Formação Da Literatura Brasileira - Candido
Formação Da Literatura Brasileira - Candido
Formação Da Literatura Brasileira - Candido
Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; So Paulo: FAPESP, 2009, 800 pg. [12 edio]
Com intuito meramente ilustrativo, poderamos dizer que h em literatura
trs atitudes estticas possveis. Ou a palavra considerada algo maior que a
natureza, capaz de sobrepor-lhe as suas formas prprias; ou considerada
menor que a natureza, incapaz de exprimi-la, abordando-a por tentativas
fragmentrias; ou, finalmente, considerada equivalente natureza, capaz
de criar um mundo de formas ideais que exprimam objetivamente o mundo
das formas naturais. O primeiro caso o do Barroco, o segundo, do
Romantismo; o terceiro, do Classicismo. Neste, h portanto um esforo de
equilbrio, fundado no pressuposto de que as formas elaboradas pela
inteligncia se regem por leis essencialmente anlogas s do mundo natural
1
.
O sculo XVIII marca o triunfo do homem natural, que se torna o heri literrio por
excelncia:
Em suma, o homem natural, como aparece nos romances com um toque
acentuado de ingenuidade, e cujo contrapeso vir depois com As ligaes
perigosas, de Laclos, e a obra de Sade, o homem natural, em prosa e verso,
sempre aquele heri cuja bondade inata posta prova pelas vicissitudes da
vida social, e sabe, no obstante, triunfar delas pela fidelidade com que
segue a voz das disposies profundas
2
.
Anteriormente, a urbanidade, a civilizao pareciam a prpria marca da
humanidade, na medida em que domavam e enformavam uma natureza
humana, uma alma, de si tendentes ao mal; agora, o humano parecia mais
chegado ao que nesta alma havia de profundo e caracterstico, e a civilizao
s parecia justa e conveniente na medida em que a ordenava, prolongando-a.
Foi como se, depois de violento esforo de urbanizao do homem,
manifestado pela arquitetura e o urbanismo barroco, pela monarquia
centralizada e a difuso da etiqueta surgisse uma espcie de movimento
compensatrio, que volatiliza no Rococ e na paixo dos jardins, na
assimilao do social ao natural, na naturalidade das maneiras e dos
sentimentos, a concepo rgida e majesttica da existncia
3
.
Queria-se que o homem natural fosse simultaneamente espontneo e polido,
simples e requintado, rstico e erudito, razovel e sentimental: um Emlio,
em suma, com energia bastante para trazer no esprito, sem dilacerar-se, o
embate de culturas e contradies histricas que faziam do seu tempo, como
dissemos, uma espcie de ponte entre duas pocas e duas diferentes vises
da vida espiritual e social. E a literatura se desenvolve, em grande parte,
como trabalho de construo deste ideal, em que se sublimam as aspiraes e
a prpria realidade existencial do sculo
4
.
1
CANDIDO, 2009, p. 57.
2
Idem, p. 61.
3
CANDIDO, 2009, p. 61.
4
Idem, p. 61.
Os gneros pastorais representavam uma das principais manifestaes de
naturalidade, pelo encontro da tradio clssica e a procura de relaes humanas simples,
num quadro natural interpretado segundo normas sociais
5
.
, no sentido estrito, o Arcadismo, que deu nome ao perodo e deve ser
considerado, mais que um conjunto de gneros literrios, verdadeira filosofia
de vida, reinterpretando o mito da idade de ouro, que comeava ento a
passar de retrospectivo a prospectivo, uma vez que a noo de homem
natural dava lugar idia de progresso, passando-se da nostalgia utopia
6
.
A poesia pastoral, como tema, talvez esteja vinculada ao desenvolvimento da
cultura urbana, que, opondo as linhas artificiais da cidade paisagem
natural, transforma o campo num bem perdido, que encarna facilmente os
sentimentos de frustrao. Os desajustamentos da convivncia social se
explicam pela perda da vida anterior, e o campo surge como cenrio de uma
perdida euforia. A sua evocao equilibra idealmente a angstia de viver,
associada vida presente, dando acesso aos mitos retrospectivos da idade de
ouro. Em pleno prestgio da existncia citadina os homens sonham com ele
maneira de uma felicidade passada, forjando a conveno da naturalidade
como forma ideal de relao humana
7
.
No caso do Brasil a poesia pastoril tem significado prprio e importante,
visto como a valorizao da rusticidade serviu admiravelmente situao do
intelectual de cultura europia num pas semibrbaro, permitindo-lhe
justificar de certo modo o seu papel. Poderamos talvez dizer que, sob este
ponto de vista, e ao contrrio do que se vem dizendo desde o Romantismo,
ela foi aqui mais natural e justificada, pois dava expresso a um dilogo por
vezes angustiosamente travado entre civilizao e primitivismo. A adoo de
uma personalidade potica convencionalmente rstica, mas proposta na
tradio clssica, permitia exprimir a situao de contraste cultural,
valorizando ao mesmo tempo a componente local que aspirava expresso
literria e os cnones da Europa, matriz e forma da civilizao a que o
intelectual brasileiro pertencia, e a cujo patrimnio desejava incorporar a
vida espiritual do pas. No limite, surgiu o indianismo, sobretudo com
Baslio da Gama e Duro, verdadeira reinterpretao, segundo os dados
especificamente locais, do dilogo campo-cidade, contido nos gneros
buclicos. Como a vara da lenda, o cajado dos pastores virgilianos, fincado
no solo brasileiro, floresceu em cocares e plumas, misturando velha seiva
mediterrnea claridade do dia americano
8
.
A Independncia (1822) favoreceu certo nacionalismo literrio. Nesse momento,
a literatura foi considerada parcela dum esforo construtivo mais amplo,
denotando o intuito de contribuir para a grandeza da nao. Manteve-se
durante todo o Romantismo este senso de dever patritico, que levava os
escritores no apenas a cantar a sua terra, mas a considerar as suas obras
como contribuio ao progresso. Construir uma literatura nacional af,
quase divisa, proclamada nos documentos do tempo at se tornar enfadonha
9
.
5
CANDIDO, 2009, p. 62.
6
Idem, p. 62.
7
Idem, p. 62.
8
Idem, p. 64.
9
CANDIDO, 2009, p. 328.
A Independncia importa de maneira decisiva no desenvolvimento da idia
romntica, para a qual contribuiu pelo menos com trs elementos que se
podem considerar como redefinio de posies anlogas do Arcadismo: (a)
desejo de exprimir uma nova ordem de sentimentos, agora reputados de
primeiro plano, como o orgulho patritico, extenso do antigo nativismo; (b)
desejo de criar uma literatura independente, diversa, no apenas uma
literatura, de vez que, aparecendo o Classicismo como manifestao do
passado colonial, o nacionalismo literrio e a busca de modelos novos, nem
clssicos nem portugueses, davam um sentimento de libertao
relativamente me-ptria; finalmente (c) a noo j referida de atividade
intelectual no mais apenas como prova de valor do brasileiro e
esclarecimento mental do pas, mas tarefa patritica na construo
nacional
10
.
Ao grupo de jovens liderado por Domingos Jos Gonalves de Magalhes, do qual
faziam parte Manuel de Arajo Porto-Alegre, Francisco de Sales Torres Homem, Joo
Manuel Pereira da Silva e Cndido de Azeredo Coutinho, todos eles residindo em Paris entre
os anos de 1833 e 1836, mais ou menos, coube o impulso inicial do nosso Romantismo,
comprometido ento em fazer no plano da arte o que a Independncia fizera na vida poltica e
social do Brasil
11
. Em 1836, em Paris, era publicada a Niteri, Revista Brasiliense de
Cincias, Letras e Artes.
Do ponto de vista da histria literria e da literatura comparada, o Romantismo
desperta interesse pelo encontro feliz e harmoniosa entre sugestes externas e temas locais.
Do Romantismo em diante, nossos escritores e artistas se empenharam para descobrir a
frmula ideal de fundao de uma expresso nacional autntica
12
. A renovao literria e
artstica no Brasil apresentou dois traos bsicos: o Nacionalismo e o Romantismo. Certo
nacionalismo literrio, definido mais claramente a partir da Independncia, precede o
movimento romntico.
O Romantismo brasileiro foi por isso tributrio do Nacionalismo. Embora
nem todas as suas manifestaes concretas se enquadrassem nele, ele foi o
esprito diretor que animava a atividade geral da literatura. Nem de
espantar que assim fosse, pois sem falar da busca das tradies nacionais e o
culto da histria, o que se chamou em toda a Europa despertar das
nacionalidades, em seguida ao terremoto napolenico, encontrou expresso
no Romantismo. Sobretudo nos pases novos e nos que adquiriram ou
tentaram adquirir independncia, o Nacionalismo foi manifestao de vida,
exaltao afetiva, tomada de conscincia, afirmao do prprio contra o
imposto. Da a soberania do tema local e sua decisiva importncia em tais
pases, entre os quais nos enquadramos. Descrever costumes, paisagens,
10
Idem, p. 329.
11
Idem, p. 329.
12
CANDIDO, 2009, p. 332.
fatos, sentimentos carregados de sentido nacional, era libertar-se do jugo da
literatura clssica, universal, comum a todos, preestabelecida, demasiado
abstrata afirmando em contraposio o concreto espontneo, caracterstico,
particular
13
.
Citar o Macrio, de lvares de Azevedo.
Dentre os temas nacionais, onde esta imaginao [romntica] se movia por
dever e prazer, ocorriam alguns prediletos. A celebrao da natureza, por
exemplo, seja como realidade presente, seja evocada pela saudade, em peas
que ficaram entre as mais queridas, como CANO DO EXLIO e O
GIGANTE DE PEDRA, de Gonalves Dias, SUB TEGMINE FAGI, de
Castro Alves. Ou os poemas histricos, como o ciclo do 2 de Julho, o da
Confederao do Equador, que inspiraram Castro Alves e lvares de
Azevedo; os poemas da Amrica, tomada no conjunto, objeto de vrias
poesias de Varela; a guerra do Paraguai, que mobilizou todas as musas do
tempo. O interesse pelos costumes, regies, passado brasileiro, se manifestou
largamente no romance...
14
.
O Indianismo de Gonalves Dias e Jos de Alencar foi a forma considerada mais
legtima pelos romnticos que encaravam o ndio como elemento bsico da sensibilidade
patritica, discorrendo sobre a sua capacidade potica e o interesse que apresentava como
tema. Assim, o Indianismo serviu no apenas como passado mtico e lendrio, ( maneira da
tradio folclrica dos germanos, celtas ou escandinavos), mas como passado histrico,
maneira da Idade Mdia
15
. Mito e histria servindo de ingredientes bsicos dos poemas de
Gonalves Dias e dos romances de Jos de Alencar.
Romantismo como momento de negao:
O Romantismo [...] concebe de maneira nova o papel do artista e o sentido
da obra de arte, pretendendo liquidar a conveno universalista dos herdeiros
de Grcia e Roma em benefcio de um sentimento novo, embebido de
inspiraes locais, procurando o nico em lugar do perene. E como a
literatura dificilmente se acomoda sem um paraso perdido para os seus
ideais, assim como os clssicos viveram do mito da Idade de Ouro e da
Antigidade perfeita, os romnticos foram buscar nos pases estranhos, nas
regies esquecidas e na Idade Mdia pretextos para desferir o vo da
imaginao
16
.
A sensibilidade romntica pode ser definida em termos de dois ingredientes bsicos:
individualismo e senso histrico. O individualismo romntico importa numa alterao do
conceito de arte esta deixa de ser vista como extenso da natureza, torna-se algo menor do
13
Idem, p. 332-333.
14
Idem, p. 334.
15
CANDIDO, 2009, p. 338.
16
Idem, p. 341.
que ela, algo insuficiente para exprimir a nova escala em que o eu se coloca
17
. A arte se
apresenta sob o signo da limitao da expresso, da pobreza de recursos em face de toda a
inexprimvel grandeza que o artista pressente no mundo e nele prprio
18
.
Ao passo que a esttica neoclssica concebia o artista como mero intermedirio entre
a Natureza e a Arte, a esttica romntica se volta sobretudo para a Natureza e o Artista,
ficando a arte, sempre aqum da ordem de grandeza que lhe competia exprimir e, por isso
mesmo, relegada a plano secundrio
19
. O prprio conceito de natureza passa por uma
alterao:
Em vez de ser, como para os neoclssicos, um princpio, uma expresso do
encadeamento das coisas, apreendido pela razo humana, que era um de seus
aspectos, torna-se cada vez mais, para os romnticos, o mundo, o cosmos, a
natureza fsica cheia de graa e impreciso, frente qual se antepe um
homem desligado, cujo destino vai de encontro ao seu mistrio. O
individualismo, destacando o homem da sociedade ao for-lo sobre o
prprio destino, rompe de certo modo a idia de integrao, de entrosamento
quer dele prprio com a sociedade em que vive, quer desta com a ordem
natural entrevista pelo sculo XVIII
20
.
A literatura posterior ao Romantismo levaria ao extremo as tendncias inauguradas
neste:
De Cludio Manuel a Gonalves Dias, e sobretudo a lvares de Azevedo e
Casimiro, a poesia vai-se despojando de muito do que comemorao,
doutrina, debate, dilogo, para concentrar-se em torno da pesquisa lrica.
Lrica no sentido mais restrito de manifestao puramente pessoal, de estado
dalma, sob a gide do sentimento, mais que da inteligncia ou do engenho.
Esta longa aventura da criao, que vir terminar no balbucio quase
impalpvel de alguns modernos os Poemas da negra, de Mrio de
Andrade, A estrela da manh, de Manuel Bandeira corresponde ao prprio
trabalho interno da evoluo potica, especializando-se cada vez mais e
largando um rico lastro novelstico, retrico e didtico, que foi enriquecer
outros gneros, sobretudo o gnero novo e triunfante do romance, que na
literatura brasileira produto do Romantismo e desta diviso do trabalho
literrio
21
.
Do Romantismo sairia praticamente tudo o que literariamente temos realizado at
agora
22
.
O poeta romntico no apenas retoma em grande estilo as explicaes
transcendentes do mecanismo da criao, como lhes acrescenta a idia de
que a sua atividade corresponde a uma misso de beleza, ou de justia,
17
Idem, p. 341.
18
Ibidem.
19
Idem, p. 342.
20
Idem, p. 342.
21
CANDIDO, 2009, p. 343.
22
Ibidem.
graas qual participa duma certa categoria de divindade. Misso puramente
espiritual, para uns, misso social, para outros para todos, a ntida
representao de um destino superior, regido por uma vocao superior. o
bardo, o profeta, o guia
23
.
O verbo literrio, simples medianeiro entre a natureza e o intrprete, vai
perder a categoria quase sagrada que lhe conferia a tradio clssica. Uma
nova era de experimentalismo modificar a fisionomia estabelecida do
discurso, quebrando a separao entre os gneros, derrubando a hierarquia
das palavras e mais importante que tudo procurando forjar a expresso
para cada caso, cada nova necessidade
24
.
Em lugar das imagens consagradas e venerveis, das categorias j estabelecidas da
potica neoclssica o sol figurando como o carro de Faetonte, ou o louro Febo , os
romnticos, porm, desejam imprimir sua viso um selo prprio e de certo modo nico,
desde que a literatura consiste, para eles, na manifestao de um ponto de vista, um ngulo
pessoal
25
. A potica romntica est profundamente impregnada de senso histrico, de
conscincia do irreversvel da a noo de que a palavra um molde renovvel a cada
experincia, permanecendo sempre aqum da sua plenitude fugaz e irreproduzvel
26
.
No h dvida que uma das causas de semelhante estado de esprito se
encontra na vitria da cultura urbana contempornea, sobre o passado em
grande parte rural do Ocidente. A mudana mais ou menos brusca no ritmo
da vida econmica e social, com o advento da mecanizao, tornou obsoletos
um sem-nmero de valores centenrios, alterando de repente a posio do
homem em face da natureza
27
.
A natureza superficial e polida dos neoclssicos parece percorrida de repente
por um terremoto: o que se preza agora so os seus aspectos agrestes e
inacessveis montanha, cascata, abismo, floresta, que irrompem de sob
colinas, prados e jardins...
que o poeta romntico procura [...] refazer a expresso a cada experincia.
Para isto, rejeita o imprio da tradio e reconhece autoridade apenas na
prpria vocao, no gnio. A idia de que a criao um processo mgico,
pelo qual ganham forma as misteriosas sugestes da natureza e da alma, a
idia, em suma, do poeta medinico, freqente no Romantismo
28
.
Enquanto a natureza refinada do Neoclassicismo espelha na sua clara
ordenao a prpria verdade (real = natural), acolhendo e abrigando o
esprito, para o romntico ela sobretudo uma fonte de mistrio, uma
realidade inacessvel, contra a qual vem bater inutilmente a limitao do
homem. Ele a procura, ento, nos aspectos mais desordenados, que, negando
a ordem aparente, permitem uma viso profunda. Procura mostr-la como
23
Idem, p. 344.
24
Idem, p. 346.
25
Ibidem.
26
Idem, p. 347.
27
CANDIDO, 2009, p. 347.
28
Idem, p. 348-349.
algo convulso, quer no mundo fsico, quer no psquico: tempestade, furaco,
raio, treva, crime, desnaturalidade, desarmonia, contraste
29
.
De qualquer modo, a natureza algo supremo que o poeta procura exprimir
e no consegue: a palavra, o molde estreito de que ela transborda, criando
uma conscincia de desajuste. Boa parte do mal do sculo provm desta
condio esttica: desconfiana da palavra em face do objeto que lhe toca
exprimir. Da o desejo de fuga, to encontradio na literatura romntica sob
a forma de invocao da morte, ou lembrana de morrer; h nela uma
corrente pessimista, para a qual a prpria vida parece o mal
30
.
Esta atitude nova, denotando individualismo acentuado, desejo de desacordo
com as normas e a rotina, em parte devida nova posio social do
escritor, entregue cada vez mais carreira literria, isto , a si prprio e ao
vasto pblico, em lugar do escritor pensionado, protegido, quase confundido
na criadagem dos mecenas do perodo anterior. Deve ter havido na
conscincia literria um arrepio de desamparo, uma brusca falta de
segurana, com a passagem do mecenato ao profissionalismo. A ruptura dos
quadros sociais que sustinham o escritor modificando igualmente o tipo de
pblico a que se dirigia alterou a sua posio, deixando-o muito mais
entregue a si mesmo e inclinado s aventuras do individualismo e do
inconformismo
31
.
H pois, no romance, amplitude e ambio equivalentes s da epopia; s
que em vez de arrancar os homens da contingncia para lev-los ao plano do
milagre, procura encontrar o miraculoso nos refolhos do cotidiano. Mesmo o
romance fantstico e tenebroso no escapa s limitaes de tempo e espao,
embora as distenda at a fantasia; reciprocamente, a descrio minuciosa e
fiel do pedao de vida recebe nele um toque de fantasia inevitvel, como a
que empresta movimento quase pico s lavadeiras do Assommoir
32
.
O eixo do romance oitocentista pois o respeito inicial pela realidade,
manifesto principalmente na verossimilhana que procura imprimir
narrativa. H nele uma espcie de proporo urea, um nmero de ouro,
obtido pelo ajustamento ideal entre a forma literria e o problema humano
que ela exprime. No Romantismo, o afastamento dessa posio ideal se fez
na direo e em favor da poesia; mais tarde, no Naturalismo, far-se-ia na
direo da cincia e do jornalismo. Mas tanto num quanto noutro, permanece
o esteio da verossimilhana e, mais fundo, a disposio comum de sugerir
certa causalidade nos atos e pensamentos do personagem. A insistncia dos
naturalistas no determinismo inspirado pelas cincias naturais no nos deve
fazer esquecer o dos romnticos, de inspirao histrica. Com matizes mais
ou menos acentuados de fatalismo, uns e outros se aplicavam em mostrar os
diferentes modos por que a ao e o sentimento dos homens eram causados
pelo meio, pelos antecedentes, a paixo ou o organismo. Da um realismo
dos romnticos, que seria desnorteante se no lhe correspondesse um patente
romantismo dos naturalistas, para fazer da fico literria no sculo XIX, e
29
Idem, p. 349.
30
Idem, p. 350.
31
Idem, p. 351.
32
CANDIDO, 2009, p. 430.
da brasileira em particular, um conjunto mais coeso do que se poderia supor
primeira vista
33
.
O nacionalismo literrio, encarado enquanto estrutura ideolgico-afetiva, norteou o
romance romntico:
Nacionalismo, na literatura brasileira, consistiu basicamente [...] em escrever
sobre coisas locais; no romance, a conseqncia imediata e salutar foi a
descrio de lugares, cenas, fatos, costumes do Brasil. o vnculo que une
as Memrias de um sargento de milcias ao Guarani e a Inocncia, e
significa, por vezes, menos o impulso espontneo de descrever a nossa
realidade, do que a inteno programtica, a resoluo patritica de faz-lo
34
.
Esta tendncia naturalizou a literatura portuguesa no Brasil, dando-lhe um
lastro pondervel de coisas brasileiras. E como, alm de recurso esttico, foi
um projeto nacionalista, fez do romance verdadeira forma de pesquisa e
descoberta do pas. A nossa cultura intelectual encontrou nisto um elemento
dinamizador de primeira ordem, que contribuiu para fixar uma conscincia
mais viva da literatura como estilizao de determinadas condies locais. O
ideal romntico-nacionalista de criar a expresso nova de um pas novo
encontra no romance a linguagem mais eficiente
35
.
No perodo romntico, a imaginao e a observao de alguns ficcionistas
ampliaram largamente a viso da terra e do homem brasileiro. Numa
sociedade pouco urbanizada (o perodo regencial, com as suas agitaes, deu
por assim dizer carta de maioridade ao Rio), e portanto ainda caracterizada
por uma rede pouco vria de relaes sociais, o romance no poderia
realmente jogar-se desde logo ao estudo das complicaes psicolgicas
36
.
Quanto matria, o romance brasileiro nasceu regionalista e de costumes; ou
melhor, tendeu desde cedo para a descrio dos tipos humanos e formas de
vida social nas cidades e nos campos...
Assim, pois, trs graus na matria romanesca, determinados pelo espao em
que se desenvolve a narrativa: cidade, campo, selva; ou, por outra, vida
urbana, vida rural, vida primitiva. A figura dominante do perodo, Jos de
Alencar, passou pelos trs e nos trs deixou boas obras: Lucola, O
sertanejo, Iracema. E esse carter de explorao e levantamento no
apenas em sua obra, mas nas dos outros que d fico romntica
importncia capital como tomada de conscincia da realidade brasileira no
plano da arte: verdadeira consecuo do ideal de Nacionalismo literrio,
proclamado pela Niteri
37
.
Por isso mesmo, o nosso romance tem fome de espao e uma nsia
topogrfica de apalpar todo o pas. Talvez o seu legado consista menos em
tipos, personagens e enredo do que em certas regies tornadas literrias, a
seqncia narrativa inserindo-se no ambiente, quase se escravizando a ele.
Assim, o que se vai formando e permanecendo na imaginao do leitor um
33
Idem, p. 431.
34
Idem, p. 431.
35
Idem, p. 432.
36
CANDIDO, 2009, p. 432.
37
Idem, p. 433.
Brasil colorido e multiforme, que a criao artstica sobrepe realidade
geogrfica e social
38
.
O desenvolvimento do romance brasileiro, de Macedo a Jorge Amado,
mostra quanto a nossa literatura tem sido consciente da sua aplicao social
e responsabilidade na construo de uma cultura. Os romnticos, em
especial, se achavam possudos, quase todos, de um senso de misso, um
intuito de exprimir a realidade especfica da sociedade brasileira...
A conscincia social dos romnticos imprime aos seus romances esse cunho
realista que estou referindo, e provm da disposio de fixar literariamente a
paisagem, os costumes, os tipos humanos
39
.
Isso nos leva a um interessante problema literrio. Dentre os temas
brasileiros impostos pelo Nacionalismo, tenderiam a ser mais reputados os
aspectos de sabor extico para o homem da cidade, a cujo ngulo de viso se
ajustava o romancista: primitivos habitantes, em estado de isolamento ou na
fase dos contactos com o branco; habitantes rsticos, mais ou menos
isolados da influncia europia direta. Da as duas direes: indianismo,
regionalismo. O problema referido o da expresso literria adequada a cada
uma delas.
No caso do Indianismo, tratando-se de descrever populaes de lngua e
costumes totalmente diversos dos portugueses, podia a conveno potica
agir com grande liberdade, criando com certo requinte de fantasia a
linguagem e atitudes dos personagens...
No caso do regionalismo, porm, a lngua e os costumes descritos eram
prximos dos da cidade, apresentando difcil problema de estilizao; de
respeito a uma realidade que no se podia fantasiar to livremente quanto a
do ndio e que, no tendo nenhum Chateaubriand para modelo, dependia do
esforo criador dos escritores daqui. A obteno da verossimilhana era,
neste caso, mais difcil, pois o original estava ao alcance do leitor. Da a
ambigidade que desde o incio marcou o nosso regionalismo, e que,
levando o escritor a oscilar entre a fantasia e a fidelidade ao observado,
acabou paradoxalmente por tornar artificial o gnero baseado na realidade
mais geral e de certo modo mais prpria do pas
40
.
Mas justamente por implicar o esforo pessoal de estilizao, (j que no
podia canalizar to facilmente quanto o Indianismo e o romance urbano a
influncia de modelos europeus), o regionalismo foi um fator decisivo de
autonomia literria e, pela quota de observao que implicava, importante
contrapeso realista
41
.
Alinhemos, portanto, os seguintes fatores para compreender a introduo do
romance no Brasil [...]: novas necessidades de expresso, correspondendo a
uma viso diferente do indivduo e da sociedade; influncia estrangeira,
dando o exemplo de livros atraentes assinados por nomes ilustres;
receptividade do pblico ante um gnero que se podia apreciar sem iniciao
terica e atendia perene necessidade de fantasia; racionalizao por parte
da opinio culta oficial, atribuindo-lhe significado compatvel com as suas
ideologias
42
.
38
Idem, p. 433.
39
Idem, p. 434.
40
CANDIDO, 2009, p. 435.
41
Idem, p. 436.
42
Idem, p. 438.
H escritores cuja obra uma pesquisa deles prprios, e que parecem
escrever em funo de certas caractersticas pessoais, tomando o leitor como
acessrio e procurando convert-lo sua viso do homem...
Outros, todavia, parecem preocupar-se, no tanto com a sua mensagem,
quanto com a possibilidade receptiva do leitor, a cujos hbitos mentais
procuram ajustar a obra, sem grande exigncia...
Isto no quer dizer, como pareceria primeira vista, que os da primeira
espcie sejam grandes, e medocres os da segunda. Mas apenas que h duas
maneiras principais de comunicao literria pelo romance: uma,
caracterizada pela circunstncia do escritor impor os seus padres; outra,
pela sua adequao aos padres correntes. Nos dois grupos h fortes e
fracos, e nos grandes romancistas no rara a coexistncia das duas
orientaes
43
.
O seu [de Bernardo Guimares] sentimento dominante foi o da natureza, que
nele era apego real paisagem, ao detalhe do mundo exterior,
apaixonadamente percebido e amado. Caador, nadador, viajante, sertanista,
a terra exercia sobre ele atrao poderosa, que o estmulo principal da sua
musa, enquadramento da inspirao, arsenal de imagens, divina fonte do
canto...
44
.
J se v que os seus versos [de Bernardo Guimares] so, na maioria, ao
mesmo tempo descritivos e evocativos: traam o quadro natural e contam as
emoes nele vividas, procurando associar a experincia afetiva
experincia dos lugares. Por isso mesmo revela acentuado pendor pela
solido e a saudade, freqentemente unidas na evocao solido com que
desfruta melhor a poesia dos lugares, saudade com que suscita as emoes
experimentadas neles
45
.
A partir de 1860 a produo novelstica se intensifica e amplia no Brasil
graas, principalmente, ao trabalho e exemplo de Jos de Alencar, logo
reforado em plano modesto por Bernardo Guimares. margem, e
precedendo-os cronologicamente, fica o nico livro de Manuel Antnio de
Almeida. So os principais romancistas dessa etapa, devendo juntar-se a eles
o veterano Joaquim Manuel de Macedo, que continua a produzir at 1876,
data em que saem o seu ltimo livro e o ltimo livro de Alencar (A baronesa
de amor e Sertanejo)
46
.
Alm desse processo de depurao, h elementos novos que permitem
caracterizar mais amplamente uma segunda etapa do romance romntico: o
Indianismo, o regionalismo, a anlise psicolgica
47
.
O regionalismo foi a manifestao por excelncia daquela pesquisa do pas,
assinalada em captulo anterior. necessrio, todavia, distinguir o
regionalismo dos romnticos daquele que veio mais tarde a ser designado
por este nome a literatura sertaneja de Afonso Arinos, Simes Lopes
Neto, Valdomiro Silveira, Coelho Neto, Monteiro Lobato e que, embora
43
Idem, p. 453.
44
Idem, p. 485.
45
CANDIDO, 2009, p. 488.
46
Idem, p. 527.
47
Idem, p. 527.
dele provenha, desenvolvimento bastante diverso pelo esprito e as
conseqncias.
Os romnticos Bernardo, Alencar, Taunay, Tvora tomaram a regio
como quadro natural e social em que se passavam atos e sentimentos sobre
os quais incidia a ateno do ficcionista. notrio que livros como O
sertanejo, O garimpeiro, Inocncia, Loureno so construdos em torno de
um problema humano, individual ou social, e que, a despeito de todo o
pitoresco, os personagens existem independentemente das peculiaridades
regionais. Mesmo a inabilidade tcnica ou a viso elementar de um batedor
de estradas, como Bernardo Guimares, no abafam esta humanidade da
narrativa. J o regionalismo ps-romntico dos citados escritores tende a
anular o aspecto humano, em benefcio de um pitoresco que se estende
tambm fala e ao gesto, tratando o homem como pea da paisagem,
envolvendo ambos no mesmo tom de exotismo. uma verdadeira alienao
do homem dentro da literatura, uma reificao da sua substncia espiritual,
at p-la no mesmo p que as rvores e os cavalos, para deleite esttico do
homem da cidade. No toa que a literatura sertaneja (bem versada
apesar de tudo por aqueles mestres), deu lugar pior subliteratura de que h
notcia em nossa histria, invadindo a sensibilidade do leitor mediano como
praga nefasta, hoje revigorada pelo rdio.
O regionalismo dos romnticos, ao contrrio, distinguindo a qualidade
respectiva do homem e da paisagem, constitui, na sua linha-tronco, uma das
melhores direes de nossa evoluo literria, vindo, atravs de Domingos
Olmpio, ramificar-se no moderno romance, sobretudo no galho nordestino,
onde vemos a regio condicionar a vida sem sobrepor-se aos seus problemas
especficos
48
.
[...] os romances deste juiz, Bernardo Joaquim da Silva Guimares, parecem
boa prosa da roa, cadenciada pelo fumo de rolo que vai caindo no cncavo
da mo ou pela marcha das bestas de viagem, sem outro ritmo alm do que
lhes imprime a disposio de narrar sadiamente, com simplicidade, o fruto
de uma pitoresca experincia humana e artstica [...] Conversa de bacharel
bastante letrado para florear as descries e suspender a curiosidade do
ouvinte, mas bastante matuto para exprimir fielmente a inspirao do gnio
dos lugares
49
.
Dos livros de Bernardo pouca coisa permanece incorporada nossa
sensibilidade, alm da vaga lembrana dos enredos. Esse pouco constitudo
principalmente por uma impresso de ordem plstica: relevo da paisagem,
certos verdes e azuis, contornos de morros e vales, presena indefinvel de
uma atmosfera campestre que nos faz respirar bem. que Bernardo capricha
em situar as narrativas, com o agudo senso topogrfico e social
caracterstico da nossa fico romntica. Antes de encet-las, localiza-as; no
seu decorrer, descreve as frmulas de tratamento, a hierarquia e formas de
prestgio, as relaes de famlia, os costumes regionais como a cavalhada
(O garimpeiro), o mutiro e a quatragem (O seminarista), o batuque (O
ermito do Muqum) [...] Mas nos romances, a natureza trabalhada pelo
homem que vem ao primeiro plano; natureza em que se ajustam a casa, o
caminho, a roa
50
.
48
Idem, p. 528.
49
CANDIDO, 2009, p. 549.
50
Idem, p. 551.
Certos livros, como Inocncia [de Taunay], fundem harmoniosamente a
intensidade emocional, o pitoresco regionalista, a fidelidade da observao e
a felicidade do estilo, obtendo um equilbrio at ento desconhecido
51
.
A unidade poltica, preservada s vezes por circunstncias quase
miraculosas, pode fazer esquecer a diversidade que presidiu formao e
desenvolvimento da nossa cultura. A colonizao se processou em ncleos
separados, praticamente isolados entre si: o desenvolvimento econmico e a
evoluo social foram, assim, bastante heterogneos, consideradas as
diferentes regies [...] Trazendo a idia para o terreno literrio, Viana Moog
procurou interpretar a nossa literatura em funo das que chamou ilhas de
cultura mais ou menos autnomas e diferenciadas, caracterizada cada uma
pelo seu genius loci particular.
Comprovante desta idia engenhosa, e em parte verdadeira, sem dvida o
caso do Nordeste, que se destaca na geografia, na histria e na cultura
brasileira com impressionante autonomia e nitidez. Desta autonomia derivou
bem cedo um sentimento regionalista que encontrou expresso tpica na
confederao do Equador, tentativa, maneira da Repblica de Piratini, de
dar expresso poltica referida diversidade e que, se falhou no terreno
poltico, persistiu teimosamente no plano da inteligncia. A literatura e a
oratria tornaram-se, com efeito, a forma preferencial daquela regio velha e
ilustre exprimir a sua conscincia e dar estilo sua cultura intelectual, que
antecedeu e por muito tempo a do resto do pas
52
.
[...]
Conscientes de formarem uma equipe vigorosa, fruto de maturidade da sua
regio, os escritores nordestinos no se conformaram em ser pssaros do
crepsculo e desenvolveram, com relao s instituies intelectuais e
polticas, uma virulncia crtica permeada de intensa susceptibilidade [...]
a famosa Escola do Recife [gerao de 1870], que levou ao mximo esta
tendncia, prolongando-se por todo o Ps-romantismo e, em nossos dias,
pelo romance nordestino e a obra de Gilberto Freyre
53
.
O seu [Franklin Tvora] regionalismo parece fundar-se em trs elementos,
que ainda hoje constituem, em propores variveis, a principal argamassa
do regionalismo literrio do Nordeste. Primeiro o senso da terra, da
paisagem que condiciona to estreitamente a vida de toda a regio, marcando
o ritmo da sua histria pela famosa intercadncia de Euclides da Cunha.
Em seguida, o que se poderia chamar patriotismo regional, orgulhoso das
guerras holandesas, do velho patriarcado aucareiro, das rebelies nativistas.
Finalmente, a disposio polmica de reivindicar a preeminncia do Norte,
reputado mais brasileiro, onde abundam os elementos para a formao de
uma literatura propriamente brasileira, filha da terra. A razo bvia: o
Norte ainda no foi invadido como est sendo o Sul de dia a dia pelo
estrangeiro
54
.
A virtude maior de Tvora foi sentir a importncia literria de um
levantamento regional; sentir como a fico beneficiada pelo contacto de
uma realidade concretamente demarcada no espao e no tempo, que serviria
de limite e em certos casos, no Romantismo, de corretivo fantasia. Ora,
51
Idem, p. 612.
52
Idem, p. 614.
53
CANDIDO, 2009, p. 614-615.
54
Idem, p. 615, citao do PREFCIO de O cabeleira, de Franklin Tvora.
para ele este contacto se funda na experincia direta da paisagem, que o
romancista deve conhecer e descrever precisamente
55
.
Dentre os burocratas, jornalistas e polticos, homens de cidade que pouco sabiam do resto do pas,
Bernardo Guimares e [Alfredo dEscragnolle] Taunay se diferenciam como viajantes do serto. Este,
nem bacharel nem mdico, mas militar, enfronhado em problemas prticos, particularmente um caso
raro na literatura do tempo, para a qual trouxe uma rica experincia de guerra e serto, depurada por
sensibilidade e cultura nutridas de msica e artes plsticas. Esta combinao de senso prtico e
refinamento esttico fundamenta as suas boas obras e compe o traado geral da sua personalidade
56
.
55
Idem, p. 616.
56
Idem, p. 622.