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UNIVERSIDADE DE SO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
RUBENS LEONARDO PANEGASSI
O PASTO DOS BRUTOS: CONTEXTO DE JOO DE BARROS, HORIZONTE HISTRICO E POLTICA NAS DCADAS DA SIA
So Paulo 2013
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UNIVERSIDADE DE SO PAULO FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CINCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTRIA PROGRAMA DE PS-GRADUAO EM HISTRIA SOCIAL
O pasto dos brutos: contexto de Joo de Barros, horizonte histrico e poltica nas Dcadas da sia
Rubens Leonardo Panegassi
Tese apresentada ao Programa de Ps- Graduao em Histria Social do Departamento de Histria da Faculdade de Filosofia, Letras e Cincias Humanas da Universidade de So Paulo, para a obteno do ttulo de Doutor em Histria Social.
Orientador: Prof. Dr. Laura de Mello e Souza
So Paulo 2013 3
Resumo Esta tese pretende localizar as ideias presentes na produo intelectual letrada do Renascimento portugus a partir do vocabulrio conceitual de Joo de Barros, autor das Dcadas da sia. Em vista de uma tradio que assinala o compromisso de Joo de Barros com a vida cvica em Portugal, a localizao destas ideias atentou para as convenes intelectuais acionadas na regulamentao da honra e da dignidade deste personagem como elementos estruturantes para a credibilidade de seus escritos. Sem perder de vista a estreita relao entre as letras e o poder, a obra de Joo de Barros compreendida como veculo para o debate pblico de ideias e, por isso, no enfoque dado s Dcadas, ganha relevncia o fato de se tratar de um gnero epidtico, em que a memria se configura como instrumento pedaggico. Assim, o vocabulrio conceitual disponvel mentalidade renascentista portuguesa apresenta-se atrelado s vicissitudes da expanso martima e promoo do bem pblico em um ambiente heterogneo e descontnuo, marcado pela presena da diversidade cultural. Em suma, a questo, aqui, reside no papel que este vocabulrio desempenha na formulao de um ambiente culturalmente homogneo em vista da evidente necessidade poltica de manter a unidade do reino.
Palavras-chave: Joo de Barros, Portugal, historiografia, poltica, cultura
Abstract This thesis aims to find the most important concepts in the work of Joo de Barros, the Portuguese Renaissance author who wrote the Dcadas da sia. To this end, we look at a tradition that considers Barros as a man dedicated to civic life in Portugal. The work of Joo de Barros is understood as a vehicle for public debate of ideas, and the Dcadas da sia, his book of history, as a pedagogical tool. The most important concepts are linked to the history of maritime expansion and the presence of cultural diversity. The question of this thesis is the role of these concepts in the reduction of cultural differences and the union of the Portuguese kingdom.
Keywords: Joo de Barros, Portugal, historiography, politics, culture
e-mail: rubensleonardo@uol.com.br 4
A Vicente do Rego Monteiro (Joo Cabral de Melo Neto)
Eu vi teus bichos mansos e domsticos: um motociclo gato e cachorro. Estudei contigo um planador, volante mquina, incerta e frgil. Bebi da aguardente que fabricaste, servida s vezes numa leiteira. Mas sobretudo senti o susto de tuas surpresas. E por isso que quando a mim algum pergunta tua profisso no digo nunca que s pintor ou professor (palavras pobres que nada dizem de tais surpresas); respondo sempre: - inventor, trabalha ao ar livre de rgua em punho, janela aberta sobre a manh. 5
Agradecimentos
Esta tese o resultado de um projeto de vida, que, embora destinado a continuar, cumpre-se neste momento em que entendo ser a coroao de uma trajetria que tive o privilgio de percorrer em cada etapa da vida acadmica: a iniciao cientfica, o mestrado e, por fim, o doutorado. E, a realizao deste projeto de vida jamais teria se concretizado sem o apoio e a confiana de minha orientadora. Por isso, sou profundamente grato a Laura de Mello e Souza, que me acolheu de modo exemplar, sempre com o mximo profissionalismo, compromisso, generosidade, respeito, alm de sua refinada erudio. Seja como docente ou como pesquisadora e intelectual, sua postura ser sempre uma referncia para mim. Sou grato tambm de modo veemente a Leila Mezan Algranti, quem tive a feliz oportunidade de conhecer ao longo das saudosas atividades do projeto temtico Dimenses do Imprio Portugus e que, desde minha iniciao cientfica e ao longo de todo o mestrado, demonstrou sempre um estimulante interesse por minha pesquisa, alm de ser uma profissional exemplar por seu compromisso e erudio. Fapesp agradeo pelo financiamento sistemtico de todas as estapas de minha formao. Sem dvida, o auxlio dessa instituio foi imprescindvel tambm ao longo deste doutorado, em virtude da bolsa de estudos que tive o privilgio de usufruir ao longo de onze meses. A Ana Paula Torres Megiani sou tambm imensamente grato. Seu auxlio e sua orientao foram fundamentais no momento da elaborao do projeto de pesquisa que resultou nesta tese. Alm disso, suas consistentes observaes no exame de qualificao contriburam imensamente para o desenvolvimento da pesquisa. No mesmo sentido, agradeo a Maria Lda Oliveira pelas observaes feitas tambm na ocasio do exame de qualificao. Universidade de So Paulo, ao Departamento de Histria, ao Programa de Ps-Graduao em Histria Social e Ctedra Jaime Corteso, deixo, tambm, meus agradecimentos. Ali, desde a graduao, pude contar com um ambiente estimulante, tanto por parte dos professores e colegas, quanto pela excelente infra-estrutura. 6
Agradeo aos colegas de ps-graduao com os quais, em diferentes momentos, tive interao: Aldair Carlos Rodrigues, Alexandre Varella, Ana Letcia Batista, Andr Miatello, Bruno Feitler, Daniel Monteiro, Francismar Alex de Carvalho, Gustavo Tuna, Gustavo Acioli Lopes, Joana Monteleone, Juliana Fujimoto, Lus Filipe Silvrio Lima, Nelson Cantarino, Rodrigo Bonciani, Rui Luis Rodrigues, Srgio Alcides P. do Amaral, Thas Assuno Santos e Thiago Nicodemo. Como professor da Universidade Federal de Viosa tive a oportunidade de articular a pesquisa docncia e s atividades de extenso em condies que s uma universidade pblica oferece. No Departamento de Histria encontrei interlocutores que, de maneiras diversas, contriburam para o andamento desta tese. Por isso, registro meu agradecimento a lvaro Antunes, Angelo Assis, Francisco Cosentino e Patrcia Faria. Agradeo ainda compreenso dos colegas que ao longo destes dois ltimos anos conviveram com o nus de um colega doutorando: Fbio Hering, Fbio Mendes, Jonas Queiroz, Karla Martins, Luiz Vailati, Patrcia Arajo, Priscila Dorella e Thiago Silva. A Jos Carlos e Stella Maris Vilardaga agradeo pela primeira acolhida em Viosa. A Ana Luisa Gediel, Daniela Alves, Daniela Rezende, Diogo de Sousa, Felipe Lisboa, Isabella Freitas, Jlio Csar Silva, Juan e Nara Chiappara agradeo pela nova acolhida em Viosa. Agradeo aos alunos de Histria Moderna I e II dos anos de 2011 e 2012 e, sobretudo, aos alunos que participam com motivador entusiasmo de nosso embrionrio grupo de pesquisa. Agradeo tambm a meus pais e minhas irms pelo apoio e compreenso de uma trajetria tortuosa. Por fim agradeo a minha companheira, Marcia Jaschke Machado, que esteve ao meu lado desde o momento em que estudar Histria era apenas um sonho, e com quem pude compartilhar cada uma das etapas alcanadas com um misto sentimento de alegria e insegurana. Sem ela, tudo teria sido diferente. E com ela, no importa qual a caminhada, espero continuar. Sempre em frente.
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esta vida uma viagem pena eu estar s de passagem (Paulo Leminski)
Para Valentina Jaschke Panegassi 8
SUMRIO
Introduo 9
Captulo 1 Dos preceitos e da perfeio de Joo de Barros 16
1.1. A Vida de Manuel Severim de Faria 17 1.2. Joo de Barros cresce 29 1.3. Da efetiva dignidade de Joo de Barros 41
Captulo 2 Joo de Barros, sua obra, a especificidade do humanismo portugus e as ambiguidades do reinado de Dom Joo III 55
2.1. Da prova do estilo ao dilogo moral 56 2.1. O humanismo portugus e as linhas de fora do reinado de Dom Joo III 74 2.3. O polemista ausente 100
Captulo 3 Dos artifcios das Dcadas 120
3.1. A fala e a letra 121 3.2. Da escritura memria 145 3.3. Histria e horizonte histrico nas Dcadas de Joo de Barros 170
Captulo 4 Cincia moral e barbarismo 190
4.1. Antigos e modernos 191 4.2. Brutos e polticos 213
Concluso 239
Bibliografia 246
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Introduo
O historiador Jaques Lafaye sugere que a histria da Europa Moderna foi marcada por uma sucesso de revolues polticas, cientficas e industriais, sociais e culturais. Sem dvida, o humanismo pode ser considerado como uma destas revolues, cuja ocorrncia deu-se, fundamentalmente, no campo da cultura. Por sua vez, a uma revoluo operada no mbito da cultura segue-se a substituio de todo um sistema de referncias filosficas ou religiosas, cientficas, estticas, ticas e polticas por outro, parcialmente novo, seguido de consequncias mltiplas a serem verificadas nos mais diversos planos, seja o econmico, o poltico, o social ou mesmo no mbito da vida cotidiana. 1
Em linhas gerais, o humanismo pode ser compreendido como um conjunto de valores estticos, ticos, pedaggicos e filosficos, orientados pela tentativa de recuperar a Antiguidade sob seus mais diferentes aspectos. Entretanto, este procedimento intelectual encontra variveis distintas, e exibe aspectos diferenciados quando atentamos para a multiplicidade de autores que podem ser considerados como representantes desse movimento. Contudo, mesmo em face da heterogeneidade que o caracteriza, possvel definir a exaltao do homem e de sua obra como trao comum a este fenmeno na variedade de suas manifestaes. Em sntese, os humanistas consideraram o homem como centro do mundo e ator de sua prpria histria. 2
Ainda que os humanistas se considerem atores de sua prpria histria, dificilmente poderamos apontar para os efetivos limites da autonomia do homem em relao a seus diversos constrangimentos estruturais. Diante disso algumas questes persistem:
Quem so os verdadeiros agentes na histria, os indivduos ou os grupos? Ser que eles podem resistir com sucesso s presses das estruturas
1 Cf. LAFAYE, Jaques. Por amor al griego. La nacin europea, seoro humanista (siglos XIV-XVII). Mxico: FCE, 2005. 2 Cf. SERRO Joel (dir.). Dicionrio de Histria de Portugal. Castanhoso/Fez. Porto: Livraria Figueirinhas, 1992. s.v. Humanismo portugus. 10
sociais, polticas e culturais? So essas estruturas meramente restries liberdade de ao, ou permitem aos agentes realizarem mais escolhas? 3
Assim, a compreenso do humanismo como uma revoluo cultural que pressupe a substituio de um sistema de referncias, no deve perder de vista que tais constrangimentos condicionam, libertam ou limitam as realizaes humanas. De todo modo, importa considerar que esta revoluo cultural alcanou seu pice na proclamao da equidade entre as letras humanas e as letras sagradas: ainda que largamente atrelado religio, o conhecimento da Antiguidade, bem como a experincia do homem da poca Moderna ganham relevncia na economia do saber ocidental. Sem dvida, a relao entre o cristianismo e a Antiguidade pag foi pautada como problema por boa parte dos letrados humanistas. Aqui, o enfoque dado ao fenmeno humanista em Portugal feito a partir da obra de um dos mais importantes personagens desse movimento no reino ibrico: Joo de Barros, autor de uma enorme diversidade de escritos, dentre os quais podemos encontrar uma fbula, diversos dilogos, panegricos, gramticas, cartilhas e ainda uma das mais notveis obras sobre a expanso martima portuguesa: as Dcadas da sia. Sem dvida, possvel considerar esta obra como um discurso representativo do ponto de vista oficial sobre a expanso portuguesa, sobretudo medida em que ela traz uma justificativa para o imperialismo portugus. Entretanto, em linhas gerais, a obra deste humanista fornece, tambm, um valioso campo de observao das ferramentas intelectuais operacionalizadas por um corteso letrado, que se disps a registrar a experincia dos descobrimentos martimos portugueses. Alm disso, preciso notar que a obra compe amplo espao de observao, tambm, para a percepo do debate pblico experimentado por Barros em seu contexto. Com efeito, a especificidade do humanismo portugus encontra-se profundamente atrelada experincia dos descobrimentos. Desse modo, se por um lado isso facilita a compreenso da dimenso experiencial desse movimento em terras lusas, por outro, verifica-se que a ressonncia da expanso martima no mbito da cultura letrada marca profundamente a construo da memria das virtudes que orientaram as
3 BURKE, Peter. Abertura: a Nova Histria, seu passado e seu futuro. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da histria: novas perspectivas. Trad. Magda Lopes. So Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista, 1992. p. 31. 11
atitudes dos portugueses nesse momento histrico, alm de dar a tnica, tambm, ao projeto de poder das monarquias portuguesas envolvidas nessa poltica. Assim, a cultura letrada portuguesa em seu evidente entrelaamento com o poder poltico foi afetada pela experincia de alm-mar. Com isso, a diversidade de povos e costumes com os quais os portugueses entraram em contato, fortemente marcada pela percepo da unidade do gnero humano, haveria de ser articulada ao iderio de um humanismo cvico, orientado por preocupaes didticas e pedaggicas complementares honra, glria e justia de uma monarquia que possui funo estruturante na expanso martima e nas conquistas. Tendo isso em vista, se por um lado a equidade que doravante se estabelece entre letras humanas e letras sagradas pode ser assinalada como elemento constitutivo do movimento humanista, por outro, preciso considerar que no caso portugus, as motivaes da expanso martima possuem lastros profundos em questes de cunho religioso, fundamentalmente nas cruzadas contra os mouros. Com efeito, o intuito desta pesquisa foi percorrer os diversos temas inerentes produo intelectual letrada portuguesa a partir da recuperao da trajetria da vida, bem como da obra de Joo de Barros. Definitivamente, o interesse foi debater a questo do impacto dos descobrimentos martimos no mbito do horizonte intelectual humanista ao incio da poca Moderna por meio do estudo das categorias acionadas numa obra de referncia tal como as Dcadas da sia. Entretanto, importante notar que esta investigao foi levada a cabo sem deixar de recorrer a outras fontes, sejam elas de autoria do prprio Joo de Barros, ou sejam elas de outros autores coevos ao humanista ou no , onde foi possvel coletar, verificar e confrontar informaes que colaboram com o propsito de debater algumas questes que orientaram a elaborao deste trabalho. Sem dvida, um destes questionamentos diz respeito aos limites do pensamento de Joo de Barros em face do lugar social por ele ocupado, ou seja, em que medida a extenso de suas relaes pessoais e o prprio contexto do humanismo portugus circuscrevem, por um lado, seu iderio, e por outro, sua credibilidade enquanto autor? Outro questionamento que conduziu esta investigao articula-se prpria noo de humanidade, a saber, quais os lugares-comuns que instauram uma efetiva continuidade da natureza humana para o historiador quinhentista, e qual a trajetria histrica da noo de humanidade veiculada nas Dcadas da sia? Por fim, de que modo as categorias que 12
pressupunham uma continuidade da natureza humana cujo carter fundamentalmente inclusivo denotavam, simultaneamente, segregao? Pode parecer que a recuperao das ideias inerentes produo intelectual letrada portuguesa a partir da trajetria da vida e da obra de Joo de Barros seja, em ltima instncia, uma histria dos grandes homens e das grandes ideias. Entretanto, as ideias, aqui, esto ancoradas em relaes concretas e funcionam como instrumentos de assimilao ou segregao dos diversos grupos culturais que doravante interagiriam de modo sistemtico com o mundo europeu. Diante disso, o caso de assinalar o fato de que o contexto que proporcionou a revoluo humanista coincidiu com o incio da supremacia europeia no mundo: estabilizada ao longo da poca Moderna, a preponderncia dos pases europeus duraria, ao menos, at meados de sculo XX. 4 sob esta grade de leitura que nos interessa, por exemplo, a ideia de que a histria do sistema-mundo moderno tem sido, em grande parte, a histria da expanso dos povos europeus pelo resto do mundo: em suma, a expanso assinalada por Immanuel Warllerstein pautou-se na difuso de valores pretensamente universais, que entretanto, derivam de um contexto rigorosamente europeu, e funcionaram, sobretudo, como justificativa moral para a ingerncia europia nos mais diversos lugares do mundo. 5
No intuito de recuperar o iderio inerente produo intelectual letrada portuguesa, o que se procurou fazer aqui, foi compreend-lo como o produto de um vocabulrio conceitual disponvel mentalidade renascentista europeia. Assim, a proposta foi encontrar o distanciamento necessrio para compreender o passado no sob a perspectiva do presente, mas sim, em seus prprios termos, e tambm em relao ao presente. O imperativo, aqui, foi o de atentar para os limites inerentes ao pressuposto historicista que nos conduz considerao do passado como alteridade absoluta, uma vez que em ltima instncia, esta proposio restringe a produo historiogrfica a um inventrio de fatos desconexos. Ora, mesmo um historiador contextualista como Paul Oskar Kristeller, que assinala as dificuldades de utilizar o termo humanismo na renascena, por exemplo, no se furta ideia de que o pensamento renascentista contm
4 Cf. LAFAYE, Jaques. Op. cit. 5 Cf. WALLERSTEIN, Immanuel. O universalismo europeu: a retrica do poder. Trad. Beatriz Medina. So Paulo: Boitempo, 2007. Cit. p. 29. 13
os germes da ideia moderna de progresso, ou ainda, de que o embate entre antigos e modernos do sculo XVII detm suas razes nos sculos XV e XVI. 6
Aqui, a recuperao do vocabulrio conceitual de Joo de Barros foi facilitada em larga medida pela edio eletrnica da sia de Joo de Barros: a possibilidade de manipular, selecionar e comparar diferentes trechos da obra permitiu superar os limites impostos pela vasta extenso desta obra. 7
Vale observar ainda, que a recuperao do vocabulrio conceitual foi acompanhada de um procedimento de atualizao ortogrfica. evidente que para um estudo de crtica filolgica, fundamental a manuteno da forma ortogrfica original, uma vez que nestes estudos, os interesses podem residir, por exemplo, no estabelecimento de tipologias para as grafias, sejam elas latinas ou de outras formas populares que paulatinamente desaparecem tal como se pode notar em estudo clssico de Hernani Cidade sobre o assunto. Alm disso, estes estudos tm a possibilidade de se deter, tambm, no estilo de uma obra como as Dcadas, onde possvel verificar pompas de escritura ao se ater, por exemplo, aos discursos, de expresso direta ou indireta [...] em voga na literatura latina, mas que nenhum escritor pe nelas os cuidados arquitetnicos de Joo de Barros. 8 Contudo, o propsito do estudo que aqui se apresenta difere substancialmente das propostas apresentadas por Cidade em seu artigo. Alm disso, creio que seja preciso manter a coerncia na utilizao das fontes. Afinal, foram utilizadas tradues atualizadas de Michel de Montaigne, Nicolau Maquiavel e Thomas Hobbes, entre outros. A rigor, no seria coerente contar com a hiptese de que a manuteno da ortografia original das Dcadas, das gramticas, bem como de outras obras de autoria de Joo de Barros que foram utilizadas, implicaria na utilizao das obras de cada um desses autores em lngua e ortografia originais? provvel que esta prtica viesse a ser contraproducente.
6 Cf. KRISTELLER, Paul Oskar. Philosophy and Humanism in Renaissance Perspective. In: OKELLY, Bernard (edited by). The Renaissance image of man and the world. Ohio: Ohio Univerity Press, 1966. pp. 30 e ss. 7 BARROS, Joo de. sia de Joo de Barros. Eletronic edition (T. F. Early and Stephen Parkinson). Oxford: Centre for the Study of the Portuguese Discoveries, 1992. Deixo aqui meu agradecimento a Aldair Carlos Rodrigues que muito gentilmente me forneceu uma cpia desta edio. 8 CIDADE, Hernani. Joo de Barros: o que pensa da lngua portuguesa, como a escreve. In: Boletim de Filologia. Tomo XI. Miscelnea de filologia, literatura e histria cultural memria de Francisco Adolfo Coelho (1847 1919). Lisboa, 1950, p. 298. 14
Considero inevitvel comparar a atualizao ortogrfica ao exerccio da traduo: entretanto, enquanto esta ltima verte para outra lngua, a primeira verte para outro contexto. Definitivamente, ambas as prticas interferem e corrompem no apenas o texto, mas tambm os conceitos originais. Contudo, o compromisso com a ortodoxia do texto e com a pureza do conceito me remete a um dogmatismo que mais parece a resistncia da Igreja Catlica diante da traduo da Bblia ao longo de sua histria. Em vista disso, categorias como imperium, imitatio ou studia humanitatis foram eventualmente utilizadas, mas no necessariamente. Portanto, aqui, os textos foram atualizados e traduzidos, o que denota, sem dvida, um certo grau de apropriao e inveno. Uma apropriao, todavia controlada pelo dilogo com a historiografia pertiente, coerente com as questes a partir das quais este estudo foi elaborado e, sobretudo, empenhada em fornecer explicaes racionais s questes elaboradas. Dito isto, importa assinalar que a tese est dividida em quatro captulos. O primeiro deles, intitulado Dos preceitos e da perfeio de Joo de Barros, dividido em trs partes, onde a primeira se detm na dignidade e no valor cvico da obra de Joo de Barros como referncia e modelo para outros escritores, a segunda recupera a trajetria do autor das Dcadas na Corte tendo em vista que a honra de cada corteso articula-se definio de seu papel no interior desta instituio , e a terceira atenta para os critrios de classificao social que permitem a hierarquizao das vrias figuras de cortesos, de modo que a bastardia de Joo de Barros ganha especial relevncia. O segundo captulo intitula-se Joo de Barros, sua obra, a especificidade do humanismo portugus e as ambiguidades do reinado de Dom Joo III, e tambm est dividido em trs partes, que em linhas gerais, procuram compreender a obra de Joo de Barros como um espao no qual o autor define suas posies frente s questes de seu tempo. Assim, a primeira parte do captulo circunscreve um primeiro momento da obra do humanista em face de sua opo pela composio de colquios gnero literrio que d maior espao s polmicas, bem como manifestao de opinies heterodoxas. A segunda parte do captulo atenta para as ambiguidades que marcaram o reinado de Dom Joo III, ao passo que a terceira parte se detm em um segundo momento da obra de Joo de Barros, onde sua opo por composies do gnero epidtico caracterizados por um tom fundamentalmente encomistico e que poupam o autor de tomar partido em 15
polmicas inconvenientes , compreendida no mbito de um contexto mais fechado, que se desdobra das diferentes situaes que o reinado de Dom Joo III experimentou. O terceiro captulo, Dos artifcios das Dcadas, possui trs partes cujo intuito perceber o modo como Joo de Barros instrumentaliza sua relao com o passado, ou seja, seu horizonte histrico. Na primeira delas, procurou-se contextualizar a relao entre fala, letra, escrita e o potencial persuasivo inerente a estas categorias. A segunda parte se debrua, principalmente, sobre as noes de escritura e memria enquanto elementos fundamentais para a estruturao de uma sensibilidade que se constitui como ferramenta para a noo de histria. A terceira parte se detm no horizonte histrico de Joo de Barros a partir das conotaes que a noo de histria possui nas Dcadas. Por fim, o quarto e ltimo captulo, intitulado Cincia moral e barbarismo, divide-se em duas partes. A primeira se detm na especificidade do conflito entre antigos e modernos que se desenha no contexto dos descobrimentos martimos e que fornece um horizonte comparativo para dimensionar os feitos portugueses numa relao de constante imitao e emulao com a Antiguidade. A segunda parte procura analisar as noes de usos e costumes como formas especficas de percorrer a alteridade cultural no mbito da formao dos Estados europeus modernos, onde a articulao de uma mirade de povos e territrios sob um nico cetro dependia, tambm, da observncia de leis e costumes em um ambiente marcadamente descontnuo e heterogneo.
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Captulo 1
Dos preceitos e da perfeio de Joo de Barros
[...] na leitura das histrias, que so assunto de toda gente, habituei-me a considerar quem so seus escritores: se so pessoas que tm como nica profisso as letras, aprendo delas principalmente o estilo e a linguagem; se so mdicos, creio neles mais facilmente no que nos dizem sobre a temperatura do ar, sobre a sade e a constituio dos prncipes, sobre os ferimentos e doenas; se jurisconsultos, preciso colher deles as controvrsias dos direitos, as leis, a elaborao de contratos e coisas semelhantes; se telogos, os assuntos da Igreja, punies eclesisticas, dispensas e casamentos; se cortesos, as regras e as cerimnias; se homens de guerra, o que de seu ofcio e principalmente as faanhas em que estiveram pessoalmente; se embaixadores, as manobras, entendimentos e intrigas e a maneira de conduzi-los. (Michel de Montaigne, Uma caracterstica de alguns embaixadores)
Atravs da recuperao das convenes intelectuais que regeram o tratamento dado por Manuel Severim de Faria ao percurso de vida de Joo de Barros, o interesse aqui reside na percepo da consolidao da figura deste autor como elemento fundamental para a credibilidade de seus escritos. Diante desta proposta, primeiramente o captulo se detm no autor da Vida de Joo de Barros, em que se discorre sobre os preceitos da Histria e perfeio com que escreveu as suas Dcadas para, em seguida, apreender o sentido da trajetria apresentada nesta Vida de Joo de Barros no mbito da experincia vivida pelo humanista portugus em seu prprio contexto. A este propsito, a anlise desenvolvida considerou o fato de que a insero de Joo de Barros na Corte 17
portuguesa no pode ser compreendida sem a considerao dos cargos ocupados por ele, bem como sua condio de nascimento.
1.1. A Vida de Manuel Severim de Faria
Em seus Discursos Vrios Polticos, 9 publicados em vora, no ano de 1624, Manuel Severim de Faria, alm de se debruar sobre temas como a importncia do aumento da monarquia espanhola, a perfeio da lngua portuguesa, as condies para o exerccio da caa e de compor uma histria da indumentria eclesistica em Portugal, escreveu, tambm, a biografia de alguns dos mais notveis autores portugueses, dentre os quais, Lus de Cames, Diogo do Couto e o antecessor de ambos, Joo de Barros. 10
relevante considerar, aqui, que leitura de seus Discursos deve ser articulada especificidade de um contexto no qual a Antiguidade percebida de modo paradigmtico; tanto em funo da cristalizao de um percurso histrico que a compreende como um momento ideal da histria da humanidade, como, tambm, em funo do contexto de crise poltica vivido em Portugal, no qual a inveno de uma tradio e a construo de uma memria se faz a partir da estabilizao da figura de personagens relevantes e que possam ser recuperados como fonte de exemplo para a nao. Com efeito, em sua Vida de Joo de Barros, em que se discorre sobre os preceitos da Histria e perfeio com que escreveu as suas Dcadas, um dos livros que compe os Discursos, Severim de Faria d incio ao relato sobre a vida deste personagem, assinalando o fato de que a Repblica de Atenas, que entre os antigos foi a primeira que ensinou a honrar com prmios pblicos as virtudes excelentes dos cidados, 11 no discriminava a atividade intelectual em detrimento da atividade
9 FARIA, Manuel Severim de. Discursos varios politicos / por Manoel Severim de Faria Chantre, & Conego na Santa Se de Evora . - Em Evora: impressos por Manoel Carvalho, impressor da Universidade, 1624. 10 Cf. FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. Cf. tbm. SARAIVA, A. J. e LOPES, O. Histria da Literatura Portuguesa. Porto: Porto Editora, 2008. p. 287. 11 Daqui por diante remeto-me seguinte edio: FARIA, Manuel Severim de. Vida de Joo de Barros por Manuel Severim de Faria e indice geral das quatro dcadas da sua sia (1624).- Nova ed. - Lisboa : Na Rgia Officina Typografica, 1777-1788. p. III. O portugus foi atualizado por mim. Todas as transcries em portugus sero, igualmente, atualizadas. 18
militar. Em vista disso, a quantidade de monumentos construdos memria de seus capites no era maior que a quantidade de monumentos erguidos memria de seus escritores. Pelo contrrio, eram os ltimos ainda mais agalardoados que os primeiros, de modo que s a Demetrio Falereo, discpulo de Teofrasto, dedicaram mais de 300 em seu louvor; e muito maior cuidado puseram em escrever as vidas dos seus filsofos e oradores, que as dos prncipes e capites da mesma repblica. 12
Evidentemente, notrio que o texto de Severim de Faria no pode deixar de ser compreendido como resultante de um momento que se concebe como uma poca j distante da Antiguidade, um ambiente plenamente inserido no contexto da experincia histrica que, tal como sugeriu Jos Antonio Maravall, permitiu sua assimilao como uma categoria referente a um perodo histrico singular, concreto, e sobretudo, paradigmtico. 13 Contudo, no obstante o comentrio de Severim de Faria referente ao mundo antigo, o autor contemporiza ao tratar das motivaes do zelo dispensado pelos atenienses a seus escritores e especula a respeito dos possveis motivos que os levariam a premiar com maior generosidade o trabalho da escritura do que a milcia. Primeiramente, afirma que, enquanto o capito, para alcanar a glria, no pode prescindir do talento e da determinao de seus soldados, o escritor, em seu empreendimento, no pode se valer mais que de seu trabalho e valor prprio. 14 Ou seja, na comparao entre o escritor e o capito, o primeiro quem deve levar os louros, pois a guerra, por ser uma atividade coletiva, obscurece os feitos virtuosos do capito, ao passo que a escritura, sendo uma atividade individual, sublima as virtudes do escritor. Todavia, para Manuel Severim de Faria, a valorizao do trabalho no se resumia, unicamente, a uma variao do modo pelo qual se executava a atividade. Havia, ainda, um critrio de valorao intrnseco finalidade do trabalho. Assim, a milcia, alm de ofuscar as virtudes individuais, se ocupa da conservao de um s prncipe ou governador, que muitas vezes um tirano da repblica, medida que, na escritura, um s trabalha pela conservao de todos, e faz com ela viver na lembrana
12 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p. III. 13 Cf. MARAVALL, Jos Antonio. Antiguos y Modernos. Visin de la historia e idea de progreso hasta el Renacimiento. Madrid: Alianza Editorial, 1986. p. 283 e ss. 14 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p. III e IV. 19
dos homens aqueles que pela ptria entregaram liberalmente as vidas, e conservando a memria das coisas passadas, d regra para acertar nas futuras. 15
Desse modo, a partir da sugesto de uma oposio embora nem sempre efetiva entre milcia e escrita, Manuel Severim de Faria nos faz pensar que na Repblica de Atenas, tanto o escritor, quanto a escritura, estavam a servio do bem pblico a conservao de todos enquanto a atividade militar estava a servio de interesses particulares um s prncipe. Com isso, desenha uma tpica comum da literatura portuguesa: a antinomia entre armas e letras. Lus de Sousa Rebelo nos ajuda a compreender a importncia dessa tpica, medida que recupera sua trajetria no mbito da histria da literatura, no apenas em Portugal, mas, tambm, no ocidente. Segundo ele, a tpica remonta religio pr- histrica indo-europia, na qual o sistema csmico, religioso e social se hierarquizava numa ordem trinitria de funes: a soberania, [...] a guerra e a fecundidade, 16 onde a noo de soberania se apresentava intrinsecamente ligada dualidade rgia, ora mgica e terrificante, ora sbia e justa. Esta antinomia, explica Sousa Rebelo, foi incorporada pelos mestres da retrica romana e, ao longo da histria, se recomps na polarizao sapientia e fortitudo, formulao que surgiu para qualificar a conduta dos grandes personagens latinos. 17
Com efeito, a tpica se difundiu principalmente atravs da pena de retricos, tratadistas, panegiristas, oradores fnebres, bem como de outros autores e conheceu terreno frtil no mbito da civilizao hispano-islmica, ao passo que veiculava o ideal do monarca ilustrado, personagem efetivamente experimentado nesta sociedade. Entretanto, foi ao longo do Renascimento, que transmuda-se o tpico da sapientia et fortitudo no das armas e das letras para ganhar definitiva importncia na Pennsula Ibrica ao longo dos sculos XVI e XVII. Atento ao fenmeno, Rebelo faz notar que, por detrs desta querela ideolgica e literria, h uma assero do direito de cidadania,
[...] concretizado na atuao coletiva dos cidados, perante a soluo imposta para as grandes questes nacionais pelo poder das armas. Ora Ccero, tal como Cipio, simbolizava na vida e nos seus escritos esse ideal cvico, ao passo que Csar tipificava, no plano existencial, a segunda opo.
15 Idem. ibidem. p. IV. 16 REBELO, Luis de Sousa. A tradio clssica na literatura portuguesa. Lisboa: Livros Horizonte, 1982. p. 195. 17 REBELO, Luis de Sousa. Op. cit. p. 196. 20
E quando Ccero vai pleitear perante os juzes de instruo o caso do poeta Aulo Licnio, que requeria a cidadania romana [...], argumenta que esse estrangeiro plenamente a merecia por haver ilustrado as letras. Estas, to estimadas de Cipio e daqueles que formavam o seu crculo, perpetuavam os grandes feitos, que sem elas se quedariam na trevas [...]. Ademais, continha ainda a literatura um forte ensinamento moral, como bem sabia Alexandre Magno, leitor assduo de poesia e histria no meio das suas campanhas. E se a argumentao cicernica e os exemplos, que a reforavam, justificavam a concesso do direito de cidadania a um poeta, que j to altos servios prestara, e haveria ainda de prestar Repblica, pelo uso que em louvor dela fizera da sua arte, to-pouco haviam de ser eles jamais esquecidos pelos autores renascentistas. 18
Todavia, o eco deste fenmeno, embora seja ntido em Portugal, matizado por Rebelo medida em que a especificidade do contexto no qual o tpico das armas e das letras surge no deve ser generalizvel a outros contextos. Em vista desta observao de Sousa Rebelo, vale anotar, em linhas gerais, o contexto no qual Manuel Severim de Faria escreveu sua Vida de Joo de Barros, uma vez que, tendo vivido entre os anos de 1583 e1655, pertence a uma gerao de letrados que juntamente com artistas como o calgrafo Manuel Barata ou o arquiteto Pero Vaz Pereira, 19 ou os poetas Diogo Ferreira Figueiroa, Manuel Galhegos, Correia Mantenegro, J. lvares, Frade Morais Sardinha, Miguel Pinto de Sousa, 20 os historiadores Antnio Alves, Antnio lvares, Belchior Estcio do Amaral, Soares Toscano, Antnio da Fonseca Osrio, Lus Marinho de Azevedo, Belchior Rego de Andrade, Diogo de Paiva Andrade, Gaspar de Chaves Sentido, Martim Afonso de Miranda, bem como outros eminentes juristas e eclesisticos coevos frequentou a Corte de Vila-Viosa e, no apenas conheceu todo seu esplendor intelectual, mas, sobretudo, compartilhou sua atmosfera mental. 21
18 Idem. Ibidem. cf. pp. 196 e 198. 19 FRANA, Eduardo DOliveira. Portugal na poca da Restaurao. So Paulo: Editora Hucitec, 1997. p. 112. 20 FRANA, Eduardo DOliveira. Op. cit. p. 112. 21 Cf. FRANA, Eduardo DOliveira. Idem. Ibidem. Frana cita ainda; Juristas como: Pedro Barbosa, Francisco Homem de Abreu ou J. Pinto Ribeiro. Eclesisticos eminentes como: Frei Lus de Sousa, Fr. Bernardino da Silva, Frei Joo de Jesus, P. Joo Lucena, Fr. Bartolomeu Guerreiro. Ou ainda esse infeliz Fr. Agostinho Manuel de Vasconcelos [...]. Sobre a citada atmosfera mental, cf. o referido trabalho de Eduardo Frana, notavelmente o captulo 2, Uma corte de aldeia: a dos Braganas. p.105- 116. 21
Segundo o Dicionrio de Histria de Portugal, Manuel Severim de Faria espera ainda um bigrafo altura da sua figura notabilssima. 22 Sabe-se, contudo, que foi presbtero, mestre em Artes e alcanou o grau de doutor em Filosofia e Teologia pela Universidade Jesutica de vora. Por volta dos vinte e seis anos foi alado a cnego e, em seguida, chantre de vora, cargos herdados de seu tio, Baltasar Faria Severim. Foi poeta e, ao que parece, um diligente antiqurio, tendo, por isso, cultivado o gosto pela erudio arqueolgica. tido como polgrafo dotado de intensa curiosidade histrica, cujo amplo leque de interesses abarcava, praticamente, todos os domnios do conhecimento, desde a descrio geogrfica dos lugares da ptria at numismtica portuguesa, genealogia nobiliria, histria das universidades peninsulares, histria da organizao militar portuguesa ou a histria dos cardeais portugueses. 23
Embora homem de carreira eclesistica, vale notar que Manuel Severim de Faria tem sido apresentado pela historiografia, principalmente, como historiador e refinado erudito e que, enquanto colecionador de peas e objetos antigos, chegou a constituir o mais clebre gabinete de curiosidades de todo o reino. Por sua reputao, tornou-se uma referncia para fidalgos e clrigos dos quatro cantos do imprio portugus, o que fez dele um interlocutor consciente da necessidade de se articular os diferentes lugares de um mundo colonial cada vez mais ameaado no contexto da unio dos reinos ibricos sob um mesmo cetro. 24 Nesse sentido, enquanto historiador, sua obra incorpora elementos inerentes a um horizonte intelectual comum sua poca e sua atmosfera mental. Desse modo, segundo aponta Joaquim Verssimo Serro, a historiografia produzida ao longo do perodo da Unio Ibrica refletiu a permanncia espiritual da velha nao que, embora ligada coroa da Espanha, no perdera os antigos foros, nem to-pouco a conscincia do seu passado histrico. 25
Com efeito, a respeito do perodo da Unio Ibrica, vale anotar que a existncia de um prncipe estrangeiro de nascimento em Portugal no pode ser considerada uma humilhao. Alis, nem em Portugal, nem em pas algum na Europa do sculo XVII.
22 SERRO Joel (dir.). Dicionrio de Histria de Portugal... s.v. Faria, Pe. Severim de. 23 Cf. SARAIVA, A. J. e LOPES, O. Op. cit.. pp.542 e 543; Cf. SERRO Joel (dir.). Op. Cit. s. v. Faria, Pe. Severim de. 24 Cf. MEGIANI, Ana Paula Torres. Poltica e letras no tempo dos Filipes: o Imprio portugus e as conexes de Manoel Severim de Faria e Lus Mendes de Vasconcelos. In: BICALHO, Maria Fernanda e FERLINI, Vera Lcia Amaral. Modos de governar: ideias e prticas polticas no imprio portugus. Sculos XVI-XIX. So Paulo: Alameda, 2005. pp. 239-256. 25 SERRO Joaquim Verssimo. Histria de Portugal. Volume IV. Governo dos Reis Espamhis (1580- 1640). Lisboa: Editorial Verbo, 1990. p. 422. 22
Tambm, no caso especfico da Pennsula Ibrica, houve uma sistemtica tentativa de promover sua unio que, se por um lado, remonta a um passado distante, por outro produziu algum consenso interno quanto unificao das coroas. Nesse sentido, Oliveira Marques sugere que seria um erro supor que a Unio Ibrica constitua apenas o desejo e capricho de um pequeno grupo de cabeas coroadas. 26 sob a tica de uma concepo unificada da Pennsula Ibrica que se pode compreender, por exemplo, o Libro de las costumbres de todas las gentes del Mundo, de Joannes Bomus, com cerca de duzentas pginas acrescentadas por Francisco Tamara, e publicada em Anvers no ano de 1556, onde, ainda que as duas primeiras partes do livro sejam uma compilao das notcias dos antigos sobre os diversos povos do mundo, a terceira parte nos remete s notcias das ndias descobertas pelos espanhis, incluindo las otras tierras y Indias, y islas y prouincias descubiertas por Espaoles Portugueses la buelta de Leuante. 27 Em sntese, nem sempre Espanha e Portugal foram compreendidos separadamente. Por fim, vale notar que o prprio Severim de Faria teria sido acusado de filipista porque, conformando-se com o domnio espanhol, apenas pleiteava a restituio a Lisboa de sua preeminncia de Corte pela residncia do rei. 28
De todo modo, no caso portugus, o que caracterizaria de maneira mais efetiva essa atmosfera mental, seria um desgosto frente s condies polticas locais, sobretudo devido ao fato de que os portugueses sempre haviam tido monarcas naturais em suas duas dinastias anteriores, ambas implantadas mediante duras lutas com Castela. 29
Da uma produo historiogrfica permeada de orgulho nacional, expresso numa corrente que assume um carter de resistncia literria e poltica, por meio da constante evocao dos heris antigos. 30 Onde uma obra como a Monarquia Lusitana vem luz como a primeira tentativa de se elaborar a histria integral da nao portuguesa, buscando suas razes e a continuidade histrica circunscrita numa identidade tnica e geogrfica de Portugal. 31
Sob outro ponto de vista, Diogo Ramada Curto situa, neste momento de questionamento da identidade portuguesa, a produo literria como a atribuio de
26 MARQUES, A. H. de Oliveira. Breve Histria de Portugal. Lisboa: Editorial Presena, 2006. p. 280. 27 TAMARA, Francisco. El libro de las costumbres de todas las gentes del mundo. Anturpia: Martin Nucio, 1556. Apud. CURTO, Diogo Ramada. Cultura imperial e projetos coloniais (sc. XV e XVIII). Campinas/SP: Editora da Unicamp, 2009. p. 123. O grifo meu. 28 FRANA, Eduardo DOliveira. Op. cit. p. 130 e 131. 29 Idem. Op. cit. p. 130. 30 SERRO Joaquim Verssimo. Op. cit. p. 423. 31 Cf. Idem. ibidem. 23
significados e inveno de uma tradio destinada a selecionar e impor sentidos s prticas de escrita, sobretudo diante do fato de que a escrita era moldada, tambm, por uma cultura poltica centrada em ddivas e mercs, onde a proteo oferecida no apenas desempenhava um papel de grande relevo mas, tambm, traduzia as presses sociais inerentes s protees nobilirquicas e lgicas de parentesco. Da a necessidade de notarmos, tambm, que um autor como Severim de Faria no deixava de se servir de seus escritos para difundir uma viso de mundo pontual, no intuito de interferir no debate poltico de seu tempo. Por isso, no seria fora de propsito atentarmos para o fato de que, se, por um lado, a inveno de uma tradio pode nortear a construo de um sentido para as prticas de escrita do passado, por outro, este procedimento no est desvinculado da especificidade de um contexto onde a lgica de sucesso familiar dinamiza o embate na construo desses sentidos, tal como foi o caso do processo judicial movido por Antnio de Barros de Almeida contra Joo Batista Lavanha depois que este levara prensa, em 1615, os manuscritos da Quarta Dcada. 32
De todo modo, notvel o quanto o perodo no qual vigorou a monarquia dual afetou a estrutura sociocultural portuguesa, sobretudo ao passo que despertou problemas no mbito do pensamento cvico, notavelmente por meio do nacionalismo. Para Lus de Sousa Rebelo, nesse contexto, o conceito nuclear do tpico das armas e das letras passa a acusar uma viragem de rumo, sobretudo em vista da especificidade dessas novas preocupaes. Dessa inflexo, diz Rebelo, renasce o diferendo que ope a superioridade da milcia, ou da aco, s letras, ou vida contemplativa. A hora [...] voltava a ser a da aristocracia da espada. 33
Assim, fica evidente a tentativa de Manuel Severim de Faria reabilitar a figura de Joo de Barros pelo alto servio prestado Repblica atravs de sua arte. Entretanto, a proposta que o bigrafo de Joo de Barros leva a cabo revela exatamente a predominncia do tema das armas em detrimento das letras apontado por Rebelo. Sobre isso, Severim de Faria eloquente medida que nos revela que o bom costume cultivado pela Repblica de Atenas o honrar com prmios pblicos seus escritores
[...] tem cessado h muitos anos, vemos agora isto pelo contrrio, sendo muitos os que escrevem histrias de Capites, e raros os que se
32 Cf. CURTO, Diogo Ramada. Op. cit. Parte II Cultura escrita e prticas de identidade (1570 1697). 33 REBELO, Luis de Sousa. Op. cit. p. 230. 24
ocupam em nos dar notcia dos que as escreveram, particularmente neste Reino, onde ainda que no pequena a falta que temos do conhecimento dos Escritores antigos, e mais para sentir o pouco que comumente se alcana do nosso grande Joo de Barros, trabalhando ele toda a vida por ilustrar a ptria, e deixar de seus naturais gloriosa memria. 34
De acordo com Antnio Lopes Saraiva e scar Lopes, a Vida de Joo de Barros de Manuel Severim de Faria a principal fonte para o estudo da biografia e da bibliografia de Joo de Barros. 35 Da importncia e notoriedade desta obra, Antnio Baio atenta ainda para o fato de que nela, Severim de Faria se serviu de informaes orais hoje impossveis de adquirir. 36 Importante, portanto, considerar, por um lado, o contexto nacionalista e a conotao civil a que o texto de Severim de Faria nos remete. Todavia, por outro lado, no se pode deixar de notar que para o bigrafo, Joo de Barros no apenas trabalhou por ilustrar a ptria, mas tambm, para deixar de seus naturais gloriosa memria. Ou seja, Manuel Severim de Faria reconhece o aspecto mnemnico que a obra de Joo de Barros evoca. Ora, a reabilitao da figura de Joo de Barros est articulada ao seu trabalho dedicado memria de seus naturais. Com efeito, a memria, em sua dimenso coletiva, tem sido posta em jogo, historicamente, na luta das foras sociais pelo poder. Sob esta perspectiva Jaques Le Goff nos alerta para o fato de que, tornar-se senhores da memria e do esquecimento uma das grandes preocupaes das classes, dos grupos, dos indivduos que dominaram e dominam as sociedades histricas. 37 Diante disso, no embate sobre os sentidos do passado, possvel compreender a construo da figura desse autor no mbito de uma carreira individualizada e a servio do rei, em oposio s lgicas de sucesso familiar, to evidentes na disputa judicial movida contra Joo Batista Lavanha. 38
Efetivamente, no nosso objetivo recuperar, aqui, o debate a respeito do conceito de memria em toda sua extenso, nem mesmo considerar fenmenos como o
34 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p. IV. 35 Cf. SARAIVA, A. J. e LOPES, O. Op. cit. 36 BAIO, Antnio. Introduo. In: BARROS, Joo de. sia de Joam de Barros. Dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do oriente. Quarta edio revista e prefaciada por Antnio Baio. Coimbra: Imprensa da Universidade, 1932 (Edio fac-similar Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1998). p. V. 37 LE GOFF, Jaques. Memria. In: Histria e memria. Trad. Bernardo Leito et alii. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2003. p. 422. 38 Cf. CURTO, Diogo Ramada. Op. cit. 25
da memria tnica das sociedades sem escrita. Contudo, vale atentar para o fato de que, no Ocidente, foi ao longo da Idade Mdia que a escrita se desenvolveu par da oralidade e, sobretudo no seio do grupo dos literatos, a memria oral e a memria escrita entraram em equilbrio, enquanto o recurso ao segundo suporte de memria se intensificava. Mas foi principalmente sob o progresso da memria escrita ao longo da renascena que este suporte foi colocado a servio do centralismo monrquico. 39 O que, por sua vez, nos revela algo a respeito do partido tomado por Manuel Severim de Faria. Com efeito, notemos, em suma, um carter que se apresenta duplamente poltico da Vida de Joo de Barros. Por um lado em seu aspecto civil e, por outro, em seu esforo de cristalizar elementos para a constituio de uma memria coletiva, fundamentada na continuidade artificial de uma suposta experincia comum. possvel apontar, ainda, um terceiro aspecto da Vida de Joo de Barros que se articula e refora a dimenso valorativa do carter civil desse personagem, ainda que sob outro ponto de vista. Trata-se, propriamente, do objeto em questo at o momento, a saber, a narrativa biogrfica da vida. Em sua tese sobre Francisco S de Miranda, Srgio Alcides atenta para estas narrativas enquanto aparatos editoriais que reforavam o vnculo entre a imagem do autor e seu texto. Para ele, o vnculo entre as publicaes impressas e o realce da autoria uma condio que se generaliza na cultura letrada precisamente ao longo do sculo XVI, num plano europeu. 40
Atento ao todo narrativo formado no apenas pela vida, mas tambm pelo retrato, Srgio Alcides anota que elementos descritivos tais como a aparncia fsica e os hbitos morais se estabeleceram como regra no gnero biogrfico desde a Antiguidade, 41 quando o ensino das composies orais e escritas era orientado por modelos aprovados de inventividade, arranjo e estilo. Este procedimento, por meio do qual os estudantes deveriam procurar imitar esses modelos, haveria de ser combinado com a emulao, onde o exemplo da escrita e da fala aparecia, eventualmente, associado necessidade de se observar a vida e a moral. 42
39 Cf. LE GOFF, Jaques. Op. cit. 40 ALCIDES, Srgio. Desavenas. Poesia, poder e melancolia nas obras do doutor Francisco de S de Miranda. Tese de Doutorado. So Paulo: FFLCH-USP, 2007. p.14. 41 Cf. ALCIDES, Srgio. Op. Cit. p.48 e ss. 42 Convidarei o douto imitador a atentar para o modelo da vida e dos costumes e a partir disto a compor falas vivas. QUINTO HORCIO FLACO. Arte Potica. Linhas 309-318. Trad. Mauri Furlan. In: http://www.latim.ufsc.br/986ED7F3-3F3A-4BC2-BBE3-A3514D872AC1.html. Acesso em 05/08/2011. Cf. tbm. SLOANE, Thomas O (Editor in Chief). Encyclopedia of rhetoric. Oxford: Oxford University Press, 2001, s. v. Imitation. 26
Entretanto, a imitao de modelos de linguagem e literatura da Antiguidade clssica foi pouco difundida na Idade Mdia e o que ganhou efetiva aderncia neste perodo foi a imitao dos exemplos morais encontrados principalmente na literatura de carter devocional, tal como se pode ver na Imitao de Cristo, obra atribuda ao monge alemo Toms de Kempis. Contudo, entre os humanistas italianos da renascena, a imitao literria viria a se tornar uma operao intelectual basilar, no menos importante que a imitao da arte clssica e da arquitetura, por exemplo. Tal fenmeno pode ser compreendido como o mais notrio desdobramento do processo de recuperao das obras latinas caracterstico desse momento, e que trouxe um novo olhar sobre o latim medieval, que doravante, seria visto como decadente e brbaro. Com isso, os humanistas entenderiam a imitao da linguagem e do estilo dos escritores clssicos latinos como o melhor antdoto para a superao do decado latim medieval. 43
Com efeito, possvel considerar este procedimento de imitao como fenmeno emblemtico do incio da poca Moderna. Para Federico Chabod, a imitatio pode ser compreendida, precisamente, como uma prtica caracterstica do Renascimento europeu, visto que ela incorpora a prpria contraposio Renascimento- Medievo sob o aspecto das diferentes maneiras de se relacionar com a cultura clssica. Segundo Chabod, a imitatio :
[...] a grande palavra que separa o mundo de Cola Di Rienzo do de Hildeberto de Le Mans. Em lugar da combinao entre admirao e deplorao por aquilo que j no pode mais renascer, a vontade de atuar em conformidade com tudo quanto se aprende com os antigos, o exercere substitui o legere, e, em lugar da elega, a exortao renovao do antigo explendor, a glria de Roma. 44
Tambm para Eugenio Garin a imitao a palavra de ordem desse novo momento histrico que representou a cultura do Renascimento. Todavia, Garin observa que a recuperao e a imitao da Antiguidade foi um fenmeno de extrema complexidade, uma vez que os limites desse procedimento intelectual residiam no mbito de sua efetiva interao com o ambiente renascentista, o qual, em face de sua especificidade, nem sempre poderia encontrar, no passado, um repertrio de
43 Cf. SLOANE, Thomas O (Editor in Chief). Op. cit. 44 CHABOD, Federico. Escritos sobre el Renacimiento. Trad. Rodrigo Ruza. Mxico: FCE, 1990. p. 77. Traduo para o portugus feita por mim. 27
formulaes que auxiliassem compreenso do presente. Desse modo, era fundamental que a recuperao dessas referncias se realizasse como um procedimento autoconsciente, por meio do qual a redescoberta do antigo trouxesse, simultaneamente, a conscincia do moderno. Nesse sentido, o historiador italiano observa que representativa a recorrncia da tpica do trabalho da abelha na pena de humanistas como Petrarca ou, mais tarde, Ronsard: ao voar sobre as flores a abelha recolhe o plen, e a partir dele, faz o mel e a cera; est sobretudo neste trabalho de sntese a originalidade do Renascimento, ou seja, a partir da leitura e da recuperao dos antigos por meio da imitao que se atualiza uma tradio de maneira absolutamente nova. 45
Nesse mesmo sentido, Jos Antonio Maravall argumenta que a diferena entre uma fase Medieval e outra Moderna, naquilo que se refere cultura da Antiguidade, est na conscincia histrica com que, ante esta Antiguidade, se colocam uns e outros. Segundo o autor, a Idade Mdia parte de um princpio de contemporaneidade de todos os sculos, em virtude do qual se considera compreendido no mesmo mbito daqueles antigos a quem veneram, sem nenhuma separao radical entre ambos os momentos e que, portanto, a poca Medieval foi marcada por um sentimento de pertena a uma mesma continuidade histrica em relao Antiguidade. Por outro lado, Maravall afirma que o homem da poca Moderna detm uma outra chave de leitura do tempo histrico, onde o desenvolvimento de um fio contnuo no curso do tempo diferencivel em vrias fases ou pocas. Para este autor, el factor de continuidad, en la medida que existe, permite contemplar el tiempo de las sociedades como un curso no interrumpido, pero que por su misma larga duracin va llevando a situaciones diferentes unas de las otras. 46 Com isso, uma dessas fases distintas no tempo a
45 Cf. GARIN, Eugenio. La cultura del Rinascimento. Milano, 1988. 46 Cf. MARAVALL, Jos Antonio. Op. cit. p.285 e 286. Sem sombra de dvidas, Antnio Maravall ecoa o belssimo e sugestivo texto de Erwin Panofsky: A Idade Mdia havia deixado insepulta a Antiguidade, e alternadamente galvanizou e exorcizou seu cadver. O Renascimento chorou ante sua tumba e tratou de ressuscitar sua alma: e em um momento fatalmente propcio o logrou. Por isso o conceito medieval de Antiguidade foi to concreto e ao mesmo tempo to incompleto e deformado; enquanto o moderno, desenvolvido gradualmente ao longo dos ltimos trezentos ou quatrocentos anos, completo e consequente, porm, se se me permite dizer, abstrato. E por isso os renascimentos medievais foram transitrios, ao passo que o Renascimento foi permanente. As almas ressuscitadas so intangveis, porm tm as vantagens da imortalidade e da ubiquidade. Da que o papel da Antiguidade clssica depois do Renascimento seja um tanto esquivo, porm, por outro lado, onipresente: e mutvel s a custa da mutao de nossa civilizao como tal. In: PANOFSKY, Erwin. Renacimiento y renacimientos en el arte occidental. Trad. Maria Luisa Balseiro. Madrid: Alianza, 1991. p. 173. Traduo para o portugus feita por mim. 28
Moderna, diferente daquela precedente, Medieval, dos brbaros que viveram um sculo de obscuridade, precisamente por terem-se separado da linha dos antigos. Em suma, diante de seu aspecto de sntese fsica e moral, a vida contribuiu para o surgimento de uma imagem estvel do autor. Imagem, que no seio de uma cultura construda sobre um imperativo pautado na imitao, constitua-se tambm como exemplo a ser seguido. 47 Portanto, esta imagem modelar se apresenta alinhada Antiguidade clssica, j cristalizada enquanto momento ideal da histria humana, lugar de realizao das mais altas aspiraes dos homens e que, sobretudo, haveria de servir de guia basta recuperarmos, aqui, a leitura feita por Severim de Faria da repblica de Atenas ao assinalar sua singularidade, a primeira, e sua exemplaridade, que ensinou para aes elevadas, tanto no campo das letras como no das artes, no da milcia e, tambm, no da poltica. Esta grade de leitura nos ajuda a compreender o horizonte intelectual que d sentido Vida de Joo de Barros em seu contexto de produo. Com isso, mais uma vez a partir do prprio texto de Manuel Severim de Faria que se pode reiterar o argumento at aqui desenvolvido. Anota o historiador que Joo de Barros foi:
[...] varo de vida exemplar, e muito piedoso, como se v bem de suas obras, que podem ser nisso exemplo a outros escritores modernos, os quaes compem seus livros com tal esquecimento das coisas Divinas, que lidos eles, no se pode determinar se o autor cristo, se gentio, como j se disse de Joviano Pontano, e de outros. Esta piedade lhe fez procurar por tantas vias o melhoramento dos costumes de seus naturais, compondo tantas obras 48
Aqui, Severim de Faria julga que a obra de Joo de Barros incorpora e deixa transparecer a exemplaridade e piedade que o definem. Desse modo, a singularidade de sua vida e de seu trabalho pode ser generalizada como referncia e modelo para outros escritores. E a prpria existncia de mulos reitera sua excelncia, uma vez que os maus naturalmente aborrecem os bons por serem contrrios a seus costumes. 49 Sua exemplaridade o associa, ainda, ao desempenho de papis polticos, ao passo que
47 Cf. ALCIDES, Srgio. Op. Cit. Idem. 48 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p. LVIII. 49 Idem. Op. cit. Ibidem. 29
considerado homem de grande conselho, prudncia, verdade, e crdito, 50 habilidades fundamentais ao homem de Corte. Logo, Joo de Barros alcana feliz memria, qual ajudou muito com a artificial. 51 Est fora de dvidas, portanto, que esta memria tem algo a ver no apenas com o passado, mas tambm com a identidade e com sua persistncia no futuro. 52
Em sntese, a celebrao de um heri em um momento de crise de confiana nacional, ou de desgosto em funo das condies polticas locais e conjunturais, pode nos remeter hiptese da existncia de uma compensao cultural constituda pela publicao de obras destinadas a inventar ou manipular a memria dos heris do passado. Com efeito, se a escrita um instrumento destinado a interferir no debate poltico, estas celebraes do passado podem ser compreendidas como uma das possveis respostas frente situao de crise no plano poltico e, porque no, como um dos instrumentos mais bem acabados daqueles que pretendem exorcizar sua prprias derrotas. 53
1.2. Joo de Barros cresce
Ainda que nosso objetivo no seja a elaborao de uma biografia detalhada de Joo de Barros, importa nos debruarmos sobre sua trajetria de vida, sobretudo como homem de Corte, uma vez que este percurso mostra-se associado aos atributos e qualidades de seus escritos. Assim, entramos nitidamente no cerne da imagem do autor, estabilizada no apenas enquanto o responsvel pela composio das obras de engenho mas, sobretudo, enquanto aquele que possui credibilidade em funo de sua reconhecida autoridade e retido moral. Todos os bons autores se ho de ler com estudo 54
50 Idem. Ibidem. p.LXII. 51 Idem. Ibidem. 52 Cf. ROSSI, Paolo. O passado, a memria, o esquecimento. Seis ensaios da histria das ideias. Trad. Nilson Moulin. So Paulo: Editora UNESP, 2010. 53 Cf. CURTO, Diogo Ramada. Op. cit. 54 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario portuguez, & latino. Authorizado com exemplos dos melhores escritores portuguezes, & latinos, e offerecido a elrey de Portugal Dom Joam V. pelo padre Dom Raphael Bluteau. Lisboa: Na Officina de Pascoal da Sylva, 1712/1728. p. 684. (Os 8 volumes que compoem o dicionario foram publicados ao longo de 9 anos, a saber: Volumes I e II, em 1712; III e IV, em 1713; volume V, em 1716, volumes VI e VII, em 1720 e o volume VIII, em 1721. Aos 8 volumes juntaram-se outros dois de suplementos publicados entre 1727 e 1728, contendo mais de cinco mil vocbulos que no 30
escreveria Rafael Bluteau em seu Vocabulrio Portugus e Latino um sculo depois de Severim de Faria sem deixar de evocar, porm, a autoridade e o exemplo dos melhores escritores portugueses e latinos. Como exemplo de retido moral, a conduta deste autor s ganha sentido quando imersa no contexto de sua experincia social concreta, que a vida na Corte. A princpio possvel afirmar, unicamente, que o corteso um dos principais personagens dentre aqueles que emergiram ao longo do incio da poca Moderna, e que a conotao poltica de sua representao enquanto ideal de vida civil no se afasta dos padres de honra e dignidade que lhe devem ser caractersticos. Com efeito, indcio da exemplaridade da vida Joo de Barros nos apresentado em sua prpria trajetria enquanto homem de Corte. A respeito dessa trajetria at o momento de sua entrada para o pao a historiografia consultada imprecisa. Alm da Vida de Severim de Faria, muito do que se sabe do percurso de Joo de Barros advm de sua prpria obra e do importantssimo dossi publicado por Antnio Baio, 55 com o qual o historiador se props a autenticar certas afirmaes de Severim de Faria, aditar e precisar outras e at ratificar algumas. 56 Contudo, mesmo em face das dificuldades, Joo de Barros tem sido visitado com alguma sistematicidade pela historiografia, que nunca deixou de lhe traar uma sntese biogrfica. Dentre alguns estudos de referncia, vale mencionar, alm do texto fundamental de Antnio Baio, 57 as contribuies de Antnio Alberto Banha de Andrade, Joo de Barros: historiador do pensamento humanista portugus de quinhentos, 58 a de Charles R. Boxer, Joo de Barros, Portuguese humanist and historian of Asia, 59 e as de Antnio Borges Coelho, Tudo mercadoria. Sobre o percurso e obra de Joo de Barros e Joo de Barros: vida e obra. 60
constavam nos volumes anteriores). s. v. Author. Disponvel em: http://www.ieb.usp.br/online/index.asp. Acesso em 09/08/2011. 55 Cf. BAIO, Antnio (org.). Documentos inditos sobre Joo de Barros, sobre o escritor seu homnimo contemporneo, sobre a famlia do historiador e sobre os contiuadores das suas Dcadas. In: Boletim da Segunda Classe da Academia das Sciencias de Lisboa. Vol. XL, 1917. pp. 202-355. 56 BAIO, Antnio. Introduo. In: Op. cit. p. VI. 57 BAIO, Antnio. Idem. Op. cit. 58 ANDRADE, Antnio Alberto Banha de. Joo de Barros: historiador do pensamento humanista portugus de quinhentos. Lisboa: Academia Portuguesa da Histria, 1980. 59 BOXER, Charles R. Joo de Barros, Portuguese humanist and historian of Asia. New Delhi: Concept Publishing Company, 1981. 60 COELHO, Antnio Borges. Tudo mercadoria. Sobre o percurso e obra de Joo de Barros. Caminho, 1992; COELHO, Antnio Borges. Joo de Barros: vida e obra. Lisboa: Grupo de Trabalho do Min. da Educao para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses, 1997. 31
Assim, embora no haja fontes seguras para atestar a informao, a historiografia aponta o ano de 1496 como data provvel de seu nascimento, que teria ocorrido possivelmente na provncia da Beira, em Viseu, a me que me gerou, tal como afirma o prprio Joo de Barros referindo-se ao lugar. 61 Nascido, portanto, dois anos antes da chegada de Vasco da Gama ndia, filho de Lopo de Barros, pessoa nobre e dos principais desta famlia [...] neto de lvaro de Barros, senhor do morgado de Moreira. 62 Seu pai foi vereador de Viseu e corregedor de Entre-Tejo-e-Odiana. 63
Ainda a respeito da ascendncia de Barros, Severim de Faria enfatiza sua nobreza ao atentar para as memrias das quais sua linhagem se pode gloriar. 64 Seu av, lvaro de Barros, teria sido fundador do Mosteiro de Requio da Congregao de So Joo Evangelista e neto de Martim Martins de Barros, um dos mais antigos fidalgos da linhagem. Alm disso, a Casa possua alguns morgados na regio do Minho, e antigamente tiveram lugares com jurisdio, 65 tais como o Perozelo merc que foi feita pelo rei Dom Pedro a Nuno Fernandes de Barros e Castro Daire merc que foi feita pelo rei Dom Joo I a Gonalo Nunes de Barros. Por fim, Severim de Faria atenta para os letrados da linhagem, e menciona o primo irmo de Joo de Barros, Dom Frei Braz de Barros, que foi o primeiro Bispo de Leiria. Por sua vez, Antnio Borges Coelho anota que, segundo Manoel Botelho Pereira, o pai de Joo de Barros foi criado de Afonso V, de Dom Joo II e de Dom Manuel, tendo participado da tomada de Arzila e capitaneado um esquadro no cerco do Sabugal durante as guerras luso-castelhanas do Africano. 66 Contudo, embora se saiba relativamente bastante a respeito de seu pai, no h qualquer meno a respeito da figura materna, claro indcio de bastardia. Sobre a entrada de Joo de Barros para o pao, Severim de Faria nos revela ter ido a servio do Rei Dom Manuel de to poucos anos, que ele mesmo confessa que idade do jogo de pio. 67 Ou seja, entrou para a Corte quando era ainda uma criana, e possivelmente mediado por um nobre da mais alta espirpe, Dom Joo de Meneses prior do Crato e mordomo-mor do rei Dom Manuel , amigo de Lopo de Barros. 68 Esse
61 BARROS, Joo de. Panegrico da Infante Dona Maria. Apud. COELHO, Antnio Borges. Tudo mercadoria... p. 17. 62 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p. V. 63 Cf. COELHO, Antnio Borges. Op. cit. 64 Cf. FARIA, Manuel Severim de. Idem. p. VI e COELHO, Antnio Borges. Op. cit. p. 20. 65 Cf. FARIA, Manuel Severim de. Ibidem. p. VII. 66 Cf. COELHO, Antnio Borges. Op. cit. p. 20. 67 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p. VII. 68 Cf. COELHO, Antnio Borges. Op. cit. p.21. 32
fato nos revela algo a respeito dessa instituio social e sua lgica enquanto uma sociedade de razes medievais, cuja persistncia na primeira modernidade o mais notvel indcio de sua importncia como um circuito social onde se teciam redes de interdependncia. 69 Realmente, como assinalou Diogo Ramada Curto, as possibilidades de carreira, no interior da Corte, no so independentes da configurao das faces que a existem. 70 Em vista disso, a trajetria da vida de Joo de Barros descrita por Severim de Faria nos revela ter sido ele muito bem amparado no ambiente corteso. Tal como sugeriu oportunamente Peter Burke, embora no seja fcil dizer exatamente o que era um corteso, ele pode ser compreendido, juntamente com o humanista figura com a qual muitas vezes se confunde e o prncipe, como um dos personagens de maior visibilidade da renascena, cuja vida orbitava em torno da Corte. Por sua vez, a Corte, alm do palcio, em si, composto de ptios, sales e aposentos, era um tipo especial de instituio medida que abrigava o rei. 71 O lugar onde reside o rei, assistido dos oficiais e ministros da Casa real, 72 como definiria Rafel Bluteau. Grosso modo, portanto, e tendo em vista principalmente a idia inerente noo de Casa real, possvel compreender a Corte como a famlia de um soberano frente a quem servir, sempre, de paradigma. O prprio Joo de Barros escreveria no Panegrico do Rei Dom Joo III no haver coisa mais prejudicial ao vassalo que o mau costume ou defeito do senhor. 73 Com efeito, Emmanuel Le Roy Ladurie aponta para o fato de que a monarquia liga-se estreitamente ao funcionamento da Corte, centrada em torno do soberano, 74 de modo que a Corte erige-se em lugar geomtrico das hierarquias 75 e, efetivamente, sustenta o sistema monrquico. Por sua vez, em artigo esclarecedor, Valerio Valeri, atento aos elementos estruturais da noo de realeza, distingue-a da instituio monrquica. Para ele,
69 Cf. BURKE, Peter. O corteso. In: GARIN, Eugenio. O homem renascentista. Trad. Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Editorial Presena, 1991. pp. 101119. 70 CURTO, Diogo Ramada. A cultura poltica. In: MATTOSO, Jos (direco). Histria de Portugal. Terceiro Volume: No alvorecer da Modernidade. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. p. 112. 71 Cf. BURKE, Peter. Op. cit. 72 BLUTEAU, Raphael. Op. cit. s. v. Corte. Disponvel em http://www.ieb.usp.br/online/index.asp. Acesso em 19/08/2011. 73 BARROS, Joo de. Panegrico do Rei Dom Joo III. In: Panegricos (Panegrico de Dom Joo III e da Infanta Dona Maria). Texto restitudo, prefaciado e notas pelo prof. M. Rodrigues Lapa. Lisboa: Livraria S da Costa, 1943. p. 7. 74 LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Estado monrquico, Frana, 1460-1610. Trad. Maria Lcia Machado. So Paulo: Companhia das Letras, 1994. p. 14. 75 LADURIE, Emmanuel Le Roy. Op. cit. p. 15. 33
enquanto a primeira designa aquilo que pertence pessoa e ao estatuto do rei, a segunda se refere forma do governo rgio. Neste sentido, ao passo que a realeza um sistema de organizao poltica no qual uma pessoa o centro de toda a comunidade, o rei deve representar os valores fundamentais da sociedade sobre a qual reina. Revestido de um poder mstico fundamentado, principalmente, no uso da fora, o rei transcende a uma dimenso meta-humana e divina, cujo poder se legitimar frente sociedade sobre a qual reina por meio do ritual da coroao momento no qual estabelece uma unio com seu povo. Desse modo, para Valeri, no existe oposio entre o ritual e o poltico e, por isso, assegura-nos que no h estruturas sociais sem estruturas simblicas (e vice-versa). Ainda para este autor, a sacralidade do rei ser, sempre, motivada por sua capacidade de representar a sociedade a si prpria como totalidade. Com isso, o rei vem a ser a ideia abstrata que luta para se realizar concretamente, e tal realizao s se tornar possvel graas a um processo de desdobramento do rei em duplos. Ainda segundo o antroplogo, uma importante realizao deste princpio a generalizao da estrutura da Corte. No limite, assegura-nos Valeri:
[...] a compenetrao da pessoa do rei na sociedade realizada pela imitao do seu comportamento por parte dos sbditos. O rei e a sua Corte tendem ento a tornar-se o paradigma do comportamento (etiqueta, etc.); sobretudo na Europa moderna, o rei alargou deste modo o seu controle sobre a sociedade [...] Mas, se todos se comportam como o rei, ento todos so coletivamente o rei: a generalizao ilimitada da realeza leva paradoxalmente sua dissoluo em um novo soberano: o povo. Por isso a realeza deve recriar periodicamente a distino entre o todo e a parte (rei, Corte) que o simboliza. 76
Da, conclui o autor, possvel perceber o papel de fenmenos ligados s formas de distino social, tais como a moda. Diante disso, no seria fora de propsito observar, aqui, algumas proposies referentes ao poder real. Partindo das problemticas desenvolvidas por historiadores como Otto Brunner e Gerhard Oestreich, ou seja, a observao de continuidades entre os sistemas polticos medieval e moderno, onde as realidades provinciais, as agremiaes regionais, as foras locais, os senhorios, as cidades e os poderes
76 Cf. VALERI, Valerio. Realeza. In: Enciclopdia Einaudi. Volume 30. Religio-Rito. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994. pp. 415-445. Cit. p. 439. 34
intermedirios do sistema poltico europeu da poca moderna no perdem sua autonomia, Antnio Manuel Hespanha define o poltico como um campo social autnomo sob uma tica fenomenolgica, onde a essncia do poder reside, fundamentalmente, em seu modo de funcionamento, ou seja, para ele, o poder s se detm quando se exerce. 77 Contudo, Hespanha no se furta da observao de que o rei figurava, no imaginrio poltico dos sbditos, como um ideal de bom governo e de justia, 78 muito embora, no exerccio cotidiano do poder estivesse sujeito aos enganos dos executores. Por sua vez, no caso dos privilgios corporativos, Manuel Hespanha observa que a integrao da Igreja no sistema do poder corresponde a um modelo que iremos econtrar em relao a outros plos de poder poltico. 79 Para ele, no plano simblico, a preeminncia da coroa, como caput communitatis, salvaguardada pela garantia da proteo rgia 80 e pelo reconhecimento da superioridade temporal do rei. A esta superioridade simblica junta-se a soma de prerrogativas que, no plano material, a coroa foi adquirindo em relao Igreja, nomeadamente a sujeio a certos impostos. 81 Todavia, matiza o autor, mais uma vez atentando para o mbito da prtica cotidiana do poder o domnio de autonomia e particularismo da Igreja mantinha uma enorme importncia. 82 Ora, sem negar a importncia relativa dos poderes locais, no se pode perder de vista que so as prprias aes cotidianas que conferem a excepcionalidade e o sentido do rito lembro aqui dos rituais de sagrao por exemplo. 83 Por isso, a autonomia do poltico pretendida por Antnio Manuel Hespanha se esvazia em funo dessa dimenso relacional, que condiciona a produo de sentidos do simblico. Definitivamente, o poder no pode ser concebido em termos fenomenolgicos pois no uma auto evidncia emprica. 84 A prpria noo de soberania possui uma dimenso relacional, como nota Giorgio Agamben: o soberano
77 Cf. HESPANHA, Antnio Manuel. As vsperas do Leviathan. Instituies e poder poltico. Portugal sc. XVII. Coimbra: Livraria Almedina, 1994. Cf. p. 43, cit. p. 40. Cf. tbm. OESTREICH, G. Problemas estruturais do absolutismo europeu. In: HESPANHA, Antnio Manuel. Poder e instituies na Europa do Antigo Regime. (colectnia de textos). Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, s/d. p. 181- 200). 78 Cf. HESPANHA, Antnio Manuel. Op. cit. p. 128. 79 Cf. Idem. Op. cit. p. 343. 80 Ibidem. 81 Ibidem. 82 Idem. Op. cit. p. 343. 83 Cf. BLOCH, Marc. Os reis taumaturgos: o carter sobrenatural do poder rgio, Frana e Inglaterra. Trad. Jlia Mainardi. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. 84 Cf. tbm. Sobre a noo de rito, cf. VALERI, Valerio. Rito. In: Enciclopdia Einaudi...pp. 325-357. 35
aquele que decide sobre o estado de exceo, sugere o autor a partir da recuperao da proposio de Carl Schmitt. 85
Finalmente, ainda no que tange soberania e aos diferentes modos de governos que caracterizam a poca Medieval e a poca Moderna, vale reproduzirmos o que escreveu Michel Senellart em seu estudo sobre a arte de governar. Para o autor:
No se tratava, para o prncipe (carolngio), de governar um Estado no sentido territorial da palavra, nem esse ou aquele povo, franco, lombardo ou outro, mas um populus definido por uma comunidade de crena, cujos membros eram todos iguais aos olhos de Deus, seu verdadeiro soberano. Sendo assim, governar consistia (no plano secular) em proteger esse povo e em garantir-lhe a paz a fim de que pudesse trabalhar na sua salvao. A concepo do ministrio rgio s tem sentido no quadro de uma sociedade que se representa a si mesma sob a forma do povo de Deus, e no como uma comunidade poltica entre outras numa humanidade dividida. O que caracteriza o regimen da alta Idade Mdia que ele tende a manter a paz de um povo nico, indiferente ao resto do mundo. Muito diferente ser a poltica dos Estados quando, entrando em competio uns com os outros, eles tiverem de afirmar seu poder. Ou melhor, ento que nascer a poltica moderna. Esta, diferena do regimen que pressupe a unidade do todo, desenvolve-se sobre fundo de pluralidade. Ela se pe em ao quando a harmonia (natural ou forada) dos desejos substituda pela concorrncia das foras. Ora, a paz da sociedade crist no resulta de um equilbrio precrio das foras. Repousa sobre uma finalidade comum, que a virtude do prncipe simboliza: a sociedade encontra sua unidade identificando-se com seu dirigente, ele prprio imagem de Deus. Da a funo capital da exemplaridade, sem a qual seria rompido o eixo teolgico que vai do povo a Deus atravs da pessoa do prncipe. De certo modo, pode- se dizer que a virtude to necessria ao regimen quanto o clculo e a habilidade poltica. 86
Em suma, ainda no que tange aos cortesos, importante consider-los sob o signo da heterogeneidade, visto que havia uma classificao hierrquica das vrias figuras de cortesos. Sobre essa hierarquia, Le Roy Ladurie afirma:
85 Cf. AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceo. Trad. Iraci Poleti. So Paulo: Boitempo, 2004. p. 11. 86 SENELLART, Michel. As artes de governar: do regimen medieval ao conceito de governo. Trad. Paulo Neves. So Paulo: Ed. 34, 2006. pp. 219 e 220. 36
O esprito hierrquico fixa-se em alguns aspectos: subdiviso cada vez mais extensa das posies, ao longo de um eixo vertical, que desce da famlia real aos simples fidalgos, passando pelos duques e pares. Referncia s distines entre o sagrado e o profano; tambm entre o puro e o impuro, o bastardo e o legtimo. 87
Por sua vez, como sublinhou Peter Burke, o topo dessa hierarquia era ocupado por aristocratas aos quais eram delegados cargos de grande prestgio social, tais como o de camareiro, de senescal ou de escudeiro. Estes cargos possuam carter fundamentalmente domstico, onde o camareiro deveria tratar dos aposentos e das roupas do prncipe, o gro-senescal cuidaria de sua comida e o escudeiro se dedicaria aos cavalos. Todavia, essas funes eram exercidas apenas em ocasies especiais e ritualizadas. 88 As funes domsticas eram um privilgio que obedecia uma hierarquia precisa. Segundo Norbert Elias, pai da matria:
[...] depois que um determinado sistema de privilgios estava estabilizado em seu equilbrio, nenhum dos privilgios podia abandon-lo sem tocar nesses privilgios, que constituiam a base de toda a sua existncia pessoal e social. 89
Por sua vez, essa hierarquia deveria marcar os diferentes graus de aproximao entre o corteso e o monarca sem deixar transparecer preferncias e impedir que se criassem desigualdades marcantes, fato que bastaria para extravasar o legalmente fixado e aceite. De acordo com Joaquim Romero Magalhes, a distncia cortes libertaria o monarca de influncias e favoritismos, pondo-o acima e fora das faces. 90 Todavia, embora essa distncia, associada difuso de um comportamento ritualizado no servio aos prncipes seculares tenha afirmado sua autoridade diante de seus cortesos subordinados, no se pode perder de vista que um papel importante na Corte era desempenhado pelos chamados favoritos, pois faziam companhia ao soberano no
87 LADURIE, Emmanuel Le Roy. Op. cit. p. 15. 88 Cf. BURKE, Peter. Op. cit. 89 ELIAS, Norbert. A sociedade de corte: investigao sobre a sociologia da realeza e da aristocracia de corte. Trad. Pedro Sussekind. Rio de Janeiro: Zahar, 2001. p. 105. 90 MAGALHES, Joaquim Romero. As estruturas polticas de unificao: o rei. In: MATTOSO, Jos (direco). Histria de Portugal. Terceiro Volume: No alvorecer da Modernidade. Lisboa: Editorial Estampa, 1997. p. 66. 37
seu tempo livre, tal como os conselheiros passavam com ele as horas de trabalho. 91
Vale matizar, entretanto, que embora a histria das monarquias modernas tenha sido marcada pela figura de criados ou ministros em que o soberano depositasse maior confiana, o auge dos favoritos nos remete ao incio do sculo XVII. 92 Nesse sentido:
[...] a existncia de indivduos que orbitaram em torno da esfera central do poder e, mesmo no se constituindo, nestes casos, seus legtimos representantes, exerceram forte influncia de deciso, no foi um atributo exclusivo das sociedades do Antigo Regime. Desde a Antiguidade como podemos ver nas mais diversas fontes, como a Bblia, passando pelos escritos de carter histrico de Herdoto, Plutarco, Tucdides, Tito Lvio e Tcito , a problemtica, de alguma forma, foi recorrente, servindo at mesmo de fonte fundamental tanto para a crtica quanto para o elogio produzido pelos discursos polticos e tratados sobre a tica na poca Moderna acerca da presena dos validos na dinmica da sociedade de Corte. 93
Em sntese, a honra de cada corteso passava pela definio de seu lugar na Corte, lugar onde o rei deveria aspirar distncia majesttica, no intuito de sinalizar sua autoridade soberana. Uma vez alcanada esta posio de supremacia, o soberano teria, abaixo de si, seus sditos, obrigados obedincia. Assim, enquanto centro de poder e tambm enquanto referencial paradigmtico, o grau de proximidade com o rei se constitua como um ideal, que orientaria as prticas dos cortesos. 94 Efetivamente, ao passo que a proximidade com a figura do rei se impunha como necessria no clculo da carreira do corteso, visvel que a fixao da imagem do corteso ideal reifica este procedimento como elemento de diferenciao da singularidade do corteso e de sua carreira. No caso de Joo de Barros, a Vida atesta sua proximidade com Dom Joo III uma vez que, de acordo com o escrito de Manuel Severim de Faria, o rei Dom Manuel o entregaria ao prncipe Dom Joo por seu moo de guarda-roupa, quando lhe assentou
91 BURKE, Peter. Op. cit. p. 105. 92 Cf. THOMPSON, I. A. A. El contexto institucional de la aparicin del ministro-favorito. In: ELLIOTT, John y BROCKLISS, Laurence (direccin). El mundo de los validos. Trad. Jess Albors y Eva Rodrguez Halfter. Madrid: Taurus, 2000. pp. 25-41. 93 OLIVEIRA, Ricardo de. Valimento, privana e favoritismo: aspectos da teoria e cultura poltica do Antigo Regime. Revista Brasileira de Histria, Dez 2005, vol.25, no.50, p. 217. 94 Cf. CURTO, Diogo Ramada. Op. cit. 38
casa. 95 Vale notar que esta relao doravante inextrincvel assinalar o carter da obra de Joo de Barros, uma vez que no possvel analisar o discurso histrico independentemente da instituio em funo do qual ele se organiza. 96 Entretanto, sem perder de vista nosso foco na construo da imagem desse historiador enquanto corteso exemplar, vale sublinhar que o privilgio a ele concedido no apenas lhe confere a dignidade de uma estreita relao com o prncipe Dom Joo, mas, sobretudo, vem coroar sua diligncia enquanto corteso. Com efeito, segundo Manuel Severim de Faria, quando Joo de Barros entrou para o Pao:
Costumavam naquele tempo os reis de Portugal mandar doutrinar os moos fidalgos e os da cmara, de que se serviam, em toda boa disciplina. E tinham para isso mestres no Pao que lhes ensinavam as lnguas, cincias matemticas, letras humanas, danar, jogar as armas, e outros virtuosos exerccios. E os mestres tinham certo dia no ms em que o rei sabia deles quem bem exercitava estas artes ou se havia remisso e negligente nelas. E era to grande a benignidade daqueles prncipes, que se lembravam de louvar a uns e repreender aos outros, no que muitos se ascendiam nos desejos de aprender. Estes foram os claros estudos, em que Joo de Barros cultivou seu engenho. 97
Foi, portanto, sob a observncia de Dom Manuel que Joo de Barros se avantajou tanto a seus condiscpulos e foi nomeado moo de guarda-roupa. Sua nomeao obedecia, portanto, uma rgida regulamentao que reiterava o ordenamento da Corte e atendia quilo que seria o ideal na formao do corteso. Realmente, sua vivncia no Pao se adequou exigncia de uma formao intelectual abrangente, cujo acesso somente lhe fora garantido pela oportunidade de viver no mbito da Corte. Com efeito, segundo o historiador Perry Anderson, esta formao intelectual foi uma exigncia do novo papel que a aristocracia assumiu a partir do fim da Idade Mdia. Para o ingls, os aristocratas tiveram que aprender as novas ocupaes de um oficial
95 SEVERIM de FARIA, Manuel. Op. cit. p.VIII. 96 CERTEAU, Michel de. A escrita da histria. Trad. Maria de Lourdes Menezes; reviso tcnica de Arno Vogel. Rio de Janeiro: Forense Universitria, 2000. p. 71. 97 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p.VII-VIII. 39
disciplinado, um funcionrio letrado, um polido corteso e um proprietrio de terras mais ou menos prudente. 98
Assim, para atentarmos de modo mais detalhado quilo que seria a possvel formao de um corteso portugus na virada do sculo XV para o XVI, vale nos determos no que escreveu Baldassare Castiglione em seu livro dO corteso, uma vez que pode nos dar a exata medida do modelo ideal que viria a servir de referncia para a formao intelectual enciclopdica desse personagem ainda no decorrer do sculo XVI. Dedicado a Dom Miguel da Sylva, bispo de Viseu, o livro de Baldassare Castiglione veio luz na primeira metade do sculo XVI, mais precisamente em abril de 1528 e delineia a imagem daquele que seria o perfeito homem de Corte: possuir origem irredutivelmente nobre e conhecer com propriedade a poesia, a histria, a retrica, a msica, as artes e a filosofia moral, sendo que seria este ltimo campo de conhecimento que lhe permitiria dominar os rudimentos necessrios s exigncias de prudncia e discrio, virtudes necessrias vida palaciana. 99
Sobre o corteso Castiglione pretendia que:
[...] nas letras ele (o corteso) seja mais que medianamente erudito, pelo menos nestes estudos que chamamos de humanidades, e no somente da lngua latina, mas tambm da grega tenha conhecimentos para as muitas e vrias coisas que nelas esto divinamente escritas. Seja versado nos poetas e no menos nos oradores e historiadores, e exercitado tambm em escrever versos e prosa, especialmente nesta nossa lngua vulgar; pois, alm do contentamento que ele prprio ter, com isso nunca lhe faltaro prazerosos entretenimentos com as mulheres, que, em geral, apreciam tais coisas 100
Efetivamente, a Vida de Joo de Barros nos apresenta uma figura bem acabada do homem de Corte, sobretudo em vista de alguns j mencionados aspectos de sua trajetria, tais como sua origem irredutivelmente nobre, a residncia na Corte desde a mocidade, sua proximidade com o rei e sua slida formao erudita, tendo em vista que aprendeu a lngua latina e grega, e as cincias matemticas e letras humanas com
98 ANDERSON, Perry. Linhagens do Estado absolutista. Trad. Joo Roberto Martins Filho. So Paulo: Brasiliense, 2004. p. 47. 99 Cf. PCORA, Alcir. Prefcio edio brasileira. A cena da perfeio. In: CASTIGLIONE, Baldassare, conte. O corteso. Trad. Carlos Nilson Moulin Louzada. So Paulo: Martins Fontes, 1997. pp. VII-XV. 100 CASTIGLIONE, Baldassare, conte. Op. cit. p. 67. 40
grande perfeio. Entre os poetas se deu mais lio de Virglio e Lucano, e nos historiadores de Salustio e Lvio. 101 A importncia da formao do corteso deve ser compreendida, portanto, no mbito de um espao onde o trato dos prncipes e a comunicao das pessoas que ando junto a eles 102 o primeiro e principal exerccio. Do ato de comunicao na Corte e sua relevncia o prprio Joo de Barros quem nos d seu testemunho. Segundo ele, a conversao de homens especiais e de grandes qualidades constitui o essencial do saber corteso. 103
Entretanto, alm das condies e das etapas que devem ser galgadas pelo corteso ideal, tais como, a de possuir uma origem nobre, residir na Corte desde a mocidade, ter proximidade com o rei e ter uma slida formao, Diogo Ramada Curto assinala que o servio nos cargos da guerra um passo importante na carreira ideal do homem de Corte. 104 Em vista disso, faz sentido que, na composio da carreira exemplar de Joo de Barros, Manuel Severim de Faria tenha sugerido que Dom Joo III nomeara o historiador para servir na capitania da Mina. 105 Assero que, muitas vezes, ecoa na historiografia dedicada ao autor das Dcadas, como o caso do artigo assinado por Rafael Moreira e William M. Thomas, publicado na revista Oceanos dirigida por Antnio Manuel Hespanha , onde os autores afirmam que Joo de Barros governara So Jorge de Mina entre 1522 e 1525, ou no livro O redemunho do horror, de Luiz Costa Lima, no qual o autor nos assegura que Joo de Barros foi agraciado com a Capitania da Mina. 106
De fato, tendo em vista a dignidade que Manuel Severim de Faria empresta a Joo de Barros, seria natural que ele tivesse ocupado tal cargo. No se pode perder de vista que, nesse contexto, a representao ideal de vida civil no deve prescindir dos padres de honra e dignidade que, ao menos em tese, devem caracterizar o personagem
101 SEVERIM de FARIA, Manuel. Op. cit. p.VIII. 102 Cf. LOBO, Francisco Rodrigues. Corte na aldeia e noites de inverno. ed. Affonso Lopes Vieira, Lisboa, S da Costa, 1945; ed. Adriano de Carvalho, Lisboa, Presena, 1992. p. 256. Apud. CURTO, Diogo Ramada. Op. cit. p.111. 103 Cf. BARROS, Joo de. Ropicapnefma. Reproduo fac-similada da edio de 1532. Leitura modernizada, notas e estudo de I. S. Rvah. Volume II. Instituto Nacional de Investigao Cientfica: Lisboa, 1983. p.56. Cf. tbm. CURTO, Diogo Ramada. Op. cit. p.111. Agradeo colega Juliana Fujimoto pela assistncia nesta nota e na anterior. 104 Cf. CURTO, Diogo Ramada. Op. cit. p. 112. 105 Cf. SEVERIM de FARIA, Manuel. Op. cit. p. X. 106 Cf. MOREIRA, Rafael e THOMAS, William M. Desventuras de Joo de Barros primeiro colonizador do Maranho O achado da nau de Aires da Cunha naufragada em 1536. In: Oceanos. Joo de Barros e o cosmopolitismo do Renascimento. Lisboa: Comisso Nacional para a Comemorao dos Descobrimentos Portugueses, n 27 julho/setembro, 1996. p. 102 e LIMA, Luiz Costa. O redemunho do horror: as margens do ocidente. So Paulo: Editora Planeta do Brasil, 2003. p. 41, nota 5. 41
em questo. Todavia, nesse ponto especfico da trajetria do historiador quinhentista em que ele teria capitaneado a cidade de So Jorge da Mina , possvel revisar, com segurana, a afirmao de Severim de Faria e sugerir um redimensionamento da efetiva dignidade do historiador quinhentista.
1.3. Da efetiva dignidade de Joo de Barros
A compreenso do significado efetivo que o cargo de capito da cidade de So Jorge da Mina ganha no contexto social da vida da Corte portuguesa pode ser alcanado quando observamos a histria desta cidade. Contudo, antes de recuperarmos sua trajetria histrica, vale atentarmos para o fato de que tal cargo era, efetivamente, uma funo da mais extrema importncia, e por isso, verossmil a afirmao de que Joo de Barros a tenha capitaneado: tanto em funo de sua importncia no asseguramento da presena portuguesa no golfo de Guin, como tambm pelo fato de que So Jorge da Mina se constituiu como resultado das histricas disputas entre o reino de Portugal e de Castela. Por sua vez, o histrico dessas disputas se confunde com a histria da cidade de So Jorge da Mina. E a respeito das histricas disputas entre os reinos de Portugal e Castela, Oliveira Marques ensina que os monarcas portugus e castelhano alimentavam o sonho vago de unir os dois pases, com vista ao ideal ainda mais vago de reunificar toda a Pennsula. 107 Efetivamente, tal disputa foi agravada em 1475, quando Dom Afonso V entusiasta conquistador do Norte da frica e, significativamente, o primeiro rei a assumir o ttulo de Rei de Portugal e dos Algarves invadiu o reino Castela. Com efeito, a soluo de tal conflito somente foi alcanada com o tratado de Alcovas de 4 de setembro de 1479, por meio do qual se concertava que o rei portugus ficaria obrigado a renunciar a quaisquer direitos coroa castelhana, bem como abandonar suas reivindicaes sobre as Canrias ou projetos de carter militar contra Granada. Por outro lado, este mesmo tratado determinaria que o reis Dom
107 MARQUES, A. H. de Oliveira. Op. cit. p. 190. 42
Fernando de Arago e Dona Isabel de Castela reconhecessem o monoplio portugus no comrcio da Guin. 108
O tratado de Alcovas foi, portanto, um instrumento poltico fundamental, ao menos em tese, para a garantia da presena lusa no golfo de Guin. Por isso, relevante o valor simblico de tal conquista, principalmente se no perdermos de vista que, para o o portugus quinhentista, ela poderia muito bem significar a primeira etapa de um processo expansivo de impulso cruzadstico cujo pice seria o retorno de Vasco da Gama de sua viagem ndia no ano de 1499. Charles R. Boxer nos d uma medida aproximada da importncia do feito para Portugal:
A tomada de Ceuta pelos portugueses, em agosto de 1415, e, ainda mais importante, o fato de a terem conservado, foram provavelmente inspirados pelo ardor de cruzados que visavam desferir um golpe nos infiis, e pelo desejo dos prncipes de Portugal, semi-ingleses, de serem teatralmente armados cavaleiros no campo de batalha. 109
Entretanto, essa presena somente seria assegurada em termos mais concretos com a construo de uma fortaleza na regio, que foi levada a cabo pelo entusiasmo imperialista de Dom Joo II, o Prncipe Perfeito. Desse modo, interessava-se pessoalmente pelo comrcio e, com isso, procurava garantir os interesses portugueses no golfo da Guin contra possveis intrusos tanto de espanhis quanto de outros europeus , bem como intimidar as tribos por intermdio das quais o ouro era adquirido e, por fim, resguardar os portugueses de possveis ataques de indgenas africanos. 110
Localizada numa regio que compreendia o territrio situado entre o cabo das Palmas e o rio Volta, a ao portuguesa na Mina foi orientada pela ocupao segura de pontos estratgicos no litoral africano sem, contudo, penetrar para o interior do continente. Seu principal papel comercial era o de atrair as tradicionais rotas africanas de comrcio de escravos e ouro. Desempenhando, portanto, um papel passivo neste comrcio vale lembrarmos que o trfico de escravos, por exemplo, envolvia a
108 Cf. MARQUES, A. H. de Oliveira. Idem. Ibidem. Cf. tbm. ALBUQUERQUE, Lus de (dir.); DOMINGUES, Francisco Contente (coord.). Dicionrio de Histria dos Descobrimentos Portugueses. Vol. II. Lisboa: Caminho, 1994. s. v. Mina, Feitoria e Fortaleza da. 109 BOXER, Charle R. O imprio martimo portugus, 1415 1825. Trad. Anna Olga de Barros Barreto. So Paulo: Companhia das Letras, 2002. p. 34. 110 Cf. ALBUQUERQUE, Lus de (dir.); DOMINGUES, Francisco Contente (coord.). Op. cit. s. v. Mina, Feitoria e Fortaleza da. Cf. tbm. Cf. BOXER, Charle R. Op. cit. p. 47 e 48. 43
participao ativa de lderes africanos , a diplomacia local do governador de So Jorge se configurava como um instrumento da maior importncia para garantir segurana presena portuguesa. Sendo assim, a feitoria-fortaleza de So Jorge da Mina foi a sede de todos os estabelecimentos portugueses na costa do golfo de Guin entre os anos de 1482 e 1637. 111 Todavia, preciso anotar que a Coroa portuguesa jamais exerceu jurisdio efetiva na frica Ocidental para alm dos limites de suas feitorias. 112
Por sua vez, Antnio Borges Coelho nos apresenta uma brevssima descrio do modo como a Fortaleza de So Jorge da Mina estava ordenada. Segundo o historiador, os funcionrios principais da Fortaleza eram, em ordem descendente, o capito, o alcaide-mor e o feitor, os escrives, o feitor da roupa velha (roupa das tripulaes e do rei vendida legalmente no mercado), o meirinho, o vigrio e os clrigos, o almoxarife dos mantimentos, o vedor do forno e, por fim, a imprescindvel funo de vendedor de vinho. 113
Dentre os capites ou capites governadores dessa feitoria-fortaleza, Diogo de Azambuja foi o primeiro a assumir o cargo e, entre seus sucessores, Diogo Lopes de Sequeira e Duarte Pacheco Pereira. Este ltimo em seu fundamental Esmeraldo de situ orbis, antes de mais nada, um roteiro ao mesmo tempo que um livro de geografia e um livro de cosmografia, 114 redigido entre os anos de 1505 e 1507, nos deixa algumas informaes a respeito da histria e da importncia do lugar:
[...] o excelente Rei Dom Afonso o quinto mandou descobrir da serra Leoa, donde o Infante acabou, em diante toda a costa da Malagueta e a Mina, e do rio dos Escravos at o cabo de Caterina, que ser por costa, alm da dita serra Leoa, seiscentas e cinquenta lguas. Descobertas todas estas regies e provncias, e finado o Rei Dom Afonso, veio esta mesma converso ao serenssimo Prncipe o Rei Dom Joo o segundo, seu filho, que todigno de imortal lembrana; o qual, com muito desejo de acrescentar no comrcio e riqueza deste reinos, mandou descobrir as ilhas de de So Tom e Santo Antonio e as povoou com fundamento da navegao da ndia; se lhe Nosso Senhor dera vida, devemos crer que ele a descobrira; e tambm mandou fazer do primeiro fundamento cidade de So
111 Cf. Idem. Ibidem. 112 Cf. BOXER, Charle R. Op. cit. p. 47. 113 COELHO, Antnio Borges. Tudo mercadoria... p. 28. 114 CARVALHO, Joaquim Barradas de. As fontes de Duarte Pacheco Pereira no Esmeraldo de Situ Orbis. In: Coleo da Revista de Histria (PAULA, E. Simes de. dir.). So Paulo: Universidade de So Paulo, 1967. p. 20. 44
Jorge da Mina, da qual tanta utilidade Vossa Alteza e vossos reinos recebem; e por no alargar mais matria, deixo de dizer as particularidades de muitas coisas que este glorioso Prncipe mandou descobrir por mim e por outros seus capites em muitos lugares e rios da costa da Guin, dos quais, em tempo do Infante Dom Henrique e o Rei Dom Afonso, a costa do mar somente era sabida sem se saber o que dentro neles era. 115
Com efeito, na pena de Duarte Pacheco Pereira, o reino portugus recebe muita utilidade de So Jorge da Mina, e a descoberta de lugares e rios so atividades que figuram entre os feitos do capito da fortaleza. Neste sentido, no se pode perder de vista o fato de que o servio nos cargos da guerra era um importante passo na trajetria do corteso e, por isso, Manuel Severim de Faria nos faz crer que Dom Joo III nomeara Joo de Barros capitania da Mina, posio que pode ser considerada como um cargo militar, principalmente quando atentamos para o fato de que o governo militar das praas transita dos alcaides-mores para os capites das fortalezas. 116
Todavia, se nos determos no estudo introdutrio feito por Antnio Baio para a sia de Joo de Barros, possvel recolocar a efetiva trajetria do historiador quinhentista. Porm, diferentemente de Antnio Baio, que se props a ratificar algumas informaes transmitidas por Manuel Severim de Faria, embora nos valendo do legado de sua excelente e erudita pesquisa nesse momento, nossa investigao pretende se deter naquilo que possivelmente tenha levado Manuel Severim de Faria a escrever o que escreveu. 117 Contudo, julgamos insuficiente considerar, aqui, a hiptese de que Severim de Faria escreveu o que escreveu porque no teve acesso informao correta. evidente que isso pode ser verdade. Entretanto, esta no a questo. Nossa questo, aqui, problematizar as possveis convenes intelectuais que regeram o tratamento dessa temtica em seu texto. Antnio Baio anota que, em suas Dcadas, Joo de Barros no faz qualquer meno sua situao oficial no momento em que registra sua viagem para o castelo da
115 PEREIRA, Duarte Pacheco. Esmeraldo de situ orbis. In: CARVALHO, Joaquim Barradas de. Esmeraldo de situ orbis de Duarte Pacheco Pereira. Edition critique et commente. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian/Servio de Educao, 1991. pp. 531 e 532. O grifo meu. 116 SERRO Joel (dir.). Dicionrio... s. v. Capito. 117 Sobre a elaborao dessa problemtica remeto ao seguinte artigo: SKINNER, Quentin. Motives, Intentions and the Interpretation of Texts. In: New Literary History. Vol. 3, No. 2, On Interpretation: I (Winter, 1972), pp. 393-408. 45
Mina. 118 O grande historiador da literatura portuguesa, Antnio Jos Saraiva, corrobora a assertiva de Baio ao afirmar que Joo de Barros fez apenas uma viagem at So Jorge da Mina. 119 Na mesma linha, Charles R. Boxer afirma que no h nenhuma fonte coeva que comprove que o historiador quinhentista tenha ocupado este cargo. Alm disso Boxer sugere, com maestria, que seria pouco provvel que um cargo de tamanha importncia fosse dado a algum to jovem e inexperiente e, ainda, arrisca a hiptese de que Joo de Barros foi enviado Fortaleza de So Jorge da Mina para uma visita de inspeo, ou, possivelmente, para realizar alguma misso especial breve. 120
Por sua vez, se retomamos o estudo de Antnio Baio, no possvel deixar de notar sua meno de que, no primeiro ano do reinado de Dom Joo III, ou seja, o de 1522, em registro de quatro de julho, consta a nomeao de Dom Afonso de Albuquerque ao que tudo indica, homnimo do famoso conquistador e colonizador como capito da cidade portuguesa de de So Jorge da Mina em substituio a Duarte Pacheco, tal como se pode conferir no excerto que segue:
Dom Joo etc. A quantos esta nossa carta virem fazemos saber que, confiando-nos da bondade e descrio de Dom Afonso de Albuquerque, fidalgo de nossa Casa e por que somos certo que em todo o que o encarregarmos, nos h de servir bem e fielmente com aquele cuidado e Recado que se dele espera, havendo, alm de tudo, Respeito a seus servios e merecimentos, temos por bem e o damos por capito de nossa cidade de So Jorge da Mina pelo tempo contido em nosso Regimento, assim e por a maneira que o at aqui foi Duarte Pcheco que a dita capitania teve com todo o mantimento [...] percalos e poderes, honras, liberdades a ele ordenados e contidos no dito Regimento e provises nossas que para isso leva; notifica- mo-lo assim ao dito Duarte Pacheco e lhe mandamos que, tanto que esta vir,
118 Particularmente no momento em que Joo de Barros resolve a polmica a respeito de um peixe que deu de econtro com a nau de Dom Joo de Lima poucos anos antes de sua ida para So Jorge da Mina. Escreve Joo de Barros: Depois, passados alguns anos, confirmei ser do peixe-agulha, como alguns diziam; porque, indo eu para o castelo de So Jorge da Mina, que na costa de Guin, levando o piloto pela popa do navio uma linha com seu anzol para tomar os peixes a que os mareantes chamam albecoras, que so do tamanho e feio do atum, veio cair no anzol um destes peixes-agulha, o qual anzol ficou metido entre as duas farpas das cachages, com que teve o peixe, at que, ao estremecer do navio, acudiram todos; e, suspendendo o focinho fora da gua, ou (por melhor dizer) o bico, tanto andaram marinheiros com fisgas e arpes, que o prenderam per muitas partes, e lhe lanaram no governo do rabo uma laada. (BARROS, Joo de. Da Asia de Joo de Barros. Dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do oriente. Dcada Terceira. Parte Primeira. Livro III. Captulo I. Lisboa: Na Regia Oficina Tipogrfica, 1777. pp. 235/236.) 119 SARAIVA, Antnio Jos. Uma concepo planetria de Histria em Joo de Barros. In: Para a Histria da Cultura em Portugal. Volume II. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1972. pp. 353/354. 120 BOXER, Charles R. Joo de Barros, Portuguese humanist and historian of Asia... p. 26. 46
entregue a fortaleza da dita cidade ao dito Dom Afonso com todo o que nele estiver sem falecer coisa alguma e assim mandamos ao feitor e oficiais e moradores e quaisquer pessoas outras que na dita cidade estiverem que hajam ao dito Dom Afonso por capito dela e obedeam em todo o que ele mandar, assim como se acostuma fazer aos nossos capites por quanto nos fazemos merc da dita capitania ao dito Dom Afonso, como dito por esta nossa carta que lhe mandamos dar por ns assinada e selada do nosso selo. 121
Frente a esta evidncia, Antnio Baio nos remete quitao dada a Joo de Barros como tesoureiro da Casa da ndia, na qual possvel ler o seguinte:
Dom Sebastio etc. fao saber a quantos esta minha carta de quitao virem, que el rei meu senhor e av que santa glria haja, mandou tomar conta ao feitor Joo de Barros, que serviu de tesoureiro do dinheiro da Casa da ndia e assim de tesoureiro da Casa da Mina e de tesoureiro mor da Casa de Ceuta de tempo de trs anos e oito meses, que comearam ao primeiro dia do ms de Maio de 1525 e acabaram em fim de dezembro de 1528 e, pela arrecadao de sua conta, se mostra receber de dinheiro oitocentos e noventa e trs contos, novecentos e setenta e cinco mil, duzentos e trinta. 122
Com isso, Antnio Baio observa o fato de que Joo de Barros teria exercido os cargos de tesoureiro do dinheiro da Casa da ndia, o de tesoureiro da Casa da Mina e o de tesoureiro-mor da Casa de Ceuta ao longo de trs anos e oito meses. 123 Todavia, alm de tesoureiro, Joo de Barros ocupou, tambm, o cargo de feitor da Casa da ndia, tal como observou Manuel Severim de Faria, ao tratar do retorno de Joo de Barros de sua quinta de Alitm, em Pombal, a Lisboa, oportunidade na qual o rei o proveu do cargo de Feitor da Casa da India, e Mina [...] cargos [...] de grande cuidado e importncia, assim pelo muito que ento rendia o comrcio de Asia e frica, como por tudo pender da industria do mesmo Feitor que o administrava. 124 Efetivamente, Dom
121 Nomeao de Dom Afonso de Albuquerque para a capitania da So Jorge da Mina. Chancelaria de Dom Joo III, liv. 5 I, fl. 184 v. Apud. BAIO, Antnio. Introduo. In: Op. cit. p. X. O grifo meu. 122 Quitao dada a Joo de Barros como thesoureiro da Casa da ndia. In: BAIO, Antnio (org.). Documentos inditos sobre Joo de Barros, sobre o escritor seu homnimo contemporneo, sobre a famlia do historiador e sobre os contiuadores das suas Dcadas. In: Boletim da Segunda Classe da Academia das Sciencias de Lisboa. Vol. XL, 1917. p. 202. O grifo meu. 123 Cf. BAIO, Antnio. Introduo. In: Op. cit. pp. IX, X e XI (cit. p. XI). 124 SEVERIM de FARIA, Manuel. Op. cit. p. XV. 47
Joo III o nomeou para o cargo de feitor da Casa da ndia em substituio a Vasco Queimado, no ano de 1533, tal como se pode conferir no excerto abaixo transcrito;
Dom Joo etc. a quantos esta minha carta virem, fao saber que confiando eu como o ofcio de feitor das casas de Guin e ndias de tanta substncia e fieldade, para o qual necessrio uma pessoa tal e de tanto recado que o saiba e possa bem servir segundo a qualidade do dito ofcio requer pela experincia e muita confiana que tenho em Joo de Barros, que ora serve o dito ofcio por meu mandado havendo respeito aos servios que dele tenho recebidos e a boa conta que de si tem dado em todas as coisas de que o encarreguei, e por folgar de lhe fazer merc o dou ora daqui a diante por feitor das ditas casas de Guin e Indias, assim e como era Vasco Queimado, que o dito ofcio deixou por satisfao que lhe dele dei quando se aposentou. 125
Entretanto, no contexto do sculo XVI, o que significava exercer os cargos de tesoureiro do dinheiro da Casa da ndia, de tesoureiro da Casa da Mina, de tesoureiro- mor da Casa de Ceuta e de feitor da Casa da ndia? Para esboarmos uma resposta a esta questo, vale recuperarmos, em sntese, o papel desempenhado por tais estabelecimentos na Histria de Portugal e atentarmos para a estrutura de seu funcionamento. Com efeito, a histria destas instituies ligam-se estreitamente e, grosso modo, a Casa da ndia deve ser compreendida como o resultado da evoluo sofrida pelos organismos surgidos ao longo do sculo XV para regular o comrcio e a administrao do ultramar, ou seja, da Casa de Ceuta organizao criada para atuar em todos os negcios referentes cidade de Ceuta e fundada, provavelmente, poca da conquista da cidade marroquina e da Casa da Guin organismo fundado em Lagos e, mais tarde, transferido para Lisboa, cuja atuao consistia no comrcio portugus com as feitorias da costa africana, funcionando, simultaneamente, como depsito, tanto dos
125 Nomeao de Joo de Barros para feitor da Casa da ndia. In: BAIO, Antnio (org.). Documentos inditos sobre Joo de Barros, sobre o escritor seu homnimo contemporneo, sobre a famlia do historiador e sobre os contiuadores das suas Dcadas. In: Boletim da Segunda Classe da Academia das Sciencias de Lisboa. Vol. XL, 1917. pp. 204-205. O grifo meu. 48
produtos europeus destinados ao comrcio com os africanos, quanto dos produtos da costa da frica destinados a Portugal. 126
A organizao dessas instituies veio arrematar uma poltica econmica da Coroa portuguesa que se propunha a assumir a organizao do comrcio com o oriente. Desse modo, a Casa da ndia se tornaria no apenas o centro do comrcio, como, tambm, de toda a administrao ultramarina. Da grandiosidade que a instituio veio a adquirir, o humanista Damio de Gis nos d notcias, considerando-a um dos sete grandes edifcios em sua Descrio da cidade de Lisboa, publicada em vora, no ano de 1554:
No canto ocidental deste terreiro deixando para trs a referida praa do peixe, e passando o mercado dos padeiros, dos vendedores de hortalia e de fruta, o mercado das aves e a praa dos comestveis fica situado um edifcio, a que ns chamamos Casa de Ceuta, onde os comissrios rgios do despacho s questes relativas guerra de frica. No longe desta casa, num renque contguo de edifcios, ergue-se o sexto monumento, realizado de feio maravilhosa, repleto de abundantes presas e despojos de muitas gentes e povos. Por ali se tratarem os negcios da ndia, o nosso povo d-lhe o nome de Casa da ndia. Na minha opinio, deveria antes chamar-se-lhe emprio copiosssimo dos aromas, prolas, rubis, esmeraldas e de outras pedras preciosas que nos so trazidas da ndia ano aps ano; ou ento vastssimo armazm de oiro e de prata, quer trabalhado quer em barra. Ali esto patentes, para quem os quiser admirar, inmeros compartimentos, distribudos com engenhosa arte e ordem, abarrotados com grande abundncia daquelas preciosodades que palavra de honra! ultrapassaria a faculdade de acreditar, se no saltassem aos olhos de todos e as no pudssemos tocar com as prprias mos. Desde o topo do Pao real, grandioso e suntuoso, que Dom Manuel mandara construir para si, avana para o mar, como uma mquina de guerra, uma vastssima colunata, que limita pelo sul o terreiro a que j aludimos. No extremo da colunata, voltada ao nascente, ergue-se sobranceira praia uma torre de cantaria bem trabalhada. Junto quele, mesmo beira do rio, comeou h pouco o muito poderoso Rei Dom Joo III, nosso Senhor, a levantar desde os alicerces um outro edifcio, de admirvel construo. Quando estiver concludo, com o
126 Cf. SERRO Joel (dir.). Dicionrio... s. v. Ceuta, Casa de; Mina, Casa da e ALBUQUERQUE, Lus de (dir.); DOMINGUES, Francisco Contente (coord.). Dicionrio... s. v. ndia, Casa da. 49
auxlio de Deus e dos seus santos, ocupar o oitavo lugar nas belezas da cidade e arrebatar, de certo, a palavra a todos os demais monumentos. 127
A notvel grandiosidade da instituio registrada pelo humanista em meados do sculo XVI um dos resultados de uma poltica de interveno do reino portugus nos negcios da ndia. Com efeito, foi diante da crescente importncia que a Casa da ndia adquiriu para o reino que Dom Manuel I publicou, em 1509, um regimento por meio do qual se propunha a organizar o funcionamento dessa instituio. Efetivamente, foi com o Regimento das Casas das ndias e Mina que a designao Casa da ndia se consagrou. 128
O Regimento divide a instituio em Casa dos escravos, Casa da Guin e Mina e Casa da ndia, sendo que cada uma dessas sees possua seu tesoureiro e seu escrivo prprios. Por sua vez, todas estas reparties eram subordinadas a uma autoridade central, o feitor da Casa da ndia, um funcionrio de grandes responsabilidades e que s prestava conta de seus atos ao rei. Compunham ainda o grupo de funcionrios de alto escalo, os tesoureiros. O Regimento determinava a existncia de trs tesoureiros, a saber, o tesoureiro da Casa da ndia, o tesoureiro da Guin e Mina e o tesoureiro do dinheiro. A diviso das tarefas entre o tesoureiro da Guin e Mina e o tesoureiro da Casa da ndia obedecia a um critrio por meio do qual o tesoureiro da Guin e Mina recebia ouro e era responsvel pelas mercadorias a serem exportadas, enquanto o tesoureiro da Casa da ndia recebia especiarias, drogas, pedraria e aljfar. No que tange ao tesoureiro do dinheiro, ele era responsvel pelas vendas e pelos livros de receitas e de despesas da Casa da ndia, onde os escrives declaravam as operaes comerciais, que eram anualmente enviados ao monarca para fiscalizao. 129
Por sua vez, Antnio Borges Coelho descreve a Casa da ndia e Mina como uma vasta empresa de importao e exportao situada beira do Tejo. Segundo o autor,
127 GIS, Damio de. Descrio da cidade de Lisboa pelo Cavaleiro Portugus Damio de Gis. Ao nclito prncipe Dom Henrique, infante de Portugal, Eminentssimo cardeal da Santa Igreja Romana do ttulo dos Quatro santos Coroados. Traduo do texto latino, introduo e notas de Jos da Felicidade Alves. Lisboa: Livros Horizonte, 1988. pp. 56/57. 128 Cf. ALBUQUERQUE, Lus de (dir.); DOMINGUES, Francisco Contente (coord.). Dicionrio... s. v. ndia, Casa da. possvel cf. tbm. LUZ, Francisco Mendes da. Regimento da caza da ndia: manuscrito do sculo XVII existente no arquivo geral de Simancas. In: Anais: estudos da geografia da expanso portuguesa. - Vol. VI, tomo II (1951), p. 9- 23; LUZ, Francisco Mendes da. Regimento da caza da ndia: tittulo das cousas comus e geraes aos officiaes da caza In: Anais: estudos da geografia da expanso portuguesa. - Vol. VI, tomo II (1951), p. 27-35. 129 Cf. Cf. ALBUQUERQUE, Lus de (dir.); DOMINGUES, Francisco Contente (coord.). Dicionrio... s. v. ndia, Casa da. 50
quando as caravelas, ou, mais tarde, as naus e os galees que operacionalizavam o monoplio rgio sobre o trato da Guin, Mina e ndia aportavam no rio, em Lisboa, era funo do feitor da Casa convocar o juz da Guin e ndia, seus oficiais, o tesoureiro, bem como a guarda, para que se realizasse uma minuciosa revista das embarcaes, em busca de mercadorias no declaradas pela tripulao. 130
Em essncia, preciso tomar conhecimento de que, enquanto tesoureiro e, depois, feitor, Joo de Barros ocupou os cargos do mais alto escalo nas Casas da Guin e Mina e na Casa da ndia. Importante notar, ainda, que enquanto feitor da Casa da ndia, s deveria prestar conta de seus atos diretamente ao rei, fato que, mais uma vez, reitera sua proximidade com o monarca principalmente se nos lembrarmos que ele foi moo de guarda-roupa do prncipe Dom Joo. Contudo, no se pode deixar de observar que todos estes cargos estavam ligados ao comrcio, e no s armas. Com efeito, existe uma diferena fundamental entre a milcia e o comrcio que, todavia, deve ser compreendida sob outro registro, diferente da oposio outrora apontada entre as armas e as letras. Para esclarecermos esta diferena, vale recuperarmos o que escreveu Baldassare Castiglione a respeito da importncia das armas para o corteso:
[...] considero que a principal e verdadeira profisso do corteso deve ser das armas; qual desejo sobretudo que ele se dedique vivamente, e seja conhecido entre os outros como ousado, valoroso e fiel quele a quem serve. E a fama dessas boas qualidades h de adquirir se delas der provas em todo tempo e lugar, pois no lcito jamais falhar nisso, sem intensas crticas. 131
Notemos portanto, que exigia-se do corteso, no apenas uma slida formao intelectual por meio do conhecimento das letras, da retrica, das artes figurativas, da msica, enfim, das humanidades, mas, tambm, o exerccio da cortesania deveria fazer, do uso das armas, sua profisso. Por isso, o corteso deveria ser dotado de bela forma de corpo, ser viril e de boa compleio para que possa demonstrar fora, leveza e desenvoltura, e saiba todos os exerccios corporais que so exigidos de um homem de
130 Cf. COELHO, Antnio Borges. Op. cit. pp. 26 e ss. 131 CASTIGLIONE, Baldassare, conte. Op. cit. pp. 31/32. 51
guerra. 132 Tudo isso para que o corteso, nobre por natureza, alcance aquilo que lhe deve ser caracterstico, ou seja, superar, em glria e fama o legado de seus antepassados, pois lhe seria censurvel se no chegasse ao menos no ponto que lhe foi assinalado por seus ancestrais. 133
Diogo Ramada Curto chama a ateno para o fato de que a milcia pode ser compreendida como uma forma especfica de educao, que comea pela apropriao dos antigos valores cavaleirescos, onde a honra, o ser, o preo e riqueza de um soldado no consiste no apelido de sua famlia, na herana de seus avs, na riqueza e morgado de seu pai, nem outros juros, tenas e rendas de que tenha esperana [...] seno na virtude, valor e magnanimidade e esforo prprio. 134 Vale lembrar, nesse sentido, o que escreveu Duarte Pacheco Pereira a respeito de seus feitos como capito de So Jorge da Mina, dentre os quais menciona a descoberta de lugares e rios, em face de uma evidente necessidade de sublinhar a superao dos feitos legados por seus ancestrais. Ora, o verdadeiro corteso de Castiglione esboa o modelo exemplar do homem de Corte e representa, portanto, mais uma aspirao desta sociedade do que, propriamente, uma realizao concreta. Portanto, nossa hiptese, aqui, de que esta deve ser a chave de leitura com a qual devemos compreender a afirmao feita por Manuel Severim de Faria, de que o rei Dom Joo III teria designado Joo de Barros para capitanear a Fortaleza de So Jorge da Mina, uma vez que tal cargo corresponderia dignidade da nobreza de Joo de Barros. Sobretudo em vista do fato de que seu texto concebido, aqui, no mbito de uma rede dinmica de relaes sociais, onde Severim de Faria assume uma clara posio poltica na construo da carreira individual do autor a servio do rei e da repblica. Entretanto, no se pode perder de vista o fato de que, aps a instituio do regime das capitanias hereditrias, Dom Joo III concedeu a Joo de Barros, em associao com Ferno de lvares de Andrade, a Capitania do Maranho, a 11 de fevereiro de 1535. Em certa medida, este fato corresponde dignidade de Joo de Barros. Entretanto, preciso anotar que o Maranho era um lugar inspito e ainda pouco conhecido, cujas dificuldades de navegao dificulatavam o acesso a uma costa varrida pela rpida corrente de leste-oeste que deturpava o clculo das distncias
132 Idem. Ibidem. p. 36. 133 Ibidem. p. 28. 134 Cf. CURTO, Diogo Ramada. Op. cit. p. 114. 52
percorridas, por sbitas borrascas tropicais, e pelos perigos de uma orla arenosa e de dunas traioeiras. 135
Era, de fato, de uma rea de interesse secundrio para a coroa portuguesa at ento, uma vez que os interesses portugueses nesse momento estavam centrados, principalmente, no comrcio de especiarias e outras mercadorias lucrativas na ndia, bem como na conservao das feitorias e fortalezas espalhadas pelo continente africano, fundamentais para a manuteno e expanso no apenas desse comrcio, mas tambm das ilhas atlnticas. Da importncia da sia nessa conjuntura em relao Provncia de Santa Cruz, basta atentarmos para o fato de que exatamente a partir de meados do sculo XVI que se pode detectar um aumento na produo de textos referentes presena portuguesa no oriente, quando, alm das Dcadas de Joo de Barros, foram publicadas, tambm, a Histria do descobrimento e conquista da ndia, de Ferno Lopes de Castanheda e os Comentrios de Afonso de Albuquerque de Brs Afonso de Albuquerque, fenmeno que denota um ntido interesse em divulgar tais feitos por sua grandiosidade. Ainda neste sentido, Diogo Ramada Curto atenta para o fato de que, entre a dcada de 1570 e os anos de 1620, o oriente, nomeadamente os feitos portugueses na ndia, permance no centro das atenes, enquanto o interesse pelo Brasil conduz s primeiras representaes literrias. 136
Com efeito, alm da doao da Capitania do Maranho possvel alinhar, ainda, outros fatos que nos permitem redesenhar, sensivelmente, a figura de Joo de Barros apresentada por Manuel Severim de Faria. Primeiramente, vale observarmos, mais uma vez, sua formao humanista. Embora no seja nosso interesse, neste momento, recuperar a histria do humanismo em Portugal o que ser feito, em sntese, posteriormente , vale anotarmos que este termo, utilizado correntemente desde o incio do sculo XIX, deriva da palavra umanista e foi cunhado ao final do sculo XV para designar professores e estudantes de humanidades ou studia humanitatis. Por sua vez, a palavra latina humanitas (humanidade em portugs e humanity em ingls) foi usada com frequncia nos discursos de Ccero e, em termos semnticos, se relaciona, por um lado, palavra grega paidia, cujo significado educao e, por outro, palavra philanthrpia, cuja denotao amor espcie humana. Em suma, a partir do sculo XIV, a palavra humanidade foi revestida com um novo significado pelos
135 MOREIRA, Rafael e THOMAS, William M. Op. cit. p. 102. 136 CURTO, Diogo Ramada. Cultura imperial... p.145. Sobre a concentrao de textos relativos expanso portuguesa de meados do sculo XVI cf. tbm. CURTO, Diogo Ramada. Op. cit. 53
humanistas italianos, passando a designar o corpo de obras definido que estes humanistas tinham como referncia para o estudo e imitao: os studia humanitatis. Em vista disso, o termo humanismo passou a indicar uma srie de procedimentos que primavam pela importncia do homem e o desenvolvimento de suas faculdades, bem como o respeito aos valores humanos, especialmente queles que opem a humanidade bestialidade, tais como a amabilidade ou o domnio da linguagem. 137
Em Portugal, ao longo do sculo XVI, este movimento cultural concentrava-se, fundamentalmente, em dois polos, a saber, a Corte e a universidade. Por sua vez, de acordo com Amrico da Costa Ramalho, convencionou-se fazer coincidir o incio do humanismo em Portugal com o ano da chegada do siciliano Cataldo Parisio Sculo, por volta de 1485 embora caiba a observao: uma muito pontual e restrita influncia itlica detecta-se ainda no tempo de Dom Afonso V, pelos meados do sculo XV, com a fixao na Corte dos eruditos transalpinos Mateus Pisano e Justo Baldino. 138
Professor de retrica da Universidade de Pdua ao longo de quatro anos, Cataldo Sculo adaptou-se perfeitamente Corte portuguesa, segundo Lus de Matos, o que lhe rendeu notoriedade. 139 Figura emblemtica do movimento humanista portugus ao longo de sua vida teria falecido em 1517 , o professor siciliano jamais ensinaria na universidade portuguesa, ento em Lisboa, mas teria sido preceptor dos prncipes e dos filhos da alta nobreza lisboeta teria educado, entre outros, Dom Jorge, filho bastardo de Dom Joo II; a infanta Dona Joana; Dom Pedro de Meneses e sua irm, Dona Leonor de Noronha; Dom Dinis, irmo mais novo do duque de Bragana. Todavia, embora tenha sido neste ambiente de Corte que Joo de Barros cresceu e foi educado, tal como vimos, nem a bibliografia consultada, nem as fontes consultadas at o momento fazem qualquer meno de que ele tenha sido aluno de Cataldo Sculo. 140 Somemos a isso o fato de que Amrico da Costa Ramalho sugere que Joo de Barros teria tomado contato com a cultura renascentista em parte como autodidata, alm de sustentar que o historiador quinhentista foi um fraco helenista. 141
137 Cf. SLOANE, Thomas O. (Editor in Chief). Op. cit. s. v. Humanism. 138 MENDES, Antnio Rosa. A vida cultural. In: MATTOSO, Jos. (dir.) e MAGALHES, Joaquim R. (coord.) Histria de Portugal. No alvorecer da modernidade. Editorial Estampa. Lisboa: 1998. p. 333. 139 Cf. MATOS, Luis de. Lexpansion portugaise dans la littrature latine de la Renaissance. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1991. P. 82 e ss. 140 Sobre os alunos de Cataldo Sculo cf. RAMALHO, Amrico da Costa. Cataldo. In: Ctedra Humanismo Latino. Interveno no colquio internacional Humanismo Latino na Cultura Portuguesa, 17 a 19 Outubro de 2002. pp. 1-5. 141 Cf. RAMALHO, Amrico da Costa. Joo de Barros, humanista. In: Oceanos... pp. 68 73. 54
Desse modo, Joo de Barros, embora conhecesse bem o latim, no dominava profundamente o grego. Alm disso, sua atividade ligada mercncia, e no s armas, outro elemento que nos permite redimensionar a figura deste humanista. Segundo Antnio Borges Coelho, a nomeao de Joo de Barros para as funes de tesoureiro da Casa da Mina, tesoureiro da Casa da ndia e tesoureiro-mor de Ceuta legitima a hiptese da ligao de Barros, por via materna, com os homens de negcio de Lisboa. 142 Por fim, a observao de Borges Coelho nos coloca diante de um ltimo elemento da Vida de Joo de Barros que nos chama a ateno mais por sua ausncia que por sua presena: a figura materna do historiador quinhentista. Se, como sugeriu Emmanuel Le Roy Ladurie, 143 havia uma classificao hierrquica das vrias figuras de cortesos fixadas em aspectos distintivos, onde as diferenas entre o bastardo e o legtimo ganhavam sentido e serviam para marcar a posio ocupada pelo corteso na estrutura social, possvel compreendermos o exerccio retrico produzido por Manuel Sevarim de Faria com um instrumento elaborado para a diluio desta mcula. Seria, ento, a Vida de Joo de Barros uma tentativa de escamotear sua condio de bastardo? Sem resposta possvel, podemos apenas especular sobre o fato de que a estabilizao da figura do autor das Dcadas deveria obedecer a um rgido critrio de seleo daquilo que o deveria caracterizar diante de uma necessria credibilidade desse personagem e, consequentemente, de sua obra, frente a seus iguais.
142 COELHO, Antnio Borges. Op. cit. p. 28. 143 Cf. LADURIE, Emmanuel Le Roy. Op. cit. 55
Captulo 2
Joo de Barros, sua obra, a especificidade do humanismo portugus e as ambiguidades do reinado de Dom Joo III
[...] Aquele cujo engenho penetra nas profundidades das coisas tm muito valor nos assuntos muito srios e importantes; aqueles que andam sobrevoando a superfcie so fecundos nas argcias, charlates e sofistas, detendo-se a olhar certas mincias desnecessrias que outros desprezam; tm a agudeza do cutelo, no da espada, de tal maneira que podem dissecar um cabelo; mas se se aplicam a algo mais duro, se atrapalham. Alguns triunfam nos estudos, outros na prudncia com os negcios, outros nas artes manuais, e, no campo das letras, uns so por natureza poetas, outros tm facilidade com o aprendizado das lnguas e so uma negao e um fracasso nas outras reas da cultura [...] Esta a distribuio dos dons de Deus: ningum pode orgulhar-se de t-los recebido todos, ningum pode queixar-se por no ter recebido nenhum. (Juan Luis Vives, Sobre a alma e a vida)
Salvai, Senhor, o Reino e o Rei, E quem s vive sua vida! Sua f e esperana atendei, Que para salvar vos convida, Seu corao, desejo e invdia, Ao vosso olhar sempre se do; alegria dai guarida No-lo entregando alegre e so. (Marguerite de Navarre, Pensamentos da Rainha de Navarra estando em sua liteira durante a doena do Rei)
56
Diante da estabilizao da figura de Joo de Barros como autor, a elaborao de um inventrio de sua obra no pode perder de vista a especificidade do movimento humanista em Portugal. Contudo, imperativo consider-la, tambm, no mbito de um referencial terico que seja capaz de fugir do pressuposto historicista que compreende o passado como alteridade absoluta. Por isso, neste captulo, a relao entre passado e presente considerada como elemento constitutivo das linhas de fora desse momento da histria de Portugal, cujas mudanas causaram impacto notvel na produo intelectual desse autor, principalmente quando levado em considerao o fato de que suas opes por diferentes gneros literrios obedecem a uma lgica intrnseca diversidade de conjunturas efetivamente experimentadas pelo autor das Dcadas da sia.
2.1. Da prova do estilo ao dilogo moral
At o momento, nosso estudo procurou apresentar a ideia de que a estabilizao da figura de Joo de Barros articulou-se a um critrio de seleo daquilo que deveria caracterizar um autor cuja credibilidade da obra fundamentava-se numa estreita correspondncia entre sua honra e sua dignidade. O que se pode notar, com isso, que havia uma relao de complementariedade entre a elaborao intelectual e as prticas morais. Ou seja, ao menos no mbito da representao literria, no havia dissociao entre ideias e prticas. Com efeito, debruar-se sobre um personagem como Joo de Barros coloca-nos a difcil tarefa de recuperarmos o contexto histrico no qual ele estava inserido. Joo de Barros foi um homem de seu tempo e, desse modo, deparou-se com os dilemas e as contradies que o cercavam, bem como suas resolues, ou mesmo a inviabilidade delas. Tendo em vista que a par de sua carreira de funcionrio, Joo de Barros manteve intensa atividade como homem de letras, possvel compreender sua obra como um espao no qual o autor difinia sua posio frente s questes de seu tempo. Todavia, tal tarefa no pode ser realizada sem uma aproximao mais rigorosa com seus escritos, medida que devem ser compreendidos como testemunho desse contexto ainda que, no necessariamente, como uma evidncia objetiva do passado. 57
A produo de Joo de Barros vasta 144 e teve seu incio com a Crnica do Imperador Clarimundo donde os Reis de Portugal descendem, um romance de cavalaria publicado em 1522 e oferecido a Dom Joo III, que, de acordo com Antnio Jos Saraiva e scar Lopes, era amante deste gnero literrio. 145 Aps esta primeira experincia, Barros engajou-se em outros trabalhos. Norteado pelos ideais humanistas, onde a erudio e a versatilidade davam a tnica na formao do corteso, seu labor literrio deu origem no somente a panegricos e obras de carter historiogrfico que exigem maior flego , mas, tambm, a livros didticos e escritos de cunho doutrinrio. Com efeito, ao romance seguiu-se a Ropicapnefma, publicada em Lisboa dez anos aps a Crnica. Em 1533, foi lido na cidade de vora O Panegrico do Rei Dom Joo III, enquanto, por sua vez, o Panegrico da mui alta e esclarecida Infante Dona Maria Nossa Senhora foi redigido em 1544. Todavia, vale anotar que ambos os panegricos no conheceram a prensa na poca em que foram elaborados, tendo sido publicados por Manuel Severim de Faria mais de um sculo depois; o primeiro somente na segunda edio das Notcias de Portugal, em 1740, ao passo que o segundo panegrico est presente j na edio de 1655. Em dezembro de 1539 foi publicada, em Lisboa, a Gramtica da lngua portuguesa com os mandamentos da santa madre igreja, conhecida tambm com o ttulo que lhe foi dado poca, no colofo, a saber, Cartinha com os preceitos e mandamentos da santa madre igreja, e com os misterios da missa e responsorios dela. Um ano depois, em 1540, Joo de Barros manda imprimir outra gramtica, precedida por um dilogo; a Gramtica da lngua portuguesa e o Dilogo em louvor de nossa linguagem. Ora, ao que tudo indica, 1540 foi um ano profcuo para Barros, visto que, alm deste pequeno livro, conheceram a prensa, ainda, outros dois livretos; o Dilogo da viiosa Vergonha e o Dilogo de Joo de Barros com dois filhos seus sobre preceitos morais em modo de jogo. Por fim, o ano de 1540 considerado, tambm, o momento em que foi composto os Grammatices Rudimenta, publicados somente em 1972, por Maria Leonor Carvalho Buescu.
144 Nos prximos pargrafos segue uma breve apresentao da obra de Joo de Barros, onde sero mencionadas apenas as datas referentes s edies princeps. Para um mapeamento preciso das diferentes edies, recomendo a consulta dos estudos de Charles R. Boxer (BOXER, Charles R. Joo de Barros...) e de Antnio B. Coelho (COELHO, Antnio Borges. Tudo mercadoria...). 145 Cf. SARAIVA, A. J. e LOPES, O. Op. cit. p. 273. 58
Provavelmente, entre os anos de 1542 e 1543 Joo de Barros comps o Dilogo Evanglico sobre os artigos da F contra o Talmud dos Judeus. No entanto, esta obra s foi publicada em 1950, por Israel Salvator Rvah, com um estudo introdutrio de autoria do prprio Rvah. Finalmente, a partir de 1552 inicia-se a sequncia de publicaes de sua obra de maior flego, as Dcadas da sia. A primeira dcada, cujo ttulo sia de Joo de Barros, dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente foi editada em 1552, enquanto a Segunda dcada da sia de Joo de Barros e a Terceira dcada da sia de Joo de Barros foram publicadas, respectivamente, em 1553 e 1563. A Quarta dcada da sia de Joo de Barros foi publicada somente em 1615, em Madrid, depois de ter sido consertada por Joo Batista Lavanha, seu editor. A dimenso e a multiplicidade da obra de Joo de Barros so duas caractersticas que lhe so inerentes, e dificultam a elaborao de um exame rigoroso e exaustivo para anlise e confrontamento de suas ideias e referncias. Todavia, a partir do exame da produo intelectual desse letrado em seu contexto histrico ser possvel investigar o debate conceitual no qual Barros estava inserido, sobretudo se no quisermos perder de vista que o intuito de nosso estudo circunscrever as ferramentas intelectuais que lhe permitiram descrever povos e culturas diversas, com os quais Portugal se depararou poca dos descobrimentos martimos. Com efeito, tal como foi apresentado no primeiro captulo, a Vida de Joo de Barros a principal fonte existente no apenas para o estudo da biografia, mas tambm da bibliografia de Joo de Barros. Retomando-a como guia desta investigao, nota-se que, ainda no intrito de sua obra, Manuel Severim de Faria nos chama ateno sobre a aptido de Joo de Barros para o labor literrio, ao passo que nos revela sua determinao em ocupar o engenho escrevendo uma universal histria de Portugal. notvel, ainda, que sua virtuosa aptido para as letras correspondesse outra virtude, a da prudncia, uma vez que antes de compor uma obra de tamanha grandeza, decidiu-se por compor um livro de histria fabulosa, a que deu titulo de Imperador Clarimundo, para provar o estilo, como fazem os bons soldados, que antes da batalha se exercitam em pelejas. 146
146 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p. VIII. 59
Desse modo, por volta dos vintes anos, Joo de Barros leu a Crnica do Imperador Clarimundo para Dom Manuel. Mesmo sem perder de vista que a obra foi redigida no intuito de ajudar na educao do prncipe Dom Joo, Ana Paula Torres Megiani atenta para o contedo messinico desta novela. 147 Por sua vez, segundo Charles R. Boxer, o enredo da Crnica remete a um tipo de obra que encontra em Amadis de Gaula seu exemplo mais bem acabado. Por sua vez, em sua Crnica, Barros conta a histria do Imperador Clarimundo, apresentado como av de Dom Afonso Henriques, o primeiro rei de Portugal. Ainda segundo Boxer, para nossos leitores contemporneos, o trecho mais interessante do livro o vaticnio do personagem Fanimor 148 sobre a expanso portuguesa. 149 A respeito desse assunto, Antnio Borges Coelho sugere que a profecia de Fanimor um elemento por meio do qual se pode estabelecer uma aproximao efetiva com o pensamento de Joo de Barros. A histria de Portugal, sugere Borges Coelho, descrita em oitavas, cobre os feitos portugueses at o governo de Dom Manuel, exaltado pela converso dos judeus e, alm disso, descreve a expanso manuelina em terras africanas, asiticas e americanas. Em suma, Coelho afirma que na pena do historiador quinhentista, os portugueses definem-se j no combate contra os infiis, em especial a mourama. E quem no quiser obedecer e servir amando encontrar pela frente a fria dobrada dos homens que levavam cruzes de sangue nas asas. 150
Com efeito, esta foi a obra mais famosa de Joo de Barros ao longo de sua vida, tal como atesta Severim de Faria, ao comentar a respeito da segunda e da terceira impresso da Crnica:
No mesmo ano de 1553, em que imprimiu a segunda Dcada, tornou a imprimir pela segunda vez o seu Clarimundo, o qual depois no de 1601 se tornou a estampar pela terceira vez: e sendo este livro fabuloso, e o primeiro parto juvenil, teve melhor fortuna nas impresses que as outras obras e
147 Cf. MEGIANI, Ana Paula Torres. O Jovem Rei Encantado: expectativas do messianismo rgio em Portugal, sculo XIII a XVI. So Paulo: Editora HUCITEC, 2003. 148 Na trama, servidor e amigo de Clarimundo. O vaticnio de Fanimor est em BARROS, Joo de. Chronica do Emperador Clarimundo, donde os Reys de Portugal descendem. Quarta Impresso. Lisboa: Na officina de Francisco da Sylva, 1742. Livro III, Captulo IV. 149 Cf. BOXER, Charles R. Op. cit. pp. 38-45. 150 COELHO, Antnio Borges. Op. cit. p. 26. 60
Dcadas do mesmo autor; donde se v como o gosto do vulgo no se governa por razo, mas por apetite, e que o bom de ordinrio contenta aos menos. 151
Efetivamente, alm da fama que alcanou esta obra, o excerto transcrito revela, ainda, um critrio de distino social fundamentalmente qualitativo, ntido na percepo do bigrafo sobre Clarimundo, que, no obstante tenha revelado o talento e a diligncia do corteso, tido como o resultado de um parto juvenil, ou seja, uma obra imatura, que no atingiu a plenitude. Por sua vez, ainda na pena de Severim de Faria, tal categoria de obra corresponde ao gosto do vulgo, que , provavelmente, o segmento social onde a publicao teve maior xito. Desse modo, conclui, o gosto do vulgo no se governa por razo, mas por apetite. O sentido do que escreveu Severim de Faria ganha maior visibilidade quando o inserimos no mbito de um espao mental onde os quadros explicativos fornecidos por uma longa tradio herdada da Antiguidade se revela pela presena de uma obra como a Poltica de Aristteles autor de notrio prestgio na Pennsula Ibrica, sobretudo se recordarmos seu papel no importante debate entre Bartolomeu de Las Casas e Juan Ginez de Seplveda sobre a condio dos amerndios. 152 Vale lembrar que, para Aristteles, havia uma relao natural de subordinao na sociedade, onde a criana, ainda que fosse considerada humana, era tida como imperfeita, e por isso deveria submeter-se ao homem maduro, dotado de razo, por quem deveria ser tutelada. 153 O que se pode notar, com isso, que a distino social era orientada no apenas pelo gosto literrio, mas, sobretudo, por uma capacidade de avaliao essencialmente racional, caracterstica da fidalguia em sua aptido para exercer o comando. Esta percepo racionalista que Severim de Faria tem sobre o gosto literrio denuncia um fenmeno que pode ser compreendido como o resultado mais notrio da hostilidade que o humanismo ibrico assumiu diante dos romances de cavalaria. Para Edumundo OGorman, seria esta posio que levaria o humanista espanhol Juan Luis Vives a condenar moralmente a literatura de cavalaria. No intuito de reforar este argumento, relevante atentarmos para o que Vives escreveu a respeito das Fbulas Licenciosas:
151 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p.XXXI. Sobre o assunto, cf. BOXER, Charles R. Op. cit. p.41. 152 Sobre o assunto cf. PAGDEN, Anthony. La caida del hombre natural. El indio americano y los orgenes de la etnologa comparativa. Trad. Beln Urrutia Domnguez. Madrid: Alianza Editorial, 1988. 153 Cf. ARISTTELES. A poltica. Trad. Roberto Leal ferreira. So Paulo: Martins Fontes, 2006. Livro I, Captulo III. pp. 33-37. 61
[] um determinado gnero de fbulas, nem verdadeiro, nem verossmil, nem acomodado, nem conveniente a nenhuma utilidade prtica da vida, se no que pura perda de tempo, como os convites e tertlias de homens e mulheres, tal qual toda literatura ertica. 154
A crtica de Lus Vives nos revela os defeitos de um tipo de literatura que no contempla o verdadeiro, o verossmil, o conveniente, enfim, um tipo de literatura caracterizada pela ausncia de qualquer utilidade prtica. exatamente este iderio que levou outro humanista espanhol, Juan Valds, a reivindicar a verossimilhana na novela como condio essencial. Com efeito, para Valds, os acontecimentos imaginados deveriam guardar alguma equivalncia com os verdadeiros. 155
Todavia, a tendncia assumida tanto por Luis Vives, quanto por Juan Valds parece no ser exclusiva da Pennsula Ibrica. Edumundo OGorman atenta para o fato de que, tambm nos famosos Ensaios de Michel de Montaigne, perceptvel este conceito de equivalncia entre o verdadeiro e o verossmil, defendido sob o argumento de seu proveito e utilidade. Diante disso, OGorman recupera a ideia do francs, quando este afirma que:
[...] no estudo em que trato de nossos costumes e movimentos, os testemunhos fabulosos, contanto que sejam possveis, servem tanto como os verdadeiros. Tendo acontecido ou no, em Paris ou em Roma, a Joo ou a Pedro, sempre um lance da capacidade humana, do qual sou proveitosamente informado por esse relato. Examino-o e tiro proveito dele tanto em sombra como em corpo. 156
Portanto, a razo se apresenta, de algum modo, calcada na ideia de utilidade, uma verdade essencial e proveitosa que pode e deve ser alcanada por meio da leitura,
154 Cf. VIVES, Juan Luis. Arte de hablar. Libro III, Cap. VII. In: Obras completas. Primera traslacion castellana integra y directa, comentarios, notas y um ensayo bibliografico por Lorenzo Riber de la Real Academia Espaola. Tomo Segundo. M. Aguilar Editor: Madrid, 1948. p. 790. 155 Sobre a hostilidade do humanismo ibrico em face aos romances de cavalaria cf. OGORMAN, Edmundo. Estudio preliminar. In: ACOSTA, Joseph de. Historia Natural y Moral de las Indias. Em que se tratan las cosas notables Del cielo, y elemenos, metales, plantas y animales dellas: y los ritos, y ceremonias, leyes y gobierno, y guerras de los Indios. Mexico: FCE, 1940. p. IX-LXXXV. Cf. tbm. BATAILLON, Marcel. Erasmo y Espaa: estudios sobre la historia espiritual del siglo XVI. Trad. Antonio Alatorre. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1996. 156 MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios: livro 1. Trad. Rosemary Costhek Ablio. So Paulo: Martins Fontes, 2002. Captulo XXI, pp. 156-157. 62
de modo que esta prtica no se situaria no mbito do entretenimento, mas sim, da edificao pessoal; uma categoria de leitura que deveria ser, principalmente, instrutiva. Era essa elevao moral que haveria de caracterizar a fidalguia como grupo social privilegiado. Tendo isso em vista, curioso atentar para o fato de que, ao classificar como irracional o gosto do vulgo, Severim de Faria, embora tenha atirado no que viu, acertou no que no viu, fato que muito pode nos ajudar a compreender as ambiguidades que tm sido apontadas como caractersticas do reinado de Dom Joo III, tal como ser apresentado oportunamente. Mas onde, exatamente, Severim de Faria teria acertado? Para arriscarmos uma resposta a esta questo, importante cruzarmos algumas informaes. A primeira delas j foi mencionada acima: se dermos crdito ao que escreveu Antnio Jos Saraiva e scar Lopes, 157 a Crnica foi oferecida a Dom Joo III por ser, ele, amante deste gnero literrio. Tal preferncia colocaria Dom Joo III se operarmos na mesma lgica de Manuel Severim de Faria ao mesmo nvel do vulgo em termos de gosto literrio, sendo movido, portanto, mais pelo apetite que pela razo. Ora, possivelmente, seria o caso de contra-argumentarmos que a preferncia do vulgo foi quem imitou ao rei, o que seria mais coerente com sua dignidade. Tal como j foi apontado no captulo anterior, vlida aqui a tese segundo a qual o rei e sua Corte, enquanto paradigmas do comportamento social, devem recriar periodicamente os cdigos de distino social, donde fenmenos como a moda vem desempenhar um importante papel como instrumento de diferenciao no interior da sociedade. Alm disso, no seria de todo fora de propsito lembrar que o mais importante humanista desse momento, Erasmo de Roterd, dedicou a primeira edio de seu Lucubraes de Crisstomo ao rei portugs, ainda que, sem poupar crticas ao monoplio de especiarias. Ou mesmo o fato de que o notabilssimo humanista espanhol Juan Luis Vives lhe dedicou um manifesto por uma educao humanista, seu Da Disciplina. 158
Todavia, no parece ser este o caso. Se cruzarmos a sugesto de que Dom Joo III era amante de novelas de cavalaria com o que escreveu o humanista Incio de
157 Os autores no citam a fonte onde buscaram esta informao. 158 Cf. BUESCU, Ana Isabel. Joo de Barros: Humanismo, mercancia e celebrao imperial. In: Oceanos. Joo de Barros e o cosmopolitismo do Renascimento. Lisboa: Comisso Nacional para a Comemorao dos Descobrimentos Portugueses, n 27 julho/setembro, 1996. A citao est na p. 12. Sobre o assunto cf. tbm. HAHN, Fbio Andr. A pureza da f. O antijudasmo pacfico de Joo de Barros no Portugal Quinhentista. Tese de Doutorado em Histria Social, Rio de Janeiro: PPGH/UFF, 2009. pp. 34 35. 63
Morais em seu Panegrico de Dom Joo III, 159 possvel visualizar isso com maior nitidez. Morais, embora reconhea o enstusiasmo rgio pelas letras, chegando a consider-lo seu maior patrono e mecenas, no deixa de anotar que, muitas vezes nos admirvamos de um prncipe no muito culto se entusiasmar tanto num extraordinrio amor pelas letras. 160
Com efeito, Aires do Couto sugere que a importncia das palavras de Incio de Morais proferidas publicamente numa orao de carter laudatrio reside em sua sinceridade, numa poca em que as pessoas nem sempre o eram, elogiando-se habitualmente uns aos outros de forma pouco sincera. 161 Sinceridade ou ingenuidade, o elogio escrito por Incio de Morais ajuda-nos a contextualizar as preferncias literrias de Dom Joo III e, simultaneamente, aponta para o fato de que sua pouca cultura denota um gosto que se orienta mais pelo apetite do que pela razo. Da, por exemplo, uma das possveis explicaes do conhecido carter transitrio da abertura de seu reinado em direo ao humanismo cristo. De todo modo, no nosso interesse nem desejvel reduzir as decises polticas tomadas por Dom Joo III a uma nica motivao. Posteriormente, as ambiguidades que marcaram seu reinado sero apresentadas com maior acuidade. Alm disso, preciso contar com a hiptese de que o sculo XVI portugus fora marcado por uma revivescncia do gosto pela literatura novelesca, 162 o que nos obriga a matizar a existncia de uma hostilidade em face desse tipo de literatura e, ao menos, contar com a possibilidade de que o gosto humanista estava longe de ser hegemnico. Por fim, vale ainda observar que a mais importante qualidade do monarca no haveria de ser a
159 Segundo Aires do Couto, Incio de Morais, embora tenha sido pouco estudado, foi um importante humanista. Dentre suas obras conhecidas, duas so dedicadas a Dom Joo III. So elas; Ignatii Moralis oratio panegyrica ad inuictissimum Lusitaniae Regem diuum Ioannem tertium, nomine totius Academiae Conimbricensis, atque in eiusdem scolis habita, ipsa etiam Regis coniuge augustissima diua Caterina Lusitaniae regina, et regni haerede principe filio diuo Ioanne serenissimo eiusdemque regis sorore diua Maria serenissima praesentibus; e Ignatii Moralis oratio funebris in interitum serenissimi regis Ioannis ad patres conscriptos Conimbricensis Academiae. Conimbricae. Anno MDLVII. Excudebat Ioannes Aluarus Typographus Regius, apud quem est uenalis. O panegrico ao qual nos referimos aqui o primeiro, a Oratio panegyrica, que foi elaborada ao longo de 1550 (Cf. COUTO, Aires do. Panegricos de Dom Joo III de dois humanistas de quinhentos: Joo de Barros e Incio de Morais. In: Mthesis. N. 9. 2000. pp. 42 43). 160 MORAIS, Incio. Ignatii Moralis oratio panegyrica ad inuictissimum Lusitaniae Regem diuum Ioannem tertium, nomine totius Academiae Conimbricensis, atque in eiusdem scolis habita, ipsa etiam Regis coniuge augustissima diua Caterina Lusitaniae regina, et regni haerede principe filio diuo Ioanne serenissimo eiusdemque regis sorore diua Maria serenissima praesentibus. Apud. COUTO, Aires do. Op. cit. p. 52. O grifo meu. 161 COUTO, Aires do. Op. cit. p. 52. 162 Cf. BUESCU, Ana Isabel. Op. cit. p. 11. 64
erudio, mas sim, a justia contudo, importa notar que a justia, embora fosse o primeiro meio de se fazer bem aos sditos por despertar-lhes o amor pelo monarca, no era o fundamento de sua reputao. 163 J Dante Alighieri, em sua obra de carter poltico mais influente, a Monarquia, operando no mbito de um esquema tomista de sociedade, cujo fundamento residia nas ideias de ordem e harmonia esquema que, como vimos, marcou profundamente as concepes de sociedade no Antigo Regime , considerava que:
[...] a justia alcana sua plenitude no mundo quando reside em um sujeto muito nobre, de vontade sem limites e de sumo poder; com efeito, tal sujeto unicamente o Monarca; logo, no mundo, s o Monarca detm o poder da justia em sua plenitude. 164
De todo modo, uma das utilidades desse tipo de literatura orientada para a edificao pessoal, que ela serviria de referncia at mesmo para o monarca. nessa literatura que ele encontraria exemplos concretos dos princpios mais evidentes da justia e da lei natural. Da que uma tese como a de Edmundo OGorman a respeito do interesse pelo verossimilhante pde encontrar reverberao at no fabuloso Clarimundo, no qual Joo de Barros, segundo Charles R. Boxer, se apresenta claramente fascinado pelo som dos nomes dos lugares exticos da sia, pulverizando-os ao longo de seu texto. Para Boxer, assim como Lus de Cames o faria nOs Lusadas, o vaticnio de Fanimor celebra a expanso da f e do imprio aos pontos mais distantes do mundo. Foi essa dimeso realista que ainda de acordo com o historiador ingls estimulou Dom Manuel a confidenciar a Barros seu interesse em mandar por em memria as coisas da ndia e que, caso o jovem corteso estivesse disposto a sair com esta empresa, no seria seu trabalho ante ele perdido. 165
Com efeito, cerca de dez anos aps a publicao da Crnica, Joo de Barros mandou prensa outra obra, um dilogo moral, tal como o denominou Severim de Faria. 166 Assinada desta minha quinta da Ribeira do Alitm a XXV de maio de mil
163 Sobre o assunto, cf. BOTERO, Joo. Da Razo de Estado. Coordenao e introduo Lus Torgal. Trad. Raffaella Longobardi Ralha. Coimbra: Instituto Nacional de Investigao Cientfica, 1992. 164 ALIGHIERI, Dante. Monarqua. Estudio preliminar y notas, Laureano Robles Carcedo y Luis Frayle Delgado. Editorial Tecnos: Madrid, 1992. Libro I, XI, p. 27. Sobre o carter tomista do pensamento social de Dante e as ideias de ordem e harmonia cf. pp. 5 20. 165 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. pp. IX - X. Cf. tbm. BOXER, Charles R. Op. cit. pp. 44 e 45. 166 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p. XII. 65
quinhentos e trinta e um anos, 167 lugar para onde o historiador quinhentista se havia retirado, na ocasio em que os rebates do mal da peste obrigaram a cada um buscar os ares puros dos campos e povoar as quintas. 168 A este dilogo deu o ttulo de Ropicapnefma e, segundo o prprio autor escreveu em sua dedicatria a Duarte de Resende, 169 seu parente, tal nome resulta de um enxerto de dois ramos gregos: a um chamam Ropica e a outro Pnefmaticos. Os quais [...] lanaro de si Ropicapnefma, a que em nossa linguagem podeis chamar Mercadoria espiritual. 170 Charles Boxer atenta para a complexidade e a paradoxalidade desta obra, cujas passagens possuem, segundo o historiador ingls, formulaes obscuras, fazendo dela uma publicao de difcil compreenso. 171 evidente que o obscurantismo atribudo por Boxer deve ser matizado diante do fato de que, em sntese, tal paradoxismo pode ser compreendido como uma estratgia de dissimulao da opinio do autor. Ainda que tenha sido escrita de um modo que hoje nos parea demasiadamente hermtico, a elaborao de Ropicapnefma foi pautada pela preocupao de ser lida no apenas pelos doutos. o prprio autor quem nos atesta isso ao escrever uma introduo, quase argumento da obra, para aqueles que folgarem saber a inteno dela. 172 A existncia dessa introduo deve ser compreendida, em si mesma, como a demanda de um pblico que no possui familiaridade com o assunto, ao passo que, para os doutos, a obra leiga e clara de entender, ainda que Barros no deixe de reconhecer que foi escrita em metfora. 173
Portanto, um dilogo moral escrito por meio de metforas. Com efeito, o dilogo foi um dos mais importantes gneros literrios ao longo do Renascimento. Influenciados por dilogos clssicos, tais como os de Plato, Ccero, Luciano e Santo Agostinho, os dilogos do Renascimento deles se diferenciam por uma extrema inventiva formal, 174
distanciando-se, com isso, de seus modelos da Antiguidade. Por sua vez, o dilogo deve ser compreendido como um gnero hbrido, que por sua forma aproxima-se da fico
167 BARROS, Joo de. Ropicapnefma... p. 6. Contudo, A edio prnceps desta obra, segundo Rvah, foi acabada de imprimir em Lisboa, a 8 de Maio de 1532. 168 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p. XII. 169 Segundo escreveu Joo de Barros, Duarte de Resende encomendou a obra a Joo de Barros depois de ter lido a Crnica. Cf. BARROS, Joo de. Op. cit. pp. 3-6. 170 BARROS, Joo de. Op. cit. p. 6. Os grifos so do autor. 171 Cf. BOXER, Charles R. Op. cit. pp. 47-64. 172 BARROS, Joo de. Op. cit. p. 6. 173 Idem. Op. cit. p. 7. 174 HUE, Sheila Moura. Introduo. In: Dilogos em defesa e louvor da Lngua Portuguesa. Edio, introduo e notas Sheila Moura Hue. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2007. pp. 9-35. Cf. cit. nota 33. 66
narrativa, ou mesmo do teatro. Contudo, diferentemente desses gneros, o dilogo se desenrola em torno de uma questo terica ou prtica e pertence, por isso, literatura de ideias. 175 Para Eugenio Garin, por exemplo, em artigo dedicado ao tema da filosofia do Renascimento, o dilogo compreendido como instrumento eurstico por excelncia. 176 Mas principalmente em funo de sua forma que o dilogo permitia a contraposio de ideias conflitantes, o que possibilitava a encenao, por parte do autor, de um procedimento dialgico persuasivo. Da produo desse tipo de gnero em Portugal, so conhecidos quarenta e um dilogos escritos ou publicados no sculo XVI. 177 notvel, portanto, o quanto esse gnero foi importante como veculo para o debate de ideias no contexto do humanismo portugus. Nesse sentido, afirma Sheila Moura Hue:
Em uma poca em que ainda no existia o jornal ou qualquer outro suporte para o debate social de ideias, o dilogo era o gnero que se prestava discusso de temas da atualidade, contemporneos, e apresentao de todo tipo de contedo. Escreveram-se e publicaram-se dilogos sobre tica, filosofia, astronomia, poltica, religio, retrica, botnica, msica, amor, vida cotidiana, moral, sobre doutrina matrimonial, sobre as cores da pintura, e mesmo satricos como o Dilogo sobre la invencin de las calzas que se usan agora, que criticava as modas de seu tempo. Essa multiplicidade de temas reflete o interesse caracterstico do Renascimento pelos mais diversos campos. 178
Com efeito, os dilogos tambm conhecidos por colquios foram recorrentes entre autores do Renascimento, tais como Erasmo de Roterd ou Baldassare Castiglione. 179 Assim, ao passo que o dilogo foi um gnero por meio do qual se discutiam temas da atualidade, notvel que sua composio, por meio de metforas, estaria subordinada a um modelo semntico contextual, do qual dependia todo seu sentido. Efetivamente, a finalidade das palavras no horizonte de um humanista como Juan Vives, por exemplo, era a de manifestar o que sente e persuadir o que quer, ou
175 HUE, Sheila Moura. Op. cit. Cf. cit. nota 31. 176 GARIN, Eugenio. O filsofo e o mago. In: GARIN, Eugenio. O homem renascentista... p. 129. 177 HUE, Sheila Moura. Op. cit. p. 18. 178 Idem. Ibidem. Grifo da autora. 179 S para citar exemplos temos O Corteso, de Castiglione e Uma Inquisio sobre a F, de Erasmo. 67
excitar, ou sossegar um afeto, ou paixo. 180 A capacidade de fazer-se ouvir e o domnio das tcnicas do discurso persuasivo como elemento mediador das relaes humanas foi um dos grandes ideais do humanismo. Eugenio Garin nos ensina que um personagem como o humanista Coluccio Salutati que viria a ocupar o lugar de Petrarca como guia da inteligncia italiana entre os sculos XIV e XV considerava Petrarca um modelo insupervel de homem de cultura, infalvel em tudo, at mesmo na vida poltica, capaz de fazer-se ouvir por populares e por soberanos, pontfices e imperadores. 181 notrio, portanto, que o humanismo se afirmou, principalmente, no campo das artes da palavra, 182 fenmeno que ser oportunamente abordado. Da importncia efetiva da palavra em nosso contexto de estudos o prprio Joo de Barros quem d notcias a partir de uma das entidades alegricas presentes em sua Ropicapnefma, a Razo, que, ao comentar sobre a regra por meio da qual um homem se faz conhecido, sugere no ser a dos fisionomistas que dizem ser pela proporo e membros conhecerem o bravo, o manso, o casto e o desonesto, mas por tuas conversaes. 183
A leitura de um dilogo moral, protagonizado por entidades alegricas o Tempo, a Vontade, o Entendimento e a Razo e escrito por meio de metforas no pode perder de vista o momento no qual foi escrito. Com efeito, a respeito da metfora e do sentido das palavras no contexto do humanismo ibrico, mais uma vez Juan Luis Vives, em sua Arte de falar, quem nos revela a existncia, por um lado, de vocbulos cuja significao natural, ou seja, expressam taxativamente aquilo mesmo para o que foram introduzidas. 184 Todavia, afirma tambm a existncia de uma outra modalidade de palavras, na qual, segundo ele:
H aquelas que de seu acento natural passaram a outro, que so, pouco mais ou menos, tantas como as que continuam no local de seu nascimento. Este trnsito chama-se metfora, para os gregos, e translao, para ns. Contudo, sua deslocao no tanta que percam seu lugar completamente. 185
180 VIVES, Juan Luis. Op. cit. p. 692. A traduo foi feita por mim. 181 GARIN, Eugenio. Cincia e vida civil no Renascimento italiano. Trad. Ceclia Prada. So Paulo: Editora UNESP, 1996. p. 22. 182 Cf. GARIN, Eugenio. Op. cit. p. 23. 183 BARROS, Joo de. Op. cit. p. 135. 184 VIVES, Juan Luis. Op. cit. p. 695. A traduo foi feita por mim. 185 Idem, Ibidem. 68
fundamentalmente no mbito desta mobilidade de sentido, onde o maior se contrai ao menor, ou o menor se estende ao maior ou se revolve e gira em si mesmo, como semelhante, 186 que Joo de Barros encontra o suporte necessrio para fazer compreender que as coisas e autoridades que a Vontade, Entendimento e Tempo arguem contra a Razo so as que qualquer infiel e pecador pode arguir, e, com esta condio, sem lhe dar outro crdito, as receba. 187 Em suma, Barros escreve suas metforas ao gosto do Renascimento. Diante disso, compreensvel que, para um ingls como Charles Boxer, uma obra escrita em portugus arcaico, e com recorrentes metforas, possa ter parecido obscura. Com efeito, o prprio autor nos d a conhecer, em sntese, o argumento de sua Ropicapnefma, ao nos apresentar a parceria estabelecida entre Vontade, Entendimento tidas como as principais partes da alma e Tempo para se fazerem mercadores de espirituais mercadorias. Por sua vez, estas espirituais mercadorias devem ser compreendidas como os vcios aos quais as duas potncias Vontade e Entendimento aceitam e compram sempre que desobedecem Razo o synderesis morsu da conscincia, ou seja, a doutrina ortodoxa que julga todas as mercadorias, compradas com os talentos e moeda do Evangelho, que so as graas e dotes que Deus a cada um d, para com eles multiplicar e merecer e, quando lhe pedir conta, darem multiplicao com bons e fiis servos. 188
Se, por um lado, Boxer se excedeu ao classificar a Ropicapnefma como obscura, por outro, no foi exagero compreend-la como uma alegoria medievalizante e embora suas metforas tenham sido escritas ao gosto do Renascimento , a partir disso, compar-las, sob determinados aspectos, com alguns dos autos de Gil Vicente muito embora seja importante notar que o teatro vicentino tambm participa [] de uma incipiente atmosfera humanista e renascentista. 189 O historiador ingls sugere, ainda, que o paradoxismo adotado por Joo de Barros deve ser compreendido como um recurso de inspirao tipicamente erasmista no que tange sua tentativa de alinhar a mensagem espiritual, a apologia da f crist e a stira social. Entretanto, observa que a inspirao erasmista do autor se revela, com maior evidncia, em seu antiescolasticismo
186 Idem. p. 695. 187 BARROS, Joo de. Op. cit. p. 7. 188 Idem, Ibidem. 189 SARAIVA, A. J. e LOPES, O. Op. cit. p. 189. 69
que, todavia, deve ser matizado em face de seu horizonte agostiniano, tal como veremos adiante , bem como em sua evidente advocacia por um cristianismo pacifista, ou, ao menos, no persecutrio. Portanto, sob o signo do erasmismo que Joo de Barros exalta o contedo evanglico do Novo Testamento, fazendo com que a mensagem de Cristo e de seus apstolos seja compreendida, essencialmente, como uma mensagem de paz e simplicidade. Da a manifestao da ideia de que a suprema cincia estaria na imitao de Cristo, enquanto todo o resto seria mera vanidade. 190
O debate que Joo de Barros leva a efeito sobre o contedo evanglico do Novo Testamento, da mensagem de Cristo e seus apstolos, nos introduz uma importante questo que o autor quinhentista aborda, a saber, a relao existente entre a Antiguidade pag e a revelao crist. O historiador Israel S. Rvah, atento ao problema, o localiza e o recupera no livro a partir da fala da Razo:
Viu Moiss com novo lume da Verdade, deu os preceitos da Sagrada Escritura, at que nasceu a Luz dos homens que andava encoberta entre as figuras de tantas cerimnias da Lei Mosaica. Esta Luz descobriu a ignorncia de Pitgoras, a vaidade de Scrates, a ceguidade de Plato, a fraqueza de Aristteles, a torpeza de Epicro e doutras seitas e opinies que se assentaram na cadeira pestilencial. 191
Por sua vez, Rvah assinala que a crtica da Razo aos antigos se depara com um contra argumento expresso na fala do Tempo, quando este anuncia ser nos passados, o proveito em vida e a fama na morte, as duas motivaes que levaram, por serem fundamento principal de qualquer obra, seja nas armas, nas letras, ou no governo da repblica, cujos modelos a serem imitados se encontram em personagens como Csar ou Ccero. 192 Com efeito, em face desse pragmatismo, a Razo aponta para o fim que Deus reservou aos pagos:
E pois tu, Tempo, falaste em monarquia e bens naturais e da fortuna, que da Soberba foram to familiares, dize o fim desse Alexandre, desse Csar, a formosura de Narciso, as letras de Plato e Aristteles, o ouro de
190 Cf. BOXER, Charles R. Op. cit. pp. 47-64. 191 BARROS, Joo de. Op. cit. p. 37. Cf. RVAH, I. S. Antiquit et christianisme, anciens et modernes dans loevre de Joo de Barros. In: Revue philosophique de la France et de ltranger. n 92, Paris, 1967. 192 Cf. BARROS, Joo de. Op. cit. p. 83. Cf. tbm. RVAH, I. S. Op. cit. 70
Mida, as riquezas de Creso, com todos oas estados dos Assrios, Medos, Persas, Gregos e Romanos que to favorecidos foram da Soberba; que galardo lhe deu? A sepultura infernal, fim dos seus devotos mercadores. 193
Notemos, com isso, que na pena de Joo de Barros, a despeito de suas virtudes, os pagos foram excludos do Paraso tal como fizera Dante Alighieri em sua Comdia com Virglio e outros virtuosos que no receberam o batismo. 194 Assim, ainda que os cristos se aproveitem do conhecimento legado dos antigos, tal como o Entendimento argumenta, 195 isso no deve ser feito de maneira incauta. I. S. Rvah atribui esta posio a um rigorismo de carter agostiniano, visto que de acordo com o historiador, on sait que, exaspr par la controverse plagienne, saint Augustin a thologiquement condamn les crivains, les philosophes et les hros de lAntiquit quil avait dabord passionnment admirs. 196 Para Rvah, esta uma peculiaridade e, sob meu ponto de vista, o limite da influncia de Erasmo de Roterd sobre o pensamento de Joo de Barros, uma vez que nosso historiador quinhentista no incorporou parte substancial do iderio do humanista holands, que, em seu radicalismo, chegara a defender a canonizao de nomes como o de Scrates, Ccero, Virglio e Horcio. 197
Efetivamente, a presena do iderio erasmista foi limitado na obra de Joo de Barros, mesmo neste seu primoroso colquio. Contribuio preciosa sobre este assunto nos foi legada pelo historiador portugus Joaquim Verssimo Serro. Para ele:
Parece evidente que houve uma inteno erasmiana na obra de Barros. No livro exprimem-se ideias defendidas por Erasmo e que eram correntes noutros humanistas. O autor repudia a guerra, flagela os prncipes injustos, defende estar a nobreza na prpria virtude e no nos defeitos alheios, insurge-se contra o ritualismo da Igreja e parece inclinar-se para uma religio de sentido interior. Joo de Barros afirma: a conscincia o
193 BARROS, Joo de. Idem. p. 25. Cf. tbm. RVAH, I. S. Idem. 194 Na Comdia de Dante Alighieri as almas dos virtuosos que no sofreram pena estavam no Limbo, e no no Inferno. Ali, por no terem recebido o batismo, se encontravam os grandes vultos da Antiguidade clssica, dentre os quais Homero, Horcio, Ovdio, Lucano e o prprio Virglio. Cf. ALIGHIERI, Dante. A divina comdia. Trad. e notas de Italo Eugenio Mauro. So Paulo: Ed. 34, 1998. Canto IV. 195 Se isso assim fosse, no aproveitariam os plpitos da religio crist de suas memrias, ditos e doutrinas. No carece de virtude o que em ato virtuoso se traz. BARROS, Joo de. Op. cit. p. 25. Cf. tbm. RVAH, I. S. Op. cit. 196 RVAH, I. S. Op. cit. p. 172. 197 Idem. Ibidem. 71
primeiro juiz das obras. Ser o bastante para afirmar que o nosso autor leu Erasmo? 198
Ora, evidente que a circulao de ideias fazia com que o pensamento de Erasmo de Roterd no fosse totalmente desconhecido de Joo de Barros, mesmo que este nunca tivesse lido os escritos do holands. digno de nota, nesse sentido, que a circulao do iderio humanista no se encontrava, necessariamente, vinculada a um fato editorial, tal como o da impresso das obras. Segundo Fernando Bouza, a compreenso do fenmeno da circulao de textos no perodo que engloba a Alta Idade Mdia e o incio da poca Moderna deve superar o esquematismo que atrela a difuso de textos unicamente tipografia, uma vez que este esquema exclui o manuscrito desse processo. Para Bouza, el manuscrito era tan comn y corra de mano en mano. Com efeito, numa sociedade em que a cpia e a transcrio de manuscritos eram atividades altamente qualificadas, sua posse pode ser compreendida, at mesmo, como um gesto de distino social. 199 Desse modo, sobretudo por via de manuscritos onde a autoria se dilua em funo da atividade do copista e epstolas, a marca humanista revestiu influncias mltiplas, sem que houvesse, contudo, uma transposio imediata de ideias para a pena de seus discpulos e admiradores. Nesse sentido, vlida a sugesto de Joaquim Verssimo Serro, segundo a qual a marca erasmiana que se conserva no colquio Ropicapnefma indireta. 200
De todo modo, a cautela em eliminar as possveis fronteiras entre a herana pag e o cristianismo apontada como a especificidade do erasmismo ibrico segundo Israel Rvah. Com efeito, embora Deus conceda um favor aos pagos justos, deixando seus atos virtuosos como exemplo, a esterilidade da moral pag para um cristo notria e, portanto, seria unicamente por meio da prudncia que um cristo deveria fazer bom uso dos autores antigos. 201 Nesse sentido, eloquente a Razo, tal como observou, mais uma vez, Rvah:
Eu no fui experimentar os quilates que cada um tem na pena, mas sei no haver obra virtuosa sem galardo. Onde est este dividido prmio?
198 SERRO, Joaquim Verssimo. Figuras e caminhos do Renascimento em Portugal. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1994. p. 334. 199 Cf. BOUZA, Fernando. Corre manuscrito. Una historia cultural del Siglo de Oro. Madrid: Marcial Pons, 2001. Citao pgina 16, o grifo do autor. 200 Cf. SERRO, Joaquim Verssimo. Op. cit. 201 RVAH, I. S. Op. cit. 72
No fim por cujo respeito se obrou. As obras que seu intento e fim Deus, tm por ele galardo. As que estimaram o Mundo e foram para ele de alguma boa doutrina, concedeu-lhe Deus andarem nos atos virtuosos que dizes por bom exemplo; porm, carecem do principal prmio, que Deus e a Sua Glria, pois a no quiseram conhecer. Os que mau exemplo deixaram com suas obras tem duas penas: uma eterna que respeita Eternidade que ofenderam, outra temporal e acidental enquanto durar seu mau exemplo. 202
A manuteno das fronteiras existentes entre a herana pag e o cristianismo parece ser um elemento fundamental, tambm, na composio do esprito cruzadstico que estrutura a mentalidade portuguesa no contexto das expanses martimas. Sua evidente reverberao na ortodoxia de um cristianismo pautado pelo rigor agostiniano ganha amplo espao na pena de Joo de Barros, onde, se verdade que a negao do den aos pagos vem acompanhada do reconhecimento da ineficcia da moralidade pag para o modo de vida cristo, no menos verdade que esta forma de interao com o paganismo se encontra, tambm, na base da argumentao do autor quinhentista contra Maom e outros inventores de erradas doutrinas. Isso visvel, por exemplo, na resoluo dada ao comentrio do Entendimento, segundo o qual, todos aqueles que trabalham pela doutrina de Maom recebero temporais e acidentais penas. 203 Com efeito, aqui, a Razo encontra espao para a condenao no apenas do profeta criador do Islo, mas tambm, dos criadores de outras doutrinas que possam corromper os bons costumes:
No digo Mafamede, mas todos os inventores de erradas doutrinas, e assim o prncipe em cujo tempo, por seu favor ou negligncia, algumas prevaleceram tanto que corromperam os bons costumes do povo. E quando, por sua industria, os bons exemplos e honestos trabalhos ficaram por tesouro a seus reinos e senhorios, ter aqui temporal louvor e, na Glria, eterno galardo. 204
Sem dvida, estas linhas so muito curiosas e, particularmente, acredito que devam ser compreendidas, tambm, no contexto da Reforma Protestante. A quem se refere Joo de Barros quando faz meno a todos os inventores de erradas doutrinas?
202 BARROS, Joo de. Op. cit. pp. 25-66. Cf. tbm. RVAH, I. S. Op. cit. 203 BARROS, Joo de. Op. cit. p. 26. 204 Idem. Ibidem. 73
Embora no seja claro, muito possvel que Barros esteja fazendo uma aluso a Lutero e ao movimento que cindiu a cristandade no contexto do sculo XVI. Nessa perspectiva, no de se desprezar o fato de que nosso autor se referiu ao sacerdote alemo em sua dedicatria a Duarte de Resende. 205 Diante disso, no equvoca a considerao de que, paulatinamente, o conflito entre cristos e muulmanos encontraria equivalncia no conflito entre cristos reformistas e ortodoxos. 206
No excerto transcrito evidente, ainda, a responsabilidade do prncipe em face da retido das doutrinas que prescreveram o comportamento de seus sditos, uma vez que unicamente em funo de seu favor ou de sua negligncia que a correta doutrina prevalecer em seu reino. Sem dvida, por um lado, isso nos remete atividade missionria decorrente das viagens dos descobrimentos, mas, por outro, tambm aspirao de anexar as terras descobertas, bem como a legitimao de sua posse, 207 uma vez que esta se apresenta atrelada ao combate das idolatrias, prtica estimulada pelos Reis de Portugal. , ainda segundo a Razo, unicamente incitados pelas boas obras, e em nome da glria da alma, que o povo portugus se empenha contra a idolatria nos continentes recentemente descobertos, pois, argumenta a entidade, se os antigos martirizavam o corpo mais pela fama que pela glria da alma, que dirs a quanto povo o fazia e faz agora to geralmente por toda a sia e frica, onde a idolatria tem algum assento, que assim vo todos oferecer as vidas a qualquer gnero de morte como a tomar um alegre convite? 208
Com efeito, outros temas permeiam, ainda, a Ropicapnefma. Segundo I. S. Rvah, a obra foi o primeiro livro de apologtica anti-judaica elaborado por um leigo. Todavia, para o historiador, a violncia anti-semita da obra no autoriza enfileirar seu autor entre os fautores da criao do tribunal 209 da Inquisio no reino portugus. Por sua vez Antnio Borges Coelho, atenta para o fato de que o autor quinhentista encontra espao para criticar a corrupo reinante na igreja, os fidalgos de
205 Cf. BARROS, Joo de. Op. cit. p. 5. 206 Cf. THOMAZ, Lus Filipe F. R. e ALVES, Jorge Santos. Da cruzada ao Quinto Imprio. In: BETHENCOURT, Francisco e CURTO, Diogo Ramada (org.). A memria da nao. Lisboa: Livraria S da Costa Editora, 1991. pp. 81-164. 207 No fora de proposito anotar que o efeito cumulativo das bulas papais foi o de dar aos portugueses [...] sano religiosa e uma atitude igualmente dominadora com relao a todas as raas que estivessem fora do seio da cristandade (BOXER, Charles R. O imprio martimo portugus... p. 39). 208 Idem. Ibidem. p. 65. 209 Cf. RVAH, I. S. Joo de Barros. In: BARROS, Joo. Dilogo evanglico sobre os artigos de f contra o Talmud dos judeus. Manuscrito indito de Joo de Barros. Introduo e notas de I. S. Rvah. Lisboa: Livraria Studium Editora, 1950. p. XXVII e ss. Cf. tbm. HAHN, Andr Fbio. Op. cit. 74
linhagem, bem como outros cortesos e ministros que frequentavam o Pao. Ainda para o historiador portugus, nesta obra, Barros possui uma concepo bastante arrojada sobre a origem do poder, segundo a qual, a natureza fez todos os homens iguais. Ado no teve o senhorio dos outros homens. No princpio os frutos da terra eram de uso comum. O Poder e a propriedade nasceram depois pelo engano e o uso da fora. 210
Por sua vez, Ana Isabel Buescu e Israel S. Rvah, no deixaram de anotar que a obra deve ser compreendida como uma stira contundente de todas as classes da sociedade, bem como uma crtica dos vcios morais. Alm disso, nos lembram que em 1581, diante de uma nova conjuntura, Ropicapnefma passaria a figurar no Index dos livros proibidos, tal como podemos comprovar com o escrito do prprio Severim de Faria: 211
Este dilogo da Ropicapnefma correu at o ano de 1581, no qual saiu o Catlogo dos livros proibidos neste Reino de Dom Jorge de Almeida, arcebispo de Lisboa e inquisidor mor, em que se vedou; no por conter condenada doutrina, mas porque no tomassem dele alguns ocasio para usarem em seus ofcios das invenes viciosas que tinha achado o tempo, porque est to enferma nos costumes a Natureza humana, que as mais das vezes convertem os homens em peonha os mesmos meios que lhe do para seu remdio. 212
Ora, a proibio do dilogo nos remete, necessariamente, a uma questo que deve ser abordada, a saber, a poltica cultural no reinado de Dom Joo III.
2.2. O humanismo portugus e as linhas de fora do reinado de Dom Joo III
Tanto a Crnica do Imperador Clarimundo quanto a Ropicapnefma, parte da sia de Joo de Barros e mesmo o Dilogo Evanglico sobre os artigos da F contra o Talmud dos Judeus so obras elaboradas num momento especfico da Histria de Portugal, ainda que, vale lembrar, o Dilogo Evanglico fosse impresso somente no
210 COELHO, Antnio Borges. Op. cit. p. 36. 211 Cf. RVAH, I. S. Op. cit. p. XXVIX. Cf. tbm. BUESCU, Ana Isabel. Op. cit. p. 12. 212 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p.XIV. 75
sculo XX. Se verdade que tanto a Crnica quanto a Ropicapnefma conheceram a prensa no reinado de Dom Joo III, no se deve perder de vista que o ambiente no qual se procedeu a transio do governo de Dom Manuel para o de Dom Joo III foi marcado pelo iderio renascentista, onde as mltiplas atividades ligadas esfera da cultura ganharam apoio de ambos os monarcas. Ainda que seja possvel considerar lenta a progresso do clacissismo em terras portuguesas o que teria conferido vida cultural poca de Dom Joo II e Dom Manuel I um carter relativamente anacrnico e arcaizante no contexto europeu 213 , no deixa de ser notrio, por exemplo, o interesse de Dom Manuel pelas letras. Desse fato o humanista Damio de Gis quem nos deixa seu testemunho:
[...] foi (Dom Manuel) muito inclinado s letras e aos letrados, e entendia bem a lngua latina, em que fora doutrinado sendo moo, da qual sabia tanto, que podia julgar entre o bom e o mau estilo. Foi to desejoso da nobreza do reino ser instituda em letras que mandava aos seus moos fidalgos e da cmara, em que para isso havia algum jeito, ouvir cada dia lio de gramtica ao Bairro dos Escolares de Lisboa, onde ento estavam os Estudos Gerais deste reino, e ao mestre catedrtico da gramtica que se chamava Frei Xinal. 214
Com efeito, Ana Isabel Buescu anota que os primeiros anos do reinado de Dom Joo III foram marcados por uma grande abertura s correntes de pensamento mais inovadoras, em particular do humanismo cristo. 215 Sem perdermos de vista o carter erasmiano de educao veiculado por Damio de Gis, 216 notvel o procedimento por meio do qual Dom Manuel soube estimular nos filhos o interesse pelas letras. O monarca, conta-nos o humanista em sua Crnica do felicssimo Rei Dom Manuel, era muito entendido nas histrias e, sobretudo, nas crnicas dos Reis destes Reinos, e as fazia ler ao prncipe Dom Joo, seu filho. 217 Assim, diante da especificidade do momento histrico em que o iderio renascentista se difunde no reino portugus,
213 MENDES, Antnio Rosa. A vida cultural. In: MATTOSO, Jos. (dir.) e MAGALHES, Joaquim R. (coord.) Histria de Portugal... p. 335. 214 GIS, Damio. Chronica do Felicissimo Rei Dom Manuel. Lisboa: Casa de Francisco Correa, 1566. Quarta Parte. Cap. LXXXIV. Flio 107, verso. A transcrio foi atualizada por mim. 215 BUESCU, Ana Isabel. Op. cit. p. 12. 216 Sobre o ideal erasmiano de educao cf. ERASMO DE ROTTERDAM. De Pueris (Sobre os meninos). In: Erasmo de Rotterdam: o mais eminente filsofo da Renascena. Trad. Luiz Francine. So Paulo: Lafonte, 2011. 217 GIS, Damio. Op. cit. Flio 108, anverso. 76
possvel compreender a tolerncia de Dom Joo III diante do pensamento humanista, sobretudo em face dos pressupostos que orientaram sua educao. Por sua vez, Elisabeth Hirsch chama a ateno para o fato de que, longe de compor um grupo homogneo, os humanistas portugueses possuam convices largamente divergentes, o que a leva a compreender o esforo do monarca portugus em reunir tanto humanistas liberais os erasmistas quanto conservadores e, mais tarde, os Jesutas , como indcio de uma abertura sem precedentes entre seus pares na Europa. 218
A perspectiva com a qual as autoras Elisabeth Hirsch e Ana Isabel Buescu deitam olhos sobre a abertura de Dom Joo III ao pensamento humanista ecoa estudos j clssicos sobre o assunto, notavelmente os de Marcel Bataillon, reunidos no livro tudes sur le Portugal au temps de lhumanisme, 219 onde o autor, ao se deter na correspondncia entre humanistas portugueses e estrangeiros, nos revela o campo de circulao dessas idias na Corte de Dom Joo III e, principalmente, os feitos e gestos que caracterizaram o primeiro momento de seu reinado. certo que falar da difuso do iderio renascentista no reino portugus, falar da diversidade de fatores que condicionaram as manifestaes da cultura portuguesa na passagem do sculo XV para o XVI, tais como, por exemplo, os valores humanistas e o classicismo; ambos assuntos que, embora j assinalados oportunamente, no devem ser deixados de lado. Diante disso, se nosso primeiro intento, aqui, visualizar a difuso do conjunto de ideias ligadas ao fenmeno do Renascimento no contexto portugus, bem como o humanismo, imperativo retomarmos a questo do erasmismo, fundamentalmente sua receptividade em terras portuguesas. De modo sumrio, a presena do humanismo cristo erasmiano na obra de Joo de Barros foi abordada aqui, tanto a partir de nossa leitura do estudo feito por Israel S. Rvah sobre o assunto, quanto a partir da recuperao da hiptese de Joaquim Verssimo Serro, segundo a qual, a marca erasmiana apresentada no colquio Ropicapnefma foi assimilada de maneira indireta, fenmeno que ganha maior expressividade, sobretudo em vista de um contexto histrico no qual a circulao dos escritos no se encontrava exclusivamente atrelada impresso das obras, mas, tambm, circulao de cartas e manuscritos.
218 Cf. HIRSCH, Elisabeth Feist. Damio de Gis. Trad. Lia Correia Raitt. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1987. 219 BATAILLON, Marcel. tudes sur le Portugal au temps de lhumanisme. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, 1952. 77
Com efeito, exemplo emblemtico da penetrao do humanismo cristo na Corte joanina o caso do humanista Damio de Gis, amigo de Erasmo, a quem Dom Joo III teria consultado no intuito de saber da disponibilidade do holands para assumir uma Ctedra em Coimbra. 220 Alm disso, vale lembrarmos, mais uma vez, que Erasmo de Roterd dedicou a primeira edio de Lucubraes de Crisstomo a Dom Joo III. Todavia, preciso anotar que esta dedicatria, mais do que o reconhecimento de Erasmo inclinao de Dom Joo III a uma corrente inovadora de pensamento, tal como foi o humanismo cristo, um dos mais notrios resultados da j mencionada circulao de ideias por meio de cartas e manuscritos. De fato, a dedicatria de Erasmo de Roterd a Dom Joo III remonta troca de correspondncias entre Erasmo Schets mercador letrado que estabeleceu negcios na Anturpia e cujas boas relaes na Corte portuguesa chegaram a render-lhe um engenho de acar na Capitania de So Vicente, o Engenho So Jorge dos Erasmos 221 e o clebre humanista holands. Sabemos que Erasmo de Roterd manteve intensa correspondncia com diversos interlocutores, sobretudo a partir do momento em que seus livros e sua ideias invadiram a Europa ao longo das primeiras dcadas do sculo XVI, circunstncia na qual a recuperao da Antiguidade clssica, acompanhada da reabilitao do cristianismo primitivo davam a tnica de seus escritos, no intuito de superar o ultrapassado iderio escolstico. Segundo Marcel Bataillon, sua residncia na Basilia era sede de uma soberania espiritual qual todo o continente europeu prestava homenagens: prelados e grandes senhores buscavam sua amizade, que era saudada, tambm, por humanistas e monarcas que especulavam sobre a possibilidade de t-lo em suas cortes, como mestre e representante das letras. 222
Ainda que Schets jamais tenha conhecido pessoalmente Erasmo, era um de seus grandes admiradores e veio a ser um fiel correspondente. Marcel Bataillon nos assegura que a importncia dessa correspondncia reside no fato de que ela apresenta a primeira sugesto da dedicatria que o humanista holands viria a escrever ao rei de Portugal.
220 ... e por El-Rei que santa glria haja saber que vira eu j Erasmo de Roterd e que ramos amigos, me perguntou por algumas vezes se eu poderia faz-lo vir a este Reino para dele se servir na inteno de t-lo em Coimbra, onde j tinha ordenado de fazer os estudos que fez, ao que respondi o que isso me parecia. In: Processo da Inquisio. p. 74. Apud: HIRSCH, Elisabeth Feist. Op. cit. p. 90, nota 35. O portugus da transcrio foi atualizado por mim. Vale mencionar que possvel encontrar a transcrio do mesmo excerto em BATAILLON, Marcel. Erasme et la cour de Portugal. In: tudes sur le Portugal au temps de lhumanisme. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, 1952. p. 89, nota 1. 221 Cf. SCHWARTZ, Stuart B. Segredos internos: engenhos e escravos na sociedade colonial, 1550-1835. Trad. Laura teixeira Motta. So Paulo: Companhia das Letras, 1988. pp. 30-35. 222 Cf. BATAILLON, Marcel. Op. Cit. pp. 49-99. 78
Com efeito, ainda segundo Bataillon, a elaborao de uma dedicatria foi aventada por Schets em resposta s lamentaes de Erasmo a respeito do atraso do pagamento de suas penses. nesse contexto que o mercador escreve ao humanista, no intuito de propor uma soluo a seus problemas:
Voc tem dedicado um bom nmero de seus escritos aos monarcas e a numerosos prncipes deste mundo. Estou surpreso de que voc no tenha ainda dedicado nenhum ao rei de Portugal, prncipe to cristo entre os cristos, to liberal, to benevolente com aqueles que o servem, sobretudo com aqueles que podem publicar, em suas pregaes ou seus escritos, o fruto dos Evangelhos: porque esta nao to unida ao cristianismo que nada pode abalar esta unio. 223
O testemunho de Schets precioso. Dentre os argumentos mobilizados para convencer Erasmo, o mercador cita a sujeio das naes brbaras pelo reino portugus, em nome da f de Cristo:
Eu no me importaria se voc me desse a esperana de uma dedicatria ao rei de Portugal, que no teme fazer uso de suas armas vitoriosas contra as naes brbaras at a ndia, e de propagar a religio crist, fazendo com que milhares de brbaros e idlatras idianos viessem a adotar, ao que parece, a f de Cristo. 224
A aquiescncia de Erasmo no tardou, sendo que sua dedicatria deveria estar acompanhada de uma obra que alcanasse a nobreza correspondente grandeza do prncipe cristo. Com efeito, sabemos que, de modo geral, uma das mais importantes atividades desempanhadas pelos humanistas foi a de localizar, comentar e editar antigos manuscritos, fossem eles gregos ou latinos, de autores pagos, ou cristos. E foi envolvido nessa tarefa que Erasmo encontrou a oportunidade e a obra que
223 ALLEN, Opus, t. VI, Ep. 1681, l. 26 sq. [Opus Epistolarum Des. Erasmi Roterodami, denuo recognitum et actum per P. S. Allen et M. H. Allen, Oxonii, in typographeo Claredoniano. Gr. In-8 Vol. I (1484-1514), 1906; Vol. II (1514-1517), 1910; Vol. III (1517-1519), 1913; Vol. IV (1519-1521), 1922; Vol. V (1522-1524), 1924; Vol. VI (1525-1527), 1926]. Apud. BATAILLON, Marcel. tudes sur le Portugal au temps de lhumanisme. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, 1952. pp. 58-59. A traduo do francs foi feita por mim. 224 ALLEN, Opus, t. VI, p.421. Apud. BATAILLON, Marcel. tudes sur le Portugal au temps de lhumanisme. Coimbra: Acta Universitatis Conimbrigensis, 1952. p. 70. A traduo do francs foi feita por mim. 79
correspondesse dignidade do prncipe: um manuscrito do sculo XI, composto por diversas homilias atribudas a So Joo Crisstomo, arcebispo de Constatinopla. O manuscrito, que at ento jamais fora traduzido para o latim, conheceu a forma em 1527, e com ele, a carta em que Erasmo dedica a Dom Joo III as Lucubraes de Crisstomo. A dedicatria de Erasmo estava alinhada, sobretudo, sua crena de que a expanso do cristianismo levada a cabo pelos portugueses seria uma soluo eficiente para a unificao religiosa da humanidade. 225
Mesmo tendo sido eliminada pelo holands em edio posterior, 226 no h dvidas de que a dedicatria de Erasmo tida como um marco significativo da inclinao humanista de Dom Joo III. Ao menos o que se pode notar na literatura dedicada ao assunto. Em artigo recente, Maria Paula Dias Couto Paes anota que, embora Dom Joo III tenha empreendido pouco esforo no conhecimento do latim isto no impediu o Monarca de alimentar seu interesse pelas letras. Pelo contrrio, favoreceu aqueles que se encontravam ligados a elas e no deixou de lhes fazer honras e mercs. 227 De fato, como apresenta a historiadora, Erasmo de Roterd no deixa de atentar para a benignidade e o zelo de Dom Joo III queles que se dedicam s letras, tal como se pode notar no excerto de sua dedicatria transcrito abaixo:
Entretanto, a virtude do vosso corao no despojada do louvor que lhe devido. Na verdade, todos os que so favorveis ao nome cristo aplaudem estes belos feitos, mas a ns toca-nos mais de perto o fato de, com tamanha benignidade e zelo, ter acalentado no s os que se dedicam a todas as Belas-Letras, mas sobretudo Teologia. Pois j, em cartas vindas a lume, testemunhou piedade digna de um Rei cristo. 228
Com isso, Erasmo registra os feitos ilustres do rei portugus, seja em sua dimenso poltica, ao atentar para a moralizao da administrao judiciria, um tanto viciada pela ganncia dos advogados, 229 ou seja em sua dimenso econmica, ao
225 Cf. BATAILLON, Marcel. Op. Cit. 226 Cf. BATAILLON, Marcel. Idem. p. 86. 227 PAES, Maria Paula Dias Couto. De Romatinas a Christianitas: o Humanismo portuguesa e as vises sobre o reinado de Dom Joo III, O Piedoso. Varia histria, Belo Horizonte, v. 23, n. 38, 2007. p. 504. 228 CARTA em que Erasmo dedica a Dom Joo III as Chrysostomi Lucubrationes (1527). Porto: Faculdade de Letras/Universitas Portucalensis, 1972, p.9. Apud: PAES, Maria Paula Dias Couto. Op. cit. p. 504. 229 CARTA em que Erasmo dedica a Dom Joo III Apud: PAES, Maria Paula Dias Couto. Op. cit. p. 505. Cf. tbm. transcrio de excertos da mesma carta em BATAILLON, Marcel. Op. Cit. pp. 76-79. 80
aludir manuteno e ao estmulo s nevegaes, por meio de uma frota muito bem apetrechada. 230 Digno de nota, contudo, o reconhecimento de seus investimentos em cultura, ao mencionar o aumento dos salrios destinados aos cultores dos estudos. 231
Por fim, vale observar que o humanista holands no deixa de enaltecer os atributos intelectuais de Dom Joo III, ainda que, para alm do que se sabia verdadeiramente correspondente a realidade (sic.), 232 tal como observa Couto Paes. Com efeito, escreve Erasmo:
E no contente com teres favorecido e patrocinado tanto professores como alunos de todos os ramos de ensino, mas sobretudo de Teologia, tu prprio, em to boa hora, aprendeste, desde tenra idade, o Grego e o Latim, sob a orientao de vares muito eruditos [...] alm disso, s to erudito em Cincias Matemticas, em Astrologia, em Geografia e em Histria, que a principal Filosofia dos Reis, que bem podes, pelo teu exemplo, levar ao amor do estudo no s os indolentes, mas tambm aqueles que lhe so contrrios. 233
Desse modo, a problemtica abordada pela historiadora Maria Paula Dias Couto Paes nos remete a uma insolvel polmica a respeito das ambiguidades que marcaram o reinado de Dom Joo III. Sem dvida, no seria um equvoco se afirmssemos que este reinado foi um dos perodos mais complexos da Histria de Portugal ao longo da poca Moderna. Entretanto, se nos determos em uma obra de referncia, tal como a do historiador Joaquim Verssimo Serro, possvel visualizar de modo sumrio e pontual as tradies intelectuais envolvidas nesse debate, no momento em que o autor nos apresenta um perfil do rei portugus. Para Serro, a atuao governativa de Dom Joo III foi alvo de juzos variados:
Considerado fantico por alguns, como Herculano, pela introduo do Santo Ofcio e o apoio que concedeu Companhia de Jesus, foi encarado por outros, como o visconde de Santarm e Gomes de Carvalho, como um hbil diplomata que teve sempre em vista salvaguardar a paz do Reino a fim de se consagrar expanso ultramarina. Alfredo Pimenta eleva-o altura de
230 Idem. Ibidem. 231 Idem. Ibidem. 232 PAES, Maria Paula Dias Couto. Op. cit. p. 505. 233 CARTA em que Erasmo dedica a Dom Joo III Apud: PAES, Maria Paula Dias Couto. Op. cit. p. 505. Cf. tbm. transcrio de excertos da mesma carta em BATAILLON, Marcel. Op. Cit. pp. 76-79. 81
notvel homem de estado, enquanto Braacamp Freire, Mrio Brando e Silva Dias vem nele um valorizador da cultura nacional e um mecenas inigualado. At ao sculo XVIII o elogio foi quase unnime, mas com o liberalismo de Herculano iniciou-se um processo de reviso que tem salientado a intolerncia do monarcana marcha para o poder absoluto que o levou a coarctar liberdades fundamentais da grei. Tal fato no impediu Oliveira Martins de engrandecer a exaltao religiosa com que o monarca quis ser o espelho da sua poca. 234
Em seu texto, Verssimo Serro atenta, ainda, para outras questes que tradicionalmente aparecem associadas ao rei de Portugal, tal como o incio da decadncia do imprio ultramarino portugus. Todavia, isenta o monarca de qualquer responsabilidade no que se refere a este fenmeno e sugere que, antes, esta questo deve ser associada aos limites operacionais do que chama de mquina estatal. Contudo, o historiador portugus faz notar que a introduo do Santo Ofcio em Portugal acirrou o dio religioso e perturbou a paz social sem, todavia, deixar de mencionar, ao mesmo tempo, que Dom Joo III teve, sob vrios aspectos um reinado positivo, mormente no que respeita difuso da cultura e da arte. 235
Para debatermos as questes referentes ao reinado de Dom Joo III, vale nos dedicarmos, primeiramente, questo do Renascimento em Portugal. Ao longo deste estudo temos abordado alguns aspectos relevantes da vida cultural portuguesa ou, como quer Joaquim Verssimo Serro, a cultura e a arte na transio do sculo XV para o XVI. Tambm j mencionamos o fato de que, neste perodo, a vida cultural portuguesa caracterizada por seu alinhamento ao movimento mais geral do Renascimento europeu. Desse modo, embora o fenmeno do Renascimento na Europa j tenha sido, tambm, nosso objeto de apreciao sumria, o caso de retomarmos este tema, principalmente se nosso interesse compreender e debater as questes referentes ao humanismo portugus e o reinado de Dom Joo III. Com efeito, vale notar, primeiramente, que a noo de Renascimento articula-se a um perodo histrico situado entre meados do sculo XIV e fins do sculo XVI, cuja origem nos remete, tradicionalmente, s cidades-estado da Itlia setentrional, notavelmente Florena, de onde teria se propagado para toda a Europa. Na pena de um
234 SERRO, Joaquim Verssimo. Histria de Portugal. Vol. III. O sculo de Ouro (1495-1580). Editorial Verbo: Lisboa, 1980. pp. 57-58. 235 Cf. SERRO, Joaquim Verssimo. Op. cit. Citao p. 58. 82
autor como Jacob Burckhardt, por exemplo, bastaram as runas da velha Roma para que se despertasse um ardor elegaco-sentimental que configurou a necessidade histrica fundante do Renascimento. 236 Seria o caso, aqui, de reconhecermos o intento de Burckhardt em estabelecer uma unidade fundamental de todas as dimenses da sociedade renascentista e sua poca nos mais diversos domnios: seja o da arquitetura, o da arte, o da poltica, o das festividades, ou o da religio. Contudo, reconhecer este artifcio e, mais que isso, perceber a reificao da noo de Renascimento como seu desdobramento, no nos deve colocar, necessariamente, contra a ideia de Renascimento, e reduz-lo a um rtulo como outros. 237
Mais interessante ampliarmos nossa compreenso do fenmeno a que se convencionou denominar de Renascimento e debatermos a respeito de sua operacionalidade enquanto categoria historiogrfica. Nesse sentido, no seria fora de propsito levarmos em considerao, por exemplo, que tanto as tradies intelectuais, quanto a composio de campos de conhecimento diversos so fenmenos que dificilmente podem ser fixados a uma rea geogrfica especfica, tal como observou Florike Egmond, em seu ensaio sobre a formao de um novo campo de investigaes da histria natural ao incio da poca Moderna. 238 Esta perspectiva, ainda que nos obrigue a matizar alguns pressupostos que definem a noo de Renascimento, no a desqualifica como um rtulo entre outros. De todo modo, consideramos aceitvel a tese de que o Renascimento, em seu momento prstino, ganhou maior visibilidade nas cidades-estado do norte da Itlia e, seja por meio de um movimento sincrnico uma conjuntura que permitiria o afloramento da releitura de tradies intelectuais em diferentes lugares de modo simultneo, como sugere Egmond , ou diacrnico a irradiao que partia das cidades italianas em direo a outros pases europeus, como sugere a historiografia tradicional , vlido atentarmos para o argumento de Eugenio Garin, segundo o qual o Renascimento sofreria modificaes e adaptaes contextuais e locais, o que faz com que a difuso de suas principais ideias e temticas, seja um processo que assumiu
236 Cf. BURCKHARDT, Jacob. A cultura do Renascimento na Itlia:um ensaio. Trad. Srgio Tellaroli. So Paulo: Companhia das Letras, 1991. pp. 143-149. 237 Cf. KOSSOVITCH, Leon. Contra a idia de Renascimento. In: NOVAES, A. (org.). Artepensamento. So Paulo: Companhia das Letras, 2006. pp. 59-68. 238 Cf. EGMOND, Florike. A European Community of Scholars Exchange and Friendship among Early Modern Natural Historians. In: MOLHO, Anthony et alii. (Edited). Finding Europe. Discourses on Margins, Communities, Images ca. 13th ca. 18th Centuries. New York/Oxford: Berghahn Books, 2007. pp. 159-183. 83
formas diversas no mbito de uma temporalidade que supera os limites cronolgicos habituamente estabelecidos. 239
Entretanto, pretendemos nos manter longe daquilo que Marc Bloch classificou como a obsesso das origens, 240 sobretudo porque temos em vista que o conhecimento dos primrdios de um fenmeno no basta para explic-lo. Diante disso, se acatamos a sugesto de que houve um primeiro momento do Renascimento, no podemos perder de vista que sua difuso assumiria formas diversas no tempo e no espao, o que d maior elasticidade e operacionalidade prpria noo de Renascimento enquanto conceito historiogrfico. Esse ponto de vista nos permite reavaliar, por exemplo, a clssica conceitualizao proposta por uma autora de suma importncia, tal como Agnes Heller, que em seu livro O Homem do Renascimento, nos apresenta a seguinte definio:
O conceito de Renascimento significa um processo social total, estendendo-se da esfera social e econmica onde a estrutura bsica da sociedade foi afetada at o domnio da cultura, envolvendo a vida de todos os dias e as maneiras de pensar, as prticas morais e os ideais ticos quotidianos, as formas de conscincia religiosa, a arte e a cincia. S podemos de fato falar de Renascimento quando todos estes aspectos surgem ligados e, num mesmo perodo, fundamentados em certas alteraes da estrutura social e econmica: em Itlia, Inglaterra e Frana e, em parte, na Holanda. A corrente de pensamento renascentista que habitualmente designada por humanismo apenas de fato um (ou vrios) dos reflexos ideolgicos do renascimento, sob uma forma tica e acadmica, separvel da estrutura social e das realidades da vida quotidiana e, portanto, capaz de possuir uma relativa vida prpria e de se desenvolver em pases onde o Renascimento, enquanto fenmeno social total, nunca existiu. Mas nesses pases manteve-se necessariamente desenraizada, apenas ganhando aderentes nas camadas superiores da vida social (pelo menos entre a aristocracia poltica e intelectual) e isolando-se rapidamente. Foi assim que na Alemanha a Reforma substituiu o humanismo. 241
239 Cf. GARIN, Eugenio. O homem renascentista. In: GARIN, Eugenio. O homem renascentista... pp. 9-16. 240 BLOCH, Marc. Apologia da histria, ou o ofcio do historiador. Prefcio, Jaques Le Goff; apresentao edio brasileira, Lilia Moritz Schwrcz; traduo, Andr Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001. p. 56. 241 HELLER, Agnes. O Homem do Renascimento. Trad. Conceio Jardim e Eduardo Nogueira. Lisboa: Editorial Presena, 1982. pp. 9-10. 84
Pelo contrrio, aqui, a Reforma deve ser compreendida como uma das manifestaes do Renascimento. Desse modo, sem perder de vista a simultnea possibilidade de visualizar, por um lado, uma origem possvel do Renascimento e, por outro, a compreenso de que sua propagao deve levar em conta a elasticizao dessa categoria, falta-nos, ainda, levantarmos uma questo fundamental: a que nos referimos, exatamente, quando sugerimos a ideia de um momento prstino do Renascimento e porqu o aceitamos? De modo sumrio vale mencionar que, ao nos referirmos a um primeiro momento do Renascimento, reportamo-nos, fundamentalmente, ao momento histrico descrito por Quentin Skinner, onde, nas cidades-estado da Itlia setentrional, desenvolveu-se uma ideologia poltica cujo enfoque era defender e realar as virtudes da vida cvica republicana, notavelmente por meio dos estudos da retrica. 242
Diante disso cabe-nos aqui, anotar que a retrica era tida como um campo de conhecimento da mais extrema importncia, sobretudo por ser reivindicada como instrumento auxiliar na aquisio da eloquncia, fundamento imprescindvel para se alcanar a sabedoria. Foi este, por exemplo, o ideal visualizado por Ccero ao sugerir que a figura do orador equivalia do perfeito humanista. O que no seria diferente, tambm, na pena de Quintiliano, quando este sugeriu que o orador deveria ser considerado o verdadeiro homem universal. Com efeito, no seria fora de propsito notar que ambos os autores foram considerados fontes incontestes de autoridade do mundo antigo ao longo do perodo que tratamos. Para Lus de Sousa Rebelo, o ciceronismo a matriz cultural de todo o humanismo cvico e, obviamente, tambm do humanismo cvico lusitano. 243 Por fim, vale lembrar que a retrica deveria ser um instrumento de persuaso, e que seu objetivo seria o de convencer os homens a atuar, o que fazia dela, simultaneamente, um recurso da vida ativa e cvica: sem dvida, como apontamos anteriormente, para os humanistas, era a ddiva da linguagem que distinguia o homem dos animais. 244
Ao passo que o propsito da retrica era o de convencer os homens a atuar no mbito da vida cvica, Skinner nos assegura que tal fim seria alcanado apenas na circunstncia em que o ensino da retrica, e a imagem dos retricos, estivessem
242 Cf. SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno. Trad. Renato Janine Ribeiro e Laura Teixeira Motta. So Paulo: Companhia das Letras, 1996. 243 REBELO, Luis de Sousa. A tradio clssica na literatura portuguesa... p. 43. 244 SLOANE, Thomas O (Editor in Chief). Encyclopedia of Rethoric... s.v. Humanism. 85
efetivamente associados vida pblica. Se, num primeiro momento, os retricos desempenharam importante papel como professores e estudiosos da oratria e da epistolografia antiga, em um segundo momento, a associao de sua imagem vida pblica se traduziu no cultivo de gneros literrios voltados, principalmente, aos assuntos cvicos, cujo exemplo mais notrio pode ser encontrado nos discursos polticos. O historiador ingls observa, ainda, que paulatinamente, o carter poltico desses gneros literrios provocou sua reformulao para o interior de outros contextos, o que contribuiu para o surgimento de dois novos gneros distintos de pensamento social e poltico. Um desses gneros so os livros de conselhos, que conheceriam seu apogeu na segunda metade do sculo XV, quando inmeros tratados foram elaborados tanto para uso dos prncipes, como para o de seus cortesos. 245
O outro gnero literrio para o qual atenta Quentin Skinner remete s crnicas das cidades italianas, cujo objeto era a prpria histria dessas cidades. Para ele, tal gnero procurava exaltar a liberdade das cidades e surgiu como resposta ao debate sobre qual seria o mtodo mais adequado para a preservao da autonomia na vida poltica das repblicas italianas. Desse modo, a recorrncia ao estudo sistemtico das repblicas do passado foi tido como a chave de acesso ao conhecimento poltico necessrio para a melhor organizao institucional dessas cidades. 246
Com isso, notemos que esse procedimento de recuperao da Antiguidade clssica, seja por meio do estudo da retrica, seja por meio do estudo das repblicas do passado, mas, todavia, atualizado pelas demandas especficas das cidades-estado italianas que nos permite consider-las como o lugar e o momento onde o Renascimento teve sua origem particularmente no mbito das ideias. Em suma, o classicismo entendido como uma maneira de agir fundamentada na deferncia tradio clssica que deve ser compreendido como agente que catalisou a propagao dos ideais renascentistas, mesmo tendo em vista as diversas especificidades de suas manifestaes, seja no tempo ou no espao. Esta deferncia tradio clssica o que pauta os studia humanitatis, ou seja, os estudos humanistas, composto por um j mencionado ideal de formao literria adquirido mediante leitura, comentrio e imitao das obras dos grandes autores gregos e latinos. Efetivamente, o humanismo um dos traos mais carcatersticos do
Renascimento europeu e, em maior ou menor grau, afetou os diversos aspectos da vida cultural neste perodo. Embora correntemente o termo humanismo denote valores humanos em geral, vale assinalar, mais uma vez, que o humanismo renascentista nos remete, sempre, ao estudo da Antiguidade clssica, e encontramos sua expresso mais notria no mbito da educao, das cincias e das artes. 247 Todavia, cabe a ressalva de que impossvel resumir aqui a diversidade de expresses que a cultura humanista adquiriu ao longo do incio da poca Moderna, embora seja possvel sugerir, na esteira dos estudos de Delio Cantimori, que o ideal educativo dos grandes humanistas o de alcanar a plenitude humana integral. 248
De todo modo importante notar, que tradicionalmente, a origem do humanismo renascentista tem sido traada a partir da obra do grande estudioso e poeta italiano Francesco Petrarca. Com efeito, ainda que, ao longo dos sculos XIV e XV, o humanismo tenha se concentrado realmente na pennsula itlica, onde as artes da linguagem e a literatura foram definidas como o ncleo de seu domnio, no podemos deixar de anotar que o acesso a esta formao no era restrita aos italianos. De fato, inmeros portugueses foram formados ali, como provam os estudos de Amrico da Costa Ramalho. Segundo ele, estes estudantes cursavam aulas de Direito, Teologia e Medicina, formas de preparao especializada que ento vinham aps uma iniciao mais ou menos longa em Humanidades. 249 Por sua vez, assim como a presena de estudantes portugueses na Itlia contribuiu para a difuso do movimento humanista em Portugal, inversamente, a existncia de professores italianos no reino portugus no surtiu menor efeito, haja visto nossa meno feita no captulo anterior a respeito do papel desempenhado por Cataldo Sculo na Corte de Dom Joo II. Entretanto, Antnio Rosa Mendes matiza esta perspectiva. Segundo o autor, em Portugal, a penetrao dos valores humanistas foi lenta em funo da mundividncia medieval, o que, tal como j apontamos sumariamente, conferiu vida cultural portuguesa um cunho relativamente arcaizante. 250 De todo modo, mesmo contando com a hiptese de que o humanismo portugus operava no mbito de uma temporalidade mais lenta, no se deve perder de vista que, enquanto as crnicas das cidades foram
247 SLOANE, Thomas O (Editor in Chief). Op. cit. s.v. Humanism. 248 Cf. CANTIMORI, Delio. Humanismo y religiones en el Renacimiento. Trad. Antonio-Prometo Moya. Barcelona: Ediciones Pennsula, 1984. p. 241 e ss. 249 Cf. RAMALHO, Amrico da Costa. Para a histria do humanismo em Portugal. Vol. II. Coimbra: Fundao Calouste Gulbenkian/Junta Nacional de Investigao Cientfica e Tecnolgica, 1994. p. 109. 250 Cf. MENDES, Antnio Rosa. Op. cit. pp. 333-371. 87
objeto de estudo de retricos e humanistas italianos, em Portugal, a figura desses personagens tambm se encontraria associada s crnicas do reino, o que torna notrio o vnculo entre o incio da historiografia humanista ali e sua prtica correlata na pennsula itlica. Exemplo, nesse sentido, o prprio Cataldo Sculo e sua nsia em obter informaes para a composio de uma crnica sobre a Expanso Portuguesa. Entretanto, tudo quanto conseguiu foi compor poemas e escrever discursos e epstolas. Um desses poemas foi a Arcitinge, sobre a conquista de Arzila e Tnger [...] o primeiro carme herico sobre a Expanso Portuguesa. 251 Sob esta perspectiva, o humanismo de Cataldo Sculo representa o primeiro momento daquilo que ser caracterstico no movimento humanista em Portugal, que ser um humanismo voltado para o ultramar e que se nutria dos saberes oriundos dos contatos coloniais, 252 como bem observou Rui Luis Rodrigues em sua tese de doutorado. Contudo, alm de Cataldo, possvel assinalar ao menos o nome de dois outros italianos encarregados da tarefa de escrever crnicas em Portugal, a saber, Angelo Policiano e Giusto Baldo, porm, ambos faleceram antes de executar a tarefa. Por sua vez, importante observar que alm das crnicas, a oratria tambm foi praticada em Portugal no incio da poca Moderna. Com efeito, foi por meio das oraes que se anunciavam os acontecimentos mais notveis da vida poltica dos Estados e que, no mbito da especificidade portuguesa, foi o instrumento utilizado pelos oradores para informar a Europa das vicissitudes da expanso ultramarina, ento em curso. 253
Desse modo, sem perder de vista, que por um lado, o humanismo em Portugal procurou atender s vicissitudes da expanso ultramarina, no menos verdade que a percepo desse fenmeno tambm encontrou resistncia por parte dos letrados portugueses no contexto do sculo XVI. Segundo Antnio Rosa Mendes, em funo da originalidade da experincia dos descobrimentos martimos, a assimilao desse evento foi difcil por parte dos homens de letras regressados das universidades estrangeiras, imbudos de uma orientao mental livresca e estruturalmente divorciada da realidade prtica das coisas. 254
251 Cf. RAMALHO, Amrico da Costa. Op. cit. p. 108. 252 RODRIGUES, Rui Luis. Entre o dito e o maldito: Humanismo erasmiano, ortodoxia e heresia nos processos de confecionalizao do Ocidente, 1530-1685. Tese de Doutorado. So Paulo: FFLCH/USP, 2012. pp. 489 490. 253 Cf. RAMALHO, Amrico da Costa. Op. cit. p. 111. 254 MENDES, Antnio Rosa. Op. cit. p. 335. 88
Embora a afirmao de que o progresso do classicismo de matriz itlica tenha sido lento nos obrigue a flexibilizar as balizas cronolgicas do movimento humanista em Portugal, ela nos impe a necessidade de mencionar a tese de que as humanidades ainda no haviam conquistado o prestgio de disciplinas estruturantes do saber nas primcias do reinado de Dom Joo III. Contudo, tal como j foi apontado anteriormente, vale reiterar que foi sob o reinado deste monarca que o investimento na cultura ganhou maior vulto. 255 Com isso, importante fazer referncia ideia de que os reinados de Dom Manuel I e de Dom Joo III devem ser compreendidos como a poca de Ouro portuguesa, no apenas por causa das Expanses Martimas, mas tambm, pelas realizaes culturais sem precedentes que foram levadas a efeito no reino. 256 Desse modo, se num primeiro momento, a j mencionada presena de estudantes portugueses em universidades estrangeiras foi reduzida e provenientes mais de iniciativas individuais do que de uma poltica deliberada , com Dom Joo III esta realidade estaria destinada a sofrer profundas mudanas. Por sua vez, tais mudanas responderam demanda que a modernizao do aparelho cultural imps nova configurao do poder na Europa Moderna, cada vez mais centralizado. Federico Chabod, em estudo clssico sobre o assunto, anota que o Estado do Renascimento caracteriza-se, fundamentalmente, pelo surgimento de uma estrutura onde a constituio de um exrcito permanente, de uma diplomacia permanente e a consolidao de uma burocracia estatal so seus componentes essenciais. Para o historiador italiano, a organizao da diplomacia que intensifica a formao de oradores que passaro a residir nas cortes dos prncipes estrangeiros. Em sntese, argumenta o autor, o Estado do Renascimento inventa os funcionrios do rei. 257 Assim, o investimento na cultura e o correlato processo de modernizao do aparelho cultural deve ser compreendido como o mais notrio desdobramento da construo do Estado Moderno em Portugal. De fato, como sugeriu Maria Paula Dias Couto Paes, as iniciativas de Dom Joo III denotam sua cincia de que, para fazer de Portugal uma voz necessria a ser ouvidas (sic) nas grandes questes europias era preciso equiparar-se sobretudo aos grandes centros poltico-intelectuais contemporneos. 258
255 Cf. MENDES, Antnio Rosa. Op. cit. 256 Cf. BOXER, Charles R. Joo de Barros... pp. 13-14. 257 CHABOD, Federico. Escritos sobre el Renacimiento... p. 532. 258 PAES, Maria Paula Dias Couto. Op. cit. p. 501. 89
sob esta tica que devemos compreender o que escreveu Antnio Rosa Mendes:
O investimento na cultura, sobre ser um imperativo das circunstncias histricas, s a prazo relativamente largo poderia surtir. Na impossibilidade de, com os recursos humanos existentes, promover a instituio imediata de novos focos de cultura no Pas, as primeiras iniciativas do governo joanino dirigiram-se para a formao de quadros no exterior. Inscreve-se nesse objetivo o acordo firmado em 1526 com Diogo de Gouveia [...] doutor em Teologia pela Universidade de Paris [...] anti- erasmista militante. O telogo arrendara anos antes o colgio parisiense de Santa Brbara, de que era principal, e a munificncia rgia, proporcionando a manuteno de cerca de 50 bolseiros estudantes portugueses, fez deste estabelecimento o centro intelectual em que se forjaram muitos dos que, uma vez regressados, vieram a ser (contra os desejos do mentor) os agentes das reformas do ensino levadas prtica na dcada de 40. [...] De 1527 data do impulso no envio de bolseiros para a Frana a 1547 ano da fundao do Colgio das Artes de Coimbra, expoente dos propsitos da cultura renovada , o eixo da vida cultural portuguesa deslocou-se decisivamente para o campo do humanismo. 259
Desse modo, o flerte com o humanismo erasmista, o investimento na cultura, e tambm, pode-se acrescentar, a acolhida dos humanistas Andr de Resende e Damio de Gis em 1533, so alguns dos elementos que permitem circunscrever o carter liberal de Dom Joo III e sua relao com o Renascimento portugus. Notrio, ainda, foi seu papel na reestruturao do sistema educativo com a transferncia da sede dos Estudos Gerais para Coimbra em 1537, fato que teria estimulado uma efetiva ruptura com o medievo figurino generalista de concentrar numa nica escola todo o ciclo de estudos que ia das primeiras letras s faculdades maiores. Por fim, deve-se mencionar aqui o projeto do Colgio Real das Artes, que, embora tenha representado a promessa de uma nova gerao forjada nos moldes laicos e cristos do humanismo, teve existncia transitria e precria. De todo modo, o que se pretende assinalar aqui, a possibilidade de compreender O Piedoso Dom Joo III como o principal mecenas das artes e das
259 MENDES, Antnio Rosa. Op. cit. p. 338. 90
letras no reino, inclusive sendo mencionado com referncias elogiosas em diversas oraes. 260
Com efeito, se por um lado notrio o papel de Dom Joo III enquanto mecenas dos letrados no reino no mbito de uma evidente relao de subordinao entre letras e poder 261 , por outro, possvel especular que sua representao enquanto homem de letras foi inventada por estes mesmos letrados, seus subordinados, ainda que se admita, em um acordo mais ou menos tcito, que o Rei no possa ser comparado quanto s suas habilidades literrias e cientficas com alguns de seus nobres sditos. 262 Desse modo, mesmo a dedicatria escrita por Erasmo de Roterd no pode ser compreendida sob outra chave de leitura, uma vez que importante contar com a hiptese de que o enaltecimento dos atributos intelectuais feito pelo humanista holands teve um papel fundante, se no pelos letrados coevos ou pelas geraes imediatamente posteriores , certamente pela historiografia mais contempornea. Ora, e porque deveramos compreender a dedicatria escrita por Erasmo de Roterd no interior de uma relao de subordinao? Certamente, a resposta desta questo no deve perder de vista que o humanista holands a escreveu no intuito de alcanar algum privilgio junto ao rei, o que ganha particular relevncia quando nos lembrarmos de que suas penses encontravam-se atrasadas. Alm disso, seria o caso de salientar que, possivelmente, a mediao do alemo Erasmo Schets est intrisecamente articulada aos seus interesses na produo de acar no Brasil, visto que o comrcio da especiaria seria privilgio restrito da coroa nos quadros do Antigo Sistema Colonial. 263
necessariamente sob esta perspectiva que a crtica feita por Erasmo de Roterd ao monoplio ganha sentido. De todo modo, o que est em evidncia a questo do reconhecimento dos mritos por meio da concesso de privilgios, e a prtica da escrita foi um eficiente instrumento para alcan-los. Somente por meio da recuperao da densidade da situao apresentada nesse contexto que podemos compreender efetivamente o real carter do enaltecimento dos atributos intelectuais de Dom Joo III que Erasmo nos apresenta. Diante disso, no se pode perder de vista que a escrita foi, de fato, um meio de alcanar benesses, tal como
260 Cf. MENDES, Antnio Rosa. Idem. Citao p. 343. Cf. tbm. PAES, Maria Paula Dias Couto. Op. cit. 261 Sobre o assunto, cf. ALCIDES, Srgio. Desavenas... 262 PAES, Maria Paula Dias Couto. Op. cit. p. 502. 263 Cf. NOVAIS, Fernando A. Colonizao e Sistema Colonial: discusso de conceitos e perspectiva histrica. Aproximaes: ensaios de histria e historiografia. So Paulo: Cosac Naify, 2005. pp. 23-43. 91
demonstrou oportunamente Ronald Raminelli em estudo recente. 264 Seria o caso, nesse sentido, de atentarmos para o exemplo do Panegrico de Dom Joo III, onde Joo de Barros exalta o amor do monarca pelas letras, sem perder de vista a eficcia disso na administrao da repblica. A sabedoria alcanada por meio do conhecimento das letras tida como instrumento fundamental para a obteno da equidade na justia: notrio exemplo do inextricvel relacionamento que surge entre poder e as letras na poca Moderna sendo que estas so apresentadas como equivalentes virtude da prudncia:
A todos notrio quanto amor tem s letras, quanto favor, quanto emparo (sic), quanta merc recebem dele os letrados de toda a cincia; este amor causa de sua Corte florecer hoje tanto em letras como florece; este mesmo o faz cuidar novas maneiras e novas invenes destudos gerais, por onde as cincias em seu reino no menos cresam e vo adiante, que as outras virtudes. Verdadeiramente as letras dizem bem com as armas. Bem sei que muitos so doutra opinio, mas a causa disto (se me no engano) por no confessarem seu defeito, louvando a virtude, de que carecem. Mal iria ao capito, se no fosse prudente, e mal repblica em que houvesse armas sem conselho e autoridade das letras; mas fique esta questo para outro tempo, e agora somente direi que os mais dos emperadores e reis e capites de grande fama foram letrados. 265
Embora esta pesquisa no tenha encontrado qualquer registro direto de alguma benesse efetivamente alcanada por Joo de Barros por meio de seu Panegrico, no h dvidas de que o elogio surte efeito positivo em sua carreira. Ora, mesmo tendo em vista que foi sobretudo por seus servios prestados como feitor da Casa da ndia e Mina que Barros alcanou tenas, mercs e privilgios tanto para si, quanto para sua mulher e filhos , vale atentarmos para dois acontecimentos relevantes. O primeiro deles a j mencionada promessa feita por Dom Manuel a Joo de Barros, de que, se este pusesse em memria os feitos portugueses na ndia, no teria seu trabalho perdido ante o rei, o que denota que a escrita era, de fato, uma tarefa a ser recompensada. O outro acontecimento que no deixa de ser significativo ocorreu no momento em que se definiam os procedimentos para a continuao da obra de Barros, quando dois religiosos doutos, apontados pelo visitador Padre da Fonseca como potenciais
264 Cf. RAMINELLI, Ronald. Viagens ultramarinas: monarcas, vassalos e governo a distncia. So Paulo: Alameda, 2008. pp. 17-60. 265 BARROS, Joo de. Panegrico do Rei Dom Joo III... pp.116-117. 92
continuadores das Dcadas, declinaram o convite feito por Miguel de Mendona, argumentando que no fariam o trabalho, pois se tratava de pessoa cujos filhos so vivos. 266 To mais significativo este fato quando nos lembramos da disputa judicial movida pelos familiares do historiador quinhentista contra Joo Batista Lavanha, ou ainda, quando atentamos para a minuta da petio feita por Antonio de Barros dAlmeida neto de Joo de Barros , onde este, embora alegue seus servios prestados coroa, no deixa de anotar o nome e os feitos do av materno; provedor que foi da casa da ndia, e autor das Dcadas da sia. 267 Enfim, importa compreender que a obra estava no apenas associada a seu autor, mas tambm, a seus herdeiros, tal como os privilgios e as benesses alcanadas. Por fim, possvel assinalar um contraste entre as carreiras de Joo de Barros e Incio de Morais. Enquanto o primeiro teve xito, tanto em sua carreira administrativa quanto em sua carreira de letrado, no se pode afirmar o mesmo do segundo. Com efeito, Incio de Morais era quadro de Dom Joo III. Alm de ter sido bolsista em Paris, e estudado em Lovaina, foi professor de humanidades em vrios colgios do reino at ser nomeado professor para uma cadeira de Poesia na Universidade de Coimbra em 1546. Todavia, Aires do Couto sugere que Incio de Morais comeou a frequentar a Faculdade de Leis da Universidade de Coimbra, vindo a obter o grau de bacharel 268
na tentativa de melhorar a sua situao econmica. Entretanto, Couto nos assegura que tal situao no melhorou e, pelo contrrio, se agravou ainda mais, o que teria forado o humanista a procurar abrigo no Mosteiro de Alcobaa ao final de sua vida. Ora, seria o caso de arriscarmos a hiptese de que foi este o preo pago por sua sinceridade ao escrever que o prncipe Dom Joo no era muito culto, uma vez que, em suma, a mesma lgica que poderia coloc-lo nas graas do rei, a que pode ter provocado sua desgraa. 269
Em sntese, se nos pautamos pelas interpretaes de Joaquim Verssimo Serro, Elisabeth Hirsch, Ana Isabel Buescu ou Antnio Rosa Mendes visvel a diviso do reinado de Dom Joo III em dois momentos distintos: o primeiro teria sido marcado
266 Carta dirigida a Filipe I por causa da continuao da obra de Barros. In: BAIO, Antnio (org.). Documentos inditos sobre Joo de Barros... p. 240. 267 Minuta duma petio dum neto de Joo de Barros, alegando seus servios. In: BAIO, Antnio (org.). Op. cit. p. 322. 268 COUTO, Aires do. Op. cit. p. 42. 269 Estabeleo aqui um paralelo com o sagaz raciocnio desenvolvido por Srgio Alcides a respeito da economia da graa. Cf. ALCIDES, Srgio. Op. cit. p. 230. 93
pela abertura da vida cultural no reino em direo ao humanismo erasmista, enquanto o segundo teria sido marcado pela retrao da vida cultural lusitana com a fundao do Santo Ofcio. Diante disso, vale sumariar alguns pontos importantes aqui apresentados. Primeiramente devemos nos lembrar de que o possvel interesse de Dom Joo III em trazer o grande humanista holands, Erasmo de Roterd, com a inteno de contar com seus servios em Coimbra nunca foi oficialmente efetivado, e dele s temos notcia pela mediao de Damio de Gis, sob presso da Inquisio. Particularmente, no encontrei notcia de qualquer prova substancial de que o rei tenha formalizado tal convite. Somemos a isso a afirmao de Marcel Bataillon, segundo a qual, a especulao a respeito das possibilidades de ter Erasmo de Roterd como mestre e representante das letras na Corte no foi uma iniciativa exclusiva do rei portugus, mas sim uma prtica difundida entre diversos monarcas. Ou seja, no de se desprezar a ideia de que, ao manifestar interesse em trazer Erasmo para sua Corte, Dom Joo III cumpria um protocolo, mais do que, efetivamente, fosse um simpatizante das ideias do notrio humanista. Em segundo lugar, no podemos perder de vista o fato de que, conforme podemos ler na carta de Schets ao humanista holands, sua dedicatria ao rei de Portugal teria sido uma entre tantas outras, de modo que, alm da dedicatria ter sido escrita no intuito de alcanar alguma benesse, foi mediada por um mercador que possua evidentes interesses na produo de acar (e, tambm, em sua comercializao: nunca demais lembrar que Erasmo critica o protecionismo de Dom Joo III). Por fim, to eloquente, ou mais, do que a publicao da dedicatria, devemos considerar sua supresso dans le grand Chrysostome publi en 1530 par Froben, tal como nos revela Marcel Bataillon. 270
Com efeito, ao passo que defendemos a ideia de que todo investimento na cultura realizado por Dom Joo III deve ser compreendido mais como um fenmeno de carter poltico do que, propriamente, um fenmeno de carter cultural, no h dvidas de que concordamos, por exemplo, com a sugesto de um historiador como Rui Luis Rodrigues, que entende a postura do rei portugus frente aos humanistas orientada por um senso de pragmatismo. Para Rui Luis, o carter pragmtico de Dom Joo III deve
270 Cf. BATAILLON, Marcel. Op. Cit. Citao p. 86. 94
ser considerado em relao dinmica com sua simpatia pelas perspectivas humanistas. 271 Nesse sentido, argumenta com clareza o colega:
O senso humanista da possibilidade de uma convivncia com a diversidade coadunava-se, no monarca, com um discernimento bem prtico da utilidade emprica dessa postura tolerante. Se essa tolerncia se constitua num dos lados desse pragmatismo, o outro lado foi ocupado pela impossibilidade de negar os benefcios prticos representados pelo estabelecimento de um mecanismo como o da Inquisio, esse projeto ao qual o rei se dedicou enfaticamente at conquist-lo em 1536. 272
Em ltima instncia, a chave de leitura apresentada por Rui Luis articula os dois momentos que relacionam o reinado de Dom Joo III s razes de Estado da Coroa portuguesa ainda que, vale anotar, Rui Luis no se detm na questo da formao do Estado moderno, pois para ele, a percepo deste contexto sob a tica de tal problemtica embute um matiz teleolgico na anlise , ou seja, um ambiente no qual o imperativo dos interesses comerciais se apresenta articulado atividade missionria. Nesse sentido, nosso colega sugere que o comrcio deve ser compreendido como um instrumento de comunicao necessrio propagao da f. 273 Sem dvida, o processo de colonizao que se desdobrou da expanso ultramarina e inaugura a poca Moderna teve na religio sua principal motivao ideolgica: sob esta tica, por exemplo, que podemos compreender a justificativa teolgica do Sistema Colonial, tal como formulou Laura de Mello e Souza em obra j clssica. 274 Por fim, ainda que venhamos a nos deter com maior nfase a respeito deste assunto, oportuno assinalar que a especificidade da produo cultural poca de Dom Joo III reside no interesse etnogrfico que se faz presente na literatura humanista portuguesa, resultante da articulao de ambos os imperativos. Com efeito, na perspectiva de Rui Luis Rodrigues, reconhecer o papel da religio como o eixo estruturador dos estados e, pode-se acrescentar, dos imprios coloniais , bem como aceitar o carter pragmtico de Dom Joo III, no exclui
271 RODRIGUES, Rui Luis. Reflexes sobre o Humanismo portugus no alvorecer da poca confessional. In: Revista Angelus Novus. N 2, julho, 2011, p. 61. 272 RODRIGUES, Rui Luis. Op. Cit. p. 61. 273 Cf. RODRIGUES, Rui Luis. Idem. pp. 69 e ss. 274 Sobre o assunto cf. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz: feitiaria e religiosidade popular no Brasil colonial. So Paulo: Companhia das Letras, 1986. pp. 21-85. O trecho citado encontra-se na p. 79. 95
necessariamente a possibilidade de compreendermos o reinado de Dom Joo III em dois momentos distintos e bem definidos, onde o primeiro, visto como mais positivo, est relacionado com uma maior abertura ao processo de laicizao tradicionalmente atribudo ao humanismo, enquanto o segundo poderia ser entendido como mais obscurantista, visto que foi marcado pela instituio da Inquisio e assinala um perodo de fechamento cultural e social. 275
Por sua vez, na perspectiva de Maria Paula Dias Couto Paes, so tambm os textos literrios, cartas e relatos produzidos no contexto da expanso martima e das relaes interculturais por ela inaugurada o principal elemento de diferenciao da literatura humanista produzida em Portugal. Alm disso, para a historiadora, h uma aliana poltico-religiosa que denota um esforo de cristianizao dos sditos como a maneira mais eficiente de garantir coeso comunidade poltica, ou seja, respublica. Para a autora, trata-se de perceber que:
[...] a racionalidade da poca estava assentada sobre parmetros outros que no so os que regem a compreenso racional das interpretaes tal como as analisamos a partir da atualidade. Nesse sentido, torna-se invlido propor uma dicotomia no registro de oposies do tipo laicismo-modernidade versus Reforma Catlica-conservadorismo poltico e social. 276
Com isso, para ela, a percepo do reinado de Dom Joo III em dois momentos diferentes constitui uma viso dicotmica, resultado de interpretaes historiogrficas mais ortodoxas e que implicam uma anlise simplista acerca de uma conjuntura muito mais complexa. 277
Ora, tem se tornado lugar comum no mbito da atual historiografia brasileira promover a reviso de estudos j consagrados com o argumento de que imperativo superar antagonismos e dicotomias a eles inerentes, uma vez que so por demais reducionistas. 278 Este procedimento de reviso tem como princpio a crtica de uma
275 Com efeito, no deixa de acionar a categoria fechamento, ainda que a utilize com aspas. Alm disso, em seu texto, no nega a existncia destes dois momento. 276 PAES, Maria Paula Dias Couto. Op. cit. p. 514. 277 PAES, Maria Paula Dias Couto. Idem. p. 510. 278 Sem dvida, no caso de alguns estudos recentes sobre cultura poltica no Imprio Portugus, a pretenso de superar tais dicotomias se desdobram em vises eufmicas sobre o fenmeno do imperialismo e acabam por diluir os embates e os antagonismos em redes de interesses diversos, sempre submetidos a foras e relaes de carter local. Sobre o assunto, cf. PANEGASSI, Rubens Leonardo. Uma historiografia combativa: vozes dissonantes do iderio luso-tropicalista (Resenha do livro 96
concepo teleolgica da histria, fundamentada na tese de que no existe uma relao necessria entre um determinado fato do passado e algum tipo de desdobramento tido como seu resultado. Em linhas gerais, esta abordagem se fundamenta na percepo do passado como alteridade absoluta e, portanto, revestido de uma lgica que obedece sua prpria temporalidade, distante da lgica do mundo contemporneo, o que faz com que ele deva ser compreendido exclusivamente em sua especificidade. Exemplo desse tipo de abordagem, e referncia fundamental para grande parte destes estudos se no a totalidade, ao menos na rea dos estudos de poltica e instituies a crtica do paradigma estadualista, onde o historiador Antnio Manuel Hespanha, detido sobre questes relacionadas histria poltica do Antigo Regime europeu, sugere que necessrio visualizar a especificidade e alteridade do modelo de estruturao do poder nas sociedades no estatais 279 para que se possa, efetivamente, compreend-las. Embora a crtica seja coerente em termos tericos, preciso notar que pressupe os estudos histricos a partir de um historicismo exacerbado que est muito distante da percepo de que a histria, alm de ser a cincia do tempo, , tambm, a cincia que se detm nas mudanas que o tempo imprime s sociedades humanas, uma vez que seu objeto , fundamentalmente, o homem e suas vicissitudes no tempo. Em nosso ponto de vista, no h dvida de que a histria, despida de toda e qualquer tentao teleolgica estaria arriscada a se tornar um interminvel inventrio de fatos desconexos abandonados sua prolfica incoerncia. 280 Alm disso, no atende quilo que entendo como um dos mais importantes postulados do ofcio do historiador, que o de compreender, correlativamente, o presente pelo passado e o passado pelo presente. Ora, no outro o sentido do clssico ensaio de Marc Bloch, onde o autor nos ensina que a incompreenso do presente nasce fatalmente da ignorncia do passado. 281
Com efeito, compreender a alteridade do modelo de estruturao do poder nas sociedades no estatais, deixar de enfocar a questo da formao do Estado na poca
Cultura Imperial e projetos coloniais sculos XV a XVIII, de Diogo Ramada Curto). In: Jornal de Resenhas. N 11, novembro de 2012, p. 23. 279 HESPANHA, Antnio Manuel. Para uma teoria da histria institucional do Antigo Regime. In: HESPANHA, Antnio Manuel. Poder e instituies na Europa do Antigo Regime... p. 31. 280 CHARTIER, Roger. Origens culturais da Revoluo Francesa. Trad. George Schlesinger. So Paulo: Editora UNESP, 2009. pp. 30-31. 281 BLOCH, Marc. Op. cit. p. 65. 97
Moderna. Uma vez que perdemos de vista a noo de formao, 282 como entender, ento, a solidariedade entre as pocas e seus vculos de inteligibilidade? 283 Em suma, como estabelecer uma ponte cognitiva com o passado, e dar-lhe sentido, se ele deve ser entendido como alteridade absoluta? Ainda nessa perspectiva, preciso notar que toda tentativa de imergir no passado, e operar o conhecimento histrico unicamente a partir de uma racionalidade outra pode induzir a um grave erro, que o de acreditar que a ordem adotada pelos historiadores em suas investigaes deva necessariamente modelar-se por aquela dos acontecimentos. 284 Cabe ainda, aqui, problematizarmos a suposta simplicidade inerente dicotomizao: 285 se o exerccio de crtica inscreve-se no interior de um trabalho de comparao, 286 no seria importante contar com o antagonismo como base da comparabilidade? Para Marc Bloch, classificar o encadeamento dos fenmenos humanos no tempo significa desvelar suas linhas de fora, o que significa, em sntese, a possibilidade de estabelecer generalizaes e elaborar uma explicao plausvel. Ou seja, a finalidade do trabalho histrico tornar inteligvel a histria enquanto processo. Entretanto, como observou, por sua vez, Jaques Le Goff, em histria as explicaes so mais avaliaes do que demonstraes, mas incluem a opinio do historiador em termos racionais, inerentes ao processo intelectual de explicao. 287 Pois bem, a percepo do passado
282 Seria interessante refletirmos a respeito da crtica ao paradigma estadualista e formao dos estados sob a perspectiva apresentada por Roberto Schwarz em seu artigo Sobre a Formao da literatura brasileira. Trazendo sua reflexo para o mbito de nossa discusso, no seria equivocado considerrmos, por exemplo, a substituio da noo de Brasil Colonial por Amrica Portuguesa como uma pretenso de superar a arena local e nacional por meio de sua diluio no interior de uma tradio mais abrangente, dentro de outros contornos polticos e culturais. Frente a isso, recupero o argumento apresentado por Schwarz, que, em minha perspectiva, nos ajuda a compreender a aceitao de tal ideia no Brasil. Segundo ele, a moda [...] da aldeia global, por oposio s aldeias locais: o tempo das formaes nacionais passou, pois o mundo, interligado pelas novas formas de comunicao, vive um s e mesmo presente. A grande aceitao dessa tese no Brasil talvez no se deva apenas ao seu acerto, relativo, mas tambm deciso medocre e muito compreensvel de no se dar por achado, no se dar por implicado na iniquidade das relaes sociais locais, o que permitiria entrar para o primeiro mundo sem mais perda de tempo. Uma modernidade das mais tradicionais no pas, da ordem, por exemplo, do Liberalismo e progressismo escravistas. Cf. SCHWARZ, Roberto. Sobre a Formao da literatura brasileira. In: Sequncias brasileiras: ensaios. So Paulo: Companhia das Letras, 1999. p. 23. 283 BLOCH, Marc. Op. cit. p. 65. 284 BLOCH, Marc. Op. cit. Atentemos, neste sentido, ao que escreveu Maria Paula Dias Couto Paes: a prpria ordem cronolgica dos acontecimentos demonstram a pouca validade da viso dicotmica acerca do reinado de Dom Joo III, cf. Op. cit. p. 514. 285 Lidas em seus contextos, as dicotomias configuram evidentes situaes de conflito. Sem dvida, negligenciar tais conflitos sob o imperativo de uma rede consensual que articula interesses diversos subestima a importncia das querelas e dos interesses antagnicos como elemento constitutivo do embate poltico. 286 BLOCH, Marc. Op. cit. p. 109. 287 LE GOFF, Jaques. Histria. In: Histria e memria... p. 41. 98
como alteridade absoluta, associada negligncia em registrar oposies e dicotomias que, por sua vez, assinalam importantes rupturas ou continuidades elide o historiador de um importante papel, que o da anlise das linhas fora, onde, de fato, deve situar sua opinio o que no significa julgar , formulada em termos racionais, a respeito de um determinado fenmeno, em uma dada conjuntura. Em face dessas cosideraes, creio que seja importante reiterarmos, aqui, o carter ambiguo do reinado de Dom Joo III, sobretudo por considerarmos que tal ambiguidade colabora na impresso de uma colorao nica ao movimento humanista em Portugal. Contudo, a ambiguidade do rei no se deve ao fato de que ele no era um erudito. A questo era outra. Neste sentido, vale atentarmos para o fato de que o Colgio das Artes, cone da modernizao cultural portuguesa, foi entregue Companhia de Jesus, 288 influncia invisvel, mas poderosa, da Contra-Reforma no mbito da poltica: a paulatina presena jesuta nas instituies de ensino deve ser compreendida como uma eficiente estratgia na batalha pela ortodoxia, afinal, seria dos colgios e das universidades que sairiam os quadros mais notveis do poder. Por sua vez, para Antnio Borges Coelho, em Portugal, a universidade seria a instituio responsvel pela formao de quadros que criariam e dirigiriam a Inquisio Portuguesa e tambm os que dirigiram o aparelho administrativo-judicial e o aparelho eclesistico. 289 Ainda neste sentido vale atentarmos para o fato de que, segundo Paolo Prodi, a reforma interna da Igreja catlica foi uma resposta necessidade de manter seu magistrio e sua jurisdio universal em um mundo no qual o poder se laicizava paulatinamente: uma vez que no conseguiu sustentar a concorrncia no plano dos ordenamentos jurdicos, ela aposta no controle das conscincias, sobretudo por meio da instituio dos confessionrios. 290
Alm disso, importante a recuperao da tese segundo a qual a influncia de Erasmo de Roterd sobre Joo de Barros foi modesta para definirmos o papel do humanismo laicizante no reino: sem dvida, a cautela do humanista portugus em eliminar as possveis fronteiras entre a herana pag e o cristianismo primitivo elemento fundamental na composio do esprito cruzadstico presente na mentalidade
288 Cf. MENDES, Antnio Rosa. Op. cit. 289 COELHO, Antnio Borges. Tpicos para o estudo da relao Universidade/Inquisio (sculos XVI- XVII). In: TENGARRINHA, Jos (coord.). A historiografia portuguesa hoje. So Paulo: Hucitec, 1999. p. 113. 290 Cf. PRODI, Paulo. Uma histria da justia: do pluralismo dos foros ao dualismo moderno entre conscincia e direito. Trad. Karina Jannini. So Paulo: Martins Fontes, 2005. Captulo VI. 99
portuguesa alinhava-se s exigncias de uma circunstncia histrica em que a religio crist se definia como fundamento do Estado em formao. 291 Efetivamente, a sano da paz de Augusta em 1555 afirmou o princpio cuius regio eius religio, ou seja, quem domina uma regio, determina qual a religio, 292 o que fazia com que a religio do rei fosse, necessariamente, a religio de seus sditos. Esta foi, de fato, uma das linhas de fora desse contexto. Com efeito, interessante a sugesto de que a especificidade da produo humanista de Portugal reside, sobretudo, na literatura elaborada no contexto da expanso martima, notavelmente na literatura de carter etnogrfico da qual Joo de Barros um grande expoente, tal como veremos. Fudamentalmente, esta litaratura se desdobra, fundamentalmente, da expanso do cristianismo. Assim, creio que os dois momentos que marcaram o reinado de Dom Joo III denotam a indefinio dessa conjuntura. A tolerncia de Dom Joo III no contexto portugus encontra correspondncia em outros contextos, tal como entre os jesutas, mxima expresso do esprito contra-reformista, segundo Antnio Rosa Mendes. 293 Ora, mesmo a ordem tendo sido fundada numa poca em que Erasmo era considerado o smbolo principal de tudo o que estava errado, 294 Incio de Loyola nunca publicou para a Companhia uma proibio peremptria 295 contra as obras do clebre humanista holands, alm disso, considerando que a companhia nasceu oficialmente com a Bula Papal de 1540, foi somente em 1552, ou seja, doze anos depois de sua criao que Incio proibiria o uso das obras de Erasmo no colgios jesutas, o que nos obriga a contar com a hiptese de que elas eram utilizadas com alguma frequncia. 296
Desse modo, ao passo que a escrita de Joo de Barros incorpora tenses e embates inerentes ao contexto em que foi elaborada, vale atentar para a sugesto de que mesmo ele esteve dividido entre as principais correntes a que um homem de letras poderia se identificar ao longo do segundo quartel do sculo XVI. Se, por um lado, o esprito erasmiano se fez presente em obras como a Ropicapnefma, ou mesmo, como sugere Zoltn Biedermann, em parte da primeira sia de Joo de Barros, ou ainda, no
291 Cf. PRODI, Paulo. Op. cit. Captulos V e VI. 292 FILORAMO, Giovanni. Monotesmos e dualismos: as religies de salvao. Trad. Camila Kintzel. So Paulo: Hedra, 2005. p. 89. 293 MENDES, Antnio Rosa. Op. cit. p. 346. 294 OMALLEY, John W. Os primeiros jesutas. Trad. Domingos Armando Donita. So Leopoldo, RS: Editora UNISINOS; Bauru, SP: EDUSC, 2004. p. 396. 295 OMALLEY, John W. Op. cit. p. 406. 296 Cf. Idem. Op. cit. pp. 406 407. 100
Dilogo Evanglico sobre os artigos da F contra o Talmud dos Judeus, de se considerar, ainda segundo Biedermann, que por outro lado, h uma notria resignao em seus escritos principalmente a partir do Panegrico da Infanta Dom Maria diante das novas propostas scio-culturais da segunda era joanina, como vimos, mais fechada e intolerante. 297
2.3. O polemista ausente
Notrio exemplo das tenses e dos embates inerentes ao contexto o Dilogo Evanglico sobre os artigos da F contra o Talmud dos Judeus, provavelmente composto entre o terceiro e quarto autos-de-f celebrados em Lisboa, 298 ou seja, entre os anos de 1542 e 1543. Deste colquio, significativo o fato de que Manuel Severim de Faria no nos deu notcia em sua Vida de Joo de Barros. Tal como j mencionamos, o Dilogo Evanglico no seria publicado antes de 1950 e, por um lado, se verdade que podemos considerar o manuscrito como uma forma privilegiada de transmisso de ideias ao longo do incio da poca Moderna, por outro, no devemos perder de vista o papel que a imprensa desempenhou no aumento da distribuio dos livros. Para Robert Darnton, por exemplo, aps 1500, o livro impresso passaria a ser mais barato e sua distribuio radicalmente ampliada. 299 Diante disso, no seria equivocada a suposio de que a censura do Dilogo pelo inquisidor-geral, o infante Dom Henrique a quem a obra tinha sido dedicada fosse uma tentativa de silenciar eventuais estmulos a discusses de dogmas religiosos, de modo que a ausncia de qualquer referncia dessa obra na Vida de Severim de Faria reverbera um silncio que se torna ainda mais eloquente quando alinhado a outros dois escritos suprimidos no mesmo contexto; o primeiro deles, Espelho de Cristos novos de autoria do cisterciense Francisco Machado; enquanto o segundo, Inquisio e segredos da F contra a obstinada perfidia dos Judeus e contra Gentios e Hereges, de autoria de
297 Cf. BIEDERMANN, Zoltn. Nos primrdios da antropologia moderna: a sia de Joo de Barros. In: Anais de Histria de Alm-Mar, Vol. IV, 2003, pp. 29-61. 298 RVAH, I. S. O Dilogo Evanglico de Joo de Barros. In: BARROS, Joo. Dilogo Evanglico... p. LXXI. 299 Cf. DARNTON, Robert. Histria da leitura. In: BURKE, Peter (org.). A Escrita da histria... pp. 199-236. 101
Diogo de S. Com efeito, no puro acaso que todas as obras mencionadas se debrucem sobre questes de carter religioso, o que denota, por um lado, o pouco interesse da inquisio em estimular o debate de temas ligados religio mesmo que animados pelas melhores intenes , e por outro o desagrado do poder real encarnado por Dom Joo III , em face do cristianismo evangelizador e no-persecutrio caracterstico dessas obras, notavelmente no caso do Dilogo e do Espelho de Cristos novos. 300
I. S. Rvah atribui grande importncia para a data na qual o Dilogo foi composto, uma vez que, para ele, o contexto de sua elaborao pode nos ajudar a compreender alguns dos objetivos que Joo de Barros procurou alcanar. Nesse sentido, argumenta Rvah, enquanto na Ropicapnefma, a stira ao povo judeu foi violenta, no Dilogo, o autor quinhentista adota um tom mais moderado, visto que a perseguio ativa tinha comeado, o que, por sua vez, nos d a conhecer a perspectiva de um autor sinceramente preocupado com a fuga em massa dos cristos-novos portugueses, de um cristo que quer ainda acreditar na superioridade dos argumentos espirituais. 301
Inscrita no mbito de uma tradio literria pautada por questes inerentes polmica antijudaica, herdeira direta e confessa das obras contra o judasmo redigidas na Idade Mdia e na Antiguidade tardia, 302 o Dilogo se prope, principalmente, a demonstrar a veracidade e o universalismo da f crist por meio de um colquio cujos interlocutores so o Evangelho e o Talmud. Com efeito, pode-se dizer que o Dilogo, juntamente com o Espelho so os dois primeiros escritos a trazer como tema principal a questo dos judeus. Desse modo, para compreendermos melhor a data na qual o Dilogo foi composto, importante no perdermos de vista o drama vivido pela comunidade judaica no reino portugus ao incio da poca Moderna. De fato, notrio que o perodo conheceu uma multiplicao sem precedentes dos escritos antijudaicos, alm disso, os judeus foram alvo de confinamentos e expulses, alm de uma sistemtica recusa em atribuir-lhes postos de responsabilidade, mesmo depois de terem sido convertidos. Com efeito, os judeus haviam se tornado, por razes essencialmente religiosas, um dos
300 Cf. RVAH, I. S. Op. cit. p. LXXXIX. Cf. tbm. FEITLER, Bruno. O catolicismo como ideal: produo literria antijudaica no mundo portugus da Idade Moderna. In: Novos estud. CEBRAP. 2005, n.72, pp. 137-158. 301 Cf. RVAH, I. S. Op. cit. p. LXXVI. 302 FEITLER, Bruno. Op. cit. p. 138. 102
grandes inimigos internos da cristandade, ou, nos termos de Jean Delumeau, a representao do mal absoluto. 303
Este assunto tem sido objeto de apreciao de inmeros especialistas e por isso no nos cabe aqui esgot-lo. De todo modo, o tema no pode deixar de ser tratado. Em vista disso, cito parte do artigo de Bruno Feitler dedicado produo literria antijudaica no mundo portugus, onde o autor localiza, com clareza, os primrdios de uma questo que resiste ao tempo:
Em outubro de 1497 os judeus de Portugal foram convertidos ao cristianismo fora. Esse ato de violncia foi ditado por necessidades polticas e econmicas. As ambies dinsticas do rei Dom Manuel, que se casara com trs princesas espanholas no intento de unificar os reinos ibricos sob a gide de Portugal (sabemos que o feitio se virou contra o feiticeiro...), fizeram-no expulsar os judeus, pois essa fora uma das condies impostas pela primeira das princesas para casar-se. O dito de expulso, datado de dezembro de 1496, dava dez meses aos mouros e aos judeus para deixar o Reino, e na data fatdica os judeus que no haviam conseguido deix-lo (a grande maioria) foram forosamente convertidos ao catolicismo. Assim que o ano de 1497 marcou o fim da existncia legal do judasmo em Portugal e o comeo da conturbada histria dos descendentes dos judeus lusitanos: os cristos-novos. Esse trgico evento deixou marcas indelveis em toda a sociedade portuguesa, e suas ondas de choque se fazem sentir at hoje em dia. 304
Com efeito, tendo em vista um contexto marcado pela converso forada, bem como pela proibio do judasmo no reino portugus, o Dilogo se prope a legitimar estas prticas sob o imperativo ideolgico da superioridade da f crist, verdadeira e universal. De fato, a pretenso universalista do cristianismo claramente evocada por Joo de Barros ao iniciar o colquio, por meio de uma notria referncia do Evangelho s sagradas escrituras. A evocao de uma passagem que trata do reino universal de Deus to mais emblemtica quando sublinhamos o fato de que o encontro dos interlocutores, caracterizados como viandantes, embora acontea dentro de um percurso compartilhado por ambos, assinala rumos opostos. Portanto, no mbito de uma
303 Cf. DELUMEAU, Jean. Histria do medo no ocidente 1300-1800: uma cidade sitiada. Trad. Maria Lucia Machado. Trad. de notas Helosa Jahn. So Paulo: Companhia das Letras, 2009. p. 414 e ss. 304 FEITLER, Bruno. Idem. p. 137. 103
situao que sugere, simultaneamente, a convergncia e o afastamento dos personagens, o momento que tem incio a conversao:
Evangelho: Deus te salve, caminhante. Talmud: E a ti encaminhe para este caminho que levo. Evangelho: Tal pode ele ser que o no seguirei eu: para onde caminhas tu? Talmud: Para Veneza, e da, para Turquia. Evangelho: Para Turquia? De que nao s? Talmud: Hebreu, povo escolhido por Deus. Evangelho: Agora entendo que a causa de te embuares quando me viste foi por me conheceres. Talmud: Como, to conhecido tu, que em te vendo de longe, posto que sem rebuo, logo te havia de conhecer! Evangelho: Sabes quo sou: que toda a terra cheia de minha palavra. 305
Como observao preliminar vale notar que, segundo I. S. Rvah, o excerto transcrito em itlico remete ao trecho do Salmo XIX, onde se pode ler, e por toda a terra sua linha aparece, e at aos confins do mundo a sua linguagem. 306 Contudo, seria o caso de levantarmos a hiptese de que Joo de Barros tenha citado a Epstola aos Romanos, visto que, embora esta ecoe o salmo, remete-nos diretamente ao Novo Testamento, onde, de fato, encontramos a mesma mensagem: Ora, eu digo: ser que eles no ouviram? Entretanto, pela terra inteira correu sua voz; at os confins do mundo as suas palavras. 307 Para darmos nfase hiptese de que o humanista portugus refere-se s cartas paulinas, no de se desprezar a importncia que o apstolo So Paulo adquiriu nos crculos humanistas ao longo do sculo XVI, principalmente quando levamos em considerao sua importncia na circunscrio do iderio que estimulou a reforma eclesistica no incio da poca Moderna: 308 seus textos, de carter interventivos, convidam ao e podem ser compreendidos, na perspectiva do filsofo Alain Badiou, como os nicos verdadeiros textos doutrinrios do Novo testamento. 309 Sem dvida, o impacto desses textos so notrios, tambm, na atividade missionria e sua ambio de cristianizar o mundo a partir do sculo XVI,
305 BARROS, Joo. Dilogo Evanglico... p. 3. O grifo meu. 306 Sl 19, 5. 307 Rm 10, 18. 308 Cf. SKINNER, Quentin. Op. cit. 309 Cf. BADIOU, Alain. So Paulo: a fundao do universalismo. Trad. Wanda Caldeira Brant. So Paulo: Boitempo, 2009. p. 44. Grifo do autor. 104
fenmeno que se encontra na base da formao e do desenvolvimento da modernidade. 310
, portanto, no mbito de uma conjuntura que articula, por um lado, a converso forada dos judeus e a malograda tentativa de sua integrao, e por outro, a instaurao da Inquisio em Portugal e o incio das perseguies aos judaizantes, que o excerto transcrito nos apresenta uma perspectiva universalista do cristianismo alinhada a outra significativa preocupao de Joo de Barros: a crescente emigrao dos judeus para terras em que pudessem abraar livremente sua religio, notavelmente para a Turquia muulmana. sob esta grade de leitura que devemos compreender o empenho do Evangelho em convencer o Talmud a seguir outro caminho, o da Verdade:
Quanto folgo de te achar aqui, parte onde te no podes escusar de me ouvir, por te amoestar que no sigas este caminho de Turquia, mas aquele que verdadeira via e verdade. Pelo qual levando tu os teus sequazes, no encorreram em perigo da alma e da vida. 311
Sem dvida seria o caso de problematizarmos o desconforto de Joo de Barros frente emigrao dos judeus Turquia muulmana sob o signo do persistente conflito entre estes ltimos e a Cristantade. Com efeito, tanto o islamismo quanto o cristianismo, por serem religies que se pretendem nicas e verdadeiras, condenam eterna danao, todos aqueles que se apegam a outros credos. 312 Todavia, embora a relao entre cristos e muulmanos tenha sido, ao longo da histria, marcada por uma constante animosidade, h estudos que sugerem maior tolerncia religiosa por parte dos muulmanos, ao salientarem a convivncia pacfica destas trs confisses monotestas na regio da Andaluzia antes da Reconquista. 313
Em vista disso, se, por um lado, preciso compreender o contexto de hostilidade aos cristos-novos no reino portugus para lanarmos luz ao dilogo travado entre o Evangelho e o Talmud, por outro, no seria fora de propsito considerarmos, tambm, o contexto da presena turca no Mediterrneo. Ali, os muulmanos seriam hegemnicos nessa poca e, segundo Fernand Braudel, seria preciso esperar os anos de 1559 1565
310 Cf. GASBARRO, Nicola. Misses: a civilizao crist em ao. In: MONTERO, Paula (org.). Deus na aldeia: missionrios, ndios e mediao cultural. So Paulo: Globo, 2006. pp. 67-109. 311 BARROS, Joo. Op. cit. p. 4. 312 Cf. PAGDEN, Anthony. Mundos em guerra: 2500 anos de conflito entre Ocidente e Oriente. Trad. Miguel Mata. Lisboa: Edies 70, 2009. p. 161 e ss. 313 Cf. BALTA, Paul. Isl. Trad. William Lagos. Porto Alegre, RS: L&PM, 2010. 105
para que se pudesse visualizar os ltimos momentos desta primazia. Fenmeno que foi coroado com os resultados da batalha de Lepanto, em 1571. 314
Com efeito, a respeito da importncia dos muulmanos no contexto, o historiador Jean Delumeau assinala a perspectiva de Michel de Montaigne, que em seus Ensaios, comenta serem os turcos o mais forte Estado que aparece no mundo. 315 Em suma, nesse sentido que Delumeau nos apresenta sua ideia de que a cristandade est sitiada:
No sculo XVI, o mundo otomano comea s margens do Adritico e se expande por trs continentes: de Buda a Bagd, do Nilo Crimeia, estendendo mesmo seu protetorado a grande parte da frica do Norte. As derrotas crists em Kosovo (1389) e em Nicpolis (1396), a tomada de Constantinopla (1453), o fim do pequeno imprio grego de Trebizonda (1461), a tomada do Egito (1517), a ocupao de Belgrado (1521), o desastre infligido em Mohacs (1526) aos cavaleiros hngaros e a seu rei Lus, que ficou entre os mortos, a anexao metdica das ilhas do Egeu entre 1462 (Lesbos) e 1571 (Chipre) fizeram do Sulto um augusto muulmano. Ao mesmo tempo ele o sucessor de Maom, o servidor das cidades santas. Na Europa, ele domina os Blcs e 2/3 da Hungria, Transilvnia, Moldvia e Valquia lhe pagam tributo. Em 1480, uma fora turca desembarcou em Otranto. Mesmo depois de Lepanto (1571), os corsrios turcos e berberes continuaram a visitar as costas italianas. 316
Ora, comum encontrar nas pregaes da poca comentrios a respeito deste avano otomano, que situado, em geral, ao lado de flagelos diversos, tais como epidemias, fomes, inundaes ou incncios. Diante disso, seria interessante especular sobre a inquietao do humanista portugus, notavelmente se considerarmos sua possvel sensibilidade diante da maior tolerncia religiosa por parte dos inimigos. o caso de arriscarmos a sugesto de que o desconforto de Joo de Barros frente emigrao dos judeus Turquia muulmana talvez esteja acompanhado de alguma admirao velada pelo islo, visto que, tal como nos assegura, mais uma vez, Delumeau,
314 Cf. BRAUDEL, Fernand. El Mediterrneo y el mundo mediterrneo en la poca de Felipe II. Tomo segundo. Trad. Mario Monteforte Toledo, Wenceslao Roces y Vicente Simn. Mxico: FCE, 1997. 315 MONTAIGNE, Michel de. Op cit. Captulo XXV, p. 214. Cf. tbm. DELUMEAU, Jean. Op. cit. p. 408. 316 DELUMEAU, Jean. Idem. p. 398. 106
gegrafos, historiadores, viajantes, polticos e moralistas esforam-se em compreender o adversrio, admiram as leis e o exrcito do Imprio Otomano. 317
Efetivamente, a emigrao dos cristos-novos em direo Turquia foi uma questo relevante para Joo de Barros. Contudo, vale notar que o humanista estava atento, tambm, a uma segunda questo ligada perseguio dos judeus no reino: o messianismo. Sem dvida, o desenvolvimento desse fenmeno entre os cristoes-novos mencionado literalmente no colquio:
Evangelho. Em trs autos que te ora em Lisboa so feitos, entre muitos julgados, quatro foram ali notveis: um se chamava doutor Dionsio mdico e outro mestre Graviel. Talmud. Qual o solicitador de minhas causas e das demandas alheias! Evangelho. Esse induzidor dalmas inorantes convertendo a ti muita gente com sua malcia... Talmud. Haja ele a minha beno, e cr tu que se eu tivesse tais trs discpulos (porm que fossem to idiotas, como ele era, acerca dos mistrios da nossa Lei), no andaria eu embuado como me ora topaste (posto que por causa do caminho o fazia como disse), mas j tivera ganhado as trs partes do mundo. E os outros dois quem eram? Evangelho. Um se chamava Francisco Mendes, tambm mdico, o qual ia ouvir um Lus Dias, alfaiate que se fez Messias, a quem ele e outros beijavam a mo confessando haver nele esprito de santidade. 318
Ora, a meno feita por Joo de Barros ao caso de Lus Dias o alfaiate de Setbal que foi preso e condenado pela Inquisio por acreditar ser o prprio messias nos remete, por um lado, ao processo sofrido pelo desembargador Gil Vaz Bugalho cristo-velho que manteve correspondncia comprometedora tanto com o setubalense, como com outros personagens, tais como o fsico Francisco Mendes e Jorge Fernandes Labaredas , do qual Barros foi testemunha de defesa. 319 Por outro lado, nos reporta tambm a uma srie de outros eventos semelhantes que envolvem desde a produo de escritos de carter messinico no interior das comunidades judaicas, at outras modalidades de profetizao que ganharam fora em Portugal ao incio da poca Moderna, ocasio particularmente crtica para a minoria judaica do reino, tal como
317 Cf. Idem. Ibidem. pp. 407 e 409. 318 BARROS, Joo. Op. cit. p. 5. 319 Cf. COELHO, Antnio Borges. Op. cit. 107
vimos. Por sua vez, o messianismo um tema amplamente estudado pela historiografia, e embora no nos caiba aqui traar o histrico deste debate, creio que seja importante elucidarmos o assunto, ainda que sumariamente. 320
Em linhas gerais, o messianismo associa-se escatologia, de modo que possvel perceb-lo em articulao ao fenmeno do milenarismo. Neste sentido, seria interessante compreendermos o milenarismo sob seu aspecto mais imediato, ou seja, em sua crena de que os ltimos mil anos que antecedem ao fim do mundo seriam plenos de paz, justia, felicidade e abundncia. Com efeito, o incio desta ltima etapa do mundo seria reconhecvel por algum indcio irrefutvel, assinalado tanto por eventos csmicos, quanto por fatos histricos. Ento, esses mil anos de plenitude e justia seriam, de fato, a realizao do Reino de Deus na terra, e se associariam vinda do messias. Desse modo, o que temos com o messianismo, a expectativa da chegada de um salvador que purgar o mundo de suas mazelas e instaurar uma nova era. 321
Para Jacqueline Hermann, o caso do alfaiate mencionado por Joo de Barros se enquadra no mbito de toda uma gerao de cristos novos que vivenciaram o clima de exaltao messinica que atingiu a comunidade em Portugal ao longo do sculo XVI. Alm de Lus Dias, a historiadora cita, tambm, os casos de Isaac Abravanel, David Reubeni, Diogo de Leo de Costanilha e o de Gonalo Annes, o sapateiro de Trancoso conhecido como Bandarra, que profetizava a vinda de um rei Encoberto que faria de Portugal a cabea de um imprio cristo. Desse modo, vale a meno de que ao longo dos sculos XV e XVI o reino portugus conheceu diferentes manifestaes de correntes apocalpticas, messianicas e milenaristas, que deram sentido escatolgico a eventos histricos como as expanses martimas, por exemplo, tal como demonstraram os estudos de Ana Paula Torres Megiani e Lus Filipe Silvrio Lima. 322
Assim, diante da densidade das questes que o Dilogo apresenta, possvel consider-lo, ao lado da Ropicapnefma, uma obra de carter amplamente polmico e que por isso, em nossa perspectiva, nos ajuda a balizar a produo do humanista
320 Cf. HERMANN, Jacqueline. As metamorfoses da espera: messianismo judaico, cristos-novos e sebastianismo no Brasil colonial. In: GRINBERG, Keila. (Org.). Histria dos Judeus no Brasil. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2005. pp. 87-111. 321 Cf. BARRETO, Vicente de Paulo e CULLETON, Alfredo (Coord.). Dicionrio de filosofia poltica. So Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010, s. v. Milenarismo. 322 Cf. HERMANN, Jacqueline. Op. cit. Cf. tbm. HERMANN, Jacqueline. No reino do Desejado: a construo do sebastianismo em Portugal, sculos XVI e XVII. So Paulo: Companhia das Letras, 1998; MEGIANI, Ana Paula Torres. Op. cit; LIMA, Lus Filipe Silvrio. Imprio dos sonhos: Profecias onricas, sebastianismo e messianismo brigantino. So Paulo: Alameda, 2010. 108
viseense, sobretudo em face da unidade temtica de ambas as obras. Aos dilogos polmicos seguiriam outro gnero de escritura, os panegricos e histrias. Contudo, embora seja possvel visualizar momentos distintos na produo de Joo de Barros e sugerir que estes momentos se articulam s diferentes experincias polticas vividas no reino, este procedimento taxonmico no obedece cronologia de sua produo, uma vez que O Panegrico do Rei Dom Joo III foi lido em 1533 e, portanto, quase dez anos antes de escrever o Dilogo, enquanto o Panegrico da mui alta e esclarecida Infante Dona Maria Nossa Senhora foi escrito somente dez anos depois do Dilogo em 1544. Alm disso, nosso humanista escreveria, ainda, outros dilogos, tais como o Dilogo da viiosa Vergonha e o Dilogo de Joo de Barros com dois filhos seus sobre preceitos morais em modo de jogo; contudo, vale observar que o contedo destes dois dilogos seria voltado, principalmente, ao aconselhamento da conduta de jovens. 323 De todo modo, fundamental registrar que considero possvel assinalar dois momentos distintos na obra de Joo de Barros, e o argumento que o tipo de gnero escolhido por nosso autor em cada um desses momentos, revela sua conscincia em face das diferentes situaes que o reinado de Dom Joo III experimentou, uma vez que o primeiro momento, no mbito de um contexto de maior abertura, sua obra foi marcada pela composio de colquios, gnero literrio que d maior espao s polmicas; por outro lado, o segundo momento de sua obra, escrita no mbito de um contexto mais fechado, foi marcada por composies do gnero epidtico, que possuem um tom fundamentalmente encomistico, e poupam o autor de tomar partido em polmicas inconvenientes. Contudo, no prudente definir uma baliza rgida e definitiva para a produo intelectual de Joo de Barros. Basta levarmos em considerao o fato de que o Dilogo Evanglico foi escrito no intervalo dos dois panegricos. , todavia, nesse sentido que podemos compreender a afirmao de Zoltn Biedermann, segundo a qual o Panegrico da mui alta e esclarecida Infante marca um ponto de inflexo na obra do humanista viseense. Com efeito, ainda que tenha sido composto depois dO Panegrico do Rei Dom Joo, vale abordarmos, primeiramente, a obra dedicada a Dona Maria, por ser uma obra menor: menor, no apenas porque o outro panegrico se detm na figura do rei personagem que ocupa o pice da hierarquia social em nosso contexto , mas tambm
323 Cf. CONTI, Lgia Nassif. Um projeto pedaggico s margens da expanso: Joo de Barros e seu ideal moralizador. Dissertao de Mestrado. Franca: UNESP, 2005. 109
pelo fato de que sua extenso menor, o que adquire grande importncia numa sociedade profundamente hierarquizada, e onde suas modalidades de representao encontravam na semelhana um elemento estruturante, ou seja, a dignidade e grandeza de um personagem deveria encontrar semelhana na grandeza da obra a ele dedicada. 324
Sobre a presena do gnero panegrico em terras portuguesas, Lus de Sousa Rebelo nos assegura que seu surgimento est associado consolidao do poder real. Rebelo afirma, ainda, que os panegricos renascentistas so marcados pela temtica dos reis-filsofos, 325 o que nos ajuda a compreender, por exemplo, a afirmao de que o vibrante elogio do saber 326 o que h de mais relevante no escrito dedicado infanta. Por sua vez, para Antnio de Oliveira, o Panegrico dedicado infanta uma das obras que bem merecia ser revisitada pelos cultores da histria da Mulher, 327
visto que deve ser compreendido como a obra de um vassalo que nasceu no senhorio que viria a pertencer a Dona Maria a partir de 1544, a qual doravante se passou a chamar senhora de Viseu e de Torres Vedras. Mais uma vez, Antnio de Oliveira quem nos esclarece o fato:
O contrato do ltimo casamento de Dom Manuel estipulava, com efeito, entre outras convenes, que a filha maior, no caso de no haver filho varo, receberia, a partir dos 16 anos de idade, 400.000 dobras castelhanas, pagas nos primeiros quatro anos. Este quantitativo estava avaliado, em 1544, em cinco contos de ris de renda anual. Para satisfazer parte desta importncia, Dom Joo III doou irm a cidade de Viseu e a vila de Torres Vedras "com todos os seus termos e limites e com todas as suas rendas". Ao mesmo tempo, a infanta ficou senhora da "jurisdio cvel e crime mero e mstico imprio" (com a natural ressalva de correio e alada) e dadas dos ofcios, para alm de outras particularidades, como certos padroados rgios e o poder chamar-se senhora das referidas terras. 328
324 A respeito da importncia da semelhana na produo intelectual do sculo XVI, cf. FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das cincias humanas. Trad. Salma Tannus Muchail. So Paulo: Martins Fontes, 1999. 325 REBELO, Luis de Sousa. Op. cit. p. 133. 326 COELHO, Antnio Borges. Op. cit. p. 52. 327 OLIVEIRA, Antnio de. A infanta Dona Maria e o senhorio de Viseu: uma preciso cronolgica. In: Revista Portuguesa de Histria. 27 (1992). p. 215. 328 OLIVEIRA, Antnio de. Op. cit. p. 218. 110
Portanto, a partir da recuperao desse contexto que podemos compreender a elaborao, bem como o ttulo do Panegrico da mui alta e esclarecida Infante Dona Maria Nossa Senhora. Com efeito, enquanto o dilogo se configura como um gnero que permite a insero de seu autor no mbito do debate pblico de ideias em um contexto no qual no existiam jornais nem outros suportes para este tipo de embate , o panegrico um gnero literrio de carter encomistico, cujo objetivo exaltar feitos e virtudes, seja de uma pessoa, de uma comunidade, de um lugar, ou ainda, de um ideal. Em suma, uma orao elogiosa elaborada para ser proferida publicamente e em ocasies solenes. 329 Vale notar, ainda, que assim como as crnicas e a histria, o panegrico considerado como pertencente ao gnero epidtico, 330 embora exista uma substancial diferena, tal como nos aponta o prprio Joo de Barros em seu panegrico dedicado ao rei Dom Joo III:
[...] se o principal fundamento dos que compem crnicas e escrevem as coisas passadas falar a verdade, sem dvida a inveno do Panegrico de maior autoridade que outra maneira de histria; por quanto o Panegrico faz sempre f do que v e o representa aos olhos; a histria pela maior parte trata do que ouve, e isto encomenda memria. 331
Desse modo, para Joo de Barros, diferentemente da histria que trata do que se ouve , o panegrico pautado por um fato concreto, visto que, por meio dele, deve se fazer f do que v e o representa aos olhos. Assim, o enaltecimento das virtudes de Dom Joo III vem acompanhado do testemunho do feito que deu ensejo ao elogio. a partir desse horizonte que o humanista nos revela a ao virtuosa do rei:
Que maior testemunho do que digo queremos que o que este dia e tempo presente nos pode dar, em que no somente faz mais rica e populosa com sua presena a sua cidade de vora, mas ainda muito desejoso de lhe ser causa de mores bens lhe traz novamente gua de muito longe em muita abastana, vencendo com arte natureza, restituindo o cano de gua to necessrio e tantos tempos h esquecido, e com grande nimo sumprindo os defeitos do lugar, por dar sade e contentamento aos homens? 332
329 Cf. COUTO, Aires do. Op. cit. 330 Cf. SLOANE, Thomas O. (Editor in Chief) Op. cit. s. v. Panegyric. 331 BARROS, Joo. Panegrico do rei Dom Joo III. In: Op. cit. pp. 1-2. 332 BARROS, Joo. Op. cit. p. 76. 111
Em termos literais, visvel que na transcrio acima, a ao virtuosa de Dom Joo III foi a restaurao de um sistema de abastecimento de gua, que sabemos ser o Aqueduto da cidade de vora. Diante disso, vale lembrar que para Joo de Barros, h uma relao intrseca entre virtude e prtica e por isso, o elogio das virtudes implica o elogio dos feitos, o que reveste a orao de um carter poltico-ideolgico, notavelmente por abordar os feitos do monarca. Ora, de fato, segundo Aires do Couto, desde o Imprio Romano os panegricos possuam esta conotao poltica, uma vez que eram utilizados como louvor individual do cidado que se distinguira na comunidade, 333 o que configura, portanto, exemplo de vida cvica. Em vista disso, vale atentarmos para a definio elaborada por Joo de Barros a respeito desse tipo de composio:
No sem causa, muito alto e muito poderoso Rei e Senhor, costumavam nos tempos antigos louvar os excelentes homens em sua presena, por que dando louvor justo e manifesto ao grande merecimento das pessoas, assim os presentes, como os que viessem depois, tomassem exemplo e fizessem tais obras, com que merecessem o mesmo louvor; e para o nome dos tais ser mais celebrado, soam nas mores festas e ajuntamentos do povo publicar os tais louvores, que por esta razo chamaram panegrico, que quer dizer ajuntamento. 334
Se podemos considerar o panegrico como uma modalidade de propaganda poltico-ideolgica rgia em seu contexto de elaborao, uma vez que sendo ele um elogio justo, deve ser manifesto ao grande merecimento das pessoas para que estas, tomassem exemplo e fizessem tais obras, com que merecessem o mesmo louvor, ento, encontramos o sentido da ao levada a efeito por Dom Joo III em vora. Ora, mais do que o significado literal de restituir o cano de gua to necessrio, o real contedo poltico a ser anunciado est na supresso dos defeitos do lugar, e ainda, em dar sade e contentamento aos homens, ou seja, o que est em jogo, de fato, a importncia da conservao do reino. O problema da conservao do reino haveria de ser, inclusive, objeto de investigao para um autor como o filsofo italiano Joo Botero, talvez o mais
paradigmtico expoente do pensamento catlico tradicional e contra-reformista. 335 Em sua obra Razo de Estado, Botero anota que a conservao de um Estado depende da capacidade que o prncipe tem de proporcionar paz e tranquilidade a seus sditos, situao que pode ser abalada tanto por motivos internos guerra civil ou rebelies , quanto por motivos externos conflitos de ordem internacional. No que tange sua competncia para a manuteno da paz interna, o italiano nota que ela deve se ancorar, fundamentalmente, na livre sujeio dos sditos ao prncipe virtuoso, notrio pela realizao de feitos que lhe granjeiem amor e reputao. Contudo, escreve o filsofo, embora qualquer virtude seja apta a alcanar amor e reputao, algumas so mais prprias para provocar o amor, enquanto outras incitam reputao. 336 Em sntese:
Na primeira classe (amor) pomos as virtudes inteiramente empenhadas em bem-fazer, como so a humanidade, a cortesia, a clemncia e as outras, que ns podemos reduzir todas Justia e Liberalidade; na segunda (reputao) pomos as que encerram certa grandeza e fora da alma e de engenho, prprias para grandes empresas, como so a Fortaleza, a arte militar e poltica, a constncia, o vigor da alma e a prontido do engenho, que ns abrangemos todas com os nomes de Prudncia e de Valor. 337
Desse modo, enquanto a humanidade, a cortesia e a clemncia so qualidades que denotam a justia e a liberalidade do prncipe, granjeando-lhe amor; a prontido do engenho, a poltica e a arte militar so qualidades que denotam sua fortaleza, necessria s grandes empresas por meio das quais este conquista sua reputao. Todavia, embora amor e reputao sejam fundamentais para a manuteno da paz, a reputao o atributo de maior valor, visto que:
[...] os povos foram levados a dar o governo da Repblica a outros, no para lhes agradar e os favorecer, mas sim para o bem e a sade pblica, de tal maneira que no escolheram os mais belos e amveis, mas aqueles de que conheciam a excelncia em valor e em virtude. 338
Ora, no que a justia fosse uma virtude de menor importncia, Botero a considerava inclusive a primeira maneira de se fazer bem aos sditos. Por sua vez, em seu panegrico, Joo de Barros no deixa de reconhecer sua primazia ao sugerir que, entre as virtudes de que prncipes e governadores das respblicas tem maior necessidade, para o descanso e conservao de seus estados, sempre o primeiro lugar foi dado justia. 339
Por fim, se consideramos o Panegrico de Joo de Barros como uma modalidade de propaganda poltico-ideolgica rgia que aborda a questo da conservao do reino, porque, de fato, este foi um problema concreto que Dom Joo III enfrentou em seu reinado, e de modo particularmente dramtico a partir de meados do sculo XVI. De acordo com o historiador Sanjay Subrahmanyam, nos finais da dcada de 1530, e especialmente no final do longo vice-reinado de Nuno da Cunha (1529-1538) em Goa, a empresa asitica portuguesa parecia ter esgotado a energia. 340 Efetivamente, este foi o contexto em que, se por um lado, a empresa asitica esgotava sua energia, por outro, criava-se o sistema de capitanias hereditrias no Brasil tendo em vista sua colonizao, tal como observou oportunamente Charles R. Boxer:
A ameaa crescente da possvel fixao dos franceses nessa parte da Amrica do Sul, que fora designada Coroa portuguesa pelo Tratado de Tordesilhas, em 1494, acabou induzindo Dom Joo III a sistematicamente promover a colonizao do Brasil. O sistema que o rei adotou em 1534 foi o da diviso do litoral entre o rio Amazonas e So Vicente em doze capitanias hereditrias de extenso limitada, no sentido da latitude, variando entre trinta e cem lguas, mas de extenso indefinida para o interior. 341
Doravante, o interesse pelas potencialidades agrcolas do Brasil passaria a ser mais uma das opes entre os campos de atividades que se desenhavam como possveis escolhas para o reino portugus administrar. Os outros seriam o Norte da frica e a ndia. Com efeito, o problema que se apresentou era o de gerir os recursos humanos e financeiros minimizando os prejuzos de Portugal, o que, em ltima instncia, se
339 BARROS, Joo. Op. cit. p. 3. Cf. tbm. COUTO, Aires do. Op. cit. p. 52. 340 SUBRAHMANYAM, Sanjay. O imprio asitico portugus, 1500-1700. Uma histria poltica e econmica. Trad. Paulo Jorge Sousa Pinto. Lisboa: Difel, 1995. p. 113. 341 BOXER, Charles R. O imprio martimo portugus... p. 100. 114
desdobrou em um caloroso debate na Corte a respeito de qual destes trs campos haveria de ser abandonado para que os outros dois pudessem ser mantidos. 342
Diante disso, seria interessante considerarmos que o elogio escrito por Joo de Barros assinala uma possvel tomada de posio do humanista em relao ao debate, ainda incipiente, a respeito de qual a melhor estratgia para a conservao do reino: para nosso humanista, o mrito estaria na manuteno de todas as conquistas. Para verificarmos isso, creio que seja suficiente atentarmos para aquilo que Aires do Couto chamou de exaltao da ideia imperialista 343 presente no Panegrico, onde o humanista incita o rei a dar continuidade guerra contra infiis e mouros dfrica; e movido do santssimo zelo, converta Etipia e Arbia, Prsia e ndia verdadeira f de Cristo. 344
Desse modo, muito mais do que uma pea literria de aduladores e de cortesos, que atende mais inteno do que s virtudes reais do elogiado, 345 o panegrico se apresenta como um estilo poltico-literrio que, se por um lado nos revela a tnica da propaganda poltico-ideolgica rgia nos d a conhecer a posio defendida por seu autor diante do problema da conservao do reino, por outro, denota o calculismo do humanista viseense: ainda que esta pesquisa no tenha encontrado registros diretos de benesses alcanadas por Joo de Barros por meio de seu Panegrico, importante atentarmos para o fato de que o defensor da manuteno do imprio foi donatrio de uma capitania no Brasil. Alm disso, seu empenho na colonizao, de fato, tomou por exemplo os feitos de seu prncipe, visto que o investimento realizado pelo humanista, embora no tenha obtido xito, foi obra que no deixou de alcanar memria, tal como podemos ler na Vida Manuel Severim de Faria:
[...] quis o Rei Dom Joo III mandar povoar a Provncia de Santa Cruz vulgarmente chamada Brasil [...] E para se a povoao fazer com maior facilidade e menor despeza da fazenda Real, repartiu o Rei aquela provncia em vrias capitanias [...] Joo de Barros, contudo, como era de nobre esprito e desejoso de se empregar em coisas grandes, pediu ao Rei uma destas capitanas, e ele a concedeu de juro e herdade, com os privilgios e doaes das outras; mas alcanando bem as dificuldades da empresa, determinou dar
342 Cf. SUBRAHMANYAM, Sanjay. Op. cit. pp. 122-123. 343 COUTO, Aires do. Op. cit. p. 64. 344 BARROS, Joo. Op. cit. p. 24. 345 LAPA, M. Rodrigues. Prefcio. In: BARROS, Joo. Panegricos... p. XXV. 115
parte dela a Aires da Cunha e a Ferno de Alvares de Andrada, Tesoureiro mor do Reino [...] Fez-se por parte desta companhia a maior Armada que para aquelas partes at ento tinha ido, porque se apresentaram dez navios com novecentos homens, dos quais eram mais de cento de cavalo e com todo o necessrio para a jornada de mantimentos, munies e artilharia [...] indo por Capito o mesmo Aires da Cunha, que levava consigo dois filhos de Joo de Barros. [...] Chegado Aires da Cunha barra do Maranho, com a pouca prtica, que ainda os Pilotos tinham dele, deu em uns baixos que tem entrada, por espraiar ali o mar muito, em que se perdeu com toda a Armada, saindo s alguma gente em terra em uma ilha que est na boca do rio [...]. Este to desgraado sucesso deixou a Joo de Barros muito gastado de fazenda [...]. 346
Em sntese, corteso ciente das estratgias a serem adotadas para alcanar benesses, Joo de Barros foi donatrio de uma capitania ao norte do Brasil, no Maranho, regio que ento era compreendida por toda a extenso das terras situadas entre a Baa da Traio, na Paraba, e a foz do rio Amazonas. Com efeito, em 1535, Joo de Barros, em sociedade com Aires da Cunha e Fernando lvares de Andrade, financiou a maior armada feita com o objetivo de estabelecer povoaes portuguesas no litoral do Brasil. Entretanto, a armada, composta de 10 navios, 900 soldados de infantaria e 113 soldados de cavalaria, se dispersou pelas Antilhas em agosto de 1538. Tal empreendimento se repetiria uma segunda vez, em 1556, ainda que em menor escala e, tambm, sem maior sucesso. Ainda assim, seu empenho em colonizar o Brasil no perderia flego, pois, como se sabe, Joo de Barros comprou o Porto dos Bzios de Pero de Gis, na capitania de So Tom, a norte de So Vicente. 347
Em suma, o empenho do humanista viseense na manuteno do imprio, alinhado sua posio diante da empresa colonial ganha pginas, tambm, nos vrios de seus escritos que antecederam as Dcadas da sia. Compostos entre os anos de 1539 e 1540 mais uma vez Severim de Faria quem nos d notcias deles: antes de imprimir a primeira Dcada a interrompeu, escreve o chantre, antepondo a seu gosto a piedade
346 FARIA, Manuel Severim de. Op cit. pp. XVI-XIX. 347 Cf. BAIO, Antnio. Introduo. In: BARROS, Joo de. sia de Joam de Barros...; COELHO, Antnio Borges. Op. cit.; MOREIRA, Rafael e THOMAS, William M. Desventuras de Joo de Barros primeiro colonizador do Maranho O achado da nau de Aires da Cunha naufragada em 1536... 116
crist e proveito pblico, em cujo benefcio saiu com alguns opsculos luz. 348 Dentre os tratados publicados, Manuel Severim anota primeiramente a Gramtica da lngua portuguesa com os mandamentos da Santa Madre Igreja conhecida tambm como Cartinha com os preceitos e mandamentos da santa madre igreja, e com os misterios da missa e responsorios dela , publicada em 1539 e elaborada na ocasio da converso dos malabares, ou paravs da Costa da Pescaria, 349 quando um grupo de principais foi ao reino aprender a lngua portuguesa, para assim poderem ser melhor ensinados na F, e preceitos da Igreja. 350
Adriana Duarte Bonini Mariguela sugere que as Cartinhas foram fundamentais para a propagao da f crist no Alm-Mar, alm de cumprirem o papel de ensinar as letras e a leitura. 351 Com efeito, na dedicatria ao prncipe Dom Felipe filho de Dom Joo III, a quem a Gramtica foi dedicada o humanista nos revela no apenas a importncia da educao dos meninos quando estes comeam a formar nossas palavras, 352 mas sobretudo, qual deve ser a lngua materna e porqu:
Aquela (a lngua) que na Europa estimada, na frica e na sia por amor, armas e leis to amada e temida, que por justo ttulo lhe pertence a monarquia do mar e os tributos dos infiis da terra. Aquela que como um novo apstolo, na fora das mesquitas e pagodes de todas as seitas e idolatrias do mundo, desprega pregando e vencendo as reais quinas de Cristo, com que muitos povos da gentilidade so metidos no curral do Senhor. Da qual obra agora temos um divino exemplo, na converso de cinquenta mil almas na terra do Malabar [...] 353
O outro tratado elencado pelo chantre de vora foi a Gramtica da lngua portuguesa, publicada juntamente com o Dilogo em louvor da nossa linguagem, em 1540. Enquanto na Gramtica de 1539 ou a Cartinha o intuito foi dar arte para os
348 FARIA, Manuel Severim de. Op cit. p. XXI. 349 FARIA, Manuel Severim de. Idem. 350 Idem. Ibidem. 351 Cf. MARIGUELA, Adriana Duarte Bonini. Circularidade no sculo dezesseis: emergncia da similitude na Cartinha de Joo de Barros e no Cathecismo de Dom Diogo Ortiz. Tese de Doutorado da Faculdade de Educao, Campinas: UNICAMP, 2010. 352 BARROS, Joo de. Cartinha com os preceitos e mandamentos da Santa Madre Igreja: ou Gramtica da lngua portuguesa. Gabriel Antunes de Araujo (org.). So Paulo: Humanitas: Paulistana, 2008. p. 81. 353 BARROS, Joo de. Op. cit. p. 81. 117
meninos facilmente aprenderem a ler com toda a adversidade de slabas, 354 agora o interesse seria dar o fundamento e primeiros elementos da Gramtica, 355 o que levou Severim de Faria a sugerir que foi Joo de Barros, o primeiro autor que reduziu nossa lngua a arte, 356 ao passo que no Dilogo em louvor da nossa linguagem, o chantre anota que o tratamento dado pelo humanista lngua portuguesa mostra a grande afinidade que tem com a latina. 357 Por sua vez, Sheila Moura Hue aponta para o fato de que Barros utiliza o Dilogo em louvor para tocar em assuntos que escapam aos propsitos de sua Gramtica:
Grande parte do Dilogo um projeto pedaggico que critica as prticas de ensino na alfabetizao e prope novos mtodos. No final do Dilogo, Barros se mostra convicto de que o rei acatar suas sugestes e as aplicar. Um dos pontos da reforma no ensino das primeiras letras proposta por Barros a precedncia do estudo da gramtica portuguesa na poca o ensino partia da gramtica latina , o emprego de cartilhas com os mandamentos da igreja e no, como se costumava fazer, com textos de tabelies , e o uso da letra manuscrita e no de frma (sic.). Alm de seu projeto para o ensino das primeiras letras, Barros sublinha a importncia da lngua na expanso territorial portuguesa, articulando o binmio lngua e imprio, tendo como modelo o imprio romano. 358
Outro colquio que Manuel Severim de Faria nos d notcia o Dilogo da viciosa vergonha, tambm de 1540. Ainda segundo o chantre, este dilogo foi composto no apenas para evitar que no lessem os meninos por feitos de tabelies, que ordinariamente so de ruim letra, e sem nenhuma ortografia, com que ficam escrevendo depois barbaramente, 359 mas sobretudo para poup-los de aprenderem por autos pblicos de causas criminais e trapaas civis de que ficam ensinados em vcios em lugar de boa doutrina. 360 Com efeito, a partir da recuperao dos estudos de Maria Leonor Carvalho Buescu, Lgia Nassif Conti nos faz notar que o Dilogo da viciosa vergonha deveria ter sido editado em conjunto com as duas gramticas citadas
354 BARROS, Joo de. Grammatica da lingua Portuguesa. Olyssipone: Lodouicum Rotorigiu Typographum: M.D.X.L. p. 1, verso. A atualizao do texto foi feita por mim. 355 BARROS, Joo de. Op. cit. p. 1, verso. 356 FARIA, Manuel Severim de. Op cit. p. XXII. 357 FARIA, Manuel Severim de. Idem. 358 HUE, Sheila Moura. Op. cit. p. 22. 359 FARIA, Manuel Severim de. Op cit. p. XXII. 360 FARIA, Manuel Severim de. Idem. 118
anteriormente, bem como com o Dilogo em louvor da nossa linguagem. Em sua perspectiva, a edio das obras de carter gramatical, juntamente com um dilogo moral, responde a um propsito pedaggico de Joo de Barros, que o de articular o ensino da lngua portuguesa com a instruo moral. Nesse sentido, Conti argumenta que um dos elementos indicativos de que Barros visava tal abrangncia 361 est em sua meta declarada de compor obras interrelacionadas, tal como foi o Dilogo dos preceitos morais com prtica deles em modo de jogo, que deveria ser o primeiro de uma srie de trs dilogos, onde os outros dois tratavam de maneira igualmente simplificada, didtica e ldica da Economia e da Poltica de Aristteles, a primeira posta em jogo de cartas e a segunda em xadrez. 362 Entretanto, o projeto no se efetivou, segundo Severim de Faria, em face do pequeno sucesso que o primeiro jogo obteve. 363
no mbito de um movimento de defesa e ilustrao das lnguas vulgares que se enquadram as gramticas e os dilogos escritos por Joo de Barros a respeito da lngua portuguesa. A questo que ento se colocava era a de se apresentar a lngua vulgar com a mesma dignidade e expressividade do latim, que entretanto, no deixou de ser objeto de nosso humanista, tal como o prova seus Grammatices Rudimenta, que, embora no tenha conhecido a prensa antes de 1972 e esteja incompleta, uma obra de grande importncia, visto que pertence a uma tradio humanstica europeia, peninsular e portuguesa, que no s produzia, obras originais, redigidas numa lngua que era, verdadeiramente, a lngua franca da cultura, como tambm era o veculo de internacionalizao dessa mesma cultura. 364
Por fim, Charles Boxer nos chama ateno para uma srie de obras compostas por Joo de Barros que se perderam, ou nem mesmo foram levadas a cabo. Dessas, no h dvidas de que a mais importante a Geografia, projeto no qual o humanista se engajou enquanto escrevia as Dcadas. Em linhas gerais, possvel dizer que esta obra, assim como outras do mesmo gnero, e que tambm ficaram incompletas ou nem foram iniciadas , tais como seu tratado sobre o Comrcio, ou ainda seus livros dedicados frica e Europa, foram elaboradas em complementaridade ao conjunto das Dcadas por sua vez, vale anotar ainda, que a IV Dcada tambm ficou
361 CONTI, Lgia Nassif. Op. cit. p. 57. 362 CONTI, Lgia Nassif. Idem. Grifos da autora. 363 Cf. FARIA, Manuel Severim de. Op cit. 364 BUESCU, Maria Leonor Carvalho. Os Grammatices Rudimenta de Joo de Barros. In: Arquivos do Centro Cultural Portugus. Volume IV. Paris: Fundao Calouste Gulbenkian, 1972. p. 95. 119
incompleta. Por fim, Boxer nos d notcias, ainda, de alguns projetos de obras de carter peggico que tambm foram perdidos ou no foram completados, dentre os quais possvel mencionar a Esfera da estrutura das coisas, o Tratado de causas ou problemas morais e o poema Exclamao contra os vcios. 365
Em sntese, a obra de Joo de Barros mltipla. Da fbula, nosso autor transitou por outros gneros, tendo escrito poemas, colquios e panegricos, alm de ser, tambm, gramtico e latinista, bem como gegrafo e historiador. Com efeito, pela erudio que sua obra denota, Joo de Barros incorpora o ideal do homem renascentista. Contudo, mais do que talento nato, sua capacidade de transitar pelos diversos gneros se revela como um artifcio de interao consciente no mbito das dinmicas inerentes ao contexto no qual estava inserido. Em vista disso, vale notar que sua insero social que vai lhe permitir acessar as informaes a partir das quais tecer sua mais importante obra, as Dcadas da sia. Mais do que a construo de uma memria dos feitos portugueses esta obra pode nos ajudar a compreender a insero do cronista no iderio humanista, uma vez que este autor, sem dvida, um personagem com o qual, necessariamente, nos deparamos ao nos debruarmos sobre os estudos dedicados ao humanismo portugus, bem como ao tema dos descobrimentos e da expanso, fato que nos remete ao historiador Lus Filipe Barreto, quando este sugere ser possvel citar Joo de Barros entre as figuras mais salientes da historiografia portuguesa sobre a expanso martimo-mercantil. 366
365 Cf. BOXER, Charles R. Joo de Barros... 366 Cf. BARRETO, Lus Filipe. A sia na cultura portuguesa (c. 1485 c. 1630). In: CUNHA, Mafalda Soares et al. Os construtores do Oriente Portugus. Porto: Edifcio da Alfndega: Comisso Nacional para a Comemorao dos Descobrimentos Portugueses: Cmara Municipal do Porto, 1998. p. 121. 120
Captulo 3
Dos artifcios das Dcadas
Pois a f vem da pregao e a pregao pela palavra [...]. (Rm 10, 17)
A escrita , sem dvida, ao lado do discurso, a arte mais til que os homens possuem. certamente um aprimoramento do discurso, posterior a este na ordem do tempo. (Hugh Blair, Do surgimento e progresso da linguagem e da escrita)
A elaborao das Dcadas da sia articula-se no apenas perspectiva humanista de Joo de Barros, mas tambm ambio de sintetizar a expanso martima portuguesa. Diante disso, no intuito de circunscrever o horizonte intelectual a partir do qual Joo de Barros elaborou sua obra magna, o captulo percorre algumas categorias consideradas imprescindveis para a compreenso das regras a partir das quais o historiador quinhentista instrumentalizou sua relao com o passado. Desse modo, as noes de fala, letras, escrita, escritura, memria, crnica, histria e entendimento, so percebidas como artifcios que permitem a circunscrio do horizonte histrico do humanista, bem como seu compromisso com questes inerentes vida pblica portuguesa do sculo XVI. Embora seja notria a necessidade de operacionalizar conceitos e categorias da poca, a compreenso deste horizonte histrico no pode limitar-se produo de um inventrio de fatos desconexos, por isso no cabe aqui a refutao radical de uma dimenso teleolgica da histria.
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3.1. A fala e a letra
Como vimos, Joo de Barros um personagem com o qual necessariamente nos deparamos ao nos debruarmos sobre o contexto da expanso martima e do Renascimento em Portugal. Decano do humanismo portugus da gerao de Quinhentos, 367 a multiplicidade e a dimenso de sua obra nos obrigou a percorrer diversas temticas inerentes produo intelectual letrada portuguesa do sculo XVI. nesta perspectiva, por exemplo, que Lus Filipe Barreto nos assegura ser possvel cit-lo entre as figuras mais salientes da historiografia portuguesa sobre a expanso martimo-mercantil, 368 sobretudo em face de sua obra magna, as Dcadas da sia. Com efeito, a assertiva de Lus Filipe Barreto insere as Dcadas de Joo de Barros no mbito de um conjunto de estudos de carter historiogrfico dedicados ao tema dos descobrimentos e da expanso. Vale notar que esta temtica foi, oportunamente, considerada a historiografia portuguesa tout court, 369 o que denota ser um ponto fulcral da Histria Moderna, em torno do qual so numerosas as questes e a bibliografia, inesgotvel. Diante disso, um balano historiogrfico pormenorizado desse assunto torna-se tarefa que excede os propsitos deste estudo. 370 Sem esgotar este
367 Segundo Antnio Rosa Mendes a gerao de Quinhentos compreende, sobretudo, nomes como Andr de Resende, Dom Joo de Castro, Garcia de Orta, Pedro Nunes, Damio de Gis, Andr de Gouveia, o prprio Dom Joo III e o decano Joo de Barros (Cf. MENDES, Antnio Rosa. A vida cultural...). 368 Cf. BARRETO, Lus Filipe. A sia na cultura portuguesa (c. 1485 c. 1630). In: CUNHA, Mafalda Soares et al. Os construtores do Oriente Portugus. Porto: Edifcio da Alfndega: Comisso Nacional para a Comemorao dos Descobrimentos Portugueses: Cmara Municipal do Porto, 1998. p. 121. 369 Cf. ALBUQUERQUE, Lus de (dir.) e DOMINGUES, Francisco Contente (coord.). Dicionrio de Histria dos Descobrimentos Portugueses... s. v. Historiografia dos Descobrimentos. 370 S para citarmos, de modo sumrio, alguns estudos que enfocam a temtica em questo: BEAU, Albin Eduard. As relaes germnicas do humanismo de Damio de Gis. Coimbra: Impresso nas oficinas da Coimbra editora/Ida, 1941; BELL, Aubrey F.G. Um humanista portugus: Damio de Gis; seguido das cartas portuguesas de Damio de Gis. Lisboa: Imprio, 1942; MATOS, Luis de. Portugais en France au XVI sicle. Coimbra : Atlantida, 1952; MATOS, Luis de. Lexpansion portugaise dans la littrature latine de la Renaissance. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1991; HIRSCH, Elisabeth Feist. Damio de Gis. Trad. Lia Correia Raitt. Lisboa: Fundao Calouste Gulbenkian, 1987; MARTINS, Jos V. de Pina. Humanisme et Renaissance de l'Italie au Portugal, les deux regards de Janus. 2 vols, Lisboa: Fondation Calouste Gulbenkian, 1989; ALBUQUERQUE, Lus de [et al.]. O Confronto do olhar o encontro dos povos na poca das navegaes portuguesas, sculos XV e XVI: Portugal, frica, sia, Amrica. Lisboa: Caminho, 1991; AUBIN, Jean. Le latin et l'astrolabe: recherches sur le Portugal de la Renaissance, son expansion en Asie et les relations internationales. Paris : Centre Culturel Calouste Gulbenkian, 1996; CARVALHO, Joaquim Barradas de. Da histria-crnica histria-cincia. Lisboa: Livros Horizonte, 1972; CARVALHO, Joaquim Barradas de. A la recherche de la specificit de la Renaissance portugaise. Paris: Foundation Calouste Gulbenkian, 1983; DIAS, J. S. da Silva. Cames no Portugal de quinhentos. Amadora: Instituto de Cultura e Lngua Portuguesa, 1981; BARRETO, Lus Filipe. Descobrimentos e Renascimento: formas de ser e pensar nos sculos XV e XVI. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1982; BARRETO, Lus Filipe. Descobrimentos e a ordem do 122
conjunto de estudos, possvel recuperarmos aqui a perspectiva apresentada por um historiador como Antnio Jos Saraiva, quando ele nos faz notar o que h de moderno nas Dcadas da sia enquanto obra historiogrfica. Segundo ele, a sia nos apresenta uma viso de mundo cheia de admirao por civilizaes no europias, capaz de aceitar a idia da exiguidade da Europa e a relatividade da sua civilizao, e de considerar, enfim, o mundo de um ponto de vista mltiplo e segundo uma escala planetria. 371
Sob outra perspectiva, a historiadora Ana Paula Menino Avelar sugere que o papel das narrativas ligadas aos descobrimentos pode ser compreendido, por um lado, como uma resposta s necessidades dos portugueses de contarem as suas experincias, provarem os seus feitos, receberem as suas mercs, transmitirem o seu testemunho e, por outro lado, satisfazer s mltiplas curiosidades que em Portugal nasciam. 372 Para Avelar, a constncia da figura dos reis portugueses notavelmente Dom Joo II, Dom Manuel e Dom Joo III nas obras historiogrficas aponta para a funo estruturante desempenhada pelos monarcas nas conquistas e, em vista disso, as vises do oriente se alinhavam ao horizonte das monarquias portuguesas como projeto de poder. Particularmente sobre as Dcadas da sia, Ana Paula Avelar aponta para a presena de elementos didticos e pedaggicos como elementos fundantes do discurso do historiador quinhentista, sobretudo medida em que o passado se revela como um importante auxiliar ao governo coevo, assumindo um papel fundamental na instruo dos prncipes. Dessa maneira, a historiadora sugere que o exemplo histrico servia como modelo ao governo, e por isso, para Joo de Barros, o que deveria ser registrado
saber. Lisboa: Gradiva, 1989. Abrindo o foco, no se pode deixar de registrar algumas obras de referncia que se dedicam ao tema das Expanses Martimas e do Imprio Portugus: CORTESO, Jaime. Teoria geral dos descobrimentos portugueses. Lisboa: Seara Nova, 1940; CORTESO, Jaime. A Poltica de Sigilo nos Descobrimentos. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1996; BOXER Charles R. O imprio martimo portugus 1415-1825. Trad. Anna Olga de Barros Barreto. So Paulo: Companhia das Letras, 2002; SUBRAHMANYAM, Sanjay. O Imprio Asitico Portugus 1500-1700. Uma histria Poltica e Econmica. Trad. Paulo Jorge Sousa Pinto. Lisboa: Difel, 1995; RUSSEL-WOOD, A.J.R. Um mundo em movimento: os portugueses na frica, sia e Amrica (1415-1808). Trad. Vanda Anastcio. Lisboa: DIFEL, 1998; BETHENCOURT, Francisco e CHAUDHURI, Kirti (direo). Histria da expanso portuguesa. Lisboa: Crculo de Leitores, 1998; , BETHENCOURT Francisco e CURTO Diogo Ramada (edio). Portuguese oceanic expansion, 1400-1800. Cambridge; New York: Cambridge University Press, 2007; LABORINHO, Ana Paula, SEIXO, Maria Alzira e MEIRA, Maria Jos (org.). A vertigem do Oriente: modalidades discursivas no encontro de culturas. Lisboa-Macau: Edies Cosmos/Instituto Portugus do Oriente, 1999; MARCOCCI, Giuseppe. A conscincia de um Imprio. Portugal e o seu mundo (scs. XV-XVII). Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2012. 371 SARAIVA, Antnio Jos. Uma concepo planetria da Histria em Joo de Barros. In: Para a Histria da Cultura em Portugal. Volume 2. Lisboa: Publicaes Europa-Amrica, 1972. p. 355. 372 AVELAR, Ana Paula Menino. Vises do Oriente: formas de sentir no Portugal de Quinhentos. Lisboa: Edies Colibri, 2003. p. 9. 123
nas crnicas eram, principalmente, os acontecimentos que reiteravam o perfil justo e elevado das aes portuguesas. 373
Ainda que orientados por problemticas diferentes, ambos os estudos mencionados se debruam sobre aquilo que podemos compreender como o horizonte histrico contido na obra magna do humanista portugus. Diante disso, importa tecer algumas consideraes preliminares sobre a noo de horizonte histrico. Com efeito, importante recuperarmos a problemtica que orientou a elaborao do primeiro captulo desta tese: ali, nosso intuito foi compreender as convenes intelectuais que regeram a elaborao do texto de Manuel Severim de Faria sobre a vida de Joo de Barros. Por sua vez, aqui, nosso mtodo continua a ser este, ligado, em suma, compreenso do texto em sua historicidade. Em vista disso, parece-nos apropriada a noo de horizonte oportunamente sugerida por Hans-Georg Gadamer, para quem o horizonte o mbito de viso que abarca e encerra tudo o que visvel a partir de um determinado ponto. 374 sobretudo a partir desta grade de leitura que recuperamos a noo de horizonte como ferramenta de compreenso histrica, de fato, a noo de horizonte histrico est atrelada nossa pretenso de compreender o passado sob um ponto de vista distante de nossos padres intelectuais contemporneos. 375 Isto, sem deixar de reportarmo-nos observao de Roger Chartier, segundo a qual a histria, quando despida de toda tentao teleolgica, corre o risco de se tornar um inventrio de fatos desconexos. 376
Contudo, ao passo que o interesse de nosso estudo debatermos a questo do impacto que os descobrimentos martimos tiveram no horizonte intelectual da cultura letrada portuguesa no incio da poca Moderna por meio da investigao das categorias acionadas numa obra de referncia, tal como compreendemos ser as Dcadas da sia sem dvida a crnica portuguesa de maior flego sobre a expanso elaborada ao longo do sculo XVI , essencial que passemos ao seu estudo de modo pormenorizado para que possamos recuperar tais categorias sem perder de vista a problemtica do horizonte historico presente na sia.
373 Cf. Idem. Notavelmente o quarto captulo. 374 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e mtodo. Traos fundamentais de uma hermenutica filosfica. Trad. Flvio Paulo Meurer. Reviso da traduo nio Paulo Giachini. Petrpolis: Editora Vozes, 1997. p. 452. 375 Cf. GADAMER, Hans-Georg. Op. cit. 376 Cf. CHARTIER, Roger. Origens culturais... 124
Com efeito, a sequncia de publicaes da obra de maior flego de Joo de Barros tem incio com a primeira dcada, cujo ttulo aparece como sia de Joo de Barros, dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente, e foi editada em 1552. Dito isso, vale recuperar, mais uma vez, a Vida de Manuel Severim de Faria, obra que nos tem orientado a respeito do percurso dos escritos de nosso historiador quinhentista. Segundo o chantre:
No ano de 1552 imprimiu Joo de Barros a sua primeira Dcada da sia, e foi to bem recebida de todos geralmente, que ainda que havia Cronista no Reino, o Rei Dom Joo lhe encomendou logo a Crnica do Rei Dom Manuel seu pai, entendendo da perfeio, e gravidade de estilo, com que escrevera esta Dcada, que ningum poderia compor aquela Crnica com a devida eloquncia aos feitos que se nela tratavam como Joo de Barros, o qual acceitou a empresa, parecendo-lhe que tal ocupao lhe dessem o repouso necessrio; mas como estes servios muitas vezes pesem pouco diante dos Reis, no alcanou Joo de Barros a comodidade que esperava, e assim no se pode empregar de novo na composio desta Crnica, alm da histria da sia, que j tinha entre mos, cuja segunda Dcada imprimiu no ano seguinte, de 1553. 377
Ora, a composio da citada Crnica do Rei Dom Manuel ficou a cabo de Damio de Gis, tendo sido publicada em Lisboa entre os anos de 1566 e 1567 sob o ttulo Crnica do Felicssimo Rei Dom Manuel. Entretanto, Severim de Faria no deixa de atentar para a importncia das Dcadas como referncia obra de Damio de Gis, uma vez que segundo o chantre, Gis achou larga e ordenadamente escrita toda histria da ndia, que ao Rei Dom Manuel pertencia, de maneira que aos escritos do mesmo Joo de Barros podemos attribuir grande parte da sua Crnica. 378
Diante disso, retomando a trajetria da publicao das Dcadas, importa notar que a segunda dcada foi editada em 1553, ou seja, apenas um ano depois de publicar a primeira dcada, ao passo que a terceira dcada s conheceria a prensa dez anos aps a publicao da Segunda dcada da sia de Joo de Barros, em 1563, oportunidade na qual, de acordo com Severim de Faria, Barros tirou luz trs Dcadas da Asia, obra to perfeita, e louvada de todos, que se tem por uma das melhores que
377 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. pp. XXIX e XXX. 378 Idem. Op. cit. p. XXXI. 125
naquele gnero de escritura se compuseram. 379 Por fim, haveria uma quarta Dcada, para a qual Joo de Barros chegou a escrever o prlogo, mas que ficou inacabada. Esta quarta dcada foi reformada por Joo Batista Lavanha a pedido de Filipe II e publicada em 1615, tal como nos esclarece o prprio Joo Lavanha em sua nota aos que lerem esta Quarta Dcada:
Sabendo o Rei Nosso Senhor que deixara Joo de Barros imperfeita a Quarta Dcada da sua sia, querendo fazer merc a Portugal, ao nome de Joo de Barros e a mim, me mandou que a reformasse e imprimisse; para que, renovando-se a memria de um to celebre historiador com esta sua obra pstuma, por meio dela revivesse a fama dos feitos que os Portugueses com grande valor obraram naquela parte da sia, que com o tempo se ia escurecendo. Para este efeito me mandou entregar S.M. dez cadernos, que se acharam dos dez livros desta Dcada, rotos, faltos, escritos a pedaos de vria letra, e to imperfeitos, como trabalho de que era aquele o primeiro pensamento, e em que s se pusera a primeira mo. E assim faltavam folhas, havia outras em branco, sobejavam coisas muitas vezes repetidas, estavam outras fora de seu lugar, dava-se larga relao de algmas, que no pertenciam a esta Histria, muito breve notcia de outras importantes, e nenhuma de sucessos notveis, que autores em seus livros escreveram. Descuidos que no houvera nesta obra, se a Joo de Barros durara tanto a vida, que a pudera rever e acabar, como outras por ele prometidas, com que ficara o seu nome muito mais celebrado entre todas as naes, do que merecidamente hoje pelas trs Dcadas que deixou impressas. Pelo que com mais trabalho e maior estudo reformei esta Quarta Dcada, que se de novo a compusera: porque (imitando quanto me foi possvel o estilo de Joo de Barros) acrescentei, com aprovao de um ministro de S.M. a que se cometeu, captulos inteiros, grandes pedaos em outros (que tudo vai notado com comas), cortei, antepus e pospus alguns e clusulas inteiras, para melhor disposio do que neles se tratava, omiti o desnecessrio e repetido, e ilustrei com notas as margens para maior notcia das coisas escritas por Joo de Barros e das em que autores dele diferem. E porque nenhuma coisa d to perfeito conhecimento das descries das Provncias, como o desenho delas, das que nesta Quarta Dcada descreve Joo de Barros (em que excedeu a todos os gegrafos), ordenei trs tbuas da Ilha de Java, dos Reinos de Guzarate e Bengala, segundo a mente do Autor e as melhores informaes que destas regies pude alcanar. Muitas outras
379 Idem. ibidem. 126
coisas reformei de menos considerao, como foram alguns vocbulos, que se usavam em tempo de Joo de Barros, que o mesmo tempo tem desusado. Mas na Apologia que ele fez, em lugar de Prlogo, a qual achei entre outros papis inteira e escrita de sua mo (que o no eram os dez cadernos) no mudei nem uma coma, por conservar intacto o que este excelente varo e honra de Portugal deixou acabado; nem inovei os nomes da arte militar e fortificao, por continuar com os mesmos nesta Quarta Dcada, de que ele usou nas trs. As quais se se tornarem a imprimir, nelas se podero pr, como em lugar prprio, as notas e tbuas geogrficas, que nesta se no puseram, por no ser seu. 380
Em suma, possvel notar que a quarta dcada foi reformada por Joo Batista Lavanha, seu editor, o que significa que, efetivamente, ele de novo a compusera. Ou seja, ainda que o Prlogo composto por Barros tenha sido conservado intacto, toda a obra foi reescrita por Lavanha. Diante disso, se entre 1552 e 1563 Joo de Barros escreveu e esteve presente na edio das trs primeiras Dcadas, o mesmo no aconteceu quando a quarta dcada veio luz, em 1615, de modo que no possvel reconhec-la como uma obra composta por Joo de Barros. Principalmente em face da declarada interveo executada pelo editor. 381
Em linhas gerais, notvel que a elaborao das Dcadas incorporou a perspectiva humanista de Joo de Barros alinhada a uma sntese da expanso portuguesa. Nesse sentido, as Dcadas tratam das navegaes martimas e daquilo que pode ser entendido como a constituio do imprio portugus na sia, sobretudo medida que prope uma unidade de sentido global dos descobrimentos. 382 Tendo em vista a perspectiva do cronista em retratar os feitos portugueses no descobrimento e na conquista do oriente, possvel notar a dimenso cronolgica dessa narrativa de modo sumrio: a primeira dcada tem incio com as viagens de descobrimento na costa ocidental da frica ainda no sculo XV e culmina com a insero comercial e militar do
380 Cf. LAVANHA, Joo Batista. Aos que lerem esta Quarta Dcada. In: Da sia de Joo de Barros. Dos feitos, que os Portuguezes fizeram no descubrimento, e conquista dos mares, e terras do Oriente. Quarta Dcada. Parte Primeira. Lisboa: Na regia Officina Typografica, Anno MDCCLXXVII. Com Licena da Real Meza Censoria, e privilgio Real. Sem notao de pgina. 381 Agradeo aqui as observaes feitas pela professora Maria Lda Oliveira Alves da Silva na ocasio do Exame de Qualificao desta tese. 382 Sobre o histrico das Dcadas, cf. BOXER, Charles R. Joo de Barros, Portuguese humanist... e COELHO, Antnio Borges. Tudo mercadoria... Sobre o papel do humanismo a servio do imprio, vale conferir o recente livro de Diogo Ramada Curto (CURTO, Diogo Ramada. Cultura imperial e projetos coloniais...). 127
portugueses na sia j no sculo XVI. Por sua vez, a segunda dcada trabalha com uma temporalidade reduzida em relao primeira e dedica seis livros aos feitos de Afonso de Albuquerque, at sua morte. Por fim, a terceira dcada composta, ainda, dos feitos ligados administrao e consolidao do poder portugus na sia, entretanto, vrios so os personagens unidos pela trama narrativa dos livros, entre eles, Lopo Soares de Albergaria, Diogo Lopes de Sequeira, Duarte de Meneses, Vasco da Gama e Henrique de Meneses. Em sntese, Joo de Barros trata das origens do processo expancionista at o momento de maturao deste processo. Sem dvida, a obra de Barros nos remete a uma atmosfera poltica de conquistas fundamentadas, acima de tudo, no nome da cristandade, muito embora seja importante observar que, nos enunciados de Joo de Barros e na pica camoniana, aos cristos das crnicas heriquinas substituem-se os Portugueses. 383 Todavia, os portugueses julgavam-se credores da proteo divina, o que permitiu a Joo de Barros descrever todos os feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do oriente como um prolongamento da Reconquista. 384
Com efeito, ao passo que nossa investigao dedica-se circunscrio do horizonte intelectual da cultura letrada portuguesa no incio da poca Moderna por meio da investigao de categorias acionadas numa crnica tal como as Dcadas da sia, vale atentarmos, a princpio, para a considerao de que a crnica como gnero pertence simultaneamente historiografia e literatura, 385 o que faz dela um gnero compsito, hbrido. Efetivamente, esta considerao nosso primeiro passo em direo ao entendimento da proposta de Joo de Barros em suas Dcadas, bem como daquilo que oportunamente denominamos como horizonte histrico. Com isso, orientados por esta problemtica, vale atentarmos, mais uma vez, para os indcios que Manuel Severim de Faria nos legou sobre tal assunto. Em outro momento, assinalamos que dentre os historiadores da Antiguidade, Barros cultivou especial interesse por Salstio e Tito Lvio, dos quais imitou bem o juzo e estilo levantado, 386 notavelmente em sua universal histria de Portugal, 387
383 THOMAZ, Lus Filipe F. R. e ALVES, Jorge Santos. Da cruzada ao Quinto Imprio... p. 94. 384 THOMAZ, Lus Filipe F. R. e ALVES, Jorge Santos. Op. cit. p. 127. 385 Cf. REBELO, Lus de Sousa. Literatura, intelectuais e humanismo cvico. In: CURTO, Diogo Ramada (dir.) O tempo de Vasco da Gama. Lisboa: Comisso Nacional para as Comemoraes dos Descobrimentos Portugueses / Comissariado para o Pavilho de Portugal Expo98 / Difel, 1998. p. 121. 386 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p. VIII. 128
obra qual dedicou seu labor literrio. Contudo, do que fala, exatamente, o chantre de vora quando se refere histria composta pelo humanista? Como resposta, Severim de Faria evoca Marco Tlio Ccero para citar os trs gneros da retrica aristotlica, a fim de sustentar que a histria o sujeito mais capaz da oratria, 388 uma vez que esta faz uso do gnero Demonstrativo, contando vrios feitos, condenando os vcios, e louvando as virtudes; e o Deliberativo, introduzindo oraes, conselhos, e discursos, e muitas vezes do Judicial, 389 uma vez que este ltimo raramente se aparta do Deliberativo. 390
Ainda que seja importante no perdermos de vista os gneros retricos assinalados pelo chantre para avanarmos nossa compreenso do horizonte histrico presente nas Dcadas de Joo de Barros, vale problematizarmos a formulao de Severim de Faria segundo a qual a histria pode ser considerada como sujeito da oratria, uma vez que a apreenso do significado desta formulao est longe de ser evidente. Como, efetivamente, uma crnica historiogrfica impressa, tal como o caso das Dcadas, pde ser compreendida como sujeito da oratria uma arte que nos remete fala? Antes de esboarmos uma resposta a esta questo, importante lembrar que a Vida escrita pelo chantre deriva de um contexto de questionamento da identidade portuguesa, onde uma tradio destinada a impor sentidos ao passado ganha contornos evidentes. Ou seja, em larga medida, Manuel Severim de Faria inventou Joo de Barros. Entretanto, importante notar que nenhuma abordagem de um problema histrico possvel, fora do campo historiogrfico que o elaborou. 391
Com efeito, em vista de uma resposta plausvel questo elaborada, importa nos atermos, em princpio, ao que escreveu o humanista portugus no Prlogo de sua primeira dcada. No texto, dirigido ao rei Dom Joo III, Barros faz notar a necessidade que todas as coisas tem de se conservarem. Esta virtude generativa, tal como denomina o humanista, o esforo inerente de todas as coisas para se fazerem perptuas. Com efeito, na pena de Barros, tal virtude pode se apresentar de dois modos diferentes: no primeiro deles, somente obra a natureza e no indstria humana. Aqui, ainda que
387 FARIA, Manuel Severim de. Idem. 388 Idem. Ibidem. p. XXXI. 389 Ibidem. 390 Ibidem. 391 Cf. CHARTIER, Roger. Op. cit. 129
periguem em sua corrupo a natureza que se encarrega de renovar em novo ser, com que ficam vivas e conservadas em sua prpria espcie. 392
Entretanto, e as coisas que no so obras da natureza? E as que so, tal como escreveu nosso autor, feitos e atos humanos? Estes feitos e aes, alm de no possurem a virtude animada de gerar outras semelhantes a si, esto submetidos brevidade da vida do homem, e portanto, destinados a acabar juntamente com seus autores. 393 Contudo, se a conservao e perpetuao desses feitos se impe como uma necessidade, como superar esta limitao? Para Joo de Barros, foi no intuito de superar esse limite que os homens buscaram um divino artifcio, que representasse em futuro o que eles obravam em presente. Na pena do humanista, tal artifcio so as letras, que possuem funo equivalente fala, entretanto, ao passo que a fala tem nos ouvidos, seu natural objeto, e por sua efemeridade, no tem mais vida que o instante de sua pronunciao, os caracteres das letras tem na vista seu objeto receptivo e, por benefcio de perpetuidade, precede ao dom natural da fala, uma vez que: 394
[...] as letras, sendo uns caracteres mortos e no animados, contm em si um esprito de vida [...] elas so uns elementos que [...] fazem passar ao futuro com sua multiplicao de anos em anos por modo mais excelente do que faz a natureza. Pois vemos que esta natureza, para gerar alguma coisa, corrompe e altera os elementos de que composta, e as letras, sendo elementos de que se compem, e forma a significao das coisas, no corrompem as coisas, nem o entendimento [...], mas vo-se multiplicando na parte memorativa por uso de frequentao, to espiritual em hbito de perpetuidade, que por meio delas, no fim do mundo, to presentes sero queles que ento forem nessas pessoas feitos e ditos, como hoje por esta custdia literal, vivo o que fizeram e disseram os primeiros que foram no princpio dele. E porque o fruto destes atos humanos muito diferente do fruto natural que se produz da semente das coisas, por este natural fenecer no mesmo homem para cujo uso foram criadas, e o fruto das obras deles eterno
392 Cf. BARROS, Joo de. Ao muito poderoso, e cristianssimo prncipe El Rey Dom Joo nosso senhor, deste nome o terceiro de Portugal. Prologo de Joo de Barros em as primeiras quatro Dcadas da sua sia, dos feitos que os portugueses fizeram no descubrimento, e conquista dos mares, e terras do Oriente. In: Da Asia de Joo de Barros e de Diogo do Couto. Nova edio oferecida a Sua Magestade Dona Maria I, Rainha Fidelssima. Lisboa: Na regia Officina Typografica, Anno MDCCLXXVII. Com Licena da Real Meza Censoria, e privilgio Real. Sem notao de pgina. Todas as atualizaes ortogrficas referentes s Dcadas foram feitas por mim. 393 Cf. BARROS, Joo de. Ao muito poderoso, e cristianssimo prncipe El Rey Dom Joo.... 394 Cf. BARROS, Joo de. Idem. 130
pois procede de entendimento e vontade onde se fabricam e aceitam todas, que por serem partes espirituais as fazem eternas: fica aqui, a cada um de ns, uma natural e justa obrigao, que assim devemos ser diligentes e solcitos em guardar em futuro nossas obras, para com elas aproveitarmos em bom exemplo, como prontos e constantes na operao presente delas, para comum e temporal proveito de nossos naturais. 395
Diante disso podemos notar que, para Joo de Barros, os caracteres das letras equivalem fala em sua funo, mas a supera em eficincia e durao. De fato, em face da volatilidade caracterstica da fala que as letras facultam maior estabilidade e continuidade no tempo. Artifcio humano, as letras se destinam a capturar o fenmeno da efemeridade do relato oral. De fato, ao nos determos nas Dcadas, a noo de fala pode nos remeter tanto comunicao oral, quanto aos caracteres das letras. Caso emblemtico, da utilizao da noo de fala enquanto denotativo de uma prtica oral, o episdio relatado por Joo de Barros, em que o Senhor da Guin, Caramansa, dirige sua fala a Diogo de Azambuja, fidalgo portugus:
Caramansa, ainda que fosse homem brbaro, assim por sua natureza, como pela comunicao que tinha com a gente dos navios que vinham ao resgate, era de bom entendimento e tinha o juzo claro para receber qualquer coisa que estivesse em boa razo. E como quem desejava entender as coisas que lhe eram propostas, no somente esteve pronto a ouvir quando lhes o lngua resumia, mas ainda esguardava todas as continncias que Diogo de Azambuja fazia, e em todo o tempo que isto passou, assim ele como os seus, estiveram em um perptuo silncio, sem haver quem somente escarrasse, to obedientes e ensinados os trazia. E como homem que queria recorrer pela memria o que ouvira e consirar o que havia de responder, acabada a fala, pregou os olhos no cho por um pequeno espao, e de si disse: Que ele tinha em merc ao rei, seu senhor, a vontade que lhe mostrava, assim na salvao de sua alma como nas outras coisas de sua honra, e que certo ele lho merecia em o bom despacho dos seus navios que quele porto vinham resgatar, sendo muito bem tratados com toda f e verdade em seus comrcios e resgates. Em o qual tempo nunca em a gente deles vira coisa de que se pudesse tanto espantar como daquela sua vinda, porque nos navios passados via homens rotos e mal roupados, os quais se contentavam com qualquer coisa que lhes davam a troco de suas mercadorias e este era o fim de sua vinda quelas
395 BARROS, Joo de. Ibidem. Os grifos so meus. 131
partes, e todo seu requerimento era que os despachassem logo, como quem fazia mais fundamento da sua ptria que da habitao das terras alhias. Mas nele, capito, via outra coisa, que era muita gente, e muito mais ouro e jias do que havia naquelas partes onde ele nascia, e com isto novo requerimento de querer fazer casa de vivenda em terra; donde conjecturava duas coisas: a primeira, que ele no podia ser seno muito chegado parente do rei de Portugal; e a segunda, que um homem to principal como ele era, no podia vir seno a grandes coisas, e tais como eram as que ele dizia do Deus que fazia o dia e a noite, e de quem tantas coisas dissera, cujo servidor era o seu Rei. 396
No excerto transcrito, notria a referncia a uma situao mediada pelo discurso oral, onde, a princpio, Caramansa ouve a Diogo de Azambuja, para, em seguida, tomar a palavra. Entretanto, h uma srie de referncias laterais que, no entanto, se articulam e ganham sentido no interior do texto. o caso da relao existente entre a figura que Joo de Barros nos apresenta de Caramansa e o modo pelo qual este faz uso da fala: o Senhor da Guin, ainda que apresentado sob o signo da barbrie, possui bom entendimento e juzo claro, o que lhe permite, mediado por um lngua, primeiramente, ouvir, e em seguida, falar sobre a importncia da presena portuguesa, tanto para a salvao de sua alma, quanto para alcanar benefcios materias por meio do comrcio e da efetiva instalao lusa na regio. Ora, ainda que de modo sumrio, o caso de recuperarmos a ideia de que o uso da fala, nesse contexto, era considerado um recurso de extrema importncia para a vida em sociedade, uma vez que o domnio da linguagem era tido como elemento caracterstico da distino entre homens e animais. Com efeito, em nossa transcrio, ela quem faculta o consenso necessrio ingerncia portuguesa na regio. Embora neste momento nosso intuito seja, principalmente, circunscrever a indefinio existente entre a fala e a letra ao longo das Dcadas da sia, importante assinalarmos outro exemplo em que a noo de fala nos remete a um discurso oral. Contudo, desta vez, a comunicao no se estabelece de modo efetivo. Remeto, portanto, ao momento em que Joo de Barros narra a viagem na qual Bartolomeu Dias
396 BARROS, Joo de. Da Asia de Joo de Barros e de Diogo do Couto. Nova edio oferecida a Sua Magestade Dona Maria I, Rainha Fidelssima... Livro III, Captulo II, pp. 162-164. O grifo meu. A partir da prxima nota, as citaes das Dcadas da edio de 1777 privilegiaro as seguintes informaes: Dcada, Livro, Captulo e pgina. 132
descobriu o Cabo da Boa Esaperana. Nesta viagem, passados alguns dias depois de deixarem a Angra das Voltas, o historiador quinhentista anota que os viajantes:
[...] vieram ter a uma angra a que chamaram dos Vaqueiros, por as muitas vacas que viram andar na terra guardadas por seus pastores. E como no levavam lngua que os entendesse, no puderam haver fala deles, ante como gente espantada de tal novidade carrearam seu gado para dentro da terra, com que os nossos no puderam saber mais deles, que verem ser negros de cabelo revolto como os da Guin. 397
No fragmento apresentado, notvel as implicaes da inviabilidade de se efetivar a comunicao: no se concretizam relaes de qualquer gnero. A respeito da inviabilidade da fala, vale sublinharmos esta informao em conexo com outros elementos apresentados por Joo de Barros. Primeiramente, em relao presena de uma atividade econmica, no caso, o pastoreio. Esta, ainda que seja uma atividade mais complexa do que a coleta, por exemplo, no deixa de nos remeter a um modo de subsistncia mais natural do que uma atividade como o comrcio, visto que esta, mais complexa, se atrela vida de uma sociedade que demanda gneros para alm da subsistncia. Em suma, esta relao ganha especial significado em uma sociedade rigorosamente hierarquizada, tal como foi a sociedade no Antigo Regime. Todavia, oportunamente voltaremos a este assunto. Por ora pretendemos nos ater s duas diferentes conotaes que a ideia de fala ganha nas Dcadas de Joo de Barros, tanto em sua designao de uma prtica oral, quanto em sua designao de caracteres de letras. Isto, contudo, sem perdermos de vista a assertiva de Manuel Severim de Faria, segundo a qual podemos conceber a histria como sujeito da oratria. Com efeito, ao longo da narrativa do humanista portugus, possvel salientar diferentes momentos em que a noo de fala significa os caracteres de letras, notavelmente quando Joo de Barros se remete a uma obra ou a um autor, sejam eles antigos ou contemporneos. Desse modo, o humanista cita Ptolomeu, os Atos dos Apstolos, Marco Polo, Rui de Pina, entre outros. A ttulo de exemplo vale recuperarmos o captulo dedicado descrio da cidade de Jud, onde Barros encontra a oportunidade de discordar dos gegrafos coevos que, segundo ele, sugerem ser Jud a
397 Dcada I, Livro III, Captulo IV, p. 187. O grifo meu. 133
cidade que Ptolomeu denomina Badeo em sua Geografia. Contudo, para Joo de Barros:
A cidade Badeo, de que Ptolomeu fala, a nosso parecer, uma povoao que est mais abaixo em altura de vinte graus, em que ele situa Badeo, ao qual lugar chamam os mouros Xerefm, onde h muita cpia de gua, e ainda hoje aparecem duas torres antigas da grande povoao que ali foi. E logo mais adiante est outra cidade chamada Confut, coisa antiqussima, e em que aparecem letreiros que ningum sabe ler, e ora muito clebre por o serto dela comear dali por diante a ser muito povoado de lugares, o que a terra atrs no tem. 398
Assim, para Joo de Barros, a fala de Ptolomeu, preservada no tempo por meio das letras em sua Geografia apresentada como testemunho a ser referendado, ou no, a partir da experincia portuguesa na regio. Nessa perspectiva, possvel verificar caso semelhante na descrio do Reino do Sio, povo com o qual, segundo nosso humanista, os portugueses mantinham boas relaes. Ali, a descrio dos gueos, povo inimigo do rei do Sio, reverbera a fala de Marco Polo:
[...] por serem homens to feros e cruis, que comem carne humana; e, segundo o uso deles e lugar de sua habitao, parece serem aqueles povos que Marco Polo diz no livro que escreveu de sua peregrinao, habitarem um reino, a que ele chama Cangigui. Porque estes guus, a que ele no d nome, como ao reino, geralmente se pintam e ferram por todo corpo ao modo que fazem estes de que ele fala, e vemos os mouros de Berberia ferrados, coisa que em todas aquelas regies no sabemos que outra gente o faa. E como habitam em altas e speras serranias, onde os ningum pode entrar, descem daqueles lugares fragosos s terras chs dos laus, e fazem nelas grande estrago. E tanto que, se no fosse pela potncia deste Rei de Sio, que com grande nmero de gente a cavalo e de p e elefantes de guerra vai contra eles, j os laus foram destrudos e as mesmas terras de Sio tomadas por eles. 399
Em ambos os excertos nos quais a noo de fala nos remete aos caracteres das letras, seu intuito o de corporificar uma autoridade que se faz presente por meio do
398 Dcada III, Livro I, Captulo III, pp. 23-24. O grifo meu. 399 Dcada III, Livro II, Captulo V, p. 159-160. O grifo meu. 134
texto de Joo de Barros. Com efeito, tal procedimento denota a preocupao do humanista em cotejar as informaes, notavelmente em face de seu presumvel compromisso com a factualidade de sua narrao. Enfim, uma tcnica por meio da qual o humanista imputa fala a herana de uma experincia, um fato experimentado. Efetivamente, a efemeridade da experincia, em si, que demanda um recurso tcnico as letras que permita sua continuidade no tempo. Contudo, no possvel levar em considerao uma experincia qualquer: o importante que ela reverbere o passado e produza sentido no mbito da ao contempornea dos portugueses. Da produo de sentido entre seus leitores coevos, interessa observarmos a recepo de sua Terceira Dcada pelo Senhor de Ragusa, a partir de uma carta do prprio humanista, onde ele afirma: E verdadeiramente em algum modo eu posso chamar esta minha histria, trabalho bem aventurado, pois mereo ter louvor de pessoa de tal qualidade e dignidade. 400 De todo modo, no podemos perder de vista a existncia de um procedimento seletivo prvio dessa herana, uma vez que deve servir de lastro na ordenao da novidade da experincia vivida. Por sua vez, no que tange faculdade da fala nos remeter a uma prtica oral, fundamental consider-la, tambm, no mbito desse procedimento seletivo. Contudo, diferentemente do lastro direto com uma herana intelectual, seu registro colabora na criao de um fato, uma vez que sua materializao por meio das letras endereada s geraes futuras. Evidentemente, tal fato s pode existir no mbito de um repertrio de informaes que lhe daro suporte e sentido, de modo que fato e interpretao se constituem simultaneamente. Enfim, o que se pode notar, por exemplo, no caso da comunicao estabelecida com o Senhor da Guin, ocasio em que a presena portuguesa naturalizada no futuro e, desse modo, torna-se um fato em si. No caso da Angra dos Vaqueiros, a inviabilidade da comunicao institui um fatdico hiato que, todavia, denota um espao em potencial a ser preenchido. Com efeito, ao passo que exploramos a estreita relao que Joo de Barros estabelece entre a fala e as letras, fica mais claro compreendermos a assertiva de Manuel Severim de Faria, segundo a qual a histria um sujeito da oratria.
400 BARROS, Joo de. Carta de Joo de Barros para o Senhor de Ragusa. In: S, A. Moreira de. Humanistas portugueses em Itlia. Subsdios para o estudo de Frei Gomes de Lisboa, dos dois Luses Teixeiras, de Joo de Barros e de Henrique Caiado. Lisboa: Imprensa nacional Casa da Moeda, 1983. p. 135. 135
Oportunamente, Paul Zumthor j apontou para a histrica convergncia entre os modos de comunicao oral e as letras impressas. De acordo com Zumthor:
Mais que uma ruptura, a passagem do vocal para o escrito manifesta uma convergncia entre os modos de comunicao assim confrontados. A dicotomia voz-escritura est cheia de tenses, oposies conflitivas e, com o recuo do tempo, com demasiada frequncia se lhes apresenta aos medievalistas como contraditria. 401
Se, como sugere Paul Zumthor, a passagem do oral para o escrito pode ser considerada, antes como uma convergncia do que, propriamente, como uma ruptura, porque, ao longo da Idade Mdia, foi estreita a relao entre a fala e as letras, de modo que, se nos ativermos ao caso de Joo de Barros, por exemplo, tal relao pode ser compreendida sob um aspecto, ainda, medievalizante. Por sua vez, Paul Ricoeur tambm assinala a relao existente entre a fala e a escrita. A este respeito pergunta-se o filsofo: O que ocorre com o discurso quando ele passa da fala escrita? Em resposta, sugere que primeira vista, a escrita parece introduzir apenas um fator puramente exterior e material: a fixao, que coloca o evento do discurso ao abrigo da destruio. 402 Contudo, adverte-nos:
Na realidade, a fixao no passa da aparncia externa de um problema singularmente mais importante concernindo a todas as propriedades do discurso que enumeramos anteriormente. Em primeiro lugar, a escrita torna o texto autnomo relativamente inteno do autor. O que o texto significa, no coincide mais com aquilo que o autor quis dizer. Significao verbal, vale dizer, textual, e significao mental, ou seja, psicolgica, so doravante destinos diferentes. 403
Em suas Dcadas Joo de Barros nos apresenta uma relao entre a fala e as letras que nos permite discordar da advertncia de Paul Ricoeur ainda que, vale notar, evidente a multiplicidade de apropriaes intelectuais possveis de um texto escrito.
401 Cf. ZUMTHOR, Paul. La letra y la voz. De la literatura medieval. Trad. Julin Presa. Madrid: Ediciones Ctedra, 1989. p. 136. 402 RICOEUR, Paul. Interpretao e ideologias. Trad. Hilton Japiassu. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves Editora S. A., 1990. p. 53. 403 RICOEUR, Paul. Op. cit. 136
Por outro lado, reiterando o que escreveu Zumthor, em Joo de Barros, a relao entre a fala e as letras pode ser considerada como um elemento caracterstico do perodo medieval. Com efeito, para o humanista portugus, enquanto a fala se esgota no prprio instante de seu enunciado, como efeito da natureza humana e sua incapacidade generativa, as letras so apresentadas como artifcio tcnico por meio do qual possvel ecoar, no futuro, os feitos e ditos mais notveis de seu presente. Sendo as letras uma tcnica, sua utilizao demanda um conjunto de procedimentos que autorizam sua operacionalizao. Tal como apontamos oportunamente, este conhecimento uma exigncia do homem de Corte. De fato, ao longo das Dcadas da sia, a qualidade de um homem se apresenta associada ao conhecimento das letras. Alm disso, nos lugares em que fossem desconhecidas, as letras deveriam ser divulgadas. Caso que podemos tomar como emblemtico, neste sentido, o da ocasio em que Dom Joo III montou uma armada em apoio construo de uma fortaleza no Rio Senegal. Da tripulao de muita e luzida gente, Barros atenta para um certo mestre lvaro, frade da Ordem de So Domingos e seu confessor, pessoa muito notvel em vida e letras, que foi frica para a conservao dos brbaros. 404 Digno de ateno, tambm, o notabilssimo fidalgo Afonso de Albuquerque, tido por homem de muitas graas e motes, que alm de competentssimo militar, Joo de Barros lhe confere estatuto de erudito conhecedor de latim, visto que falava e escrevia muito bem, ajudado de algumas letras latinas que tinha. 405 Por sua vez, Duarte de Resende tambm citado por suas qualidades de letrado. Resende, amigo e parente de Joo de Barros, no apenas foi mencionado nas Dcadas da sia, mas tambm foi tradutor das obras de Ccero em Portugal. 406 Alm disso, ganhou uma inscrio afetuosa do autor das Dcadas em sua Ropicapnefma. Nas Dcadas, Barros aproveita o ensejo para agradecer (e corrigir) o autor do Tratado de Navegao que foi utilizado como fonte por nosso humanista:
Fica aqui dizer uma coisa por honra de Duarte de Resende, a que quero acudir por razo de sangue e tambm das boas letras que tinha. Ele me dirigiu um Tratado sobre esta navegao de Castela, como quem teve na mo
404 Cf. Dcada I, Livro III, Captulo VIII, p. 222. 405 Cf. Dcada II, Livro X, Captulo VIII, p. 495. 406 Cf. REIS, Flvio Antnio Fernandes. Ccero em lingoage portuguesa quinhentista. Revista desassossego. [on line]. Junho de 2010, n. 3. pp. 1-9. In: http://www.fflch.usp.br/dlcv/revistas/desassossego/edicao/03/edicao.php Acessado em 21/092012. 137
uns apontamentos que o astrlogo Falerio tinha feitos antes de sua doidice, nos quais dava modo como se poderia verificar a distncia dos meridianos, a que vulgarmente os mareantes chamam altura de Leste-Oeste. Sobre os quais Ferno de Magalhes, em cujo poder eles ficaram, ante que passassem o estreito no porto de S. Julio, quis ter prtica; e foi assentado por todos os pilotos, que em nenhum modo se podia navegar por ali. Do qual regimento, que eram trinta captulos, Andrs de San Martim, como homem douto na astronomia, concede o quarto captulo, que era pelas conjunes e oposies da Lua com os outros planetas, por ser causa certa e fcil. E porque Duarte de Resende traz as formais palavras que Andrs de San Martim diz sobre esta matria, e tambm sobre um eclipse do Sol, que ali tomou, de que atrs falmos, e fala por termos astronmicos, ou foi do Tratado que me ele dirigiu que eu emprestei, ou que tambm ele em sua vida daria o trelado a outrm, donde quer que fosse, quiseram-se aproveitar dele em uma escritura desta navegao do Magalhes. 407
Com efeito, quando no houvesse nenhum qualificativo social de maior substncia, ou seja, no fosse de origem nobre, o conhecimento das letras tambm seria indcio de virtude, tal como podemos observar no caso de Tom Pires, que embora no fosse homem de tanta qualidade, por ser boticrio e servir na ndia de escolher as drogas de botica que haviam de vir para este reino, 408 foi designado para compor a embaixada portuguesa na China por Ferno Peres, pois, para aquele negcio era o mais hbil e apto que podia ser; porque, alm de ter pessoa e natural descrio com letras, segundo sua facultade, e largo de condio e aprazvel em negociar, era muito curioso de inquerir e tinha um esprito vivo para tudo. 409
Enfim, ainda no que tange s letras, h que se diferenciar dois tipos: as sagradas e as humanas. Em todos os casos mencionados, nosso autor tratou, fundamentalmente, das letras humanas. Por sua vez, a respeito das letras sagradas, preciso notar que se deveria am-las e vener-las com devoo, pois acima de tudo, elas haveriam de estar presentes onde fossem desconhecidas. Caso paradigmtico neste sentido, o da presena lusa no Congo, onde a cristianizao foi acompanhada da formao de uma elite que dominasse amplamente os preceitos do cristianismo por meio do acesso s
407 Dcada III, Livro V, Captulo X, pp. 659-660. A correo est na pgina 661: Quisemos apontar este erro, porque pode a tal escritura dele ir mo de pessoas doutas nesta faculdade, no queria que dessem a culpa a Duarte de Rezende, seno a quem mal usou dos seus termos.... 408 Dcada III, Livro II, Captulo VIII, p. 217. 409 Idem. 138
letras. Segundo Joo de Barros, foi esta a grande obra de Dom Afonso filho do rei Dom Joo do Congo:
Mandou tambm a este reino de Portugal filhos, netos, sobrinhos e alguns moos nobres aprender letras, no somente as nossas, mas as latinas e sagradas, de maneira que de sua linhagem houve j naquele seu reino dois bispos, que, exercitando seu ofcio, serviram a Deus e deram contentamento aos Reis deste reino de Portugal, a cujas despesas todas estas obras eram feitas. 410
Efetivamente, o conhecimento das letras deveria ser adquirido por meio do estudo e da doutrina. Com efeito, alcanar tal conhecimento era uma virtude, compreendida fundamentalmente em oposio s virtudes naturais. Desse modo, as letras so, de fato, entendidas como indcio de polcia, tal como podemos observar na descrio que Joo de Barros faz da costa oriental da frica, onde nosso humanista ope os povos Pagelungos, sditos ao nosso rei de Congo, 411 aos rabes e persas:
E como esta de que tratamos grande e os brbaros que nela habitam so muitos e diferentes em lngua, no h entre eles nome prprio dela. Somente os rabes e prsas, como gente que tem polcia de letras e so vezinhos dela, em suas escrituras lhe chamam Zanguebar, e aos moradores dela zangui; e per outro nome comum tambm chamam cafres, que quere dizer gente sem lei, nome que eles do a todo gentio idlatra, o qual nome de cafres j acerca de ns recebido pelos muitos escravos que temos desta gente. 412
A princpio, digno de nota a relao de subordinao que Joo de Barros estabelece entre letras e polcia, de modo que interessante observarmos o quanto a acepo da noo de polcia nos remete dimenso da moralidade, enfim, dos usos e costumes. Com efeito, possvel evidenciarmos com maior rigor a dependncia que as letras possuem da polcia quando sublinhamos a oposio apresentada entre os diversos brbaros que habitam as terras sem jamais definirem-lhe um nome prprio, e os rabes e persas, que denominam a terra como Zanguebar em suas escrituras. Por sua
410 Dcada I, Livro III, Captulo X, p. 244. O grifo meu. 411 Dcada I, Livro VIII, Captulo IV, p. 205. 412 Idem. pp. 205-206. O grifo meu. 139
vez, a dificuldade que os brbaros encontram em definir um consenso a respeito do nome do lugar em que habitam, no deixa de nos remeter degenerao da sociabilidade que se seguiu ao episdio da Torre de Babel, episdio ao qual tradicionalmente se atribui a responsabilidade pela diversidade de lnguas existentes no mundo. Diante disso, notvel a relao de proximidade que se estabelece entre a barabrie e os desdobramentos do emblemtico episdio bblico, visto que este sugere ser a discordncia e confuso em que vivem punio divina. Em linhas gerais, a noo de polcia que o humanista portugus nos apresenta manteria sua essncia, ao menos, por cerca de mais duzentos anos. possvel notar isso quando recorrermos definio desse verbete no Vocabulrio Portugus e Latino de Rafael Bluteau. De acordo com Bluteau, polcia a boa ordem que se observa, e as leis que a prudncia estabeleceu para a sociedade humana nas Cidades, Repblicas, etc. Divide-se em Polcia civl, e militar. Em sntese, observa Bluteau, enquanto pela primeira se governam os cidados, a segunda governa os soldados. De modo que nem uma nem outra polcia se acha nos povos, a que chamamos Brbaros. A polcia deveria reger, portanto, o trato, a conservao, os costumes, enfim, a boa graa nas aes e gestos do corpo, 413 o que implica um amplo domnio da natureza. Em suma, o amplo domnio da natureza se apresenta como condio fundamental para o conhecimento das letras. Por ser um instrumento de diferenciao social e, simultaneamente, um qualificativo de polcia, sua ausncia seria percebida em termos defectivos. sob esta perspectiva que devemos compreender a descrio das ilhas Maluco apresentada por Joo de Barros:
Da antiguidade da povoao daquelas ilhas, como gente bestial sem letras, e das coisas passadas no tem mais notcia, que trazerem algumas em cantares maneira de rimances, que ns usamos, por memria de algum feito, entre eles no h coisa certa; e porm todos confessam serem estrangeiros, e no prprios indgenas e naturais da terra. 414
Se por um lado a bestialidade se apresenta associada ausncia das letras, por outro, qualquer sinal que evidencie a presena do cristianismo, ainda que residual,
413 BLUTEAU, Raphael. Op. cit. s. v. Polcia. Disponvel em http://www.brasiliana.usp.br/pt- br/dicionario/1/pol%C3%ADcia. Acesso em 24/09/2012. 414 Dcada III, Livro V, Captulo V, p. 577. O grifo meu. 140
estar acompanhado de algum tipo de sinal grfico a indicar algum grau de letramento, mesmo que se encontre perdido entre gentio idlatra. Paralelamente a isso, vlida a hiptese de que o resduo de um cristianismo prstino servir para justificar a reinveno de uma ordem social doravante centrada na f e na religio crist. o que se pode sugerir, por exemplo, na descrio que Joo de Barros faz de Meliapor, lugar pelo qual teria passado So Tom e onde estaria enterrado o Apstolo missionrio:
E posto que o gentio desta terra seja idlatra, sempre esta relquia de casa que o santo fez foi entre eles muito venerada e principalmente de alguns que confessavam o nome cristo e tinham nela patriarca armnio. E o que ora mais acrescentou devoo na casa, foi uma pedra que os nossos acharam em umas runas que parecia em outro tempo ser ermida, nos alicerces da qual, querendo eles, por sua devoo, fundar outra, acharam uma pedra quadrada limpa e bem lavrada; e na face que jazia pela a terra tinha uma cruz lavrada de vulto, da feio das que trazem os comendadores da Ordem de Avis, e em cima de uma ponta lavrada uma ave com as asas abertas, ao modo que o Esprito Santo, em figura de pomba, desce sobre os Apstolos, como se costuma pintar. Por o corpo da qual cruz e campo da pedra, estavam muitas manchas e gotas de sangue, to fresco que parecia haver pouco tempo que fora ali vertido; e por derredor, por orla, tinha umas letras de caracteres estranhos que os da terra no souberam ler. A qual pedra os nossos levaram dali com procisso e solenidade, e foram por na prpria igreja que So Tom por sua mo fez. E segundo o que a fama tem entre os naturais, dizem que sobre esta pedra padeceu o bem-aventurado Apstolo, estando aqui fazendo orao; outros dizem que era discpulo seu. 415
Com efeito, o domnio das letras confere habilidade necessria ao exerccio da escrita. Seja para sua elaborao, ou seja para sua correo, tal como o humanista faz notar em seu registro a respeito da Crnica do rei Dom Afonso Henriques, de autoria de Duarte Galvo. Aqui, nosso historiador quinhentista chama a ateno para a erudio do cronista, uma vez que:
[...] douto nas letras de Humanidade; comps, por mandado do Rei Dom Manuel a Crnica do Rei Dom Afonso Henriques, primeiro Rei deste reino de Portugal, ou (por melhor dizer) apurou a linguagem antiga, em que
415 Dcada I, Livro IX, Captulo I, p. 304-305. O grifo meu. 141
estava escrita; e quem quer que foi o primeiro compositor dela, dar conta a Deus de macular a fama de to ilustres duas pessoas, como foram a Rainha Dom Tareija e o Rei Dom Afonso Henriques, seu filho, nas diferenas que conta haver entre eles. 416
Tendo em vista que o estudo e a doutrina so considerados os pontos cardeais para a aquisio da virtude necessria ao domnio das letras humanas, importante atentarmos para o fato de que o trabalho de orden-las e apur-las implica um compromisso moral com a escrita. Diante disso, ao reconhecermos que a fala era compreendida como um meio limitado de repercutir os feitos notveis investida, portanto, da autoridade de uma situao experimentada concretamente e, por sua vez, as letras so o artifcio que materializa estes feitos no tempo, necessrio reconhecermos que sua correta ordenao o fundamento e o rudimento de uma operao que encontra, no fenmeno da escrita, seu desdobramento mais apurado. Neste sentido, a escrita, longe de ser compreendida como fantasiosa, a prpria garantia de fidelidade, sobretudo em face de uma relao de continuidade estabelecida com o fato. Compreensvel, portanto, que a difamao por meio da escrita seja uma perversidade cujos autores havero de dar conta a Deus. Da, portanto, a ressalva de Joo de Barros a respeito da dignidade e credibilidade de Duarte Galvo, pois dele nosso humanista tomou parte das notcias dos trabalhos que os naturais deste reino passaram naquela conquista de sia, notavelmente por meio de seu maior legado, as letras, pois por elas, quanto sua possibilidade alcanou, deu nome a muitos. 417
No diferente o caso de Gomes Eanes de Zurara. Segundo Joo de Barros, Zurara, alm de ter sido Guarda-Conservador da Livraria Real e Guarda-mor da Torre do Tombo, foi cronista diligente, uma vez que o humanista nos garante ter merecido o nome do ofcio que teve, pois, se alguma coisa h bem escrita das Crnicas deste reino, da sua mo. 418
Com efeito, Joo de Barros reconhece sua dvida em relao ao cronista, sem perder de vista, contudo, a importante contribuio de outro personagem, o feitor Afonso Cerveira, funcionrio que legou algumas cartas escritas em Benin, das quais Barros fez uso. Desse modo o humanista nos revela parte das fontes por ele pesquisadas
416 Dcada III, Livro I, Captulo IV, pp. 51-52. O grifo meu. 417 Cf. Idem, ibidem. 418 Dcada I, Livro II, Captulo I, p. 137. 142
para elaborao de sua obra. Estas fontes, articuladas ao material obtido por meio de suas perscrutaes das lembranas no Tombo, permite-lhe orden-las de modo a estabelecer rigorosa cronologia dos acontecimentos poca do Rei Dom Afonso V, O Africano, bem como recuperar os feitos de alguns notveis portugueses. Nesse sentido, escreveu o autor da Dcadas:
E posto que tudo ou a maior parte do que at aqui escrevemos seja tirado da escritura de Gomes Eanes, e assim deste Afonso Cerveira, no foi pequeno o trabalho que tivemos em ajuntar coisas derramadas, e por papis rotos e fora da ordem que ele, Gomes Eanes, levou no processo deste descobrimento. As coisas do tempo do Rei Dom Afonso, como ele prometeu, no as achamos: parece que teria a vontade e no o tempo; ou se as escreveu eram perdidas, como outras escrituras que o tempo consumiu. Portanto o que escrevemos do tempo do Rei Dom Afonso no so mais que algumas lembranas que achamos no Tombo e nos livros da sua fazenda, sem aquela ordem de anos que seguimos atrs, somente uns fragmentos deste descobrimento. Nas quais lembranas, achamos que no ano de quatrocentos quarenta e nove, deu o Rei licena ao Infante Dom Henrique que pudesse mandar povoar as sete ilhas dos Aores, as quais j naquele tempo eram descobertas e nelas lanado algum gado, por mandado do mesmo Infante, por um Gonalo Velho, comendador de Almourol, junto da Vila de Tancos. E no ano de quatrocentos cinquenta e sete, fez o Rei merc ao Infante Dom Fernando, seu irmo, de todas as ilhas que at ento eram descobertas, com jurisdio de cvel e crime e com certas limitaes. E no de quatrocentos e sessenta, fez o Infante Dom Henrique doao ao Infante Dom Fernando, seu sobrinho e filho adotivo, destas duas ilhas: Jesus e Graciosa, reservando somente para si a espiritualidade que era da Ordem de Cristo que ele governava, a qual doao confirmou o Rei em Lisboa, a dois de Setembro do mesmo ano. E em o seguinte de quatrocentos e sessenta e um, porque s ilhas de Arguim concorria resgate de ouro e negros de Guin, mandou o Rei fazer o castelo de Arguim, que hoje est em p, por Soeiro Mendes, fidalgo de sua Casa, morador em vora, ao qual deu a alcaidaria-mor, para si e para seus filhos. 419
Ora, importante notarmos que a preocupao de Joo de Barros em citar sua atividade de pesquisa junto ao Tombo encontra correspondncia na meno das virtudes
419 Idem. pp. 138-139. 143
dos autores cuja escrita faz uso. Em suma, tanto o Tombo quanto os autores assinalados se configuram como testemunhos de uma elevada experincia que deve ser compartilhada pelas as geraes posteriores. Uma vez que tanto um quanto outro possuem a funo de convencer a posteridade da relevncia dos feitos transmitidos por meio da escrita, fica evidente seu carter persuasivo. Tendo em vista que, por ora, nossa proposio compreender o horizonte histrico presente nas Dcadas, podemos evidenciar, neste momento, que o procedimento da escrita de Joo de Barros se inscreve no mbito de uma tcnica persuasiva. Dito isso, vale recuperarmos a definio de que a retrica um mtodo de persuaso. De modo sumrio, ao longo deste estudo, j apontamos para o lugar que o conhecimento da retria ocupou no pensamento renascentista, sobretudo no mbito da cultura humanista, ou os studia humanitatis que, a esta altura de nosso trabalho e de acordo com a utensilagem mental de Joo de Barros, pode ser compreendido como o doutrinamento em letras de humanidade. Com efeito, entre 1350 e 1600 a retrica alcanou tamanha difuso no continente europeu, que praticamente nehuma regio escapou de sua influncia. Por sua vez, Ccero foi o escritor latino mais importante do Renscimento, sendo que sua obra retrica Da inveno foi, efetivamente, a mais lida neste contexto. Todavia, evidente que a retrica renascentista se diferenciava da retrica clssica sob vrios aspectos, sobretudo em face do legado cultural da Idade Mdia. 420 Contudo, mesmo diante da experincia histrica medieval, os grandes tratados retricos da Antiguidade continuaram a ser fontes importantes para as artes narrativas, tal como pudemos notar na argumentao de Manuel Severim de Faria: como vimos, ao defender a eficincia da histria como sujeito da oratria, o chantre argumenta que isso se d por encontrarmos nela os gneros retricos propostos por Aristteles. Segundo Felipe Teixeira Charbel, os gneros retricos operacionalizados ao longo do incio da poca Moderna foram definidos no Livro II do dilogo ciceroniano Do orador. 421 De fato, ainda que a doutrina retrica de Ccero seja diferente da doutrina retrica de Aristteles sob alguns aspectos, inegvel que a Retrica aristotlica fixa os gneros narrativos apontados por Severim de Faria e, por isso, acreditamos que seja importante nos voltarmos para o que escreveu o Estagirita a esse respeito. Com efeito,
420 Cf. ARTAZA, Elena. El ars narrandi em el siglo XVI espaol. Teoria y pratica. Bilbao: Universidad de Deusto, 1989. 421 Cf. TEIXEIRA, Felipe Charbel. Op. cit. p. 21. 144
se, como assinalou o chantre, a histria faz uso do gnero Demonstrativo ou epidtico tendo em vista contar os vrios feitos, condenando os vcios, e louvando as virtudes, notrio que seu papel est em elogiar as virtudes e censurar os vcios. Assim, tal como para Aristteles, a virtude digna de louvor, tal qual o belo, porque a prpria virtude, em si, bela. Ainda aqui, vale notar que fundamentalmente no campo dos feitos ou seja, das aes onde se pode encontrar a superioridade de virtude que engrandece a honra. Assim, elogio e censura devem recair nas aes, nos feitos, nos usos, pois, enfim, efetivamente o comportamento que pode ser belo ou vergonhoso. Nesse sentido, podem ser belos no apenas os feitos para a aquisio de honra, mas tambm os usos e os costumes dos povos, pois todos devem conduzir felicidade. 422
Enquanto o gnero demonstrativo se atm aos feitos vale notar, numa temporalidade fundamentalmente coeva, ainda que nele seja possvel evocar o passado e conjecturar sobre o futuro , para Aristteles, o Deliberativo um gnero fundamentalmente voltado ao aconselhamento, sendo utilizado tanto para convecer, quanto para dissuadir. Em sua Retrica, o Estagirita sustenta que o gnero deliberativo opera numa temporalidade futura, visto que se ocupa, unicamente, das coisas que podem vir a acontecer, o que faz com que a compreenso da qualidade das coisas que se aconselham saber se so boas ou ms seja um procedimento fundamental. 423
Por fim, Severim de Faria nos apresenta o gnero Judicial, e sublinha sua articulao com o deliberativo. Com efeito, em sua Retrica, Aristteles nos esclarece que o gnero judicial composto, sempre, em referncia aos feitos do passado, uma vez que neles esto fundamentadas tanto a acusao quanto a defesa. Ao observar que a finalidade de um processo judicial ponderar sobre o justo e o injusto, conclui que este gnero responsvel pela deliberao daquilo que mais conveniente. 424
, enfim, sob esta perspectiva, que podemos compreender o que escreveu Manuel Severim de Faria sobre as Dcadas de Joo de Barros, quando o chantre afirma:
Em todos estes gneros esta histria de Joo de Barros admirvel; porque alm do sujeito que trata ser nobilssimo pela variedade, grandeza, e novidade dos casos admirveis, guardou, com suma inteireza, todas as leis da
422 Cf. ARISTTELES. Retrica. Prefcio e introduo de Manuel Alexandre Jnior. Traduo e notas de Manuel Alexandre Jnior, Paulo Farmhouse Alberto e Abel do Nascimento pena. Imprensa Nacional Casa da Moeda: Lisboa, 2005. Livro I. 423 Cf. ARISTTELES. Op. cit. Livro I. 424 Cf. Idem. Ibidem. 145
Histria, assim as essenciais que se nela requerem, que so verdade, clareza, e juzo, como as outras partes a que chamam integrantes. 425
Assim, ao assinalar as qualidades da histria de Joo de Barros, Severim de Faria reconhece que algumas delas lhe so inerentes, tais como variedade, grandeza e novidade. Entretanto, no deixa de anotar que outras qualidades lhe so extrnsecas e pertencem quele que a escreveu. Ora, oportunamente j nos debruamos sobre o fato de que a estabilizao da figura de Joo de Barros obedeceu a um critrio orientado pela necessidade de dar credibilidade, simultaneamente, ao autor e seus escritos. Desse modo, o potencial persuasivo se encontra tanto nos testemunhos, documentos, enfim, nas fontes arroladas, quanto no valor moral daquele que compe toda escritura. , de fato, nesse manifesto intento de persuadir o leitor que reside o limite da advertncia de Paul Ricoeur, visto que, se possvel mapear os elementos persuasivos presentes no texto, a autonomia que o filsofo lhe confere apenas relativa.
3.2. Da escritura memria
Na trajetria aqui estabelecida para compreendermos aquilo que denominamos como o horizonte historico nas Dcadas da sia devemos percorrer algumas categorias que, muitas vezes, se confundem. Contudo, nosso intuito recuperarmos a operacionalidade de algumas dessas categorias no mbito de seu contexto, para efetivamente alcanarmos nosso objetivo. Foi em vista disso que procuramos atentar para a existncia de uma estreita relao entre a credibilidade da escrita e o carter moral daquele que escreve. Com efeito, a partir disso, vale atentarmos, agora, para o fato de que a escrita, seja ela em arbico, em lngua portuguesa ou em linguagem antiga, compe um legado denominado escritura, composto de cartas missivas, crnicas, lembranas ou tratados. Sem perder de vista que a escrita deveria servir para fixar mensagens orais a serem compartilhadas com um pblico especfico, o qual, oportunamente, pode estar situado em outra temporalidade, vale atentarmos para o fato de que, ao nos debruarmos
425 FARIA, Manuel Severim de. Op. cit. p. XXXII. 146
sobre as Dcadas, notamos que a noo de escritura pode denotar tanto a totalidade da escrita dispersa que h de ser reunida quanto a prpria disposio em conjuto de toda a escrita, ou seja, sua reunio j processada. Diante disso, no nos possvel defin-la, tal como o fez Paul Zumthor, a partir do suporte tcnico de sua grafia, 426 uma vez que na obra de Joo de Barros, o suporte tcnico nem sempre est em questo. Com efeito, se a noo de escritura pode denotar tanto a escrita dispersa, quanto a escrita j reunida, importante observarmos, tambm, a existncia de outras modalidades de escritura possveis. Neste sentido, notvel a presena da sagrada escritura enquanto correspondente das letras sagradas. Entretanto, a oposio entre sagrada escritura e escritura nem sempre se apresenta de modo irredutvel: nossa tendncia racionalista acaba reduzindo e enrijecendo as sutilezas de um universo mental em que o mgico e o maravilhoso ainda balizavam a compreenso do mundo muito embora seja evidente que o incio da poca Moderna assinale o momento histrico em que o homem europeu se tornaria crescentemente racionalista. Nesse sentido, vale notar que tal momento foi marcado por um processo que no esteve livre da tenso entre o racional e o maravilhoso, entre o pensamento laico e o religioso, entre o poder de Deus e o do Diabo, enfim, de um embate entre o Bem e o Mal. 427 E isto porque, poca, o plano religioso ocupava um lugar de destaque no mbito das mentalidades: nesta perspectiva que Laura de Mello e Souza chama nossa ateno para a tradio fundada por Joo de Barros que fornece uma explicao de cunho religioso para o descobrimento e a dominao 428 da colnia portuguesa na Amrica. principalmente sob esta perspectiva que as noes de sagrada escritura e escritura aparecem imbricadas, ainda que a diferena entre ambas seja evidente. Todavia, vale observar que em alguns casos, a noo de escritura pode nos remeter a fbulas ou, tambm, a documentos oficiais. Nesse sentido, notrio exemplo da multiplicidade caracterstica da noo de escritura a meno feita por Joo de Barros escritura da religio praticada pelo gentio da ndia, cuja concepo se entrelaa noo de fbula:
426 Cf. ZUMTHOR, Paul. Op. cit. 427 Cf. SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlntico: demonologia e colonizao, sculos XVI-XVIII. So Paulo: Companhia das Letras, 1993. p. 22. 428 SOUZA, Laura de Mello e. Op. cit. p. 31. 147
[...] aqui, para nosso intento, basta saber que a maior parte das coisas da escritura da sua religio, a criao do Mundo, antiguidade da povoao dele, a multiplicao dos homens e crnicas dos reis antiguos, tudo um modo de fbulas como tinham os gregos e latinos, e quase um Metamorfoses de transmutaes. E segundo o que desta sua escritura temos alcanado por alguns livros que nos foram interpretados, ao tempo que entramos na ndia havia seiscentos e doze anos que naquela terra, a que eles chamam Malabar, fora um rei chamado Saram Perimal, cujo estado era toda esta terra que ter por costa at oitenta lguas (como atrs dissemos). O qual rei foi to poderoso, que por memria do seu nome faziam a computao do tempo do reinado dele, que com nossa entrada leixaram, tomando a ela por era e ano de suas escrituras, de que j muitos usam. 429
Se, por um lado, no excerto transcrito, Joo de Barros nos faz notar que a escritura da religio dos indianos feita ao modo de fbulas, tal qual as Metamorfoses de Ovdio, por outro, em um segundo momento, assinala uma diferena fundamental entre suas Dcadas e as escrituras fabulosas. Em suma, o humanista portugus anota seu compromisso com a pureza da verdade e, diante disso, o imperativo de manter-se afastado das fbulas da gentilidade grega e romana, embora reconhea que estes, com grande engenho em sua escritura, fizeram uso de tal gnero para clebrar a empresa que cada um tomou. 430 J no Prlogo da primeira Dcada Joo de Barros esclarece a distino entre os seus escritos e as fbulas, quando se refere ao Imperador Clarimundo, onde o humanista tem o cuidado de apresent-lo como debuxo dos triunfos do reino portugus. Tal debuxo, anota Barros, no era alguma Batracomiomaquia ou a guerra das rs e dos ratos, como fez Homero por exercitar seu engenho antes que escrevesse a guerra dos Gregos e Troianos, mas sim, uma pintura metafrica de exrcitos e vitrias humanas, nesta figura racional do Imperador Clarimundo. 431 Com efeito, no mbito de um horizonte intelectual essencialmente aristotlico, uma obra de teor pardico e fabuloso, tal qual a Batracomiomaquia, era compreendido como um gnero literrio de menor valor. 432
429 Dcada I, Livro IX, Captulo III, pp. 323-324. O grifo meu. 430 Cf. Dcada I, Livro IV, Captulo XI, p. 360. 431 Cf. Dcada I, Prlogo, sem notao de pgina. 432 Cf. LOPES, Rodolfo Pais Nunes. Introduo. In: PSEUDO-HOMERO. Batracomiomaquia ou a guerra das rs e dos ratos. Introduo e traduo do Grego, Rodolfo Paes Nunes Lopes. Associao Portuguesa de Estudos Clssicos Universidade de Coimbra: Coimbra, 2008. pp. 15-41. 148
Sem sombra de dvida, a percepo do fabuloso nos remete a uma atmosfera intelectual onde este gnero possua uma aceitao parcial ao menos entre os letrados mais eruditos. A fbula apresentava-se associada s cosmogonias locais, como ferramenta ideolgica que servia para justificar situaes concretas, tal como a presena do islamismo nas ilhas Maluco:
E tanta a divindade que o estado real quis em toda parte do Mundo atribuir a si mesmo, que at nestas Ilhas Maluco, entre gente bestial, buscou fbulas de sua genitura e princpio por mostrar aos sditos que no vem de to vil compostura como os outros homens, na qual fbula a gente tem tanta f, que ainda hoje h lugares desta religio dos seus primeiros reis. 433
A fbula estaria, portanto, destinada a ocupar um espao de fico e no compunha um conhecimento til, 434 o que nos obriga a matizar a sedutora ideia de que a grande tripartio, aparentemente to simples e to imediata, entre a Observao, o Documento e a Fbula no existia no sculo XVI. 435 Por sua vez, no que tange sagrada escritura, ainda que seja perceptvel uma franca oposio em relao quilo que denominamos por escritura laica, ambas podem se confundir, diferentemente da relao que se estabelece com a fbula e o fabuloso. Evidente, nesse sentido, o episdio narrado por Joo de Barros a respeito das relaes que se estabelecem entre a Rainha de Sab e o Rei Salomo:
Segundo o que estes povos abassis tem por escritura, de que se gloriam, que, ouvindo a Rainha Sab daquela Etipia a fama do poder e sapincia de Salomo, Rei de Judeia, por se informar da verdade, mandou a Jerusalm um embaixador. E sendo por ele, depois de sua vinda, certa do que vira e ouvira, desejando em pessoa participar da sapincia dele, porm que idlatra fosse, partiu para Jerusalm com grande aparato de estado e riquezas, embarcando no Mar Roxo em um porto, onde se depois edificou uma cidade do seu nome Sab, em memria desta passagem. 436
433 Dcada III, Livro V, Captulo V, p. 580. O grifo meu. 434 Sobre a excluso das fbulas nos discursos polticos em Portugal no sculo XVII, cf. CURTO, Diogo Ramada. O discurso poltico em Portugal (1600-1650). Lisboa: Projecto Universidade Aberta, 1988. pp. 26-30. 435 FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas... p. 177. 436 Dcada III, Livro I, Captulo II, pp. 374-375. O grifo meu. 149
Ora, enquanto a noo de escritura denota uma reunio de parte significava da escrita dos abassis a respeito da origem prstina de uma relao tida como fundante da dinastia dos reis da Etipia fato que pode ser compreendido sob uma perspectiva laicizante, visto que pertence vida poltica etope vale notar que, por outro lado, a narrativa de Joo de Barros reverbera o episdio do Livro dos Reis em que a rainha de Sab decide visitar Salomo:
A rainha de Sab ouviu falar da fama de Salomo, por ordem do Nome de Iahweh, e veio p-lo prova por meio de enigmas. Chegou a Jerusalm com numerosa comitiva, com camelos carregados de aromas, grande quantidade de ouro e de pedras preciosas. 437
Diante disso, podemos notar que a diferena entre letras sagradas e letras humanas bem definida em face da formao do letrado, seja em uma especialidade, seja em outra, contudo, as diferentes modalidades de escritura podem se confundir. Todavia, muito embora a narrativa de Joo de Barros se entrelace do Livro dos Reis o que denota, tambm, ampla influncia da cronstica judaica 438 , nosso humanista tem o cuidado de cotejar algumas informaes com a literatura antiga, tal como podemos notar em sua glosa a respeito da cidade edificada pela Rainha de Sab:
A qual (cidade) Ptolomeu situa em altura de doze graus e meio, de que ao presente no h mais memria que dizerem alguns ser na terra defronte da qual est uma ilha chamada Sarbo, em altura de quinze graus e um oitavo, a qual em alguma maneira retm o nome da cidade, e mais propcia situao de Ptolomeu que Mau ou Suaqum, onde outros querem que fosse. 439
fundamentalmente por meio dessa glosa que Joo de Barros se afasta da sagrada escritura. O confronto com as informaes de Ptolomeu, bem como com a de outros autores, circunscreve parte do debate intelectual que as expanses martimas estimularam ao longo do sculo XVI. Sem dvida, o conhecimento dos antigos era um
437 1Rs 10, 1-2. 438 Cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. As razes clssicas da historiografia moderna. Trad. Maria Beatriz Borba Florenzano. Bauru: EDUSC, 2004. 439 Dcada III, Livro I, Captulo II, p. 375. 150
ponto de partida fundamental que haveria de ser refinado paulatinamente medida que se acumulavam experincias em regies, at ento, praticamente desconhecidas. Entretanto, as sagradas escrituras ainda eram um suporte fundamental para o conhecimento e poderiam ser citadas como fonte, em suma, como escritura, tal como podemos notar no debate a respeito da dinastia etope:
Finalmente, chegado David ante sua madre, ela lhe entregou o reino; e deste prncipe dizem eles, abassis, que procedem todos os seus reis por linha masculina at hoje, e que acerca deles no reinou mais mulher. E mais, que todo os oficiais, de que se ora os reis servem, so da linhagem daqueles que este seu primeiro Rei David trouxe; e que no pode tomar outros para governo de sua Casa e reino, seno destas tribos, no grau e qualidade que cada um trouxe naquele princpio. E tambm se gloriam que por rainhas suas naturais, celebradas na Sagrada Escritura, tiveram conhecimento de duas leis que Deus quis dar aos homens para se salvar em diversos tempos; pela Rainha Sab, a que deu por Moiss; e pela a Rainha Candace, a que deu por Cristo Jesus, seu Filho. E porque parece contradio dizerem estes povos abassis que os seus reis daquela Etipia procedem desta Rainha Sab, e que no houve depois dela mais rainhas no seu reino, e dizerem que a Rainha Candace, que foi depois desta ao menos mil e oitenta anos, tambm sua Rainha, convm que no deixemos esta confuso aos ouvintes. 440
Efetivamente, o que Joo de Barros faz aqui, corroborar a desmitificao da lenda do Preste Joo operada ao longo de todo o captulo primeiro do quarto livro da terceira Dcada. Com efeito, a prpria literatura que faz meno ao rei cristo mencionada no captulo configura-se, tambm, como escritura. Ou seja, como uma escrita j disposta em conjunto, ordenada, e que deve ser utilizada como fonte que pode ser redimensionada em face do cotejamento com a experincia portuguesa em curso. Evidente, neste sentido, a percepo que o humanista portugus tem da srie de mal entendidos que deram continuidade ao erro do nome Preste Joo, mesmo por doutos contemporneos, tais como Damio de Gis, Marco Antonio Cocio Sabelico e Giovanni Pico della Mirandola:
440 Idem, pp. 377-378. O grifo meu. 151
[...] quando ouviam nomear o seu rei por este nome Preste Joo, parecia-lhe ser nome dado a ele por ns, sem saberem donde procederia. E ainda quando por algmas pessoas doutas e curiosas eram perguntados da interpretao deste nome que dvamos ao seu prncipe, davam-lhe evases, segundo o juzo de cada um. E daqui procedeu um embaixador deste reino de Abassia, que veio a este Portugal, dizer ao nosso lusitano Damio de Gis, quando escreveu da religio e costumes desta gente, que em sua linguagem Bebule e Encoe queria dizer Precioso Joane; e um religioso desta nao dizer a Marco Antonio Sabelico, quando compunha a sua Rapsdia, que este vocbulo Gio na sua lngua queria dizer potente, e que chamarmos-lhe Joo, seria corruo destoutro; e Pico Mirandola, por outra tal informao, em sua escritura chamar-lhe Presto, Rei dos ndios. O qual engano, que estas pessoas to doutas receberam, foi por naquele tempo no termos mais notcias daquele prncipe que quanto sabamos por os religiosos do seu reino, que vamos nestas partes, muitos dos quais contam coisas diferentes do que os nossos tem visto [...] 441
Com efeito, ainda sobre a noo de escritura como resultante de um procedimento de reunio e ordenao da escrita, alm das sagradas, e dentre as de carter laico j citadas, tais como Ptolomeu, Damio de Gis, Marco Antonio Cocio Sabelico e Giovanni Pico della Mirandola, digno de nota, tambm, a referncia ao j mencionado Gomes Eanes Zurara, que foi cronista destes reinos, de cuja escritura ns tomamos quase todo o processo do descobrimento de Guin. 442 Outra escritura mencionada por Joo de Barros a de Tristo da Cunha, que escreveu um tratado a partir de sua experincia na ndia, que anda incorporado em um volume intitulado Novus Orbis. Da escritura do qual, acerca do que ele diz da sua ida e vinda a Dom Loureno e a seu pai, tomamos somente o que sabemos pelos nossos, o mais deixamos na f do autor. 443 Notvel ainda, a presena da escritura de Andrs de San Martin, homem douto na astronomia, que comps um Tratado que me ele dirigiu que eu emprestei. 444
Por fim, ao passo que a escritura pode ser compreendida como legado da escrita, seja sob a forma de tratados, ou seja sob forma de cartas missivas, crnicas e lembranas j organizadas, vale notar, ainda, que a noo de escritura nos remete
441 Dcada III, Livro IV, Captulo I, pp. 364-365. O grifo meu. 442 Dcada I, Livro I, Captulo III, p. 31. 443 Dcada I, Livro X, Captulo IV, pp. 409-410. 444 Cf. Dcada III, Livro V, Captulo X, p. 660. 152
tambm escrita enquanto um conjunto disperso e que dever ser disposto de forma ordenada. Notvel exemplo da noo de escritura enquanto conjunto disperso a ser reunido encontra-se no comentrio feito por Joo de Barros a respeito do descobrimento da Ilha da Madeira por Joo Gonalves e Tristo Vaz. A esse respeito escreve o humanista:
Os herdeiros de Joo Gonalves tem escritura muito particular deste descobrimento, e querem que toda a honra e trabalho dele lhe seja dada, dizendo que Tristo Vaz no era homem de tanta idade nem calidade como Joo Gonalves, somente que era chegado a ele per amizade e companhia, e que, como homem mancebo e desta conta, sempre era nomeado por Tristo. 445
Em face do excerto transcrito, seria o caso de reconhecermos o carter oficial da escritura da qual os herdeiros de Joo Gonalves dispunham, bem como o fato de que sua ordenao implicaria o reconhecimento de toda a honra e trabalho dele no descobrimento da ilha, de modo que seu feito encontraria repercusso nas geraes futuras. Em sntese, tal escritura haveria de ecoar sua reputao e sua dignidade alcanada por direito. Com efeito, a noo de escritura, aqui, nos aparece imbricada a outra conotao, tambm intrseca noo de escritura, uma vez que ela nos remete, de fato, a ttulos de propriedades, contratos, doaes ou mesmo regimentos. Significativo exemplo, neste sentido, a diferenciao e a releo de precedncia estabelecida por Joo de Barros entre reis e sditos, onde o autor nos ilustra a questo dos ttulos tomados pelos monarcas portugueses ao longo do descobrimento das ndias. Em suma, o humanista atenta para o fato de que, enquanto os sditos, para terem nome, basta qualquer obra com que aprazem a seu rei, os reis, como no tem superior de quem possam receber algum novo e ilustre nome para a camp de sua sepultura, que a crnica do discurso de sua vida, lanam mo no de obras comuns, 446 mas sim, de grandes feitos, visto que estes podem lhe dar ttulos, no em nome, mas em acrescentamento de algum justo e novo estado que por si ganharam. 447
Por isso, entre os reis, suas conquistas so incorporadas a seus ttulos. De fato, na perspectiva de Joo de Barros, esta a lgica que permite a Dom Joo II incorporar o
445 Dcada I, Livro I, Captulo III, p. 30. 446 Cf. Dcada I, Livro VI, Captulo I, p. 10. 447 Cf. Idem. Ibidem. 153
ttulo de Senhor de Guin e, por sua vez, a Dom Manuel I, incorporar o ttulo de Senhor da Navegao, Conquista e Comrcio da Etipia, Arbia, Prsia e ndia. 448
Com efeito, a meno ao ttulo agregado por Dom Manuel permite-nos recuperar a tese da ideia imperial manuelina. Segundo Luis Filipe F. R. Thomaz, o ttulo de Senhor da Navegao, Conquista e Comrcio da Etipia, Arbia, Prsia e ndia j consta na carta enviada Corte papal onde o monarca informa a faanha alcanada por Vasco da Gama. Para Thomaz, tal ttulo programtico, uma vez que nele, o Rei anuncia o direito a um senhorio do qual ele pretende se apropriar mas que, evidentemente, ainda no possui. 449
Para esclarecer a questo, Luis Filipe F. R. Thomaz desconstri o ttulo agregado pelo monarca portugus. Assim, debruado primeiramente sobre a noo de conquista, o historiador nos revela que, na Pennsula Ibrica, o direito a conquista no se constitui como uma novidade, mas, pelo contrrio, decorre de uma srie de acordos histricos que pretendiam definir quais as reas a serem reconquistadas pelas naes ibricas dos muulmanos. Alm disso, o autor faz notar o carter anticonstantiniano de tais acordos, uma vez que eram pautados por uma evidente rejeio s aspiraes jurisdicionais de Roma na pennsula. 450 Por fim:
O direito conquista, segundo se entendia na Idade Media na Pennsula Ibrica, compreendia [...] o direito de ocupao do territrio e de expulso do poder muulmano; mas inclua tambm o direito de exercer uma espcie de domnio eminente sobre o territrio que no fosse efetivamente conquistado, o que se concretizava no recolhimento de um tributo [...] 451
diante disso que Thomaz nos assegura ser um programa poltico a ideia de senhorio da conquista. Por sua vez, o senhorio da navegao e comrcio de Etipia, Arbia, Prsia e ndia se constitui como um programa econmico que, de acordo com o historiador, a primeira e talvez a nica vez que um soberano inclui a atividade comercial em seus ttulos reais: tal iniciativa permitiria a Dom Manuel no apenas atribuir a si mesmo o domnio da navegao e do comrcio perante seus sditos, mas
448 Cf. Idem. p. 11. 449 THOMAZ, Luis Filipe F. R. A ideia imperial manuelina. In: DOR, Andra Carla et alii (org.). Facetas do imprio na histria: conceitos e mtodos. So Paulo: Aderaldo & Rothschild; Braslia: Capes, 2008. p. 41. 450 Cf. THOMAZ, Luis Filipe F. R. Op. cit. 451 THOMAZ, Luis Filipe F. R. Op. cit. p. 42. 154
tambm perante os outros prncipes da cristandade, alm de pleitear o poder de controle da navegao do ndico em face das potncias costeiras locais. 452
Com efeito, para Thomaz, o controle portugus sobre a navegao do ndico que corresponde a um conceito imperial. Tal controle, que se concretizaria a partir de 1502 por meio do sistema de cartazes calcava-se no pensamento de Dom Manuel de que o domnio do mar e a autoridade sobre os soberanos locais se mesclavam em uma ideia de jurisdio superior, que era praticamente equivalente ao conceito de imperador. 453 Sem dvida, como fez notar Luiz Costa Lima, a sia de Joo de Barros mostra a permanncia da dupla verdade, religiosa e mercantil, que respalda a expanso ultramarina portuguesa. 454
Por sua vez, a chave de leitura fornecida por Luis Filipe F. R. Thomaz nos ajuda a compreender a discusso presente na obra de Joo de Barros. Contudo, a leitura da obra do humanista permite-nos apreender, ainda, sua prpria definio do que vem a ser ttulo:
Este nome ttulo acerca dos juristas tem diversos significados, por ser um nome comum que lhe serve de gnero, debaixo do qual esto muitas espcias de coisas: porque s vezes significa preminncia de honra, a que chamam dignidade, como a do duque, marqus, conde, etc., e outras vezes significa senhorio de propriedade, donde s mesmas escrituras que cada um tem de sua fazenda se chamam ttulos. Porm, falando propriamente e a nosso propsito, ttulos no outra coisa seno um sinal e denotao do direito e justia que cada um tem no que possue, ora seja por razo de dignidade, ora por causa de propriedade. O uso dos quais ttulos acerca dos reis um, e toda outra pessoa que vive sdita a eles tem nisso outro modo, c o ttulo dos reis no requer mais escritura do ditado com que se eles intitulam que suas prprias cartas, quando no princpio delas se nomeam; e os homens, para se lhe guardar o ttulo de sua dignidade (se a tem), ho de ter escritura dos reis, de cuja mo receberam a tal honra; e se forem propriedades, apresentaro escritura donde as houveram. 455
Em suma, o ttulo denota direito e justia, ora por dignidade, ora por propriedade. Contudo enquanto para os reis o ttulo uma auto-imposio pautado,
452 Cf. Idem. Op. cit. Cit. p. 45. 453 Cf. Ibidem. Op. cit. Cit. p. 49. 454 LIMA, Luiz Costa. O redemunho do horror... p. 67. 455 Dcada I, Livro VI, Captulo I. p. 11. Os grifos so meus. 155
evidentemente em feitos pretensamente realizados , para os sditos, necessria a sano do rei. Sem dvida, a dignidade real estava acima do corpo social e por si s, deveria ser acatada. No limite, possvel perceber que, para Joo de Barros, existiam apenas duas situaes em que a precedncia real ao ttulo poderia encontrar concorrente, a saber, quando o ttulo encontrasse endosso na santa s ou na durao de posse. o que se pode notar no argumento do humanista sobre a legitimidade do senhorio portugus a respeito das atividades mercantis portuguesas nas Indias:
Para os quais ttulos no houve mister mais escritura que a primeira doao apostlica, e traz-los ele em seu ditado, quanto mais que ao presente j so confirmados pelo direito de usucapionis (como dizem os juristas) de mais de cinquenta e tantos anos de posse, segundo se ver no processo desta nossa histria por este modo. 456
Assim, enquanto a noo de escritura nos remete, tambm, a ttulos e propriedades, vale anotar que esta diversidade, bem como toda qualidade e copiosidade da escritura no deveria comprometer a elaborao da narrativa dos feitos. Pelo contrrio, atestavam sua veracidade e sua propriedade. Ao passo que a escritura composta pela reunio e ordenao da escrita, vale notar que a juno de todo o material era um trabalho pelo qual no se deveria poupar esforos, e assim, todo o material disponvel haveria de ser levado em considerao, de modo que as ordenaes, cortes, casamentos, contratos, armadas, festas, obras, doaes, mercs, assim por registro da chancelaria e fazenda como por contas de todo o reino devem ser consultadas. Por fim, nada pode ser deixado de lado se o cronista quiser e souber usar da cpia de tanta escritura. 457 Sem dvida, a compilao e ordenao do material deveria articular e dar sentido s idias, alm de fundamentar a autoridade da narrativa. notvel, no caso do excerto transcrito anteriormente, a pretenso de Joo de Barros em legitimar a presena lusa e a conquista da ndia por meio da durao de posse, alm de sua justificativa por usucapio. O evidente contraponto desta justificativa encontrava-se na f, tal como podemos observar na transcrio a seguir:
456 Idem. p. 15. O grifo meu. 457 Dcada I, Livro II, Captulo II, pp. 150-151. 156
Porque ainda que por direito comum os mares sejam comuns e patentes aos navegantes, e tambm pelo mesmo direito somos obrigados dar servido s propriedades que cada um tem confrontadas conosco, ou para que lhe convenha ir por no ter outra via pblica: esta lei h lugar somente em toda Europa a cerca do povo Cristo, que como por f e batismo est metido no grmio da Igreja Romana, assim no governo de sua polcia se rege pelo direito Romano. No que os reis e prncipes Cristos sejam sditos a este direito imperial, principalmente este nosso reino de Portugal, e outros que so imediatos ao papa por obedincia, e no por serem feudatrios: mas aceitam estas leis enquanto so justas, e conformes razo que madre do direito. Porm a cerca dos mouros e gentios que esto fora de Cristo Jesus, que a verdadeira que todo homem obrigado ter e guardar sob pena de ser condenado a fogo eterno: que no principal que em alma est condenado, a parte que ela anima no pode ser privilegiada nos benefcios das nossas leis, pois no so membros da congregao evanglica, posto que sejam prximos por racionais, e esto enquanto vivem em potencia e caminho para poder entrar nela. E ainda conformando ns como mesmo direito comum, no falando nestes mouros e gentios que tem perdida esta ao por no receberem nossa f, mas qualquer membro dela no pode para aquelas partes orientais pedir servido: porque antes da nossa entrada na ndia com a qual tomamos posse dela, no havia algum que l tivesse propriedade herdada ou conquistada, e onde no h ao precedente, no h servido presente ou futura. Porque como todo auto para f continuar por muito tempo requer principio natural: assim as aes para serem justas, dependem de um centro universal, a quem ho de concorrer todos os atos dos homens que vivem segundo a lei de Deus. 458
A justificativa estava no tempo da conquista, ou, enfim, no usucapio, alm da ausncia da f crist. Nesse sentido a conquista se impunha, por um lado, como obrigao moral, por se tratar de difundir a f. Entretanto, por outro lado, a conquista se impunha por direito de jurisdio. Aqui, se por um lado notrio o eco da ideia de uma jurisdio superior como pressuposto imperialista, por outro, no deixa de ser a mais notria caracterstica de um momento histrico de orientao romana e jurdico- estatalizante que torna historicamente possvel cultura ocidental percorrer o espao
458 Dcada I, Livro VI, Captulo I, pp. 15-17. O grifo meu. 157
da alteridade, cuja dimenso [...] pde comear a se delinear como cultural. 459
Sobre este momento historico Adone Agnolin assinala que:
[...] vistos os pressupostos institucionais contidos em suas significativas adjetivaes, no pde pensar a diversidade antropolgica como alteridade inalcanvel, impossvel de ser recuperada: o brbaro, que ocupava, em uma escala hierrquica, uma posio de subalternidade, tornava- se (devia tornar-se) a justificativa para o imperialismo romano instituir-se enquanto processo de culturalizao dos outros povos. 460
Ainda neste sentido, Agnolin recupera o texto de Rossella Mengucci e nos faz notar ainda:
A conceitualizao dos brbaros no se baseia [mais] numa fundao mtica da diferena, mas numa classificao dos povos estrangeiros como deficitrios, em vrios nveis, de bens culturais. Para Roma no existe uma dimenso outra, que possa ser colocada fora da prpria histria [...]. Cosmo e respublica coincidem: as populaes estrangeiras representam os inimigos, potenciais e no, a serem combatidos, e uma ameaa sempre latente para as fronteiras do Estado. Os outros no se configuram nunca sob o plano de mito: o problema no encontrar mediaes entre brbaros e cultura observante, como na Grcia, mas simplesmente o de conduzir o brbaro nica forma de cultura concebvel: a romana. 461
Com efeito, alm da justificativa articulada ao histrico da conquista no usucapio e ausncia da f crist, possvel apontarmos, ainda, um elemento que compe a noo de escritura e corrobora a compreenso do papel que esta noo desempenha na fundamentao da autoridade da narrativa: a prpria ausncia de qualquer escritura precedente, o que denota a novidade do feito, ou seja, a ausncia de um feito anterior que possa servir de referncia para comparao, tal como se pode
459 Cf. AGNOLIN, Adone. Jesutas e selvagens: a negociao da f no encontro catequtico-ritual americano-tupi (Sculos XVI-XVII). So Paulo: Humanitas Editorial, 2007. p. 445. Cf. tbm. AGNOLIN, Adone. O apetite da antropologia, o sabor antropofgico do saber antropolgico: alteridade e identidade no caso Tupinamb. So Paulo: Associao Editorial Humanitas, 2005. p. 57. 460 Cf. AGNOLIN, Adone.Op. cit. Idem, ibidem. 461 MENGUCCI, Rossella. I popoli iperborei: la concettualizzazione del nord nel mondo classico e nellAlto Medievo. In: MAZZOLENI, Gilberto. (org.). Same:1) la dimensione remota. Roma: Bulzoni, 1981. Apud: AGNOLIN, Adone.Op. cit. pp. 57 e 58. Grifo do autor. 158
notar na descrio do feito indito de Dom Manuel, que, com a chegada de Dom Vasco da Gama no oriente abriu as portas de outro Novo Mundo de infiis para redeno de suas almas. Tal feito foi compreendido como indito uma vez que:
Nem se achava escritura de gregos, romanos, ou de alguma outra nao, que contasse tamanho feito, como era trs navios com obra de cento e sessenta homens, quase todos doentes de novas doenas de que muitos faleceram, com a mudana de to vrios climas por que passaram, diferena dos mantimentos que comiam, mares perigosos que navegavam e com fome, sede, frio e temor, que mais atormenta que todas as outras necessidades, obrar neles tanto a virtude da constncia e preceito de seu Rei que, propostas todas estas coisas, navegaram trs mil e tantas lguas, e contenderam com trs ou quatro reis to diferentes em lei, costumes e linguagem, sempre com vitria de todas as indstrias e enganos da guerra que lhe fizeram. 462
Portanto, a escritura compunha uma referncia mesmo quando ausente. Esta ausncia denotar a grandiosidade e a importncia do fato. Fenmeno que traduz sua singularidade contextual quando atentamos para a ideia de que o Renascimento se pensou, sistematicamente, em relao ao mundo antigo. Relato de carter fundamentalmente emulativo, a referncia aos gregos e romanos indica uma relao consciente com outra temporalidade. Ora, se, como vimos, a escrita deve projetar os feitos no futuro, para que sirva de referncia s geraes posteriores, e, nessa chave de leitura, a escritura deve ser compreendida como um veculo para que isso se efetue, ento, a ausncia de ambas aponta para a falta de algo necessrio, de modo que a efetiva constatao desta ausncia se apresenta, em algum momento, como um problema a ser resolvido. Caso emblemtico neste sentido a descrio da cidade de Goa, cuja ausncia de escritura sanada no mbito de uma temporalidade crist, visto ser a presena do cristianismo que atesta a antiguidade do lugar, e no os registros locais antigos, como se l:
Em que tempo e per quem esta cidade foi fundada, o novo dela haveria obra de quarenta anos, ante que entrssemos na ndia, que era feito por um mouro senhor dela, chamado Melique-Hocm, quando os mouros que fugiram do reino de Onor a vieram povoar, como atrs escrevemos, falando
462 Dcada I, Livro V, Captulo I, p. 380. O grifo meu. 159
nas coisas de Timoja, em tempo do Vice-Rei. Mas o antigo dela acerca dos moradores, assim gentios como mouros, no se acha memria ou escritura que nossa notcia viesse, somente tem todos ser coisa antiqussima. E segundo alguns sinais que se acharam nela, depois que a ganhmos, parece que em algum tempo foi povoada de cristos, um dos quais foi achar-se um crucifixo de metal, andando um homem desfazendo os aliceces de umas casas que Afonso de Albuquerque dali mandou levar com solenidade de procisso Igreja, e depois o enviou ao Rei Dom Manuel, como sinal que j em algum tempo aquela imagem recebeu ali adorao. 463
Em sntese, a presena prstina do cristianismo em Goa que autoriza sua insero no horizonte histrico do humanista viseense ao atribuir-lhe um passado compartilhado. Por sua vez, vale notar, tambm, que a noo de escritura aparece ao lado de outra categoria fundamental para a compreenso do horizonte historico nas Dcadas de Joo de Barros: a noo de memria. Com efeito, Joo de Barros entende a escritura como seu veculo e, sem sombra de dvida, a ausncia de escritura poderia compromet-la. Entretanto, como vimos, tal fenmeno no pode ser compreendido como uma regra. Alm da ausncia de escritura compor um quadro comparativo eficiente, a reputao dos feitos de um personagem tambm se configuraria como excelente referencial. Fenmeno que pode ser observado no caso da boa reputao do Rei Dom Joo I no reino de Mandi Mansa, cuja lembrana se mantinha intacta ainda em 1534, quando na ocasio da misso comandada por Pero Fernandes a mando do prprio Joo de Barros, enquanto feitor das casas de Guin e ndia , nosso humanista observa que tanta memria, sem terem letras, havia entre estes brbaros das coisas do Rei Dom Joo. 464 Notria, aqui, a relao que se estabelece entre a figura do brbaro, a ausncia da escrita e a ausncia de memria que nos remete a um critrio de classificao dos povos estrangeiros como deficitrios visto que a fama do rei Dom Joo tenha se perpetuado mais por suas qualidades do que pelas tcnicas de manuteno da memria dos locais, uma vez que estes no dominavam a escrita. Evidentemente, a oralidade est fora de questo para o historiador quinhentista. De fato, a ausncia de escritura e mesmo o desconhecimento das letras no haveria de se constituir como entrave absoluto para a instituio da memria, ou da fama dos feitos. A carncia da tcnica da escrita daria margem a explicaes que
463 Dcada II, Livro V, Captulo I, p. 434-435. O grifo meu. 464 Dcada I, Livro III, Captulo XII, p. 258. 160
justificassem as reminiscncias de feitos de todo tipo, tal como a descrio do reino de um dos vassalos do prncipe gentio de Sofala, Benomotapa, cujas edificaes foram atribudas ao diabo:
Quando ou per quem estes edifcios foram feitos, como a gente da terra no tem letras, no h entre eles memria disso, somente dizerem que obra do Diabo, porque, comparada ao poder e saber deles, no lhe parece que a podiam fazer homens, e alguns mouros que a viram, mostrando-lhe Vicente Pegado, capito que foi de Sofala, a obra daquela nossa fortaleza, assi o lavramento das janelas e arcos, para comparao da cantaria lavrada daquela obra, diziam no ser coisa para comparar, segundo era limpa e perfeita. 465
Por sua vez, ainda sob o significativo prisma de uma ausncia que, na descrio da cidade de Malaca, Joo de Barros nos faz notar que o tempo certo em que se fundou esta cidade, acerca dos seus moradores no h escritura que viesse nossa notcia; somente fama comum entre eles que, ao tempo que ns entramos na ndia, haveria pouco mais de duzentos e cinquenta anos que era povoada. 466 Assim, notemos que, na ausncia da escritura, a fama entre os moradores quem d as notcias a respeito da antiguidade da cidade. Por fim circunscrevendo, ainda, a questo da relao que Joo de Barros estabelece entre escritura e memria, vale ponderarmos sobre a ateno que o historiador quinhentista dispensa s prticas de escrita dos indianos, onde, segundo o humanista, todo o gentio da ndia faz uso de umas folhas de palma para registrar as coisas que querem encomendar memria por escritura. 467
tentador sugerir que a percepo da diversidade de tcnicas de escrita do humanista ecoa uma experincia similar utilizada no reino portugus, tal como relata nosso autor no segundo livro da primeira Dcada:
E no novidade achar-se esta memria de escritura em as rvores, porque os nossos naquele tempo o costumavam muito; e alguns por louvor do Infante Dom Henrique, escreviam o moto de sua divisa, que como vimos atrs, era: Talent de bien faire. Porque somente esta memria escrita na
465 Dcada I, Livro X, Captulo I, p. 434-435. Os grifos so meus. 466 Dcada II, Livro VI, Captulo I, p. 3. 467 Dcada I, Livro IX, Captulo III, p. 322. 161
casca dos dragoeiros haviam que bastava por posse do que descobriam, e alguas cruzes de pau. 468
Embora os suportes tcnicos da grafia no sejam o melhor recurso para definir a noo de escritura no interior das Dcadas, preciso notar que, ao passarmos a debater a questo da memria, seus suportes nos ajudam a perceber sua importncia para a definio do estatuto que esta noo ganha no interior das sociedades descritas por Joo de Barros. Ainda que, em muitos casos, na perspectiva do humanista, a memria dependa de um suporte material, perceptvel sua sensibilidade para a existncia de outras modalidades para sua perpetuo, a despeito da presena, ou no, de um suporte material. Contudo, se quisermos compreender efetivamente o horizonte histrico nas Dcadas, imperativo que nos aproximemos com maior rigor das conotaes e usos da noo de memria no interior desta obra. Diante dessa proposio, vale anotarmos que a noo de memria no se definir, unicamente, pela ideia de conservao dos registros do passado. Esta noo envolve mltiplos procedimentos que nos remetem tanto aos feitos e suas conotaes simblicas, quanto dignidade dos agentes envolvido nos feitos, escolhas conscientes, bem como suas utilizaes mltiplas. Todavia, vale assinalar, a princpio, que ela nos remete a um feito. Nos quadros de um contexto cujo espao mental marcado por intensa religiosidade, notvel que os feitos marcantes se apresentem associados religio e, sobretudo, o feito redentor de Jesus. Desse modo, ao inventariar as formas de percepo e de memria na primeira metade do sculo XVII, Diogo Ramada Curto observou que a memria pode encontrar sua expresso, no recurso a mitos de origem religiosa e de utilizao poltica (caso do mito da Idade do ouro, no modelo do Juzo Final) ou no recurso a personagem simblica (reis e heris). 469 No seria equivocado sugerirmos que a recorrncia ao feito redentor de Jesus se inscreve no interior deste ltimo recurso apontado por Curto, ainda que estejamos tratando de uma elaborao de meados do sculo XVI. Sistematicamente, a memria deste feito haveria de ser celebrada nas mais diversas ocasies. Vale notar, a esse respeito, a realizao da primeira missa no Brasil:
468 Dcada I, Livro II, Captulo II, p. 148. O grifo meu. 469 Cf. CURTO, Diogo Ramada. Op cit. p. 26. 162
E naquela brbara terra, nunca trilhada de povo cristo, aprouve a Nosso Senhor, pelos mritos daquele santo sacrifcio, memria de nossa Redeno, ser louvado e glorificado, no somente daquele povo fiel da armada, mas ainda do pago da terra, o qual podemos crer estar ainda na lei da natureza. 470
Celebrar o santo sacrifcio em memria da redeno da humanidade, seja dos fiis, seja dos pagos que vivem, ainda, na lei da natureza: esta memorao que haveria de justificar parte significativa dos feitos e seria sistematicamente evocada ao longo da expanso portuguesa nas diferentes partes do mundo. Nesse sentido oportuno anotar a observao de Jaques Le Goff:
Se a memria antiga foi fortemente penetrada pela religio, o judaico-cristianismo acrescenta algo diverso relao entre memria e religio, entre o homem e Deus. Pode-se descrever o judasmo e o cristianismo, religies radicadas histrica e teologicamente na histria, como religies de recordao. E isto em diferentes aspectos: porque atos divinos de salvao situados no passado formam o contedo da f e o objeto de culto, mas tambm porque o livro sagrado, por um lado, a tradio historica, por outro, insistem, em alguns aspectos essenciais, na necessidade da lembrana como tarefa religiosa fundamental. 471
Assim, tendo em vista a perspectiva apresentada por Le Goff, fica mais evidente o quadro mental no qual opera Joo de Barros ao recuperar a trajetria do ento ex- governador da ndia, Diogo Lopes de Sequeira, e glosar, com eloquncia, sobre a devoo religiosa do fidalgo, o qual:
[...] enquanto esteve naquela Ilha Mau, sempre ia ouvir missa mesquita da povoao, qual mandou por nome Santa Maria da Conceio; e a primeira missa que se nela disse, foi das Chagas, por ser em sexta-feira depois das oitavas da Pscoa, em que houve muitas lgrimas de devoo dos nossos, vendo o lugar onde Nosso Senhor os tinha levado, e quanta merc dele recebiam, pois em lugares onde ele era blasfemado por mouros e
470 Dcada I, Livro V, Captulo II, p. 389. O grifo meu. 471 LE GOFF, Jaques. Memria. In: Op. cit. p. 438. 163
gentios, eles eram ministros daquelas oblaes e sacrifcios a ele aceitos, por ser em memria do sangue de Cristo Jesus. 472
Em suma, Diogo Lopes, em sua vida exemplar e devota, alm ouvir missa, apropriou-se de uma Mesquita, doravante denominada Santa Maria da Conceio. Feito digno de nota, uma vez que o lugar, onde antes o nome de Jesus era blasfemado por mouros e gentios, passaria a ser um espao destinado a oblaes em memria do sangue de Jesus. Em sntese, o feito mximo haveria de reverberar e ser cultuado, de modo que o valor da ao encontraria correspondncia na qualidade de quem o alcanou. De fato, no interior de uma sociedade marcada por privilgios, alcanar memria por meio de obras virtuosas implica que esta memria do feito h de encontrar correspondente na dignidade de quem o levou a cabo. Ou seja, existe uma qualificao para a memria equivalente qualidade de quem pratica a ao. esta a chave de leitura que devemos ter em mente quando nos deparamos com os feitos de Dom Joo I que Joo de Barros nos apresenta:
Depois que o Rei Dom Joo, de gloriosa memria, o primeiro deste nome em Portugal, por fora de armas tomou a cidade Ceuta aos mouros, na passagem que fez em frica, ficou o Infante Dom Henrique, seu filho, terceiro gnito, muito mais desejoso de fazer guerra aos infiis. Porque se acrescentou natural inclinao, que sempre teve, de exercitar este ofcio de milcia por exalamento da f catlica, no somente a gloriosa vitria que seu padre com tanto louvor de Deus e glria da Coroa deste reino alcanou na tomada desta cidade Ceuta, de que ele, Infante, foi parte muito principal (segundo escrevemos em a outra nossa parte intitulada frica, de que neste precedente captulo fizemos meno), mas ainda foi acerca dele outra causa muito mais eficaz, que era a obrigao do cargo e administrao que tinha de governador da Ordem da Cavalaria de Nosso Senhor Jesus Cristo, que o Rei Dom Dinis, seu tresav, para esta guerra dos infiis ordenou e novamente constituiu. 473
Assim, a gloriosa memria de Dom Joo I corresponde a sua dignidade real e despertaria o interesse e a vocao do Infante Dom Henrique tanto ao combate dos infiis em louvor do nome de Deus, mas sobretudo glria da Coroa portuguesa. Sem
472 Dcada III, Livro IV, Captulo III, p. 408. O grifo meu. 473 Dcada I, Livro I, Captulo VI, p. 408. Os grifos so meus. 164
dvida, no obstante a natural inclinao do infante ao ofcio da milcia, a emulao com as conquistas de sua Casa deve intensificar seu desejo de alcanar boa memria. o que se pode notar no registro a respeito dos trabalhos dispensados pelo infante nas Canrias para a converso e conquista dos povos destas ilhas, 474 muito embora sua conquista e senhorio tenha ficado a cargo do reino de Castela. De fato, tal como vimos acima, estariam os ttulos apropriados pelos monarcas ancorados em grandes feitos ainda que no deixasse de ser uma auto-imposio. Alm disso, vale notar que tais ttulos se configurariam como memria a ser herdada, como podemos notar no caso de Dom Joo III, Senhor da Conquista, Navegao e Comrcio do gr Oriente, ttulo herdado de seu pai, Dom Manuel I, felecssimo, bem- aventurado e de gloriosa memria. 475 Diante disso, se verdade que os reis no tem superior de quem possam receber ttulos, entre os sditos as obras ganham importncia fundamental, visto que por meio delas havero de alcanar benefcios e recompensas. Da as conquistas serem espao privilegiado para recompensar a memria dos feitos para todos aqueles que colaborassem com a glria do reino, mesmo quando no fossem efetivamente sditos, uma vez que, neste caso, o interesse seria o de reiterar o carter justo da monarquia portuguesa. fundamentalmente neste sentido que podemos compreender o empenho do ento governador da ndia portuguesa, Afonso de Albuquerque, na manuteno da viva de Timoja em face dos importantes servios prestados por este na tomada de Goa:
Com a qual nova sua mulher e filhos fugiram de Onor, onde estavam, e se vieram a Goa buscar nosso amparo, aos quais Afonso de Albuquerque, depois de sua vinda de Malaca (posto que ele, Timoja, era travesso), por memria dos servios que fez na tomada de Goa e exemplo ao gentio daquela terra que s mulheres e filhos daqueles que militavam e morriam por ns eram amparados lhe mandou ordenar certa coisa de que se mantivessem. 476
Notamos, com isso, que a noo de memria apresentava-se associada s aes triunfantes contra mouros, bem como s conquistas. Contudo, preciso observar que no eram estes os nicos casos, pois a memria remete-nos, tambm, reabiliao da
474 Cf. Dcada I, Livro I, Captulo XII, p. 104. 475 Cf. Dcada III, Livro VII, Captulo I, p. 105. 476 Dcada II, Livro VI, Captulo VIII, p. 112. O grifo meu. 165
honra e reputao de algum, quando fosse o caso. E sobretudo nesta perspectiva que figuram os nomes de Belchior de Brito e Dom Vasco de Lima, ambos inimigos de Dom Henrique de Meneses enquanto governou a ndia. O primeiro foi preso em Cochim, a mando do governador, por algumas travessuras que tinha feito de soberbo e de grande opinio, parecendo-lhe pouco o estado da ndia enquanto o segundo tambm ganhou punio por ser travesso e brigoso. 477
Entre muitas coisas que aconteceram depois da morte de Dom Henrique, que lhe deram nome de ser homem amigo da justia, foi o testemunho de dois fidalgos seus inimigos, dos quais diremos seus nomes, por lhe pagar com a memria deste feito quanto mais honra nisto ganharam, que no que tinham feito contra mouros. 478
Importante atentar para o fato de que ambos os fidalgos mencionados alcanaram memria por reconhecerem a justia de Dom Henrique, de modo que ganharam mais honra nisto do que em feitos contra os mouros. Meno que ganha especial significado numa obra dedicada expanso portuguesa, cuja justificao se encontra, como vimos, no ideal de cruzada contra os infiis, alm de estar pautada na ideia de que o direito justia depende do reconhecimento da f crist. 479 Ainda mais contundente, nesta perspectiva o desdm de Belchior de Brito em relao s conquistas da ndia, uma vez que a memria haveria de honrar tanto o nome e a glria de Jesus, quanto o bem da Repblica. Seria principalmente este o motivo de sua celebrao. Neste sentido, significativo contraste memria de Belchior de Brito e Dom Vasco de Lima o discurso proferido por Dom Francisco de Almeida, primeiro vice-rei da ndia, na ocasio de sua partida a caminho de Dabul e Dio para sua peleja contra Mir Hcem:
Depois que aprouve a Nosso Senhor levar desta vida a Dom Loureno, meu filho, duas coisas me perseguem, que por parte da humanidade so comum aos homens, que querem fazer razo e justia de si: uma requer a lei natural do amor paterno que devo a meu filho, que desejar de me ver com ele l onde est; e a outra pede o esprito da honra, que por
477 Cf. Dcada III, Livro X, Captulo X, p. 523-524. 478 Dcada III, Livro X, Captulo X, p. 523. O grifo meu. 479 Cf. Dcada I, Livro VI, Captulo I, pp. 15-17. 166
modo de justia deseja de se restituir na posse em que estava. Ver meu filho, em caminho estou; que se aprouver a Nosso Senhor que o eu siga no gnero de sua morte, grande glria ser para mim morrermos ambos por nossa lei, por nosso Rei e por nossa grei, que so as mais justas e gloriosas causas de morrer que algum pode desejar. Porque a lei d glria de martrio; o Rei prmio de honra e galardo em fazenda queles que nos sucedem na herana; e a grei, que a congregao dos nossos parentes, amigos e compatriotas, a que chamamos repblica, celebra nosso nome de gerao em gerao at o fim do Mundo, onde a memria de todas as coisas acaba. 480
Em suma, se a memria nos remete aos feitos, ela nos remete tambm durao. A este respeito, Joo de Barros literal em seu comentrio sobre o enterro de Jorge lvares, na China:
E ainda que aquela regio de idolatria coma o seu corpo, pois por honra de sua ptria em os fins da terra ps aquele padro de seus descobrimentos, no comer a memria de sua sepultura, enquanto esta nossa escritura durar. 481
Entretanto, ainda que por um lado a memria possa nos reportar durao, preservao, ou, o que talvez fosse mais apropriado, inveno dos feitos, ela no deixa de nos remeter, tambm, ao privilgio de uma determinada categoria de indivduos. Com efeito, este privilgio pode ou no ser concedido em funo de sua propriedade diante dos valores sociais coevos. Diante disso, enquanto um feito que se desdobra em bem para a Repblica deve alcanar boa memria, o contrrio tambm verdadeiro. Neste caso, a memria h de ser apagada. o que notamos no fim dado por Gonalo Vaz a uma nau que lhe teria apresentado um cartaz 482 conseguido sub-repticiamente e que, por isso, meteu a nau no fundo com os mouros que a navegavam, todos coseitos em uma vela por no haver memria deles. 483 Interessante, neste sentido, mencionarmos a problemtica daquilo que Paul Ricoeur oportunamente denominou
480 Dcada II, Livro III, Captulo III, p. 260. O grifo meu. 481 Dcada III, Livro VI, Captulo II, p. 20. O grifo meu. 482 Segundo Luis Filipe F. R. Thomaz, o controle portugus sobre a navegao no oceano ndico se concretiza a partir de 1502 atravs do sistema de cartazes ou salvo-condutos, que eram concedidos aos residentes dos estados vassalos ou aliados. Sem o documento, os estrangeiros se arriscavam a ser detidos pelo corso portugus. Aparentemente, este sistema j existia antes no oriente como sugerem os cronistas. Cf. THOMAZ, Luis Filipe F. R. Op. cit. p. 47. 483 Dcada II, Livro I, Captulo IV, p. 55. 167
como as manipulaes da memria visto que, para o filsofo, estas manipulaes tratam, em ltima instncia, do fenmeno da ideologia e, portanto, buscam legitimar a autoridade da ordem ou do poder ordem, no sentido da relao orgnica entre todo e parte, poder, no sentido da relao hierrquica entre governantes e governados. 484
Em sntese, assinala Paul Ricoeur:
[...] a ideologizao da memria possibilitada pelos recursos de variao que o trabalho de configurao narrativa oferece. As estratgias do esquecimento enxertam-se diretamente nesse trabalho de configurao: pode- se sempre narrar de outro modo, suprimindo, deslocando as nfases, refigurando diferentemente os protagonistas da ao assim como os contornos dela. 485
Notemos, portanto, que a conservao ou no da memria feita de modo consciente. Com efeito este procedimento envolve uma escolha que pode no apenas perpetuar um feito, mas tambm um nome, tal como assinalamos anteriormente. Contudo, vale recuperarmos, no texto de Joo de Barros, o critrio que orienta a seleo de quem deve ter sua memria perpetuada ou no. O lugar da memria um prmio definido segundo a dignidade, o feito e a qualidade da cada um, tal como nos revela o humanista ao mencionar o nome dos fidalgos que colaboraram com Tristo Vaz e Afonso de Albuquerque na conquista de Socotor:
No qual, alm dos capites nomeados, se acharam alguns fidalgos, que, por serem mancebos, no levavam cargos, seno o de seu sangue, que quando nobre, como era o seu, em toda idade se mostra, e por sua memria poremos os que vieram nossa notcia. 486
Cada um dos nomes mencionados possua evidentes qualidades de sangue, contudo, era tambm por seus feitos que mereceriam este lugar de lembrana. 487 A meno dos nomes dos envolvidos nos feitos um compromisso evocado pelo humanista em sua narrativa, onde, por memria de suas pessoas, diremos os nomes de
484 RICOEUR, Paul. A memria, a histria, o esquecimento. Trad. Alain Franois [et al.]. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. p. 96. 485 RICOEUR, Paul. Op. cit. p. 455. 486 Dcada II, Livro I, Captulo II, p. 34. O grifo meu. 487 Cf. Dcada II, Livro I, Captulo II, p. 35. 168
alguns principais, que vieram nossa notcia. 488 Neste sentido escreve Joo de Barros, tal como j mencionamos anteriormente:
[...] pois tomamos cuidado de escrever os trabalhos que os naturais deste reino passaram naquela conquista de sia, convm que no neguemos a cada um, que a nossa notcia vier, o prmio deste lugar de memria; e tambm devemos isto a Duarte Galvo por razo das letras, pois por elas, quanto sua possibilidade alcanou, deu nome a muitos. 489
Por sua vez, a conservao da memria alcanaria especial regalia em casos especficos, o que pode ser notado quando sublimada por meio de referncias s honrarias e aos mritos conquistados para a Repblica. Assim o caso de Ferno Gomes, que alm do ttulo alcanou tambm grossa fazenda, com que depois serviu o Rei, assim em Ceuta como na tomada de Alccer, Arzila e Tnger, onde o Rei o fez cavaleiro. 490 Assim, Ferno Gomes adquiriria nobreza de novas armas, um escudo timbrado com o campo de prata e trs cabeas de negros, cada um com trs arriis de ouro nas orelhas e narizes, e um colar de ouro ao colo, e por apelido da Mina, em memria do descobrimento dela. 491
Uma vez consolidada, a memria configurava-se, em sntese, como repertrio, referencial que serviria de guia ao entendimento, que, doutrinado em obras edificantes, era escola de virtude e nobreza. De fato, a memria seria paulatinamente colocada a servio do centralismo monrquico 492 a partir do final da Idade Mdia, tal como apontamos oportunamente. Desse modo, importa notar que tomar conselho e memria a respeito dos negcios denotava atitude prudente, qualidade atribuda por Joo de Barros ao Infante Dom Henrique, O Navegador:
Todas estas coisas procediam da limpeza de sua alma, porque se cr que foi virgem. Em seus trabalhos e paixes, era muito sofrido e senhor de si, e em ambas as fortunas humildoso, e to benigno em perdoar erros que lhe foi tachado. Teve grande memria e conselho acerca dos negcios, e muita autoridade para os graves e de muito peso. Foi magnfico em
488 Cf. Dcada II, Livro I, Captulo V, p. 75. 489 Dcada III, Livro I, Captulo IV, p. 52. O grifo meu. 490 Cf. Dcada I, Livro II, Captulo II, p. 144. 491 Cf. Idem, ibidem. 492 Cf. LE GOFF, Jaques. Op. cit. p. 455. 169
despender e edificar, e folgava de provar novas experincias em proveito comum, ainda que fosse com prpria despesa de sua fazenda. Foi muito amador da criao dos fidalgos por os doutrinar em bons costumes; e tanto zelou esta criao, que se pode dizer sua Casa ser uma escola de virtuosa nobreza, onde a maior parte da fidalguia deste reino se criou, aos quais ele liberalmente mantinha e satisfazia de seus servios. 493
Se, por um lado, o zelo da memria daria suporte ao entendimento e outras virtudes, ela seria, por outro lado, referencial traumtico que eventualmente deveria ser esquecido. Na pena de nosso humanista, esta demanda pelo esquecimento pode ser notada em sua descrio do drama vivido pelos tripulantes da nau de Pedro lvares Cabral, depois de terem sido castigados por densa tempestade no trajeto que percoreram em direo ndia aps o descobrimento da Terra de Santa Cruz, ocasio na qual o comandante, sentindo [...] com palavra e favor no que podia, animava e confortava a todos, at que o tempo cessou e lhe trouxe coisa ante os olhos que os alvoroou, perdendo da memria o temor passado. 494
De todo modo, a memria era o espao onde a experincia era assinalada. Mesmo quando traumtica, ela recuperaria os mritos dos homens a que o mundo desamparou. A memria deveria fazer justia aos povos, tal como gente portuguesa, que naturalmente sofredora. 495 movido por este preceito que Joo de Barros nos remete aos feitos de Domingos de Seixas, que foi capturado em Tenasserim, e ficou preso ao longo de 25 anos no Reino do Sio para, depois de liberto, servir de fonte oral narrativa dos feitos portugueses na sia:
[...] porque, pois lhe no aproveitou o servio que naquelas partes fez nem o cativeiro que passou para lhe darem de comer, sendo homem de boa linhagem, no vir a morrer no espirital de Lisboa, onde morreu, ao menos neste nosso trabalho ter memria do que passou naquele Oriente, pois este o registo daqueles que nele algum bem tem recebido. E verdadeiramente que maior deleitao temos na relao dos mritos dos homens a que o Mundo desemparou em seu galardo, que naqueles que foram bem pagos dele. 496
493 Dcada I, Livro I, Captulo XVI, p. 132. O grifo meu. 494 Cf. Dcada I, Livro V, Captulo II, p. 395. 495 Cf. Idem. Ibidem. 496 Dcada III, Livro VIII, Captulo II, p. 248. O grifo meu. 170
De fato, como assinala Jaques Le Goff, o que sobrevive no o conjunto daquilo que existiu no passado, mas uma escolha efetuada quer pelas foras que operam no desenvolvimento temporal do mundo e da humanidade, quer pelos que se dedicam cincia do passado. 497 Em suma, por um lado, a memria se configurava como propriedade de atualizar impresses ou informaes do passado, mas tambm como esforo ativo de selecionar e perpetuar lembranas. Enfim, aqui, a memria articula-se essencialmente arte da palavra escrita e, diante disso, vale lembrar que pertence, tambm, ao grande sistema da retrica que iria dominar a cultura antiga, renascer na Idade Media, enfim, a memria a quinta operao da retrica. 498 Por isso, no se pode perder de vista que a memria se constitui, principalmente, como instrumento pedaggico: o registro e a constituio da memria deveria atender demanda dos leitores e, sem dvida, a noo de memria deve apresentar-se articulada de modo indissocivel ao seu papel na formao de uma sensibilidade que se constitui como ferramenta da histria.
3.3. Histria e horizonte histrico nas Dcadas de Joo de Barros
Oportunamente, assinalamos a relevncia da noo de horizonte histrico em nosso estudo. Contudo, embora acreditemos, de fato, na possibilidade de ver o passado em seu prprio ser, 499 tal como sugeriu Gadamer, entendemos tambm que a compreenso deste horizonte histrico, quando despido de toda tentao teleolgica limita nossa tarefa produo de um inventrio de fatos desconexos. Com efeito, ao passo que nossa investigao se debrua sobre as categorias acionadas nas Dcadas, torna-se imperativo, para compreendermos o horizonte histrico de Joo de Barros, nos atermos s conotaes que a ideia de histria possui nesta obra. Sobretudo diante da constatao de que ela se apresenta em estreita relao com outras categorias, tais como a fala, as letras, a escrita, a escritura e a memria. Com efeito, interessa ao nosso estudo anotar, previamente, que de acordo com Jaques Le Goff, a palavra histria (em todas as lnguas romnicas e em ingls) vem
497 LE GOFF, Jaques. Documento/Monumento. In: Op. cit. p. 525. 498 Cf. LE GOFF, Jaques. Memria. In: Op. cit. p. 437. 499 GADAMER, Hans-Georg. Op. cit. p. 452. 171
do grego antigo historie. Por sua vez, ainda segundo Le Goff, o grego histor remete- nos a um testemunho, enfim, quele que v. 500
Esta concepo da viso como fonte essencial de conhecimento leva-nos ideia de que histor, aquele que v, tambm aquele que sabe; historeien, em grego antigo, procurar saber, informar-se. Historie significa procurar. este o sentido da palavra em Herdoto, no incio de suas Histrias, que so investigaes, procuras [...] 501
Ainda para Le Goff, alm de exprimir outros conceitos, a noo de histria expressa, tambm, a ideia de narrao, uma histria uma narrao, escreve o historiador. 502 Diante disso, e tendo em vista as noes subliminares de testemunho e de narrao, no seria equivocado sugerirmos que a ideia de histria est atrelada narrao de um fenmeno que foi testemunhado, algo que fundamentalmente circunstancial e no pode se repetir de modo idntico, por fim, um acontecimento especfico. Por sua vez, J. G. A. Pocock faz notar que o pensamento do baixo medievo considerava o circunstancial e o particular menos compreensveis e menos racionalizveis que o universal. Com efeito, na perspectiva deste autor, a narrativa dos acontecimento particulares foi reputada por Aristteles como inferior tanto poesia, quanto filosofia, sobretudo por sua insuficincia no esclarecimento do significado universal dos acontecimentos. Ainda segundo Pocock, historicamente, o pensamento cristo jamais percebeu a sucesso de acontecimentos particulares e de fenmenos no tempo. Diante disso, para ele, a emergncia de modelos histricos explicativos teve muito a ver com a substituio de uma viso de mundo crist por outra mais temporal e secular. 503
Tendo isso em vista e, diante da tarefa de nos atermos s conotaes que a noo de histria possui na obra magna de Joo de Barros, importante, a princpio, atentarmos para a evidente indistino existente entre a noo de histria e a noo de crnica nas Dcadas. De fato, a historiografia contempornea opera neste mesmo
500 Cf. LE GOFF, Jaques. Histria. In: Op. cit. p. 18. Grifo do autor. 501 LE GOFF, Jaques. Op. cit. p. 18. 502 Cf. Idem. ibidem. 503 Cf. POCOCK, J. G. A. El momento maquiavlico. El pensamiento poltico florentino y la tradicin republicana atlntica. Trad. Marta Vzquez-Pimentel y Eloy Garca. Madrid: Editorial Tecnos, 2008. 172
horizonte, tal como podemos notar, por exemplo, no artigo de Luis Filipe Barreto dedicado a mapear a presena do continente asitico na cultura portuguesa entre os sculos XV e XVII. Segundo Barreto, o primeiro exerccio de uma histria do relacionamento luso-asitico data de cerca de 1520-1521, feito por um annimo que foi articulando as informaes chegadas, na Crnica do Descobrimento e Primeiras Conquistas da ndia pelos Portugueses. 504 De fato, sob a perspectiva dos estudos literrios, o sculo XVI pode ser compreendido como o momento decisivo da separao entre as noes de histria e crnica:
No incio da era crist, chamava-se crnica a uma relao de acontecimentos organizada cronologicamente, sem nenhuma participao interpretativa do cronista. Nessa forma, ela atinge o seu ponto alto na Idade Media, aps o sculo XII, quando j apresentava uma perspectiva individual da histria, como fez Ferno Lopes, no sculo XIV. As simples relaes de fatos passam, ento, a chamar-se cronices. E, no sculo XVI, o termo crnica comea a ser substitudo por histria. 505
De fato, Ferno Lopes assinala um importante momento da cronstica portuguesa. Oportunamente, Luiz Costa Lima sugeriu que, ao praticar a crnica como anlise de acontecimentos de cunho poltico, Ferno Lopes se contrapusera prtica medieval do registro encomistico. 506 Por sua vez, Felipe Charbel Teixeira nos ajuda a compreender melhor as diferenas entre crnica e histria. O autor sugere que ao longo dos sculos XIII e XIV, as crnicas eram compostas em lngua vulgar e, alm disso, eram estruturadas livremente: raramente apresentavam uma introduo geral de carter filosfico, no se atinham exclusivamente vida poltica e assuntos militares. Ao passo que a histria, anota Felipe Charbel, deveria fornecer padres de compreenso mais complexos que a pura descrio dos eventos. 507
504 Cf. BARRETO, Lus Filipe. A sia na cultura portuguesa (c. 1485 c. 1630)... p. 116. O grifo meu. 505 SOARES, Anglica. Gneros literrios. So Paulo: Editora tica. 1993. p. 64. Importante referncia para o assunto sob perspectiva dos estudos literrios, cf. tbm. CANDIDO, Antonio (et alli.). A Crnica: o gnero, sua fixao e suas tranformaes no Brasil. Campinas: Editora da UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundao Casa de Rui Barbosa, 1992. 506 LIMA, Luiz Costa. Op. cit. p. 42. 507 Cf. TEIXEIRA, Felipe Charbel. Timoneiros: retrica, prudncia e histria em Maquiavel e Guicciardini. Campinas: Editora da UNICAMP, 2010. pp. 181 e 182. 173
Com efeito, ainda que esta metamorfose do cronista em historiador 508 tenha ocorrido de modo processual e, por isso, nos seja impossvel assinalar o ponto exato dessa transformao, aqui, nos deteremos unicamente sobre as conotaes inerentes noo de histria. Em suma, a noo de histria no mbito do universo letrado quinhentista se apresenta articulada ao conhecimento das letras. Por sua vez, o domnio das letras, articulado ao compromisso moral que deve se concretizar na prtica da escrita, serve de fundamento credibilidade do autor. Diante disso, a dedicao escrita da histria deve ser compreendida como ofcio especializadssimo. sob esta perspectiva que, na obra de Joo de Barros, podemos compreender o comentrio a respeito da figura de Gomes Eanes de Zurara, homem neste mister da histria assaz diligente e que, tal como mencionamos anteriormente, bem mereceu o nome do ofcio que teve: 509 isso a despeito do fato de que Zurara seja denominado sistematicamente como cronista destes reinos. 510 Em sntese, importa notar que a partir de 1454 Zurara ocuparia o cargo de guarda-mor da Torre do Tombo, o que permite Lus Filipe Barreto aloc-lo em um quadro administrativo estatal que se intelectualiza cada vez mais, vindo a restringir as atividades mais burocrticas em virtude do seu estatuto de historiador. 511 Com efeito, para Barreto, o discurso historiogrfico de Zurara assinala a lenta e gradativa transio da historiografia medieval para a historiografia renascentista em Portugal:
Transio gradativa entre o outono da medievalidade e o nascimento do Renascimento Portugus que levar Pedro de Mariz, em 1594, nos seus Dilogos de Vria Histria a chamar cronista a Rui de Pina e historiador a Joo de Barros, mostrando a diferena que une/separa ao mesmo tempo estes dois momentos. 512
De fato, a histria demandava alta especializao profissional. mais uma vez Felipe Charbel Teixeira quem nos faz notar que, para um humanista como Coluccio Salutati, por exemplo, somente um profundo conhecedor das questes pblicas
508 Fao aqui uma livre apropriao da formulao presente no artigo de Jorge Fernandes da Silveira. Cf. SILVEIRA, Jorge Fernandes. Ferno Lopes e Jos Saramago Paisagem Linguagem. Cousa de Veer In: CANDIDO, Antonio (et alli.). Op. cit. p. 29. 509 Dcada I, Livro II, Captulo I, p. 137. Os grifos so meus. 510 Dcada I, Livro I, Captulo III, p. 31. O grifo meu. 511 BARRETO, Lus Filipe. Descobrimentos e Renascimento. Formas de ser e pensar nos sculos XV e XVI. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983. p. 65. O grifo meu. 512 BARRETO, Lus Filipe. Op. cit. p. 64. 174
importante atentar para o pressuposto universalista tanto da comunidade poltica, quanto de suas questes pblicas e da retrica estaria apto a compor um texto histrico diligente e cuidadoso, capaz de fornecer lies teis por meio de exemplos abundantes, e assim orientar o homem no sentido da virtude. 513 Neste sentido, no seria fora de propsito mencionarmos o exemplo de Michel de Montaigne, que anota o nome do bispo Jernimo Osrio como o melhor historiador latino de nossos tempos. 514
Historiador latino, escreveu o filsofo francs: sem dvida, esta observao ganha pleno significado quando nos lembramos de que Osrio foi oportunamente considerado um dos maiores vultos na prosa neolatina de Quinhentos, pela amplitude ciceroniana do perodo, a fluncia de um estilo rico de colorido narrativo, a largueza do quadro e a grandeza de concepo. 515 Ou seja, a escrita da histria no era apenas uma atividade altamente especializada, mas tambm, como anota Lus de Sousa Rebelo, nos remete importncia do latim no mbito da cultura humanista, bem como toda produo literria resultante deste quadro mental, convenientemente denominada como prosa neolatina. Todavia, se o latim foi a lngua culta por excelncia, o humanismo permitiu, tambm, a produo intelectual em lngua verncula. Jacob Burckhardt observa este fenmeno para o caso italiano. Os grandes historiadores florentinos do princpio do sculo XVI, anota Burckhardt:
Escreveram em italiano no simplesmente porque no pudessem mais competir com a elegncia refinada dos discpulos de Ccero de outrora, mas porque, como Maquiavel, apenas numa lngua viva que podem registrar a matria que apreenderam por meio da observao viva e direta, e porque [...] desejam obter o efeito mais amplo e profundo possvel com sua viso do curso dos acontecimentos [...] so cidados escrevendo para cidados [...]. 516
A despeito dos motivos que teriam levado os historiadores a escreverem em lngua verncula, importante nos atermos a este fenmeno, uma vez que encontra correspondncia no humanismo portugus. Em sntese, no podemos esquecer que Joo de Barros nos legou uma gramtica em portugus, ainda que seja relevante a observao
513 TEIXEIRA, Felipe Charbel. Op. cit. p. 177. 514 MONTAIGNE, Michel de. Os Ensaios... Captulo XIV, p. 77. 515 REBELO, Luis de Sousa. A tradio clssica... p. 127. 516 BURCKHARDT, Jakob. A cultura do renascimento... p.185. 175
de que a preocupao em disciplinar gramtica e ortograficamente o portugus no alheia a uma utilizao do latim, enquanto modelo de organizao de todas as lnguas. 517 De todo modo, assim como Maquiavel e Guicciardini escreveram em lngua vulgar, as Dcadas foram escritas em portugus; esta histria vai em linguagem, 518 anotou Joo de Barros para advertir os leitores que estranhassem termos arcaicos ou oriundos de lnguas estrangeiras. Em suma, sua ateno dirigida a um pblico de leitores que encontrasse sentido em sua escritura. Com efeito, a preocupao do humanista portugus com a inteligibilidade de sua histria por parte dos leitores se faz notar em uma das notas explicativas de seu texto:
E porque tamanha distncia de mares que navegamos e fortalezas que possumos e sustemos, se em um mesmo tempo que os casos neles aquecidos quisssemos ajuntar em curso de histria, seria este curso de diversos remendos, por se no enxergar este defeito, faremos dois cursos de histria, porque assim ser melhor retida da memria dos lentes. 519
O cuidado manifesto pelo autor de que sua histria fique retida da memria dos lentes adquire ainda maior relevncia quando atentamos para o fato de que Joo de Barros foi um letrado pertencente ao quadro administrativo e poltico da coroa portuguesa, fundamentalmente comprometido com a respublica. Diante disso, importante nos debruarmos sobre os usos da histria em face de um pblico de lentes sem perder de vista que, se por um lado, a alfabetizao caracterstica comum aos lentes pressupe um incentivo autoconscincia, por outro, foi usada historicamente como instrumento de controle social pelo Estado e tambm da Igreja atravs da sistemtica tentativa de subordinar as opes polticas por meio da orientao das leituras de acordo com valores e identidades intrnsecas a cada regime poltico. 520
Neste sentido vale a ressalva de que so os estudos atuais sobre alfabetizao a sugerir que este fenmeno incentive a autoconscincia 521 que ocorre, evidentemente, no mbito das individualidades. Contudo, no seria equivocada a considerao de que,
517 CURTO, Diogo Ramada. Op cit. p. 14. 518 Dcada II, Livro VI, Captulo I, p.2. 519 Dcada III, Livro VIII, Captulo I, p. 240. 520 Sobre o assunto, cf. BURKE, Peter. e PORTER, Roy (orgs.). Histria social da linguagem. Trad. Alvaro Hattnher. So Paulo: UNESP, 1997; e CHARTIER, Roger (org.). Prticas de leitura. Trad. Cristiane Nascimento. So Paulo: Estao Liberdade, 2001. 521 Cf. BURKE, Peter. Os usos da alfabetizao no incio da Itlia moderna. In: BURKE, Peter. e PORTER, Roy (orgs.).Op. cit. pp. 15-41. 176
em termos coletivos, esta conscincia tenha se manifestado no plano da revoluo cultural que se operou ao longo da poca Moderna no mbito dos sistemas de referncia da civilizao ocidental, ou seja, no mbito da filosofia, da religio, da cincia, da esttica, da tica e da poltica. 522 Enfim, como temos visto, um dos desdobramentos do humanismo foi a instaurao da escritura laica como referencial moral desde que fosse manifesto o compromisso moral do autor com a prtica da escrita. Diante disso vale observar que, doravante, a histria ser compreendida como uma sucesso de eventos que ocupa lugar em uma temporalidade de carter social e pblico. 523 Por sua vez, o desdobramento mais evidente deste fenmeno foi a laicizao da cultura at ento exclusivamente religiosa e, tal como mencionamos anteriormente de modo sumrio, a superao de mitos e fbulas que ao longo da Idade Mdia ornaram a imaginao europeia, como a do Preste Joo, por exemplo, o mais clebre dos mitos. 524 Com efeito, tal como pontuamos de modo sumrio anteriormente, Joo de Barros encontraria espao em sua histria para a desconstruo deste tipo de mito:
Porque, como nestas partes da Cristandade comumente andava este nome Preste Joo das ndias, e vamos alguns religiosos que habitavam nesta Abassia, parecia-nos, por a pouca notcia que se tinha daquelas partes, ser este seu prncipe aquele grande Preste Joo das ndias, donde procedia trabalharem os da nossa Cristandade por ter sua amizade e comunicao. E ainda que em a nossa Geografia largamente escrevemos do Estado deste Rei da Abassia, para declarao desta histria aqui trataremos algum pouco de suas coisas, e principalmente deste erro, que anda entre o vulgo, cuidando ser ele aquele grande Preste Joo das ndias, a qual opinio tem enganado a homens doutos. 525
sugestivo pensar que a desconstruo desse mito resulta do compromisso moral do autor com a escritura, ou ainda, com sua necessidade de tornar compreensvel a histria. Desta obrigao se desdobra, tambm, sua necessidade de capturar o prprio desenrolar da histria e reconhecer um de seus elementos fundamentais: o tempo e as transformaes que ele imprime s sociedades humanas, ou seja, as mudanas que a
522 LAFAYE, Jaques. Por amor al griego... 523 Cf. POCOCK, J. G. A. Op. cit. 524 Cf. DELUMEAU, Jean. A civilizao do renascimento. Trad. Pedro Eli Duarte. Lisboa: Edies 70, 2004. pp. 42-43. 525 Dcada III, Livro IV, Captulo I, p. 360. O grifo meu. 177
experincia histrica de Portugal na poca dos descobrimentos opera no mbito das ideias, ou, por fim, a transformao de uma opinio que tem enganado homens doutos. Com isso, ainda que o horizonte histrico de Joo de Barros esteja atrelado a uma viso de mundo crist, bem como a uma concepo de tempo circular no convm olhar sempre as coisas presentes, mas a revoluo que elas tem do pretrito para o futuro, porque o seu curso natural um responder ao outro, e um mal ao outro mal, por estarem as coisas futuras sujeitas a terem as vezes que j tiveram, quase como um curso circular, 526 escreveu nosso autor no Prlogo da terceira Dcada , sua observao a respeito de uma transformao histrica implica uma notria sensibilidade diante de um acontecimento singular, que embora esteja aqum de uma tomada de conscincia, no deixa de sugerir uma operao intelectual que nos revela autonomia do presente em relao ao passado. Alm disso ao longo do tempo em que trabalhou em sua sia, o historiador quinhentista verificou a ocorrncia de mudanas polticas no Estado do Preste. Este reconhecimento da inconstncia do curso da histria nos leva a atentar para sua sensibilidade de que o momento histrico descrito no uma totalidade homognea, objetivada, enfim, de que a histria possui uma caracterstica que poderia ser chamada de movncia, tal como podemos observar em outra nota explicativa do autor:
O estado do Preste porm que ao presente que ns compomos esta Histria seja bem pequeno e mudado com a entrada que os mouros fizeram em todo o seu reino, fazendo-se senhores dele quase por discurso de treze anos, sendo ele recolhido em partes remotas de serranias, por salvar a vida, at que os nossos custa de seu prprio sangue o restituram [...]. 527
Por sua vez, ainda no que tange ao compromisso moral do autor com a escritura e, neste caso, a escritura como fundamento da autoridade na narrativa, importante atentarmos novamente para a significativa presena da histria e da cronstica produzida por povos no cristos, tal como certa vida vertida do Persa para o portugus que foi utilizada pelo humanista como fonte. Ora, ainda que a penetrao da historiografia Persa no Ocidente remonte aos gregos e certamente tenha sido facilitada por seu carter
526 Dcada III, Prlogo, sem notao de pgina. 527 Dcada III, Livro IV, Captulo II, p. 393. O grifo meu. 178
cosmopolita, como observou Arnaldo Momigliano, 528 este fato no deixa de revelar o reconhecimento por parte de Joo de Barros, de uma autoridade oriunda de outra matriz cultural, independente do credo:
[...] o gro Tamor Langue, a que muitos corruptamente chamam Tamor Lam, cuja vida ns temos em persa, e de que ao tempo que compunhamos esta histria, tnhamos tirado em nossa linguagem boa parte dela, sendo parto de nao e senhor de toda a Prsia. 529
Por fim, operando, ainda, na relao do compromisso moral estabelecido entre autor, escrita e histria, vale atentarmos para a responsabilidade que a seleo das fontes implicava nesta tarefa. 530 Diante disso, importante notar que o ofcio do cronista havia de levar em conta toda escritura e toda memria que houvesse disponvel, tal como anotamos anteriormente. Entretanto, era importante que se aproveitasse, tambm, as fontes orais. No que nosso humanista estivesse inovando neste aspecto, por assim dizer, metodolgico: oportunamente, Paul Zumthor assinalou a primazia da palavra
528 Cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. Op. cit. 529 Dcada II, Livro IV, Captulo IV. pp. 412 e 413. O grifo meu. 530 Dentre as fontes de informao utilizadas por Joo de Barros, a edio digital da sia de Joo de Barros de T. F. Early e Stephen Parkinson arrola as seguintes: Francisco lvares; Afonso Cerveira; Joo Fernandes; Frei Gasto; Ferno Peres de Andrade III; Antnio Galvo; Duarte de Resende; Domingos de Seixas (cativo 25 anos no reino do Sio); um seu cativo, turco (annimo), preso em Baora; um escravo chins; informadores malaios; fontes clssicas (gregas e latinas cf. Ptolomeu; Plnio; Plutarco); crnicas do reino de Portugal; cartas dos mareantes do Oriente; livros das contas do reino de Portugal; o Roteiro de D. Joo de Castro; o Itinerrio de Antnio Tenreiro; a Verdadeira Informao das terras do Preste Joo (1540), por Francisco lvares; Fides, Religio, Moresque Aetiopum ... de Damio de Gis; papis e um livro de Gonalo Gomes de Espinhosa; a Crnica de D. Afonso; a Crnica de D. Joo II; roteiro da viagem de Fr. Garcia de Loais; duas arcas dos papis de Nuno da Cunha; as crnicas de Gomes Eanes de Zurara; Rui de Pina; cartas de Afonso de Albuquerque a Rui de Pina; os livros e papis de Andrs de San Martin; cartas do rei a Afonso de Albuquerque, D. Francisco de Almeida e Nuno da Cunha; os registos da Torre do Tombo; Francisco de Andrade; Bembo; Ferno Lopes de Castanheda; da Costa; Lopo de Sousa Coutinho; Diogo do Couto; Antnio Galvo; Fr. Antnio de Gouvea; Guerreiro; Antnio de Herrera; Lucena; Garcia de Orta; Pinto; Fr. Joo dos Santos; Antnio de Nebrija; crnicas espanholas; Roteiro da viagem de Fr. Garcia Jofre de Loaisa; o Generalium Dierum de Alexandro ab Alexandro; o Novus Orbis Regionum ac Insularum veteribus incognitarum ... de Ludovico Romano (Basileia, 1532); o roteiro dum veneziano comitre duma gal; papis e livros duma inquirao sobre a vida de S. Tom (dados a Joanne Riccio de Monte Pulciano para a histria de Paulo Jvio, bispo Noscerino); os escritores do reino de Guzerate; crnicas dos reis do Guzerate ; crnicas dos rabes; uma crnica geral dos persas (Tarigh [Ta'rikh]); livros de geografia dos rabes e persas; livros chineses de geografia e cosmografia e uma carta chinesa; um livro impresso; informadores malaios; crnicas dos indianos escritas em olas (folhas de palma); crnicas dos reis de Ormuz; folhas dos livros da fazenda dos reis de Ormuz; diversas crnicas dos reinos da ndia; uma crnica dos reis de Quloa; uma crnica do rei Dariar [Darya Khan]; uma vida de Tamorlo em persa [o Zafar-namos (?)]; traslado do Fr. Mauro duma carta do Sulto do Cairo; cartas do rei Mahamed ben Manzagul (em poder de Barros); um traslado duma doao de Mantrasar a um pagode de Goa; captulos selados entre Nuno da Cunha e Mir Mahamed Zaman; cantares picos dos ternates; cantigas picas dos malaios; cantiga pica ouvida na Corte do Preste Joo. 179
humana na formao das artes liberais que deram origem aos primeiros historiadores nacionalistas ao incio do sculo XII. Os autores destas primeiras histrias nacionais, escreve Zumthor, se inspiraram tanto nas fontes escritas, quanto (e s vezes at mais) nas tradies orais, recolhidas de seu entorno, s vezes encontradas mediante investigao. 531 Da uma necessria habilidade de explorar o mximo de seus informantes. Joo de Barros, ainda que no fosse cronista de ofcio, revela-nos sua destreza em conseguir as informaes necessrias para sua histria:
E daqui vem que os seus feitos, sendo dignos de muito louvor acerca das gentes, por esta razo de competncia ficam sepultados no esquecimento, da qual verdade temos experincia no trabalho que nos deu tirar do peito deles as coisas do discurso desta histria e Deus testemunha ser este o maior que nela levamos. 532
Com efeito, a instaurao da escritura laica como referencial moral se inscreve no curso das lentas mudanas que definiriam novos paradigmas culturais para a sociedade ocidental. A estas mudanas se articulam, tambm, os usos da histria no mbito poltico. Em suma, tomando como referncia a Repblica de Veneza, Joo de Barros sugere que a histria haveria de fornecer os exemplos de aconselhamento no intuito de perpetuar, tambm, a respublica portuguesa, os italianos geralmente to dados lio da histria, por causa do governo da ptria, para, da conferncia do passado ordenarem o presente observou o humanista viseense. 533 De todo modo, tais usos no se apresentam, ainda, descolados de uma mentalidade religiosa. Ora, se a emergncia de modelos histricos explicativos tem a ver com a substituio de uma viso de mundo crist por outra, mais temporal e secular, importante notar que as apropriaes polticas da histria no abriam mo da religio: neste sentido, podemos perceber que as glrias e o esforo desempenham importante papel na justificao de espaos e posies conquistadas em termos geopolticos, ao que podemos acresentar o fato de os portugueses se entenderem como escolhidos por Deus para a vitria:
E porque Nosso Senhor lhe deu vitria com que convm fazer aqui uma fortaleza que o Rei mandava, e nosso costume em toda esta histria ser
531 Cf. ZUMTHOR, Paul. Op. cit. p. 102. A traduo para o portugus foi feita por mim. 532 Dcada II, Livro V, Captulo XI. p. 558. O grifo meu. 533 Cf. Dcada III. Prlogo, sem notao de pgina. 180
descrever sempre o stio da terra onde fundarmos alguma, e darmos as causas disso, pois esta a primeira de pedra e cal que nestas partes fundamos [...]. 534
Sobre o assunto, Lus Filipe F. R. Thomaz e Jorge Santos Alves fazem notar que os portugueses do sculo XVI julgavam-se credores da proteo divina. De acordo com os autores, neste contexto, houve uma tendncia em ver Deus como uma divindade guerreira que garantiria a vitria lusa nas mais adversas ocasies. Por sua vez, esta inclinao, radicada numa tradio cruzadstica e mesclada concepo veterotestamentria de povo-eleito manifesta-se no mbito da cristandade acrescida noo feudal de suserano, que faz de Deus o protetor nato dos seus bons vassalos, os cristos, que por Ele se batem. 535 Em sntese, esta possibilidade de uso da histria que permite coroa portuguesa reclamar o direito de usocapio, ou seja, legitima sua presena ao redor do globo, tal como vimos anteriormente. Enfim, a histria pertencia a um domnio de notria especializao, cuja escrita, alm de inteligvel, apresentava-se articulada a um evidente esforo de orientar e normatizar a diversidade de leituras possveis por meio de um franco compromisso com os pressupostos universalizantes da comunidade poltica. Indcio desse esforo simultaneamente persuasivo e normatizador, o imperativo dos assuntos considerados prprios da histria. Com efeito, tais assuntos deveriam ser ordenados do modo que convm para que o entendimento enfim, a inteligibilidade dos lentes alcanasse deleite. Diante disso, para examinarmos com rigor a noo de histria na obra de Joo de Barros, no podemos deixar de atentar para o fato de que ela possui objetos especficos a serem abordados. sob esta perspectiva que podemos compreender o relato apresentado pelo humanista a partir da recuperao da crnica de Rui de Pina a respeito da presena do Prncipe de Jalofo, Bemoi, em Lisboa, na ocasio de seu batismo. Aqui, Barros nos revela que abandonar a eloquncia para assumir seu intento, que o de contar os fundamentos do seu desterro e o que sucedeu desta sua vinda, por isso ser prprio da histria. 536
534 Dcada I, Livro VIII, Captulo III. p. 204. O grifo meu. 535 THOMAZ, Lus Filipe F. R. e ALVES, Jorge Santos. Op. cit. pp. 126-127. 536 Dcada I, Livro III, Captulo VI. p. 202. O grifo meu. 181
Objeto prprio da histria, aqui, a trajetria singular do Prncipe de Jalofo. Se como apontamos, a narrao de um fato circunstancial no alcana a universalidade desejada, preciso notar, antes, que o pressuposto do imperialismo luso que abordamos anteriormente ala este fato esfera dos interesses pblicos, estes sim, universais. Com efeito, este um fato que, certamente, pode ser compreendido como pertencente esfera da poltica ou da religio, se considerarmos a problemtica de sua converso. Contudo, este no o nico momento em que o humanista define o poltico como objeto da histria. Sem dvida, as relaes polticas que o reino portugus estabelecia com povos e reinos alhures tambm eram considerados dignos de comporem o relato, tal como nos faz notar Joo de Barros ao comentar a relao que Portugal estabelece com os reis de Cochim e Cananor:
Os quais com estes embaixadores que enviaram a este reino, e depois por muito contentamento que tiveram das obras do Rei Dom Manuel, assim ficaram estes dois prncipes os maiores do Malabar (depois do Samori) to fiis e leais amigos a seu servio, quanto no discurso desta histria se ver. 537
Esta dimenso poltica da histria se faria presente, ainda, por meio da narrao de aes, como a fundao de cidades, ou as tenses e disputas de poder em nvel local, tal como o ocorrido na cidade de Quiloa, onde o poder foi usurpado pela figura de um tirano, como podemos observar no relato Joo de Barros a respeito do evento:
E porque no somente para prosseguimento desta histria, mas ainda para criao do Rei que Dom Francisco de Almeida nela novamente criou, convm sabermos a fundao desta cidade e os reis que nela foram, at este que era tirano chamado Mir Abrahemo, que a desemparou, trataremos um pouco desta matria. 538
As questes polticas relacionadas s disputas de poder locais que se desdobram do exerccio da tirania so temas explorados de modo substancial na sia. Diante disso, importante anotarmos que, se a escrita da histria tem a pretenso de registrar acontecimentos em um quadro cronolgico, estes registros no deixam de ser um
537 Dcada I, Livro V, Captulo IX. p. 459. O grifo meu. 538 Dcada I, Livro VIII, Captulo VI. p. 224. O grifo meu. 182
princpio interpretativo em si, visto que tanto podem nos remeter a uma mudana, quanto a valores morais que sero perpetuados pela escritura. 539 Neste sentido a importncia da escrita da histria em Joo de Barros reside, tambm, no modo como os portugueses representaram a dinmica poltica no mundo Oriental. Interessante, neste sentido, o relato de nosso humanista a respeito dos embates polticos em Ormuz:
Porque nestas partes comum os reis servirem-se destes capados e assim de outros escravos seus de vrias naes; e quando os acham homens fiis e de boas habilidades, sempre lhe entregam as principais coisas do governo de seu estado. E a causa por que o fazem de tiranos: c por uma parte se temem, e no querem fazer governadores a homens poderosos naturais da terra, porque no tenham favor do povo com que possam reinar algum modo de traio; e por outra querem tiranizar o povo por mos destes seus escravos, aos quais eles muito a mide do uma cresta de lhe tomar quanto tem, e logo o tornam a pr no ofcio para lhe fazer outro tanto, e aos capados ainda estimam mais por no terem filhos para quem hajam de roubar. Assim que por esta causa so os escravos acerca dos mouros muito estimados, dos quais os reis gentios no usam, posto que da comunicao deles em algum modo j tenham estes governadores, mas no que os escravos tenham ante eles tanta dignidade. Os quais escravos, como pelo o discurso desta Histria se ver, e em a nossa Geografia, muitas vezes mataram os senhores e se apoderaram do estado do senhor, porque o nimo humano sofre mal sujeio; e por causa desta liberdade no h parte no Mundo, onde se no ache mo armada por a defender. 540
Ora, ao passo que, para os humanistas, a histria deveria comprometer-se com a virtude e o bem pblico, 541 valida a considerao de que, na pena de Joo de Barros, a representao do mundo poltico oriental no deixa de reverberar as clssicas atribuies feitas por Herdoto aos Persas, onde a ausncia de liberdade e a obedincia servil eram o imperativo de uma terra de tiranos e vaidosos. Segundo Anthony Pagden, na descrio do historiador grego, os orientais eram tidos, simultaneamente, como indolentes e cruis, voluptuosos, lascivos, homens que desposavam as suas irms ou mes, que no sepultavam devidamente os mortos e expunham os doentes aos
539 Cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. Op. cit. 540 Dcada II, Livro II, Captulo II. pp. 119 e 120. 541 Cf. TEIXEIRA, Felipe Charbel. Op. 183
elementos. 542 Em vista disso, relevante o fato de que Herdoto tenha se tornado um autor respeitado desde meados do sculo XV quando seus textos comearam a circular a partir da traduo feita por Lorenzo Valla , 543 principalmente em face das observaes feitas por Franois Hartog, ao considerar a atividade de nominao exercida pelo narrador como um modo de convocar um saber socialmente compartilhado. 544
Em suma, para Joo de Barros, a poltica objeto da histria. Importante, nessa perspectiva, a constatao do impacto de um autor como Tito Lvio no mbito da historiografia renascentista. Para Arnaldo Momigliano, Tito Lvio bem como Tcito est por trs do renascimento do ideal grego de histria poltica que uma parte to conspcua da renascena mais geral dos valores e formas clssicos no sculo 16 (sic.). 545 Com efeito, se nos debruamos sobre a forma pela qual Joo de Barros nos apresentou sua obra magna, onde cada um dos trs volumes que a compem possui dez livros, no podemos deixar de encontrar em Tito Lvio seu historiador de referncia: seguramente, o ttulo Dcadas evocou, para o leitor coevo, uma tradio qual Joo de Barros situa seu trabalho e cujas razes remontam histria de Roma composta pelo historiador latino. 546
Ainda no que tange presena da histria poltica nas Dcadas de Joo de Barros, vale atentarmos para a importncia dispensada pelo humanista diversidade poltica do Ceilo, dividido em nove estados, e cada um destes se chama reino. 547
Por sua vez, assim como a vida poltica, a histria haveria de se deter, tambm, sobre assuntos militares. A este respeito, possvel notar a preocupao de Joo de Barros com a dinmica das relaes portuguesas com Melique Yaz, governador de Diu, onde o humanista revela que toda esta nossa histria vai tratando dos negcios e guerra que
542 PAGDEN, Anthony. Mundos em guerra: 2500 anos de conflito entre Ocidente e Oriente. Trad. Muguel Mata. Lisboa: Edies 70, 2009. p. 91. 543 Cf. MOMIGLIANO, Arnaldo. Op. cit. 544 Cf. HARTOG, Franois. El espejo de Herdoto. Ensaio sobre la representacin del otro. Trad. Daniel Zadunaisky. Buenos Aires: FCE, 2002. 545 Cf. Idem. Op. cit. 546 A Histria de Roma, foi composta por volta do ano 27 a. C. e compreendia, originalmente, 142 livros, dentre os quais 107 foram perdidos. Os livros suprstites foram agrupados pelos crticos em dcadas dentre as quais a primeira dcada livros 1-10, que tratam de acontecimentos da fundao de Roma at a terceira guerra contra os samnitas, no ano 293 a. C. so os mais famosos. cf. VITORINO, Jlio Csar. Introduo. In: TITO LIVIO. Histria de Roma livro I: a monarquia (Ab Vrbe Condita, liber I). Traduo Mnica Vitorino; introduo e notas Jlio Csar Vitorino.Belo Horizonte: Crislida, 2008. pp. 7 30. 547 Dcada III, Livro II, Captulo I. pp. 116 e 117. 184
tivemos com este mouro. 548 Em sntese, como apontamos oportunamente, vale lembrar que Joo de Barros se propunha a tratar das conquistas portuguesas no oriente. Com efeito, ao passo que a poltica, os negcios e a guerra so apresentados pelo humanista como assuntos pertencentes aos domnios da histria, importa notar que h, tambm, outros temas que so definidos por Joo de Barros como no pertinentes histria, ainda que tais temticas fossem ocasionalmente recuperadas ao longo da narrativa para melhor se apurar a escritura. o que se percebe na descrio feita pelo historiador quinhentista sobre a regio do Reino de Sofala e dos costumes dos habitantes locais:
Muitos outros costumes estranhos a ns tem esta gente, os quais em alguma maneira parecem que seguem razo de boa polcia, segundo a barbria deles; os quais deixamos, porque j nestes estendemos a pena fora dos limites da histria. 549
Anteriormente, anotamos que por ser o resultado de uma escolha a ser perpetuada, o registro histrico tambm um princpio interpretativo. Com efeito, se esta afirmao pde ser compreendida luz da eleio de objetos especficos para os domnios da histria, tal como vimos, ela fica ainda mais evidente quando nosso historiador quinhentista enuncia, de modo literal, seus critrios de seleo para eleger os personagens que ganham visibilidade em sua narrativa. Neste sentido, Zoltn Biedermann j atentou para o fato de que a manipulao de dados era um elemento estruturante de primeira importncia para a escrita barroseana. 550 De todo modo, seus critrios de seleo ganham todo sentido no mbito de uma sociedade hierarquizada, tal como a do Antigo Regime:
Fizemos aqui esta declarao, porque se saiba, quando se acharem capites em todo o discurso desta nossa histria, que no sejam homens fidalgos, sero daqueles que os armadores das naus apresentavam ou homens que por sua prpria pessoa, ainda que no tinham muita nobreza de sangue, havia neles qualidades para isso; e tambm por darmos notcia do modo que levamos em nomear os homens, que este: quando nomeamos algum
548 Dcada II, Livro II, Captulo IX. p. 210. 549 Dcada I, Livro X, Captulo I, p. 387. O grifo meu. 550 BIEDERMANN, Zoltn. Nos primrdios da antropologia moderna... p. 36. 185
capito, se homem fidalgo e to conhecido por sua nobreza e criao na Casa real, logo em falando nele a primeira vez dizemos cujo filho , sem mais tornar a repetir seu pai; e se homem fidalgo de muitos que h no reino, destes tais no podemos dar tanta notcia, porque no vieram ao lugar onde se os homens habilitam em honra e nome, que na Casa do Rei, por isso podem-nos perdoar; e tambm, a dizer verdade, os escritores dos indivduos no podem dar conta, e quem muito procura por eles quebra o nervo da histria, parte onde est toda a fora dela. Todavia, nesta digresso duas coisas pretendemos: notificar a todos que nossa inteno dar a cada um, no somente o nome de suas obras, mas ainda o de seu avoengo, se ambas estas duas vierem a nossa notcia; e a segunda que, quando fizermos algum grande catlogo de capites (porque estes sempre ho-de ser nomeados), ora sejam de naus ou navios, sempre devem entender que as pessoas mais principais, por sangue e por feitos, andavam nas melhores peas da armada. 551
Ora, para Joo de Barros, os critrios esto atrelados noo de superioridade social. Definitivamente, nosso historiador no pretende dar notcias apenas dos feitos de cada personagem, mas tambm anotar a qualidade e a precedncia social de cada um deles quando for o caso notavelmente para aqueles que foram criados na Casa Real. Alm disso, a dignidade de cada um se revela, tambm, na situao ocupada pelo personagem na narrativa, o que nos remete representao de um modelo social pautado, por um lado, pela ideia de excelncia e superioridade e, por outro, por uma relao de subordinao. Com efeito, assim como observou oportunamente Antonio Candido a respeito da figura do nobre, as noes de superioridade e de excelncia esto, por mais de um aspecto, profundamente ligadas representao de um padro ideal de comportamento. 552
Sendo a narrativa de Joo de Barros orientada por este ideal de comportamento, podemos notar que o intento de seleo dos feitos e dos personagens obedeciam inteno de nosso autor: fica aqui uma parte a mais principal desta lio da Histria, que saber eleger qual Histria esta ser para frutificar em proveito prprio, e comum, 553 anuncia o historiador quinhentista. Diante disso, podemos considerar que seu horizonte histrico estava atrelado a um critrio de seleo objetivo dos fatos e
551 Dcada I, Livro V, Captulo X, pp. 464-466. Os grifos so meus. 552 CANDIDO, Atonio. O nobre: contribuio para o seu estudo. So Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2002. (Plaquetas da Oficina; 1). p. 5. 553 Dcada III, Prlogo, sem notao de pgina. 186
que este critrio era socialmente determinado. Sem dvida, sua escrita da histria tinha como norma, tambm, a construo de configuraes motivadas por sua tomada de posio quanto ordem social, tal como nos faz notar Luiz Costa Lima. 554 Com efeito, nosso humanista eloquente a respeito de suas intenes e seus critrios para a escrita. Em suma, uma vez que seu interesse , unicamente, escrever sobre a guerra que os portugueses fizeram aos infiis, evidente que escamotear os conflitos que tiveram entre si:
[...] no espere algum que destas diferenas do Vice-Rei e Afonso de Albuquerque, e assim de outras que ao diante passaram, se haja de escrever mais que o necessrio para entendimento da histria, por no macular uma escritura de to ilustres feitos com dios, invejas, cobias e outras coisas de to mau nome, de que assim os vencedores como os vencidos podiam perder muita parte de seus mritos. Porque acerca dos bares de prudncia, quando ho-de julgar mritos de vida alheia, mais olho tem ao discurso de como se houve em os negcios entre os amigos, que ao pelejar com os imigos, porque nesta parte se v a fortuna de cada um, e na primeira a virtude. 555
Assim, para Joo de Barros, a seleo dos fatos a serem apresentados alinhava- se prpria natureza de sua histria que era a de no publicar defeitos de partes que no fazem a bem dela. 556 Com efeito, a seleo objetiva dos fatos respondia demanda de que a histria haveria de promover, tambm, o deleite: em todo o discurso desta nossa sia mais trabalhamos no substancial da histria que no ampliar as miudezas que enfadam e no deleitam. 557 De fato, sobretudo diante desse compromisso com o deleite, que a histria haveria de ser escrita com estilo, onde o reconhecimento da qualidade do trabalho estava na erudio e no conhecimento que o autor possui a respeito do assunto. Desse modo, a erudio, alm de subsidiar a autoridade, revela-nos tambm o ornamento do discurso histrico: qualidade que parece ter faltado a Barros diante da escassez de seu tempo para dedicar-se integralmente sua escritura, quando comparada do erudito humanista enciclopdico, o mdico Paulo Jvio:
554 Cf. LIMA, Luiz Costa. Op. cit. p. 80. 555 Dcada II, Livro III, Captulo VIII. p. 322 e 323. 556 Dcada III, Livro X, Captulo X. p. 525. 557 Dcada I, Livro VII, Captulo VIII. p. 144 e 145. 187
Paulo Jvio, Bispo Noscerino, baro diligente e curioso destas coisas dignas de escritura, para a sua Histria Geral do seu Tempo, que promete nas obras desta faculdade que j tirou a luz. Das quais coisas eu no quis ser avaro, lembrando-me que na pena e estilo deste doutssimo Paulo Jvio as minhas achegas ficavam postas em edifcio de perptua memria, pois tive sorte de vida que tenho mais cabedal em desejo que faculdade e tempo para este ofcio de escritura. 558
O compromisso com o deleite, associado ao texto ornamentado, ou seja, composto em estilo doutssimo, implica no apenas fruio mas, tambm, credibilidade da escritura. Como vimos, o texto histrico haveria de ser resultado de um trabalho diligente e cuidadoso e, com efeito, Joo de Barros evoca Paulo Jvio, visto que foi um dos mais importantes eruditos do humanismo europeu, alm de profundo conhecedor de Portugal e seus descobrimentos. 559 Enfim, ao passo que o deleite implica fruio e credibilidade do texto, vale atentar, tambm, para o fato de que o compromisso com o deleite demanda submisso ao tratamento dos temas de modo conveniente ou seja, do modo que convm. Existe, portanto, uma evidente relao entre a convenincia na composio da narrativa e o consequente entendimento da histria. Com isso, o que covm ao entendimento da histria deve colaborar na composio da cena para o encadeamento dos fatos que muitas vezes apresentada como a descrio de uma pequena crnica, ao modo de um apndice. Tal como o faz Joo de Barros ao tratar dos feitos de Antonio de Brito na Indonsia at a construo de uma fortaleza na Ilha Ternate, onde o humanista anota que convm fazermos uma pequena demora na relao destas coisas, pois tudo necessrio ao prosseguimento da histria. 560 Ou ainda, na ocasio em que o historiador quinhentista nos revela que, por seguir a ordem a histria, que no princpio deste Oitavo Livro dissemos, convm tratar do que se fez, depois que Dom Duarte comeou governar, at que entregou a governana da ndia ao Conde Almirante, que o sucedeu. 561
558 Dcada I, Livro IX, Captulo I. pp 305 e 306. O grifo meu. 559 Cf. FERNANDES, R. M. Rosado. Introduo. In: RESENDE, Andr de. As Antiguidades da Lusitnia. Introduo, traduo e comentrio R. M. Rosado Fernandes. Estabelecimento do texto latino, Sebastio Tavares de Pinho. So Paulo: Annablume Clssica; Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra, 2011. (Portugaliae Monumenta Neolatina). pp. 5-38. 560 Dcada III, Livro V, Captulo VII. p. 610. 561 Dcada III, Livro VIII, Captulo V. p. 281. 188
Por sua vez, como sugeriu Michel Foucault, a convenincia da ordem da conjuno e do ajustamento 562 e, com efeito, este ajustamento se d no intuito de facultar o deleite, ainda que, para alm disso, deva facultar o entendimento, tendo em vista, sobretudo, respeitar uma ordem, tal como podemos ler no excerto a seguir:
Como toda esta nossa sia vai fundada sobre navegaes, por causa das armadas que ordinariamente em cada um ano se fazem para a conquista e comrcio dela, e as coisas que pertencem a sua milcia irmos relatando, segundo a ordem dos tempos, convm, para melhor entendimento da histria, darmos uma geral relao do modo que se naquelas partes de sia navegava a especiaria com todas as outras orientais riquezas, at virem a esta nossa Europa, ante que abrssemos o caminho que lhe demos para este nosso Mar Oceano, porm que em o tratado do Comrcio copiosamente o escrevemos. 563
Sistematicamente, o horizonte histrico de Joo de Barros apresenta-se, tambm, atrelado ideia de uniformidade, onde a disposio das coisas da histria tem lugar prprio, 564 uma vez que aos assuntos, convm enfiarmos na ordem de nossa histria. 565 Diante disso, cada evento ocupa um espao definido ao longo do tempo, visto que a histria possui seu curso natural. A apreenso deste curso no apenas facilita o entendimento, mas, sobretudo, nos revela a preocupao do humanista com sua coerncia:
Um veneziano comitre de uma gal, que foi na armada de Soleimo Bass, capito do Turco, quando foi ndia combater a nossa cidade Dio, no reino Guzarate (como veremos em seu lugar), fez desta viagem um Roteiro de todos os portos que Soleimo Bass tomou nesta costa da Arbia; e diz que o lugar onde Moiss passou da parte do Egito outra da Arbia, um chamado Corondolo, que ser de Suez quinze lguas e vinte cinco do Tor. E porque seria coisa muito estranha sairmos do curso da nossa histria para concordarmos estas opinies do trnsito e passagem de Moiss, em o Comentrio da nossa Geografia o faremos, por ser mais prprio lugar. 566
562 FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 25. 563 Dcada I, Livro VIII, Captulo I. p. 174 e 175. Os grifos so meus. 564 Dcada II, Livro IX, Captulo V. p. 373. 565 Dcada II, Livro X, Captulo I. p. 397. 566 Dcada II, Livro VIII, Captulo I. p. 272. O grifo meu. 189
Com efeito, a demanda por uma ordenao da histria implica uma maneira bastante regrada de conhecer o passado. Ainda que, juntamente com Michel Foucalt, possamos considerar o pressuposto de que, at o fim do sculo XVI, a semelhana tenha desempenhado um papel construtor no saber da cultura ocidental, 567 dificilmente podemos aceitar, sem reservas, a ideia de que o saber do sculo XVI deixa a lembrana deformada de um conhecimento misturado e sem regra. 568 Ao menos para o caso da histria, e particularmente para as Dcadas de Joo de Barros. Com efeito, no nos resta dvidas de que, para os humanistas, sua elaborao obedecia regras bem definidas e orientadas pela necessidade de deleitar e persuadir seus leitores. Necessidade fundamentalmente pautada no compromisso moral do autor com questes pblicas e de fundo universalizante. O conhecimento da histria era, portanto, fundamento da vida pblica, e a escritura de Joo de Barros a prova mais eloquente disso. Se, como anotamos anteriormente, possvel apreender o horizonte histrico do humanista portugus a partir de seu ponto de vista a respeito do que vem a ser a histria, vale recuperar ainda uma vez o Prlogo da terceira Dcada, momento em que o humanista melhor a definine. Ali o historiador quinhentista nos faz notar que, aqueles que se no davam ao conhecimento da antiguidade das coisas, as quais se alcanam pela lio da Histria, tinham entendimento de meninos e seu destino seria viver em confuso, tal como vivem os brutos. 569 Sem dvida, no seria um equvoco sugerrmos que o emprego destas figuras aciona uma retrica da alteridade, tal como sugeriu Fraois Hartog em estudo inspirador. 570 Definitivamente, tais figuras nos remetem s bases do exerccio da vida civil, da qual as crianas e os brutos ficavam excludas, as primeiras por sua condio de humanidade incompleta, enquanto os segundos, por incorporarem o qualificativo dos escravos por natureza. A histria , portanto, uma prtica poltica e assinala uma tomada de posio, a partir de lies de exemplos no mbito de um imprio cujas glrias situavam-se, j, no passado.
567 Cf. FOUCAULT, Michel. Op. cit. p. 24. 568 Cf. Idem. Op. cit. p. 70. 569 Cf. Dcada III, Prlogo, sem notao de pgina. 570 Cf. HARTOG, Franois. Op. cit. 190
Captulo 4
Cincia moral e barbarismo
E eu, que no costumo ver vitria em nosso tempo de virtude avaro indigno de triunfo e de memria (Petrarca, Triunfo do amor)
[...] para que toda Modernidade seja digna de tornar-se Antiguidade, necessrio que dela se extraia a beleza misteriosa que a vida humana involuntariamente lhe confere. (Charles Baudelaire, O pintor da vida Moderna)
Da mesma forma que a anlise do horizonte histrico de Joo de Barros e a apreenso dos conceitos operacionalizados pelo autor na ordenao do passado conduz a questes inerentes vida pblica portuguesa do sculo XVI, o estudo dos referencias renascentistas que orientam os feitos capturados pela obra do historiador quinhentista conduz a valores estruturantes de formas diversas de violncia simblica que circulavam no interior da sociedade portuguesa. Assim, o embate entre antigos e modernos, bem como a relao entre civl, poltico e brbaro, compem o pano de fundo de um campo de observao necessrio cincia moral, que por sua vez, d margem a procedimentos de opresso e segregao velados tanto pelos pressupostos universalistas da igualdade do gnero humano, quanto pelo reconhecimento dos limites de ingerncia do imperialismo portugus.
191
4.1. Antigos e modernos
Jaques Le Goff sugere que a relao entre antigos e modernos est profundamente ligada histria do ocidente, embora considere possvel encontrar equivalentes dela em outras civilizaes e outras historiografias. 571 Em vista disso, ao longo de nosso estudo, procuramos atentar para o complexo fenmeno da recuperao e imitao da Antiguidade no contexto do Renascimento europeu. Com isso, sublinhamos a ideia de que foi a conscincia histrica do homem moderno que permitiu o necessrio distanciamento caractertico de um procedimento intelectual que, simultaneamente, atualiza e se apropria de uma herana cultural cujas formulaes nem sempre auxiliam na compreenso do mundo coevo. Com efeito, estas apropriaes intelectuais so o resultado mais evidente dos contornos que o Renascimento adquiriu no mbito de suas mais diversas manifestaes, bem como de sua interao dentro dos mais diversos contextos. No que tange ao caso de Portugal, sua especificidade pode ser notada na produo de uma literatura de carter etnogrfico. A respeito da relao que a cultura europia estabelece historicamente com o mundo clssico, Paul Hazard nos faz notar que a Antiguidade permaneceria como modelo digno de admirao durante muito tempo, uma vez que tinham dado ao mundo uma moral que o cristianismo no fez seno completar; na ao, tinham-se comportado sempre como heris. Dificilmente poderamos concordar com a ideia de que o cristianismo completou a Antiguidade, tal como veremos adiante. De todo modo, o que importa sublinhar a ideia de que, para viver, bastava imitar os antigos. Contudo, o predomnio dos antigos estava destinado a encontrar seu termo a partir do momento em que os modernos os destitussem de seu lugar de honra, e redefinissem a noo de moderno. Paulatinamente, assinala Hazard, abandounou-se o partido dos grandes mortos e deu-se a gente a alegria, alis fcil e insolente, de sentir em si o afluxo duma vida nova, embora efmera; preferiu-se apostar pelo presente a apostar pelo eterno. Por sua vez, o autor anuncia que esta viragem se deu a partir da querela dos antigos e modernos, clebre polmica desencadeada por Charles Perrault e Bernard Le Bouyer de Fontenelle em oposio ao princpio de imitao dos clssicos. 572 Por sua vez, Marc Fumaroli assinala que a polmica desencadeada na Frana foi, na verdade, o auge de um
571 Cf. LE GOFF, Jaques. Antigo/Moderno. In: Op. cit. 572 Cf. HAZARD, Paul. Crise da conscincia europeia. Trad. scar Lopes. Lisboa: Edies Cosmos, 1948. Citaes pp. 33 e 34. 192
embate cujo incio remonta ao Renascimento, ou, mais precisamente, a Petrarca, quando este, orientado por seu desejo de recuperar as fontes antigas, denominou sob o qualificativo perjorativo de moderno toda a cincia oriunda das faculdades de teologia e direito de sua poca. 573 Sobre o assunto, ris Kantor assinala que os anos 1680 1715, propostos por Paul Hazard como decisivos para esta mudana da relao com a tradio herdada da Antiguidade, foram canonizados como data inicial do movimento iluminista. 574
Marc Fumaroli sugere que os telogos medievais j fizeram usos diversos da oposio entre antigos e modernos, 575 ao passo que, segundo Jos Antonio Maravall, pode-se dizer que o gosto pela novidade comum para a maioria dos escritores desde Ovdio. Entretanto o autor nota que ao longo da histria, o gosto pelo novo no se manifesta sempre da mesma maneira, e por isso nem sempre se apresenta acompanhado das foras transformadoras que definem novos horizontes aos homens, tal como aconteceu na poca Moderna. Como apontamos anteriormente, o historiador espanhol faz notar que a conscincia da diversidade de pocas ou, em suma, aquilo que poderamos compreender como a percepo da sucesso de eventos articulados em um processo que marcou o gosto pelo novo na primeira modernidade, sobretudo em face da possibilidade de estabelecer comparaes entre as pocas. 576
Com efeito, importa observar que sobre a vertente ibrica da querela dos antigos e modernos, ris Kantor atenta para a importncia da expanso ultramarina na composio deste fenmeno. Na perspectiva da historiadora:
As realidades criadas pela expanso europeia obrigavam reconfigurao dos paradigmas geogrficos, cronogrficos e etnogrficos herdados da Antiguidade. A descoberta da Amrica motivara o sentimento de superioridade dos humanistas ibricos em relao ao passado. 577
573 Cf. FUMAROLI, Marc. La Querelle des Anciens et des Modernes. XVII -XIII sicles. Paris: Gallimard, 2001. 574 Cf. KANTOR, ris. Antigos e Modernos na historiografia acadmica portuguesa e braslica, cronografias e representaes do passado (1720-1724). In: PIRES, Francisco Murari (org.). Antigos e modernos: dilogos sobre a (escrita da) histria. So Paulo: Alameda, 2009. pp. 451-466. Cf. tbm. LOPES, scar. Posfcio do tradutor. In: HAZARD, Paul. Op. cit. 354-348. 575 Cf. FUMAROLI, Marc. Op. cit. 576 Cf. MARAVALL, Jos Antonio. Antiguos y Modernos... 577 KANTOR, ris. Op. cit. pp. 452-453. 193
evidente que os modernos escolsticos criticados por Petrarca no so os mesmos modernos que reconfiguraram os paradigmas geogrficos, cronogrficos e etnogrficos herdados da Antiguidade aps os descobrimentos. Neste sentido, vale notar que datam do sculo XVI as primeiras manifestaes em defesa dos modernos: detidos sobre as temporalidades histricas, Jean Bodin, em seu Mtodo para facilitar o conhecimento da histria, de 1566 e Louis Le Roy, em seus Doze livros da variedade de coisas e vicissitudes do universo, de 1576, legitimam a superioridade dos tempos modernos. 578 Contudo, no se trata de que en un momento dado, en el curso multisecular de las edades, la humanidad haya dado un gran salto y haya logrado mejoramiento, de una vez, sobre los estados precedentes. 579
Como observou Jos Sebastio da Silva Dias, o conflito entre antigos e modernos que se desenhou no contexto dos descobrimentos est longe de assumir o mesmo significado histrico daquele dos sculos XVII e XVIII. 580 Com efeito, nas Dcadas de Joo de Barros, notria a existncia da noo de moderno, ainda que a categoria no denote, necessariamente, superioridade em relao aos antigos. Notvel exemplo nos apresentado pelo historiador quinhentista na preparao de toda a obra quase em modo de argumento e diviso dela, quando o autor assume que o empreendimento de sua narrativa demanda a evocao do triunfo sistemtico dos reis portugueses contra os infiis como fundamento dos trs eixos que compem o ttulo da real coroa portuguesa que sero abordados em sua sia, a saber, a conquista, a navegao e o comrcio. Por fim, escreve o humanista: Deus testemunha que em cada uma destas trs partes, Conquista, Navegao e Comrcio, fizemos a diligncia possvel a ns e mais do que a ocupao do ofcio e profisso de vida nos tem dado lugar. Com efeito, enquanto a conquista prpria da milcia e o comrcio convm mercadoria, por sua vez, ao ttulo da navegao, anuncia, respodemos com uma universal Geografia de todo o descoberto, assim em graduao de tbulas como de comentrio sobre elas, aplicando o moderno ao antigo, a qual no sofre compostura em linguagem, e por isso ir em latim. 581
578 Cf. FUMAROLI, Marc. Op. cit. 579 Cf. MARAVALL, Jos Antonio. Op.cit. p. 351. 580 Cf. DIAS, J. S. da Silva. Influencia de los Descubrimientos en la vida cultural del siglo XVI. Mxico: Fondo de Cultura Econmica, 1986. p. 128. 581 Cf. Dcada I, Livro I, Cap. I. pp. 14 e 15. O grifo meu. 194
Em sua geografia, portanto, haveria espao para a relao dos descobrimentos aplicando o moderno ao antigo, ou seja, atualizando as denominaes herdadas dos antigos gegrafos por meio da incluso dos nomes dos lugares que os portugueses incorporavam sua carreira. Contudo, vale notar que as novas denominaes viriam em latim, pois no era possvel comp-las em lngua vulgar. Ainda que esta ltima observao denote conservadorismo da parte de Barros, h um procedimento de inovao inegvel naquilo que nosso autor denomina como aplicao do moderno ao antigo. Contudo, se o novo implica um nascimento, uma ausncia de passado, como sugere Le Goff, 582 o conservadorismo do humanista portugus denota uma paradigmtica fora da tradio. A sia flagrante a respeito desta ordem de inovao. Tal como as ilhas do Cabo Verde, assim chamadas por comum nome [...]e pelos antigos gegrafos as Fortunadas, de que em a nossa Geografia falamos largamente. 583 O mesmo acontece com a Ilha Ceilo, a que os antigos chamam Taprobana, 584 da qual nosso autor faz copiosa relao no primeiro captulo do segundo livro da terceira Dcada. A inovao, decorrente do contato e do registro dos lugares onde os portugueses fundariam fortalezas e portos obedecia necessidade prtica de situar com maior rigor as informaes teis, tal como se pode observar no princpio do sexto livro da segunda Dcada, onde nosso autor discute o erro dos antigos gegrafos, que por desconhecimento da geografia local, chamavam a Ilha Sumatra de Quersoneso, que palavra grega e se toma pela pequena partcula de terra pegada por to delgada coisa como o p da folha da figueira pegada no ramo dela: 585
E porque geralmente todos os que navegavam por fora da Ilha, por ser viagem mais segura, ainda que comprida, estavam seguros de invernar como indo por dentro, ao modo que ora vemos os nossos navegantes daqui para a ndia, que quando partem tarde, vo por fora da Ilha de S. Loureno por terem os tempos mais largos deste costume, com algumas fbulas que a Antiguidade sempre tem, assim como os perigos de Cila e Caribdis no trnsito de Siclia, bancos de Flandres entre a terra firme e a Ilha Inglaterra, ou os Baixos de Ceilo entre esta Ilha e a terra do Cabo Comorin, haveria
582 Cf. LE GOFF, Jaques. Op. cit. 583 Cf. Dcada I, Livro II, Cap. I. p. 140. 584 Cf. Dcada III, Livro II, Cap. I. p. 104. 585 Dcada II Livro VI, Cap. I. p. 2. 195
opinio na ndia no ter aquele mar trnsito de Ponente a Levante, donde os gregos e Ptolomeu chamariam quela terra Quersoneso. Porm, povoada a cidade Malaca em meio daquele estreito [...] deu fcil navegao para se nela fazerem brevemente as comutaes e comrcio dos de Ponente e Levante, ficou manifesto este caminho, e havida a terra de Sumatra por Ilha, e no Quersoneso. 586
Se a aplicao do moderno ao antigo pode ser compreendida como um procedimento de inovao intelectual que vem na esteira da experincia portuguesa, e permite a superao de alguns erros cometidos pelos gegrafos antigos, vale notar que esta maneira de agir no era acompanhada, necessariamente, de uma conotao positiva. Sobretudo por estar potencialmente atrelada cobia. Em suma, no seria equivocado sugerirmos que, moralmente, os portugueses estavam aqum dos antigos quando movidos pela cobia, assertiva que nos revela, sem dvida, crtica aguda de nosso humanista aos interesses puramente materiais da expanso martima:
A qual fica to vizinha terra de Malaca (a Ilha Sumatra), que no lugar mais estreito do canal que h entre elas no ser mais que at doze lguas, quase na fronteira da cidade Malaca; dali, assim para a parte do Levante como Ponente, vai esta terra da Ilha afastando-se da firme, de maneira que faz estas duas entradas daquele estreito mais largo que no meio. E porm por todo ele tudo so baixos, restingas, ilhetas com canais, os quais errados, se perdem as naus que por ali navegam; e daqui (como atrs dissemos) procedeu, naquele antigo tempo de Ptolomeu e dos outros gegrafos, no ser aquele trnsito navegvel como ora , porque a cobia dos homens todos os atalhos busca, ainda que perigosos, para conseguir seu intento. 587
Com efeito, se as expanses possibilitaram a reconfigurao dos paradigmas herdados da Antiguidade, na pena do historiador quinhentista, esta reconfigurao acompanhada por um julgamento moral. Sem dvida, este procedimento obedece ao imperativo das expedies de reconhecimento motivados, tambm, por interesses comerciais. Definitivamente, todo movimento europeu ligado s exploraes e s descobertas revestia-se, paralelamente, de um desejo de ver e saber, como bem
586 Idem. p. 14. Os grifos so meus. 587 Dcada III, Livro V, Cap. I. p. 506. O grifo meu. 196
observou John H. Elliott. 588 do mapeamento dos lugares a serem colonizados e suas riquezas que resulta o carter experimental do Renascimento portugus. Em seu estudo sobre as fontes de Duarte Pacheco Pereira no Esmeraldo de Situ Orbis, Joaquim Barradas de Carvalho sugere que sob este aspecto que Portugal traz sua mais importante contribuo para a histria da cincia. Duarte Pacheco, escreve Barradas de Carvalho:
[...] tinha as fraquezas e as virtudes dos homens prticos da poca, que, parece-nos, deram uma contribuio muito mais poderosa para aquilo a que chamamos a pr-histria do pensamento e da cincia modernas do que as Universidades, o seu corpo docente, e mesmo os humanistas cheios de erudio 589
Com efeito, a anlise de Joaquim Barradas de Carvalho fundamentada na ideia de que existe uma separao ntida entre a cultura dos humanistas cheios de erudio e a cultura dos homens prticos. Esta separao fica ainda mais notria quando nos debruamos sobre a referncia feita por Carvalho ateno dispensada por Lucien Febvre plausibilidade da tese segundo a qual humanismo e cincia se desenvolveram separadamente e sem ao recproca direta. Para Febvre, enquanto por um lado, o humanismo alimenta-se exclusivamente de textos e autores, por outro, o que existe so as realidades. As descobertas. As invenes. As tcnicas. Em suma, entre o saber livresco e o saber prtico, pouco ou quase nenhum contato, conclui o grande historiador. 590
Entretanto, como vimos, na pena de Joo de Barros, a reconsiderao do conhecimento dos antigos acompanhada de um juzo moral. Para contextualizarmos este juzo no mbito de nossa discusso a respeito da oposio entre antigo e modernos na sia, primeiramente, gostaria de atentar para o fato de que, em termos absolutos, no existe a separao proposta por Lucien Febvre e reiterada por Barradas de Carvalho. Em estudo j clssico, Carlo Ginzburg chamou nossa ateno para o fenmeno da
588 Cf. ELLIOTT, J. H. O velho mundo e o novo 1492-1650. Trad. Maria Luclia Filipe. Lisboa: Querco, 1984. 589 CARVALHO, Joaquim Barradas de. As fontes de Duarte Pacheco Pereira no Esmeraldo de Situ Orbis... p. 140. Grifo do autor. 590 Cf. FEBVRE, Lucien. O problema da incredulidade no sculo XVI: a religio de Rabelais. Trad. Maria Lcia Machado; traduo dos trechos em latim Jos Eduardo dos Santos Lohner. So Paulo: Companhia das Letras, 2009. pp. 329 e 330. 197
circularidade e da recproca influncia que caracteriza a relao entre a cultura erudita e a cultura popular no contexto da Europa pr-industrial. 591 Diante disso, gostaria de aproveitar a dinmica inerente prpria noo de cultura proposta por Ginszburg, bem como sua dimenso relacional, para me deter sobre a possibilidade de estabelecer um vnculo entre a mediao de um juzo que se detm sobre um fato particular moderno em sua relao com o passado, onde esto situados os antigos. Contudo, evidente que a interao entre cultura popular e cultura erudita se d em um plano diferente da interao entre a noo de antigo e a noo de moderno: esta ltima pertence fundamentalmente ao campo das ideias e, portanto, cultura letrada, erudita. Alm disso, enquanto a interao entre o erudito e o popular possui uma dimenso material e ocorre na sincronia, a interao entre antigos e modernos abstrata e inventa a diacronia. Com efeito, atentemos para a particularidade da situao na qual Joo de Barros faz uso de seu juzo: um momento de reconfigurao de paradigmas, como sugeriu ris Kantor. Por sua vez, em seu estudo sobre o pensamento poltico republicano, John G. A. Pocock atenta para o papel da prudncia no mbito das tomadas de deciso frente a situaes sui generis. Desse modo, tendo em vista ser a prudncia uma virtude que articula a capacidade individual racional de julgar, e a capacidade de cada indivduo em fazer uso de toda expericia social acumulada os costumes e as tradies , 592
importa considerar que o juzo de Joo de Barros tambm pautado na prudncia. Com isso, ao passo que ela nos remete a um julgamento, trata obrigatoriamente de uma situao presente, coeva, a qual, na esfera cognitiva, ser combinada com a tradio. Nesta combinao que antigo e moderno se articulam e estabelem uma relao de reciprocidade que d sentido a cada categoria diante da outra, onde o moderno, mediado pelo cristianismo estico, julgado por sua cobia ainda que o moderno possa nos remeter, tambm, aos feitos dos portugueses tidos por Joo de Barros como notveis enquanto o antigo, compreendido como expericia social acumulada, fornece um horizonte paradigmtico de atuao que pode ser utilizado como elemento de comparao: embora tenham errado, Ptolomeu e os antigos gegrafos que designaram a Ilha de Sumatra como Quersoneso balizam de modo positivo a novidade da experincia,
591 Cf. GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela inquisio. Trad. Betania Amoroso. So Paulo: Companhia das Letras, 1987. 592 Sobre o assunto cf. POCOCK, J. G. A. Op. cit. pp. 89-117. 198
enquanto o mpeto de realizao movido pela cobia condenvel e no pode servir de referncia, nem pautar novas conquistas. Como observou Jaques Le Goff, a atuao do antagonismo antigo/moderno constituda pela atitude dos indivduos, das sociedades e das pocas perante o passado, o seu passado. 593 Por isso, longe de ser estanque, esta combinao pode se configurar de maneiras diversas, onde o moderno pode superar o antigo, pois um fato absolutamente novo opera uma necessria reconfigurao dos referenciais, visto que no est inscrito no horizonte de experincias acumuladas. Da a autonomia do juzo necessrio s decises mpares e reconfigurao dos paradigmas. A defesa deste procedimento revolucionrio de autonomia intelectual apresentada por nosso humanista em sua irnica apreciao das murmuraes que fez o povo do reino contra os novos empreendimentos do Infante Dom Henrique, ento estimulado pelo descobrimento da Madeira e dos Aores, os mais recentes sucessos de sua empresa:
Certamente ns no sabemos que opinio foi esta do Infante, nem que fruto ele espera deste seu descobrimento, seno perdio de quanta gente vai nos navios, para ficarem muitos rfos e vivas no reino, alm da despesa de suas fazendas, pois o perigo e o gasto ambos esto manifestos e o proveito to incerto, como todos sabemos. Porque sempre a houve reis e prncipes em Espanha desejosos de grandes empresas, e to cobiosos de buscar e descobrir novos estados como o Infante, e no vemos nem lemos em suas crnicas que mandassem descobrir esta terra, tendo-a por to vizinha. Mas como coisa de que no esperavam honra ou proveito algum deixaram de a descobrir, contentando-se com a terra que ora temos, a qual Deus deu por termo e habitao dos homens; e se alguma houver onde o Infante diz, devemos crer que ele a deixou para pasto dos brutos. C, segundo os antigos escreveram das partes do Mundo, todos afirmam que esta pela qual o sol anda a que eles chamam trrida zona, no habitada. Ora onde o Infante manda descobrir, j tanto dentro no fervor do sol, que de brancos que os homens so, se l for algum de ns, ficar (se escapar) to negro como so os guinus, vizinhos a esta quentura. Se ao Infante parece que, como ora achou estas duas ilhas que o tem mais elevado neste descobrimento, pode achar outras terras ermas, grossas e frteis, como dizem que elas so, terras e maninhos h no reino para romper e aproveitar sem perigo de mar, nem despesas desordenadas. E mais temos exemplos contrrios a esta sua opinio,
593 LE GOFF, Jaques. Op. cit. p. 175. 199
porque os reis passados deste reino sempre dos reinos alheios para o seu trouxeram gente a este a fazer novas povoaes, e ele quer levar os naturais portugueses a povoar terras ermas por tantos perigos de mar, de fome e sede, como vemos que passam os que l vo. 594
A advertncia das murmuraes plausvel: o prprio Joo de Barros atentaria para o fato de que as coisas de grande admirao das conquistas do oriente deveriam ser ponderadas com discurso de prudncia, uma vez que a constante peleja dos expedicionrios, seja com inimigos, seja com as foras da natureza, fazia com que sistematicamente se perdesse uma nobre vila deste reino em substncia de fazenda e em nobreza de gente. 595 De todo modo, podemos elencar trs eixos que a opinio do infante no levou em considerao segundo as murmuraes: o primeiro deles de carter mais livresco, e nos remete ausncia de registros de empreendimentos similares bem sucedidos nas crnicas espanholas, bem como a opinio dos antigos sobre a zona trrida; o segundo eixo, que abrange questes sociais, polticas e econmicas, nos remete aos altos custos do empreendimento e suas implicaes na conservao do reino portugus, onde existiam, ainda, maninhos a serem rompidos; o terceiro eixo, de carter religioso, nos remete prpria ordenao divina do mundo, que destinava uma parte dele para habitao dos homens e outra para pasto dos brutos. Com efeito, a ironia de Joo de Barros evidente, uma vez que ao escrever suas Dcadas, Joo de Barros sabia que (ou queria acreditar nisso) os reis portugueses superaram todos os seus antecedentes na Pennsula Ibrica em seus feitos, e que a zona trrida no produzia os efeitos nefastos que se acreditava; sabia tambm que a construo de um imprio transcontinental ampliaria a dignidade do reino portugus e, por fim, sabia que todo o mundo era habitado por homens, muito embora a maioria deles pudessem ser considerados, de fato, brbaros, brutos e selvagens, mas que a salvao destes brutos era antes um bom motivo para a empresa do que o contrrio. A despeito do fato de que Joo de Barros chama nossa ateno para as irreparveis perdas de fazenda e de gente, como um todo, nas Dcadas, o humanista se ocupa em mostrar que as murmuraes estavam equivocadas, o que denota a efetiva modernidade da deciso do infante, bem como dos feitos portugueses. No era, portanto, apenas aplicando o moderno ao antigo, ou corrigindo alguns de seus
594 Dcada I, Livro I, Cap. IV. pp. 37 e 38. O grifo meu. 595 Dcada II, Livro VII, Cap. I. pp. 152 e 153. 200
equvocos, que se desenhava a relao entre antigos e modernos. Joo de Barros nos mostra que a experincia portuguesa descobriria coisas que, sequer, os antigos tiveram notcias, tal como se pode notar na representao que o autor nos d de Dom Joo II e seu empenho na conquista da frica, em que to ocupado e solcito o trazia este negcio, principalmente depois que viu e gostou de muitas coisas de que os antigos escritores no tiveram notcia, falando desta parte da frica, que no lhe repousava o esprito. 596
Contudo, o desconhecimento e a falta de notcias por parte dos antigos era um evidente resultado de suas limitaes tcnicas. Joo de Barros no deixa de atentar para isso ao tratar do Mar Roxo, onde reprova toda outra opinio de gregos e romanos, uma vez que no andaram com o estrolbio e sonda na mo por este e por todos os outros mares por que navegamos, como os nossos mareantes tem feito, e aceitamos esta cor vermelha ser por causa do lastro da terra. 597 Sem dvida, a percepo dos antigos por meio de faltas implica uma conotao defectiva: a falta da sonda e do astrolbio coloca os antigos no plano da inferioridade tcnica. Srgio Buarque de Holanda nos fez notar que os portugueses inauguraram novos caminhos ao pensamento cientfico pelo simples fato de terem desterrado alguns velhos estorvos ao seu progresso. 598
Entretanto, as ausncias que impediram os antigos de singrar os mares percorridos pelos portugueses no os detratavam absolutamente, uma vez que, embora no tenha tido oportunidade, os antigos teriam desejado saber a respeito das descobertas lusitanas:
Toda a terra que contamos por reino de Sofala, uma grande regio que senhoreia um prncipe gentio chamado Benomotapa, a qual abraam em modo de ilha dois braos de um rio que procede do mais notvel lago que toda a terra da frica tem, muito desejado de saber dos antigos, escritores, por ser a cabea escondida do ilustre Nilo, donde tambm procede o nosso Zaire, que corre pelo reino de Congo. 599
O mistrio sobre a nascente do rio Nilo permaneceu no imaginrio letrado portugus ainda no sculo XVI. novamente Srgio Buarque de Holanda quem atenta
596 Dcada I, Livro III, Cap. XII. p. 261. 597 Dcada II, Livro VIII, Cap. I. p. 264. 598 HOLANDA, Srgio Buarque de. Viso do paraso: os motivos ednicos no descobrimento e colonizao do Brasil. So Paulo: Brasiliense; Publifolha, 2000. p. 12 599 Dcada I, Livro X, Cap I. p. 372. O grifo meu. 201
para a crena de que suas guas proviessem do Paraso Terreal. 600 Por sua vez, a despeito da impreciso da tese de que a nascente do Rio Nilo fosse o mais notvel lago que toda a terra da frica tem, na pena do humanista, os portugueses podiam saber ou acreditavam poder saber com perfeio a respeito daquilo que os antigos gostariam de ter sabido, mas no tiveram oportunidade, ou apenas puderam saber de modo imperfeito e confuso. ainda nesta chave de leitura que Joo de Barros escreve sobre a Baa de Bengala, onde os cabos e ilhas so das mais notveis partes que a ndia tem, e que antes de nosso descobrimento de alguma maneira eram sabidas e notas aos antigos gegrafos, ainda que por modo confuso. 601
Ora de modo confuso, ora como desejo, entre os antigos o saber e a novidade ocupavam espao relevante na pena de Joo de Barros. De fato, como sugere Le Goff, as sociedades histricas, mesmo que no se tenham apercebido da amplitude das mutaes que viviam, experimentaram o sentimento de moderno. 602 Sobre o assunto, Lus Filipe Barreto sugere que os antigos so, no Renascimento, ainda saber, mas j no o saber. Para ele, uma caracterstica do conceito de antigos o peso do horizonte informativo, onde a herana um horizonte de dados. Em suma, anota o autor:
A aceitao da herana passa, contudo, na lgica textual do renascentista, por um processo de encenao. O plo da aceitao inscreve-se bem mais silenciosamente que o da rejeio. O renascentista aceita mais do que rejeita, no entanto, coloca sempre a aceitao na penumbra ou na sombra do plano textual guardando as luzes da ribalta para a rejeio. 603
Sem dvida, possvel atrelar a tese de que o renascentista aceita mais do que rejeita a herana da Antiguidade, ideia de que ao menos existira uma vontade de saber e que isto, por si, era uma virtude dos antigos. Ainda que o distanciamento em relao aos antigos fosse um fato, tal como apontamos oportunamente, havia uma pretensa continuidade entre os antigos e os modernos portugueses, em sntese, supunha- se uma linearidade histrica em que os portugueses tiveram seus mritos ao lado dos romanos, fato evidente na pena de Joo de Barros ao longo da apresentao do projeto
600 HOLANDA, Srgio Buarque de. Op. cit. 601 Dcada III, Livro II, Cap. V. p. 154. 602 LE GOFF, Jaques. Op. cit. p. 176. 603 BARRETO, Lus Filipe. Caminhos do saber no Renascimento portugus. Estudos de histria e teoria da cultura. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1986. cf. pp. 88 e 89. Cit. p. 89. 202
de sua milcia, que haveria de comear no tempo que os romanos conquistaram Espanha, na qual guerra os portugueses por feitos ilustres tiveram grande nome acerca deles. 604 De todo modo, os mritos portugueses estariam ao alcance de homens e no de heris fabulosos. Assim, ao passo que se restringia o crvel, ampliava-se o cognoscvel. Exemplo notrio est no padro encomendado por Dom Loureno no intuito de registrar o descobrimento de Malaca. Assim, enquanto eram verdadeiros os feitos portugueses, os dos gregos pareciam excessivamente fabulosos:
[...] e Gonalo Gonalves, que era o pedreiro da obra, ainda que no fosse Hrcules para se gloriar dos padres de seu descobrimento, eram estes em parte de tanto louvor, que ps o seu nome ao p dele, e assim fica Gonalo Gonalves mais verdadeiramente por pedreiro daquela coluna do que Hrcules autor de muitas que lhe os gregos do em suas escrituras. 605
Com efeito, Franois Hartog nos lembra que entre os latinos, desde Estrabo, as colunas de Hrcules ou Hracles eram tidas como o incio da Europa, 606 o que nos leva a considerar que o papel histrico concreto atribudo por Joo de Barros a Gonalo Gonalves pode incorporar a noo de autocriao do homem, oportunamente sugerida por Agnes Heller, onde o indivduo passa a ter a sua prpria histria de desenvolvimento pessoal, tal como a sociedade adquire tambm a sua histria de desenvolvimento. 607 Definitivamente, os padres portugueses remetiam a feitos cuja glria superava aos gregos em suas curtas e seguras navegaes como de Grcia ao Rio Faso, sempre a vista da terra, jantando em um porto e ceando em outro. A gente portuguesa navegaria por tantas mil lguas vista de mouros e de tantos pagos que viriam a ser antpodas de sua prpria ptria, coisa to nova e maravilhosa na opinio das gentes, que at doutos e graves bares em suas escrituras puseram em dvida de os haver. 608 Da a demanda de Dom Manuel em fundar um templo que correspondesse mais notvel obra jamais vista pois por ela o Mundo foi estimado em mais do que se dele cuidava antes que descobrssemos esta sua to grande parte. Tal obra haveria de ficar em lugar de evidncia e prestar homenagem me de Deus:
604 Dcada I, Livro I, Cap. I. p. 13. 605 Dcada I, Livro X, Cap. V. p. 426. 606 Cf. HARTOG, Franois. Os antigos, o passado e o presente. Trad. Sonia Lacerda et alii. Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 2003. 607 Cf. HELLER, Agnes. O homem do Renascimento... p. 9. 608 Cf. Dcada I, Livro IV, Cap. XI. pp. 360 e 361. 203
E como o lugar de Rastelo o mais clebre e ilustre que este reino de Portugal tem, por ser nos arrabaldes de Lisboa, monarca desta oriental conquista e porta por onde haviam de entrar neste reino os triunfos dela, nesta entrada convinha ser feito, no um prtico de pompa humana, nem um templo a Jpiter Protetor, como os romanos tinham em Roma no tempo de seu imprio, a que ofereciam as insgnias de suas vitrias, mas um templo dedicado quele vivo e divino templo que a Madre de Deus da vocao de Belm. 609
Um templo me de Deus e no um templo a Jpiter, uma divindade pag, sobretudo em face da qualidade dos feitos, admirveis no apenas pela contenda com homens de diferentes naes e seitas, mas tambm pela superao das foras da natureza, onde a emulao com os feitos dos antigos e de outras naes europeias evidente:
Porque, se lemos guerras de persas, gregos, romanos ou de outras naes desta nossa Europa, nas quais houve grandes perigos no rompimento de exrcito com exrcito, trabalhos de fome e sede e viglia, na continuao de algum comprido cerco, frio e ardor do Sol na variao dos tempos e climas, grandes enfermidades por corrupo dos ares ou mantimentos e outros mil gneros de acidentes que chegam a estado da morte, todos estes perigos e trabalhos passa a nossa gente portuguesa em suas navegaes e conquistas. 610
Sem dvida, o custo social do empreendimento foi uma questo problemtica, principalmente em vista de suas implicaes na conservao do reino portugus. Com efeito, Michel Senellart, atento s questes que envolvem o ofcio do prncipe, observou que seus feitos devem ser orientados pela boa conduo dos homens, tendo em vista o interesse comum e a conservao do estado. Em sntese, para Senellart, o interesse pblico e a conservao do estado so homogneos prpria noo de justia, motor fundamental das aes do prncipe. 611 Diante disso, a despeito dos custos sociais, para Joo de Barros, os proveitos e as rendas obtidas com os descobrimentos e a construo
609 Cf. Dcada I, Livro IV, Cap. XII.pp 374 e 375. O grifo meu. 610 Dcada II, Livro VII, Cap. I. p. 153. O grifo meu. 611 Cf. SENELLART, Michel. As artes de governar... pp. 149-151. 204
de um imprio transcontinental alaria o reino portugus ao mesmo patamar de outras gloriosas naes europeias. Assim, se por um lado o humanista nos chama a ateno para as irreparveis perdas humanas, por outro iguala os feitos portugueses aos de outras naes, sobretudo aos daquelas que apresentam estreita relao com os antigos, onde se encontram os exemplos mais notrios da boa conduo dos homens voltada aos interesses pblicos e conservao do estado. Em suma, o moderno seria sistematicamente exaltado atravs do antigo. sob esta chave de leitura que podemos compreender o pronunciamento de Dom Manuel em Montemor-o-Novo diante de Vasco da Gama e ou outros capites que o acompanhariam ndia:
Porque, se da costa da Etipia, que quase de caminho descoberta, este meu reino tem adquirido novos ttulos, novos proveitos e renda, que se pode esperar, indo mais adiante com este descobrimento, seno pudramos conseguir aquelas orientais riquezas to celebradas dos antigos escritores, parte das quais pelo comrcio tem feito tamanhas potncias, como so Veneza, Gnova, Florena e outras grandes comunidades de Itlia? 612
Alcanar a riqueza celebrada pelos antigos. Ainda que a cobia fosse um problema concreto apontado por Joo de Barros, a busca de riquezas no macula as glrias do prncipe. Pelo contrrio, serve de estmulo aos feitos, sobretudo para uma aristocracia atenta a sua carreira e suas mercs. Esta uma perspectiva que ganha sentido quando consideramos, por exemplo, a celebrao dos feitos de um fidalgo como Diogo Lopes de Sequeira, que toma posse daquela riqussima Malaca, situada na urea Quersoneso, terra to celebrada dos antigos gegrafos. 613 Com efeito, o explendor comercial de Malaca ganhou contornos na pena de Joo de Barros. Segundo Sanjay Subrahmanyam, por volta de 1500, a cidade era um dos ns principais do comrcio martimo asitico, articulado com a China e a Insulndia Oriental, mas tambm com a ndia, o Golfo Prsico e o Mar Vermelho. 614 Por sua vez, detido sobre o Livro em que d relao do que viu e ouviu no Oriente, de Duarte Barbosa, Jos Carlos Vilardaga faz notar que a cidade de Malaca figura ao longo das descries a
612 Dcada I, Livro IV, Cap. I. p. 273. O grifo meu. 613 Dcada II, Livro V, Cap XI. p. 572. 614 SUBRAHMANYAM, Sanjay. O Imprio Asitico Portugus 1500-1700. Uma histria Poltica e Econmica. Trad. Paulo Jorge Sousa Pinto. Lisboa: Difel, 1995. p. 19. 205
respeito da acessibilidade rotas comerciais locais. 615 Assim, a compreenso da dinmica do comrcio local definia a prioridade das investidas portuguesas, da a ateno dispensada por nosso historiador quinhentista ao assunto, que julgava ter Malaca alcanado o epteto de urea, por razo do muito ouro que se traz de Monancabo e Barros, que so duas comarcas onde se ele tira na Ilha de Sumatra. 616
Por fim, poder e riqueza no apenas caminhavam juntos, mas tambm eram orientados por aquilo que fora a Antiguidade. na busca das riquezas que teriam enobrecido cidades como Veneza, Gnova e Florena, onde encontramos importante elemento de equiparao dos feitos portugueses ao de outras naes, notavelmente daquelas que, por sua histria, possuam laos mais estreitos com os antigos: no apenas por serem responsveis pelo comrcio das riquezas exaltadas pelos antigos embora, de fato, creio que seja vlida a tese de que as atividades comerciais das cidades italianas tenham despertado de um longo torpor a que haviam se entregado aps a queda de Roma , mas principalmente por serem cones de alguns valores caractersticos do incio da poca Moderna: enquanto Veneza e Gnova foram as mais importantes cidades comerciais ao longo dos sculos XIII, XIV e XV sendo Veneza, ainda, importante referncia poltica no que tange aos valores de independncia e autogoverno ao final do sculo XV , foi Florena e seu Renascimento quem deu a tnica no mbito da cultura. 617
Efetivamente, a pena de Joo de Barros capta o peso histrico da economia veneziana. Em estudo clssico, Fernand Braudel, detido na formao das economias- mundo europeias, atenta para a superioridade de cidades como Veneza e Gnova no domnio das atividades mercantis do Mediterrneo com o Levante. Com efeito, Braudel assinala que o pequeno comrcio que se instaura desde o sculo IX entre as pequenas cidades situadas nas costas da Itlia e as grandes cidades do Islo e Constantinopla, ser responsvel pela primazia comercial de Veneza ao final do sculo XIV, e pela de Gnova em um segundo momento. Contudo, embora cidades como Milo e Florena tambm tenham acompanhado toda a dinmica comercial mediterrnica de perto, o caso
615 Cf. VILARDAGA, Jos Carlos. Lastros de viagem: expectativas, projees e descobertas portuguesas no ndico (1498-1554). So Paulo: Annablume, 2010. p. 111 e ss. 616 Dcada II, Livro VI, Cap. I. p. 3. 617 Cf. BRAUDEL, Fernand. Civilizao material, economia e capitalismo, sculos XV-XVIII. O tempo do mundo. Trad. Telma Costa. So Paulo: Martins Fontes, 1996. p. 75 e ss; SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico moderno... p. 160 e ss. 206
veneziano emblemtico, uma vez que, desde muito cedo, conseguiu talhar seu imprio:
[...] modesto em extenso mas de espantosa importncia estratgica e mercantil, por causa do seu alinhamento ao longo das rotas do Levante. Um Imprio disperso que se parece antecipadamente, guardadas as devidas propores, com o dos portugueses ou dos holandeses, mais tarde, no oceano ndico, segundo o esquema do que os anglo-saxes chamam trading posts Empire, uma cadeia de postos mercantis que constituem, todos juntos, uma longa antena capitalista. Um Imprio fencia, diremos ns. 618
De fato, Braudel nos d a dimenso do peso econmico de Veneza s vsperas da poca de Joo de Barros e que, provavelmente, compunha o espao mental do humanista portugus. Definitivamente, acredito ser esta reputao de potncia comercial que faz eco na pena de nosso humanista: ainda que o triunfo de Vasco da Gama tenha deslocado as grandes vias do comrcio internacional do Mediterrneo para o oceano Atlntico, os comerciantes italianos no perderiam seu espao nesta nova conjuntura, onde assumiriam posies decisivas, tal como nos ensina, mais uma vez, Fernand Braudel:
Em Lisboa, quando se acaba o sculo XV, os comerciantes italianos formam uma colnia prspera de que conhecemos todos os grandes nomes. Tambm sabido que Cristvo Colombo ganhou Portugal a servio dos Centurione, Spinola e di Negro, todos comerciantes genoveses. Os mais ricos desses comerciantes estiveram na origem da economia aucareira da Madeira e participaram, como os Vanni, os Gridetti ou, melhor ainda, os Machione, da equipagem de barcos inteiros, quando da viagem de Pedro lvares Cabral (1501-03). Alguns desses comerciantes se acharo em seguida do outro lado do Atlntico, no Brasil, onde fizeram descendncia. 619
De todo modo, no podemos perder de vista que tal perspectiva se inscrevia numa concepo de mundo orientada por equivalncias entre o moderno e o antigo. E neste sentido, interessa atentarmos para a eficiente comparao feita por Braudel entre
618 BRAUDEL, Fernand. Op. cit. p. 104. 619 BRAUDEL, Fernand. O modelo italiano. Trad. Franklin de Mattos. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. p. 74. 207
venezianos e fencios, tendo em vista que estes ltimos podem ser compreendidos como um esboo de economia-mundo, segundo o prprio autor. Entretanto preciso notar ainda que o declnio dos fencios foi precedido pela ascenso de Cartago, que dominaria pouco a pouco todos os estabelecimentos fencios, conforme escreveu Gabriel- Leroux. 620 Esta comparao ganha ainda maior relevncia quando a percebemos na pena do prprio Joo de Barros, visto que o historiador quinhentista compara os conflitos inerentes s conquistas portuguesas aos conflitos entre romanos e cartaginses:
E assim estava limpa deles no tempo do Rei Dom Joo o primeiro, que desejando ele derramar seu sangue na guerra dos infiis, por haver a beno de seus avs, esteve determinado de fazer guerra aos mouros do reino de Granada e por alguns inconvenientes de Castela, e assim por maior glria sua, passou alm-mar em as partes de frica, onde tomou aquela Metrpole Ceuta, cidade to cruel competidora de Espanha, como Cartago foi de Itlia; da qual cidade se logo intitulou por senhor, como quem tomava posse daquela parte de frica e deixava porta aberta a seus filhos e netos para irem mais avante. 621
Enquanto na Antiguidade os italianos encontravam em Cartago seus cruis competidores, entre os modernos, os ibricos encontrariam em Ceuta seus grandes inimigos. Como apontamos anteriormente, havia uma pretensa continuidade histrica entre o mundo antigo e os modernos portugueses e, neste sentido, importante a considerao segundo a qual o Renascimento constri o seu clima epocal a partir duma lgica de afinidades temporais que torna mais presente o passado distante e mais ausente o passado prximo. 622 Com efeito, esta perspectiva que orienta a relao entre Roma antiga e Portugal moderno apresentada de formas variadas na pena de Joo de Barros, para quem a grandeza dos feitos portugueses encontrava equivalncia nos dos antigos. Em suma, a exaltao do moderno fundamenta-se na excelncia da Antiguidade:
[...] porque no somente tomaram cidades, vilas e lugares, nos principais portos e foras dos reinos de Fez e Marrocos, restituindo Igreja
620 Cf. GABRIEL-LEROUX, J. As primeiras civilizaes do mediterrneo. Trad. Antonio de Padua Danesi. So Paulo: Martins Fontes, 1989. p. 73 e ss. 621 Dcada I, Livro I, Cap. I. O grifo meu. 622 BARRETO, Lus Filipe. Op. cit. p. 311. 208
Romana a jurisdio que naquelas partes tinha perdida depois da perdio de Espanha, como obedientes filhos e primeiros capites pela f nestas partes de frica, mas ainda foram despregar aquela divina e real bandeira da milcia de Cristo (que eles fundaram por esta guerra dos infiis) nas partes orientais da sia, em meio das infernais mesquitas da Arbia e Prsia, e de todos os pagodes da gentilidade da ndia de aqum e de alm do Gange, parte onde (segundo escritores gregos e latinos) exceto a ilustre Semirames, Baco e o grande Alexandre, ningum ousou cometer. 623
Vale notar que a comparao com Alexandre O Grande prolonga a lgica de afinidades temporais para o mbito de um ideal herico reivindicado por Joo de Barros para a dinastia de Avis. Com efeito, segundo Anthony Pagden, durante sculos Alexandre foi considerado o arqutipo do construtor de imprios por ter sido o primeiro grande imperador do ocidente: entre 336 a. C. e 323 a. C. seu imprio teria sido o mais extenso da Antiguidade, nos assegura o autor. Por sua vez, alm de destruir o Imprio Persa da dinastia Aquemnida, Alexandre conseguiria unir todos os Estados gregos independentes. Todavia, mais do que conquistar, importa notar que sua ambio foi construir um elo entre o ocidente e o oriente, enfim, entre sia e Europa, helenos e brbaros, no intuito de suspender uma antiga inimizade entre oriente e ocidente. 624
Ora, em sua figurao do prncipe ideal, Baldassare Castiglione tambm nos remete a Alexandre, pois, segundo ele:
[...] no contente com a fama merecidamente conquistada por ter dominado o mundo com as armas, edificou Alexandria no Egito, Buceflia na ndia e outras cidades noutros pases; e pensou dar forma de homem ao monte Atos, construindo-lhe na mo esquerda uma grande cidade e na direita uma grande taa para onde confluiriam todos os rios que nele nascem e que dali desembocariam no mar, ideia de fato grande e digna de Alexandre Magno. 625
Em sntese, alcanar fama e fundar cidades: eram estas as qualidades que Joo de Barros atribua dinastia de Avis e, tambm, aos nobres portugueses, sempre em comparao com os antigos, ao tratar da constituio do imprio portugus. Sem
623 Dcada I, Livro I, Cap. I. 624 Cf. PAGDEN, Anthony. Povos e imprios: uma histria de migraes e conquistas, da Grcia at a atualidade. Trad. Marta Miranda OShea. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002. pp. 35 e ss. 625 CASTIGLIONE, Baldassare. O corteso... p. 301. 209
dvida, o caso de nos lembrarmos da convico humanista de que a obteno de honra, glria e fama era a meta de todo homem virtuoso. 626 Com efeito, a superao de uma situao sui generis, resultante de um feito histrico singular, exigia da Casa Real portuguesa a manuteno de suas conquistas, principalmente em face da diversidade de povos doravante integrados como sditos, mas que, entretanto, possuam grande variedade de crenas e costumes. Tendo em vista que a novidade da situao correlata honra do prncipe em conseguir assimilar e contornar as dificuldades que se apresentavam, importa assinalar a perspectiva de Nicolau Maquiavel sobre o assunto. Para o florentino, nunca coisa nenhuma deu tanta honra a um governante novo como as novas leis e regulamentos que elaborasse. 627 Sem dvida, assim como Joo de Barros detinha uma viso positiva da religio dos antigos em um mundo no qual Maquiavel ensinara a desvincular a prtica poltica do juzo moral cristo, possvel sugerir, tambm, que o humanista portugus no fica atrs do pensador italiano no que tange concepo sobre a honra do prncipe cristo. 628 Ou seria mais uma formulao dissimulada de um potencial maquiavelismo lusada no apreendido por Martim de Albuquerque em seus estudos de histria das ideias polticas em Portugal? Ora, Albuquerque eloquente ao tratar do assunto. Segundo ele:
[...] o pensamento lusada antimaquiavlico, o que, alis, estava de acordo quer com as necessidades impostas pela expanso portuguesa [...] quer com o esprito do Povo que gerou um credo messinico e sonhou com um imprio universal, o Quinto Imprio, realizador do reino de Deus na Terra, do reino da Justia, do reino da Ordem [...]; de um povo que, como o espanhol, criou o tipo ideal do fidalgo antimaquiavlico por concepo e definio. 629
Contudo, vale notar que ao tratar da relao entre Joo de Barros e Maquiavel no Panegrico de Dom Joo III, o historiador das ideias polticas em Portugal atenta para a possibilidade de confirmar inequivocamente a recepo de Maquiavel pelo cronista
626 Cf. SKINNER, Quentin. As fundaes do pensamento poltico... p. 115 e ss. 627 MAQUIAVEL, Nicolau. O Prncipe. Escritos Polticos. Trad. Lvio Xavier. So Paulo: Editora Nova Cultural, 1996. p. 137. 628 A respeito da viso positiva que Joo de Barros possua da religio dos antigos cf. MARCOCCI, Giuseppe. Machiavelli, la religione dei romani e limpero portoghese. In: Storica, nn. 41-42. (2009) [2008], pp. 35-68. 629 ALBUQUERQUE, Martim de. Maquiavel e Portugal. Estudo de Histria das idias polticas. Lisboa: Althia Editores, 2007. p. 10. Grifo do autor. 210
portugus, ao passo que este aproveitou-o e saneou-o [...] sem lhe dar sequer a honra de uma citao. 630
Definitivamente, a criao de fortalezas e o estabelecimento de uma rede comercial em dimenses globais exigiu paulatina inovao por parte dos Avis: a criao de um imprio de entrepostos comerciais, como sugerimos com Fernand Braudel. Por sua vez, Anthony Pagden nos faz notar que a concepo de imprio derivada da palavra latina imperium, e denota, simultaneamente, tanto o poder supremo do comando blico, quanto o direito do magistrado de impor a lei em diferentes lugares. Em suma, o historiador ingls chama a ateno para o fato de que, em sua acepo original, imperium significava soberania. Sentido que se manteria intacto at o sculo XVIII. 631 Ora, se a definio de soberania deve passar pela compreenso histrica da formao do Estado moderno e, concomitantemente, exerceu papel importante na estruturao do ideal de soberano, 632 seria o caso de especularmos sobre a hiptese de que a defesa que Joo de Barros faz da construo do imprio Portugus pode nos remeter a um discreto embate poltico interno a respeito da legitimidade da Casa de Avis, uma dinastia relativamente nova. 633 De todo modo, a despeito da especulao, no podemos perder de vista a tese de que as pretenses imperialistas de Portugal
630 ALBUQUERQUE, Martim de. Op. cit. pp. 185 e 200. 631 Cf. PAGDEN, Anthony. Op. cit. p. 25. 632 Cf. BARRETO, Vicente de Paulo e CULLETON, Alfredo (coord.). Dicionrio de Filosofia Poltica. So Leopoldo, RS: Ed. UNISINOS, 2010. s. v. Soberania. 633 A especulao est calcada em nossa leitura da bibliografia: tendo como ponto de partida a Crnica da Tomada de Ceuta, de Gomes Eanes de Zurara, Lus Filipe F. R. Thomaz e Jorge Santos Alves sugerem que a primeira fase da expanso portuguesa, ao contar com o beneplcito pontifcio das bulas papais, almejava a um tempo a pacificao social do reino e sua promoo aos olhos da Europa. Alm disso, os autores atentam tambm para o empenho de Zurara em conseguir os efeitos que cobrem de honra e de valor o conjunto da gerao de Avis. Em suma, filho de Dom Joo I, fundador da Dinastia de Avis, o infante Dom Henrique sobrevalorado na perspectiva de Thomaz e Santos (cf. THOMAZ, Lus Filipe F. R. e ALVES, Jorge Santos. Da cruzada ao Quinto Imprio... cit. pp. 85 e 86. O grifo meu). Neste sentido, significativo o papel histrico atribudo ao infante como precursor das grandes navegaes: para Lus Filipe Barreto, por exemplo, o objeto e objetivo essencial de Zurara o Infante enquanto causa fazedora prxima da apropriao da Guin. O Infante o motor da nova historicidade e destino de Portugal (cf. BARRETO, Lus Filipe. Descobrimentos e Renascimento... p. 71). O prprio Joo de Barros entende o infante Dom Henrique como o verdadeiro iniciador de to ilustre empresa, como foi o descobrimento e conquista que deu fundamento a esta nossa sia (Dcada I, Livro I, Cap. I, p. 15). Por fim, importa recuperarmos o que escreveu Maria Helena da Cruz Coelho a respeito da consolidao da Dinastia de Avis: Dom Joo I percebe-se de que a consolidao da sua dinastia e a segurana do reino se jogavam no s em terra, mas sobretudo no mar. Em terra, procurou contrabalanar o poderio castelhano por entre guerras e acordos de paz que outras ameaas laterais a Castela, como o reino de Arago e o de Granada, ajudariam a concretizar. No mar apostou numa estratgia mais envolvente de defesa e expanso do reino, como resoluo das suas crises internas e externas. (cf. COELHO, Maria Helena da Cruz. Na Barca da conquista, o Portugal que se fez caravela e nau. In: NOVAES, Adauto (org): A Descoberta do homem e do mundo. So Paulo: Companhia das Letras, 1998. p. 131. O grifo meu). Deixo aqui meu agradecimento generosidade de Fernando Alto que me cedeu as transcries. 211
pressupunham, tambm, a configurao da soberania dos reis portugueses no mbito de uma jurisdio superior que possusse autoridade junto aos soberanos locais, tal como apresentamos no captulo anterior com o apoito do artigo de Luis Filipe F. R. Thomaz. Com efeito, importa considerar que ao incio do sculo XV Portugal era um dos reinos mais pobres da Europa, sendo-lhe sistematicamente negado o acesso s tradicionais reservas de ouro e prata que abasteciam outros pases europeus. Alm disso, possua uma capacidade comercial extremamente limitada. Diante disso, a glria de Portugal dependeria no apenas de sua capacidade de explorar os recursos de sua costa atlntica, mas sobretudo de sua experincia martima. Efetivamente, digno de nota que ao final do sculo XVII o imprio Portugus se estenderia da frica Ocidental at o sul da China e abarcaria, tambm, a ndia. em vista disso que, nas Dcadas, a nao de Vasco da Gama pode ser considerada to gloriosa quanto a dos romanos, tal como podemos verificar no excerto abaixo transcrito: 634
Por causa do qual, como adiante se dir, o Rei acrescentou a sua Coroa os ttulos que ora tem, de Senhor da Conquista, Navegao e Comrcio da Etipia, Arbia, Prsia e ndia. E na satisfao deste grande servio, mostrou o Rei quanto o estimava, fazendo logo e depois merc a Vasco da Gama destas coisas: que ele e seus irmos se chamassem de Dom, e que, no escudo das armas de sua linhagem, acrescentasse ua pea das armas reais deste reino, e o ofcio de Almirante dos Mares da ndia, e mais trezentos mil reais de renda; e que em cada um ano pudesse empregar na ndia duzentos cruzados em mercadorias, os quais regularmente, na especiaria que lhe vem do emprego deles, respondem c no reino dois contos e oito centos mil reais, e tudo isto de juros, e assim Conde da Vidigueira, correndo depois o tempo, em que as coisas da ndia mostraram ter a grandeza delas maior do que parecia nos primeiros anos. E se Vasco da Gama fora de nao to gloriosa como eram os romanos, per ventura acrescentara ao apelido da sua linhagem posto que fosse to nobre como esta alcunha - da ndia, pois sabemos ser mais gloriosa coisa para insgnias de honra o adquirido que o herdado, e que Scipio mais se gloriava do feito que lhe deu por alcunha, Africano, que do apelido de Cornlio, que era da sua linhagem. 635
634 Cf. PAGDEN, Anthony. Op. cit. 635 Dcada I, Livro IV, Cap. XI. p. 371 e 372. O grifo meu. 212
De fato, no havia notcias entre gregos, romanos ou outra nao, de feitos equivalentes aos dos portugueses regidos pelos Avis. Para Joo de Barros, Dom Manuel foi um instrumento por meio do qual Deus abriria as portas de um mundo de brbaros, brutos e infiis, cheio de riquezas que, uma vez alcanadas, estimularia louvores e incentivaria o reconhecimento das virtudes do regente por parte de seus sditos, a despeito de todas as perdas humanas e outros prejuzos. Em suma, para Joo de Barros, Dom Manuel foi o mais bem afortunado rei da Cristandade, pois nos primeiros dois anos de seu reinado descobrira maior estado Coroa deste reino, do que era o patrimnio que com ele herdara. Para o humanista, tal faanha era coisa que Deus no concedera a nenhum prncipe da Espanha, nem a seus antecessores que nisso bem trabalharam no descurso de tantos anos, mas, principalmente, era um fato que no se achava escritura de gregos, romanos, ou de alguma outra nao. 636 Enfim, creio que Joo de Barros d embasamento suficiente ao humanista espanhol Juan Lus Vives, quando este argumentou que nem os homens do seu tempo eram anes nem os da Antiguidade eram gigantes: 637 enfim, homens excepcionais, os portugueses, regidos por um soberano afeito promoo do bem pblico, seriam sujeitos no curso de sua prpria histria. Na pena do historiador quinhentista, ao fazer o que os prprios antigos fizeram, os portugueses iriam alm. Por fim, na pena de um moralista, as Dcadas figuram como uma clara demonstrao da prpria cincia moral. Sem a confirmao da histria, o preceito moral incorreria na mais absoluta vanidade, ao passo que a relao dos feitos traria, simultaneamente, um ensinamento de prudncia poltica e a incitao a uma vida virtuosa. 638 Enfim, a efetividade histrica e a meditao moral convergeriam para o plano poltico, espao de embates e tomadas de posio que ao longo do Renascimento se desenhou a partir de um estreito vnculo estabelecido entre antigos e modernos.
636 Dcada I, Livro V, Cap. I. pp. 379 e 380. 637 Cf. LE GOFF, Jaques. Op. cit. pp. 182 e 183. 638 Para esta reflexo, cf. GARIN, Eugenio. Lumanesimo italiano. Filosofia e vita civile nel Rinascimento. Roma: Editori Laterza, 1993. p. 207 e ss. 213
4.2. Brutos e polticos
Sugerimos acima que as Dcadas da sia se configuram como evidncia emprica da cincia moral. Com efeito, ao passo que possvel compreend-la como fonte de ensinamentos para uma vida virtuosa, no deixaria de veicular, ainda que de modo residual, juzos e esteritipos diversos, que fundamentavam a distino e a segregao, ainda que atreladas a um pressuposto universalista fundamentalmente inclusivo. Contudo, a princpio seria o caso de nos colocarmos a questo a respeito dos efetivos domnios da cincia moral poca de Joo de Barros. Edmundo OGorman, em seu estudo preliminar sobre a Historia Natural y moral de las Indias composta pelo jesuta espanhol Jos de Acosta, chama nossa ateno para o fato de que para o jesuta espanhol, enquanto a noo de natural evocado no ttulo de seu livro abarca um enorme campo de conhecimentos que atualmente nos remete s cincias fsico- matemticas, qumicas, astronmicas, biolgicas ou mesmo geogrficas; a noo de moral tambm evocada no ttulo de seu livro encerra outros campos de conhecimento, tais como arqueologa e histria e em linhas gerais, as cincia humanas, ou seja: o homem, a vontade humana e seu universo cultural. 639 Por sua vez, o historiador italiano Nicola Gasbarro no apenas atenta para o fato de que a moral nos remete s dinmicas sociais do costume e dos hbitos, mas tambm s regras que as governam. Enfim, para o italiano, a moral denota os mores (costumes). 640
Entretanto se a moral foi objeto da histria escrita por Jos de Acosta, ou seja, os usos e costumes dos habitantes das ndias de Castela, o mesmo no pode ser dito para a histria de Joo de Barros. Como vimos anteriormente, em sua pena, os costumes no eram compreendidos como objeto da histria. Para ele, esta dimenso etnogrfica reservada a outro campo de conhecimento. Em sntese, nosso autor eloquente neste sentido. Em sua descrio do gentio da ndia, por exemplo, revela-nos que os costumes desta gente, mais particular escrevemos em os comentrios da nossa Geografia. 641
Por sua vez, na descrio da Ilha do Ceilo, o humanista nos revela serem muitas as coisas que contam os naturais desta ilha da sua santidade e da dos seus sacerdotes e brmanes, que deixamos para quando tratarmos dela em nossa Geografia, e assim dos
639 Cf. OGORMAN, Edmundo. Estudio Preliminar. In: ACOSTA, Jos de. Historia natural y moral de las Indias. Mxico: Fundo de Cultura Econmica, 1962. 640 Cf. GASBARRO, Nicola. Misses... Op. cit. p. 92 e 93. 641 Dcada I, Livro IX, Cap. III. p. 323. 214
costumes da gente e estado dos seus reis e cerimnias com que se servem e guardam entre si. 642 No diferente para o caso do Sio, onde o historiador quinhentista anota que muitos e vrios costumes tem esta gente e o seu prncipe, que deixamos para os Comentrios da nossa Geografia. 643 Por fim, na descrio do reino de Pegu, Barros tambm nos alerta para o fato de que que seus costumes, governo e estado de seu rei, uso de suas armas, e outras coisas que entre eles se usa, deixamos para os Comentrios da nossa Geografia. 644 Enfim, se avaliarmos em termos literais o que escreveu Joo de Barros, notaremos que os costumes eram objeto da geografia. De todo modo, interessante recuperarmos a ideia de Antnio Borges Coelho, segundo a qual a originalidade maior das Dcadas consiste nas relaes estreitas que estabelecem entre a histria e a geografia. 645
Com efeito, j assinalamos que a especificidade da produo cultural portuguesa do sculo XVI reside no interesse etnogrfico que se faz presente na literatura humanista. Neste sentido, de acordo com Ed. Fueter, o contexto dos descobrimentos despertou na historiografia um problema inteiramente novo: doravante, o gosto pelo detalhe da conquista, bem como as descries dos habitantes dos pases recm descobertos que dariam a tnica, visto que, paulatinamente, despontaria entre os letrados europeus um profundo interesse pelos modos de vida exticos de populaes que pela primeira vez na histria ganhavam maior visibilidade aos olhos dos europeus. Por sua vez, de acordo com o autor, o interesse passaria a incidir em temas como a organizao poltica dessas populaes, seus hbitos alimentares, sua idumentria, enfim, surgia uma especial demanda por descries precisas a respeito dessas novidades, ou seja, um interesse sistemtico pela etnografia. 646
Tendo em vista o caso portugus, Diogo Ramada Curto sugere que o interesse etnogrfico apresenta-se vinculado historiografia desde as crnicas de Gomes Eanes Zurara, onde j se encontram referncias aos costumes dos inimigos dos portugueses: numa obra de contedo muito heterogneo, precisamente quando o interesse do autor se afasta da narrativa dos feitos de guerra que vemos esboada uma inteno
642 Dcada III, Livro II, Cap. I. p. 116. 643 Dcada III, Livro II, Cap. V. p. 173. 644 Dcada III, Livro III, Cap. IV. p. 280. 645 COELHO, Antnio Borges. Tudo mercadoria... p. 133. 646 Cf. FUETER, Ed. Historia de la historiografia moderna. Vol. I. Trad. Ana Mara Ripullone. Editorial Nova: Buenos Aires, 1953. p. 320. 215
etnogrfica, 647 escreve Ramada Curto. Contudo, importa notar que os interesses etnogrficos no se apresentam dissociados dos interesses ligados conquista. Da, por exemplo, o chamado foral de Afonso Mexia, uma compilao de informaes a respeito dos usos e costumes de Goa, cuja demanda nos remete formulao, por parte da Coroa portuguesa, de um sistema tributrio no local. 648 Por sua vez, John H. Elliott, detido sobre a colonizao do Novo Mundo, sugeriu que a necessidade de explorar os recursos do continente americano, bem como os interesses em governar e converter ao cristianismo sua populao que compeliria os europeus a ampliarem seu campo de viso e organizarem e classificarem seus achados a partir de um enquadramento coerente de pensamento. Por fim, Elliott sugere que no havia um interesse estritamente epistemolgico em estudar a diversidade social e cultural em si, mas sim a inteno de incorpor-la to rpido quanto fosse possvel repblica crist. 649
ainda John H. Elliott a sugerir que a herana clssica e judaico-crist suscitou uma classificao dual da humanidade, ordenada quer por sua filiao religiosa, quer por seu grau de civilizao. 650 Ora, como j apontou Delio Cantimori, os humanistas voltaram, de fato, sua ateno ao homem e vida moral, de modo que as prticas e os modos de vida foram o centro de sua ateno. 651 Diante disso, vale notar que, atento vida moral, Joo de Barros faz uso de um critrio de classificao que estabelece uma diferena fundamental entre os homens. Como vimos anteriormente, a par das murmuraes havia a ideia de que uma parte significativa do mundo estava destinada a servir de pasto dos brutos. 652 Com efeito, importa observar que a noo de brutos denota um critrio de classificao fundamentalmente etnocntrico, que projeta a alteridade no mbito de uma natureza semiferina. Havia, efetivamente, uma diferena fundamental entre homens e brutos, que o historiador quinhentista assinala em sua descrio do dilogo travado entre Diogo de Azambuja e Caramansa, onde, enfim, o fidalgo portugus oferece a salvao da alma ao rgulo da Guin, que, segundo ele, era amor da salvao de sua alma, coisa mais preciosa que os homens tinham, por ela ser a que lhe dava vida, entendimento para conhecer e entender todas as coisas, e pela
647 CURTO, Diogo Ramada. Cultura Imperial... p. 62. 648 Cf. THOMAZ, Lus Filipe F. R. De Ceuta a Timor. Lisboa, Difel: 1994. p. 228. 649 Cf. ELLIOTT, J. H. O Velho Mundo e o Novo: 1492-1650. Trad. Maria Luclia Filipe. Lisboa: Editorial Querco, 1984. 650 Cf. ELLIOTT, J. H. Op. cit. 651 Cf. CANTIMORI, Delio. Humanismo y religiones en el Renacimiento... p. 167. 652 Cf. Dcada I, Livro I, Cap. IV. p. 38. 216
qual o homem era diferente dos brutos. 653 Desse modo, a intrseca relao estabelecida entre alma e entendimento denota, sem dvida, ambas heranas referidas: enquanto a tradio crist definia o homem em termos da sua receptividade da graa divina alma , a tradio clssica definia-o nos termos de sua racionalidade entendimento. Em linhas gerais, mais uma vez John Elliott quem acrescenta que a diviso fundamental que se estabelecia quanto religio quem dividia a humanidade entre cristos e no cristos (pagos, infiis e gentios), contudo, os europeus do Renascimento se apropriaram, ainda, da distino proveniente da literatura clssica, entre gregos e brbaros. 654
Com efeito, esta diferenciao nos remete a um debate de carter antropolgico que envolve a prpria noo de humanidade ao longo da histria. Autores como Margaret T. Hodgen e, mais recentemente Matthew R. Goodrum, David Abulafia, Joan- Pau Rubis e Felipe Fernandez-Armesto se debruaram sobre este assunto a partir de diferentes aspectos. Por sua vez, estes autores foram atentos ao destacarem o fato de que o pensamento do cristianismo primitivo e as ideias do alto medievo marcadas simultaneamente pelas sagradas escrituras e por ingredientes pagos, fantsticos, monstruosos e fabulosos tiveram impacto significativo sobre as ideias etnolgicas ainda ao longo do sculo XVI. 655 De todo modo, como apontou Edmundo OGorman para o caso de Jos de Acosta, o pressuposto bblico da descendncia do gnero humano de um nico par de genitores levaria o pensamento etnolgico a rechaar a hiptese de uma humanidade autctone americana, 656 o que configuraria, definitivamente, o pressuposto universalista mediador das relaes com os mais diversos povos e culturas com os quais os portugueses manteriam contato ao longo do sculo XVI, diante da efetividade da construo de seu imprio.
653 Dcada I, Livro III, Cap. I. p.159. 654 Cf. ELLIOTT, J. H. Op. cit. 655 Cf. HODGEN, M. T. Early anthropology in the sixteenth and seventeenth centuries. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1964; GOODRUM, M. R. Biblical anthropology and the Idea of human Prehistory in Late Antiquity. In: History and Anthropology. Vol 13 (2). 2002. pp. 69-78; ABULAFIA, David. The Discovery of mankind. Atlantic encounters in the age of Columbus. New Haven, CT: Yale University Press, 2008; RUBIS, Joan-Pau. Travel and ethnology in the Renaissance. South India through European Eyes, 1250-1625. Cambridge: Cambridge University Press, 2002; FERNNDEZ-ARMESTO, Felipe. Ento voc pensa que humano? Uma breve histria da humanidade. Trad. Rosaura Eichemberg. So Paulo: Companhia das Letras, 2007. Seria o caso de citarmos outros estudos que nos remetem a esta problemtica; DUCHET, M. Anthropologie et histoire au sicle des Lumires. Paris: Albin Michel, 1995; FERGUSON, A. B. Utter Antiquity: perception of Prehistory in Renaissance England. Durham: Duke University Press, 1993. 656 Cf. OGORMAN, Edmundo. Op.cit. 217
No mbito desse debate, importa assinalar a existncia de uma teoria naturalista que caracterizou o pensamento pago sobre a noo de humanidade e que haveria de ser combatida pelo iderio patrstico. Sobre este embate, Matthew Goodrum nos remete cosmogonia tradicionalmente atribuda ao filsofo grego Demcrito de Abdera 657
cuja obra conhecida, fundamentalmente, a partir de citaes e comentrios de outros escritores. Dentre estes autores, Censorino autor latino que comps um tratado sobre a histria natural do homem , por exemplo, assinala que o filsofo de Abdera acreditava que o homem havia comeado originalmente na gua e no lodo. 658 Contudo, foi mediado pela pena de um dos mais importantes apologetas do cristianismo que a ideia de Demcrito ganha seus contornos mais naturalistas: em sua obra Instituies Divinas, Lucio Clio Firmiano Lactncio, no intuito de refutar a cosmogonia pag, escreve que Demcrito sugere terem os homens sado da terra, maneira dos vermes, sem terem sido criados por alguma razo especial. 659
Com efeito, no que tange concepo da origem da espcie humana, a perspectiva atribuda a Demcrito de Abdera se desenha por meio da ao de agentes naturais, invocados para explicar o fenmeno. Entretanto, esta concepo foi combatida pela filosofia do cristianismo primitivo: ao passo que Demcrito entendia a criao do homem a partir de processos caticos orientados pela lei da natureza, o cristianismo deveria entender a criao do homem a partir de outras bases, ou seja, alm do preussuposto bblico da descendncia do gnero humano de um nico par de genitores, a criao do homem haveria de ser compreendida como um ato singular, divino e orientado pelo plano de criao de Deus, onde o homem ocuparia o topo da hierarquia da criao. 660 Definitivamente, a produo intelectual patrstica no pode ser esquecida como elemento de peso nas concepes etnolgicas do sculo XVI. Assim, preciso considerar que o debate sobre o problema da origem e da natureza do homem orientou parte dos escritos dos filsofos cristos. Com efeito, no Stromata, miscelnea composta pelo telogo grego Clemente de Alexandria, este debate posto em evidncia pelo autor quando assinala que, para ele, somente por meio da investigao sobre a origem do mundo que se poder penetrar na natureza
657 Cf. GOODRUM, M. R. Op. cit. 658 Cf. DMOCRITE. Latomisme ancient. Fragments et tmoignages. Textes traduits par Maurice Solovine. Rvision de la traduction, introduction et commentaires de Pierre-Marie Morel. Paris: Pocket, 1993. p. 92. A traduo foi feita por mim. Cf. tbm. GOODRUM, M. R. Op. cit. 659 Cf. DMOCRITE. Op. cit. p. 92. A traduo foi feita por mim. 660 Cf. GOODRUM, M. R. Op. cit. 218
humana. 661 Para situarmos esta proposio, relevante considerarmos que ela foi defendida pelo mesmo apologeta que via o culto de Cibele como um defeito. 662 Em suma, a partir desse quadro mental que, segundo o telogo, o importante seria penetrar na natureza humana. Em vista disso, vale atentarmos para a observao de Michel Foucault, para quem:
O cristianismo pertence ao campo das religies de salvao. uma dessas religies que tem como objetivo conduzir o indivduo de uma realidade outra, da morte vida, do tempo eternidade. Para alcanar isso, o cristianismo imps um conjunto de condies e regras de comportamento para certa transformao de si. 663
Conhecer a natureza humana, ou seja, conhecer a si mesmo no intuito de alcanar a salvao. Tendo isso em vista, notrio que a questo posta em evidncia, em ltima instncia, articulava-se ao aforismo grego inscrito nos prticos do orculo de Delfos: conhece-te a ti mesmo. 664 Definitivamente, em vista dessa problemtica que a filosofia patrstica se deteve na questo a respeito da natureza da espcie humana. neste sentido, por exemplo, que no dilogo Octavio influente obra de apologia ao cristianismo escrita por Marcos Mincio Flix , a importncia de se conhecer a natureza humana sustentada sob a perspectiva de que a ordem e a variedade do universo manifesta a existncia de Deus. Com efeito, o apologeta aponta para o mesmo caminho dos termos do debate j apresentado:
No nego que Cecilo tenha se esforado em sublinhar a importncia de que o homem deve conhcer-se a si mesmo e examinar que , de onde vem, por que existe, se um agregado de elementos, um composto de tomos ou mais bem ter sido feito, formado, animado por Deus. Isto no podemos, contudo, explor-lo e descobr-lo sem investigar todo o universo, pois todas as coisas se acham to vinculadas, conectadas e concatenadas que, se no se tiver examinado com ateno a natureza da divinidade, no se pode conhecer
661 Cf. CLMENT DALEXANDRIE. Les Stromates. Introduction, texte critique et notes par Annewies Van Den Hoek. Traduction de Claude Mondsert, s. j. Paris: Les ditions du Cerf, 2001. p. 95. (XIV, I). A traduo para o portugus foi feita por mim. Cf. tbm. GOODRUM, M. R. Op. cit. 662 Cf. HARTOG, Franois. El espejo de Herdoto... 663 FOUCAULT, Michel. Tecnologias de si, 1982. In: Verve. Trad. Andre Degenszajn. n 6, 2004. p. 349. 664 Cf. FOUCAULT, Michel. Op. cit. 219
a da humanidade, nem se pode to pouco dirigir bem os assuntos civis se no se conhece antes essa cidade comum a todos que o mundo; sobre tudo, se tivermos em conta que nos diferenciamos das bestas pelo fato de que estas, inclinadas e voltadas em direo terra, no nasceram se no para enchergar o pasto, enquanto ns, providos de um rosto erguido e de um olhar dirigido ao cu, a quem nos foi dada a palavra e a razo mediante as quais podemos conhecer, compreender e imitar a Deus, no nos est permitido nem nos lcito ignorar a claridade celeste que se impe a nossos olhos e a nossos sentidos; um grande sacrilgio buscar na terra o que se deve encontrar nas alturas. 665
Vale notar que Mincio Flix reveste de uma perspectiva crist uma noo que circulava no iderio pago: possvel encontrarmos opinies semelhantes em obras como o tratado sobre A natureza dos deuses, de autoria de Marco Tlio Ccero ou no poema Metamorfoses de Pblio Ovdio Naso. Para Ccero, por exemplo, a natureza teria feito do homem um ser que, ao invs de ser curvado para o cho, possui tronco alto e ereto, para que possa contemplar o cu e tomar conscincia dos deuses. Em suma, na pena do escritor romano, enquanto habitantes da terra, os homens teriam o privilgio de apreciar o mundo supra-terrestre e divino, espetculo que no oferecido a qualquer outra espcie animal. 666 Por sua vez, ao tratar da criao do homem, Ovdio registra ser ele o detentor da mais alta inteligncia:
Ente, que a todos legislar pudesse: Eis o homem nasce, e ou tu, suprema Origem De melhor Natureza, e quanto h nela, Ou tu, pasmoso Artfice, o formaste Pura extrao de divinal semente, Ou a Terra ainda nova, inda de fresco Separada dos cus, lhe tinha o germe. Com guas fluviais embrandecida, Dela o filho de Jpeto afeioa, Organiza pores, e as assemelha Aos entes imortais, que regem tudo.
665 FLIX, Minucio. Octavio. Introduccin, traduccin y notas de Vctor Sanz Santacruz. Madrid: Ciudad Nueva, 2000. p. 83 e 84. (17, 1-2). A traduo para o portugus foi feita por mim. Cf. tbm. GOODRUM, M. R. Op. cit. 666 CICRON. De la nature des dieux. Traduction nouvelle avec des notice et notes par Charles Appuhn. Paris Librarie Garnier Frres, 1935. p. 229. (II, LVI). A traduo para o portugus foi feita por mim. 220
As outras criaturas debruadas Olhando a Terra esto; porm ao homem O Factor conferiu sublime rosto, Erguido para o cu lhe deu que olhasse. 667
Ainda que a interao das perspectivas sobre a espcie humana oferecidas tanto por Ccero, quanto por Ovdio, tenham sido passveis de uma apropriao intelectual, tal como a de Mincio Flix, visto que sustentam a ideia da superioridade do homem em relao aos outros seres, importa notar a existncia de um pressuposto naturalista, orientado pelo caos, que marca a obra do poeta latino:
No tinha mais que um rosto a Natureza: Este era o Caos, massa indigesta, rude, E consistente s num peso inerte. 668
Com efeito, ao passo que a Patrstica podia apropriar-se de parte do pensamento pago a respeito da definio do homem, como j mencionamos anteriormente, na tese de que o homem surgiu ao acaso no interior de uma situao catica no podia ser aceita. No segundo livro das Instituies divinas, Lactncio, em suas j mencionadas refutaes cosmogonia pag, rebate a concepo do poeta latino onde o caos e a confuso teriam caracterizado o momento da criao do homem. 669 Com efeito, embora a tese da gerao espontnea fosse inconcebvel para o caso do homem, visto que ele teria sido criado diretamente por Deus e sua imagem e semelhana, ela no era totalmente absurda para a filosofia Patrstica, uma vez que, segundo o prprio livro de Gnesis, o Criador teria dito: Que a terra produza seres vivos segundo sua espcie. 670
Em face disso, em suas homilias sobre os seis dias da criao do mundo o Hexamero , Baslio de Cesareia anuncia ver a lama sozinha produzir enguias, que no procedem de nenhum ovo, nem de qualquer outra forma, a terra sozinha que lhes d nascimento. Com efeito, no que tange ao homem, So Baslio anota ter a cabea voltada para o cu e os olhos para cima, o que denota seu crescimento celestial, acima de todos os outros seres, tanto pela dignidade de sua conformao corporal
667 OVDIO. Metamorfoses. Trad. Bocage. So Paulo: Hedra, 2007. p. 43 e 45. (I, 77 86). 668 OVDIO. Op. cit. p. 39. (I, 6 7). 669 LACTANCE. Institutions Divines. Livre II. Introduction, texte critique, traduction et notes par Pierre Monat. Paris, ditions du Cerf, 1987. Cf. p. 115. (VIII, 8). A traduo para o portugus foi feita por mim. 670 Cf. Gn 1, 24. 221
como pela dignidade de sua alma. 671 Em sntese, a posio ereta do homem estaria associada ao prprio uso racional do corpo, notavelmente das mos, as quais, segundo Gregrio de Nissa, pode facilmente produzir toda arte e toda operao, tanto na guerra quanto na paz e foram acrescentadas ao corpo humano por uma questo racional. 672
Das apropriaes feitas por Joo de Barros das obras literrias da Antiguidade, bem como sua utilizao dos textos dos primeiros filsofos cristos, I. S. Rvah nos deu notcias em artigo seminal. 673 Contudo, seria o caso de nos perguntarmos se Joo de Barros teria tido contato, especificamente, com este debate. Creio que a resposta seja afirmativa: ainda que o humanista no percorra o debate sobre a origem da espcie humana, possvel apontarmos alguns momentos em em que o historiador quinhentista tangencia o assunto, particularmente em dois pontos onde encontramos referncias s Metamorfoses de Ovdio e s Instituies divinas de Lactncio, ambas em seu dilogo Ropicapnefma. Por sua vez, a meno ao apologeta cristo foi observada por I. S. Rvah, quando, ao dar voz Razo o humanista portugus anuncia que:
A alma, enquanto est retida em o crcere do corpo, sentindo corruptas paixes, d lugar s mortais dores. Mas tanto que o corpo corrompido e ela acha a liberdade, levada ao cu, onde est eternamente sem pena, porque assim o desps a divina Providncia. 674
Rvah observa que o excerto nos remete ao stimo livro das Instituies divinas: mais especificamente, possvel sugerir que a transcrio refere-se ao captulo sobre a imortalidade da alma. Todavia, alm da meno a Lactncio, ainda sob a voz da Razo em sua discusso a respeito da imortalidade da alma, nosso humanista faz, tambm, referncia literal a Ovdio ao anotar:Deu o Fabricador de todas as coisas ao homem rosto alto e mandou-lhe contemplar o cu; no o fez, como os outros animais, com ele derrubado, curvo e posto na terra. 675 O que podemos notar, portanto, sua
671 BASIL. The Hexaemeron. In: Nicene and post-Nicene Fathers. Basil: Letters and Select Works. Second Series. Peabody, Mass: Hendrickson Publishers, 2004. p. 102. (I, 2). A traduo para o portugus foi feita por mim. Cf. tbm. GOODRUM, M. R. Op. cit. 672 GREGORY OF NYSSA. On the making of man. In: Nicene and post-Nicene Fathers. Gregory of Nyssa: Dogmatic Treatises, etc. Second Series. Peabody, Mass: Hendrickson Publishers, 2004. p. 394. (VIII, 8). A traduo para o portugus foi feita por mim. Cf. tbm. GOODRUM, M. R. Op. cit. 673 Cf. RVAH, I. S. Antiquit et christianisme, anciens et modernes... In: Op. cit. 674 BARROS, Joo de. Ropicapnefma... p. 61. A transcrio foi atualizada por mim. 675 BARROS, Joo de. Op. cit. p. 61. A transcrio foi atualizada por mim. 222
necessidade em demarcar a fronteira entre homens e animais. Com efeito, vale atentarmos para o fato de que Edmund Leach sugere no existir uma linha de demarcao ntida entre a Natureza e a Cultura. 676
O debate a respeito das diferenas entre os homens e os animais, cujo pano de fundo nos remete s discusses sobre a prpria origem da espcie humana, colabora na construo de uma doutrina que transparecem as exigncias sociais crists em seus diversos contextos de ao e, nesta perspectiva, assinala a estreita relao que se estabelece entre a esfera religiosa e a esfera poltica. Com efeito, ainda que seja possvel especificarmos que o peso da pregao crist como fonte de inspirao das reflexes do poder tenha alcanado seu pice entre os sculos V e XII, no podemos perder de vista que o plano poltico e religioso permaneceriam entrelaados mesmo aps a renovao da filosofia e do direito levada a cabo pelo movimento humanista. 677
Em linhas gerais, pode-se dizer que este entrelaamento perpetua a desconfiana judaico-crist com relao ao poder laico: enquanto gregos e romanos confiavam nas virtudes cvicas e na organizao da cidade como espao de relizao do cidado, os homens da Bblia desprezavam os poderes temporais com a certeza de que a justia era um assunto fundamentalmente divino, alm disso, entendiam a cidade como espao de realizao da prpria imagem da Babilnia de Nabucodonosor, ou seja, era o lugar da devassido e da corrupo. 678 Desse modo, quando nos deparamos com o iderio do cristianismo primitivo, segundo o qual a boa direo dos assuntos civis deve ser entregue ao homem por sua capacidade de fazer o uso da razo dentro de uma significativa articulao com sua capacidade de contemplar e imitar a Deus em diferenciao das bestas , estamos nos defrontando, em ltima instncia, com o ideal de cidado bem como de seu oposto, o brbaro concebido por Aristteles em sua Poltica, todavia, j revestido pelos fundamentos doutrinais da religio crist. De fato, como bem observou Nicola Gasbarro, a cidade de Deus potencialmente aberta a todas as gentes e a doctrina christiana compatibilizou, de fato, todas as elaboraes universalistas da Antiguidade pag, da filosofia grega ao direito romano. 679
Especificamente no que tange diferenciao entre o brbaro e o cidado, a autoridade
676 LEACH, Edmund. Etnocentrismos. In: Enciclopdia Einaudi. Volume 5. Anthropos Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 139. 677 Cf. NAY, Olivier. Histria das ideias polticas. Trad. Jaime A. Clasen. Petrpolis, RJ: Vozes, 2007. p. 77 e ss. 678 Cf. NAY, Olivier. Op. cit. 679 GASBARRO, Nicola. Op. cit. p. 76. 223
das sagradas escrituras e do pensamento patrstico se articulam a um pensamento de orientao filosfica preponderantemente aristotlica. Como vimos, para o apologeta Mincio Flix, a capacidade do uso racional do corpo, bem como a capacidade de uso da palavra, capacitam o homem a dirigir os assuntos civis da cidade comum a todos que o mundo. Como mencionamos acima, a estabilizao desta categoria foi mediada pelo iderio da filosofia Patrstica que se desdobra da noo desenhada por Aristteles em sua Poltica, segundo a qual o homem um animal cvico. Com efeito, o Estagirita argumenta que comum e necessrio ao homem a dependncia mtua e, por isso, a vida em sociedade encontra-se inscrita nos desgnios da natureza, de modo que, estando a cidade na natureza, o homem naturalmente feito para a sociedade poltica: para Aristteles, portanto, o homem um animal cvico e por isso foi agraciado pela natureza com o dom da fala, elemento articulador de toda a sociedade civil. Em linhas gerais, a ideia do Estagirita de que nenhum homem pode bastar-se por si mesmo e aquele que no depende de outros homens ou, por algum problema, no pode resolver-se ficar com eles, ou um deus, ou um bruto um brbaro. De fato, a fala que projeta o homem no plano da vida poltica. 680 Neste sentido, interessa a observao de Edmund Leach, segundo a qual a linguagem o instrumento principal atravs do qual se realiza a ordenao do ambiente. 681
Em certo sentido, a introduo do problema da moral e dos brbaros no remete relao existente entre antigos e modernos. Com efeito, para Franois Hartog, a noo de selvagem se articula a ambas as noes medida que sua identificao, localizao e domesticao se d mediante um jogo de referncias, aluses e citaes que permite o estabelecimento de uma conexo, ainda que dissimtrica, entre antigos e selvagens 682
ao que poderamos acrescentar a categoria brutos. Particularmente, creio que a noo de brbaro fundamental neste jogo. Diante disso, vale notar que o termo brbaro pode ser compreendido, fundamentalmente, como um instrumento de distino entre aqueles que eram membros da sociedade qual pertencia o observador e aqueles que no pertenciam a ela. Todavia, importante notar que a palavra brbaro no era conhecida na Grcia antiga. Em suma, autores como Anthony Pagden e Lannec Hurbon
680 Cf. ARISTTELES. A poltica... 681 LEACH, Edmund. Anthropos. In: Op. cit. p. 14. 682 Cf. HARTOG, Franois. Os antigos, o passado... p. 128 e ss. Cf. tbm. HARTOG, Franois. Anciens, Modernes, Sauvages. Paris: Galaad, 2005. 224
sustentam que entre os gregos o brbaro era aquele que balbuciava, ou seja, aquele que no falava grego, de modo que as palavras mais apropriadas para designar este personagem nos remetem mais diretamente ao estrangeiro ou, em geral, quele que fala outra lngua. Por sua vez, a palavra brbaro teve aplicaes diversas ao longo da histria, tendo se adaptado com facilidade e de acordo com demandas histricas concretas em suas diversas utilizaes. De todo modo, ao passo que o brbaro aquele que no fala, ele representa, efetivamente, o antnimo de civil e poltico, visto que, tal como sugeriu Anthony Pagden em estudo clssico, tais termos derivam das palavras civis e plis: ambas aplicadas s cidades, bem como ao homem, visto ser ele o nico animal a construir e habitar cidades. Finalmente, o emprego da palavra brbaro articula-se, sempre, noo de inferioridade cultural ou mental, sendo que esta conotao se estabilizou definitivamente ao longo do sculo IV. 683
Com efeito, o Estagirita sustenta que este pressuposto hierarquizador uma resposta natural da sociedade, que para sua mtua conservao demanda uma estrutura na qual algum deve exercer a funo de comando, enquanto outro deve submeter-se: para Aristteles, todos os seres so marcados pela natureza desde o nascimento, seja para o comando, seja para a submisso. Pertence, portanto, ao desgnio da natureza que os mais inteligentes comandem aqueles que no possam contribuir com nada alm do trabalho do seu corpo para a prosperidade comum: todos os que no tm nada melhor para nos oferecer de que o uso de seus corpos e de seus membros so condenados pela natureza escravido, argumenta o filsofo. Entretanto, ainda em sua perspectiva, o mando to mais nobre quanto mais elevado o sdito: mais vale comandar homens do que animais, escreve em sua Poltica. 684 sob esta perspectiva que devemos compreender a ideia de que o prncipe tido como o rei dos costumes, tal como sugere Joo de Barros, mais uma vez por meio da Razo, em sua Ropicapnefma:
Lugares, homens, costumes, muitos tm o cunho do rei que os enobreceu. De onde vieram fidalguias e trajes, se no do gosto que os reis tiveram deles: Sempre se disse: Tal rei folgava em tal lugar, fez tal casta honrada, era monteiro, vestia as armas, estimava as letras e outros exerccios, prazer de sua vida. Reina outro, e desfaz quanto este fez. Todos vm
683 Cf. HURBON, Lannec. El brbaro imaginario. Trad. Jorge Padn Videla. Mxico: FCE, 1993. Cf. tbm. PAGDEN, Anthony. La cada del hombre natural. El indio americano y los orgenes de la etnologia comparativa. Trad. Beln Urrutia Domnguez. Madrid: Alianza Editorial, 1988. 684 Cf. ARISTTELES. Op. cit. Cit. p. 13. 225
interpolados: um guerreiro, outro pacfico; um cobioso, outro liberal; um previsto, outro inbil. Isso geral: provncias, reinos, cidades, homens, costumes, todos tm sua vez, sua frol, seu princpio e seu fim. E bem- aventurado o prncipe em cujo tempo floresceram coisas de louvor e homens de perfeita vida medraram, c sinal da perfeio da sua. No h mister mais clebre coroa que os costumes de seus povos, porque tal ser o rei quais eles forem, por ser um esprito potencial da sua repblica. 685
Ora, se no perdermos de vista que a distino de um reino encontra-se, tambm, na qualidade de seus sditos, e mais, a prpria dignidade do soberano define-se, tambm, pela qualidade de seus povos, no seria fora de propsito atentarmos para o pequeno espao dedicado pelo historiador quinhentista em suas Dcadas Terra de Santa Cruz, onde o humanista fora agraciado com uma capitania: dentre os trinta livros que compem sua obra magna, apenas dois captulos so dedicados ao descobrimento do Brasil. Com efeito, tratava-se de uma brbara terra, nunca trilhada de povo cristo, onde o povo pago da terra, o qual podemos crer estar ainda na lei da natureza todavia, possua alguma vocao para o cristianismo, uma vez que todos se punham em joelhos, usando dos autos que viam fazer aos nossos, como se tivessem notcia da Divindade a que se humildavam, 686 na ocasio da celebrao da primeira missa na Terra de Santa Cruz. Sob o prisma de que o mando tanto mais nobre quanto mais elevado o sdito, compreensvel que as gentes brbaras da terra de Santa Cruz haveriam de ser esquecidas por um bom espao de tempo, ao menos at o incio efetivo da colonizao do Brasil por volta de 1530. Tanto mais sentido ganha este hiato da colonizao quando nos lembramos, a partir dos estudos inspiradores de Laura de Mello e Souza, que as representaes europeias do homem americano foram pautadas por projees imaginrias acerca da humanidade, bem como pela representao de animais monstruosos. Sem dvida, a perspectiva apresentada pela historiadora nos remete a um dos momentos histricos que, segundo Adone Agnolin, determina uma especfica forma cultural de percorrer a alteridade. Diferentemente do momento histrico de orientao romana e jurdico-estatalizante, que apontamos no captulo anterior, trata-se, agora, da elaborao mtica por meio da qual a tradio grega definiu o outro:
685 BARROS, Joo de. Op. cit. p. 139. A transcrio foi atualizada por mim e o grifo meu. 686 Cf. cit. Dcada I, Livro V, Cap. II. pp. 389-390. 226
Atravs da prtica mtica, a cultura grega conotava a alteridade espacial e entropolgica representada pelos povos outros reconduzindo-a a uma oposio fundamental: aquela entre o si, enquanto cultura julgante, e todos os outros, que eram definidos globalmente enquanto objeto de julgamento, a fim de garantir e re-confirmar a prpria identidade cultural. [...] Quanto mais se encontram longe do centro cultural por excelncia, tanto mais os povos outros eram marginalizados e projetados no plo da naturalidade semiferina, ou at mesmo colocados na alteridade absoluta, fora e contra cada possvel humanidade (= monstruosidade). 687
Em suma, mais uma vez Laura de Mello e Souza quem nos assegura, ainda, que o amerndio poderia pertencer a duas modalidades diferentes de representao: quanto ao afastamento geogrfico, monstro; no que diz respeito nudez e vida natural, selvagem. Entretanto, matiza, a representao do homem selvagem prevaleceria ao longo do tempo, sobretudo porque a noo de monstruosidade fundamentava-se em um desconhecimento que a experincia das navegaes lanaria por terra. Assim: o homem selvagem no dependia do desconhecido, mas da representao hierrquica da sociedade crist. Justificava a empresa colonial enquanto tentativa de dar cultura e religio aos que no a tinham. 688
De fato, importa considerar que a justificao da empresa colonial se explicita a partir da marginalizao dos povos outros mas que, todavia, a incorporao das novas terras haveria de ser acompanhada da salvao das almas de seus habitantes naturais. Sem dvida, significativa, neste sentido, a sugesto a respeito da predisposio indgena f crist apontada por Joo de Barros: sua esperana residia, sobretudo, na converso dos gentios. principalmente a partir desta expectativa que o historiador quinhentista clamaria contra o triunfo de princpios seculares sobre os religiosos 689
na apresentao de seu argumento em defesa do nome Terra de Santa Cruz em detrimento do nome Brasil:
[...] admoesto, da parte da cruz de Cristo Jesus, a todos que esse lugar lerem, que dem a essa terra o nome que com tanta solenidade lhe foi
687 AGNOLIN, Adone. O apetite da antropologia... p. 57. Grifo do autor. F. tbm. Cf. AGNOLIN, Adone. Jesutas e selvagens... p. 444. 688 Cf. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz... pp. 52 e 55. 689 Cf. SOUZA, Laura de Mello e. Inferno Atlntico... pp. 30-31. 227
posto, sob pena de a mesma cruz, que nos h de ser mostrada no dia final, ao acusar de mais devotos do pau-brasil que dela; e por honra de to grande terra chamemos-lhe Provcia e digamos a Provncia de Santa Cruz, que soa melhor entre prudentes, que Brasil, posto pelo vulgo sem considerao e no habilitado para dar nome s propriedades da Coroa real. 690
Assim, o debate do historiador a respeito do Santo Lenho e do pau-brasil, bem como suas implicaes na escolha do nome da provncia americana articula-se, em termos mais amplos, ao profetismo e ao providencialismo comuns s crnicas portuguesas dos descobrimentos. 691 Em vista disso, se por um lado a pena de Joo de Barros ecoa um humanismo imbudo do esprito cruzadstico que deu a tnica do movimento humanista em Portugal, por outro, denota tambm j uma continudade desta vocao cruzadstica, todavia, apropriada agora pela portugalidade por doao particular de Deus, onde a guerra contra os infiis que se opem a Portugal um castigo e retribuio do pecado que o Islo cometeu tomando a Espanha, terra que sempre fora crist. 692 Diante disso, como bem observou Laura de Mello e Souza, no reino ibrico, o humanismo cvico se combinou com a defesa da monarquia e de suas polticas, ou seja, com as preocupaes que se desdobram da expanso martima: o mais evidente resultado da aliana estabelecida entre a monarquia de Dom Joo III e os letrados burocratas, tal como Joo de Barros. 693
Ora, a incorporao das novas terras e a salvao das almas, seja de americanos, africanos ou asiticos, possui um contraponto laico caractertico do humanismo portugus, que a defesa da monarquia e suas polticas. Diante disso, seria o caso de levarmos em considerao a tese de que o processo de formao dos Estados monrquicos encontra-se associado disciplinao de seus sditos, tal como nos fez notar, oportunamente, o historiador alemo Gerhard Oestreich, para quem a ideia do bem comum e da boa polcia liga-se estreitamente com a ideia de disciplina. 694 Com efeito, Oestreich orienta-se pela teoria poltica hobbesiana para sugerir que o corpo social seria submetido fora conformadora de um poder supremo normatizador das atitudes dos cidados.
690 Dcada I, Livro V, Cap. II. p. 392. Cf. tbm. SOUZA, Laura de Mello e. Op. cit. p. 31. 691 Cf. SOUZA, Laura de Mello e. O nome do Brasil. In: Revista de Histria. n 145 (2001). Cf. cit. pp. 77. 692 THOMAZ, Lus Filipe F. R. e ALVES, Jorge Santos. Op. cit. p. 93. 693 Cf. SOUZA, Laura de Mello e. Op. cit. Cf. cit. pp. 76. 694 OESTREICH, G. Problemas estruturais do absolutismo europeu... p. 196. 228
Ademais, como impedir as rixas de nascer no menos til ao contrrio, at mais til , para se chegar paz, do que apazigu-las uma vez nascidas; e como todas as controvrsias provm do fato de que as opinies dos homens diferem quanto ao que meum e tuum, justo e injusto, proveitoso e nocivo, bom ou mau, honesto e desonesto, e outras coisas anlogas, que cada qual avalia segundo o seu prprio julgamento ento, compete ao mesmo poder principal estabelecer algumas regras comuns para todos, e declar-las de pblico, de modo que todo indivduo possa saber o que pode ser chamado seu ou de outrem, o que justo, o que injusto, honesto, desonesto, bom, mau, isto , em resumo, o que deve ser feito e o que deve ser evitado no curso da nossa vida em comum. Estas regras e medidas so usualmente denominadas leis civis, ou leis da cidade, por serem as ordens de quem possui o poder supremo na cidade. E as leis civis assim as definimos: nada mais so do que as ordens de quem tem a autoridade principal na cidade, dirigindo as aes futuras dos cidados. 695
importante a observao de que, enquanto para Aristteles a vida poltica era determinada pela natureza, em Hobbes, ela determinada pelas demandas da vida em sociedade. Sem dvida, Hobbes respondia a um conjunto de problemas, onde a vontade individual ganhava nova projeo a partir da ascenso do individualismo renascentista, como sugeriu Agnes Heller. 696 De todo modo, a questo da direo dos cidados resolvida pelas leis civis, que so as ordens de quem tem a autoridade principal na cidade. Com efeito, vale observarmos que, embora a perspectiva de Hobbes possa ser compreendida sob um notrio aspecto laicizante, sua teoria poltica no deixa de ser pautada largamente na Bblia: ao comentar a respeito do papel deste livro na vida intelectual e moral inglesa ao longo do sculo XVI, o historiador Christopher Hill nota que o autor do Leviat faz uso sistemtico das sagradas escrituras como fonte. 697 Com efeito, dedica todo um captulo de seu Do cidado a confirmar os direitos do governo a partir da Bblia. Ali, a prpria definio da autorida real est pautada no primeiro livro de Samuel, onde lemos:
695 HOBBES, Thomas. Do cidado. Trad. apresentao e notas Renato Janine Ribeiro. So Paulo: Martins Fontes, 2002. p. 106. O grifo meu. 696 HELLER, Agnes. O homem do Renascimento... p. 163 e ss. 697 Cf. HILL, Christopher. A Bblia inglesa e as revolues do sculo XVII. Trad. de Cynthia Marques. Rio de Janeiro: Civilizao Brasileira, 2003. p. 41 e ss. 229
Declara-lhes qual ser o costume 698 do rei que houver de reinar sobre eles etc. Este ser o costume do rei que houver de reinar sobre vs: ele tomar os vossos filhos, e os empregar para os seus carros, e para seus cavaleiros, para que corram adiante dos seus carros etc. E tomar as vossas filhas para perfumistas etc. E tomar o melhor das vossas vinhas, e os dar aos seus criados etc. 699
Diante disso, se arriscarmos uma comparao com Joo de Barros mesmo sem perder de vista os diferentes contextos em que a obra desses autores foram elaboradas , notria a literalidade do portugus ao definir o papel moral-pedaggico e ordenador do prncipe. Com efeito, escreve o humanista em seu Panegrico do Rei Dom Joo III, que o verdadeiro ofcio do rei inventar novas e proveitosas leis 700 sem dvida, orientado pelo conselho de seus letrados. Por sua vez, tai leis haveriam de ser inspiradas por Deus tal como em Hobbes uma vez que V. Alteza [...] traz todos seus pensamentos em Deus. Este a verdadeira lei, e deste nasce a verdadeira justia. 701
Em suma, ao passo que na filosofia poltica do ingls encontramos pretenses laicizantes, em Joo de Barros, o papel do prncipe no se separa das motivaes religiosas, uma vez que Dom Joo III resposvel tanto pela paz na repblica, quanto pela difuso da f crist: Qual prncipe converteu F de Cristo tantas provncias, tanta multido de almas, cuja bem-aventurana no pode deixar de ser comunicada com a causa dela?, 702 pergunta-se o humanista em seu encmio. Em sntese, tendo em vista que sob o prisma de Barros, por um lado, as repblicas poderiam se governar tanto pelas leis quanto pelos bons costumes, e por outro, que os costumes eram mais antigos que as leis, importa considerar que ao soberano, caberia a difuso e conservao de ambos, visto que leis e bons costumes eram necessrios para a conservao da boa repblica. 703
Se, como observamos anteriormente, importa coroa os costumes de seus sditos, visto que a prpria dignidade do soberano define-se, tambm, a partir dessa
698 No sentido de direito, como, alis, est na traduo do rei Jaime. Cf. nota 8 em HOBBES, Thomas. Op. cit. p. 384. 699 Cf. 1Sm 8, 11-15. Apud. HOBBES, Thomas. Idem. p. 178. 700 BARROS, Joo de. Panegrico do Rei Dom Joo III... p. 5. vlida a comparao da formulao de Joo de Barros com a de Nicolau Maquiavel anteriormente citada, segundo a qual, nunca coisa nenhuma deu tanta honra a um governante novo como as novas leis e regulamentos que elaborasse (Cf. MAQUIAVEL, Nicolau. Op. cit. p. 137). 701 BARROS, Joo de. Op. cit. p. 11. 702 BARROS, Joo de. Idem. p. 38. 703 Idem, Ibidem. p. 15. 230
relao, o problema da expanso do reino portugus e suas implicaes mais evidentes como a incorporao de novos espaos habitados por populaes culturalmente distintas e adeptas das mais diversas crenas e costumes ganha significativa relevncia: sobre o assunto, John H. Elliott chamou nossa ateno para a existncia de monarquias caracteristicamente compsitas no mbito da dinmica da formao dos estados europeus modernos. Envolvendo, muitas vezes, uma mirade de povos e territrios, a manuteno destas monarquias dependia da observncia de suas leis e costumes em um ambiente marcadamente descontnuo e heterogneo: desse modo, a continuidade seria forjada em termos religiosos e simultaneamente civis , o que permitiria a configurao de uma unidade relativa para o estado. 704 No caso de uma monarquia catlica como a portuguesa, cujo poder fundamentava-se, tambm, na religio como vimos acima foi o universalismo cristo quem permitiu a incorporao da diversidade cultural. Sem dvida, preciso assinalar que a possibilidade de converso f que marca a diferena entre a figura do brbaro para um cristo do sculo XVI e a figura do brbaro da poca helenstica, enfim, a diferena entre a congregatio fidelium e o oikumne:
[...] enquanto o oikumne era um mundo completamente fechado, a cristandade no era. O mito cristo de um s progenitor para toda a humanidade e a crena crist na perfeio do plano divino para o mundo natural fizeram que a unidade do gnero homo sapiens fosse essencial para a antropologia e para a teologia, como o havia sido para a biologia grega. 705
Nas Dcadas, a figura do brbaro mltipla e, ainda que muitas vezes atenda s exigncias de uma alteridade cuja cultura pode atingir diferentes graus de complexidade, a mediao de Joo de Barros implica, sistematicamente, um juzo. Caso emblemtico, neste sentido a descrio de Moambique: assentada em um pedao de terra torneado de gua salgada com que fica em ilha, tudo terra baixa e alagadia, Moambique tida por insalubre, um lugar doentio e brbaro onde chegou a ficar sepultada a maior parte da gente de uma armada que como tantas outras ali fizera escala para invernar. Por sua vez, suas casas eram palhoas, sendo que as nicas
704 ELLIOTT, J. H. A Europe of Composite Monarchies. In: Past and Present, No. 137, The Cultural and Political Construction of Europe. (Nov., 1992), pp. 48-71. 705 PAGDEN, Anthony. Op. cit. p. 40. A traduo do espanhol foi feita por mim. 231
construes de taipa com eirados por cima, eram a Mesquita e as casas do Xeque. 706
Com efeito, a pobreza das edificaes caracterstica dos povos brbaros: outro notvel exemplo neste sentido encontramos na descrio da comarca de Toroa, regio pertencente ao reino de Sofala que era habitada por uma gente que muito brbara e todas suas casas so de madeira. 707 Com efeito, ainda sobre Moambique Joo de Barros faz notar que os povoadores da cidade eram mouros vindos de fora e que a povoao teria sido feita unicamente para servir de escala do trajeto entre Mina e Quloa, porque a terra em si era de pouco trato, e os naturais, que eram negros de cabelo revolto, como de Guin. 708 Definitivamente, embora os portugueses tenham se apercebido de que a ilha de Moambique fosse um porto de escala importante para assegurar a regularidade de suas ligaes entre Lisboa e o oriente, vale notar que a regularizao de tal carreira s frutificaria definitivamente a partir da segunda metade do sculo XVII. Da a conotao de esterilidade que o lugar ganha na pena do historiador quinhentista, a despeito de possuir um importante centro mercantil. 709
De um lado, portanto, a terra de pouco trato com casas de madeira ou palhoas, ao passo que de outro lado, os negros de cabelo revolto. As consideraes de Joo de Barros a respeito da escolha do local para as construes acenam para os limites da vida poltica local, tal como a regio do Zanguebar, cuja aspereza da terra dificulta a habitao de gente poltica. De fato, o historiador anota que na regio, encontrava-se gente negra, de cabelo retorcido, idlatra e to crente em agouros e feitios que at mesmo os animais, aves, frutas e sementes, tudo responde barbaria da gente em serem feras e agrestes. Por fim, escreve o humanista ser ali spera e estril terra para habitao de gente poltica. 710 Assim, diante da incapacidade de transformar seu meio, que o homem agreste se ope ao poltico. Neste sentido, caso emblemtico, tambm so os badus ou bedunos que habitam o entorno do Mar Roxo, cuja vida
706 Cf. Dcada I, Livro IV, Cap. IV. pp. 296. 707 Dcada I, Livro X, Cap. I. p. 379. 708 Dcada I, Livro IV, Cap. IV. p. 297. 709 Cf. DIAS ANTUNES, Lus Frederico. E LOBATO, Manuel. Moambique. In: SERRO, Joel e OLIVEIRA MARQUES, A. H. (dir.). Nova Histria da Expanso Portuguesa. O Imprio oriental (1660- 1820). Volume V tomo 2. Coord. Maria de Jesus dos Mrtires Lopes. Lisboa: Editorial Estampa, 2006. pp. 265 e ss. 710 Cf. Dcada I, Livro VIII, Cap. IV. p.210. 232
pastorar gado e andar no campo, 711 e so tidos por brbaros por aqueles que habitam cidades e povoaes polticas. 712 Em sntese, escreve o autor das Dcadas:
A gente que habita ao longo desta ribeira do mar, tirando os lugares clebres, muito agreste e brbara, a que os mesmos mouros chamam badus como c dissemos, campestre e montanhs, a qual toda vive de saltos e rapina, e quando podem, cometer as povoaes. 713
Segundo Gilberto Mazzoleni, durante sculos o ocidente qualificou a diversidade cultural a partir de um paradigma expresso fundamentalmente por meio de uma oposio expressa na cor da pele, em suma, o europeu identificou na relao entre o si mesmo (branco) e o outro (negro) uma quantificao satisfatria do diverso. 714 De fato, Joo de Barros classifica os homens de Moambique a partir deste paradigma, uma vez que so apresentados como negros de cabelo revolto, como de Guin. Com efeito, os habitantes da Guin eram considerados brbaros pelo humanista:
Neste tempo o negcio de Guin andava j corrente entre os nossos e os moradores daquelas partes, e uns com os outros se comunicavam nas coisas do comrcio com paz e amor, sem aquelas entradas e saltos de roubos de guerra que no princpio houve. O que no pde ser de outra maneira, principalmente acerca de gente to agreste e brbara, assim em lei e costumes, como no uso das coisas desta nossa Europa. 715
Contudo, ainda que as gentes da Guin fossem agrestes e brbaras, o ttulo de Senhor da Guin fora incorporado pelos Avis desde Dom Joo II. Entretanto, se a qualidade e a boa fama da coroa depende, tambm dos costumes de seus povos, que interesse poderia haver por parte do reino de Portugal em incorporar tal ttulo? A resposta est no comrcio, visto que o negcio de Guin andava j corrente: definitivamente, ainda que a cobia e os interesses estritamente materiais fossem
711 Cf. Dcada I, Livro VII, Cap. II. p. 89. 712 Cf. Dcada I, Livro VIII, Cap. IV. p. 210. 713 Dcada II, Livro VIII, Cap. I. p. 276 e 277. 714 MAZZOLENI, Gilberto. O Planeta Cultural: para uma Antropologia Histrica. Trad. Liliana Lagan e Hylio Lagan Fernandes. So Paulo; Editora da Universidade de So Paulo: Instituto Italiano di Cultura di San Paolo e Instituto Cultural talo-Brasileiro-So Paulo, 1992. p. 69. Os grifos so do autor. 715 Dcada I, Livro II, Cap. II. p. 141. O grifo meu. 233
condenveis, o comrcio era compreendido como fundamento de boa polcia; o comrcio e comutao, [...] o meio pelo qual se concilia e trata a paz e amor entre todos os homens, por este comrcio ser o fundamento de toda a humana polcia. 716
Ora, no seria equivocada a considerao de que o comrcio um instrumento de comunicao. Por sua vez, o comrcio da Guin estava no escopo portugus a muito tempo e foi explorado de formas diversas: Lus Filipe F. R. Thomaz observa que, se em um primeiro momento ele foi usufrudo por Dom Henrique de modo vitalcio, em um segundo momento sua explorao comercial passaria a ser feita por arrendamento. 717
Com efeito, se eram brbaros, no se pode perder de vista que:
[...] depois que tiveram alguma notcia da verdade pelos benefcios que recebiam, assi na alma como no intendimento, e coisas para seus usos, ficaram to domsticos, que no havia mais que partirem os navios deste reino, e, chegados a seus portos, concorriam muitos povos do serto ao comrcio de nossas mercadorias, que lhe davam a troco de almas, as quais mais vinham receber salvao que cativeiro. 718
De fato, o nmero de cristos na Guin esteve em crescimento permanente ao longo dos primeiros sculos da presena portuguesa. 719 Entretanto, os benefcios que recebia a gente da Guin no se limitavam alma mas compreendiam, tambm, o entendimento e as coisas de uso: o proveito das relaes com os portugueses no se esgotava na esfera religiosa, uma vez que a salvao da alma haveria de ser acompanhada de uma melhoria significativa em todos os nveis da vida material. Sem dvida, para Joo de Barros, a economia no apenas tinha origem nas relaes polticas mas, sobretudo, situava-se dentro delas. 720 Ainda sob este prisma, vale atentarmos para o fato de que os benefcios materiais poderiam ganhar maior evidncia quando a converso religiosa fosse difcil, tal como foi o caso de Cochim, cidade habitada predominantemente por mouros, onde pouco havia de se fazer para transformar esta
716 Dcada I, Livro V, Cap I. p. 385. 717 Cf. THOMAZ, Lus Filipe F. R. De Ceuta a Timor... 718 Dcada I, Livro II, Cap. II. pp. 141 e 142. 719 Cf. CALDEIRA, Arlindo Manuel e NEVES, Carlos Agostinho das. A Igreja e a cultura. In: SERRO, Joel e OLIVEIRA MARQUES, A. H. (dir.). Nova Histria da Expanso Portuguesa. A Colonizao Atlntica. Volume III tomo 2. Coord. Artur Teodoro de Matos. Lisboa: Editorial Estampa, 2005. pp. 425 e ss. 720 Para esta inferncia, cf. GODELIER, Maurice. Economia. In: Enciclopdia Einaudi. Volume 28. Produo/Distribuio Excedente. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1995. pp. 11-37. 234
situao. Ali, os portugueses desempenharam importante papel poltico, cujas implicaes produziram efeito notveis na esfera da vida material:
A qual cidade Cochim, cabea do reino do seu nome, ao tempo que entramos na ndia era to pouca coisa que no tinha fora para resistir a potncia do Samorim de Calecute e ora, com favor nosso, no somente feita uma magnfica cidade em templos, edifcios e casas muito suntuosas dos nossos naturais, que ali fizeram sua vivenda, governando a terra pelas leis e ordenaes deste reino de Portugal, como cada uma das cidades dele, mas ainda o rei natural da terra e seus sditos so feitos, com nossa comunicao, poderosos em riquezas e potncia para resistir a todo Malabar, por lhe serem muito sujeitos aqueles prncipes e senhores do reino a que eles chamam Caimais. 721
Lus Filipe F. R. Thomaz sugere que a constatao da presena macia de mouros em Cochim seria responsvel pela tnica guerreira que a empresa colonizadora adquiriria, promovendo uma renovao das campanhas marroquinas feitas ao longo do sculo XV. Enfim, para o historiador portugus, esse ideal de guerra santa conferiu expanso portuguesa no oriente uma fora moral e uma coeso intrnseca que, em parte, explicam seu sucesso. 722 Por sua vez, o desdobramento desse mpeto colonizador ganha seus contornos na visvel oposio existente entre as casas de madeira ou palhoa, de Moambique ou do Zanguebar e a magnfica cidade de Cochim, com templos, edifcios e casas suntuosas. Em sntese, as edificaes denotavam polcia e orientavam os interesses expansionistas. Ormuz, por exemplo, cuja cidade em si muito magnfica em edifcios, 723 foi um local estrategicamente ocupado por Afonso de Albuquerque no intuito de firmar a presena portuguesa no ndico. De todo modo, importa considerar que embora esta conquista no se deva efetivamente iniciativa real, 724 para Joo de Barros, os feitos dos portugueses no oriente eram pautados por uma lgica onde a glria do feito haveria de corresponder dignidade qual o nascimento obrigava e, por isso, seria inconcebvel considerar a autonomia das decises de Afonso de Albuquerque: em ltima instncia, seus feitos eram em nome do reino. sob esta perspectiva que devemos compreender a produo historiogrfica quinhentista dedicada
721 Dcada I, Livro IX, Cap. I. p. 297 e 298. 722 Cf. THOMAZ, Lus Filipe F. R. Op. cit. p. 212. 723 Dcada II, Livro II, Cap II. p.107. 724 Cf. THOMAZ, Lus Filipe F. R. Op. cit. 235
presena portuguesa no oriente, onde o monarca ocupava o centro das atenes, sobretudo como elemento estruturador das conquistas. 725
Com efeito, as edificaes eram claro indcio de vida poltica e boa polcia. Malaca , tambm, exemplar neste sentido, visto que, tal como Cochim, Joo de Barros sugere ter se beneficiado da rede comercial portuguesa, sendo considerada pelo humanista uma das mais populosas e de maior polcia em edifcios de todo o Mundo. 726 Definitivamente, o que podemos notar, a existncia de um parmetro fundamental que procura determinar e hierarquizar a diversidade cultural. Assim, o que importa identificar o brbaro para que ele seja transformado em homem poltico. Entretanto, a identificao do brbaro define-se tambm pela homologia em face do imperativo da unidade do gnero humano. isto o que permite a Joo de Barros estabelecer uma relao de continuidade entre ocidente e oriente, tal como j observou Zoltn Biedermann em sugestivo artigo. 727
Sem dvida, nas Dcadas a homologia ganha contornos bem definidos no que se refere China. Com efeito, Joo de Barros compara os chineses aos gregos e romanos sendo que os primeiros poderiam ser considerados ainda mais prudentes na construo de seu imprio, uma vez que de acordo com o historiador quinhentista, tiveram maior prudncia que os gregos, cartagineses e romanos; os quais, por causa de conquistar terras alheias, tanto se alongaram da ptria, que a vieram perder; porm os chineses no quiseram experimentar este total dano. 728 Possivelmente uma crtica velada s dimenses do imprio portugus? Talvez. De todo modo, a comparao entre chineses e gregos foi oportunamente assinalada por Antnio Jos Saraiva, que nos atentou para a efetiva conotao de tal recurso. Para ele, este confronto denota substantiva aproximao com o ideal de Antiguidade e tudo o que ele representou. Em vista disso, conclui: como elogio e manifestao de admirao, era o mximo que de um humanista se podia esperar. 729
Definitivamente, a China apresentada como exemplo em um contexto que vive sob o signo da imitao. De fato, como sugeriu Zoltn Biedermann, ao passo que a China podia servir de exemplo para o leitor portugus, porque os fenmenos da vida
725 Cf. AVELAR, Ana Paula Menino. Vises do Oriente... p. 225 e ss. 726 Dcada II, Livro VI, Cap I. p. 14. 727 Cf. BIEDERMANN, Zoltn. Nos primrdios da antropologia moderna... 728 Dcada III, Livro II, Cap VII. p. 196. 729 SARAIVA, Antnio Jos. Uma concepo planetria da Histria... p. 352. 236
social eram compreendidos como essencialmente semelhantes nas diversas regies do globo. 730 Com efeito, a comparao no pra por a. Lus Filipe F. R. Thomaz sugere haver um dilogo entre os soberanos da China e de Portugal que mais parecia uma conversa de surdos, em face de suas pretenses universalistas. Diante disso, o historiador atenta para a autorrepresentao do imperador chins:
Figurava-se o cu como um crculo, a terra como um quadrado; a projeo do cu na terra era a China, os quatro cantos o pas dos brbaros, que assim quedavam privados dos eflvios celestes e prisioneiros da sua prpria barbrie; se logravam escapar-lhe um pouco, era na medida em que vinham sorver China as migalhas de civilidade que tombavam da mesa do Filho do Cu, a quem tinham, por isso, o dever de mandar embaixadas, a prestar tributo e vassalagem. 731
A China era de fato um lugar poltico segundo Joo de Barros, uma vez que seu rei, em terra, povo, potncia, riqueza e polcia mais que todos estes outros. 732 Em suma, a noo de poltica sugere uma efetiva possibilidade de comparao. Por sua vez, esta comparao reside em um procedimento intelectual que opera um intsrumental atrelado especificidade do contexto portugus do sculo XVI. Se existe, de fato, alguma admirao por parte de Joo de Barros, ela est longe de aceitar a relatividade de sua civilizao, mas se deve, principalmente, ao fato de que, para ele, as relaes econmicas encontram-se no interior das relaes polticas e obedecem a uma lgica que denota a existncia de uma ponte efetiva entre as diferentes civilizaes em relao. Esta ponte o reconhecimento dos limites do exerccio do poder e o reconhecimento da soberania nacional: definitivamente, as relaes econmicas entre portugueses e chineses s foram levadas a efeito sob as condies estabelecidas pelas autoridades chinesas e no por aquelas impostas pelos portugueses, como notou Charles Boxer. 733
Por fim, ainda que partilhando de uma origem comum ou seja, o pressuposto da unidade do gnero humano , bem como da efetiva possibilidade de comunicao
730 Cf. BIEDERMANN, Zoltn. Op. cit. 731 THOMAZ, Lus Filipe F. R. Introduo. In: MARQUES, A. H. de Oliveira (dir.). Histria dos portugueses no extremo oriente. 1 Vol. Tomo I. Em torno de Macau. Lisboa: Fundao Oriente, 1998. p. 88. 732 Dcada I, Livro IX, Cap II, p. 320. 733 BOXER, Charles R. O imprio martimo portugus... p.64. 237
principalmente por meio do comrcio , a configurao das diferenas orienta-se por meio de uma opresso simblica sistematicamente veiculada pelos pressupostos hierarquizadores que norteiam a estruturao das relaes nos mais diversos espaos de interao descritos pelo historiador quinhentista. Contudo, encontram homologia na esfera do poder, ou seja, nos limites ingerncia. Todavia, o reconhecimento dos limites do exerccio do poder no se desdobra na admirao por outras civilizaes, mas sim em um mpeto normatizador. Exemplo significativo, neste sentido, a proposta pedaggica veiculada literalmente por Joo de Barros tanto em suas gramticas, quanto em sua defesa da linguagem: franco tributrio de Coluccio Salutati, para quem o conhecimento dos rudimentos gramaticais e do uso da lngua seria a porta de entrada de todo discernimento espiritual e apreenso da palavra de Deus, 734 Barros compreende a necessidade estratgica de levar a efeito um procedimento de aculturao elementar 735
atravs da alfabetizao infantil em portugus, por ser o primeiro leite de sua criao: 736
As armas e padres portugueses postos em frica e em sia, e em tantas mil ilhas fora da repartio das trs partes da terra, materiais so, e pode-as o tempo gastar, porm no gastar doutrina, costumes, linguagem, que os portugueses nesta terra deixarem. 737
Evidncia notria do binmio lngua e imprio, notemos que os portugueses que haveriam de deixar suas marcas na esfera dos costumes, 738 o que denota tanto pretenso ao direcionamento espiritual, quanto procedimento de segregao. Com efeito, a incorporao de costumes diversos implicaria degenerao, conhecida como barbarismo no caso especfico da linguagem, compreendido como um vcio que se comete na escritura [...] ou na pronunciao, o qual em nenhuma outra parte da terra se cometia tanto quanto no reino de Portugal, por causa das muitas naes que
734 Cf. GARIN, Eugenio. Op. cit. p. 38 e ss. 735 Cf. ROCHE, Daniel. As prticas de escrita nas cidades francesas do sculo XVIII. In: CHARTIER, Roger (org.). Prticas de leitura. Trad. Cristiane Nascimento. So Paulo: Estao Liberdade, 2001. 736 BARROS, Joo de. Grammatica da lingua Portuguesa... p. 1 verso. A atualizao foi feita por mim. 737 BARROS, Joo de. Dilogo em louvor de nossa linguagem... p. 53. 738 Sobre o assunto Giuseppe Marcocci sugere que no Dialogo em louvor da nossa linguagem, Barros avanou a tese de uma substancial continuidade entre Roma e Portugal. Naquele esboo havia lugar para um imperialismo cultural capaz de absorver neologismos das terras ultramarinas, uma proposta que muito devia sua prtica quotidiana do comrcio internacional como feitor da Casa da ndia [...] Esta atitude recebeu a simpatia de Asensio, apesar de ela interpretar a imposio da lngua como forma de domnio imperecvel. (cf. MARCOCCI, Giuseppe. A conscincia de um Imprio... p. 228). 238
trouxemos ao jugo de nosso servio. Por sua vez, ainda que a comparao com os antigos possa revelar alguma admirao e reconhecimento de uma civilizao no europeia, no se pode perder de vista que ela sincrnica veiculao de esteritipos por meio da lngua no interior da sociedade portuguesa. Seria principalmente o uso da fala que instrumentalizaria a violncia simblica que assinala as diferenas constitudas no mbito de uma pretensa relao de subordinao dos locais onde no se reproduzisse fielmente a cultura lusa, notavelmente a lngua portuguesa, por que bem como os gregos e Roma haviam por brbaras todas as outras naes estranhas a eles, por no poderem formar sua linguagem: assim ns podemos dizer que as naes de frica, Guin, sia, Brasil, barbarizam quando querem imitar a nossa. 739
739 BARROS, Joo de. Grammatica da lingua Portuguesa... p. 34 anverso. A atualizao do texto foi feita por mim. 239
Concluso
O propsito deste estudo foi localizar o iderio inerente produo intelectual letrada portuguesa, concebido, fundamentalmente, como produto de um vocabulrio conceitual disponvel mentalidade renascentista. Para cumpr-lo, recuperamos e problematizamos, a princpio, a Vida de Joo de Barros escrita por Manuel Severim de Faria, sem perder de vista a conjuntura em que foi escrita: o contexto da unio dos reinos ibricos, momento em que o questionamento da identidade portuguesa dava a tnica em uma produo literria voltada cada vez mais atribuio de significados ao passado. Foi principalmente sob este prisma que a leitura da Vida de Joo de Barros conduziu-nos inveno de uma tradio dedicada a impor sentidos ao passado e seu imperativo de assinalar o compromisso de Joo de Barros com a vida cvica em Portugal. Em vista disso, propusemos a ideia de que a representao do ideal de vida civil de um personagem como Joo de Barros no pode prescindir dos padres de honra e dignidade caractersticos de um corteso. E assim, notamos que a trajetria da vida de Joo de Barros descrita por Severim de Faria sugere ter sido ele muito bem amparado na Corte, ao cumprir todas as etapas que deveriam ser galgadas pelo corteso ideal, ou seja, possuir origem nobre, residir na Corte desde a mocidade, ter proximidade com o rei e ter slida formao em humanidades. Historicamente, o corteso tem sido considerado como um dos mais representativos personagens dentre aqueles que emergiram ao longo do incio da poca Moderna. Por sua vez, no mbito de uma instituio rigidamente ordenada como a Corte, a representao do corteso enquanto ideal de vida civil no deveria se afastar dos padres que regulam a honra e dignidade que lhe deviam ser caractersticos. Foi sob este prisma que compreendemos o tratamento que Severim de Faria deu trajetria de vida de Joo de Barros ao sugerir que ele teria sido capito da Fortaleza de So Jorge da Mina: em suma, exigia-se do corteso no apenas uma slida formao intelectual por meio do conhecimento das letras, mas tambm que sua profisso estivesse vinculada s armas. 240
Fundamentados no pressuposto de que no existe abordagem de um problema histrico fora do discurso historiogrfico que o elaborou, nos detivemos no contexto, na obra, bem como na conjuntura em que Joo de Barros viveu, alm de atentarmos para o fato de que o uso da linguagem era um elemento de absoluta relevncia no mbito da vida dos cortesos. Assim, a partir de um enfoque no qual refutamos a percepo do passado como alteridade absoluta, pudemos assinalar a existncia de dois momentos do reinado de Dom Joo III: um primeiro, de maior abertura ao pensamento humanista laicizante, marcado pelo investimento na cultura, e um segundo, mais obscurantista, caracterizado pela instituio da Inquisio, e que assinala um perodo de maior fechamento cultural. Em vista disso, compreendemos que a obra de Joo de Barros foi um espao por meio do qual o autor se inseria no debate pblico e apresentava suas opinies por meio de gneros literrios apropriados. Com efeito, a dedicatria feita ao rei portugs por Erasmo de Roterd na primeira edio das Lucubraes de Crisstomo tem sido apontada como a maior prova da inclinao humanista de Dom Joo III. Entretanto, ao atentarmos para a existncia de uma relao de subordinao das letras ao poder, arriscamos a hiptese de que esta dedicatria pode ser compreendida como um recurso do humanista holands para alcanar benefcios junto ao rei. Em nossa perspectiva, esta hiptese ganha credibilidade diante do fato de que Erasmo suprimiu a dedicatria em uma segunda publicao, quando viu suas expectativas frustradas. Outro elemento associado inclinao humanista de Dom Joo III sua eventual pretenso de acolher o humanista holands no reino ibrico, oferecendo-lhe uma Ctedra em Coimbra. Tal hiptese nos parece problemtica. Primeiramente porque ela est fundamentada em uma informao dada por Damio de Gis sob constrangimento. Em segundo lugar porque no h notcia de que o rei portugus tenha formalizado tal convite. Por fim, ainda que Dom Joo tenha, de fato, especulado sobre a presena de Erasmo em sua Corte como mestre e representante das letras, isto no denota, necessariamente, uma inclinao humanista do rei de Portugal, visto que a presena do holands era disputada por monarcas de toda a Europa, o que nos fez contarmos com a hiptese de que a motivao de Dom Joo III era protocolar. Ainda assim a influncia de Erasmo foi evidente em Portugal, muito embora esteja atrelada s especificidades histricas do reino ibrico. Diante disso procuramos 241
assinalar a cautela do humanismo portugus em eliminar as fronteiras entre a herana pag e o cristianismo como a mais notvel peculiaridade do erasmismo ibrico. De fato, entendemos que a manuteno das fronteiras entre a herana pag e o cristianismo foi um elemento fundamental na composio do esprito cruzadstico que estruturou a mentalidade portuguesa no contexto da expanso. Por sua vez, tambm compreendemos a excluso dos grandes pensadores da Antiguidade do Paraso como o limite do pensamento erasmista em Joo de Barros. Ao nos debruarmos sobre o contexto e a conjuntura em que Joo de Barros viveu e produziu sua obra, obrigatoriamente nos deparamos com a noo de Renascimento e sua operacionalidade enquanto categoria historiogrfica. Diante disso, atentamos para a diversidade de suas manifestaes, bem como para o fato de que, em Portugal, sua articulao com a esfera poltica atende s vicissitudes da expanso martima, evidenciando que tal categoria no pode ser compreendida apenas como um rtulo entre outros. Em nossa perspectiva o Estado do Renascimento inventou os funcionrios do rei, e portanto, a demanda pela modernizao cultural foi imposta pelas novas configuraes do poder na Europa Moderna. Por isso, o investimento realizado por Dom Joo III no campo da cultura foi compreendido como um fenmeno de carter poltico. De todo modo foi possvel notar um ambiente mais aberto no primeiro momento do reinado de Dom Joo III. A opo do humanista por diferentes gneros literrios obedece uma lgica intrnseca diversidade de conjunturas efetivamente vivenciadas por Joo de Barros e so um seguro indcio de sua conscincia em face das diferentes situaes que este reinado experimentou. Primeiramente, em um contexto de maior abertura, a obra de Joo de Barros foi marcada pela composio de colquios, um gnero literrio que dava maior espao s polmicas, ao passo que em um segundo momento, produzida em um contexto mais fechado, sua obra foi marcada por composies do gnero epidtico, que possuem um tom encomistico, e poupam o autor de tomar partido em polmicas inoportunas. Por isso a resignao de Joo de Barros foi compreendida sob a perspectiva de um movimento mais geral da poltica poca de Dom Joo III, quando os jesutas tomaram conscincia de que as universidades constituam um dos pontos-chave na batalha estratgica pela ortodoxia e o Colgio das Artes passou a ser administrado pela Companhia de Jesus. Alm disso, atentamos tambm para momento em que se desenha 242
a polmica antijudaica, onde a converso forada dos judeus, a malograda tentativa de sua integrao e o incio das perseguies aos judaizantes articula-se instaurao da Inquisio em Portugal. Por fim, somamos a isto a presena turca no Mediterrneo. Este percurso nos permitiu recuperar os mais significativos elementos que compem o iderio presente na produo intelectual letrada portuguesa, e a partir disso, problematiz-los e compreend-los como resultantes de um vocabulrio conceitual disponvel mentalidade renascentista, notavelmente a partir das Dcadas da sia. Com isso, em face da j mencionada subordinao das letras ao poder, sugerimos que a elaborao desta obra de histria obedeceu aos interesses do Estado, uma vez que nela encontramos a reiterao do perfil justo e elevado das aes portuguesas no alm-mar. Por sua vez, a problematizao e a contextualizao do vocabulrio conceitual em uma obra de histria nos conduziu definio daquilo que compreendemos como o horizonte histrico de seu autor. Esta definio partiu, primeiramente, da percepo da existncia de uma estreita relao entre a fala e a escrita. Em linhas gerais, a escrita era compreendida como um instrumento para a perpetuao da fala, um artifcio que imprimia-lhe maior estabilidade e continuidade no tempo, cuja funo seria a de capturar a efemeridade da experincia. Ao passo que a escrita era considerada como um desdobramento da fala, era tida, tambm, como uma tcnica de persuaso. Por isso, a histria era compreendida como sujeito da oratria, cujo potencial persuasivo encontrava-se, por um lado, nos testemunhos e documentos em suma, nas fontes arrolados, e por outro, no valor moral do autor. Diante disso, as fontes podiam ser manipuladas de modo que produziam efeito em termos de autoridade, fossem estas fontes sagradas ou seculares. Assim, fossem as fontes laicas ou no, era a figura do autor quem assinalava a homologia entre ambas, o que significa que a credibilidade da escritura estava no autor e em seus mritos morais e literrios. Embora houvesse uma profunda diferena entre letras humanas e letras sagradas, definida em parte pela formao do letrado, ambas poderiam aparecer imbricadas no apenas porque o autor assinalava sua equidade, mas tambm porque havia um resduo medievalizante onde o mgico e o maravilhoso ainda operavam. De todo modo, o iderio de Joo de Barros pertence poca Moderna medida em que ele escreveu sobre o verossmil e o til, uma vez que a razo se apresenta calcada na ideia de 243
utilidade e de uma verdade essencial, proveitosa, a ser alcanada por meio da leitura, compreendida como exerccio de edificao pessoal. Portanto, a equidade entre letras humanas e letras sagradas define Joo de Barros como um homem da poca Moderna. notvel, por exemplo, que a imitao dos modelos de moralidade encontrados na literatura devocional da Idade Media seja superada pela imitao da Antiguidade clssica pag. E significativo, tambm, que sua narrativa tenha o cuidado de cotejar tanto as informaes contidas na Bblia, quanto aquelas legadas pelos antigos: ao passo que se articulavam as experincias em regies desconhecidas, mesmo considerando que as sagradas escrituras e a Antiguidade fossem suportes fundamentais, a experincia coeva ganhava um espao notvel. A superao de uma viso de mundo crist por outra, com tendncias secularizantes, traz consigo a percepo das transformaes histricas enquanto uma sucesso de acontecimentos particulares, o que denota efetiva tomada de conscincia da autonomia do presente em relao ao passado, visto que a percepo da histria predominante no baixo medievo, bem como no pensamento cristo jamais perceberam tal sucesso. Assim, a instaurao da escritura laica como referncial moral, aliada a conscincia histrica se inscrevem no curso das lentas mudanas que definiriam novos paradigmas culturais para a sociedade ocidental. Importa notar, tambm, que a histria era um campo definido e possua objetos bem delimitados, alm de um elemento ativo, direcionado vida pblica, onde a memria se configurava como instrumento pedaggico. Por isso a conservao, ou no, da memria era feita de modo consciente, visto que era ela quem guiaria o entendimento a dimenso racional , onde a experincia ganhava credibilidade. Assim, ao passo que a memria se configurava como a propriedade de atualizar impresses ou informaes do passado, ela deveria ser considerada, tambm, como esforo no qual a seleo e perpetuao das lembranas deveriam ser regidas pela justia. A definio da memria como instrumento pedaggico nos d a chave de leitura necessria para compreendemos a imitao dos antigos sob o signo de uma efetiva conscincia da diversidade de pocas ou seja, da percepo da sucesso de eventos articulados em um processo , visto que deriva de um momento histrico no qual se desenha o gosto pelo novo, elemento caracterstico da primeira modernidade. Assim, embora a categoria moderno no denote efetiva superioridade em relao categoria 244
antigo, na sia, flagrante o respeito inovao frente aos antigos, em sntese, uma inovao intelectual que vem na esteira dos descobrimentos. A articulao entre os antigos e as inovaes que se impunham por meio dos feitos dos modernos foi compreendida em termos de uma relao de reciprocidade, onde as categorias antigo e moderno definiam-se uma em face da outra. E ao passo que os antigos eram compreendidos como depositrios da experincia, e por isso pautavam comparaes, este confronto dimensionava os feitos modernos: sem dvida, era relevante o fato de no haver notcias entre gregos e romanos de realizaes equivalentes s dos portugueses. Os portugueses seriam, portanto, sujeitos no curso de sua prpria histria. E ao passo que a histria obedecia os interesses do Estado, havia uma notria convergncia da efetividade histrica para o plano poltico. Da a necessidade de assinalarmos que a dignidade real, bem como de sua Casa, dependiam largamente da qualidade de seus sditos. Regidos por um soberano justo e afeito promoo do bem pblico, as aes portuguesas no alm-mar apresentavam-se como justas e elevadas. E no obstante a manuteno das conquistas e o compromisso com a repblica implicasse na assimilao da diversidade de povos com os quais os portugueses entravam em contato, a honra do prncipe definia-se, tambm, por sua capacidade de exercer a justia mesmo diante desses novos sditos. Assim, as Dcadas foram compreendidas como a evidncia emprica de uma cincia moral onde os usos e costumes dessas populaes ganharam notria relevncia, o que nos permitiu reiteramos a ideia de que o conhecimento etnogrfico foi um elemento caractertico da historiografia humanista portuguesa do sculo XVI. No mbito das ideias, a assimilao desses povos acionou, por um lado, a herana clssica e judaico-crist, cuja definio do homem era pautada por sua receptividade da graa divina. Por outro lado, acionou a tradio clssica, cuja definio do homem era pautada por sua racionalidade. Por sua vez, esta continuidade medievalizante acompanhada de outra, definida no entrelaamento entre o poltico e o religioso. Em nossa perspectiva, foi a religio quem fundamentou ideologicamente, e quem forneceu os instrumentos universalistas para a assimilao, embora pese o fato de que as aes inclusivas eram orientadas pela figura do soberano, principalmente em vista da conservao de seu reino, bem como da manuteno da glria de seus ttulos. 245
Por fim, ainda que o papel do prncipe no estivesse separado das motivaes religiosas, notamos que as noes de brbaro e de poltico davam a tnica nas descries destes sditos na pena de Joo de Barros: fosse para inclu-los, fosse para segreg-los. A compreenso dessas categorias fundamental em uma sociedade que entendia a linguagem como elemento que definia a noo de polcia. Da que somente uma sociedade estruturada a partir desse tipo de valor pode construir identidades e excluir socialmente por meio desse vis. Autntico tributrio do humanismo italiano, Joo de Barros entende o uso da lngua como instrumento de acesso palavra divina. O contraponto desta dimenso inclusiva est na segregao. Efetivamente, a densidade do problema da circulao de esteretipos a partir da linguagem s pode ser compreendida quando nos lembramos de que, nesta poca, ouvir valia mais do que ver. 740 Sem dvida, no sculo XVI, a construo da imagem dependia, tambm, da audio.
740 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a Terra de Santa Cruz... p. 21. 246
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