espalhadas e distantes, algumas se constituindo de grandes latifndios, em decorrncia, segundo Mott (1985, p.51), no s da cobia dos sesmeiros, mas da necessidade intrnseca pecuria extensiva (por ocasio das secas, por exemplo, era necessrio mover as boiadas em grandes espaos). Da muitas vezes a preferncia dos criadores de gado em morar junto dos poos que ficam nos riachos no tempo de inverno. Ainda segundo Mott (1985, p. 52), o tamanho das fazendas se devia rusticidade do nvel tcnico dominante na pecuria e a rarefao das pastagens nos perodos estivais que forava os proprietrios a desejarem e necessitarem grandes extenses fundirias. O baixo nvel tcnico atestado pelas tentativas, sem sucesso, de introduzir o arado entre os lavradores. Os lavradores, aps terem experimentado este instrumento, constataram que seu uso era impraticvel, devido natureza do solo quase todo composto de caatinga, chapadas e matos. 53 Antes da instalao da capitania, o territrio piauiense fazia parte da rea identificada como Serto de Dentro ou Serto de Rodelas, que compreendia as terras situadas a Oeste do rio So Francisco. 66
A pecuria extensiva, instrumento da ocupao econmica do Piau, era uma atividade pouco dinmica, exigente de pouca mo-de-obra, e que dificultava a pequena explorao agrcola (MENDES, F., 2003, p. 50). A agricultura de subsistncia, 54 voltada principalmente para o consumo interno, foi considerada, pelo governo imperial, inadequada para promover a integrao da regio expanso capitalista. A insuficincia demogrfica apresentava-se como um corolrio da economia de subsistncia aliada criao extensiva de gado, sem qualquer outro atrativo econmico complementar (BRANDO, 1995, p. 38). 55
Para promover o progresso, era necessrio dinamizar os setores produtivos, a fim de haver arrecadao de impostos (QUEIROZ, 1998, p.19), 56 para prover aes estatais condizentes com as necessidades da Provncia. O impasse deveria ser vencido pelo incentivo a atividades lucrativas, baseadas na agricultura mais desenvolvida (Ibid., p. 25), 57 no comrcio de produtos extrativistas e no escoamento adequado dos produtos. A modernizao da Provncia s seria possvel, pois, ao ser dinamizada a produo, a comunicao e o acesso entre os setores produtivos e os comerciais de curtas e longas distncias. Outro obstculo colocado como dificultador do processo de desenvolvimento do Piau dizia respeito localizao geogrfica do seu centro administrativo e poltico. Nesse sentido, a transferncia da capital recebeu especial ateno do presidente da Provncia e do governo imperial, consciente do isolamento em que se encontrava Oeiras.
O espao geogrfico da Capitania do Piau limitou-se, desde sua criao, rea territorial situada no lado oriental da bacia do rio Parnaba. 54 Queiroz (1998, p. 25) refere-se s culturas alimentares de subsistncia, cujo cultivo era difundido por toda a Provncia: arroz, feijo, milho e mandioca. 55 Esta estrutura foi montada no perodo colonial; segundo Brando, A estrutura da economia colonial piauiense tinha como suportes a pecuria, a agricultura de subsistncia, a grande propriedade e o trabalho escravo. Esta estrutura comeou a ser implantada na segunda metade do sculo XVII quando os conquistadores, misto de apresadores e criadores, iniciaram a instalao dos currais e passaram a receber ttulos de posse da terra. 56 A maior parte da receita provincial derivava da pecuria, que tambm era responsvel pela ocupao de grande parte da populao e pela dinmica do comrcio. Entre 1850 e 1890, as receitas derivadas dela correspondiam a uma mdia de 50% do total das receitas auferidas pelo Tesouro Provincial. 57 Seria o caso do algodo nico produto de origem agrcola a ter importncia na pauta de exportao da Provncia. 67
A mudana da capital era, no entanto, mais do que um projeto local, manifesto nos diversos discursos de governadores e presidentes da Provncia; estava articulada ao projeto de desenvolvimento do Brasil, pretendido pelo governo imperial, que centralizava 58 as aes polticas brasileiras. A mudana da capital de Oeiras suscitou lutas sociopolticas e consideraes econmico-financeiras que trataremos em seguida. A primeira vila 59 na Capitania do Piau 60 foi a da Mocha, 61 na regio do Canind, criada em 1712, mas s instalada em 1717 (PEREIRA DA COSTA, 1974; NUNES, 1995). A 13 de novembro de 1761 aquela vila passou a denominar-se 62
Oeiras (BASTOS, 1994, p.401) por decreto de Joo Pereira Caldas, 63 governador que tomou posse em 20 de setembro do mesmo ano. Oeiras foi sede do governo da Capitania de So Jos do Piau, e posteriormente da Provncia do Piau, at 1852. As condies adversas da vila da Mocha foram percebidas, de acordo com Felipe Mendes (2003, p. 31), antes mesmo de a Capitania ser criada e de Oeiras se tornar a sede do governo, j que em 1728 o governador do Maranho (Id. ibid.),
58 Conforme Santana (1964, p.40), o Imprio se fazia presente atravs de seus representantes no governo provincial, tornando-os co-partfices da realidade nacional. Ou conforme Gandara (2008, p. 133), a mo do Imprio se fazia sentir atravs das pessoas por ele nomeadas. 59 Em 1761, ao tomar posse, Pereira Caldas elevou as seis freguesias existentes na capitania condio de vila. As freguesias eram, segundo Franco (1977, p.32), arraias mantidos no interesse dos criadores de gado. Em Nunes (1975, p.110) temos informaes sobre o nmero de habitantes urbanos e rurais, por vila, no perodo, sendo o total de habitantes em: Oeiras - 3.615; Parnaba 2.349; Valena 1.485; Marvo 1.059; Campo Maior; Jerumenha 697 e Parnagu 902. Com exceo de Oeiras, com 1.120 habitantes urbanos e 2.495 habitantes rurais, nas demais vilas a maior parte da populao habitava as reas rurais. 60 Segundo Jlio Romo da Silva, a primitiva capital do Piau foi instalada na freguesia da Mocha, antiga povoao pertencente ao ncleo de Cabrob, que posteriormente passou a denominar-se Oeiras, em homenagem ao conde, depois Marqus de Pombal. Segundo Bastos (1994, p. 401), de acordo com alguns historiadores a rea de Oeiras est localizada na sesmaria concedida a Julio Afonso Serra, em 1767. Para outros pesquisadores, e talvez a hiptese mais provvel, foi uma das fazendas estabelecidas por seu irmo Domingos Afonso Mafrense, a mais importante delas, conhecida por Cabrob, onde residiu por um tempo (Cf. SILVA J., 1994, p.11). 61 Povoado da Mocha, em virtude de o crrego ter o mesmo nome (Cf. BASTOS, 1994, p.401). 62 Conforme Jesualdo Cavalcanti Barros, por ordem taxativa do rei, todas as vilas teriam que desprezar os nomes brbaros que ostentavam para receberem nomes das vilas mais notveis deste reino. A mudana j comeara no ano anterior pela prpria denominao da capital: era Mocha e passara a ser Oeiras. Dela no escapara nem o nome da capitania, trocado por So Jos do Piau, em homenagem ao rei dom Jos I (Cf. BARROS, 2009, p.1). 63 Joo Pereira Caldas governou a Provncia do Piau de 20-9-1759 a 3-8-1769. Nasceu na comarca de Valena (Portugal) por volta de 1720. Sargento-mor da infantaria no Par, quando foi nomeado governador do Piau (Cf. CALDAS apud TITO FILHO, 1975, p.9). 68
Joo da Maia Gama a quem o territrio do Piau estava subordinado sugeriu a construo de um novo centro, em um local mais apropriado, onde o Poti encontra o Parnaba (MENDES, F., 2003, p. 31). A antiga vila 64 havia sido instalada (Ibid., p.30) 65 em local de difcil acesso, nos ridos rochedos da Mocha (ALENCASTRE, 2005, p.139), longe das beiras do rio Parnaba, o que dificultava o escoamento das riquezas e seu desempenho como centro comercial, colocando-a em uma situao de isolamento em relao s demais localidades do territrio. Gois e Vasconcelos, 66
em seu Relatrio de 1845, dizia que Oeiras por ser situada entre morros era quase inabitvel 67 : Porque o calor que no clima do norte to intenso, torna-se aqui, por esta circunstncia, ainda mais abrasador e insuportvel, o local da cidade to pedregoso e consequentemente estril que no consente vegetao, de maneira que na estao calmosa dir-se-ia morta a natureza, a no ser o riacho da Mocha, em cujas margens sempre verdejam, bem que raras, algumas rvores. Essas razes embargam inteiramente o crescimento e prosperidade desta cidade (TITO FILHO, 1975, p.17). Essa opinio compartilhada por Jos Antonio Saraiva, para quem a Capital estava no lugar mais imprprio e mais inconveniente da Provncia 68 . Alm da localizao nada favorvel, Saraiva acrescenta o seguinte julgamento:
64 Segundo Antonil, a Nova Freguesia e a igreja de Nossa Senhora da Vitria do Piau foram fundadas em 11 de fevereiro de 1697, por ordem de Dom Frei Francisco de Lima, bispo pernambucano, no lugar chamado Brejo da Mocha, perto da confluncia do rio Itaim com o Canind. Conforme o Pe. Miguel do Couto, autor de Descrio do serto do Piau, o territrio dessa freguesia formava uma cruz de nascente a poente e de Norte ao Sul, com 120 lguas de comprido e outras cento e vinte lguas de largo, de tal maneira que a nova igreja se encontrava a igual distncia das fazendas mais afastadas. Colonizada por Domingos Afonso Serto e pelo coronel Francisco Dias de vila, Senhor da casa da Torre, esta regio ainda h povos moradores: no rol dos confessados, registravam-se 441 moradores, entre brancos, negros, ndios, mulatos e mestios e se distribuam pelas 129 fazendas de gado existentes. Alis, a maior parte das terras fora atribuda em sesmarias a Dom Afonso Serto e a Francisco Dias de vila, que se reservaram uma parte delas, e arrendaram o resto a dez ris o lote, a quem quisesse criar gado, fazendo-se assim donatrios das terras, sendo s sesmeiros para as povoarem com gados seus. Conforme documento publicado por Ennes 4 Parte (p. 290). 65 A freguesia/parquia da Mocha foi criada em 1696. Um ano antes, a jurisdio do territrio do Piau havia sido transferida de Pernambuco para o Maranho. 66 Presidente da Provncia, Zacarias de Gois e Vasconcelos, de 28 de julho de 1845 a 7 de setembro de 1847. Professor, deputado pela Bahia, ministro da Fazenda, do Imprio e da Justia, governador do Paran (TITO FILHO, 1975, p.17). 67 Relatrio do presidente da Provncia, Zacarias de Gois e Vasconcelos, 1845, p.37. 68 Jos de Antnio Saraiva, advogado, nascido na Bahia (Bom Jardim, Municpio de Santo Amaro). Exerceu diversos cargos, foi Deputado provincial, geral e senador pelo Estado da Bahia, Ministro da Marinha (1857), do Imprio (1861), de Estrangeiros, da Guerra e da Fazenda, alm de Presidente do Conselho de Estado. Foi nomeado presidente da Provncia do Piau em 7 setembro de 1850, aos 27 anos e permaneceu no cargo at 12 de maro de 1853. Saraiva assume a Presidncia da Provncia j objetivando a transferncia da capital para as margens do rio Parnaba (CHAVES, 1998, p.170). 69
No preciso falar na misria que aqui observo nos meses de seca, no nenhum progresso cientfico e literrio da capital do Piau, na dificuldade de suas relaes comerciais e polticas que se reduzem s precisas e absolutamente indispensveis para existir no deserto (CHAVES, 1998, p.172). A situao geogrfica de Oeiras comprometia de forma significativa a realizao da funo de coordenao e administrao dos interesses das demais vilas e povoados do Piau, bem como do desenvolvimento geral da Provncia. Oeiras possua modestas instalaes (LIMA SOBRINHO, 1946, p.109), 69 no contava com prdios prprios para o estabelecimento de reparties pblicas, e faltavam at mesmo rgos indispensveis tudo era feito pelo uso e costume (NUNES, O., 2007, p. 43). Para alcan-la, era preciso enfrentar pssimos caminhos, percorridos unicamente a cavalo ou a p no temos estradas, seno trilhas, queixava-se Gis e Vasconcelos, 70 acrescentando que era preciso encurtar as distncias, melhorar as estradas (QUEIROZ, 1998, p.16), 71 o que consistia em extinguir atoleiros, arredar pedras, cortar o mato, porque hora o chapu do viajante ora o seu fato bate ou rasga-se nos ramos das rvores. 72 O sargento-mor D. Joo do Amorim Pereira 73 faz referncias s condies de transporte de Oeiras: Todos os gneros que se consomem nesta cidade vm daqui 10, 15, 20 e mais lguas em cavalos, que apenas carregam 5 arrobas, e fazem por dia 5 a 6 lguas de caminho, o que faz com que sejam mais caros do que em Portugal, sendo por mar conduzidos por portos deste continente (SILVA, 1994, p.13). As pssimas condies de distribuio das mercadorias eram um dos maiores empecilhos para a expanso das atividades comerciais, prejudicadas pelas fabulosas demoras dos transportes e a tutela das provncias vizinhas, Maranho, Cear, Bahia. Uma rede de estradas precrias tinha o alcance modesto de
69 Para Barbosa Lima Sobrinho, Mocha no era sequer um povoado, era apenas um brejo com uma igreja colocada no centro das fazendas. 70 Zacarias de Gois e Vasconcelos, na sua administrao, deu incio ao calamento da praa e distribuio nas principais ruas de Oeiras de 44 lampies para a iluminao. 71 Queiroz esclarece que no sculo XIX as municipalidades insistiam no sentido de que fossem abertas estradas interligando as sedes dos municpios mais populosos, inclusive atingindo as provncias vizinhas e rotas comerciais Cear, Pernambuco e Bahia. 72 Relatrio do presidente da Provncia, Zacarias de Gois e Vasconcelos, 1845, p.23. 73 Dom Joo Amorim Pereira, sargento-mor do Exrcito portugus, governou a Capitania do Piau nos perodos de 12 de dezembro de 1797 a 16 de outubro de 1799, e de 17 de fevereiro de 1803 a 4 de junho de 1803 (GONALVES, 2003, p.312). 70
comunicar vilas do interior em uma rede de escambo das diversas atividades produtivas. A carestia dos fretes e carretos absorvia o preo da produo agrcola, muitas vezes superando-os, o que concorria para o atraso da lavoura piauiense e do comrcio de seus produtos (NUNES, O., 2007, p.163). Devido a essas contingncias, o governo da Provncia contava com parcos recursos financeiros, provenientes de imposto pouco eficiente baseado na atividade pastoril. Era preciso, enfim, encurtar as distncias, como dissera Zacarias de Gois e Vasconcelos aos representantes do povo na Assembleia Legislativa, em 1845; dinamizar as comunicaes e, como isso, desenvolver os setores produtivos e comerciais. Em razo dessas dificuldades, no foi possvel desenvolver em Oeiras as condies necessrias ao bom funcionamento de um centro comercial capaz de fomentar o desenvolvimento econmico da Provncia, o que serviu mais tarde como justificativa para a transferncia da sede do governo de Oeiras para a Vila Nova do Poti, situada s margens do rio Parnaba. A mudana da capital tinha como objetivo possibilitar o crescimento econmico, a prosperidade financeira e a modernidade poltica de toda a regio. A transferncia fazia parte da estratgia criada para estabelecer um eixo espacial que ligasse a Provncia de Norte a Sul, tendo como diretriz a via de transporte natural o rio Parnaba e Parnaba como porto de escoamento para o oceano de suas atividades produtoras. J no sculo XIX reconhecia-se que o rio Parnaba representava uma via de progresso do Piau. No Piau, estava claro para alguns polticos, desde os meados do sculo XIX, que a realizao do objetivo nacional de integrao no mbito da diviso internacional do trabalho, por meio da exportao de produtos agrcolas, s seria possvel na medida do aproveitamento das reas situadas s margens do rio Parnaba e de seus afluentes. Esta proposta estava visceralmente ligada tese de que a abertura de vias de comunicao e maiores facilidades de transporte seriam os elementos indutores do processo de insero da economia piauiense ao contexto nacional e internacional (QUEIROZ, 1998, p.15). A execuo do projeto de viabilizar o transporte fluvial pelo Parnaba dependia de um ponto de atrao s suas margens, o que levou mais tarde o Conselheiro Saraiva a impor a transferncia da capital de Oeiras (MENDES, F. apud SANTANA, 1995, p. 71). Estaria assim esboado o movimento poltico para dirigir o escoamento da produo do interior para a orla martima, tomando o meio mais rpido e menos dispendioso para integrar as vilas no plano de crescimento 71
econmico, progresso e modernizao o que criaria as condies para a integrao do Piau ao processo de expanso mundial do capitalismo. A configurao espacial mudana do centro para o Norte da Provncia buscava dar nova capital da Provncia o papel de polo ativo e gerador do crescimento. Tal programa de ao de desenvolvimento econmico demandava estratgias para superar obstculos sociopolticos, especialmente aqueles impostos pela elite de Oeiras. Alm disso, havia a falta de estrutura tributria e administrativa, e uma lentido do aparelho burocrtico. A ideia de mudana da capital foi, desde o perodo colonial, cogitada, debatida e proposta Corte, por diversos governantes ao longo dos anos, tendo sido ventilada primeiramente em um parecer logo esquecido pelo governador do Maranho, Dom Fernando Antnio de Noronha, em 1722 (MELO, Pe., 1985, p.122). Em 1793, ao ser nomeado governador e capito-mor das capitanias do Maranho e Piau, e antes mesmo de partir de Lisboa para assumir suas funes, Dom Fernando Antonio de Noronha prope a mudana rainha, dona Maria I. Em 1798, D. Joo de Amorim Pereira, governador da Capitania, tambm percebeu a necessidade de mudar a capital para as margens do rio Parnaba, propondo a medida ao governo central, naturalmente no s pedindo autorizao, mas a necessria ajuda financeira, que, na opinio de Mendes (2003, p.32), no teria a menor possibilidade de ser oferecida. Em 8 de abril 1798, a mesma proposta foi assunto em carta de Joo Amorim Pereira, endereada a Dom Rodrigo de Sousa Coutinho, Ministro de Ultramar, na qual sugeria a transferncia da Capital para a Vila de So Joo da Parnaba, que considerava como sendo o local mais apropriado para a Capital da Provncia (cf. FREITAS, 1988, p. 11; CHAVES, 1998, p.430), com comunicao mais fcil com a Corte de Lisboa. Ressaltando a importncia da instalao da capital beira do rio Parnaba, e sugerindo a mudana para a Vila de Parnaba, destacou naquele ofcio a vantagem que disso tiraria o comrcio e os transportes em geral (SPIX & MARTIUS, 1976, p.218). 74 Ali, salienta ele, havia e h comerciantes que transportam para o Porto de Lisboa cidade do Porto muitos gneros do que produz esse clima.
74 Os viajantes von Martius (1794-1868) e von Spix (1781-1826) vieram ao Brasil, enviados pela Academia de Cincias da Baviera, com a incumbncia de formar colees zoolgicas, botnicas e minerolgicas. Passando pelo Piau, Spix e Martius anotaram que Oeiras em civilizao e riqueza inferior Vila de Parnaba, que, por sua situao na costa e pelo considervel comrcio de algodo, fumo, couros, sebo e carne salgada, de todas as povoaes da Provncia, floresce mais e mais. 72
Parnaba foi alvo de insistentes propostas para tornar-se sede de governo. Felipe Mendes (2003, p. 33) assevera que, em 30 de maro de 1804, Simplcio Dias da Silva e Manuel Antonio Henrique, comerciantes da Vila de Parnaba, em um memorial ao governador Pedro Jos Csar de Menezes, pedem a criao de uma alfndega, 75 na vila, ao tempo em que expressam o desejo de v-la transformada em sede do governo (SILVA, 1994, p. 14). Segundo Mendes (2003), em 1812, a Cmara de Parnaba requer a mudana da capital para l, sob as justas razes de melhor localizao e desenvolvimento da cidade, em comparao com as condies adversas de Oeiras (Ibid., p.33). No governo da Junta Provisria (1814), ressurge a ideia de mudana da Capital para a cidade de Parnaba, quando, em 22 de julho, os moradores de Parnaba se dirigem ao prncipe Regente, pedindo a graa de que a residncia do governador da capitania seja mudada para a mesma vila. Silva (1994, p.15) afirma que os parnaibanos estavam to interessados na transferncia que chegaram a propor construir custa das prprias rendas o palcio do governo, para evitar despesas fazenda real (Id. ibid.). Em 1816, na administrao do governador Baltazar de Souza Botelho de Vasconcelos, a opo por Parnaba foi novamente aventada, e a esse respeito ele assim se expressa: Quanto mudana da residncia dos governadores para a Vila de Parnaba, devo dizer que ela o nico porto de mar que h nesta capitania [...] e que neste porto a importao e exportao interessam muito s rendas reais (Id. ibid.). Apesar de todas as manifestaes favorveis causa de Parnaba, desde o incio do sculo XIX, o assunto da transferncia da capital, quando apresentado Assembleia Provincial no governo de Jos Idelfonso de Sousa Ramos em 1844, no contemplou aquela vila segundo o prprio Sousa Ramos, em virtude de esta encontrar-se em uma extremidade da Provncia. No havendo adoo de meios mais rpidos de comunicao que abreviassem a distncia entre a vila e o restante da Provncia, semelhante medida oferecia inconvenincias.
75 O decreto da criao da Alfndega de Parnaba foi assinado em 1817 e efetivado em 1822 (Cf. MENDES, 2003, p.33). 73
Zacarias de Gis e Vasconcelos, 76 em seu relatrio de 1845, cita as razes alegadas por Parnaba, que se julga com direito de ter em si a administrao da Provncia (FREITAS, 1988, p.12): 1. Estar quase margem do oceano pois, situada na margem direita do Parnaba, dista apenas do mar duas lguas, e permite por isso que o governo supremo faa sentir a sua ao na Provncia com muito maior rapidez do que agora, podendo a correspondncia da Corte com a Provncia e vice-versa fazer-se diretamente e no por intermdio do Maranho e Bahia. 2. A grande probabilidade, estando l a capital, de despertar-se o esprito de especulao para navegar-se o Parnaba, o que de uma utilidade imensa. 3. Haver j suficiente nmero de edifcios cmodos para as reparties pblicas e residncias dos empregados. 4. A exemplo das outras Provncias, cujo territrio compreende alguma poro de costa, as quais tm sentido a vantagem de terem suas capitais junto ao mar e no no interior (FREITAS, 1988, p.12). Os parnaibanos insistem na proposta. A famlia Miranda Osrio 77 chegou a apontar a Saraiva as excelncias de Parnaba para a sede de governo da Provncia, e colocou disposio do governo, durante cinco anos, vrios prdios para serem usados como repartio pblica (NUNES, O., 2007, p.112). Freitas (1988) assinala que, em 23 de agosto de 1844, quando foi ento votada a Lei n. 174, foi determinada a mudana da capital para as margens do rio Mulato, na Vila de So Gonalo. Essa lei, 78 no entanto, nunca foi posta em prtica. A escolha do local foi logo rejeitada por Gis e Vasconcelos, que declarou: Este um local completamente deserto (Ibid., p.11). Como constatou Saraiva, aquela lei nunca teve um meio de execuo e foi pouco depois revogada, pois nasceu antes do tempo, por ter sido redigida antes de se haverem estudado os meios mais
76 Segundo Felipe Mendes, entre 1877 e 1899, perodo de grandes progressos no Pas, e tambm no Piau, nenhum presidente da Provncia demorou mais de um ano no cargo. Essa alta rotatividade no poder era parte do projeto poltico do Imprio e ocorria tambm nas demais provncias. Com exceo dos perodos em que Manoel de Sousa Martins governou o Piau, totalizando mais de 17 anos, no Imprio apenas trs presidentes governaram por mais de dois anos: Zacarias de Gis e Vasconcelos (28 de julho de 1845 a 7 de setembro de 1847), Jos Antnio Saraiva (07 de setembro de 1850 a 12 de maro de 1853) e Franklin Amrico de Meneses Dria (28 de maio de 1864 a 03 de agosto de 1866). 77 Tenente Coronel Jos Francisco de Miranda Osrio - nascido em Oeiras, chegou a Parnaba em 1813, foi intendente de Parnaba, presidente da Cmara Municipal, deputado provincial e vice- presidente do Piau. 78 No total, trs leis foram votadas e sancionadas: a Lei de 23 de agosto de 1849, sancionada por Anselmo Francisco Perete, presidente da Provncia, mudando para o municpio do Poti (a Vila e o municpio do Poti foram criados pelo Decreto de 06 de julho de 1833) (GANDARA, 2008, p.118). A Lei n 174 de 27 de agosto de 1844, que autorizava a mudana da capital para a confluncia do rio Mulato (Ibid., p.119). E a Lei n. 191 de 30 de agosto de 1845, que passava as reparties pblicas para So Gonalo (Id. ibid.). As trs leis votadas foram anuladas, com a Resoluo Provincial n. 255 de 05 de agosto de 1850. 74
convenientes e adequados a resolver a questo da mudana da Capital (CHAVES, 1998, p.165). Jos Antnio Saraiva foi, desde sua posse, partidrio da mudana da capital, fixando sua ateno para a escolha do local mais adequado. Para decidir-se, visitou, em 22 de outubro de 1850, a Vila de So Gonalo e a Vila do Poti. 79 A Vila de So Gonalo 80 foi descartada, pois nem Igreja Matriz havia. De So Gonalo foi Vila do Poti. Contudo, a Vila do Poti tambm apresentava problemas (FREITAS, 1988, p.12). Era sujeita a enchentes e a grandes inundaes do rio Poti no inverno; devido a isso, era insalubre, propensa a disseminao de febres endmicas (sezes). 81
Tinha, porm, um grande atrativo, segundo Nunes & Abreu (1995, p. 95), ela era a nica via de escoamento das riquezas do Piau para o Maranho, j que ficava prxima cidade de Caxias. Outras vantagens tambm so confirmadas: Situao cmoda e agradvel; possibilidade de tirar Caxias todo seu comrcio com o Piau; proximidade de Parnaba, podendo servir ao desenvolvimento da navegao; mais fceis relaes polticas e comerciais com a corte e demais centros de civilizao do Imprio; ponto de convergncia de zona prpria para agricultura; assegurar conveniente direo aos produtos agrcolas; finalmente a Vila do Poti era a nica localidade que prometia florescer margem do Parnaba (SANTANA, 1964, p.96). Quanto a Parnaba, apesar dos oferecimentos de Miranda Osrio, Saraiva recusou a proposta. Mesmo quando, nos anos seguintes, quer nas cmaras constituintes, quer na assembleia geral do Rio de Janeiro (NUNES, O., 2007 p.112), se tenha dado preferncia cidade de Parnaba sempre que se tratou do assunto da transferncia da capital do Piau, 82 e apesar de as discusses apontarem a melhor adequao da Vila de Parnaba, esta foi preterida. Assim, para a escolha do local para instalar a nova Capital preponderam as razes apresentadas por Saraiva (SANTANA, 1964, p.96) a favor da Vila do Poti (MELO, Pe., 1985, p.117). 83 Saraiva
79 Em 1832 foram criadas novas vilas no Piau, como Amarante, Barras, Jaics, Piracuruca, Prncipe Imperial, Poti e So Raimundo Nonato. 80 Saraiva foi a So Gonalo ver as obras da ladeira do Castelo, ento em melhoramento, e examinar o local onde se pretendia construir a ponte do Canind (Cf. NUNES, 2007, p. 98). 81 Devido a essa situao, os prprios habitantes da vila desejavam mudar de local. 82 Em 1851 os habitantes das vilas de Parnaba, Piracuruca e Campo Maior se dirigiram em memorial a Saraiva, pleiteando a transferncia da capital ou para localidade deltaica ou para a Vila Velha do Poti. Conforme Jlio Romo Silva (1994, p.17). 83 Vale a pena lembrar que o bandeirante Domingos Jorge Velho fixou-se na barra do Poti com seu agrupamento de Paulistas. Segundo Pe. Melo, no lhe faltaram razes para a escolha do local. A 75
iniciou o processo de mudana da capital em ambiente de controvrsias, incertezas e oposio (NUNES, O., 2007, p.112). A batalha da mudana seria longa e acidentada, mas sua deciso foi firme. Ele entendia a mudana da Capital (CHAVES, 1998, p.129-168) 84 como precursora da prosperidade do Piau (NUNES, 2007, O., p.99). Em defesa de seu ponto de vista, em seu relatrio Assembleia Provincial de 3 de julho de 1851, 85 Freitas (1988) d a seguinte declarao: O Piau no pode prosperar, no pode gozar da navegao fluvial, que lhe promete tantos bens; no pode provincializar seu comrcio e, consequentemente, desenvolver a sua agricultura e aproveitar as ricas matas banhadas por um dos melhores rios do Brasil, sem que trateis seriamente de achar soluo mudana da Capital (Ibid., p.13). Reconhecendo que a mudana feria os interesses dos oeirenses, nesse mesmo relatrio o conselheiro alerta que sem a mudana da capital: Deixar o Piau de conquistar, pelo comrcio, pela agricultura, pela indstria, somas maiores que podero, em pouco tempo, dar-lhe uma Capital mais rica, mais cmoda, mais civilizada e mais conveniente direo dos negcios pblicos (MELO, Pe., 1985, p.126). Como mencionou Queiroz (1998, p. 16), Saraiva entendia que a transferncia tinha como justificativas maiores, a ruptura do isolamento em que jazia a Provncia e a acelerao da integrao da economia piauiense ao contexto nacional e internacional. Com ela se daria a superao dos embaraos econmicos causados pelo problemtico escoamento dos recursos naturais da Provncia. Saraiva no esperaria o impulso do Governo Imperial (NUNES, O., 2007, p. 99), embora
confluncia dos dois rios lhe propiciava singulares vantagens como terras muito frteis, extensas vazantes, com possibilidade de duas safras, alm da abundncia de peixes e de caas para lhes completar a alimentao. O Poti, com suas quatro lguas paralelas ao Parnaba e com sua curvatura quase barra, formava uma grande cerca, oferecendo proteo natural para os rebanhos. A juno dos rios lhe oferecia condies de transporte em canoas para as mais variadas direes alm de suas margens, como as de seus afluentes, serem os roteiros naturais, quer para a Ibiapaba e Aroazes (via Poti), quer para o mar, rio abaixo, ou para a Bahia e Pernambuco, subindo o Parnaba e abeirando o Canind e o So Francisco. 84 A questo de alavancamento do desenvolvimento via construo de pontes e da melhoria das estradas de carro (de boi), embora proposta por opositores dos que defendiam a tese de que o progresso viria com a mudana da Capital, a exemplo de Gois e Vasconcelos, no foi considerada por Saraiva, que entendia que isso se traduziria no benefcio dos habitantes de Oeiras, que com boas estradas podem viver comodamente, mas no poderia ser jamais justificada pela pequena importao, que se reduzia sempre a uma poro de contos de ris de fazendas finas, objetos de luxo para o servio dos habitantes da Capital e o de uma ou outra vila deste lado da Provncia. 85 A fala em que tratou pormenorizadamente da mudana da capital foi a da instalao da Assembleia Provincial de 03 de julho de 1851, quando apresentou as vantagens do local escolhido, a Vila do Poti. 76
contasse com ele, j que participou suas intenes logo que assumiu as funes de presidente, acrescentando (Ibid., p. 116) as vantagens alegadas pela expresso sem que se tenha que lamentar os gastos de grandes quantias (Id. ibid.). 86 Nas palavras de Padre Melo (p.124), Saraiva, sem qualquer autorizao, quer do Governo Imperial, quer da Assembleia, determinou que a Vila do Poti (CHAVES, 1998, p. 506) 87 seria a sede da futura Capital. Chegando a Teresina, Saraiva tratou logo de transferir a mquina administrativa. maneira de medida preparatria iniciou, com o auxlio dos potienses, que estavam dispostos a meter mos a obra (Id. ibid.), a construo da Igreja Matriz (CHAVES, 1987, p.177) de 30 casas regulares e outras de palha, tudo sem nus para os cofres pblicos. No princpio, Saraiva contou mais com a contribuio de particulares do que com a ao oficial (NUNES, O., 2007, p.101). Finalmente, em 21 de julho de 1852, a transferncia da capital para a Vila Nova do Poti foi decretada (Ibid., p.105) 88 pelo Conselheiro Saraiva, 89 recebendo a nova sede a denominao de Teresina. 90
Mesmo depois dessa deciso, ainda houve duas tentativas de modificar o estabelecido por Saraiva com relao ao local de acomodao da nova sede do governo. A primeira ocorreu em 1855, quando o presidente da Provncia Raimundo Teodorico da Costa e Silva apontou, em discurso na Assembleia Provincial, as vantagens de uma nova transferncia da capital, de Teresina para Parnaba. A segunda se deu em 1889, j no perodo republicano, cogitada pelo interventor Gregrio Taumaturgo de Azevedo. Os teresinenses, temerosos com essa possibilidade da transferncia da capital para Parnaba, opuseram-se, tendo frente o cnego Tomaz de Morais Rego e o apoio do governo federal, como consta na
86 Em ofcio escrito ao Ministro do Imprio, de 22 de outubro de 1850, quando anuncia que seguiria para a Vila do Poti, onde iria ver se era bom o local para onde se projetava transferir a capital, esclarece que se conseguir mover os habitantes de Poti e dar incremento edificao de suas moradas no novo local, se conseguir que eles edifiquem sua custa a casa da Municipalidade e outras que possam ser convenientemente alugadas para reparties pblicas, eu terei preparado o terreno no qual os meus sucessores possam ganhar a gratido da Provncia. 87 Como a Vila Velha do Poti era sujeita a febres endmicas, Saraiva abriu uma subscrio para a construo da Matriz. Iniciou no local a construo da Igreja Nossa Senhora do Amparo, cuja capela- mor foi inaugurada em 25 de dezembro de 1850. A construo da igreja para a nova sede, a Nossa Senhora do Amparo, comeou a ser erguida com donativos arrecadados por uma Comisso, tendo mais tarde o Imperador contribudo enviando mil contos de ris. 88 O placet Imperial s veio depois de trs meses da instalao. 89 Com a Resoluo n. 315, Saraiva autorizou a transferncia para a Vila Nova do Poti, elevada categoria de cidade com o nome de Teresina. 90 O nome foi uma homenagem a mulher do Imperador D. Pedro II, Teresa Cristina de Bourbon. 77
resposta telegrfica enviada pelo chefe do governo provisrio no Rio de Janeiro: Governo no placita mudana capital (MAVIGNIER, 2007, p.123). As colocaes acima demonstram um reiterado desejo de algumas autoridades governamentais (FREITAS, 1988, p. 14) 91 de transferir a capital para o litoral, apresentando as vantagens que a cidade de Parnaba, situada junto a um porto martimo, disponibilizava como perspectiva de progresso, por seu comrcio intenso e contato com o Exterior. Entre um porto martimo e um fluvial, foi escolhido o fluvial. Na opinio de Pe. Melo, a barra do Poti, que a princpio no tinha a mnima estrutura para sediar o governo provincial, foi escolhida (MELO, Pe., 1985, p.122). 92
Tinha como vantagem, segundo Padre Melo, seus dois grandes rios, com timas condies de navegao. As disputas sociais, as anlises e as propostas sobre a localizao da Capital revelam um aspecto da histria do Piau marcado pelo debate entre dois tipos de desenvolvimento poltico-econmico: o pecuarista, com povoamento rural, rarefeito e disperso pelo interior da capitania e o comercial, de carter urbano, voltado para os princpios da modernizao e baseado no forte comrcio exercido na regio litornea, de vocao internacional. Em Teresina, entendeu Saraiva, havia condies de desenvolver uma estratgia regional de integrao espacial baseada no transporte fluvial, favorecendo a integrao comercial, via rio Parnaba (GANDARA, 2008, p.136). Em um novo espao acreditava o velho problema do atraso econmico e social seria resolvido (Ibid., p.133). A nova cidade nascia com condies de se afirmar tanto como centro urbano quanto entreposto comercial, j que estava situada (Ibid., p. 137) quase que no meio da Provncia, circundada pelos rios Parnaba e Poti. Essa situao favorecia a unificao do territrio, alm de desviar o comrcio tutelado pelo Maranho. Caxias deixou, em pouco tempo, de ser o emprio do comrcio do alto serto (FREITAS, 1988, p.17; QUEIROZ, 1998 p.16).
91 A Cmara de Oeiras era, obviamente, contrria a transferncia da capital. Alguns cidados dirigiram uma representao ao governo Imperial contra o presidente, alegando os prejuzos que sofreriam os interesses de Oeiras. O presidente Zacarias de Gois tambm no era adepto da mudana da capital, amedrontado pelas dificuldades pecunirias. 92 Segundo Pe. Melo, muitos foram os apelos feitos Corte para a mudana da capital. A deciso levou 60 anos para ser tomada, por questo econmica; a Corte fugia das despesas que adviriam com a mudana de uma Capital, especialmente no caso de a transferncia ser para So Gonalo ou para a barra do Poti. 78
A sua instalao marcou tanto a vida poltico-administrativa como socioeconmica, com reflexos em toda a Provncia do Piau (GANDARA, 2008, p.146). Teresina passou a desempenhar, com xito, o papel que lhe fora atribudo, tornando-se polo de atrao e ponto de partida da conquista e da ocupao do vale do rio Parnaba (Ibid., p. 130). Como capital mais bem posicionada para integrar as duas tendncias poltico-econmicas, favoreceu a rede de comunicaes terrestre 93
e fluvial internas, bem como a internacional. Lembremos mais uma vez as previses de Saraiva: A mudana da Capital para o Poti [...] h de dar Provncia um importante ponto comercial, e h de possuir uma civilizao grande, porque h de ter riqueza, e h de ficar ligada por aquela navegao a todos os municpios da Provncia, e a todos os grandes centros de civilizao do Impri0 (GANDARA, 2008, p.146). 94
Segundo observa Felipe Mendes (1995, p. 67), a mudana foi o mais expressivo movimento poltico-econmico destinado a situar a economia piauiense em funo dos seus mais preciosos recursos naturais, que so as guas do vale do Parnaba. Com a mudana da Capital, um novo espao fsico foi dinamizado no Piau o Centro-Norte da Provncia, onde surgiram novos povoados, vilas, cidades (GANDARA, 2008, p.146). 95 Com a mudana, em 1852, fechou-se uma etapa, 96 no processo de desenvolvimento do Piau, surgindo, a partir da, um novo modelo econmico, ligado navegao fluvial, ao extrativismo vegetal e ao comrcio exterior. Nesse novo espao, o progresso comeou a chegar ao Piau pelo rio Parnaba (MENDES, 2003, p.119). Mas preciso salientar que sua porta de entrada seria a cidade de Parnaba e o seu porto fluvial e martimo. Para Queiroz (1998, p.16), a transferncia da capital da Provncia e o incentivo navegao fluvial [...] apontavam para a transformao da cidade de Parnaba no centro comercial, por excelncia, do Piau.
93 As vias de comunicao terrestres e as condies de transportes ainda eram pssimas em 1873, segundo o relatrio do presidente da Provncia, que declarava: No h uma s estrada que valha a pena ser aqui mencionada como digna de tal nome [...] as estradas so simples caminhos somente transitados pelo tempo das secas e que se deterioram completamente durante a estao invernosa, visto serem quase todas interceptadas de rios. 94 Relatrio do presidente da Provncia, Jos Antonio Saraiva em 1 de julho de 1852. 95 Como por exemplo: Porto Alegre, Unio, Amarante, Uruu, Santa Filomena. 96 Trata-se da 2 etapa de 1759 a 1852, marcada pela estagnao da pecuria (com a perda do mercado das regies de minerao) e a falta de alternativas econmicas. Conferir Felipe Mendes (1995, p. 115-117).
79
Parnaba, principal centro comercial importador e exportador do Piau, alm de propiciar a integrao interna da Provncia, tambm integrou a Provncia ao comrcio nacional e internacional. Por a se fazia o escoamento da produo das riquezas do Piau de forma mais efetiva, rpida, eficiente e barata, e atravs de Parnaba viria, do restante do Brasil e do mundo, o progresso. Como veremos, sem Parnaba na ponta do delta, fazendo a conexo da produo do Interior com o seu porto do mar, no teria sido possvel o desenvolvimento econmico, poltico, social e cultural to almejado para o Piau. 2.3 Um Rio, um Porto, uma Estrada de Ferro O trecho abaixo parte de um artigo publicado no Livro do Centenrio de Parnaba, que trata da situao comercial e industrial da cidade de Parnaba: O desenvolvimento econmico do Piau, no desdobramento das suas atividades comerciais e industriais, est dependendo, hoje como ontem, da soluo de trs problemas: a) construo do Porto de Luiz Correia, b) perfeita navegabilidade do rio Parnaba, c) continuao, at Teresina, pelo menos, da Estrada de Ferro. No caso concreto do Piau, sem o porto, sem o rio navegvel, e sem a estrada de ferro, a produo ser sempre pequena, diminuta, quase nula. 97
Nele est expresso o trip de sustentao desenvolvimentista desejado para o Piau, e que, desde meados do sculo XIX, era apresentado como soluo ao problema. Para Barbosa (1986, p. 57), a criao da alfndega, a navegao fluvial e martima, a construo do porto e a mudana da capital foram temas sempre presentes s reivindicaes dos piauienses na primeira metade do sculo XIX, objetivando a integrao da Provncia no contexto nacional, um maior desenvolvimento econmico e uma perspectiva de libertao do comrcio da Praa de So Luiz.
97 Livro do Centenrio de Parnaba, 1944, p. 365. 80
Visando entender melhor como se articulavam as propostas e solues apresentadas para o efetivo crescimento da Provncia e posteriormente do Estado, discorreremos a seguir sobre cada um dos trs elementos nelas implicadas. 2.4 O rio Parnaba e a Navegao a Vapor O rio Parnaba nasce na Chapada das Mangabeiras ou Jalapo, em uma altitude de 709 metros, da confluncia dos Estados de Gois, Bahia, Maranho e Piau, e principalmente na confluncia de trs cursos d'gua: o gua Quente, na divisa do Piau com o Maranho, o Corriola (Ibid., p.38) 98 e o Lontra, no Piau. Percorrendo cerca de 1.450 km at sua desembocadura no Oceano Atlntico, serve de divisa entre os Estados do Piau e do Maranho ao longo de todo o seu curso.
98 Em 11 de dezembro de 1868, Gustavo Dodt foi incumbido pelo presidente da Provncia, Augusto Olmpio Gomes de Castro, de apresentar a planta do rio Parnaba, de suas cabeceiras at a foz. Segundo Dodt, o rio nascia na serra da Tabatinga, no lugar chamado Pau cheiroso. Em 1924, a Comisso de Limites entre o Piau e o Maranho, chefiada pelo Cel. Renato Rodrigues Pereira, concluiu que o lugar apontado por Dodt era, na verdade, o lugar de onde nascia um de seus afluentes, o rio Corriola. Figura 17 O rio Parnaba. Fonte: Paulo Roberto de Melo Freitas (2008). 81
O vale do Paraba possui mais de trs mil quilmetros de rios perenes e centenas de lagoas. Os afluentes mais importantes que esto no Piau so Gurgueia, Uruui, Canind, Poti e Long. No Maranho, o afluente mais importante o rio Balsas (Ibid., p.41). Ao penetrar no Oceano Atlntico, a foz do Parnaba se abre em um amplo e recortado delta o nico em mar aberto das Amricas. 99
O rio Parnaba j recebeu muitos nomes: rio Niegro, Palma, Ano Novo, Ano Bom, Abihunham, Jaguaribe ou Jagoarive, Punar, Punare, 100 Paraguassu, 101
Paraou, 102 Paraguau, 103 Par, Das Graas, rio Grande dos Tapuias e Parnaba. 104
Era conhecido pelos primeiros navegadores estrangeiros, tendo sido registrado em vrios mapas cartogrficos (PAULA NETO, 2000), 105 como os deixados por Desseliers (1550) e Diego Homem (1558-1568). 106 Neles, o rio Parnaba aparece com a denominao de rio Niegro, Palma e Ano Novo (MARQUES, 2000, p.16). Os
99 Os outros so o do rio Nilo, no Egito, e o do rio Mekong, no Sudeste asitico. 100 Citado por Frei Vicente do Salvador (Cf. BARBOSA, 1986, p. 37). 101 Esse nome foi dado pelo Padre Vieira. O Padre Gioseppe de Santa Teresa, nos mapas que acompanham a sua Histria dele guerra Del Regno Del Brasile, o cita com o mesmo nome (Cf. ALENCASTRE, 2005, p. 176). 102 Foi assim batizado por Bento Maciel Parente, em 1626 (Cf. BARBOSA, 1986, p.37). 103 Barbosa menciona o Padre Antonio Vieira, que chama o rio de Paraguau, nome confirmado pelo governo portugus, em 1677, quando determinou que se descobrisse a nascente do rio (Id. ibid.). 104 Segundo Barbosa Lima Sobrinho, pode-se admitir como hiptese que a denominao de Parnaba viesse do primeiro trecho do rio, quando as corredeiras que o interceptam explicam um nome que quer dizer, em lngua geral, grande rio impraticvel, ou inavegvel. Era uma palavra que servia para designar nos grandes rios os trechos impraticveis, onde a navegao se torna impossvel. Segundo Varnhagem, compe-se este rio Parnaba de duas palavras, que significam simplesmente, rio-mau. No est tambm fora de possibilidade que o nome Parnaba viesse de algum dos cabos paulistas que andaram na regio. O inventrio de Sebastio Pais de Barros, em princpio de 1674, processava-se em Parnaba, o que permite supor que a estivesse a residncia do bandeirante (Cf. LIMA SOBRINHO apud SAMPAIO, 1946, p. 23). 105 Conforme Paula Neto, os principais cartgrafos sempre tiveram a inteno de localizar e referenciar o rio Parnaba desde o seu descobrimento, isto , nos primrdios do sc. XVI. Todos os acidentes geogrficos costeiros eram reproduzidos com preciso, e no exageramos se dissermos at a exausto. Na mentalidade dos homens quinhentistas, os objetivos eram bem claros; os mapas e os globos terrestres serviam de grande prstimo para futuras exploraes, mais de carter mercantil do que cientfico; para estes homens, "o tempo" era uma noo concreta e precisa. Deste modo, estes "aventureiros/mercadores" tinham, somente, a inteno de procurarem fazer a depravao extrativa num lapso. 106 Entre eles: Karte von America de Juan de la Cosa (1500), a Carta n 2803 do Atlas de Ererton entitulada Terra Sancte Crvcis (1508), o Terra Brasilis de Lopo Homem (1519), o Islrio de todas las islas del mundo, de Alonso de Santa Cruz (1519). 82
indgenas 107 do litoral e os da Serra da Ibiapaba (Cear) chamavam-lhe Abihunham, Punar (FREIRE, 1921, p. 16) 108 e Parauassu (Id. ibid.). Temos notcias do rio Parnaba j em 1534 e 1557, quando Luiz de Melo, indo de Pernambuco ao Maranho, encontrou um grande rio abaixo do Maranho quinze lguas: era o atual rio Parnaba. Gabriel Soares de Souza (ALENCASTRE. 2005, p.177) e Jaboato chamaram-no de rio Grande dos Tapuias. O rio Parnaba aparece com o nome de Par, citado por Diogo de Campos (BARBOSA, 1986, p.37) 109 e Martim Soares Moreno, e com o nome de Paraou, citado por Bento Maciel Parente, em 1626 (Id. ibid.). O rio aparece em um dos mapas apensos ao livro que d razo do Estado do Brasil, com o nome Punar (LIMA SOBRINHO, 1946, p.13). Lima Sobrinho esclarece que o nome de Parnaba comea a ser usado depois de 1680, por meio de cartas sesmarias, e que o mapa de Lapir, de 1814, ainda registra os nomes antigos e o nome moderno rio Par, Paraguau e Parnaba (Id. ibid.). Por outro lado, enquanto Alencastre (2005, p.119) diz que a palavra Paranaba, que se decompe em trs outras: Paran (grande), I (gua), Ba (que vai ou corre), significando gua grande que corre, Edson Barbosa (1986, p. 38) afirma que o nome atual foi dado provavelmente por Domingos Jorge Velho em homenagem Vila de Santana da Parnaba, So Paulo, terra onde ele nasceu. Padre Cludio Melo (1985, p.23) demonstra a prioridade do Norte no povoamento do Piau pelo rio Parnaba, a partir de sua foz, no litoral Norte. Essa penetrao seria anterior posse do territrio interiorano, por ter sido registrada a presena do homem branco no litoral entre o Parnaba ento chamado de rio Grande dos Tapuios e o rio Jaguaribe ou Jagoarive, conforme figura em documentos histricos. Convm enfatizar que, para o mencionado padre, a descoberta do delta parnaibano muito antiga, com o aparecimento do branco em data anterior a 1514, tendo sido atestado pela carta de Estevo Frois e pelo mapa de Lupo Homem de
107 Gabriel Soares de Souza fala no Tratado Descritivo do Brasil (1587), dos Tapuias que viviam por esta at este Rio Grande- os Tapuias eram, segundo Pe. Melo, os Tremembs. O termo Tapuia, em geral se referia aos grupos indgenas no Tupi. 108 Segundo Freire, os ndios tabajaras do Cear, que frequentavam os braos do Parnaba ao sul de Tutoia, chamavam-no Punar, nome sob o qual o conheceram os primeiros colonizadores e missionrios vindos do Sul: Pedro Lopes e os jesutas Francisco Pinto e Luiz Figueira. Para Freire, a denominao Parauassu era usada pelos ndios habitantes do litoral, os tremembs e os cariris. 109 citado em 1614, em Jornada do Maranho. 83
1519, em que consta o rio do Ano Bom (Parnaba), assim como pelo mapa realizado provavelmente em 1527, de Visconti de Maiollo, que assinala o delta parnaibano e pequenos acidentes geogrficos de suas vrias bocas. A Carta de Bartolomeu Velho, datada de 1561, aponta o rio Parnaba, nascendo de uma grande lagoa, conforme informao recebida dos nativos. Padre Cludio Melo (1985) conclui pela anlise de dois documentos contemporneos do sculo XVI, o Tratado Descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa, de 1587, que informa que naquele ano Nicolau Resende, tendo naufragado nos baixios do Maranho, esteve na regio piauiense, onde encontrou as lagoas do Buriti e a do Cajueiro; e Les Franais en Amrique, de Andr Thevet que navegantes e aventureiros penetraram parte deste continente muito cedo. Ou seja, o Norte piauiense j era plenamente conhecido, palmilhado, e habitado pelo branco, que conviveu pacificamente com os nativos do litoral e terras adjacentes desde o sculo XVI (MELO, Pe., 1985, p. 23). Assim, os primeiros europeus que conhecemos, residindo no litoral piauiense, foram Nicolau de Resende e seus companheiros, os quais, informou Gabriel Soares de Sousa, naufragaram em 1571 e foram acolhidos pelos ndios Tremembs, com quem conviveram pacificamente. No consta que voltaram ptria. Assim, de acordo com o Pe. Cludio Melo, comea em Lus Correia e Parnaba a ocupao europeia no Piau (Ibid., p. 28). Embora o delta do rio Parnaba fosse conhecido, habitado e explorado como local de comrcio desde cedo, o mesmo no se dava com os inmeros vales midos formados pelos afluentes do rio Parnaba. Os vales midos constituam uma paisagem diferente daquela dos sertes semiridos do interior piauiense, regio conquistada e ocupada em decorrncia da pecuria. Esta atividade econmica, na opinio de Santana (1964, p.94), prescindia do rio, prescindia de transporte, dispensava a construo e a manuteno de estradas a economia pecuria utilizava de outros caminhos que o prprio gado abria. Assim, enquanto predominou a atividade pecuarista, os caminhos terrestres utilizados eram os mesmos j existentes h sculos, ou, nas palavras de Odilon Nunes (1974, p. 136), perduravam no Piau as mesmas trilhas que, no perodo colonial, ligavam entre si as fazendas, as mesmas veredas abertas pelos vaqueiros e boiadeiros na labuta cotidiana. Provavelmente, em razo disso, Odilon Nunes (1959, p. 27) tenha afirmado que o rio Parnaba, nos primeiros dias, nenhuma importncia teve. Felipe 84
Mendes (1995, p.67) acredita que, por isso, durante muito tempo, a economia do Piau no usufruiu da bacia hidrogrfica do rio Parnaba para promover a sua integrao, o que viria a ocorrer somente a partir do sculo XX, com a mudana da atividade econmica. Por sua vez, Odilon Nunes (1974, p. 136) assegura que as consequncias dessa situao esto relacionadas com as dificuldades de transporte, at as primeiras dcadas do sculo XIX, que imprimiam uma situao de intenso isolamento, e, por conseguinte, de atraso ao Piau, o que precisava ser superado. Com base nas informaes de Felipe Mendes (2003, p.39), no obstante o pouco uso do rio, como foi apontado por Nunes e Santana, os governadores e presidentes da Provncia, em relatrios e mensagens, reconheciam a necessidade de aproveitamento dos rios, tanto para a navegao quanto para a agricultura. Segundo o mesmo autor (1995), j havia no Piau, portanto, o entendimento de que o rio Parnaba deveria ser o eixo da economia piauiense. Seno vejamos: Uma Carta Rgia de 1699 dirigida ao governador de Pernambuco ordenava que ele determinasse ao capito-mor do Cear, a ele subordinado, a realizao de estudo sobre os rios Parnaba e Paraim, tendo em vista o povoamento da regio (Ibid., 2003, p.39). Havia nela a preocupao com a defesa da costa piauiense, aventando a construo de uma fortificao em Parnaba, que no chegou a ser edificada. Em 1789, Joo de Amorim Pereira, ento governador da Capitania, escreve Metrpole reconhecendo a convenincia de se deixar a navegao do rio Parnaba livre dos estorvos que at agora desanimam o comrcio, a fim de se fomentar a agricultura, fazer crescer a indstria e promover a abundncia de todos os produtos (MENDES, F., 2003, p.67). No governo de Jos Idelfonso de Sousa Ramos, 110 a navegao do rio Parnaba e de seus afluentes era considerada primordial para promover o desenvolvimento do Piau (NUNES, O., 2007, p.129). Era, na opinio dele, a necessidade mais urgente da Provncia e o melhoramento mais importante em seus resultados (Id. ibid.). Em 1841, o presidente da Provncia chegou a propor privilgio exclusivo por 25 anos companhia que estabelecesse a navegao no rio Parnaba
110 Foi presidente da Provncia de 30.12.1843 a 9.9.1844. Mineiro. Foi deputado geral pelo Piau e senador por Minas Gerais. 85
por barco a vapor, mas isso no despertou nenhum interesse, no teve nenhuma consequncia pondervel (Id. ibid.). Sousa Ramos, verificando essa lei de concesso, aponta o fato de ela conter o defeito de no estar a par das circunstncias da Provncia e, por isso, estril em seus resultados, permanece e permanecer sem execuo (Id. ibid.). Ou seja, quela poca, embora houvesse o reconhecimento da importncia do rio, a capacidade de ao empreendedora do governo da Provncia era bastante limitada no podia arcar com a execuo do projeto em apreo, no tinha capital suficiente para resolver por si esse projeto desenvolvimentista. Faltava Provncia uma estrutura tributria, j que o montante dos tributos arrecadados, basicamente com o gado e algodo, era pequeno e insuficiente. Alm disso, salienta Odilon Nunes, companhias semelhantes no se organizam seno com vistas em um lucro calculado, o que era dificultado pela falta de dados estatsticos do Piau para conhecer sua populao, produo, importao e exportao (Id. ibid.). Os investimentos na Provncia eram insuficientes. Nunes lembra que, aps o trmino da Balaiada (1838-1840), quase nada se fez no Piau; havia at mesmo quase desaparecido a incipiente navegao do rio Parnaba que vinha promovendo a distribuio do sal e de produtos importados, cujo valor da venda era permutado pelos produtos da terra (NUNES, O., 2007, p.128). Vrias eram as reclamaes, os pedidos de apoio financeiro e logstico ao governo e defesa em favor da navegabilidade do rio Parnaba. A ao do governo, entretanto, era precria, j que, o governo, tanto na Colnia quanto no Imprio, tinha pouca autonomia administrativa e escassos recursos prprios para realizar qualquer obra significativa. Restava aos governadores e presidentes o registro de suas impresses e desejos nos relatrios ao governo central ou ao legislativo, (MENDES, F., 2003, p. 228). Podemos citar algumas dessas impresses e desejos em relao ao rio e a sua navegabilidade: em 1844, Souza Ramos disse que era de admirar que os habitantes do Piau deixassem inteis as guas de um dos maiores rios do Brasil (FREITAS, 1988, p. 181). Zacarias de Gis e Vasconcelos, em relatrio de 1 de agosto de 1845, lamenta que o rio hoje corre desprezado, pois a regularidade da navegao mudaria a face das coisas na Provncia (Ibid., p.180). Em 1847, Marcos Antnio de Macedo dirige-se ao primeiro ministro do Imprio explicando o impulso que a navegao traria e afirmando que ela tiraria a Provncia 86
do atraso em que se acha. Alm disso, solicita que se envie um engenheiro para organizar um plano de navegao por vapores tanto naquele rio, como em seu afluente denominado Canind (NUNES, O., 2007, p.130). Compartilhando da opinio de Gis e Vasconcelos, Saraiva defendeu, em 1851, a importncia que teria a navegao do Parnaba para prover o escoamento da produo piauiense em direo aos grandes mercados, tanto brasileiros como do Exterior. Santana (1964, p. 95) explica que a causa de o rio no ter sido navegado no estava nos obstculos da navegao (baixios, pedras no leito do rio etc.), mas na prevalncia dos capitais empregados na atividade pastoril. Afirma ainda que: A Provncia do Piau tem quase toda a sua extenso ocupada por fazendas de criar e o gado vaccum e cavalar; na atualidade, e sempre foi, a produo mais importante da Provncia, e o que constitui quase exclusivamente a sua principal riqueza sobre o destinado pequena agricultura (SANTANA, 1964, p. 95). Quanto pequena agricultura, havia o algodo, que poderia ser transportado pelo rio, mas este ainda era produzido em pequena quantidade, e, como apontou Chaves (1998, p. 170), no pode por si s dar uma direo ao comrcio. Cultivado por quase todo o perodo colonial, era empregado exclusivamente na indstria caseira de tecidos e roupas, utilizado na confeco de redes e da roupa usada pelo grosso da populao. S aps a Independncia ingressaria no comrcio, ao lado do fumo, quando comearia a figurar como tributo do fisco. Porm, como diz Odilon Nunes (2007, p.188), mas sempre, como consequncia da falta de transporte, sua participao foi mnima em relao da pecuria. Acrescenta que, em decorrncia da falta de infraestrutura e de mercado interno, no Piau, s mesmo a pecuria poderia sobreviver e possibilitar continuidade econmica. Consciente dessa realidade, Saraiva observa que nada de importante se poder esperar (inclusive a navegao) das tendncias naturais e espontneas (gado e pequena agricultura) da produo da Provncia (CHAVES, 1998, p. 170). Ou seja, o investimento na navegao s seria possvel, s deixaria de ser um desejo dos governantes, se houvesse o financiamento/subveno dos governos provincial e imperial ou de um grupo de empresrios dispostos a investir um capital significativo nesse novo empreendimento. Tal investimento s seria interessante se houvesse um volume significativo de mercadorias a ser transportado at Parnaba atravs do rio, o que no era o caso do gado e do algodo, conforme dito 87
anteriormente. A dificuldade era produzir um excedente comercializvel, j que nas fazendas de gado produzia-se praticamente tudo o que se consumia. Mesmo se houvesse um excedente, o mercado interno ressentia-se do alto preo dos transportes, que muitas vezes excedia o valor da mercadoria. Ora, nenhuma condio favorvel de investimento existia naquele perodo. Isso s se daria em 1859, como veremos. O prprio uso do rio, dissociado de uma funo econmica, configurava-se como um problema, j que no era normalmente utilizado como meio de escoamento da produo. Era preciso iniciar um processo de convencimento dos comerciantes locais para as vantagens do seu uso. Chaves exemplifica a dificuldade de utilizao do rio com o seguinte trecho: um dos proprietrios do Poti me deu sua palavra de que principiaria a conduzir os seus algodes para aquela cidade (Parnaba) e que para isso ele estava aprontando barcas. No era esse o caso dos comerciantes parnaibanos; esses estavam cientes da importncia da navegao fluvial cientes e necessitados desta, j que a cidade era o entreposto natural da Provncia, pois tinha um porto fluvial que precisava de ligao com a produo do interior e um porto de mar para escoamento da produo para o restante do Brasil e para o Exterior. Os parnaibanos cobravam das autoridades soluo para os problemas que atravancavam a chegada e a sada de mercadorias a seus portos. Estavam inclusive dispostos a resolver sozinhos os problemas. Citamos como exemplo o fato de que, em 1851, Saraiva recebeu uma representao dos comerciantes de Parnaba, formada por Jos Coelho de Miranda, Jos Francisco de Miranda Osrio e um representante da firma inglesa Andrew Miller & Co, e outros, pedindo a reabertura do Canal do Igarau, ento obstrudo por bancos de areia, por ser da maior utilidade pblica e particular, para animar a navegao, tanto a martima, como a do Interior (NUNES, O., 2007, p.132). A falta desse canal (Ibid., p. 135) 111 vinha ocasionando grandes prejuzos; vrios brigues ingleses, inclusive dois de propriedade do ingls Andrew Miller, se perderam. Em uma carta ao presidente Saraiva, Jos Coelho de Miranda se mostra disposto a constru-lo mediante indenizao posterior, porm desistiu da proposta,
111 Segundo Nunes, esse brao do Igarau j tivera bastante profundidade e j fora barra de acesso para a cidade de Parnaba, mas a formao de bancos de areia vinha ocasionando grandes prejuzos para a navegao. 88
ressentido pela falta de ateno que lhe fora dispensada (Ibid., p. 132). Quanto ao tipo de mercadorias que viria a se beneficiar da navegao fluvial, Saraiva ter-se-ia surpreendido, se soubesse que a grande mola propulsora da navegao fluvial e da economia piauiense foi acionada no pela pequena agricultura, mas pelos produtos do extrativismo vegetal, o que se deu no final do sculo XIX. Ou seja, o problema no era o rio, e seu pouco uso se devia insuficincia de produtos ou riquezas a serem transportados nele, j que a produo da pecuria e da agricultura no teriam sido suficientes para alavancar o progresso. Importa ainda lembrar que a navegabilidade 112 do rio Parnaba era, na lembrana de Abdias Neves, irregularssima (NEVES, 1916, p. 7), como j fora apontado nos estudos 113 e exames preliminares efetuados pela prpria direo da Provncia. O rio Parnaba corre em leito de pouco declive, e s era navegvel e sem embaraos em alguns trechos (BARBOSA, 1986, p. 41); 114 em outros, era preciso fazer limpeza ou conservao; outros ainda requeriam obras de desobstruo, algumas exigindo maiores despesas. Na concepo de Agenor Augusto de Miranda, para resolver o grande problema da navegabilidade do rio: A primeira coisa a fazer seria regularizar o rio ou dar-lhe regime fixo, isto , p-lo em estado de permanncia tal, que as suas margens nunca sofram a ao erosiva da gua e o seu leito tenha sempre uma profundidade suficiente para a navegao. O rio, de maio a outubro, apresenta-se com pouca gua em inmeros trechos de seu leito de cascalho e pedra, de perigoso arriscar (MIRANDA, 1938, p.64). Podemos citar alguns embaraos ou empecilhos navegao do rio Parnaba (BARBOSA, 1986, p.39), 115 ou seja, para naveg-lo era preciso conhecer a correnteza das guas devido incerteza, irregularidade, estreiteza e a tortuosidade
112 O Piau era o nico Estado brasileiro servido por navegao ininterrupta de um rio, em 250 km. 113 Contratado pelo governador da Provncia Adelino Antnio de Luna Freire, em 1867, o jornalista David Moreira Caldas embarcou em uma viagem de estudo pelo rio Parnaba, da qual resultou o Relatrio de viagem feito de Teresina at a cidade de Parnaba, pelo rio do mesmo nome, inclusive todo o seu delta que consta das Mensagens e Relatrios de Luna Freire. 114 A navegao impraticvel no trecho compreendido entre a chapada das Mangabeiras at Santa Filomena por causa das cachoeiras existentes; de Santa Filomena at Uruu considerado navegvel por embarcaes de at 0,70 metros de calado, enfrentando as dificuldades advindas da estiagem e das corredeiras; de Floriano at o incio do Delta, em uma extenso de aproximadamente 750 km, o rio apresenta condies de navegabilidade, com embarcaes de calado mximo de 1,50m. 115 Edson Barbosa cita a opinio do engenheiro Mariotte Pires de Lima Rebello, de que o rio funciona como dois rios em um s caixo: o da poca das cheias, caudaloso, com profundidade mais acentuada, que vai de 2 a 6 metros de tirante dgua, e o rio da estiagem, com profundidade de 1,50 m, 2 metros e at mesmo 0,70m. 89
dos canais (cabia ao prtico conhecer as mudanas operadas anualmente no leito do rio). O leito do rio era de pedra at a cidade de Floriano, e, da para baixo, arenoso e composto de uma areia movedia, que podia mudar de lugar de um dia para outro. Enchentes faziam anualmente grandes escavaes em alguns lugares. Havia trechos com camadas de cascalho mido, troncos fincados no solo, sem contar com grandes pedras soltas, umas flor-dgua e muitas apenas encobertas. Cachoeiras, como da Vrzea da Cruz, alternavam-se com baixios como o da Setilha. Alm da velocidade da correnteza e da instabilidade da altura das guas, havia o problema das coroas, onde os navios podiam encalhar e naufragar. Em consequncia, as embarcaes no podiam ter muito calado, pois em alguns trechos as guas eram rasas (trs palmos e meio) para poder vencer na poca das secas todos os obstculos que existiam no rio: O problema da franca navegabilidade do Parnaba mereceu por longo tempo a ateno dos poderes pblicos, e muitos trabalhos foram realizados nesse sentido. Infelizmente, nunca houve conservao dos canais abertos nas cachoeiras, no se cuidou da conservao das margens, e os meios de navegao, se no pioraram, melhoras no apresentaram (MIRANDA, 1938, p.63). O presidente da Provncia, Manoel do Rego Barros Souza Leo, em seu relatrio de 1871, disse que durante o inverno, sobretudo, as suas guas, cujo volume aumenta prodigiosamente, correndo com imensa velocidade, vo usurpando de cada lado de suas margens pedaos de terrenos, que contribuem, ainda mais, para obstruir o seu leito, e este fato, repetindo-se anualmente, tornar muito difcil, seno impossvel, a desobstruo do rio (FREITAS, 1988, p. 223). Diversas medidas oficiais foram tomadas ao longo de tempo para viabilizar a navegabilidade do rio, inclusive pelo presidente da Provncia do Maranho. Este, em cumprimento a um aviso do Ministro da Marinha, de 3 de dezembro de 1852 (MARQUES, 1998, p.36) enviou, em fevereiro de 1853, o brigue escuna Andorinha para estudar as barras 116 do rio Parnaba, e determinar qual deveria abrigar o porto de escala dos vapores da companhia que se projetava criar (NUNES, O, 2007, p.134). O local para o porto, apontado pelo relatrio do comandante do brigue, o
116 O Parnaba se lana no mar por seis barras ou embocaduras: Igarau, Velha, do Meio, do Caju, das Canrias e Barra de Tutoia. 90
Tenente Pedro Tom de Castro Arajo, foi o de Amarrao, pela vantagem de ser mais perto de Parnaba (Ibid., p.135). 117
Conforme j foi dito por Felipe Mendes (2003, p.40), por todo o sculo XIX, principalmente na segunda metade, o rio Parnaba passou a ser visto como o eixo de desenvolvimento da economia piauiense. Inmeros relatos oficiais e de especialistas repetiram com frequncia que o rio Parnaba era o principal recurso a ser aproveitado para o desenvolvimento do Piau (Id. ibid.). Gandara (2008) observa que, a partir da implantao da navegao a vapor, o rio Parnaba comeava a tomar ar comercial (p.116). Os navios a vapor passaram a percorrer assiduamente o rio, integrando comercialmente as cidades do seu vale cidade de Parnaba, e esta aos portos brasileiros e do Exterior. A partir de ento, e at por volta de 1950 portanto durante cerca de um sculo , a economia piauiense organizou-se tendo como eixo o rio Parnaba, verdadeira estrada lquida ligando Teresina cidade de Parnaba (MENDES, F., 2003, p.68). Foi esse o marco de um novo tempo (p.40), o incio do franco desenvolvimento da regio, 118 com o surgimento de vrias cidades ao longo do rio, tanto s margens do Piau como s do Maranho (GANDARA, 2008, p. 225). O novo tempo, segundo expresso de Felipe Mendes, foi um marco cultural que influenciou os hbitos das cidades Teresina, Floriano, Amarante e outras , pela introduo de produtos e de ideias vindas do litoral brasileiro, da Europa e dos Estados Unidos, graas ao trnsito de passageiros. Com isso, opina Freitas (1988), ganhava o comrcio, as artes e os costumes dos habitantes, pelo atrito constante da civilizao (p.185). O rio, responsvel por tudo isso, passou a ser alvo de ateno, e foram superados ou amenizados vrios problemas tcnicos apontados em relatrios e estudos de comisses. 119 Seu leito foi desobstrudo, coroas foram removidas e a questo do canal do Igarau superada. O primeiro prtico para o Porto de
117 A barra das Canrias foi preterida embora fosse mais funda porque l os navios chegavam longe da cidade e as cargas atravessavam lgua e meia por terra, e no inverno quase impraticvel. 118 A fundao de Teresina foi o marco do deslocamento do eixo econmico da Provncia do Piau, e a implantao da navegao a vapor, o instrumento de desenvolvimento da regio e de sua integrao economia nacional e internacional (Cf. FREITAS, 1988 & CHAVES, 1995). 119 A Comisso, por exemplo, do canal foi confiada a Joo Nunes de Campos, na presidncia de Lus Carlos de Paiva Teixeira. 91
Amarrao foi nomeado em 1854, e, para facilitar suas atividades, foram adquiridas catraias e escaleres. A Capitania do Porto foi estabelecida em 1855. As medidas oficiais tomadas para disciplinar e desenvolver a navegao surtiram efeito. O rio estava, assim, apto navegao. Em 1857, o presidente da Provncia Joo Jos de Oliveira Junqueira (1857- 1858) considerava que era intil esperar pela iniciativa privada para o estabelecimento da navegao a vapor 120 no rio Parnaba. Uma tentativa de atrair o interesse dos particulares j havia sido feita e fracassada em 1841, quando o presidente da Provncia conferira, pelo prazo de 25 anos, privilgios exclusivos a qualquer companhia que constitusse um servio de navegao a vapor no rio Parnaba. Junqueira entendeu que era imprescindvel obter o apoio governamental para desenvolver a navegao a vapor (GANDARA, 2008, p.155). Alis, o governo imperial estava empenhado no fomento da navegao a vapor (Id. ibid.), por ter reconhecido que a prosperidade do Brasil s seria possvel com a implantao de um sistema de transporte fluvial eficiente. E procurava criar condies para o desenvolvimento e o melhoramento das vias fluviais de forma a torn-las economicamente produtivas. Isso significava investimento financeiro no melhoramento de alguns rios brasileiros e a subveno a empresas de navegao fluvial. Entre os rios apontados no relatrio do Ministrio da Agricultura estava o Parnaba (Id. ibid.). O primeiro passo a ser dado seria o de fazer um diagnstico para conhecer o rio, atravs de estudos e exames, e s depois realizar os melhoramentos apontados. No caso do Piau, vrios estudos antecederam o incio da navegao a vapor, todos apontando dificuldades e obstculos a serem superados, 121 para que o rio pudesse apresentar-se como soluo, tanto para o problema de comunicao como da expanso das atividades econmicas e comerciais piauienses (Ibid., p. 152). Gandara cita, a ttulo de exemplo, o relatrio de
120 Segundo David Pennington, nos seus primrdios (1819), a navegao a vapor tinha como maior problema o consumo excessivo de carvo, que, alm dos custos, resultava na macia ocupao do espao til de carga da embarcao. Foi o ingls Alfred Holt, que, pesquisando motores de alta presso, conseguiu reduzir o consumo de carvo com o uso de motores mais econmicos. O sucesso das invenes de Holt assegurou a rota de longa distncia, e atendimento por linha regular. 121 Citamos, ainda, a viagem do engenheiro Gustavo Lus Guilherme Dodt, que percorreu o rio Parnaba, indo de Teresina at as suas nascentes. Em 1872 foi organizada a Comisso de Melhoramentos do rio Parnaba, cujo objetivo era a melhoria da navegao em vrios trechos do rio, incluindo a desobstruo das cachoeiras que dificultavam a navegao. 92
Joo Nunes de Campos e trs ofcios: o ofcio n. 5 de 08 de julho de 1853 (relatrio sobre o rio Parnaba para navegao de barcos a remo e a vapor e exame da barra do Igarau); ofcio de 05 de maio de 1854, enviado ao ministro do Imprio, que trata do exame que Joo Nunes de Campos procedeu no rio Parnaba, da barra do Igarau at Teresina, para saber se o rio se prestava navegao; e o ofcio de 19 de dezembro de 1855, com o exame realizado da boca do Igarau at as Canrias e da at a barra de Amarrao (Ibid., p. 149). Para finalizar, considerando que os estudos eram suficientes, e aps obter o consentimento do Conselheiro Jos Antonio Saraiva, que ocupava o cargo de ministro da Marinha, Junqueira encomendou por conta da Provncia um vapor, o Uruu, que foi construdo no Rio de Janeiro, nos estaleiros da Ponta da Areia, de propriedade do Conde de Mau (BARBOSA, 1986. p. 57), pelo preo de 49 contos de ris, pagos com recursos pblicos e verba conseguida junto a particulares. Com essa iniciativa, a Provncia esperava dar um grande passo em direo ao progresso. Preparativos para a chegada da embarcao foram iniciados pelo governador Junqueira. Uma equipe de homens livres e escravos supervisionados por Diego dos Santos Cardoso comeou a fazer a limpeza do rio. At mesmo o combustvel adequado foi providenciado. O Uruu devia ser movido a carvo de lenha, o que levantou um problema. O carvo, nesse caso, devia vir da Inglaterra. A importao foi providenciada junto a uma firma inglesa, de Liverpool, a Singlehurst Nicholson & Cia., instalada em Parnaba, de propriedade de Paul Robert Singlehurst. Cinquenta toneladas de carvo de pedra chegaram em 1858 e foram entrepostas nos portos ao lado de lenha. Anos mais tarde, o entrevistado pelo Ncleo de Histria Oral da UFPI, Mano Velho (1984), 122 em seu depoimento, lembra-se das dificuldades de lidar com essa matria, e declara que o carvo vinha da Inglaterra, pois no era produzido no Piau: Tudo lenha; nesse tempo no existia carvo, nesse tempo no existia carvo de pedra, e mesmo esse carvo nosso, era difcil, no tinha, o carvo que ns produzamos mais naquela poca era de casca de coco; o caboclo no sabia fazer o carvo que fazem hoje, essa indstria de carvo de madeira, at de talo de coco fazem.
122 SILVA, Antnio Pereira da (Mano Velho). Teresina, 1984. Entrevista concedida, para o Ncleo de Histria Oral da Fundao Centro de Pesquisas Econmicas e Sociais do Piau-Cepro, a Geraldo Almeida Borges, em 25 de fevereiro de 1984. Mano Velho nasceu em Caxias, Maranho, em 1913. 93
O Uruu comeou sua viagem para o Piau em novembro de 1858 sob o comando do Tenente da Armada, lvaro Augusto de Carvalho. A partida do Rio de Janeiro contou com a presena do ministro da Marinha, senadores, deputados e pessoas de destaque na Capital do Imprio, em uma demonstrao manifesta da importncia do acontecimento (CHAVES, 1998, p.68). Foi uma odisseia, aps longa e agitada viagem, o vapor Uruu chegou Amarrao, atracou em Parnaba a 31 de maro de 1859 (GANDARA, 2008, p.157), e, no dia 19 de abril de 1859, aportou em Teresina, recebido com alegria e novas esperanas pelas autoridades e pelo povo teresinense. Monsenhor Chaves assim descreve a embarcao: Era um barco bonito, bem construdo, deslocando 80 toneladas. Tinha casco de ferro, mquinas de baixa presso, fora coletiva de 24 cavalos, 126 ps ingleses de comprimento na linha dgua, 14 de boca na caverna mestra, 5 e 3 polegadas de pontal e 21/2 ps de calado (CHAVES, 1998, p. 68). Escrevendo sobre o barco, Chaves acrescentou: Serviu nove anos ininterruptos o Uruu, cortando as guas do Parnaba para o norte e para o sul, abarrotado de passageiros, rebocando barcaas pejadas de mercadorias, levando aos portos de escala suprimentos, abastana, progresso, at que em 1867 naufragou (Ibid., p.70). Assim comea a histria da navegao a vapor no rio Parnaba. No governo de Joo Jos de Oliveira Junqueira foi fundada, em 27 de setembro de 1858, a Companhia de Navegao do Rio Parnaba, cuja funo seria a de prestar servios regulares, fazendo a navegao entre a Capital e a cidade de Parnaba e tocando nos portos intermedirios de Unio e Repartio. Pedindo apoio ao governo Imperial, recebeu a quantia de dois contos de ris mensais para as despesas com a navegao a vapor. O resto ficou por conta dos acionistas (CHAVES, 1987, p. 90). 123
Nela, incorporou o vapor Uruu, em 15 de maio 1859. No dia 24 de novembro do mesmo ano, foi celebrado o primeiro contrato entre a Provncia e a Companhia, no qual consta a obrigao desta em verter a importncia anual de 48 contos de ris aos cofres pblicos. A Companhia tambm se encarregou da obra de desobstruo de alguns trechos do rio e de construir os necessrios escritrios e armazns
123 Segundo Chaves, na primeira reunio para a coleta de assinaturas, realizada em 04 de outubro de 1858, o movimento foi to rpido que a 27 de novembro de 1858 estavam subscritas 800 aes, inclusive 146 tomadas pela Provncia. 94
(NUNES, O., 2007, p.180); 124 montou uma fundio, criou oficina de marcenaria, comprou maquinismo para a serraria, encomendou tornos (Id. ibid.). 125
Entretanto, a euforia da chegada da embarcao logo foi esmaecendo diante de dificuldades, devido a falhas na concepo da embarcao, j que no fora projetada para as condies do rio Parnaba: O vapor no tinha as precisas propores para a navegao fluvial, pois alm de ser muito comprido e calar mais gua do que conviria, no tinha o eixo partido e no podia dar com facilidade as voltas do rio (FREITAS, 1988, p. 189). O Uruu, que no fora projetado para as condies do rio Parnaba, 126 deixou de operar quando ocorreu o seu naufrgio em 1867, no lugar conhecido como Coroa da Aurora (MAVIGNIER, 2007, p.124). No obstante, sua chegada certamente estimulou a economia local, pela ampliao das atividades comerciais. curioso notar que somente em 1868 o presidente da Provncia Augusto Olmpio Gomes de Castro encarregou o Dr. Gustavo Dodt, engenheiro alemo a servio do Ministrio da Agricultura, Comrcio e Obras Pblicas, de apresentar uma planta do rio Parnaba desde a sua cabeceira at sua foz, com vistas navegao (MENDES, F., 2003, p.59). Essa iniciativa demonstra o interesse do governo em dar continuidade e aprofundar o conhecimento das condies de navegabilidade do rio. Devido ao crescente volume de mercadorias a serem transportadas e extenso do percurso pelo rio, foi adquirido um segundo vapor, o Conselheiro Paranagu, que entrou na barra de Amarrao em 29 de janeiro de 1865. Da em diante a atividade estava consolidada. A frota aumentou, e, em 1882, o vapor Conselheiro Junqueira partiu de Teresina para a Vila de Santa Filomena em uma viagem que levou 32 dias (BARBOSA, 1986, p.74). 127 Em seguida vieram outros, a exemplo do vapor Piau:
124 Conforme Nunes, o Piau no dispunha de mo-de-obra especializada e a Companhia de Vapor se ressentia dessa deficincia, a exemplo da falta de artistas mecnicos e do fato de no contar com uma fundio. A ferraria essencial para o incio das oficinas veio da Inglaterra. 125 Quase tudo relacionado ao vapor era importado da Inglaterra, desde o prprio vapor desmontado e montado aqui, at o carvo, peas e partes, como caldeira e cascos, alm de tcnicos e engenheiros (como, por exemplo, John Robertson, que veio dirigir a oficina de ferraria). 126 Eram navios longos e pesados: o maquinismo em pouco estava desajustado e havia rpido desgaste das peas. Era o caso dos Cons. Paranagu e Junqueira. Cf. Nunes (2007, O, p.183). 127 Ao final de 1914, a Companhia tinha os seguintes vapores: Baro de Uruu, Cristino Cruz, Igarau, Joo de Castro, Piau, Teresina, Marques de Paranagu, Senador Cruz. Tinha as Barcas: 95
A navegao a vapor do rio Parnaba fez florescer o comrcio nas suas margens, iniciando-se a desobstruo do rio e obras civis em alguns portos fluviais. Havia a conscincia poltica de que era esta a grande via de progresso. Com recursos do tesouro provincial, foi construdo no Rio de Janeiro o vapor Uruu, que a partir de abril de 1859 passou a fazer a ligao de Teresina a Parnaba, rebocando barcas repletas de mercadorias e levando passageiros. Outras embarcaes de porte tambm se destacaram, como os vapores Conselheiro Paranagu, Conselheiro Junqueira, Piau e as barcas Igarau, Poti e Esperana. Por esse processo, Teresina e Parnaba, ao final do sculo, estavam consolidadas como os principais entrepostos comerciais do Piau, comeando a retirar o Piau da dependncia maranhense atravs da ento prspera Caxias (TAJRA, 1995, p.138). Em fins do sculo XIX, houve uma tentativa de se fundar outra companhia de navegao, a Companhia de Vapores do Alto Parnaba. Dois vapores foram encomendados na Inglaterra, o Amarante e o Santo Estevo, mas por no terem especificaes tcnicas adequadas ao uso no rio calado reduzido e velocidade superior a 18 km por hora no foram utilizados e a nova Companhia fracassou. O novo sculo anunciava-se promissor para a exportao. Fazia-se necessrio prover o escoamento da produo, e o governo do Estado resolveu incentivar o trfego fluvial. A Lei n. 430 de 27 de junho de 1907 oferecia a quantia de seis contos de ris anuais empresa ou companhia de vapores que, mediante contrato, fizesse a navegao da cidade de Floriano at a Vila de Uruu, e doze contos de ris anuais para levar a navegao do Porto de Floriano ao da Vila de Santa Filomena. Com esse incentivo financeiro do governo, vrias empresas, devidamente registradas e organizadas com um nmero considervel de embarcaes, passaram a trafegar pelo rio Parnaba (GANDARA, 2008, p.171). A primeira delas, a Empresa Fluvial Piauiense, da firma Oliveira Pearce & Cia., assinou contrato com o governo em 6 de junho de 1910 para navegar o Alto Parnaba, entre Floriano e Santa Filomena, durante 10 anos. A empresa obrigava-se a dar incio navegao nove meses aps a assinatura do contrato, com os barcos Antonino Freire e Joaquim Cruz, ento em construo na Inglaterra. A experincia anterior despertou a ateno dos novos proponentes para com as caractersticas das embarcaes, que foram encomendadas com as seguintes particularidades: roda popa, calado 0,50 m e velocidade de 18 km por hora, prprio navegao do Alto Parnaba.
Colnia, Tutoya, Tiuba, Leviatan, Boas Esperana, Canavieira, Canind, Unio, Valongo; e a lancha Poti. 96
Com o sucesso desta iniciativa, a Empresa Fluvial adquiriu mais dois vapores o Quinze de Novembro e a barca Magu, estendendo seus servios ao rio das Balsas, entre Uruu e Santo Antnio das Balsas, no Maranho. Comprou ainda, em 1919, o barco Manoel Thomaz, para a linha entre Uruu e Parnaba. Em 1922, a firma Petrnio Oliveira & Irmos comprou a Empresa e manteve a navegao do Alto Parnaba por vrios anos. Segundo Moyss Castello Branco Filho (1979, p.84), at 1942, a comunicao e o comrcio entre as cidades ribeirinhas, Teresina e Parnaba, foram assegurados por 14 empresas de navegao. 2.5 Os Portos e as Companhias de Navegao Fluviais e Martimas Quando as fazendas de gado se espalharam territrio adentro, a comunicao via terrestre passou a ser cada vez mais difcil, com sacrifcio das reses que morriam de sede pelos caminhos. Impunha-se, com isso, o escoamento da produo por via fluvial e, decorrente dele, a instalao de um porto martimo. Iweltman Mendes (2008, p.10) assinala que, em 1699, houve um primeiro movimento do Governo colonial nesse sentido. Por ordem do Conselho Ultramarino de Portugal, em 12 de janeiro, o governador de Pernambuco, Dom Fernando Martins Mascarenhas de Lencastre (ou Lencastro) promoveu um estudo da navegabilidade do rio Parnaba, e a possibilidade de ser construdo um porto na sua foz, com a fundao de uma vila a ele adjacente. Porm, nenhuma atitude mais definitiva a esse respeito foi tomada durante os sculos que se seguiram. Nesse nterim, o rio foi sendo trafegado intensamente, com os meios acessveis poca, como uma via de escoamento de produtos da pecuria e da agricultura para o litoral. Para receber as mercadorias, surgiu a Vila de So Joo da Parnaba, com fortes caractersticas comerciais voltadas para a exportao martima. Renato Castelo Branco (1970, p.12) refere-se considerao feita pelo prprio D. Joo VI, em 1817, sobre a necessidade de haver um porto diretamente ligado ao territrio do Piau que possibilitasse o escoamento de sua produo sem passar pelas provncias vizinhas, especialmente pelo Maranho. Porm, os 97
maranhense no via com bons olhos a autonomia aduaneira piauiense (PAULA NETO, 2000, p. 23): Os parnaibanos mais empreendedores e ligados recentssima indstria de charque procuravam uma sada para o escoamento dos seus produtos, sem as peias e teias que lhe colocava o Estado do Maranho. A distncia e a burocracia alfandegria sempre jogavam a favor de quem detm as rdeas do poder; o mesmo seria dizer de So Lus do Maranho (Id. ibid.). No incio do sculo XIX, a indstria do charque implantada por Joo Paulo Diniz e desenvolvida posteriormente pela famlia Dias da Silva ganhava importncia para a economia piauiense, devido ao intenso comrcio martimo com os portos do Par, da Bahia e do Rio de Janeiro. Justificava-se assim a urgncia da construo de um porto para a Provncia do Piau. O governador do Piau, Raimundo Arthur de Vasconcelos (1896-1890), empenhava-se junto Cmara Legislativa para que se fizessem projetos adequados para estimular a lavoura ao lado da indstria da charqueada, a fim de que o Piau viesse a integrar-se no panorama econmico nacional. A navegao do Parnaba fazia parte desse programa do governo. Deste modo, estudos se sucediam sobre as condies de navegao do rio; podemos citar os promovidos por Simplcio Dias da Silva, em 1806; o estudo realizado, em 1853, pelo tenente Jauffret, e o de 1867, por David Caldas, entre outros (BARBOSA, 1986, p.91). O mais promissor desses estudos parecia ser o que envolveu o brigue-escuna Andorinha da Marinha Imperial, enviado em 1853 ao litoral do Piau sob o comando do tenente Pedro Tom de Castro Arajo, a fim de apontar o melhor local onde deveria ser construdo um porto, alm de verificar a situao de navegabilidade do Parnaba e os braos de seu delta. Nesse mesmo ano, o governador da Provncia do Piau, Lus Carlos da Paiva Teixeira, nomeia Antnio Francisco de Miranda Osrio e Jos Coelho de Miranda para vistoriar as diversas barras do rio Parnaba, apresentar em relatrio o melhor local para o erguimento de um porto e o oramento necessrio para tal empreendimento. Essa Comisso recebeu suporte tcnico de um vaso de guerra, enviado de So Luis a mando do Governo Imperial. O local escolhido pela referida Comisso foi a barra da Amarrao, e as despesas oradas para o empreendimento ficaram em quatro contos de ris, conforme esclarece Iweltman Mendes (1994, p.12). 98
Tambm trabalharam em prol da instalao do porto os deputados provinciais. Visando incrementar o comrcio martimo e provocar a viabilizao do porto, a Assembleia Provincial do Piau aprovou, em 4 de setembro de 1857, a Lei n. 450, que autorizava emprstimos a qualquer companhia de navegao costeira que quisesse estender suas viagens at o Porto de Amarrao. Antecipando-se a todas essas iniciativas, o negociante ingls Andrew Miller funda a Casa Inglesa, em 1849, que passa a desenvolver um ativo comrcio entre o Piau e a Inglaterra, com embarcaes prprias, e a implantao de um estaleiro para a construo de navios para sua casa comercial (MARQUES, 1998). Dcadas se seguiram at que, atravs do Decreto n. 3.012, de 22 de outubro de 1880, o presidente da Provncia, na tentativa de resolver a questo, cedeu Provncia do Cear dois municpios Independncia e Prncipe Imperial em troca de uma pequena faixa litornea da freguesia de Amarrao, onde seria instalado um porto martimo. Percebe-se que os argumentos a favor da construo do Porto de Amarrao foram muitos. No sculo XX, cronistas dos jornais do notcias de iniciativas promovidas pelas autoridades pblicas, anunciando propostas de unir os sistemas de transporte: o ferrovirio e o fluvial, culminando no porto martimo. Conforme consta no artigo O municpio de Amarrao, publicado no Almanaque da Parnaba de 1927 (p.31), o presidente Epitcio Pessoa decretou, em 1922, a construo do Porto de Amarrao, tendo sido efetuada a compra do material necessrio do qual grande parte foi depositado em Amarrao. A obra, entretanto, sequer foi iniciada. Em 1929, foi publicado no jornal O Piau um artigo intitulado Argumento sobre o Porto de Amarrao, assinado pelo engenheiro chefe das obras de construo do Porto de Amarrao, Manuel Urbano Albuquerque. Ele considerava o porto uma "necessidade imperiosa como elemento inicial e bsico para a realizao da obra martima." O engenheiro continuava seu argumento em tom de advertncia aos poderes pblicos, chamando a ateno para a necessidade da construo imediata do Porto de Amarrao. Caso se concretizasse, a obra permitiria o escoamento da produo do Estado do Piau diretamente para o mercado consumidor, pois grande parcela do que era produzido em territrio piauiense era direcionada aos Estados vizinhos, e positivamente contabilizada para eles. Logo, se o Piau continuasse sem porto de mar, estaria fadado a ser aniquilado economicamente. 99
Assinale-se que o Porto de Amarrao (Figura 18) foi considerado um dos pontos-chaves do desenvolvimento econmico do Piau, guarnecido, como seria de se esperar, de seu servio de alfndega. Nas palavras de Paula Neto (2000, p.23), esta era uma ambio antiga, concretamente desde 1781, era os parnaibanos possurem a sua prpria alfndega, sem estarem sujeitos aos caprichos das capitanias vizinhas, desde o Ocidente at a Bahia-Salvador. Sem alfndega, o Piau ficava dependente das autoridades aduaneiras de So Luiz, e seus produtos eram onerados (Ibid., p.41). Ademais, o fato de haver um porto em uma cidade influi no seu grau de desenvolvimento econmico, j que um porto , sem dvida, entendido como um elemento que propicia progresso e que funciona como indutor do crescimento do comrcio, alm de elevar a arrecadao provincial. As atividades martimas dependiam em grande medida do desenvolvimento de uma estrutura porturia adequada, buscada intensamente, tanto pela sociedade poltica quanto pela sociedade civil da poca. Enquanto a luta pelo porto acontecia, os exportadores de Parnaba mantinham seus contatos com o Exterior pelos meios de que dispunham, entre eles a navegao fluvial atravs do rio Parnaba. A foz do rio Parnaba formada por um delta com cinco bocas, mais de setenta ilhas, na maioria maranhense (BARBOSA, 1986, p. 40), e dezenas de canais e igaraps. Nele esto localizadas quatro cidades, sendo duas maranhenses Tutoia e Araioses e duas piauienses Parnaba e Luis Correia. Entre os portos improvisados, havia o da barra das Canrias, o do Meio, do Caju, de Melancias, o Porto do Cajueiro localizado na Baa de Tutoia (MA) e o de Amarrao, na barra do Igarau. 100
Figura 18 - Projeto de melhoramento do Porto de Amarrao. Fonte: Almanaque da Parnaba (1927). No perodo colonial, as embarcaes preferencialmente penetravam em Parnaba pela barra de Tutoia. Testemunhamos essa ocorrncia pelo menos at o decnio de trinta do sculo XIX. A partir de ento, a preferncia passa a ser a barra das Canrias, 128 porque ficava a apenas duas lguas do Porto de Parnaba, enquanto Tutoia distava vinte lguas. Os navios que se dirigiam barra das Canrias ancoravam a duas lguas de Parnaba, sendo uma e meia lgua percorrida em cavalgaduras. Os caminhos eram pssimos, e, no inverno, as mercadorias sofriam muitas perdas e avarias. O porto situado no Igarau j tivera bastante profundidade, e foi o mais fcil acesso para a cidade de Parnaba. Com o aumento do movimento comercial,
128 O rio Parnaba, aps a boca do Igarau, passa a ser conhecido como rio das Canrias. Cf. Barbosa (1986, p. 40). 101
aumentou o nmero de embarcaes a penetrar pelo Igarau. No entanto, a formao de bancos de areia vinha ocasionando grandes prejuzos navegao. Acontecia com frequncia, ao tentarem deixar o porto pela barra do Igarau, de os navios no conseguirem sair, devido s coroas de areia. Tinham que ser descarregados; entravam ento na barra das Canrias, onde o carregamento era transferido para barcos de calado mais raso. Todas essas peripcias causavam grandes dispndios. Embarcaes se perdiam, sem contar com os naufrgios, s vezes ocasionados por incompetncia dos prticos (NUNES, O., 2008, p.155). Em 1848, encalharam na barra de Amarrao trs navios de consignao que mantinham o comrcio regular de gado com Caiena: o brigue escuna guia, de 155 toneladas; a escuna Parnaba, de 105 toneladas; e a escuna Feliz Amizade, de 55 toneladas (NUNES, O., 2007, p.132). Os perigos de Amarrao podem ser testemunhados pelos vrios naufrgios ocorridos. Em agosto de 1851, naufragou o brigue ingls Britnia; e em novembro o Three, ambos de propriedade de Andrew Miller & Co. que, como consequncia das dificuldades encontradas, manifestou inteno de tambm abandonar o comrcio, o que efetivamente fez um pouco mais tarde (Ibid., 2007, p.133). Era urgente melhorar a barra e abrir um canal que aumentasse suas guas pelos desvios das guas do rio Parnaba, que se derramavam nas Canrias (NUNES, O., 1966, p.131). A obra chegou a ser considerada a ao de maior utilidade pblica e particular. Para dar maior segurana ao trfego martimo, foi preciso edificar um farol, o que se concretizou em 2 de maio de 1871 (ALMANAQUE DA PARNABA, 1925, p.49). 129 O farol de ferro, com uma casa para habitao dos faroleiros, estava situado a oito milhas de distncia da barra da Amarrao, sobre os rochedos denominados Pedra do Sal. Nessa posio, dominava as barras da Amarrao, Canrias e Cajueiro (ALMANAQUE DA PARNABA, 1925, p.49). Os apetrechos para a sua construo vieram de Liverpool (NUNES, O., 2007, p.156).
129 Segundo o Almanaque da Parnaba de 1925, foi no dia 4 de maro de 1873 que comeou a funcionar o farol da Amarrao, mandado construir pelo Ministrio da Marinha em 1872, sendo incumbido dos trabalhos de construo e montagem do aparelho o engenheiro piauiense Newton Csar Burlamaqui. 102
Apesar da ausncia de uma estrutura porturia adequada, por todo o primeiro quartel do sculo XIX, o comrcio da Vila de Parnaba continuou movimentado. 130 O transporte de mercadorias entre a vila e o Maranho e algumas cidades do Interior, situadas s margens do rio Parnaba, era feito em embarcaes particulares de 1.100 a 1.200 arrobas (MARQUES, 2000, p.32). Em 1834, existiam em Parnaba dois estaleiros para a construo de brigues, escunas e sumacas. Como assinala Marques (2000, p.33-37), naquele ano entraram treze navios, sendo onze por Tutoia, um pelo rio Igarau e um pela barra das Canrias. Dez dessas entradas teriam sido feitas por cinco navios pertencentes a comerciantes parnaibanos, enquanto em alto mar permaneciam em operao dois navios americanos e um espanhol. Em 1836, eram trs os estaleiros, incluindo-se o da barra do Long (NUNES, O, 2007, p.128). A deficiente estrutura porturia descrita acima deixava as autoridades e comerciantes parnaibanos insatisfeitos. O presidente da Provncia, Anselmo Francisco Perete (1848-1849), informou ao ministro da Justia que a ele no se dirigiam embarcaes estrangeiras, e apenas dali vo alguns navios nacionais conduzindo gados a Caiena, na Guiana Francesa, donde quase todos voltam sem lastro (Ibid., p.130). Esta Provncia fica quase em sua totalidade to distante dos portos de mar e de grandes mercados do Pas que muitos dos seus produtos agrcolas deixam de ter valor algum, porque as despesas de transportes absorvem e porventura excedem ao mesmo valor (Ibid., p.139). No ano de 1853, entre os navios em atividade estavam dois brigues ingleses de 280 e 129 toneladas, e uma escuna brasileira de 133 toneladas que faziam linha: os dois primeiros de Parnaba para Liverpool; e o terceiro de Parnaba para a Guiana Francesa. Segundo Marques (2000, p.37): Com o desenvolvimento econmico de Parnaba, o surgimento de estaleiros e o grande vai e vem de embarcaes eram fatores que, conjugados, estavam a exigir a presena de um rgo federal para coordenar, exercer o controle e fiscalizar todo o movimento fluvial, costeiro e martimo da regio. Embora houvesse uma Alfndega, faltava a Capitania dos Portos. Assim, para atender a reais necessidades da cidade, no dia 10 de fevereiro de 1855 foi criada em Parnaba, pelo Decreto n. 1.532, a Capitania do Porto.
130 Em 1824 entraram em Parnaba 10 sumacas e escunas algumas pertencentes casa Simplcio Dias da Silva e saram onze. 103
A instalao da Capitania do Porto ocorreu somente no dia 10 de junho de 1855 quatro meses aps a assinatura de um Decreto na Praa da Graa, em uma grande casa localizada esquerda da Igreja do Rosrio (MARQUES, 2000, p. 38). 131 No ano da instalao da Capitania, a cidade de Parnaba contava com 74 barcas, 33 botes sem coberta e 20 canoas, com servio regular de navegao para Unio, Teresina, Amarante, Jerumenha (PI); Passagem Franca e Tutoia (MA) (Ibid., p. 40). Enfatize-se que, poca, poucos dias aps sua posse, o presidente da Provncia Frederico de Almeida e Albuquerque (1855-1857) reclama do baixo preo alcanado pelas mercadorias, em consequncia do alto custo do transporte, devido distncia entre a Provncia e os portos martimos. Almeida e Albuquerque relatava ao ministro do Imprio a posio geogrfica da Provncia (NUNES, O., 2008, p.139): To distante dos portos de mar e dos grandes mercados do Pas, que muitos de seus produtos agrcolas deixam de ter valor algum porque as despesas de transporte absorvem, e porventura excedem ao mesmo valor. Apesar de a estrutura manter-se precria por todo o sculo XIX, algumas medidas foram sendo tomadas para minimizar as deficincias do comrcio da regio, como, por exemplo, a formao de pessoal especializado para o servio de navegao. A 1de junho de 1874 comea a funcionar, em Parnaba, a Companhia de Aprendizes Marinheiros, criada pelo Decreto n. 5.309 de 18 de junho de 1873, tendo como seu primeiro comandante o primeiro tenente Miguel Antnio Pestana. A Companhia mencionada oferecia educao militar e instruo nutica, com exerccios de marinha e de artilharia, bem como instruo educacional (aos menores ensinava-se a ler, escrever, contar, desenhar mapas) e o ensino da doutrina crist. A carreira naval formava aprendizes marinheiros, mestres de armas, marinheiros de classe superior, oficiais, escrives, capites de portos, comandantes de companhias e mestre-escola. Formou-se em Parnaba uma elite naval, composta por homens
131 Ainda de acordo com Marques, a Capitania dos Portos teve como primeiro comandante o Capito- Tenente Jos Antnio Correia (21 de abril de 1855 a 31 de janeiro de 1878). Inicialmente, foi instalada em uma grande casa na Praa da Graa, prximo da Igreja do Rosrio. Parnaba foi assim a primeira cidade piauiense a ter a presena de importante rgo federal. A partir dessa data, a Marinha passou a controlar todo o movimento das embarcaes e a segurana da nossa costa e de demais ribeiras, prestando relevantes servios comunidade. Historicamente, ela j se fazia presente na regio atravs dos brigues que guarneciam a costa e protegiam as embarcaes. 104
que tiveram destaque na sociedade local 132 e nacional (MARQUES, 2000, p. 53). Esse grupo representou um diferencial na estrutura social parnaibana. A elite, antes composta basicamente por comerciantes, passara a ser integrada, tambm, por indivduos com formao tcnico-cientfica, com interesses voltados para outras reas. A comunicao pelos correios foi tambm um captulo da histria do Piau, no processo de integrao entre a Provncia com outros mercados. Durante o sculo XVIIl, especialmente na segunda metade, intensificou-se a comunicao entre a Colnia e a Metrpole, resultando na criao, em 1798, do Correio Martimo Portugal-Brasil. No Piau, apesar de haver um responsvel pela correspondncia em Parnaba o Sr. Antnio Alves Ferreira Veras , a correspondncia chegava por So Luiz, pela Bahia ou Pernambuco (PAULA NETO, 2000, p. 23). Mais uma vez a necessidade de infraestrutura de um porto vem tona, como fundamental para o incremento do Correio Martimo. A falta desse porto transformou, em 1812, a cidade de Fortaleza, no Cear, no centro das operaes do Correio Martimo de uma rea litornea que se estendia de Pernambuco ao Maranho. Nesse mesmo ano, 1812, nomeado responsvel pelo Correio Martimo em Parnaba o Capito Jos de Sales. Conforme Iweltman Mendes (2008, p.10): Para acelerar as entregas e evitar que ocorressem desvios de carga e de correspondncia para a Capitania da Paraba, cunhou a clebre marca "PARNABA NORTE DO BRASIL", e, por dois sculos, essa expresso foi smbolo de orgulho e autonomia para Parnaba, como consta de inmeros anncios publicados no Almanaque da Parnaba. Assim, possvel observar que a atividade comercial no Piau, e especialmente o comrcio parnaibano, sofria restries de diversas naturezas, dificultando com isso um crescimento acelerado e mais condizente com o ritmo que assumia a economia de mercado em outras partes do mundo. Uma das mais insistentes demandas dos parnaibanos foi a criao da alfndega em Parnaba. J em 1781, Domingos Dias da Silva props a criao da alfndega ao Conselho Ultramarino, recebendo deferimento. No entendimento de
132 Como exemplos so citados Armando Csar Burlamaque, filho do construtor do farol da Pedra do Sal (1873), que, tendo nascido em Teresina em 1873, estudou na Europa, foi deputado federal pelo Piau e recebeu a medalha MSM de ouro por mais de 30 anos de bons servios prestados Marinha; Luiz Area Leo, ao lado da carreira naval, ocupou importantes cargos polticos no Estado. 105
Paula Neto (2000, p. 27), a sua argumentao baseava-se em deixar livre o comrcio da Capitania e em facilitar a navegao direta Parnaba-Lisboa, sem depender da burocracia da alfndega de So Luiz (Id. ibid.). O pedido, apesar do parecer favorvel, iria esbarrar nos interesses maranhenses, 133 perdendo receitas e influncias protecionistas (Id. ibid.). Em 30 de maro de 1804, o governador da Capitania Pedro Jos Csar de Menezes se comunica com Prncipe Regente, e diz que os comerciantes de Parnaba, liderados por Simplcio Dias da Silva e Manuel Antnio da Silva Henriques (Ibid., p. 43), 134 estavam requerendo a instalao de uma alfndega em Parnaba. 135
Ser digno da real ateno o pedido, no s por ser a vila mais opulenta que a capital, como os direitos reais no sofreriam diminuio, visto que tanto se pagam no Maranho como em So Joo da Parnaba, onde podem crescer muito mais, com grande utilidade destes povos e de todos os indivduos (SANTANA, 2008, p.167 apud COSTA, 1974, p.112). Ainda de acordo com Barbosa (1986, p. 90): Quando da presena de D. Joo no Brasil, este prncipe demonstrou interesse pelo assunto, por sua importncia para a ento capitania. Assim, em 22 de agosto de 1817, ele cria uma Alfndega na Vila de Parnaba, com os oficiais que fossem precisos, sendo seu juiz o juiz de fora da mesma vila, servindo-lhe de norma o alvar de 22 de novembro de 1773, e as disposies dadas pela Carta Rgia de 17 de janeiro de 1799, que concedeu aos habitantes do Cear faculdade para a navegao e comrcio direto com Portugal. O pedido da criao da alfndega, nesse perodo, corresponde: s exigncias e mudanas da economia piauiense nesse perodo, pois todos os seus gneros e produtos de sua lavoura passam necessariamente pelos entrepostos do Maranho ou Pernambuco, acarretando no s riscos como onerando os custos, quando no eram vendidos a comerciantes daquelas praas a baixo preo (SANTANA, 2008, p.168). A justificativa para a criao da alfndega era o fato de o Piau no poder dispor dos gneros e dos produtos da sua lavoura sem passar pelo entreposto do Maranho ou Pernambuco, para onde eram obrigados a envi-los com grandes despesas ou riscos, para ali serem exportados ou vendidos para negociantes dessas
133 A quem poltica e administrativamente o Piau estava subordinado. 134 Paula Neto cita outros parnaibanos empenhados na luta (possivelmente comerciantes): Caetano da Silva Lopes, Francisco Antonio Feitosa, Raimundo Jos de Bettancourt, Toms da Silva Carvalho. 135 Conferir tambm Cunha (1952) e Santana (2008, p. 168). 106
praas (BARBOSA, 1986, p. 90). Transportados pelo rio Parnaba, passando pela alfndega da prpria vila, a exportao seria direta, mais barata, mais cmoda e mais segura (Id. ibid.). Enfim, criada em 22 de agosto de 1817 por Dom Joo, a Alfndega de Parnaba comeou a operar efetivamente depois da Independncia, em 1834. Datam deste ano os registros das embarcaes que davam entrada pelo Porto da barra da Amarrao. 2.6 Os Portos Martimos e as Operaes Comerciais A possibilidade de haver em Parnaba instalaes porturias eficientes (ALMANAQUE DA PARNABA, 1925, p.49) 136 que proporcionassem uma sada franca para o mar, integradas hidrovia do rio Parnaba e a ferrovias e rodovias, criava condies de transporte altamente favorveis ao comrcio. Os produtos nativos e derivados da pecuria, j constantes da pauta de exportao, eram suficientes para viabilizar o porto, uma vez que essas mercadorias podiam ser transportadas por balsas de buriti, canoas vela, barcas, barcaas e vapores atravs do rio Parnaba e/ou por trem at o Porto de Amarrao. Antes da navegao a vapor, vrios tipos de embarcaes trafegavam pelo rio Parnaba e o litoral piauiense: pataxs, iates, alvarengas, sumacas, escunas, brigues, fragatas, bergatins, galeras, canhoeiros e vasos de guerra: todos utilizavam vela. A navegao a vapor teve a forte concorrncia dos barcos que faziam o comrcio ao longo do rio Parnaba. Eram botes, barcas e balsas que percorriam o rio de Amarante at Parnaba, transportando algodo, sola e passageiros, trocando seus produtos por gneros nacionais e estrangeiros vindos pelo litoral (NUNES, O., 2008, p.154).
136 No dia 4 de maro de 1873, comeou a funcionar o farol da Amarrao, mandado construir pelo Ministrio da Marinha em 1872, sendo incumbido dos trabalhos de construo e montagem do aparelho o engenheiro piauiense Newton Csar Burlamaqui. O farol est situado a 8 milhas de distncia da barra da Amarrao, sobre os rochedos denominados Pedra do Sal, no oceano, em distncia de 3 quilmetros de terra, em frente a Ilha Grande de S. Isabel, em Lat. 2 4919. Long. 1 2612. E. do meridiano do Rio de Janeiro, e eleva-se pouco mais ou menos 17,60 metros acima do nvel do mar nas guas mdias. O farol de ferro, tem uma casa para habitao dos faroleiros e est situado em tima posio, pois domina as barras da Amarrao, Canrias e Cajueiro, das seis por onde se lana no mar o majestoso Parnaba. 107
O escoamento de produtos vindos de cidades do Interior do Estado, 137 via porto martimo, propiciaria uma comercializao mais vantajosa, tornando-os ainda mais competitivos, tanto nos mercados nacionais quanto nos internacionais. Ao analisar as condies de funcionamento do porto martimo, Eloi Portela Nunes 138
assinalou que ele funcionava precariamente como base de recebimento e distribuio de produtos e mercadorias mas que, se reestruturado e interligado a uma rede de transporte hidrovirio e ferrovirio, permitiria o escoamento de produtos de forma eficiente e a baixo custo. Como mencionamos, a construo de um porto martimo em Amarrao, apesar de ter sido muitas vezes anunciada, desde o incio do sculo XIX, nunca foi efetivada. Porm, isso no quer dizer que o porto no funcionava; neste sentido, para esta pesquisa, puderam ser encontradas, na literatura consultada, algumas informaes que descrevem como operava o porto de Amarrao. Os navios de preferncia entravam em Parnaba pela barra das Canrias, mais prxima do Porto de Parnaba, a apenas cerca de duas lguas, enquanto Tutoia ficava a uma distncia de 20 lguas. Entretanto, os navios que chegavam a Canrias ancoravam distante da terra. O trecho a percorrer at a cidade, que ficava afastada do litoral, na sua maior parte se fazia em montarias difceis, o que se agravava na poca invernosa (BARBOSA,1986, p.56). Durante o inverno, era usado o Porto de Amarrao, e, no vero, o Porto de Tutoia. Quando os navios fundeavam em baa abrigada dos ventos e das vagas, com maior profundidade. Os rebocadores saam da Parnaba, depois da preamar, com as alvarengas carregadas de produtos a serem embarcados, o que se efetuava depois de vrias horas de viagem, algumas vezes alcanando 24 horas de percurso, devido distncia daquele porto cidade de Parnaba, de aproximadamente 90 milhas. No Porto de Lus Correia, antiga Amarrao, em face de menor profundidade, os navios fundeavam alm da barra, cerca de 3 milhas da costa, onde aguardavam rebocadores e alvarengas. Esse porto funcionava principalmente no inverno, quando os ventos gerais diminuam e o mar se tornava mais calmo, passando a oferecer mais segurana. Uma das grandes vantagens deste porto sobre o de Tutoia, alm de ser genuinamente piauiense, era a da pequena distncia deste at a cidade de Parnaba, isto , 14 quilmetros, fazendo-se o percurso em pequeno espao de tempo (Ibid., p. 100). Alm da bibliografia pesquisada, tambm questionamos a Marc Theophile sobre o funcionamento do porto martimo no tempo de seus tios e de seu pai. O
137 O comrcio por terra era feito em cavalos, burros, jumentos e guas. 138 O entrevistado Eli Portela Nunes engenheiro de Portos e Vias Navegveis. 108
entrevistado respondeu que apesar de no ter uma memria muito precisa sobre o que falavam o seu pai e tios a respeito da navegao do incio do sculo, sabia que o Porto de Amarrao tinha sido utilizado sem grandes problemas, por possuir calado (profundidade das guas) apropriado s embarcaes que chegavam e partiam de Parnaba no perodo, pois estas eram de menor porte, tanto no trfico internacional como no trfico costeiro. Afirmou, no entanto, que, medida que os navios da navegao transocenica e de cabotagem cresciam em calado e o Porto de Amarrao ia assoreando, mais dificuldade trazia navegao. Por sua vez, Iweltman Mendes (2008, p.19) assinala que essa situao ficou agravada aps o naufrgio do navio Ocidente: 139
Em tempos mais recentes, raramente os navios da Booth ou da Lamport aportavam em Lus Correia, e lembro-me do que talvez tenha sido a ltima vez em que isto ocorreu, quando os navios ficavam fora da barra e os rebocadores tinham que levar as embarcaes (alvarengas) at o costado dos navios para que o carregamento se efetuasse; nisto eram usados os guindastes do navio. Quando os navios eram da Lamport, alm do pessoal designado ao carregamento, ia um funcionrio nosso, que falava ingls e seria o intermedirio entre o capito do navio e o pessoal do carregamento, e tambm para atender as solicitaes de fornecimento de mantimentos, socorros mdicos e o que fosse mais de necessidade. Lembro-me que o nosso funcionrio na ocasio era o Pacheco, que depois veio a ser Fiscal Federal. Contou-me que havia sido um embarque inusitado, dada a agitao do mar, que levava as alvarengas para cima e para baixo ao sabor das ondas, mas com grandes elevaes e quedas; disse-me o Pacheco: olha, foi uma coisa horrvel a tal ponto que vi alguns dos nossos rudes estivadores chorando, apavorados. Depois dessa ocasio, nunca mais soube de navios aportando em Lus Correia, e isto foi no correr dos anos 50 do sculo passado (Id. ibid.). Para a operacionalizao das atividades do porto havia a estiva terrestre e a martima. 140 Do caminho para o cais do porto, at a metade da rampa, funcionava a terrestre; e, dessa metade da rampa at a embarcao, a martima. Havia assim duas estivas, e a relao das firmas com elas no era amena. Eram pagas por tonelagem, e havia um supervisor pago pelos demais. A estiva que seguia na embarcao era parte da estiva martima. Esta era paga pela empresa que fazia o transporte da carga de Parnaba para o porto martimo. Dentro dessa fora de
139 O Ocidente, navio da Companhia de Navegao a Vapor do Maranho, que fazia a rota So Luiz Tutoia Amarrao, encalhou no dia 11 de maro de 1909, quando o navio quebrou em funo das mars, dos fortes ventos e pelo peso da mquina e da caldeira, levando sua perda total, segundo a companhia, por ser inadequada a Barra de Amarrao para o uso como porto comercial. 140 As informaes sobre a estiva e o funcionamento do porto martimo foram dadas por Marc Theophile em conversas e trocas de email. 109
trabalhadores no havia diferenas hierrquicas formais, mas de fato os encarregados privilegiavam os mais dedicados e competentes nos seus ofcios. No havia estrangeiros nos trabalhos braais. Estes trabalhavam somente nos escritrios, com hierarquia e funo definidas, como, por exemplo, nos setores de correspondncia, de venda, gerncia e direo de departamentos. Com o tempo, o Porto de Amarrao assoreou, e os navios passaram a aportar regularmente no Porto de Tutoia, cujo acesso por braos do delta do rio Parnaba obrigava o contorno da Ilha do Guerind, que era muito grande e tornava a navegao muito demorada e mais perigosa, pois havia uma pequena parte de mar aberto. Para resolver esse problema, foi construdo o canal de Guerind, que, segundo Marc Theophile, consumiu cerca de duzentos e noventa mil contos de ris e foi custeado pelo comrcio de Parnaba. Na Casa Marc Jacob, assim como em outros estabelecimentos comerciais que trabalhavam com importao e exportao, medida que o comrcio se desenvolvia, passava a ser realizado via navegao fluvial at o Porto Salgado, o que demandou dessas empresas a aquisio de rebocadores, cutters e alvarengas. Alguns deles vinham da Inglaterra. Citamos, no caso da Casa Marc Jacob, o Parnaba, que era o maior navio do rio Parnaba, o Amrica e a lancha brasileira (MARQUES, 2008). 141 Essas embarcaes eram utilizadas no transporte de mercadorias at o Porto Salgado, conforme pode ser observado na movimentao retratada na imagem a seguir (Figura 19).
141 A Empresa Parnaibana de Marc Thephile Jacob operava em 1935 com os vapores: Amrica, construdo na Inglaterra por James Pollock Sons Co o vapor era de ferro e ao e foi lanado ao mar em 1912, sendo adquirido pela Empresa em 31 de maro de 1939; o Parnaba, anteriormente batizado como Manoel Thoms e que pertenceu firma Oliveira, Pearce & Cia, fundada em 1915, de Moiss Ferreira Castelo Branco, e rebatizado para Parnaba quando foi adquirido pela firma Marc T. Jacob; as lanchas Brasileira e Colmbia, ambas construdas em Londres (Inglaterra) por R. W. Brand e James Pllock Sons Co., e a lancha rio Poty e a barca de ferro Magu. 110
O Porto Salgado ou Porto fluvial das Barcas, localizado ao longo do rio Igarau, que dava acesso direto a Parnaba, era o ancoradouro das numerosas embarcaes, vela ou a remo, com ou sem cobertura (canoas, botes, jangadas, igarits balsas de buriti) (MIRANDA, 1938, p.135); 142 barcas, barcaas, gabarras (CHAVES, 1998, p. 168), 143 que, por intermdio do rio Parnaba, ligavam Parnaba a outras cidades do Piau. Pelo Porto Salgado chegavam as barcaas cobertas de folhas secas de babau, trazendo para Parnaba variados produtos. Ficava localizado no incio da Rua Grande, atual Getlio Vargas, que foi a principal artria da Vila de Parnaba e depois cidade. A atividade no porto era ininterrupta. Trabalhavam-se 24 horas; vrias turmas se sucediam, e muitos eram os empregados. Havia os que trabalhavam na classificao dos produtos adquiridos (cera de carnaba, peles silvestres, couros, peles etc.); havia os que eram usados para estivar os sacos dentro dos armazns; os que tinham a funo de aplicar as marcas da empresa e do destinatrio; os encarregados de fazer com tinta as marcas em chapas de folhas de flandres; os que
142 Balsas feitas de talo da folha da palmeira de buriti, abundante no alto Parnaba, chegavam a transportar, na descida do rio, muitas toneladas de cargas, com a maior segurana possvel. Finda a viagem, a balsa era desmanchada e os talos vendidos para a produo de cercas, que duravam de 3 a 4 anos, quando benfeitas. 143 Chaves fala das gabarras que enfrentavam a forte corrente do rio Parnaba: caminhando 10 horas por dia, e nada de noite, percorrem 130 lguas em menos de 6 dias, o que regula mais de sete milhas por hora; navegam essa mesma distncia rio acima em vinte e tantos dias. Figura 19 - A descarga no Porto Salgado. Fonte: Almanaque da Parnaba (1928).
111
levavam os sacos at os caminhes, 144 quando o transporte se fazia nesses veculos. Dentre esses trabalhadores eram escolhidos os vigilantes para os prdios, os encarregados de empilhar as cargas ao longo do rio e depois acompanh-las at o porto de embarque martimo Tutoia, ou s vezes ao largo do Porto de Luis Correia. Nas alvarengas iam homens da estiva, cuja funo era colocar as cargas nos dispositivos (alas) para serem guindadas para o navio, mediante o uso dos guindastes nestes instalados.
Conforme visto anteriormente, apesar de Parnaba contar com trs portos, 145
um fluvial e dois martimos, nas suas imediaes Porto das Barcas ou Porto Salgado, Porto de Amarrao e o Porto de Tutoia (MA), nenhum deles operava de forma realmente eficiente nem conveniente como porto comercial.
144 Este servio era contestado sempre pela estiva terrestre, que dizia ser dona exclusiva dessa tarefa. 145 Entendemos porto como o lugar de guas tranquilas (calmas) para atracar navios e descarregar as mercadorias no cais, guarnecido de armazns. Figura 20 Porto das Barcas. Fonte: Almanaque da Parnaba (1928). 112
O Porto fluvial das Barcas funcionava como centro de recebimento e distribuio das mercadorias vindas das cidades ribeirinhas, localizadas ao longo do rio Parnaba, mas necessitava, para completar a cadeia comercial nacional e internacional, de uma interligao martima. Essa interligao se dava ora por Amarrao, ora por Tutoia. Para seu bom funcionamento, era preciso manter as boas condies de navegabilidade do rio, deixando-o desobstrudo ao longo do seu curso, fazer constantemente a dragagem do leito, livr-lo de pedras, bancos de areia e evitar o desmatamento de suas margens. Quanto aos barcos e navios que vinham pelo mar para o Porto das Barcas, esses tinham que ser pequenos, de baixo calado. Para entrar no porto era preciso fundear nas proximidades e esperar a mar alta. O navio passava a barra e entrava no rio, atracava no cais l dentro, descarregava a mercadoria, reembarcava, reabastecia e s quando a mar subia novamente, depois de seis horas podia sair. Era preciso ter tcnica e experincia para executar essas manobras, da a importncia de a embarcao ser conduzida por um prtico. O Porto martimo de Amarrao, utilizado somente no perodo do inverno, no permitia a entrada de barcos e navios de grande calado, j que no era possvel atrac-los, devido ao risco de encalhar nos bancos de areia. 146 Tinham que fundear em mar aberto, a trs milhas, em mdia, alm da barra, e aguardar por rebocadores 147 e alvarengas que vinham buscar a carga. Em uma situao de mar agitado, vagas altas e ventos fortes, as alvarengas ficavam revoltas. Esse porto, para ser eficiente, precisaria permitir o acesso direto de navios de maior calado, possibilitando assim o escoamento da produo piauiense de forma eficiente. Com o incremento do comrcio nacional e internacional, surge a necessidade de navios maiores, com mais capacidade de transporte de cargas. Era preciso, portanto, um porto com maior profundidade. A questo no era que no houvesse porto em Amarrao; o que no havia era porto com capacidade de ancoragem de navios de grande calado.
146 Foi o caso do navio Ocidente da Companhia de Navegao a Vapor do Maranho, que fazia a rota So Luis Tutoia Amarrao e encalhou em 11 de maro de 1909. O navio quebrou devido aos ventos fortes e pelo peso das mquinas e caldeiras. O acidente levou a Companhia Maranhense a fazer reiterados protestos contra o uso do Porto de Amarrao, pela inadequao de sua barra. Outro desastre de grande repercusso foi o do vapor Cubato, da Lloyd Brasileiro, que encalhou em 10 de setembro de 1919. Iweltman Mendes (2008, p.19). 147 Os rebocadores, alguns construdos na Inglaterra ou Alemanha, iam frente puxando as alvarengas, chatas de ferro ou barcas/barcaas de madeira que levavam a mercadoria. 113
A utilizao do Porto de Tutoia, situado em uma baa calma e funda, tambm era problemtica, haja vista que este era subordinado ao Maranho e distava noventa milhas de Parnaba. A sua utilizao representava o encarecimento do frete e das mercadorias, devido longa distncia, alm de gastos com estiva e armazenagem. A sada de mercadorias por esse porto acarretava o pagamento indesejvel de tarifas e impostos alfandegrios ao governo do Maranho. Com a expanso do comrcio, o incremento da atividade exportadora e importadora e a utilizao da navegao a vapor que passou a permitir a manuteno de cronogramas regulares , a necessidade de um porto competente foi cada vez mais imperativa. Na descrio de Pennington (2009, p.56), o vapor era uma: Verdadeira cidade flutuante, um enorme investimento de capital, e, devido ao desenvolvimento constante de novas invenes, tem vida curta. Projetado para uma determinada rota de servio, nem sempre pode ser utilizado para outra finalidade. Por essa razo, mister ser operado com o maior despacho de carga, nos reparos e embarque de suprimentos. Para que o Porto de Amarrao fosse realmente eficiente e suportasse a expanso comercial da cidade, era preciso montar e manter uma infraestrutura que permitisse a passagem de navios de vrios tamanhos e mar de qualquer hora (PENNINGTON, 2009, p.56); armazns para guardar as cargas frente das docas, guindastes e outros equipamentos para facilitar o embarque e desembarque rpido das mercadorias (Id. ibid.). A capacidade porturia deveria passar por um aperfeioamento contnuo para poder acompanhar o acelerado desenvolvimento comercial da cidade. O porto deveria suportar a expanso comercial, o que no aconteceu devido s dificuldades tcnicas j apontadas. Alm disso, a estrutura porturia deveria funcionar em sintonia com o transporte ferrovirio e at mesmo o terrestre. Faltavam, para que isso se concretizasse, as condies tcnicas e polticas que favorecessem essa estrutura. O investimento proporcionado pelo comrcio no foi suficiente para fomentar as condies que o mercado capitalista mundial passara a exigir. A economia parnaibana ficou na dependncia de maiores investimentos estatais que no ocorreram, tendo por isso sacrificado o comrcio que havia sido a base de sua economia ao longo da histria. 114
Foi assim, de forma ineficiente, que todos esses portos funcionaram at a construo das estradas de rodagem. Estas, quando construdas, passaram a representar economia, comodidade um servio porta a porta, o que no acontecia com as mercadorias enviadas via porto, segurana pelo fato de no haver tantas avarias, suplantando o transporte fluvial e martimo, e retirando de foco, por muitas dcadas, as discusses a respeito da importncia da construo do Porto de Amarrao. A estrutura porturia acima descrita tinha por finalidade permitir o trfego regular de diferentes tipos de embarcaes que faziam a rota at a cidade de Parnaba, fomentando o comrcio. Pelo Porto fluvial chegavam e saam os produtos da pauta de exportao do Piau que participavam do comrcio mundial a princpio os produtos da pecuria, o charque, couros, peles, gado para corte; depois produtos agrcolas como algodo e arroz, seguidos pelos produtos do extrativismo vegetal a borracha de manioba, a cera de carnaba e o coco babau. Enfatize-se que, a partir de 1859, barcos a vapor, pertencentes a companhias de navegao, particulares ou do governo, comearam a navegar pelo rio Parnaba regularmente. Em Parnaba, ao longo de dcadas, operaram no porto fluvial (Porto Salgado), alm da navegao tradicional j mencionada, vrias empresas de transporte fluvial, alm das de cabotagem e as que operavam nas rotas internacionais. O trfico fluvial do rio Parnaba, em 1917, era assim organizado, segundo Nunes (apud SANTANA, 1995, p. 98) e Marques (2008): Companhia de Navegao a Vapor no rio Parnaba: com 3 rotas: norte (de Teresina a Parnaba), sul (de Teresina a Floriano) e Tutoia (de Parnaba a Tutoia) Fundada em 04.10.1858, fez sua viagem inaugural em 24.11.1858 com navegao entre a Capital e Parnaba, com paradas em Unio e Repartio (Luzilndia). Em 1908 faziam quatro viagens de Teresina a Parnaba nos dias 5, 12, 20 e 28 de cada ms e duas de Teresina a Floriano nos dias 7 e 22 de cada ms (MARQUES, 2008). 148
Empresa Fluvial Piauiense: o principal armador nessa navegao era a famlia Nogueira, e navegava de Floriano at o alto Parnaba e o alto Balsas. Eram embarcaes menores, tanto os rebocadores como as alvarengas. Operava com 3 linhas: alto Parnaba (de Uruu a Floriano), baixo Parnaba (de Uruu a Vitria), rio Balsas (de Uruu a Santo Antnio de Balsas).
148 A Companhia possua diversos vapores, lanchas e barcos, entre eles: Teresinense que em 14 de julho de 1906 conduziu o presidente da Repblica Afonso Augusto Moreira Pena de Teresina a Tutoia (MA); Parnaba, Uruu, Piau, Igarau, Santo Estevo, Amarante, Conselheiro Junqueira, Conselheiro Paranagu etc.; lancha: Poti; barcas: Boa Esperana, Canavieiras, Unio, Leviat, Tutoia, etc. 115
Navegao Fluvial LTDA. - foi uma empresa criada pelas empresas sediadas em Parnaba que tinham sua prpria navegao fluvial, numa tentativa de evitarem prejuzos maiores do que os que j estavam sofrendo decorrentes: a) da legislao social que dava grande poder de negociao de salrios aos embarcadios; b) do assoreamento do rio Parnaba, que obrigava as empresas a fazerem grandes gastos sempre que a navegao retornava a Parnaba, para consertar os cascos; c) da reduo dos estoques de materiais para os reparos e reduo do pessoal destinado a tais servios; d) da melhoria do atendimento das exigncias condicionantes de subvenes, que acabaram por no serem suficientes para a sobrevivncia da empresa. As embarcaes navegavam do litoral at Floriano e Balsas (NUNES apud SANTANA, 1995, p. 98). As outras trs companhias procuravam manter escalas mensais regulares de seus navios. As cargas transportadas eram muito grandes, pois, alm de babau, tucum, algodo, couros secos de boi e das borrachas nativas (que eram os gneros objeto do comrcio das maiores firmas e destinados sobretudo s indstrias do Sul do Brasil e ao Exterior), havia tambm a produo de arroz, farinha, goma de mandioca e outros produtos, cujo consumo era preponderantemente do Nordeste brasileiro. Outra fonte de pesquisa consultada, o Livro do Centenrio de Parnaba, tambm fornece um quadro das companhias que operavam na cidade (BEMBEM, 1944, p.64): a navegao do rio Parnaba compunha-se de dezesseis empresas organizadas e dois convnios: Unio Fluvial Ltda., de Parnaba e Empresa Fluvial Ltda., de Floriano. Sendo que o total das embarcaes dessas empresas se eleva a 130. Quem detalha Marques (2008): Unio Fluvial Ltda. - fundada em 1935 por Merval Gomes Veras, que fretava barcaas para o transporte de cargas para Tutoia e Amarrao (atual Luiz Correia). Sua sede era na Rua Dr. Joo Pessoa, n. 2, a atual Av. Pres. Vargas. Era composta pelas firmas Delbo Rodrigues & Cia, Roland Jacob, Franklim Gomes Veras & Cia, Moraes & Cia e Fernando Jos dos Santos; depois a sociedade passou a ser composta pelas firmas Poncion Rodrigues & Cia, Narciso Machado & Cia e Rodrigues & Cia. Possua os rebocadores Amarantina, Brejo, Brasileira, Floriano, rio Long e Teresina, e mais trinta barcas de madeira, cinco de ferro com 2.000 toneladas lquidas de espao que faziam a linha Parnaba a Floriano. Era gerente Amadeu Ferreira de Carvalho. A empresa era consignatria da Aliana Fluvial Ltda, de Floriano, no transporte de cargas e passageiros. Fazendo a ligao com os outros portos do Brasil, havia uma conexo de vapores que subiam e desciam o Parnaba, com os navios de companhias de navegao martima. Nos portos de Tutoia e Amarrao, o movimento era intenso (NUNES, O., 1972 apud NUNES, C., 1995, p. 99). Eram as seguintes as companhias nacionais que operavam sob o sistema de cabotagem: 116
- Lloyd Brasileiro p/n - Agente: Joo Cncio Rodrigues. - Companhia Nacional de Navegao Costeira da Organizao Henrique Lage- Agentes: Franklin Vras & Cia. - Companhia Comrcio e Navegao - Agente: Dcio Lobo. - S. N. A. P. P. - Agente: C. S. Vras. Fazia, sobretudo, o transporte de sal, que era possivelmente mais destinado ao norte do pas (Belm, preponderantemente), mas podia subir o Amazonas. Convm enfatizar que a navegao de longo curso em Parnaba data do incio da colonizao do Brasil. Relacionando a navegao a vapor no rio Parnaba ao movimento desta navegao, registrou-se, no movimento porturio, em 1859, por exemplo, a entrada de trinta e sete navios, sendo vinte e sete do Maranho, nove do Cear, e um de Pernambuco, com quatro mil e setenta e cinco toneladas; vinte e dois navios nacionais, sendo dezoito do Maranho e quinze do Cear; e a entrada de quatro navios ingleses, provenientes de Liverpool com mil duzentos e trinta e oito. Em 1860, registrou-se a entrada e sada no Porto de Parnaba de vinte e trs navios ingleses destes, cinco eram de Liverpool (MARQUES, 1998, p. 43). A partir das duas primeiras dcadas do sculo XX, incentivadas pelo governo estadual, muitas empresas de navegao se instalam em Parnaba e utilizam regularmente o Porto de Amarrao (MENDES, 2008, p.18). 149 A Lei n. 229, de 21 de junho de 1900, ao conceder subveno anual de dezoito mil contos de ris companhia que fizesse a ligao Recife-Amarrao, levou a Companhia de Navegao a Vapor do Maranho a firmar contrato com o governo do Piau, em 1901, em que se comprometia a fazer seis viagens mensais a Amarrao (GANDARA, 2008, p. 246). Outras companhias nacionais e estrangeiras se juntaram a ela. Para suas operaes, abriram escritrios e contrataram agentes em Parnaba, conforme discorre Iweltman Mendes (2008, p.18): Escritrios e agentes de grandes empresas de navegao martima comeam a se instalar em Parnaba. As inglesas Red Cross Line e a Booth Line, as alems Hamburg Sd e HAPAG (Hamburg-Amerika Linie); a Portuguesa Transportes Martimos do Estado e as nacionais Lloyde Brasileiro, Costeira de Navegao (Companhia) Pernambucana e
149 Em 1903, por presso da bancada piauiense na Cmara e no Senado, o Ministrio da Fazenda baixou um ato proibindo a entrada de navios de longo curso no Porto maranhense de Tutoia, por prejudicar os interesses econmicos do Piau, tendo em vista que os recursos dos impostos alfandegrios ficavam para os cofres do estado vizinho. Paulatinamente, os efeitos desse ato comeam a ser observados, como a abertura de agncias de grandes empresas de navegao em Parnaba. 117
(Companhia) Maranhense, todas passam a operar regularmente em Amarrao nas duas primeiras dcadas do sculo XX. Na navegao de longo curso, as companhias estrangeiras, operando para o Exterior, seguintes: - Booth & C. (London) Ltd. - Agentes: Booth & C. (London) Ltd. - The Northern Pan American Line - Agentes: Mavignier & Cia. - Lamport & Holt Line LTD. - Agente: Roland Jacob. - Moore McCormack Line - Agentes: Narciso, Machado & Cia. Comeando pelas companhias estrangeiras, temos a Booth Line. Surgiu como uma pequena empresa na cidade de Liverpool, Inglaterra, como Alfred Booth e Companhia, fundada em 1863, pelos irmos Alfred e Charles Booth. A casa comercial foi constituda principalmente para a importao de couros nos Estados Unidos da Amrica, e contava com escritrios em Liverpool e Nova York. A razo da escolha dessa mercadoria se deveu expanso econmica dos Estados Unidos da Amrica, que, devido ao rpido crescimento da populao, criou a demanda por matrias-primas que no podiam ser obtidas a partir de fontes domsticas. A Booth Line foi, como apontou Pennigton (2009, p.141), uma das mais importantes, no s pela navegao, mas tambm pelas ramificaes e interesses em outras reas de negcios; foi a empresa de navegao que fez a ligao entre Manaus e a Europa, e tambm a Amrica do Norte, de 1882 at os meados da dcada de 1980 (Id. ibid.). Em 1866, j como Alfred Booth & Co (Id. ibid.), 150 passa a operar com o Nordeste do Brasil e o Amazonas. Ao longo dos anos, a empresa sofreu vrias alteraes. Em 1881, formou-se a Booth Steamship Co. Em 1901, a Booth e a Singlehursts Red Cross Line foram amalgamadas em uma nica companhia denominada Booth Steamship Co. A companhia comeou a atuar em Parnaba, em 1907 (MENDES, I., 2008, p. 57), e teve como agenciador o Sr. Joaquim Antnio dos Santos. Entre os navios da
150 Segundo informaes dadas por email por Pennigton, a famlia Booth era inicialmente de pequenos e mdios comerciantes ingleses, costurados em torno da f Unitariana, o que lhes reforava o lao familiar associado aos negcios. Costumavam casar-se entre si, e, semelhana dos Judeus, mantinham os recursos dentro da prpria famlia. mister lembrar a prerrogativa da presena da f protestante como elemento auxiliar na consolidao do capitalismo. No caso dos Booth, o que buscavam eram oportunidades de negcios na pequena escala possvel a eles, j que no dispunham de capital substancial para investimento. 118
Booth que operavam com o transporte de mercadorias de Parnaba no final do sculo XX, citamos o Ambroise, Cearense, Grangense e Teresinense. 151 A agncia da Companhia inglesa Booth Line operou em Parnaba de 1 de junho de 1913 at os anos 1960 (Ibid., p.38). 152 Tinha seu escritrio/residncia localizado na Rua Grande, no quarteiro vizinho ao prdio da Casa Inglesa e "X" com o prdio da Casa Grande da Parnaba. A companhia trabalhava tanto com a navegao de cabotagem pelos portos do Norte e Nordeste como na navegao de cabotagem entre Parnaba e Tutoia. Alm dos servios de alvarengagem e do agenciamento das cargas de exportao, a Booth Line mantinha uma doca seca que servia para o conserto de rebocadores e alvarengas de ferro utilizadas no transporte fluvial e martimo. Marc Theophile informou que: A Booth Line em Parnaba tinha docas para os reparos das embarcaes fluviais, alm de embarcaes prprias para o transporte das cargas de exportao, e que faziam o transporte de Parnaba para Tutoia e, s vezes, para Luiz Correia. A companhia tinha um rebocador e usava outro para levar as alvarengas para Tutoia este pertencia ou firma Bem Hur Veras ou firma Delbo Rodrigues (a uma das duas, pois, para o servio de alvarengagem para Tutoia, s havia 2 rebocadores que eram mais possantes e de maior calado do que os que navegavam no rio Parnaba). Outras companhias estrangeiras atuavam em Parnaba atravs da Booth Line, segundo Iweltman Mendes (2008, p.9): Alm de seu prprio escritrio, a Booth Line tambm representava outras companhias de navegao de longo curso, como as alems Hamburg- Sdamerikanische Dumpfschiffahats-Gesellschaft e a Hamburg Amerika Linie. A representao se fez por pouco tempo (1913-1914), em funo do rompimento das relaes diplomticas entre Inglaterra/Alemanha e a declarao de guerra do Brasil (1917) ao Imprio Alemo, durante a Primeira Guerra Mundial (MENDES, I., 2008, 9). No perodo de entre guerras (1918-1939), a Booth, em Parnaba, tambm agenciou outra poderosa empresa alem, a Norddeutscher Lloyd Bremen. Outras companhias de navegao transatlntica representadas ou subsidirias da Booth & Company (London) Limited com escritrio em Parnaba e escalas nos portos de Amarrao e Tutia foram: A holandesa Royal Netherlands Seteamship Co., a Mississipi Shipping Company e a Booth American Shipping Corporation (Id. ibid.).
151 Esses navios so citados nos livros Dirio da Casa Comercial Marc Jacob. 152 Em janeiro de 1947, os ingleses fecharam seu escritrio em Parnaba, em funo das dificuldades de navegao do rio Parnaba, da obstruo dos canais fluviais que levavam ao Porto de Tutoia e da possibilidade de utilizao do Porto de Amarrao somente nos meses de calmaria dos ventos, de maro a julho. 119
A segunda companhia relacionada no Livro do Centenrio da Parnaba a The Northern Pan American Line, cujo agente era a Mavignier & Cia. agenciadora com o maior nmero de representaes de companhias que ligavam Amarrao/Tutoia Costa Atlntica dos Estados Unidos. Informa Iweltman Mendes (2008, p.60) que ela representava a Westfall-Larsen Company, a American Republics Lines e a Cosulich Line. A terceira companhia de navegao a vapor relacionada a Lamport & Holt Line Ltd, de Liverpool que, a princpio, controlava as rotas de Rio de Janeiro e Pernambuco (PENNINGTON, 2009, p. 147). Em Parnaba, a Lamport & Holt tinha como agente Roland Jacob. Na opinio de Marc Theophile, a representao foi uma consequncia do volume de cargas que a Casa Marc Jacob produzia. Ele intui que a gerncia da Booth em Parnaba tenha sugerido aos seus superiores confiar empresa a representao da Lamport & Holt. 153 O representante tinha a funo de: Divulgar para os embarcadores as escalas dos navios e mudanas que ocorressem; angariar a carga; providenciar para que os embarcadores tivessem a carga pronta para o carregamento nas alvarengas dentro do tempo da escala do navio; acompanhar as embarcaes at o Porto de Tutoia (ou Luis Correa, esporadicamente), zelando para que no houvesse extravio na carga nem danos por gua ou outra ocorrncia (gua dos rios, do mar ou de chuva); fazer as despesas da armao do navio (compra de mantimentos, suprimento de gua, pagamento da estiva usada no carrego das cargas e tudo o mais que fosse necessrio); servir de intrprete entre o Comandante do barco e as autoridades da Alfndega e da Marinha; providenciar a soluo de problemas ocasionais com a tripulao (problemas de sade, hospitalizaes, problemas familiares que necessitassem de alguma providncia a ser tomada desde o Brasil). Essas despesas, juntamente com a comisso devida ao representante, eram pagas por meio de um relatrio enviado ao gerente geral da empresa no Rio de Janeiro (Id. ibid.). A Lamport & Holt no tinha funcionrios em Parnaba. Todo o servio da empresa era feito pela Casa Marc Jacob, que era remunerada com uma comisso sobre o valor do frete das mercadorias embarcadas. Eles tambm recebiam de volta os valores gastos na escala do navio. Sobre os navios e os fretes, Marc Theophile informa: Os navios da Lamport eram pequenos, tinham umas 12 cabines para passageiros. No havia muitos passageiros, pois, como o navio parava em muitos portos antes de tomar o rumo dos portos europeus, a viagem era muito demorada. Algumas rotas incluam a subida no rio Amazonas at o
153 A firma inglesa Hamport & Holt foi fundada em 1845. Em 1911, os negcios da linha foram transformados em uma empresa pblica, a Lamport & Holt Limited. 120
alto Solimes no porto de Iquitos, no Peru. O pequeno calado deles permitia a entrada em portos como o de Tutoia e a navegao no Solimes. Na Amaznia, carregavam preponderantemente madeiras e, s vezes, castanhas, mas o carregamento destas implicava na ida de operrios para revirarem as castanhas o tempo todo, de forma a evitar a formao de uma substncia txica que torna o produto imprestvel para o consumo humano. Do Piau, as cargas eram de: espichados de boi (couros secos ao sol), cera de carnaba, sementes oleoginosas, resinas vegetais (jatob, angico), borracha de manioba, e, em certo momento, goma de mandioca, crina animal, peles de cabra e carneiro [...] (PENNINGTON, 2009, p. 147). A Lamport & Holt e a Booth Line tinham como objetivo o servio dos portos da Europa, do Oriente e do Norte da frica, na rea do Mediterrneo. A frica do Sul e o Leste da costa africana, para onde tambm se fazia embarques, eram atendidos ou por reembarques de Marselha ou por navios que atravessassem o Canal de Suez. Segundo Marc Theophile, a Casa Marc Jacob S.A., h alguns anos, exportava para mais de vinte e oito pases, e muitos outros exportadores de Parnaba tambm tinham um volume de compradores bastante expressivo em muitas praas do Exterior. A empresa americana Moore Mc Cormarck 154 iniciou suas operaes para o Brasil em 1917. Fazia, sobretudo, a navegao para as Amricas, tanto para os portos da costa Leste como da costa Oeste. Entre os portos brasileiros, fazia escala no de Amarrao, e tinha como representante em Parnaba a firma Narciso Machado & Cia. Outras informaes sobre essas companhias de navegao foram dadas por Marc Theoplile, conforme segue: O volume de cargas era muito grande, assim como eram grandes os armazns que ainda hoje existem em Parnaba, margem do rio Iguarau Eles ficavam cheios de mercadoria destinada exportao para o Pas e Exterior. As cargas eram cobertas por encerados e vigiadas por trabalhadores o tempo todo. Quase sempre esse vigia acompanhava a carga at o embarque nos navios alm de evitar roubos, ele costurava os sacos que se rompessem na viagem; era um faz-de-tudo. O volume das cargas movimentadas e transportadas dava para atender o interesse de todos os comerciantes, e uma prova disto era, segundo Marc Theoplile, a harmonia que reinava no comrcio parnaibano.
154 Criada em 9 de julho de 1913 por McCormack e Moore, a firma trabalhou, a princpio, com a incorporao de navios, e mais tarde com frota prpria. Em 1938 foi organizada a Moore - McCormack Lines, Inc. que operava a American Scantic Line que atendia a regio do Mar Bltico e a Mooremack Lines que atendia a Amrica do Sul. 121
Ao lado das companhias de navegao nacionais e estrangeiras, surgem outras instituies relacionadas s atividades porturias. o caso da Inspetoria Federal de Viao Martima e Fluvial do Piau, que dava instrues para a execuo do servio de carga e descarga, recebimento e entrega de malas do correio e embarque e desembarque dos passageiros, de acordo com as instrues da Inspetoria Federal de Viao Martima e Fluvial no Piau (BARBOSA, 1986, p.77). Com base em Marques (1998, p.75), em razo do intenso movimento porturio, foram criadas entidades ligadas aos martimos, tais como: o Instituto e Aposentadoria e Penses dos Martimos, a Federao dos Martimos e a Lloyd Sul Amrica Companhia de Seguros. Em 1941, surgiram em Parnaba os seguintes sindicatos relacionados navegao, e que tiveram apoio da Associao Comercial de Parnaba (Ibid., p. 77): - Sindicato dos oficiais de mquinas dos motoristas e dos condutores em transportes fluviais no Estado do Piau. Fundado com 67 associados inscritos. - Sindicato dos contramestres, marinheiros, moos e remadores em transportes fluviais no Estado do Piau. Fundado, com 920 associados. - Sindicato dos foguistas, com 145 associados. - Sindicato dos prticos, anais e mestres de Cabotagem, com 124 inscritos. - Associao profissional dos operrios e carpinteiros navais, com 143 associados. A estiva sindicalizada e a legislao trabalhista eram motivo de queixa dos comerciantes. A lei ferroviria, no que concernia estiva, obrigava o uso de trs grupos de estivadores: um para a descarga do gnero do trem para o cho, outro do cho para o veculo transportador caminho e um terceiro para a descarga do caminho no armazm do destinatrio, o que tornava essa forma de transporte antieconmica, pois no caminho havia um carrego na origem (onde no havia fiscalizao da estiva) e a descarga no armazm do destinatrio. Os exportadores e industriais no podiam ter a sua estiva interna, sendo obrigados a utilizarem a estiva sindicalizada. O mesmo se dava com a estiva terrestre e martima no transporte fluvial e de exportao. A burocracia representava um alto custo no manuseio dos materiais.
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2.7 A Estrada de Ferro Central do Piau A despeito do impulso provocado no desenvolvimento econmico do Piau, pela instalao da navegao fluvial no rio Parnaba, o intenso movimento comercial por ela incentivado necessitava de mais escoamento da produo interiorana, o que demandava transporte por terra mais rpido do que o clssico mas ultrapassado lombo de burro. Os novos tempos exigiam outras iniciativas: era hora de explorar outras potencialidades tecnolgicas em outras palavras, exploraras as Estradas de Ferro. A construo de uma estrada de ferro, ligando a cidade de Parnaba ao Interior do Piau, foi um desafio que as autoridades federais, estaduais e comerciantes tiveram que enfrentar no incio do sculo XX. O assunto foi tema de acaloradas discusses entre polticos e eminentes personagens das elites comerciais, tanto de Teresina quanto de Parnaba, porque a construo de estradas de ferro demandava um custo alm das possibilidades financeiras do Estado e da capacidade de investimento dos comerciantes locais. Assim, a realizao dessa obra, reconhecida como sendo importante para a continuidade do crescimento social e econmico do Estado, dependia do governo da Unio. Menosprezada durante muitos anos, a sua construo foi muitas vezes adiada pelo governo federal. Somente em 1915, deu-se incio ao empreendimento, graas ao impulso de comerciantes ativos de Parnaba. Figura como engenheiro do projeto e fiscal da construo ferroviria do Estado Miguel Furtado Bacelar, genro de James Frederick Clark. Detalhes sobre a histria da construo da estrada so significativos. O engenheiro Bacelar tinha poucos recursos oramentrios, porm conseguiu com eles providenciar o transporte de trilhos que estavam entrepostos na Ilha do Cajueiro. Sob a responsabilidade da Mesa de Rendas de Tutoia, obteve e reformou locomotivas da Companhia da Estrada de Ferro Mogiana, do Sul do Pas, para transporte de materiais destinados construo da estrada e, posteriormente, para passageiros e mercadorias. O percurso da Estrada ligava inicialmente Parnaba Amarrao partia da Rua Grande e chegava ao Porto Salgado. Embora com parcos recursos, a 19 de novembro de 1916, o engenheiro Bacelar conseguiu inaugurar um trecho de 24 123
quilmetros do trfego entre Portinho e Cacimbo, marcando assim o lanamento da chamada Estao Ferroviria de Parnaba. O esforo dispensado a esse primeiro empreendimento resultou no reconhecimento e apoio do governo federal, que liberou verbas destinadas construo de um novo percurso de 148 quilmetros, entre Luis Correia e a cidade de Piracuruca, cuja estao foi inaugurada em 1923. Na pgina trs do relatrio da Estrada de Ferro Central do Piau, documento do Ministrio da Viao e Obras Pblicas, foram sendo adquiridos materiais complementares, como mquinas e ferramentas de oficinas para o andamento das obras da ferrovia. Em 30 de junho de 1923, na recepo ao engenheiro Bacelar, que se encontrava em visita a Teresina, o orador oficial Vaz da Silveira relata em seu discurso as realizaes do homenageado, e certos trechos figuram quase como um relatrio de atividades, como se v na transcrio a seguir: J se acham prontos cento e quinze quilmetros da nossa via frrea, no contando linhas acessrias, sendo cento e quinze quilmetros na linha tronco, cinco no ramal Igarassu e um no ramal de Parnaba. Sabemos mais que tencionais em setembro prximo inaugurar a estao de Piracuruca, com trfego de trinta e seis quilmetros. -nos ainda agradvel registrar que economizaste setenta obras darte constantes no projeto oficial e, ao mesmo tempo, que efetuveis tal supresso, fazeis o represamento das guas em extenses considerveis, formando grandes audes em favor das obras contra as secas. Avaliadas as obras darte supressas, cada uma no valor de dez contos de ris, resultou a economia de setecentos contos e, segundo nos consta, esse fato causou especial impresso no esprito esclarecido do vosso ilustrado colega Dr. Palhano de Jesus, pois deixastes destarte de auferir vantagens que poucos desprezariam. Mais ainda. Entre as dez locomotivas que atualmente possui nossa estrada, a primeira delas adquirida sem despesa, porque pertencia a Mogiana e era considerada imprestvel; improvisastes oficinas e de l a velha locomotiva saiu completamente remodelada e em timas condies. Tambm digna de nota a construo da ponte do rio Portinho, com um vo de cento e vinte metros, em terreno de mangue, tendo os seus encontros sob um estaqueamento da profundidade de dezoito metros, sendo as superestruturas metlicas adquiridas na rede cearense, custa de empenhos vossos. Essa parte, dizem os profissionais, em um centro adiantado bastaria para dar nome fulgurante ao engenheiro que a construsse [...] (BACELAR, 1923, p.2). No discurso ficou registrado o andamento das iniciativas do engenheiro Bacelar, inclusive a que se refere ao desligamento da Ferrovia da Rede Cearense, que inclua a linha que ligava Amarrao a Campo Maior, em 24 de janeiro de 1920. 124
Foi esse fato que levou a ferrovia a assumir o ttulo de Estrada de Ferro Central do Piau, desde ento a cargo da administrao federal. A Estrada passou a ligar o Porto da Amarrao de Parnaba a cidades como Cocal (1923), Piracuruca (1923) e Piripiri (1933). Alm disso, a rede ferroviria se estendeu para outras cidades do Interior do Piau. A construo da ferrovia: Seguiu o sentido inverso da colonizao no estado. Ela se originava no litoral, ligando a Vila de Amarrao, hoje Luis Correia, a Parnaba. Em seguida veio a linha regular das Vilas de Amarrao, Parnaba e Igarau, que se conectava linha principal no bairro Guarita. Tempos depois, a linha estendeu-se para o Interior: chegou em 1937 Piripiri; em 1952, a Campo maior; e, em 1966, capital Teresina (MELO, 2008, p. 62). Esse empreendimento representou um avano para a economia. Com a estrada de ferro, numerosos povoados surgiram em seu trajeto, animando as trocas comerciais e sociais entre o litoral e as da regio Norte do Estado: Viajar sempre trouxe fascnio por proporcionar o conhecimento dos povos, de culturas e, principalmente, de novas cidades. O trem veio facilitar e encurtar essa troca de conhecimento, despertando grande prazer, no s em viagens mais longas, como Parnaba-Teresina, que durava 15 horas, como na pequena distncia entre Lus Correia e Parnaba, feita em 30 minutos (Ibid., p.63). As estradas de ferro foram se estendendo por muitos lugarejos e formando povoados ao longo de sua trajetria. A ideia que movia seus administradores era a de que os trilhos atingissem a capital Teresina, na perspectiva de beneficiar o intercmbio comercial entre a Capital e as cidades da regio Norte do Estado, o que s ocorreu em 1966 (VIEIRA, 2007). O funcionamento da Estrada de Ferro para o transporte de mercadorias obedecia legislao trabalhista em vigor no territrio brasileiro, regulando o seu translado por grupos de carregadores. Havia o grupo dos que se encarregavam de transportar a mercadoria chegada estao para o compartimento do trem; outro grupo descarregava a mercadoria que chegava pelo trem e a levava ao veculo que a atendia; e o terceiro a postos para levar os gneros para o armazm do destinatrio. S o transporte no local da origem dos produtos para o veculo que os levava estao no era sujeito fiscalizao sindical dos trabalhadores. Isso sem contar com o embarque final no porto martimo. Certamente, essas operaes sindicalizadas elevavam o custo das mercadorias destinadas exportao, o que 125
deve ser levado em conta quando se tratam das vantagens e desvantagens do transporte ferrovirio. A construo de ferrovias no Piau teve como justificava servir como mais uma alternativa para o escoamento da produo do Estado que nos primeiros anos do sculo XX enfrentava dificuldades por falta de um sistema de transporte adequado e eficiente. Este sistema, como vimos, era constitudo pela navegao do rio Paraba, o porto de martimo de Amarrao e as estradas carrocveis (VIEIRA, 2010, p.55). O objetivo da construo da ferrovia era que ela: Servisse de complemento do transporte das mercadorias produzidas internamente at o porto martimo. Um complementaria o outro atravs de um ciclo onde os navios que chegassem no porto descarregariam as mercadorias no trem, seguindo para as cidades de destino. J os produtos de exportao fariam o percurso inverso, iriam ao porto de trem e da para os navios. (VIEIRA, 2010, p.49) A falta do sistema de transporte compatvel com as necessidades do estado provocava a comercializao desses produtos diretamente nos estados vizinhos do Cear, Maranho e Pernambuco. (VIEIRA, 2010, p.49) Para otimizar a circulao das mercadorias, principalmente nas regies economicamente estratgicas ao desenvolvimento do Piau, como as cidades de Campo Maior e Piripiri, situadas numa regio de grande produo de carnaba, babau e culturas agrcolas - o governo estadual e federal investiu, embora lentamente, na construo de estradas carroveis e de rodagem (VIEIRA, 2010, p.55). Diante da poltica governamental de incentivo construo das estradas de rodagem VIEIRA aponta que as ferrovias do Piau, assumiram uma posio secundria no plano de transporte do governo federal. Escrevendo sobre as ferrovias do Piau Vieira mostra que elas chegaram ao Piau no momento em que o governo federal comeava a se preocupar em integrar e desenvolver o Brasil atravs da construo de rodovias (VIEIRA, 2010, p.48). A dcada de 1920 foi marcada com o advento da rede rodoviria no Brasil incentivada pelo estabelecimento das montadoras americanas Ford (1919) e General Motors (1925). Carros e caminhes trafegando em rodovias representavam comodidade, conforto, segurana e rapidez (VIEIRA, 2010, p.55). 126
Com a poltica nacional de incentivo a construo de estradas de rodagem e a melhoria e construo de estradas carroveis, os projetos para a construo da ferrovia foram gradativamente perdendo fora: A decadncia ferroviria no Piau pode ser registrada j nos ltimos quatro anos da dcada de 1920 com a diminuio do nmero de passageiros, mercadorias, bagagens e animais. Enquanto ocorria a diminuio do trfego do transporte ferrovirio no Piau, o governo realizou medidas em prol da construo de estradas de rodagem em todo o pas (VIEIRA, 2010, p.58)
Vieira aponta que a decadncia da ferrovia percebida a partir de 1916, com a diminuio da circulao do nmero de passageiros, bagagens, animais e mercadorias. Entre os anos de 1930 e 1938, o governo federal chegou a entregou ao trfego alguns quilmetros de linhas frreas, mas o investimento governamental continuou sendo na construo e melhoria das estradas de rodagem e carroveis. Durante o governo de Getlio Vargas ocorreu um maior incentivo na construo de trechos rodovirios em todo o pas e o desinteresse pelas ferrovias (VIEIRA, 2010, p.61). A casa da Estao Ferroviria (Figura 21), como as demais estaes ferrovirias construdas no Estado, caracteriza-se pelo Ecletismo que alia a simetria do estilo Neoclssico aos detalhes arquitetnicos dos chals e das residncias rurais europeias, entre os quais se destaca a inclinao dos telhados e o uso da mo francesa apoiando os beirais. Figura 21 - Estao Ferroviria de Parnaba. Fonte: Acervo Particular.
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O Captulo seguinte ir tratar sobre a utilizao, por parte dos comerciantes de Parnaba, da estrutura acima descrita: o rio Parnaba, os portos martimos e o fluvial, a alfndega, as companhias de navegao e a estrada de ferro central do Piau. Discutir-se- de que forma se deu a integrao de Parnaba dinmica do capitalismo internacional, procurando mostrar a ao comercial desenvolvida pelos agentes sociais locais e estrangeiros que levaram Parnaba porto martimo de importao e exportao de bens produzidos no interior do Piau a ocupar uma posio econmica diferenciada no contexto econmico piauiense. Ver-se- como se deu a entrada de Parnaba no circuito comercial do sculo XVIII. O conjunto resultante desse esforo o que se buscar compreender, tomando como principal referncia a instalao e a dinmica de duas grandes casas de comrcio na regio, bem como a penetrao tanto do capital quanto de uma cultura capitalista estrangeiros na sociedade parnaibana. O objetivo analisar como experincias comerciais, em tempos e condies diferentes foram sendo realizadas; discutir elementos de permanncia nesse processo, e indicar aspectos que foram sendo agregados medida que o comrcio de Parnaba ia sendo interiorizado e internacionalizado.
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3 O COMRCIO E OS COMERCIANTES DE PARNABA Conforme visto no captulo anterior, para viabilizar o comrcio de exportao e importao, foi necessrio montar uma infraestrutura bsica que ligasse os produtos piauienses da pauta de exportao a uma cadeia comercial mais ampla: o comrcio nacional e internacional. Embora de forma deficitria e inadequada, foi com essa estrutura que os comerciantes contaram para realizar seus negcios. Por mais de dois sculos, isto , desde a segunda metade do sculo XVII at o incio do sculo XIX, a base da economia da Capitania do Piau foi a pecuria extensiva, com a criao de gado nas fazendas do serto atividade aliada a um rudimentar regime de agricultura de subsistncia, 155 comercialmente vinculada no que se refere venda de gado e couros com a Bahia; enquanto a atividade industrial no passava do curtimento de peles e da confeco artesanal de tecidos grosseiros de algodo. No serto, a fazenda de criao de gado constitua o nico estabelecimento de explorao econmica (SANTANA, 2008, p. 118), e o couro era a matria-prima com a qual se preparavam os grosseiros artefatos utilizados na vida cotidiana. Santana afirma que tudo emanava do curral, inclusive o comrcio e as finanas (Ibid., 1964, p.37). Nesse perodo da formao da economia de subsistncia, no se produzia para o mercado. No havia outro objetivo seno assegurar a satisfao das necessidades dos que viviam na fazenda. Era uma economia de necessidade, em que produtos artesanais, como redes, panos, algodo e cuia, entravam comumente nas trocas, em geral por vacas (Ibid., 1964, p. 29). A escassez de produtos industrializados era notria, como se pode inferir destas expresses: no havia panela e pano era o que por ali no havia (TAUNEY apud SANTANA, 2008, p.124). Em razo dos muitos fatores limitativos para a aquisio de determinados produtos em outra esfera, s vinha de fora aquilo que era inteiramente impossvel de ser produzido na prpria unidade familiar (SANTANA, 2008). Em uma economia dessa natureza, na qual a renda se concentrava nas mos de poucos o grupo dominante e seus familiares e faltava no bolso da maioria, no conjunto, o poder
155 Segundo Queiroz, rapadura, aguardente e fumo eram exportados em pequenas quantidades. A pequena produo de cereais, cana e fumo ainda estava circunscrita ao consumo local e era essencialmente familiar (1993, p.12). 129
aquisitivo era nulo, e o consumo baixo (VOLPI, 2007, p.34). O grosso da populao ressentia-se, na ausncia de um efetivo poder de compra: O nvel de consumo da populao brasileira no perodo colonial era baixo, a massa era muito pobre e o elenco de artigos que ela podia consumir era muito limitado, exceo dos gneros de primeira necessidade, como farinha e charque (Id. ibid.). Quanto s atividades comerciais no delta do rio Parnaba, sabe-se que a regio j era conhecida em meados do sculo XVI, e suscitava o interesse de exploradores europeus, principalmente os que no tinham permisso do papa para conquistar terras de alm-mar, privilgio de Portugal e Espanha. Piratas franceses 156
e ingleses percorriam a costa em busca de mercadorias apreciadas, entre elas, como se sabe, o pau-brasil. 157
O portugus Gabriel Soares de Sousa, senhor de engenho das proximidades de Jequiri (BA), ali viveu durante dezessete anos, em seu modo de dizer, tendo tido a possibilidade de percorrer boa parte da costa do Brasil. Suas observaes e notas foram publicadas em 1587, segundo consta em seu livro Tratado descritivo do Brasil em 1587. A primeira parte desse livro trata de um Roteiro geral da costa braslica, em que h referncias regio do delta do Parnaba. Muito antes de sua publicao, suas informaes deveriam ter sido conhecidas na Corte portuguesa. Este autor afirma que, em 1571, caraveles 158 percorriam o delta do Parnaba (MARQUES, 1998, p.17), usufruindo o potencial comercial 159 da regio, porque nela
156 Mavignier (2005, p. 21) cita uma petio de Joo de Barros (donatrio da Capitania do Piau, junto com Aires da Cunha e Ferno lvares de Andrade) ao rei de Portugal, em que se refere constncia dos franceses no litoral do Piau. Barros alerta o rei de que necessrio mandar povoar esta capitania antes que os franceses a povoem, os quais todos os anos vo a ela carregar Brasil por ser melhor pau de toda costa. 157 Gabriel Soares de Souza, em seu tratado, fala do comrcio entre ndios os ndios Tremembs e brancos. Jean de Lery relata que os ndios trabalhavam para os franceses e outros europeus, cortando, serrando, rachando, atorando e desbastando o pau-brasil, em troca de roupa, chapu, faca, machado, cunha de ferro e outras ferramentas. Cf. Mavignier (2005, p.37). 158 Informa Carlos Francisco Moura que, contrariamente ao que a evidncia do sufixo sugere, o caravelo no tinha mais de quarenta ou cinquenta tonis, e que devia ser em tudo semelhante caravela, com uma tripulao de 25 pessoas. Cumpria as tarefas auxiliares nas armadas de: aguadas, abastecimentos, exploraes e navio-correio. Moura, Carlos Francisco. "A Navegao vela no litoral brasileiro. Apndice II: Um caso tpico brasileiro: os caraveles. Histria naval brasileira. Rio de Janeiro, 1975. v.1, T. 1. 159 O comrcio de sal, na Barra do Igarau, uma das bocas do rio Parnaba, no tempo de Gabriel Soares de Sousa, mencionada por Joo da Maia Gama, em seu Dirio de 1728. Cf. Nunes (1972, p.4). 130
se fazia boa colheita e inmeras eram as sumacas 160 e escunas que entravam e saam; muitas delas eram atacadas por piratas. Ressaltava tambm que valia a pena proteger e defender tais mercadorias, tidas como economicamente rentveis, o que levou Portugal a dar-lhes segurana usando brigues 161 de escoltada. A atuao dos piratas, aventureiros, contrabandistas que colocavam em risco as embarcaes e as mercadorias, dar-se-ia por muitos anos, 162 j que era constante o movimento de mercadorias vindas de barcos do interior do Piau, de outros portos brasileiros e de Portugal. 163
Odilon Nunes (1972, p.2) refere-se aos Anais Histricos do Estado do Maranho, escritos em 1748, por Bernardo Pereira de Berredo governador da Capitania do Maranho, de 1718 a 1722 que menciona a investida do capito-mor do Maranho, Vital Maciel Parente, pelo rio Parnaba contra alguns navios estrangeiros que buscavam os ndios tremembs, interessados em negociar mbar e pau violeta. Quando as atividades comerciais com o litoral comearam a se desenvolver, tendo como base o gado criado no interior da Provncia, este era transportado pelo rio Parnaba 164 at o entreposto do Porto das Barcas, que ficava a meio caminho entre o delta do Parnaba e o Oceano Atlntico. Documentos de sesmarias datados do perodo de 1725 a 1764 mencionam a existncia de charqueadas, curtumes e o comrcio de sal nessa regio. Porm, devido predominncia da atividade pecuria, a importncia econmica do litoral se consolidou tardiamente, circunscrita a um Porto de
160 Antigo barco a vela, de fundo raso, utilizado para o transporte de pessoas e carga, muito usado na costa brasileira. 161 Era uma embarcao vela, com caractersticas militares de combate, que levava canhes e tinha, pelo seu desenvolvimento aerodinmico, uma grande velocidade de ataque. 162 Mavignier (2005, p.38) informa que, desde o sculo XVI, o litoral piauiense foi palmilhado pelos aventureiros, sem interrupo. 163 Citamos o ofcio de 20 de maio de 1800, determinando proteo as duas sumacas da casa de Simplcio Dias da Silva. Marques (Disponvel em: portaldelta). 164 Antonio Neto de Pdua informa que, pleiteando a criao de uma alfndega em Parnaba, a Cmara da Vila de Parnaba insiste, perante a Rainha D. Maria I, na criao de um porto franco. Os vereadores justificam a sua petio dizendo que "os gados" situados no Sul do Estado Oeiras e Parnagu percorriam distncias de 200 lguas para a Bahia, num caminho "spero", percorrido em 8 dias - "sem topar gua [...]". Por outro lado, as boiadas que tomavam o rumo de Parnaba eram contempladas com mais bebedouros e chegavam em melhores condies ao seu destino. 131
exportao, em Parnaba. 165 A configurao do litoral possibilitava a entrada de sumacas, que navegavam pelo rio Parnaba at o Porto das Barcas, e, de l, levavam mercadorias para os navios ancorados no Porto martimo. Devido a esses fatores, acrescidos da exclusividade das guas como via de acesso aos centros produtores propiciando ainda a melhor forma de circulao das mercadorias , a Vila de So Joo de Parnaba progredia, enquanto todo o resto do Piau permanecia no marasmo econmico. O fato de situar-se no litoral teria sido o fator decisivo para esse desenvolvimento, aliado sua situao junto ao delta do Parnaba, via de escoamento da produo do interior. Em 1711, o portugus Pedro Barbosa Leal, proprietrio de terras na Bahia e na Vila da Mocha, era proprietrio, em Parnaba, de barcos e sumacas, que, entrando pela barra do Igarau, carregavam carne e courama. 166 O comrcio martimo dos produtos da pecuria, carne e courama, na Vila de So Joo da Parnaba, j mencionado no Dirio 167 de Joo da Maia Gama, em 1728. 168 Das fazendas de Pedro Barbosa Leal esses produtos seguiam para Belm, Maranho, Cear, Bahia, e depois para o Rio de Janeiro e Lisboa (SANTANA, 2008, p.76 apud NUNES, 1972). Sabe-se, atravs de Santana, que o gado piauiense foi bastante exportado desde o comeo do sculo XVIII, porque a regio Sul do Brasil no dispunha de pecuria capaz de atender procura de seu mercado, podendo o Piau monopolizar o comrcio de gado nas Minas Gerais. Joo Pereira Caldas, primeiro Governador da Provncia, informava que a vila contava com 79 fazendas e 47 stios 169 e calculava, em 1762, o abate de pelo
165 Segundo Gandara (2008, p.129), durante o perodo em que durou a pecuria como matriz econmica, foi ela que deu fisionomia regio, estruturando-lhe e definindo-lhe a feio sociocultural. Evidentemente, apesar do aparente marasmo, desenvolvia o Piau sua pecuria e a indstria do charque (cidade de Parnaba). O gado, rompendo as barreiras impostas pela comunicao, se autotransportava, abrindo as fronteiras da exportao para o territrio nacional e internacional, uma vez que se exportava para Caiena e Liverpool. 166 Joo da Maia Gama, em seu Dirio de 1728, refere-se a barcos e sumacas que, entrando pela barra do Igarau, carregam carne e courama, no stio em que Pedro Barbosa quis fundar uma vila. Cf. Nunes (1972, p.4). 167 Dirio da viagem de regresso para o Reino e de inspeo da barra dos rios do Maranho e das capitanias do norte. Cf. Gama (SANTANA, 2008. p.76 apud MARTINS, 1944). 168 Marques (1998) acusa o aumento do movimento comercial em 1710 com um aumento sensvel em 1728. 169 Brando faz a distino entre fazenda e stio no Piau, no perodo colonial. A fazenda tinha uma estrutura mais complexa que a do stio, envolvendo a terra, o gado, os escravos, as benfeitorias: casa de morada, cercados, currais, aguadas, roas e tendas de ferreiro, farinha e carpintaria. Era a 132
menos 12 mil reses no Porto das Barcas, nmero que aumentou nos anos subsequentes (SANTANA, 1964, p.53 & NUNES,1972, p.15). O mesmo governador escreve ao secretrio de Estado da Marinha e Negcios Ultramarinos, Francisco Xavier de Mendona Furtado, em 1765, chamando a ateno para o "stio excelente" em que se encontra localizada a Vila de S. Joo da Parnaba, aproveitando para acrescentar que, das vilas fundadas, a que promete "maior adiantamento", devido a seu Porto de mar, que recebe 10 embarcaes vindas anualmente de Pernambuco. Do porto se exportavam: "couros, carnes e sebos, cerca de 12 a 14 mil reses; as ditas embarcaes pagavam cmara cerca de 14 mil ris [...]" (PAULA NETO, 2000, p.21), o que demonstra a existncia de certa estrutura do comercial. Joo Pereira Caldas, em carta dirigida a D. Fernando da Costa de Atade Teive, 170
assinala as vantagens adquiridas pelo litoral, como via de escoamento da produo de carne para o abastecimento das cidades da costa. Era assim poupado o deslocamento de boiadas pelas grandes distncias onde a vegetao e a gua eram raras. 171
Em outra carta dirigida a D. Fernando da Costa de Atade Teive, em 1768, Joo Pereira Caldas procura novamente evidenciar as vantagens que a regio apresentava para negcios de gado, opondo aspectos bastante difceis, relacionados ao deslocamento desse mesmo gnero, nas regies do interior da Capitania. Entre esses aspectos esto includas a falta de estradas, por onde pudesse ser conduzida a boiada, e as grandes distncias a serem percorridas, geralmente sob condies climticas extremas, em que vegetao e gua eram raras, exigindo grandes sacrifcios do homem e do gado. No litoral, ao contrrio, os gados todos se encaminham ao Porto de Parnaba, sem perda, e com grandssima facilidade, reputando-se ali cada boi de dois mil ris at dois mil e duzentos de modo ordinrio (SANTANA, 2008, p.139).
unidade produtiva de maior expresso, englobando alguns stios e retiros. Os stios localizavam-se, a princpio, em regies midas e frteis, e, a partir da segunda metade do sculo XVIII, a tendncia era a instalao prxima s sedes das vilas. O stio era local para a agricultura de subsistncia (1995, p.44). 170 D. Fernando da Costa Atade Teive foi governador do Par em 1768. 171 Na carta a Teive, Joo Pereira Caldas informa que o gado que era enviado do Canind para Capuame (BA) viajava, geralmente, no perodo de inverno e gastava de 30 a 40 dias para alcanar a feira. Em Capuame o gado era vendido s vezes por cinco e a seis mil ris (NUNES, 1972, p 15). 133
O Porto de Amarrao e o Porto das Barcas eram os usados para o transporte do gado vacum, cavalar, muar e seus derivados. Carnes e couramas foram produtos mencionados pelo ouvidor da Capitania, Antnio Jos de Moraes Duro, em Descrio da Capitania de So Jos do Piau, de 15 de julho de 1772 (GANDARA, 2008, p.232). Esses eram levados em sumacas ou barcos para a Bahia, Pernambuco e outros portos, de l trazendo alguma fazenda, que eram dadas em parte de pagamento 172 Cmara Municipal. Segundo Odilon Nunes (1972), por volta de 1769-1779, o Piau vendia de 120 a 160 mil bois. S pelo Porto fluvial de Parnaba, vendiam-se de 30 a 40 mil bois, e se fornecia a conhecida "carne do serto" para as principais capitanias, que eram: Pernambuco, Bahia, Rio de Janeiro e Par. Sabe-se pelas Cartas de 15 e 16 de fevereiro de 1781 da Junta Governativa, mencionadas por Gandara (2009, p.292), que, no Porto das Barcas, exportavam-se para diferentes portos couros em cabelo, solas e atanados, e cita o nmero de trinta at trinta e dois mil couros e de solas quatro mil meios (Carta da Junta Governativa de 1781). Devido a esse comrcio, Parnaba foi a nica vila criada que teve imediatamente uma fonte de renda efetiva, proveniente do pagamento de gabela, 173 taxa no valor de quatorze mil contos de ris (MENDES, I, 2001, p.21) que, a princpio, os proprietrios das embarcaes pagavam ao senhorio das terras por cada embarcao que atracava no Porto das Barcas, e que, com a criao da vila, passaram a pagar Cmara Municipal (CHAVES, 1998, p. 425). Com esse imposto foram construdas, segundo Mavignier (2005), a Casa da Cmara e a Cadeia da Vila de So Joo. O escoamento do gado facilitado pela utilizao da via fluvial incentivava tambm a produo de gneros alimentcios e artigos provenientes do algodo, abrindo assim canais comunicativos incentivadores do comrcio. As trocas se davam com bastante regularidade, o que provado pelo desenvolvimento da Vila de
172 Nota-se aqui uma situao de pagamento de impostos tendo como base no o dinheiro ou o metal, mas a troca de mercadoria, o que era uma prtica comum, j que a circulao monetria era muito baixa. Segundo Caldeira (HOLANDA, 1985, p.350), A moeda, existindo em pequena quantidade, s se acumulava nas cidades mais importantes, e ali mesmo somente nas mos dos mais ricos. 173 A gabela tambm era um imposto sobre o sal. Mavignier (2005, p.40) afirma que Joo da Maia Gama, Governador do Maranho e Gro-Par, em seu Dirio da Viagem, informa a presena da indstria salineira no litoral do Piau; fala do Porto das Salinas, que ficava na barra do Igarau, e conta que os moradores levavam o sal rio acima em canoas, enquanto outros vinham da Serra e do Cear busc-lo para distribuir nos sertes do Piau. 134
Parnaba. Entre 1760 e 1770, a populao de Parnaba continuou aumentando em razo das charqueadas. O desenvolvimento do comrcio e exportao do couro teriam atrado habitantes vindos de outras regies. Entre o nmero de casas, que aumentava, sobressaiam-se alguns edifcios mais nobres, como j vimos, e, alm disso, tornava-se competente a casa da cadeia, e figurava na praa central a igreja em construo (NUNES, C. apud SANTANA, 1995, p.94). Percebe-se, ao longo do sculo XIX, um pequeno incremento nas atividades comerciais da Provncia. Do Porto das Barcas, os negociantes de bons fundos 174
exportavam, para diferentes portos, couro em cabelo, solas e atanados, couros e mil meios de sola. 175 No Relatrio de 1 de julho de 1871, o presidente Manuel do Rego Barros Sousa Leo registra que o Piau cultiva mandioca, fumo, arroz, milho, cana, cultura cujo produto mal chega para o consumo local. Em verdade, exporta apenas o algodo, pois o fumo e a aguardente, s ocasionalmente, e em pequena quantidade. 3.1 Os Charqueadores e as Charqueadas Na Vila de So Joo da Parnaba, o movimento porturio intensificou-se e a navegao teve maior desenvolvimento graas ao impulso econmico dado pelos grandes comerciantes do seu tempo uma classe dominante que ali se manifestou como um grupo de comerciantes estrangeiros que orientou o destino de Parnaba: Joo Paulo Diniz, Domingos Dias da Silva, Sebastio da Silva Lopes e os Veras (SANTANA, 2008, p.77). Foi nesse perodo que se iniciou a produo de charque para exportao, e com ela o perodo de predomnio econmico da vila, que perduraria at a segunda metade do sculo XX. Dois charqueadores entre os comerciantes acima citados, Joo Paulo Diniz e Domingos Dias da Silva, lideraram 176 o desenvolvimento da indstria da carne, com oficinas charqueadoras 177
e estaleiros s margens do rio Parnaba.
174 Expresso usada na Carta da Junta Governativa de 1781, citada por Gandara (2009, p.2). 175 Segundo as cartas da Junta Governativa de 15 e 16 de fevereiro de 1781. 176 Conforme Solimar Oliveira Lima (2003), as referncias historiogrficas, que tratam do incio da atividade charqueadora no Piau, so imprecisas ou carentes de respaldo cientfico. Citando Odilon Nunes (1966), Lima aponta o fazendeiro e negociante Joo Paulo Diniz como o pioneiro da tcnica de charquear na regio. J autores como Pereira da Costa (1974), e Porto (1974), atribuem a Domingos Dias da Silva a primazia das oficinas em Parnaba. Ele teria chegado ao Piau em 1758, procedente do Rio Grande do Sul, estabelecendo-se margem esquerda do rio Igarau, chegando a implantar 135
Charquear um procedimento empregado na conservao das carnes, usando-se salmoura concentrada ou o sal seco. A carne salgada, nesse processo, era cortada em tiras ou em placas, e ento penduradas ao sol e ao vento. Depois de seca, a carne era prensada. Assim tratada, passou a ser conhecida como: carne do serto, carne de vento, carne seca ou carne de sol. No litoral, as condies climticas para a charqueada eram ideais calor intenso e vento seco, alm do sal de fcil extrao. Ademais, o gado era abundante. 178 Esse conjunto de condies proporcionou o sucesso da indstria (MARQUES, 1999, p. 23). A capitania do Piau, assim como a do Cear e outras da regio compartilharam o povoamento assentado na pecuria. Conforme Takeya (1994, p.94), o que imprimiu um trao caracterstico na atividade pastoril no Cear foi a criao das chamadas oficinas ou charqueadas. De acordo com informaes encontradas em Giro (2000, p.156), no Cear, as primeiras charqueadas surgiram por volta de 1740, na cidade de Santa Cruz de Aracati, e a atividade de exportao da chamada carne do Cear constituiu o principal e quase exclusivo comrcio daquela capitania. Aracati veio a tornar-se o mais movimentado e rico emprio de transaes da Capitania do Cear. Ainda com base em Giro (2000, p.160), no ano de 1770, segundo se l no Roteiro do Maranho a Gois, de Pereira Caldas (Ibid., p. 64), Joo Paulo Diniz, portugus, negociante da Vila de S. Joo da Barra da Parnaba, abriu um novo encaminhamento para o gado, ao instalar oficina de carnes secas s margens do dito rio, oitenta lguas acima da sua foz. 179 Segundo Gonalves (2003, p.151), ele chegou Vila de Parnaba em 1762 e era proprietrio
seis unidades produtivas. Domingos Dias veio de uma regio onde charquear era prtica largamente difundida desde o incio do sculo XVI. Essa polmica tambm mencionada por Claudete Dias (2002, p.74). 177 Para saber mais sobre as charqueadas, conferir Marques (1999). 178 Antnio Neto de Pdua relata episdio em que o Piau pde prestar auxlio ao vizinho Cear, graas estabilidade de sua produo: as secas peridicas diminuam durante vrios anos, a oferta de gado, dificultando o comrcio da carne de sol. A seca assolou o Cear de 1790-1794, considerada por muitos uma das maiores de sempre, que valeu dizer ao Governador de Pernambuco que teria perecido um tero da populao cearense. Os anos mais terrveis foram 1793 e 1794, em que o comrcio de carne do Cear desapareceu por completo. A situao poderia ter sido uma catstrofe muito pior, se no fosse a ajuda piauiense, [...] pereceria de fome se de Piau no viesse gado [...] (PAULA NETO, 2000). 179 Considerando que uma lgua corresponde a 6 quilmetros, essas oficinas estavam localizadas entre a regio de Campo Maior e a do Poti. 136
das maiores fazendas de gado da provncia que se estendiam ao Norte, ao Sul e ao longo do rio Parnaba at Bons Pastos. De suas fazendas, Diniz despachava as carnes em canoas, via rio Parnaba, para Parnaba, donde as conduz, por via martima, em duas sumacas, para Belm (NUNES, O., 1972, p.16). Joo Paulo Diniz mencionado como o pioneiro que, tendo sucesso na atividade, logo expande 180 o seu comrcio de carne de charque, 181 chegando a fazer comrcio de carnes secas com a Bahia e o Rio de Janeiro (NUNES, O., 1972, p.16). Diniz pode ter sido um dos mais expressivos comerciantes na vila, mas certamente no era o nico pelas informaes de Nunes (1972) que se seguem nem o pioneiro. Havia outros comerciantes atuando, possivelmente, de forma mais rudimentar e/ou fora das normas do comrcio legal. Odilon Nunes (Ibid., p.18) aponta que, nesse perodo, a Vila de Parnaba se tornara um centro de contrabando. Os comerciantes adquiriam fazendas, do Rio de Janeiro e da Bahia, dando em troca 182 a salsa que compravam em Belm com a venda de carnes secas (Id. ibid.). Esse comrcio era ilegal, j que a Companhia Geral do Comrcio do Gro Par e Maranho detinha o monoplio de todos os gneros gastveis. Para proteger-se da ilegalidade, os administradores da Companhia fundaram na vila uma feitoria para fornecer e extrair gneros. Estabelecida a feitoria, Joo Paulo Diniz, prestigiado junto Companhia, foi escolhido como um de seus administradores. Em 1772, a Companhia enviava para Parnaba sumacas carregadas de fazenda. O empenho de Diniz se dava no sentido de expedir avisos para o serto e despertar a ateno dos habitantes do interior a fim de que todos chegassem a tempo de achar farto sortimento. Pelo menos, em 1772, essa estratgia no surtiu efeito, pois pouca gente demonstrou interesse por falta de um bom inverno, havia falta de dinheiro (Ibid., p.19). Alm disso, e apesar dos esforos conjuntos do Governo da Capitania e dos Administradores da Companhia, o contrabando continuava os comerciantes continuavam a fugir s normas do comrcio legal. As colocaes de Nunes apontam
180 Funda oficinas na foz do rio Balsas. Cf. Odilon Nunes (1972, p.16). 181 Segundo Marques (2000, p.22), o desenvolvimento comercial do litoral piauiense e da regio vizinha foi afetado pela chegada de personalidades incentivadoras das atividades comerciais de cunho capitalista. Esse autor menciona especialmente Joo Paulo Diniz, que logo expande o seu comrcio de carne de charque 181 . Nota-se que, ento, o movimento de embarcaes tornou-se ainda maior. 182 No perodo colonial, a circulao da moeda era limitada e a base das transaes comerciais era a troca. 137
um nmero maior de comerciantes atuando na vila, em um comrcio que, desde muito, se vinha fazendo para o Norte, em canoas. A atuao da Companhia, embora no tenha durado muito, 183 estimulou o crescimento da Vila de Parnaba, agora instalada no Porto das Barcas, pelo governador Botelho de Castro. Com os rendimentos dos barcos, a vila preparava-se para fazer a cadeia e a casa da Cmara (NUNES, O., 1972, p.18). No entanto, maior efervescncia comercial se deu com a chegada de Domingos Dias da Silva (MARQUES, 2000, p.22) e a implantao de suas seis charqueadas. O portugus Domingos Dias da Silva, natural de Padornelo, 184 Tras-os- Montes, Portugal, veio ao Piau em 1768, atrado, segundo Pereira da Costa (1974), Nunes (1972), Falci (1994), pelas oficinas de charquear de Jos Pinto Martins, que operavam em Pelotas, 185 no Rio Grande do Sul. L, conforme os autores mencionados, aprendeu a tcnica de charquear. Porm, pesquisas mais recentes 186
apontam para outra conjuntura. A primeira charqueada de Pelotas foi instalada em 1780, pelo jovem portugus Jos Pinto Martins, vindo de Aracati, no Cear. A grande seca de 1777- 1779 motivou sua mudana para o Sul. O Cear tinha sido, at ento, o nico fornecedor de carne-seca, mas sua produo no bastava para suprir as necessidades de um sempre crescente consumo, segundo as exigncias da introduo de escravos, em ondas avultadas, nas fazendas das capitanias do Norte e do Centro do Pas.
183 A Companhia foi extinta em 1779. 184 Encontramos na literatura local referncia a Pedronello ou Pedornello (na provncia Trs-os- Montes, uma das seis grandes divises administrativas do territrio de Portugal, desde o sculo XV), para a qual no encontramos nenhuma localizao; e Pardonello, sendo essa referida por Mavignier (2005, p.60), chama ateno para a inscrio da lpide de mrmore que cobre o tmulo de Dias da Silva na Igreja da Graa, em Parnaba. Na lpide est escrito Padornellos, no caso, atualmente, freguesia portuguesa do Conselho de Montealegre, no distrito de Vila Real, antiga provncia de Trs- os-Montes. 185 Conforme Lima (2003), de 1780 em diante processa-se uma verdadeira revoluo no processo produtivo das oficinas gachas, com a introduo da tcnica de charquear como ato industrial. Essa faanha atribuda ao negociante portugus Jos Pinto Martins, que se tornou o primeiro grande produtor na regio de Pelotas. 186 Recentemente, graas a consultas realizadas pela ONG VIVA O CHARQUE junto aos arquivos portugueses, por indicao do Instituto dos Arquivos Nacionais Torre do Tombo, de Lisboa, foi localizado no Arquivo Distrital do Porto o batistrio, sendo a data de seu nascimento 7 de dezembro de 1755. Pinto Martins fundou sua charqueada na Costa do Arroio, Pelotas, aos 25 anos de idade. Pedro Lus Prietto. Dirio Popular, 18 jun. 2005, p. 6. Disponvel em: <www.vivaocharque.com.br>. 138
Dias da Silva teria aprendido a tcnica de charquear em Aracati, e no em Pelotas, ao lado de outros charqueadores, entre eles Pinto Martins, contrariando o dito de Pereira da Costa e demais. Isso porque, se Dias da Silva tivesse chegado ao Piau em 1768, vindo de Pelotas, no teria encontrado Pinto Martins. Aracati, entretanto, j contava com charqueadas desde 1740, e era de l que saa a maior parte das carnes secas compradas pelos negociantes de Recife. Conforme Valdice Giro (1984 apud ROLIM, 2009), as fbricas de beneficiar carnes surgiram no Cear, instaladas nos esturios do rio Jaguaribe, Acara e Corea, sendo logo estendidas aos rios Parnaba, no Piau, e Assu e Mossor, no Rio Grande do Norte. Neste caso, tanto Domingos quanto Martins aprenderam a tcnica de charquear, em Aracati, tendo um seguido para Pelotas, Rio Grande do Sul, e o outro para a Vila de So Joo da Parnaba. De acordo com Lima (2003, p.19), o sucesso da produo de charque no Cear teria incentivado a produo parnaibana, no s devido abundncia de matria-prima, mas, sobretudo, s notcias positivas da experincia comercial. Foi ento que Domingos para l se deslocou, e se associou a Joo Paulo Diniz para explorar as charqueadas, dando expressiva expanso comercial carne de charque. Parnaba integrou-se nessa atividade a um pool de cidades ou, como diz Giro (1984 apud ROLIM, 2009, p. 156), ao ciclo das oficinas, que incluiu o Maranho, o Cear e o Rio Grande do Norte. Caldeira (2009, p. 11) coloca que: As rotas de boiadas que partiam do Maranho continuavam pelo interior do Piau, onde tambm a produo pecuria era dominante, e desaguavam em Aracati e Camocim. Essas duas vilas cearenses concentravam grande parte da produo de charque e couros, abatendo em torno de 50 mil cabeas anuais para processamento. Parte dos couros era exportada, mas os consumidores de todo o charque estavam no mercado interno. Assim como Aracati, no Cear, Parnaba deteve o comrcio da carne de sol no Piau. Foi a exportao da carne que tambm forjou para a cidade uma feio prpria, e permitiu a consolidao de um grupo de exportadores que comercializavam com praas nacionais e estrangeiras. Nas palavras de Mendes, I (2001, p.73): J no ltimo quartel do sculo XVIII, Domingos Dias da Silva, destacado fazendeiro e comerciante, tornou-se o primeiro empresrio do setor industrial piauiense, ao implantar suas charqueadas. Surgiram outros fabricantes, mas s ele exportava atravs de frota prpria de cinco navios, 139
trs dos quais ocupados na exportao de carne e bois, navegando diretamente para Portugal. Domingos Dias da Silva chegou a Parnaba por volta de 1768, 187 trazendo consigo ouro, moedas, obras de arte em ouro e prata, e assim estabelece suas charqueadas. Com sua chegada, surgiram grandes fazendas de gado, outros comerciantes se estabeleceram na vila, vendendo para ele suas carnes e gado. Casas comerciais passaram a operar em Parnaba, assim como todo o esquema de embarcaes que ligaram a sociedade parnaibana Corte Portuguesa. Dias da Silva foi grande pecuarista e agricultor, desenvolveu o comrcio, a indstria do charque, do sal, de embarcaes. Era proprietrio de uma frota considervel de navios. A importncia do comrcio que se processava em Parnaba pode ser demonstrada pela quantidade de sumacas, 188 galeotas e escunas de mais de oitenta toneladas em circulao, a maioria de sua propriedade. 189
Da frota de cinco navios de Domingos Dias da Silva, dois destinavam-se ao comrcio com Lisboa e Porto a sumaca Nossa Senhora da Conceio e So Nicolau de onde retornavam, trazendo fazendas e gneros, enquanto os outros trs eram utilizados na exportao do gado e do charque (GONALVES, 2003, p.373). Muitas embarcaes vindas do interior da Provncia chegavam ao Porto das Barcas trazendo gado e seus derivados com destino a outras capitanias. Ao mesmo tempo, de outras provncias, de Portugal e de algumas cidades europeias chegavam mercadorias que imprimiam ao comrcio local uma qualidade especial. De acordo com a historiografia, no Porto das Barcas foram abatidas, em 1762, cerca de treze mil reses quando as charqueadas de Domingos ainda no funcionavam , passando, em 1781 j com as charqueadas de Domingos mdia anual de quarenta mil. 190 Como se v, um aumento muito significativo.
187 Data adotada por Gonalves, (2003, p.373). 188 Segundo GIRO (2000), o carregamento de uma sumaca correspondia, aproximadamente, produo de duas mil reses, ou seja, no mnimo 80.000 quilos de carne seca. 189 Antonio de Paula Neto (2000, p.23) informa que a ligao martima Parnaba-Lisboa-Parnaba era assegurada permanentemente pela sumaca N. S. da Conceio e Sto. Antnio e Almas, que em 1787 demorou 56 dias durante a viagem efetuada entre Parnaba e Lisboa. Contudo, um ano depois, em razo de ventos e correntes mais favorveis, a viagem foi feita em 46 dias. Em 1793, o mesmo barco, que assegurava a carreira Parnaba-Lisboa-Parnaba, fazia o percurso regular em 49 dias. 190 Uma das consequncias da grande produo de carne de sol era que carne verde ou fresca em Parnaba era um produto escasso. As autoridades da Vila buscavam garantir o seu abastecimento, legislando sobre as vendas no aougue pblico. Era comum arrematar-se, por um determinado 140
Ao estabelecer-se em Parnaba, Dias da Silva no perdeu seus laos com a Corte Portuguesa. Alm de sua fortuna pessoal, ele contava com o apoio da Corte, onde era comum serem favorecidos fidalgos que se aventurassem para prover a colonizao no Novo Mundo. Certas contingncias histricas teceram mais oportunidades comerciais deste personagem. Felipe Mendes (2003, p.32) observou que Portugal desinteressou-se do Piau, de 1775 a 1797, a julgar pelo fato de no nomear um Governador, sendo a capitania administrada por Juntas Trinas. 23 Esse fato era, para o autor citado, motivo bastante para impedir a realizao de qualquer ato significativo por parte do governo. Dias da Silva, longe do centro de poder (Oeiras), e percebendo a fraqueza da administrao da Provncia, aproveita a oportunidade e a usa em seu favor. Com o prestgio que tinha junto Corte, consegue uma distino importante: comercializar diretamente com Lisboa sem pagar impostos e taxas ao governo do Maranho. Simplcio Dias da Silva nasceu a 2 de maro de 1773, na Vila de So Joo da Parnaba; era filho natural de Domingos com a escrava Claudina. Herdou uma grande fortuna e, como homem de viso, soube desfrutar dela. Recebeu uma educao aprimorada dizem que foi educado como um prncipe (FALCI, 1994, p.63) , o que era previsvel, j que, para os senhores abastados, era preciso iniciar seus filhos nas regras de civilidade mandando-os estudar na Europa. Por isso sua formao incluiu estudos superiores em Coimbra, onde estudou por treze meses. Vivendo na Europa, habilitou-se a frequentar a Corte Portuguesa. Casou-se com D. Maria Isabel Tomsia Seixas e Silva. 191 Gonalves (2003, p.388) escreveu que Simplcio:
perodo, a exclusividade sobre o negcio. Contudo, devido concorrncia sofrida pela carne salgada, poucos se mostravam interessados na atividade. Quase sempre, para garantir o produto aos contratantes do aougue, as autoridades foravam o fornecimento de gado atravs de derrota. Assim, cada fazendeiro era obrigado, de acordo com sua produo, a entregar uma determinada quantidade de animais em um determinado ms do ano. Alm da quantidade a ser entregue, era tambm estipulado o preo a ser cobrado pelos criadores. Eles tinham que entregar as reses na Vila ao arremate do aougue, para que houvesse o talho nas quartas e sbados, como era o costume. O consumo mdio por ms, por exemplo, em 1799, foi de 80 animais, o que d um total de 960 reses abatidas por ano. Sem dvida, trata-se de uma quantidade insignificante frente produo das charqueadas. Considerando-se o ano de 1781, no qual so apontados 40 mil bois abatidos, o consumo de carne fresca em 1799 representa menos da metade do total abatido mensalmente nas charqueadas. As oficinas de carne seca de Parnaba salgavam, em 1781, cerca de 170 bois por dia (LIMA, 2003, p.11). 191 Segundo Falci (1994, p.63), D. Maria Isabel Tomsia Seixas e Silva fora dama de honra de D. Maria I; j Renato Neves Marques (Portaldelta, 2007) afirma que no existe um documento que o comprove, e que se trata mais de fantasia de alguns escritores. Segundo Marques, Maria Isabel 141
Estudou em Coimbra. Arguto, inteligente e muito rico, integrou-se logo no mais alto ciclo social luso. Tornou-se amigo da rainha, dona Maria, devido s altas contribuies financeiras feitas campanha de auxlio aos flagelados do terremoto de Lisboa. Falci (1994, p. 63) afirma que Simplcio teve ocasio de vivenciar detalhes culturais de estilo fim de sculo da Europa, especialmente da Frana, o que temperou seu comportamento ostentado na sociedade emergente do Nordeste. Ainda citando Falci, sua vida, riqueza e prestgio o tornaram conhecido em todo o Nordeste, nas primeiras dcadas do sculo XIX (Id. ibid.). Simplcio Dias abriu na vila diversas empresas, implantou mais fazendas, e, sob sua administrao, intensificaram-se as transaes comerciais com o resto do Pas e com o Exterior comerciava diretamente com Portugal e Frana. 192 O volume de sua exportao atingia anualmente cerca de mil e oitocentas toneladas de charque. 193 As reses para as charqueadas provinham no s de suas fazendas, mas tambm do vale do Long, Piracuruca e Valena (Centro-Sul do Piau). Desenvolveu a construo de navios de maior calado. Sumacas, escunas e um brigue de duas toneladas teriam sado de seus estaleiros (MARQUES, 2007). Como ainda no tinha sido criada a Alfndega no Piau, Simplcio Dias da Silva solicita s autoridades portuguesas o mesmo direito que seu pai; ou seja, o de comerciar diretamente com Lisboa, sem ter que pagar impostos alfandegrios ao Maranho, o que demonstra a permanncia dos laos que ligavam os Dias da Silva Corte. Simplcio ostentou vrios ttulos honorficos, como se percebe pela leitura de sua lpide: Aqui jaz um dos benemritos desta igreja e donatrio desta Capela, Simplcio Dias da Silva, cavalheiro fidalgo professo na Ordem de Cristo, dignatrio da Imperial Ordem do Cruzeiro e coronel de Cavalaria de Milcias. Foi presidente da provncia do Piau e natural desta Vila de So Joo da Parnaba, onde nasceu a 2 de maro de 1773 e morreu a 17 de setembro
Tomsia de Seixas, de origem portuguesa, nunca foi dama de honra de D. Maria I. Informa que h anos os Seixas moravam em So Luis (MA), onde ela residia com seus pais. O casamento de Simplcio com Maria Isabel aconteceu em So Luis, em maio de 1796. A cerimnia foi realizada no oratrio privado das terras de Anna Maria Assumpo Vieira, viva do capito Jos Vieira da Silva. Simplcio Dias da Silva se fez representar pelo seu procurador, o capito Jos Joaquim da Silva Rosa, e Maria Isabel pelo seu pai, o capito Antonio Jos de Seixas, sendo testemunhas o Governador e Capito General do Maranho, D. Fernando Antonio de Noronha, o Coronel do Regimento de Infantaria Regular da Guarnio, Anacleto Henrique Franco, e outros, conforme est no Livro de Casamentos da S de So Lus 1790/1798, p. 158 a 158v. 192 Vale notar que Falci fala no s do comrcio com Portugal, mas tambm com a Frana. Cf. Henry Koster e Tollenare (1942). 193 Conferir Enciclopdia dos municpios brasileiros (1959, p.550). 142
de 1829, com 56 anos, 6 meses e 15 dias. Era filho do capito Domingos Dias da Silva. Simplcio, ao falecer, em 1829, deixou muitos bens que permaneceram no divididos legalmente at 1833. A riqueza da famlia Dias da Silva pode ser avaliada pelo inventrio, cujo total alcanava a importncia de trezentos contos de ris. De acordo com Brando (1995, p.204), o estudo de inventrios relevante porque neles constam informaes que permitem conhecer a fortuna individual, o padro de vida e o modo de agir das pessoas pertencentes a uma significativa camada da sociedade. Como esclarece Mello (1985, p.28), o inventrio uma fonte que permite captar um aspecto da realidade econmico-social, quais os elementos constitutivos da riqueza, alm de proporcionar informao para a histria dos costumes e das mentalidades (BRANDO, 1995, p. 26). No inventrio dos Dias da Silva so relacionadas vinte e uma fazendas de gado com o total de vinte e cinco mil setecentos e oitenta cabeas, armazns de sal, terras de plantio com roas de milho, arroz e algodo, engenho de descaroar e prensas de ensacar algodo, incluindo dois mil e seiscentos arrobas de algodo em caroo em depsito. Possua tambm os materiais de suas atividades porturias, pranches de vinhtico, peas de lona da Rssia, caixes de linhas do Porto, alm de uma galeota, um escaler e dez botes. citado tambm material blico: trs espingardas (de dois canos a trinta e dois mil ris cada); trs bacamartes e quatro granadeiras. No inventrio constam barras de ouro com trinta oitavas. Sua escravaria 194 no atingia o montante de mil e oitocentos escravos, como dissera Koster (1942), mas quatrocentos e quinze escravos, o que nmero muito grande para os parmetros conhecidos no Piau. Para comprovar, comparamos esse nmero (quatrocentos e quinze escravos) com os citados em 14 de setembro de 1822 pelo deputado padre Domingos da Conceio, quando apresentou s Cortes projeto para a venda das fazendas reais, no qual assinala haver na provncia do Piau trinta e trs fazendas de gado vacum e cavalar, com setecentos escravos (PORTO, 1974, p. 150). Comparamos, tambm, com o contingente de escravos de propriedade dos inventariados de Jerumenha e Valena entre 1762 e 1822: o nmero de escravos apontados por Brando (1995, p.218) de oitocentos e oitenta
194 Segundo Brando (1995, p.217), o escravo, como bem patrimonial, achava-se bastante difundido no Piau, e pode-se avaliar o significado social da posse de escravos no contexto piauiense. 143
e trs escravos, correspondendo, em mdia, a 6,47 cativos por proprietrio. Como se v, a escravaria de Dias da Silva era realmente impressionante. Como detalha Falci (1994, p.63), entre os escravos de Dias da Silva se encontravam africanos de diversas naes: Congo, Benguela, Cassange. Os homens perfaziam 96% da escravaria e atuavam em profisses muito diversificadas: ourives, enfermeiros, calafates, pedreiros, mestres de ferreiros, mestres de navegao, alm dos dedicados agricultura, criao de gado e Marinha (Ibid., p.63). A eles Silva mandou edificar a Igreja dos Homens Pretos do Rosrio. No obstante, os que trabalhavam no abate de gado e nas suas charqueadas, situadas em terreno alagadio, enfrentavam condies higinicas precrias. Antnio Jos Morais Duro, ouvidor da capitania, assim se pronunciou a respeito: Como o principal negcio que nela se faz consiste nos gados que se matam nas feitorias [...], natural que padeam as epidemias [...] porque o ftido que causa o sangue espalhado e mais midos de tantos milhares de reses que se matam no pequeno espao de um at dois meses corrompem o ar com muita facilidade e produzem o dano apontado. As moscas e as sevandijas so to inmeras que causam inexplicveis molstias aos habitantes [...] s no tempo de vero se pode caminhar por aquele distrito, pois no inverno, por ser baixo e alagadio, se cobre de lagoas (FALCI, 1994, p.63). Doena, mau cheiro e sujeira era esse o ambiente de trabalho dos escravos que trabalhavam nas charqueadas. Voltando ao inventrio, alm desses bens de carter eminentemente econmico, constam outros objetos que indicam a posio social diferenciada dos Silva. interessante fazer uma associao entre os bens deixados em testamento pelos Dias da Silva e o estilo de vida que levavam em Parnaba. Percebemos que pai e filho cultivavam os costumes prprios s refinadas tradies das monarquias europeias; levavam a vida de um corteso ou de cavalheiro fidalgo portugus na Vila de So Joo da Parnaba. Tal estilo de vida era, certamente, bastante contrastante com os da sociedade local e regional, que vivia uma realidade material e intelectual bastante diferente. Ser corteso ou fidalgo pode ser entendido a partir de algumas colocaes apresentadas por Monteiro (2008): o gosto ao vestir-se, apresentar-se diante de certo nmero de pessoas, a maneira de sentar-se mesa e alimentar-se (MONTEIRO, 2008, p.67). Na maioria das vezes, o gosto corteso fascinou pela opulncia, e trouxe implcito alguns outros conceitos como abundncia, aparncia, vesturio, austeridade, solenidade e, sobretudo, hbitos compatveis com a posio 144
social. Sabemos que, atravs do gosto de vestir-se, de gesticular, de olhar para o mundo e de se comportar em diversos ambientes, pode-se identificar as classes (Ibid., p.70). Acrescenta-se ao conceito de fidalgo o comportamento nas festas e mesmo sua elaborao, a apreciao de determinado tipo de obras artsticas, a atitude perante ideais religiosos. Sabemos, por Brando (1995, p.211), que nos testamentos as vestes mais caras eram declaradas nos inventrios mais ricos. o caso dos Dias, que deixaram um vasto guarda-roupas, cujas peas eram de grande valor, e, dentre outros, um Hbito da Ordem de Cristo com diamantes no valor de trezentos mil ris. Como adorno, foram declaradas as joias 195 de ouro, onde figuram dezenas de cordes, argolas, fivelas, colares, dedais, brincos, rosrios, relgios com caixa de ouro e ornamentos de golas de oficiais, bengalas encastoadas e esporas de ouro. Entre os adornos femininos usados por D. Claudina e D. Maria Isabel constam uma flor de brilhante para cabea e um grande anel de diamantes avaliado em trezentos mil ris. mesa, os conjuntos de servio eram de prata, destacando-se dez aparelhos de ch, doze faqueiros (sendo dois de marfim), dezesseis salvas e sessenta copos de prata, alm de objetos revestidos com metais preciosos, executados na tcnica nomeada casquinha, constando de aparelhos de ch, castiais e bacias sem contar um estonteante aparelho de ch avaliado em cento e sessenta e cinco mil e seiscentos ris. Muitas peas ostentavam monogramas as iniciais SDS gravados em sete faqueiros, paliteiros, castiais, escarradeiras e palmatrias. Esses objetos devem ter sido usados quando Simplcio promovia grandes festas e convidava representantes das ricas famlias nordestinas 196 e estrangeiras de passagem pelo pas. Nestas festas, alm de comida farta, oferecia bebidas da melhor qualidade. Simplcio promovia festas colossais em sua Casa Grande, na vila e no Pavilho de Caa, na Ilha de Santa Isabel (RAMOS, 2008, p.78). Para animar as reunies,
195 Segundo Brando Brando (1995, p.213), a ocorrncia de objetos em ouro e prata nas declaraes de bens um importante indicador do nvel de riqueza, sobretudo numa regio onde a minerao no era praticada. Nos inventrios por ela analisados (realizados nas cidades de Jerumenha e Valena -1762-1822), elas aparecem em 71,5% dos processos. A autora considera que se trata de uma forma de entesouramento, devido ao valor intrnseco dos metais, e que possvel que as joias e os adornos pessoais se constitussem de fcil liquidez. 196 Embora esteja utilizando a expresso nordeste, importante, lembrar que neste perodo ela ainda no existia como regio. 145
formou uma banda de msicos escravos. Alguns deles foram enviados a Lisboa ou ao Rio de Janeiro para estudar msica (Id. ibid.). A msica ocupou um lugar de destaque na vida dos Dias da Silva. A escolha desta forma de entretenimento seria de inspirao da Corte portuguesa. De acordo com Monteiro (2008, p.93), at o reinado de D. Maria I, as prticas musicais na Corte portuguesa se destacaram como uma das mais opulentas em toda a Europa. Foram, assim, includas como mais uma distino de classe, por ser, segundo esse mesmo autor (p.72), uma das tradies mais fortes e antigas da Monarquia lusitana. No inventrio esto listadas quatro caixas com instrumentos musicais no valor de cento e vinte mil ris de sua orquestra particular de cantari pequenos msicos escravos que mandara estudar em Lisboa (RAMOS, 2008. p.78). A banda foi um detalhe importante na demonstrao de pompa e esplendor das festas organizadas em Parnaba. Demonstraes de opulncia da fidalguia nas recepes ficaram na memria de seus habitantes. Constam tambm as peas de seu mobilirio: para transporte, possua quatro cadeirinhas e quatro liteiras, cadeiras forradas de damasco, de palhinha, mesas diversas, camas marquesas, dezesseis bas, seis cmodas. O mobilirio do resto da Provncia era bastante diverso deste. Silva Filho (2007, p. 118) afirma que o mobilirio da casa rural puro artesanato [...] produzido na prpria fazenda pela mo-de-obra escrava. Barreto (1940, p.212), ao descrever o mobilirio das fazendas 197 do Piau, assim coloca: De mobilirio, vimos mesas e bancos de madeira; alguns com encosto. Banquetas e cadeiras com assento e encosto de couro; malas de couro cru; bilheiras, potes e redes [...] bilheiras, potes e redes so os objetos de maior adorno, os mais cuidados e, s vezes, ricamente trabalhados [...] as bilheiras e potes de barro so os ornamentos das varandas, onde h grande nmero de exemplares, variando de forma e tamanho, colocados em srie. (Id. ibid.). Praticamente a mesma descrio dada por Silva Filho (2007, p.119), podendo ser resumida em: bilheiras, potes, filtros, piles; mesas de refeio feitas de cedro ou de pau-darco, grandes e simples; cadeiras de couro com pelo; tamboretes com assento de couro e, ocasionalmente, bancos de tbua corrida; cabideiros toscos para chapus e candeeiros. Um ou outro armrio para talheres, louas, compoteiras
197 Comparamos os mveis de Simplcio com os das fazendas porque ainda eram raras as residncias em vilas no perodo. 146
e toalhas. V-se que o mobilirio e utenslios apreciados e importados da Europa pelos Dias da Silva eram bastante diversos dos encontrados no restante das moradias 198 piauienses. Segundo Paula NETO (2000, p. 28): Simplcio procurou anexar colossal fortuna, herdada de seu pai, o lado cosmopolita e social do final do sculo setecentista. Alm de possuir msicos instrudos na Europa, o seu palacete tinha moblias, louas e espelhos no estilo francs da regncia e diretrio, como era apangio da poca. As importaes de tais apetrechos de origem francesa chegavam via Lisboa, cidade em que mantinha um representante. Dizem que tinha fascnio por franceses, o que no de se surpreender, j que, conforme Monteiro (2008, p.69), a Frana era o modelo, e incentivou determinadas formas de comportamento, criou e estabeleceu as condutas aristocrticas e cortess. O gosto manifesto no era do tipo gosto colonial, mas moderno e civilizado; em suma, o do estrangeiro. Uma parte do inventrio nos remete ideia de uma classe social letrada, ilustrada e especialmente atenta, como o prova a existncia de um telescpio, para observar a chegada de embarcaes na linha do horizonte e/ou vigiar os contrabandistas e piratas que porventura entrassem no porto. O gosto pela leitura e pelas artes era atestado pelos seiscentos e noventa e quatro livros (cujos ttulos no foram arrolados), pelas sessenta telas francesas e incaicas; pianos e tapearias. Segundo Monteiro (Ibid., p.120), esses pertences indicam que ser abastado e cultivar o luxo e o conforto no bastava, mas sim ter um olhar diferente do mundo. O luxo parecia o novo hbito dos integrantes da classe emergente da Vila de So Joo da Parnaba. Na mencionada Vila, os Dias da Silva estabeleceram os parmetros de uma elite ilustrada e letrada, apta a tomar sua liderana econmica e poltica e a projetar- se na Provncia. Simplcio liderou as lutas enfrentadas por seu grupo de comerciantes, e, com o mesmo entusiasmo, aderiu s batalhas ideolgicas do pas em busca de sua independncia. Destacou-se no movimento de Independncia do Piau, sendo o primeiro a declarar-se por ele, tendo conduzido a guerra contra as tropas portuguesas de Joo Jos da Cunha Fidi (FALCI, 1994, p. 63). Quando D.
198 Mais tarde, o mobilirio passou a ser adquirido nos mercados e feiras urbanas prximos. Somente a partir do terceiro quartel do sculo XIX, quando a navegao do rio Parnaba incrementou o comrcio de importao e exportao, o mobilirio e os utenslios de produo industrial chegam aos centros urbanos ribeirinhos, em vapor que subia o Parnaba e, da, em carro de boi e lombo de animais, s cidades interioranas e fazendas. Cf. Olavo Silva Filho (2007, p.118). 147
Pedro assumiu o trono, nomeou Simplcio como primeiro presidente da Provncia, cargo que recusou. 199
No obstante, sua fama o retrata como figura controversa sob o ponto de vista moral humanista. A lembrana popular guardou aes brbaras, envolvendo escravos expostos a suplcios e mortes durante espetculos oferecidos aos convidados de suas festas, como a que mereceu um ttulo Os Bales do Rosrio em que escravos eram presos em bales para servir de alvo para tiros de seus convivas, alm de outros detalhes do gnero. Pode-se admitir que relatos desse tipo tenham sido forjados para denegrir no s suas aes polticas, mas tambm para anuviar o brilho de sua riqueza, que era pontilhado com requintes excntricos. Como exemplo, poderamos considerar que mais provavelmente, na festa dos bales do Rosrio o alvo para os tiros dos convidados seriam os bales presos terra pelos escravos (FALCI,1994, p. 64). Aos poucos, as charqueadas de Parnaba foram desaparecendo. Dos seis estabelecimentos de Domingos Dias da Silva, trs fecharam antes de 1813, e, quando Simplcio morreu em Parnaba em 1829, j no mais havia nenhuma das charqueadas deixadas pelo pai. Falci argumenta que pesou sobre a falncia dos Dias da Silva o fausto em que viviam, sobretudo Simplcio. 200 Detalhando informaes, Falci (1973) atribuiu a falncia das charqueadas falta de apoio governamental; as secas, as comunicaes precrias, as perdas dos mercados mineradores e o distanciamento da cidade de outras regies da Provncia. Mas as causas econmicas foram fundamentais. A trajetria do apogeu e o declnio do comrcio de charque da Vila de Parnaba podem ser entendidos como consequncia da economia piauiense na primeira metade do sculo XIX, que resultava essencialmente das variaes na demanda do gado. A frequente oscilao de preo refletia-se na quantidade de gado conduzida anualmente aos mercados consumidores. Foi nesse perodo que se deram a conquista e a perda do mercado regional. A princpio, o Piau conquistou
199 Falci justifica que ele recusou o cargo, alegando sade abalada e a necessidade de continuar tentando reaver suas atividades agropastoris, no Norte da Provncia, esfaceladas com a guerra (1994, p.66). 200 interessante citar as excentricidades de Simplcio apontadas por Falci (1973). Dentre muitas aes, se no for folclore historiogrfico, teria presenteado a D. Pedro I com um cacho de bananas, em tamanho natural, feito em ouro e pedras preciosas. Conferir Lima (2003, p.10). 148
mercado 201 fornecendo gado para a regio mineradora de Minas Gerais, 202 para as demais provncias do Nordeste e para o Par. Porm, quando o criatrio se ampliou nessas regies, 203 os criadores do Piau perderam mercado para esses concorrentes emergentes, por no terem providenciado melhorias na qualidade do plantel e/ou na possibilidade de oferecer carne a menor preo. Segundo Queiroz (1998, p. 21): A pecuria, apesar de continuar sendo a atividade mais importante, perdia rapidamente posio no mercado regional, em decorrncia do crescimento e melhoria dos rebanhos das demais provncias e das perdas qualitativas do prprio rebanho por falta de inovao no sistema de criao. O gado piauiense perdia, enfim, competitividade nos tradicionais mercados consumidores do nordeste, no Par e no prprio mercado interno. Falci (1973) explica a decadncia da pecuria a partir da segunda metade do sculo XVIII como decorrncia da m administrao das fazendas, tanto do Fisco quanto das particulares: a poltica fiscal que concedia ao Maranho as vantagens da arrematao dos dzimos at 1836; a tcnica rudimentar; as secas na regio em 1838, 1840 e 1841 e a falta de crdito do governo central que era dado s a Minas Gerais e ao Rio Grande do Sul (FALCI, 1986, p.26). Santana (2008, p. 17) e Mendes (2003, p.117) chamam esse perodo de estagnao econmica, ou crise da pecuria (1759-1852). Na anlise de Santana, neste perodo, o fluxo de renda gerada pelas exportaes de gado no era suficiente para assegurar nvel de vida ascendente (FALCI, 1986, p.27). Mendes chama a ateno para a falta de alternativas econmicas nesse perodo (SANTANA, 2008, p. 17). Essas crises foram em parte superadas com o transporte do gado, via rio Parnaba, para as charqueadas do litoral, quando estas floresceram pela iniciativa de portugueses como Domingos Dias da Silva. Para os momentos de maior desvalorizao 204 do gado, 205 por falta de mercado, uma boa opo para o
201 Segundo Antonil o Sul Rio de Janeiro, Esprito Santo, So Paulo e Curitiba no tinham pecuria no comeo do sculo XVIII, para atender as exigncias de sua populao (NUNES, 1972, p.5). 202 Conforme Odilon Nunes, o comrcio de gado nas Minas Gerais era monoplio do Piau. Cita o Conde de Assur, que diz: costumam sair do Piau e Parnagu em distncia de quatrocentas lguas deste Governo todos os gados que servem para sua subsistncia (1972, p.5). 203 Caminhos foram abertos entre 1727 e 1734, ligando o Rio Grande do Sul a Minas Gerais. O gado do Rio Grande do Sul conquista o mercado de Minas Gerais, e os bois dos pampas passam a concorrer na regio da minerao com os bois dos agrestes e catingas do nordeste. Cf. Nunes (1972, p.5). 204 Mendes exemplifica o tamanho da crise da pecuria referindo-se a uma resoluo da Cmara do Senado em Campo Maior, em 1674, que fixou o preo de vrios produtos, entre eles o de um boi gordo em um mil novecentos e vinte ris, o que correspondia ao preo de oito galinhas grandes e 149
fazendeiro era descart-lo, encaminhando-o para o abate nas charqueadas, prtica mencionada por Azeredo Coutinho em seu Ensaio Econmico (AZEVEDO, 1794, p. 5-6), que se refere grande quantidade de gado e que o vacum tanto que a maior parte dele s se mata para se lhe tirar a pele; os muitos milhares de couros, que todos os anos vm daquele continente, fazem ver esta verdade. Conforme Rolim: Analisando a conjuntura da colnia no final do sculo XVII e incio do XVIII observamos, segundo as explicaes de Capistrano e Caio Prado Jr, as j citadas longas marchas das reses pelo serto ou litoral, que acabavam desgastando o gado e desvalorizando seu preo, causando altos prejuzos financeiros aos fazendeiros. Ento, a partir da 1 metade do sculo XVIII, talvez j no incio, os fazendeiros das reas mais prximas ao litoral passaram a comercializar o gado j abatido e transformado em carne seca e salgada (ROLIM, 2009). Como o plantel era grande, no se admira que em 1781, em processo de decadncia da pecuria, foram abatidos em Parnaba de trinta a quarenta mil cabeas de gado, o que correspondia a um quarto da venda geral da Capitania (NUNES, O., 1972, p. 21). Talvez Porto (1974, p.155) nem tenha exagerado quando afirmou que, com a pecuria em processo de estagnao, devido perda do mercado das regies de minerao, a desvalorizao da carne atingiu o ponto de se sacrificar reses unicamente para aproveitamento do couro (MENDES, 2003, p.117). As charqueadas surgiram ao longo do processo de decadncia da pecuria. Quando o gado vivo perdeu o valor, o aproveitamento da carne e do couro 206 foram a melhor alternativa econmica na ocasio. preciso ressaltar aqui outra importante causa da decadncia das charqueadas, apontada por Falci a concorrncia do charque do Rio Grande do Sul a partir de 1827. O rebanho do Rio Grande do Sul era infinitamente maior que o do Piau, os rio-grandenses investiram na industrializao da carne e se tornaram
gordas, enquanto o feitio de um par de botas custava dois mil quinhentos e sessenta ris. Em 1825, uma libra de carne bovina custava trinta e cinco ris, nove vezes menos que uma libra de acar, ou seja, trezentos e vinte ris (2003, p.117 apud P. DA COSTA, 1974, p.162-163). 205 O gado tambm era enviado para trabalho nos engenhos de acar, de um tipo chamado trapiche. O engenho era acionado pelo trabalho de sessenta bois. O gado tambm era utilizado nos carros que transportavam a cana do corte para a moenda e removiam o acar aos portos de embarque (PORTO, 1994, p. 35). 206 Firmas francesas estabelecidas em Fortaleza, desde 1860, compravam couro para exportao. Em anos de seca, a exemplo de 1877, quando o rebanho do Cear foi diminudo, as casas francesas, como a Levy Frres, auferiram grandes lucros, ofereciam preos vantajosos para quem quisesse vend-los, chegando a enviar corretores at 10 a 15 lguas de distncia para, deste modo, no escapar-lhe nenhum comboio. TAKEYA, 1994, p.117. 150
fornecedores dos Estados Unidos da Amrica, em uma negociao que Falci chama de comrcio triangular: com a Argentina sob o controle dos ingleses, os EUA foram buscar no Rio Grande do Sul o couro que necessitavam para a sua crescente indstria. Os comerciantes americanos compravam sal em Cabo Verde, vendiam o sal no Rio Grande do Sul, que lhes fornecia couros, solas, chifres e carne salgada. A carne salgada eles deixavam nos portos do Nordeste (Salvador e Recife) a preos que impossibilitariam qualquer fazendeiro fazer concorrncia, e voltavam para os EUA com o que necessitavam (FALCI, 1986, p.27). Com o desaparecimento das charqueadas, perdeu-se a tcnica de charquear. Houve uma tentativa de revitalizar essa prtica, quando, em setembro de 1887, o presidente da Provncia, Francisco Jos Viveiro de Castro, baixou uma portaria em que nomeava uma Comisso 207 para estudar as possibilidades de ser reiniciada, no Piau, a indstria do charque. O presidente lembrava que: Houve um tempo de prosperidade, quando os mercados do Maranho e Cear vinham aqui abastecer-se de gado. Mas hoje que o Maranho tem o gado necessrio para o seu consumo, e o Cear j exporta at em grande quantidade para o Par, compreendeis perfeitamente que a baixa do gado no Piau ser mantida por longo tempo, como consequncia necessria do excesso da oferta [...]. Nestas condies considero, como nico recurso para resolver a crise que aflige a indstria pastoril, a iniciao do preparo do charque. Considero to importante este assunto, que apesar do estado financeiro da provncia no ser lisonjeiro, no hesito em pedir-vos a consignao no oramento de uma verba de 5.000$000, a fim de habilitar esta presidncia a mandar pessoa competente e habilitada a estudar praticamente o assunto no Rio Grande do Sul e na Repblica Argentina, e vir depois ensinar aos criadores da provncia os processos do preparo. Essas ponderaes eram enviadas Assembleia Provincial, sem que nada resultasse de prtico (PORTO, 1974, p. 152). Segundo constata Del Priore (2006, p.121), as tcnicas empregadas no preparo do charque nos pampas gachos foram sofisticadas e tornaram atraente seu comrcio em grande escala: De 1780 em diante, em vez do penoso deslocamento do gado at as praas comerciais paulistas, vendia-se diretamente a carne, empregando no s o transporte terrestre, como a navegao de cabotagem. Com custos mais baixos de produo e transporte do que a carne sertaneja, o charque invade o cardpio dos escravos e livres pobres.
207 A Comisso era composta de Joo da Cruz e Santos, Mariano Gil Castelo Branco, Augusto Colin da Silva Rios, Ricardo Jos Teixeira, Jos Flix Pacheco e Polidoro Csar Burlamaqui. Conferir Porto (1974, p. 152). 151
A revoluo que se operou nos pampas gachos, como foi sinalizada por Del Priore, lanou algumas regies nordestinas de pecuria em uma crise que se arrasta at hoje (Ibid., p.122). Tal recuperao nunca aconteceu. 208 Em Parnaba encontramos referncia oficina de charque localizada na praa em frente Santa Casa de Misericrdia, pertencente ao Coronel Pacfico Castelo Branco, fazendeiro no interior do Piau e do Maranho, que morreu em 1894. Cndido Atade esclarece que, em 1910, j no mais havia nenhum negcio de charque em Parnaba. Uma anlise mais pontual das atividades econmicas e financeiras de Dias da Silva encontra mais um fator operando na crise e na falncia de suas charqueadas. Sua atividade comercial seguia, conforme Wood (2001, p.30), uma lgica muito distinta da lgica do mercado capitalista moderno, j que consistia simplesmente em transportar mercadorias no caso, gado e seus derivados de um mercado a outro. Alm disso, apesar de a riqueza alcanada por Domingos Dias da Silva ser superior arrecadao da receita provincial, oriunda principalmente dos dzimos do gado, ela no foi transformada em capital caracterizado como investimento na produo, mas em capital aplicado na formao de um patrimnio baseado na compra de escravos, na construo de navios para transporte das cargas, em prdios urbanos, no aprimoramento de suas moradias e na construo de duas igrejas 45 : em suma, em reforar a atividade de transporte de mercadorias e na sua promoo social, no que foi seguido por seu filho Simplcio. 3.2 Novos Produtos, Novos Comerciantes Os Dias da Silva foram os charqueadores da Vila de So Joo da Parnaba que apresentam maior visibilidade na historiografia local. Tal expresso definiu-se pelo tamanho de sua fortuna, pelos prdios que deixaram construdos, e pelo papel que tiveram na vida poltica associado alardeada vida faustuosa que levaram, cujas histrias ficaram na memria dos moradores, impondo-se historia local. Mesmo tendo sido uma importante atividade econmica, as charqueadas no se consolidaram como impulsionadoras do desenvolvimento do Piau. No entanto,
208 O que no significa que a carne de sol deixou de ser produzida, possivelmente em outros moldes ela ainda o at hoje, constituindo um dos chamados pratos tpicos do Piau. 152
apesar das dificuldades, essa atividade foi capaz de lanar as bases para a penetrao do capital estrangeiro no Piau. O fato que, mesmo aps o fechamento das charqueadas dos Dias da Silva, o movimento das embarcaes pelo Porto de Amarrao foi intenso e o ritmo da economia da Vila de Parnaba continuava ditado pelas exportaes e importaes, tanto para o mercado interno quanto para o externo. No Piau, at a dcada de 1870, 209 o comrcio de gado (NUNES, O., 1963, p.100) ainda era responsvel pela dinmica da economia. Eram enviados aos milhares para outras provncias do Nordeste e para o Par, e a sua comercializao no Exterior expandiu-se principalmente com a Guiana Francesa e a Inglaterra (QUEIROZ, 1998, p.19), ano em que se fizeram as primeiras exportaes pelo Porto de Parnaba. O comrcio do couro e seus derivados tambm permeou a economia piauiense desde o perodo colonial at a segunda metade do sculo XX. As atividades agrcolas se diversificaram, possibilitando um significativo comrcio de algodo, iniciado em 1815. Nos anos finais do sculo XIX e incio do XX, o fluxo econmico passou a ser sustentado pelas exportaes de produtos extrativistas borracha de manioba, cera de carnaba e babau (QUEIROZ, 1998, p.33). sobre a dinmica do comrcio desses produtos e seus agentes que passaremos a tratar agora. O movimento das embarcaes nacionais e estrangeiras testemunha do movimento comercial da vila. A existncia de um trfego porturio em Parnaba pode ser avaliada pelos registros da Alfndega da Provncia e pelos relatrios de seus presidentes, no perodo de 1834 a 1880 (GANDARA, 2009). As informaes contidas nesses dois tipos de documentos sero analisadas a seguir. Gandara (2009) mostra que, para o ano de 1834, o registro da Alfndega acusou a entrada de treze navios em Parnaba; dez delas feitas por cinco navios brasileiros pertencentes a negociantes com estabelecimento na vila, o que demonstra que, mesmo com a morte dos Dias da Silva, a prosperidade comercial parnaibana teve continuidade. Alm dos cinco j citados, em alto mar operavam dois navios americanos e um espanhol, que possivelmente no atracavam no porto de Parnaba por sua falta de estrutura. Infelizmente, a fonte informa apenas a nacionalidade dos navios, no trazendo detalhes de suas cargas.
209 A partir da dcada de 1870, j estava bem caracterizada a perda de espao do Piau, em termos nacionais. Conferir QUEIROZ (1998, p.21). 153
Para o perodo de 1846 a 1851, os relatrios dos presidentes da Provncia atestam a crescente importncia do comrcio de algodo. Foi nessa poca que se fizeram as primeiras exportaes de algodo pelo Porto de Parnaba. E na cidade de Parnaba, juntamente com a criao da Alfndega, foi autorizada a criao da Inspeo do Algodo, visando facilitar o embarque desse produto. Referindo-se a essa atividade, informam que na Vila do Poti se construam barcos para conduzir o algodo pelo rio Parnaba. A mercadoria era ento negociada pela Casa Inglesa que o comprava pelo mesmo preo do Maranho, o que demonstra a presena de um comrcio competitivo com outras praas. Em 1848, trs navios de consignao mantinham o comrcio de gados com Caiena: o brigue escuna guia, de cento e cinquenta e cinco toneladas; a sumaca Parnaba, de cento e cinco toneladas; e a escuna Feliz Amizade, de cinquenta e cinco toneladas (Ibid., p.293). Apesar de a atividade comercial continuar em expanso, ela no tinha ainda conseguido integrar- se a circuito mais lucrativo, pois, embora as embarcaes levassem mercadoria, muitas vezes voltavam vazias; velejavam ao sabor do vento e, assim, ficavam impossibilitadas de realizar compromissos regulares para o transporte de mercadorias entre os portos ao longo de suas rotas, o que muitas vezes impedia o constante comrcio de mo dupla. Nos anos de 1853 e 1854, deram entrada nove navios com cento e quarenta e seis toneladas, sendo dois provenientes de Liverpool e dois de Caiena. Em 1855, a navegao de longo curso era feita por dois brigues ingleses, um de duzentos e oitenta toneladas e outro de cento e vinte nove, que atuavam na rota entre Parnaba e Liverpool; e um brigue escuna brasileiro de cento e trinta e trs toneladas, entre Parnaba e a Guiana Francesa. 210
Em 1856 e 1857, segundo o Ofcio de 27 de junho de 1857 do Capito do Porto, enviado ao presidente da Provncia, no perodo de 31 de maio de 1856 a 01 de junho de 1857 entraram no porto vinte navios e saram vinte. Eram dezesseis nacionais e quatro ingleses. Dos primeiros, doze eram oriundos do Maranho, um do Par, um do Rio Grande do Norte, um de Apicum-Cear e um de Granja-CE. Das embarcaes estrangeiras, tem-se informao de que trs eram procedentes de
210 Segundo Gandara (2009), essas informaes so dadas no Relatrio da Alfndega de 1857, pelo Juiz Antonio Francisco Sales, em documento ao Presidente Jos Antonio Saraiva, de 28 de maio de 1852. 154
Liverpool, no havendo dados sobre a origem do Porto ingls do quarto navio. Trs navios traziam gneros estrangeiros, nove gneros nacionais e estrangeiros, dois gneros do Pas, dois traziam sal e cereais e trs sem lastro. Dos que saram, dez levaram gneros do Pas, sete transportavam animais vivos, um levava cereais, um sem lastro, e outro apenas um engenho de ferro para Granja-CE. Estas informaes mostram que o comrcio parnaibano continuava desorganizado do ponto de vista capitalista: suas cargas eram quase sempre realizadas em uma nica direo, enquanto os navios que aportavam em Parnaba vindos de outros portos nacionais ou estrangeiros raramente voltavam vazios, completando o ciclo necessrio reproduo metablica do capital (ISTVN, 2002). Com a navegao a vapor, iniciada em 1859, os portos internacionais mais visitados por navios de comerciantes estrangeiros estabelecidos em Parnaba continuaram sendo os de Liverpool e Caiena. Dados referentes a esse movimento so apontados por Gandara (2009, p.296), mostram que, entre 1859 e 1860, quatro navios ingleses provenientes de Liverpool chegaram a Parnaba; entre 1860 e 1861, entraram e saram do referido porto vinte e trs navios ingleses cinco procedentes de Liverpool, sendo os demais de outras praas; entre 1861 e 1862, vinte e oito navios entraram e saram do litoral piauiense, sendo vinte e dois ingleses e seis americanos vinte e seis procediam de Caiena e quatro de Liverpool; entre 1862 e 1863, trinta e quatro navios, sendo vinte e trs ingleses, oito americanos e trs brasileiros: vinte e seis procediam de Caiena, quatro de Liverpool, trs do Maranho, um de Serra Leoa; entre 1863 e 1864 foram treze ingleses, dez americanos e oito brasileiros. Em 1869, setenta e trs navios; em 1870, setenta e seis; em 1871, oitenta e cinco; em 1872, setenta e cinco; e, em 1880, seis, sendo cinquenta brasileiros, oito franceses e trs ingleses. 211
interessante observar que, com a navegao a vapor, o comrcio parnaibano com outras praas ganha intensidade. O nmero de embarcaes que chegavam e saam do porto cresceu e diversificou-se com o passar dos anos; o que demonstra uma ampliao da atividade comercial, consequncia do crescimento e do ganho em complexidade do mercado produtor e consumidor local. No exerccio de 1864-1865, Gandara (2009, p.297) verificou que as entradas e sadas de navios de cabotagem na cidade de Parnaba elevaram-se respectivamente a cinquenta e
211 Relatrio da Alfndega de 1880. 155
dois e a quarenta e sete. J em viagem de longo curso, foram vinte e nove entradas de navios e vinte e oito sadas. Entre entradas e sadas havia quinze navios ingleses, trinta e seis americanos, um prussiano, trs brasileiros e dois franceses. No perodo de 1834 a 1880, o total de embarcaes de quinhentos e noventa e um nacionais, sessenta e seis inglesas, trinta e seis norte-americanas, oito francesas e uma espanhola (MENDES, I., 2008, p.11). Nota-se um expressivo nmero de embarcaes americanas trafegando em Parnaba, sobre as quais no se tm maiores informaes. Porm, levando em considerao que no h referncias presena de comerciantes americanos instalados em Parnaba, pode- se inferir que se tem, naquele perodo, uma significativa relao de comrcio entre essa Provncia e a Amrica do Norte. As dcadas de 1850 e 1860 foram marcadas pelo bom desempenho das exportaes de gado e de algodo (QUEIROZ, 1993, p.19). As embarcaes a vapor intensificaram o comrcio, com a navegao de longo curso. 212 Em dezembro de 1858, com a entrada no Porto de Parnaba do vapor So Luis pertencente Companhia Maranhense de Navegao Costeira , o servio de navegao de cabotagem entre o Cear e o Maranho torna-se regular. Segundo Odilon Nunes (2007, p.173), com a mudana da capital de Oeiras para Teresina, ocorreu o florescimento da agricultura, haja vista a facilidade de transporte dos produtos agrcolas atravs do rio Parnaba e a navegao a vapor, que serviu de estmulo ao comrcio da Provncia. Tais acontecimentos possibilitaram a estabilidade de firmas estrangeiras na cidade de Parnaba, e a consequente penetrao do capital por seu intermdio. Vrios comerciantes estrangeiros passam a operar na vila. As transaes comerciais de vulto eram feitas, segundo Barbosa (1986, p. 89), por Joo Frederico Hoyer, dinamarqus; pelo francs Gustave Naeff, da Naeff Nadler & Co., filial de
212 A introduo da navegao a vapor no significou o fim da navegao vela. A vela continuou concorrendo com o vapor, pois o frete dos vapores era mais caro. Com isso, mesmo com o vapor, uma carga de retorno no era assegurada a cada viagem. Somente com o surgimento do boom da borracha do vale amaznico no final dos anos 1970, este panorama iria mudar. Outro fator a ser levado em conta que os navios a vapor estavam em fase experimental, cheios de problemas de maquinrio, o que afetava todas as empresas do ramo. Por causa desses problemas, ganhar da concorrncia dos navios vela no aconteceu rapidamente. Conferir Pennington (DAVID, 2009, p.159).
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uma casa do Maranho; e pelo ingls Paul Robert Singlehurst armadores cujos navios cruzavam o Atlntico, comerciando com a Europa e a Amrica, principalmente com os mercados de Liverpool e Caiena. 3.3 O Comrcio com Caiena, Guiana Francesa Nos documentos provinciais aparecem informaes sobre o comrcio relativamente intenso de gado vivo entre Parnaba e a Colnia francesa da Guiana Francesa, enviado a princpio em veleiros e depois em vapores. Das cerca de sessenta mil cabeas de gado anuais exportadas pelo Piau, uma parte atendia o mercado regional e outra a Guiana Francesa (QUEIROZ, 1998, p.20). O envio de gado para a Guiana tinha o propsito de abastecer o territrio, mas foi incrementado com a construo da colnia penal ali instalada. 213
Um problema dos comerciantes de gado advinha da bitributao das mercadorias. O comerciante parnaibano ou estrangeiro ali estabelecido pagava imposto tanto para o Piau quanto para o Cear. Pelo Relatrio do presidente da Provncia, Dr. Manoel do Rego Barros Souza Leo, de 1 de julho de 1871, somos informados que o municpio de Granja, 214 Provncia do Cear, estava desde 1865 de posse do Porto de Amarrao, o que representava para o Piau uma desvantagem imensa. A luta pelo domnio da regio de Amarrao entre as duas provncias era constante. Para o Piau, esse local era vital ao comrcio, j que no possuir um porto no Atlntico implicava em que as mercadorias vindas diretamente da Europa ou de qualquer provncia do imprio teriam que ser desembaraadas em Amarrao territrio cearense. A assembleia provincial do Cear criara um imposto sobre cada cabea de gado exportado da Provncia, e os agentes fiscais do Cear se julgavam com direito de cobrar o imposto sobre o gado embarcado, que, do Piau saa para Caiena ou, como afirmava o Presidente da Provncia do Piau, apenas toca na Amarrao para ser embarcado.
213 Na Guiana Francesa, o imperador Napoleo III comeou a construo de um sistema penal, fazendo deportaes a partir 1852. Em 1854 foi construdo o presdio da Ilha do Diabo, e, em 1858, o de Saint-Laurent-Du-Maroni. Para l foram remetidos mais de 90 mil prisioneiros. 214 A posse oficial do territrio de Amarrao pelo Cear se deu pela lei n. 1177, de 20 de agosto de 1865, quando a Assembleia Legislativa do Cear criou o Distrito de Amarrao. Conferir Mendes (2008, p.15). 157
Essa situao foi reclamada pelo comerciante francs, o Sr. Lalanne ao vice- cnsul de seu pas, o tenente Jos Francisco de Miranda Filho, instalado em Parnaba, que a levou perante o presidente do Cear. Entretanto, a reclamao no obteve sucesso junto autoridade cearense, que a indeferiu, sob pretexto de que somente a Assembleia Provincial podia resolver a respeito. 215 O Relatrio do Inspetor da Alfndega de Parnaba, de 15 de maro de 1866 (NUNES, O., 2007, p. 175), informa que: A principal exportao que se fazia, ento, pela cidade de Parnaba era a do algodo para a Inglaterra e Maranho, e, em seguida vinha a de animais vivos, comrcio efetuado por um agente do contratante com o governo francs em Caiena, estabelecido na povoao do Porto de Amarrao (ento pertencente ao Cear), para o fornecimento dos emigrados e prisioneiros do mesmo governo, e sua conta, nas possesses das Guianas Francesas, cuja exportao ora por cinco mil cabeas anualmente. Para a Guiana Francesa vendiam-se ainda carneiros, porcos, mulas, cavalos, em pequena escala (NUNES, O., 2007, p. 175). Acredita-se que o contratante estabelecido em Amarrao era Lalanne, que, residindo em Amarrao, encontrava-se a servio do comrcio francs. Outras informaes sobre o comrcio com a Guiana so dadas no documento da Alfndega de Parnaba, datado de 22 de dezembro de 1882. Ele informa que o vapor francs Jeune Amiral, de propriedade de L. A. Fagard, comandado por Felix Briere, de trezentos e vinte e sete toneladas, vindo da Ilha Grande de Santa Isabel, encalhou em um dos baixios da barra de Amarrao quando ia para Caiena, com duzentos e quarenta bois, um jumento, cento e vinte encapados de goma de mandioca, vinte e dois barris do mesmo produto, cem jerimuns, quatro paneiros de feijo, uma barrica de farinha e cinquenta toneladas de carvo sobressalentes. A documentao aponta tambm para vrias entradas e sadas 216 desse vapor para o Par, em uma viagem que, no trecho Parnaba Par, durava em torno de quatro dias. O retorno do Par para o Piau dava-se, frequentemente, com carga lastro, isto , sem mercadoria, s levando o gado vivo do Piau. Sabe-se, no entanto, que o comrcio de produtos importados da Frana j havia alcanado Parnaba. Em 1866, pela Guiana Francesa, vinham da Frana para Parnaba louas, espelhos, conservas alimentcias, manteiga, farinha de trigo; e, diretamente da Frana,
215 Essa questo s foi liquidada, quando em 22 de outubro de 1880, os municpios de Independncia e Prncipe Imperial (Crates) foram permutados pelo de Amarrao, atual Luis Correia. 216 Anotamos as entradas e sadas de 15 de junho, 27 de junho, 30 de junho, 10 de outubro de 1882. 158
medicamentos, vinho, charutos, peixe em conserva, cigarros, banha de porco, entre outros. Outro estrangeiro que negociava com bois foi Joo Frederick Hoyer, apontado na documentao da Alfndega de Parnaba como sendo dinamarqus e proprietrio do iate francs o Cisne. Documento da Alfndega de Parnaba de 26 de setembro de 1882 acusa a sada do seu iate com uma carga de bois para o Par. Em 10 de outubro de 1882, procedente do Par, Hoyer chega a Parnaba com mulher, filho, servente e escrava, a bordo do Jeune Admiral. Possivelmente veio com a famlia e empregados para morar e comerciar bois na rota Parnaba - Par sinal de que o negcio era lucrativo. 3.4 O Comrcio Interno e Externo do Couro e de seus Derivados O comrcio do couro (verde ou curtido), couramas, peles (de carneiro e ovelha), atanados (couro de boi curtido), couro em cabelo e meios de sola foi um dos mais permanentes e longevos da economia do Piau. O uso domstico e/ou industrial destes diversos subprodutos do gado, bem como seus destinos comerciais mudaram ao longo do tempo. O gado e seus subprodutos foram aproveitados de diversas maneiras. Foi morto sem se aproveitar o couro, caso das Fazendas Nacionais, mencionado por Odilon Nunes (1972, p.26), que, no comeo do sculo XIX, os couros dos gados abatidos nas fazendas estaduais era perdido, e, para aproveit-lo, Pedro Jos de Menezes falou em criar um curtume, enquanto Carlos Csar Burlamaqui mandava salg-los. O contrrio tambm ocorreu: o gado foi morto para se aproveitar apenas o couro, prtica mencionada como de explorao depredatria por Nunes (Ibid., p.13) no caso do Sul, como consequncia do extenuamento da minerao, 217 e tambm no Piau, devido baixa cotao do boi, em que se matava a rs para aproveitar somente o couro. 218 Alm da venda da carne e do couro, eram comercializados: o sebo, o chifre, a pata, a sola, a crina e a raspa do couro.
217 Del Priore (2006, p. 77) menciona a mudana do eixo econmico da Colnia, que privilegiou os produtos do Centro-Sul, no abastecimento das Minas. Os animais provenientes do Rio Grande do Sul desestabilizaram o fornecimento vindo das barracas do So Francisco. 218 Esta autora registrou que, por volta de 1779, no Rio Grande a valorizao do couro promoveu uma verdadeira carnificina, matava-se milhares de animais, inclusive vacas prenhes e vitelinhas, para arrancar-lhes o precioso revestimento (Ibid., p. 68). 159
Diz a historiadora Mary del Priore (2006, p.75) que o gado, no perodo Colonial, alm de fornecer a carne verde que alimentava a populao, tinha ainda outras funes: seu couro servia para ensacamento da produo de fumo, matalotagem de alimentos nas viagens ultramarinas, 219 fabricao de bruacas, surres, laos e chinchas. Nas fazendas aucareiras, cordas de couro eram comumente usadas, quer para a lavragem das canas, quer para virar as pesadas rodas dos engenhos. O Brasil foi marcado, segundo Capistrano de Abreu, por uma poca do couro, sendo esta matria-prima para quase tudo (GANDARA, 2008, p. 233). Odilon Nunes (1972, p.21) tambm chama a ateno para a relevncia dos subprodutos do gado, ao afirmar que, no Brasil, em 1777, em primeiro lugar na pauta de exportao estava o acar, e em segundo a courama, isto , couro em cabelo, couros de bezerros, raspas de couro, sola, pedaos de sola. No Piau, o comrcio dos subprodutos de gado no perodo colonial mencionado por Odilon Nunes (1972, p.21). Informa que, em 1781, pelo Porto de Parnaba, vendiam-se carnes secas, quatro mil meios de sola, trinta e dois mil couros em cabelo das reses que se abatiam nas suas oficinas, e outros gneros. Gandara tambm comenta: Essa situao pode ser percebida em documentos oficiais como as Cartas de 15 e 16.02.1781 da Junta Governativa informando que no Porto das Barcas (Parnaba) exportavam-se: couros em cabelo, solas e atanados. Transportam anualmente para outros diferentes portos ao nmero de trinta at trinta e dois mil couros e de solas quatro mil meios... (Carta da Junta Governativa de 1781) (GANDARA, 2009, p. 291-309). Takeya menciona as charqueadas, que, alm da industrializao da carne, possibilitaram o aproveitamento dos subprodutos do gado. Passaram a ser comercializados couros e peles, que, at poca da salga, inexistiam como mercadoria (LEMENHE, 1983, p.23). Segundo menciona Takeya (1995, p.94): importante lembrar que as charqueadas tiveram, ainda, indiretamente, uma outra funo, alm de expandir a produo e o comrcio da carne; introduzir os couros e peles na pauta de exportao da capitania, transformando-os, a partir da, em mercadorias. Queiroz tambm destaca o comrcio de couro:
219 Mantimentos para a tripulao e passageiros de um navio. 160
Na exportao de derivados da pecuria, destacava-se o avultado nmero de couros comercializados para o exterior, sendo o principal mercado consumidor a Inglaterra. No Imprio, um dos principais compradores era o Par. Parte expressiva dos derivados da pecuria era, provavelmente, reexportada pelas demais provncias, no s em virtude das dificuldades de escoamento pelo porto de Parnaba, mas tambm pela disperso das rotas comerciais (QUEIROZ, 1998, p.20). Del Priore ao tratar da pecuria acrescenta que se A carne de gado era destinada ao mercado interno, o couro do gado conquista praas comerciais internacionais, atingindo, em fins do sculo XVIII, no somente os mercados de parceiros tradicionais, como a Inglaterra, mas tambm regies distantes, como a Dinamarca ou a Rssia, ocupando o terceiro lugar nos itens de nossas exportaes (2006, p.122). O couro era usado na Bahia, para onde foi largamente exportado do Piau, para cobrir os rolos de fumo. Antonil descreve como se encourava o tabaco: Cobre o rolo de fumo com folhas de caragata secas e amarradas com embira, e depois se faz uma capa de couro da medida do rolo, a qual, cosida e apertada muito bem, marca-se com a marca do seu dono. E desta sorte vo os rolos por terra em carro e por mar embarcados (ANTONIL, 2007, p.191). Calcula-se que o tabaco brasileiro, poca, rendeu nada menos que dois milhes de libras esterlinas, levando Antonil, importante observador econmico do Brasil Colnia, a escrever: " j (o fumo), depois das alfndegas, a principal receita do Estado. As dcimas no receberam mais que cento e setenta e quatro contos e trezentos e cinquenta o imposto de cisas; em nenhum ano deram mais Coroa as minas de ouro e dos diamantes do Brasil (Id. ibid.). Nesta poca, o fumo brasileiro passou a ter trs destinos principais. O produto de primeira e segunda qualidade era exportado para Lisboa. De l, cerca de 60% era comercializado para a Europa Portugal e ilhas adjacentes consumiam o restante. O fumo de terceira qualidade tomou um destino at ento inexplorado: o trfico de escravos africanos (Ibid., p.191). Na Inglaterra, a produo de couros e peles e o seu tingimento 220 foi uma das indstrias mais comuns durante o sculo XIX. Com uma vasta criao de gado e ovelhas, estabelecem-se nas vilas e cidades as indstrias a princpio caseiras associadas ao aproveitamento dos subprodutos da indstria de carnes.
220 O processo de tingimento com cromo ou tanino tem por objetivo torn-lo mais resistente, alm de dar cor e brilho. 161
Assim como no Brasil, na Inglaterra, o couro material nobre era um produto de uso bastante variado, tanto pela beleza quanto pela resistncia. Era empregado na confeco de calados (sapatos, botas, botinas), vestimentas (casacos e jaquetas) acessrios (como correias de relgios, carteiras, chapus, cintos e bolsas); artigos de selaria (arreios para animais, selas, rdeas, chicotes, esporas e freios); artigos de viagem (malas, maletas, bas, bolsas de viagem, estojo para joias e para guardar instrumentos musicais e armas - coldres); encadernao de livros 221 entre outros. No Piau fazia-se com o couro: chinelos, gibo, alforje, surro, bornal, bangu, encosto de cadeira, tamborete, chinelo, cabresto etc. Alm desses usos, os ingleses especializaram-se na fabricao de couro industrial para uso na maquinaria. Nas palavras de Pennington (2009, p. 52): O comrcio de couros torna-se interessante, j que as fbricas nessa poca faziam muito uso de mquinas a vapor estacionrias, operando eixos por cima de sua maquinaria, com polias e correias de couro acionando as mquinas l embaixo. As fbricas eram uma verdadeira floresta de correias de couro - um ambiente perigoso: quando uma correia se rompia, no raro resultava em acidente grave para os operrios. Naturalmente, os outros usos (sapatos, cintos, agasalhos) tambm eram interessantes, mas o uso do couro na indstria, em larga escala, era primordialmente para a confeco de correias, dada a resistncia do couro. Com o advento da Revoluo Industrial na Inglaterra, e o uso em larga escala de mquinas a partir de 1760 alm do consequente processo de difuso da industrializao pelo resto do mundo , a procura por essa matria-prima se torna ainda mais acentuada. Era preciso um constante abastecimento, pois, sendo o couro uma matria orgnica, a sua vida til limitada, o que faz com que seja necessrio substitu-lo periodicamente, em consequncia do desgaste, ruptura ou alterao de aspecto. O Piau foi, sem dvida, uma fonte dessas matrias-primas por centenas de anos, tanto para a Europa quanto para os Estados Unidos. Quanto aos estabelecimentos comerciais em atividade nesse perodo, sabe- se que, de 1866 a 1867, apesar de o comrcio da Provncia ser expressivo graas
221 Freyre registrou que as encadernaes inglesas gozaram a fama de serem as melhores do mundo. Seus encadernadores dominavam os processos qumicos de tornar o couro impermevel e de brilho permanente. Os ingleses, como diz Freyre, chegaram ao aperfeioamento do couro de encadernar livro atravs da qumica de aperfeioamento de couro de sela para cavalos e de sapatos e botas para cavaleiros. Conferir Freyre (2000, p. 73). 162
ao aumento das exportaes do algodo e a uma conjuntura favorvel s exportaes do gado 222 , o nmero de estabelecimentos comerciais era reduzido. A Provncia do Piau possua, em 1866, quatrocentos e treze casas comerciais, das quais vinte e duas eram de portugueses e trs de negociantes de outras nacionalidades (NUNES, O., 1974, p.168). Atravs delas, eram importados diretamente da Inglaterra e da Alemanha armas e munies, tecidos e roupas feitas, calados, chapus, louas, talheres, azeite, manteiga, queijos, presuntos, massas alimentcias, farinha de trigo, medicamentos, sabo, ferragens, tintas, artigos de armarinho, moda, escritrio, entre outros. Para avaliar o incremento do comrcio entre os anos de 1866 e 1869, recorre- se ao quadro estatstico das casas comerciais, publicado no Relatrio do presidente da Provncia, em 1871. Nele consta que havia quatrocentos e uma casas comerciais, 223 dentre as quais vinte e oito de portugueses e seis de negociantes estrangeiros. 224 Um decrescimento de doze estabelecimentos como se v, nos nmeros apresentados acima significativo; reflete um declnio das atividades comerciais envolvendo estrangeiros, sobretudo quando se constata que, dos vinte e oito estabelecimentos de portugueses existentes na provncia, seis desapareceram; e dos seis pertencentes a outras categorias de estrangeiros, trs deixaram de existir. Para compreender melhor as relaes comerciais no Piau, recorre-se a Raimundo Mendes, da Associao Comercial, que, em colaborao enviada Revista Econmica Piauiense, 225 traa um perfil histrico sumrio do comrcio do
222 Segundo Queiroz (1998, p.20), a avaliao das quantidades de gado exportadas anualmente para o mercado regional at a dcada de 1870 torna-se difcil por duas razes principais: as exportaes eram secularmente realizadas ao longo das fronteiras da Provncia; e no havia tributao incidente sobre as exportaes de gado. De acordo com o autor, no resta dvida, entretanto, de que a venda para o mercado interno alcanava milhares de cabeas anualmente. 223 No Relatrio do Presidente da Provncia, em 1781, na pgina 76, no item comrcio, temos a relao de: quatrocentos e uma casas de negcios, sendo quatro grandes armazns de fazendas; cento e oitenta e oito lojas a retalho; sessenta e nove tabernas e quitandas, e boticas. Cento e trinta e trs estabelecimentos diversos: vinte e oito pertencentes a portugueses, oito a sditos de diversas naes, e trezentos e sessenta e cinco a brasileiros. Os sditos de outras naes possuam trs armazns de fazendas, trs armazns de roupas feitas e calados, uma loja de fazendas e uma quitanda. 224 Das seis casas de estrangeiros, trs comercializavam fazendas, e as outras trs roupas feitas, calados e botinas. 225 Conforme Mendes (2003, p.21), os primeiros estudos sistemticos da economia do Piau foram publicados por Raimundo Santana, na dcada de 1950, atravs da revista Econmica Piauiense, mediante a qual pode estimular o aparecimento de novos autores que passaram a tratar do assunto 163
Piau provincial. Ao faz-lo, destaca os principais produtos envolvidos nessa atividade, e informa sobre o tipo de relao que orientava as transaes, de modo a permitir que se trace a rota do comrcio no Piau: A caracterstica foi a prevalncia da criao do gado sobre todas as outras atividades. Na sua rbita girava o comrcio. A lavoura, muito rudimentar, servia apenas ao consumo de cada agrupamento humano, sem qualquer reflexo comercial. No havia estradas; o transporte de mercadorias era feito a lombo de burro; o comrcio incipiente que se ia organizando em cada povoado abastecia-se nos centros maiores uma ou duas vezes por ano; o comerciante do interior levava, regra geral, couros de boi, peles, etc., que trocava por mercadorias (tecidos, calados, louas etc.), com os seus fornecedores. No sul do Estado, Oeiras, antiga capital, era o emprio abastecedor da zona, posteriormente deslocado para Amarante e Floriano, cidades ribeirinhas do rio Parnaba, nica via de comunicao fcil. Teresina, capital, no tinha maior expresso comercial, ento o centro da vida administrativa e poltica do Estado. Ao norte, Parnaba, gozando de situao geogrfica privilegiada, foi, aos poucos, dominando o comrcio do Estado, pois para l forosamente descia pelo rio Parnaba a maior parte da produo e tambm l se ia abastecer quase todo o comrcio do Piau. Explica-se, como resultante lgica desse fato, o aparecimento das maiores firmas comerciais nessa cidade. Praticamente no havia dinheiro; os gneros que o pequeno comerciante do interior entregava aos seus fornecedores, nesses centros, eram trocados por mercadorias, como disse anteriormente, sendo tudo escriturado em conta corrente daqueles, pela qual o comerciante do interior baseava as suas transaes, no usando este nem uma escrita prpria. Tambm no assinava ttulos, porquanto no havia estipulao de prazos, vencimentos. Tudo era feito fundamentado no elemento confiana. Estabelecia-se entre os pequenos comerciantes e os seus fornecedores uma amizade muito grande, de modo que havia muita segurana nas suas relaes comerciais. No ocorria oscilao de preos, os quais se mantinham mais ou menos estveis (MENDES, R., 1957, p. 73). O comentrio de Mendes refere-se ao Piau nos primeiros anos do sculo XX. Observa-se, a partir dele, um comrcio de estrutura bastante precria, sendo realizado nesse meio, quela poca. No processo de desenvolvimento de um capitalismo que caracterizava a economia do pas, o Estado ocupa uma posio marginal, pois o que se tem, naquele momento, so apenas rudimentos de uma atividade de mercado. Basta observar que o comrcio regional no apresentava foras suficientes para transformar os demais aspectos estruturais da sociedade em seu proveito. A ausncia de estradas e meios de transporte que favorecessem um maior e mais eficiente movimento de mercadorias entre os diversos municpios
com enfoque cientfico. Raimundo Mendes foi fundador, junto com Santana e Portela, da revista Econmica Piauienses. 164
obrigava a realizao do mesmo atravs dos meios mais primitivos em uso nessa atividade. A expresso feito a lombo de burro oferece um indicativo do estgio em que se encontrava. Tais dificuldades afetavam outro componente indispensvel a uma sociedade de mercado: a circulao de mercadorias. No Piau, conforme se observa no depoimento acima, o abastecimento dos postos comerciais era feito, de praxe, apenas uma ou duas vezes por ano, quantidade insuficiente para o consumo de uma populao crescente, especialmente levando-se em considerao as condies incipientes em que se efetuava. Tal realidade impunha a manuteno de uma economia quase que exclusivamente de subsistncia, constituindo-se em outro obstculo ao desenvolvimento de uma economia de mercado. Importante tambm observar o tipo de relao que a atividade produzia entre seus agentes. Seguindo a lgica que orientava as demais prticas sociais na regio, as transaes comerciais eram fundamentadas no elemento confiana, base das relaes pessoais que o capitalismo substitui em todas as etapas do processo de realizao do capital. A circulao de mercadorias se fazia atravs da troca de produtos, 226 pois a atividade monetria era quase inexistente: no havia moeda, concorrncia, mercado fornecedor, tampouco mercado consumidor consolidado. Esta situao descrita por Mendes comea a ser alterada com a chegada de comerciantes estrangeiros em Parnaba, vindos da Inglaterra e da Frana, conforme ser visto a seguir. 3.5 Comerciantes ingleses no Piau Gilberto Freyre, em sua obra Ingleses no Brasil (FREYRE, 2000, p.46), traa um panorama do comrcio realizado entre a Inglaterra e o Brasil, demonstrando o predomnio econmico 227 e cultural dos britnicos, desde os primeiros dias de Dom Joo VI, acentuando-se de 1835 a 1912, quando a influncia inglesa comeou a declinar vagarosamente, vencida pela expanso comercial norte-americana e alem.
226 Segundo Odilon Nunes (2007, p.153), em 1857, o comrcio por terra, em cavalos e guas, especialmente o comrcio de caf vindo do Cear e o sal, era permutado pelo fumo, sola, couro e gado vivo. 227 Volpi (2007, p.38) apontou os tratados firmados em 1810 e 1827, que confirmam a posio privilegiada dos ingleses no livre comrcio brasileiro. 165
Ao discorrer sobre este assunto, Freyre assevera que, a princpio, o comrcio britnico dominou as praas do Rio de Janeiro, Bahia e Pernambuco, mas aos poucos conquistou todo o mercado brasileiro, deixando pouco espao para os artigos franceses e americanos (Ibid., p.88). Freyre acrescenta que, ao tempo da chegada de Dom Joo VI, os negociantes britnicos transacionavam com artigos caracteristicamente ingleses: artigos de ferro, ao, cobre, bronze, vidro, couro, ch, cerveja, relgios, munio, pregos, pedras de amolar, foices, folhas de flandres, tintas, papel, genebra, ladrilho, chapus de sol, carvo, selas, arreios, baetas, ls, bacalhau, mveis, pianos e at tintura para barbas ou suas. Alm de mesas, cadeiras, culos, binculos, martelos, alfinetes, agulhas, barmetros, utenslios de jardim e de lavoura; artigos salienta Freyre mais de natureza masculina do que feminina (Ibid., p.173), tambm pelo seu porte e peso. Por sua vez, Volpi registrou que o grande produto da Inglaterra era o tecido de algodo (VOLPI, 2007, p.39). Prova disso so os anncios de jornais brasileiros da primeira metade do sculo XIX, pesquisados por Freyre, que demonstram que os ingleses eram os donos dos melhores armazns de fazendas nas principais cidades da colnia, e depois do Imprio. Freyre registrou a diversidade das fazendas comercializadas, bem como de suas cores: era o irlands de algodo, baetes de cores, e escarlates, baetas 228 estreitas e largas tambm de cores, panos azuis ordinrios e extrafinos. Quanto cartela de cores, esclareceu Freyre que os ingleses davam preferncia s cores sbrias azuis, pretas, cinzentas e brancas , raramente alguma cor mais viva. Na anlise de Freyre, a Inglaterra expulsou do mercado brasileiro os arcaicos tecidos orientais de cores rutilantes, 229 vermelhos, amarelos, azuis-claros mais ao gosto da gente luso-americana (FREYRE, 2000, p.159). Nas palavras de Freyre: Tudo isso foi ficando plebeu, matuto ou fora de moda. Ainda discorrendo sobre o comrcio ingls, acrescenta que era: Raro, desde 1808, o brigue ingls que chegasse a porto brasileiro de importncia o Rio de janeiro, a Bahia, Pernambuco sem seus fardos, no s de loua inglesa, de vidro, de pano, de cobre, de ferro, como de ferragem inglesa, em parte considervel destinada s casas, s residncias, s cozinhas (Id. ibid.).
228 Tecido felpudo feito de l ou algodo. 229 Cores vivas e brilhantes. 166
Com a introduo dos produtos ingleses, grandes modificaes se operaram no Brasil. Essa situao descrita por Volpi (2007, p.39): A face do consumo no Brasil foi transformada. As ruas ficaram repletas de produtos como algodo estampado, panos largos, louas e ferragens de Birmingham, que, sem a necessidade de passar por Portugal, aqui chegavam a preos baixos. Freyre j havia assinalado a importncia desse comrcio para o processo de modernizao do Brasil: quase impossvel ao brasileiro ouvir falar em mquina, em motor, em ferramenta, em estrada de ferro, em rebocador, em draga, em cabo submarino, em telgrafo, em artigos de ao e de ferro, em brinquedo mecnico, em cadeira de mola, em loua domstica, em bicicleta, em paim, em aparelho sanitrio, em navio de guerra, em vapor, em lancha, em fogo a gs ou a carvo, sem pensar em ingleses. Os ingleses esto ligados como nenhum outro povo aos comeos de modernizao das condies materiais de vida do brasileiro: das condies de produo, habitao, transporte, recreao, comunicao, iluminao, alimentao e repouso entre ns (FREYRE, 2000, p.159). O comrcio analisado por Freyre e Volpi no se dava em mo nica. O Brasil, por sua vez, exportava para os britnicos ouro, diamantes, pedras preciosas, acar, algodo, peles, fumo, aguardente, pau-brasil e mais tarde borracha e caf. Para dar uma ideia da influncia da economia inglesa, Freyre aponta algumas das iniciativas do capital britnico que ficaram clebres no Brasil: As companhias de minerao em Minas Gerias, como a de Gongo Soco, o calado Clark, os tecidos Coats, em So Paulo, e Carioca, no Rio, a Fundio de Harrington & Starr e a Bowmann, no Recife (onde tambm se guarda a tradio dos De Mornay), as velhas firmas Stevenson e Duder, da Bahia, especializadas em negcios de cacau e leo de baleia, Boxwell, em Pernambuco, especializada em algodo, Clark, no Piau e Maranho, especializado em cera de carnaba com o fervor de um pioneiro lcido, Wilson e Cory com seus depsitos de carvo, seus estaleiros e seus rebocados clebres no Brasil inteiro, o Bristish Bank, o London and Brazilian, o River Plate, o Hotel Bennett, a Casa Inglesa de Mrs. Brack, do Recife, Proudfoot & Comp., do Rio Grande do Sul, a Casa Inglesa do Cear, fundada pelo irlands Willian Wara [...] (FREYRE, 2000, p.83). Alm de um nmero significativo de comerciantes de sucesso que se estabeleceu no Brasil, outro dado que merece ateno neste trabalho aquele que se refere aos portos ingleses que lideram o comrcio, no caso o porto a considerar o da cidade de Liverpool. 167
Conforme j mencionado, durante a primeira metade do sculo XIX, a Inglaterra foi a potncia industrial e comercial dominante do mundo. A cidade de Liverpool foi o centro distribuidor da indstria do pas. O progresso de Liverpool explicado por Muir: numa confluncia de grandes movimentos que se encontram explicaes para o estupendo desenvolvimento de Liverpool no perodo de 1760 a 1835. A inveno da maquinaria txtil; o uso do carvo para a fundio de ferro, a aplicao do vapor s mquinas, a concentrao da grande indstria inglesa num raio de uns 200 km em volta do rio Mersey; a abertura dos mercados da ndia e Amrica Espanhola; o vasto e rpido crescimento da Amrica do Norte; a concentrao de seu comrcio no porto de Nova Iorque; a abertura Inglaterra, como nunca antes, por estradas, canais e mais canais, ferrovias: estes so os segredos do majestoso progresso de Liverpool (MUIR, 1907, p.260 apud PENNINGTON, 2009, p.52). Os navios a vapor que chegavam e partiam de Liverpool atravessavam o Atlntico, fazendo escalas em Santos, Salvador, Recife, Belm, Manaus e Iquitos (no Peru), trazendo, como narra Pennington (Id. ibid.): Toda sorte de mercadorias como lastro: objetos de ferro fundido, cimento, tijolos, at pedras para construo; insumos para a caa e a pesca, bebidas e alimentos e toda sorte de novidades que pudessem arregimentar compradores. Voltavam com a cobiada borracha, principalmente, mas tambm com castanha-do-par, leos essenciais como, por exemplo, o pau- rosa, a andiroba, fibras como a piaava, peles de animais. Alm das mercadorias assinaladas acima, a Inglaterra foi a grande compradora de toda a cotonicultura brasileira, no decorrer do sculo XIX (TAKEYA, 1994, p.123), principalmente aps o fim do ciclo do ouro. O professor Manchester (apud FREYRE, 2000, p.89) lembra que Liverpool chegou, com efeito, a absorver grande parte do algodo da Bahia e do Cear, e a Gr-Bretanha inteira, do algodo exportado por Pernambuco. O comrcio de algodo do Brasil com Liverpool no se deu somente com a Bahia, o Cear e o Maranho, 230 deu-se tambm como o Porto de Parnaba atravs dos comerciantes ingleses l estabelecidos, conforme ser visto. Em princpios do sculo XIX, a pecuria, embora em crise, persistia como principal fonte de riqueza do Piau. Mas, por volta de 1815, o cultivo de algodo que desde o incio do sculo XVIII vinha sendo feito no Piau, sendo sua produo
230 Responsvel por 75% das exportaes de algodo, o Maranho despontou como o maior produtor brasileiro. 168
utilizada na fabricao de tecidos grosseiros 231 tomou impulso e comeou a adquirir carter comercial, cotado no mercado internacional. O interesse do mercado europeu pelo algodo se deu quando a Guerra da Independncia Americana (1775- 1783) provocou a queda dramtica da produo de algodo dos Estados Unidos. No Piau houve, ento, o interesse pelo algodo, em razo da alta extraordinria do preo, devido excessiva procura pelas fbricas inglesas (SANTANA, 1964, p.71). A produo do algodo, mesmo usando essas tcnicas primrias, foi incentivada pela crescente demanda comercial, o que atestado por fontes de informao datadas de 1790. Elas registram a fundao, em Parnaba, de uma Alfndega do Algodo e de uma Inspeo de Algodo, simples entreposto de ensacamento e verificao do produto". Os portos de exportao da carne das charqueadas e couros atraram o escoamento da produo do algodo pela mesma via de transporte do gado, sendo que as exportaes regulares do algodo fizeram sua presena em 1815 com a marca de trinta mil quilos de algodo em rama. Em 1846, no Piau, o volume da exportao desse produto chegou a provocar sua alta de preo. Os agricultores da regio da Vila do Poti, Unio e So Gonalo responderam a essa alta com mais produo, o que motivou a construo de barcos em Teresina, em grande parte para seu transporte. Apesar de todo esse aparato comercial e do interesse crescente dos agricultores em aumentar a produo do algodo, cujo cultivo exigia pouco capital, as tcnicas de plantio, de colheita e de tratamento do produto eram rudimentares. No regime de plantao em terreno de derrubada de floresta, em que pouco se providenciava a adubao do solo, as colheitas tendiam, em geral, a declinar aps trs anos de consecutiva explorao do terreno. Em termos econmicos, os lucros obtidos pelo comrcio de exportao no eram capitalizados sob forma de investimentos em geral, pois os exportadores os absorviam na importao de apreciados bens europeus (SANTANA, 1964, p.74). Dessa maneira, o comrcio tornou-se vulnervel e exposto a fatores instveis, como uma queda na colheita ou uma alterao no mercado externo. Prova disto foi a crise de 1872, motivada pela m colheita do algodo, que levou muitas casas comerciais falncia (Id. ibid.). No caso da oscilao do mercado externo, a volta da
231 Escrevendo sobre esse tema, Brando (1995, p.44) observou que surgiu, nesta poca, um novo sistema agrcola, tendo por base o consrcio algodo-gado. 169
concorrncia da produo americana no mercado europeu foi agravada pela evaso dos escravos para o Sul, portanto, pela diminuio da chegada do algodo aos portos e pelo declnio da demanda pelo mercado europeu. O comrcio do algodo do Nordeste levou instalao de casas comerciais estrangeiras no Cear, 232 no Maranho e no Piau, mais especificamente em Parnaba. A instalao de casas comerciais inglesas e francesas serviu para estreitar a articulao da regio ao comrcio internacional. Essa expanso agroexportadora teve como base a produo algodoeira e, em segundo lugar, o couro. 233
A expanso comercial significava para os interesses comerciais ingleses e franceses a possibilidade de atuarem tanto no ramo da exportao de matrias- primas (algodo e couro) para a Europa, quanto no ramo da importao de manufaturados (TAKEYA, 1994, p.112), a exemplo do algodo: exportado para a Inglaterra, cujas atividades txteis produziam tecidos sofisticados, voltava a Parnaba via importao dos comerciantes estrangeiros. A cadeia comercial, baseada, a princpio, no consrcio algodo-couro, estendeu-se progressivamente durante a dcada de 1970 dentro dos limites das provncias do Nordeste, e depois para fora delas (TAKEYA, 1995, p.118). Para demonstrar a importncia do comrcio ingls de tecidos, mais uma vez recorre-se Denise Takeya, que, ao escrever sobre o comrcio da provncia do Cear, registra as palavras do cnsul francs em Pernambuco. Analisando a situao do comrcio francs frente concorrncia inglesa no tocante a tecidos, ele dizia em 1883: Os tecidos de algodo (cotons crus, madrapolans, indiennes, coutils, draps) tm uma grande venda nesta provncia porque estes artigos so usados pela populao do campo e so de provenincia inglesa. Todo pequeno negociante do interior possui na sua loja algumas centenas de peas de indiennes ou de madrapolans e todo pequeno fazendeiro que vem vender seu acar ou seu algodo leva algumas peas de algodo cru, de madrapolans ou indiennes (Ibid., p.120).
232 As casas de comrcio francesas instaladas no Cear so estudadas por Denise Monteiro Takeya (1994, p.124). 233 Segundo Takeya (Id. ibid.), o couro manteve-se, na segunda metade do sculo XIX, como um dos principais itens da pauta de exportao brasileira para a Frana. 170
Takeya aponta que as atividades comerciais de algumas casas comerciais estrangeiras que atuavam no Brasil estavam baseadas em uma estrutura matriz-filial (Ibid., p.118). As casas comerciais assim estruturadas atuavam em dois mercados polo simultaneamente: o nacional e o internacional. Para Takeya a existncia dessa estrutura (intercmbio matriz no Exterior e filial no Brasil) garantia, para esses comerciantes, uma posio privilegiada frente aos demais. 3.6 A Casa Inglesa A Casa Inglesa tem sua origem na R. Singlehurts & Co, de Liverpool. Localizada no Par, Cear, e Parnaba, no conseguimos estabelecer uma relao mais direta entre elas. 234 Escrevendo sobre a origem da Casa Inglesa, do Cear, Takeya (1994, p.115) indicou que: Remonta a 1811, quando o irlands William Wara chegou ao Cear, criando em 1835 uma filial da R. Singlehurst & Co, de Liverpool. A filial ficou popularmente conhecida como Casa Inglesa e sobreviveria, por todo o sculo XIX, como principal distribuidora das mercadorias vindas da Inglaterra, alm de compradora dos produtos cearenses para o mercado europeu. A Singlehurst & Co era proprietria da Red Cross Line of Mail Steamers, uma das duas companhias de navegao a vapor que estabeleceram as primeiras linhas regulares ligando o Cear Europa, na dcada de 1870. Segundo Raimundo Giro (1947), a Casa Inglesa se notabilizou no comrcio cearense pela sua prestana e longevidade [...], continuando a tradio da escuna Mayflower, pela qual, em dias ainda remotos, os cearenses receberam de Liverpool chitas, louas, meias de seda e paninhos. Em Parnaba, a Casa Inglesa instalou-se em 15 de maro de 1849, com razo social Andrew Miller & Cia (NUNES, 2006, p. 337), a qual se sucederam vrias outras, como Singlehurst e Brocklehurts, Singlehurst Nicholson e Co (NUNES, 2007, p. 174), depois Singlehurst e Co. Ao longo do Imprio, alteraes havidas nas tarifas alfandegrias tornaram-nas menos favorveis aos ingleses, o que levou Paul Robert Singlehurst & Co. a venderem suas cotas ao scio minoritrio em Parnaba, James Frederick Clark, em 1de janeiro de 1900.
234 No mbito dessa pesquisa, no foi possvel conseguir responder vrias perguntas a respeito das Casas Inglesas do Par, Cear e Maranho: Seriam todas propriedades da Singlehurst e Brockehurst? Seriam todas filiais da matriz inglesa? Seriam unidas por alguma sociedade? Quem as administrava: no Cear, Giro menciona Wara; em Parnaba Andrew Miller eles seriam proprietrios, socioproprietrios ou apenas administradores? 171
Se no possvel estabelecer uma ligao mais direta entre a Casa Inglesa de Parnaba e as demais, tambm no possvel pensar em seu sucesso comercial e do comrcio parnaibano sem estabelecer uma articulao mais ampla com o comrcio das demais provncias do Norte e do Nordeste e suas ligaes com o Exterior, no caso: Amazonas, Par, Cear, Maranho e Piau com a Inglaterra, a Frana e a Amrica do Norte. Essa articulao deslanchou e se fortaleceu em 1866, ano em que um vapor da Booth Line partiu pela primeira vez de Liverpool para o Porto do Par. A partir da, o fluxo de comrcio regular entre esses portos ficou estabelecido (PENNINGTON, 2009, p.159). A grande vantagem comercial da Casa Inglesa, tanto a do Cear e a do Par quanto a de Parnaba, era que, alm de contar com a estrutura matriz-filial, contavam com uma companhia de navegao a vapor (TAKEYA, 1994, p.118) a Red Cross Line, mesma companhia de navegao que fazia o servio direto de Liverpool com Manaus, a partir de 1877, de propriedade da Singlehurst, Broklehurts e Cia (PENNINGTON apud BRAGA, 2009, p.129-132). 3.7 Singlehurst e Clark -respectable merchants em Parnaba Em 1810, com a Corte portuguesa exilada no Rio de Janeiro, a Inglaterra obteve o status de nao mais favorecida no comrcio com o reino. Com a abertura dos portos, comea uma crescente onda de imigrantes ingleses para o Brasil, 235 de diversas profisses: cientistas, 236 viajantes, 237 artesos, missionrios, comerciantes, 238 e, como distingue Freyre, respectable merchants (FREYRE, 2000, p.77). Os respectable merchants e no apenas tradesmen (comerciantes) como apontou Freyre seriam os ingleses que se arriscaram a vir residir com as famlias nas cidades ou nos ermos de um pas to diferente da Inglaterra como o Brasil
235 Sculos antes da abertura dos portos, o Brasil j era visitado por estrangeiros, inclusive ingleses: sea dogs, piratas e aventureiros. Lopes (2007, p. 14) define o termo sea dog ou co do mar como o grupo de corsrios protestantes que serviram rainha Elizabeth I da Inglaterra nas suas disputas com a Espanha. Estavam voltados para o lucro fcil por meio de pilhagem sistemtica. 236 A exemplo do mineralogista John Mawe. 237 A exemplo de Henry Koster, que chegou a Pernambuco em 1809, foi o primeiro ingls a percorrer e a descrever o serto nordestino. 238 Na primeira onda de ingleses a desembarcar no Rio de Janeiro veio o comerciante de tecidos John Lucckock. 172
colonial. Eles despertaram a confiana nos brasileiros como homens de negcios, slidos e pontuais (Ibid., p. 163); comercializavam produtos ingleses que inspiravam confiana, por serem mais modernos (PENNINGTON, 2009, p. 92). Entre os negociantes que chegaram ao Brasil e aqui ficaram, alguns casaram- se com moas ricas da terra e constituram famlia. Freyre cita os Dodsworth, Thom, Grey, Street, Boxwell, Studart, Cox, Ayres, Taylor, Lynch, Brotherhood, Ellis, Comber e os Clark (FREYRE, 2000, p.122) famlia estabelecida em Parnaba. Podem ser citados outros ingleses que antecederam os Clark em Parnaba: Andrew Miller, Robert Brocklehurst e Paul Robert Singlehurst, 239 da Singlehurst, Broklehurts e Cia., proprietrios da Red Cross Line (PENNINGTON apud BRAGA, 2009, p.129-132) e proprietrios da Casa Inglesa, que residia em Parnaba com a mulher e cinco filhos ingleses. Paul Robert Singlehurst era conhecido em Parnaba como Paul Ingls (Ibid., p.143) ou velho Paul Ingls. 240
Instalando-se em Parnaba, Robert Brockelhurst deu preferncia compra de um sobrado (FREYRE, 2000, p.189), o de nmero 25, na Rua Grande (Figura 3), apesar da disponibilidade de terrenos ou lotes, que poderia adquirir para construir seu estabelecimento comercial. O sobrado comprado devia satisfazer a expectativa ou a mentalidade do comerciante ingls que buscava instalaes adequadas ao material que comerciava. Como um grossista, necessitava de um prdio grande, com armazns e depsito que se adaptassem estocagem de mercadorias pesadas. Alm de buscar uma boa localizao, caso da Rua Grande, o sobrado ficava nas proximidades do rio Parnaba, do Porto Salgado, da Alfndega e do Consulado ingls. 241
239 No se sabe em que ano Paul Robert Singlehurst chegou a Parnaba, mas sabe-se que outros membros da famlia Singlehurst circulavam pelo Cear. Para esta pesquisa, conseguiu-se localizar, no arquivo pblico do Cear, entre os ttulos de residncia de estrangeiros, datado de agosto de 1842, o ttulo de Jos Singlehurst, 239 ingls, natural de Liverpool, com idade de 30 anos, casado, profisso de comerciante, que, vindo para o mesmo fim, chegou a Fortaleza no dia 27 de julho de 1842, do porto de Liverpool. Infelizmente, no possvel esclarecer que parentesco e que relao comercial ele mantinha com Paul Robert. Jos, certamente Joseph, descrito no documento como sendo alto, branco, de cabelos castanhos, olhos azuis, nariz alto, rosto oval e bastante barba. 240 Freyre (2000, p.143) menciona a terminologia em voga no perodo, no Rio de Janeiro e So Paulo, para referir-se aos ingleses, seus hbitos ou obras: casa do Ingls, rua do Ingls morro dos ingleses etc. 241 interessante comparar a escolha de Broklehurst com as informaes de Freyre (2000, p.172- 173), assim pode-se constatar a coincidncia das escolhas por parte dos comerciantes ingleses no Rio de Janeiro e outras cidades, de imveis com as mesmas caractersticas. 173
James Frederick Clark, ingls, nasceu em Keswick, no condado de Cumberland, Inglaterra, no dia 14 de maro de 1855 e faleceu em Parnaba, no dia 02 de setembro de 1928. Aos 14 anos de idade, deixou sua ptria para trabalhar como aprendiz 242 na Casa Inglesa de Parnaba. Chegou Parnaba, desembarcando do navio Enterprise, da Red Cross Line, no Porto do Cear. Em 27 de maio de 1889 ele deu incio comercializao regular da cera de carnaba, 243
exportando-a para praas europeias e norte-americanas e transformando-a no principal produto de exportao da regio. Paralelamente, ele prprio e seus familiares tambm auferiram grandes lucros. A Casa Inglesa de Parnaba foi comprada por James Frederick Clark, em 1900, quando se tornou nico proprietrio tambm dos imveis que a sediavam: o sobrado da Rua Grande (atual Getlio Vargas), compreendendo o estabelecimento comercial e mais os grandes armazns e dique seco, existente no Porto das Barcas espao hoje integrado rea cultural e de lazer ali instalada. A Casa Inglesa comeou seus negcios em Parnaba, tendo como base as mercadorias mencionadas por Freyre (2000) como produtos tipicamente ingleses. O Dirio da Casa, datado de fevereiro de 1875, registra, como seria de se esperar, uma grande variedade de tecidos: madapolo, chita larga, morim, algodozinho, musseline, marroquim, bretanha, cambraia, riscado xadrez e brim liso, entre outros, alm de linhas em novelo. Artigos masculinos como chapu do Chile, camisas e meias de homem. Objetos em ferro como: facas e garfos, vergalhes, barras, panelas e bacias. E ainda ferros de engomar, tesouras, canivetes, facas de charquear, barris de pregos, tintas e brochas. Com o passar do tempo, as mercadorias comercializadas foram se modificando. Nunes (2006, p. 347) lembra Parnaba no incio do sculo XX, quando as lojas ofertavam produtos europeus vindos principalmente de Liverpool e Amsterd: eram sedas, casimiras, linhos, perfumes, espelhos, chapus, sapatos, relgios de parede, cristais, porcelanas, bebidas que atendiam os consumidores de Parnaba e das cidades vizinhas.
242 Na Inglaterra, um comerciante normalmente comeava sua carreira como aprendiz, aprendendo e trabalhando com um mestre, sendo, aps alguns anos, libertado dele. Esse foi o caso de James Frederick Clark. 243 O navio utilizado no carregamento da primeira remessa comercial da cera de carnaba foi o Grangense, e a arroba da cera em 1900 valia doze mil ris. 174
Coube Casa Inglesa introduzir no Piau, em 1915, os produtos do petrleo, caso do carbureto, do querosene Jacar e da gasolina, a mquina de costura, o primeiro automvel e o primeiro motor a diesel, dentre outras inovaes que sinalizavam as mudanas de hbitos e costumes, bem como a modernizao da cidade. Importa ressaltar algumas colocaes de Marc Theophile sobre a importncia que o comrcio realizado entre Parnaba e o mercado estrangeiro exercia sobre o cotidiano de Parnaba. Era atravs dessas embarcaes que o luxo e os costumes refinados chegavam ao Piau: Durante o tempo em que os navios da Europa entravam em Amarrao, a populao da pequena vila e a de Parnaba usavam o linho escocs, o perfume francs, o cimento em barricas vindo da Blgica, de onde tambm viria o arame farpado e o prego recozido usado este ltimo, na construo dos currais para o aprisionamento de peixes; o ferro e os instrumentos de trabalho vinham da Alemanha ou da Inglaterra, machados, faces, enxadas etc.; as louas eram alems, francesas, inglesas e at japonesas; as mulheres usavam sedas francesas, sombrinhas da moda e tudo quanto lhes era dado a consumir (JACOB, p.294). Ocorreu, como se nota, um aburguesamento da elite piauiense, que, alm de adquirir instrumentos de trabalho e desenvolver hbitos vindos das grandes metrpoles estrangeiras, passou a consumir utenslios domsticos que trouxeram facilidade e glamour ao dia-a-dia. 3.8 Comerciantes franceses no Piau Para compreender a atividade das casas comerciais estrangeiras em Parnaba, preciso, antes de tudo, conhecer o quadro mais geral do comrcio piauiense com a Frana, e as motivaes que impeliram alguns franceses, particularmente os irmos Marc e Lasare Jacob a deixar sua terra natal e virem a estabelecer-se em Parnaba, alm dos laos comerciais que mantinham com seu pas de origem. No caso do comrcio franco-brasileiro, Takeya (1995, p. 16) informa serem raros os estudos especficos sobre casas de comrcio estrangeiras dedicadas aos negcios de importao e exportao, no Brasil do sculo XIX. As referncias dizem respeito, principalmente, regio Sudeste, mais particularmente s reas porturias do Rio de Janeiro e Santos. Pesquisas que tentam esclarecer as formas de atuao 175
de casas comerciais esbarram na dificuldade de localizao de arquivos e no trabalho com as fontes (Ibid., p. 17), pois raros so os arquivos privados de antigas casas comerciais ainda hoje preservados e acessveis aos pesquisadores. Citamos o trabalho de Takeya (1995), que analisou a expanso do comrcio francs para o Brasil, de forma global, fazendo, em seguida, o estudo de um caso especfico: a atividade da casa Boris Frres, casa comercial importadora-exportadora de origem francesa, fundada em Fortaleza, em 1872, cujo acervo documental est sob a guarda do Arquivo Pblico do Cear, em Fortaleza. De forma mais ou menos semelhante ao trabalho realizado por essa pesquisadora, buscamos compreender a trajetria das atividades comerciais de duas casas comerciais estrangeiras que se instalaram em Parnaba, na segunda metade do sculo XIX. Durante a realizao dessa pesquisa, descobrimos que a cidade de Parnaba guarda dois importantes arquivos comerciais particulares o da Casa Inglesa e o da Casa Marc Jacob, referentes s atividades de casas exportadoras, com mais de um sculo de documentao. Das muitas firmas comerciais estabelecidas na cidade, qui no Piau, que se dedicaram exportao e importao, apenas aqueles arquivos encontram-se preservados. Tal documentao possui valor histrico, uma vez que carrega consigo as marcas do processo de insero do Piau no sistema econmico de base capitalista e dos demais aspectos da sociedade que iam sendo afetados por ele. A expanso comercial francesa no Brasil, no sculo XIX, foi um processo histrico articulado evoluo da prpria economia francesa como um todo, mas, especialmente, evoluo da indstria e do comrcio exterior na Frana, nesse perodo. Centrando-se a ateno na presena do capital mercantil francs no Brasil, no sculo XIX, deve ser observado o crescimento havido na Frana, no decurso do chamado Segundo Imprio Francs (1852-1870), mais especialmente nos anos de 1850. Para o objetivo desta pesquisa, tal constatao fundamental, porque so exatamente esses anos que marcam o comeo da expanso comercial francesa para o Brasil. O desenvolvimento do sistema de transportes, especialmente o ferrovirio, possibilita um mercado nacional unificado; o desenvolvimento da navegao (em 1860, a Frana inaugura sua navegao transatlntica); e a instalao de rede 176
telegrfica que cobre toda a Frana, a partir de 1851 comunicao instantnea do pensamento, acompanhando o transporte rpido das pessoas e das coisas, operava uma revoluo no grande comrcio, fazem parte das transformaes estruturais vividas pela Frana e serviram de estmulo realizao de investimentos de capital e trabalho no Exterior. Diante de tais condies, a tendncia do comrcio exterior era crescer. Nos anos de 1850 a 1860, a indstria francesa incorporou uma srie de descobertas e invenes tecno-cientficas fundamentais ao setor de produo. Novos procedimentos na produo de ao e o desenvolvimento da la nouille blanc (eletrometalurgia) criaram complexas inovaes tecnolgicas, que introduziram a industrializao da Frana em vias totalmente novas. Associado ao incremento da atividade industrial verificou-se, a partir do Segundo Imprio, um processo de urbanizao progressiva, um aumento continuado da populao urbana. Paris, especialmente, teve um considervel aumento populacional. As chamadas indstrias parisienses, empregando boa parte dessa populao, forneciam, nos anos de 1864 a 1868, um quarto dos artigos manufaturados vendidos no mercado externo. Nos centros urbanos, a atividade comercial crescia, dando lugar a novos e renovados agentes comerciais, que passaram a servir de intermedirios, estabelecendo relaes entre industriais e comerciantes e entre industriais e fornecedores de matrias-primas. Nesse contexto, ganharam importncia o comissrio de mercadoria e os representantes ou viajantes do comrcio. Todo esse impulso tomado pela economia francesa no perodo, e especialmente o impulso industrial, manifestou-se na evoluo de seu comrcio exterior. A intensificao da produo de mercadorias exigia mercados cada vez mais amplos. A Frana, assim como a Inglaterra, entrava na etapa de ampliao do Capitalismo, atravs da conquista dos mercados externos, o que significa que o objetivo desse comrcio no se restringia apenas aquisio de mercados consumidores de mercadorias produzidas em srie, mas era a conquista de um mercado fornecedor de matria-prima e de mo-de-obra barata e com disposio para as particularidades das relaes capitalistas de produo. A predominncia de um objetivo ou de outro definida no correr do processo e em funo das reas conectadas. 177
Sob o Segundo Imprio, o comrcio exterior francs atingiu ndices nunca antes alcanados. Tomadas em seu conjunto e no correr de todo o sculo XIX, as importaes francesas caracterizaram-se, essencialmente, pelas matrias-primas necessrias indstria (algodo, carvo, l, seda bruta, peles, madeira) e pelos produtos alimentcios (acar, cereais, carnes, cacau e caf). As exportaes, por seu turno, estiveram baseadas nas manufaturas compostas por tecidos, objetos de luxo e decorao (os chamados artigos de Paris) e por vinhos (TAKEYA, 1995). Para que o Brasil passasse a integrar a economia internacional, mesmo em condies desfavorveis, em face de alguns pases j plenamente integrados ao sistema capitalista de produo, foi necessrio que medidas de ordem estrutural e diplomtica fossem tomadas ao longo do sculo XIX. A integrao do Brasil com o comrcio internacional, com a abertura dos portos e consequente quebra do monoplio da metrpole portuguesa, em 1808, estimulou o aumento do nmero de navios que frequentavam os portos brasileiros, bem como a diversificao de nacionalidades. O comrcio direto Brasil-Frana, na primeira metade do sculo XIX, era feito, sobretudo, atravs dos portos de Havre e Marselha. Era de Havre, a regio mais industrializada e povoada da Frana, que partia a nica linha francesa de navios vela, ento existentes, para o Brasil. A Frana, portanto, dependia de embarcaes inglesas e de outras nacionalidades para efetuar o transporte das mercadorias que circulavam em seus portos. importante observar as rotas de navegao comercial no Brasil no sculo XIX. Uma das rotas fazia-se dentro do litoral ocidental, e, a outra, no litoral setentrional do Pas. Esta ltima, que tinha Belm como principal porto, e, mais secundariamente, So Lus e Fortaleza, era frequentada por embarcaes europeias e norte-americanas, atravs, principalmente, de rotas diretas, isto , aquelas que, vindas da Europa ou Estados Unidos, dirigiam-se diretamente para os portos do Norte do Brasil, e da retornavam para seus portos de origem, sem escalas no litoral ocidental (TAKEYA, 1995). Acompanhando a expanso comercial, ocorreu uma onda de emigrao francesa para o Brasil. Esses imigrantes franceses eram dos mais variados ramos e profisses. Interessam-nos, nesse estudo, os comerciantes e as casas de comrcio que, vendendo as mercadorias francesas no Brasil e comprando matrias-primas 178
para exportao, viabilizaram a expanso do capital estrangeiro em terras brasileiras. Importncia crescente no incremento dessa atividade desempenhou a figura do commissionaire, 244 o comissrio, agente descrito por Leon (1976) como um regulador da atividade industrial. Na Frana, os anos de 1850 a 1860 registraram um grande crescimento no nmero de comerciantes na qualidade de comissrios em mercadorias com negcios no mercado brasileiro. Esses negociantes, em sua maioria, estabeleceram uma matriz de sua casa comercial em Paris e uma filial no Brasil. Essa casa comercial agia nos dois polos do comrcio, isto , tanto no setor de exportao, como no de importao. Tal posio privilegiada permitia aos comerciantes auferir lucros da venda dos produtos industrializados franceses, e europeus de modo geral, no Brasil, assim como das matrias-primas brasileiras no mercado francs e em outros mercados externos. As filiais dessas casas francesas no Brasil foram estabelecidas, inicialmente, nas grandes cidades porturias do Rio de Janeiro, Recife e Salvador e expandiram- se mais tarde para outras regies do Pas. As principais mercadorias comercializadas por essas casas eram, em ordem de importncia: tecidos, artigos de Paris, relojoaria / joalheria / ourivesaria, gneros alimentcios, chapelaria / sapatos, livros, perfumes, mveis, drogas e instrumentos musicais (TAKEYA, 1995). Foi nesse contexto que os irmos Boris chegaram Provncia do Cear, onde estabeleceram sua casa comercial e, mais tarde, os irmos Jacob fizeram o mesmo em Parnaba. O interesse do governo francs pela cidade de Parnaba j se manifestava de forma efetiva desde 1863, quando a agncia consular da Frana 245 foi criada em 19 de maro daquele ano, tendo como seu primeiro titular o Ten. Cel. Jos Francisco de Miranda Filho. Atendia ao interesse de comerciantes franceses atuando em Parnaba, caso da firma Naeff Nadler & Co., cuja matriz ficava no Maranho (NUNES, O., 2007, p. 174) e do j mencionado Sr. Lalanne.
244 O comissrio justamente chamado a desempenhar, em troca de uma honesta remunerao, esse papel indispensvel de intermedirio, que a conjuntura impe, entre produtores e consumidores, afirmando-se como um regulador da atividade industrial [...] (LEON, 1976 apud TAKEYA, 1995, p. 85). 245 O primeiro vice-consulado a ser criado em Parnaba foi o portugus, em 18 de maro de 1844. 179
Na anlise de Takeya (1995), muitos brasileiros desempenhavam o papel de agente consular da Frana, sobretudo naquelas cidades de menor importncia econmica e onde franceses eram escassos ou inexistentes. Eram pessoas de destaque na sociedade local, geralmente os comerciantes mais importantes. Como esse era um cargo honorfico e quem o possua tinha um certo prestgio, o Ten. Cel. Jos Francisco de Miranda Filho 246 representou os interesses da Frana at o estabelecimento, em Parnaba, de Marc Jacob em 1886. Marc Jacob, assumindo o cargo de agente consular, representou o Governo Francs durante vrias dcadas, sendo substitudo, aps seu falecimento, por seu sobrinho Roland Gabriel Jacob, que assumiu oficialmente o vice-consulado em 9 de janeiro de 1927. A representao que pertenceu aos Jacob por muitos anos passou depois para Marcel Seligman, 247 membro da mesma famlia que substituiu os Boris no consulado do Cear. As relaes comerciais entre a Frana e o Brasil tiveram incio em 1814, embora o conhecimento produzido sobre o Brasil como mercado date das primeiras dcadas do sculo XIX. Visando atender as necessidades relativas expanso do comrcio francs no Brasil, foram abertas representaes consulares que formaram a maior e mais sistemtica fonte de informaes sobre o Brasil. A representao consular elaborava extensos e minuciosos relatrios contendo informaes as mais variadas sobre o Pas. As cidades do Rio de Janeiro, Salvador e Recife foram as primeiras a terem consulados. A estas ligava-se uma srie de agncias consulares
246 A famlia de Miranda Osrio seria, segundo Castelo Branco Filho (1982), uma das primeiras famlias povoadoras do Piau. O Ten. Coronel Jos Francisco de Miranda Osrio (18001877) nasceu em Oeiras, e veio para Parnaba em 1813, como empregado da casa comercial de seu tio e futuro sogro Manuel Antonio da Silva. Militar e poltico, participou do movimento de 19 de outubro de 1822, que, em Parnaba, proclamou o prncipe D. Pedro como imperador do Brasil. Tomou parte na Batalha do Jenipapo, em Campo Maior. Em 1838, ento tenente-coronel e intendente de Parnaba, destroou os balaios. Foi presidente da Cmara Municipal de Parnaba, deputado provincial e vice-presidente do Piau. 247 Marc Theophile Jacob nos informa que o sr. Marcel Seligman era filho de Adrien Seligman, que, por sua vez, era filho de Ernest Seligman e Clementine (nascida Boris). O ancestral do ramo Boris, Joseph Jules Boris, foi casado com uma certa Sarah Jacob (descendente de David Joel Jossel Jacob, de Schalbach). Desse casamento, entre outros filhos, nasceu Achille Boris, de cujo casamento com Rosa Coblence nasceu, entre outros filhos, Bertrand Boris, que foi o principal dirigente da Casa Boris, em Fortaleza, no sculo XX. Marc Theophile conta, ainda, que [...] o sr. Marcel Seligman nasceu no Cear, mas retornou com os pais para a Frana, onde se educou. J nos anos 40 (1924, creio eu ele veio trabalhar conosco em Parnaba, onde constituiu famlia, casando-se com a Sra. Francy Furtado de Arajo Seligman. Aps o falecimento do meu Pai, ele veio a ser Agente Consular da Frana no Piau. Como se viu do resumo acima, os Seligmans eram mais prximos dos Boris que dos Jacob, de quem eram primos entre si, embora distantes. 180
restritas, na verdade, pessoa do agente , formando uma verdadeira rede coletora de informaes. A representao consular era a medula da rede de informaes passadas para os industriais e negociantes franceses. As informaes colhidas tiveram um papel importante na origem de uma literatura voltada para a identificao das possibilidades do Brasil como um dos mercados para a expanso comercial francesa, dirigida aos industriais e negociantes. Uma outra funo vislumbrada seria a de servir de ponto de apoio para a penetrao do capital mercantil francs em diferentes mercados. Cabia ao agente consular conhecer as perspectivas do mercado brasileiro, indicar as possibilidades e obstculos para o consumo de manufaturas e produtos industrializados, conhecer a provncia e a capacidade de consumo de produtos e mercadorias francesas. Relatrios contendo informaes comerciais e notcias sobre agricultura, colheitas, impostos, problemas climticos, fornecedores de matrias- primas, preos e cmbios eram enviados para a Frana. As informaes eram enviadas em Boletins e Relatrios ao Ministrio das Relaes Exteriores da Frana, que, por sua vez, elaborava outros relatrios. Essa massa de informaes era destinada aos industriais, comerciantes e negociantes em geral. O objetivo ltimo era aprimorar as relaes entre a produo de manufaturas francesas e o mercado consumidor brasileiro e a necessidade de matrias-primas na Frana produo brasileira, de forma a garantir um perfeito conhecimento e aproveitamento das possibilidades que o Brasil oferecia. Como aponta Takeya (1995), ao consulado de Recife, em 1876, estavam ligadas as agncias existentes no Par, Maranho, Piau e Cear. Isaie Boris chegou ao Cear em 1878 e foi o primeiro dos membros da famlia a exercer a representao consular francesa na provncia. Essa representao consular pertenceu aos Boris at 1925. Permaneceu vaga por dois anos, quando Adrien Seligman, membro da famlia Boris, assumiu o cargo, momento em que dividia a direo da Casa com Aquille Boris, no final do sculo XIX e comeo do sculo XX. Em 1869, fundava-se, no Cear, a Casa Theodore Boris & Irmo, cujos scios eram Alphonse Boris e seu irmo Theodore, que chegaram a Fortaleza em 1865 1867, respectivamente. Eram franceses e naturais da Provncia de Lorena. 181
Os arquivos comerciais dessa firma inicial no foram conservados e nada indica que tenham exercido um comrcio alm da compra e venda de artigos da praa ou, quando muito, com praas de Estados vizinhos. Depois da guerra franco- alem de 1870-1871, os dois irmos voltaram Frana, associaram-se a outro irmo mais jovem, Isaie Boris, para fundar, em Paris, a casa Boris Frres. Pouco tempo depois, Theodore voltou a Fortaleza na companhia de seus irmos gmeos, Achiles e Adrien, e com eles abriu, na Rua da Palma, uma nova firma, que se desenvolveu rapidamente, pois, em poucos anos, suas relaes com praas de Estados vizinhos estenderam-se a praas europeias e americanas. Inicialmente, os negcios limitavam-se importao de tecidos, confeces, perfumaria, artigos de decorao, moblias, artigos de cozinha, papelaria e material de escritrio; mais tarde, acrescentou-se maquinrio, cimento e carvo. Na pauta de exportao, esto produtos regionais, tais como: algodo, cera de carnaba, couro, peles, borracha, caf, penas de ema e cumaru. Na dcada de 1880, a Boris Frres expandiu seus negcios a outras cidades do Cear, incluindo pequenas vilas, como Ibiapina, situada prxima divisa com o Piau. No Piau, h registro de suas atividades comerciais com Teresina, desde 1875, e, depois, com Picos e Parnaba, em 1883. Em julho desse ano, comercializava caf, acar, algodo e caroo de algodo, courinhos, chifres, ossos, garras, cabelos, cera de carnaba, mangabeira e pena de ema. Importa ainda dizer que os produtos comercializados pela Casa Boris Frres, desde sua abertura, incluindo os subprodutos do gado, fizeram parte da pauta de exportao do Piau at, pelo menos, meados do sculo XX. Na anlise do movimento comercial da vila, depois cidade de Parnaba, imps-se, como primeiro passo, conhecer a documentao dos comerciantes, suas casas comerciais, e analisar suas formas de atuao. Tornou-se pertinente, tambm, conhecer o esquema de comercializao dentro da Provncia/Estado, com a cidade de Fortaleza e com o Exterior. A leitura da correspondncia comercial, realizada nos arquivos da Casa Boris, em Fortaleza, forneceu informaes relevantes sobre parcerias comerciais no Piau e o papel da cidade de Parnaba como porto receptor e distribuidor de mercadorias vindas do Cear e da Europa, ao longo da segunda metade do sculo XIX. Na 182
correspondncia, foram localizadas, para esta pesquisa, mais de cem cartas de comerciantes parnaibanos encarregados de receber e reembarcar as mercadorias enviadas pela Casa Boris para Teresina. A correspondncia da Casa Boris do Cear com comerciantes do Piau aponta a existncia, em Teresina, de casas comerciais francesas anteriores de Marc Jacob, situada em Parnaba. Relaes comerciais entre essas firmas existiriam desde 1875, como o atesta a presena de papis de carta com o timbre Casa Francesa. Havia uma firma de propriedade dos Mayer Frres, e outra, de propriedade de ODonnell de Alencar, alm de uma terceira, pertencente ao comerciante francs Salomon Baumann. No foi possvel localizar, alm das cartas, outros registros dessas firmas. Faltam-nos, portanto, informaes sobre o incio e o trmino de suas atividades, entre outras. O exame da correspondncia estabelecida entre essas firmas data do perodo de 1876 a 1884, o que indica que o incio de suas atividades foi anterior abertura da Casa Comercial Marc Jacob, em Parnaba. A casa Mayer Frres estava sediada em Teresina, e a ligao comercial com a Casa Boris de Fortaleza era realizada atravs de Parnaba, por intermdio de um comerciante local, Antonio Dias de Miranda, que, alm de receber, conferir e despachar as mercadorias para Mayer, escrevia a Boris, em nome de Mayer, reclamando, cobrando solues ou apenas acusando o recebimento das mercadorias. O exame da correspondncia entre essas trs firmas mostra o teor e a situao das relaes comerciais dessa poca. Pela correspondncia de 27 de abril de 1876, tomou-se conhecimento da encomenda de mercadorias que fazem os Srs. Mayer Frres, de Teresina, ao Sr. Boris Frres, do Cear. Nota-se, nessa correspondncia, a relao entre o que est sendo pedido e os ramos de comrcio praticados pela casa Boris, o ramo de sapatos e os chamados artigos de Paris. Constam do pedido: trs dzias de botinas de muito boa qualidade, com polimento e enfeitadas, para senhoras e meninas, cujo preo variava entre vinte e sessenta francos. Havia tambm uma seleo de tecidos, a serem adquiridos conforme as amostras enviadas, consistindo estas de cambraia branca, brim de linho pardo, brim branco de algodo e chita adamascada, de preferncia nas cores verde e encarnada, num total orado em mil ris. Consta, ainda, da mesma correspondncia, 183
a encomenda de madapolo para ceroulas, alm de outros artigos, como brincos dourados e xales de boa qualidade. Entre estes, eram preferidos os de cor roxa, preta, marrom e cor-de-rosa; e, para os estampados, os de cores vivas, excluindo os de fundo azul e verde. A compra dos artigos deixa claro que a casa Mayer Frres tinha uma freguesia feminina, cujo gosto era conhecido e respeitado. Uma escolha to detalhada dos artigos femininos, em termos de qualidade e cartela de cores, mostra empenho em atender as senhoras e senhoritas dessa sociedade, com ateno s suas preferncias; o gosto da gente luso-americana, que foi ficando plebeu, matuto ou fora com a introduo dos tecidos ingleses (FREYRE, 2000, p.159). A descrio detalhada das mercadorias permite deduzir que se tratavam de artigos de luxo, consumidos por um contingente de pessoas abastadas de uma elite. Esse mesmo cuidado no era exclusividade da casa francesa como se pode verificar na lista de novidades oferecidas pela Livraria Econmica, situada na Rua Paissandu, em Teresina, em 1875: coques enfeitados para senhoras, gravatas e colarinhos bordados, leques com plumas para senhoras, botinas de cano alto para senhoras, chapus para homens e senhoras, popelines, ls e tartalanas, chitas finssimas, padres novos, vinhos, licores, doces, biscoitos, passas, queijos (CHAVES, 1987, p. 41). No s pedidos foram encontrados em meio a essa documentao. Havia, igualmente, cartas de reclamao. O comerciante Dias de Miranda, por exemplo, queixa-se das companhias de vapor (por exemplo, a Companhia Pernambucana), que, por falta de embarcao, no mandam a carga para a cidade de Parnaba, descarregando a mercadoria no Porto de Amarrao, sob a alegao de que [...] quem quiser mandar vir para aqui h de mandar conduzi-la a sua conta, correndo todos os riscos que possa haver na dita conduo. Outra reclamao dizia respeito Alfndega de Fortaleza, que no mandava as guias ou notas do contedo dos caixotes de mercadoria, implicando isso no pagamento de direitos de importao e na multa de verificao do contedo dos volumes, j que no havia dados precisos para legalizar o despacho. Declarar o contedo dos volumes era uma exigncia do Art. 544 do Regimento das Alfndegas, para isentar as mercadorias da multa constante no pargrafo 2 do Art. 545. A Casa Boris Frres tambm enviava circular comunicando o aumento de preos de suas mercadorias. Em 8 de maro de 1889 ele informa que: 184
Muitos artigos subiram de valor por causa do aumento dos direitos gerais de importao, sobretudo algodozinho (panos de algodo liso, entranado, ou cru; riscados lisos e entranados; lonas, meias de toda qualidade...) que hoje paga mais 20% de direito sobre a antiga taxa. E ainda que, mesmo que o cmbio conservasse os tipos atuais de 27 a 28, no se podero fazer grandes redues de preos [Conf. original]. O aumento de preos das mercadorias era alvo frequente de comentrios e crticas. A firma Mayer Frres escreve a Boris Frres, em 17 de janeiro de 1880, reclamando tanto do preo como da contagem das velas de carnaba remetidas por eles. Segundo a carta, havia erro na contagem das velas, j que, na caixa declarada com vinte e trs quilogramas a doze ris a arroba, faltavam trs quilogramas, e, na caixa de trinta e cinco ris a arroba, faltavam trezentas velas; as velas, dizia ele, eram de pssima qualidade (misturadas com fava); a maior parte delas veio misturada na mesma barrica, no sendo possvel distinguir entre as de dez, quatorze e quinze ris o milheiro. Alm disso, reclama Mayer, nenhum tratamento foi dedicado embalagem, pois, segundo salienta, [...] nem ao menos palha na cabea das barricas foi colocada, resultando na grande quantidade de velas quebradas, s tendo sido possvel cont-las pelos fios. As informaes acima revelam a coexistncia de um comrcio incipiente sendo realizado na provncia, ao lado de uma rede comercial que atravessava o Atlntico. As condies estruturais reduzidas apresentadas pelo Piau traziam dificuldades para o recebimento das mercadorias nos centros consumidores e o consequente encarecimento. Em carta do dia 20 de abril de 1880, a Casa Mayer Frres comunica a Boris que dissolveu amigavelmente a sociedade da praa de Teresina, ficando o ativo e passivo da mesma firma a cargo de M. Mayer, que pede a Boris para manter o apoio e a considerao que dispensava casa anterior. Embora a deciso de dissolver a firma Mayer Frres tenha sido comunicada mais tarde, de forma oficial, por M. Mayer, Boris j havia sido informado antes por Salomon Baumann sobre essa deciso. Salomon Baumann era um comerciante francs comprador de caf da Casa Boris, produto transportado atravs de vapor vindo de Parnaba, reembarcado por Francisco da Costa Fernandes. Salomon Baumann, por sua vez, encaminhava as mercadorias tanto para Boris como para seu irmo, em Paris. 185
Em carta do dia 17 de abril de 1880, Baumann tratou de seus prprios assuntos comerciais e mencionou a liquidao da casa dos Srs. Mayer, nestes termos: [...] os Srs. Mayer vo liquidar a casa porque o Pedro Mayer descobriu muita ladroeira que o Sr. Mayer fazia, por isso ele quer apartar a sociedade, eu acho que a liquidao da casa vai ser judicialmente, o Jos Mayer como fiador da casa Mayer Frres. A contenda foi de tal magnitude que, segundo Baumann, [...] outro dia o Sr. Pedro Mayer quase quebrou a cabea do Sr. Mayer. As cartas de Salomon Baumann so reveladoras tanto da relao comercial que tinha com Boris como de uma relao social mais prxima com o comerciante francs, j que toma a liberdade de relatar, como se v acima, uma briga familiar que evoluiu para a agresso fsica, e antecipou o encerramento da sociedade comercial dos irmos. Na mesma carta, na parte comercial, Baumann comunica a Boris que no lhe mandou as penas de ema porque o [...] Sr. Jos Martins Teixeira me paga tambm a 8.000 rs o quilo, e os cabelos a 600rs o quilo sendo por isso melhor vender aqui. Alm disso, anuncia sua viagem de negcios para a Frana no fim do ms, s retornando em agosto. Acrescenta: [...] caso queira me escrever pode dirigir-se a Jules Baumann em Chalns sur Marne, Frana. Chalns deve ter sido a cidade de origem de Salomon Baumann, pois seu irmo Jules residia l. Havia outro irmo, Miguel Baumann, que era comerciante em Paris e recebia de Salomon remessas de penas de ema de primeira qualidade, alm de cabelos. A partir da leitura das cartas, fica clara a circulao de mercadorias entre Frana, Cear, Teresina e Parnaba. As cartas comerciais de 1882 mostram, alm da regularidade comercial entre Salomonn, em Teresina, e Boris, no Cear, uma relao de confiana, indicada pelo pedido de Salomonn a Boris para que [...] remeta, mensalmente, por intermdio de sua casa em Paris, a quantia de cinquenta francos a seu irmo Jules, em Chalns. O crdito solicitado demonstra, da parte de Baumann, uma certeza ou, pelo menos, uma boa expectativa de sucesso na sua atividade comercial. Os negcios em Teresina iam bem e, assim, era possvel remeter mensalmente dinheiro a seu irmo em Paris. A transferncia da capital da Provncia do Piau de Oeiras para Teresina teve como objetivo, como apontou Gandara (2008, p.136) mudar para progredir. A nova capital teria uma nova configurao espacial citadina, favorvel integrao 186
comercial. Seu posicionamento em uma rea, cuja topografia facilitava os movimentos fluviais e terrestres, conferia-lhe excelentes potencialidades para se desenvolver e se afirmar como centro urbano e como entreposto comercial. A ambio do projeto criou um sentimento de euforia, atraindo muitas pessoas. A deciso de localizar um porto e um comrcio no mesmo espao atrairia, gradativamente, um e outro para a proximidade do rio, afinal, um grupo de indivduos ajuda a atrair e a manter outro. Alm do que, teoricamente, as pessoas estabelecem-se, de forma natural, no lugar em que lhes seja a vida mais produtiva e agradvel. A nova capital certamente oferecia para um grupo de comerciantes vindos de diversos lugares e pases, dentre eles a Frana, muitos atrativos. As casas comerciais francesas estabelecidas em Teresina e j mencionadas, possivelmente pertencentes a proprietrios judeus, comearam a funcionar no Piau, conforme indica a documentao, bem antes da Casa Marc Jacob, e j eram clientes da Casa Boris. Elas aparecem, posteriormente, em 1886, como clientes da Casa Marc Jacob. Nos Livros Dirio e nos Copiadores de Cartas da Casa Marc Jacob, localizamos transaes comerciais realizadas entre essas casas. Em correspondncia datada de 22 de outubro de 1888, Marc Jacob fatura vrias mercadorias para Baumann, remetendo-as pelo vapor Teresinense. So pacotes contendo tecidos, como casemira de l, setinetas, morins e algodezinhos (das marcas Cupido, Cheguem Todos, Pechincha, Serve para Tudo, do Pereira, e outros), alm de duas dzias de garrafas de vermute. Jos Mayer recebia diversas mercadorias de Marc Jacob como pimenta e botija de genebra. Conforme anotao no Dirio n. 2, Mayer devolveu a Marc Jacob quatro latas de ch preto, seis latas de biscoitos pequenos e duas latas de biscoitos grandes, todas estragadas. A ligao de Jacob com os Mayers tem destaque em julho de 1891, quando Jos Mayer envia as cpias do testamento de M. Mayer para Marc, possivelmente para serem encaminhadas famlia na Frana. Importa dizer que, apesar de terem-se estabelecido no Piau em data anterior a Marc Jacob, estas casas instituram com esse comerciante uma parceria comercial articuladora da rede comercial que conectava Teresina, Parnaba, Cear e Europa. Boris, Mayer, Baumann, ODonnell e Jacob so franceses, judeus e negociantes atuando no Piau, no comrcio de importao e de exportao. Alm da correspondncia da Casa Boris, pde-se localizar, no Arquivo Pblico do Piau, em 187
Teresina, algumas cartas do ano de 1886, reveladoras dessa atividade, e sabe-se atravs delas que tipo de mercadoria circulava na cidade e o nome dos comerciantes. As cartas fazem referncia ao fornecimento de gneros aos estabelecimentos da Marinha, existentes em Parnaba a Capitania, a Escola de Aprendizes de Marinheiro e o Farol da Pedra do Sal. Paulino Jos Coelho Bastos fornecia, entre outras mercadorias, acar branco grosso, arroz, azeite doce, bacalhau, ch verde, vinho do porto, colches e pares de sapato. Os Irmos Veras forneciam carne seca e po. E Singlehurst Nephew & Cia fornecia carne verde, acar refinado, chinelos de couro, cera em vela, pratos pequenos de folha, tijolos ingleses, tinta preparada, remos novos, sabo, catecismos, tabuadas, livros de primeira, segunda e terceira leitura e outros produtos. H, ainda, pedidos feitos aos negociantes Madeira Brando, Joo Teodorico de Souza Torres e Alfredo Pereira & Cia, os quais incluem galinha, marmelada, leo de linhaa, lamparina de vidro, talheres de ferro, goma-arbica, papel almao pautado, genovs e mata-borro. Quase todos esses negociantes foram encontrados nos livros contbeis da Casa Marc Jacob. 3.9 Os Jacob: franceses em Parnaba Por volta de 1881, Marc e Lazare Jacob, dois dos cinco filhos do casal de fazendeiros franceses Joseph Jacob e Marie Beatrix, vieram de Schalbach, na Lorena, Frana, para o Cear, Brasil. Mais tarde, outros dois irmos juntaram-se a eles, em Parnaba: Myrthil e Charles. Os irmos Jacob chegaram a Parnaba, possivelmente em diferentes momentos, tendo cada um permanecido em Parnaba por diferentes perodos. O irmo Myrthil no mencionado em nenhuma documentao analisada, e sua presena em Parnaba s foi recentemente descoberta por Marc Theophile Jacob, que localizou sua lpide no Cemitrio da Igualdade, naquela cidade. Sabe- se, assim, que morreu com 27 anos de idade, em 17 de outubro de 1892. De Myrthil Franois Jacob declara Marc Theophile: 188
No sabemos muito quanto estada do Myrthil em Parnaba, apenas que faleceu quando estava a menos de 6 meses em Parnaba e teria morrido acometido de tifo ou outra febre endmica em Parnaba. Tenho um pequeno livro que pertenceu a Myrthil e que encontrei nas runas da sinagoga incendiada pelos alemes, na Segunda Grande Guerra, em Schalbach quando visitamos esta cidade em 1946 (logo aps o fim da conflagrao). um livro dele ainda criana onde consta alm do nome dele o dos irmos homens: Moise (Marc), Lazare, Myrthil, Theophile (meu av) e Charles. Sobre o irmo Charles, temos o registro de vrias de suas transaes comerciais, em Parnaba; e, mais tarde, em Nova York, onde atuou como comerciante, no tendo sido possvel determinar at quando. Nova York, como j se viu, fazia parte da rota comercial intensamente utilizada no perodo. Em agosto de 1891, Marc remete, em consignao a Charles Jacob, de Nova York, pelo vapor Cabral, via Maranho, doze fardos com 2.182 quilos de cabelos, ao preo de oitocentos e cinquenta ris, perfazendo um total de mil oitocentos e cinquenta e quatro contos e setecentos ris, e trs encapados de borracha a mil e cem contos, totalizando trezentos e trinta e sete contos e setecentos ris. Sobre Lazare Jacob, diz Marc Theophile Jacob: Lazare no era scio de Marc, mas trabalhava, digamos, sob o guarda- chuva deste, comprando alguns produtos que revendia para Marc ou que, atravs de Marc, revendia para outras praas, como acontecia, creio eu, com redes de dormir. Tenho, em Fortaleza, o testamento de Lazare, escrito de prprio punho, que muito curto diz deixar todos os seus bens para o seu irmo Marc.
Figura 22 Os irmos Marc e Lazare Jacob Fonte: Foto cedida por Roger Jacob. Aps viver no Brasil por mais de quarenta anos, sem nunca ter voltado Frana, Lazare retorna a este pas, possivelmente buscando tratamento mdico. Em 31 de maro de 1923, est anotada, no Dirio n. 28, a importncia de dez mil e duzentos francos despendidos com o seu tratamento mdico em Paris. Quando 189
Lazare morre, na Frana, em 1923, transferida para a conta de Marc a quantia de quarenta e oito mil setecentos e noventa e oito contos e trezentos e sessenta ris. Registrada com o nome Casa Comercial Marc Jacob na Alfndega de Parnaba, tratava-se de uma firma individual, sendo Marc Jacob seu nico proprietrio. Sabe-se, no entanto, atravs de Marc Theophile Jacob, que seus irmos Lazare e Charles participavam das atividades comerciais da casa. Dispostos a trabalhar e a investir na cidade, em 31 de outubro de 1891, os irmos Jacob estavam construindo um armazm na Rua Grande. Como Myrthil morreu em 1892, supe-se que tambm estivesse nessa empreitada. A presena dos quatro irmos em Parnaba, desde 1886, e negociando durante quase quarenta anos, indica a consolidao de seus negcios na cidade, atravs do incremento de suas atividades comerciais. A crena no potencial da cidade e na possibilidade de investir em uma atividade comercial de retorno seguro deve t-los motivado. A vinda de uma famlia de franceses para Parnaba suscita muitos questionamentos. O primeiro conjunto de perguntas seria: Por que deixaram a Frana? O que teria levado os irmos a emigrar para o Brasil? A que se deve a escolha de Parnaba, no Piau? Quando chegaram a Parnaba? Para entender-se como chegaram primeiro ao Cear e incorporaram-se, direta ou indiretamente, Casa Boris Frres, necessrio um segundo conjunto de perguntas: Vieram com alguma garantia prvia de emprego com Boris Frres, de quem eram parentes? Montaram seus negcios com que capital? Financiado por quem? Peclio pessoal ou peclio familiar? No temos a inteno de responder a todas essas perguntas, apenas quelas que a documentao pesquisada permitir. primeira pergunta, Jacob levanta uma hiptese: a de que a guerra franco- prussiana, encerrada em janeiro de 1871, e cujo resultado foi o Tratado de Paz assinado em Versalhes, no qual a Frana foi obrigada a ceder a maior parte de Lorena Alemanha, teria motivado a partida dos irmos. A Alemanha deu aos residentes na regio anexada um prazo at 1 de outubro de 1872 para decidirem entre manter a nacionalidade francesa e emigrar, ou permanecer e tornar-se cidados alemes. Como o sentimento antigermnico era intenso, expatriaram-se da Frana mais de cento e vinte mil jovens. 190
Pergunta-se: Teria sido esse o real motivo da partida dos irmos Jacob para o Brasil? Essa hiptese, no entanto, suscita uma questo adicional, qual seja: se eles deixaram a Frana, conforme indica Jacob, aps a guerra (1871-1872), para onde teriam ido antes de chegar ao Cear, em junho de 1881, como consta nos primeiros registros da Casa Boris? Entre o fim da guerra s primeiras referncias, so transcorridos quase dez anos! Possivelmente, a guerra no teria sido a motivao imediata para a partida dos irmos da Frana rumo ao Brasil. Supondo que tenham vindo diretamente para o Brasil, passa-se a refletir sobre quais atrativos o Brasil apresentava. A indagao no desconsidera, certamente, que o contexto poltico francs poca era favorvel emigrao de sua populao. Jacob (2006, p. 286), ao considerar os motivos, afirma: J a outra indagao por que o Brasil? exige consideraes mais amplas para chegarmos a uma resposta ainda que parcial. Vamos, pois, fazer uma tentativa de interpretao, necessariamente superficial e, certamente, falha. O Novo Mundo, como um todo, impressionava o europeu: amplitudes territoriais, quando na Europa, a propriedade das terras estava sedimentada h sculos, sem espao para novos empreendedores rurais e cujos proprietrios exigiam dos seus colonos mais do que estes lhes poderiam pagar para terem um nvel de vida confortvel; populaes crescentes que no esqueciam facilmente os perodos de fome endmica e de grandes mortandades decorrentes da clera e outras doenas coletivas; tributos elevados decorrentes de guerras imperialistas entre os pases europeus, na formao das nacionalidades e dos espaos nacionais; grande intolerncia religiosa e enorme diferenciao entre classes sociais. O Novo Mundo era o oposto disto tudo: no havia intolerncia religiosa, a terra era de quem dela se apoderasse, ou vendida a preos acessveis quando j tivessem sido legalizadas; as safras magnnimas; o clima, menos inclemente, e muitas fantasias cheias de esperanas permeavam o imaginrio dos recm-chegados. Por que Parnaba? Jacob (2006, p. 288) assim explica: Os dois jovens franceses vieram, pois, imbudos das noes comumente aceitas como verdadeiras sobre o que esperar do novo Pas e como atuar de forma positiva. Estabelecendo se em Parnaba, s margens de um rio caudaloso, que dera o nome a cidade. Era o conceito aceito de que aquela regio tenderia normalmente ao progresso. Nossa hiptese a de que Parnaba j despontava, h muito, como porto exportador de produtos regionais, tais como: gado, couros salgados, couros secos, madeiras, resina, entre outros; e importador de mercadorias, inclusive as que j vinham sendo enviadas pela Casa Boris Frres para Teresina. preciso lembrar que um vice-cnsul francs j atuava em Parnaba, desde 1863, dando suporte s atividades comerciais do Sr. Lalanne, e que, pelo menos, trs casas comerciais 191
francesas j estavam atuando em Teresina, desde 1875. Uma rede de negociantes franceses parece, assim, j estar consolidada, e a ida dos Jacob, parentes dos Boris, para Parnaba, viria a somar, tanto com a ampliao dos negcios do prprio Boris, como para a colnia de emigrados da Alscia-Lorena radicados em Fortaleza, que contava, inclusive, com alguns primos mais distantes dos Jacob, os Gradvhol. Nessa empreitada, beneficiaram-se todos, os Boris e os Meyer, que estabeleceram com os Jacob uma profcua e longa parceira comercial, e, a mdio prazo, as casas francesas de Teresina, que, tambm em parceria, compravam e vendiam via Casa Marc Jacob. A questo de quando chegaram ao Cear e depois a Parnaba, pode ser respondida apenas tomando por base os arquivos Boris e outras documentaes, ou seja, Fortaleza, em 1881 e Parnaba, em 1886. Ao segundo conjunto de perguntas, podem-se, ainda com base na documentao, aventar algumas respostas. Foram encontrados nos Dirios de Boris Frres os registros de vrias remessas de francos franceses de Joseph Jacob, da Frana, para seus filhos Marc e Lazare. As contas so nominais e cada um recebe valores diferentes, sendo quase sempre um valor maior o enviado para Marc. Esses registros aparecem a partir de junho de 1883. tambm possvel que Marc e Lazare enviassem para seu pai, na Frana, alguma mercadoria para ser negociada e que este lhes enviasse o valor referente como forma de pagamento. Tudo leva a crer que o capital inicial da Casa Comercial Marc Jacob, no valor de catorze contos de ris, teve origem nas remessas de dinheiro enviadas, da Frana, pelo pai. O dinheiro recebido certamente contribuiu para dar origem a Casa. importante lembrar que Joseph Jacob era agricultor em Shalbach, Lorena, e que os emigrados da Frana, no perodo, eram basicamente comerciantes ou trabalhadores no agrcolas (TAKEYA, 1995, p. 118). No se sabe muito da situao financeira da famlia na Lorena, mas certamente no era pobre, pois, pelo visto, financiou a abertura da Casa Comercial de Marc Jacob. Outrossim, pode-se presumir que no era rica o suficiente para abrir uma casa francesa com filial no Brasil, ou serem comissrios em mercadorias, como foi o caso da casa Boris Frres e de Meyer, mesmo porque no era uma famlia de comerciantes, mas de agricultores. 192
Importa notar que o dinheiro vindo da Frana pode ter representado, por um lado, um sacrifcio para a famlia, devido sada de dois filhos da Frana e a vida em um pas estrangeiro, o que no deixa de ter causado grande sofrimento para os pais, e um abalo nas finanas da famlia, especialmente quando esta vive da pequena agricultura. Por outro lado, o investimento de capital em um pas, em uma atividade que no dominavam, era temerrio, e deve ter sido visto como um grande risco. O fato de dois filhos virem a dar incio a um negcio e os outros dois terem vindo logo depois, mostra que os receios e temores se dissiparam. Afinal, de uma prole de cinco vares, s um ficara na Lorena, e mesmo este mandou seu filho, Roland Gabriel, para assumir os negcios da famlia, aps o falecimento dos fundadores da Casa. Os irmos Jacob, ao migrar, fizeram, e com sucesso, o que melhor caracteriza o povo judeu tornaram-se comerciantes com o apoio de uma comunidade judaica de comerciantes j radicados em Fortaleza e em Teresina. Pesquisas realizadas nos arquivos da casa Boris Frres, em Fortaleza, indicam no Dirio n. 2, que abrange os anos de 1876 a 1882, a presena de Marc e Lazare Jacob naquela cidade, a partir de junho de 1881. No d para saber se esse foi o ano exato da chegada dos irmos ao Cear ou se o ano marca o incio de uma parceria comercial entre eles e a Casa Boris. O certo que, a partir dessa data, o nome de Marc e Lazare Jacob, sempre lanados em transaes comerciais separadas, consta regularmente da contabilidade da Casa Boris Frres. Duas outras fontes documentais comprovam ainda a presena de Marc Jacob atuando como comerciante em Parnaba. A primeira o Dirio da Casa Boris, em que esto anotados os nomes dos comerciantes e as cidades. No caso do Piau, tm-se Izdio Paracampos & Irmo e Pasqual Estoppiel, em Picos, e Marc Jacob, em Parnaba. Outro documento que corrobora essa data o Livro do Centenrio da Parnaba, onde se l: Casa Marc Jacob Fundada em 1886, nesta cidade pelo Sr. Marc Desir Jacob, auxiliado por seu irmo Lazare Jacob. Ate 1892, dedicou-se a firma venda de mercadorias gerais, passando desse ano em diante, ao comrcio dos nossos produtos de exportao. 248
248 Informaes retiradas do Livro do Centenrio da Parnaba, 1944, p. 382. 193
No entanto, o registro mais antigo constante nos livros contbeis da Casa Comercial Marc Jacob est anotado no balano geral de dezembro de 1889. No item passivo, so verificados os lucros capitalizados pela casa no perodo de um ano e nove meses, o que corresponderia a maro de 1888. Essa data, desatualizada, por assim dizer, se explica pela falta do Dirio n. 1, que no foi localizado entre a documentao. Para compreender as atividades da Casa Comercial Marc Jacob, torna-se necessrio recorrer s origens e a sua natureza, de onde h pertinncia seguinte colocao de Jacob (2006, p. 289): Ao chegarem ao Brasil, os dois emigrantes iniciaram um negcio de exportao dos produtos da regio para os pases europeus. Os couros de boi, ainda produzidos nas charqueadas de Parnaba, eram exportados aps a sua secagem ao sol, para diversos pases, mas, preponderantemente para Portugal. Aos poucos foram sendo agregados produtos comprados ao longo do rio Parnaba, transportados para a cidade de Parnaba em barcas puxadas por rebocadores; a tonelagem dessas barcas foi pouco a pouco aumentando, de 10 para 30, para 50 chegando algumas a alcanar a capacidade de 100 toneladas de cargas... Na ida as embarcaes transportavam sobretudo sal grosso, adquirido pelas populaes ribeirinhas para uso prprio e para o gado [...] No retorno das embarcaes, eram coletados os produtos da atividade regional, couros de boi, peles de animais silvestres, peles dos pequenos animais de criao (carneiros e bodes) e paulatinamente, os produtos do extrativismo vegetal. A clientela inclua comerciantes de Parnaba, Teresina e de outras cidades do interior do Piau, Maranho, Cear, bem como da Europa. As vendas ao longo do rio Parnaba e demais regies eram feitas levando-se em considerao regras j acordadas. A casa s comercializava com clientes certos, com quem mantinha correspondncia, na qual estipulava previamente os valores das mercadorias, tanto para a compra quanto para a venda e as formas de pagamento vendas a prazo, em seis ou at dez vezes, ou vista. A entrada de um novo cliente dependia de um credor ou padrinho, que se responsabilizava pela indicao. A Casa Marc Jacob atuava como arrecadadora e distribuidora de produtos, escoava vrios produtos importados por Boris Frres, tais como: morim, algodo, brim de cor, lenos ou caf do Cear, e exportava, s vezes atravs de Boris, outras atravs de Meyer Frres, produtos nativos, subprodutos do gado e do extrativismo vegetal. No Dirio n. 2, tem-se a anotao do montante de mil setecentos e noventa e nove e duzentos e sessenta ris, despendido, em 31 de maio 1890, com a compra 194
dos seguintes gneros: algodo em pluma, algodo em caroo, couros salgados de boi, couros secos de boi, couros de carneiro, couros de cabra, crinas de animais, chifres de bois, resina de angico, carnabas, toras de cedro, buchos de peixe, tartaruga e sola. O estabelecimento comercial de Marc Jacob estava localizado na Rua Grande, n. 25, bem prximo ao porto, e hoje faz parte do acervo arquitetnico da cidade. Trata-se de uma edificao trrea, cujas caractersticas externas revelam uma construo do perodo colonial. A entrada est localizada na parte frontal do edifcio, a volumetria simples, com predominncia do plano horizontal. A edificao no tem recuos laterais ou frontal. A cobertura em telhado de duas guas com empenas voltadas para a lateral do lote, bica simples, uso de telhas capa e canal, e, no beiral, a presena de cimalha. A vedao em madeira e vergas retas (Figura 23). A simplicidade imperava. Em abril de 1890, foi mandado fazer um banco para colocar-se fazendas na loja. Constavam do mobilirio da loja, em 1896, mesas, cadeiras, estantes, uma prensa de madeira de ensaque e um cofre de ferro. S nesse ano, os proprietrios mandam preparar para a loja uma prateleira e um balco. 195
Figura 23 Casa Marc Jacob. Fonte: Neuza Mello (2006). Alguns empregados trabalharam na Casa por dcadas, acompanhando o nascimento e seu crescimento comercial. Um deles foi Firmino Sampaio, e outro foi Antnio Brando Dias, que, conforme anotao no Dirio n. 2, recebe o seu ordenado, s vezes, aps um longo perodo de prestao de servios, como o que vai de outubro de 1888 a maro de 1889. Para saber como estava organizada a atividade comercial daquela casa, recorreu-se, para este estudo, aos seus livros contbeis. Os livros comerciais representam os instrumentos atravs dos quais o comerciante, pessoa fsica ou jurdica, escritura, de forma sistematizada, os eventos ocorridos no desenvolvimento de suas atividades. So classificados em duas espcies: obrigatrios e auxiliares ou facultativos. O livro Dirio, que retrata as atividades dirias do comerciante, obrigatrio, assim como o Copiador de Cartas. Entre os auxiliares ou facultativos, constam o Livro Razo e o Borrador. O primeiro, segundo consta em Marion (2004, p. 36), [...] um livro atualmente 196
obrigatrio, que foi durante muito tempo facultativo. Em virtude de sua eficincia, indispensvel em qualquer tipo de empresa e o instrumento mais valioso para o desempenho da Contabilidade. O livro Razo consiste no agrupamento de valores em contas de mesma natureza e de forma racional. Nele, cada conta existente na empresa corresponde a uma pgina, na qual so registrados os lanamentos daquela conta, na ordem em que ocorreram. Apresenta-se, portanto, como uma espcie de ndice do livro Dirio, pelo fato de sua escriturao seguir ordem cronolgica idntica aos dos lanamentos lavrados naquele livro. O livro Borrador, como sua prpria denominao sugere, registra as operaes realizadas a cada momento, servindo de base para a escriturao dos demais livros. No depsito da empresa Produtos Vegetais do Piau Ltda. uma das vrias empresas do Grupo Jacob, em Parnaba, hoje de propriedade de Marc Theophile Jacob, sobrinho-neto de Marc Jacob esto guardados os livros comerciais da Casa Comercial Marc Jacob (1888-1928) e os da Casa Marc Jacob (a partir de 1928), pertencentes ao pai de Marc Theophile, Roland Gabriel Jacob. Sabe-se, pelo estudo de Freitas (2003, p. 252), que os arquivos particulares de instituies ou associaes, de firmas comerciais ou industriais, de famlias e indivduos so pouco preservados. Com o crescimento das cidades e a reduo da superfcie das edificaes e das habitaes, esses arquivos so vendidos como papis velhos ou incinerados como inutilidades que ocupam espao precioso. So raras as famlias, empresas ou instituies que preservam seus arquivos e os valorizam como fontes da memria e da histria. Embora no tenha sido possvel localizar, entre a vasta documentao guardada no depsito da empresa, toda a sequncia dos livros contbeis, foram localizados vinte e nove Dirios da Casa Comercial Marc Jacob e vinte e dois Dirios da Casa Marc Jacob, perfazendo um total de cinquenta e um livros. O Dirio n. 2 de 1889 o mais antigo dos livros encontrados, e foi o ponto de partida para o presente estudo. Como um documento de escriturao, o Dirio seguia as regras estipuladas pelo Cdigo Comercial Brasileiro de 25 de junho de 1850 que estabelecia nos artigos 10 a 15: Art. 10 [...] que todos os comerciantes esto obrigados a seguir uma ordem uniforme de contabilidade e escriturao e a ter os livros necessrios para 197
esse fim; a formar anualmente um balano geral do seu ativo e passivo, o qual dever compreender todos os bens de raiz mveis e semoventes, mercadorias, dinheiro, papis de crdito, e outra qualquer espcie de valores, e bem assim todas as dvidas e obrigaes passivas; e ser datado e assinado pelo comerciante a quem pertencer. Art. 11 - Os livros que os comerciantes so obrigados a ter indispensavelmente, na conformidade do artigo antecedente, so o Dirio e o Copiador de cartas. Art. 12 - No Dirio o comerciante obrigado a lanar com individuao e clareza todas as suas operaes de comrcio, letras e outros quaisquer papis de crdito que passar, aceitar, afianar ou endossar, e em geral tudo quanto receber e despender de sua ou alheia conta, seja por que ttulo for, sendo suficiente que as parcelas de despesas domsticas se lancem englobadas na data em que forem extradas da caixa. Os comerciantes de retalho devero lanar diariamente no Dirio a soma total das suas vendas a dinheiro, e, em assento separado, a soma total das vendas fiadas no mesmo dia. No mesmo Dirio se lanar tambm em resumo o balano geral (artigo n. 10, n 4), devendo aquele conter todas as verbas deste, apresentando cada uma verba a soma total das respectivas parcelas; e ser assinado na mesma data do balano geral. No Copiador o comerciante obrigado a lanar o registro de todas as cartas missivas que expedir, com as contas, faturas ou instrues que as acompanharem. Art. 13 - Os dois livros sobreditos devem ser encadernados, numerados, selados e rubricados em todas as suas folhas por um dos membros do Tribunal do Comrcio respectivo, a quem couber por distribuio, com termos de abertura e encerramento subscritos pelo secretrio do mesmo tribunal e assinados pelo presidente. Art. 14 - A escriturao dos mesmos livros ser feita em forma mercantil, e seguida pela ordem cronolgica de dia, ms e ano, sem intervalo em branco, nem entrelinhas, bordaduras, raspaduras ou emendas. Art. 15 - Qualquer dos dois mencionados livros, que for achado com algum dos vcios especificado no artigo precedente, no merecer f alguma nos lugares viciados a favor do comerciante a quem pertencer, nem no seu todo, quando lhes faltarem as formalidades prescritas no artigo n 13, ou os seus vcios forem tantos ou de tal natureza que o tornem indigno de merecer f. Os Livros Dirios da empresa eram registrados na Inspetoria Comercial, na Alfndega de Parnaba, onde eram assinados pelo proprietrio do estabelecimento, pelo tesoureiro e pelo escriturrio da Alfndega. Para tanto, impostos assim como selos e taxas adicionais eram cobrados. Na primeira pgina de cada Livro Dirio, encontra-se lavrado o Termo de Abertura, e, na ltima, o Termo de Encerramento. No caso do livro mais antigo localizado, os termos foram assinados, em 1889, pelo oficial da Alfndega, Egdio Osrio Porfrio da Motta, que tambm rubricou todas as pginas. Pde-se constatar, nesses documentos, que a forma do registro comercial permaneceu praticamente a mesma ao longo de quarenta e quatro anos, sofrendo 198
modificaes mais significativas s em 1931, possivelmente devido a uma nova regulamentao. Apesar de constar, no Cdigo Comercial, a obrigatoriedade de apenas dois livros Dirio e Copiador atravs de informaes obtidas com a leitura dos diversos dirios da Casa Comercial objeto deste estudo, tomou-se conhecimento de registros de eventos efetuados em livros auxiliares, entre eles, os denominados Memorial, Contas do Caixa, Balanos e Consignaes de Mercadoria, referenciados nos lanamentos dos livros Dirios, Borrador e Razo. Nos arquivos de Marc Jacob, foram encontrados trs desses livros, sendo um livro Borrador e dois livros Razo, o primeiro compreendendo os anos de 1896 at 1908; e, o segundo, o Razo n. 3, de 1909. Vrios volumes de Copiadores de Cartas Comerciais foram encontrados. Para cuidar desses dirios, havia um encarregado com funo especfica, era o guarda- livros. O guarda-livros era o empregado responsvel pelo registro contbil dos eventos ocorridos no estabelecimento comercial, atividade que exercia escriturando tanto os livros principais como os auxiliares, desde o termo de abertura, movimento comercial do perodo at o termo de encerramento. Suas atribuies tambm estavam estipuladas pelo Cdigo Comercial Brasileiro, juntamente com a dos feitores e caixeiros, no captulo IV do Ttulo III, que trata dos agentes auxiliares do comrcio. Segundo o mencionado Cdigo, os prepostos das casas de comrcio, antes de iniciarem o exerccio, deveriam receber de seus patres uma nomeao por escrito, a ser registrada no Tribunal do Comrcio, o que, no caso de Parnaba, seria a Alfndega. Infelizmente, no nos foi possvel localizar tal documentao. A profisso de guarda-livros pressupunha alto grau de responsabilidade, j que o art. 78 estabelecia que esses agentes de comrcio eram responsveis perante os proponentes por todo e qualquer dano que lhes causassem por malversao, negligncia culpvel, ou falta de exata e fiel execuo das suas ordens e instrues, recaindo contra eles at mesmo ao criminal, no caso de malversao. Dentre as atividades exigidas do guarda-livros, encontrava-se o registro de cada uma das operaes realizadas pelo estabelecimento; o levantamento do inventrio das mercadorias existentes em determinada data; a apresentao do resumo da escriturao de cada ms; e o balano geral do ativo e passivo da casa comercial, levantado ao final de cada exerccio social, que corresponderia, 199
geralmente, a um perodo de doze meses, encerrando-se, na maioria das vezes, em 31 de dezembro de cada ano. Na Casa Comercial Marc Jacob, o balano geral era feito, em sua maioria, anualmente, conforme estipulava o Cdigo, mas, em algumas vezes, cobria um perodo de tempo maior. Nesses casos, no foi possvel estabelecer o critrio utilizado pelo contador para o uso de periodicidades diferentes para o levantamento do Balano. Os Livros Dirio da Casa Comercial Marc Jacob, conforme constatado, em sua maioria, contm trezentas folhas, correspondendo a seiscentas pginas; medem sessenta centmetros de altura por quarenta e cinco de largura e pesam dez quilos. Muitos so franceses, e tm na primeira contracapa o belssimo selo da tipografia Ch. Weisshoff, de Paris. O peso e tamanho do livro obrigavam o guarda-livros a fazer os registros utilizando uma mesa especial para comportar um desses grandes livros abertos, contendo um anteparo na parte inferior, para o livro no deslizar, j que a mesa tinha o tampo inclinado de forma a dar conforto ao contador. Um banco alto, tambm utilizado, permitia ao funcionrio manter os ps no cho. No Livro Dirio, o guarda-livros registrava as transaes comerciais, tais como: compra, venda ou consignao de mercadorias. Tais eventos eram registrados com a observncia da tcnica prpria adotada pela contabilidade, denominada mtodo das partidas dobradas. A propsito de tal tcnica, Mller (2006, p.65, grifos do autor), contextualiza: Convencionou-se, no mundo inteiro, que o Ativo deve ser sempre demonstrado do lado esquerdo e o Passivo, do lado direito. Como o prprio nome diz, o balano de uma empresa , na verdade, uma balana na qual so colocados, de um lado, os bens e direitos, e de outro, as obrigaes, sendo que ambos os lados devem ter o mesmo peso, ou seja, o mesmo valor. Desse modo, o Ativo deve ser sempre igual ao Passivo Total. A partir desse conceito foi criado o mtodo das partidas dobradas, no qual o registro das operaes deve ser feito sempre uma contrapartida. Suponha, por exemplo, uma empresa que compra uma mquina a prazo. Nesse caso, ocorre aumento de seus bens e, em contrapartida, o aumento de suas obrigaes pela dvida assumida. Esse mecanismo universalmente aceito apresenta em sua essncia o fato de que o registro de qualquer operao implica que a um dbito, em uma ou mais contas, deve corresponder um crdito equivalente, em uma ou mais contas, de forma que a soma dos valores debitados seja sempre igual soma dos valores creditados. Os eventos so registrados em diferentes rubricas denominadas contas. 200
Uma conta rene elementos ou conceitos de natureza semelhante. Assim, entre muitas outras, temos a conta Caixa, a conta Bancos, a conta Estoques, que controlam a movimentao do dinheiro, dos recursos em bancos e das mercadorias, respectivamente. No caso da Casa Comercial Marc Jacob Ltda., na conta denominada Gneros Diversos, eram registrados todos os eventos relacionados movimentao de produtos in natura. Dessa forma, a operao de compra vista desse tipo de mercadorias era assim registrada: pelo ingresso dos produtos nos estoques da empresa, a conta Gneros Diversos recebia um dbito pelo valor da transao e, ao mesmo tempo, em obedincia ao mtodo das partidas dobradas, a conta Caixa, pela sada do recurso (pagamento), recebia um crdito de igual valor. Inversamente, quando era o caso de venda desses mesmos tipos de produtos, o registro era feito mediante um dbito na conta Caixa, pelo ingresso do recurso, e um crdito na conta Gneros Diversos, pela sada (venda) dos produtos, sempre pelo valor da transao. Nos casos em que as operaes envolviam produtos j manufaturados, os mecanismos de registros eram os mesmos descritos acima, porm, a conta utilizada era outra, denominada Fazendas Gerais. Saliente-se o caso no qual em uma mesma transao estejam sendo comercializados elementos de naturezas diferentes. Nessas situaes, a tcnica contbil utiliza-se da expresso Diversos, um indicativo da existncia de mais de uma conta a ser debitada ou creditada na operao. Exemplo tpico encontrado nos registros da Casa Comercial Marc Jacob a venda de produtos in natura e produtos manufaturados para um mesmo cliente. Nesse caso, ser registrado na conta Caixa um dbito correspondente ao valor recebido pela negociao e, ao mesmo tempo, o espao Diversos receber um crdito de igual valor. Como tal expresso tem por finalidade indicar a existncia de mais de um tipo de conta na transao, na sequncia do registro aparecero as contas envolvidas, Gneros Diversos e Fazendas Gerais, que recebero a crdito os valores que representam suas respectivas contribuies no total da operao. O mesmo mecanismo dever ser utilizado quando for o caso de aquisio desses produtos: debita-se Diversos, para indicar o registro pela entrada de produtos controlados, atravs das contas Gneros Diversos e Fazendas Gerais, e credita-se a conta Caixa pela sada do recurso. Ambos, dbito e crdito, correspondendo ao valor da negociao. 201
A maioria das mercadorias exportadas pela Casa Comercial Marc Jacob era comercializada sob o sistema de consignao; isto , eram remetidas a um vendedor, sem que o remetente perdesse a sua propriedade, at que o vendedor conseguisse vend-las, momento no qual ele repassaria ao dono das mercadorias o montante acordado pelas ditas o preo de venda das mercadorias, eventualmente deduzido de uma comisso para o vendedor. A venda de mercadoria em consignao tem uma grande vantagem para o comerciante: este no necessita fazer financiamento, porque o fornecedor que disponibiliza uma determinada quantidade de produtos para o revendedor, com margem previamente definida e com o pagamento realizado em data previamente combinada. Para o fornecedor, por um lado, essa ausncia de risco e o financiamento implcito do seu cliente facilitam grandemente a venda; mas, por outro lado, cria para si a necessidade de manter maiores estoques e de os financiar, alm de assumir o risco de desvalorizao. O fornecedor necessita financiar a mercadoria at esta ser vendida. Nesse tipo de venda, o vendedor geralmente obtm margens mais baixas. Todas as despesas feitas durante a comercializao eram anotadas na conta do fregus. Estavam includos os gastos despendidos com direitos municipais, provinciais, gerais, de importao ou exportao, fretes, carreto, selos e despacho de conhecimento Alfndega, estampilhas, seguros, primagem (pagamento feito ao comandante da embarcao), capatazia, barbante, corda, tinta, feitio de caixas e fardos, soldas de latas, telegramas e outros. O valor da despesa era cobrado do fregus, vista, podendo o valor da mercadoria ser dividido em seis ou dez vezes. Essa relao comercial j estava estabelecida desde os primrdios da Casa. Como se l na pgina 1 do Copiador de Cartas, na fatura de 8 de outubro de 1888, enviada ao Sr. Sezostre Jos Correia, de Unio, pelo vapor Piau, na qual est registrada a compra dos seguintes itens (CASA..., 1888, p. 1): 2 Barris de 5. de vinho a 600 120.000 Jogo de loua (pratos) de p de pedra contendo 20 dzs a 2.000 40.000 Jogo de loua (xcaras) de p de pedra contendo 12 dza a 1.800 21.600 Jogo de loua (tijelas) de p de pedra contendo 12 dzs a 1.800 21.600 Total 203.200 202
Logo abaixo do pedido, foi anotado o lanamento das Despesas: Frete 12.400 Carretos 500 Selos alfndega 420 Seguro 2.500 Total 15.820 O total da nota debitada ao Sr. Sezostre de duzentos e trs contos e vinte ris, e a transao finalizada cobrando-se dele, vista, quinze contos e oitocentos e vinte ris, referentes s despesas, e divididos duzentos e trs contos e duzentos ris das mercadorias, em 10 meses. A compra da prensa de ensaque aparece no Dirio n. 2. Esse equipamento servia para a confeco dos fardos destinados embalagem de crina, algodo e folhas, como, por exemplo, as de jaborandi. O couro tambm era embalado, em mdia de vinte em vinte peas, e, em seguida, prensado e marcado. A sacaria utilizada para o transporte da cera de carnaba, tucum, mamona ou babau era contabilizada nos gastos do negcio. Todo o movimento de sacaria de juta ou algodo, comprada ou mandada fazer, era anotado e adicionado conta de venda. Os sacos de juta, que vazios pesavam um quilo, eram mais resistentes e utilizados para acondicionar a cera de carnaba; os de algodo, mais leves, pesando seiscentos gramas, serviam para o transporte das oleoginosas. Um saco cheio podia pesar de sessenta a oitenta quilos e era carregado na cabea, por um estivador. Dois homens levantavam o saco, colocando-o na cabea de um terceiro, ou de um dos dois levantadores. Para equilibrar o peso do saco, o carregador andava correndo. No alpendre do armazm do porto, ao longo do rio Parnaba, as mulheres sentavam e costuravam a boca dos sacos, feitos a partir de tecidos comprados em peas; faziam os consertos necessrios nos sacos furados e fechavam a parte superior, quando estavam prontos para seguir viagem. Assim como o fazendeiro ferra seu gado, os comerciantes do perodo marcavam sua sacaria. A sacaria de Marc Jacob era marcada com suas iniciais MJ, a de Boris Frres, BF, e assim por diante, representando, em geral, as iniciais de 203
seu proprietrio ou da casa comercial. A marca era feita com um molde vazado (estncil) com letras recortadas de chapas de folha de flandres, ou equivalente, e colocadas sobre o tecido, no qual aplicavam uma tinta marrom, feita a partir de substncias retiradas da casca de uma planta do mangue (xido de ferro e gua). A marca era fundamental e obrigatria para o despacho das mercadorias, pois indicava o proprietrio de cada saca, caixa, caixote ou fardo. Tambm consta das notas de conhecimento, exigidas na navegao de cabotagem, emitidas nos portos da provncia (Figura 24). Uma das caractersticas mais marcantes dos Dirios da Casa Comercial Marc Jacob a quantidade e a variedade de registros. Anotava-se tudo. O sistema permitia tanto anotaes comerciais e financeiras como os registros particulares do proprietrio.
Figura 24 - Nota de conhecimento. Fonte: Arquivo Boris Frres, Fortaleza, Cear, 2008. Sob a rubrica Marc Jacob C/ Par conta particular, existente nos livros Dirio, pde-se tomar conhecimento no s das atividades profissionais/comerciais de Marc Jacob como de sua vida particular. Pde-se tambm entrar em contato com seus 204
gostos e seu estilo de vida, por meio de alguns de seus hbitos higinicos, pela compra de uma escova de dente, em 20 de novembro de 1889, e que usava sabonete e extrato. Trajava-se com sobriedade, usando ternos de tecido de diagonal preto e relgio de algibeira. Lia O Patriota. Tinha um par de photomobile, usava culos, tocava gaita, gostava de fumar charuto ou cachimbo de cereja. Consultava regularmente seu mdico, o Dr. Sampaio, possua um termmetro, adquiria frascos de plulas e de outras drogas. Tomava purgante de gua vienense, salsa parrilha (possivelmente em forma de ch, para purificar o sangue) e gua de rubinat. Provavelmente, teve malria, pois h varias compras de sulfato de quinino anotadas nos Dirios. Para a sua proteo, adquiriu um revlver e trezentas balas. Como gostava de animais, comprava manta para cavalo e alimentava seu cachorro com carne. Marc Jacob apreciava uma grande variedade de bebidas: aguardente, cerveja, cerveja preta, bitter, kmmel, vinho de Bordeaux e o Cognac Frapin, produzido pela secular casa francesa de Segonzac na regio de Champagne. Seu fornecedor era a Cia. Branderburg Frres, de Bourdeaux. As suas despesas com comedorias incluam o consumo de leite, acar fino, biscoitos, marmelada, manteiga, vinagre, potes de pequenas conservas, ervilha, sardinha, tmaras, ameixa, azeitona, utilizando, ainda, palito, vela estearina e fsforo. Sua louaria inclua peas de porcelana, como uma dzia de pratos, uma travessa, uma sopeira e um aucareiro, alm de uma bacia grande estanhada. Seu mobilirio, da loja ou da casa (s vezes, no possvel distinguir onde era usado determinado item anotado) constava de um relgio de parede, lampio de parede e quatro bancos de palhinha para mesa. Presenteava meninas com bonecas e meias, e mesmo sendo judeu dava esmolas na Semana Santa. Na tentativa de adequar-se socialmente, comprava ponto nas rifas e cota de baile. Anotava tambm as despesas com material de escritrio, como papel de cor, anilina, barbante vindo da Frana, livro em branco, botija de tinta, alfinete, linha, agulha. E outras, mais ligadas a suas atividades profissionais, como arsnico para envenenar couro. 205
Ao longo dos anos, possvel acompanhar as despesas com a criadagem, saber da existncia do vaqueiro Roberto, que cuidava das diversas reses, postas por ele a pastar na Ilha Grande de Santa Isabel; e, ainda, que tinha um criado de nome Amaro, alm de um servente, Manoel. Da criada Cezarina Maria de Jesus h mais informaes, algumas fornecidas por Jacob (2006, p. 295): Como foi dito no incio, ambos os irmos, Marc e Lazare, permaneceram solteiros. Cuidava deles uma senhora de cor preta, a Cesarina, conhecida de nome e estimada de longe por toda a famlia que vivia na Frana. Para ela mandavam muitos presentes, de modo que a Cesarina, quando saa rua, era um luxo s! Nunca soube que a Cesarina tivesse, em algum tempo, se casado, mas criou muitos meninos de sua parentela, que eram acolhidos na casa dos tios... O tio Marc dispensava Cesarina, um tratamento respeitoso e em uma carta que fez para ela, j no hospital em que viria a falecer, em Paris, trata-a como senhora e por dona Cesarina. Alm das informaes do Dirio, sabe-se, atravs de relato de pessoas que viveram em Parnaba, poca, que tanto Marc quanto seu irmo Lazare vestiam, habitualmente, palets de alpaca preta e cala listrada, e andavam, religiosamente, juntos para irem ao trabalho e no retorno a casa, todos os dias. s vezes, paravam para um dedo de prosa com os ingleses da firma Singlehurst, que foi sucedida pela firma James Frederick Clark. Recebiam em sua casa compradores/vendedores que vinham do interior. Alm do Dirio, os comerciantes eram obrigados a manter atualizado, em conformidade com o artigo 11 do Cdigo Comercial Brasileiro, o Copiador de Cartas. Cumpre esclarecer que a funo do Copiador de Cartas, definido no art. 12, era registrar tanto as cartas-missivas como as contas, faturas ou instrues que as acompanhassem. O Copiador de Cartas ou Copiador de Fatura era o livro em que se escrevia toda a correspondncia da firma. A carta original, escrita com tinta copiadora, era colocada no livro copiador, sob uma folha de papel de seda, coberta por tecido pano embebido em uma soluo fixadora. O processo consistia em colocar, em camadas, a carta original e o tecido fixador sob a folha de seda do livro copiador. Colocado na prensa o livro era apertado e no final do dia as cpias ficavam impressas no Livro Copiador, enquanto as originais eram retiradas, prontas para serem encaminhadas. 206
Sendo a carta uma obrigao do negcio e estando essa correspondncia preservada, foi possvel acompanhar as transaes realizadas pela Casa, tanto aquela relacionada com a clientela da cidade de Parnaba como a do interior dos Estados do Piau, Maranho, Cear e a do Exterior. A carta sempre indica a cidade, o negociante, o meio de transporte utilizado para o envio das mercadorias, a quantidade, o valor e a forma de pagamento. Lamentavelmente, a correspondncia recebida no foi preservada. A correspondncia compreende as faturas das mercadorias previamente combinadas e embarcadas no vapor especificado, e as missivas em que se consulta sobre o interesse do cliente em adquirir certas mercadorias. Em outras correspondncias, certificado o recebimento da mercadoria e registrada a satisfao do cliente. H cartas em que so encomendadas mercadorias, na maioria das vezes, com informao sobre a quantidade, a qualidade e os valores: os preos correntes dos artigos ou a sua cotao, e o que se est disposto a pagar por elas. Assim, em 8 de outubro de 1888, Marc Jacob escreve a Ricardo de Barros, de Teresina: Amigo e snr Pelo snr Jos Mayer, soube que vmce recebeu de m/c R60$000, por isso peo-lhe que compre e me traga milho e farinha. O milho pago-lhe a 3.500 a carga de 100 litros, aqui. A farinha pelo mesmo preo. O feijo, desisto. A Martinho da Cunha Machado, tambm de Teresina, escreve: Snr Rogo-lhe o favor de me dizer alguma coisa com relao compra de feijo de minha encomenda e se precisa de sacos, tenha a bondade de dizer o nmero que quer. As cartas que escreve para o Exterior tm contedo semelhante. So pedidos e reclamaes, algumas vezes escritas em portugus, outras, em francs. Para a correspondncia com Boris Frres, de Paris, pde ser localizado um Copiador de Cartas separado, escrito sempre pelo prprio Marc Jacob, em francs. Pela leitura do mais antigo Copiador de Cartas da Casa encontrado, datado de 17 de julho de 1889, foi possvel acompanhar a viagem comercial do vapor Amarante. O vapor Amarante deixou o porto de Parnaba e viajou rio abaixo, entregando a carta que segue e as mercadorias citadas a uma rede de 35 clientes nas cidades de Unio, So Francisco (MA), S. Joo dos Patos (MA), Teresina, 207
Jaics, Oeiras, Brejo (MA), Camocim (CE), So Joo do Piau, Balsas (MA), Bom Jesus, Santo Antnio, Amarante, Pastos Bons (MA) e Jerumenha: Amigos e Srs., Tenho a honra de me dirigir a vmce comunicando haver despachado um variado sortimento de: fazendas, miudezas, louas, bebidas. Aproveito pois, a oportunidade para fazer-lhe os meus oferecimentos, confessando-me desde j agradecido, se vmce confiar-me suas notas de pedido, prometendo satisfazer-lhe de um modo contentvel. Subscrevo-me com particular estima, Amigo e Criado, Obrigado. Percebe-se, pela carta, que Marc Jacob abastecia, com seus produtos, alm de comerciantes do Piau, uma clientela do Maranho e de Camocim, no Cear. Pode-se imaginar como era feita a transao comercial. Fazendas, miudezas, louas e bebidas so produtos certamente adquiridos via Boris ou atravs de firmas que tambm comercializavam com Boris; ou seja, dentro da teia ou rede comercial montada. O cliente, escolhendo entre o sortimento enviado, devia preencher uma nota com seu futuro pedido. Em carta de 19 de fevereiro de 1909, ele escreve a quatro comerciantes em Floriano e a um em Teresina, apresentando um representante de duas casas comerciais cearenses: A presente tem como objetivo apresentar a Vmce o meu amigo Sr. Edmund Levy, chefe da firma Levy & Cia, do Cear, e concunhado do meu parente Sr. Achiles Boris, tambm chefe da Casa Boris Frres, da mesma praa. Tomo a liberdade de o recomendar a sua valiosa amizade e conto que vmce possa fazer-lhe uma boa encomenda de mercadorias. A leitura das cartas tambm permitiu entender outra funo de Marc Jacob, a de introduzir outros comerciantes nas cidades do interior, como se v acima. A Casa Comercial Marc Jacob iniciou suas atividades comercializando tanto com o interior do Piau e do Maranho como com o Exterior. Comprava e vendia certa variedade de produtos e comercializava com diversas moedas: escudo, libra, dlar e franco, alm de ouro e prata. Sobre a variedade de produtos comercializados, Jacob (2006, p. 290) afirma: Foram produtos da pauta de exportao da Casa Marc Jacob, em diferentes pocas, os couros secos de boi (chamados de espichados), as peles de carneiro e cabras, as peles silvestres, sementes oleaginosas, entre as quais, mencionamos as bagas de mamona, as nozes de tucum, as 208
sementes de babau, o caroo e a fibra do algodo, bucho de peixe (de pescada e gurujuba), barbatana de tubaro, a cera de carnaba, a cera de abelhas, folhas de jaborandi, raiz de jalapa, a fcula de mandioca e muitos outros produtos menores. Quando dizemos que foram exportados esses produtos em diferentes pocas, no se quer dizer que foram sendo exportados uns com excluso de outros, no, foram exportados sempre uma grande variedade de produtos, embora nem sempre todos os produtos listados participassem o tempo todo. Um rastreamento de seus fornecedores e compradores possvel a partir de 1888. Pelo sistema de consignao, e recebendo uma comisso de 3%, enviava para Avelino da Silva Rios e Ricardo de Carvalho & Cia, de Lisboa, via Liverpool, couros secos de boi e meios de sola. Em Hamburgo, Alemanha, seu parceiro comercial era Jean Schuback & Fils, com quem comercializava desde 17 de novembro 1888 e para quem enviava couro salgado. casa E. Raoul Duval & Cia, de Havres, remetia caixas com penas de ema e cascos de tartaruga. Em Bordeaux, seu fornecedor de vinho era Brandenburg Frres e, em Segonzac, T. Frapin era seu fornecedor de conhaque. Para Leech Harrison & Forwood, de Liverpool, enviava caixotes com moedas portuguesas e espanholas de prata e ouro, entre elas pataces portugueses de novecentos e sessenta, seiscentos e quarenta, trezentos e vinte, cento e sessenta, e oitenta; moedas peruanas, mexicanas, alm de joias de ouro e prata. Remetia tambm sacos com cera de carnaba e algodo em pluma. Para essa companhia enviava ainda barricas com buchos de peixes, sacos com caroos de mamona e sacos com resina de jatob. Para Liverpool, remetia a W. R. Robert & Cia, muitas vezes, pelo vapor ingls Brunswick, couros espichados de bois, resina de jatob, surres de couro com buchos de peixes e fardos com crina de animais. Para Nova York, enviava mercadorias para a Frank B. Ross & Co, a Amsinck & Co., e a L. & Kemp ou diretamente para seu irmo Charles que tratava da sua comercializao. 249
importante lembrar que muitos dos comerciantes citados j eram parceiros comerciais de Boris Frres, desde 1875. Percebemos, assim, que, se Marc Jacob no fazia parte daquele conjunto de comerciantes franceses que se estabeleceram no Brasil com uma casa comercial atacadista com matriz na Frana e uma filial no Brasil, ele utilizou o esquema montado pela Casa Boris, que funcionava dessa forma para efetivar seus negcios a partir de Parnaba: os mesmos fornecedores, as
249 Podem ser citados como exemplo os registros do envio de fardos com cabelos para Charles, em Nova York. 209
mesmas mercadorias, a princpio, tanto na importao como na exportao, e, depois, s na exportao. No comrcio com o Cear, a Casa Marc Jacob enviava para Boris Frres peles de cabra, de carneiro, de veados, sementes oleaginosas de mamona, tucum e babau, carnaba, borracha de manioba, chifre, cobre velho e toras de cedro. No Rio de Janeiro, seus fornecedores eram Gustavo Saboia & Cia., Augusto Leuba & Cia, de quem comprava tecidos, como, por exemplo, fardos de brim nacional e fumo, e de quem recebia pacotes com amostra de meias para revender. Seus outros parceiros comerciais no Rio de Janeiro eram Zenha Ramos & Cia, Jlio Sabia & Cia. No Par, foram localizados os comerciantes Cerqueira Lima & Cia.; Almeida Lobato & Cia., Valle Certo & Cia. Em Manaus, Marius & Levy, e Raimundo Xavier de Souza. Em Pernambuco, comerciava com Manoel Joaquim Pessoa, Fonseca Irmo e Cia., Tavares Lapa e Cia., Pinto Alves & Cia., e Loureiro Barbosa e Cia. Em Teresina, Jos Mayer, Benjamim Martins & Cia., Joo Clmaco da Silveira, Oliveira Santana e Cia e Manuel Tomaz e Irmo. Seus negcios podem ser acompanhados em algumas cidades do Maranho, como Brejo, Repartio e Santa Quitria. No Cear, com Fortaleza, Sobral, Chaval, Camocim e Caxias. E, no Piau, com Amarrao, Ilha Grande, Piripiri, Batalha, Colnia, Unio, Porto Alegre, Amarante, entre outras. Algumas mercadorias devolvidas chamam a ateno pelo carter de exoticidade, como a que consiste em seis vus de noiva, enviados s Sras Castello Branco de Teresina e devolvidas, em 30 de junho de 1891. A devoluo de uma salva de electro-plate (galvanizada), pelo Sr. Raimundo de Almeida Guimares (vinte mil ris), e a devoluo, em 31 de janeiro de 1891, de seis leques de cetim de cor (trinta mil ris). Provavelmente esses artigos mais luxuosos no encontraram uma freguesia, e por isso foram devolvidos. Escrevendo sobre sua famlia, Jacob (2006) conta que, com a morte de Lazare Jacob, em 1923, e de Marc Jacob, em 1927, os demais familiares europeus concordaram em vender para Roland Gabriel Jacob o que lhes coubera como herana. Roland registrou a firma como sua empresa individual, mantendo, porm, o nome de fantasia Casa Marc Jacob. 210
Francs de nascimento e tendo cursado o equivalente ao atual Ensino Mdio, em pouco tempo chegou a dominar o nosso idioma, que escrevia com grande propriedade, embora nunca tenha perdido o sotaque francs. Alm do Francs e do Portugus, falava fluentemente o Ingls e o Alemo, aprendido na sua infncia, no Departamento da Lorena. Quando Roland chegou a Parnaba, entre os colaboradores que tinham trabalhado com os falecidos tios, encontrou dois que j desempenhavam funes de maior confiana. Eram eles o Sr. Casimiro de Macedo Nogueira e o Sr. Francisco Fontenelle de Arajo. O Sr. Casimiro era o responsvel pelo recebimento, classificao, peso e embalagem dos produtos que exportavam alm do processamento dos embarques. O Sr. Fontenelle era a segunda pessoa da empresa e tudo lhe era confiado. Sobre o trabalho de seu pai, Jacob, via correio eletrnico, comenta: Papai no era burocrata, embora trabalhasse horas seguidas e at altas horas da noite. A correspondncia epistolar era enorme e grande parte das cartas dos clientes no exterior e dos fornecedores no interior da regio eram respondidas por ele que as ditava a funcionrios, seus secretrios. O sr. Fontenele fazia a administrao geral e exercia os controles, inclusive supervisionando a contabilidade. Meu Pai era o homem de negcio, o impulsionador das operaes, o criador. Tinha conhecimento de todo o negcio, mas no enfeixava as atribuies todas nas suas mos. Trabalhava tanto quanto os seus subordinados, no horrio comercial e mais, porque prosseguia noite adentro at horas altas. Estradas apenas carroveis cortavam, ento, o interior do Estado; e, a despeito das condies precrias, Roland Jacob conseguiu ampliar suas filiais e tambm sua clientela para alm daquela estabelecida nas proximidades da cidade e ao longo dos rios Parnaba e Balsas. No obstante as dificuldades, Roland viajou muito, o que levou a um grande desenvolvimento o seu negcio. Ficou, porm, exposto a molstias endmicas, poca, como impaludismo e tifo. Dispunha de veculos os chamados Ford Bigode , desconfortveis por terem feixes de molas muito rgidos para enfrentar a precariedade das estradas. As dificuldades eram tantas e a lentido das viagens tamanha, que, no trajeto entre Parnaba e Teresina, obrigava-se o pernoite em Beneditinos. A tima qualidade dos contatos que Roland Jacob mantinha com a gente do Interior era essencial para o desenvolvimento do crdito que concedia. O pagamento 211
pelas mercadorias era feito com a entrega da produo da safra, quase um ano de prazo. Os juros eram da ordem de 1% ao ms, o que se manteve mesmo durante a inflao galopante dos anos de 1950. Assim, a Casa Marc Jacob, alm do comrcio regular, desempenhou um importante papel de banco de fomento, em uma poca na qual nem se pensava nisso. Todo o trabalho de Roland Jacob em prol do desenvolvimento de Parnaba e do Estado foi reconhecido em 1955, quando recebeu o ttulo de Cidado Parnaibano; e, no dia 26 de maio de 1969, quando a Assembleia Legislativa do Estado do Piau concedeu-lhe o ttulo de Cidado Piauiense. Roland viajou com certa regularidade ao Exterior, de navio, pelo menos a cada trs anos, na maior parte de seus primeiros anos de atividade na empresa. Pelos contatos com as fontes de suprimento, Roland assegurava um maior volume de compras, e os contatos com o Exterior ampliavam as oportunidades de negcios. Existem registros de suas viagens a Portugal, Frana, Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos da Amrica, que, no perodo, eram os principais mercados para os nossos produtos. O critrio na escolha dos produtos em muito contribuiu para que o conceito da Casa Marc Jacob cada vez mais se firmasse. Em 1942, a firma transformou-se em Sociedade Annima, com a razo social de Casa Marc Jacob, S.A, que se mantm at hoje. Sabe-se que os negcios com produtos do extrativismo vegetal, ou oriundos da agricultura, hoje menos do que no passado, so cclicos. Os fornecedores foram adotando medidas para reter os produtos das safras e os estoques, de forma a assegurar os preos nas entressafras. O caso que, ao observar esses perodos de pouca atividade no comrcio, Roland tomou certas iniciativas salutares. Comeou a representar e a distribuir, no Piau, produtos de uma grande quantidade de empresas nacionais e estrangeiras e a manter um estoque variado de produtos para a venda no interior do Estado. Viajantes comerciais vendiam pelo interior, estabelecendo-se como representantes comerciais em pontos estratgicos do interior e o funcionamento da navegao fluvial veio impulsionar essas atividades comerciais. O sal, que fora um produto importante para Marc Jacob, deixou, gradualmente, de significar um bom lucro, pois se tornou um ganho para os motoristas de caminhes que faziam o percurso de Parnaba para o interior pelas 212
estradas j mais bem mantidas. Levavam o sal e voltavam carregando os produtos exportveis para o litoral. Outra estratgia comercial era atentar para restringir ou controlar o comrcio de acar, tecidos e mercadorias de luxo, como sapatos e confeces finas que exigiam variedade de estoque e obedeciam ao gosto e ao sabor da moda, o que provocava um tipo de trmite comercial em curto prazo e imprevisvel. Dessa maneira, o comrcio organizado por Roland Jacob se expandia com o aumento de filiais estabelecidas em Teresina, Floriano, Unio, Campo Maior, Piripiri, Luzilndia, e, mais tarde, em Coelho Neto e So Lus, no Maranho, e Belm, no Par. Criou-se um novo setor de varejo, com o nome fantasia de Lojas Rosemary. Em todas as filiais, ainda quando no houvesse uma loja distinta, portando o nome de fantasia, havia o setor de vendas a varejo. Lojas organizadas como tal havia em Parnaba, Teresina, Floriano, So Lus e Belm, sendo que, nas duas ltimas no era usado o nome Loja Rosemary, mas apenas o nome da prpria empresa. Nessas lojas, vendia-se uma grande variedade de produtos; e, embora variasse a oferta de acordo com o tamanho da praa, em todas vendiam-se eletrodomsticos, mveis, roupas de cama e mesa, artigos de porcelana e de vidro e cristal, artigos decorativos e de presentes, artigos de alumnio, relgios, joias, mquinas de costura, bicicletas, porcelanas e cristais importados. Em 1957, Roland mandou fazer um projeto para a Loja de Parnaba, pelo arquiteto Wit-Olaf Prochnick. O prdio est localizado na Praa da Graa, 704, em Parnaba, formando um conjunto harmonioso com a velha Igreja do Rosrio, com a qual se limita por um dos lados. Em 1942, Roland convidou para trabalhar e gerenciar a parte de vendas de mercadorias um primo distante de nome Marcel Raymond Seligmann, que se casou com uma parnaibana, Francy Furtado de Arajo. Ele ali trabalhou at aposentar-se. Os volumes anuais das vendas evoluram de forma fantstica, incluindo novos negcios, ampliando seu alcance com produtos anteriormente trabalhados, mas tambm por fatores inflacionrios, fora do controle dos proprietrios. O nmero de funcionrios aumentava, e sobre a relao de seu pai com seus empregados, Jacob, via correio eletrnico, relata: 213
O esprito que imperava na empresa era de muita cordialidade entre ele e os seus funcionrios a quem distribua gratificaes significativas ao final de cada balano na medida em que os lucros indicavam essa possibilidade. Para os mais dedicados e colaboradores, essa gratificao era muitas vezes os salrios de cada um. O dia em que essas gratificaes eram divulgadas era esperado com ansiedade, no s pelos funcionrios mas nas cidades onde a Casa Marc Jacob possua departamentos ou filiais. Tambm construiu vilas de casas para seus empregados mais necessitados, isto independentemente do posto que o empregado tivesse na empresa sendo o critrio maior a carga familiar dele, que as usavam sem qualquer encargo enquanto funcionrios fossem. No foram muito numerosas as vilas de casas que construiu mas ele as fez ou comprou casas para seus funcionrios morarem de graa, em Parnaba, Floriano, C. Maior, Unio, Piripiri. Para muita gente, comprou moradias, pagando vista, para ser reembolsado parceladamente, sem cobrar juros. Como informou Jacob, ainda hoje existem muitas casas "vendidas" desta maneira e que no foram transferidas para os compradores por falta de pagamento. Havia casos em que, por esperteza, no pagavam os impostos que acabavam sendo pagos pela firma de Jacob (os quais s muito tempo depois, passaram a cobrar com mais energia). A preocupao de Roland Jacob com a nova gerao de estudantes pobres o levava, muitas vezes, a pagar seus estudos. Goethe Lima Rebelo [19--], ao falar de seu pai Dr. Jos Pires de Lima Rebelo, faz meno ao apoio annimo de Roland Jacob e outros comerciantes parnaibanos aos alunos carentes: Advogado emrito, Dr. Jos Pires de Lima Rebello [...].Era um apaixonado pela causa da Educao [...]. Os proventos de professor no Ginsio e de Inspetor Federal ele os destinava, quase por completo, para financiar os estudos de garotos pobres, que no podiam pagar as mensalidades no Ginsio Parnaibano. Este fato s veio a ser conhecido aps sua morte, porque aqueles alunos, no tendo mais a fonte de recursos para pagamento das mensalidades, tornaram-no pblico. Quero aqui prestar minhas homenagens, pela admirao a alguns comerciantes importantes de Parnaba, que sabedores deste fato, cotizaram-se e mantiveram estes alunos at o trmino de seus cursos. Hoje, no posso deixar de citar os nomes de Septimus Castello Branco Clark, Roland Jacob e Jos de Morais Correia, pois na poca, pediram para que seus nomes ficassem no anonimato. No quadro estatstico de 1930, publicado no Almanaque da Parnaba de 1932, consta a relao de vinte e uma firmas exportadoras da praa de Parnaba, pelos portos de Amarrao e Tutoia, com a discriminao da tonelagem embarcada e do valor estimado em contos de ris de cada gnero de exportao, durante o ano de 1930. Roland Jacob participa da lista com cinco mil cento e quarenta e quatro contos de ris, o maior valor, seguido por Berringer & Co, com quatro mil duzentos e 214
cinquenta e um contos de ris. Levando-se em conta a tonelagem, Roland Jacob fica em segundo lugar, com trs mil setecentos e cinquenta e quatro toneladas (distribudas entre onze dos dezessete produtos exportados, sendo os mais expressivos a cera de carnaba e o caroo de algodo); Berringer & Co a primeira firma, com 6.242 toneladas (maior fonte sendo amndoas de babau e tucum); e James Frederick Clark em terceiro lugar, com 1.254 toneladas (maior fonte sendo a cera de carnaba e couros). Alm do comrcio de exportao e do de atacado e varejo, Roland acrescentou uma importante atividade de representaes, trabalhando com firmas industriais e atacadistas, nacionais e estrangeiras. Entre estas, abriu a seo de medicamentos de alguns dos maiores laboratrios, como Squibb, Fontoura White e Moura Brasil. Algodo 310.127 Amndoas de babau 732.506 Borracha 10.089 Caroo de algodo 698.373 Cera de carnaba 954.329 Couros 146.661 Crinas 35.041 Mamona 355.343 Peles de cabra e ovelha 8.134 Penas de ema 396 Farinha e goma 379.740 Plantas e razes medicinais 111.009 Diversos generous 13.042 Total de toneladas 3.754 Valor em contos de reis 5.144 Deve-se ter em conta que, para a venda de muitos desses tipos de produtos, tinham que promover a introduo de uso entre a clientela, como, por exemplo, o leite em p da Nestl, para a alimentao infantil. Estavam presentes no mercado de Parnaba e de outras cidades a ela ligadas por Roland Jacob, alm da Nestl, firmas internacionais, como a Shell-Mex do Brasil (hoje Shell), a Coty, a Antrtica e a Facit Figura 25 Quadro estatstico de 1930 - Roland Jacob. Fonte: Dados levantados nos escritrios da Rossbach Brazil Company em Parnaba, janeiro de 1931.
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(mquina de escrever), como se v em anncio publicado no Almanaque da Parnaba, de 1934: CASA MARC JACOB / Roland Jacob / End. Telegr. Jacob / Parnaba - Piau - Brasil/ Comprador c Exportador em larga escala de: Cera de Carnaba, algodo, couros de boi, babau, tucum, mamona, peles, crina animal, polvilho, folhas medicinais e de jaborandi, batatas de purga, fibras de paco- paco, cereais, etc. / EMPRSA PARNAIBANA / Navegao no Rio Parnaba / Vapor Parnaba, Lancha Brasileira e barcas Magu, Unio, Providncia, Protetora, Prodgio, Progresso, Parnaba, Araci e Confiana. / Agente geral para o Estado do Piau de: Anglo Mexican Petroleum Company Limited / Querosene Aurora, gasolina Energia, leos lubrificantes Swastika, leo-gaz solarina. Produtos de superioridade incontestvel. / United Stares Rubber Expor!. Co. Ltd. / Pneus e cmaras de ar Royal e Peerless, que j conquistaram todos os mercados pela sua inigualvel resistncia. Correias de transmisso Shawmut, Rambow e Royal. / Companhia Phoenix Pernambucana/ Seguros Martimos e terrestres / Seco de representaes / Servio bem organizado, a cargo de pessoal habilitado / Filiais: Brejo (Est. do Maranho), Unio, Teresina, Floriano (Est. Piau) (TAJRA, 1995, p. 145). Roland foi descrito pelo filho como uma pessoa sensvel s necessidades dos menos favorecidos; e gostava do povo de Parnaba, para quem, durante muito tempo, desempenhou a funo de uma espcie de Juiz de Paz, pela aceitao das partes do seu julgamento correto, dirimindo conflitos familiares, de vizinhana e brigas de vrias naturezas. Meu Pai exerceu uma funo peculiar dele: era uma espcie de juiz de paz, dirimindo conflitos de vizinhana e familiares de toda a populao pobre de Parnaba. Quase todos os dias depois das cinco horas meu Pai se dispunha a ir ao subrbio com os seus clientes que eram moradores de terrenos nossos, ou adquirente desses terrenos que tinham desavenas com os vizinhos, com as mulheres, com os filhos e a todos Papai atendia e ia ao local para dirimir as contendas. Em 1938, em homenagem memria de sua mulher, Roland fundou o Lactrio Suzanne Jacob. De incio, dava-se leite preparado em pequenas mamadeiras (cerca de seis para cada criana), feitas com Leite em P Nestogeno, de leite de gado ou mucilagem de arroz, tudo de acordo com prescries de uma especialista em alimentao infantil que acompanhava o preparo dos alimentos, a higienizao das mamadeiras, o peso das crianas e sua evoluo, o que resultava em um trabalho intenso que precisava comear muito cedo, pois at as mamadeiras eram lavadas no prprio posto. Comeou-se assistindo a vinte crianas, que recebiam tambm assistncia mdica e medicamentos. Quando o Programa da Aliana para o Progresso foi lanado pelo presidente Kennedy, o Lactrio Suzanne 216
Jacob recebeu leite em p com complemento vitamnico para atender a quatrocentas crianas. Sobre Suzanne Jacob, l-se no jornal O Bembm: Suzanne foi talvez a primeira mulher que se envolveu publicamente com a face da pobreza da cidade. Rica, tratou de criar um lactrio que fornecesse leite s famlias que no podiam compr-lo para seus filhos. Mas a morte de surpresa em 19 de abril de 1933, sem que ela pudesse ver pronta a sua obra. Seu marido levou frente a inteno de Suzanne e, em 1937, inaugurou o lactrio Suzanne Jacob, com sede original na rua Riachuelo. Com o tempo e boa administrao, o Lactrio fez-se uma entidade que tomou vulto e ainda hoje a est, como organizao no governamental, com o nome de Posto de Puericultura Suzanne Jacob (PPSJ) (O BEMBM, 2008, p. 3). Sobre o Posto de Puericultura Suzanne Jacob, Jacob acrescenta: Embora eu tenha mantido o Posto centrado na distribuio de leite para as crianas necessitadas inicialmente leite de gado, e a partir de 1984, leite de soja para mais de 400 crianas, diariamente atualmente, o Posto sob a gesto do Roger e Luana Jacob foca em outros servios comunitrios vez que o leite, devido a outros programas governamentais no mais to reclamado. Creio que j chegamos a desenvolver atividades com mais de 1.000 crianas e jovens. O posto continua a ser uma grande obra social sob a inspirao do meu Pai que desejamos cultuar. Figura 26: Posto de Puericultura Suzanne Jacob. Fonte: Acervo Particular de Roger Jacob. 217
Roland Jacob tambm demonstrou interesse e respeito pelo patrimnio material de sua cidade. Segundo Jacob, isso fica evidenciado quando encomendou ao arquiteto Wit-Olaf Prochnick o projeto da Loja Rosemary: Na Loja, a nossa preocupao era fazer um prdio que no destoasse da Igreja vizinha e a altura do p direito da loja a mesma que a da parte da torre da Igreja. Tambm procuramos utilizar algum elemento local, como por exemplo a fachada lateral foi feita em ladrilhos cermicos de fabricao local. A ventilao, a luminosidade, o uso de combogs de cimento feitos na obra para cortar a incidncia do sol, esses foram alguns dos aspectos considerados na elaborao do projeto que teve tratamento esmerado, no apenas pelo fato de sermos amigos mas porque era o primeiro projeto de loja feito por ele. Os detalhes supramencionados por Jacob podem ser conferidos na fotografia a seguir.
Figura 27 Loja Rosemary. Fonte: IPHAN, Instituto do Patrimnio Histrico e Artstico Nacional. Inventrio dos imveis de interesse. Parnaba (2006). v.II. 3.10 Os exportadores Provavelmente, em volume de divisas de exportao, seja correto dizer que, nas dcadas de 1930-1950, os trs maiores exportadores em Parnaba eram Roland 218
Jacob, a Casa Inglesa dos Clark e o estabelecimento dos Moraes Correia mas os empreendimentos de cada um deles eram muito diferentes: A Casa Marc Jacob, de Roland Jacob, exportava praticamente todos os produtos de exportao produzidos no Estado do Piau e Maranho, e alguns do Par; importava mercadorias gerais do Pas e alguma coisa do Exterior. Contava com uma grande relao de empresas que representava para vendas no Estado do Piau; tinha uma grande freguesia de comerciantes do Interior que se abasteciam dos produtos que a empresa importava, entre os quais muitos fornecedores dos gneros de exportao; tinha viajantes percorrendo toda a rea, fazendo vendas e cobranas; filiais em muitas cidades do Piau, Maranho e Par, alm de alguns representantes nas praas do Interior que no justificavam a abertura de filiais e que tinham um mostrurio dos produtos maiores das vendas de varejo e do credirio (bicicletas, mquinas de costura, rdios, refrigeradores a querosene etc.) que vendiam entregando o produto do estoque enquanto no chegava a reposio. Enfim, era um negcio intenso, complementado tambm at certo momento pela navegao fluvial. A Casa Inglesa, como foi visto, passou a operar como firma individual a partir de 1 de janeiro de 1900, sob o nome James Frederick Clark e Cia. Ltda. Com a morte de James Frederick Clark, a chefia da firma passou para as mos de Septimus James Frederick Clark. Septimus nasceu em Parnaba, em 14 de agosto de 1894. Estudou no Colgio So Jos, em Quixad, Cear, e no colgio Paula Freitas, no Rio de Janeiro. Prosseguiu seus estudos no Exterior, na Inglaterra (Manchester) e na Frana, tendo estudado comrcio na Casa Chamberlin Donner & Cia. Septimus entrou na firma de seu pai como auxiliar, em 1913; logo passou a scio e, com a morte do pai, tornou-se chefe da firma. Septimus trabalhou ao lado de Jos de Mendona Clark, que entrou na firma como auxiliar de escritrio em 1938. Mais tarde tornou-se procurador e scio. Outros membros da famlia Clark participavam da empresa, que, em 1946, foi transformada em sociedade annima, denominando-se Estabelecimentos James Frederick Clark S.A. 250
250 A Empresa James Frederick Clark S.A. foi a coordenadora financeira das mltiplas atividades desenvolvidas pelo grupo Casa Inglesa no comrcio, na indstria e na pecuria (atividade realizada na Ilha do Caju, onde h muitos anos era criadora de gado). 219
Os Clark trabalhavam somente com a exportao de cera de carnaba. No tinham navegao fluvial, eram grandes atacadistas de tecidos que importavam do Sul do Pas e das fbricas do Nordeste. Como a Casa Marc Jacob, tinha filiais em Teresina, Floriano, Campo Maior, So Luiz, Fortaleza e Niteri, alm de viajantes. Em um momento posterior, passaram a trabalhar tambm com a linha de utilidades domsticas, na qual a Casa Marc Jacob j era tradicional. A Clark s veio a trabalhar com a venda a consumidores (varejo) e abriu uma carteira de credirio (sistema de credirio) quando se tornou S.A. Os Moraes, 251 nome mais conhecido da empresa da famlia Correia, tiveram uma indstria de beneficiamento de algodo, em Amarante, que fechou. As atividades da famlia se concentraram em Parnaba, onde montaram uma indstria de leos vegetais e, mais tarde, de processamento de cera de carnaba, em que eram muito menores do que a do Jacob e os Clark. 252 A Moraes priorizou a indstria de leos vegetais, chegando a adquirir um navio para o transporte do leo produzido em Parnaba para o Rio de Janeiro, onde montaram uma indstria de refino de leos de fabricao de sabo, na Ilha do Governador (RJ). Essa firma tinha uma estrutura administrativa numerosa e dispendiosa, e a concorrncia das grandes indstrias do Rio e de So Paulo, por um lado; e o aumento do nmero de refinarias de cera de carnaba dispensando tratamento diferenciado aos produtores. Por outro, levaram a empresa a elaborar projetos de grande vulto tanto para a produo de cera de carnaba em alta escala e com caractersticas inovadoras, como para a produo contnua de leos vegetais, para os quais conseguiu o apoio da SUDENE.
251 Algumas informaes sobre os Moraes aparecem no Livro do Centenrio da Parnaba. O livro assinala em suas pginas a figura do coronel Jozias Benedito de Moraes, que nasceu em Parnaba a 9 de junho de 1865. Ingressou no comrcio a 1de dezembro de 1879, como auxiliar da firma Irmos Vras & C. Em maio de 1883, trabalhou como scio de Feliciano Vras & C., mas, em 1885, voltou a trabalhar na firma Franklin Vras & C. Passou a interessado desta firma em 1888, ano em que contraiu npcias com sua prima Joana Rita de Moraes Correia. Em 1891, foi admitido como scio da firma em que trabalhava como interessado; e, em 1901, com a retirada do scio Franklin Gomes Vras, integra a nova firma Ribeiro, Moraes & C. Casa-se em segundas npcias, em 1902, com sua cunhada Alvina de Moraes Correia. No ano seguinte, 1903, retira-se da firma, para fundar, a 4 de maro de 1904, com Antonio Martins Ribeiro e Fernando Jos dos Santos, uma firma que se projetou, brilhantemente Ribeiro, Moraes & Santos. Depois. Moraes, Santos & C., com a retirada de Antonio Martins Ribeiro, e, finalmente, Moraes & C., com a retirada de Fernando Jos dos Santos. A firma continuou com o mesmo nome, mesmo com o afastamento do Cel. Jozias Moraes, sendo dirigida pelos seus filhos Jos, Ozias, Alberto e Almir (Cf. Livro do Centenrio da Parnaba, 1924-1949). 252 Na opinio de Theophile Jacob, salvo num trinio no incio dos anos 1950, quando introduziram uma inovao no tratamento da matria-prima com solvente e obtendo condies especiais do governo federal para a exportao desse produto a preo inferior ao dos demais exportadores, conseguiram galgar uma posio de relevo que, entretanto, no foi duradoura. 220
Entretanto, tiveram obstculos de natureza tcnica quando foi posta em funcionamento a usina de cera de carnaba, e problemas de suprimentos de matrias-primas para a usina de leos vegetais.
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4 PARNABA: CENRIOS URBANOS E SOCIAIS Na primeira metade do sculo XX, a dinmica da economia passa a ser dada pela exportao, por via martima, de produtos extrativos. Entre esses produtos, o ltex de manioba (Manihot glaziovii) foi artigo valorizado devido sua utilizao na indstria automobilstica e eltrica da Inglaterra, da Frana e dos Estados Unidos. Apesar de ser um material de segunda classe, ao lado da borracha da Amaznia (Hevea brasiliense), era muito requisitado e o foi at 1915. A extrao do ltex da manioba planta nativa em todo o Estado passou a atrair uma populao ativa, processo que se estendeu durante cerca de quinze anos. Era o principal gnero de exportao piauiense, via rio Parnaba, para o litoral, ao lado da cera de carnaba, do babau e do algodo (MENDES, F., 1995, p. 56). As naes envolvidas na Segunda Guerra Mundial importavam grandes quantidades desses produtos, tornando o Piau um dos maiores exportadores do Nordeste (Ibid., p.57). O preo dessas matrias-primas de exportao cresceu medida que seu uso se fazia de forma cada vez mais acentuada. A cera de carnaba (Copernicia cerifera) comeou a ter escoamento significativo a partir de 1907 e recrudescia conforme eram descobertas mais aplicaes para ela, como, por exemplo, graxa para sapato, cera para assoalho, discos e outras utilizaes que vinham sendo desenvolvidas. Grande impulso aconteceu aps 1910, tendo a Alemanha como principal importadora, o que elevou a cera ao ranking de destaque entre os produtos de exportao do Piau. A Alemanha tambm alinhou-se como compradora do babau (Orbignia martiana) em 1911, e o sucesso de exportao desse coco perdurou mesmo depois do fim do conflito mundial, quando sua importncia entre as matrias oleaginosas adquiriu especial cotao no mercado internacional (MENDES, 1995, p.59). O mercado da exportao da carnaba e do babau perdurou at 1960. Esses acontecimentos e influncias fizeram surgir uma elite comercial abastada, portadora de capital e de mentalidade empresarial. A cidade colonial aos poucos foi se transformando. Pedro Vilarinho caracteriza o perfil das cidades brasileiras neste perodo: A valorizao dos espaos urbanos no fica apenas nos grandes centros do pas. A ideia de progresso importado da Europa, juntamente com uma srie de outros valores, espalhou-se pelo pas, e as cidades brasileiras, mesmo 222
as que no figuravam entre as mais ricas e prsperas, queriam, de alguma forma, tambm participar das mudanas que estavam em curso no mundo. Ignorar a onda de novos costumes e hbitos urbanos que chegavam seria dar um atestado de povo atrasado e inimigo do progresso e, assim, condenar-se a viver no passado (CASTELO BRANCO, V., 1996). O incio do sculo XX, com o auge das exportaes, marcou um novo tempo, o da expanso ferroviria do Brasil, influenciado pela industrializao europeia, produzindo o lan da adoo de inovaes tcnicas. Na arquitetura, este momento marcado pela implantao do estilo ecltico, 253 que passa a dominar o cenrio urbano 254 com sua variao de tipologias estilsticas, adotando e retomando caractersticas arquitetnicas dos chamados neo: Neocolonial, Neogtico, Neobarroco. Para Lemos, tratava-se de uma: Miscelnea estilstica, que invadiu nossas cidades a partir do ltimo quartel do sculo XIX, com o progresso, com a abastana, com a liberdade de escolhas, como se a obedincia a um s estilo fosse sinal de atraso prprio de outras pocas. Agora, tudo era uma questo de imaginao (LEMOS, 1979, p.116). As fachadas dos palacetes e das residncias eram rebuscadas, com utilizao de diferentes elementos arquitetnicos, que iam desde o uso de escadarias imponentes e ornamentos em ferro, no topo dos telhados, a balces com console, balaustradas e pinhas (Figura 28); e ainda colunas clssicas, janelas com arcos em forma de ferradura de inspirao Art Nouveau (Figura 29).
253 O Ecletismo caracteriza-se por buscar influncias em vrias regies e em momentos distintos do passado, principalmente, revestindo fachadas e reunindo em um mesmo edifcio vrios estilos, utilizando-os de maneira livre e sem o rigor exigido por prticas revivalistas anteriores. 254 Em 1914, com o intuito de sanar os problemas de alinhamento resultante da construo da Casa Grande de Parnaba e do conjunto que se formou sob sua influncia, foi adotada uma planta que alargou para 20 e 30 metros algumas ruas e avenidas, e, consequentemente, foram demolidos diversos prdios e construdos outros dentro do plano urbanstico adotado, fatos que contriburam para dar cidade uma visualidade simtrica apesar das irregularidades focalizadas (GANDARA, 2008, p.236). 223
Figura 28 Palacete do Dr. Mirocles Veras. Fonte: Almanaque da Parnaba (1928).
Figura 29 Palacete. Fonte: Junia Rego (2006).
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Apareceram os elementos decorativos de produo seriada: os gradis de ferro fundido, estucaria, vidraaria, azulejaria, loua e metais, bandeiras e lambrequins recortados em serra fita, pastilhas, ladrilho hidrulico e telha plena. Detalhes arquitetnicos eram acrescentados tanto externa quanto internamente, como se nota nos desenhos estampilhados dos tetos de inspirao Art Dec (Figuras 30 e 31).
Figura 31 - Detalhes do teto. Fonte: Junia Rego (2006).
Figura 30 - Detalhes do teto. Fonte: Junia Rego (2006).
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As fachadas de palacetes eram rebuscadas, e os chals um dos principais estilos difundidos no ecletismo parnaibano, imitando as casas de madeira das regies montanhosas europeias, com sacadas projetadas ostentavam detalhes romnticos. A Avenida Getlio Vargas reflete a evoluo da arquitetura urbana da cidade, exibindo uma complexidade de telhados. Os chals tm como principais caractersticas e elemento estrutural e decorativo o uso da madeira, a utilizao de ornamentao rendilhada particularmente o lambrequim , o emprego de telhado de duas guas, com amplos beirais, e a implantao no centro do terreno, com empena voltada para a via pblica (Figuras 32 e 33).
Figura 32 - Av. Getlio Vargas. Fonte: Almanaque da Parnaba (1928).
Figura 33 Chal. Fonte: Junia Rego (2006).
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Edifcios mais imponentes exibiam fachadas de estilo Neoclssico, caracterizado pela clareza construtiva e simplicidade das formas. Observando a Figura 33, podem ser notadas as faixas horizontais elaboradas, e o friso trabalhado em cima das janelas; o teto com mo francesa e a entrada principal coroada com guirlanda elaborada. O prdio caracteriza-se por ter p direito bem alto, e, em sua parte interna, piso e teto de tabuado corrido claro-escuro.
A arquitetura da cidade comeou a ser marcada pelo estilo europeu ferrovirio da dcada de 1940. 255 Figuravam tambm os castelinhos de ameia e torreo coroando os telhados. Pelas imagens apresentadas pode-se observar tal diversidade estilstica. Essa diversidade pode ser bem notada atravs das janelas das casas da cidade, com uma variedade de curvas e retas (Figura 35).
255 Segundo Lemos (1979, p.121), as estruturas metlicas importadas estiveram em grande moda no Brasil no sculo XIX e incio do seguinte, chegando mesmo a caracterizar um tipo de arquitetura oficial. Figura 34 Antigo Ginsio Parnaibano. Fonte: Junia Rego (2006).
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A cidade possui as mais diferentes janelas eclticas do Estado. So janelas que abusam das ondulaes, dos arcos, das bandeiras. A madeira sempre presente coexiste com o vidro e marcante a quantidade de adornos. 256
Pelas descries arquiteturais acima, nota-se que houve uma proliferao de diferentes estilos, ou seja, do Ecletismo, marcando um clima francamente cosmopolita, que se iniciou antes, alis, com a chegada e instalao de comerciantes estrangeiros j em meados do sculo XIX. Alm da arquitetura, esse clima se refletiu tambm pela aceitao de produtos sofisticados, denotando a influncia cultural direta dos tripulantes de embarcaes estrangeiras e da presena de imigrantes que se radicaram na cidade. A Avenida Presidente Vargas, antiga Rua Grande, que, desde o sculo XVIII, ligava o porto ao ncleo urbano, torna-se o smbolo do segundo momento urbanstico da cidade. As edificaes do perodo colonial foram substitudas por construes de estilo ecltico, caracterstico do sculo XX. A Rua Grande, segundo Ramos: Este exato um quilmetro em linha reta abriga a mais charmosa das avenidas de Parnaba. Aquela que acolhe maior nmero de edificaes antigas e datadas da cidade. Conhecida como Rua Grande, comea s margens do Igarau, no Porto das Barcas, e se estende at a Avenida Getlio Vargas. Nos primeiros 400 metros da avenida, esto localizados prdios histricos erguidos entre os sculos XVIII e XIX: Porto das Barcas de um lado; do outro, o Casaro dos Azulejos, mais frente, o complexo de runas da Casa de Simplcio Dias. Alm da Casa Inglesa, construo do sculo XIX. Durante anos, a Grande foi endereo da burguesia refinada, que, no comeo do sculo XX, construa suas moradias moda neoclssica. Elas
256 Projeto Traos Arquitetura Piauiense, 2008. Ilustrao e texto de Danielle Dantas. Figura 35 Janelas de Parnaba. Fonte: Projeto Traos (2008).
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tinham acolhedores terraos, chamados de alpendres, cercados de rvores frondosas (RAMOS, 2008, p.116). Surgem novas formas de parcelamento, e tendncias arquitetnicas se impem como testemunho de novos tempos, incorporando os benefcios da sociedade industrial (FIGUEIREDO, 2006, p. 29). O Largo da Matriz passa a chamar-se Praa da Graa. Ali havia o Jardim do Rosrio (em frente Igreja do Rosrio), construdo na administrao de Ademar Neves, e o Jardim Landri Sales (em frente Igreja Matriz; abrigava a prgula e o coreto), construdos na administrao Mircles Veras. Pode-se ver (Figura 36) o coreto pequeno, simples, bem trabalhado, de estrutura metlica, com escada com base de alvenaria. Nos jardins, os canteiros so desenhados com cercaduras estilo topiaria. Prdios importantes nela estavam localizados: a Catedral de Nossa Senhora da Graa, a Igreja do Rosrio, Cine Gazeta, Cine den, Banco do Brasil, Correios e Telgrafo (ALMANAQUE, 1977, p.244). Pela qualidade de sua arquitetura, a cidade de Parnaba pode ser considerada mpar.
Informaes a respeito da Praa da Graa so apontadas por Silva: Figura 36 - Praa da Graa. Fonte: Almanaque da Parnaba (1927).
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No incio do sculo passado, a valorizao dos espaos urbanos no era uma prtica s das grandes cidades brasileiras como Rio de Janeiro e So Paulo. Parnaba, cidade prspera, de famlias tradicionais, procurava se inserir nesse cenrio urbano, civilizado, preparado para receber as pessoas da elite em novos locais de convivncia social: cinemas, teatros, clubes elegantes, praas abertas ao passeio das famlias e bailes carnavalescos. Eram novas formas de lazer que iam ocupando os espaos pblicos de Parnaba (2005, p.24). Vrios eventos sociais ocorriam em torno da praa: os novenrios da padroeira, as paradas e desfiles, os comcios e discursos, e o corso de carros poca do carnaval. No Natal, todos compareciam Praa da Graa, para assistir Missa do Galo. Observe-se o que diz Rebelo acerca da Missa: noite, antes da Missa do Galo, a multido superlotava a Praa e comeava uma espcie de ritual que se repetia todos os anos. Todo mundo, vestindo a melhor roupa que tinha, ocupava sua posio nas Praas. Os pais de famlias proeminentes sentavam-se nos bancos do jardim, enquanto suas filhas, moas da sociedade, exibindo seus vestidos novos, feitos para a ocasio e suas "prendas naturais", circulavam num sentido, enquanto os rapazes circulavam em sentido contrrio e, assim, podiam namorar por olhares amorosos, conforme o costume da terra e da poca, tudo sob a "vigilncia" dos respectivos pais. Somente aos que eram noivos permitia-se o namoro mais de perto. Com o fim de ajudar a passar o tempo de espera para a Missa do Galo, o Cine Teatro den, principal estabelecimento do gnero na cidade, de propriedade de um imigrante srio-libans, SI. Zacarias de Tal, programava normalmente um filme de carter religioso, como que a preparar o esprito dos espectadores para o ato Mstico da Missa. A nossa Missa do Galo era cantada e solene. Os padres usavam ento, segundo o ritual da Igreja Catlica, os paramentos brancos simbolizando a pureza do Menino Jesus e da Imaculada Conceio de Maria. O clice e a ptena eram de ouro puro. O turbulo, de prata lavrada. Os altares laterais ficavam totalmente sufocados de flores que as fervorosas paroquianas das diversas congregaes religiosas, encarregadas de cada um dos altares, enfeitavam procurando suplantar umas s outras, como que a disputarem um original torneio de exagero. A nave central, alm do Prespio caprichosamente arrumado, resplandecia com intensa luminosidade, produzida por uma estrela to grande que mais parecia um cometa do que a Estrela Guia dos Pastores, a quem ela pretendia simbolizar. Toda a iluminao interna era feita com luz de bicos de gs de carbureto, produzida pelo gasmetro particular da igreja. A Missa chegava ao fim e o Padre Roberto nos abenoava pronunciando as palavras finais do ritual: "Vo em paz e que Deus os acompanhe". Tudo perfeito, bonito, edificante e confortador. Aps a missa voltvamos a circular na Praa e novas cenas tomavam lugar. As famlias recolhiam-se a seus lares para ceias natalinas mais ntimas. Os caboclos chucros e simples da minha terra sentavam nos canteiros da Praa, sob o cu estrelado de Parnaba; tiravam de seus embornais paocas de carne seca, nacos de rapadura e faziam, tambm, suas ceias de Natal (REBELO [19--] p.85). 230
Marizinha Almendra tambm se recorda das orquestras e bandas que tocavam no coreto da Praa aos domingos: Era timo, para ns era uma beleza. A gente passeava na praa. Era muito engraado, as mulheres passeavam assim, os rapazes passeavam assim, para se encontrar, para namorar. Namorava de olhar, se simpatizava. praa todo mundo procurava ir com vestido novo, roupa nova. Era onde voc ia se mostrar, a sociedade se mostrava e os pobres tambm. Depois da missa iam passear ali na praa at 20h ou 20h30. Assim, no que diz respeito arquitetura, os sucessos comerciais tiveram um efeito social marcante, revelado pelo exuberante ecletismo que revestiu fachadas, determinou espaos habitacionais e pblicos. As famlias representadas por polticos, empresrios e comerciantes prsperos procuravam adquirir prestgios de todo tipo, exibindo sofisticao e detalhes rebuscados, que atingiam tambm a modernizao do interior das casas, com o aparelhamento dos banheiros, das cozinhas, da iluminao de ambiente. Baixelas e cristais refulgiam nas recepes luxuosas ao lado de objetos decorativos rebuscados. 4.1 Hbitos e Costumes novos: influncia estrangeira na cidade de Parnaba 4.1.1 O football Como se viu no incio da primeira dcada do sculo XX, Parnaba era um importante entreposto de produtos extrativos comercializados com o Exterior. Tal comrcio era bastante rentvel, e as famlias abastadas e envolvidas no contato com pases europeus passaram a enviar seus filhos a frequentar colgios europeus. Goethe Pires de Lima (19--, p.61) escreveu e publicou uma pgina interessante da histria de sua cidade, em que era patente a influncia da cultura europeia. Essa influncia se fez sentir, segundo o autor, na adoo de tcnicas comerciais ento avanadas, mas, sobretudo, na introduo e cultivo do futebol, grande novidade esportiva da poca, que fazia sucesso em todo o mundo. Duas instituies comerciais, poca, ambas com sede em Liverpool, Inglaterra, lideraram as iniciativas esportivas, a comear pela prtica do futebol. Eram elas a Casa Inglesa e a Companhia de Navegao Booth-Line. Duas personagens marcaram essa iniciativa: Leonard Haynes, funcionrio da Casa Inglesa, e Mister Anderson, da Booth-Line. Contaram eles com o entusiasmo dos 231
rapazes que tinham estudado na Europa para formar dois times. No incio, os participantes dos jogos eram selecionados no momento da partida e o esporte era praticado na rua. Segundo artigo do Dr. Antnio Castelo Branco Clark, intitulado Parnaba, eu te amo, publicado no Almanaque da Parnaba de 1974: As ruas, sem calamento, arenosas, serviam de campo para a disputa de peladas homricas com a primeira bola de football chegada no incio do sculo XX ao Piau e que foi presente de Mister James, da firma Chamberlain Donner e Cia de Manchester, Inglaterra, e que deu origem aos futuros clubes do Parnaba e Internacional. As nossas peladas eram o pavor do barbeiro Arajo, cujo salo era constantemente invadido pela bola (ALMANAQUE DA PARNABA, 2004, p.18). As partidas aconteciam onde hoje a Praa Santo Antnio, com seus frondosos e exuberantes ps de oitis, em frente s casas do mdico Dr. Cndido Atade e do dentista Dr. Ambrsio (ALELAF, 2001, p.3). Na Praa eram realizados campeonatos que inicialmente contaram com o apoio do intendente municipal Sebastio Hermes de Seixas 257 que depois veio a proibir a prtica do esporte no local. Com a proibio, sentiu-se o impulso de se organizar no s times mais estruturados, mas Clubes competidores e espaos para que se enfrentassem. Jos Morais Correia construiu, em 1913, um campo de futebol para o seu escrete o Camisa Azul ou Azulino , prximo ao colgio So Luiz Gonzaga. Adotou a camisa branca com gola e punhos brancos, tendo ao peito o escudo do clube; cales azuis, meias e chuteiras pretas. A bandeira era azul com faixa branca no meio, tendo ao centro o emblema do clube (REBELO [19--], p.62). Septimus Clark, por sua vez, fundou o escrete Camisa Vermelha, com gola e punhos brancos, tendo ao peito o escudo do clube; calo vermelho, meias vermelhas e brancas, listradas na vertical, e chuteiras pretas. Camisa Vermelha deu origem ao Internacional Athletic Club. O dia 5 de junho de 1912 foi a data da sesso solene de sua fundao, no lugar onde hoje existe o Colgio Diocesano So Luiz Gonzaga, construdo em 1937. Seguiu-se a fundao do Parnahyba Sport Club, em 1 de maio de 1913. Detalhando informaes, Ramos (2008) acrescenta: Existia o estdio do Parnayba Sport Club, que pertencia ao grupo econmico Moraes S/A. Era idntico ao do Internacional Athetic Club, o outro time da cidade, pertencente aos proprietrios da Casa Inglesa. Esse,
257 Sebastio Hermes de Seixas foi Intendente em 1896. 232
por sua vez, fora construdo semelhana do estdio existente na Rua das Laranjeiras, no Rio de Janeiro, sede do Fluminense Football Club, time criado em 1902. Hoje, do Internacional s restam runas de suas sofisticadas arquibancadas (Ibid., p.143).
Segundo a legenda descritiva que acompanha a fotografia (Figura 37): O Parnaba Sport Club foi fundado em 1 de maio de 1913, pelos irmos Zeca e Ozias de Moraes Correia. Esta uma bela vista da confortvel arquibancada do Parnaba Sport Club, a veterana das sociedades congneres em todo o estado. Construda sob os modernos preceitos de higiene e esttica, a linda arquibancada fica situada Avenida Capito Claro, um dos pontos mais altos da cidade. Dominando o ground e toda a cidade, oferece ao espectador panorama belssimo, horizontes amplos e longnquos, at as alvas dunas piauienses que ficam a lguas de distncia, l por onde se estendem as encantadoras praias do Atlntico. Slida e luxuosamente edificada, se divide em dois andares: o trreo e o das arquibancadas. No primeiro, se destacam o salo de honra, o recinto dos trofus, a sala das cabines dos players ou de equipamentos, o compartimento em que se alojam os visitantes etc; e, no ltimo, as arquibancadas propriamente ditas, que se destinam a assistncia em dias de festas e torneios. , no gnero, uma construo importante, que, por isso mesmo, honra o mundo esportivo piauiense, sendo, de tudo, uma das melhores no norte do pas (ALMANAQUE DA PARNABA, 1926, s.p.). Observando a Figura 37, nota-se uma construo com estrutura de metal (possivelmente importada da Inglaterra), com barramento de pedra e gradil de ferro demarcando a entrada. Chama a ateno o engenhoso uso de elementos laterais Figura 37 - Parnaba Sport Club. Fonte: Almanaque da Parnaba (1926).
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(estilo brise soleil) 258 cuja funo seria proteger os espectadores do Sol, afinal conforto era o marco da modernidade! A repercusso, o entusiasmo e a prtica do futebol atravessaram fronteiras, e, em 1917, foi fundada a Liga de Esportes Terrestres de Parnaba primeira representante oficial do futebol piauiense perante a Liga Metropolitana de Esportes Atlticos, rgo mximo do esporte brasileiro quela poca, com sede no Rio de Janeiro, ento Capital Federal do Brasil. A Liga de Esportes Terrestres de Parnaba, presidida pelo Dr. Joo Tavares da Silva, serviu para aproximar as intenes dos respectivos clubes com seus nimos acirrados, no dizer de Goethe Pires de Lima Rebelo para edificar seus estdios esportivos, os dois primeiros do Piau. 259 Esse autor, ento atleta infantil, descreve detalhes dessas construes. Tinha todas as comodidades para seus jogadores, alm de outras tantas para os clubes visitantes. Possua sistema privativo de gua encanada, com uma caixa d 'gua para muitos litros, que se enchia por fora de um cata- vento. Banheiros com chuveiros, vasos sanitrios de loua inglesa marca Twyford Hanley, fossa, dormitrio, refeitrio para os dias de concentrao. As arquibancadas eram usadas normalmente pela primeira classe. Como em todos os locais de frequncia pblica na cidade (inclusive a Igreja), havia espaos reservados e marcados com o nome das famlias importantes que tinham contribudo para as despesas de todo tipo. A tribuna de honra reservava-se para os dirigentes dos clubes, convidados ilustres ou visitantes. No outro lado do campo, ao nvel do gramado, ficava a geral, frequentada pela segunda classe, que pagava metade do preo da entrada, e tinha acesso por um porto aberto no muro do estdio. Nosso escritor de memrias informa como a terminologia do jogo era estritamente britnica. O goleiro era goal-keeper; os zagueiros, full-backs; os de meio-campo, halfs-backs; e os dianteiros, fowards; impedimentos, off-side; bola lateral, out-side; incio do jogo, kick-off; o juiz, referee; a entrada, ticket; o jogo, match; e o campo, field. A terminologia ganhava os panfletos que eram distribudos por ocasio de campeonatos:
258 Brise soleil, expresso que significa quebra-sol. 259 Alm desses dois outros clubes de futebol, atuaram em Parnaba: Esporte Clube Fluminense (14 de julho de 1927), Paissandu Esporte Clube (12 de agosto de 1928), Flamengo Esporte Clube (14 de outubro de 1928), Belga Esporte Clube (14 de novembro de 1940), Ferrovirio Atltico Clube (6 de julho de 1946).
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Enquanto subiam as bandeiras do Brasil, da cidade e do International, o hino nacional era executado e um canho, que pertencera ao antigo Forte de So Joo da Parnahyba diz Goethe gargalhava tiros de saudao estrondosa. A fase urea dos dois grandes clubes, como eram chamados, foi de 1917 a 1929, quando o International encerrou de vez suas atividades atlticas. O estdio do International (Figura 38) ficou mais ou menos fechado, at que o Estado acabou comprando-o da Casa Inglesa e o transformou no que hoje: Estdio Petrnio Portela.
4.2 A Associao Comercial de Parnaba Uma iniciativa particular que marcou o perfil da cidade foi a Associao Comercial de Parnaba. Conforme consta na edio comemorativa ao sesquicentenrio de Parnaba, a Associao Comercial de Parnaba (ACP) foi fundada quando homens de viso e empreendedores reuniram-se em nmero de setenta e oito e no dia 28 de janeiro de 1917 (ALM. DA PARNABA, 1944, p.11). A Associao, como dito nessa edio, tinha como objetivo apresentar-se como uma Domingo todos ao field do International Athletic Club. Grande match entre Parnahyba e International. Os times apresentaro todos os seus players. (REBELO, 19--, p.63)
Figura 38 Internacional Sport Club Fonte: Parnaba de A a Z (2008). 235
voz altiva e respeitada, face s omisses dos poderes pblicos. Conforme consta na edio comemorativa: Estreitamente ligada aos acontecimentos mundiais estava a cidade de Parnaba que, naquele ano (1917), j mantinha vigoroso comrcio exportador com a Europa e Estados Unidos. Fazia-se, ento, necessrio organizar os mais diversos produtores, exportadores e comerciantes, em torno de uma instituio que lhes desse maior representatividade e dinamismo de aes. Essa nova Instituio deveria transformar-se no veculo condutor das mais legtimas aspiraes da classe comercial e da prpria cidade de Parnaba. Embalados nesse esprito cooperativo e progressista, foi que homens de viso e empreendedores reuniram-se em nmero de setenta e oito e no dia 28 de janeiro de 1917 realizaram a Assembleia de fundao da Associao Comercial de Parnaba (ALM. DA PARNABA, 1944, p.11). A ACP participou de momentos decisivos e de questes importantes para o desenvolvimento econmico e social da cidade. A julgar pelas medidas tomadas durante os anos que se seguiram sua fundao, nota-se que ela assumiu uma postura de autonomia frente ao governo estadual e federal, tendo a inteno de promover o desenvolvimento da cidade, indo ao encontro dos interesses coletivos. Quais sejam: oferecendo apoio privado construo da ferrovia, promovendo vrias campanhas pela construo do porto de Amarrao, pela expanso da navegao fluvial, colaborando na modernizao do espao urbano de Parnaba e incentivando a educao. Contribuiu tambm nos projetos sociais de amparo aos pobres e especialmente aos leprosos e seus familiares. No mesmo ano de sua fundao, conseguiu a escala, no Porto de Tutoia, dos vapores da Companhia "Lloyd Brasileiro" que faziam linha para os portos da Amrica do Norte, levando os produtos piauienses. Em 1918, incluiu a concretizao junto ao Ministrio da Viao, da construo do ramal ferrovirio para o Igarau. Solicitou ao Governo da Unio a vinda de mais uma locomotiva e trilhos para a Estrada de Ferro de Amarrao a Campo Maior, bem como um aumento de salrios e assistncia mdica para o seu pessoal de campo. A atuao poltica da Associao se fez presente ao juntar-se, em 1931, luta do prefeito Ademar Neves, para a retirada do ramal ferrovirio que dificultava a colocao de calamento e de postes com luz eltrica. Em 1932, cedeu instalaes para a criao do Servio de Classificao de Algodo e conseguiu, com o Interventor Federal no Piau, recursos para que a Prefeitura Municipal construsse 236
quinze mil metros quadrados de calamentos que beneficiassem principalmente a rea Comercial da cidade. Em 1945 tomou iniciativas de diversos tipos, como: a implantao da "Semana Inglesa", juntamente com o Sindicato do Comrcio de Parnaba; apoio construo da estrada rodoviria de Teresina a Piripiri para prover a conexo dessas cidades com a Estrada de Ferro; ajuda financeira para a desobstruo do Canal Santa Cruz, que estava prejudicando a descarga de mercadorias no Porto de Tutoia e nova ajuda financeira Sociedade de Assistncia aos Lzaros de Parnaba. A vida poltica da cidade contou com figuras expressivas e atuantes, entre elas, Lima Rebelo - reivindicador dos caminhos de ferro e de rodagem, anais e portos, escolas e bibliotecas (LOPES, 2001, p.158); e Armando Madeira Campos, presidente da Associao Comercial de Parnaba, e autor de Interesses Piauienses (1920), em que trata das lutas polticas travadas com o governo pela construo do porto de Amarrao. A Associao Comercial, voltada para as questes do desenvolvimento e da modernizao da cidade, tambm se dedicou modernizao do sistema educacional e de urbanizao, especialmente a melhoria da infraestrutura de Parnaba, conforme se pode ver a seguir. 4.3 Educao em Parnaba: a modernizao do sistema escolar No processo de constituio e estruturao do Estado republicano, quando o governo passa a procurar caminhos para o progresso do Brasil, foram constantes as discusses entre setores da elite, no sentido de encontrar um caminho para o desenvolvimento da nao. No centro dessas discusses, um elemento foi colocado como importante na configurao da realidade sociocultural: a educao. Na tentativa de identificar as barreiras para o desenvolvimento almejado, constatou-se que a precariedade e ineficincia do sistema educacional dificultavam a formao do Pas e o desenvolvimento da sociedade. A partir da a educao passou a ser considerada uma das condies mais importantes para o progresso econmico e social brasileiro. No Piau, os governos sentiram necessidade de se inserir no projeto modernizador que visava a superao do atraso do Estado e da populao (LOPES, 2001, p.69). Para tanto, buscaram realizar uma ao mais efetiva na transformao 237
do sistema educacional (Ibid., p.68). Entenderam que era preciso modernizar a rede escolar, expandir a educao popular, com nfase no ensino primrio; tentar superar a arcaica pedagogia sertaneja, herana do imprio atrasada, decadente e desanimadora , adotada na casa-escola, e implantar uma nova pedagogia. Isso significava investimento na formao e qualificao especfica dos docentes primrios, j que a nova pedagogia necessitava de instituies pedaggicas prprias para a formao de professores e professoras (QUEIROZ, 2008, p.29) tidos, at ento, como despreparados, incompetentes e preguiosos. Idealizou-se o professor que, formado na Escola Normal, transformar-se-ia no redentor e regenerador do homem piauiense (LOPES, 2001, p.28). O novo professor materializou-se na figura da professora normalista educadora com formao profissional especfica, direcionada para o exerccio do magistrio pblico primrio, preparada para lecionar principalmente nos grupos escolares (LOPES, 2001, p.37). Esta seria a profissional ideal para atuar na nova escola, de carter urbano e moderno. Atravs dela, acreditava-se, processar-se-ia a ao modernizadora da educao pblica. A estrutura educacional em Parnaba, durante a Primeira Repblica, era semelhante do resto do Estado. O ensino primrio era realizado nas residncias dos prprios professores, ou em casas alugadas, fossem eles professores pblicos custeados pelo Estado ou particulares mantidos pelas mensalidades dos alunos (MENDES, I., 2001, p. 85). S para citar um exemplo, na dcada de 1890, a cidade contava com uma escola pblica e trs particulares (Id. ibid.). Com a passagem do tempo, a situao socioeconmica de Parnaba se transformou. Parnaba apresentava-se, na dcada de 1920, como uma cidade prspera e moderna, desejosa de banir o arcaico (LOPES, 2001, p.182). Para a elite comercial, tornou-se evidente a necessidade de se exercer uma ao mais eficaz na defesa de seus interesses e encaminhar solues para os problemas por ela diagnosticados como obstculos ao desenvolvimento. A educao e as escolas estariam no cerne das aes progressistas defendidas como necessrias para o crescimento da cidade. Era preciso priorizar o fator humano, pois se entendia que a educao deveria ser a fora motriz capaz de proporcionar maior incremento ao desenvolvimento. Alm disso, a prpria educao deveria modernizar-se. 238
O ensino foi entendido pelo grupo de comerciantes como um investimento necessrio e urgente, no havendo nada to "permanente e produtivo quanto ele (LOPES, 2005, p.67). A educao colocava-se ento como preocupao central para o desenvolvimento humano e, consequentemente, reverter-se-ia em benefcio para a sociedade em geral, especialmente para a atividade comercial, que passaria a contar com mo-de-obra instruda, disciplinada e, portanto, melhor qualificada. Para atingir tais objetivos, e antecipando-se s iniciativas estaduais, em Parnaba implantou-se, a partir de 1922 (LOPES, 2001, p.82), uma poltica de modernizao do sistema escolar da cidade, com a criao do Grupo Escolar Miranda Osrio (17 de maro de 1922), a Escola Normal de Parnaba (11 de julho de 1927) e a fundao do Ginsio Parnaibano (11 de julho de 1927). Todas foram iniciativas privadas de membros da elite poltico-econmica 260 de Parnaba, que tambm fundou e administrou a Sociedade Ginsio Parnaibano, mantenedora do Ginsio Parnaibano e da Escola Normal (Ibid., p.83). O Grupo Escolar Miranda Osrio foi criado a 14 de maro de 1922, pelo Decreto Estadual n. 784, na administrao de Jos Narciso da Rocha Filho. Sua criao foi consequncia de decises acordadas no Congresso das Municipalidades, realizado em Teresina, em 1921. O Congresso, que tinha como orientao a poltica descentralizadora do perodo, buscou chamar responsabilidade os municpios para a manuteno de diversos servios bsicos, entre eles a educao (Ibid., p.82). Nesse sentido, pregava, entre outras diretrizes, a interiorizao de modelos pedaggicos modernos (Id. ibid.). Parnaba foi um dos municpios que, em consequncia de seu projeto de modernizao, procurou cumprir o acordo, incorporando-o, conforme acrescenta, em diversas leis municipais (Ibid., p.83). Com a criao do Grupo Escolar Miranda Osrio, deu-se a construo do primeiro prdio escolar do Piau planejado para fins educativos, como resultado de uma iniciativa conjunta dos governos estadual e municipal. O Grupo Escolar Miranda Osrio reunia duas escolas isoladas estaduais e outras duas municipais, j existentes em Parnaba. O edifcio, que teve como modelo arquitetnico um prdio em que funcionava um dos grupos escolares de Taubat, no Estado de So Paulo (Ibid., p.162), contava com instalaes apropriadas, bem diferentes dos casares
260 A direo ficou a cargo de Joo Maria Marques Bastos, Mirocles Veras, Josias Benedicto de Moraes, Jos Pires de Lima Rebelo, Jos Narciso da Rocha Filho e Septimus Clark. 239
sombrios, salas improvisadas ou das varandas das residncias dos professores (MENDES, I., 2001, p.104). A construo dessa edificao, porm, s se iniciou em 1925, sendo instalado em 15 de junho de 1927 e inaugurado em 7 de setembro de 1927 em uma festa recheada de patriotismo (Ibid., p.169). Para reformar a instruo pblica municipal, chegou a Parnaba, em 23 de maio de 1927, o professor Luiz Galhanone, contratado em So Paulo, e logo reuniu- se s professoras e diretora do Grupo Escolar Miranda Osrio, 261 para expor as linhas gerais de seu programa de ao frente da instruo pblica municipal. Seu objetivo era reorganizar completamente a educao primria, criar a educao secundria e estabelecer o ensino Normal e Comercial. O Grupo Escolar Miranda Osrio deu um novo impulso modernizao da escola no Piau, e foi um indicador da civilidade e do desenvolvimento de Parnaba (LOPES, 2001, p. 172). Recebeu comisses oficiais de professoras da capital e de outras cidades do interior do Estado, como as compostas pelas professoras Josefa Ferraz, ento diretora do recm-criado Grupo Escolar Antonino Freire, de Teresina, e Maria Antonieta Burlamaqui, que fizeram, em Parnaba, em 1928, um curso de aperfeioamento sob orientao de Galhanone, seguindo os mtodos da pedagogia moderna (Id. ibid.).
261 Um dos pontos centrais da ao desse professor paulista foi, alm de reorganizar o Grupo Escolar Miranda Osrio, instalar e organizar o Ginsio e a Escola Normal de Parnaba. 240
Nas palavras de Lopes (2001): Outro dado que revelou a importncia de Parnaba na poltica de modernizao do ensino primrio no estado foi o da elaborao do programa de ensino primrio em 1927, que, feito para Parnaba, foi adotado em 1928 nas escolas estaduais. Este programa seguia o modelo das escolas primrias paulistas (LOPES, 2001, p.174). Dando continuidade ideia de interiorizao da educao, em fevereiro de 1928 eram instaladas as Escolas Reunidas dos Tucuns, em prdio alugado e adaptado para esta finalidade, mas organizado j nos moldes propostos por Galhanone. Neste mesmo ano, era anunciada para breve a instalao das Escolas Reunidas de Santa Isabel, na Ilha Grande (A PRAA, 1928). A Escola Normal de Parnaba criada em 1927 para responder necessidade de pessoal qualificado para a expanso do ensino primrio modernizante tambm foi iniciativa da elite poltico-econmica parnaibana (LOPES, 2001, p.83). Sua Diretoria era formada pelos membros desta classe: Joo Maria Marques Bastos (mdico), Mircles Campos Veras (mdico), Josias Benedito de Moraes (comerciante), Jos Pires de Lima Rebelo (advogado), Jos Narciso da Rocha Filho (comerciante) e Septimus Clark (comerciante) (Id. ibid.). Figura 39 - Grupo Escolar Miranda Osrio. Fonte: Almanaque da Parnaba (1928).
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A Escola Normal contribuiu para a mudana qualitativa, observada desde ento, ao substituir progressivamente o professorado no qualificado e interino por professoras normalistas efetivadas nos cargos; mudana que comeou a apreciar-se a partir das primeiras graduaes das Escolas Normais. Antes, conforme visto, quase todos os docentes do ensino primrio eram inabilitados, de maneira que a incorporao das normalistas na rede oficial vai refletir-se na melhoria da qualidade desse ensino. O Ginsio Parnaibano foi criado em 11 de julho de 1927, por iniciativa do bacharel em Direito, Dr. Olinto Gonalves Amorim. Contam-se entre seus fundadores: Jos Pires de Lima Rebelo, Luiz Galhanoni, Monsenhor Roberto Lopes Ribeiro, Alfredo Eduardo Amstein, Henriette Bricotte, Carlos Souza Lima, Antonio Godofredo de Miranda, Mircles Campos Veras, Francisco de Moraes Correia, Edison da Paz Cunha, Jos Euclides de Miranda, Constantino Correia, Tomaz Catunda e outros, sob os auspcios do Intendente Municipal Jos Narciso da Rocha Filho e de representantes da sociedade parnaibana. A boa qualidade do ensino oferecido pelo Ginsio Parnaibano pode ser equalizada pela fala de Marizinha Almendra, que em entrevista assim se expressa:
Muito bom, muito bom porque, eu digo sempre, l no cartrio, no Rio de Janeiro, onde trabalhei em cartrio. Eu via advogados formados chegarem l com peties que eu lia, eu dizia, se eu fosse juiz eu mandava esse camarada de volta, procurar um dicionrio, porque est uma coisa mal feita, mal escrita, sem concordncia, com erro de portugus. Eu fui a nica l em casa que no quis sair para fazer curso superior, todos os outros fizeram. Eu quis trabalhar. Com quinze anos eu j trabalhava no cartrio do meu pai. Ento eu digo: os meus cinco anos de ginsio, em Parnaba, eu no troco por de muita gente que t saindo dessas universidades de Direito. Quando questionada sobre o nvel de formao dos professores, a entrevistada assim se manifestou: Os professores eram muito bons, timos professores. E se estudava francs, ingls, portugus, geografia, matemtica, histria, latim, eu fiz cinco anos de ginsio estudando latim. Histria geral, histria da civilizao... Em sala de aula nem tudo era ensinado. Havia censura em determinados assuntos, como fica claro na expresso de Marizinha: No Colgio das Irms era uma coisa muito interessante, que eu acho que tem que ser dita. A parte da reproduo, tanto dos vegetais como dos 242
animais, arrancava as folhas do livro. No se podia ensinar e ningum questionava. Era um silncio total. Outro observador poca, Renato Castelo Branco, ao lembrar do Ginsio Parnaibano ponderou: Hoje penso com reverncia no papel que esse modesto estabelecimento de ensino representou em nossas vidas. E no que devemos aos nossos velhos professores, Edson Cunha, Joo Batista Campos, Euclides Miranda, Alfredo Amstein, Jos de Sousa Brando, Joo Correia e outros. Alguns at mesmo despreparados para a funo, mas procurando superar as deficincias de mestres improvisados, estudando, eles prprios, para nos transmitirem um pouco de conhecimento (CASTELO BRANCO, R., 1981, p.100). Renato Castelo Branco lembra que, dos bancos do Ginsio Parnaibano, saram ministros de Estado, governadores do Piau, secretrios de Estado, deputados federais, generais, coronis, escritores, mdicos, embaixadores, engenheiros, e altos funcionrios (Id. ibid.). O Ginsio Parnaibano e a Escola Normal funcionaram juntos desde suas fundaes, em 1927, at 1961, quando o Ginsio e a Escola Normal foram encampados pelo Governo Estadual e ganharam prdios prprios (MENDES, I., 2001, p.115). Lopes (2005) conclui que tudo isso contribuiu para a construo da imagem de Parnaba como municpio autnomo e progressista, fruto das atitudes empreendedoras de sua elite comercial (Id. ibid.). Em 1930, no governo de Getlio Vargas, fica claro que, apesar dos esforos empreendidos, a universalizao do grupo escolar e da docente normalista no havia ocorrido na proporo pretendida (LOPES, 2001, p.610). Ainda assim, intensifica-se a expanso de Grupos Escolares no Piau, atravs de um convnio firmado pelo interventor federal Lenidas de Castro Melo e representantes dos diversos municpios, em 14 de novembro de 1943, convnio que permaneceu em vigor at 1946. Pode-se considerar que a construo de grupos escolares representou o projeto de concretizao do ideal educacional da Repblica, ou seja: promover uma mudana de mentalidade atravs da educao, destacando-se a importncia dos prdios escolares e a capacitao de normalistas para este empreendimento, possibilitando a oferta de educao a uma maior quantidade de piauienses. 243
No Grfico 1, observa-se o aumento das matrculas nos diferentes tipos de colgios e nveis de ensino nos anos de 1930 e 1931. Nota-se pouca diferena entre aqueles dois anos, o que compreensvel, considerando-se tratar-se de anos seguidos. As observaes mais interessantes do Grfico 1 referem-se ao predomnio de um maior nmero de matrculas nas escolas oficiais ainda que muito prximo do das particulares. O crescimento das matrculas nas escolas oficiais um dado significativo, considerando-se que, nas dcadas anteriores, predominou o ensino particular. preciso lembrar que em Parnaba, assim como em outras cidades do Piau, o ensino nasceu da iniciativa de pessoas com um determinado nvel cultural, interessadas nele, visando o benefcio de suas prprias famlias, parentes e agregados, e s depois o de outras pessoas. interessante destacar o predomnio do ensino primrio, dado perfeitamente compreensvel para o momento histrico analisado, ou seja, um momento no qual o ensino comea a ser valorizado. Por outro lado, em 1931, o ensino secundrio ainda no alcana a soma de quatrocentos matriculados. Esses dados confirmam a concretizao das intenes do Estado, que, conforme dito anteriormente, desde a dcada de 1920, prope reorganizar completamente a instruo primria, criar a instruo secundria e estabelecer o ensino Normal e Comercial. LEGENDA CP - Colgios particulares EO - Escolas Oficiais PP - Particulares primrios DS - Ditos secundrios (Particulares Secundrios) Figura 40 - Grfico 1 - Dados de Ensino - Matrculas 1930-1931. Fonte: Almanaque da Parnaba. 244
O Grfico 2 mostra os dados de ensino de 1940 no concernente quantidade de escolas. interessante fazer uma anlise comparativa em relao dcada anterior, comentada h pouco, porquanto existe necessariamente uma correlao entre esses dados.
Destaca-se o surgimento do ensino profissional, o que mostra o interesse, quela poca, pela qualificao das pessoas em nvel profissional, certamente j em consonncia com o desenvolvimento socioeconmico que Parnaba vinha alcanando no perodo. Continua sendo baixo o nmero de centros de ensino secundrio e destaca-se o predomnio das escolas particulares. Tal equao reflete uma adequao aos interesses demonstrados pela maioria dos empresrios, no que se refere a educar a populao. Essas escolas, no entanto, no atendem aos interesses de toda a populao, pois a maioria no lhes tem acesso, devido baixa condio econmica. Os dados corroboram os estudos j realizados por outros pesquisadores, os quais apontam que, independentemente das medidas adotadas por cada governo, se percebe uma ineficcia da ao pblica no tocante promoo da educao. Tanto em Parnaba como em outros municpios do Estado do Piau, as estatsticas relativas ao nmero de alunos e de escolas apontam resultados desanimadores. As estatsticas demonstram um crescimento no nmero de escolas, mas preciso destacar tambm que a diferena entre o nmero de escolas pblicas e de escolas particulares aumenta gradativamente, sendo estas em maior nmero. De acordo com Mendes I. (2001, p. 94) as crianas de famlias humildes, filhos de pescadores, LEGENDA EE - Escolas estaduais EM - Escolas Municipais EP - Escolas Particulares ES - Escolas Secundrias E.Prof.- Ensino Profissional Figura 41 - Grfico 2 - Dados de Ensino 1940 Nmero de Colgios. Fonte: Almanaque da Parnaba.
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estivadores, agricultores e outros ofcios de baixa remunerao tinham por opo uma escola pblica deficiente.
No Grfico 3 nota-se um crescimento considervel do nmero de estabelecimentos de ensino em nvel primrio, que duplicou em relao ao ano de 1940. Enfatize-se que a expanso de grupos escolares no Piau e em Parnaba deu- se em decorrncia da assinatura do convnio firmado entre o interventor federal Lenidas de Castro Melo e os representantes dos diversos municpios. A anlise realizada evidencia um pequeno crescimento educacional, e este ocorre atrelado s poucas iniciativas de implantao de escolas primrias e secundrias de ensino, bem como a uma quase total ausncia de profissionais com qualificao. Nota-se que a elite econmica promoveu vrias benfeitorias na cidade, tais como: a construo de igrejas, o melhoramento do porto e dos correios, mas no houve uma transformao significativa na educao. Os governos no investiram o suficiente na construo de escolas, nem na qualificao de professores; por isso o crescimento educacional de Parnaba neste perodo no correspondeu riqueza gerada pelas atividades econmicas ali desenvolvidas, apesar das numerosas iniciativas. No Piau, em matria de instruo secundria, a principal referncia era o Liceu Piauiense. Localizado em Teresina, o Liceu foi a primeira escola pblica de LEGENDA 1 Estadual 2 Municipal 3 Particular 4 Ensino secundrio, Normal e Comercial 5 Primrio Figura 42 - Grfico 3 - Estabelecimentos de Ensino -1943. Fonte: Almanaque da Parnaba. 246
instruo secundria no Estado. A instituio, cuja funo principal era fornecer os conhecimentos necessrios ao ingresso de seus alunos nas faculdades, 262 contava com um excelente quadro docente, majoritariamente constitudo de professores portadores de diplomas de curso superior. Como o ingresso no ensino superior dependia da aprovao dos alunos em exames de admisso (Reforma de 1911 e 1915), muitos alunos piauienses se deslocavam para outras capitais, buscando adquirir os conhecimentos necessrios aprovao em faculdades que s existiam em outros Estados. As principais cidades, polo de atrao de estudantes desejosos de ingressar no ensino superior foram, durante dcadas, Recife e o Rio de Janeiro. No caso dos cursos de Direito, uma parte dos estudantes piauienses seguia para Belm ou para Fortaleza, onde os cursos haviam sido instalados em 1902 e 1903, respectivamente. Por serem muito fortes as articulaes comerciais e as influncias culturais entre So Luis e o Piau, muitos estudantes para ali seguiam em busca de formao. Quem narra sobre a partida dos parnaibanos Renato Castelo Branco (1981): Partir para ns era uma compulso. No nos consultavam. No nos deram o ensejo de pensar, de analisar, de escolher. Partamos porque era este o destino prefixado dos jovens nordestinos. Porque j estava decidido assim, como fatalidade, como inevitvel [...]. Assim partamos ns. Iramos nos defrontar com outro mundo, com o contraste entre Parnaba e o Rio, o vilarejo e a metrpole, a simplicidade e a sofisticao, o Ginsio e a Faculdade, a certeza e o desconhecido (CASTELO BRANCO, R., 1981, p.100). Parnaba tornou-se a cidade do Piau onde mais inovaes ocorreram em educao (LOPES, 2001, p.81). O prdio escolar do Grupo Miranda Osrio despontou como uma vitrine do desenvolvimento de Parnaba, marcando a importncia do municpio no contexto estadual. Emblema de um ensino novo, foi smbolo de riqueza e modernidade da cidade. 263
4.4 Os servios pblicos da cidade A nova aparncia urbana de Parnaba, como os estilos arquitetnicos que foram adotados, testemunham o estilo sofisticado da vida de seus proprietrios.
262 Segundo Queiroz (2008. p.19), de 1890 at 1915, houve a proliferao das faculdades livres em todo o Brasil, criando uma situao totalmente diferenciada em relao limitada oferta de cursos superiores durante o Imprio. 263 Tornou-se referncia para a cidade, mas no para o Estado. 247
Contudo, os servios pblicos essenciais cidade eram deficientes ou ausentes, como o sistema de gua encanada e tratada, os esgotos, a iluminao pblica, calamento das ruas e coleta pblica de lixo, para citar os mais evidentes. Esforos no sentido de sanear tais problemas foram evidentes na administrao de Constantino Correia (1913-1914) e na de Nestor Veras (1917- 1920) empenhados em importantes projetos, visando a modernizao de Parnaba. Durante a intendncia do Cel. Constantino Correia foi construdo o Bairro Nova Parnaba, projetado de acordo com os padres de arquitetura urbana do incio do sculo e presentes em algumas capitais do Pas. Essa iniciativa tinha como meta principal a transferncia de habitantes de zonas urbanas alagadias, visando, em termos gerais, o saneamento da cidade e seu embelezamento. Na gesto de Nestor Veras, a Praa da Matriz foi ajardinada e organizou-se a banda de msica municipal. Foi construda a usina de luz eltrica e armazns de couro, importante fonte de renda do poder municipal. O incio da dcada de 1930 marcou o que Penha (1983) considera a mais importante remodelao urbana da cidade sob a gesto de Ademar Gonalves Neves, prefeito municipal (25 de fevereiro de 1931 a 25 de maio de 1934). O prefeito se preocupou com a limpeza pblica e higienizao dos bairros e subrbios da cidade, criando, para isso, a Delegacia de Higiene Municipal, com a incumbncia de fiscalizar bares, hotis e o matadouro. O Almanaque (1941) assim se pronuncia a respeito: sua administrao foi timbrada por grandes realizaes (Ibid., p.212). Parnaba tornou-se, poca, um grande canteiro de obras. Constam as seguintes obras pblicas desse perodo: calamento do centro da cidade, da esplanada da antiga Estrada de Ferro Central do Piau passando pelo mercado pblico; jardins, praas, o coreto; reforma de prdios de grupos escolares e outros; remodelao da usina eltrica. Alm das obras, promoveu uma campanha popular para levantar recursos em prol da construo do Leprosrio.
4.5 As crnicas de Goethe e Pena Boto
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Dois autores de crnicas sobre a cidade de Parnaba nos meados do sculo XX nos do vises que aparentemente so contraditrias. Aparentemente, porque cada um deles se situa em diferentes classes sociais. So eles: Goethe Pires de Lima Rebelo e Carlos Pena Boto. As datas das crnicas coincidem. Diz Goethe em Tempos que no voltam mais: crnicas sobre a Parnaba antiga 264 , que pelos idos de 1930, Parnaba ainda era uma cidade muito pacata, com pouqussimos lugares para distraes. Foi essa a poca da chegada de Pena Boto nomeado para Capito dos Portos do Estado do Piau, em 3 de outubro de 1929. Suas experincias no cargo foram publicadas pela Imprensa Nacional, no Rio de Janeiro, em 1931 com o ttulo expressivo de Meu exlio no Piau. Goethe Pires de Lima Rebelo era filho do advogado Dr. Jos Pires de Lima Rebelo 265 , descendente de uma das mais nobres famlias piauienses, que foi jurista, advogado e professor no Ginsio Parnaibano e na Escola Normal de Parnaba (GONALVES, 2003, p.326). Goethe pertencia classe ligada aos comerciantes exportadores/importadores, lderes econmicos e intelectuais da cidade enquanto Pena Boto, funcionrio federal no se integrou nessa classe apesar de sua formao - ele se dizia um high-brow 266 , habituado aos ares da America do Norte, ao bom clima da Europa, e as brumas da loira Albion (Frana). Foi, conforme declarou condenado fossilizao numa longnqua Capitania dos Portos, em Parnaba. Nas crnicas dos dois autores figuram descries semelhantes do estado precrio dos servios pblicos da cidade, o que os coloca no mesmo nvel de objetividade nas suas observaes. No seu tempo de infncia, diz Goethe: Parnaba no tinha servio de gua potvel, nem esgoto, gs ou telefone. Tinha apenas um servio completo de iluminao eltrica e servio parcial de coleta de lixo. O nico servio completo, de utilidade pblica existente,
264 As crnicas tinham segundo ele, a inteno de to somente reviver saudades e repartir a alegria das lembranas com os amigos que conviveram com ele e levar ao conhecimento dos demais conterrneos a vida de Parnaba de outrora, com sua moral social, suas figuras eminente, seus tipos exticos, usos, costumes, servios pblicos, diverses. 265 Jos Pires Rebelo foi um porta-voz da sociedade parnaibana. Exerceu diversos cargos e funes. Foi comissrio da Borracha, comissrio do Piau na Exposio de Nova York, deixou vrias publicaes como Relatrio da Borracha, A cera de Carnaba, Pr-Piau, O comrcio do rio Parnaba e o Porto de Amarrao, Conferncia aos operrios e Relatrio sobre a instruo do Piau. GONALVES, 2003, p.326. 266 Expresso que qualificava a pessoa como inteligente, intelectual e de cultura elevada. 249
era o da iluminao eltrica, gerada a energia pela pequena e fraca Usina Eltrica Municipal, que funcionava em tempo parcial, das dezoito s vinte e uma horas. Esse servio completo de iluminao eltrica era segundo Pena Boto: Extremamente irregular, apesar de tratar-se de uma usina eltrica instalada h muito pouco tempo, por uma firma alem. No possvel ter certeza, de antemo, se em dada noite haver luz ou no. Durante o ms de maro de 1930 poucas foram as noites em que houve iluminao eltrica talvez uma meia dzia. A lmpada a gasolina sendo uma nica, os outros aposentos da capitania eram ento iluminadas a vela, a detestveis velas de estearina muito finas e esguias, que se esboroavam cerca de 10 minutos depois de acesas.
Alm dessa peculiaridade da usina eltrica da qual se queixa Pena Boto, Goethe acrescenta outras: Gastava, em grande quantidade, a lenha como combustvel, o que acarretava uma devastao lenta, mas progressiva na pouca vegetao da mata rala circunvizinha. No se fazia estocagem da lenha, o que no lhe possibilitava secar convenientemente. Usavam-na como chegava: ainda verde. Este costume de us-la mida, com um menor poder calorfico, acarretava grande produo de resina, enxofre, espuma cida e cinza mida compacta, que traziam, alm de srios problemas para a Usina, alto custo de manuteno devido limpeza obrigatria e peridica de sua caldeira e mquinas.
A falta da luz eltrica tinha suas vantagens, como detalha Goethe os rapazes aproveitavam para fazerem as serenatas de amor, cantando valsas dolentes em frente s casas das namoradas, sob a inspirao romntica do luar maravilhosamente lindo de Parnaba. O clima otimista de Goethe fica menos evidente quando se trata dos servios de gua potvel. Ele conta como os aguadeiros iam apanhar gua beira do rio: Com jumentos apetrechados de cangalhas e barrilotes de madeira (chamados ancoretas), presos aos cabeotes da cangalha, dispostos de um lado e outro do animal, algumas vezes com um terceiro atravessado no meio, por cima. hora comum da apanha d'gua, geralmente de manh cedo, reuniam-se os aguadeiros na rampa do Porto Salgado, l confraternizando com moleques que tomavam banho e lavadeiras lavando roupas; enquanto uns aguadeiros aproveitavam para dar uma boa lavagem nos seus animais, outros faziam a colheita da gua pouco adiante, embora alguns animais, prazerosa e pachorentamente fizessem, ao mesmo tempo, suas necessidades fisiolgicas na gua barrenta do rio.
A qualidade da gua vendida comentada por Goethe (19--,p.52) 250
Posteriormente essa gua era vendida de porta em porta, posta nos potes coada por um pano, coroando um festival de sujeira e de porcaria, que hoje faria inveja os atuais mtodos de poluio ecolgica. O tratamento domstico dessa gua super-poluda consistia em manter mergulhado, dentro do pote, durante algum tempo, um pedao de pedra-hume, amarrado ponta de um cordo, e deixar que os micrbios e detritos fossem arrastados ao fundo do vasilhame, com a decantao provocada pela pedra-hume na poeira de argila em suspenso na gua. Posteriormente a gua, j decantada, era filtrada atravs de uma bacia lavada em pedra- pome e depois fervida, para s ento ser servida. ta trabalheira danada ... Por isso, que s a minoria das famlias adotava esse tratamento. Muitas usavam a gua do rio como recebiam.
No longe dessa descrio, a que nos fornece Pena Boto: A gua que se bebe do rio Igarass, filtrada. Os vendedores de gua captam-na no porto salgado, num remanso onde ela mais poluda possvel!! Diferentes vezes tive ocasio de ver os burricos entrarem pelo rio adentro, fustigados pelos seus donos, levando uma pipa de cada bordo para serem cheias de gua. Uma vez os burricos com gua pelos joelhos, os caboclos lavavam as pipas as gargalhadas, e no raro os burricos aproveitavam a excelente ocasio e urinavam no rio; e era essa gua assim contaminada, imunda, que entrava depois para as duas pipas de cada animal, atravs de funis!...
O tratamento do lixo enfrentava a situao crnica causada pelos pouqussimos recursos financeiros da Intendncia Municipal, como detalha Goethe (19--, p.53):. Em conseqncia, era mantido apenas um pequeno servio, mal organizado e insuficiente. A coleta pblica era deixada a critrio de carroceiros e feito com nmero insuficiente de carroas comuns. Elas eram puxadas por mulas e o lixo era depositado nas caambas abertas quando se sabe que tal servio, requer veculos especiais para o ramo, de modo a no permitir que o contedo venha a vazar por cima, ou cair no cho pelas frestas do fundo e das paredes. As carroas comuns daquele tempo eram mal adaptadas. Quando em movimento deixavam cair pores de lixo pelas ruas, que espalhadas pelo vento, voltavam a suj-las.
Este servio compreendia apenas as ruas principais e as praas e no o lixo domstico. Pena Boto corrobora o panorama da cidade em que o lixo amontoado num dos becos vizinhos rua principal da cidade, emitia exalao ptrida e permitia a proliferao de mosquitos, baratas, moscas, urubus, etc... e acrescenta as inmeras - e de tamanho diferente - poas de gua. Para piorar, detalha Boto muitas 251
casas particulares e comerciais descarregam as suas guas servidas para as vias pblicas, o que era legal, desde que fossem pagos os impostos municipais. O descompasso entre os dois cronistas comea a se anunciar quando o assunto o povo da cidade. Neles encontramos detalhes que devem ser examinados com especial cuidado, pois revelam aspetos importantes da organizao social que vinha vigorando em Parnaba. Note-se que desde o sculo XVIII com a implantao da classe dos charqueadores e seus costumes luxuosos instalou-se um hiato entre a classe dos exportadores e a outra classe composta de funcionrios administrativos, pequenos comerciantes e seus funcionrios, trabalhadores em geral e escravos. Os laos emocionais reinantes nessa composio complexa da sociedade parnaibana podem ser analisados em certos detalhes figurando na memria popular. Quando o povo de Parnaba assistia de longe os sofisticados shows durante as festas particulares de Simplcio Dias, tecia reflexes pertinentes distino entre mestios e escravos de seu quotidiano e os dos casares da elite. Em um desses episdios exibicionistas, eram vistos bales que escravos seguravam em vo para servir de alvo para os convidados atiradores com preciosas armas da casa. Compreende-se ento, que a verso popular que restou foi que escravos eram atados aos bales e seriam eles, o alvo dos atiradores em perversa diverso. Esse tipo de crtica velada aos costumes da outra classe nos d uma idia da diferena existente entre elas. Esse clima perdurou de certa forma at o sculo XX, como perdurou a distino de riqueza e privilgio entre as classes, a de Goethe e a que acolheu Pena Boto. Nota-se, nas crnicas deste ltimo, como ele, personagem recm-chegado, distante pois da situao social de Parnaba experimentava seu convvio com os coronis, funcionrios estatais e comerciantes da cidade, representando a nata dessa classe. No mais, Pena Boto apresentou-se sem famlia, o que dificultou sua integrao na vida sofisticada dos que poderiam ter sido seus pares pelo nvel cultural em que tinha vivido anteriormente. Para ele, as festas, as comemoraes populares, isto , a vida social da classe em que se viu imerso, tinham aquele sabor extico do primitivo, do rstico que ele retratou, acreditamos, com certo grau de objetividade. 252
Sabemos que o contato dos exportadores parnaibanos com o mundo capitalista era intenso. Essas informaes no foram passadas para Pena Boto quando nomeado para Capito dos Portos. E tem mais, s constava alguma notcia sobre o Piau como ficando perto de Tutoia. Segundo pois, o depoimento de Pena Boto, na terceira dcada de 1900, o Piau permanecia ignorado no pas: As informaes sobre o Piau so escassssimas, o Estado profundamente desconhecido dentro e fora da Marinha. Aqueles melhores informados haviam tocado em Tutoia, nalguma viagem ao extremo norte, e tinham ouvido dizer que Piau no ficava longe dali. Nenhum navio, partindo do Rio, toca com efeito no ultra-remoto e lendrio Estado! Na prpria Marinha eram tambm muito raquticas as informaes sobre o Piau. Havia duvidas at sobre a melhor maneira de dar com os costados em Parnaba, sede da Capitania dos Portos. Por outro lado, assim fala Pena Boto sobre a sociedade parnaibana: Angra dos Reis, no Estado do Rio, d uma idia aproximada de urbs Piauienses. Parnaiba uma Angra dos Reis melhorada. Tem o povo mais culto e mais alegre do que o de Angra, mas tem o clima pior, tem a terrvel areia por toda a parte, na estao das secas, tem pntanos e charcos na estao das guas, e est isolada do mundo exterior. Por isolamento, Pena Boto tambm se refere s comunicaes internas pelo telgrafo e pelo correio com outros estados, vias oficiais de comunicao administrativa, porque no que tange aos contatos de Parnaba com o mundo, a classe que os estabelecia no estava nada isolada. Na sua comparao entre o povo de Parnaba e o de Angra dos Reis, Pena Boto percebe que h diferena de nvel cultural, que entendemos como uma influncia da abertura proporcionada pelo comrcio exterior. Este era o motor econmico do Estado, sendo a comunicao pelo Correio e pelo Telgrafo de segunda importncia, ou melhor, de importncia apenas para a segunda classe da cidade. Pode-se contar at certo ponto com o Telegrafo, mas o Correio tudo quanto h de mais primitivo, altamente problemtico e supinamente duvidoso... Constitui um verdadeiro jogo de azar. Quem nele deita uma carta, joga uma cartada. As probabilidades de a carta chegar ao destino so fracas, dbeis mesmo. S dois navios tocavam em Tutoia, como j ficou dito por mais de uma vez: o Manaus e o Jos Alfredo. O que ainda no havia dito que o Correio Geral, no Rio, muito raramente fazia mala postal para Tutoia, de modo que as cartas endereadas a Parnaba, via Tutoia, seguiram naqueles navios at So Luis do Maranho, outras at mesmo Belm do Par, donde regressavam mais tarde (muito mais tarde) para So Luis; da seguiam ento por terra at Teresina, via Caxias, e de Teresina vinham, por terra, no vero, e pelo rio, no inverno para Parnaba. 253
o comportamento desse povo isolado que fortemente impressionado, Pena Boto interpretou como A grande democracia reinante no Piau, prestes a tocar as raias do comunismo, onde no h preconceitos de casta e de posio social. E d detalhes: Em meio de um almoo ou jantar cerimonioso em qualquer residncia, entram pela casa a dentro mendigos e gente de condio modesta, pedindo comida; passam pela sala de refeies, tagarelam com circunstantes, e l se vo para a cozinha ou para o quintal. Mais chocante ainda, para quem vem de outras plagas mais aristocratas, ver noite, no baile do Clube local, o caixeiro de uma pequena venda de secos e molhados danar com a moa mais bonita e chic da cidade...Note-se que no se d o fato da moa ignorar a condio modesta de quem lhe pede uma contradana. Ela sabe muito bem que se trata do caixeiro da loja tal, e que o jovem passa os dias vendendo, em mangas de camisa, latas de sardinha, ou metros de chita, ou pares de sapato, ou ainda gua vienense e sal de frutas na farmcia mais prxima. Pena Boto tambm no identifica na sociedade parnaibana os conflitos de raa. Ele observa a confraternizao de brancos, srios, pardavascos 267 de todas as nuances e at mesmo pretos retintos: Vi em Parnaba horresco referem!... moas brancas e de boa estirpe enlaadas por mulatos escuros e suarentos, em valsas e Fox-trots, nos clubes sociais e em festas particulares. Vi moas brancas casadas com pretos! Vi gente de posio e altamente cotada na cidade, entrar em clube dos terrveis o clube dos caboclos e das caboclas! Soube que caboclas empregadas como arrumadeiras e copeiras em casas particulares danavam livre e alegremente nos Terrveis, ou no Clube Artstico, com os filhos dos seus patres...
Parece haver uma desconexo social entre a classe das sofisticadas famlias de comerciantes importadores e exportadores e as dos outros componentes da sociedade parnaibana como as dos funcionrios de reparties pblicas. Pode-se suspeitar que existiria nessa poca um clima emocional de mtua repulsa manifestada pela ignorncia mtua de classes, o que ostentada pelos respectivos cronistas que aqui comparamos. Pena Boto pouco menciona a existncia dos descendentes de estrangeiros, de suas opulentas moradas e mobilirio, nem o comrcio internacional que mantinham. de se estranhar mais uma vez que, como Capito dos Portos, a classe opulenta de seus clientes, os exportadores, no foi contemplada com observaes nas suas crnicas.
267 Mestio de negro e mulato, amulatado. 254
A sociedade parnaibana focalizada por Goethe outra... a outra, como j foi caracterizada pelo trecho de suas crnicas referente aos primrdios do futebol Paraibano. A separao de classes existia em todos os setores e atividades da sociedade local; os estdios e as Igrejas eram locais de expresso concreta da linha divisria entre as classes. 4.6 Cinema em Parnaba Em 1916, a firma Ferreira & Irmo, responsvel pelo Circuito Piauiense de Cinema, inaugurou o cinema em Parnaba. At ento, as projees cinematogrficas de pequenas pelculas eram feitas na rua, com lenis esticados. Como afirma Santos: Tudo comeou com a chegada s nossas terras, por volta de 1915, de uma certa famlia de libaneses que, aqui, adotou nomes brasileiros, tornando-se conhecidos por Zacarias (o pai), Miguel e Alfredo, os filhos. Por sobrenome, escolheram Ferreira, numa espcie de traduo livre do original libans. E, alm de romperem tambm com a tradio de srios e libaneses que aqui chegavam e logo abriam pontos de comrcio: lojas de tecido, armarinho ou perfumaria (...) Alfredo e Miguel criaram a firma Ferreira e Irmo e, com ela, tornaram-se os pioneiros do cinema em nosso Estado. Separando-se alguns anos depois, Alfredo partiu para Teresina e Miguel ficou em Parnaba, com o Cine Teatro den, o melhor e mais importante de toda a histria cinematogrfica da Parnaba (JORNAL TERRA NORTE, BENJAMIN SANTOS SAUDAO A MEMORIA DO EDEN - 2004). O Cine den foi inaugurado no dia 15 de novembro de 1924. O Livro do Centenrio de Parnaba descreve o Cine como uma casa com instalaes sonoras modernas com capacidade para receber 1.200 pessoas 268 . As chanchadas foram grandes sucessos no den. Os campees de bilheteria eram as da Atlntida - comdias musicais com Oscarito, Grande Otelo, Eliana, Anselmo Duarte, Adelaide Chiozzo e Jos Lewgoy. Depois vinham os cowboys - Gene Autry, BiIIy Elliot, Alan Rocky Lane e Roy Rogers e os seriados americanos: A Legio do Zorra, Serto Desconhecido, Flash Gordon no planeta Mongo, A Deusa de Joba, Os Perigos de Nyoka, Marte invade a Terra, Dick Tracy, o Detetive (BEMBM, 1924). Alm da exibio dos filmes americanos, o Cine den foi palco de companhias de teatro como as de Barreto Ivo e a de Revistas da Marquise, em que
268 Livro do Centenrio de Parnaba, 1944. 255
se apresentaram artistas como Rodolfo Maia, Jaime Costa e Iracema de Alencar. Tambm foi palco de shows de vrios artistas consagrados como Sivuca, Rui Rei, Nelson Gonalves, Emilinha Borba, ngela Maria, Alcides Gerari, Black Out e Nora Ney, Jorge Goulart, Dalva de Oliveira entre outros. O Cine-Teatro den foi considerado um dos principais cines do Norte e Nordeste. Introduziu novos hbitos e costumes, novas formas de vestir, modificou certos aspetos das relaes pessoais, e o padro de consumo da poca (HISTRICA, 2008). Funcionou por cinquenta anos e sua ltima sesso de cinema aconteceu no dia 2 de julho de 1979. 4.7 O Almanaque da Parnaba Neste item, procurou-se analisar o Almanaque da Parnaba sob diversos aspectos. Para tanto, comea-se respondendo questo: O que um almanaque e como ele fonte de pesquisa histrica. Aps responder s questes iniciais, foi realizada uma descrio do Almanaque, ao tempo em que se discorreu sobre seus editores. Para tentar dar conta do contedo desse objeto, dividiu-se o estudo em tpicos, explorando as capas, os artigos e seus autores, as fotografias e os poemas, os anncios e os anunciantes, as charadas e as estatsticas publicadas. O Almanaque da Parnaba foi editado durante dcadas, reunindo sob forma de artigos, notcias, publicidade comercial e fotografias documentos importantes do ponto de vista histrico. Convm enfatizar que as capas, os artigos literrios e seus autores, as fotografias e os poemas, os anncios e os anunciantes, as charadas e as estatsticas concernentes aos produtos comercializados sero elementos adequados para tentarmos reconstruir o cenrio social. Entendemos que a literatura atua como ndice do teor das relaes sociais e, por conseguinte, da compreenso de uma sociedade no caso, a parnaibana nas dcadas de 1920 a 1950. Alm disso, toda publicao segue uma lgica prpria e um cdigo, atravs do qual emite mensagens explcitas e implcitas, a fim de atingir seu pblico leitor, e isto est impresso nas pginas do Almanaque da Parnaba. A presente anlise restringir-se- a apenas seis volumes do Almanaque os nmeros referentes dcada de 1920 (1924-1929). Inicia-se por descrever e analisar as capas, que ostentam fotografias ou desenhos e ilustraes 256
complementares, procurando identificar seus autores ou criadores, e qual foi sua relao com a cidade, atravs dos temas escolhidos: os tradicionais, os religiosos, os da vida social ou familiar e os que sugerem o tema voltado para a modernizao da cidade em seu processo de urbanizao, incluindo o desenvolvimento da industrializao. Os artigos publicados no Almanaque da Parnaba revelam o interesse pela literatura geral, ao lado daqueles que eram elaborados especialmente para o Almanaque. Entre as normas de publicao de artigos especiais para o Almanaque da Parnaba (1933, p. 222), estava estabelecido que somente seriam aceitos trabalhos inditos e relativamente curtos, versando sobre fatos relevantes na economia, na poltica e sobre acontecimentos que tocavam nos valores sociais envolvendo a famlia, os bons costumes e o sentimento patritico. O foco dirigido para o pblico masculino ou feminino foi captado por esta anlise. Os poemas figuram entre os artigos, sendo na maioria obra de autores locais o que completado por pesquisas complementares. As fotografias apresentadas ao longo da publicao ilustram os temas caros ao editor e seu pblico, como os aspectos modernizadores da cidade, seus prdios, suas praas, incluindo fotos de personalidades de destaque da elite local. Foram levados em conta o nmero de fotos de cada um desses enfoques e seus complementos com o uso de desenhos, linotipos, motivos Art Dco e outros do gnero. Tratando-se de um discurso visual, dirigimos nossa anlise para a nfase que dada a certos aspectos da cidade e das instituies, bem como s personalidades eleitas para figurar ao lado de artigos especiais, homenageados por seu valor profissional, moral e intelectual. Neste caso, so examinadas as ocorrncias em que as legendas do destaque s fotografias ou em que estas ilustram os artigos que as acompanham. Muitas vezes, as fotografias so escolhidas para representar tendncias sociais, polticas, religiosas ou econmicas, e indicam o tipo de recreao e laser em voga. A comparao entre fotos publicadas a cada ano, a cada dcada mostra a transformao social em geral da sociedade e da cidade. Anncios e anunciantes de carter comercial tm, certamente, uma importncia especial como dados histricos, conforme atestado a seguir, na 257
transcrio de um artigo crtico publicado no prprio Almanaque da Parnaba em 1997 (p.101) por Alcenor Candeia Filho: A propaganda em Parnaba daquele tempo lidava apenas com textos e imagens estticas. Nesses anncios rudimentares enfadonhos avultam os textos prolixos, com enumerao dos produtos disponveis. As ilustraes eram raras e, a exemplo dos textos, pouco inventivas. Aqui e ali, a fotografia do empresrio-anunciante, ou da fachada da sede do estabelecimento, ou da principal mercadoria a venda. Mas se a publicidade da poca, nitidamente amadorstica, no se harmonizava com os princpios elementares da propaganda que recomendam o uso de textos curtos, claros, leves, comunicativos , trazia pelo menos um aspecto positivo: enumerando exaustivamente suas atividades e suas mercadorias, os comerciantes, sem o saberem, estavam escrevendo importante pgina da histria econmica da cidade, relacionada justamente com seu perodo de glria e de exuberncia (1920-1950). Ao longo dos anos o Almanaque contou com centenas de anunciantes. Alguns desses eram empresrios de fora que disputavam o mercado local. A maioria era constituda de firmas parnaibanas. Pelos anncios podemos conhecer os produtos em oferta, as caractersticas do mercado, a competio entre empresrios, a mentalidade dos clientes e negociantes, o modismo [...]. Entende-se, pois, os anncios como fonte de interpretao de uma poca. Deste modo, faz-se a anlise dos anncios comerciais como indicativos dos produtos comercializados e, em especial, do clima empresarial prevalecente na intensificao das relaes capitalistas e da importncia do consumo. Acrescente-se que O Almanaque contribua para dinamizar a integrao da sociedade parnaibana piauiense, inclusive no panorama internacional, pela disseminao de artigos e ideias nas relaes capitalistas via consumo. Por outro lado, ainda com relao a esta anlise, procura-se verificar se havia interesse em oferecer produtos exclusiva ou preferencialmente para homens ou para mulheres. Atravs do conjunto das propagandas publicadas possvel afirmar que o Almanaque visava criar demandas e instituir um padro de gosto, que buscava impor/fomentar o consumo, sugerindo que, afinal, ser moderno ser consumidor. O Almanaque da Parnaba corresponde a uma poca em que o consumo penetrou como um significado de vida moderna. Por seus anncios e segundo Candeia Filho pelos textos prolixos, com enumerao dos produtos disponveis, era colocada vista a necessidade de consumir novos produtos disponveis no mercado, e adquirir novos saberes na utilizao de produtos de higiene, limpeza, beleza e medicamentos inovadores. Subliminarmente, a propaganda argumenta a ideia de que a felicidade depende do consumo de certos produtos. 258
4.8 Almanaque Almeneg, almonagath, almanach, almanakk, almanachus, almanakon, almanha; segundo Casa Nova (1996, p. 17), a palavra Almanaque pode ter vrias origens: 269
Do oriental man, nome primitivo da lua, do copta Al, que significa clculo, e men, memria. Da, tambm, almeneg, clculo para memria: do antigo Al, e do latim manachus, crculo representando a linha eclptica dividida em doze partes para os doze signos, e pelo qual os latinos reconheciam o crescimento das sombras a cada ms. Em outra hiptese, do cltico AL, mon, aght, que significa a observao de todas as luas. Nossos ancestrais traavam o curso da lua, para todo o ano, sobre um pedao de madeira quadrada que eles chamavam de almonaghat. Ainda, segundo outra opinio, do rabe Al, o, e manach, contar. Outra provvel origem etimolgica do termo remonta ao grego almenikhiak, estando sempre ligado ao interesse pela astrologia; registra-se em latim medieval como almanac, que deriva do rabe al-manakh, "o calendrio". Seja em egpcio, grego, romano, hindu, chins seja em rabe, o almanaque era de uso geral (CASA NOVA, 1996, p. 17). A informao contida em um almanaque de carter enciclopdico, til para toda a gente, no procurando aprofundar os assuntos, mas deles dando apenas notcia. Este tipo de publicao utilizado em reas especficas, contribuindo para uma grande variedade editorial. Distinguem-se, por exemplo, os almanaques astronmicos, os nuticos, os agrcolas com previses meteorolgicas, gastronomia etc. O primeiro almanaque escrito em portugus (traduzido do latim) o Almanaque Perdurvel para Achar os Lugares dos Planetas nos Signos, datado de 1321. Os primeiros almanaques portugueses surgem apenas na segunda metade do sculo XV, destacando-se o Almanach Perpetuum (1496), de Abrao Zacuto, sobre matria astrolgica, que seria utilizado na elaborao das tbuas solares nuticas durante as viagens portuguesas da Expanso. Franois Rabelais publicou em 1533 um almanaque parodstico com o ttulo Pantagrueline Prognostication, que uma crtica divertida das predies astrolgicas, que eram cada vez mais populares no Renascimento, sob vrios ttulos: almanaques, repertrio dos tempos, folhinha de luas.
269 Segundo Casa Nova, a origem do termo almanaque controversa, fazendo-se necessrio uma compilao e um cotejo com vrias publicaes. 259
Durante anos, este tipo de publicao foi pretexto para divulgar todo o tipo de supersties, sobretudo de natureza astrolgica, mas tambm informaes deturpadas sobre a vida da realeza. preciso esperar o sculo XIX para que o almanaque recupere o seu prestgio. Em 1981, uma referncia feita na publicao intitulada Notas Contemporneas, do Crculo de Leitores, Lisboa (1981, p.385) afirma: O almanaque contm essas verdades iniciais que a humanidade necessita saber, e constantemente rememorar, para que a sua existncia, entre uma Natureza que a no favorece e a no ensina, se mantenha, se regularize e se perpetue. A essas verdades, chamam os Franceses, finos classificadores, verdades de almanaque. So as altas verdades vitais. O homem tudo podia ignorar, sem risco de perecer, exceto o ms em que se semeia o trigo. Um texto que fala sobre a importncia e a histria do almanaque o prefcio que Ea de Queirs escreveu para o Almanaque Enciclopdico (1896). A descrito um dos aspectos mais sugestivos do almanaque, o fato de conter um certo tipo de verdades reconhecidas por determinados grupos como universais e essenciais. Deve-se lembrar que o perodo vivenciado por Ea assiste a uma grande proliferao de almanaques. o tempo, por exemplo, dos clebres Borda dgua e Seringador, cuja publicao se estender at o sculo XX. Um aspecto importante ressalvado por Ea o lado regulador do almanaque: O almanaque, com efeito, o livro disciplinar que coloca os marcos, traa as linhas dentro das quais circula com preciso toda a nossa vida social. (...) S com o almanaque, sempre presente e sempre vigilante, pode existir regularidade na vida individual ou colectiva: e sem ele, como uma feira, quando se abatem as barreiras e se recolhem as cordas divisrias, o que era uma sociedade seria apenas uma horda e o que era um cidado seria apenas um trambolho (LISBOA, 1981, p.386). Um breve histrico demonstra sua antiguidade 270 e importncia por ter atingido grandes tiragens. Pelo menos no sculo XVIII, na Inglaterra, j se editavam trezentos mil exemplares por ano. Almanaques antigos em vrias lnguas ainda se mantm em publicao, tais como o Old Moore's Almanac (desde 1868), sobre cultura geral, o Old Farmer's Almanac (desde 1792) e o Almanach de Gotha (desde
270 Bertino Darciano: O tempo e os almanaques do povo. Retalhos de investigao etnogrfica, Boletim da Biblioteca Pblica Municipal de Matosinhos, 1 (1954); Ernesto Soares: Almanaques, Prognsticos, Lunrios, Sarrabais do Sculo XVIII em Lisboa (1946); Genevive Bollme: Les Almanaches populaires aux XVII et XVIII sicles. Essai d histoire sociale (1969); Maria Carlos Radich: Almanaque: Tempo e Saberes. 260
1763). A Direo-Geral de Educao de Adultos publica em Lisboa, desde 1981, um dos almanaques portugueses ainda ativos, com o simples ttulo: Almanaque. As sees literrias do almanaque costumam incluir poemas e contos de cunho tradicional, bem como mximas populares. Na histria literria portuguesa, ficou clebre o Almanaque das Musas (1793), inspirado no francs Almanaque des Muses. So seus promotores os scios da Academia das Belas Letras de Lisboa, que se notabilizou com o nome de Nova Arcdia. Este almanaque tem um interesse literrio particular, pois inclui a primeira traduo portuguesa da Arte Potica (1697) de Boileau, feita pelo 4 conde da Ericeira, D. Francisco Xavier de Menezes, falecido em 1743. Outra publicao de interesse literrio foi o Almanaque de Lembranas Luso-Brasileiro (1851-1932), que teve a colaborao de Alexandre Herculano, Antnio Feliciano de Castilho, Bulho Pato, Camilo Castelo Branco, Antnio Nobre, Olavo Bilac, Augusto de Lima etc. Conforme Dutra Freitas, os almanaques utilizados como enciclopdia por vrios segmentos sociais foram amplamente difundidos na Frana desde o sculo XVII (DUTRA, 1999, p. 481). A tradio francesa do almanaque persiste ainda hoje circulando nas regies campesinas da Savoia, contendo os seguintes itens assim traduzidos: Os fatos mais importantes do ano na nossa provncia; documentos sobre nossa regio; artigos sobre a fauna e a flora; profisses e jogos esquecidos; uma cano dos seres de outros tempos; lendas, frases especiais e anedotas... mas tambm, o calendrio dos doze meses do ano com a indicao de trabalhos no campo e domsticos; as feiras de cada ms; a posio diria da lua; previso do tempo; a centsima hora da lua; os signos do zodaco, os eclipses e outros fenmenos celestiais (ALMANACH DU VIEUX SAVOYARD, 1991). Uma das caractersticas desse tipo de peridico a de colocar seus leitores diretamente em contato com a vida, a atualidade, a informao, aliando a moral utilidade prtica, e o saber ao divertimento (DUTRA, 1999, p.481). O fato de aliar moral e ensinamento prtico, saber e diverso sobre o trip utilidade/verdade/entretenimento faz com que os almanaques misturem temas e toquem em vrios assuntos. Por um lado, conciliam saber laico com verdades quase sagradas; por outro, mantm uma dada estrutura de organizao temtica e reiteram um contedo padro: o calendrio, a cronologia, o horscopo, as biografias, a geografia, a histria, o direito, as cincias, os preceitos morais. 261
O almanaque tem uma relao especial com o tempo dos acontecimentos, sempre um tempo j vivido, uma vez que os almanaques anuais tratam de fatos do ano que j findou. Entende-se que o almanaque , acima de tudo, um veculo de transmisso de experincias prticas e verdades consideradas vlidas, ou buscando validade para o presente e o futuro. O almanaque atua sempre refundindo e atualizando tradies (DUTRA, 1999, p.483). Como uma publicao anual, o almanaque possui um carter especial, no abordando assuntos de atualidade, mas cingindo-se queles que tm uma certa estabilidade, como os que se atm geografia, histria, aos fatos folclricos e divulgaes cientficas baseadas em estudos comprovados. A estrutura editorial do Almanaque faz com que esse tipo de publicao constitua importante documento histrico, por retratar o ambiente social especfico de uma poca que registra, como um mosaico, o interesse de um pblico que assim adquire informaes gerais, atravs de fatos memorveis e de personagens pblicos que so sempre homenageados. So, assim, postas em relevo as linhas histricas percorridas pelo ano que passou, e nelas o teor social que a marcou, e no, simplesmente, um repositrio de atualidades. Introduzida no Brasil, a Editora Almanaque Garnier estendeu sua publicao aos Estados de So Paulo, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Bahia, Cear, Pernambuco, Maranho, Paraba, considerando que nesses lugares haveria campo para a divulgao de conhecimentos, e, consequentemente, de publicaes e edies de livros que, de certa maneira, encontravam apoio publicitrio. Manuel Domingos Neto (19--, p.483) refere-se aos almanaques da regio do Nordeste: Na segunda metade do sculo XX, muitos almanaques so produzidos nas capitais nordestinas. O do Cear surge em 1895. Era uma poca de crescimento das capitais da regio. Desenvolvia-se o aparelho administrativo e florescia o comrcio. O desenvolvimento do capitalismo favorecia, sobretudo, a consolidao dos centros litorneos do Nordeste com a constante demanda de seus produtos. Crescia o mercado consumidor local. O contingente de alfabetizados se ampliava. Surgiram diversas tipografias. As lias polticas incitavam o aparecimento de jornais que davam chance aos literatos de provncia. No obstante o desenvolvimento econmico do litoral piauiense e seu contato com a Europa, os editores do Almanaque Garnier no se interessaram em incluir o Piau em seu mercado editorial; acredita-se que tenha sido porque sua extenso 262
territorial interiorana pressupunha uma populao com baixa taxa de alfabetizao. Existiram nesse Estado edies de brochuras com o nome de almanacks, mas que no se conformavam com a estrutura dos Almanaques Garnier, e tinham vida curta. Deve-se a Domingos Neto informaes sobre tais publicaes: Ao que parece, a primeira publicao a levar o nome almanaque no Piau foi o Almanaque Piauiense. Surgiu em 1879, sob a responsabilidade de Miguel de Souza Borges Leal Castelo Branco. Desapareceu trs anos depois. No incio do sculo, em 1903, um pequeno grupo de intelectuais de Teresina, composto de Abdias Neves, Miguel Rosa e Joo Pinheiro relana o Almanaque Piauiense. Trazia alguma propaganda comercial e densas matrias sobre a histria piauiense. Tambm teve vida efmera, desaparecendo na segunda edio. Muitos anos depois, em 1937, Antnio Lemos, o conhecido Semana, retoma a iniciativa, fazendo circular mais algumas edies desta revista (19??, p.483). As pesquisas realizadas para esta Tese apontam um almanaque mais antigo do que o Almanaque Piauiense, citado por Manoel Domingos. Trata-se do Almanaque da Flora Brasileira, editado pelo oeirense Eugnio Marques de Holanda (1972, p.16). 271 Podem ser citados ainda outros almanaques no Piau: um publicado pelo farmacutico Thersandro Paz lanado em Teresina em 1903 o Almanaque da Pharmcia dos Pobres ; outro lanado em Oeiras por Orlando Barbosa de Carvalho o Almanack para 1923 (MAVIGNIER, 2007, p.116). Apesar de todos esses lanamentos, foi somente nas primeiras dcadas do sculo XX que certas condies possibilitaram a circulao regular de um anurio com as caractersticas de um almanaque. Segundo afirma Domingos Neto: Primeiro surgiu um contingente de comerciantes com capacidade e disposio para pagar anncios publicitrios imprescindveis a uma publicao do gnero. Em Parnaba surgiria tambm um grupo de senhores com veleidades literrias, amantes de crnicas, poesias, conversas espirituosas e longas discusses teolgicas e filosficas. Em boa parte este
271 Nasceu em Oeiras a 4 de maro de 1836. Aps sua formatura no Rio de Janeiro, veio para Teresina, onde residiu mais 16 anos. Retornando depois ao Rio, aps sete anos instalou uma indstria farmacutica de largo porte, e a primeira Faculdade de Farmcia do Pas. Enriqueceu com a primeira indstria farmacutica nacional. Em Teresina abriu farmcia Rua Grande n. 39. Partindo da tradio popular, dos chs e mezinhas que seus pais e avs usaram, iniciou um meticuloso estudo sobre a flora regional (Piau e Maranho). Como primeiro resultado, em 1862, pouco mais de ano aps a instalao da Botica, lanou ao pblico uma garrafada de Salsa e Caroba, que foi o maior de todos os produtos por ele lanado aqui e no Rio. No Rio de Janeiro, na Rua Visconde do Rio Branco, abriu farmcia e o grande Laboratrio da Flora Brasileira inaugurado em 20 de dezembro de 1881 com a presena do Imperador. A partir da Salsa-Coroba, o nmero de produtos foi aumentando, e o Laboratrio logo de incio produzia mais de vinte medicamentos. O Dr. Eugnio usava todos os meios de publicidade, alm da rotineira feita pela imprensa como versos, msicas, gravuras etc. Lanou o Almanaque da Flora Brasileira, no qual, ao lado das virtudes de seus produtos, vinham informaes teis aos agricultores e criadores. 263
grupo era constitudo de caixeiros, funcionrios graduados de empresas comerciais. Estes senhores, sob a liderana de uma das figuras mais espirituosas e respeitadas da velha Parnaba, o comerciante Benedito dos Santos Lima, chamado afetuosamente de Bembm, asseguraria o lanamento da publicao (19--, p.483). 4.9 O Fundador do Almanaque da Parnaba Benedito dos Santos Lima A vida desse personagem parnaibano pode ser traada como um fio condutor de acontecimentos significativos para se conhecer o teor histrico de sua cidade. No foi um homem de grandes escritos, sequer um orador de importantes fatos, talvez pela sua modstia e simplicidade. Porm, foi, sobretudo, um homem de ao, um intelectual de viso, um amante da cultura. Sabia organizar um pensamento, at chegar imprensa, ajudando a impulsionar o saber parnaibano de sua poca. Pressentia o talento nas pessoas e convidava-as a participarem de seu grupo intelectual (BEMBM, 2008). Sua Mercearia era bastante frequentada. Os homens cultos da cidade l se reuniam, formando debates sobre assuntos diversos, estabelecendo verdadeiras tertlias intelectuais. Este tipo de encontro ocorria regularmente e persistiu durante muitos anos. L se encontravam Lvio Pacheco (o Lily Pery), Francisco Aires, Edson Cunha (nos dizeres do prprio Bembm em uma entrevista, foi um dos grandes professores que tive), Abdias Neves, Berilo Neves, Cazuza Porto, Joel Oliveira, Rodrigues Pinag, Benu da Cunha. Constavam tambm da sua lista de amigos que compartilhavam de suas reunies informais: um especialista em assuntos comerciais, em propagandas, e outros voltados para promover entretenimento e informaes teis para a populao, visando interessar cidados vidos de saber. significativo o fato de o grupo reunir-se na Mercearia Bembm, respaldados pela biblioteca particular do comerciante. Bembm comprava quantos livros pudesse, formando ao redor de si uma biblioteca que crescia dia aps dia. Possua uma boa coleo de dicionrios. Circulavam por aquela poca folhetos ilustrativos, alguns at em forma de livros, quase pequenas enciclopdias, ao lado de almanaques como o Almanaque Bristol, o Almanaque do Pensamento, o sofisticado Almanaque Bertrand Lisboa. Bembm gostava da leitura desses anurios e foi assim que ele props patrocinar um almanaque. O seu gosto por charadas contribuiu tambm como um estmulo. Da ideia passou ao. Em 1923, colheu dados baseados principalmente na cidade, estendendo-se aos assuntos e fatos e fontes gerais. Assim publicou, para o 264
ano de 1924, o Almanack da Parnayba, o primeiro de uma longa srie que dura at hoje. Na pgina do primeiro deles, Bembm mostra toda a esperana, comprometendo-se a melhorar ainda mais as futuras edies. Durante os primeiros 18 anos, Benedito dos Santos Lima editou o anurio como diretor-proprietrio. Em 1941, passou os direitos autorais a Ranulfo Torres Raposo, que, com dedicao, continuou sua publicao at 1980. assim que seu filho Benjamim fala do almanaque publicado por seu pai (BEMBM, 2008): A Parnaba era cidade de pequena populao, mas marcada por grande nmero de homens bem formados e que, como ele, h pouco tempo haviam chegado de suas terras de origem, e outros que estavam por chegar e que se ajuntavam todos aos j aqui nascidos, para formar uma especial intelligentzia que tornava mpar a conversao local: Francisco Correia, Alarico da Cunha, Ranulpho Torres Raposo, Edison da Paz Cunha (filho de Higino Cunha), pai e filho fundadores da Academia Piauiense de Letras. Era, sobretudo, essa gente que criava os tantos jornais em circulao dedicados literatura, poltica, religio... Audacioso, em 1923, Benedito dos Santos Lima, com necessidade vital de incluir-se naquele meio, mas dono de seu prprio veculo, preferiu ir alm daqueles jornais que, por seu formato e periodicidade, tendiam rapidamente ao desaparecimento. Preferiu a criao de um almanaque, tal qual tantos outros que existiam e que eram sucesso por todo o Brasil. A base de todos eles era simples e comum: leitura leve, assuntos variados, informaes teis mescladas a passatempos e pensamentos filosficos, abrangendo conhecimentos gerais. Foram tais elementos que geraram a expresso "cultura de almanaque". At a, tudo bem, pensava Benedito dos Santos Lima, acreditando que na cidade havia as duas condies para uma obra de tal envergadura: leitores e comerciantes que, com propaganda paga, sustentassem as edies anuais. E levou a ideia frente. O seu seria um almanaque igual a muitos outros e que, por isso, teria que concorrer com todos eles, concorrncia em que, certamente, sairia perdendo. Foi dessa constatao que Bembm teve o grande insight que gerou a identidade nica do seu almanaque, aquela que o distinguiria de todos os outros: seria um almanaque com todos aqueles ingredientes, mas um almanaque de sua cidade e para a sua cidade, um Almanaque da Parnaba, carregado de cores locais, caractersticas locais, voltado para o comrcio local, elementos que o tornariam nico em relao a quaisquer outros almanaques. E foi luta. 4.10 As charadas e os enigmas Uma das caractersticas do almanaque era o fato de a seo de charadas e de cartas enigmticas ocuparem vrias pginas. Elas eram tantas e to variadas que permitiam intercmbio com outras publicaes, como as revistas Norte Charadista, editadas pelo Grmio Charadstico Cearense, e a Enigmstica, do Rio de Janeiro. At mesmo o jornal Aljava possua uma coluna intitulada Brincando com dipo. 265
Bembm tornou-se membro da Academia Charadstica Luso-Brasileira do Rio de Janeiro. A importncia da seo de charadas, cartas enigmticas e palavras cruzadas no Almanaque da Parnaba reflete no s o carter da personalidade de seu fundador, mas tambm como esse tipo de prtica com palavras instiga e promove laos de amizade entre os leitores do almanaque. Nota-se que quase todas as charadas so acompanhadas de uma dedicatria tipo: ao Dr. Ben da Cunha; ao Piolho; ao bom amigo Be; ao Biriba. O uso de apelidos e pseudnimos entre charadistas empresta o tom jocoso atividade cuja funo seria a de aproximar os participantes. Alm do aspecto diletante, conhecido o apreo que as pessoas tm pela ideia de que existe um lado intelectual que estimula a aquisio de conhecimentos gerais. Tecnicamente apaixonado pelo charadismo, jovem ainda o Sr. Bembm criou um rgo, que, alm de outras finalidades, pudesse servir de meio no s para aprimorar-lhe a tcnica pessoal, como para difundir sua paixo e comunicar-se com um nmero mais vasto de decifradores. Este rgo, editado por ele ao longo de 18 anos, foi o Almanaque da Parnaba. Foi nesse Almanaque que o Sr. Bembm desenvolveu sua obra de charadista. Bembm criou os dois pseudnimos com os quais queria se fazer irreconhecvel. Para charadas, passou a usar, alm de BB, o humorstico H. CHADO; para trovas e quadrinhas, H. PICOTE. Em junho de 1932, diplomou-se pela Academia Charadstica Luso Brasileira, onde registrou o pseudnimo de Bembm. Entre outros, atuavam com mais frequncia os pansofistas: MUTT e BEMOFRE (Benedito de Morais Freire, tambm desenhista), F. Serrano (Francisco Ayres), ASUSAC (anagrama de Casusa Porto), B. DESPIDO (Benu da Cunha), JOTA (Quincas Arajo) e mais SORIETAB, JO, ARGONAUTA, PIOLHO, K. SULLO, CALOURO, JEFF, LYRIO DO VALLE... Uma srie de trocadilhos e anagramas com que todos se comunicavam entre si, cada um deles sabendo quem. Apaixonado desde cedo por dicionrios, enciclopdias e calepinos, estava com trinta anos de idade quando preparou o primeiro nmero do Almanaque da Parnaba. Os anos da dcada de 1930 podem ser considerados como aqueles em que Bembm teve a sua mais marcante atuao charadista, sobretudo porque essa atuao no se resumia a criar e decifrar charadas; sua influncia sobre o 266
movimento cultural da cidade foi mais intensa que em todo o resto de sua vida. Para o Almanaque da Parnaba chegavam colaboraes de vrios pontos do Pas, e o charadismo movimentava um ncleo cada vez maior de participantes. Bembm assumia uma posio eixo para dezenas de intelectuais da cidade, do Piau e do Maranho, que criavam e decifravam novssimas, casais, sincopadas, aferticas e antigas; logogrifos, enigmas figurados e em verso uma pliade que correspondia convocao de Bembm, criando e decifrando problemas de raciocnio e memria. Criou concursos anuais com direitos e prmios (dicionrios) para quem conseguisse o maior nmero de decifraes. Com isso o desenvolvimento cultural de Parnaba se intensificou. O ponto de atrao era o escritrio Rua Duque de Caxias, onde ele trabalhou quase a vida inteira, mudando o ramo de negcios de tempos em tempos. 4.11 O Almanaque da Parnaba nos anos 1920 Na primeira pgina da publicao, Bembm se dirige ao pblico, com o seguinte texto: O almanaque constitui um repositrio precioso de informaes teis, passatempos, curiosidades e distraes, sendo, portanto, um livro de necessidade em toda casa. Para o sertanejo, , s vezes, o livro nico que guarda, cuidadosamente, para orientao da sua despreocupada vida, durante todo um ano. Notava-se a ausncia, nesta cidade, de uma dessas publicaes anuais de tanto interesse e de incontestvel utilidade. Sanando semelhante lacuna, a MERCEARIA BEMBM se props a dirigir e iniciar a publicao do presente Almanaque da Parnaba, mas o fez de modo a apresentar uma publicao atraente, caprichando na multiplicidade das leituras, ao mesmo tempo que contendo o mais completo servio de informaes de toda espcie, sobretudo comerciais. Este almanaque , portanto, uma promissora esperana. Nas edies seguintes procuraro os seus dirigentes dar-lhes maior desenvolvimento, mais completo servio de informaes. Agradecendo ao honrado corpo comercial desta praa a solicitude com que foi atendido o nosso apelo para a aquisio dos anncios, entregando-lho ao pblico certos de que prestamos, assim, com ele, um excelente servio (ALM. DA PARNABA, 1924, p.2). Nessa apresentao, Bembm introduz o Almanaque como um produto que distingue quem o consome, visto que se apresenta como uma publicao da elite (o desenho da capa confirma), embora atingisse os segmentos mdio e baixo os sertanejos. Instaura um distintivo de classe, pois nem todos podem ter acesso a suas informaes (a populao era majoritariamente analfabeta). Seu encanto tambm reside na construo da imagem de uma publicao moderna encanta 267
atravs da sua condio de moderno que simboliza o novo, que possibilita aos consumidores situar-se diante das demandas do tempo. A capa desta primeira edio remete a um ritual da civilizao. No Natal de 1923, Benedito dos Santos Lima lanava no escritrio de sua Mercearia o Almanaque da Parnaba (Ibid., p.11). Sua deciso fora considerada fruto de sua marcante personalidade, de seu extremo envolvimento com a vida local e de nosso melhor esforo e interesse, como dizia aos amigos. Passara o ano de 1923 colhendo dados da cidade, procurando anunciantes entre os comerciantes locais e convidando intelectuais amigos para comporem seu corpo editorial (SOLIMAR, 2003, p.18). Esse primeiro anurio, com quarenta e quatro pginas e no formato de 16 x 23 cm, 272 foi impresso na Grfica Renascena, de Fortaleza, Cear. Na primeira pgina, Bembm expe os motivos que o levaram a tomar a iniciativa de promover um Almanaque para a cidade de Parnaba. Trata-se de um tipo de publicao que rene informaes teis, curiosidades e detalhes da literatura para uma formao de cultura geral, alm de passatempos e distraes; sendo portanto acessvel e adequado para figurar em toda casa, seja esta do citadino como do sertanejo. O tino comercial de Bembm aflora quando prope a publicao do Almanaque em nome da MERCEARIA BEMBM, e, ao mesmo tempo, pondo em relevo a presena do comrcio que animava a cidade. F-lo de modo a apresentar uma publicao caprichada e atraente, adornando os ttulos dos artigos, dos poemas e das fotografias com motivos florais e geomtricos Art Dco a exemplo de outros almanaques publicados no Brasil, como o Almanaque de Campinas para 1908 ou o Almanaque Histrico e Estatstico de Campinas, 1912 (MEYER, 2001, p. 86-90). O autor promete que, nas edies seguintes, seus dirigentes procuraro dar- lhes maior desenvolvimento, mais completo servio de informaes. Termina agradecendo ao honrado corpo comercial da praa pela solicitude com que foi atendido o apelo, contribuindo assim com a publicidade de seus estabelecimentos para a futura manuteno da sequncia dos Almanaques.
272 Segundo Casa Nova (1996, p. 24), um almanaque de farmcia tinha uma forma intencionalmente popular, com no mximo 35 pginas e formato 18,3 cm x 13,4 cm. Podia com essas caractersticas ser levado de um lado para outro com a maior facilidade, brinde que era das lojas, presente de Natal ou Ano Novo. Acreditamos que o formato escolhido por Bembm tenha tido a mesma inteno apontada por Casa Nova. 268
Pelo enunciado que inaugurou o primeiro nmero dos almanaques que se sucederam, nota-se que a sociedade parnaibana, representada pelo grupo que se formou ao redor de um comerciante, estava culturalmente madura 273 e informada sobre o que se passava no mundo graas ao seu contato comercial atravs do porto martimo e tambm que considerava a viabilidade de sobrevivncia de tal gnero de publicao graas a um pblico de leitores que ultrapassava o da cidade, abrangendo todo o interior do Estado. A influncia cultural de Parnaba, nesse sentido, j demonstra sua marcante atuao. Outra caracterstica a adoo do ttulo de colaborador a qualquer pessoa que quisesse contribuir com suas obras, sejam quais fossem, para o Almanaque. Bembm exorta os leitores a dirigirem-se Mercearia BEMBM ou a remeterem suas matrias at 31 de maio de cada ano. No que tange aos toques histricos do almanaque, desde o primeiro, contamos com o parecer de Manuel Domingos Neto (19--, p.78). Ele nota que ali se caracteriza o ambiente de grande dinamismo comercial que a cidade vivia e com que possvel conhecer muito da histria do comrcio e da indstria do Piau, em particular da economia parnaibana, atravs de seus anncios publicitrios. Trinta e nove diferentes firmas anunciam seus produtos e servios: farmcia, livraria, papelaria, mercearia, alfaiataria, relojoaria, alm de sociedades de sorteio, escritrios de representaes, comisses e consignaes, de negociantes exportadores como Samuel Bompet, firmas de seguro martimo e terrestre como o Lloyd Sul-Americano. Alguns anunciantes colocam a data da fundao de sua firma como a Casa Inglesa de James Frederick Clark fundada em 1849 e a Equitativa, sociedade de seguro de vida fundada em 1876. Muitas dessas firmas se localizam a Rua Grande (atual Getlio Vargas) e Duque de Caxias. Embora a maioria dos anunciantes seja de firmas parnaibanas, algumas so maranhenses, outras so filiais localizadas em outras capitais do Nordeste ou ainda em Portugal. Os anncios so pequenos; muitos ocupam a mesma pgina, poucos uma pgina inteira. Farmcia e Drogaria Humanitria, a mais antiga e com credibilidade na cidade, anuncia seus produtos entre os quais os premiados com medalha de ouro na exposio nacional do Rio de Janeiro e contemplados com meno honrosa na de Turim-Roma. O anncio de produtos farmacuticos e outros manipulados pela
273 Para mais informaes sobre os intelectuais do Piau, no perodo, ver Queiroz, Teresinha. Os intelectuais e a Repblica. 269
Farmcia e Drogaria Humanitria fornecem dados concernentes aos tratamentos medicais da poca. Apenas guisa de ilustrao desse papel histrico da publicidade, podem ser citados os produtos oferecidos pelo reputado farmacutico Antonio A. Neves, conhecido h vinte anos na cidade: o elixir antifebril e desobstruante, composto de jurubeba e de fedegoso, tido como o melhor e o mais eficaz remdio para sezo e febres palustres; o blsamo antirreumtico por excelncia, o blsamo contra a dor; o Elixir Depurativo Himalaia, mais energtico depurador do sangue, de ao rpida e de fcil tolerncia pelo organismo; e o xarope de angico e tolu, o sedativo ideal para a tosse infantil. Outros aspetos do Almanaque sero discutidos em seguida. 4.11.1 A capa A versatilidade do fundador do Almanaque demonstrada pela escolha do desenho da capa, de autoria de Bibi Freire, conforme consta sua assinatura no canto direito inferior da pgina. No falta ali uma frase significativa, que dispensa comentrios: lembrana da MERCEARIA BEMBM, de Benedicto dos Santos Lima, Parnaba (Estado do Piau). O desenho representa uma cena 274 atribuda a uma classe mdia prspera, mas , ao mesmo tempo, ntima, por retratar to-somente um casal mesa de um ambiente sofisticado, uma sala de jantar com detalhes significativos. interessante observar-se que a indumentria do casal acrescenta um dado pertinente: esto vestidos com detalhes que sugerem uma situao festiva, apesar da intimidade sugerida.
274 A capa tem estampado um desenho feito em bico de pena, mo livre, em preto e branco, assinado no canto inferior direito por BFreire, datado de 1923. O leitor convidado a observar um casal sentado mesa, numa sala de jantar, como se olhasse por uma janela. A sala ornamentada com cortina de tecido e lustre. mesa, o cavalheiro est sentado de frente, e a dama sentada na cabeceira, a sua esquerda. Ela levanta um copo, parecendo brindar o cavalheiro. Usa vestido longo, decotado, estilo tomara que caia, com os ombros mostra. Os cabelos esto presos por um pente, estilo espanhola. O cavalheiro usa terno, gravata borboleta e sapato de bico fino. Na mesa, coberta por uma toalha, alm de uma garrafa de vinho, copo, prato e travessa com alimento. A cena remete a um ambiente ntimo e sofisticado, a um ritual de civilizao. Acompanha o desenho a frase: Lembrana da Mercearia do Bembm, de Benedicto dos Santos Lima, Parnaba (Estado do Piau). 270
Figura 43 O Bembm. Fonte: Parnaba, ano 1, n. 7, p. 2, 2008.
Toda a cena alude ao comportamento de pessoas envolvidas em um ritual significativo de civilizao dos costumes (ELIAS, 1994, p.70) comer mesa. O ato social de comer (STRONG, 2004, p.14) ali apresentado de maneira a veicular um suposto status e aspirao do leitor. Aponta assim para uma esttica francesa considerada tpica durante dcadas, persistindo como modelo de sofisticao, embora com menos intensidade, at os anos 1950. 4.11.2 Os artigos So doze artigos que versam sobre aspectos econmicos de Parnaba e assuntos literrios em geral. Entre estes ltimos esto lado a lado escritores consagrados poca, como Coelho Neto, e outros cuja autoria no explicitada, porm reconhecvel (como o caso do artigo O peregrino assinado X.X., que fala da passagem do Ano Novo) e passagens de Plnio, o Antigo, historiador romano do sculo I. 271
Os artigos de Coelho Neto, maranhense, falam de assuntos bem distintos. No primeiro, Repblica e democracia organizao administrativa, ele esclarece que a Repblica uma democracia ou regime poltico no qual domina a vontade do povo que, em sufrgio livre, elege os mandatrios da sua soberania. Outro artigo, intitulado A unio, versa sobre a importncia da harmonia, do amparo e da solidariedade na famlia e dos perigos da discrdia. De Berilo Neves, crtico literrio, cronista e contista parnaibano, foram escolhidos trechos de um de seus livros inditos, porm no identificados , reunidos sob o ttulo Filosofia do corao. Antnio Otvio de Melo, poeta e jornalista nascido em Esperantina, tendo vivido por mais de trinta anos em Parnaba, colaborou assiduamente no s com o Almanaque da Parnaba como tambm com o Jornal do Comrcio (GONALVES, 2003, p. 249). Dele temos o artigo Princpios de Teosofia, no qual esclarece que, entre os vrios argumentos da teosofia, a teoria da reencarnao contribui para tornar mais compreensiva a ideia do aperfeioamento progressivo da humanidade. Benedito do Santos Lima tambm publicou um texto de sua autoria nesta edio: Ocaso de uma existncia, que trata da tristeza da velhice no inverno da vida. Esses trs autores ocuparam respectivas cadeiras na Academia Parnaibana de Letras. Dois artigos, embora sem assinatura, so particularmente importantes por darem conta de questes relativas cidade. O primeiro, intitulado Parnaba: influncia da municipalidade na sua evoluo (ALM. DA PARNABA, 1924, p.2), fala do rpido progresso e do grande dinamismo que a cidade vivia nos ltimos dez anos, conquistado pelo esforo exclusivo de seus habitantes e da comuna. Essa febre de melhoramentos, que comeou em 1917, se deu por conta de iniciativas particulares, e marcada pela reforma dos velhos prdios feios, que surgiram como novas construes elegantes e confortveis. So citadas as realizaes do Governo Municipal, sob a administrao dos Senhores Nestor Veras e Cel. Jos Narciso da Rocha Filho, na montagem de usina eltrica, melhoramento e reformulao de praas e prdios pblicos e marcante atuao na rea de instruo pblica (com a criao do Grupo Escolar Miranda 272
Osrio), o saneamento do mercado pblico e a reforma do matadouro. Com isso, com o rpido progresso de Parnaba, estava garantido seu principal lugar entre as demais cidades do Estado. O outro artigo fala da vila de Amarrao (ALM. DA PARNABA, 1924, p.9), distante dezesseis quilmetros de Parnaba, como sendo destinada a um grande futuro. Nele relatado como ela teve seus prdios constantemente soterrados pela areia levada por ventos impetuosos e fortes, at que, em 1911, o deputado federal Dr. Joaquim de Lima Pires Ferreira conseguiu do Governo Federal subsdios para melhorar o porto, ao sustar o movimento das dunas, obra que durou 12 anos. Seria interessante destacar, entre os artigos literrios, aqueles que contm um teor esttico na literatura, como os poemas, pensamentos e curiosidades por sinal, assinados por autores clssicos como Victor Hugo, Henrique IV, Schopenhauer e Alexandre Dumas, ou por escritores locais como Lili Peri, Berilo Neves, Lvio Castelo Branco e R. Petit. A transcrio de tais trechos literrios de autores mundialmente consagrados ao lado de obras de escritores locais revela uma preocupao especial dos diretores do Almanaque, ao imprimirem-lhe um aspecto de erudio internacional e, ao mesmo tempo, torn-los acessveis aos seus leitores. Mais uma vez, o contato com a Europa, atravs do canal do comrcio internacional, se faz significativo e provoca a preocupao dos comerciantes em incrementar a cultura geral sem descuidar das bases educacionais que a esteiam, o que ser assunto para os demais exemplares anuais, conforme ser visto. A publicao de obras de autores locais completa uma ampla informao literria, como tpica meta de todo Almanaque. A fidelidade estrutura de tal tipo de publicao notvel e denota um srio trabalho de pesquisa e a inteno de integrar Parnaba ao panorama internacional, e assim colocar seu status de cidade brasileira entre as que pontuavam o litoral atlntico, e, portanto, mais conhecidas como cultivadas. Atingir o interior do Estado, at mesmo Teresina, mais ligada historicamente ao litoral pernambucano, teria sido uma inteno de estender o nmero de leitores e o que de alcance comercial da prpria empresa editorial assegurar sua sobrevivncia. A comunicao fluvial pelo rio Parnaba foi a artria que transportou produtos, aproveitada como veculo de cultura e de promoo de autores regionais. 273
4.11.3 Fotografias e outras ilustraes As fotografias utilizadas no Almanaque da Parnaba so documentos de importncia histrica, ao gravar lugares e edifcios pblicos. V-se, nessa edio, dez fotos, sendo oito da cidade de Parnaba (sete na horizontal e uma na vertical); e duas de personalidades parnaibanas: um canto do mercado pblico, em frente Vila Jonas, uma das principais artrias da cidade; a Praa Municipal ajardinada; nessa praa, a Igreja da Padroeira Nossa Senhora das Graas; a fachada da Santa Casa da Misericrdia; o Banco e o Hotel dos Viajantes.
Figura 44 Hotel dos Viajantes. Fonte: Almanaque da Parnaba, 1928. Essas fotografias situam um centro de importncia da cidade onde esto os edifcios orientadores da sociedade: o da religio, o dos cuidados da sade do cidado, seu corao financeiro e a demonstrao do acolhimento ao estrangeiro, o Hotel providencialmente intitulado dos viajantes, com dois carros Ford T porta do estabelecimento. Entre as dez fotografias do almanaque, figura a que situa a Mercearia Bembm na Rua Duque da Caxias, uma das principais artrias da cidade, um canto do mercado pblico em frente a Vila Jonas. No faltou a fotografia de cenas relativas ao comrcio de artigos de importao e exportao, como a do 274
embarque de babau no Porto Salgado na Rua Grande, principal ancoradouro da navegao do rio Parnaba, tendo frente a povoao Ilha Grande de Santa Izabel. O passado histrico da cidade se faz presente nas fotos pela escolha das construes icnicas da cidade: a Igreja Nossa Senhora das Graas do sculo XVIII (no frontispcio consta a data 1770); a Santa Casa de Misericrdia, fundada em 1896, e o prdio do Banco do Brasil, de 1917. Essas construes consagram no somente o seu passado histrico, mas condizem com a modernidade que lhes foi atribuda por ocasio das reformas citadas nos artigos sobre as realizaes estticas das primeiras dcadas do sculo. sintomtica a publicao das fotos de Bembm e do guarda-livros da Mercearia, Godofredo Correia Lima. Elas inauguram o destaque que o Almanaque da Parnaba pretendia dar s personagens motoras do comrcio da cidade, como se pode ver nos exemplares dos anos consecutivos. A publicidade de produtos do comrcio faz referncia, por meio de desenhos, ao vinho de mesa Alvaralho, e da aguardente de cana Benedictina, ambos carros-chefes da Mercearia Bembm. Eram produtos conferidos como prmio aos charadistas vencedores. 4.11.4 Calendrio e informaes referentes Uma das caractersticas de um almanaque e o que justifica esse tipo de publicao o conjunto de informaes repartidas pelos dias do ano, fases lunares e estaes, com suas aplicaes na vida prtica. So atraentes tambm os comentrios sobre os signos do zodaco, datas comemorativas religiosas (com os dias dedicados aos santos) e civis. Por exemplo, consta no calendrio de 1924 a ocorrncia de cinco eclipses. Na primeira edio, a ttulo de apresentao, existe um traado, como que um retrato do Piau com sua capital, extenso territorial, populao, principais produes, indstrias, cidades e vilas. Informaes prticas no faltam, como as que se referem aos servios do correio (preo da selagem de cartas, de encomendas, vales postais), informaes sobre taxas de imposto vigentes, as federais, as de consumo e respectivos selos ou estampilhas. 4.11.5 Lazer 275
Entreter, distrair, propor desafios, vencer charadas, adivinhaes etc. Segundo Meyer (2001, p. 129), o lazer no almanaque o jogo, o passatempo, prover momentos de distrao como as piadas de salo de diferentes saberes/sabores, provrbios. O primeiro nmero do almanaque prope vinte e um itens nesta seo, entre enigmas figurados, metagramas, mefistoflicas, casal, charadas por letra, por acrstico. O prprio Bembm fez a ilustrao de umas delas; as outras so de Mutt e Henock. possvel pensar que j existia na cidade um grupo de pessoas dedicadas a essa atividade inventar e decifrar charadas afinal, essa era uma atividade que requeria uma iniciao, conhecimentos especficos, dependncia de dicionrios. Certamente, Bembm no abriria espao em seu Almanaque se j no encontrasse entre seu pblico leitor uma turma capacitada para participar da atividade, ajudando inclusive na sua criao. Nota-se, desde essa primeira edio, que ele conta com um bom nmero de colaboradores, entre esses K. Sullo, Mutt, Calouro, Asusac Ptop, F. Serrano. Cada um deles adotou um apelido que seria mantido por muitos anos. Bembm ofereceu prmios aos charadistas vencedores. Na pgina 44 est anunciado que a MERCEARIA BEMBM resolveu atribuir trs prmios para os primeiros vencedores, isto , aos que apresentassem maior quantidade de solues at o dia 28 de fevereiro. Os prmios constavam do seguinte: primeiro lugar: 12 garrafas do afamado Alvaralho; segundo lugar: 12 garrafas de cerveja Fidalga; terceiro lugar: 12 garrafas da deliciosa Benedicta. Todos os prmios seriam entregues no primeiro domingo depois do dia da entrega das solues, na Mercearia BEMBM. Conclui-se que o primeiro nmero do Almanaque, datado de 1924, anuncia, por sua fidelidade ao tipo de edio j existente na Europa e no Sudeste do Brasil, um perfil que ser mantido, em linhas gerais, nos subsequentes nmeros da dcada. A versatilidade do Almanaque, observa-se, reside na conjuno de ideias e posturas, tais como: valorizar os aspectos histricos da cidade, suas atividades comerciais, o que d ateno novidade do produto, proporcionar pginas de lazer, de cultura, de informaes teis, seja ao citadino ou ao sertanejo (embora na populao desse tipo poucos seriam os alfabetizados). O encanto do almanaque incitaria a leitura e consulta, talvez como acontece com a literatura de cordel, ao dar ao consumidor a possibilidade de se situar diante das demandas de seu tempo, 276
apreciar as novidades, inteirar-se dos modos de vida e dos interesses de outras classes, na tentativa de promover uma integrao de domnios rurais e urbanos, transitando entre classes sociais, exercendo a aproximao efetiva de repertrios. Segundo Ferreira (2001, p. 20), o almanaque comporta e traz sempre a ideia de modernidade. No caso do Brasil, pode-se mesmo falar no aspecto civilizador dos almanaques, ao alcanar os mais distantes sertes, os povoados mais afastados, e aproximar cidades em uma integrao. 4.11.6 O ano de 1925 O Almanaque da Parnaba para 1925 traz na sua capa uma fotografia da fachada da Mercearia Bembm, na esquina da Rua Duque de Caxias, com um grupo de pessoas sua porta, e a frase: Lembrana da Mercearia Bembm. Abaixo, o preo de 1$00. A edio foi feita na Tipografia Renascena, Fortaleza, Cear, de A. Prado & Cia. O nmero de pginas passou de 44 para 72, com a incorporao de novos colaboradores. Nesta edio temos sete artigos. Para este estudo, dois deles interessam comentar. O primeiro, intitulado O retrato, transcrito de um artigo publicado por L. F. C. no Jornal Correio do Piau, de Teresina, festeja o aniversrio natalcio de James Frederick Clark. Constam detalhes biogrficos: foi contratado aos quatorze anos, em sua terra natal, Inglaterra, em 3 de setembro de 1869, para vir, como aprendiz, incorporar-se Casa Inglesa de Parnaba. So citados seus filhos. A publicao desse artigo inaugura uma srie de outros que vai caracterizar o Almanaque da Parnaba: homenagear pessoas da cidade ressaltando com prolferos adjetivos seu valor moral e intelectual. O outro artigo, intitulado Retalhos, assinado por Joo do Matto. O autor menciona que cedeu ao gentil e insistente pedido de Benedicto dos Santos Lima. Refere-se ao crescimento e evoluo da cidade de Parnaba durante os cinco anos da primeira Grande Guerra, mas muito aqum de seus merecimentos e de suas necessidades. Ressalta que a estrada de ferro que a serve foi conseguida em grande parte pelo esforo de seus ilustres cidados. O artigo tem um teor bastante crtico e tendencioso quando menciona que o Porto de Amarrao, o canal de So Jos, a navegao fluvial, o transporte por Tutoia obras iniciadas por Joaquim 277
Pires reduziram-se fonte de afilhadagens e patotas, por onde escoam, sem nenhum proveito, centenas de contos dos cofres pblicos. Apesar de tudo, acrescenta o autor, os parnaibanos devem aproveitar o governo que se inicia, do Dr. Mathias Olmpio de Mello, para que lhes seja dado o que lhes de direito. Abre-se, com este artigo, um espao oportuno para trazer baila uma poltica de defesa da cidade e da atuao de personagens atuantes. Ainda nesse diapaso, figuram trs fotografias: a da professora D. Nair Pinheiro Castelo Branco, com seus alunos; e a de James Frederick Clark, seguida da foto da arquibancada do Internacional Athletic Club com a seguinte legenda: convm notar que o enorme campo de esporte deste clube talvez o melhor do norte do Brasil clube, alis, fundado por Frederick Clark. A seo que mais contribuiu para o acrscimo de pginas da edio do Almanaque 1925, de 22 a 39 pginas, foi a dedicada a poemas, pensamentos e curiosidades: cinco sonetos de Rodrigues Pinage sob o ttulo Vogais sem valor; o dedicado Mulher e Vontade, de Odilon Jackson Collares. Foi acrescentada uma boa quantidade de pensamentos ou ditos populares ao todo setenta , alguns com a assinatura de seu autor, colocada ao p de pgina, ornada com uma borda em estilo Art Dco. Eis alguns aqui transcritos como exemplos: Para o mal de costado bom abrolho; Mais quero asno que me leve do que cavalo que me derrube; Deus d as nozes mas no as partes; Melhor fumo na minha casa do que na alheia; Mais vale quem Deus ajuda de que quem cedo madruga; Em casa de letrados nunca faltam as letras; No h manjar que no enfastie, nem vcio que no enfade; A quem Deus promete um vintm no falta; A gua tudo lava, menos a lngua do falador; Se a rico queres chegar, vai devagar; Cavalo grande, besta de pau; A magra baila na boda, e no a gorda; A esperana o nico bem real da vida (Olavo Bilac); O dever o princpio dos princpios (Farias Brito); Na vida tudo se olvida; s as impresses do passado ainda so retidas na memria por algum tempo (Clovis Prado). 278
O nmero de anunciantes trinta e nove no mudou, mas o tamanho de muitos anncios aumentou, ocupando meia pgina ou pgina inteira. acrescentada, porm, uma Relao das Casas Comerciais da Parnaba, com sessenta e trs nomes, indicando o nome da firma, o endereo telegrfico e o ramo de negcio. Essa relao d uma boa ideia das atividades comerciais da cidade e dos comerciantes locais, alm de inaugurar uma seo do Almanaque da Parnaba, constante nos futuros exemplares anuais, onde se observa um crescimento constante do nmero de participantes. Por sinal, na ltima edio por ns analisada (1949), chegara a duzentos e quatro anunciantes e trezentos e cinquenta e cinco casas comerciais. tambm uma inovao a publicao de estatsticas: a arrecadao da Alfndega de Parnaba no primeiro semestre de 1924; a exportao da Praa de Parnaba, com destino aos portos nacionais e com destino aos portos da Europa e dos estados Unidos, durante o primeiro semestre de 1924, pela baa do Cajueiro; o Correio informa o valor dos vales nacionais, da porteao e um quadro demonstrativo do movimento de malas e registrados expedidos e recebidos pela agncia de segunda classe dos Correios de Parnaba, no primeiro semestre de 1924; o Telgrafo Nacional de Parnaba, alm de informar o pessoal da estao, informa o movimento da Estao no primeiro semestre de 1924. Outra estatstica publicada a do movimento de embarcaes nos portos de Tutoia e Amarrao no primeiro semestre de 1924; por fim, informa sobre o Imposto do selo e que papis so sujeitos ao selo provisrio. Divulgar estatsticas e tabelas eram peculiaridades de almanaques portugueses e brasileiros. O Almanaque portugus de Lembrana, para 1851, publica uma tabela de incndios; o Almanaque da Provncia de So Paulo administrativo, comercial e industrial, para 1888, publica a Populao Escrava matriculada na Provncia de So Paulo; o Almanaque Popular Brasileiro, para 1895, publica tabela do Lloyd Brasileiro com sua relao de navios e suas escalas nos portos; e o Almanaque Indicador, para 1902, publica resumo da tabela de enterros. Importa apontar que as estatsticas e tabelas publicadas no Almanaque da Parnaba, claramente dirigidas a um grupo especfico de leitores os comerciantes da cidade e os exportadores , so dados significativos da cidade e seu desenvolvimento econmico. 279
No houve alterao no nmero de charadas e enigmas. H, ainda, quatro desenhos mo livre feitos por Mutt e Bs. Conclui-se que j o segundo nmero do Almanaque da Parnaba mostra sinais de seu sucesso, seja pelo aumento de nmero de pginas, seja pela ampliao de sees e de interesses. 4.11.7 O ano de 1926 O Almanaque da Parnaba de 1926, com sessenta e cinco pginas, foi impresso em Belm, no Par, pelos Livreiros Editores, proprietrios da Livraria Clssica e Livraria do Povo. Na capa constam: o ano, o nome da publicao, nome do editor e da editora, impressos em letras vermelhas, emoldurados por cercadura Art Dco geomtrica em azul. Na parte inferior v-se a logomarca de editora um galo sobre pilha de livros. Todos os textos dessa edio foram emoldurados por uma grande variedade de cercaduras Art Dco, florais e geomtricas, das mais simples s mais elaboradas. O preo no aparece na capa. A nova apresentao pode ser atribuda editora encarregada da publicao. So dezessete artigos, alguns sem autoria. A maioria versa sobre Parnaba. O artigo intitulado Parnaba, sem assinatura, registra o desenvolvimento da cidade. No que tange iniciativa particular, ressaltada a construo de modernos palacetes, que do graa cidade. O aspecto geral foi melhorado com a ao governamental. As ruas foram niveladas para melhorar o trnsito dos veculos; um sistema de latas de lixo hermeticamente fechadas, a criao de posto de profilaxia (parte da misso Rockfeller) para o combate ao impaludismo, verminose, febre amarela e sfilis atesta a preocupao de promover a higiene pblica. citada a construo do farol da Pedra do Sal, que comeou a funcionar em 4 de maro de 1873, construdo pelo engenheiro Newton Csar Burlamaqui. A formao rochosa denominada Sete Cidades, localizada no municpio de Piripiri (PI), descrita segundo investigaes realizadas em 1887 pela solicitao do IHGB. Nas primeiras pginas desta seo, os leitores so informados da deliberao do Almanaque de honrar suas edies anuais, com a publicao de biografias de parnaibanos ilustres, como a do Cel. Jonas de Moraes Correia, com um discurso de Jonas da Silva em sua memria, em que so enaltecidos o seu patriotismo e sua 280
atuao como administrador e como poltico no desenvolvimento dos meios de comunicao e transporte no Piau. Uma pgina de luto dedicada ao falecimento do Dr. Fenelon Ferreira Castello Branco, secretrio de Polcia do governo Miguel Rosa, na cidade de Unio. Foi escolhido um artigo do abolicionista Joaquim Nabuco, escrito em 1907, quando era embaixador nos Estados Unidos da Amrica. Benedicto Santos Lima (Bembm) assina a autoria de um artigo. Uma seo de cinco artigos de pequenas histrias bem-humoradas d relevo de Licnio, possvel imperador romano. Das oito fotografias publicadas, duas so retratos: do Cel. Jonas de Moraes Correia e de Fenelon Ferreira Castello Branco. As outras so do palacete onde funciona o Cine Teatro den e da sede do Parnaba Sport Clube, clube de futebol fundado por Zeca Correia, em 1913. Trs delas inauguram uma srie dedicada ao Almanaque, agrupadas sob o ttulo Parnaba Moderna. Testemunham o teor esttico da cidade, focando a Rua Grande, construda com todos os requisitos de higiene, conforto e modernismo; a residncia do Cel. Jonas de Moraes Correia e o palacete do Dr. Samuel Santos. O Almanaque dedica espao para prestar homenagem aos comerciantes bem-sucedidos que aplicam sua ateno e meios financeiros para melhorar sua cidade. A seo de literatura continua assistida, contando com a contribuio de nomes como R. Petit, Armando Madeira, Humberto de Campos, Pereira de Assuno, Lvio Castelo Branco, Leli Peri, Benu da Cunha e Baltazar Mavignier, entre outros. Pensamentos, ditos populares e provrbios ornam praticamente quase todo o p das pginas (ao todo sessenta e quatro); preenchem aquela funo do Almanaque: distrair e refletir. O nmero de anunciantes permanece o mesmo de 1925, o que no aconteceu com as charadas, que diminuram, s com seis charadistas participando. S foi publicada uma estatstica: a renda da Estao telegrfica de Parnaba. Mas esse exemplar vem acompanhado de uma pgina avulsa, que mede 30 x 37 cm, com o mapa agroalgodoeiro do Estado do Piau, na escala 1:1500, organizado pela Delegacia do Piau. 4.11.8 O ano de 1927 281
O estilo da capa do Almanaque deste ano, editado em Belm do Par, segue o do ano anterior. So tambm adornadas com cercaduras geomtricas Art Dco variveis as suas setenta pginas. No editorial, Bembm agradece, em nome da Mercearia Bembm, a benvola acolhida das avultadas edies. So sete os artigos publicados nessa edio, sendo um de conto de arraial e outro assinado Prufiro. Os outros cinco, escritos por parnaibanos, falam sobre a Parnaba e suas personalidades. Entre estes, um autor (annimo), o do artigo intitulado A inundao, menciona a sabedoria do caboclo para prever invernos rigorosos com as enchentes assoladoras do manso rio Igarau. Para se ter ideia da atuao do Almanaque da Parnaba, outro artigo, assinado por Fenelon Castello, faz homenagem ao poeta parnaibano Jonas da Silva e ao seu discurso elogioso sobre seu patrono Jonas de Moraes Correia, lido por ocasio da posse de sua cadeira na sesso da Academia Piauiense de Letras. Jonas da Silva, nascido em Manaus, vivendo em Parnaba desde sua adolescncia, ocupou lugar de destaque com suas obras. Em 1900, surge seu primeiro livro de versos, nforas; em 1902, o segundo, Ulanos, e vinte anos depois publica uma nova coleo de sonetos, Czardas. Do livro de Edison Cunha, Episdios do Serto Alto Negcio, publicado em dezembro de 1924, foi extrado um episdio chistoso sobre a deturpao que um telegrafista do serto imprimiu a uma importante mensagem comercial. O trecho de uma conferncia de Joo Vieira Pinto, versando sobre O Municpio de Amarrao, diz respeito riqueza da indstria salineira do municpio e da falta que faz a construo do Porto de Amarrao, obra ainda em projeto, apesar de ter sido decretada pelo presidente Epitcio Pessoa em 1922. Termina com notas pessimistas sobre a vila, seu comrcio e o desnimo da sua populao. Acompanha o artigo um desenho da planta da barra e projeto de melhoramento do Porto de Amarrao, em escala 1: 60.000, assinado pelo ex-auxiliar tcnico G. Mazullo. So cinco as fotografias deste nmero do Almanaque: a de Jonas da Silva (acompanha o texto sobre ele); a do mdico Joo Maria Marques Bastos; e a de So Bernardo. Significativa a foto da slida residncia de James Frederick Clark, reconstruda em 1920, sobre o seu estabelecimento comercial. Por ltimo, temos a fotografia de um filhote de Zebu, um dos reprodutores puro-sangue, do rebanho da Ilha do Caju dos Clark, na Foz do Parnaba. A seo de poemas manteve-se, 282
enquanto a de charadas e enigmas, bem como as frases de p de pgina foram bastante reduzidas. Na ltima pgina dessa edio, os editores informam que deixaram de dar as solues do almanaque de 1924 e 1925, devido falta de ordem nas numeraes, por parte das tipografias impressoras, mas que os primeiros prmios couberam aos senhores Francisco Aires, mecnico industrial, e Joaquim Arajo, com respectivos pseudnimos: Serrrano e Jota. E incentivam: Eia! Avante Charadistas! Inscrevam-se. Nenhuma estatstica foi publicada. Mas h muitas pginas com informativos: a distncia em milhas entre o Porto do Rio de Janeiro e diferentes portos do Brasil; as mais altas montanhas, as maiores profundidades dos oceanos e o maior rio do mundo; o movimento da Estao Telegrfica de Parnaba no primeiro semestre de 1926 e o horrio dos trens da Estao de Ferro Central do Piau. Um detalhe: informao sobre a importao de artigos vindos de principais praas do Pas e do estrangeiro. O nmero de anunciantes no sofreu muita alterao, mas os anncios tornaram-se maiores, muitos ocupando a pgina inteira. Aparecem slogans como Pequenos lucros para grandes vendas. A Farmcia Vitria anuncia prestar servios depois da hora de seu encerramento, s oito horas da noite, bastando dirigir-se residncia de seu proprietrio, Sr. Luiz Brando seria atendida com muito prazer e presteza qualquer pessoa, sem distino de classe. 4.11.9 O ano de 1928 A primeira observao o notvel aumento do nmero de pginas (de setenta, na mdia anterior, a cento e vinte e oito), de artigos polticos e sociais, de poemas, pensamentos e curiosidades, e da seo de charadas. Os artigos tratam de assuntos variados, desde os polticos, os informativos e os de carter. Entre os artigos polticos, d-se relevo ao que tem como objetivo animar a luta pelo Porto de Amarrao, iniciada em 1912, por dedicao do deputado Joaquim de Lima Pires Ferreira, junto ao governo de Hermes da Fonseca. Em 1922, o deputado Armando Cezar Burlamaqui conseguiu que se decretasse a continuidade dos melhoramentos, o que no aconteceu. Os trabalhos que apenas tiveram a meta de fixar as dunas invasoras foram sustados por Artur Bernardes, o que ocasionou a 283
quase extino do comrcio da vila, alm do abandono e desabamento do farol. Para uma cidade eminentemente porturia, a luta acima, to importante para o desenvolvimento do comrcio de todo o Estado, indica como foram cruciais as atividades de seus cidados e a pouca assistncia dos governos federais. Nesse diapaso, o Almanaque homenageia Henock Guimares (1868-1925), que, alm de ser um dos eminentes comerciantes, foi membro da Maonaria Parnaibana, vice-intendente municipal e colaborador de inmeros jornais e revistas. Dois artigos do parnaibano Torres Raposo merecem lugar entre os assuntos polticos: Nos domnios de Plutus e Jeca-guia. O primeiro nos informa sobre o clima socioeconmico, eivado de observaes morais pela crtica cida sociedade impertinente e profana, dominada por Plutus, deus da riqueza da mitologia grega, cuja fora submete os homens. Esse Deus do ouro para quem time is money seria o incentivador da febre de luxo e ostentao; quando honra, dignidade e at a arte so imoladas ao seu altar. Seu culto disfara a misria e as baixezas, podrides de toda sorte. No segundo artigo, Jeca-guia, Torres Raposo apresenta dois personagens, Jeca-Tatu e Jeca-guia, separados por condies econmicas distintas, pela cultura e posio social, igualmente marcados pelo alheamento poltico. A passagem pela cidade do prncipe d. Pedro Alcntara Luiz Filipe dOrleans e Bragana e de sua esposa e filha, as princesas dona Maria Elizabeth Adelaide e dona Isabel Maria Amlia Luiza Vitria Tereza Joana, e as homenagens recebidas da populao, nos dias 19 e 20 de junho de 1927, foram documentadas por Torres Raposo no seu artigo Uma visita que honra. O clima social, poca, revela a influncia que os parnaibanos vinham recebendo da Europa e as reaes que se sucediam. Um artigo assinado por um autor indignado, Fran-cicco, registra os novos comportamentos femininos: a nova moda, o uso de maquiagem e os cortes de cabelo masculinos. No falta, para coroar, uma homenagem famlia Magalhes, saudando O primeiro dente do pequeno Valentim, o Tim-tim. De carter informativo so os artigos que tratam do Terremoto de Lisboa (de Oliveira Martins), ocorrido entre 1755 e 1760, e da ao enrgica do marqus de Pombal em Preo das feras, sobre o preo pago pelos jardins zoolgicos da Europa pelos animais, em leilo. Os demais tm claramente o intuito de distrair e 284
divertir o leitor, como As seis ordens do casamento, que conta como as pessoas que se casam entram, ao mesmo tempo, em seis ordens religiosas; o conto gregoriano em que o rei Fonez recebeu trs qualidades do vizir Sedrack; As vozes dos animais, no qual so transcritas por Cndido de Figueiredo, em um de seus livros, umas quadrinhas de Pedro Diniz, poeta portugus no sculo XIX. Uma pergunta aos astrnomos: so os mundos planetrios infinitos? O autor que se assina M.C. focaliza as estrelas, centro de outros sistemas planetrios. Alguns teriam carter educativo com toques morais, como Ama teu inimigo, de Mansueto, em que so sugeridos dez conselhos de como amar seu inimigo; e o Declogo higinico, onde so expostos cartazes das paredes do Dispensrio Antituberculoso de Saragoa. J Lvio Castelo Branco fala da humildade como a mais sublime das virtudes; e Octaviano de Carvalho discorre sobre as razes do amor por uma mulher. Um texto prima por seu carter regional, como o de autoria de Edson Cunha, membro da Academia Piauiense de Letras. Intitulado Episdios do Serto; narra a histria do Capito Antnio Francisco Wanderley, velho fazendeiro que protegeu seus trs jovens filhos das perversidades do balaios despachando-os, durante o vendaval da guerra, para Ipu no Cear. Ao morrer, o Capito dirigiu uma carta ao vigrio de Barras, na qual narra sua histria. Mas o que d um sabor especial ao artigo a carta escrita por seu filho ao referido vigrio, citando o ltimo desejo de seu pai, qual seja: que fosse enterrado na igreja dessa localidade em um bilhete escrito em pssimo portugus. As fotografias foram especialmente numerosas neste Almanaque, acompanhadas de legendas detalhadas. Uma das mudanas mais significativas dessa edio o nmero de fotografias publicadas. Passaram de uma mdia de sete para trinta fotos, e no mais h nenhum desenho. As fotos esto acompanhadas de textos explicativos mais detalhados. Em vez de desenhos, como nas edies anteriores, foi publicada a partitura musical do maxixe Alvaralho, guisa de publicidade sonora do vinho de mesa vendido, com exclusividade, pela Mercearia Bembm. Outra categoria que mudou bastante foram as notas de p de pgina. Entre estas, os ditos e provrbios foram em parte (treze delas) substitudos por propagandas de produtos vendidos na B. S. Lima & Ca: 285
Tomem Benedictina, no tem sais de cobre. So vendedores B.S.LIMA & CA. Fumem charutos de SUERDIECK & CA exclusividades B.S. LIMA & CA. Prefiram o excelente vinho de mesa ALVARALHO de B.S.LIMA & CA. O nmero de anunciantes dobrou (da mdia de trinta para sessenta e oito), prova incontestvel do grande sucesso do Almanaque, apreciado pelos comerciantes que julgaram ser um bom veculo para a propaganda de seus estabelecimentos. No s o nmero de anunciantes aumenta, como tambm as praas mencionadas Rio de Janeiro, So Paulo, Recife, Par, New York e outras. O sucesso do Almanaque da Parnaba parece ter sido alcanado pelo apoio prestado pelos anunciantes, ou seja, pelos comerciantes importadores e exportadores da cidade. Tal adeso a esse tipo de publicao, que tem amplo alcance, revela a considerao pelos respectivos empresrios da publicao, como um baluarte de defesa de seus interesses mais imediatos, atrelados ao desenvolvimento global da cidade. Por reflexo, a atuao poltica do Almanaque, alm de atingir produtores e extrativistas do interior, quer chegar aos empresrios da capital Teresina e, certamente, aos rgos polticos estatais. 4.11.10 O ano de 1929 Percebe-se, logo de incio, que o volume de pginas do Almanaque da Parnaba se acentua. Nas cento e sessenta e nove pginas, tm-se vinte e seis artigos, alm de outras sees que se estabilizam, confirmando sua estrutura internacional. A pgina de capa procura dar a esta edio seu carter regional, com a fotografia de um panorama impressionante de grande carnaubal. D-se ateno especial ao teor dos artigos, pelas informaes histricas que estes fornecem. Ao homenagear personagens de relevo da cidade, dois artigos apelam para a importncia dada aos aspectos culturais e s atividades comerciais, como foras motrizes do progresso da cidade. Lvio Castello Branco, poeta e cronista falecido em fevereiro de 1928, foi o chefe da contabilidade da Casa Inglesa, e o Coronel da Guarda, Cndido Assuno, guarda-livros e participante do escritrio de comisses e consignaes de renome na cidade. Sob o ttulo Instruo Pblica em Parnaba, existem informaes acerca dos aspectos poltico-governamentais nessa rea, acentuando as atividades do 286
municpio na instalao de escolas. Prdio, material escolar e didtico, funcionrios encarregados da conservao e limpeza escolares: tudo foi custeado pela municipalidade, assim como a contratao de um professor paulista Luiz Galhanone para reorganizar o ensino. O artigo ressalta que o Estado no auxilia o municpio em nenhum servio pblico, limitando-se a pagar os vencimentos de metade das professoras. A cidade contava com um Ginsio e com a Escola Normal da Parnaba, ambos funcionando no mesmo edifcio. A Igreja contribua para o desenvolvimento das Letras, com a biblioteca do Centro Catlico de Parnaba, pelo vigrio padre Roberto Lopes, sem descurar do aspecto ldico da iniciativa com uma seo de bilhar adjacente. Notcias sobre o jornalismo, no artigo A Imprensa Parnaibana, so dadas pelo autor Joel de Oliveira, ao esclarecer o compromisso particular que assume com o Almanaque da Parnaba. Cita a data do primeiro jornal publicado no Piau O Eco da Parnaba, de 25 de fevereiro de 1863 e faz meno a oitenta e dois jornais publicados at 1924. Sempre prestando destaque iniciativa de cidados parnaibanos, o artigo A Santa Casa da Misericrdia de Parnaba trata da sua fundao, em 10 de abril de 1890, pelo Dr. Manuel Fernandes de S Antunes, com o apoio unnime das principais figuras parnaibanas e da classe mdica local. A construo do Porto de Amarrao est sempre em foco, especialmente pelo apelo emocionado de Joo Vieira Pinto no seu artigo O Porto de Amarrao. Os aspectos econmico-financeiros que envolvem a cera de Carnaba so indicados por Celso Nunes, autor do artigo A cera de Carnaba. Esse produto, segundo ele, fator preponderante da canalizao de dinheiro estrangeiro para a economia do Estado, foi alvo de srdidas especulaes de preos do estrangeiro, quando compradores de carnaba de New York se organizaram em um trust para comprar a cera por uma casa s, evitando assim a concorrncia. Indica a falta de proteo de nosso governo nossa maior riqueza, lamentando pelo pobre Nordeste, abandonado pelo Governo Federal, que s beneficia o Sul do Pas. Acrescenta, ao final do artigo, uma tabela da exportao da cera pelo Porto de Parnaba via Tutoia. A defesa do Nordeste tambm tomada por Jos Euclides em seu artigo Em Prol do Bloco Norte, ao criticar a tendncia do Governo Federal a submeter-se aos 287
interesses dos polticos do Sul do Pas, causando a desmoralizao dos Estados do Norte no conserto federativo pela falta de solidariedade dos Estados da Unio. Conclama os homens pblicos do Norte a refletir sobre essas contingncias, e a cortar as curvas, como diz, lanadas pelos homens do Sul para atrasar e perturbar o avano do Norte. No falta uma meno atividade dos cangaceiros de Lampio, ao tentarem assenhorear-se da capital do Estado da Paraba, em artigo enviado pelo Professor Wildebrando Leal, piauiense radicado na no mencionado Estado. Os demais artigos fornecem detalhes significativos da vida social da cidade, ao abordar temas romnticos, tais como: Romantismo, O Orgulho, Triste Eplogo, e o que aborda uma personagem conhecida na cidade, com seus cem anos ou mais no artigo J viver. Mesmo em estilo leve e divertido, Edison Cunha, advogado e professor, apresenta um quadro dessas duas profisses no seu artigo Vida Aperreada. Artigos jocosos, que envolvem personagens populares e fatos folclricos, no deixam de retratar a vida social de Parnaba, conforme denotam os ttulos dos artigos: Por causa de um boto, Questo entre santos, Episdios do serto, gente simples, O Cajazeira e Convico Manica. Em As observaes do matuto, Alarico da Cunha, sob pretexto de relatar o espanto e a admirao de rapaz de uma fazendola do Interior, apresenta a vida e os costumes da cidade. ALMANAQUE DA PARNABA 1924 1925 1926 1927 1928 1929 TOTAL NMERO DE PGINAS 44 72 65 70 128 169 548 ARTIGOS 12 5 17 7 20 26 87 FOTOGRAFIAS / DESENHOS 14 6 8 6 28 45 107 POESIAS/PENSAMENTOS/CURIOSIDADES 24 41 17 24 44 21 171 PENSAMENTO DE P DE PGINA - 59 61 13 13 - 146 INFORMATIVOS 19 12 2 11 11 14 69 ANUNCIANTES 39 39 31 34 68 85 296 FIRMAS COMERCIAIS - - 76 82 85 - CHARADAS / ENIGMAS 20 18 13 9 61 61 182 ESTATSTICAS / DADOS 1 4 1 0 2 5 12 RESENHA DE CIDADE - - - - 1 1 288
Figura 45 Quadro do Resumo Geral do perfil das edies de 1924 a 1929 do Almanaque da Parnaba. Fonte: Almanaque da Parnaba (1929).
O comrcio de Parnaba se faz presente no s pela publicidade clssica, mas por um artigo, o Sapataria Moderna, sobre a casa comercial da firma Neves & Cia. Este, escrito por ocasio da visita do Almanaque, menciona o nmero e qualificao dos funcionrios e os materiais importados para a fabricao de modelos chiques. Esse perfil da edio de 1929 do Almanaque da Parnaba indica, pelos artigos acima selecionados, o teor histrico das informaes que ele veicula, bem mais do que possam alcanar em termos de cultura geral para seus leitores.
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CONCLUSO
A histria do comrcio e dos comerciantes da cidade de Parnaba est vinculada aos aspectos econmicos de todo o Piau, territrio voltado, a princpio, para a pecuria extensiva. Quando a atividade pastoril desenvolvida no interior da Provncia comeou a se expandir e alcanar novas terras para o pasto, o escoamento das reses pelos caminhos terrestres tradicionais comeou a ficar distante e oneroso. O transporte pelo rio Parnaba foi uma opo diramos natural. A chegada das reses na foz do rio desencadeou um intenso movimento porturio na Vila de So Joo da Parnaba, o que levou ao estabelecimento dos primeiros comerciantes estrangeiros. As vantagens econmicas advindas da comercializao da produo ligada criao de gado, como o charque, os couros e as peles demandou uma abertura martima eficiente para os outros portos do Brasil, mas tambm e, sobretudo para outros portos do mundo. O sucesso dos primeiros comerciantes estrangeiros, os charqueadores, marcou e distinguiu a Vila de So Joo da Parnaba face s demais vilas da Provncia do Piau. A vocao comercial da vila imprimiu um traado urbano prprio marcado pelos casares dos comerciantes prsperos, as igrejas e as edificaes ligadas estrutura porturia. Com o do declnio da atividade charqueadora, o movimento comercial foi dinamizado pela chegada de novos comerciantes estrangeiros, ingleses e franceses, atrados pela comercializao de produtos oriundos da agricultura. A chegada dos novos produtos ao mercado nacional e internacional proporcionou a oportunidade de um maior incremento para a economia de Parnaba. Para acompanhar a poltica nacional e consolidar a posio do Brasil como um pas exportador de matria prima, os polticos do Piau buscaram realizar mudanas estruturais condizentes com as expectativas de desenvolvimento e progresso. Para viabilizar a integrao poltica e econmica os governos precisaram superar obstculos que colocavam o Piau numa situao de atraso e pobreza. A estrutura poltica do Piau colonial com uma capital Oeiras apoiada pela Igreja para assistir espiritualmente, mais do que economicamente s fazendas de gado esparsas ficou inoperante diante do comrcio que se desenvolvia. A necessidade de mudar a capital para local mais apropriado para atender o comrcio dinamizado pela economia nacional e pelas economias europias desencadeou lutas polticas lideradas pelos comerciantes de Parnaba. Essas lutas tambm estavam relacionadas a necessidade de melhorar a ineficiente infra estrutura de comunicao e transporte. Era necessrio melhorar as condies de escoamento das mercadorias nos portos localizados no delta do rio Parnaba. Uns eram 290
situados em terras piauienses e outro, maranhense, o que levantava problemas poltico- econmicos. Os comerciantes de Parnaba recebiam mercadorias oriundas do interior do Piau, mas eram constrangidos a pagar taxas de trnsito para a Provncia do Maranho, quando o porto de embarque martimo era maranhense. Essas circunstncias e principalmente o fato do porto piauiense ser mal aparelhado causava prejuzos maiores. A insistente demanda para a construo de um porto martimo altura do volume de comrcio de Parnaba encontrava barreiras financeiras girando em torno de um crculo vicioso. Desfalcado de verbas pblicas, devido ao desvio de mercadorias para embarque pelo Maranho, o governo da provncia apelava para o governo imperial, que no correspondia s necessidades deles. Alm da demanda pela construo de um porto eficiente, cobrada pelos comerciantes, havia a premncia da manuteno constante das condies de navegabilidade do rio Parnaba, perturbado por diversos problemas, inclusive pelo desmatamento de suas margens. Apesar das dificuldades, a navegao do Parnaba modernizou-se, principalmente com o incio da navegao a vapor. Utilizando esta precria estrutura de transporte Parnaba crescia como porto exportador ligado ao comrcio exterior. Nas primeiras dcadas do sculo XX, atravs de Parnaba, o Piau se integrou dinmica do capitalismo internacional, exportando algodo, borracha de manioba, cera de carnaba e coco babau, alm dos tradicionais produtos de sua pauta de exportao: couros e peles. Esses produtos, oriundos da agricultura e da atividade extrativa, eram requisitados no mercado internacional tanto para a indstria europeia quanto para a americana. As atividades comerciais exportadoras propiciaram a cidade de Parnaba se tornar a capital econmica do Piau. Essa posio s foi possvel pela atuao dos comerciantes locais e das casas comerciais estrangeiras a Casa Inglesa e a Casa Marc Jacob. Elas foram essenciais no processo de articulao da economia piauiense ao mercado nacional, notadamente a economia do Cear e do Maranho, e ao mercado internacional. A atuao dos comerciantes estrangeiros a partir do sculo XVIII teve reflexos importantes no s sobre a economia, mas sobre a vida social e cultural da cidade de Parnaba. No que se refere aos melhoramentos da cidade os comerciantes parnaibanos no esperavam a ao e o auxlio do governo estadual ou federal para realizar as obras mais significativas. De esprito independente e assumindo uma postura de autonomia antecipavam-se quase sempre a eles. Por intermdio da Associao Comercial de Parnaba, promoveram vrias campanhas em prol do porto de Amarrao e ofereceram apoio privado construo da ferrovia. Foram responsveis por melhoramentos estruturantes, a exemplo da construo do canal de So Jos. Sentindo-se capazes de 291
promover o desenvolvimento de sua cidade, em nome do interesse coletivo, tomaram uma srie de medidas nesse sentido dedicando-se modernizao do espao urbano de Parnaba e investindo em educao, em esporte e em sade. Contaram tambm com figuras expressivas e atuantes como Madeira Campos e Lima Rebelo, sempre enfticos e incansveis na defesa dos interesses parnaibanos e preocupados em cumprir seu dever social. O sucesso das atividades intensas e profcuas dos comerciantes de Parnaba marcou a arquitetura da cidade. O gosto pelas artes de tipo europeu impregnou e influenciou as outras localizadas pelas margens do rio Parnaba principalmente a capital Teresina. Aps um perodo de intensa movimentao comercial tendo como motor os produtos do extrativismo vegetal, a atividade arrefeceu como conseqncia das transformaes do comrcio nacional e internacional. As lutas polticas travadas pelos comerciantes para a construo do porto martimo em Amarrao, embora bem fundadas e ativas no surtiram o efeito desejado e necessrio as atividades de exportao. A ferrovia, nova alternativa de transporte, foi empregada para promover o escoamento porturio do comrcio de exportao de Parnaba mas, pelas razes j apontadas, acabou esquecida e abandonada.
O sucesso das atividades comerciais e o progresso at ento alcanado por Parnaba foi interrompido quando teve incio o processo de industrializao do pas e as indstrias paulistas ampliaram seu mercado consumidor no Piau. O rio e os portos foram inviabilizados com a chegada das rodovias que traziam as mercadorias do centro-sul do Brasil. Assim foi a histria da cidade de Parnaba como ponto de integrao e articulao do desenvolvimento do interior do Piau movido pela demanda de mercados internos e externos e das influncias culturais e sociais importadas.
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