Tomo I
BANCA EXAMINADORA
PROF. DR. ALEJANDRA LEONOR PASCUAL - UNB
PROF. DR. JESSIE JANE VIEIRA DE SOUZA - UFRJ
PROF. DR. SELVA LPEZ CHIRICO - UFSM
PROF. DR. CLUDIA WASSERMAN - UFRGS
PROF. DR. CARLOS SCHIMIDT ARTURI - UFRGS
ORIENTADOR
PROF. DR. CESAR AUGUSTO BARCELLOS GUAZZELLI
Aos familiares,
pela inesgotvel coragem
diante da luta interminvel.
___________
NUNCA MAIS!
AGRADECIMENTOS
1 - s matrizes dos meus afetos, presentes e ausentes.
2 - Aos malas e malinha.
3 - Ao Guazzelli, pela ORIENTAO, pelo apoio, pela confiana, pela tranqilidade, pela
pacincia, porque gosta de quadrinhos... e porque no me deixou na mo!
4 - Ao PPG, seus coordenadores, funcionrios e professores, especialmente s Professoras
Slvia e Helga, pelas aulas, pela dedicao e pela compreenso durante a tormenta.
5 - Aos colegas do Departamento de Histria, particularmente Professora Cludia
Wasserman.
6 - Aos funcionrios da Biblioteca do IFCH/UFRGS, do Acervo da Luta contra a Ditadura, do
SERPAJ, s gurias do Xerox....
7 - A Laura Blsamo, do SERPAJ.
8 - Aos colegas e amigos da Comisso do Acervo da Luta contra a Ditadura.
9 - Aos amigos e torcedores. s guerreiras e aos guerreiros de sempre.
10 - Aos sobreviventes: Aveline, Bona, Gutierrez, Lcia, Minhoca, Noeli e Suzana.
11 - Aos solidrios explorados: Alessandra, Ananda, ngela, Bruno, Daniela, Fabiana,
Gabriela, Gerson, Hall, Jobim, Leopoldo, Milca, Rodrigo, Slvia, Vanderlise, Vicente,
Vincius e aos guris do CD/AIB-PRP.
12 - Aos companheiros do Curso de Arquivologia/UFRGS: Jorge Vivar, Alexandre, Eduardo e
Valria.
13 - Cludia Antunes, ao Daniel Caon, ao Daniel Milke, ao Ivonei Freitas da Silva, ao Jorge
Fernndez e Renata Chimango Fonseca pela inestimvel ajuda, pela parceria, pelo
estmulo e pelas indiadas compartidas.
14
RESUMO
O presente trabalho analisa a ditadura civil-militar uruguaia (1973-1984) a partir da
perspectiva da poltica de Terror de Estado, mecanismo implementado para aplicar as
premissas da Doutrina de Segurana Nacional e defender os interesses dos setores dominantes
locais. Da mesma forma, possibilitou o disciplinamento da fora de trabalho, exigncia
implcita nas novas demandas do capitalismo mundial, o que significou, na prtica, a
destruio do questionamento social e das manifestaes por mudanas promovidas pelas
distintas organizaes populares nos anos 60 e 70. Este perodo, alis, foi marcado, na
Amrica Latina, tanto pela efervescncia produzida pela Revoluo Cubana quanto pelo
esforo dos EUA em disseminar as concepes contra-insurgentes e reforar a
pentagonizao regional. Foi durante as administraes de Pacheco Areco e de Bordaberry
(1968-1973), marcadas por acentuada guinada autoritria ainda em regime democrtico, que
comearam a ser aplicadas determinadas prticas repressivas de Terror de Estado, fato que se
projetou, ampliou e consolidou posteriormente, com o regime de exceo.
O objetivo norteador da pesquisa foi estudar o conceito de Terror de Estado e analisar sua
aplicao na experincia concreta da ditadura uruguaia enquanto metodologia de atuao de
um sistema repressivo complexo que abrangeu as mltiplas dimenses da sociedade. Assim,
procurou-se destacar a diversidade e articulao das diferentes modalidades de atuao
implementadas: a interdio do Poder Legislativo; a subordinao do Poder Judicirio
Justia Militar; a proibio de partidos polticos, sindicatos e organizaes sociais; a
interveno no sistema de ensino; a imposio de uma poltica global de censura; a iniciativa
de refundao societria; a subjugao e destruio do inimigo interno; a aplicao de aes
contra-insurgentes (a tortura, o grande encarceramento, a poltica de refns e os
seqestros seguidos de desaparecimentos forados); etc. A participao ativa uruguaia na
conexo repressiva internacional (Operao Condor) expressou o deslocamento da violncia
estatal da guerra interna contra os ncleos exilados nos pases vizinhos.
Em sntese, a dinmica imposta caracterizou o Terror de Estado implementado no Uruguai
como sendo abrangente, prolongado, indiscriminado, preventivo, retroativo e extraterritorial
alm de conter pretenses pedaggicas e ser gerador de seqelas que se projetaram no perodo
democrtico posterior.
ABSTRACT
This paper intends to analyse the Uruguayan civil-military dictatorship (1973 1984) from
the perspective of the State Terror policy, mechanism implemented to apply the premiss of
the National Security Doctrine and to defend the local dominant groups interests. In the
same way it made possible to discipline the workforce, an implicit requirement of the new
world capitalism demands, and that meant the destruction of the social questioning and the
demonstrations for changes promoted by different popular organizations in the 60s and 70s.
This period, as a matter of fact, was marked in Latin America as much by the agitation
produced by the Cuban Revolution, as the North American effort to spread the
counterinsurgents conceptions and to reinforce the USA influence in the region.
It was during the Pacheco Areco and Bordaberry governments (1968-1973), characterized by
a strong turn towards authoritarism even in a democratic regime, that some repressive
practices of State Terror started to be implemented. These practices were projected,
enlarged and consolidated subsequently, during the authoritarian regime.
The main aim of this paper was to study the concept of State Terror and analyses its
application in the Uruguayan dictatorship experience, as an acting metodology of a complex
repressive system which covered the multiple dimension of the society. Thus, it was intended
to emphasize the diversity and the articulation of the different ways of acting implemented:
the injunction in the Parliament; the subordination of the Judiciary to the Military Justice; the
prohibition of political parties, trade unions and social organizations; the intervention in the
educacional system; the imposition of a global censorship policy; the establishment of a new
social order; the subjugation and destruction of the internal enemy; the application of
counterinsurgents measures (the torture, the grande encarceramento, the hostage policy
and the kidnappings followed by disappearance); etc. The effective Uruguayan participation
in the international repressive connection (Condor Operation) expressed the movement from
the internal war state violence to an action against the exiled activists in neighbour
countries.
Briefly, the strategies implemented characterized the Uruguayan Terror State as being
extensive, prolonged, indiscriminate, preventive, retroactive, and beyond territorial limits,
besides having pedagogical intentions and producing sequels in the subsequent democratic
period.
KEY WORDS: Uruguayan dictatorship - History. State Terror. National Security Doctrine.
Repressive Regimes.
LISTA DE ANEXOS
ANEXO
I - Vista al frente
ANEXO
II
LISTA DE SIGLAS
10
11
12
13
SUMRIO GERAL
TOMO I
INTRODUO...................................................................................................... 16
Captulo 1 - TERROR DE ESTADO................................................................... 52
1.1 - DOUTRINA DE SEGURANA NACIONAL E TERROR DE ESTADO.....................
1.2 - TERROR DE ESTADO: APROXIMAO CONCEITUAL..........................................
1.2.1 - Terrorismo.......................................................................................................................
1.2.2 - Estado, violncia estatal e Terror de Estado...................................................................
1.2.3 - A violncia estatal na historiografia sobre as Ditaduras de Segurana Nacional...........
1.3 - CARACTERIZAO DO TERROR DE ESTADO .......................................................
1.3.1 - Objetivos e elementos essenciais do Terror de Estado...................................................
1.4 - O TERROR DE ESTADO NA AMRICA LATINA......................................................
1.4.1 - A conexo EUA Amrica Latina.................................................................................
52
59
59
63
76
85
94
106
117
131
148
164
184
205
228
241
266
272
274
282
284
14
289
299
302
307
316
336
337
348
377
377
391
396
408
409
413
425
TOMO II
Captulo 5 - DITADURA MILITAR E TERROR DE ESTADO
INSTITUDO .................................................................................. 441
5.1 5.2 5.3 5.4 5.5 -
443
448
470
488
509
15
613
615
618
628
635
640
640
653
672
676
683
A REPRESSO EXTRATERRITORIAL........................................................................
CONEXES ANTERIORES S DITADURAS DE SEGURANA NACIONAL........
O URUGUAI NO MARCO DA OPERAO CONDOR...............................................
NO OLHO DO FURACO: URUGUAIOS REPRIMIDOS NO
EXTERIOR, ESTRANGEIROS REPRIMIDOS NO URUGUAI....................................
8.4.1 - Coordenao repressiva em Porto Alegre: o caso Lilian Universindo.....................
8.5 - A POLTICA DE APROPRIAO DE CRIANAS......................................................
8.6 - OS ESTADOS UNIDOS DIANTE DA INTERNACIONALIZAO
REPRESSIVA...................................................................................................................
704
708
715
734
755
766
790
CONCLUSO........................................................................................................ 807
ARQUIVOS E FONTES CONSULTADAS.......................................................... 840
16
INTRODUO
Referncia explcita s ditaduras de Segurana Nacional do Brasil (1964-1985), Argentina (1976-1984), Chile
(1973-1989) e Paraguai (nos anos 70 e 80).
2
Em relao ditadura uruguaia, foram divulgados, em 2002, um conjunto de mais de 800 documentos, todos
vinculados, entretanto, represso argentina.
17
PETRAS, James. Amrica Latina: pobreza de la democracia y democracia de la pobreza. Rosario: Homo
Sapiens Ediciones, 1995.
4
Cabe mencionar o papel importante de certos meios de comunicao que, intermitentemente, sob censura
parcial e ameaados de proibio definitiva, persistiram em ressaltar s mazelas da realidade latino-americana.
Da mesma forma, enquanto as universidades sofriam interveno e diversas formas de controle, a obra As veias
abertas da Amrica Latina, do jornalista Eduardo Galeano, circulava nas redes clandestinas e iniciava uma
gerao de latino-americanos na leitura crtica do processo histrico continental.
5
Revista Mexicana de Sociologa, Mxico, v. 39, n 1 e 2, 1977.
6
Participaram do debate, entre outros, Agustn Cueva (La cuestin del fascismo), Atilio Born (El fascismo
como categora histrica: en torno al problema de las dictaduras en Amrica Latina), Liliana de Riz (Algunos
problemas terico-metodolgicos en el anlisis sociolgico y poltico de Amrica Latina), Theotnio dos Santos
(Sociologa y fascismo en Amrica Latina hoy) e Ren Zavaleta Mercado (Nota sobre fascismo, dictadura y
coyuntura de disolucin).
18
7
explicativa sistematizada, principalmente, por Agustn Cueva. Essa abordagem recebeu uma
diversidade de adjetivaes, expresso de divergncias quanto aos critrios condutores da
anlise 8 sendo, tambm, resultado de uma nfase militante que visava contribuir na denncia
e na resistncia frente s situaes limite vivenciadas na Amrica do Sul. 9 O caso uruguaio
contou, nessa polmica, com as contribuies, entre outros, de Rdney Arismendi 10 , Carlos
Rama 11 , e Eduardo Gitli. 12
No transcorrer dos anos 80, outro modelo explicativo ganhou espao, assentado nas
reflexes realizadas por autores como Juan Linz 13 e Stanley Payne 14 sobre as ditaduras de
ps-guerra, no sul da Europa (Espanha, Portugal e Grcia), assim como suas transies
democracia. Dessa base de conhecimento resultante de estudos comparativos e da elaborao
de tipologias, surgiu, como uma das principais contribuies, a proposio do modelo
burocrtico-autoritrio de Guillermo ODonnel. 15 O mesmo delineava um Estado
caracterizado por forte presena tecnocrata e por responder acentuada ativao poltica
popular existente nos cenrios anteriores aos golpes de Estado do Cone Sul. Enquanto modelo
explicativo, mostrou-se mais aberto s especificidades das ditaduras latino-americanas,
contrapondo-se, no debate terico, ao esquematismo do uso da categoria fascismo.
Dentro dos enfoques que pautaram o estudo dos casos de ditaduras de SN, medida
que os processos de abertura poltica possibilitaram a recuperao de direitos, os subtemas
relacionados com as questes econmicas e com as formas de Estado ocuparam a centralidade
da produo historiogrfica. Um tema que parecia vigoroso nos ltimos anos de quase todas
as ditaduras, mas que logo se esvaziou parcialmente, foi o referente questo dos direitos
7
CUEVA, Agustn. La cuestin del fascismo. Revista Mexicana de Sociologa, Mxico, v. 39, n 2, p. 469-480,
abr./jun. 1977.
8
Na medida em que o foco central variava, entre os defensores da categoria de fascismo latino-americano,
apontava-se um fascismo dependente, fascismo primrio, fascismo tpico, fascismo subdesenvolvido,
neofascismo, etc. REVELLO, Cecilia; PORRINI, Rodolfo; SCHOL, Alexis. Las Dictaduras Militares en
Amrica Latina. Montevideo: Las Bases, 1986. p. 33. FERNNDEZ, Wlson. El gran culpable. La
responsabilidad de los EE.UU. en el Proceso militar uruguayo. Montevideo: Atenea, 1986. p. 86.
9
Agustn Cueva, em uma palestra proferida em Porto Alegre, na segunda metade dos anos 80, reconheceu a
inadequao explicativa da aplicao da teoria de fascismo realidade das ditaduras de SN latino-americanas.
Avaliou que tal abordagem era resultado das difceis condies existentes no momento e do clima que se vivia
nos pases atingidos pelas ditaduras e nas comunidades exiladas. Entretanto, feita essa avaliao, destacou a
importncia poltica produzida por tal debate, contemporneo das prprias ditaduras, o que permitiu denuncilas, gerando desdobramentos que se somavam a outras manifestaes de resistncia democrtica.
10
ARISMENDI, Rdney. A revoluo latino-americana. Lisboa: Avante, 1977.
11
RAMA, Carlos. Uruguay: de los tupamaros a los militares. Cuadernos Americanos. Mxico, no 4, 1973.
12
GITLI, Eduardo. Uruguay: del fin de la utopa a la independencia. Cuadernos Americanos. Mxico, n o 5,
1976.
13
LINZ, Juan. Regimes Autoritrios. In: ODONELL, Guillermo; LINZ, Juan; HOBSBAWM, Eric; JONG,
Rudolf de. O Estado Autoritrio e os Movimentos Populares. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
14
PAYNE, Stanley G. El fascismo. Madrid: Alianza Editorial, 1982.
15
As teses de Guillermo ODonell foram incorporadas, mesmo que parcialmente, por importantes especialistas
como Liliana de Rz, Felisberto Gonzlez e Atlio Born.
19
humanos. Apesar do grande impacto produzido pela onda da elaborao dos relatrios Nunca
Mais 16 e das revelaes e depoimentos que vieram a pblico, a aprovao, por parte do
sistema poltico, da anistia para os responsveis pelos crimes de Estado cometidos durante as
ditaduras e a reverso das expectativas de esclarecimento (implcitas na consigna Verdade e
Justia) reintroduziram uma situao de paralisia e de medo da sociedade civil diante da
permanncia da impunidade. Em termos prticos, com algumas variveis em cada pas, a
destruio de documentos, a impossibilidade do acesso pblico aos mesmos e a ameaa fsica,
verbal ou judicial contra as vtimas daqueles regimes fizeram com que a temtica do Terror de
Estado e das mltiplas formas de violncia estatal fossem pouco estudadas. A exceo foi a
atitude das organizaes de direitos humanos, que, atravs de trabalhos multidisciplinares,
assumiram o confronto pela memria e contra o esquecimento induzido.
No Uruguai, uma das primeiras obras a tratar dessa temtica foi Os Desaparecidos a Histria da Represso no Uruguai, importante e qualificada contribuio de Baumgartner,
Durn Matos & Mazzeo. 17 Apesar dos seus muitos mritos, falta a ela, todava, a
especificidade da anlise histrica. importante salientar que, no fim da dcada de 90, a
descoberta ou disponibilizao de novos arquivos, acompanhado da retomada de um
posicionamento mais crtico de setores da populao dos pases do Cone Sul em relao
responsabilizao jurdica dos crimes de Terror de Estado, recolocaram a temtica como
objeto de pesquisa. 18
A clivagem do aprofundamento da Guerra Fria e sua maior visibilidade na regio, a
partir dos anos 60, em funo da Revoluo Cubana e dos seus desdobramentos, exigem a
anlise das diretrizes basilares da poltica externa estadunidense para a Amrica Latina. Entre
elas, a proposta de Desenvolvimento e Segurana que pautou a criao da Aliana para o
Progresso (1961) e a poltica de Contra-insurgncia (pentagonizacin19 das Foras Armadas),
16
Argentina (CONADEP. Nunca mais. Informe da Comisso Nacional Sobre o Desaparecimento de Pessoas na
Argentina. Porto Alegre: L&PM, s.d.). Brasil (Brasil: nunca mais. Petrpolis: Vozes, 1986.). Uruguai
(SERPAJ. Uruguay Nunca Ms. Informe Sobre la Violacin a los Derechos Humanos (1972-1985).
Montevideo: SERPAJ, 1989.). Chile (COMISIN NACIONAL DE VERDAD Y RECONCILIACIN. Informe
Rettig. Santiago: 1991.). O relatrio argentino veio a pblico em 1984, o brasileiro em 1986, o uruguaio em
1989 e o chileno em 1991.
17
BAUMGARTNER, Jos Luis; DURAN MATOS, Jorge; MAZZEO, Jorge. Os desaparecidos. A histria da
represso no Uruguai. Porto Alegre: Tch, 1987.
18
As discusses e as pesquisas atuais referentes Amrica Latina privilegiam, principalmente, temas vinculados
insero da regio no atual processo de mundializao como integrao, neoliberalismo, narcotrfico, transio
democrtica, etc. Entretanto, medida que cresce o distanciamento cronolgico e que novas fontes documentais
so disponibilizadas aos pesquisadores, os estudos sobre o perodo e outros subtemas vinculados s ditaduras de
SN ganham espao como objetos de divulgao jornalstica e de produo cientfica.
19
Vista como subordinao das Foras Armadas locais e tambm como possibilidade de ampliao de lucros.
Segundo Gabriel Ramirez , o pentagonismo o complexo militar que, perpassando todos os nveis da sociedade
norte-americana, projeta-se para o exterior visando manter a hegemonia mundial dos EUA. Diz Ramirez: El
20
pentagonismo se afianza dentro y fuera de fronteras, cumpliendo entonces objetivos dobles: balas, tanques,
aviones, barcos, se fabrican en el pas pentagonista y all mismo se recogen los fabulosos dividendos que
producen los contratos; pero ms lejos, all donde los materiales son utilizados para sembrar destruccin y
muerte, un nuevo puesto de avanzada imperialista se establece y mayores ganancias se acumulan a favor del
poder agresor. RAMIREZ, Gabriel. El Factor Militar. Gnesis, desarrollo y participacin poltica.
Montevideo: Arca, 1988. p. 15.
20
TRIAS, Vivian. Imperialismo y geopoltica en Amrica Latina. Montevideo: El Sol, 1967. TRIAS, Vivian.
Historia del imperialismo norteamericano. Buenos Aires: Pea Lillo, 1975. 3o vol.
21
RAMIREZ, Gabriel. Las Fuerzas Armadas uruguayas en la crisis continental. Montevideo: Tierra Nuestra,
1971.
22
IANNI, Octavio. Imperialismo e cultura. Petrpolis: Vozes, 1979.
23
SELSER, Gregorio. CIA: De Dulles a Raborn. Buenos Aires: Ediciones de Poltica Americana, 1967.
24
JULIEN, Claude. El imperio americano. Mxico: Grijalbo, 1969.
25
CHOMSKY, Noam. Ao 501. La conquista contina. Madrid: Libertarios/Prodhufi, 1993.
26
CHOMSKY, Noam; HERMAN, Edward. Banhos de sangue. So Paulo: Difel, 1976.
27
HUGGINS, Martha K. Polcia e poltica: relaes Estados Unidos / Amrica Latina. So Paulo: Cortez
Editora, 1998.
28
BOERSNER, Demetrio. Relaciones internacionales de Amrica Latina. Caracas: Nueva Sociedad, 1987.
29
BAUMGARTNER; DURAN MATOS, op. cit.
30
SCHOULTZ, Louis. Estados Unidos: poder e submisso. Uma histria da poltica norte-americana em
relao Amrica Latina. Bauru, SP: EDUSC, 2000.
31
GARCA, Prudencio. El drama de la autonoma militar. Argentina bajo las Juntas Militares. Madrid:
Alianza Editorial, 1995.
21
A obra La Subversin teve uma edio publicada em fascculos em um dos maiores jornais da poca, El Pas,
que dava slida sustentao ao regime.
33
BAUMGARTNER; DURAN MATOS; MAZZEO, op. cit.
34
PERELLI, Carina; RIAL, Juan. De mitos y memorias polticas da represin, el miedo y despus...
Montevideo: Banda Oriental, 1986.
35
AMARILLO, Mara del Huerto. El ascenso al poder de las Fuerzas Armadas. Cuadernos Paz y Justicia 1.
Montevideo: SERPAJ, 1986
22
23
37
24
Posio que resultou do documento apresentado por Dimitrov na plenria do VII Congresso Mundial da
Internacional Comunista (3 Internacional), em agosto de 1935. Teve como caracterstica principal a reviso da
posio que considerava irmos gmeos o fascismo e a social-democracia. A partir da aprovao da proposta
de Dimitrov, o movimento comunista internacional passou a defender a construo de uma frente comum para
enfrentar o fascismo envolvendo os setores esquerdistas, a social-democracia e certos setores liberais burgueses.
39
ZAVALETA MERCADO, op. cit.
40
BRIONES, lvaro. Ideologa del Fascismo Dependiente. Mxico: Edicol, 1978.
41
SANTOS, op. cit.
42
CUEVA, Agustn. Teora social y procesos polticos en Amrica Latina. So Paulo: Global, 1983. p. 165.
43
BORN, Atilio. Estado, capitalismo y democracia en Amrica Latina. 3a ed. Buenos Aires: Oficina de
Publicaciones del CBC/Universidad de Buenos Aires, 1997.
25
26
e libertrias.
44
satisfeitas com a deteno dos inimigos, explicitaram o objetivo de enlouquec-los, fato que, em
si, mostra a diferena qualitativa de uma lgica autoritria clssica para outra pautada no TDE.
A aplicao das premissas da doutrina destruiu as bases da democracia representativa
com o fechamento do Parlamento, o controle sobre o Poder Judicirio, a proibio do
funcionamento dos partidos polticos, a imposio generalizada da censura, a violao
sistemtica dos direitos humanos e uma represso brutal contra toda a oposio. importante
sublinhar que a DSN esteve presente em todos os regimes ditatoriais do Cone Sul, no referido
perodo, independente da especificidade adquirida em cada pas. Portanto, o papel que cumpriu
no cerne destas experincias constitui, de per si, um elemento indito que, por um lado,
inviabiliza a possibilidade de associar tais ditaduras com o fascismo clssico e que por outro,
sendo a DSN fluente elo de conexo entre os novos regimes da regio e os EUA, exige da tese
do Estado Burocrtico-Autoritrio um redimensionamento da importncia da superpotncia para
o advento e a consolidao daqueles. Esta a perspectiva que se assume nesta pesquisa a partir
da contribuio seminal do padre Josep Comblin45 e das contribuies de Jellinek & Ledesma46
e Baumgartner & Durn Matos,47 entre outros.
Em relao ao debate sobre o Terror de Estado, deve registrar-se que ele relativamente
recente, apesar de que tal fenmeno se tenha manifestado, historicamente, pelo menos, desde a
Revoluo Francesa. Na passagem dos anos 60 para os 70, os setores dominantes introjetaram a
aceitao da violncia estatal e de aes paramilitares, encobertas ou no, como sendo legtimas
diante do inimigo, fosse este um outro Estado ou sua prpria populao civil (inimigo
interno). Fatos assim haviam ocorrido no contexto da Segunda Guerra Mundial, mas haviam
sido justificados em nome da necessidade real da sobrevivncia. Fora desse contexto particular,
porm, eram vistos sob o entendimento de que constituam aes terroristas deliberadas do
Estado ou dos dirigentes que o controlavam, contra sua prpria populao. 48
No cenrio latino-americano, a novidade chegou acompanhada da orientao contrainsurgente proposta desde os EUA, no contexto da Guerra Fria, quando identificaram que todo o
continente americano era rea de interesse nacional. No entendimento da superpotncia,
44
SAMOJEDNY, Carlos. Psicologa y dialctica del represor y el reprimido. Buenos Aires: Roblanco, 1986.
p. 31.
45
COMBLIN, Padre Josep. A Ideologia da Segurana Nacional. O Poder Militar na Amrica Latina. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978.
46
JELLINECK, Sergio; LEDESMA, Luis. Uruguay: del consenso democrtico a la militarizacin estatal.
Estocolmo: Institute of Latin American Studies, 1980.
47
BAUMGARTNER, Jos Luis; DURAN MATOS, Jorge. Amrica Latina: liberacin nacional. Montevideo:
Banda Oriental, 1985. 2 Vol.
48
ANDRADE, John. Aco Directa. Dicionrio de terrorismo e activismo poltico. Lisboa: Hugin, 1999. p. 9.
27
entretanto, a regio estava muito vulnervel diante do impacto desagregador produzido pelo
comunismo internacional (exportado pela URSS) e, sobretudo, pelos associados locais, os
inimigos internos. A defesa do uso ilimitado da fora como mecanismo de controle e de
combate s mobilizaes sociais produzidas pelas contradies internas dos diversos pases
tornou-se mais agressiva a partir da vitria e da radicalizao da Revoluo Cubana. Todavia, j
era um processo em marcha desde o final da Segunda Guerra. Apesar da propaganda dos
programas de ajuda no marco da Aliana para o Progresso, essas boas intenes no
passavam de tentativas de cooptao para aumentar o controle sobre a regio. Nesses termos, o
treinamento de corpos de elite de oficiais latino-americanos em escolas norte-americanas (Escola
das Amricas, Fort Benning, Fort Leavenworth), a ajuda para o aparelhamento e modernizao
do fator militar e reconverso deste para enfrentar e destruir o inimigo interno foram
fundamentais.49 A passagem do Secretrio de Estado Nelson Rockefeller pela Amrica Latina,
em 1969, serviu para elaborar um preocupante diagnstico:
[...] hoje nenhum pas [latino-americano], per si s, capaz de garantir a sua
prpria segurana interna. [...] Unicamente atravs da cooperao do
Hemisfrio podero esses problemas que afetam to vitalmente a segurana
interna, ser devidamente enfrentados. 50
Em 1963, Robert Mc Namara, Secretrio de Defesa da adminitrao Kennedy, afirmava: [...] provavelmente,
o maior rendimento dos nossos investimentos de ajuda militar provm do treinamento de oficiais selecionados e
de especialistas chave em nossas escolas militares e seus centros de treinamento nos EUA e ultramar. Estes
estudantes so cuidadosamente selecionados em seus pases para converterem-se em instrutores quando voltem a
eles. So os lderes do futuro [...] No necessrio explicar o valor que tem dispor de homens com um
conhecimento de primeira mo de como os norte-americanos atuam e pensam para os cargos de direo. Para
ns, no h preo que pague o fato de sermos amigos desses homens [...]. CONADEP, op. cit., p. 343.
50
ROCKEFELLER, Nelson. As condies de Vida nas Amricas. Relatrio de uma Misso Presidencial dos
Estados Unidos ao Hemisfrio Ocidental. Rio de Janeiro: Record, s. d. p. 66.
51
Idem.
28
BONASSO, Miguel. Prefacio. In: PIETERSEN, Jan et al. Terrorismo de Estado. El papel internacional de
EE.UU. Navarra: Txalaparta, 1990. p. 9.
29
Dentro dessa perspectiva, foram de extrema pertinncia as exposies, no III Frum Social Mundial de Porto
Alegre, de Antnio Gonzlez Quintana (Conselho Internacional de Arquivos da UNESCO) sobre o projeto Os
Arquivos da Segurana do Estado dos Desaparecidos Regimes Repressivos, e de Julia Mara Rodrguez
(Asociacin Espaola de Archivos - ANABAD) sobre a experincia e o impacto social da recuperao dos
arquivos do franquismo na Espanha. (Seminrio Memria das Ditaduras - Instrumento para a Consolidao dos
Direitos Humanos. Organizado pela Comisso do Acervo da Luta Contra a Ditadura. III Frum Social Mundial,
Porto Alegre, janeiro de 2003).
30
Esta afirmao est baseada na experincia argentina, onde, inegavelmente, houve uma
prtica de extermnio. Todavia, nos pases em que houve desaparecimentos sem confirmao de
intencionalidade de extermnio massiva, como no caso uruguaio, os efeitos sociais produzidos
foram e continuam sendo (j que se trata de uma questo ainda no esclarecida) muito
semelhantes.
A anlise das especificidades da ditadura uruguaia deve partir das relaes intrnsecas
54
SERPAJ. Uruguay Nunca Ms. Informe Sobre la Violacin a los Derechos Humanos (1972-1985).
Montevideo: SERPAJ, 1989. p. 7.
55
Idem, p. 8.
56
CONADEP, op. cit., p. 174.
31
existentes entre a realidade dos anos 60 e os diversos projetos em confronto. Nesse sentido, devese avaliar a introjeo das diretrizes estadunidenses sobre a Guerra Fria e a implementao de
medidas que, dentro dos marcos gerais da Doutrina de Segurana Nacional, legitimaram a
organizao de uma superestrutura estatal, a qual cumpriu as exigncias necessrias para
satisfazer dois objetivos fundamentais atribudos pelos EUA. O primeiro, a liquidao dos
projetos de mudana social existentes antes dos golpes de Estado. O segundo, a criao de
condies necessrias para disciplinar a fora de trabalho, em particular, e a sociedade, em geral,
como fator de atrao de capital internacional - que devia ser protegido sob qualquer hiptese.
Em nome da defesa da civilizao ocidental e do sistema democrtico, a DSN procurou
desviar as atenes sobre o crescente mal-estar de uma populao cada vez mais atingida pelo
crescente desequilbrio da distribuio de renda. Diante dos primeiros sinais de resistncia contra
esse quadro, a DSN legitimou, em nome do capital internacional e dos seus aliados locais, o uso
do Terror de Estado. Tudo justificado com o discurso da defesa da ordem, da estabilidade
poltico-social, da nao ameaada pelo comunismo, das liberdades e da civilizao ocidental.
A anlise realizada se baseia na premissa de que a especificidade uruguaia da
problemtica proposta no pode ignorar o seu contexto maior: a realidade latino-americana do
perodo, a forte presena dos interesses dos EUA na regio e as inflexes produzidas pela
Guerra Fria. Sendo assim, implica numa perspectiva metodolgica que parte do geral para o
particular atravs do eixo estruturado ao redor da problemtica e das hipteses que esto no
cerne da proposta de estudo - e a posterior rearticulao com o geral, possibilitada pelas
concluses explicativas elaboradas a partir da anlise dos resultados da pesquisa. A
perspectiva terica da anlise est fundamentada no materialismo histrico e em contribuies
de outras reas do conhecimento, assim como em outras perspectivas tericas para aspectos
pontuais da problemtica central.
A dinmica do estudo realizado, portanto, iniciou com a anlise da produo
historiogrfica relacionada com essa viso de conjunto articulada, que permitiu identificar os
marcos histricos de um duplo contexto: o cenrio latino-americano dos anos 60-70 e a
singularidade da crise uruguaia. Posteriormente, o cruzamento analtico da documentao
levantada nos arquivos pesquisados com as fontes bibliogrficas, jornalsticas e testemunhais
permitiu identificar fatos, aferir e comparar informaes e analisar os conceitos bsicos
explcitos para a resoluo do problema (Terror de Estado, Segurana Nacional,
desaparecimento, etc.). Particularmente, de extrema valia foi a anlise de documentos e textos
sobre a Doutrina de Segurana Nacional uruguaia onde procurou-se identificar os elementos
assimilados da matriz norte-americana, assim como a explicitao das premissas bsicas
32
33
34
35
36
H alguns esclarecimentos prvios que devem ser feitos para que sirvam de
coordenadas durante a leitura do trabalho. O foco da anlise est vinculado ao sistema
repressivo, seus mecanismos visveis e invisveis, seu impacto na sociedade, etc. Isto no
significa afirmar, entretanto, que, mesmo nos anos mais duros da ditadura uruguaia, o
aparato coercitivo reinou absoluto ou que no houvesse possibilidade mnima de explorar
algum canal de dilogo (alguma fissura nas Foras Armadas, um canal empresarial ou
diplomtico, etc.). Igualmente deve-se lembrar que, mesmo nesses anos mais duros, sempre
houve algum tipo de resistncia interna, mesmo que, em determinado momento, fosse mais
uma questo de atitude do que uma ao poltica conseqente. Por conseguinte, embora o
texto focalize a eficincia repressiva, no se ignora a persistncia de resistncia individual ou
coletiva, com sorte variada segundo os diversos momentos conjunturais.
Um outro esclarecimento que precisa ser reforado que a centralidade da anlise no
sistema repressivo no deve esconder que este um mecanismo que, geralmente, est a
servio de um projeto maior, como, por exemplo, a tentativa de imposio de um novo
modelo econmico, com o devido enquadramento dos diversos protagonistas polticos e
sociais e com a imposio de uma aliana subordinada entre o capital internacional e seus
associados locais.
Outro aspecto a considerar que, no trabalho, se assume uma opo metodolgica
onde se destaca a vinculao permanente entre as dimenses externa e interna do que diz
respeito ao caso uruguaio. Apesar do estudo realar os influxos externos (a projeo dos EUA
sobre a regio, a circulao planetria das experincias repressivas do sculo XX, as snteses
que delas so feitas at sua implementao no Cone Sul e as conexes da ditadura uruguaia
com os demais regimes repressivos da regio) no se pretende esconder a especificidade do
caso uruguaio nem o desenvolvimento interno de fatores e protagonismos explicativos. Deve-
37
A Comisso do Acervo da Luta Contra a Ditadura existe desde o ano 2000. Foi criada para desenvolver aes
de identificao, recepo e preservao de documentos sobre a ditadura brasileira. Tal documentao compe o
Acervo da Luta Contra a Ditadura que, como a comisso de mesmo nome, est vinculada Secretaria da Cultura
do Estado do Rio Grande do Sul. Paralelamente, a Comisso tem desenvolvido cursos, seminrios, oficinas e
atividades tcnicas nas quais me envolvi como interessado e/ou convidado at o ano de 2004, quando me tornei
integrante da prpria comisso.
58
O Projeto Memria Digital foi desenvolvido pelo Acervo da Luta Contra a Ditadura durante os anos de 2002 e
2003. Neste perodo, foram coletados 42 depoimentos de pessoas que participaram, de diversos mbitos de
atuao, da resistncia ditadura brasileira. Dez desses depoimentos, pelo menos, esto relacionados com a
38
exclusivo dos militantes perseguidos aps o golpe de Estado: os governos de ambos os pases
tambm dispuseram seus aparelhos repressivos sobre essa rota de conexo. Foi assim que o
Uruguai, ainda em tempos democrticos, se tornou palco no s do exlio brasileiro assim
como, posteriormente, do argentino e do paraguaio -, mas tambm contou com a presena de
espies e policiais brasileiros que agiam em conjunto ou sob cobertura da polcia local.
Um compromisso metodolgico assumido na tese o de partir de uma perspectiva de
processo histrico, de uma histria total, onde as diversas instncias se articulam, se
interconectam, formando uma rede de relaes cuja lgica deve estar presente para o
historiador. Segundo, um compromisso radical com a verdade - sobretudo em tempos de
negacionismo -, com o real (sem a pretenso de uma apreenso absoluta, mas cercando-a da
forma mais objetiva, mais abrangente e mais prxima possvel do concretamente vivido), assim
como com a produo do conhecimento cientfico acumulado. Entendemos que so premissas
vitais para o trabalho do historiador e ferramentas inestimveis para desvelar a essncia dos
regimes de SN. Estes tiveram, durante sua vigncia e em relao aos acontecimentos dos quais
foram protagonistas centrais, posturas que variaram entre um silncio sepulcral ou uma
desresponsabilizao consciente que, em determinados casos, se deu atravs de uma postura
negacionista, pelo menos enquanto inexistiam possibilidades de conectar tal postura com as
informaes dos sobreviventes das experincias traumticas das prises, da clandestinidade, do
exlio e daquelas fornecidas pelos familiares dos desaparecidos.
Em funo dessas questes, a anlise incorpora a preocupao metodolgica da
Histria do Tempo Presente, rea especfica de interveno dos historiadores, fortalecida nos
ltimos anos a partir das reflexes de autores como Hobsbawm, Lacouture, Barraclough, entre
outros, conferindo-lhe o rigor cientfico pertinente. Quando Hobsbawm define o tempo
presente como o nosso prprio tempo, 59 aponta para essa histria em aberto, que dificulta
uma percepo de mudana ou permanncia. Contudo, o fato, quando trabalhado numa
abordagem crtico-cientfica de histria-processo, no aparece desconexo ou deslocado da
realidade do processo histrico que lhe d sentido. Para que as anlises do presente, mesmo
parciais e provisrias, no se restrinjam s interpretaes desconexas, fragmentadas,
desarticuladas e superficiais da cena contempornea, deve-se esclarecer as mudanas bsicas
de estrutura que funcionam como eixo do contexto analisado.
As dificuldades encontradas na construo da Histria do Tempo Presente devem ser
39
encaradas a partir da perspectiva de que o fundamental fornecer uma base explicativa que,
mesmo efmera, seja plausvel. Desta forma, responde-se, legitimamente, a uma primeira
demanda sobre o assunto em questo. Para tanto, deve-se ressaltar o papel que cumpre a
utilizao de uma perspectiva global e lgica da histria (processo histrico). Isto
fundamental, pois a partir de uma base analtica que se pode apreender a histria como
processo e no como fragmentao desarticulada ligando o presente aberto, com todas as suas
possibilidades, com o passado mais recente. 60 Em relao aos regimes de SN, as primeiras
tentativas de armar tal quebra-cabea se defrontaram com inmeras lacunas resultantes das
proibies oficiais, assim como de extrema fragmentao da informao disponvel e coletada
nas difceis situaes do exlio ou da clandestinidade.
Na perspectiva da anlise do Tempo Presente, a natureza e a diversidade de fontes
existentes, assim como a amplitude da documentao disponvel, permite ao historiador realizar
os cruzamentos e as verificaes correspondentes para estabelecer suas concluses. No que diz
respeito s fontes sobre os regimes de SN, tal problemtica est presente e essa preocupao
deve ser vital na postura do pesquisador. Tal cautela deve nortear o tratamento a ser dado, por
exemplo, aos depoimentos e aos testemunhos, uma das fontes que tm se tornado freqentes nos
ltimos tempos. Por mais sedutoras que possam ser essas falas, fundamental perceber que elas
podem ser produto da aplicao consciente de filtros corretores ou que podem estar marcadas
por lapsos que incidem nessa complexa dimenso que a memria. Justamente, a existncia
de testemunhas/protagonistas dos acontecimentos, verdadeiros arquivos vivos, e a
oportunidade de ouv-los so das particularidades mais valiosas do Tempo Presente. A
possibilidade do pesquisador poder contar com a disponibilidade de tal testemunha, trocando
informaes, fornecendo pontos de vista, aferindo o conhecimento na fase da coleta de dados,
da elaborao, da sistematizao e at da publicitao dos resultados parciais ou finais, um
trunfo de quem trabalha com perodos histricos recentes. Sem dvida, constitui-se em uma
fonte interativa que afere e interage, enquanto protagonista, com a leitura interpretativa
resultante da anlise do factual. Contudo, no podem ser utilizados como fonte exclusiva dos
acontecimentos em questo, sob risco de produzir leituras idealizadas, parciais, laudatrias,
apologticas, etc.
Situao semelhante ocorre se a pesquisa for baseada exclusivamente em jornais,
ignorando os interesses em jogo por detrs das informaes contidas nos mesmos, sobretudo se
no h uma posio poltica assumida. H jornais que permanentemente tiveram que enfrentar a
60
CHESNEAUX, Jean. Hacemos tabla rasa del pasado? 6a ed. Madrid: Siglo XXI, 1984. p. 202.
40
41
perspectiva de processo.
61
61
LE GOFF, Jacques. A viso dos outros: um medievalista diante do presente. In: CHAUVEAU, Agns; TTARD,
Philippe (org.). Questes para a histria do presente. Bauru, SP: EDUSC, 1999. p. 102.
42
PEREYRA, Carlos. Historia, para qu? In: PEREYRA, Carlos et al. Historia, para qu? Mxico: Siglo XXI,
1982. p. 11.
43
Sobre esta questo, ver: Da SILVA CATELA, Ludmila; JELIN, Elizabeth (comps.). Los Archivos de la
Represin: Documentos, memoria y verdad. Madrid: Siglo XXI, 2002; GONZLEZ QUINTANA, Antonio.
Los archivos de la seguridad del Estado de los desaparecidos regmenes represivos. Paris: UNESCO, s. d.;
BOCCIA, A., LPEZ, M. H. PECCI, A. V.; JIMNEZ, G. En los stanos de los generales. Los documentos
ocultos del Operativo Cndor. Asuncin: Expolibro/Servilibro, 2002.
64
Fato pouco provvel de ser certo, pois construiria um suicdio institucional de uma comunidade de
informaes cuja essncia e justificativa existencial , justamente, produzir informao. Se houve destruio,
44
certamente sobreviveram alguns conjuntos impressos completos ou microfilmados como cpias de segurana.
45
46
Casos dos oficiais da Armada, Jorge Trcoli, e do Exrcito, Oscar Pereira. O primeiro publicou a carta Yo
asumo... yo acuso (Brecha, 10/05/96) e o livro La ira del Leviatn (Montevideo: Revista Tres, 1996). O general
Pereira escreveu, recentemente, Recuerdos de un soldado oriental (Montevideo: edio do autor, 2004).
66
A vitria eleitoral do candidato Tabar Vzquez, da Frente Ampla, nas eleies presidenciais de 2004, e o
incio da sua administrao pareceram indicar que a posio institucional das Foras Armadas, no que se refere a
algumas questes vinculadas ao perodo repressivo, estaria mudando. o que indicava uma certa concordncia
das autoridades militares em colaborar no fornecimento de informaes sobre os casos de desaparecimento e a
localizao dos seus restos. Entretanto, at outubro de 2005, tal fato no se havia confirmado. De todas as
formas, os militares ou policiais responsveis pelas mortes e desaparecimentos, esto protegidos pela Ley de
47
48
Celiberti-Universindo Dias.
68
discursos
das
autoridades
repressivas,
documentos
resolues
sediada
na
The
George
Washington
University
Seqestro dos cidados uruguaios Lilian Celiberti, Universindo Dias e dos filhos de Lilian, as crianas Camilo
e Francesca, ocorrido em Porto Alegre em 1978.
49
e) Legislao do Poder Legislativo da Repblica Oriental do Uruguai. Tratase da legislao disponibilizada em arquivo eletrnico. Particularmente, interessam as
leis produzidas no perodo constitucional de 1968 a junho de 1973, alm das
produzidas pelo Conselho de Estado instalado pela ditadura e que funcionou durante
sua vigncia.
50
51
52
CAPTULO 1
TERROR DE ESTADO
Entre as caractersticas do Estado moderno, destacou-se sempre, como fundamental, a de ser
detentor do monoplio da violncia, tanto para fora, na defesa contra os inimigos externos na guerra,
como para dentro, atuando contra os inimigos da orden social estabelecida pela polcia e pela justia.
Neste ltimo terreno, a ao do Estado combina a defesa dos sditos contra a delinqncia
(mediatizada pelo fato de que ao Estado que corresponde, em ltima instncia, definir o que deve
ser considerado delinqncia), com a proteo dos grupos dominantes da sociedade contra a
subversoa que podiam sentir-se tentados os dominados [...].
Josep Fontana 1
A los vencedores no se les pone condiciones.
Teniente-general Queirolo 2
FONTANA, Josep. Introduo ao estudo da histria geral. Bauru, SP: EDUSC, 2000. p. 269.
CAETANO, Gerardo; RILLA, Jos. Breve historia de la dictadura. 2 ed. Montevideo: Banda Oriental, 1998.
p. 72.
3
SCHULZ, William. Estados Unidos y el terror contrarrevolucionario en Amrica Latina. In: PIETERSE, J. et al.
Terrorismo de Estado. El papel internacional de EEUU. Navarra: Txalaparta, 1990. p. 117; CUEVA, Augustn.
O Desenvolvimento do Capitalismo na Amrica Latina. So Paulo: Global, 1983. Cap. 12.
2
53
Documento de Recife do XII Congresso Brasileiro de Comunicao Social. Citado por BAUMGARTNER, Jose
Luis; DURAN MATOS, Jorge; MAZZEO, Mario. Os desaparecidos. A histria da represso no Uruguai. Porto
Alegre: Tch, 1987. p. 133.
5
JUNTA DE COMANDANTES EN JEFE. Las Fuerzas Armadas al pueblo oriental. T I. La subversin.
54
compartilhavam nem defendiam a tradio poltica (da elite) local. O que se resume na idia
de que: Todo ser vivo - y la Nacin es un ser vivo - debe, si quiere subsistir, defenderse
contra todo aquello que pueda daarlo, en si mismo, como desde afuera. 6 por isso que o
elemento desestabilizador, contrrio unidade nacional da DSN, considerado subversivo,
inimigo e, na semntica da doutrina, como o estranho que no pertence e no tem direito de
pertencer Nao. Desta forma, se justificam os defensores da doutrina na Argentina, como o
general Videla: Yo quiero significar que la ciudadana argentina no es vctimas de la
represin. La represin es contra una minora a quin no consideramos argentina. 7 De forma
ainda mais explcita, o Comandante da Gendarmeria, Agustn Feced afirmou: No puede, no
debe reconocerse condicin de hermano al marxista subversivo terrorista, por el hecho de
haber nacido en nuestra patria. Ideolgicamente perdi el derecho de llamarse argentino. 8
Neste quadro, um procedimento pertinente consiste em rastrear as orientaes, os
valores, enfim, tudo o que faz parte do componente ideolgico que os regimes de SN
impuseram e disseminaram entre as geraes mais jovens, atravs dos manuais escolares
obrigatrios de Moral e Cvica. Nestes, so apresentados como sinnimos, com base na
interpretao da DSN, os conceitos de Ptria, Nao e Estado.
La Patria
Velar por la seguridad de la Patria es velar por tu integridad y la de ella.
La Patria es Orden. El orden es regla y esencia del universo todo; sin l no se
logra.
Por ello debemos comprender que vivir libres presupone vivir dentro de un
orden lgico de respecto por la vida de los dems, respecto en los legtimos
intereses de cada persona, jams ser sinnimo la vida democrtica de
confusin de libertad con libertinaje y menos con entrevero. 9
La Patria es, entonces, una unidad de destino en lo universal, y cada
individuo portador de una misin particular en la armona del Estado. No
caben disputas de ningn gnero, el Estado no puede ser traidor de su tarea,
ni el individuo puede dejar de colaborar en la suya en el orden perfecto de la
vida de su pas. El individuo interviene en el Estado, como cumplidor de
uma funcin, por tener una profesin, un oficio, una familia. 10
55
CAMPODNICO, Silvia; MASSERA, Ema; SALA, Niurka. Ideologa y educacin durante la dictadura.
Antecedentes, proyecto, conscuencias. Montevideo: Banda Oriental, 1991. p. 144.
12
PANKOV, Y. (Org.). El terrorismo poltico. Inculpacin al imperialismo. Mosc: Editorial Progreso, 1983.
p. 137.
56
TRIAS, Vivian. Historia del imperialismo norteamericano. Buenos Aires: Pea Lillo, 1975, v. 3, p. 204.
Em janeiro de 1942, logo aps os EUA entrarem na guerra, o presidente Roosevelt apresentava, na sua
mensagem anual ao Congresso, o discurso sobre as Quatro Liberdades. O mesmo anunciava que os aliados
lutavam pela liberdade de expresso, pela liberdade de culto, para verem-se livres de necessidades e, finalmente,
livres de temor. CHOMSKY, Noam. La quinta libertad. Barcelona: Crtica, 1999. p. 75. Em relao liberdade
de expresso, Rossevelt afirmava que o objetivo era garantir a liberdade de palavra em todas as partes do mundo.
Quanto liberdade da necessidade, implicava em acordos econmicos que assegurassem a todas as naes uma
saudvel existncia pacfica. A libertao do medo implicava em uma reduo mundial de armamentos de tal
forma que nenhuma nao se achar em posio de praticar um ato de agresso fsica contra qualquer vizinho em qualquer parte do mundo. (Discurso de Franklin D. Roosevelt sobre as Quatro Liberdades - 6 de janeiro
de 1941. In: SYRETT, H. (Org.). Documentos histricos dos Estados Unidos. So Paulo: Cultrix, 1980. p. 303307. Considerando as tenses que assolaram a Amrica Latina nas dcadas de 60 a 80, as justificativas de
Roosevelt para essas liberdades tornam-se, no mnimo, curiosas (e contraditrias).
15
CHOMSKY, op. cit.
14
57
por 100 de su poblacin [...]. En esta situacin, no podemos evitar ser objeto
de envidias y resentimientos. Nuestra tarea principal en el prximo perodo
consiste en disear un sistema de relaciones que nos permita mantener esta
posicin de disparidad sin ningn detrimento positivo de nuestra seguridad
nacional. 16
58
poltica.
Deste modo, a aplicao dos princpios da DSN nos pases latino-americanos para
defender a democracia assumiu, de forma geral, o perfil de violncia estatal e, na maioria dos
casos, de Terror de Estado, configurando um aparente paradoxo:
Sus sostenedores [da DSN] no atacan a las fuerzas guerrilleras sino a los
gobiernos legtimos, y adoptan para la lucha contra sus oponentes polticos
la forma de un Terrorismo de Estado. Este Terrorismo de Estado ha
establecido un tipo de orden interno cargado de conflictos y contradicciones,
en la medida en que de el no deriva seguridad, paz ni libertad para la
poblacin. Su blanco real es la democracia: se pregona la destruccin de la
democracia a fin de renovarla y salvarla. Por su prpria naturaleza, la DSN
presume no slo que el Estado democrtico es incapaz de autodefenderse por
la via democrtica frente a las distintas formas de subversin, sino,
principalmente, que la democracia es un camino abierto para que las que
llama doctrinas subversivas, conquisten democraticamente el poder. 20
20
21
Idem, p. 30.
Idem.
59
1.2.1 - Terrorismo
O terrorismo apresentado, geralmente, como um produto de atos individuais ou de
pequenos grupos radicais, sejam de extrema direita ou de extrema esquerda, com finalidades
que, na maioria das vezes, so de cunho poltico, embora tambm possam ser produzidos por
motivaes religiosas e sociais. Uma primeira definio do fenmeno indica o terrorismo
como emprego do terror, da violncia e da intimidao para obter determinado fim. 22 Pode ser
avaliado tambm como mecanismo inibitrio de formas de solidariedade e, nesse sentido,
uma forma de violncia cuja realizao se objetiva no mbito psicolgico do indivduo ao
gerar condicionamentos que variam entre o medo e o terror (pavor, pnico, horror). A
definio do FBI sobre terrorismo aponta nessa direo: [...] o uso ilcito da violncia contra
as pessoas ou bens para intimidar ou coagir um governo, a populao civil ou parte dela, para
alcanar objetivos polticos ou sociais. 23 Basicamente, o uso da violncia, a inculcao do
medo e da insegurana sobre a populao civil so os componentes centrais desse quadro que
apresenta poucas variveis 24 , mas que pode ser ampliado.
Uma outra linha de interpretao assume veladamente as consignas da DSN e torna o
terrorismo sinnimo de comunismo e de revoluo. o caso, por exemplo, de Claire Sterling,
22
American Heritage Dictionary apud HERMAN, Edwards, S. El poder y la semntica del terrorismo. Brecha,
La Lupa. Montevideo, 16/03/87.
23
ANDRADE, John. Aco Directa. Dicionrio de terrorismo e activismo poltico. Lisboa: Hugin, 1999. p. 7.
24
Walter Laqueur afirma que o terrorismo : [...] o uso ilegtimo de fora para conseguir um objetivo poltico,
afetando pessoas inocentes. Para James Poland consiste no: [...] uso do assassinato, da violncia e da ameaa
sobre os inocentes para criar medo e intimidao, com o fim de alcanar uma vantagem poltica ou ttica. H.
Cooper enfatiza que o uso da violncia para aterrorizar pessoas que no foram objeto dessa mesma violncia,
com o fim de as fazer atuar de uma determinada maneira. ANDRADE, op. cit., p. 7.
60
25
operandi dos terroristas: Raramente deixam transparecer emoo. [...] Tampouco matam por
impulso. [...] Matam com naturalidade, pois esta a nica razo de ser um guerrilheiro
urbano, segundo reza a cartilha (referncia ao Minimanual de Guerrilha Urbana de Carlos
Marighella). E prossegue:
O que importa no a identidade do cadver, mas seu impacto sobre o
pblico; o objetivo do terrorismo aterrorizar, como certa vez lembrou
Lenin aos esquecidos. O emprego que fazem da violncia deliberado e
desapaixonado, cuidadosamente engendrado para surtir efeitos teatrais [...]. 26
25
61
29
Tal afirmao, entretanto, deve ser relativizada. Certos setores da grande imprensa brasileira tm realizado
sistemtica campanha associando as manifestaes do Movimento Sem Terra com prticas terroristas. Da mesma
forma, registram-se situaes parecidas em outros pases em relao aos movimentos anti-globalizao.
30
SAINT-PIERRE, op. cit., p. 59
31
SAINT-PIERRE, Hctor Luis. A poltica armada. Fundamentos da guerra revolucionria. So Paulo:
62
63
33
33
64
65
regras dentro do seu territrio, contribui para implementar uma cultura poltica comum que
partilhada por todos os cidados. 41
Na abordagem sociolgica, o Estado organiza a vontade de um povo politicamente
constitudo, no que diz respeito a seus interesses coletivos. Esta acepo induz ao
entendimento de que o poder coercitivo do Estado conta com a aprovao dos setores
populares, inclusive daqueles politicamente organizados, e reala a idia de que h objetivos
comuns entre ambos. Tal vnculo difcil de ser constatado at porque esbarra nos fins, nos
propsitos e nas funes concretas do Estado. muito mais pertinente pensar em um Estado
cujo papel mais ativo e estratgico o de ser vigia noturno, protetor de uma estrutura na
qual as foras do mercado podem agir de acordo com a lgica decorrente das suas prprias
necessidades. 42
Dentro dessa perspectiva, Miliband afirma que a classe economicamente dominante
tem uma relao bastante ntima com os responsveis pelo controle do aparelho estatal: os
donos do poder so, por diversas razes, os agentes do poder econmico privado e os que o
exercem so, por isso mesmo, uma autntica classe governante.43 Segundo ele, o Estado, ao
erigir uma lei que proclama o que deve ser norma nas esferas econmica, social ou poltica,
probe aos cidados, sob ameaa de castigo, a realizao de atos contra o regime, sancionando os
atos coincidentes com os interesses da classe dominante, fato que se contrape ou, ento, que
mostra as limitaes da avaliao de que o Estado representa os interesses coletivos. Em
realidade, pode corresponder a alguns pontos de consenso, no mbito poltico-administrativo, por
exemplo; mas quanto a aspectos econmicos, h limites e interesses bem concretos.
No pensamento marxista, o conceito Estado central, pois representa a instituio
que, acima de todas as outras, tem como funo assegurar e conservar a dominao e a
explorao de classe. Sua existncia, dentro de uma sociedade de classe, responde ao
fundamento da violncia original produzida na esfera das relaes de produo (a distribuio
desigual da produo), opresso que implica em complexa variedade de efeitos nas dimenses
scio-polticas, culturais e ideolgicas. Neste sentido, a violncia parte substancial da
dominao de classe, num conflito onde a iniciativa histrica pertence aos grupos de poder
econmico.44 Sendo assim, o Estado irrompe no meio da sociedade como instrumento de
41
66
garantia de uma ordem marcada por tenses latentes geradas pela dinmica da explorao scioeconmica. Para Engels o Estado:
[...] antes um produto da sociedade, quando esta chega a um determinado
grau de desenvolvimento; a confisso de que essa sociedade se enredou numa
irremedivel contradio com ela prpria e est dividida por antagonismos
irreconciliveis que no consegue conjurar. Mas para que esses antagonismos,
essas classes com interesses econmicos colidentes no se devorem e no
consumam a sociedade numa luta estril, faz-se necessrio um poder colocado
aparentemente por cima da sociedade, chamado a amortecer o choque e a
mant-lo dentro dos limites da ordem. Este poder, nascido da sociedade, mas
posto acima dela se distanciando cada vez mais, o Estado.45
Como o Estado nasceu da necessidade de conter o antagonismo de classes, e
como, ao mesmo tempo, nasceu em meio ao conflito delas, , por regra geral, o
Estado da classe mais poderosa, da classe economicamente dominante, classe
que, por intermedio dele, se converte tambm em classe politicamente
dominante e adquire novos meios para a represso e explorao da classe
oprimida. 46
conforme as suas necessidades. Esta tese foi desenvolvida nas obras marxistas clssicas, particularmente, por
Lnin no O Estado e a Revoluo. PIERRE-CHARLES, Gerrd. Dominacin poltica y terrorismo de Estado.
Revista Mexicana de Sociologa. Mxico, Ao XL, vol. XL, no 3, julio-septiembre 1978. p. 929.
45
ENGELS, Friedrich. A origem da famlia, da propriedade privada e do Estado. 5a ed. Rio de Janeiro:
Civilizao Brasileira, 1979. p. 191.
46
Idem, p. 193.
47
Especiais, por oposio organizao geral e espontnea da populao em fora armada, organizao que era
possvel antes da cisso da sociedade em classes. Segundo Chevalier, com o posterior advento da sociedade de
classes, o armamento espontneo foi abandonado e proibido, pois sua continuidade poderia acarretar luta armada
entre as classes hostis. CHEVALIER, Jean-Jacques. As grandes obras polticas: de Maquiavel aos nossos dias.
Rio de Janeiro: Agir, 1980. p. 369.
48
Idem, p. 369.
67
49
O peso
68
53
69
pacfica e que impedem a violncia entre grupos e indivduos da comunidade. Para isso,
indispensvel que o Estado possa agir atravs de mecanismos coercitivos e que tenha
capacidade de enquadrar e punir comportamentos que possam infringir a lei. Para
desempenhar tais funes, o sistema estatal no pode prescindir de aparelhos especializados
como polcia, servios de informao, cdigos disciplinares, etc. Cabe ao governo imprimir,
com continuidade, uma dinmica coercitiva cuja regulamentao sua exclusividade. Claro
que o poder poltico no se baseia s na violncia, mas ele se constitui, parcialmente, sobre
ela e, parcialmente, sobre o consenso. 56
H um entendimento de que a fora da represso pode ser desencadeada com alto
grau de legitimidade se ocorre o convencimento de amplos setores da populao de que o seu
recurso vem ao encontro do interesse geral da nao e em defesa da ptria. Mas esta fronteira
entre legalidade e ilegalidade na aplicao do poder coercitivo estatal pode chegar a ser, em
momentos de crise de legitimidade do governo, muito tnue, com escassa margem de
separao; atravess-la pode ser uma ao sedutora, principalmente se avaliada como sendo
uma forma rpida de resolver o impasse existente. Esta uma questo central, a definio do
limite da imposio da violncia estatal j que, por definio, na democracia formal, ao
Estado cabe reforar a convivncia pacfica e a resoluo dos impasses e dos conflitos dentro
dos marcos legais pactados e com o recurso dos instrumentos constitucionais disponibilizados
pela sociedade e que so pertinentes para enfrentar situaes consideradas de emergncia.
Mas esta possibilidade est supeditada a normas e regras e, por isso mesmo, no permite
interpretaes dbias dos acontecimentos justificadores. Porque se o Estado possui, por
natureza, o monoplio legtimo do uso da fora, isso est condicionado aos limites
consentidos pela legislao interna e internacional e subordinada a maior de todas as suas
obrigaes, a defesa intransigente da lei. 57 Mas essa condio se dilui quando entra como
critrio de permissividade a justificativa da razo de Estado, uma abstrao que quase
sempre paira acima dos homens, dos direitos humanos e da legalidade constitucional.
Constatada a existncia real ou potencial de uma determinada ameaa, global, total, profunda
aos interesses dos setores dominantes, estes embasam a ruptura da legalidade como
mecanismo ao qual se deve recorrer urgentemente para defender o conjunto da sociedade.
Nesse marco, a violncia constitucionalmente legitimada, funo monopolizada pelo Estado,
55
FONTANA, Josep. Introduo ao estudo da histria geral. Bauru, SP: EDUSC, 2000. p. 269.
STOPPINO, M. Violncia. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N. & PASQUINO, G. Dicionrio de Poltica.
Braslia: Editora da Universidade de Braslia, 1986.
57
ALDRIGH, Clara. La izquierda armada. Ideologia, tica e identidad en el MLN-Tupamaros. Montevideo:
Trilce, 2001. p. 59.
56
70
pode ser reconvertida para uma configurao mais complexa que, em vez de julgar e punir,
pode tambm semear o terror.
No Uruguai do final dos anos 60, o Estado tinha a sua disposio instrumentos
coercitivos e violentos legais que permitiam enfrentar a ao da guerrilha tupamara e de
outras pequenas organizaes armadas. Para proteger os cidados que podiam ser alvos
objetivos dessas organizaes e para preservar seu prprio poder, o Estado no precisava
utilizar modalidades de violncia que eram reconhecidamente ilegais. 58 Houve, porm, uma
perturbadora pr-disposio repressiva inconstitucional inserida na cpula do governo e de
parte da sua base de sustentao poltico-econmica. Apesar da existncia de recursos legais
como medidas constitucionais de exceo para conjunturas marcadas por profunda
instabilidade (caso das Medidas Prontas de Seguridad 59 ), o discurso anticomunista dos
setores dominantes exigia mecanismos mais radicais para enfrentar uma ameaa
superdimensionada. Foi um tpico exemplo de argumentao da razo de Estado. Na
experincia uruguaia, razo to suprema que abarcava tudo, no tinha limites e, por sua
causa, o Estado se converteu num aparato infernalmente poderoso frente ao qual no cabia
aludir a direitos e garantias individuais ou de grupo. 60 Na evoluo para uma dinmica cada
vez mais ilegal, em poucos anos, as medidas repressivas inconstitucionais isoladas se
transformaram em um sistema poltico completo e complexo com a forma de TDE.
Embora a visibilidade dos casos concretos, como no caso da ditadura uruguaia de
SN, o TDE ignorado por muitos dos autores que explanam sobre o terror e o terrorismo,
inclusive por aqueles que consideram os movimentos de libertao nacional sinnimo de
terrorismo. H duas hipteses para explicar tal atitude. Uma, derivada de uma limitao
conceptual, a no incluso, no campo do terrorismo, dos atos de violncia praticados por
governos em nome da razo de Estado. A outra, por causa do entendimento de que no deve
haver limite para a ao repressiva estatal pois esta sempre pautada pela justeza do seu fim
maior, a proteo da sociedade. 61
evidente que, por maior que for o recurso fora, sempre pode haver um espao
poltico, mesmo que mnimo, para tentar estabelecer algumas possibilidades de negociao,
por maior que for o desequilbrio na relao de foras entre os interlocutores. A preocupao
com a cooptao de manifestaes de apoio via consenso leva os regimes repressivos a
permitir brechas - algumas das quais podem existir apesar da sua vontade -, por onde podem
58
Idem.
Cf. captulo 3, nota 34.
60
BAUMGARTNER; DURAN MATOS; MAZZEO, op. cit., p. 106.
61
SAINT-PIERRE. Escritos sobre terrorismo. Op. cit., p. 54.
59
71
72
empregado durante um certo perodo sobre toda a populao de um determinado pas em razo
de uma situao de perigo para a ordem pblica. Sua implementao, por parte do governo,
implica em atribuir poderes extraordinrios s autoridades pblicas com a conseqente restrio
de direitos e de liberdades aos cidados atravs de aes que podem variar entre simples medidas
policiais e a total suspenso das garantias constitucionais. Em geral, os motivos que geram tal
situao so de ordem poltica.
O ato constitutivo do Estado de Stio uma deciso muito delicada, que pode
comportar uma avaliao potencialmente questionvel. Isto ocorre pelo fato de que os rgos aos
quais compete a constatao e a avaliao da situao de perigo so os mesmos que esto
habilitados a pr em prtica as medidas extraordinrias previstas para o Estado de Stio. O
problema, porm, reside em que a avaliao da situao de perigo para a ordem pblica que
justifica a necessidade de reagir com medidas excepcionais pode estar imbuda de interesses
particulares, o que afeta a lisura do funcionamento das regras democrticas. Com isso, a
instituio dessa situao de exceo e o reforo do Poder Executivo com o alargamento das suas
faculdades repressivas pode ser questionvel e gerar maior tenso no quadro poltico existente.
Inegavelmente, ao implementar uma ordem de carter excepcional, o Estado de Stio reconfigura
as relaes entre os cidados e a autoridade estatal. Mesmo motivado por uma situao
temporria normatizada constitucionalmente, fragiliza a cidadania ao impor-lhe medidas
restritivas dos seus direitos.
De qualquer forma, cabe o registro de que, havendo consenso sobre um determinado
perigo contra a sociedade e a ordem pblica, o Estado de Stio pode corresponder atribuio de
poderes extraordinrios a uma autoridade constitucionalmente preestabelecida para que, dentro
do marco da legalidade, tenha os instrumentos necessrios para combater a ameaa. A questochave, entretanto, sempre o quanto h de real na ameaa percebida desde o Estado e at onde
uma ameaa para as instituies e para a sociedade como um todo e no para interesses
particulares e dominantes.64 Geralmente, h um superdimensionamento da mesma, quer dizer,
sua percepo bem maior do que ela representa em termos concretos e ser aumentada, ainda
aes militares e paramilitares atingiram lideranas de oposio, comits das foras componentes da Frente
Ampla, sedes sindicais e instituies de ensino ocupados pelos estudantes secundaristas e universitrios. Em
julho do mesmo ano, o Estado de Guerra Interno e a suspenso de garantias individuais foram substitudos pela
Ley de Seguridad del Estado, tambm aprovada pelos legisladores dos partidos Nacional e Colorado. Essa lei
colocava os acusados por delitos de sedio disposio da Justia Militar. Os resultados dessa mudana do
estatuto jurdico permitiu que, em cinco meses de vigncia da nova ordem repressiva legal (j que aprovada
pelo Poder Legislativo), as Foras Armadas capturassem 1.441 pessoas consideradas subversivas, requeressem
outras 284, matassem 38 e ferissem 25. ALFARO, Milita. El derrumbe de la Suiza de America. El Pachequismo
y el Golpe Militar. Montevideo: Las Bases, s. d. p. 27.
64
BALDI, C. Estado de Stio. In: BOBBIO, N.; MATTEUCCI, N. & PASQUINO, G. Op. cit.
73
1) A opresso que resulta da aplicao da violncia estrutural da dinmica scioeconmica (desnutrio, analfabetismo, desemprego, discriminao sexual, racial, de
gnero, etc.).
2) A represso ordinria do Estado (violncia institucional) requerida para cumprir
determinadas funes pblicas ou de interesse geral e que se executa dentro dos
marcos da legalidade.
3) A violncia estatal que viola o direito e extrapola a legalidade constitucional (o
TDE).
68
74
75
a instrumentalizao, por parte das Foras Armadas, da misria existente no interior do pas,
atraindo milhares de jovens sem perspectiva de emprego e de futuro incerto que, em troca de um
modesto salrio e de eventuais cotas de alimento para a famlia, alistaram-se nas fileiras
militares. Em termos gerais, foi uma opo muito mais determinada pela necessidade imediata de
sobrevivncia do que por afinidade ideolgica. A doutrinao desses soldados ocorreria de forma
precria e primria, a partir da rotina da caserna.
Partindo das experincias concretas dos regimes de SN do Cone Sul, Petras alerta que o
marco para analisar o terrorismo de Estado deve ser o totalizador para captar as relaes
dinmicas entre a atividade do Estado, o processo de acumulao e a projeo de poder
hegemnico, processo este que essencial para explicar e justificar a ao repressiva virulenta do
TDE.69 Para ele, o TDE o mecanismo fundamental para realizar o reordenamento da
superestrutura com as novas necessidades econmicas dos setores dominantes e do capital
internacional. A estratgia de aplicao deste complexo esquema de enquadramento segue, em
geral, as seguintes fases:
1) Destruio dos movimentos sociais e das instituies populares.
2) Consolidao do Terror de Estado e recomposio dos setores dominantes que
controlam a direo do processo de acumulao.
3) Implementao, atravs da fora, de novo processo de acumulao pela canalizao
de emprstimos para investimentos nos setores que sustentam o regime. 70 Na
medida em que isso ocorre, a dinmica social se estabiliza e o poder econmico
retoma sua dominncia, diminuindo a necessidade e a funcionalidade do terror. Este
perde sua autonomia relativa, subordinando-se s regras do mercado e retornando a
um limite institucional-legal, onde reassumem um perfil de fora ostentatria,
intimidatria ou de controle. 71
4) Acirramento de contradies entre as orientaes local e internacional do Terror de
Estado, em funo das crises econmicas profundas, abrindo um cenrio de novas
possibilidades onde o ressurgimento do movimento social pode induzir uma nova
escalada repressiva ou uma retirada ttica negociada mediante processos eleitorais
nos quais os aparatos repressivos se retraem. 72
69
76
a partir dos anos 70 que a expresso Terror de Estado ganha maior espao no
debate intelectual e poltico. 75 Uma dupla definio marca tal debate. De um lado, como j foi
apontado, est a caracterizao dos Estados que praticam atos de terrorismo contra s prprias
populaes. De outro, est o fato de um Estado exportar terrorismo ou subsidi-lo de forma
oficial, mas discreta ao interior de outros Estados. Apesar da ntida participao do aparato
estatal em ambos os casos, curioso observar como alguns autores, diante das evidncias
mais concretas, rejeitam a responsabilidade do Estado nos excessos repressivos. o que faz o
jurista Edison Gonzlez Lapeyre que, em uma obra dedicada exclusivamente discusso do
tema terrorismo, somente identifica TDE, quando h uma agresso externa:
En cuanto al terrorismo internacional, se reputa por tal, exclusivamente, el
perpetrado por un Estado en perjuicio de otro. En tal sentido, se considera
criminal a todo agente representante de un Estado que comete o ordena
cometer, organiza, ayuda, financia, o tolera la ejecucin de actos dirigidos a
sembrar el terror entre los dirigentes y la poblacin. 76
SAINT-PIERRE. A poltica armada. Fundamentos da guerra revolucionria. Op. cit., p. 86; PIERRECHARLES, op. cit., p. 939.
74
PETRAS, op. cit., p. 161.
75
ANDRADE, op. cit., p. 9.
76
GONZLEZ LAPEYRE, Edison. Violencia y Terrorismo. Montevideo: Arca, 1995. p. 104.
77
Gonzlez Lapeyre identifica o Movimento de Libertao Nacional-Tupamaros como organizao terrorista
sustentando tal afirmao a partir de uma bibliografia que destaca essa organizao como referncia para o
terrorismo mundial. O prprio autor assume com convico a clssica argumentao dos setores golpistas e
77
autor, a dimenso interna do terror desconsiderada e, at mesmo, rejeitada. Este silncio pode
indicar que, para ele, no existem aes concretas de TDE no interior de um pas porque um
Estado, entendido como nao agredida, tem o direito de defender-se utilizando todos os
recursos existentes ao seu alcance. Gonzlez Lapeyre apresenta dois elementos centrais para as
reflexes deste trabalho. Primeiro, a identificao dos movimentos guerrilheiros, portadores de
projetos concretos de mudana estrutural da sociedade e do Estado, como meras organizaes
terroristas; neste ponto, identifica-se com a posio da citada Claire Sterling. Segundo, contra
essas organizaes legitima toda e qualquer violncia estatal justificada pela percepo de que
visam dissolver a unidade nacional; os lamentveis excessos produzidos no seu combate
foram, no obstante, necessrios para proteger a Nao e o bem comum.
O TDE aplicado na Amrica Latina, entre as dcadas de 60 a 80, atravs das
orientaes da DSN e na forma da guerra contra-insurgente, um terrorismo de grande escala,
dirigido desde o centro do poder estatal, dentro ou fora das suas fronteiras. Um aspecto
importante a ser ressaltado que, nos ltimos anos, se tem reforado a vinculao entre as
ditaduras de SN e o TDE. Uma primeira explicao para esta constatao pode estar na
centralidade crescente das questes relativas aos direitos humanos, numa escala mundial, e que
pode ter duas motivaes particulares em relao Amrica Latina. Uma, no papel que os
direitos humanos passaram a ter como aglutinadores de movimentos de resistncia e de denncia
permanente, constituindo-se como barricadas no interior de cenrios polticos atingidos pela ao
despolitizadora e desmobilizadora do TDE. A outra explicao pode estar na persistncia da
dvida poltica expressa pela no-resoluo dos crimes de Estado, referentes ao tempo das
ditaduras, em praticamente todos os pases do Cone Sul. Embora o grau de intensidade e de
mobilizao varie em cada caso, tal dvida permanece como pauta no cumprida das
concertaes de transio democracia, tornando a luta contra a desmemria, em tempos de
neoliberalismo, outro aspecto essencial das organizaes de direitos humanos.
Uma segunda resposta, imbricada nas razes acima expostas, refere-se ao fato de que a
dimenso, a modalidade e a profundidade da represso nas ditaduras de SN ainda esto sendo
desveladas, em um lento processo, ainda inconcluso, que j dura mais de duas dcadas (desde o
defensores da aplicao dos mecanismos de Terror de Estado: El Uruguay es una nacin sin servicios de
seguridad e inteligencia adecuados para evitar la infiltracin del exterior y la accin disolvente en lo interior. [...]
el Poder Judicial del Uruguay, si bien constitudo por jueces en general probos y capacitados, era muy vulnerable
a la extorsin, a la infiltracin y a las presiones de todo tipo que los terroristas le imponan. [...] Evidentemente,
la lucha, que se fue haciendo cada vez ms encarnizada frente a la progresiva crueldad del movimiento terrorista,
no poda desarrollarse por parte de las autoridades, con xito, dentro del esquema institucional [...]. Idem, p.
182. A argumentao do jurista rica quanto s justificativas do golpe assim como violncia institucional
necessria para derrotar o MLN. mais do que evidente porque a resposta violenta do Estado no constituir
Terror de Estado para Gonzlez Lapeyre.
78
fim das ditaduras) para os casos do Brasil, Uruguai e Argentina. As novas descobertas sobre
essas experincias autoritrias e as relaes entre elas, assim como delas com os EUA, do mais
consistncia s exigncias de reavaliar a existncia concreta de polticas de TDE. A contribuio
da presso pelo julgamento de Pinochet (acentuada desde sua deteno temporria na Inglaterra),
as dezenas de processos institudos na Europa contra militares argentinos, chilenos e uruguaios
(acusados de crimes contra cidados de origem italiana, francesa ou espanhola), os novos casos
de restituio de identidade de crianas seqestradas nos pases platinos, assim como a abertura
gradual dos arquivos estadunidenses permitem analisar, com maior preciso conceitual, esta
realidade, definindo novos parmetros explicativos.
O aspecto repressivo dos regimes civil-militares de SN foram abordados, na sua poca,
de forma diferenciada. Para vrios dos autores aqui considerados, este fator, embora no fosse
ignorado, estava deslocado para instncias muito secundrias das anlises num entendimento de
que a violncia perpetuada pelos militares e seus aliados polticos era um fator naturalizado
pelo histrico acumulado de golpes de Estado, pronunciamentos e outras formas de
interrupo constitucional ocorridas na regio. Em um primeiro momento, os objetos de anlises
sobre as ditaduras de SN referiam-se ao novo papel dos militares, interveno e reconverso do
Estado, s articulaes das fraes de classe, s relaes destas com a DSN e com os novos
padres de acumulao mundial. Ainda, os estudos comparativos de casos nacionais a partir
dessas temticas (apontando s razes dos diversos processos, s semelhanas e s
particularidades de cada caso) foram acompanhados de reflexes que colocavam como
paradigma as ditaduras do sul da Europa - a procura do estabelecimento de paralelos e da
compreenso daquelas experincias luz das necessidades explicativas dos casos concretos
latino-americanos.
A escolha mais premente de certas temticas no significa que aquelas anlises
desconhecessem o teor da violncia estatal como componente importante do disciplinamento
promovido pelo novo sistema e da existncia de formas qualitativamente novas de coero
estatal. Efetivamente, a ausncia de referncias mais precisas sobre a dimenso e a durao dos
esquemas repressivos das diversas experincias nacionais no escondia a percepo de que se
estava frente a formas qualitativamente novas de coero estatal.
Em duas importantes coletneas de textos 78 que centravam o debate sobre o modelo de
Estado Burocrtico-Autoritrio (BA) proposto por Guillermo ODonnell, o fator represso estatal
era colocado de forma bastante diluda. O prprio ODonnell, nas suas premissas fundamentais,
78
O Novo Autoritarismo na Amrica Latina, organizado por David Collier (1982) e o Estado Autoritrio e
Movimentos Populares, coordenado por Paulo Srgio Pinheiro (1979).
79
indicou que o Estado BA, ao excluir os setores populares, fechava-lhes as vias de acesso s
estruturas estatais, reprimindo-os e desativando-os politicamente. Essa iniciativa do Estado BA
foi condizente com outra importante premissa: a de que a despolitizao dos setores populares
foi um dos objetivos centrais da nova ordem, pois era mister reduzir as questes sociais e
polticas a simples problemas de gerenciamento tcnico. De forma mais direta, o autor afirma
que o Estado BA, aps impor esmagadora derrota ao setor popular no pode esconder o fato de
que fundado na coero.79
Apresentando outros elementos vinculados funo repressiva, ODonnell refora que
a excluso poltica que visa atingir os setores populares mobilizados (ativados) antes da
interveno autoritria uma condio de sobrevivncia do novo sistema de poder. Essa
excluso materializada na destruio dos meios que fomentavam aquela ativao.80 Sem
explicitar os mecanismos especficos de como isso acontece, o autor destaca genericamente a
supresso da cidadania, a liquidao das instituies democrticas e a coao fsica, sem
oferecer, contudo, maior detalhamento da mesma. Observa-se que os pontos citados pelo autor,
alm de pouco teis em termos de preciso conceitual, parecem distantes de outras anlises que
inferem a existncia do TDE. Todavia, ODonnell, apesar de preocupado com outras questes sobre as quais realiza pertinentes contribuies -, descreve os temores no s dos vencidos mas
tambm dos vencedores. Em relao aos primeiros, diz que:
[...] o melhor que se pode esperar um consenso tcito, isto despolitizao,
apatia [...]. E medo. Medo por parte dos perdedores e dos adversrios do BA,
que resulta da capacidade conspcua do BA para a coero. 81
Quanto aos vencedores, ODonnell afirma que estes tambm sentem medo pois: [...]
enfrentam o espectro de uma volta situao que precedeu implantao do BA. [...] medo [...]
de qualquer soluo poltica que possa levar possivelmente a essa volta [...].82
Aqui, o autor indica um outro aspecto relevante: o projeto de interrupo democrtica
de mdio ou longo prazo. A desconfiana de uma negociao entre parte dos seus aliados e os
derrotados visando reverter o quadro poltico leva os militares, na percepo de ODonnell, a
garantir um certo grau de autonomia e a incrementar a ao despolitizadora. O temor dos setores
que controlam o novo regime mostra que parece impeli-los por um caminho de coero que no
79
80
83
repressiva ilimitada presente, concretamente, em diversas ditaduras de SN; sem se propor isso, o
autor anuncia a lgica do TDE.
Entre aqueles autores que debateram o modelo apresentado por ODonnell, Robert
Kaufman e Fernando Henrique Cardoso so os que, apesar de no privilegiar a coero estatal
nas anlises, esboaram, porm, uma avaliao sobre o perfil repressivo do Estado de SN. Ao
distinguir o militarismo de Segurana Nacional e sua atuao coercitiva de outras experincias
repressivas na mesma regio, Kaufman destacou a existncia de uma represso sistemtica
baseada, principalmente, na tortura - com crueldade e eficincia inusitada - e no emprego
corrente de instrumentos pblicos de vigilncia. 84 Esses mecanismos se sobrepuseram a outros,
como a interveno no ensino, a suspenso dos processos eleitorais, a interveno no Poder
Legislativo e a desmobilizao sindical. Kaufman considera que as experincias ditatoriais
chilena, argentina e uruguaia foram as mais repressivas dos Estados BA.
Em relao a Cardoso, este reconheceu o carter repressivo comum dos regimes
autoritrios latino-americanos, enfatizando o: [...] uso continuado da represso, com toda a
desmoralizao e alienao produzidas pelo uso generalizado da violncia [...] 85 (grifo meu).
Ainda reconheceu a implementao de um sistema de terror nas experincias uruguaia e
argentina 86 e ressaltou que no Chile o golpe que instalou a Junta Militar foi bem sucedido na
destruio das organizaes populares e de esquerda.87 Nesta mesma linha, David Collier
tambm constatou o uso da represso pura no Chile e no Uruguai 88 e caracterizou o caso
brasileiro como exemplo do uso extensivo da tortura.89 Collier coincide com Julio Cotler ao
afirmar que a quebra institucional imposta pelos militares e sua interveno generalizada na
sociedade, nos golpes de Estado dos anos 60 e 70, se reveste de um carter indito.90 Neste
aspecto, h concordncia com Atlio Born, que reconheceu tambm um significado novo na
interveno das Foras Armadas, a partir da pretenso em assumir o papel de partido da
ordem. 91
83
Idem.
KAUFMAN, Robert. Mudana Industrial e Governo Autoritrio na Amrica Latina: Uma Crtica Concreta ao
Modelo Autoritrio-Burocrtico. In: COLLIER, idem, p. 156.
85
CARDOSO, Fernando Henrique. Os Regimes Autoritrios na Amrica Latina. In: COLLIER, idem., p. 55.
86
Idem, p. 54.
87
Idem, p. 52.
88
Idem, p. 342.
89
Idem, p. 435.
90
COTLER, Julio. Estado e Regime: Notas comparadas sobre o Cone Sul e as sociedades Enclave. In:
COLLIER, idem.
91
Para Born [...] no se trata agora do pronunciamento de um caudilho militar seno que a prpria instituio
militar na sua totalidade a que ocupa militarmente os aparelhos do Estado projetando sua prpria estrutura
hierrquica de poder sobre o cenrio da organizao estatal. A idia de partido da ordem relaciona-se ao fato
84
81
Dentro das interpretaes que partem do modelo explicativo do fascismo latinoamericano, o carter repressivo ocupou um espao mais central na anlise relativa a experincias
concretas, o que no surpreende se pensarmos que a matriz dessas interpretaes explicita
acentuadamente esse fator: O Fascismo no Poder [...] a ditadura terrorista descarada dos
elementos mais reacionrios, mais chauvinistas e mais imperialistas do Capital Financeiro.92
Tal destaque foi retomado em uma das principais obras j escritas sob essa perspectiva, Teoria
social y procesos polticos en Amrica Latina, de Agustn Cueva.93 Para ele, a prtica de um
terror moderno, institucionalizado e sistemtico expressou uma mudana qualitativamente nova
na forma como a superestrutura estatal procurou atingir os movimentos populares organizados,
principalmente, o operariado. um sistema de dominao baseado no terror puro e mudo,94
fato sempre associado, como reforava Cueva, aos interesses do capital monoplico. Foram
regimes polticos que exerceram uma coero universal e permanente, um autoritarismo
repressivo de Estado levado ao extremo95 , exemplificados na existncia de campos de
concentrao e salas de tortura no Chile, na tortura massiva do pau-de-arara no Brasil e na
profunda violncia imposta no Uruguai, Paraguai, Bolvia e Argentina. Com estes argumentos
Cueva afirmou, de forma categrica: a Amrica Latina sofre o terror e a barbrie.96
A identificao mais direta entre o carter repressivo das ditaduras latino-americanas
com o TDE, apareceu principalmente nas obras de Tapia Valds e de Alain Rouqui,97 tambm
contemporneos daqueles fatos. Rouqui, embora no pretendesse conceituar nem definir o que
entendia por TDE, ao rejeitar o carter fascista das ditaduras latino-americanas, alinhou-se ao
paradigma do autoritarismo e afirmou que esses regimes [...] talvez sejam terroristas [...].98 Ao
referir-se experincia argentina, caso por ele priorizado em outras obras, particularizou a
existncia de uma mquina de matar, inerente dimenso terrorista contra-revolucionria do
militarismo argentino. 99 Embora sem explicitar o significado desse TDE que reconheceu existir,
Rouqui, curiosamente, na sua obra O Estado Militar na Amrica Latina, utilizou esta categoria
no ttulo do captulo Dos militares respeitosos (da democracia) ao Estado terrorista, embora
de que as foras armadas se constituem como partido orgnico da grande burguesia monoplica e suas fraes
BORN, Atilio. Estado, capitalismo y democracia en Amrica Latina. 3a ed. Buenos Aires: Oficina de
Publicaciones del CBC/Universidad de Buenos Aires, 1997. p. 63.
92
DIMITROV, Georgi. A Unidade Operria Contra o Fascismo. Belo Horizonte: Aldeia Global, 1978. p. 11.
93
CUEVA, Augustn. Teoria social y procesos polticos en Amrica Latina. Mxico: Edicol, s. d.
94
CUEVA, Augustn. La fascistizacin de Amrica Latina. Nueva Poltica, Mxico, n. 1, enero-mayo 1976. p.
160.
95
Idem, p. 127
96
Idem, p. 157
97
TAPIA VALDS, op. cit.
98
ROUQUI, Alain. O Estado militar na Amrica Latina. So Paulo: Alfa-Omega, 1984. p. 316.
99
Idem, p. 325
82
REVELLO, Cecilia; PORRINI, Rodolfo; SCHOL, Alexis. Las Dictaduras Militares en Amrica Latina.
Montevideo: Las Bases, 1986. p. 28.
101
Idem.
83
lugar, entretanto, o papel que desempenhou a dimenso repressiva foi colocado como elemento
secundrio diante dos focos centrais de cada anlise (com a exceo da matriz do fascismo
latino-americano, onde ocupa uma posio de destaque). Finalmente, mesmo a nfase dada por
Agustn Cueva e outros autores que partilham das suas premissas ao carter terrorista das
ditaduras, a represso foi mais em funo do entendimento do papel que cumpria a violncia nos
sistemas fascistas de dominao do que produto de uma avaliao concreta e especfica das
ditaduras militares do Cone Sul. Neste sentido, a nfase na palavra terror no significa avanar
em termos de preciso conceitual a partir dos dados constatados no plano concreto. De certa
forma, a no ser pela constatao de maior grau de violncia, esta interpretao mostrou-se to
imprecisa quanto a dos demais autores apresentados (com exceo de Tapia Valds).
Esta insuficincia de preciso pode ser entendida como conseqncia de vrios motivos.
Primeiro, do desconhecimento, na poca, da dimenso da violncia estatal. evidente que isto
relacionou-se com uma consciente sonegao de informaes por parte das cpulas de poder das
ditaduras, pretendendo ocultar suas prprias responsabilidades. As informaes detalhadas sobre
a violao de direitos humanos esto entre os mais preciosos segredos que se tentou controlar ou
destruir - mais at que as denncias de corrupo estatal. Segundo, do interesse e da preocupao
dos pesquisadores em responder questes pertinentes aos projetos polticos e programas
econmicos implementados, considerados mais urgentes no contexto da ditadura e do incio da
transio democracia. Terceiro, da dificuldade em avaliar um processo em andamento com
conhecimento e informaes muito restritas de um universo marcadamente fragmentado (os
espaos censurados ou autocensurados do interior dos regimes, o mundo das prises polticas, a
comunidade do exlio, o cenrio de imerso na clandestinidade, etc.). A isso, acrescentam-se os
estgios e ritmos variados nos diversos pases onde as tendncias, permanncias e contradies
de uma dinmica de mudana ainda eram de difcil percepo - tanto caso a caso quanto em
perspectiva comparada.103 Entretanto, estas apreciaes no significaram que alguns indcios de
novos elementos ou novas formas de violncia estatal no estivessem sendo considerados nas
pesquisas e nas anlises sobre os regimes repressivos da regio, apesar da dificuldade de inserilos de forma mais pontual nas diversas lgicas explicativas.
O TDE, enquanto categoria analtica, passou a ocupar maior espao nos anos 80, a
partir das anlises realizadas sobre a instrumentalizao que, principalmente, na Amrica
Central, fazia a poltica Reagan dos seus aliados (governamentais ou no) para enfrentar e
102
103
84
Este trecho extremamente rico para identificar os novos elementos que o autor
incorpora (o que no contradiz seu modelo explicativo; pelo contrrio, o complementa).
ODonnell reconhece uma categoria nova, a do terrorismo estatal, e mostra-se realista ao tentar
definir a abrangncia e a contundncia do mesmo. Destaca a fragilidade do indivduo que est a
sua merc e que sofre muito mais do que o somatrio da violncia policial de rua, da censura e
da interrupo da vida poltico-partidria de um pas. A referncia que faz, a modo de
85
105
86
instituies pblicas do Estado, s quais pode recorrer para sua defesa ou para exigir justia.
Porm, se a ameaa de agresso ou a agresso propriamente dita parte da esfera pblica, o
cidado fica totalmente exposto, indefeso, pois, frente a essa situao, no existe nenhuma
instncia superior a qual recorrer dentro do territrio nacional. Isto torna este terrorismo muito
mais criminoso, para o cidado comum, do que aquele praticado por grupos especficos. 107
Seu carter criminoso geral e global est determinado pela violao dos direitos humanos,
pelos crimes polticos e um acentuado belicismo. O carter clandestino das suas aes,
desencadeadas s margens da lei, encobrem que a auto-justificadora guerra interna se torna,
por iniciativa estatal, uma guerra suja. 108
Segundo as palavras de Willian Schulz, o fenmeno do TDE : to velho como a
sociedade de classes.109 Contudo, h um consenso de que, enquanto sistema de dominao
interna, seu primeiro antecedente significativo ocorreu durante a Revoluo Francesa,
especificamente, no perodo do Terror dirigido pelos jacobinos desde o Comit de Salvao
Pblica. pertinente associar o TDE aos processos fictcios montados pelos tribunais
revolucionrios, onde, de fato, a mera suspeita e delao geraram perseguies contra os
denominados inimigos do povo; neles, no cabiam recursos nem apelaes contra as sentenas
proferidas, pois sua funo bsica era a condenao e a execuo imediata dos acusados.110
Portanto, pode-se considerar a prtica desses comits e tribunais revolucionrios como
antecedente direto do TDE; contudo cabe uma objeo: necessrio relativizar essa experincia,
pois ela ocorre em um contexto revolucionrio completamente aberto quanto s possibilidades
polticas, com intenso confronto social e onde a uma violncia revolucionria se contrapunha
uma violncia contra-revolucionria extremamente forte e articulada com aliados do Antigo
Regime continental e da Inglaterra burguesa. Estes aspectos do a essa experincia uma
conotao qualitativamente particular e muito diferente do que encontrado nos cenrios da
instalao dos regimes de SN. Nestes, a violncia estatal foi expresso de regimes de fora que
destruram uma cultura democrtica e uma legalidade institucional de cenrios tensionados - mas
no revolucionrios - ou, como no caso chileno, de um governo de esquerda que agiu dentro dos
marcos da legalidade da prpria democracia burguesa.
A promoo do TDE comea quando, desde o interior das estruturas do prprio Estado,
106
87
se organiza uma rede que envolve as instituies coercitivas, por onde se intensifica o fluxo de
informao produzido pelos servios de inteligncia, publicamente inacessvel, e que afunila no
Poder Executivo. Simultnea e sorrateiramente, impe-se o desequilbrio na relao entre
poderes, fato que evidencia um componente autoritrio em gestao. Para Frontalini & Caiati o
Estado se transforma em terrorista quando, ao exercer um poder, o faz sem sofrer controle de
nenhuma instituio que ainda responda, de alguma forma, sociedade civil.111
O terror, como forma especfica de poder, tem duas dimenses. Uma, comportamental:
a imposio da adaptao da populao ao novo padro de comportamento poltico desejado e a
obedincia absoluta s diretrizes dos setores que detm o controle do poder. A segunda,
ideolgica: molda as instituies a fim de obter, mediante mecanismos de cooptao, uma
obedincia voluntria que permita conformar novos sujeitos polticos.112 Mignone refora a
nfase no carter clandestino da represso, no uso arbitrrio dos mecanismos coercitivos legais e
na falta de garantias e defesa da populao.113 Como variante destas definies, Horacio
Riquelme apresenta o conceito de violncia organizada, contraponto da violncia institucional,
componente caracterstico do Estado inserido num plano de legalidade. A violncia
organizada, permeia todo o sistema estatal e est investida de TDE,114 correspondendo ao
tratamento intimidatrio de matiz variado que pode inclusive chegar prpria possibilidade do
aniquilamento. 115 Seus resultados concretos podem ser medidos no estabelecimento de situaes
que variam entre um violento disciplinamento at a institucionalizao do horror.116
Considerando todos esses aspectos, de extrema pertinncia a definio de Terror de Estado
elaborada por Miguel Bonasso:
[...] un modelo estatal contemporneo que se ve obligado a transgredir los
marcos ideolgicos y polticos de la represin legal (la consentida por el
marco jurdico tradicional) y que debe apelar a mtodos no convencionales, a
la vez extensivos e intensivos, para aniquilar la oposicin poltica y la protesta
social, sea sta armada o desarmada. 117
111
88
89
repressivo.
118
90
ROJAS MIX, Miguel. La dictadura militar en Chile y Amrica Latina. In: WASSERMAN, Cludia;
GUAZZELLI, Csar A. B. (org.). Ditaduras militares na Amrica Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2002. p. 17.
123
Nos EUA, estudantes, militantes afro-americanos dos Panteras Negras e intelectuais de esquerda que
protestavam contra a Guerra do Vietn, eram acusados de violentos e terroristas por um governo que havia
jogado mais de cinco milhes de toneladas de bombas, em doze anos, sobre um pequeno pas campons sem
meios de defender-se. CHOMSKY; HERMAN, Washington y el fascismo en el tercer mundo. op. cit.
91
92
126
93
127
Dossi Manuel Cordero. Comisso do Acervo da Luta Contra a Ditadura. Porto Alegre, maro de 2005.
94
95
128
ABOS, lvaro. La racionalidad del Terror. El Viejo Topo. Barcelona, n 39, dic. 1979.
Idem.
130
PERELLI; RIAL, op. cit., p. 69.
129
96
organizada mais assptico, menos explcito na sua virulncia e, por conseguinte, mais
suportvel para os envolvidos na sua mplementao.
O compromisso com a disciplina e a obedincia hierarquia diluem responsabilidades
no interior da unio sagrada do coletivo corporativo. A promessa de imunidade perptua,
resultado do corolrio da imposio da impunidade almejada, um fator que contribui nessa
participao mais ampla, sobretudo da oficialidade. O sistema de rodzio procura reduzir ao
mnimo as perigosas deseres por cargo de conscincia mediante aes corretivas que podem
variar desde a imposio do mesmo tratamento destinado aos inimigos internos at a queima
de arquivo. Em todos os casos, a quebra do compromisso corporativo condena os desertores
condio de traidores, antipatriotas; pior, traidores entre camaradas de armas, fato imperdovel.
A responsabilidade compartilhada e o medo mancomunado de hipottica punio refora os
laos de coeso interna, dificulta posturas de distanciamento e alimenta uma contnua autoreproduo, um crculo vicioso de violncia do qual os integrantes das foras de segurana
acabam refns. O que torna a imunidade uma exigncia para os mesmos nas negociaes de
sada das ditaduras e cuja tentativa de reverso, no perodo posterior, sempre foco de tenso.
Alis, no cenrio de recuperao democrtica, os setores duros das instituies militares
entendem que a guerra interna persiste, pois o inimigo interno acabou se deslocando para as
associaes que manifestam intenes de lembrar e conhecer a verdade sobre os acontecimentos
recentes e, na viso dos defensores da DSN, o maior de todos os crimes: a exigncia de
justia. Diante de tais posturas, vistas como revanchistas, cria-se o clima para justificar um
permanente estado de alerta das novas geraes das Foras Armadas, refns dos compromissos
assumidos durante a vigncia dos regimes de Segurana Nacional.
O segundo elemento a considerar dos mais essenciais: o fomento e a consolidao de
uma cultura do medo, clima que emerge da sociedade atingida pela sistemtica do TDE. o
resultado da aplicao das medidas que compem o arsenal coercitivo e repressivo do TDE.
Trata-se do cenrio do silncio, da desconfiana, da alienao, da autocensura e de um terror
permanente, onde nem o conformismo garantia de segurana, pois a mquina de terror igual
pode acus-lo de subverso. A cultura do medo no deve ser confundida com a pedagogia
do medo, entendida como a instrumentalizao da aplicao das modalidades repressivas de
impacto mais direto, a funo pedaggica de ensinar e lembrar que, havendo transgresso das
atitudes, comportamentos e limites permitidos, h durssima punio. Neste sentido, o temor
obtido, funciona como fonte de obedincia compulsiva ou, na menor das hipteses, como
desmobilizao e paralizao de uma oposio militante ou de manifestao pblica de
descontentamento. A pedagogia do medo, organizada desde o aparato estatal e disseminada
97
por todo o territrio nacional, impe, atravs da violncia - direta ou irradiada, institucional,
cultural e psicolgica -, o entorpecimento do raciocnio, o bloqueio da capacidade de
compreenso e a acentuao do estresse, condicionamentos presentes no cenrio da cultura do
medo.
A poltica de amedrontamento central nos objetivos e na dinmica do TDE e, claro, na
cultura do medo. O Diccionario de la lengua espaola reconhece o termo terror131 como
sinnimo de medo e das variveis espanto e pavor; assim, terror a sensao provocada por uma
ameaa concreta ou imaginria. Como as modalidades repressivas so relativamente conhecidas,
embora o carter imprevisvel dos critrios de atuao, o TDE est mais relacionado com o medo
e o grande medo (terror, pavor) do que com a ansiedade ou o pnico (temor excessivo sem causa
justificada).
De qualquer forma, a fronteira entre estas sensaes so imprecisas e esto presentes na
sobrevivncia cotidiana da populao, sobretudo nos perodos de maior virulncia persecutria.
Cores Transmontes vincula espanto, pavor, medo, pnico, angstia e temor como sensaes que
explicitam, em matizes diversos, os fatores de controle social e presso psicolgica presentes no
ambiente de terror do cenrio onde predomina a cultura do medo, um cenrio com um clima
de tons cinzas e opacos, no qual predomina o silncio, pois uns calam porque lhes falta a voz e
outros por medo de punio exemplar. 132
A imposio do medo, portanto, um objetivo central nas experincias de TDE e que
visa causar atitudes de paralisia, resignao, silenciamento e indiferena da sociedade civil diante
dos grandes problemas da realidade. A aplicao da pedagogia do medo refora o carter
onipresente do TDE (veja-se, de forma figurada, a imagem do Anexo I). O efeito combinado da
explorao econmica, da possibilidade da represso fsica, do rigoroso controle dos espaos de
expresso e de atuao poltica, sindical e comunitria da cidadania e da desinformao
predominante intensifica a incerteza e a insegurana. Tambm pode promover certa
cumplicidade, sobretudo quando se sinaliza ao cidado comum que sua segurana pessoal
depende dele assumir postura de apoio incondicional e de colaborao com o regime.133
Se a disseminao do medo possui tamanha centralidade, conseqentemente, o fator
psicolgico cumpre um papel fundamental no superdimensionamento das ameaas e dos temores
que podem produzir desequilbrios psquicos desestruturadores das defesas internas das pessoas.
131
98
ANEXO I
Vista al frente
Membros da Policia Federal Argentina observando o trabalho de um fotgrafo
Fotografia de Eduardo Longoni Dezembro de 1982
99
134
135
100
potenciais inimigos de reserva, o que permite manter o alerta permanente do regime de SN. No
fundo, a represso estatal necessita contar com o inimigo, pois a presena deste justifica sua
razo de ser. A DSN o associa, primeiramente, esquerda armada. Mas, diante da derrota desta
ou de sua ausncia, outros grupos de risco so destinados a ocupar o seu espao e a
desempenhar tal papel. O TDE procura a coeso forada da sociedade ao redor da rejeio desse
inimigo. Na lgica do TDE, significa dizer que, se ele inexiste, deve ser criado; e se ele for muito
dbil, deve ser superdimensionado. A existncia desses dissidentes ameaadores a justificativa
para que o Estado intervenha com violncia e possa acabar, em tese, com os antagonismos da
sociedade. Conseqentemente, para a DSN, cada cidado pode ser uma ameaa potencial para a
paz pretendida e, por isso, o Estado deve permanecer sob constante alerta.
Por outro lado, o inimigo deve ser apresentado com contornos indefinidos porque assim
pode ser qualquer um de ns, o que deixa a populao civil refm dessa lgica perversa,
fragilizando-a diante do Estado e expondo-a frente a uma arbitrariedade que justificada,
paradoxalmente, em nome da prpria segurana do cidado. Frente ao inimigo interno, esperase que o resto da sociedade compreenda o esforo do sentinela e colabore. A retrica sobre o
inimigo interno complementa-se com outra de signo oposto. Nela, policiais e militares,
protagonistas e agentes da defesa dos valores e dos princpios da sociedade colocada sob ameaa,
so identificados como salvadores da ptria, heris e vtimas da violncia subversiva. Para o
cidado comum, alvo da violncia irradiada e com alguma conscincia disso, deve parecer um
tanto esquizofrnico: os quadros repressivos so apresentados como heris e salvadores da
ptria. No caso uruguaio, com um agravante: o de serem apresentados como heris na melhor
tradio artiguista.136
O binmio DSN-TDE cobra a participao de todo cidado na luta contra a subverso
e contra todos os inimigos internos, os do presente e os que, no presente, esto sendo
incubados para o futuro. Na lgica do binmio, a equao simples: o indivduo est com o
Estado e colabora com ele ou, ento, vira suspeito. A conscincia que o cidado comum possa ter
de virar suspeito, em si, j ajuda a isolar os inimigos internos. A insistncia do regime em
difundir que continua tendo inimigos (reais ou imaginrios) a enfrentar e que a sociedade
permanece ameaada, mesmo quando no h fundamento, cumpre funes polticas,
propagandsticas e psicolgicas. Uma delas a de manter a coeso do tecido social e da unidade
da Nao, atravs da continua sensao de perigo. Uma outra funo a de responsabilizar os
setores subversivos de todas as promessas no cumpridas pelo regime, assim como dos erros e
136
Referncia a Jos Gervasio Artigas, maior prcer uruguaio e referncia latino-americano das lutas
emancipacionistas e anticoloniais.
101
102
139
. A desconfiana, a
103
pela sentimento de inxilio e pelo temor persistente de cair nas malhas do TDE produz, em muitos
cidados, a percepo de se estar detido em um presdio que fisicamente tem uma configurao
espacial muito peculiar, a de ser uma rea limitada pelas paredes externas do sistema carcerrio
institucional e as fronteiras polticas do prprio pas. Ou seja, a situao de se estar
incomunicado fora do presdio. Quer dizer, sentir-se prisioneiro fora do crcere (para afuera).
Em suma, na penitenciria propriamente dita esto os presos polticos; fora dela, sofrendo o
cotidiano discricionrio, importantes contingentes da populao tambm se sentem prisioneiros.
o exlio experimentado sem abandonar o prprio pas; a situao de acostumar-se ausncia
dos que partiram para o exterior, esto presos ou mortos. Como lembra o escritor, ento exilado,
Mario Benedetti ao comparar sua situao com a dos inxiliados: Todos estuvimos amputados:
ellos de la libertad; nosotros del contexto. 143
Um sexto elemento marcante a poltica de controle. Nos regimes repressivos, a
ampliao das funes de vigilncia a uma escala que, para o cidado comum, pode tornar-se
insuportvel; mais ainda, na medida em que isso concomitante perda de mecanismos de
neutralizao e normatizao, por parte do Poder Judicirio e da sociedade civil, sobre as funes
estatais de patrulhamento, seguimento e espionagem. No caso dos regimes de SN, a atividade da
comunidade de informaes (levantamento, processamento e circulao de informao) foi
intensa e, apesar de que h analistas que consideram um mito a eficcia das mesmas, o fato que
foram estruturas macrocfalas cuja atuao acentuou o clima de insegurana e temor.
Nas experincias de TDE, a vigilncia seletiva de pessoas, grupos de ativistas,
familiares dos mesmos e familiares de presos polticos estabelece forte controle coercitivo, sendo
que a delao144 , ou sua possibilidade, espreita ainda mais as ilhas de segurana que os setores
visados tentam preservar. Para tanto, um exrcito de informantes, delatores, espies e agentes
infiltrados se espalha por toda parte: locais de estudo, de trabalho, de transporte, de lazer.
Concomitantemente, a violao da privacidade mnima mediante o controle da correspondncia,
142
104
Ximena Barraza o pseudnimo de Paulina Gutierrez, autora do texto Notas sobre a Vida Cotidiana numa
Ordem Autoritria, escrito em Santiago do Chile, em 1979. Informao de Alejandra Pascual, op. cit., p. 61.
146
BARRAZA, Ximena. Notas sobre a vida cotidiana numa ordem autoritria. In: MAIRA, Lus; SOUZA,
Herbert J. de; ANDRADE, Regis de C.; PORTANTIERO, Juan, C.; BARRAZA, Ximena. Amrica Latina.
105
106
sufocante, sobretudo nos anos mais cinzentos desses regimes repressivos; para muitos, a
sobrevivncia tem como contrapartida, o abandono da convivncia social, da atividade militante
e da possibilidade do exerccio do debate crtico. A aplicao da pedagogia do medo, que
resulta numa cultura do medo, produz o silenciamento e o isolamento dos indivduos e mais
eficiente se torna quando induz ao autosilenciamento e ao auto-isolamento de cidados
temerosos e desesperanados. Portanto, nas experincias de TDE, a combinao da violncia
direta (ativa) com a violncia irradiada (potencial), mecanismos componentes da pedagogia do
medo, produz medo e temor e, pelo exemplo, educa na atitude passiva, submissa, indiferente
e, se for possvel, coopta para o colaboracionismo.
Cabe perguntar, agora, em que contexto se deram as experincias concretas dos regimes
de Segurana Nacional no Cone Sul, os quais instrumentalizaram um Estado que apelou para o
terror como mecanismo de reordenamento da sociedade. Articulando o que j foi descrito sobre a
DSN, os interesses dos EUA e os aliados internos na regio, pode-se apontar alguns elementos
explicativos. Um deles refere-se expanso particular do capitalismo desde o final da Segunda
Guerra Mundial, o que produziu um efeito desagregador nas estruturas sociais da periferia
mundial e o esgotamento de economias que foram reconvertidas para atender os novos padres
de acumulao. Isso muito claro em relao s economias que se haviam industrializado
atravs da poltica de substituio de importaes, casos da Argentina e do Brasil, assim como,
de forma secundria, do Chile e do Uruguai. Essas matrizes produtivas foram alvo do
capitalismo internacional, particularmente o estadunidense. No surpreende, ento, que, durante
os anos de apogeu da DSN na regio, quando da implantao das ditaduras civis-militares, com a
particular exceo do Brasil, tenham sido estimuladas as polticas de privatizaes,
desnacionalizaes, abertura das economias nacionais aos grandes monoplios internacionais e
de endividamento externo.
A existncia concreta de crescente desigualdade e injustia social foi, independente das
especificidades nacionais, um marco comum nas formaes sociais latino-americanas, com
acentuada inflexo a partir do final dos anos 50. As decorrentes tenses sociais estiveram
emolduradas no contexto planetrio da Guerra Fria e, de forma especial, pelo impacto da
Revoluo Cubana. As exigncias de mudanas profundas, estruturais, promovidas por fortes
movimentos sociais populares, levou os setores dominantes e seus scios estrangeiros a
107
desenvolver uma percepo de insegurana para sua privilegiada situao poltica e econmica.
A instrumentalizao da ameaa do Comunismo Internacional proporcionou queles setores a
oportunidade para apresentar s sociedades nacionais dois campos bem definidos e antagnicos.
O deles defendia os valores democrticos, cristos e ocidentais; o outro lado era o dos agentes
nocivos alinhados com os valores do atesmo, do marxismo e do totalitarismo.
A radicalizao de tenses, a polarizao de foras e o desgaste da dinmica poltica solapada pelo aprofundamento da crise econmica que perpassou, com matizes nacionais
variados, a dcada de 60 - levaram os setores dominantes da regio a apelar, paulatinamente, s
foras de segurana, concedendo-lhes crescente protagonismo e prerrogativas com o
compromisso de que protegessem a ordem e o status quo vigentes e to questionados. A procura
de sadas de consenso e de proposio de dilogo foi sendo abandonada em benefcio de uma
espiral repressiva progressiva. Na medida em que os objetivos fundamentais foram acabar com
as aspiraes de mudana social, eliminar as formas de organizao popular e o nvel de
conscincia e militncia poltica, o projeto de institucionalizao de um regime que garantisse
uma paz armada duradoura e que pudesse salvaguardar a ordem vigente foi ganhando adeses,
alm de receber sinalizaes positivas dos EUA.
Veja-se, ento, que, para impor a violncia do mercado que exige a reestruturao das
economias nacionais perifricas e o disciplinamento da fora-de-trabalho e dos movimentos
sociais, deve-se apelar para uma violncia estatal indita. A originalidade dos regimes de SN do
Cone Sul est na juno do Estado repressivo com a exigncia de abertura dos mercados
nacionais pelos setores econmicos internacionalmente hegemnicos.
A dinmica repressiva desencadeada teve caractersticas diferentes daquelas aplicadas
em experincias anteriores de regimes autoritrios. Segundo Abos a mera represso dos quadros
opositores era insuficiente, pois havia uma classe trabalhadora com grande experincia poltica
acumulada com possibilidades de substituio geracional; frente a ela, os mecanismos
coercitivos tradicionais mostraram-se inteis, pouco eficientes. Impunha-se uma nova concepo
repressiva apoiada na DSN, na percepo da guerra interna e na estratgia da contrainsurgncia. Por conseguinte, implementou-se um programa de interveno que se multiplicou
na regio desde o incio dos anos 60 e que ampliou a criminalizao dos movimentos sociais, a
eliminao da possibilidade de recrutamento de novas lideranas, quadros e simpatizantes, e a
ao sobre o conjunto da sociedade para desmobiliz-la. Essa interveno contou com a ajuda
dos EUA, os quais proporcionaram recursos econmicos, equipamentos e assessores
especializados, o que contribuiu na obteno de maior eficincia dos aparatos envolvidos no
108
148
109
comando repressivo. Nesse sentido, certamente o caso argentino foi o mais evidente.
Em perodos de forte restrio interna, havia uma posio ambgua, mas lgica;
externamente, o regime divulgava a imagem de respeito aos preceitos jurdicos enquanto que,
internamente, impunha, de modo acintoso, uma demonstrao de fora que exigia um controle
muito rigoroso sobre as conexes de informao do interior do pas com o mundo externo. Um
exemplo bem concreto, a esse respeito, foi a campanha oficial desencadeada pelo regime
argentino, em 1979, quando, diante da visita de uma delegao da Comisso Interamericana de
Direitos Humanos, foram espalhados milhares de cartazes, faixas e adesivos de automveis com
uma frase que, cinicamente, refutava toda denncia de violao das liberdades: Los argentinos
somos derechos y humanos.150
A ambigidade quanto s necessidades e s possibilidades de divulgao dos seus atos
introduz uma outra questo que mostra a diferena entre o terrorismo promovido por indivduos
ou grupos e aquele praticado pelo Estado. Do primeiro caso, faz parte, quase sempre, um modus
operandi que procura obter a maior publicidade possvel da mdia sobre seus feitos, como forma
de divulgar as razes da causa que defendem. Diferentemente, os agentes do TDE no tm esse
objetivo. Por um lado, porque possuem meios eficientes de intimidao, legais ou no,
legitimizados pelo Estado - a prpria capacidade de produzir violncia e semear medo causa
um impacto imediato e profundo sobre o corpo social. Por outro, porque a relao com os meios
de comunicao, como j foi apontado, est pautada por graus diversos de adeso ou de controle
(censura). Ou seja, uma imprensa inconveniente, ao interpretar os fatos autonomamente da
verso oficial, pode produzir tenses sobre situaes que convm ter sob controle; portanto, por
isso mesmo, so alvos estratgicos imediatos do TDE.
Entre as modalidades mais especficas do TDE promovido pelos regimes de SN do
Cone Sul, podem salientar-se, respeitando as especificidades nacionais, o uso massivo da tortura,
a presena de esquadres da morte, os desaparecimentos e a internacionalizao do sistema
repressivo. A tortura j era um mecanismo conhecido e utilizado h muito tempo na regio; a
novidade decorreu da criatividade dos especialistas em realiz-la e na incorporao de avanos
tecnolgicos na metodologia de execuo. O mais importante reconhecer seu uso massivo e
significativamente indiscriminado, a evoluo no refinamento da sua aplicao com a
contribuio do que foi identificado como dimenso da tortura psicolgica. Tambm se deve
150
Um dos locutores esportivos mais populares da poca, Jos Mara Muoz conclamava a populao, com um
discurso fortemente patritico, a dar uma resposta aos mentirosos que denunciando a ditadura no exterior,
haviam motivado a vinda dessa delegao. Muoz virou um porta-voz enftico: Vayan y muestren a esos
seores da la Comisin Interamericana de Derechos Humanos cual es la verdadera cara de la Argentina. Era
necessrio convenc-los de que os argentinos no s respeitavam os direitos humanos como, acima de tudo, eles
110
111
Triple A argentina); entretanto, sempre agiram de acordo com um comando que, se no era do
prprio governo, pertencia a setores chaves da sua cpula. Alm disso, algumas argumentaes
procuraram explorar a presena desses grupos para convencer a opinio pblica de que os
mesmos haviam desobedecido ordens, produzindo uma quebra de comando; tal argumento
visava diminuir as responsabilidades dos setores dirigentes, realmente envolvidos na represso
estatal e que usavam o subterfgio dos excessos gerados pelos subalternos e, sobretudo, pelos
esquadres da morte, ou pelo descontrole no funcionamento do aparato em determinadas
conjunturas.
Na sua essncia, esquadres da morte e grupos paramilitares constituram organizaes
secretas que seqestraram, torturaram e eliminaram os inimigos do Estado. s vezes, podiam
estar integrados por foras irregulares ou fora de funo; contudo, sem dvida, sempre estavam
sob controle estatal (apesar da negao das autoridades). Espalharam-se pela Amrica Latina a
partir dos anos 60, sendo os primeiros pases que sofreram sua ao a Repblica Dominicana, o
Brasil e a Guatemala. Tais organizaes secretas foram estruturas que, em vrios casos,
sobreviveram ao fim dos regimes de SN, adequando-se aos novos tempos e privatizando seus
servios - no raramente, sob a feio de esquadres de extermnio. 153
Um fato comum Argentina, ao Chile e ao Uruguai que, consumados os golpes
sofridos, os grupos paramilitares diluram-se, imediatamente, no interior das foras repressivas
do prprio Estado. Isto significou que, continuaram praticando as mesmas aes e utilizando a
mesma metodologia terrorista, s que, a partir desse momento, com o estatuto da legalidade
legitimadora de um Estado sem limites repressivos. Ou seja, consumado o golpe, as estruturas
repressivas ilegais - o Estado Clandestino - foram blanqueadas. Mas, no caso argentino,
principalmente, manteve-se uma duplicidade de estrutura repressiva (uma legal e outra
clandestina), situao que o Centro de Estudios Legales y Sociales (CELS) denominou de
Paralelismo Global.154 Isso consistiu, na prtica, na coexistncia de uma violncia de base legal
(mesmo que fosse a legalidade da Junta Militar), com outra lgica de dinmica repressiva,
tambm pertencente ao Estado, apesar de no ser assumida como tal. Esta ltima permitiu
organizar e armar, no interior das foras de segurana, unidades separadas entre si que agiam
com total autonomia e impunidade, alm de ter as mos livres para selecionar as vtimas,
estratgia esta que apresentava diversas vantagens para o regime: era uma rede difcil de infiltrar,
153
Ver a esse respeito, BICUDO, Hlio. Meu depoimento sobre o Esquadro da Morte. So Paulo: Pontifcia
Comisso de Justia e Paz de So Paulo, 1978 e BIOCCA, Ettore. Estratgia do Terror. Lisboa: Iniciativas
Editoriais, 1975.
154
CELS. El caso argentino: desapariciones forzadas como instrumento bsico y generalizado de una
poltica. La doctrina del paralelismo global. Su concepcin y aplicacin. Necesidad de su denuncia y
112
justamente, pela sua natureza descentralizada; era imune influncia dos familiares das vtimas
que detinham cargos chaves no governo; permitia ao governo negar sua responsabilidade nas
violaes dos direitos humanos.
O sistema repressivo do regime de SN argentino teve, assim, como marca maior o
Paralelismo Global:
[...] las Fuerzas Armadas optaron por llevar adelante sus operaciones en forma
clandestina, de manera paralela pero con sometimiento global a la conduccin
militar y poltica del Estado. Esto es lo que hemos dado en llamar paralelismo
global.[...]
El paralelismo se da en la totalidad de las estrutcturas de decisin y ejecucin
organizadas celularmente y con carcter secreto. Paralelismo tambin en los
mtodos de accin: en las detenciones, en la investigacin y en la aplicacin de
penas. 155
Se o Paralelismo Global foi uma especificidade argentina, foi fato comum na regio e a manifestao mais inovadora do TDE de SN - a promoo do desaparecimento,
principalmente dos militantes considerados mais perigosos entre aqueles que faziam parte do
impreciso campo dos inimigos internos. 156 O desaparecimento de pessoas foi a maior
metfora do poder total do TDE. Diferentemente da tortura e dos esquadres da morte,
manifestaes intensas e comuns em toda a regio, a modalidade do desaparecimento variou
em cada pas, mas se verificou em todos eles. Constituiu um mtodo repressivo de novo tipo,
onde a eliminao fsica, o ocultamento do corpo das vtimas e a negao de tudo isso se
transformaram em elementos bsicos da violncia irradiada pelo TDE. Efetivamente, seus
efeitos extrapolaram o meio mais restrito das vtimas e projetou-se pelo corpo social,
contribuindo com o objetivo de atemorizar e paralisar a reao e o protesto contra o regime. 157
Como modalidade repressiva, a prtica dos desaparecimentos se beneficiou da situao
extremada de ausncia do controle judicial e de desconhecimento de toda e qualquer norma
constitucional, o que possibilitou dispor das vtimas com a certeza da impunidade e do mutismo
ou diversionismo oficial. Os responsveis por esses crimes hediondos freqentemente
alegaram que o desaparecido podia ser um subversivo que teria fugido do local de deteno, sido
vtima de vingana interna da sua prpria organizao, passado para a clandestinidade ou, ento,
condena. Conclusiones y recomendaciones. Buenos Aires: 1981.
155
CELS. El secuestro como mtodo de detencin. Buenos Aires, s. d.
156
Como expressava o general Acdel Vilas, responsvel pela Operao Independncia contra a guerrilha do
ERP, em Tucumn (fevereiro de 1975): un ao antes del golpe de Estado que derrub Isabel Pern decid
separar en tres grupos los guerrilleros, de forma tal que los ms peligrosos e importantes nunca llegasen a prisin
[...]. Entre estos ltimos, y para evitar riesgos intiles, muchos eran retenidos en Famall [centro clandestino de
deteno], procediendose a su interrogatorio hasta que dejasen de tener utilidad. GARCA, Prudencio. El drama
de la autonoma militar. Argentina bajo las Juntas Militares. Madrid: Alianza Editorial, 1995. p. 405.
157
PADILLA BALLESTEROS, op. cit.
113
114
115
operrias.
Durante a dcada de 60, a presena encoberta da CIA, no Uruguai, era extremamente
ativa, tendo seu quartel geral na prpria embaixada dos EUA e estando conectada diretamente
com a cpula policial e com alguns ncleos do Poder Executivo, como denunciado pelos exagentes, Philipp Agee e Manuel Hevia, este ltimo, agente cubano infiltrado na misso que
atuava no Uruguai. O ponto alto da qualificao repressiva da polcia local, com orientao de
mtodos ilegais, foi em 1970, quando da participao do agente Dan Mitrione, especialista em
tcnicas de tortura. importante salientar, mais uma vez, que essas atividades invisveis
(encobertas) de treinamento policial de sofisticadas tcnicas de interrogatrio e a transmisso
de novas experincias no combate contra-insurgente ocorreram ainda sob regime que, em tese,
era democrtico. Portanto, antes do golpe de Estado, j eram apreciveis as iniciativas
implementadas tpicas de TDE, embora ainda no de forma global, como uma poltica
abrangente e orgnica de Estado. A violao das leis e a ilegalidade em que ora se movia o
Poder Executivo antecipava o cenrio vindouro:
En la violencia estatal aplicada desde 1971 contra la guerrilla, exista un
excedente totalmente gratuito, no haba relacin entre los objetivos a lograr disuadir o vencer - y el grado de brutalidad empleado. El sufrimiento, la
humillacin, la mutilacin, la muerte, no eran infligidos por bandas de
delincuentes o marginados, si no por funcionarios pblicos, policiales y
militares, en instituciones estatales. 163
Era o incio da formao de uma burocracia que obedecia e procurava ser eficiente no
exerccio de impor restries de todo tipo populao. A instaurao e consolidao da ditadura
levou utilizao de mltiplas modalidades repressivas como forma de disciplinamento e
controle poltico e social da comunidade, atravs da disseminao da pedagogia do medo.
Paralelamente, o sistema de excluso, via recluso, cumpriu uma funo especfica
sobre a populao carcerria, atravs do rigor das penas, da arbitrariedade e da tortura. O
objetivo era quebrar o prisioneiro, experimentando novas formas de represso enquanto,
paralelamente, se dava treinamento s unidades de custdia e se aumentava a difuso do terror
ao resto da populao, humilhando e constrangendo os familiares durante a rotina das visitas.
Uma peculiaridade do TDE uruguaio que ele continuou sendo aplicado contra a
populao carcerria at o final da ditadura. No bastou prender. Sua ao persistiu; a guerra
interna contra a populao carcerria nos estabelecimentos de Libertad ou Punta de Rieles
(novos cenrios do conflito, segundo os responsveis pela poltica repressiva) permitia forjar
novas geraes de vitoriosos soldados que assim eram incorporados e integrados, em nova fase
116
da luta contra o comunismo internacional, nessa grande epopia de defesa da ptria. Por detrs
dessa retrica, havia uma questo central: garantir uma postura monoltica da corporao,
tornando as novas geraes de soldados e de oficiais comprometidos, solidrios e associados
com os atos e responsabilidades daqueles que participaram diretamente do desencadeamento e
instalao inicial do TDE e da imposio da ditadura cvico-militar.
Quem no estava preso, ressentiu-se com a existncia de uma liberdade
profundamente vigiada e controlada, alimentando a cultura do medo espalhada por todo o
pas. A populao livre sofreu tentativas de cooptao, embora os resultados de adesismo no
tenham sido significativos. Em contrapartida, de forma geral, ela teve que enfrentar a imposio
de um clima de temor que induzia a assumir atitudes de resignao, silncio e submisso. Da
sobreposio de espaos e dinmicas que, com caractersticas diferenciadas - mas
complementares -, atingiam presos polticos e populao livre, resultava uma cultura da
indiferena, conformista, desmobilizadora reforada por frases que se transformaram no
registro de um senso comum imobilizador, alienado e fruto do medo: no te mets; hay que
quedarse en el molde; si lo metieron es porque algo habr hecho; aqu no pasa nada. 164
Como dado final desta primeira aproximao especificidade do estudo de caso em
questo deve frisar-se que o Uruguai foi o pas da regio que teve, proporcionalmente, maior
nmero de cidados desaparecidos e/ou mortos (incluindo as crianas) no exterior do que dentro
das suas fronteiras nacionais, o que confere ao TDE ali implementado mais uma expressiva
singularidade. Isso leva a avaliar que a participao uruguaia na coordenao repressiva
internacional no se restringiu a aes isoladas contra alvos selecionados; em realidade, foi uma
verdadeira caada humana, uma operao sistemtica de grandes propores, produzindo o
pnico e o terror entre a enorme comunidade exilada ou afixada, principalmente na Argentina.
Esse dado ajuda a dimensionar o grau de integrao entre os comandos uruguaios que atuaram
naquele pas e as autoridades gerais e intermedirias do mesmo. Buenos Aires e algumas outras
cidades argentinas foram uma espcie de rea de extenso do brao repressivo da ditadura
uruguaia, como se fosse, quase, mais uma zona interna para a aplicao das aes da poltica
repressiva; a esse ponto chegou o grau de colaborao entre as ditaduras rioplatenses.
163
164
117
O Terror de Estado dos regimes de Segurana Nacional do Cone Sul teve como um dos
seus componente fundamentais a mencionada contra-insurgncia. Esta resultou da apropriao
de um conjunto de experincias repressivas acumuladas desde o final da Segunda Guerra
Mundial, que foram sendo sofisticadas e refinadas a cada nova aplicao concreta. O
desenvolvimento da contra-insurgncia acarretou a incorporao de novas contribuies
tecnolgicas para as aes repressivas, mecanismos para extrair informao e para criar novas
formas de controle social, inclusive no mbito da conscincia das pessoas. Assim, a utilizao
dos meios de comunicao de massa e a implementao da guerra psicolgica se tornaram to
estratgicos quanto a incorporao das novas tcnicas de contra-insurgncia e o acesso a armas
e equipamentos militares adequados para os desafios da guerra interna. A ostentao de
equipamento tecnolgico intidimatrio e operacional potencializa o medo coletivo, o que se
torna mais efetivo quando os primeiros resultados do embate contra as foras de oposio e
resistncia comeam a mostrar a disparidade de foras e a eficincia da violncia estatal
aplicada em escala ilimitada. Grande parte deste sucesso deve ser creditado aos EUA pela
transmisso doutrinria da DSN, pela preparao das unidades mobilizadas na guerra interna,
pelo fornecimento de apetrechos blicos adequados e treinamento operacional, e pelo suporte
material de fundo, seja na forma de linhas de financiamento, facilitao de pagamentos ou, at,
de ajuda a fundo perdido na luta hemisfrica anticomunista.
A responsabilidade dos EUA na promoo, sustentao ou apoio direto desses regimes,
portanto, mais do que evidente. Seus interesses econmicos, estratgicos, polticos ou militares
esto presentes em todas as experincias concretas de SN da regio. No incio dos anos 60, sob a
administrao Kennedy, os EUA estabeleceram as diretrizes da estratgia contra-revolucionria
para a Amrica Latina; entre elas destacavam-se a promoo de aes para a reforma social, o
aumento da capacidade preventiva e ofensiva da contra-insurgncia e a criao de um sistema
hemisfrico de controle e represso. As duas primeiras orientaes foram encaminhadas atravs
da Aliana para o Progresso (ALPRO), articulao poltico-institucional que condicionava, em
troca da ajuda financeira norte-americana, a subordinao dos governos latino-americanos aos
interesses da potncia. O intuito era oferecer recursos para viabilizar projetos de combate e
erradicao das mazelas sociais nas esferas da sade, educao, habitao e trabalho. Visava-se,
com isso, esvaziar os focos de tenso e de degradao social existentes, estabilizando o domnio
das elites locais e protegendo os interesses dos EUA.
A Carta de Punta del Este (1961) - documento que delineava suas aes e recomendava
118
medidas concretas no plano social e a implementao de uma poltica cultural de reforo dos
valores e princpios ocidentais, cristos e democrticos - diminuiu e reverteu a receptividade e as
simpatias desenhadas pelas aes e idias das organizaes guerrilheiras junto aos setores
mdios e populares. Esta batalha para seduzir os coraes e mentes ganhava importncia para
os EUA, em funo da projeo sobre o continente latino-americano das experincias da
Revoluo Cubana e da Guerra do Vietn, assim como as reivindicaes fermentadas nas
manifestaes estudantis dos anos 60.
Paralelamente, estabeleceu-se uma outra base de sustentao da relao dos EUA com a
regio e com o resto do mundo, devido ao crescimento potencial do risco revolucionrio em
escala mundial, o que marcou a converso da estratgia de defesa hemisfrica, pactuada no
Tratado do Rio (1947), para o de ameaa interna. O aumento substancial da ajuda militar e
policial aos governos aliados da Amrica Latina permitiu que a esfera militar recebesse
treinamento em programas de contra-insurgncia na Escola do Exrcito Estadunidense para as
Amricas, na Zona do Canal do Panam (territrio estadunidense na poca), assim como em
instituies semelhantes nos EUA. Em 1962, a administrao Kennedy criou a Oficina de
Segurana Pblica (Office of Public Safety), que ministrou instruo de foras policiais na ao
repressiva contra movimentos populares de pases do Terceiro Mundo, aprofundando a parceria
com interlocutores latino-americanos e do sudeste asitico.
No mesmo ano, surgiu a Academia Inter-americana de Polcia (Inter-American Police
Academy - IAPA), tambm na Zona do Canal (Fort Davis), e diretamente vinculada CIA. A
prpria Diviso Hemisfrica da CIA foi reformulada e ampliada a partir do fracasso da invaso
militar da Baia dos Porcos (1961). Por tais centros, deve-se ressaltar, passaram parte daqueles
quadros que posteriormente dirigiram as foras de segurana dos seus respectivos pases, que
retransmitiram os fundamentos da DSN e montaram os sistemas repressivos no interior das
ditaduras de SN e sua expresso transnacional, a Operao Condor.
A crescente opo contra-insurgente estadunidense ficou evidenciada, principalmente,
pelo Informe Rockfeller sobre as Amricas (Informe Sobre a Qualidade de Vida nas
Amricas) 165 , onde uma das sentenas mais categricas foi o reconhecimento de que: No h
pas hoje em dia que possa efetivamente proteger sua prpria segurana interna por si s. Ou
seja, a cooperao hemisfrica foi vista como urgente e de vital importncia para os interesses
165
Na visita que realizou em diversos pases latino-americanos, em 1968, Nelson Rockfeller articulou um novo
reordenamento de estratgias a serem seguidas nos pases atingidos por tenses desagregadoras. Das suas
orientaes, recolheu-se uma acentuada nfase no quesito segurana, enquanto eram abandonados, quase que
completamente, as orientaes sobre a reforma agrria e a distribuio da terra, proposies pontuais da ALPRO.
O abandono das mesmas, mais do que constatar o fracasso daquela estratgia de preservao da democracia -
119
dos EUA. Assim, definiu-se a nfase na segurana interna e hemisfrica diante da constatao de
que a URSS e Cuba exploravam as frustraes crescentes resultantes da pobreza e da
instabilidade poltica regional. De forma concreta, o documento sugeria o reforo da segurana
hemisfrica recomendando: 1) programas de treinamento para as foras de segurana e a
implementao da ao repressiva; 2) criao de um Conselho de Segurana Hemisfrica; 3)
ajuda material (equipamento militar) para mobilidade e apoio; 4) misses de treinamento tcnico
e militar; 5) facilidades na venda de material blico convencional.166
A poltica externa dos EUA, atravs do Informe Rockfeller, sinalizou para a
necessidade de reforar a maquinaria repressiva, desenvolver um Estado policial, continuar a
construo de uma rede hemisfrica de inteligncia e represso e, se fosse necessrio, fomentar a
idia de interveno militar. A ecloso de golpes de Estado e a instalao de ditaduras civismilitares nos pases de forte ativao social prvia resultaram da combinao de trs fatores: a)
as presses dos setores dominantes diante da ameaa do esfacelamento das estruturas polticas e
do profundo questionamento da ordem vigente; b) a interpretao e a aplicao dos preceitos da
DSN; c) o amadurecimento das condies para desencadear violenta poltica repressiva (o TDE).
Schulz afirma ainda que o Informe explicitava o que, desde o governo Kennedy, j fazia parte da
poltica secreta dos EUA para a regio: a construo de uma rede hemisfrica de inteligncia e
represso. 167
Desta forma, os EUA desempenharam um papel central na consolidao dessa nova
ordem e, particularmente, desenvolveram quatro formas de apoio aos governos que utilizaram o
TDE para viabilizar o enquadramento interno:
mesmo que restritiva -, apontava a nfase da resoluo das contradies sociais atravs do uso da fora.
166
EL INFORME ROCKEFELLER. Cuadernos de Marcha, Montevideo, n 33, enero 1970.
167
SCHULZ, op. cit., p. 125.
120
168
O principal produto da relao que os EUA estabeleceram com a Amrica Latina foi a
formao de geraes de futuros oficiais das foras armadas da regio que introjetaram atitudes
polticas internas favorveis aos Estados Unidos.171 Coraes e mentes foram conquistados
com relativa eficincia, embora no todos; diante da bandeira do anticomunismo, a influncia
dos EUA se fez sentir e muitos oficiais policiais e militares tornaram-se hostis a qualquer
proposta de mudana da sociedade, reformista ou revolucionria.172 A conivncia do governo
estadunidense com as prticas de TDE foi muito mais do que uma postura de omisso diante do
desrespeito dos direitos humanos. Por exemplo, a aceitao, por parte dos EUA, de que os
esquadres da morte no possuam relao com o Estado, mais do que dar suporte ao discurso
oficial, evidenciava uma imbricada relao de interesses. A mesma inferncia pode ser feita
168
Edward Herman exemplifica com a postura que os EUA assumiram diante do golpe militar de 1964, no
Brasil: suborno de setores polticos; cooptao de jornalistas e rgos de impressa; financiamento de edio de
livros e materiais de propaganda; acesso a redes de televiso; utilizao do American Institute for Free Labor
Development (AIFLD), apoiando o sindicalismo amarelo e golpista; presso sobre o establishment militar para
derrubar o governo Goulart; posicionamento de navios de guerra no litoral brasileiro como forma ostensiva de
incidir sobre o governo e de mostrar simpatias pelos setores golpistas. HERMAN, Edwards S. El patrocinio
estadounidense del terrorismo internacional: un examen general. In: PIETERSE, Jan et al. Terrorismo de Estado.
El papel internacional de EEUU. Navarra: Txalaparta, 1990. p. 76.
169
Alm do acesso aos manuais e s obras doutrinrias norte-americanas, h outras fontes para a formao dos
militares latino-americanos: Reconozco, y lo digo con orgullo, que desde antiguo vena prestando atencin a
los trabajos sobre el particular [luta contra-insurgente] editados en Francia - y traduzidos en la Argentina o
Espaa - debidos a oficiales de la OAS y el Ejrcito Francs que luch en Indochina y Argelia. En base a la
experiencia recogida a travs de estos clsicos del tema y el anlisis de la situacin argentina, comenc a
impartir rdenes, tratando siempre de preparar mis subordinados. Porque, claro est, muchas vezes las rdenes
recebidas no se correspondan con lo que durante aos habamos aprendido en el Colegio Militar y la Escuela
Superior de Guerra. (Grifo do autor) Depoimento do general argentino Acdel Vilas (GARCA, op. cit., p. 404).
Veja-se a tenso existente entre os limites institucionais das foras armadas e uma interpretao subjetiva da
realidade do pas, por parte de um militar que encaminha decises inconstitucionais, antes do perodo militar.
170
A dimenso desta operao pode ser aferida em dados concretos. Entre 1973 e 1980, os EUA venderam mais
de 66 bilhes de dlares em armamento aos pases do Terceiro Mundo. Desde 1950 mais de 500 mil policiais e
militares de 85 pases foram treinados na Escola da Amricas (Army School of the Americas), no Panam, e em
outros estabelecimentos semelhantes dos EUA. Enormes investimentos procuraram montar, melhorar e recuperar
sistemas de comunicao policiais e militares nos Estados terceiromundistas considerados aliados. HERMAN,
op. cit., p. 80.
171
HERMAN, op. cit., p. 80.
121
Idem.
MIR, op. cit., p. 377.
122
175
123
124
CAPTULO 2
OS ESTADOS UNIDOS E A PENTAGONIZAO
DA AMRICA LATINA
ROCKEFELLER, Nelson. As Condies de Vida nas Amricas. Relatrio de uma Misso Presidencial dos
Estados Unidos ao Hemisfrio Ocidental. Rio de Janeiro: Record, s. d. p. 43.
125
126
4
127
Idem, p. 12
RAMIREZ, Gabriel. Las Fuerzas Armadas uruguayas en la crisis continental. Montevideo: Tierra Nuestra,
128
1971. p. 6.
129
neste duplo desafio que se destacou o fator militar, instrumento que contribuiu
como fator tanto de conteno do expansionismo sovitico quanto de defesa e garantia do
controle sobre a zona de domnio econmico. Entretanto, o fator militar possuiu um ponto de
inflexo muito mais profundo atravs do denominado complexo militar-industrial, estrutura
produtiva resultante do enorme esforo de guerra realizado pelos EUA e que, uma vez
concludo o conflito, no foi reconvertido para tempos de paz, tornando-se, gradativamente,
no principal plo dinmico do poder econmico dos EUA. A produo blica no s manteve
uma dinmica prpria como, ao desempenhar um papel determinante no aumento do potencial
industrial dos EUA, subordinava outros setores industriais e manteve como setor-chave da
atividade econmica e da pesquisa industrial. 9 Ou seja, passou a ser o motor e centro
nevrlgico da estrutura do capitalismo estadunidense de ps-guerra e, conseqentemente, um
setor fundamental da reestruturao capitalista planetria.
A partir deste cenrio, a pentagonizao da Amrica latina extrapolou, enquanto
focalizao do tema segurana, o objetivo puramente militar dos interesses dos EUA, tambm
se constituindo como meio concreto de ampliao de lucros. Assim, Ramirez admite que as
possibilidades de realizao de lucro atravs dos efeitos diretos e indiretos da
pentagonizao so mais amplos dos que reconhece Bosch, 10 que os limita ao interior da
metrpole (em relao Amrica Latina, os EUA). Ramirez entende que o pentagonismo
lucra dentro e fora das suas fronteiras:
El pentagonismo se afianza dentro y fuera de fronteras, cumpliendo entonces
objetivos dobles: balas, tanques, aviones, barcos, se fabrican en el pas
pentagonista y all mismo se recogen los fabulosos dividendos que producen
los contratos; pero ms lejos, all donde los materiales son utilizados para
sembrar destruccin y muerte, un nuevo puesto de avanzada imperialista se
establece y mayores ganancias se acumulan a favor del poder agresor. 11
130
13
REVELLO, Cecilia; PORRINI, Rodolfo; SCHOL, Alexis. Las Dictaduras Militares en Amrica Latina.
Montevideo: Las Bases, 1986. p. 15.
14
Idem, p. 16.
131
a)
militar-industrial norte-americano;
b)
BAUMGARTNER, Jos Luis; DURAN MATOS, Jorge; MAZZEO, Mario. Os desaparecidos. A histria da
132
Dentro desse grande marco mundial (a Guerra Fria), inquestionvel que a presena
sovitica (ideolgica, poltica e militar), em uma zona de tradicional influncia dos EUA,
assumiu, para estes, propores alarmantes e virou uma ameaa direta para os seus interesses. O
processo cubano virou paradigmtico para as formaes sociais perifricas, na perspectiva da
libertao nacional contra a histrica dominao econmica da regio, ampliando
significativamente a perspectiva da luta antiimperialista. Sem dvida, no quadro das condies
histricas do contexto latino-americano, o exemplo cubano revitalizou o objetivo da retomada do
projeto de soberania nacional, simultaneamente ao questionamento da hegemonia norteamericana. As lideranas polticas de oposio passaram a considerar seriamente as
possibilidades de reformas ou de rupturas com o sistema de dominao. Neste sentido, ocorreu,
ento, um intenso debate dentro dos setores progressistas, tanto das aes tticas quanto das
aes estratgicas a implementar. A experincia de Sierra Maestra funcionou como mola
propulsora de radicalizao social sem precedentes. A derrota norte-americana na invaso
Baa dos Portos (Playa Girn), em 1961, a opo do regime de Castro em acolher-se ao guardarepresso no Uruguai. Porto Alegre: Tch, 1987. p. 137.
133
chuva militar sovitico e os efeitos da crise do populismo exigiram das elites latino-americanas
dominantes a necessidade de manter, a todo custo, o controle do aparato poltico-institucional,
num cenrio de acentuada pauperizao dos setores mdios e populares e de radicalizao das
mobilizaes polticas.
A experincia revolucionria cubana exigiu dos EUA uma nova avaliao da situao
continental, pois, como nunca antes, seus interesses foram atingidos. Desafiado pela explicitao
do confronto ideolgico socialismo x capitalismo por quase todo o continente, o imperialismo
norte-americano reavaliou o perfil dos aliados necessrios na nova etapa de dominao. A ao
diplomtico-financeira-militar da grande potncia reconheceu que, no contexto latino-americano,
todo e qualquer movimento de afirmao ou reafirmao de soberania, independncia e
nacionalismo questionava sua projeo hegemnica e desestabilizava seus aliados locais.
Portanto, tais manifestaes deviam ser combatidas sem trgua.
A luta armada cresceu de forma considervel. A Teoria do Foco Revolucionrio
(Foquismo), desenvolvida por Rgis Debray e expressada por Che Guevara incendiou o cenrio
continental, influenciando inmeras organizaes revolucionrias que tinham na trajetria e
iderio do segundo, uma das bases permanentes de estmulo e mobilizao. O foco
revolucionrio, segundo Debray, era fundamental para o sucesso de um movimento guerrilheiro.
A ttica do foco visava uma ao expansiva que previa a organizao de grupos mveis e
colunas guerrilheiras constitudas por pequenas unidades flexveis e geis que deviam ganhar
para o movimento a simpatia camponesa em troca de proteo, organizao e colaborao nas
suas necessidades imediatas. Nesta perspectiva de luta, estava embutido o entendimento de que o
foco guerrilheiro devia manter-se autnomo em relao aos partidos polticos; no era o seu
brao armado, e sim, ao contrrio, o (futuro) partido revolucionrio em gestao. A nfase na
guerrilha (em detrimento da conduo dos partidos) explica as conturbadas relaes entre os
diversos grupos guerrilheiros e os partidos de esquerda, principalmente os Partidos Comunistas
(PCs), que reafirmavam o seu carter vanguardista e revolucionrio em detrimento das
organizaes armadas. Por outro lado, estas, apesar da tentativa de estabelecer conexes com os
movimentos sociais, acabaram, geralmente, isoladas e desconectadas do conjunto da sociedade talvez em funo da evoluo do prprio carter do sistema repressivo -, o que pesou
significativamente na sua posterior derrota.
A via cubana ao socialismo passou a constituir uma alternativa concreta para grande
parte da esquerda latino-americana. A luta armada (a guerra de guerrilhas) alastrou-se pela
16
134
regio. O marco histrico acelerou a radicalizao do processo. Os fatos evidenciam uma espcie
de roteiro de resistncia e insurreio popular, destacando, entre outros: a Campanha da
Legalidade no Brasil (1961); o surgimento da Frente Sandinista de Libertacin Nacional
FSLN - na Nicargua (1961) e de guerrilhas camponesas no Peru e na Colmbia; a radicalizao
de fraes do APRA no Peru - organizando o MIR; a expanso da luta armada pelo Brasil,
Argentina, Venezuela e Equador.17 No Uruguai, a partir da fuso de parte da estrutura dos
cortadores de cana de acar (caeros) da regio de Bella Unin com alguns militantes oriundos
do Partido Socialista, surge, na primeira metade dos anos 60, o Movimento de Libertao
Nacional-Tupamaro (MLN-T ou MLN), embora sua visibilidade s comece a ser registrada no
final dos anos 60. O MNL, a partir da adaptao da teoria do foco de Regis Debray, se constituiu,
durante algum tempo, como o principal paradigma de guerrilha urbana latino-americana at ser
destrudo militarmente em 1972.
A opo crescente pela luta armada contraps-se a outras formas de luta, como as que
eram parte, at ento, da tradio histrica dos PCs, de orientao sovitica - a percepo de uma
revoluo etapista e de alianas com fraes burguesas-nacionalistas. Tais divergncias
produziram rupturas e dissidncias dentro da esquerda; o alastramento da luta armada, em
diversos pases da regio, aumentou as divergncias que dividiam as esquerdas quanto
estratgia concreta a seguir para a conquista do poder.
O governo Kennedy solicitou e obteve o apoio da maioria dos governos latinoamericanos para a expulso de Cuba da OEA, em 1962. Assim, o isolamento do Estado
caribenho passou a ser pea importante na estratgia montada para impedir a todo custo a
expanso revolucionria continental. Como resposta vitria dos liderados por Fidel Castro, Che
Guevara e Camilo Cienfuegos em Cuba, a administrao Kennedy e seus aliados nacionais
decidiram enfrentar os dois problemas mais visveis. Ou seja, a presena de um inimigo
interno - na perspectiva do mundo bipolar - e as contradies sociais desestabilizadoras. Desta
forma, atravs da perspectiva da combinao Desenvolvimento e Segurana, traaram-se duas
grandes linhas de ao. A primeira, atravs da implementao da ALPRO, articulao polticoinstitucional que condicionava, em troca de ajuda financeira norte-americana, a subordinao dos
governos latino-americanos aos interesses da potncia. Tais governos receberam emprstimos
para aplicarem em projetos de combate e erradicao das mazelas sociais, visando esvaziar os
focos de tenso e degradao social existentes. Uma das experincias reformistas mais apurados
foi a do governo Frei no Chile, (1964-1970). Durante tal gesto, o Partido Democrata Cristo
17
BAUMGARTNER, Jos Luis; DURAN MATOS, Jorge. Amrica Latina: liberacin nacional. Montevideo:
Banda Oriental, 1985. 2 Vol. p. 213.
135
(PDC) implementou algumas medidas de cunho popular, como a reforma agrria, com a
pretenso de manter o controle no jogo democrtico-eleitoral e esvaziar as tenses que
alimentavam o crescimento da esquerda, assim como retirar desta parte da sua base de
sustentao. A Carta de Punta del Este (1961), documento norteador da ALPRO, apontava para a
necessidade de modernizar e homogenizar os sistemas de ensino dentro do quadro dos
programas econmicos acordados, assim como defendia a implementao de uma poltica
cultural de contra-insurreio que diminusse e revertesse a receptividade obtida pelas aes e
idias das organizaes guerrilheiras junto aos setores populares e aos setores mdios urbanos.
A segunda ao, bem mais agressiva e implementada a medida que fracassava a
aplicao dos objetivos da ALPRO, consistia na interveno (mais ou menos direta) do poder
militar norte-americano numa luta de contra-insurgncia que enfrentasse eficientemente qualquer
ao armada contestatria do status quo; seu objetivo deliberado era evitar a cubanizao
latino-americana. Desde 1962, funcionavam centros de preparao e treinamento contrainsurgente de militares da Amrica Latina dirigidos por especialistas dos EUA, como na Escola
Militar das Amricas. Por estes centros passaram parte daqueles quadros que, posteriormente,
dirigiram as foras policiais, militares e paramilitares dos seus respectivos pases; articularam
eficientemente os diversos golpes de Estado ocorridos no continente a partir de 1964;
estruturaram as decorrentes ditaduras de Segurana Nacional e montaram os brutais sistemas
repressivos internos e a futura rede repressiva internacional, a Operao Condor. 18
Na dana dialtica dos anos 60 e 70, deve-se reafirmar que os projetos de reforma,
revoluo e contra-revoluo perfilaram o grau de confronto e limite de tenso regional a que
haviam chegado os atores sociais e polticos. A anlise e discusso sobre a existncia de
condies objetivas para uma revoluo continental e a polmica sobre a realidade das
articulaes entre guerrilha, partidos polticos e movimentos sociais expressos no debate da
proposta do foco guerrilheiro de Regis Debray e na malsucedida experincia de Che Guevara na
Bolvia no devem esconder o fato de que foram mltiplas as formas de contestao e
organizao popular que se manifestaram, articuladas ou no. Sob certa forma, mantm-se at
hoje a polmica sobre qual o principal inimigo temido pela reao. A escalada repressiva das
posteriores ditaduras mostra que no se atingiu exclusivamente os segmentos da luta armada.
Embora a presena do fator guerrilheiro tenha sido o mais destacado pelas justificativas
18
Alguns dados sobre o nmero de militares do Cone Sul treinados nas escolas especializadas dos EUA no
perodo 1950-1979: argentinos (4.017), bolivianos (4.861), brasileiros (8.659), chilenos (6.883), uruguaios
(2.806) e paraguaios (2.018). Training of Foreign Military Personnel by the United States, Fiscal Years 19501979. In: KLARE, T.; ARNSON, C. Supplying Repression. U.S. Support for Authoritarian Regimes
Abroad. Apud: REVELLO; PORRINI; SCHOL. op. cit., p. 20.
136
golpistas, em geral, o objetivo principal foi a destruio extensiva de toda forma de organizao
e de resistncia dos movimentos populares, particularmente do movimento operrio e sua
estrutura sindical. Por outro lado, no foi pequena a surpresa da reao ao constatar que, alm de
marxistas de todo tipo, segmentos vinculados Igreja e ao Exrcito, duas tradicionais instituies
comprometidas na manuteno do status quo regional, tambm estavam dispostos a assumir o rol
protagnico da contestao.
Por exemplo, a Igreja Catlica latino-americana foi fortemente marcada, nos anos 60,
pelos desdobramentos do Conclio Vaticano II (1962-65), pela adoo de uma atitude
comprometida por parte do papado de Joo XXIII e pelas Conferncias Episcopal Latinoamericana (CELAM, 1966) e de Medelln (1968), mostrando a fora e vitalidade dos seus setores
progressistas. Como decorrncia disso, importantes segmentos catlicos avanaram na
perspectiva de uma maior vinculao orgnica entre a instituio e a luta dos excludos. Tudo
isto, dentro de um profcuo debate integrador entre Marxismo e Cristianismo.19 Portanto, o
nacionalismo catlico progressista se fez presente tanto atravs da incorporao poltica de
milhares de jovens nas jornadas de luta anteriores deflagrao dos golpes quanto naquelas
posteriores de resistncia s ditaduras de Segurana Nacional. A palavra Libertao sintetizou o
entendimento de que havia uma relao histrica de dominao e excluso a romper atravs de
aes conseqentes e de que, no contexto da poca, a violncia de baixo resultava da
violncia de cima. Na esteira de tais proposies, surgiram movimentos cristos que se
insertaram diretamente na luta social, como a Ao Popular (Brasil), o Movimiento de
Sacerdotes del Tercer Mundo (Argentina), os padres sandinistas (Nicargua), a Teologia da
Libertao e as Comunidades de Base (Brasil), assim como boa parte dos que constituram as
primeiras colunas montoneras (Argentina) ou do Ejrcito Nacional de Libertacin (Colmbia).
19
A aproximao entre Cristianismo e Marxismo resultou do esforo de certos intelectuais e religiosos que
acentuaram as semelhanas entre as duas doutrinas. Entre os fatores comuns destacam-se: o contexto comum que
se prolonga entre a Revoluo Industrial e a Revoluo Russa quando so elaboradas a Encclica Rerum
Novarum e o socialismo marxista; o forte questionamento ao carter desumano do capitalismo, contido na
Encclica citada e no Manifesto Comunista; o estabelecimento de paralelos entre o cristianismo primitivo e o
comunismo primitivo, assim como entre as trajetrias de Jesus Cristo e do Che Guevara; o entendimento comum
da necessidade do surgimento de um hombre nuevo; o uso da dialtica e do evangelho como instrumentos de
libertao dos homens; o reconhecimento do protagonismo dos setores sociais despossudos e uma perspectiva
terceiro-mundista.
Uma das maiores expresses latino-americanas desse esforo de sntese foi Camilo Torres, que afirmava: Es
necesario [...] quitarles el poder a las minoras privilegiadas para drselo a las mayoras pobres. Esto, si se hace
rpidamente, es lo esencial de una revolucin. [...] La revolucin, por lo tanto, es la forma de lograr un gobierno
que d de comer al hambriento, que vista al desnudo, que ensee al que no sabe, que cumpla con las obras de
caridad, de amor al prjimo no solamente en forma ocasional y transitoria, no solamente para unos pocos, sino
para la mayora de nuestros prjimos. Por eso la revolucin no solamente es permitida sino obligatoria para los
cristianos que vean en ella la nica manera eficaz y amplia de realizar el amor para todos. Mensaje a los
Crisitanos. In: CUADERNOS DE MARCHA. De Camilo Torres a Helder Cmara. La Iglesia en Amrica
Latina. Montevideo: Marcha, n 9, enero 1968. Veja-se, tambm, a srie de textos e documentos publicados nos
137
No Uruguai, durante os anos 60, em funo das novas discusses nos crculos
religiosos catlicos geradas a partir do Conclio Vaticano II, ocorreu a ciso do Movimento
Social Cristo. Dele retirou-se um importante setor que criaria o Partido Democrata-Cristo
(PDC). O mesmo estabeleceria uma agenda programtica marcada pela preocupao com as
mazelas sociais, com a crise econmica, com a escalada autoritria e com a ascenso de Pacheco
Areco em 1968, alm de alimentar o dilogo com setores democrticos de perfil popular. este
grupo poltico que prope, segundo testemunho de Juan Pablo Terra, uma das suas maiores
expresses polticas, a criao de uma frente poltica de partidos de centro-esquerda em junho de
1968, logo aps o governo Pacheco Areco impor as Medidas Prontas de Seguridad. 21 O PDC
acabou tendo protagonismo histrico ao ser uma das foras polticas fundadoras do Frente
Amplio (Frente Ampla) em fevereiro de 1971, justificando sua adeso da seguinte maneira: Hay
que desplazar del comando a la derecha poltica blanca e colorada, a la oligarqua econmica y a
los poderes extranjeros que pretenden manejarnos como cosa suya. 22 Tal afirmao demonstra a
iniciativa deste setor catlico quanto orientao assumida diante da escalada autoritria que,
assim como no resto da Amrica Latina, tambm se manifestava no Uruguai.
Em relao ao Exrcito, ocorreu, em alguns pases, a emergncia de setores
nacionalistas
questionando
grau
de
corrupo
de
subordinao
das
elites
internacionalizadas, o que pareceu aos olhos estadunidenses, o agravamento das ameaas que
Cuadernos de Marcha: Iglesia hoy (n 8); Medelln: la Iglesia nueva (n 17) e Iglesia y Socialismo (n 52).
20
TORRES, Camilo. La Revolucion, imperativo cristiano. Editorial Sandino, 1968. Contracapa.
21
Cf. captulo 3, item 3.2.1
22
Testemuho de Juan Pablo Terra citado por BAYLEY, Miguel. El Frente Amplio. Historia y documentos.
Montevideo: Banda Oriental, 1985. p. 25.
138
O caso chileno paradoxal para avaliar a terrvel disputa que se deflagra na caserna. O Exrcito chileno,
diante da ascenso da Unidade Popular, comeou a dividir-se a partir da vitria eleitoral de Allende em setembro
de 1970. Exatamente um ms aps a eleio, o Comandante em Chefe do Exrcito, general Ren Schneider,
constitucionalista e garantia da posse de Allende, aps uma mal sucedida tentativa de seqestro, foi assassinado
numa ao articulada entre a CIA e setores golpistas da direita chilena. Durante os mil dias do governo
Allende, na disputa surda que tomou conta da caserna, a oficialidade legalista foi sendo removida pelos setores
conspiradores, que ganharam espao, atravs de, segundo Eder Sader (cf. Um rumor de botas. A militarizao
do Estado na Amrica Latina. So Paulo: Editora Polis, 1982), uma poltica equivocada da administrao
Allende, que lhes fazia concesses em troca de duvidosas promessas de fidelidade constitucional. No trgico 11
de setembro de 1973, viu-se o tamanho da articulao que envolvia o Estado Maior das Forcas Armadas
(Pinochet, Mendoza, Merino, Bonilla, Leigh, Arellano, etc.). A publicitao recente das comunicaes entre os
chefes golpistas durante o ataque ao Palcio de La Moneda explicita claramente tal fato (cf. a obra de Patricia
Verdugo: Interferencia Secreta. 11 de Septiembre de 1973. Santiago de Chile: Editorial Sudamericana, 1998).
A desorganizao dos setores legalistas impediu a ao dos soldados simpatizantes da Unidade Popular. Mesmo
assim, houve resistncia em algumas guarnies, porm, sem comando, acabaram derrotadas pela bem sucedida
represso golpista. Posteriormente, os braos dos golpistas agiram at no exterior contra os militares
colaboradores de Allende. Atuando dentro da Operao Condor, atingiram seus adversrios, como o general
Carlos Prats, ex-Ministro de Defesa de Allende, assassinado em 1974 na Argentina.
139
Este alerta evidencia que, para os interesses das burguesias nacionais vinculadas ao
grande capital internacional, tais bolses nas instituies estratgicas historicamente alinhadas
140
dominao oligrquica representavam entraves potenciais que deviam ser extirpados, pois eram
elementos que complicavam ainda mais suas dificuldades de imposio no interior dos marcos
democrticos to deteriorados.
Outro protagonismo muito sensvel diante da crise foi o dos estudantes secundaristas e
dos universitrios, setores privilegiados quanto s possibilidades de conscientizao da dimenso
da crise social e poltica e profundamente questionadores de polticas econmicas que
comprimiam oramentos e investimentos sociais em benefcio do cumprimento das orientaes
externas e da desequilibrada distribuio de renda. Neste caso, h uma sobreposio de duas
dinmicas que dizem respeito ao movimento estudantil latino-americano dos anos 60. Uma
evidencia as influncias da grande onda contestatria internacional, que tem como expresses
mais contundentes o Maio Francs (mas tambm as manifestaes na Alemanha e na Espanha
franquista) e os diversos movimentos sociais que atravessam os anos 60 nos EUA (os sit in de
Berkeley, hippies, flower power, Weathermen, Movimento dos Direitos Civis, Muulmanos
Negros, Black Power, Black Panther); o pacifismo, a contracultura, a luta contra o racismo e,
primordialmente, a denncia da guerra contra o Vietn costuram essa mirade de grupos e
interesses. A outra dinmica do movimento estudantil latino-americano diz respeito s demandas
mais especficas geradas pela sua prpria realidade. A autonomia universitria e a reforma do
ensino foram questes geralmente presentes e mobilizadoras. Mas, acima de tudo, os estudantes
que ocuparam as ruas, as escolas e as universidades manifestavam-se em favor da democracia e
da liberdade e contra as formas concretas assumidas pelo autoritarismo em cada caso nacional.
Onde as ditaduras j se haviam implantado, lutavam para reverter esse quadro (casos da
Argentina e do Brasil); onde a escalada autoritria avanava, tentava-se resistir a ele (Mxico,
Chile, Uruguai).
No Brasil, as expectativas de abertura poltica e de forte ressurgimento do movimento
estudantil e operrio, entre 1967 e 1968, esfumaram-se diante da represso e da decretao do
Ato Institucional N 5. No Mxico, em outubro de 1968 ocorreu o Massacre de Tlatelolco,
quando, aps semanas de mobilizao estudantil contra o autoritarismo do Partido
Revolucionrio Institucional e de duros combates contra as foras repressivas do governo Daz
Ordaz, milhares de soldados e de efetivos paramilitares apoiados at por helicpteros e tanques,
atacaram uma concentrao pacfica de mais de 6 mil estudantes. Mais de 2 horas de tiroteio
ininterrupto resultaram em mais ou menos 500 estudantes feridos com gravidade, mais de 2 mil
24
141
25
Publicaes recentes apontam de 100 a 500 estudantes assassinados. Tal impreciso se deve ao fato dos
cadveres terem sido, provavelmente, incinerados ou jogados ao mar. Os jornalistas que presenciaram o fato e
que foram detidos, quando libertados, viram muitos soldados limpando o sangue espalhado por toda a praa.
Centenas de famlias procuraram sem sucesso pelos filhos desaparecidos. Muitos estudantes fugitivos passaram
clandestinidade e, parte deles, integrar-se-iam s guerrilhas existentes.
142
143
sarcasticamente chamada.
Um outro marco importante no cenrio de confronto poltico na regio, nos anos 60, foi
a retomada da formao de frentes populares de centro-esquerda, como mecanismo de superao
da atomizao e dos histricos limites eleitorais da esquerda mediante uma proposta
programtica vivel. A experincia da Unidade Popular chilena ocorre, paradoxalmente, num
perodo em que, na Amrica Latina, a luta armada assumiu propores nunca vistas
anteriormente, o que permite entender um dos motivos da escolha de Che pela Bolvia - no
intuito de desencadear um processo geral de insurreio revolucionria desde o corao da
Amrica -, a maior conquista popular veio, entretanto, da vitria eleitoral da Unidade Popular de Salvador Allende, no Chile, em 1970. A via chilena ao socialismo foi, na prtica, uma
frmula que, mais do que concretizar a segunda experincia socialista no continente, gerou a
expectativa de um processo de transformaes que pudesse transcorrer dentro de um clima de
relativa estabilidade poltica tornando desnecessrio o apelo radicalizao popular e a luta
armada sempre considerada culpada, pelo pragmatismo poltico da direita quanto pelo
julgamento de alguns setores de esquerda, no sentido de ter sido indutora direta de maior
represso. A via chilena apostou na consistncia das instituies da democracia burguesa para
construir pacificamente um caminho de transio do capitalismo ao socialismo. Porm, o seu
futuro imediato mostrou a estreiteza dos limites existentes para tal fim como26 tambm as
contradies da dinmica poltica interna do governo da Unidade Popular.27
No Uruguai, ocorreu, quase que concomitantemente Unidade Popular chilena, a
experincia da Frente Ampla, uma coalizo de partidos e movimentos de esquerda e centroesquerda que aglutinou, atravs de um programa e de uma candidatura majoritria comum,
socialistas marxistas, sociais-democratas, comunistas, democratas-cristos, dissidentes da
esquerda dos partidos tradicionais (Blanco e Colorado), pequenos grupos de esquerda de perfil
variado e personalidades independentes (entre os quais os militares da reserva citados), alm do
apoio da Convencin Nacional de Trabajadores (CNT). Tendo antecedentes de confluncia de
esquerda no incio dos anos 60, a Frente Ampla foi produto do voluntarismo poltico daqueles
setores espalhados no espectro da centro-esquerda poltico-partidria (apesar de ser integrado
26
Durante a campanha eleitoral vitoriosa de Allende, a CIA j conspirava abertamente contra ele financiando as
demais candidaturas e praticando atos de sabotagens. Diante dos resultados eleitorais, tentou-se, sem sucesso,
articular um golpe de Estado para evitar sua posse. Ver: CHOMSKY, Noam. Banhos de Sangue. So Paulo:
DIFEL, 1976; CHOMSKY, Noam. Um olhar sobre Amrica Latina. Rio de Janeiro: Oficina do Autor, 1998.
27
Sobre as contradies do governo da Unidade Popular e da evoluo do quadro conspirativo, ver as seguintes
obras: SADER, Eder. Um rumor de botas. So Paulo: Plis, 1982. ALTAMIRANO, Carlos. Dialtica de uma
derrota. So Paulo: Brasiliense, 1979. GARCS, Joan. Allende e as Armas da Poltica. So Paulo: Scritta,
1993. BITAR, Sergio. Transio, socialismo e democracia: Chile com Allende. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980.
144
pelo brao poltico do MLN, ambos, Frente Ampla e guerrilha, mantinham prudente distncia
entre si). A intensa mobilizao e o entusiasmo dos militantes no conseguiram superar o escasso
tempo de organizao (a coalizo foi fundada poucos meses antes das eleies de 1971) e a
contrapropaganda que sofreu dos setores conservadores. Seus resultados eleitorais foram
adversos; porm, mesmo assim, obteve 18% dos votos em todo o pais para a presidncia
enquanto que, em Montevidu, o seu candidato prefeitura fora votado por 30% dos eleitores.
De todas as formas, tinha sido o melhor resultado obtido pela centro-esquerda, junta ou separada,
em toda a histria do pas. O imediato perodo ps-eleitoral viu uma escalada autoritria
acelerada. Com o golpe de Estado consumado em 1973, a Frente Ampla foi colocada na
ilegalidade. Parte de seus dirigentes partiram para o exlio, nica alternativa priso e ao
assassinato. Seus militantes foram perseguidos aos milhares. Com o advento da ditadura, junto
com a CNT, a Frente Ampla tornou-se um dos principais alvos.
Alm disso, dentro de toda esta trama complexa do cenrio latino-americano dos
anos 60, necessrio apontar como fator componente, orgnico, a toda essa expresso de
conscincia crtica e de politizao qualitativa de importantes setores da populao para o
engajamento visvel de parte importante do mundo da produo artstica e cultural dos
diversos pases. Certamente que esta tendncia estava vinculada a uma outra caracterstica
muito presente em pases como Uruguay, Argentina e Chile: a existncia de um qualificado
sistema de ensino pblico que foi parte do substrato social que gerou uma cultura poltica
marcada pela participao poltica, inclusive dos setores sociais menos privilegiados. Sem
dvida, a educao pblica e de qualidade esteve profundamente relacionada com o
crescimento de uma cultura popular engajada e mobilizadora. Esse um fato que no pode ser
desconsiderado na hora de aferir a relao existente entre o grau geral de politizao dessas
sociedades e a brutal escalada repressiva posterior.
Os anos 60 foram muito ricos em produo musical, teatral, literria; de fato, houve
setores do universo cultural e artstico que assumiram um compromisso de denncia das
mazelas da realidade social. Fosse de forma figurada no interior de regimes autoritrios, fosse
como convocatria nos espaos ainda democrticos, a produo e divulgao de produtos
culturais engajados se espalharam pela Amrica Latina. Algumas vezes, circulando
sorrateiramente nos pores e nas sombras da clandestinidade; outras, explodindo no mundo do
exlio ou nos grandes acontecimentos de solidariedade internacional. As temticas centrais
giravam entorno das mazelas da realidade da Amrica Latina. Eram os versos poderosos de
Neruda, Guilln e Alberti. Era a expresso literria onde temas polticos, questes sociais, a
identidade indgena e o sentimento latino-americano se traduziam na idia do realismo
145
146
147
148
149
Mxico mandassem unidades militares, quase todos os pases contriburam para o esforo de
guerra mediante fornecimento de cotas de suprimentos, rompimento de relaes com os pases
do Eixo, patrulhamento dos seus litorais, concesso de novas bases militares (Brasil, Panam,
Cuba e Equador) aos EUA. A normatizao dessa cooperao na guerra foi estabelecida pela
Conferncia do Rio de Janeiro (1942). Na mesma, foi criada a Junta Interamericana de Defesa
(JID), que estabelecia mecanismos multilaterais para a defesa hemisfrica, onde as simpatias
do Chile e da Argentina pelos pases do Eixo, geravam desconfiana. No esquema de defesa
da JID, eram objetivos estratgicos a produo crescente e entrega de materiais essenciais aos
EUA (Aliados), a garantia da estabilidade poltica e da segurana interna das unidades
produtivas estratgicas, o aprovisionamento e a proteo das bases requeridas pelos EUA para
a proteo das linhas de comunicao vitais e a proteo coordenada contra invases e
ataques areos. 30 Em outras palavras, os EUA esperavam garantir que:
[...] cada fuerza armada latinoamericana pueda ser capaz de mantener la
seguridad en su propio territorio, incluyendo la prevencin de disturbios
revolucionarios, operaciones clandestinas enemigas, defensa contra ataques
aislados, proteccin de las fuentes e instalaciones de materiales estratgicos
y seguridad local de las bases y facilidades militares. 31
150
33
SCHILLING, Paulo. De la Doctrina Monroe al Informe Rockefeller. Montevideo: Tierra Nueva, s. d., p. 97.
KRYZANEK, op. cit., p. 90.
35
FERNNDEZ, op. cit., p. 38-39.
34
151
foi designado um papel apropriado; Amrica Latina, zona de influncia direta dos EUA, foi
destinada o papel de abastecer eficientemente o mercado estadunidense com matrias-primas
e aumentar seu potencial de consumo de excedentes de produo e de capital dos EUA.
Em 1946, George Kennan elaborou a Doutrina de Conteno, que afirmava que a
URSS representava uma ameaa de agresso a longo prazo contra o Ocidente. Kennan
defendia, ento, criar diques de conteno no entorno geopoltico sovitico. Keenan
reconhecia que isso implicava uma valorizao diferenciada de pases diante dessa ameaa.
Para os EUA, eram cruciais os pases considerados estratgicos (capacidade industrial e/ou
matrias-primas estratgicas). Nestes casos, o esforo de conteno devia ser concentrado.
Kennan alertava que os soviticos utilizariam recursos psicolgicos e polticos, at mais do
que militares, para conquistar tais pases. Era necessrio, ento, antecipar-se elaborando
programas de conteno prospectivos que ajudassem aqueles pases a resistir futura
agresso.
A dinmica da poltica de conteno exigia centralizar as diversas organizaes de
informao estadunidenses que haviam proliferado durante a Segunda Guerra Mundial e que
funcionavam independentemente umas das outras. A carncia de coordenao entre esses
rgos prejudicava o sistema de inteligncia constatando-se informao no compartilhada
nem quando era ordenado, gerando disputas internas, sobreposio e disperso de foras,
assim como impreciso na definio da misso das atividades de inteligncia. Faltava tambm
uma orientao ideolgica unificada. Portanto, os novos desafios do mundo de ps-guerra e a
inteno de hegemonizao por parte da elite dirigente estadunidense exigiram, para ter xito
contra o comunismo, modernizao, internacionalizao, coordenao e centralizao do
planejamento e das operaes dos servios de inteligncia internacional dos EUA.
Inegavelmente, a Doutrina de Conteno impediu a reconverso da estrutura de inteligncia e
segurana de uma situao de guerra para uma outra de paz. Pelo contrrio, mantendo-a,
exigiu a sua modernizao em funo do critrio eficincia. Essa poltica proporcionou uma
viso de mundo que reorientou, dirigiu e justificou as polticas do governo dos EUA. 36
Ao lado da abordagem da poltica de conteno de Kennan, foi elaborada uma
estratgia mais ampla de conteno global, proclamada pelo presidente, em 12 de maro de
1947. A Doutrina Truman, como veio a ser consagrada, consistiria no apoio aos povos
livres que estavam resistindo s tentativas de subjugao promovidas por minorias internas
vinculadas ameaa comunista ou por presses externas da URSS. Essa poltica buscava a
36
SCHURMANN apud HUGGINS, Martha K. Polcia e poltica: relaes Estados Unidos / Amrica Latina.
So Paulo: Cortez Editora, 1998. p. 83.
152
extenso dos recursos dos EUA para a conteno, pelas regies do mundo consideradas
perifricas. Assim, a Doutrina Truman colocava os EUA em luta global contra o
comunismo.
Em 1947, atravs da Lei de Segurana Nacional foi criado o Conselho de Segurana
Nacional (National Security Council-NSC) como rgo do Executivo para coordenar o
planejamento e as operaes de segurana internacional dos EUA. A idia era ter um
organismo de direo para a conduo de todas as atividades de inteligncia e contrainteligncia nacionais e estrangeiras. Esse organismo virou pea-chave na conduo da
poltica externa estadunidense, inclusive em relao Amrica latina. O NSC inclui, como
membros estatutrios, o presidente, o vice-presidente e os secretrios de Estado e de Defesa e,
como assessores, o diretor da CIA e o presidente dos chefes do Estado Maior Conjunto.
Inegavelmente, o Assistente de Segurana Nacional tinha grande influncia junto Casa
Branca. Porm, foi com a ocupao desse cargo por Henry Kissinger na administrao Nixon
que se acirrou a competio do NSC e do Secretrio de Estado pelo controle da poltica
externa do pas. Mais do que isso: desde ento, comeou a haver uma intensa disputa entre o
NSC e o Departamento de Estado. No tempo de Kissinger, [...] expandiu-se o papel e a
influncia do cargo at o ponto de dominar o desenvolvimento da poltica externa, eclipsando
por completo o secretrio de Estado, William Rogers. Desde o incio, o mbito de
funcionamento do NSC era a rea de integrao de informes de inteligncia e de formulao
de poltica de segurana nacional.
No incio dos anos 70, Henry Kissinger formou o que foi denominado Comisso
dos 40 (memorando 40 do NSC), organizao diretamente envolvida em atividades
encobertas no Chile. A Comisso dos 40, micro-centro de concentrao de poder do NSC,
ligado diretamente ao presidente, se tornou conhecido pelo eficiente trabalho de
desestabilizao contra a administrao de Salvador Allende. A atomizao do NSC e a perda
de visibilidade de algumas de suas comisses constitutivas, como a Comisso dos 40, leva
Kryzanek a afirmar que el presidente que no se informe de las operaciones del NSC corre el
riesgo de que sus subordinados obtengan el control de un segmento clave del proceso de la
poltica exterior. 37
A criao da CIA, em 1947, substituindo o Escritrio de Servios Estratgicos
(Office of Strategic Services), existente durante a Segunda Guerra, disponibilizou aos EUA
eficiente mecanismo para a centralizao e coordenao da coleta de informaes no exterior.
Essa infra-estrutura contribuiria para a transformao da ajuda norte-americana a polcias
153
estrangeiras em um mecanismo permanente para a internacionalizao da segurana norteamericana, sob os auspcios ideolgicos da defesa do mundo livre e mediante seu
desenvolvimento econmico e tcnico. 38
Aps a Segunda Guerra, os EUA demoraram uma dcada para dar-se conta da
verdadeira lgica da Guerra Fria, ou seja, que a luta entre as duas superpotncias no consistia
em confrontao armada direta entre elas. No mximo, poderia ser um confronto entre
eventuais amigos ou aliados de cada lado. Em realidade, consistia em uma batalha indireta de
natureza ideolgica em que, mais do que capacidade ofensivo-defensiva, o essencial era o
convencimento de outros povos das suas respectivas ideologias e doutrinas. Do lado norteamericano, na medida em que se definiam na prtica as regras da Guerra Fria,
principalmente com o salto qualitativo dado pela URSS ao explodir sua primeira bomba
atmica (1949), a impossibilidade de utilizar a guerra tradicional como forma de impor
mundialmente sua hegemonia, levou a armar defesas internas (propaganda, doutrinao) para
conter as reas de influncia sovitica. Assim, criou-se a imagem de uma vasta conspirao,
infiltrao e espionagem comunistas que ameaava toda a comunidade nacional, criando
desdobramentos complexos na formao poltica militar e diplomtica. As medidas de
segurana tenderam a dissociar a sociedade da poltica. A confiana no Departamento de
Estado foi seriamente minada. A Revoluo Comunista chinesa (1949) ajudou ainda mais a
propagar um clima de histeria anticomunista.
Cook considera que no final dos anos 40 que surge o que ele denomina Estado
Militarista, ou seja, a subordinao crescente da esfera poltica doutrina de segurana
externa, abrindo espao para os interlocutores dos adeptos da linha dura. O comunismo, a
URSS e a China eram meras desculpas para definir uma profunda orientao agressiva no
plano das relaes internacionais. Cook afirma que o Estado Militarista
[...] convertera-se [...] no novo modo de vida americano um modo de vida
que tinha todos os elementos de fantasia escala nacional. Como povo,
continuvamos pensando que ramos uma nao amante da paz, tal como o
framos no passado, enquanto que, ao mesmo tempo, e ainda como povo,
vivamos da abundncia traioeira que o Estado Militarista criara. [] A
verdade que o Estado Militarista um risco desesperado o risco de
podermos manter a corrida da guerra fria, em nome do nosso prprio status
quo econmico e da prosperidade, tambm econmica, sem nos destruirmos
a todos, a ns e ao mundo []. 39
Veja-se que o que Cook denomina de Estado Militarista o que Ramirez, analisando
37
38
154
155
Aqui estava o centro argumentativo que seria utilizado, anos depois, para justificar
as ditaduras de Segurana Nacional. De qualquer forma, essa dupla leitura - ou melhor, leitura
ambgua - levou a administrao Eisenhower a desenvolver uma poltica bifurcada que se
dirigia aos interesses de ambas as perspectivas. O apoio dos EUA, particularmente na forma
de assistncia militar, prosseguia onde os ditadores anticomunistas conseguiam manter a
estabilidade; mas tambm houve assistncia para o desenvolvimento econmico atravs de
acordos sobre produtos primrios, autorizao de emprstimos e apoio criao de um
mercado comum latino-americano. 44 No de estranhar que as elites dominantes latino-
42
Idem, p. 32.
SCHOULTZ, Louis. Estados Unidos: poder e submisso. Uma histria da poltica norte-americana em
relao Amrica Latina. Bauru, SP: EDUSC, 2000. p. 390.
44
Idem, p. 392.
43
156
americanas chancelassem a proposta dos EUA de que [...] el comunismo internacional, por
su naturaleza antidemocrtica y por su tendencia intervencionista, es incompatible con la
concepcin de la libertad americana. 45
Conforme a sua guinada conservadora, em meados da dcada de 50, os EUA
implementaram a poltica interna de defesa nacional como eixo central. A estratgia de
guerra total foi substituda pela doutrina de guerra limitada (resposta flexvel). Esta
mudana de estratgia decorria da mudana qualitativa na idia de guerra total em funo
do desenvolvimento cientfico-tecnolgico. Diante dos msseis intercontinentais com carga
nuclear, tornou-se improvvel a sobrevivncia at dos vencedores em caso de uma guerra.
Ainda, o desenvolvimento nuclear autnomo da Frana, Inglaterra e China forou a polticas
bi ou multilaterais. Ento, veio o primeiro teste da poltica bifurcada: a Revoluo Cubana. O
conceito de guerra limitada, particularmente em relao a Amrica Latina, consagrou-se nas
administraes Kennedy e Johnson. O candidato democrata sucesso de Eisenhower
afirmava, no debate final da campanha presidencial: Castro apenas o incio de nossas
dificuldades na Amrica Latina. A grande batalha ser evitar que a influncia de Castro se
espalhe para outros pases. Apesar da denncia da ameaa revolucionria, Kennedy pretendia
ganhar os coraes e mentes latino-americanos atravs da colaborao econmica para
potencializar mudanas sociais que fossem o suficientemente significativos como para
esvaziar o fator cubano: Vamos ter que tentar promover laos mais ntimos, associar-nos
com o grande desejo dessa gente por uma vida melhor, se quisermos evitar que a influncia de
Castro se espalhe por toda a Amrica Latina. 46 Estas intenes estavam na base da
proposio da posterior Aliana para o Progresso (ALPRO). Apesar de tudo, o governo
Kennedy redirecionou a poltica externa para a regio, abrindo novos espaos para os setores
mais duros, vinculados indstria de guerra e sobre os quais fora advertido pelo seu
antecessor.
A cubanizao devia ser evitada a todo custo; sendo assim, o presidente Kennedy
iniciou uma ofensiva contra-revolucionria que inclua, em primeiro lugar, a fracassada
invaso militar da Baa dos Porcos (1961) para derrubar o regime de Fidel Castro; em
segundo lugar, a j comentada Aliana para o Progresso, visando reduzir sensivelmente as
principais tenses sociais de que se alimentava o esprito revolucionrio latino-americano; em
terceiro lugar, o isolamento de Cuba do resto do continente, obtido com a expulso daquele
pas da OEA (1962) e a ruptura diplomtica (a exceo do Mxico); em quarto lugar, com a
45
46
157
47
Os EUA introduzem, ento, a figura do inimigo interno. Mas quem esta figura
que ameaa a segurana da nao? O comunismo internacional, que, apesar de ser
identificado pelo discurso oficial (tanto dos EUA quanto dos seus aliados locais) como sendo
a guerrilha, expressa, na aplicao concreta do enunciado da definio, um leque muito mais
amplo. Em funo desta sonegao de informao, esconde-se o que sero tratados como
aes produzidas por inimigos internos como greves operrias, ocupaes e invases
camponesas ou movimentos estudantis. Na prtica, etiqueta-se como comunista todo
movimento nacional de carter esquerdista. Os programas de contra-insurgncia ordenavam
combater sem concesso o inimigo especfico: o comunismo. 48 Isto levou o Pentgono a
considerar que as guerras de liberao nos pases perifricos consistiam em conflitos to
ameaadores quanto a guerra convencional. Era necessrio enfrent-las com outros meios.
Dentro dessa percepo, uma primeira mudana foi a valorizao do papel que cabia s foras
polticas locais como sistemas de deteco de tais movimentos, antes que estes assumissem a
forma de rebelio. O governo Kennedy teve papel decisivo ao propiciar a aproximao da
CIA com os programas especficos de treinamento da polcia. 49
Em 1960, diz Kennedy diante do Congresso:
[...] la seguridad del Mundo Libre puede ser amenazada no slo por un
ataque nuclear sino, tambin, por su lento debilitamiento en la periferia a
pesar de nuestra capacidad estratgica -, por las fuerzas de la subversin, la
infiltracin, intimidacin, agresin encubierta e indirecta, revolucin interna,
chantaje de lunticos, guerra de guerrillas ou una serie de guerras
limitadas. 50
HELLER, Claude. Las relaciones militares entre los Estados Unidos y la Amrica Latina: un intento de
evaluacin. In: HELLER, Claude (comp.). El Ejrcito como agente de cambio social. Mexico: Fondo de
Cultura Econmica, 1980. p. 121.
48
Idem, p. 133.
49
HUGGINS, op. cit., p. 14.
50
TAPIA VALDS, Jorge A. El Terrorismo de Estado - La Doctrina de Seguridad Nacional en el Cono
Sur. Mxico: Nueva Imagen, 1980. p. 50.
158
51
poltica externa dos EUA da tolerncia da voracidade e da crueldade dos militares latinoamericanos cumplicidade direta nesses mtodos repressivos aperfeioados, os quais
viraram um ingrediente central na poltica de Kennedy para a Amrica Latina, independente
de, simultaneamente, desenvolver-se a estratgia da ALPRO. 52
A nova ttica de guerra limitada foi uma estratgia muito mais ampla: a vigilncia
militar que os EUA mantinham sobre a URSS deslocava-se, agora, para o mundo inteiro. O
aparato blico dos EUA foi dotado de capacidade militar mltipla. Esta doutrina foi
definitivamente estabelecida por Johnson em 1965, aps a interveno na Repblica
Dominicana e do incremento militar sobre o Vietn: Uma revoluo no interior de um pas
algo que concerne somente a essa nao mas [...] se converte em matria de ao hemisfrica
[...] quando seu objeto o estabelecimento de uma ditadura comunista. 53 Com tal mudana
de orientao, anularam-se os princpios internacionais de no-interveno e de
autodeterminao dos povos. Na Amrica Latina, a guerra limitada
[...] desarroll como su principal tctica, la guerra antisubversiva, la cual
condujo por un tipo de entrenamiento militar que deriv en la usurpacin de
la funcin poltica por parte de los militares, cuya meta fue diseada como la
de asumir la responsabilidad del orden y estabilidad poltica internas en sus
respectivas naciones. 54
159
O governo Kennedy, por maior que tenha sido o esforo em resgatar seu lado
negociador, democrtico ou distante do uso da fora, para resolver os dilemas e ameaas
sentidos pela poltica externa norte-americana, foi responsvel por significativa contribuio
na escalada militar para a regio. Embora toda a propaganda em volta do programa da
ALPRO e a mistificao democrtica de Kennedy aps seu assassinato, seus prprios
discursos explicitam suas opes, mesmo com certas ambigidades aparentes. Assim, em
56
57
Idem, p. 58.
HUGGINS, op. cit., p. 122.
160
A dosagem entre ajuda econmica e militar fez parte dos seus discursos sobre a
Amrica latina, tentando mostrar um equilbrio que certamente era alvo de disputas polticas
internas quanto orientao a seguir:
[...] Dlar por dlar, dentro ou fora do governo, no h melhor forma de
investimento, para nossa segurana nacional, que o muito criticado programa
de ajuda ao exterior. No podemos permitir-nos perd-lo. Podemos mantlo. Temos, seguramente, recursos para, por exemplo, fazer, por nossos
dezenove vizinhos necessitados da Amrica Latina, tanto quanto o bloco
comunista est fazendo somente pela ilha de Cuba. Falei de fora, em grande
parte, em termos de represso e resistncia agresso e ao ataque. Mas, no
mundo de hoje, pode-se perder a liberdade sem deflagrar um tiro; por meio
de eleies, tanto quanto por meio de balas.
58
Terceira Mensagem sobre a situao da Unio, proferida no 14 de janeiro de 1963. KENNEDY, John. O Peso
da Glria. 2 ed. So Paulo: Edies Melhoramentos, 1965. p. 43.
59
Segunda Mensagem sobre a situao da Unio, proferida em 11 de janeiro de 1962. In: KENNEDY, idem, p.
29.
60
Discurso no pronunciado, dirigido ao conselho de cidados da assemblia e do centro dos diplomados em
pesquisas cientficas do sudeste, em Dallas, divulgado em 22 de novembro de 1963 [data do seu assassinato]. In:
KENNEDY, op. cit., p. 256.
161
Idem.
Idem, p. 258.
63
HELLER, op. cit., p. 124.
62
162
Kennedy aos interesses do complexo militar-industrial. Apelando para o discurso que havia
sido elaborado para ser lido em Dallas no dia do seu assassinato, Chomsky lembra que o
presidente destacaria, no mesmo, os enormes investimentos que havia autorizado de armas
estratgicas (submarinos Polaris, msseis Minuteman, bombardeiros estratgicos de 15
minutos de prontido, armas nucleares em foras estratgicas de alerta, prontido das foras
convencionais, aquisio, construo e modernizao da fora naval, aeronaves tticas e
foras especiais). Ele ressalta que o keynesianismo de Kennedy elevou os gastos do
Pentgono de US$ 45.3 bilhes em 1960 para US$ 52.1 bilhes em 1962, alm do enorme
aumento no oramento espacial, de 400 milhes de dlares em 1960 para 5 bilhes em 1965.
No final do mandato de JFK, mais de 78% de toda a verba para pesquisa e desenvolvimento
era fornecida pelo governo federal: principalmente para os setores militar e espacial e para o
setor privado. 65 Cabe devolver a palavra ao prprio Kennedy. Num discurso de 22 de
novembro de 1963, Kennedy explicita friamente a verdadeira lgica da poltica norteamericana:
[...] palavras apenas no bastam. Os Estados Unidos so uma nao pacfica.
Onde nossa fora e nossa determinao so claras, nossas palavras precisam
to somente levar convico, no beligerncia. Se formos fortes, nossa fora
falar por si. Se formos fracos, as palavras de nada serviro. [...] No foi o
discurso do General Marshall, em Harvard, que manteve o comunismo fora
da Europa Ocidental; foram a fora e a estabilidade tornadas possveis graas
a nosso auxlio militar e econmico.
[...] nossa bem sucedida defesa da liberdade tem sido devida no s palavras
que usamos mas fora que estamos prontos a utilizar em favor dos
princpios que estamos prontos a utilizar em favor dos princpios que
estamos dispostos a defender.
Essa fora compe-se de diversos elementos diferentes, que se estendem
desde os mais macios instrumentos de represso at as mais sutis
influncias. [...] 66
64
direito
dos
povos
latino-americanos
de
implementarem
processos
163
revolucionrios, entretanto... sem orientao comunista: [...] una revolucin en cualquier pas
es un asunto que concierne a ese pas. Slo se convierte en motivo de accin hemisfrica
repito quando el objetivo es el establecimiento de una dictadura comunista. 67 Vivian Trias
considera que isso pode ser denominado de Doutrina Johnson: os EUA se reservam o direito
de intervir em qualquer pas onde exista o risco de uma revoluo comunista. 68 Paulo
Schilling acrescenta, como especfico da nova poltica de Washington para a Amrica Latina,
na administrao Johnson, o apoio associao dos monoplios norte-americanos com as
burguesias nacionais, objetivando o controle total dos centros industriais e dos sistemas
mercantis transformando os exrcitos locais em organizaes de polcia-poltica, cujos
objetivos fundamentais consistiam na preservao da ordem nacional e continental vigente e
em impedir o surgimento de uma nova Cuba. 69
Curiosamente, poucos anos depois, a Misso Rockefeller, solicitada pelo presidente
Nixon, concluia que era necessrio aumentar o intercmbio econmico com a justificativa de
ajudar tais povos. Entretanto, tambm indicava que podia ser necessrio ter que aceitar
frmulas polticas que podiam estar em desacordo com o decantado ideal estadunidense:
Poucos dentre esses pases, ademais, tm alcanado suficientemente
avanados sistemas econmicos e sociais necessrios para apoiar uma
organizao poltica consistentemente democrtica. Para muitas dessas
sociedades, portanto, menos de democracia, ou ausncia democrtica, do
que simplesmente uma maneira de viver em ordem. 70
Rockefeller reconhecia que o maior dilema dos EUA era de [...] como poder
cooperar para atender s necessidades bsicas dos povos do hemisfrio, a despeito de
desacordos filosficos que possamos ter com a natureza de regimes especficos. 71
Considerando o sempre referido discurso de defesa da democracia e da liberdade, possvel
antever sinal verde para a instalao de regimes autoritrios. Ou seja, a forma do regime
no devia ser um impasse que levasse os monoplios estadunidenses a perder oportunidades
econmicas. Os EUA no podem renegar seu compromisso de contribuir para a melhoria de
vida dos povos do Hemisfrio s porque discordamos do seu governo. 72 Entretanto, tal
afirmao era anacrnica no seu momento, pois j existiam ditaduras de diversos tipos na
67
164
regio (Brasil, Argentina, Nicargua, Haiti, etc.); e as relaes de Washington com elas no
eram conflitivas. Pode entender-se, portanto, que a referncia de Rockefeller vinculava-se
diretamente queles pases onde a democracia formal ainda perdurava, embora muito
fragilizada.
Se bem verdade que nos anos 70 triunfou a contra-revoluo na Amrica Latina,
deve-se registrar que, no mesmo perodo, os EUA eram questionados em diversos pases,
particularmente, no Sudeste Asitico, o que coincidiu com importantes mudanas polticas na
Amrica Latina entre as quais podem arrolar-se a ascenso dos militares progressistas no Peru
e no Panam (outubro de 1968), e na Bolvia (1970), a vitria eleitoral da Unidad Popular no
Chile (1970), a queda de Velasco Ibarra no Equador(1972), a eleio de Carlos Andrs Prez
na Venezuela e o ressurgimento do peronismo na Argentina. No Uruguai, comeavam as
atividades do MLN e se formava a Frente Ampla. Para finalizar, os EUA sofriam dois golpes
diretos, o seqestro do embaixador norte-americano no Brasil e, logo depois, a execuo,
pelos tupamaros, no Uruguai, do funcionrio do FBI, Dan Mitrione.
No bojo deste conturbado perodo, houve uma furiosa queda de brao entre a CIA e
o Departamento de Estado dos EUA. A CIA defendeu a manuteno da linha dura, que
apresentou como principal argumento o cerco e a execuo do grupo de Che Guevara na
Bolvia (1967). O Departamento de Estado, por sua vez, questionava a manuteno dessa
orientao; considerava que a dureza excessiva acarretava demasiados riscos. O semanrio
Marcha, sempre to preciso na interpretao da poltica norte-americana para a regio, aponta
que as recomendaes do Informe Rockefekller inclinaram a balana a favor do
Departamento de Estado, o que causou um afrouxamento da represso, considerada a
estratgia mais eficiente para evitar a radicalizao dos conflitos sociais. Em pouco tempo,
esta interpretao se mostrou equivocada. No s a represso no diminuiu como, pelo
contrrio, se entraria em uma fase indita de violncia.
Idem, p. 63.
Entre as maiores empresas que compem o CMI, destacam-se: Lockheed, Boeing, General Electric, North
American Aviation, General Dynamics Corp., Martin-Marietta, Grumman, McDonell-Douglas, Northrop,
73
165
Foras Armadas quanto nos grupos de presso organizados nas comisses militares existentes
no Senado e na Cmara de Representantes -; todos esses protagonistas so centralizados pelo
Ministrio da Defesa (Pentgono). Portanto, desta imensa rede de relaes que surge o CMI
[...] formado por la unin entre las compaias blico-industriales, los
crculos militares y la burocracia gobernamental, es el sistema que utilizan,
preferencialmente, los Estados capitalistas para equipar tcnica y
materialmente a sus fuerzas armadas, para regular las proporciones, la
estructura y la distribuicin geogrfica de la produccin blica, para
estimular el desarrollo de la tcnica militar y para colocar en prctica
diversas medidas tendentes a preparar la mobilizacin de la economa para la
guerra. A este objeto, los crculos gobernamentales conceden apoyo
financiero al complejo blico-industrial, as como otras clases de ayuda y
privilegios de todo tipo, al tiempo que sostienen y estimulan sus
actividades. 74
166
Harry Magdoff afirma, por sua vez, que a histria dos anos transcorridos desde a
Segunda Guerra Mundial no constitui uma novidade no desenvolvimento do capitalismo
estadunidense, pois as [...] despesas relacionadas com guerra constituram o setor dominante do
oramento federal durante toda a histria dos EUA.78
Foi durante a Segunda Guerra Mundial, porm, que essa profunda conexo
estratgica entre o poder militar e o grande capital monopolista ganhou centralidade. Depois
do ataque a Pearl Harbour, os militares se converteram nos guardies do American way of life,
produzindo a decolagem da sociedade militar-industrial. 79 medida que a tendncia do
conflito passou a apontar a vitria dos Aliados, comeou a ganhar corpo a tese de que a
economia de guerra devia tornar-se permanente, mesmo que, naquele momento, a nica
ameaa real era um Eixo quase prostrado. Surgiu, ento, uma Associao Industrial de
Segurana Nacional, que devia garantir a permanncia, em tempos de paz, da organizao
militar-industrial estruturada durante a guerra, para que [...] a Amrica estivesse sempre
adequadamente preparada e defendida. 80
Anos depois, no contexto da Guerra da Coria, o Congresso dos EUA garantiu ao
presidente amplos poderes para incrementar a produo blica e impor medidas de
distribuio de matria-prima e materiais estratgicos, acumulao de reservas e controle de
76
167
preos. As necessidades geradas por esse novo conflito produziram nova onda de expanso da
economia capitalista:
Os gastos militares somaram [...] quantidades nunca antes atingidas. [...] Os
gastos militares eram, para o sistema [...] a principal causa da expanso [...].
Os encargos militares davam soluo ideal ao problema colocado pela
realizao da mais-valia: preservavam a taxa de lucro no conjunto da
economia e abriam, para as indstrias no-armamentistas, mercados que de
outro modo no teriam existido. 81
Seja como fato conjuntural ou como tendncia geral, inegvel que a produo de
armas e de material blico para as prprias Foras Armadas e para as exportaes atingiu
enormes propores nos EUA e se converteu em um fenmeno permanente dentro da sua
estrutura econmica. O conhecimento cientfico e o avano tecnolgico produzidos pela
pesquisa vinculada indstria blica e corrida armamentista geraram enormes lucros que se
alastraram por toda a economia na medida em que eram incorporados indstria civil,
produzindo benefcios na qualidade de oferta de bens de consumo do cotidiano da populao.
O peso crescente da indstria blica na economia da superpotncia e sua dinmica irradiadora
a outros setores produtivos e financeiros, alm da importncia geopoltica e militar implcita,
fez com que as empresas que geravam a tecnologia necessria para estabilizar toda essa rede
fossem transformadas em imensas corporaes, com grande capacidade de presso sobre as
decises governamentais. 82
Embora tenha sido o socilogo Wright Mills o primeiro a constatar a formao dessa
enorme mquina industrial e militar, foi o presidente Dwight Eisenhower quem deu uma
dimenso inusitada ao CMI ao tornar pblica sua desconfiana e temor diante do mesmo.
Efetivamente, em 1961, preocupado com a fora que estava adquirindo essa estrutura de
poder e ciente dos riscos e das ameaas que projetava, Eisenhower, no discurso de
transmisso de cargo ao seu sucessor, John Kennedy, denominou-a de Complexo MilitarIndustrial e descreveu-a como um colosso que dominava vastas reas da vida econmica:
Hasta el ltimo conflicto mundial, los Estados Unidos no posean una
industria de armamentos. Cuando era necesario, los fabricantes americanos
de carretas podan producir tambin espadas. Pero ya no podemos seguir
corriendo el riesgo de unas improvisaciones de urgencia en el aspecto de la
defensa nacional. Por lo tanto, nos hemos visto obligados a crear una
industria de armamento de vastas proporciones y trabajando
permanentemente. A ello se aaden los tres millones y medio de hombres y
81
82
168
Tais palavras, proferidas por quem havia dirigido o pas nos ltimos 8 anos, ou seja,
algum que falava com conhecimento de causa, eram a constatao do poder e da capacidade
de influncia acumulada pelo CMI. A importncia do discurso de Eisenhower, por isso,
impar. Primeiro, pelo reconhecimento da evoluo da qualidade tecnolgico-cientfica da
indstria blica. A Segunda Guerra ultrapassou o primeiro conflito mundial quanto a
exigncia de um esforo de guerra para reconverter uma indstria de paz para enfrentar
tamanho conflito militar. Em realidade, ocorreu profunda transformao do perfil produtivo
marcado por uma corrida armamentista que implicava num volume de produo e numa
logstica que tensionavam o cenrio internacional em disputa (na definio de campos de
influncia), obrigando a conviver com uma mquina de guerra em tempos de paz.
Em segundo lugar, Eisenhower especulou que, depois das experincias de duas
guerras mundiais, se impunha uma nova realidade de conflito, onde as guerras ocorriam em
espaos geogrficos de grandes dimenses, com necessidade e disponibilidade de recursos em
mltiplas frentes de batalha, o que apontava para a possibilidade de uma guerra total, que, por
sua vez, exigia grau de alerta mximo.
Uma terceira inferncia possvel que se pode compreender do discurso presidencial
est no entendimento de que o esforo blico efetuado durante a guerra exigira uma profunda
reavaliao quanto s exigncias materiais e humanas para enfrentar tamanhos desafios.
Entretanto, a projeo de um conflito de grande escala com caractersticas nucleares tornava
inadequadas as concluses e reflexes sobre as experincias anteriores e abria um cenrio de
imprevisibilidade, o que, de certa forma, justificava o gigantismo do complexo militar e o fato
dele perpassar toda a sociedade, de forma visvel ou no.
169
170
dados inquietantes. Em 1957, quase 1400 oficiais da reserva, de patente acima de major, eram
funcionrios das cem maiores sociedades industriais; curiosamente, elas repartiram, entre si,
75% dos US$ 21 bilhes de bens encomendados pelo Pentgono. 85 Doze anos depois, um
relatrio do senador Proxmire informava que 2.072 oficiais da reserva trabalhavam para cem
empresas industriais, sendo que metade deles prestava servios a dez das maiores corporaes
militar-industriais: Lockheed Aircraft (210); Boeing (169); McDonell Douglas (141); General
Dynamics (113); North American Rockwell (104); General Electric (89), etc. 86
Mas este era um lado do trfico de influncia. Para garantir a obteno das
encomendas mais vantajosas, os monoplios tambm propunham seu pessoal de confiana
como candidatos a cargos polticos, desde a presidncia do pas at parlamentrios, passando
pelos ministrios, secretarias de Defesa ou de Estado, conselhos, etc. Essa era a outra cara da
moeda quanto absoro de militares na reserva na direo administrativa das corporaes. O
fluxo de mo dupla na conexo interna do CMI com o aparato estatal teve como sntese a
atrao de militares estratgicos para negociar futuros contratos com o Pentgono, assim
como na tomada de iniciativas na seara poltica, disputando cargos atravs de intermedirios
de confiana ou representantes diretos dos seus interesses. Neste caso, o peso do seu poder
econmico sempre jogou um papel muito forte junto aos meios de comunicao e opinio
pblica.
Eisenhower tambm no teve como imaginar, na sua poca, o grande impacto que o
desenvolvimento dessa estrutura de poder teria para as relaes internacionais como um todo
e para a difuso, junto opinio pblica mundial, da percepo de iminente destruio total.
Durante sua administrao, mais de US$ 350 bilhes foram destinados defesa, sendo que,
nos ltimos anos, o oramento anual atingia US$ 46 bilhes. No primeiro ano do governo
Kennedy, essa quantia aumentou para US$ 52, 7 bilhes, o que, por si s, mostra a
permanncia crescente dessa tendncia histrica. 87 O Pentgono foi redimensionado de
acordo com a sua funo de centro do poder militar dos EUA sob cuja administrao se
articulava a complexa rede do CMI, cada vez mais identificada com o militarismo
estadunidense. 88
A manuteno do clima de ameaa e de insegurana, caracterstico da Segunda Guerra,
85
171
89
Idem.
172
mediante um aparato militar que, disseminado pelo planeta, tambm contribua para a criao
de empregos da mquina industrial.
Apropriadamente, Harry Magdoff defende que a grande mquina militar [...] o
preo que est sendo pago para manter a rede imperialista do comrcio e investimentos na
ausncia do colonialismo. Inclusive, considerando as dimenses do cenrio aberto aos
investidores dos EUA no ps-guerra, correspondeu Europa ocidental um papel subalterno de
correia de transmisso deste processo de controle. A persistncia da dependncia econmica
das ex-antigas colnias em relao s economias dos ex-centros metropolitanos exigia [...] a
disperso mundial das foras armadas americanas e o apoio militar direto s classes
dominantes locais. 90 Iniciativa coerente com o diagnstico do anteriormente citado discurso
do presidente Eisenhower.
Aps o final da guerra, os EUA se beneficiaram com as condies extremamente
vantajosas para sua expanso global, o que permitiu confirmar seu papel hegemnico. Os
crculos dirigentes regularam a produo militar com um sistema de planificao e
programao econmico-militar feito a longo prazo. A utilizao dos potenciais tcnicocientfico e produtivo-econmico do pas para fins militares sinalizaram, aos monoplios da
indstria militar, pontos de referncia para planificar seus organogramas de produo e
vendas durante longos perodos. Na medida em que a complexidade dos artefatos resultantes
da demanda ttico-tcnica aumentou as dificuldades da sua produo, esta passou a requerer
maiores investimentos em pesquisa, tecnologia de ponta, materiais especiais de grande
qualidade, instalaes radio-eletrnicas de elevado custo de recursos humanos altamente
especializados. 91
Constatando o crescimento da centralidade da produo do CMI no conjunto da
economia norte-americana, Magdoff lembra que:
[...] em 1937, quando j comeara a corrida armamentista, em preparao
para a Segunda Guerra, os dispndios militares per cpita de todas as
grandes potncias combinadas EUA, Inglaterra, Alemanha, Japo, Frana,
Itlia e URSS - era de 25 dlares. Em 1968, os gastos militares per cpita
norte-americanos apenas, a preos de 1937, eram de 132 dlares. 92
173
estadunidense. Nesses termos, o CMI deve ser visto como fator vital para o sistema produtivo
dos EUA. Dentre os argumentos que justificam tal compreenso, est o fato de que o gasto
militar funcionava como um mecanismo de ajuste anti-cclico, na medida em que o cenrio da
Guerra Fria e sua dinmica caracterstica exigiam o aumento da demanda, o que permitia
sustentar um alto nvel de ocupao. Outro argumento utilizado o de que o CMI acelerava o
progresso tcnico e, dentro da lgica do sistema, o gasto militar abria oportunidades de
investimento para os capitais ociosos das grandes corporaes e da burguesia monopolista. 93
O estabelecimento de uma poltica de armamentos permanente, estvel e com
pedidos estatais garantidos acentuou o carter simbitico da relao Estado-corporaes onde
as ltimas se beneficiavam de uma poltica de subsdios e/ou seguros favorveis.
Considerando que o Estado norte-americano era o grande comprador da produo das
corporaes envolvidas na produo de material blico, inexistia concorrncia de mercado. A
intensa disputa pela obteno de encomendas no se baseava na lgica do marketing, da
propaganda, do preo ou da qualidade do produto, e sim na disputa de bastidores marcada
pelo trfico de influncia e pelos lobbys das empresas junto aos centros decisrios
responsveis pelos contratos do Pentgono. A acirrada disputa se resolvia, geralmente, em
favor de um pequeno nmero de corporaes monoplicas de grandes propores, que
acabavam absorvendo a maior parte dos pedidos militares. 94
Analisando a estrutura do CMI e a qualidade da suas relaes com o Estado,
Faramazin 95 destaca importantes particularidades. Em primeiro lugar, o fato de que a
indstria blica, diferentemente da produo civil - que obrigada a vender sua produo
depois de fabricada -, s produz sua linha de artigos militares (foguetes, avies, navios,
tanques, etc.) depois de t-los vendido ao Pentgono sob encomenda e com dados precisos de
especificao (volume, quantidade, qualidade).
Em segundo lugar, Faramazin destaca que a produo blica tem no Estado seu
nico comprador. Mesmo que as compras militares se realizem atravs de uma complexa rede
93
174
de organizaes e de que parte dos fornecimentos militares efetuados pelo sistema de subcontrataes ocorra entre firmas privadas, no fim das contas, o Estado o comprador final do
produto blico. Esta uma particularidade essencial do sistema, pois o Estado, em
definitivo, quem orienta o perfil do produto e imprime determinada dinmica produo
blica.
Em terceiro lugar, a estrutura e o volume da demanda estatal podem mudar
rapidamente, obrigando as empresas que fazem parte do CMI a adaptar-se imediatamente a tal
situao. A mudana de demanda em funo da ecloso de uma guerra ou pela deteriorao
de uma determinada situao, implica numa capacidade de adaptao sem igual no setor civil
da economia. Isso se explica pelo maior e mais intenso desenvolvimento da tcnica militar e
pelas variveis resultantes da dinmica internacional. A produo blica se diferencia pela
relativa indeterminao de suas perspectivas de desenvolvimento, o que no est em
contradio com o fator planejamento. Essa capacidade de adaptao e de resposta rpida s
considerveis mudanas de demanda, tanto de volume como de estrutura da sua fabricao,
so condies essenciais e inerentes existncia do CMI.
Em quarto lugar, Faramazin avalia que a exigncia de qualidade sobre a produo
blica e a renovao muito rpida de novos e complexos sistemas de armas fazem com que a
competitividade das empresas dedicadas produo de guerra dependa muito de quadros
altamente especializados com experincia na execuo de encomendas militares, exitosos na
pesquisa cientfica e, tambm, bem relacionados no Pentgono e no Congresso.
Em quinto lugar, como fator singular, constata que os preos da produo blica no
so afixados de acordo com as leis de mercado, a no ser em funo de negcios entre os
representantes do governo e dos monoplios. A inexistncia de um mercado aberto de
produo blica e a ausncia da falta de presso que a competio exerce sobre os preos so
fatores que os fornecedores utilizam para aumentar consideravelmente seus lucros.
Finalmente, em sexto lugar, Faramazin avalia que o governo dos EUA planifica o
desenvolvimento da produo blica de acordo com os objetivos estratgicos imperialistas e
com os programas de construo das Foras Armadas, procurando fazer com que seu
potencial econmico-militar esteja sempre disponvel para o caso de urgente mobilizao. 96
Diante do quadro apresentado, constata-se que o Pentgono a empresa econmica
mais poderosa dos EUA, considerando os critrios de contratao de mo-de-obra por
oramento e de massa salarial distribuda. Os significados dos seus pedidos indicam a
inexistncia de competio de mercado, pois o Estado o principal comprador, o que eleva os
175
Idem, p. 272-274.
ROCKEFELLER, op. cit., p. 69.
176
177
178
Outro exemplo das relaes imbricadas entre o CMI e o meio acadmico est
presente no seguinte documento relacionado Universidade de Columbia:
Cinco de los 22 administradores [dessa intituio] representan industrias de
guerra. Lockheed Aircraft (Burden, diretor) e General Dynamics (Moore,
diretor) reciben simultneamente el 10% (3,6 mil millones de dlares) de los
contratos militares nacionales. Esas dos sociedades producen aviones
utilizados en Vietnam por consiguiente, viven de la guerra. Como presidente
del Consejo de administracin del Institute for Defense Analyses (IDA),
Burden administra un presupeusto de 15 millones de dlares de
investigaciones militares para el Pentgono. El IDA es un instituto
universitario de investigacin en armamentos avanzados y en las tcnicas
antiinsurrecionales, es la fbrica de idias del Departamento de Defensa
americano. Dos grandes universidades (entre ellas Columbia) son miembros
de este instituto de investigacin militar y le dan una respetable fachada
acadmica... y el presidente de Columbia, Grayson Kirk, forma parte l
mismo del consejo de administracin del IDA. Dunning, consejero del
Departamento de Defensa y experto en armamento atmico, dirige tres
sociedades privadas que dependen de contratos militares. La City Investing
Corp., por ejemplo, depende de Lockheed Aircraft (donde Burden es
director) y produce desfoliantes para la guerra qumica. 104
103
Idem, p. 45.
Who Rules Columbia? North American Congress on Latin America, maio 1968. In: LAS LUCHAS
ESTUDANTILES EN EL MUNDO, op. cit., p. 47.
105
Idem, p. 50.
104
179
180
Aqui vemos, concretamente, a conexo entre o CMI e a DSN atravs de uma correia
de transmisso que funciona em direo a todas as regies onde os EUA detm interesses
estratgicos, inclusive na Amrica Latina. A potencialidade dos negcios, todavia, era bem
maior. Caso os intermedirios eleitos, confiveis, promovessem intervenes parciais ou
golpes de Estado nos seus pases de origem, os lucros da indstria militar da superpotncia se
multiplicavam automaticamente diante de um maior volume de fornecimento de armas e de
ajuda econmica, alm do que, estrategicamente, garantia um fiel escudeiro na luta contra o
comunismo continental.
Dois objetivos essenciais foram cumpridos pela poltica de assessoria militar dos EUA,
em escala planetria, aos governos aliados/amigos na luta contra a URSS e o comunismo. Por
um lado, a ao deliberada de estreitar vnculos com os Estados clientes, delimitando ou
consolidando zonas de influncia e aprofundando relaes polticas, diplomticas, econmicas e
106
107
181
militares. Por outro, aproveitou-se a oportunidade para colocar no mercado externo parte
importante da produo militar, ou seja, a realizao de negcios em um mercado
internacional onde o comrcio de armas se transformou numa das mais lucrativas pautas do
comrcio mundial.
No cenrio da Guerra Fria, os Estados Unidos perseguiram uma dupla imposio
hegemnica: uma, planetria, enfrentando a influncia do campo sovitico; a outra, dentro do
bloco capitalista, em relao s demais economias desenvolvidas. O CMI foi estratgico para as
duas pretenses. Ele foi visto como vital para controlar e derrotar o comunismo no plano militar
(dentro da particular lgica blica da Guerra Fria) e no plano tecnolgico-estratgico da corrida
armamentista, inclusive utilizando o aparelhamento da OTAN como mecanismo comercial. Mas
foi fundamental tambm porque, ao se tornar motor da produo e dos interesses econmicos dos
EUA, constituiu-se como fator que alavancou, a seu favor, a balana de poder entre as potncias
capitalistas. Todavia, ao se transformar em produo, o CMI imps poltica externa norteamericana, particular signo de tenso. Parte das armas produzidas foram incorporadas pelo
prprio Estado, particularmente aquelas mais sofisticadas e com maior capacidade de eficincia,
representando argumentos de peso para disputar hegemonia em escala planetria. Mas essa
produo tambm se regeu pela lgica de mercado; quer dizer, parte dela foi destinada ao
mercado externo, devia ser vendida e, simultaneamente, se possvel, servir para reforar os
exrcitos amigos, particularmente, aqueles confrontados por ameaas mais imediatas como na
percepo que o Pentgono divulgara sobre a figura dos inimigos internos.
Na Amrica Latina, de fato, os dois objetivos essenciais da poltica de assessoria
militar se cruzaram e produziram a
[...] promoo ativa de vendas comerciais de armamentos no exterior,
realizando extenso treinamento de pessoal militar local e empregando fundos
de ajuda econmica com finalidade de treinar foras policiais locais a fim de
conter demonstraes de massa e em servio de contra-informao. 108
A ameaa comunista podia significar um perigo real para os interesses dos EUA na
regio (a Revoluo Cubana produzia apreenso). Mas inegvel que, aps a experincia
cubana, a ameaa comunista era menor do que se divulgava; mas sua manipulao contribuiu
para a realizao de importante comrcio envolvendo a venda de armas e a prestao de
servios antisubversivos vinculados aos programas de ajuda militar dos EUA. O senador
Eugene McCarthy, conhecido promotor da anticomunista caa as bruxas, dos anos 50,
explicitava a influncia diplomtica dos programas militares ao afirmar que:
108
182
McCarthy deixava implcito no seu discurso o duplo desafio que o pas devia
enfrentar, tanto no plano poltico-ideolgico (a ameaa de um rival comunista), quanto no
plano econmico, frente possibilidade de vir a ter sua liderana questionada dentro do
prprio bloco capitalista.
Nas relaes entre o poder militar dos EUA e as elites poltico-militares latinoamericanas, reproduzia-se uma situao semelhante quela que, no interior da superpotncia,
conectava os poderes militar e civil com o Estado, ou seja, cooptao, trfico de influncias,
corrupo, oportunidades de enriquecimento ou ascenso poltica, moeda de troca que
acompanhava o mecanismo de convencimento ideolgico efetuado pelo binmio Doutrina de
Segurana Nacional e American Way of Life. Os interlocutores militares encontrados nos
pases amigos foram alvo de um processo de cooptao diludo. Ao participarem das
misses e dos cursos militares, ou nas visitas s indstrias do CMI, recebiam doses macias
sobre a eficincia e a excelncia das instituies e dos valores do sistema democrtico
estadunidense; eram convencidos de que American way of life era sinnimo de defesa dos
valores ocidentais cristos.
Um caso concreto de conexo entre cooperao militar e venda de equipamento pode
ser ilustrado com o testemunho do ex-agente cubano infiltrado na CIA e membro da Misso
da Agncia Internacional de Desenvolvimento (AID) junto a Chefatura de Polcia de
Montevidu, Manuel Hevia. Em 1967, segundo ele, ocorreu um momento de singular tenso
entre o Ministrio do Interior do Uruguai e a Misso da AID (vinculada Secretaria de Estado
dos EUA) aps a elaborao de um relatrio tcnico realizado pela Misso estadunidense,
dentro dos marcos de cooperao antisubversiva existentes, onde se analisava a situao das
foras policiais e as condies necessrias para sua modernizao. No relatrio, aps anlise
das funes e das necessidades do corpo policial, sugeria-se no s a aquisio de
determinados tipos de veculos de fabricao estadunidense, como indicava-se a marca - Ford
-, o que gerou queixas de outros fabricantes (caso da GM), tambm vinculados ao CMI.
109
183
110
HEVIA, Manuel. Passaporte 11333 - Uruguay... ocho aos con la CIA. Montevideo: Suplemento de
Liberacin Nacional, 1985. p. 155.
111
Idem, p. 156.
184
pacfica internacional. Tambm promoveu a militarizao das sociedades, pois sua prpria
existncia se justificava pela permanente ameaa de eventuais e potenciais conflitos. No
fundo, a frao social nele representada precisava dessa poltica de rearmamento permanente
como forma de enfrentar as contradies subjacentes ao sistema capitalista e como garantia da
sua permanncia no controle hegemnico do mesmo. 112
Como conglomerado de empresas lucrativas, o CMI exigiu consumidores cativos
dos seus produtos, dos seus avanos tecnolgicos e da manuteno dos mesmos. Alm do
governo estadunidense, seu maior e mais estratgico consumidor e ao qual estava integrado
atravs do Pentgono, o CMI precisava extender sua rede de clientes e, para tanto, contou
com o fantasma da ameaa comunista que a DSN difundiu pelo ocidente. Com esse artifcio,
conseguiu uma dupla projeo espacial simultnea: externamente, no cenrio planetrio da
Guerra Fria; e internamente,
Amrica Latina, ao considerar que esta, a partir da lgica das fronteiras ideolgicas e da
guerra interna, tambm devia ser compreendida como extenso da sua Segurana Nacional.
112
185
La realidad contempornea indica que el marxismo no es nicamente una doctrina intrnsecamente perversa.
Es adems una agresin permanente, hoy al servicio del imperialismo sovitico [...]. Esta moderna forma de
agresin permanente da lugar a una guerra no convencional, en la que la invasin territorial es reemplazada por
el intento de controlar los Estados desde adentro. Para ello el comunismo utiliza dos tcticas simultneas. Por
una parte, infiltra los ncleos vitales de las sociedades libres, tales como los centros universitarios e intelectuales,
los medios de comunicacin social, los sindicatos laborales, los organismos internacionales, y, como incluso lo
hemos visto, los propios sectores eclesisticos. Por otro lado, promueve el desorden en todas sus formas [...].
Discurso do general Pinochet no terceiro aniversrio da derrubada do governo da Unidade Popular, em 11 de
setembro de 1976. Apud REVELLO; PORRINI; SCHOL, op. cit., p. 23.
186
instrumento fundamental para enfrentar a guerra interna e total contra a subverso, ampliando a
sua ao e controle sobre o conjunto da sociedade como metodologia para obter melhor
eficincia. O combate ao mal maior explicava muitas coisas. As crticas feitas pela oposio s
novas orientaes foram vistas como antipatriticas e atentavam contra os interesses gerais da
nao. Sua eliminao justificava a prtica repressiva e o amordaamento do movimento
popular. Logo, um Estado forte, autoritrio, estvel e militarizado era considerado o melhor
antdoto contra o inimigo espreita.
A segurana interna da Amrica Latina, dessa forma, foi vinculada segurana
continental dos EUA. Diante da subverso, implementaram-se aes de contra-insurgncia
(militares, paramilitares, polticas, econmicas, psicolgicas e de ao cvica). Essas aes
constituram a guerra contra-revolucionria iniciada nos anos 60, emoldurada pela DSN e
implementada atravs de polticas de TDE, particularmente, nas ditaduras militares emergentes
no Brasil (1964), Uruguai (1973), Chile (1973) e Argentina (1976), alm da Bolvia e do
Paraguai.
A origem do conceito, segundo Josep Comblin, est situada no contexto imediato do
ps-guerra, quando os EUA desenharam e assumiram o novo reordenamento mundial. 114 Sua
elaborao ocorreu nas usinas ideolgicas da superpotncia, nos setores vinculados
DSN. 115 A mesma derivou de razes fincadas na diversidade do pensamento geopoltico
(principalmente no que diz respeito ao expansionismo, s fronteiras naturais e s estratgias
de defesa), desenvolvido por Kjellen, Ritter, Mckinder, Haushofer, Mahan e Spykman. 116 Na
DSN, confluram reflexes de distintos pensadores e estrategistas militares, tanto em relao
temtica defesa quanto segurana, havendo tambm perspectivas diferenciadas e nuanas
particulares na recepo e nas interpretaes desse conjunto de idias nos pases do Cone Sul
(inclusive entre eles). Entretanto, houve significativa unidade nos princpios norteadores que
se originaram nos EUA e cuja base comum foi aplicada, independente das especificidades
pertinentes, pelas ditaduras que, em boa parte, tiveram seus oficiais formados nos cnones
daqueles princpios. Assim, pode-se falar em uma DSN constituda por um corpo comum de
conceitos aplicados sem diferenas essenciais; ou seja, existiu um denominador comum que
serviu de base da articulao de tal pensamento e dos conceitos bsicos que foram
funcionalmente aplicados na regio. 117
114
COMBLIN, Padre Josep. A Ideologia da Segurana Nacional. O Poder Militar na Amrica Latina. Rio
de Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978.
115
REVELLO; PORRINI, SCHOL, op. cit., p. 21.
116
FERNNDEZ, op. cit., p. 50.
117
CORLAZZOLI. Pablo. Los Regmenes Militares en Amrica Latina. Montevideo: Nuevo Mundo, 1987. p.
187
188
oscilante. 119
SILVA, Golbery do Couto e. Conjuntura poltica nacional: o Poder Executivo & Geopoltica do Brasil.
3a ed. Rio de Janeiro: Livraria Jos Olympio, 1981. p. 186.
120
CORLAZZOLI, op. cit., p. 26-27.
189
estudante, operrio, intelectual, etc. Em funo disso, essa elasticidade devia estar presente
tambm no momento de definir bens, fatores e valores abrangidos pela proteo da Segurana
Nacional.
Comblin procura cercar o conceito ao propor que: A segurana nacional talvez no
saiba muito bem o que est defendendo, mas sabe muito bem contra quem: o comunismo. 122
Esta a chave-mestra para entender o conceito. A DSN considera o comunismo como
sinnimo de inimigo interno e sabe-se que este um conceito funcional que identifica um
alvo que pode ser (e de fato ) ampliado a partir das necessidades conjunturais que o controle
da sociedade exige, tornando o prprio conceito de Segurana Nacional muito flexvel.
Conseqentemente, o comunismo (ou aparente comunismo) pode manifestar-se (como
inimigo interno) em qualquer setor da sociedade; logo, o Estado precisa estar organizado e
aparelhado para combat-lo altura, ou seja, com a aplicao funcional da poltica de
Segurana Nacional, o que pode levar adoo de polticas de TDE.
O citado general Golbery do Couto e Silva definiu a Segurana Nacional como o
grau relativo de garantia que o Estado proporciona coletividade nacional para a consecuo
e salvaguarda de seus Objetivos, 123 a despeito dos antagonismos internos ou externos,
existentes ou presumveis. 124 Em relao ao mesmo conceito, o Diretor da Academia
Superior de Seguridad Nacional do Chile, o general Agustn Toro afirmava, em 1976, que era
o
[...] grado de proteccin que una sociedad puede prestar a los valores
existentes, a los que estn en proceso de obtencin, y a aquellos que
probablemente se logren en el futuro, todos los cuales se pueden ver
amenazados o interferidos por tres fenmenos diferentes que son la guerra,
la conmocin interna y las catstrofes naturales. 125
121
190
191
registrar que parte do seu modus operandi se originou e se sustentou na diretriz especfica da
ao preventiva, o que, no caso uruguaio, constatado no discurso oficial (exemplificado nas
palavras do general Medina).
Concordar com a premissa de que nada estava acima da segurana que protegia a
Nao e garantia a consecuo dos Objetivos Nacionais significou legitimar a vigilncia
preventiva e repressiva contra os indivduos qualificados como inimigos, bem como aceitar
outro fator importante da aplicao da DSN, a no distino entre meios violentos e noviolentos para enfrentar os desafios presentes. Tais meios, inseridos na lgica da razo de
Estado dos regimes de SN, foram fatores que geraram relaes particulares tanto na dinmica
repressiva quanto naquela aplicada no plano externo. No caso da poltica interna, a Segurana
Nacional ignorou as garantias constitucionais, fato desmascarado com fina ironia por Josep
Comblin: [...] a segurana no conhece barreiras: ela constitucional ou anticonstitucional;
se a Constituio a atrapalha, mude-se a Constituio. 129 Por outro lado, a condio
internacional perifrica dos pases do Cone Sul no restringiu as possibilidades de atuao
externa das ditaduras de SN; so conhecidas as aes externas bilaterais ou multilaterais
orquestradas sob a sombra da Operao Condor. Assumir a utilizao de recursos de fora no
plano internacional, potencializados pela aceitao da lgica preventiva, dilua a fronteira
entre a guerra e a diplomacia.
Ainda como caracterstica da aplicao da lgica da DSN, deve registrar-se que ela,
ao orientar a organizao de uma estrutura defensiva contra a agresso desagregadora
comunista, no distinguiu a poltica externa da poltica interna e vice-versa. Esta sobreposio
de campos de atuao diferentes implicou, por sua vez, na utilizao de metodologias de
confronto de alto risco, recursos polticos inadequados e o desconhecimento de interlocutores
pertinentes. A razo dessa sobreposio pode ser decorrncia do processo de internalizao do
inimigo comunista (que era externo na lgica estrutural da Guerra Fria). Sua identificao,
no interior de cada pas, intensificou a percepo de que a ameaa comunista se projetava
simultaneamente nos planos externo e interno. Ou seja, a ao contra um inimigo interno ou
um inimigo externo fazia parte de um mesmo movimento, de uma mesma cruzada, o que
reforou a centralizao das foras repressivas, eliminando a diferena entre polcia e exrcito
e unificando seus objetivos essenciais (a proteo da comunidade ameaada interna e
externamente pelo vrus subversivo). Por isso, nos anos 60, na medida em que se
intensificaram os questionamentos da ordem vigente na Amrica Latina e os EUA se
definiram pela aplicao da poltica contra-insurgente na regio, verificaram-se muitos pontos
192
129
Idem, p. 56.
MOLINA THEISSEN, A. L. La desaparicin forzada de personas en Amrica Latina. KOAGA
ROEETA, Srie VII, 1998. p. 7.
130
193
Ao passo que os pareceristas do Informe no defendiam mudanas estruturais scioeconmicas para acabar com os motivos geradores de insatisfao, transparece, ento, nas
entrelinhas, o recurso implementao de medidas de fora como mecanismo de conteno
do germe latente na regio. A Guerra Fria, a Revoluo Cubana e outros fatos associados
serviram de mote justificador para a extrapolao dos limites legais da atuao estatal, o que
fez com que ficassem aparentemente desconexos dessa dinmica, as intenes concretas de
organizar a economia da regio segundo as novas modalidades da intenacionalizao do
capital e do trabalho e da imposio da poltica de portas abertas, ou seja, a abetura das
economias regionais aos interesses das grandes corporaes multinacionais. A segurana
poltica estava, inequivocamente, articulada s necessidades estratgicas da segurana
econmica, embora esta lgica parecesse diluda diante de uma visibilidade mais concreta do
embate poltico, ideolgico e militar.
Diversas so as caractersticas gerais que emolduram a expanso da DSN pela
Amrica Latina, independente das contribuies particulares resultantes das abordagens
concreta de cada caso nacional.
Em primeiro lugar, diante das necessidades e condies da Guerra Fria, se
estabeleceu a idia de destino comum, condio necessria para que fosse aceito, sem
maiores questionamentos, a interpretao estadunidense de que a situao interna dos pases
latino-americanos fazia parte da sua prpria segurana. A iniciativa da diplomacia dos EUA
para a regio, a partir do imediato ps-Segunda Guerra, visou dois objetivos importantes:
transformar em acordos formais a gradual aproximao que se configurou desde o final dos
anos 30 e revalidar as alianas militares que haviam garantido a salvaguarda coletiva da
amrica Latina diante do Eixo. De certa forma, a criao da OEA e do TIAR resultaram desse
esforo e responderam s intenes da superpotncia em consolidar o alinhamento para
impedir a influncia sovitica na regio, bem como para contrarrestar o impacto cubano.
Em segundo lugar, houve o reconhecimento da existncia das fronteiras ideolgicas,
demarcadas pela defesa do mundo livre. A contraposio entre esse mundo livre e o mundo
comunista foi uma leitura maniquesta da Guerra Fria e uma sensvel tentativa de diluir os
efeitos resultantes do desge das contradies interimperialistas e intra-imperialistas sobre as
131
194
sociedades perifricas.
132
195
Trata-se da obra Las Fuerzas Armadas al Pueblo Uruguayo, produzida pelas autoridades do novo regime.
196
estatais e pelos movimentos sociais tributrios. Na Amrica Latina, essa percepo, presente
desde a Revoluo Russa, foi adequada s condies regionais. Foi assim que, acoplada a essa
inteno, houve uma dupla estratgia preventiva frente s ameaas reais e potenciais que o
comunismo e a URSS projetavam. A primeira, o reforo das defesas litorneas (consideradas
vulnerveis segundo o Pentgono).134 A segunda dizia respeito reorientao das Foras
Armadas locais para enfrentar as perturbaes introduzidas pela expanso de guerrilhas, as quais,
segundo interpretao da DSN, no passavam de insurreies inspiradas pelo exterior e que se
articulavam com outras formas de subverso da ordem interna (greves, manifestaes, luta
armada). A guerra de guerrilhas diferiu da guerra clssica na medida em que inexistiam foras
regulares a ser enfrentadas; pelo contrrio, a ao clandestina foi considerada uma significativa
vantagem para as foras insurretas e se tornou fator fundamental para a implementao da ao
contra-insurgente.135
Cabe salientar ainda que o anticomunismo latino-americano recebeu uma forte
nfase do esforo macartista atravs do que se convencionou chamar de indstria cultural: a
produo cinematogrfica hollywodiana, as sries (enlatados) de televiso, as histrias em
quadrinhos (sobretudo na temtica de super-heris) e as revistas de divulgao massiva como
a Selees do Reagers Digest. Mas, independente dessa influncia, havia setores dirigentes,
na regio, que possuam significativa bagagem acumulada. O conservadorismo dos mesmos
tinha uma slida experincia histrica construda antes da prpria Guerra Fria, por geraes
precedentes que se especializaram em criminalizar as organizaes polticas de esquerda e os
movimentos de reivindicao social (questo social como sinnimo de questo policial)
como nos exemplos mais imediatos de represso contra as primeiras manifestaes operrias
do incio do sculo, as mobilizaes estimuladas pelo impacto da Revoluo Sovitica ou na
vigilncia acintosa sobre os exilados da Repblica Espanhola e dos cidados que lutaram, na
Guerra Civil deste pas, como voluntrios das Brigadas Internacionais. Claro que esses fatos
variaram em funo das especificidades nacionais, mas constituram importante caldo de
cultura do qual se nutriram as velhas oligarquias e sua tradio autoritria, rejeitando toda
proposta de mudana da ordem social e econmica que pudesse afetar o status quo vigente.
Quanto s Foras Armadas, o anticomunismo foi um elemento essencial da sua
doutrinao; isso pode ser atestado pelos contedos das disciplinas ministradas nas escolas de
formao e instruo militar e dos manuais utilizados. Apesar disso, nem todos os oficiais
latino-americanos treinados pelos EUA assumiram a orientao da DSN. Ocorreram
134
135
197
excees. Em alguns casos, nem tanto pela nfase no anticomunismo; at, porque, geralmente
coincidiam na aplicao de polticas de saneamento matizadas entre mecanismos autoritrios
e democrticos, mas discordavam dos efeitos perversos da desnacionalizao econmica e da
perda de soberania na tomada de decises polticas que as orientaes da DSN e a
dependncia econmica dos EUA impunham a partir da intensificao do auxlio contrainsurgente. A perda de espao de negociao e a tentativa de alinhamento em questes
pontuais levaram alguns setores militares, minoritrios mas nada desprezveis, a resgatar o
fortalecimento da autonomia na tomada de decises e a reforar uma orientao nacionalista
que entrou em conflito com os interesses das corporaes estadunidenses. Em determinada
conjuntura de acirramento de posies e presses externas, a orientao desses setores levou
proposio de polticas antiimperialistas (o que no , necessariamente, sinnimo de
revoluo) e constitucionalistas, fato de fundamental importncia em termos de projeo da
DSN. Este foi o caso das experincias dos militares nacionalistas e antiimperialistas liderados
por Velazco Alvarado (Peru), Torres (Bolvia) e Torrijos (Panam), entre outros casos.
Em quarto lugar, no discurso da DSN, junto ao anticomunismo, ocupou centralidade a
construo da figura do inimigo interno. Historicamente, a utilizao do inimigo interno tem
sido um recurso utilizado para aumentar a coeso interna no interior de uma dada sociedade,
como ocorreu nos casos de xenofobia ou de limpeza tnica; o Terceiro Reich foi o maior
exemplo disso. A construo dessa figura visa gerar, no interior da sociedade nacional, sensaes
que variam entre a insegurana, o temor e o pnico. Acima de tudo, se a propaganda que a cada
instante evidencia sua existncia (informando sobre aes terroristas contra o patrimnio
nacional e os cidados de bem) for bem sucedida, o maior objetivo ser alcanado; ou seja, a
obteno do consentimento tcito de parcela da populao s medidas de fora que, apesar de
atropelarem a legalidade constitucional, visam extirpar aquela ameaa do interior da sociedade.
A identificao desse inimigo interno cumpriu relevantes funes polticas. A
ameaa destrutiva ou contaminadora que projetava sobre os valores nacionais e a civilizao
ocidental tornam-no fator de aglutinao do tecido social interno, principalmente dos setores
menos esclarecidos, alvos potenciais do trabalho de conscientizao das foras de resistncia em
conjunturas de crise. Mais ainda, a existncia ameaadora do elemento subversivo exigia uma
espcie de trgua no embate social decorrente das contradies da sociedade. Toda demanda
social devia ser adiada em benefcio da comunidade nacional. De certa forma, a percepo da
existncia desse protagonista, apresentado como terrvel ameaa contra a sobrevivncia da
sociedade, dilua os conflitos de classe.
Enquanto fator de desagregao, o inimigo interno podia incorporar um amplo
198
199
200
presentes
no
processo
histrico.
fator
psicosocial
est
Ironicamente, Wilson Fernndez questiona se dentro desses meios especficos so considerados tambm as
torturas fsica e psicolgica, bem como o desaparecimento de pessoas. (FERNNDEZ, op. cit., p. 60) Na mesma
linha, Molina Theissen lembra que [...] los ejrcitos han recorrido al Estado de excepcin, por medio del cual
reemplazan el orden jurdico existente por todas las formas de la arbitrariedad. Gerando uma situao onde [...]
prevaleci la utilizacin de mtodos terroristas como la tortura, los asesinatos polticos, las desapariciones forzadas y
otras formas de conculcacin de los derechos civiles y polticos; mtodos ejercidos por las fuerzas armadas y grupos
paramilitares que actuaran bajo su absoluto control y direccin. MOLINA THEISSEN, op. cit., p. 8.
201
cultural, ideolgica), teve que ser perpassada pela Segurana Nacional. Gerou-se, assim, o
seguinte paradoxo: as normas constitucionais foram atropeladas em nome da defesa de uma
liberdade e de uma democracia abstrata ameaadas pelo comunismo e pela subverso.
Curiosamente, a SN, dizendo que agia em nome e defesa da democracia e da liberdade,
sacrificou a ambas. E, embora se explicitasse que era uma necessidade temporria, o
temporrio se tornou permanente. At porque, o fator justificador da interveno militar (a
existncia do inimigo interno) foi mantido e recriado indefinidamente de forma a tornar
crvel o argumento que avalizava a permanncia no poder dos novos protagonistas. 140
Uma ltima caracterstica que deve ressaltar-se em relao DSN o conceito de
guerra em que se baseia a ao das foras de segurana. J vimos que, na perspectiva da
Guerra Fria, a internalizao dessa lgica na Amrica Latina gerou a idia de guerra interna e
da existncia de um inimigo interno, que agia atravs de mtodos irregulares, os quais
variavam desde a desestabilizao da ordem at a luta insurrecional. 141 Essa guerra interna foi
reconhecida como uma guerra total e permanente, o que foi indito dentro das referncias
histricas latino-americanas. A esse respeito, a experincia da poltica colonial francesa contra
os movimentos de libertao nacional no Vietn e na Arglia foi assimilada nas escolas de
guerra da Amrica Latina e dos EUA; tericos e estrategistas do novo tipo de conflito, como
Bonnet, Lacheroy, Howard, Nemo e Trinquier foram estudados. 142
O coronel Roger Trinquer, por exemplo, diz que: [...] desde que termin la Segunda
Guerra Mundial, una nueva forma de guerra h sido criada [...] e essa nova guerra [...] es el
choque de una serie de sistemas polticos, econmicos, psicolgicos y militares que tienden a
derrocar el gobierno existente en un pas para substituirlo por otro.143 Trinquier afirmava que
na lgica da nova guerra havia mudado o objetivo final dos beligerantes. No se tratava mais
de impor a derrota ao inimigo e obter uma rendio vantajosa ou compensatria, mas sim de
destruir e de eliminar o inimigo. Como este se escondia e se mimetizava no meio da
populao e usava a clandestinidade como recurso defensivo/ofensivo, a tortura se tornou um
instrumento estratgico e eficiente para a obteno de informao, tratamento este que era
extensivo aos colaboradores diretos ou indiretos do inimigo os quais tambm mereciam ser
considerados e tratados como traidores. Trinquer recomendava cuidado com os excessos: [...]
140
202
debemos evitar estas extremas medidas que son incompatibles con las ideas de libertad que
nosotros y la civilizacin estamos defendiendo, no podemos tampoco ignorarlas, porque de lo
contrario jams derrotaramos al enemigo que no est claramente identificado. 144 Os fatos
concretos mostraram que essa orientao no passou de retrica ou, ento, foi completamente
ignorada.
A proposio de uma guerra contra-insurgente se tornou sinnimo de guerra total e
envolveu o esforo de todos os fatores e as potencialidades para a obteno dos objetivos
maiores: a destruio do perigo e, conseqentemente, a conquista da vitria total sobre o
inimigo interno. Forosamente ela devia ocorrer em todas as dimenses da sociedade e do
espao geogrfico (inclusive extraterritorial). Na prtica, um desafio percebido como ameaa
real sobrevivncia da Nao devia produzir uma resposta com a mesma intensidade, pois
[...] a una guerra total se responde con la seguridad total. 145 Quer dizer, ao assumir-se que
toda a sociedade estava vulnervel diante de uma ameaa global que a colocava em xeque, em
todas as suas dimenses, afetando sua expectativa de sobrevivncia (fosse tal avaliao
verdadeira ou no), a resposta s podia ser a implementao de mecanismos de segurana
total, e esta independia da legalidade dos meios utilizados. um caso tpico de meios
justificados pela consecuo dos fins; neste caso, a defesa da sobrevivncia da Nao, levou a
DSN a difundir a luta insurgente como sendo uma ameaa frontal e letal. A defesa da Nao,
objetivo nacional primeiro, justificou a ausncia de limites quanto disposio das foras e
das aes desencadeadas pelo Estado, pois cabia a este [...] enfrentar con xito todas las
amenazas provenientes de todo tipo de antagonismo reales o potenciales del presente o del
futuro. 146 [grifo do autor]
Caviglia Cmpora referia-se, em 1974, existncia de uruguaios determinados a dar
um basta agresso sofrida e a fazer com que a Nao vencesse a guerra pese a quien pese y
pase lo que pase. 147 Este final de frase est destacado no texto do prprio autor e evidencia
um extremismo que at Roger Trinquier, mesmo que pr-forma, procurou relativizar ao
referir-se aos excessos cometidos na luta contra a subverso anti-colonial. Mas Caviglia
Cmpora vai muito alm, como explicita ao referir-se aos
[...] Orientales [uruguaios] que estn absolutamente dispuestos a hacer
cuanto sea necesario para salvar la Patria, que estn dispuestos a empuar
143
203
importante frisar que essa obra tem pretenses de erudio. No ano em que essa
frase e a argumentao que lhe serve de corolrio foram escritas, o golpe de Estado j se havia
consumado no Uruguai, a guerrilha tupamara havia sido destruda e o pas era conhecido no
exterior pelo uso generalizado de tortura, pelas primeiras denncias de desaparecimentos
polticos e por possuir, percentualmente, uma das maiores populaes carcerrias de presos
polticos do mundo, fazendo com que o Uruguai, denunciado no exterior, fosse identificado
como um enorme campo de concentrao. Considerando a formao e a trajetria do autor e o
ano em que a obra foi publicada, torna-se mais do que evidente que Caviglia Cmpora sabia
muito bem do que estava falando.
O Uruguai parece ser um caso representativo da tese defendida por Molina Theissen de
que, na prtica, os exrcitos latino-americanos foram transformados em foras de ocupao
interna, ou seja, das suas prprias sociedades, porm, defendendo e representando interesses
alheios.150 Dentro da idia de guerra total, a modernizao, a profissionalizao e a capacitao
que receberam por parte das escolas militares dos EUA convenceram-nos de que eram a nica
opo possvel para controlar a decomposio do quadro interno. Essa mesma linha de
argumentao foi utilizada, em 1977, pelo presidente de facto uruguaio, Aparicio Mndez, ao
afirmar que: Ante la incapacidad de las democracias de poder resolver los problemas
fundamentales y asegurar la supervivencia de los Estados, las FF.AA. eran la nica institucin en
condiciones de asumir el poder. 151
O protagonismo assumido pelas Foras Armadas sob amparo da DSN merece uma
ltima reflexo. O prprio Rockefeller, no seu Informe sobre a situao latino-americana,
constatou que os militares se converteram em agentes [...] del cambio social, econmico y
poltico e que era atravs deles que a superpotncia [...] debe ensayar de actuar ms que
desconocerlos o descalificarlos. 152 Reconhecia que a situao de decomposio e convulso
148
Idem.
Idem.
150
MOLINA THEISSEN, op. cit., p. 7.
151
MNDEZ apud CORLAZZOLI, op. cit., p. 47.
152
EL INFORME ROCKEFELLER, op. cit., p. 27.
149
204
social implicava em tomar medidas duras e com pulso firme, pois: Las fuerzas de la
anarqua, el terror y la subversin corren por las Amricas e, segundo ele, ningum tinha
melhores aptides para fazer isso do que os militares. 153
A esse respeito, Rockefeller considerava necessrio mudar certas restries
existentes em alguns setores dirigentes estadunidenses que se mostravam incomodados com
os excessos cometidos na luta contra-insurgente e com os casos notrios de corrupo
existentes na Amrica Latina. Particularmente, descrevia que:
Hay una tendencia en Estados Unidos a identificar la polica de las otras
repblicas americanas con la accin y represin polticas, mas que con la
seguridad. Han habido, desafortunadamente, muchas ocasiones en que la
polica h sido as utilizada. 154
Idem, p. 47.
Idem, p. 48.
205
preservar os interesses do seu imprio econmico. Tal percepo fundamental pois, embora
o discurso da DSN tenha procurado restringir as preocupaes dos EUA necessidade de
conteno interna da expanso do comunismo, os interesses daquela abrangiam um universo
muito mais complexo, como ficou registrado no documento produzido pela misso
Rockefeller. Assim, os regimes de SN tornaram-se fiadores de grandes expectativas de
negcios das corporaes estadunidenses e dos seus associados internos; sua dependncia
crescente de treinamento militar, parafernlia blica, emprstimos econmicos e respaldo
poltico-diplomtico (diante das denncias de desrespeito dos direitos humanos), tornou-os
cada vez mais refns e vulnerveis diante dessa influncia. 155
155
Para exemplificar, Claude Julien recorre ao Brasil, certamente o pas que melhor podia barganhar em relao
aos EUA. Diz ele: No Brasil, por exemplo, Washington no se contentou em ficar impassvel diante do golpe de
fora que em 1964 derrubou o presidente Goulart, nem com manter depois as melhores relaes com os regimes
militares do marechal Castelo Branco e do marechal Costa e Silva. Assim foi como o governo viu-se obrigado,
para obter um crdito dos EUA, a conceder importantes vantagens a uma companhia norte-americana dentro da
petroqumica brasileira. A presso poltica e econmica da superpotncia no deixou de ocorrer pelo fato de
haver um engajamento concreto do governo local na luta contra-insurgente. Pelo contrrio, at se justificava,
pois a finalidade era o aprofundamento do entrelaamento dos dois pases dentro dos valores da civilizao
crist-ocidental. Mais explcita foi a ameaa indireta que Julien testemunhou pessoalmente contra o ento
governador do Estado do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola. Diz ele que Brizola [...] foi convocado oficina
do presidente, em Braslia, onde lhe esperavam os representantes da companhia telefnica americana que
acabava de nacionalizar. No mesmo instante, em Washington, o autor deste livro [o prprio JULIEN]
encontrava-se na oficina do responsvel de Amrica Latina no Departamento de Estado, e este, informado por
telefone de que o governador Brizola havia firmado a ordem de nacionalizao, no se conteve em contestar a
presena do visitante: Brizola o homem que deve ser liquidado. JULIEN, op. cit., p. 272.
206
156
fomentaram as relaes desse tipo com as elites polticas e militares locais, maior foi a
possibilidade dos EUA administrarem uma grande capacidade de presso sobre os respectivos
sistemas nacionais.
Aps a Segunda Guerra Mundial, os EUA tentaram garantir a manuteno da rede
militar que subordinava as Foras Armadas dos diversos pases americanos, a sua liderana e
interesses, tornando-os uma espcie de fora de reserva que devia desempenhar funes
regionais ao servio da estratgia global da superpotncia. A criao do National War College
(Escola Superior de Guerra), nos EUA, em 1946, constituiu o ponto de partida da perspectiva
de segurana coletiva. A partir dela, foram criados centros especiais para treinamento,
qualificao e doutrinao de militares latino-americanos nos EUA. Igualmente, sob
inspirao norte-americana, foram criadas escolas de formao militar na Amrica Latina
(Escola Nacional de Guerra do Paraguai, Escola Superior de Guerra da Colmbia, Escola de
Altos Estudos Militares da Bolvia, Academia de Guerra do Chile, Escola Superior de Guerra
do Brasil).
Dentro desse perodo, surgiram, na zona de ocupao no Canal do Panam, a Escola
do Caribe do Exrcito dos EUA (USARCARIB), em Fort Gulick (1949), e uma escola de
treinamento de guerrilha na selva, em Fort Sherman (1953), com o objetivo especfico de
estruturar unidades avanadas de aperfeioamento profissional para oficiais. 157 A evoluo
dessa relao com os militares latino-americanos gerou crescente interferncia nos assuntos
militares internos dos pases da regio, o que pode ser aferido a partir da construo de uma
rede de instrumentos a ser acionada imediatamente diante de conjunturas instveis e que, ao
mesmo tempo, podia funcionar em perodos menos tensos, como mecanismo de
acompanhamento, de vigilncia e/ou de controle sobre os acontecimentos regionais.
De qualquer forma, o advento da Revoluo Cubana colocou a regio como cenrio
de alerta permanente para os interesses dos EUA. Entretanto, sempre deve ser frisado: a
projeo estadunidense sobre a Amrica Latina e sua ao de enquadramento foram anteriores
Revoluo Cubana e a influncia que esta exerceu sobre a esquerda latino-americana.
Ressaltar tal fato importante para desvendar o discurso oficial dos EUA para a regio desde
o incio da Guerra Fria e a criao de um fantasma comunista justificador das aes
156
207
posteriores protagonizadas pela superpotncia e seus aliados e scios locais. Nesse sentido,
desde 1958, j existia o Comando Sul dos EUA, cuja principal tarefa era orientar a poltica
militar para a Amrica Latina. Posteriormente, a partir dos anos 60, quando da vitria da
guerrilha de Fidel Castro e do medo da disseminao regional da experincia revolucionria
de Cuba, foram implementados os primeiros programas de contra-insurgncia e a Escola do
Caribe passou a ser conhecida como Escola das Amricas. Segundo Langguth, ao voltar
para seus pases de origem, os alunos ali diplomados mostravam estar to imbudos no seu
esprito contra qualquer interferncia civil que a escola se tornou conhecida, no continente,
como Escola dos Golpes. 158 Atualmente, lembrada como Escola de Assassinos. 159 O
fato que, entre 1961 e 1977, mais de 33 mil militares latino-americanos passaram pelos seus
cursos. 160
Durante a campanha eleitoral que elegeu Eisenhower como presidente dos EUA, o
impacto do desgaste da Guerra da Coria veio a tona, produzindo o questionamento da
presena de tropas norte-americanas numa regio que, apesar de estar inserida dentro da
lgica da poltica de conteno manifestada desde a Doutrina Truman, parecia longnqua
demais para justificar uma ao de tamanha envergadura e um custo material e humano to
oneroso. Eisenhower, sensvel a tais questionamentos, prometeu um novo estilo para pautar
sua poltica externa, ou seja, caso vencesse as eleies, diminuiria a presena de tropas no
Extremo Oriente e esforar-se-ia para diminuir o custo da guerra para a sociedade norteamericana. Assim, afirmava que pressionaria os aliados locais para que assumissem as
responsabilidades e o nus de serem o primeiro corpo de conteno comunista naquela regio,
o que significava deixar os asiticos travarem as guerras asiticas. Parece curiosa tal
afirmao se tivermos em mente o envolvimento do pas nos trgicos acontecimentos do
Sudeste Asitico menos de 15 anos depois, ou seja, a brutal escalada militar desencadeada
pela interveno estadunidense em toda a pennsula indochinesa.
Os fatos contradisseram as intenes do ento candidato Eisenhower. Mesmo assim,
muito til retomar o seu raciocnio. Segundo ele, a perda de influncia dos pases ocidentais
naquela regio foi conseqncia direta da omisso dos mesmos em capacitar seus aliados
locais (treinamento e armamentos) para enfrentar eficientemente os desafios exigidos pela
poltica de conteno; tal leitura virou senso comum dentro do establishment dos EUA. A
esse respeito, o almirante Arthur Radford (chefe do Estado Maior das Foras Armadas)
158
Idem.
Expresso norteadora da organizao de direitos humanos estadunidense School of the American Watch (SOA
Watch). Ver: http://www.soaw.org
160
COMBLIN, op. cit., p. 140.
159
208
definia o equvoco da anterior dominao colonial francesa na regio: [...] a verdadeira razo
para os franceses estarem ainda em guerra [no Vietn] depois de sete anos era sua antiga
relutncia em treinar qualquer vietnamita. 161 Por detrs da crtica, h uma aluso implcita e
que expressa uma das principais diretrizes da poltica externa norte-americana para reconstruir
o mundo capitalista de ps-guerra: a presso contra a manuteno dos sistemas coloniais
europeus, considerados entraves para a consecuo da hegemonia dos EUA no sistema
capitalista. interessante analisar a vinculao da crtica do almirante Radford ao descaso ou
ao temor dos franceses em armar e qualificar seus aliados locais para enfrentar diretamente a
ameaa comunista alis, temor justificvel se for considerado que o poder colonial avaliava
a possibilidade de que essas tropas coloniais pudessem voltar-se contra ele, como de certa
forma ocorreu quando da retirada japonesa da pennsula indochinesa, no final da Segunda
Guerra.
As palavras de Radford e de Eisenhower de deixar os asiticos resolverem seus
conflitos esboa uma estratgia que difere da francesa. A preparao e o treinamento
militar/policial dos aliados locais seriam assumidos pela superpotncia como mecanismo para
a criao de um Vietn livre (diferente do enquadramento colonial clssico) tornando-o
bastio de resistncia anticomunista na regio. A utilizao de mecanismos de preveno, a
orientao estratgica e o fornecimento de apetrechos militares no Vietn, na primeira metade
dos anos 60, mostra a simultaneidade dessa iniciativa da superpotncia em relao s que
vinha desenvolvendo na Amrica Latina. Onde a DSN foi aplicada, houve uma orientao
geral e global, respeitando a importncia estratgica que o Pentgono conferiu a cada regio;
entretanto, independente disso, inegvel que houve uma linha de continuidade da poltica
externa dos EUA desde a Revoluo Cubana e os desdobramentos regionais a seguir - o
confronto com o Vietcong, a guerra contra o Vietn do Norte e a vietnamizao do seu
entorno espacial.
Na Amrica Latina, a Crise dos Msseis, o golpe de Estado no Brasil e a interveno na
Repblica Dominicana demarcaram um ponto de inflexo onde comeou a mudar a orientao
vigente dos EUA. A nfase na democracia e na liberdade persistiria, mas, cada vez mais, como
objeto de retrica do discurso oficial. H uma conotao diferente quando se orienta militares e
policiais a agir respeitando os marcos dos fundamentos democrticos ou a agir em defesa da
democracia. No se trata de tergiversao. A DSN, a partir dos anos 60 e incio dos 70, reforou
a idia de que a democracia como valor universal devia ser protegida pela Segurana Nacional a
161
NSC 68: United States Objectives and Programs for National Security, 1954. p. 14.
209
qualquer custo. Ou seja, um dos pontos mais relevantes na evoluo da DSN foi a orientao a
agir contra a liberdade, a Constituio e os direitos dos cidados para defender, em ltima
instncia, a prpria democracia; isso foi colocado tanto no Sudeste Asitico quanto na Amrica
Latina.
O diferencial dado pela violenta escalada militar implementada no Vietn e pelo
enorme esforo de guerra material e humano assumido pelos EUA, nesse conflito, diz respeito
transformao da guerra suja contra o Vietcong (resultado da interferncia na guerra civil
do Vietn do Sul) numa guerra contra outro Estado (o Vietn do Norte). Na ampliao do
conflito, aplicaram-se, simultaneamente, as estratgias e os mtodos de guerra total e de
guerra suja, expresso do TDE estadunidense aplicado contra a populao civil vietnamita.
De qualquer forma, independente do fato dos EUA terem-se envolvido completamente no
Sudeste Asitico, as crticas emitidas por Eisenhower e Radford poltica francesa de no
qualificar os recursos humanos policiais/militares autctones para utiliz-los contra o
inimigo comunista so esclarecedoras da orientao que, a partir dos anos 60, passou a ser
projetada sobre a Amrica Latina, ou seja, a preparao de unidades especializadas na luta
contra-insurgente. Embora no evitassem seu envolvimento definitivo no Vietn, os EUA
procuraram agir preventivamente na Amrica Latina, o que conseguiram com bastante
sucesso.
A estratgia da luta contra-insurgente assumida pela potncia norte-americana como
sendo um dos mecanismos fundamentais para enfrentar o grave quadro de deteriorao acelerada
na Amrica Latina baseou-se, fundamentalmente, no reforo e na qualificao das foras de
segurana visando uma dupla finalidade. Por um lado, a sua reconverso e adaptao para a luta
contra o que denominaram de subverso interna ou insurgncia. Ou seja, qualific-los para
desempenhar um protagonismo indito no que diz respeito ao desencadeamento e gerenciamento
de aes relativas segurana interna e ao cvica, fatores, portanto, de uma contrainsurgncia que havia sido aplicada pelo poder colonial francs no Vietn e na Arglia e
universalizado pelos EUA, sobretudo a partir do seu envolvimento no Sudeste Asitico. Por
outro lado, ocorria a capacitao de uma elite militar para assumir, a curto prazo, funes
polticas estratgicas diante da possibilidade concreta de rupturas revolucionrias em
determinados cenrios; formalmente, este objetivo estava situado, pelo menos no incio dos anos
60, dentro dos limites democrticos e de preocupaes relativamente reformistas. 162
Em relao ao segundo objetivo e seu entorno constitucionalista, pode se inferir duas
leituras explicativas. Uma considera que parte das justificativas enunciadas pelos EUA no
210
211
especiais eram organizadas em 17 equipes de treinamento mvel (uma para cada pas da
regio), destinadas a ser rapidamente transportadas diante da solicitao de qualquer governo
amigo. Treinadas em cursos de Operaes Especiais, essas unidades especializaram-se
em aes de atentados, sabotagem, assassinatos, emboscada, exploses, espionagem,
incurses, vigilncia e amedrontamento. 165 Segundo Claude Julien, desde que foram sediadas
na Zona do Canal, unidades boinas verdes chegaram a intervir em toda a Amrica Latina,
com exceo de Cuba, Haiti e Mxico. 166
A Guerra do Vietn absorveu parte dos quadros treinados para aes na Amrica
Latina. Alis, as experincias adquiridas (acumuladas) naquele conflito foram incorporadas,
posteriormente, nas operaes militares e paramilitares desenvolvidas junto aos exrcitos
latino-americanos. A semelhana da metodologia de guerra suja aplicada no Sudeste
Asitico e o treinamento que as unidades especiais receberam para intervir,
hipoteticamente, na Amrica Latina indicam mais do que semelhanas casuais. No Vietn,
foi aplicada a mesma lgica que combinava aes contra alvos militares e contra a populao
civil (disseminando o terror entre a mesma). Em realidade, tanto na Amrica Latina quanto no
Sudeste Asitico, os boinas verdes, independente da existncia de uma declarao formal de
guerra, desencadearam inmeras operaes tpicas de guerra suja: eliminao de grupos
guerrilheiros ou de pessoas suspeitas de colaborar com eles, assassinato de cidados
esquerdistas, organizao de sublevaes e sabotagens contra o poder constitucionalmente
institudo, prticas de TDE, etc. Langguth afirma que as equipes de treinamento policial
estadunidenses mandadas ao Vietn, tambm ajudaram a disseminar essas prticas. A
Embaixada dos EUA em Saigon recebeu inmeras denncias de torturas e assassinatos de
presos polticos envolvendo a polcia local treinada pelos especialistas dos EUA. Pior do que
isso, as denncias descreviam que, muitas vezes, tais fatos aconteciam diante da presena dos
agentes estadunidenses. 167 Um dado revelador das aes desenvolvidas por essas unidades
militares, na lgica da Segurana Nacional, indica que, as mesmas, muitas vezes, estavam
diretamente conectadas e subordinadas CIA.
A derrota militar no Vietn no significou o abandono, pelos EUA, da identificao
de toda manifestao de signo progressista ou antiimperialista em qualquer parte do planeta
como sendo agresso comunista e, conseqentemente, assunto da sua segurana interna.
Houve sim uma reavaliao sobre o envolvimento blico em grande escala num cenrio talvez
americano. ZUBENKO, V., TARSOV, K. La CIA contra Amrica Latina. Mosc: Editorial Progreso, 1984.
165
Idem, p. 48.
166
JULIEN, op. cit., p. 303.
212
167
213
diante dos olhos da opinio pblica e do direito internacional e repassavam o maior desgaste,
no combate aos focos subversivos, aos governos locais. Os EUA, com a sensvel
diminuio do custo da manuteno da rede de proteo e segurana dos seus prprios
interesses, combinado com as expectativas comerciais da indstria blica, beneficiavam-se do
lucro gerado por toda essa engenharia poltico-militar, emoldurado pelo discurso da
segurana. As palavras de Robert McNamara, a esse respeito, parecem definitivas:
Os EUA no podem estar em todo lugar simultaneamente. A balana de
foras e as necessrias alternativas com o mundo contemporneo em
transformao s podem ser conquistadas com amigos fiis, bem equipados
e prontos para cumprir com a tarefa que lhes cabe. O Programa de
Assistncia Militar foi projetado para impulsionar e conquistar tais foras e
alternativas, j que ajuda a manter foras militares que complementam
nossas prprias foras armadas. 170
170
Declarao de Robert McNamara, Secretrio de Defesa dos EUA em defesa do Programa de Assistncia
Militar para o ano fiscal de 1967. Citado por COGGIOLA, op. cit., p.16.
171
HUGGINS, op. cit.
172
FERNNDEZ, op. cit., p. 48.
214
biologizao da ameaa comunista, a eficincia policial foi vista como sintoma de uma
medicina preventiva; ou seja, se a polcia falhasse ou fosse transbordada pelos
acontecimentos, sempre restava o recurso da cirurgia maior: a interveno militar. 173
Portanto, atravs de uma enorme rede norte-americana de centros de instruo,
articulados com misses militares estabelecidas em diversos pases da regio, tendo a Junta
Interamericana de Defesa como guarda-chuva, os EUA prepararam as Foras Armadas
regionais para desempenhar tarefas de vigilncia interna dentro de uma complexa teia de
atividades. Dela faziam parte manobras conjuntas, contatos militares permanentes,
treinamento e capacitao profissional de oficiais nos EUA, intercmbio de delegaes
militares nas Escolas Superiores Militares, divulgao da bibliografia militar produzida por
especialistas estadunidenses, treinamento especfico com armamento incorporado pelas foras
locais e, principalmente, os cursos de formao de quadros, os quais cumpriam funo
estratgica pois, posteriormente, repassavam os ensinamentos adquiridos aos militares dos
respectivos pases. 174
Os programas de assistncia econmica dos EUA financiaram o treinamento militar
e reforaram o aprofundamento com os exrcitos latino-americanos. Em 1964, a AID
aumentou o nmero de vagas dos cursos ministrados em Fort Bragg, e, em 1966, seus
programas de treinamento policial em contra-insurgncia urbana consumiam 38% do
oramento de assistncia econmica para toda a Amrica Latina. Dessas linhas de auxlio,
fazia parte a consultoria de 23 especialistas policiais enviados pela administrao Johnson ao
Brasil, aps o golpe de 1964, para complementar o treinamento de 641 policiais brasileiros
que haviam estudado na Academia Policial Internacional, em Washington, entre 1963 e
1971. 175
Langguth relata que na passagem de Dan Mitrione pelo Brasil, os especialistas locais
ficavam admirados com a facilidade com que o agente do FBI montava academias policiais e
laboratrios de criminalstica. Os pedidos de apetrechos diversos solicitados por Mitrione aos
programas de ajuda mantidos pelos EUA para qualificar e modernizar o trabalho das unidades
repressivas como cmaras, projetores, telas, material de impresses digitais e artigos
fotogrficos eram prontamente atendidos. 176 Diante dos questionamentos formulados por
congressistas norte-americanos de que o custo da ajuda aos scios e aliados da regio era
173
Este raciocnio foi apresentado, em 1971, pelo Subsecretrio de Estado, Alexis Johnson, diante do Congresso.
Idem, p. 50.
174
ZUBENKO; TARASV, op. cit., p. 49.
175
SCHOULTZ, op. cit., p. 397.
176
LANGGUTH, op. cit., p. 74.
215
muito alto, o general Robert Wood esclarecia, pragmticamente, de como a assistncia militar
ministrada repercutia beneficamente sobre a economia e a segurana do prprio pas:
Que ento a assistncia militar? um programa com cujos fundos so
feitas compras indstria norte-americana, para as foras dos pases
estrangeiros que, contando com vontade e material humano, carecem de
meios de defesa; um programa que traz a nosso pas entre dez e quinze mil
estudantes militares estrangeiros anualmente, expondo-os no somente ao
conhecimento militar norte-americano, como tambm ao modo de vida
norte-americano; um brao da poltica exterior dos EUA; defende
predominantemente nosso interesse nacional. 177
216
Tais avaliaes constavam nos manuais de treinamento. Logo, lgico pensar que
um dos seus objetivos centrais era o de informar e instruir quanto s formas de
potencializao da capacidade operativa dos comandos. Considerando isso, pode-se avaliar
cada uma das concluses.
Em relao primeira constatao, argumentava-se que os soldados eram
vulnerveis porque no reprimiam mulheres, ancios e crianas que colaborassem com a
subverso. A primeira questo que surge dessa avaliao simples: o que acontecia com os
homens adultos que colaborassem com a subverso? Eram identificados diretamente como
inimigos? Se assim fosse, eram tratados iguais que aqueles? Pela afirmao, no parece ser
essa uma questo ambgua; pelo contrrio. Tambm se diz que os soldados ficavam
constrangidos a agir diante desses colaboradores do inimigo. Significa dizer que se devia
esperar um tratamento mais duro? Quanto mais duro? O mesmo dedicado ao inimigo?
Significa que, por serem colaboradores, eram tambm inimigos? No caso de serem, como
tratar crianas colaboradoras? O documento reconhece que os soldados no sabiam como
reagir. De certa forma, isso significava vantagem daqueles considerados colaboradores da
subverso. Mas se admite que tal fato desorientava os soldados, o que, evidentemente, devia
ser revertido.
179
217
218
de narcticos. Na Academia Internacional de Polcia, em Washington a qual, segundo o exagente da CIA, Phillip Agee, era controlada pela prpria CIA - havia um curso avanado para
oficiais, de 14 semanas de durao e que, entre outros temas, continha no seu currculo
tpicos como sistemas policiais comparados, controle de motins, bombas, segurana interna,
natureza da ameaa insurrecional e psicologia das multides e das massas amotinadas. 181
O interrogatrio e as formas de obteno de informao sempre foram um dos
aspectos centrais desses cursos, pois se vinculava, sem fazer meno explcita, coleta de
informao para medidas preventivas de segurana e ao uso da tortura. A realizao de tais
cursos, ministrados tanto em territrio dos EUA quanto nos pases que acolhiam suas misses
militares (como no caso de Dan Mitrione, por exemplo), foi algo sempre negado pelo governo
norte-americano e pelos seus aliados na regio. O registro feito pelo boina verde Donald
Duncan, bem ilustrativo a esse respeito. Duncan relatou que um soldado, aps presenciar na
aula a aplicao de diversas tcnicas de tortura para arrancar informao, ao perguntar ao
instrutor se pretendia que os alunos empregassem esses mtodos, ouviu como resposta: No
podemos dizer-lhe isso, Sargento Harrison. As mamezinhas aqui nos Estados Unidos no
aprovariam. A continuao, para arrematar qualquer dvida ao respeito acrescentou: Alm
disso, negaremos ter ensinado ou pretendido que se fizesse tal coisa. 182
O dilema dos excessos foi resolvido, na prtica, como demonstra a seguinte
argumentao do contra-almirante argentino Csar Guzzetti ao expressar o que ele entende
por subverso:
Mi concepto de subversin se refiere a las organizaciones terroristas de signo
izquierdista. La subversin o el terrorismo de derecha no es tal. El cuerpo
social del pas est contaminado por una enfermedad que corroe sus entraas
y forma anticuerpos. Esos anticuerpos no deben ser considerados de la
misma manera que se considera un microbio. A medida que el gobierno
controle y destruya a la guerrilla, la accin del anticuerpo va a desaparecer.
Yo estoy seguro que en los prximos meses no habr mas acciones de la
derecha, cosa que ya est ocurriendo. Se trata slo de una reaccin natural de
un cuerpo enfermo. 183
219
184
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aluno alvo, de que o rol protagnico decorrente da sua funo militar dependia das suas
atitudes e iniciativas. A origem dessa concepo encontrava-se na luta contra as foras nazifascistas, durante a Segunda Guerra, e teve continuidade na cruzada anticomunista da Guerra
Fria, sempre reforando a idia-chave da defesa do mundo livre e dos valores da civilizao
ocidental e crist. S que a base doutrinria fornecida pela DSN norte-americana, ao ser
adaptada aos pases perifricos, expressava mais do que o aperfeioamento do soldado.
A DSN abria uma nova dimenso da poltica interna ao convocar a participao da
corporao militar exigindo-lhe que assumisse, de forma aberta e agressiva, um rol que
extrapolava a simples interveno saneadora e transitria almejando o protagonismo
necessrio para encaminhar a refundao do Estado. Ou seja, instrumentalizava o fator militar
para que este se apropriasse dos mecanismos da poltica com o intuito de assumir a
responsabilidade do gerenciamento do pas atravs de um projeto a longo prazo.
Questionando a ineficincia do poder civil em prevenir e extirpar os focos radicais resultantes
das mazelas sociais e das polticas econmicas locais existentes, a combinao de programas
de contra-insurgncia com a ao cvica militar serviu para catapultar as Foras Armadas. Sob
o disfarce da tecnocracia e da neutralidade da corporao, os cursos de treinamento de oficiais
especializados na represso anti-subversiva foram fundamentados, em termos doutrinrios, na
defesa dos sentimentos mais profundos da Nao e dos valores da civilizao crist-ocidental.
inegvel, portanto, que um dos objetivos primordiais da formao militar ministrada pelos
especialistas estadunidenses aos seus congneres latino-americanos visou convenc-los da
necessidade de que assumissem, direta ou indiretamente, as tarefas polticas do pas. 187
Martha Huggins, ao analisar a formao das foras policiais (que apresenta
caractersticas gerais prximas da instruo ministrada s foras militares), afirma, em primeiro
lugar, que os quadros que passaram por tais cursos ocuparam ou vieram a ocupar cargos
importantes na hierarquia da estrutura policial dos seus respectivos pases. O principal centro de
treinamento foi a Academia Internacional de Polcia (IPA), por onde passaram aproximadamente
5 mil policiais estrangeiros. Treinados no combate insurreio urbana, a autora constata que,
por detrs do discurso da profissionalizao e da qualificao para o desempenho da funo, h
uma apologia da violncia como sistema mediante a prtica de mtodos brutais de interrogao
e de tortura. 188
Seguindo com o raciocnio de Huggins, retomamos a idia de que o discurso que
justifica a qualificao militar (e policial) das foras locais como meio de fortalecimento da
187
188
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1978, o jornalista brasileiro Newton Carlos escrevia um texto que intitulava Ningum Segura a
Segurana. No mesmo, descrevia um cenrio de fronteiras mveis marcado pela
internacionalizao da ao repressiva (uma espcie de represso sem fronteiras) e que agia
inclusive dentro dos EUA, ao ponto de obrigar o Senado a perguntar CIA: [...] como servios
de segurana estrangeiros operam nos Estados Unidos, at assassinando exilados polticos
[referncia ao caso Letelier], e qual o papel que a prpria CIA o papai grande de subsidirias
espalhadas pelo terceiro mundo desempenha nessa internacional. 193 Na poca, aumentavam
as evidncias da existncia de uma articulao repressiva que somente tempos depois viria a ser
conhecida como Operao Condor.
A conseqncia direta do processo de centralizao do sistema de segurana foi a
interdio do contraditrio poltico e a instalao de uma estrutura verticalizada de controle;
em sntese, um processo crescente de militarizao da segurana, o que acarretou no
recrudescimento do autoritarismo. A flexibilizao do conceito de inimigo interno e a
transformao da luta contra-insurgente em uma verdadeira guerra interna estendeu o conflito
aos confins da sociedade nacional, exigindo a existncia de uma forte estrutura burocrtica
que racionalizasse e rotinizasse o sigilo, a fraude, a violncia e o terror. 194
Huggins considera, finalmente, a questo da degenerescncia desse processo,
entendendo tal situao como a perda do controle estatal e a autonomizao de grupos
repressivos. Entre os motivos para o mesmo, aponta o surgimento de tenses, conflitos e
contradies internas inerentes dinmica do sistema ou da ao dos seus atores. Outra razo
estava na superao de uma situao de emergncia; isto poderia exigir um processo de
desburocratizao que gerasse menor controle sobre os diversos setores repressivos,
conferindo-lhes, conseqentemente, maior autonomizao de atuao. Foi o caso dos
esquadres da morte, que se vinculavam, de forma indireta, com a represso policial formal.
A situao de degenerescncia pode ajudar a explicar tambm situaes de faces do prprio
sistema de segurana que se enfrentavam praticando espionagem ou agindo uma contra a
europeu: contra o casal chileno Leighton (Roma, 1975); contra o general boliviano Joaqun Zenteno Anaya
(Paris, 1976); o assassinato do coronel uruguaio Trabal (Paris, 1974). Entretanto, o caso de maior repercusso foi
o atentado que matou Orlando Letelier, ex-chanceler chileno da Unidade Popular, e sua assistente no Instituto
de Estudio de la Poltica, a cidad estadunidense Ronny Moffit, em Washington (20/09/76). Segundo
documentos desclassificados pelos EUA, o crime foi dirigido por agentes da DINA chilena encobertos por
documentao paraguaia (solicitada como favor urgente pelo general Pinochet ao general Stroessner) e
efetuado em conjunto com dissidentes cubanos vinculados CIA. BOCCIA PAZ, Alfredo et al. En los stanos
de los generales. Los documentos ocultos del operativo Condor. Asuncin: Expolibro/Servilibro, 2002. p.
160-164. Na obra de Stella Calloni Operacin Cndor: los aos del lobo (1999), h srias acusaes contra a
CIA e seu ento diretor, George Bush, por envolvimento no assassinato de Letelier.
193
CARLOS, Newton. Amrica Latina dois pontos. Rio de Janeiro: Editora Codecri, 1978.
194
HUGGINS, op. cit., p. 23.
223
outra. Esta situao j foi apontada para o caso da represso desencadeada na Argentina
(guerra scia) e uma situao qual no estavam a salvo sequer os sistemas de espionagem
e informao dos EUA, como num fato de espionagem da embaixada sovitica em
Montevidu pela CIA, abortada por uma ao do FBI, num contexto de disputa entre as duas
organizaes policiais norte-americanas. 195 De qualquer maneira, mais do que a perda de
controle por parte do Estado, a presena e as manifestaes desses grupos de extermnio ou de
justicieiros eram parte da engrenagem do TDE. Em realidade, em certas conjunturas,
interessava ao Estado desconectar-se de uma violncia mais extremada deslocando-a para
esses grupos paramilitares e parapoliciais que, na prtica, tambm eram por ele orientados,
sustentados e dirigidos.
No Uruguai, as Foras Armadas assumiram o novo papel como um sacrifcio que
devia ser realizado em nome da ptria. Elas ressaltaram que, diferentemente do que
denunciavam os setores subversivos (antinacionais), o soldado uruguaio no era um
mercenrio. Bem pelo contrrio. Ele demonstrava, com suas aes, possuir ideais patriticos,
sentido do dever e da disciplina, e sua atuao siempre estuvo enmarcada por la ms estricta
legalidad [grifo meu]. 196 As Foras Armadas reforaram que, diante dos piores adjetivos
dedicados por parte do inimigo, a abnegao desse homem comum, o soldado, to dedicado
defesa da sua comunidade nacional e dos seus iguais, destacou-se ainda mais:
En mltiples ocasiones los oficiales y subalternos, clases y soldados, de las
FFCC [Fuerzas Conjuntas - Foras Armadas], pusieron de relieve sus
innatas cualidades de arrojo y valenta, disputandose posiciones de mayor
riesgo, en una permanente demonstracin de herosmo colectivo y annimo,
exento de todo afn exhibicionista, frente a un enemigo cruel, taimado y
traicionero, resumante de odio y bien pertrechado en armas automticas. 197
195
224
expectativa de que, num futuro no muito distante, parte deles ocuparia cargos de comando.
Efetivamente, esta foi uma das perspectivas mais estratgicas que nortearam a abertura das
escolas militares dos EUA para as Foras Armadas latino-americanas. Nesse sentido, em
outubro de 1973, o Pentgono reconhecia, com satisfao, o sucesso dos seus cursos e do
investimento feito para enfrentar a ameaa comunista no continente atravs da estratgia de
dividir custos e responsabilidades com as Foras Armadas locais, mediante treinamento e
fornecimento de material blico. Naquele ano, o Pentgono contabilizava 170 alunos
diplomados pela Escola das Amricas desempenhando funes de Chefes de Estado,
ministros, Comandantes em Chefe das Foras Armadas ou diretores dos Servios de
Inteligncia. 199
O exemplo mais emblemtico de atuao contra-insurgente contundente, persistente
e eficiente foi o da paradigmtica interveno no Chile da Unidade Popular, com a
peculiaridade de que no foi contra a presena e crescimento de movimentos guerrilheiros ou
protagonismo de partidos de esquerda. Neste caso, a interferncia foi contra um governo
democraticamente eleito e respeitoso da legalidade constitucional democrtico-burguesa. A
denominada via chilena ao socialismo caracterizou-se justamente pelo avano de um projeto
de esquerda (via Frente Popular) que conseguiu ocupar espao poltico dentro da
institucionalidade burguesa. Visto como a primeira experincia socialista decorrente de um
processo pacfico (diferente do caso cubano e do modelo de violncia revolucionria); o Chile
de Allende satisfazia os pr-requisitos de respeito ordem constitucional e s regras de
disputa eleitoral, o que desmonta o discurso da DSN, das autoridades estadunidenses e dos
aliados chilenos diante dos atos que desencadearam.
Na vspera de setembro de 1973, no contexto do golpe contra Allende, os EUA j se
haviam definido abertamente pela prioridade da segurana em detrimento da democracia. Tal
posio estava implcita, exemplarmente, na lapidar frase de Kissinger: No vejo por que
temos de ficar parados enquanto um pas se torna comunista pela irresponsabilidade de seu
povo. 200 Tal frase no surpreende, apesar do grave significado antidemocrtico,
intervencionista e preconceituoso que ela contm, alm de ter-se tornado um dos primeiros
registros de ao preventiva da poltica exterior norte-americana. O envolvimento
estadunidense no golpe que deps o governo da Unidade Popular no foi o mais assutador. O
pior a constatao de que, antes do prprio pleito eleitoral que deu a vitria coalizo
liderada por Allende, a conspirao j estava em marcha e, de que nela, os EUA tinham um
199
200
225
papel central. Para ser mais preciso, desde a administrao Kennedy, a esquerda chilena
estava na mira. 201
A CIA teve um papel ativo nas aes que tentaram inviabilizar a campanha eleitoral
da Unidade Popular e, posteriormente, sua posse, em 1970. Consumada a vitria de Allende,
investiu em fracassadas tentativas golpistas para impedir a posse. Para tanto, a CIA
desenvolveu duas estrategistas golpistas. A primeira, a via I, envolvia a colaborao do
PDC, do ex-presidente Eduardo Frei, e do alto comando militar, e fracassou,
fundamentalmente, pela postura constitucionalista dos generais Schneider e Prats. A partir
da, passou-se para a via II, ou seja, um golpe militar clssico. Para tanto, a CIA objetivava
remover os comandantes constitucionalistas, atrair setores golpistas do segundo escalo
militar e criar um clima de instabilidade que justificasse o golpe de Estado. Diante deste
quadro, passou a identificar oficiais golpistas (garantindo-lhes apoio dos EUA) e a
desestabilizar o cenrio poltico atravs de campanhas de propaganda e atividades terroristas.
E, na ao mais ousada, participou, indiretamente, do assassinato do Comandante em Chefe
do Exrcito, o general Schneider. 202
Considerando tais fatos e pelo exemplo paradigmtico que constituem, merecem
registro as concluses 203 de uma anlise realizada por agentes da CIA, imediatamente aps a
divulgao do resultado eleitoral de 1970. A mesma avaliava o impacto de um governo
Allende para os interesses dos EUA no Chile e no conjunto da regio:
1.
2.
3.
201
Com a autoridade de ser um dos maiores especialistas em poltica externa norte-americana e de utilizar
documentao oficial, Noam Chomsky afirma que: A primeira manipulao ilegal da Casa Branca do processo
eleitoral chileno contra Salvador Allende se deu nas eleies presidenciais de 1964, nas quais a CIA gastou mais
de trs milhes de dlares em operaes polticas secretas comprando jornalistas e polticos, fomentando
calnias e mentiras sobre o candidato para impedir o triunfo de Salvador Allende. CHOMSKY, Um olhar
sobre Amrica Latina. Op. cit., p. 221.
202
A embaixada em Santiago sugeriu, em um relatrio encaminhado a Henry Kissinger (21/09/70), neutralizar o
general Schneider. De fato, este sofreu, em 19 e 20 de outubro, duas tentativas de seqestro. Finalmente, em 22
de outubro, ao resistir a uma terceira tentativa, acabou assassinado. As implicaes da CIA no fato acabaram
confirmadas nas investigaes posteriores do Senado norte-americano. Idem, p. 224.
203
Tanto na obra Banhos de Sangue (1976), escrita com Herman, quanto em Um olhar sobre a Amrica Latina
(1998), Chomsky publica alguns desses documentos, at ento inditos, obtidos nos Arquivos Nacionais dos
Estados Unidos. A respeito das concluses aludidas no texto, a fonte dele Select Committee study
governmental operations with respect to intelligence activitie. U.S. Senate, Alleged assassination plots involving
226
considerveis:
a) A coeso hemisfrica seria ameaada pelo desafio que representaria um
governo de Allende para a OEA e pelas reaes que geraria em outros
pases. No vemos, no entanto, nenhuma ameaa para a paz na regio;
b)
foreign leaders. Washington, D.C.: U.S. Government Printing Office, 1975, p. 229-250.
204
CHOMSKY, Um olhar sobre Amrica Latina. Op. cit., p. 222.
205
KRYZANEK, op. cit., p. 104.
227
228
a su vez es apoyado por todas estas operaciones[...] e est ligada ao centro de comando
contra-insurgente. 207
A ao cvica, por fim, propunha que os militares assumissem um papel de
integrao e de bem estar geral, melhorando sua imagem junto populao, ganhando a
confiana e um gradual colaboracionismo que podia chegar a ser de um apoio ativo. 208
Certamente, este ltimo objetivo era o fundamental, pois, no mesmo momento em que
conquistavam a confiana e a simpatia dessa populao, conseguiam afast-la da esfera de
influncia da guerrilha, isolando-a ainda mais, o que aumentava sensivelmente as
possibilidades de vitria militar contra-insurgente.
Idem, p. 154.
Idem, p. 152.
208
CUARTEL GENERAL, DEPARTAMENTO DE EJRCITO (USA). Operaciones de contraguerrilla. Op.
cit., p. 151.
207
229
210
O carter ambguo do texto que enunciava o quinto item abria uma brecha que
permitia, organizao, extrapolar suas funes fundadoras. Gregorio Selser afirma que a
209
230
aplicao das funes estabelecidas nos itens 4 e 5 significava que o governo dos EUA
concedia um cheque em branco CIA para patrocinar motins, golpes de Estado, atividades
subversivas e as dirty tricks (jogos ou aes sujas). 212 A autonomia da organizao foi sendo
consolidada ao ser eximida de ter que tornar pblico nomes de funcionrios, gastos, aes
desenvolvidas e oramentos. Em 1958, Allen W. Dulles reconheceu tal situao ao afirmar, na
Universidade de Yale, j como Diretor da CIA, que inexistia pas no mundo cujo servio de
inteligncia exercesse a influncia sobre seu respectivo governo como fazia a CIA em relao
ao governo norte-americano. At mesmo Truman, pai da criatura, encontrou motivos para
arrepender-se do engendro; 16 anos depois, em 1963, escreveu que: [...] la CIA ha sido
desviada de su funcin original y se ha convertido en un brazo de operaciones que a veces es
el que dirige la poltica del gobierno; [a ela devem atribuir-se] algunas de las complicaciones
y situaciones embarazosas que estimo hemos experimentado. 213
Em outubro de 1951, a CIA obteve nova autorizao do Conselho Nacional de
Segurana (diretriz 10/5) que lhe permitiu estender suas operaes secretas pelo mundo todo.
De certa forma, A CIA foi chamada a intervir nos casos em que a diplomacia constitua um
meio de ao insuficiente para a segurana nacional dos Estados Unidos e quando uma
interveno militar direta era contra-indicada. Foi o domnio da ao secreta. 214 A partir
desse momento, as modalidades de operaes que a CIA desenvolvia no exterior se
diversificaram significativamente organizando, em escala global, aes subversivas ou de
desestabilizao. Em essncia, a partir dessa diretriz, o governo dos EUA assumia, como
sendo da sua alada, atividades de todo tipo contra grupos estrangeiros ou Estados hostis.
Evidentemente que essas operaes deviam ser planejadas com mxima cautela, sem deixar
rastos ou, ento, deixando pistas diversionistas que dificultassem qualquer identificao da
origem intelectual ou da autoria da execuo da ao. E, principalmente, devia-se ter o
mximo cuidado para que fossem encobertos todos e quaisquer indcios que vinculassem
esses fatos com o governo estadunidense, o qual, de qualquer forma, diante de qualquer
acusao de envolvimento nos mesmos, negaria toda evidncia e responsabilidade.
Em 1955, a diretriz NSC-5412 aprovou outra orientao sobre a atividade subversiva
(vigente pelo menos at fevereiro de 1970, quando da constituio da Comisso 40). Segundo
essa diretriz, os objetivos da CIA foram reorientados, fundamentalmente, para o combate do
grande inimigo, o comunismo internacional, em todas as suas dimenses. Nesse sentido, cabia
212
SELSER, Gregorio. CIA: De Dulles a Raborn. Buenos Aires: Ediciones de Poltica Americana, 1967. p. 18.
CIA: la gusanera empieza a hervir. Marcha, 26/09/69, p. 11.
214
COMBLIN, op. cit., p. 129.
213
231
com
propaganda,
atividades
polticas,
sabotagem
econmica,
lockaut,
232
218
233
234
Cristiano Social, Equador), Rafael Arizaga (Partido Conservador, Equador), Sergio Onofre
Jarpa (Partido Nacional, Chile). Em relao ao Uruguai, identifica Benito Nardone (poltico
ruralista vinculado ao Partido Blancos) que chegou a ser presidente do pas. Sua esposa Olga
Clerici de Nardone tambm colaborou. 224
No processo de cooptao, foi estratgico obter a colaborao de empresrios e
funcionrios vinculados a empresas de comunicao e com acesso a meios de informao
(jornais, revistas, editoras, agncias de notcias, programas e canais de rdio e TV); estes
agentes ou aliados desempenharam um papel fundamental na veiculao de propaganda e
contra-informao disponibilizando Companhia uma grande rede de meios massivos de
comunicao. Foram peas importantes nas redes internas montadas clandestinamente e
financiadas pela CIA. Os mecanismos de cooptao dos agentes foram variados, mas a
afinidade ideolgica com os EUA e a corrupo generalizada constituram instrumentos de
grande eficincia. Mais difcil era penetrar no interior de partidos de esquerda ou de
movimentos revolucionrios. Mesmo assim, a infiltrao acontecia. A revista Time informava
que parte dos recursos destinados a desestabilizar o governo da Unidade Popular de Allende,
fora utilizado no pagamento de provocadores conjunturais, e de agentes infiltrados no Partido
Socialista.
A CIA tambm infiltrou um vasto sistema de organizaes e empresas que serviram
de fachada para esconder suas atividades e seus agentes encobertos. Zubenko & Tarsov
citam as corporaes de Delaware, empresas fictcias sediadas nesse Estado norteamericano onde existiu, na poca, uma legislao bastante permissiva quanto falta de
regulamentao de normas de inscrio de sociedades annimas, o que permitiu CIA
constituir, sem maiores receios, organizaes fictcias que depois utilizou na Amrica Latina
para encobrir sua atividade subversiva. 225 Nos pases atingidos pela sua atuao, a
organizao orientou alguns dos agentes infiltrados para que se envolvessem em atividades
econmicas de fachada. Esse tipo de experincia foi relatada pelo cubano infiltrado na CIA
Manuel Hevia, que no Uruguai desempenhou, sucessivamente, atividades como professor de
lngua inglesa, tradutor e at dono de um bar noturno nas proximidades de Punta del Este. 226
A rede que foi sendo montada durante as dcadas de 50 e 60 mostra, claramente, que
os objetivos da Companhia extrapolaram a simples coleta de informao para transformarse, cada vez mais, em espionagem e crescente interferncia no interior dos pases alvos,
224
235
236
dinmica institucional dos pases visando mudanas de regime, pacficas ou violentas, para
beneficiar setores pr-EUA. A ao psicolgica preparava o cenrio que antecedia a aplicao
de medidas de fora e at de interveno golpista, alimentando o clima de efervescncia e de
desestabilizao que induzia interpretao da perda de controle e a necessidade de medidas
fortes (at autoritrias) para recompor a ordem. s vezes, a justificativa para esse tipo de
ruptura constitucional ocorria com a potencializao do aumento de um sentimento anti-EUA,
por parte da populao, mostrada como vinculada ao comunismo e jogada contra o restante da
sociedade, que, assustada, aceitava o golpe ou a escalada autoritria. O Chile de Salvador
Allende certamente foi um dos casos mais explcitos de interveno da CIA envolvendo os
aspectos poltico e psicolgico. Quanto ao paramilitar, implicava na interveno direta em
territrio estrangeiro mediante operaes blicas executadas por unidades especiais
encobertas. A agresso ao Vietn exemplificou este tipo de atuao. 230
Por outro lado, a ao de espionagem no teve limites. At os setores considerados
aliados podiam ser alvos da mesma, pois a organizao procurava obter documentos
comprometedores para provvel utilizao futura dos mesmos (como mecanismos de presso
ou, literalmente, de chantagem). At diplomatas e adidos estadunidenses eram passveis de
sofrerem espionagem da CIA. Esta foi uma modalidade concreta de atuao que a
organizao desempenhou em territrio estrangeiro, procurando descobrir provas materiais ou
morais que comprometessem indivduos incmodos ou, ento, plantando falsas acusaes
difceis de serem desmontadas, o que induzia ao colaboracionismo. Os relatos de Philip Agee
e Manuel Hevia so muito esclarecedores a respeito. 231
Como j foi afirmado, a CIA teve papel fundamental na organizao, articulao e
coordenao dos servios de inteligncia da regio; assim, pautou a necessidade de
estabelecer aes coordenadas que permitissem uma ao eficiente de vigilncia sobre
exilados polticos, bloqueando a atuao poltica destes e limitando-lhes o campo de ao, j
que, a partir do exterior, desencadeavam campanhas de denncias contra as ditaduras de SN.
A jornalista Stella Calloni ressalta que foi a Companhia quem viabilizou as primeiras
reunies entre as autoridades uruguaias e argentinas responsveis pela SN para discutir a
vigilncia dos exilados polticos, assim como pela intermediao da aproximao entre as
lideranas paramilitares e dos esquadres da morte brasileiros, argentinos e uruguaios. Tal
modalidade de cooperao mostrou-se ser muito eficiente, principalmente no que diz respeito
229
Idem.
SELSER, op. cit., p. 29.
231
AGEE, op. cit.; HEVIA, op. cit.
230
237
232
CALLONI, Stella. Operacin Cndor: los aos del lobo. Buenos Aires: Pea Lillo y Ediciones Continente,
1999. p. 17.
233
LANGGUTH, op. cit., p. 54.
234
A prolixina produz reaes similares aos sintomas do mal de Parkinson enquanto que a ansotina produz
delrios ou iluso de prxima morte. ZUBENKO; TARSOV, op. cit., p. 24.
238
unidade de comando no Uruguai, foi eclipsado e ignorado pelos embaixadores norteamericanos e pelos funcionrios da CIA. 236 Nas suas aulas, Mitrione ensinava que o
interrogatrio era constitudo de vrias fases que deviam ser seguidas metodicamente.
Primeiro, ocorria uma fase obrigatria que denominava de amaciamento, onde o preso sofria
as agresses fsicas e as humilhaes de praxe (os torturadores argentinos e uruguaios se
referem a isto como passar pela mquina). O objetivo desta primeira bateria de agresses
era mostrar vtima o quanto estava indefesa e desconectada da realidade. Uma segunda fase
repetia a agresso fsica s que em absoluto silncio, procurando desconcertar quanto aos
reais motivos da priso e das intenes para com ela. Para Mitrione, concluda estas fases, o
preso certamente j apresentaria sinais de perda de resistncia (estar quebrado); era
chegado, ento, o momento de comear o interrogatrio propriamente dito.
A violncia utilizada contra o interrogado devia ser limitada s condies de
sobrevivncia do mesmo, por isso, Mitrione afirmava que todo preso devia receber um
minucioso exame mdico para avaliar suas condies fsicas e seu grau de resistncia. Ele
devia continuar aferrado a uma esperana de vida. 237 Para Mitrione: Una muerte prematura
significara el fracaso del tcnico. 238 Mitrione, com o orgulho da eficincia assptica do
expert, sintetizava o ideal da funo do interrogador: Dolor preciso, en el lugar preciso, en la
proporcin precisa. 239
Apesar da sua contundncia, a frase de Mitrione est em plena concordncia com a
do diretor da CIA, William Colby, que, ao declarar diante do Congresso dos EUA sobre a
Operao Phoenix, aplicada no Vietn, afirmou que a mesma [...] preconizaba la detencin
por cuanto respetamos la vida humana [provocando risos dos presentes]. Adems, se sabe que
el hombre viviente puede dar informacin y un cadver no. 240 Colby falava com
propriedade. Em 1966, como subdiretor da Companhia, colocara em prtica aquela
operao, parte do programa geral de pacificao do Vietn, criando organizaes
paramilitares responsveis por milhares de seqestros e assassinatos em todo o pas.
Idealizada como pacificao das aldeias sul-vietnamitas, essa operao contava com
pelotes de explorao provincial integrados por unidades irregulares que realizavam
operaes punitivas contra os povoados e eram apoiados por 44 centros de informao [...]
235
239
241
Cinicamente,
Talvez o mais importante das declaraes de Colby diante do Senado tenha sido o
reconhecimento de que as aes da Operao Phoenix eram do conhecimento do governo dos
EUA, do presidente, do Conselho de Segurana Nacional e at do Congresso.
Em fevereiro de 1970, quando a Agncia de Segurana Nacional (NSA) instituiu a
Comisso (Comit) 40 e substituiu todas as diretrizes do NSC anteriores sobre as operaes
secretas. A nova estrutura era criada para centralizar e monitorar a atuao secreta da CIA,
preocupao que vinha desde a administrao Eisenhower. O significado dessa pequena
estrutura de poder, diz o jornalista ingls Christopher Hitchens, est no fato de que se tratou
de uma organizao semiclandestina, presidida por Henry Kissinger entre 1969 e 1976, que,
em sntese, centralizava e supervisionava as aes secretas dos EUA. Seu carter nebuloso se
confirmou com aas denncias de intervencionismo no Chile, nos trgicos acontecimentos de
setembro de 1973. Em sesso do Senado, em 1973, William Colby, indagado sobre as
atividades do Comit 40, reconheceu que O Doutor Kissinger o presidente do grupo, como
assistente do presidente nos assuntos de segurana nacional. 243 Com isso, conectava
diretamente a administrao Nixon ao trabalho sujo desenvolvido pela CIA no exterior. A
afirmao de Colby, detentor de qualificada informao a respeito do funcionamento do
sistema de espionagem e de interferncia estadunidense no exterior, levou Hitchens a concluir
que: Em qualquer ao secreta importante que tenha ocorrido entre os anos de 1969 e 1976,
certo que Henry Kissinger se encontrava no mnimo ciente, e talvez fosse responsvel por
ela. 244
O mesmo Colby, posteriormente, declararia que: [...] os Estados Unidos tem direito
a atuar ilegalmente em qualquer regio do mundo, acumular investigaes nos demais pases
240
240
e at levar a cabo operaes tais como a intromisso nos assuntos internos chilenos. 245
Efetivamente, a Operao Phoenix foi aplicado no Chile aps a derrubada de Salvador
Allende, quando se aplicou tudo aquilo que Colby considerava de mais avanado em
matria de operaes secretas e criminosas. 246 Os dossis publicados por Noam Chomsky, na
obra Banhos de Sangue (1976), mostram as profundas implicaes da CIA na denominada
Operao Chile atravs de linhas de financiamento, conexes profundas com os setores
golpistas e no estmulo e apoio para as atividades repressivas desencadeadas.
O semanrio uruguaio Marcha repercutia, em novembro de 1974, com profunda
preocupao, que o volume de atividades clandestinas da CIA era de tal monta que, dos seus
16.500 funcionrios, 11 mil destinavam-se a elas e, do seu oramento anual (de
aproximadamente US$ 750 milhes), mais de dois teros destinavam-se s aes encobertas.
Menos de 20% dos funcionrios e menos do 10% do seu oramento eram efetivamente
destinados quela que devia ser sua alegada funo original, a anlise de inteligncia e o
processamento de informao. 247 Um ano antes, o mesmo semanrio, delineando as
complexas tramas da informao/contra-informao, anunciava, com consternao, quem era
Ernest Siracusa, o novo embaixador que os EUA estavam destinando para o Uruguay
governado por Bordaberry. Marcha informava que Siracusa havia sido Assessor de Negcios
da Embaixada dos EUA no Peru at outubro de 1969, quando foi expulso do pas ao ser
identificado como encarregado da Chefatura da CIA para Amrica Latina. Nomeado
embaixador na Bolvia, em 1970, conspirou contra o governo Ovando, que iniciara uma
poltica de nacionalizaes e expropriaes, como a da Gulf Oil. Segundo uma fonte de
Marcha, Siracusa era o autor das seguintes palavras:
Nuestros amigos industriales y del gran comercio, aqu en Bolivia, van a
colaborar con el plan, limitando sus operaciones, y si es preciso, cerrando
sus fbricas aduciendo dificultades econmicas causadas por la poltica del
gobierno con la finalidad de producir una verdadera explosin que enfrente a
obreros sin pagar al gobierno de Ovando. 248
Frase que, na sua essncia, coincidia com o esprito das palavras emblemticas do
presidente Nixon quando, em relao ao Chile de Allende, ordenava fazer a economia
[chilena] gritar. 249 Quanto Bolvia, os fatos comprovam que, independente da autenticidade
da verso apresentada por Marcha, o pas foi sacudido por uma onda de presses poltico245
241
empresariais que derrubou Ovando mas foi resistida pelo general Torres. Curiosamente,
Siracusa continuou como embaixador dos EUA na Bolvia; e Torres foi derrubado em agosto
de 1971. Os acontecimentos na Bolvia tornam inevitvel o paralelo entre a metodologia de
desestabilizao desencadeada nesse pas (sabotagem e lockaut patrocinado pelo
empresariado com apoio dos meios de comunicao, das companhias estrangeiras e do
governo dos EUA), com aquela desenvolvida contra o Chile de Allende, dois anos depois.
No desconhecendo as peculiaridades de cada caso especfico, evidente a existncia de um
padro comum quanto a uma estratgia de desestabilizao, o que corroborado pela
documentao que comprova, na elaborao e na organizao de tais eventos, a forte presena
da CIA. Finalmente, cabe salientar que a Companhia tambm esteve implicada diretamente
na posterior configurao da Operao Condor, fato apontado nas obras de Stella Calloni 250 e
de Francisco Martorell. 251
242
MARTORELL, Francisco. Operacin Cndor. El vuelo de la muerte. Santiago de Chile: LOM, 1999.
Para Trias a proposio da ALPRO s se justifica pelas perdas econmicas e polticas dos EUA em Cuba. A
relao evidente; uma simples correlao de datas esclarece o sentido real das intenes da superpotncia.
Elucida tal questo saber que, em 13 de maro de 1961, enquanto o presidente Kennedy apresentava as diretrizes
da ALPRO, o Pentgono acelerava os preparativos para invadir a ilha. TRIAS, op. cit., p. 20-21.
253
Idem.
254
KRYZANEK, op. cit., p. 98.
252
243
Idem, p. 99.
SCHOULTZ, op. cit.
257
As diretrizes econmicos apontavam para: a) Acelerao do desenvolvimento econmico-social com uma
expectativa de crescimento de 2,5% anual per capita: b) diversificao equilibrada das estruturas econmicas e
combate monocultura; c) acelerao da industrializao; d) Impulsionar programas de reforma agrria; e)
eliminao do analfabetismo estendendo o ensino em todos os nveis; f) melhoria das condies de salubridade
visando aumentar, num prazo de cinco anos, as expectativas de vida; g) estabelecimento de poltica monetria e
financeira que combata a inflao e a deflao, e poltica tributria baseada no imposto riqueza; h)
fortalecimento de acordos de integrao econmica continental (Mercado Comum Latino-americano); i) busca
de solues cooperativas ao grave problema dos preos das matrias primas; j) estmulo da atividade privada.
TRIAS, op. cit., p. 17.
256
244
245
aps sua publicitao, que: Essa revoluo [...] continuar depois que seus objetivos tenham
sido alcanados. Se no forem alcanados, a revoluo continuar, mas seus mtodos e
resultados sero tragicamente diferentes. 259 Kennedy, mesclando apelo com ameaa velada,
pressionava em um duplo sentido. Internamente, procurava enfraquecer a oposio ao
programa com um discurso que anunciava a iminncia da ruptura institucional e
anticapitalista se a ALPRO falhasse ou fosse paralisada pelo Congresso. Externamente, sua
fala parecia mais ameaadora, repartindo a responsabilidade entre seus aliados (suspeitos de
serem politicamente incompetentes) e os setores intransigentes que, apesar de tudo,
comungavam do seu anticomunismo. Um ano depois, Kennedy mostrava-se mais ameaador:
[...] aqueles que tornam a revoluo pacfica impossvel tornaro a revoluo violenta
inevitvel. 260 Ficava bem claro que Washington exigia um alinhamento incondicional das
elites locais.
curioso constatar a contraposio feita pelo discurso oficial anunciando uma
revoluo pacfica (da sua iniciativa) em oposio a uma revoluo violenta. Em sntese, a
revoluo comunista era violenta; j, a pretendida pelos EUA e seus aliados ocorria dentro
dos limites da liberdade, da democracia e da constitucionalidade. Nas entrelinhas era dito que
o no alinhamento s propostas da ALPRO enfraquecia a revoluo pacfica e,
simultaneamente, favorecia o avano do comunismo. As palavras de Kennedy levaram aliados
locais a pressionar as fraes intransigentes da elite diante das reformas propostas.
Uma outra questo colocado pelo alerta do presidente estadunidense refere-se
compreenso de que havia duas revolues possveis. No se trata aqui de discutir o conceito,
embora, numa perspectiva de mudana estrutural, evidente que o programa da ALPRO no
passava de um conjunto de tmidas reformas e no uma transformao revolucionria da
sociedade. Mas isto secundrio. O que central no postulado semntico da revoluo
pacfica a tentativa de apropriao conceitual que, em termos concretos, visava a
possibilidade de mobilizao de setores populares pouco politizados (cooptando-os ou
tornando-os mais refratrios s idias e aos grupos insurgentes) e de alguns segmentos de
classe mdia anticomunista e tambm anti-oligrquica. Ou seja, pretendia-se dar a tais
segmentos um ideal, uma bandeira, um protagonismo, uma justificativa ideolgica e
psicolgica para que no se sentissem diminudos diante da revoluo da esquerda.
Apesar desses impasses, a evoluo da implementao das medidas parece ter
259
260
246
agradado o presidente Kennedy. Pelo menos o que se desprende de vrios discursos sobre a
ALPRO. Em janeiro de 1963, em um extenso balano sobre a situao interna e externa dos
EUA, Kennedy avaliava assim a Aliana para o Progresso: [...] Orgulho-me de um programa
e de um pas que tem auxiliado a armar, alimentar e vestir milhes de pessoas que vivem nas
linhas de frente da liberdade. [...] 261 Chama a ateno o trecho final de frase. Parece ser (e de
fato ) a condio da contraparte. Viver nas linhas de frente da liberdade podia ser
entendido como viver na primeira trincheira de defesa da superpotncia, o que estava de
acordo com o entendimento da sobreposio da defesa externa dos EUA com a segurana
interna dos pases da Amrica Latina. Tambm era entendido como resistir ao embate do
inimigo interno defendendo a democracia ocidental e impedindo processos de cubanizao.
Independente disso, parece no haver dvidas de que foi, justamente, a condio de viver nas
linhas de frente da liberdade que justificavam e tornavam obrigatrio o auxlio dessas
populaes. No mesmo discurso, Kennedy mostrava dados concretos da ajuda estadunidense
ao programa:
[...] Proporciona-se hoje na Amrica Latina, a uma em cada quatro crianas
em idade escolar, atravs desse programa, rao extra de alimentos oriundos
de nossos excedentes agrcolas. Distriburam-se 1,5 milhes de livros
didticos e construram-se 17.000 salas de aula. Auxiliou-se a dezenas de
milhares de famlias de lavradores a reinstalaram-se em terras que podem
chamar suas. [...] 262
Terceira Mensagem sobre a situao da Unio, proferida no 14 de janeiro de 1963. KENNEDY, op. cit., p.
44.
262
Idem.
263
Idem.
247
A clareza das suas palavras explicita a ordem das preocupaes. Ao falar no plural,
Kennedy reconhece um protagonismo dos governos latino-americanos, que, provavelmente,
na maior parte dos casos, inexiste. Fica claro tambm que essa aliana costurada pelos EUA
atravs dos mecanismos visveis e invisveis do processo de pentagonizao era apresentada
com pretenses universais. A identificao dos aliados como representantes da totalidade das
populaes e/ou das naes da Amrica Latina escondia o fato de que os governos com os
quais se estabelecia o programa da ALPRO representavam, poltica e economicamente,
parcelas de populao nacional. Omitia-se, nesse tipo de representao, o contraditrio. Ou
seja, o discurso de Kennedy, da mesma maneira que o teor dos documentos da ALPRO,
interditava a oposio, sobretudo a de esquerda. E, assim como a OEA desconhecia o direito
de autodeterminao da populao cubana ao desconhecer a legitimidade do seu governo, a
mesma lgica incidia em cada Estado-membro quanto s foras polticas e sociais que
optavam por projetos diferentes daqueles alinhados aos EUA. Essa foi uma tendncia
crescente no decorrer dos anos 60: os setores de oposio deviam ser neutralizados, isolados
e, seus direitos polticos, quando houvessem condies favorveis, deviam ser retirados. A
ALPRO no era alheia a essa iniciativa.
Portanto, necessrio refletir sobre o real significado da ALPRO. Vivian Trias
enftico ao afirmar que foi uma poltica do imperialismo, uma tentativa de reestruturar o
status quo sobre novas e mais slidas bases. 265 J Gregorio Selser identifica na origem da
ALPRO os esforos do grupo Rockefeller para assegurar e consolidar seus vastos interesses
264
248
266
imperialismo e os setores oligrquicos regionais, onde estes foram cooptados para intermediar
o processo de explorao dos respectivos pases. 267 Segundo ele, se os recursos consignados
tivessem sido aplicados nos programas e obras sociais previstas, poderia ter ocorrido relativa
melhoria das condies de vida da populao, alm de atrair setores mdios e formando uma
aristocracias operria que ajudasse a esvaziar riscos de tenso social. Provavelmente, se
assim tivesse sido, o recurso fora militar no teria sido to vital. Mas, com a
implementao restrita, a instabilidade tendeu a fugir do controle e deixar o regime muito
dependente de sadas autoritrias. Barn conclui afirmando que: Soborno econmico-social y
capacidad militar represiva, varian en relacin inversa. Com isso, aponta para um dos
grandes problemas enfrentados pelo programa: a existncia de redes de corrupo vinculados
a uma cultura poltica dos setores dominantes da regio. 268
Vivian Trias entende que a ALPRO abriu novas possibilidades de lucros aos EUA
ao promover reformas importantes para otimizar os investimentos realizados. Ele aponta trs
conseqncias econmicas bsicas: a relao entre o aumento da capacidade aquisitiva local e
o favorecimento da pauta de exportaes dos EUA na regio; o aumento da produo de
matrias-primas produzindo uma tendncia de baixa nos preos (favorecendo, indiretamente,
o maior importador global, os EUA); a multiplicao dos rendimentos dos investimentos
externos. Uma quarta conseqncia decorre da disseminao do suborno como mecanismo de
cooptao poltica. 269 No seu conjunto, a anlise de Trias sobre os efeitos da ALPRO na
regio, aponta para um aprofundamento da subordinao econmica e poltica dos pases
latino-americanos.
Trias conclui tentando responder a seguinte pergunta: no es esto un principio de
desarrollo, el comienzo de un desarrollismo, a la larga, liberador? E responde: No por
cierto. 270 Para ele, no h contradio na modernizao de estruturas econmicas arcaicas ou
na implementao de nichos produtivos sofisticados no interior de sociedades que continuam
sofrendo relaes econmicas internacionais de subordinao, como prope a ALPRO.
Tampouco contraditrio o esforo modernizador com a persistncia do peso da tradio
oligrquica no controle da superestrutura estatal. Para Trias, subdesenvolvimento no
significa ausncia total de desenvolvimento. Significa sim deformao, limitao do
266
249
Idem.
ACOSTA SANCHEZ, op. cit., p. 20. Os grifos so do autor.
273
Esta discusso est relacionada com o debate sobre o Desenvolvimento Desigual e Combinado. Jos Acosta
Sanchez diz que os efeitos de uma poltica reformista e de modernizao econmica no est em contradio
com as diretrizes que emanam dos centros hegemnicos capitalistas. Em realidade, pode aliviar as tenses
internas e gerar bons dividendos para os setores dominantes locais e at um certo grau de autonomizao diante
dos parceiros internacionais, mas isto no implica em mudana de ordem estrutural. ACOSTA SANCHEZ, op.
cit., p. 20. Veja-se, tambm, o texto de George Novack sobre El Desarrollo Desigual y Combinado en la Historia
Mundial (In: Para Comprender la Historia. Mxico: Fontamara, 1989).
274
TRIAS, op. cit., p. 26.
275
A Aliana para o Progresso gerou muita decepo. Demetrio Boersner afirma que, desde o incio, era evidente
272
250
276
No Uruguai, a escassez de dlares tambm foi constatada. A embaixada norteamericana no pas, atravs da publicao La Alianza para el Progreso en el Uruguay, editada
pelo Servio Cultural e Informativo dos Estados Unidos, reconhecia que o seu pas havia
concedido mais de US$ 71 milhes em quatro anos de execuo da ALPRO. Porm,
denncias do conselheiro Alberto Heber ao Conselho do Estado do Governo (18/03/65),
corroboraram que o pas somente havia recebido US$ 19 milhes, ou seja, do total
divulgado pela embaixada estadunidense. 277
O fato que, aps a morte de Kennedy, o programa foi minguando gradativamente.
A orientao da administrao Johnson enfatizou a opo contra-insurgente relegando a
ALPRO a um segundo plano. No final da sua gesto, o balano mostrava que os resultados da
aplicao do programa haviam ficado muito aqum das expectativas e promessas iniciais.
Paralelamente, o Congresso dos EUA, em 1967, com a conivncia da Casa Branca, realizou
importantes cortes oramentrios nas estimativas de ajuda a Amrica Latina. Isto ocorreu num
contexto de envolvimento cada vez maior da superpotncia na guerra do Vietn, desafio
prioritrio da sua poltica externa. De qualquer forma importante frisar que, apesar do
fracasso, a ALPRO representou importante mecanismo de transmisso dos elementos de
pentagonizao, principalmente porque chamou a ateno dos setores dominantes menos
conservadores para um projeto de mudana que contribusse no combate s grandes demandas
sociais. Entretanto, este nunca foi o objetivo central do programa; tais mudanas, no mximo,
no eram mais do que concesses que deviam ser feitas para evitar o processo de
radicalizao revolucionria. O fundamental, alegava-se, era a defesa dos valores e princpios
da civilizao ocidental, democrtica e crist. Em realidade, a ALPRO, assim como os demais
mecanismos de pentagonizao, devia servir de estratgia para salvaguardar o que, de fato,
era essencial: as relaes capitalistas de produo e a propriedade privada.
Quando Nixon assumiu a presidncia dos EUA, em 1968, defrontou-se com um
processo de desgaste com a Amrica Latina produzido pela falta de resultados mais concretos
da aplicao dos mecanismos e das diretrizes da ALPRO, alm da rejeio de significativas
parcelas da populao contra a guinada do governo Johnson em incrementar a escalada
intervencionista. Antes de definir uma reorientao da sua poltica para a regio, a nova
que seria mais um mecanismo para [...] mantener la dependencia econmica de Amrica Latina: los fondos no
deban ser utilizados para proyectos de cambio estructural que resultaran en una mayor autonoma del desarrollo
econmico [...], ni tampoco seran suministrados a quienes nacionalizaran empresas de propiedad privada.
BOERSNER, Demetrio. Relaciones internacionales de Amrica Latina. Caracas: Nueva Sociedad, 1987. p. 297.
276
Idem.
251
277
252
pases como sendo um fator crucial que, se continuasse desenvolvendo-se, poderia derivar em
um processo generalizado de instabilidade e de situao revolucionria. 280
Como diretriz geral para a formulao de polticas para a regio, o Informe da Misso
Rockefeller recomendou que os EUA assumissem a responsabilidade de representar a liderana
moral na regio, em nome da defesa da liberdade e da justia regional, desenvolvendo formas de
cooperao para melhorar a qualidade de vida dos pases latino-americanos. Para isso, deviam-se
deixar de lado divergncias quanto s polticas internas especficas. A existncia das mesmas no
devia impedir o trabalho comum em benefcio mtuo. Era o entendimento de que os EUA
deviam deixar de pressionar os governos aliados quando estes tomavam medidas
antidemocrticas para combater com maior eficincia a ameaa insurgente. Tal postulado
externava que, em relao ao discurso da ALPRO (mas no da prtica dos seus administradores),
a questo democrtica deixava de ser um tema sensvel. O mais curioso que, para legitimar as
posies de fora dos aliados, o Informe Rockefeller recorria aos tratados internacionais de
respeito ao direito de autodeterminao dos povos para justificar a posio norte-americana de
neutralidade diante de acontecimentos internos dos pases da regio. Assim, sugeria coerncia na
atitude da poltica externa dos EUA diante dessas questes de poltica interna, apoiando-se no
texto resultante da 9 Conferncia Internacional dos Estados Americanos (1948), que,
concretamente, afirma no seu artigo XXXV: O estabelecimento ou manuteno de relaes
diplomticas com um governo no implica em qualquer julgamento relativamente poltica
interna desse governo. 281
De qualquer forma, essas palavras tonaram-se letra morta diante dos fatos
consumados. O governo norte-americano acabou aplaudindo a escalada autoritria rumo ao
golpe de Estado dos governos de Jorge Pacheco Areco e de Juan Mara Bordaberry, no Uruguay
(aceitando a justificativa de que era em defesa da democracia); j quando o governo Allende
tentou proteger-se diante da conspirao permanentemente sofrida, foi denunciado como
antidemocrtico e golpista. Essa comparao sempre pertinente, luz das palavras de
Rockefeller, na medida que so processos que se desenvolveram na regio de forma simultnea,
porm, com o detalhe de serem de signos opostos. No caso uruguaio, o golpe de Estado
patrocinado desde a prpria presidncia contra a sociedade foi justificado com a necessidade de
salvar as instituies democrticas; j, no caso chileno, quando o governo tentou defender-se dos
sobre o capital estrangeiro enquanto que as leis sociais foram modificadas. Neste sentido, as empresas
estrangeiras foram beneficiadas com uma reduo da alquota do imposto de renda que passou de 25 para 15%;
as empresas nacionais continuaram pagando 25%. Idem.
280
KRYZANEK, op. cit., p. 110.
281
ROCKEFELLER, op. cit., p. 63.
253
mecanismos golpistas, os EUA acolheram a tese de que a administrao Allende estava sendo
antidemocrtica em relao sociedade. De qualquer maneira, a recomendao do relatrio da
misso de respeitar o direito de autodeterminao no foi seguida no caso do governo da
Unidade Popular, mostrando claramente que os objetivos concretos da SN estavam por cima das
decises formais da diplomacia.
O Informe Rockefeller tocou, tambm, numa questo de permanente preocupao
das corporaes norte-americanas do ps-guerra: o velho argumento de que era preciso
facilitar armamento moderno s Foras Armadas regionais para evitar a presso e a presena
de fornecedores de outras pases. 282 Tambm neste ponto se observa distanciamento da
posio da ALPRO, onde se recomendava no desviar recursos do programa para a compra de
material blico. J o Informe, ao contrrio, ao reforar aquela posio, associava os negcios
da indstria blica (do CMI) com a tomada de conscincia pelas Foras Armadas regionais do
novo protagonismo e das novas responsabilidades que delas se exigia.
Decorrente desse novo papel, o diagnstico da misso reconhecia que os militares
latino-americanos: [...] possuem um orgulho profissional compreensvel, que faz surgir
desejos igualmente compreensveis de armas modernas. 283 Esta afirmao induziu a uma
espcie de inverso de justificativas. No se tratava mais de pressionar para vender maior
volume de armas e aumentar os lucros do CMI; agora, utilizava-se o aforismo da
solidariedade com os governos aliados atendendo suas demandas concretas. Ou, em outra
perspectiva, colocava-se a situao de tal modo que no restava, aos EUA, outra alternativa a
no ser a de participar sem outro interesse que o da colaborao com os governos amigos. O
documento reforava isso. Se a superpotncia no respondesse s solicitaes de apoio militar
feitas pelos aliados, poderia ocorrer ressentimento natural dos militares das outras naes
americanas, quando os EUA se recusam a vender-lhes itens de equipamento moderno. 284
Portanto, utilizando-se desses artifcios, a partir do diagnstico elaborado pela Misso
Rockefeller, procurou-se deslocar a centralidade dos motivos da escalada militar, dos
interesses das corporaes e da poltica externa norte-americana para as demandas das Foras
Armadas regionais imbudas agora - do protagonismo na luta contra as foras da subverso
e na defesa da SN.
282
Recomenda-se ao governo dos EUA que [...] responda a los pedidos [...] en materia de camiones, jeeps,
helicpteros y equipo militar para proveer mobilidad y apoio y otros equipos de control de comando, para la
adecuada comunicacin entre las fuerzas, y armas livianas para las fuerzas de seguridad e que, en vista de la
creciente subversin contra los gobiernos del hemisferio, del terrorismo y la violencia [...] sean continuados y
fortalecidos los programas de capacitacin que traen personal militar y policial del hemisferio a los Estados
Unidos y a centros de entrenamiento de Panam. Apud SCHILLING, op. cit., p. 34.
283
ROCKEFELLER, op. cit., p. 65.
254
284
285
Idem.
Idem, p. 15.
255
segurana e de paz hemisfrica. Ao ressaltar que tais aes agrediam tanto os EUA quanto os
governos locais, Rockefeller argumentava, com muita astcia, a favor da mais estratgica de
todas as recomendaes: a necessidade de uma ao resultante de uma comunho de esforos
que precisavam proteger, simultaneamente, os interesses da superpotncia e a estabilidade
poltica dos aliados locais.
Essa foi a idia-fora do Informe Rockefeller e estava em perfeita sintonia com o
processo de pentagonizao da Amrica Latina. Quanto as suas proposies, apresentava
variaes em relao ao programa da Aliana para o Progresso, mas elas eram decorrncia das
mudana do contexto, do amadurecimento de um intervencionismo pragmtico e da avaliao de
que a radicalizao dos questionamentos s velhas oligarquias, ao capitalismo e prpria
presena dos EUA na regio tinham atingido dimenses muito perigosas, o que exigia, logo, uma
cirurgia muito mais profunda, mais extremada (leia-se violenta) e de carter urgente.
256
CAPTULO 3
Mi Gobierno, [...] cumplir con su deber de ejercer la autoridad con la dureza y energa que las
circunstancias impongan para garantizar las libertades amenazadas.
Presidente Jorge Pacheco Areco 1
Salgan a matar. No quiero prisioneros.
Victor Castiglioni
Diretor Geral da DII 2
Montevideo es ahora la ciudad de la angustia incierta. [...]
La muerte nos ha ganado. [...]
el pas se nos ha ido de las manos [...].
Mientras enterramos a nuestros muertos, con ello vamos enterrando al Uruguay.
Carlos Quijano 3
Como el Uruguay no hy. Esta frase sintetiza uma percepo bastante generalizada
sobre o que era a realidade uruguaia no contexto do imediato ps-Segunda Guerra Mundial e
da Guerra da Coria. Em outras palavras, era a Sua da Amrica, certamente uma
expresso carregada de exagero mas que, de alguma forma, identificava uma sociedade
marcada pela presena do Estado. Assentado numa conjuntura internacional favorvel
tradicional pauta exportadora, intermediava as relaes sociais atravs de uma poltica
distributiva estatal, sustentando uma proposta de bem-estar social que, em termos latinoamericanos, sem dvida ficava acima da mdia. Entretanto, a partir do final da dcada de 50 e
incio dos anos 60, comeou a desenhar-se uma crise de ordem estrutural que produziu
desdobramentos intensos e profundos. A Sua da Amrica, mtica ou real, foi atingida por
essa onda que se projetou durante as dcadas seguintes e abalou os alicerces daquela que era
considerada uma das democracias mais estveis na regio.
Desde o fim dos anos 50, comeou a desfazer-se a ilusria prosperidade com o
1
CAETANO, Gerardo; RILLA, Jos. Histria Contempornea del Uruguay. De la colonia al Mercosur.
Montevideo: Coleccin CLAEH/Fin de Siglo, 1994. p. 243.
2
CALACE, Jos. Quince aos en el infierno. Montevideo: TAE, 1989. p. 12.
3
QUIJANO apud MARTNEZ, Virginia. Los fusilados de abril. Quien mat a los comunistas de la 20?
Montevideo: Edicin del Caballo Perdido, 2002. p. 79.
257
258
259
260
Este comportamento pode ser melhor entendido na distino feita por Csar Aguiar
entre tiempo electoral e tiempo interelectoral:
12
Conferncia proferida por Wilson Ferreira Aldunate no I Simpsio Nacional sobre Formas de Governo e
Sistemas Eleitorais, organizado pela Assemblia Legislativa do Estado do Rio Grande do Sul. Porto Alegre,
15/09/81. p. 78 (transcrito).
13
Desde a aprovao da Constituio de 1952, o Poder Executivo foi organizado de forma colegiada, integrada
por nove conselheiros eleitos diretamente pelo eleitorado por um prazo de 4 anos. Seis deles pertenciam a lista
mais votada dentro do partido mais votado; os outros trs correspondiam proporo das demais listas do
mesmo partido. A presidncia do conselho, de carter representativo, funcionava atravs do mecanismo de
rodzio anual entre os quatro primeiros titulares da lista vencedora. NAHUM, Benjamn. Manual de Historia
del Uruguay 1903-1990. Montevideo: Banda Oriental, 1995. p. 195.
14
Apud Alfaro, op. cit., p. 9.
261
Aguiar apud ALFARO, op. cit., p. 10. O partido poltico funcionava como escritrio de resoluo de
demandas particulares (emprego, aposentadoria, obteno de telefone ou certido de nascimento). Alimentava,
assim, a relao clientelstica entre dirigente/partido e seus eleitores. Para Luis Costa Bonino, o sistema poltico,
ao vincular desempenho eleitoral com capacidade de solucionar tais demandas em detrimento de propostas
polticas para o conjunto da sociedade, tornou-se fator decisivo da despolitizao dos partidos tradicionais.
Bonino apud ALFARO, idem.
16
Idem.
17
Batllismo: referncia corrente do Partido Colorado historicamente vinculado a Jos Batlle y Ordoez,
presidente do pas entre 1903-1907 e 1911-1915. Caracterizada por defender propostas de ativa interveno
estatal na economia e na intermediao capital-trabalho e polticas pblicas inclusivas (nfase na educao
pblica e no sistema previdencirio). De fundo nacionalista e reformista teve um perfil urbano-industrial com
forte representao da classe mdia e dos trabalhadores urbanos.
18
No seio deste movimento, destacavam-se lideranas sociais comprometidas e de matizes diversos, como Ral
Sendic. Algumas delas, posteriormente, fizeram parte do ncleo fundacional do MLN-Tupamaros.
262
Um fato regional marca a evoluo da poltica operria em direo construo de uma central nica dos
trabalhadores: o golpe de Estado no Brasil (1964). Diz Hctor Rodriguez: En 1964, despus del golpe de Estado
en Brasil y el fracaso de la huelga general decretada por los sindicatos brasileos, el movimiento sindical
uruguayo adopt un estado de alerta frente a este tema y se firm a la conviccin, ya en esse ao 64, de que los
trabajadores como tales y los sindicatos como tales podan hacer algo contra un golpe de Estado: declarar una
huelga general con ocupacin de los lugares de trabajo. (Apud ALFARO, op. cit., p. 11) Carlos Demassi diz
que essa referncia, presente na memria sindical, no consta das resolues fundacionais. De qualquer forma,
no final dos anos 60 e na virada dos anos 70, o aumento da escalada autoritria patrocinada pelo Estado levou o
movimento operrio a utilizar-se freqentemente do recurso da greve geral como instrumento de luta, embora em
escala limitada. O amadurecimento dessa estratgia foi colocado a prova com a deflagrao do golpe de Estado
(1973). Apesar da violenta represso e das limitaes impostas pela anterior militarizao do Estado, a resposta
imediata da CNT foi uma gigantesca greve geral de resistncia que, entretanto, apesar de paralisar o pas durante
15 dias, no evitou a confirmao da quebra institucional.
20
LEGUIZAMN, Hugo. Uruguay: la crisis poltica 1968-1973. Historia del Movimiento Obrero, n 78.
263
o futuro lder tupamaro). Rosencof hilrio ao contar tal fato: [...] los caeros pasaron por la
sede y la cagaron a pedradas. Chau Confederacin. 21 Como resultado do embate uma
transeunte foi morta por um tiro disparado desde a sede, mas sua morte foi creditada aos
caeros e utilizada para tentar punir exemplarmente o movimento. Assim, 90 caeros foram
presos e outros 36 processados. Entretanto, as investigaes sobre o incidente acabaram
quando ficou claro que a morte e os tiros eram de responsabilidade dos dirigentes da CSU. Da
mesma forma, ficaram sem resposta as denncias de tortura contra os caeros presos,
proferidas pelos deputados Vivian Trias e Germn DElia. 22
Nas negociaes que serviram de base para as discusses sobre a formao da CNT,
estabeleceu-se um consenso em torno de um programa que reconhecia a complexidade do
momento e entendia que medidas estruturais eram imprescindveis para enfrentar a crise:
reforma agrria, reforma e planejamento industrial, nacionalizao dos monoplios, reforma
tributria, nacionalizao do setor financeiro e investimentos substanciais nas reas de
habitao, educao e previdncia social. Concludas as negociaes, o processo de
unificao do movimento operrio consagrou a CNT como central nica dos trabalhadores. O
congresso de unificao aprovou a declarao de princpios, o programa e o estatuto da nova
central. Paralelamente, confirmou-se uma ligao mais efetiva do movimento operrio com o
movimento estudantil, que remontava segunda metade dos anos 50, atravs da confluncia
de aes que pressionavam tanto pela aprovao da Lei Orgnica da Universidade (que
reconhecia a autonomia e o co-governo na Universidade) quanto por medidas especficas da
pauta de reivindicaes dos trabalhadores. A histrica consigna Obreros y Estudiantes, unidos
y adelante voltou a ser ouvida.
importante ressaltar, como apontado no captulo anterior, o destaque que teve,
como pano de fundo, a Revoluo Cubana. As manifestaes de solidariedade e simpatia
encontradas junto aos setores operrios, estudantis e intelectuais foram acompanhadas pelo
alastramento de um virulento anticomunismo, refletido nas denncias que a imprensa
conservadora fez sobre suposta infiltrao comunista em sindicatos, na Universidade e nos
liceos (escolas secundaristas). Neste caldo de cultura, surgiram organizaes violentas de
direita que se reivindicavam como anticomunistas e nazistas, praticando atentados em atos
vinculados Revoluo Cubana e agredindo judeus e militantes comunistas (Anexo II). 23
264
Diante de tudo isto, foi surgindo uma forma indita de encarar o processo de
mudanas: a perspectiva da luta armada. At 1966, os primeiros ncleos trabalharam aspectos
organizacionais e de discusso poltica interna, amadurecendo as possibilidades concretas de
sucesso dentro de um cenrio que, apesar da rpida deteriorao, era marcado por uma certa
tradio democrtica e de convivncia pacfica. Alguns alertas feitos por parte da esquerda
exigiam cautela sobre as decises a serem tomadas. 24 A evoluo dos fatos assinala que, a
partir de 1968, a guerrilha urbana se tornou uma presena constante no processo poltico do
pas. Nos primeiros anos, assumiu um estilo denominado de Robin Hood, com aes de
provocar o regime, mas com toques de sutileza e de astcia, sem maior uso de violncia;
posteriormente - e muito em funo da reao do regime -, aumentou seu carter militarista e
de confronto violento.
Uma ltima caracterstica a ser colocada sobre o panorama geral dos anos 60 diz
respeito ao resultado de duas ordens de combinaes: uma interna, de tenses e contradies
resultantes do esgotamento econmico pela dependncia estrutural do mercado mundial, da
incapacidade poltica das velhas elites para encontrar solues crise e do protagonismo
crescente de atores sociais em processo de pauperizao acentuada; outra, na vinculao
desses fatores internos com uma srie de fatores e questes externas que realimentaram a
dinmica interna (a Revoluo Cubana, a Guerra libertadora do Vietn, a guerrilha de Che
Guevara, o Maio Francs, etc.). Isso gerou um efervescente cenrio que marcou a gerao da
crise, multifacetada quanto ao campo de atuao, mas coincidente em questes de fundo.
Nessa perspectiva, o questionamento ao status quo tambm ocorreu dentro dos marcos do
poltica paraguaia Soledad Barret. Soledad foi seqestrada por simpatizantes nazistas que, diante da sua
resistncia em gritar palavras de ordem nazistas e anticomunistas, teve uma sustica gravada a navalha na perna
(Anexo II). a mesma militante que, aps todo um priplo de perseguies, exlios e torturas, foi trada, junto a
vrios companheiros, pelo Cabo Anselmo, morrendo sob os efeitos da tortura praticada pela equipe do delegado
Fleury (8 de janeiro de 1973), no Massacre da Chcara So Bento. (Fonte: DOSSI DOS MORTOS E
DESAPARECIDOS POLTICOS A PARTIR DE 1964. Recife: Companhia Editora de Pernambuco, 1995. p.
202)
24
Carlos Quijano, editor do semanrio Marcha advertia: Si la fuerza se desata no ha de ser en beneficio de los
ms y de los ms necesitados. Hoy aqu, Uruguai 1964, clase media, 250.000 funcionarios pblicos, 350.000
jubilados, servicios pblicos nacionalizados, proletariado dbil y sin organizacin, campesinato inexistente o
disperso, la fuerza slo puede traer la reaccin, slo puede ser manejada por ella. No hay objetivamente, ninguna
posibilidad revolucionaria. (Apud ALFARO, op. cit. p. 13) Quijano ia ao encontro das palavras que pronunciara
Che Guevara, em 1961, na Universidade: [...] en nuestra Amrica Latina, en las condiciones actuales, no se da
un pas donde, como en el Uruguay, se permitan las manifestaciones de las ideas. Se tendr una manera de
pensar u otra, y es lgico. [...] Sin embargo, nos permiten la expresin de estas ideas aqu en la Universidad y en
el territorio del pas que est bajo el gobierno uruguayo. [...] Ustedes tienen algo que hay que cuidar, que es
precisamente la posibilidad de expresar sus ideas; la posibilidad de avanzar por cauces democrticos hasta donde
se pueda ir [...]. (LESSA, Alfonso. La Revolucin Imposible. Los Tupamaros y el fracaso de la va armada
en el Uruguay del siglo XX. Montevideo: Fin de Siglo, 2003. p. 62.) Com quase 2 anos de diferena, eram duas
anlises qualificadas sobre a inexistncia de condies concretas, na realidade uruguaia, para o sucesso de uma
estratgia de mudana via luta armada.
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ANEXO II
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267
25
A CIDE foi criada, em 1959, para coordenar os investimentos do setor pblico. Em 1962, teve ampliadas as
suas funes incorporando a elaborao de diagnsticos e o planejamento como instrumento para a
implementao de polticas de desenvolvimento. Influenciada pela CEPAL, a CIDE props um conjunto de
reformas estruturais que, entretanto, no foram acolhidas pelo governo.
268
ALPRO.
26
No perodo 1961-1966, o estoque de gado de 8,8 milhes de cabeas diminuiu 6,2%. A populao rural caiu
de 15% para 12%. As concluses da CIDE apontavam as causas: baixa produtividade da terra, existncia de
latifndio e minifndio, m utilizao dos solos e pouco uso de fertilizantes. NAHUM, op. cit., p. 257.
27
A produtividade industrial era de 50% da capacidade instalada. Os setores mais afetados pela crise foram as
indstrias novas (metalurgia, equipamentos eltricos); os setores mais vinculados ao mercado interno perderam
menos (construo civil, transporte, alimentos). As indstrias da carne e da l continuaram destacando-se no
mercado internacional. NAHUM, idem.
28
Os pecuaristas, lucravam mais com a desvalorizao do peso do que com o aumento de produo; os
exportadores obtinham mais pesos pela mesma quantidade de produtos vendidos; os bancos financiavam estes
setores e ganhavam ao especular com a variao cambial. COURIEL; LICHTENSZTEJN apud NAHUM, op.
cit., p. 260.
269
Idem, p. 261.
Nas eleies de 1966, as candidaturas coloradas eram as seguintes: Gestido-Pacheco Areco (Unin Colorada y
Batllista); Jorge Batlle-Lacarte Mur (Unidad y Reforma); Michelini-Aquiles Lanza (Lista 99); VasconcellosRodrguez (Listas 15, 14 e 99) e Jimnez de Archaga-Berchesi. As candidaturas blancas eram: EtchegoyenDardo Ortiz (Alianza Nacionalista); Gallinal-Zeballos (Reforma y Desarrollo) e Heber-Storace (Herrerismo).
31
A esquerda se apresentou dividida nas seguintes propostas: Frente Izquierdista de Liberacin/FIDEL (Aguirre
Gonzlez-Pastorino), a Unin Popular (de Enrique Erro) enquanto o Partido Socialista apresentava duas
candidaturas, a radical e antiimperialista Izquierda Nacional e a moderada do Movimento Socialista (FrugoniGavazzo). Os setores cristos se dividiram no Partido Democrata Cristiano PDC - (Gelsi Bidart-Saralegui) e
na conservadora Unin Cvica (Chiarino-Flores).
32
Os resultados eleitorais mostravam a seguinte votao para os partidos pequenos: PDC 3%; Movimiento
Cvico Cristiano 0,3%; Partido Socialista 0,9%; Unin Popular 0,2% e FIDEL 5,7%.
33
Nas eleies de 1966, o eleitor escolheu tambm uma de quatro propostas de reforma constitucional, indicadas
em papeletas de cores diferentes. Setores majoritrios colorados e blancos apoiaram a que foi vencedora, a
naranja (laranja) que acabou com o Colegiado e aumentou as atribuies do Poder Executivo. A reforma
amarilla (amarela), apoiada pelo FIDEL, obteve 5,21% dos votos e defendia a volta do presidencialismo sem
alguns poderes como as Medidas Prontas de Seguridad. A reforma gris (cinza), de certos setores blancos,
propunha o fortalecimento do Executivo (mais poder para dissolver as Cmaras) e obteve 10,57%. A reforma
30
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272
alteraes na orientao econmica. Por exemplo, Carlos Zubillaga & Romeo Prez
concluam que a propenso autoritria e a substituio de polticos profissionais por
tecnocratas representantes dos empresrios e sem antecedentes de militancia partidaria na
gesto Pacheco, vinham fincando razes desde o final do governo Gestido. 40
273
43
mostrou outra ruptura com a tradio poltica do pas: a figura do partido e das instncias
polticas como fruns de negociao e de embate, fator vertebral da democracia uruguaia. Ao
contrrio, divulgou-se a imagem de que a presena de tcnicos no governo era positiva pois
eles no se rendiam s presses de cunho poltico-eleitoral. Acentuar a imagem do
desprestgio dos partidos polticos e responsabiliz-los pela atuao ineficiente diante da crise
social econmica que atravessava o pas escondia um risco potencial de autoritarismo: o
menosprezo pelo Parlamento e pela representao popular. Tais fatos foram reiteradamente
praticados por essa administrao.
Assim, as MPS foram decretadas preventivamente para desarticular uma aguardada
mobilizao popular diante de medidas de arrocho que seriam decretadas logo a seguir.
Efetivamente, em junho de 1968, decretou-se o congelamento de preos e salrios e a
anulao do reajuste salarial de 1 de julho, esperado com expectativa por milhares de
trabalhadores, cujos salrios tinham sido duramente atingidos pela inflao. As MPS se
tornaram condio imprescindvel para impor uma poltica econmica onde o congelamento
salarial foi pea chave e para impedir a reao do movimento operrio.
A perda de apoio de certos setores colorados, diante da nova orientao, exigiu do
governo uma recomposio de foras com a incorporao de setores blancos conservadores e
o respaldo incondicional das organizaes empresariais. Pacheco Areco, ao assumir
enfaticamente a condio de homem providencial, defensor das liberdades ameaadas e
comandante de um governo forte, cooptou apoio de segmentos sociais temerosos frente ao
clima de agitao social e de luta armada. Explorando e manipulando a sensao de medo dos
setores anticomunistas, o governo cometeu excessos constitucionais usando a fora, a censura
prvia e a militarizao dos funcionrios pblicos, formas cotidianas de controle social, ou
seja, recorreu polcia e ao Exrcito para resolver situaes que tinham sido interditadas aos
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44
dialtica infernal, numa espiral onde o aprofundamento da crise econmica e a defesa dos
interesses empresariais e financeiros implicaram em mobilizaes de oposio mais
contundentes e ousadas, as quais, por sua vez, aumentaram a represso governamental.
A capacidade de articulao e de resposta das foras populares fez com que do
interior da sociedade, junto s tradicionais formas de luta e resistncia (greves, manifestaes,
paralisaes, ocupaes), surgissem duas novas variantes. Uma, indita no pas: a luta
armada, com especial destaque para o Movimiento de Libertacin Nacional-Tupamaros
(MLN). Outra, dentro de uma tradio constitucional e como resposta e amadurecimento da
mobilizao popular na esfera poltica: a emergncia do Frente Amplio (Frente Ampla), fora
poltica que, em 1971, ameaou o bipartidarismo tradicional. 45
O fato de 1971 ser ano eleitoral intensificou o debate poltico, inclusive porque o
prprio presidente decidiu ser candidato reeleio, fato que, entretanto, no era
constitucionalmente permitido. Entre 1968 e 1970, o governo havia procurado marginalizar e
desprestigiar os partidos polticos e o Parlamento tentando estabelecer canais diretos de
comunicao com a sociedade ao negar, quelas instituies, a legitimidade e a
representatividade do papel pertinente de intermediao. Particularmente, em relao ao
Parlamento, to grande foi o menosprezo que sofreu do governo que at setores radicais da
esquerda constitucional e do MLN temiam a hiptese do seu desaparecimento e a realizao
das eleies. Entretanto, desencadeada a dinmica eleitoral, o cenrio poltico tradicional
voltou a ser valorizado, mesmo que de forma um tanto restrita. Segundo Gonzalo Varela, a
pseudolegalidade do governo deixava um espao poltico de disputa que, apesar de restrito,
foi explorado por partidos e parlamentares. Logo alimentaram-se expectativas eleitorais e, por
conseguinte, de mudanas. 46
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276
domiclio (Art. 11), do processo legal (Art. 12), alm da deteno arbitrria (Art. 12).
Diante da justificativa oficial de que o recurso s MPS era fundamental para
enfrentar a ameaa tupamara, Oscar Bruschera argumenta que, em 1968, o MLN no era uma
ameaa real para o governo e que aquelas foram, em realidade, instrumento de controle social
e de militarizao dos funcionrios (recurso previsto na lei para situaes muito especiais). 48
Efetivamente, nos meses de junho e julho desse ano, ocorreram as primeiras militarizaes de
empresas. Os bancos Hipotecario e o de la Republica e empresas estatais como Usinas y
Telfonos del Estado (UTE), Administracin de Ferrocarriles del Estado (AFE), ANCAP e
Obras Sanitarias del Estado (OSE) foram atingidas com a destituio de diretores e a
militarizao de centenas de trabalhadores, enquanto o governo, atravs do Banco Central,
estimulava a fuso das instituies bancrias e a conseqente estrangeirizao do sistema
financeiro. 49
O governo alegava:
Los beneficios del trabajo productivo, de una economa saneada, del respeto
internacional y de la estabilidad de sus instituciones significaba, sin duda,
una grave contrariedad para quienes persiguen, a travs de la paralizacin
econmica del pas y de la lucha gremial, la desintegracin de nuestro
sistema republicano democrtico de gobierno.
Pero los fines anti-nacionales impulsados por ideologas contradictorias con
nuestro estilo y forma de vida, jams arraigarn en nuestro pueblo. Y el
gobierno afirmar la defensa de los principios institucionales que son la vida
misma de la Repblica.
[...] Hoy, determinado nuevamente por las circunstancias, el establecimiento
de medidas prontas de seguridad, com el fin de asegurar la vigencia del
orden jurdico, y ante la violencia y el desprecio a la ley, desatados por una
insignificante minora extraviada, mantengo viva mi fe en la capacidad de mi
pas para restablecer dicho orden en toda su plenitude. (24/07/69) 50
Bruschera rebate esse argumento com firmeza. Para ele, foi durante o pachecato e
por sua causa que cresceu a ao tupamara. E no s ela, mas a violncia no conjunto da
sociedade. Bruschera responsabiliza o governo pela radicalizao e identifica uma
metodologia de atuao que esboa um TDE:
[...] el conflicto con la Universidad se hizo crnico; se clausuraron sedes
sindicales; se generalizaron los hbiles interrogatorios, eufemismo con el
47
277
Um segundo fator do uso das MPS foi a vulnerabilizao do respeito dos direitos
humanos. 52 A represso policial indiscriminada e o uso generalizado da tortura levou o
Senado a nomear uma Comisso especial para analisar esses fatos. Uma questo vinculada
dizia respeito correspondncia privada cuja inviolabilidade era protegida pela Constituio
, mas que era alvo das MPS que delegavam poderes Direo Geral de Correios para violla. Tal prtica, se tornou comum aps o golpe, mas j vinha sendo experimentada e
aperfeioada, em escala significativa, durante o pachecato.
A violao de correspondncia era fato grave num pas onde a emigrao era
considervel. Alm de rastrear redes e conexes subversivas internacionais, atingia, de
forma generalizada, milhares de famlias separadas, que deviam suportar a insegurana
produzida por palavras mal-interpretadas ou mal empregadas e que, por isso ou por algum
outro motivo desconhecido, eram colocadas sob suspeio e vigiadas como provveis ou
potenciais inimigos internos. Como resultado disso, diante do medo de cair nas malhas da
inspeo, na incerteza de saber o que era proibido ou no, no desconhecimento do que podia
ser considerado suspeito e na dificuldade de inventar cdigos, os contatos via correspondncia
foram espaando-se e as famlias e amigos ficavam a espera da oportunidade de encontrar
eventuais mensageiros de confiana. O controle do correio aumentou sensivelmente durante a
ditadura, ao ponto da estrutura da Empresa de Correios ser infiltrada por estruturas de controle
e vigilncia que procuravam colaboradores entre os trabalhadores restantes aps a depurao
interna inicial. Se a subverso tinha uma dimenso internacional, nada mais estratgico do
que vigiar o canal mais cotidiano de interconexo individual.
O controle de correspondncia cumpre uma funo amedrontadora: obriga os
indivduos a assumir comportamentos que os violentam, assim como desenvolve o especial
temor de receber cartas, expor pessoas, mandar notcias, realizar perguntas inconvenientes ou
perigosas, vigiar, no saber como agir e temer deixar pistas e acabar colaborando
inconscientemente com a represso. Um dado adicional do peso desta questo: sendo jovens
a maior parte dos emigrantes e dos exilados, boa parte dos que esperavam notcias e estavam
51
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281
Um ano aps ter assumido o governo, ao fazer um balano da sua gesto, Pacheco
Areco afirmava que:
[...] me propuse, desde la primera hora, actuar con determinacin y firmeza,
57
CORES, Hugo. El 68 Uruguayo. Los antecedentes. Los hechos. Los debates. Montevideo: Banda Oriental,
1997. p. 140.
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58
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No ano eleitoral, diminuiu o recurso s MPS; certamente foi uma opo do governo
em funo do desgaste poltico que seu uso acarretava, o que podia inviabilizar as pretenses
continuistas. A campanha pela reeleio colocou um grande desafio para Pacheco Areco,
visto que este tornou-se concorrente dos setores dos partidos tradicionais que haviam dado
sustentao ao seu governo, os quais tambm aspiravam a presidncia. Essa situao se tornou
mais dramtica com a forte nfase dada num gabinete de ministros tecnocrticos e dissociados
da tradio poltico-partidria do pas; no embate eleitoral, isso se constituiu em entrave pois
eles no eram grandes captadores de votos como o eram as mquinas partidrias. Para
compensar, o candidato reeleio reforou sua identidade com os smbolos nacionais e,
apesar da virulncia do discurso anticomunismo, tentou diminuir a meno explcita do poder
repressivo j que, nessa conjuntura, se tornava improducente. Ressalte-se, entretanto, que,
durante a campanha eleitoral, a violncia cotidiana no cessou, pois os grupos paramilitares
compensaram o estratgico recuo do poder repressivo legal aumentando suas aes
encobertas.
Paradoxalmente, o Partido Nacional, tradicionalmente de perfil mais conservador que
o Colorado, sob a liderana de Wilson Ferreira Aldunate, assumiu um posicionamento mais
liberal no plano poltico enquanto que, no plano scio-econmico, chegou a coincidir com a
Frente Ampla em questes como a centralidade da reforma agrria e a nacionalizao dos
bancos. A candidatura de Ferreira Aldunate aglutinou descontentamentos com a orientao
econmica do governo vigente e defendeu mudanas polticas moderadas reivindicadas por
setores empresariais nacionalistas e determinados setores mdios. A limitao das
prerrogativas do Poder Executivo tambm foi defendida por essa candidatura para evitar o uso
60
284
285
Declarao do 7 de Outubro de 1970. In: AGUIRRE BAYLEY, Miguel. El Frente Amplio. Historia y
documentos. Temas del Siglo XX. Montevideo: Banda Oriental, 1985. p. 83.
63
A Frente Ampla nasceu Integrada pelos seguintes setores: FIDEL; Grupos de Accin Unificadora (GAU);
Movimiento Blanco Popular y Progresista; Movimiento Humanista; Movimiento por el Gobierno del Pueblo
(Lista 99); Partido Comunista; Partido Democrata Cristiano; Partido Socialista; Partido Obrero-Revolucionario
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287
poltica e mobilizao. Enquanto conexo das estruturas partidrias da coalizo com as bases,
sua prpria dinmica permitia um debate participativo, franco e oxigenado, que fortalecia
coalizo. Os Comits de Base inovaram em relao tradio existente de imobilidade
poltica, estimulada pela classe dominante e pelos partidos tradicionais. Estes usavam os
Clubes Polticos - espaos abertos pouco antes das eleies e desativados aps o pleito
como simples caa-voto, reforando velhas prticas clientelsticas e assistencialistas
(tramitao de aposentadoria, promessas de emprego, etc).
Diante disso, os Comits de Base inovaram radicalmente; no se propunha nenhum
tipo de troca. Tratava-se de uma militncia que assumia um espao de participao e de
discusso de um projeto poltico. O seu ineditismo advinha do fato de construir (com suas
regras internas e seus cargos representativos de direo) um espao para refletir sobre a
situao do pas, a conjuntura internacional, a disputa poltica-eleitoral, a organizao do
partido, os problemas da comunidade, do bairro, da praa e da rua. Tambm porque, alm da
ao positiva e bem sucedida de congregar as pessoas sem militncia partidria, absorvia
eleitores dos partidos tradicionais que no tinham espao de participao poltica efetiva nos
prprios partidos. Finalmente, os comits funcionavam como escola de formao poltica, de
conscientizao nos bairros e de ativao social a partir da rede da vizinhana, de porta em
porta. E, no debate poltico, permitia um elemento altamente qualitativo de formao
poltica: no s a crtica aos partidos tradicionais, mas o cotejo das posies dos comunistas,
dos socialistas ou da democracia crist. Inegavelmente, seu funcionamento transformou-os na
matria-prima e no pulmo da coalizo. Arraigados comunidade, capacitavam-se de uma
dinmica orgnica e popular. Para realizar grandes eventos (manifestaes, comcios,
passeatas), a Frente Ampla s precisava ativar os comits; estes organizavam as colunas de
militantes que convergiam aos atos.
Na medida em que toda essa ao escapava do controle dos partidos tradicionais, os
Comits de Base tornaram-se uma inesgotvel fonte potencial de futuros militantes. O comit
se tornou expresso e presena da Frente Ampla no cotidiano de cada bairro, aprofundando
uma relao orgnica onde o voluntarismo e a solidariedade na vizinhana se viu intensificada
com a realizao de eventos culturais (teatro, msica, murais) inseridos, claro, dentro de
uma perspectiva de politizar e conscientizar as comunidades. O fato de colocar o Comit de
Base como centro comunitrio de servio social e cultural foi um dos maiores logros que a
Frente Ampla obteve quanto canalizao de esforos e de dilogo com a cidadania e atrao
e convencimento de novos quadros. O bairro foi percebido como centro nervoso, dinmico e
integrado vida poltica particularmente, nas zonas urbanas mais populares, onde muitas
288
vezes a presena do Estado e dos poderes institudos s se fazia presente atravs da represso
policial comunidade. 66 Foi justamente em funo da receptividade que recebeu esta
proposta da Frente Ampla de interao com as comunidades, o que lhe permitiu, em to pouco
tempo, apresentar-se como opo eleitoral vivel, principalmente, em relao eleio de
Montevidu. 67
Inegavelmente, o trabalho de mobilizao e de politizao realizada pelos Comits
de Base nas zonas populares, fundamentalmente na capital do pas, tornou-se alvo estratgico
das aes repressivas posteriores. A experincia de participao direta e permanente naqueles
centros foi combatida com a violncia e a imposio do medo. Bairros populares como o
Cerro, La Teja, Sayago e Capurro, entre outros, estiveram entre os mais visados e atingidos
pelo TDE posterior.
Em outra ordem de coisas, deve-se salientar que o programa da Frente Ampla tinha
como objetivos pontuais: a plena vigncia das liberdades, dos direitos polticos e das garantias
constitucionais; a reforma agrria; a nacionalizao do sistema financeiro, dos grandes
monoplios e do comrcio exterior; o fomento do cooperativismo; a reforma do sistema
tributrio (prevendo a taxao da riqueza e do capital improdutivo); e uma nova poltica
salarial. Dentro da coalizo, cada partido conservava sua autonomia, participava das
instncias colegiadas representativas e reconhecia autoridades comuns. Seu primeiro
presidente foi o general Lber Seregni, na reserva desde que divergira com o governo por
causa da militarizao dos funcionrios pblicos e da manuteno das MPS. 68
O surgimento e a construo da Frente Ampla ocorreu dentro da terrvel conjuntura
de guerra interna aberta entre as Foras Armadas e o MLN. O fato de que alguns setores da
Frente Ampla mantivessem canais de conversao com a guerrilha no significava que a
coalizo respaldasse ou apoiasse a luta armada. As principais lideranas enfatizavam sua
discordncia com os mtodos dos tupamaros. Alis, neste sentido, o historiador Oscar
Bruschera, um dos signatrios da declarao dos cidados sem militncia de outubro de 1971,
explicita que a coalizo nasceu como fora pacfica e pacificadora, marcando distncia da
proposta violentista. 69 Seu objetivo mais imediato foi o de constituir-se como opo
poltico-eleitoral democrtica, distanciada da tese da ao direta da luta armada. Alis, o
66
SEREGNI, Lber. El ABC del F.A. Montevideo: Ediciones ndice, 1985. p. 22.
NAHUM; FREGA; MARONNA; TROCHN, op. cit. p. 73.
68
Seregni provinha de um pequeno setor militar influenciado por correntes coloradas progressistas. Sua trajetria
era marcada por forte postura constitucionalista. Num contexto de desprestgio dos polticos e de temor diante de
um militarismo golpista, Seregni constitua uma referncia tica para grande parte da populao. VARELA, op.
cit., p. 113.
69
Embora a crtica opo armada, Bruschera reconhece que seu surgimento ocorreu frente falncia dos
67
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291
292
positiva tanto no sentido operacional quanto poltico, j que permitia poupar quadros
militares 82 e acumular apoio de parcelas da populao que viam suas aes com
indisfarvel simpatia. Enquanto isso, expunha a ineficincia e o despreparo do dispositivo de
segurana, informao e represso. A irritao que os tupamaros produziam nas autoridades
contaminou at o responsvel pelo Programa de Recrutamento de Instrutores para treinamento
policial no exterior, do Departamento de Estado, Byron Engle, o burocrata que enviara Dan
Mitrione Amrica Latina. Para ele, o fato de que os tupamaros no enfrentassem
abertamente polcia s podia ser sinal evidente de covardia. 83
Partidrios das teses foquistas, os tupamaros viam-se irradiando, como onda
contagiante, a conscincia revolucionria ao conjunto da sociedade. No Documento N 1,
expressavam o entendimento de ser a luta armada a nica va para la liberacin nacional, a
principal forma de lucha de nuestro pueblo y a ella debern supeditarse las dems e o
mejor instrumento para crear condiciones revolucionarias. 84 Entendiam a luta armada como
resultado do esgotamento e da ineficincia das formas tradicionais da poltica legal. O
impacto da Revoluo Cubana, a influncia de Che Guevara e o insucesso eleitoral da
esquerda uruguaia, em 1962, pareciam reforar essa opo. A Conferncia da OLAS, em
1967, inseria essa opo dentro de um marco de insurreio continental. Coerente com essas
orientaes, a consigna Habr patria para todos o no habr patria para nadie, das colunas do
velho caudilho blanco, Aparicio Saravia, foi estampada nos documentos da organizao. 85
O documento de apresentao do MLN fundamentava, como objetivos primeiros,
o nacionalismo anti-oligrquico, o socialismo, alm da integrao e da solidariedade latinoamericana. 86 A adaptao do foquismo especificidade uruguaia implicava em abandonar a
ttica clssica da montanha como refgio pois, nas condies geogrficas e demogrficas
existentes do Uruguai, isso no tinha sentido. Assim, o MLN teria que ser um fenmeno
82
A formao de quadros militares (aqueles diretamente envolvidos nas aes armadas) tinha um alto custo
operacional. A falta de preparao mnima dos quadros voluntrios e as dificuldade de fornecimento de
treinamento (fator vital para a organizao) aumentavam pelo fato do Uruguai no possuir um servio militar
obrigatrio que tivesse transmitido conhecimento mnimo sobre armamento, tticas militares, etc., como ocorria
no Brasil e na Argentina. Quanto ao treinamento que muitos quadros receberam em Cuba, de pouco adiantava,
dadas as condies geogrficas do Uruguai e a concepo de guerrilha cubana onde a montanha, a selva e o
mundo rural tinham centralidade, condies que inexistiam no Uruguai.
83
LANGGUTH, op. cit., p. 220.
84
MOVIMIENTO DE LIBERACIN NACIONAL-TUPAMARO. Documento n 1 (IV- Conclusiones
generales). Junio de 1967.
85
NAHUM; FREGA; MARONNA; TROCHN, op. cit., p. 68.
86
Nacionalismo entendido como movimento de identidade cultural nacional orientado independncia poltica e
econmica. Socialismo visto como reestruturao social e intervencionismo econmico estatal (planejamento
centralizado da produo, maior igualdade na distribuio do ingresso). A luta contra os EUA devia apoiar-se na
unidade latino-americana: luta continental, identidade latino-americana e solidariedade entre os movimentos
revolucionrios da regio. Coincidia com a idia de criar muitos Vietns. BONINO apud NAHUM, op. cit., p.
293
294
295
funcionrio dedicado e eficiente no seu trabalho, bom catlico, etc. Na disputa miditica sobre
o perfil a ser lembrado do funcionrio estadunidense, o governo levou a melhor sobre os
setores de esquerda: parte da populao reconhecia em Mitrione um pacato pai de famlia. As
aulas de tortura com o uso de cobaias humanas, mendigos e presos polticos, assim como a
preparao de novos quadros repressivos foi desconhecida por parte importante da populao
uruguaia quando da sua morte. A figura de Mitrione se torna mais emblemtica ainda ao
constatar a explorao da sua imagem feita pelo governo (inclusive ao ponto de fechar o
servio pblico, a Bolsa de Comrcio e at os Bancos!).
A direo tupamara que se formou depois da priso dos histricos possua um
perfil diferente, pois se havia formado dentro de uma organizao guerrilheira j atuante e
onde o peso militar prevalecia em detrimento de uma perspectiva de mediao poltica e de
procura de conexes com a sociedade civil. A nova liderana apostava na eficincia militar,
nos aspectos organizativos e no verticalismo da tomada de decises. Na fase mais violenta do
confronto, ocorreram novas execues de torturadores e foram seqestrados diplomatas
estrangeiros como os cnsules Dias Gomide (Brasil) 94 e Geoffrey Jackson (Gr-Bretanha),
para servirem de moeda de troca por dirigentes prisioneiros ou para impactar a opinio
pblica internacional. Tambm foram seqestradas autoridades como o presidente da empresa
estatal UTE, Pereyra Reverbel (pela segunda vez). 95 Porm, as aes de maior impacto
promovidas pelos tupamaros, em 1971, foram as fugas massivas e espetaculares envolvendo
38 presas da Crcel de Mujeres (28/07/71) e 111 presos da penitenciria de Punta Carretas
(06/09/71). Segundo Bruschera, Muchos tuvimos la sospecha - que no podemos probar de
93
296
que los tupamaros ms que escaparse los dejaron escapar [o governo]. Porque a Pacheco
297
ANEXO III
O governo Pacheco Areco proclama luto nacional e presta homenagem pstuma oficial.
Fotografia de Maurecy Santos (Santinho) 12/08/1970
298
96
Mauricio
299
101
Segundo
ele, a organizao foi elitista, desconectada dos setores sociais dos quais se dizia porta-voz e
no teve capacidade de perceber o crescente isolamento em que caia ao persistir em
estratgias e mtodos que transgrediam princpios ticos profundos da sociedade uruguaia. O
PCU tambm criticou a linha do MLN. Sua principal liderana, Rdney Arismendi,
questionou a ausncia de uma teoria revolucionria coerente e de uma correta apreciao da
correlao de fora, alm da escolha do pior momento poltico para deflagrar uma ofensiva
militar (abril de 1972), aps o processo eleitoral, quando a Frente Ampla podia conformar,
com outros setores descontentes, uma fora parlamentar politicamente mais forte e
conseqente. 102
101
300
RODRIGUEZ, Enrique. Uruguay: races de la madurez del movimiento obrero. s. c., s. ed., s. d., p. 141.
Entre as aes inditas, houve o apoio dos trabalhadores das empresas de nibus urbano que se negaram a
levar passageiros para a zona financeira da cidade. Idem, p. 143.
106
Idem.
107
Idem, p. 144.
108
Mais uma vez recorremos a Enrique Rodriguez para ter uma viso panormica da amplitude e do impacto
deste conflito e as conexes solidrias que se estabeleceram pelo conjunto da sociedade: [...] el movimiento
105
301
obrero en su conjunto, despleg una inmensa y mltiple iniciativa, que abarc desde paros parciales, por
industria, por zonas, con manifestaciones, con ocupaciones de fbricas; que conoci desde marchas al
Parlamento hasta barricadas en La Teja y el Pantanoso, que fue acompaada por toda clase de refriegas y de
decenas de marchas y paros estudantiles, todos los das en distintas zonas, con iniciativas tan interesantes como
los peajes en los Liceos, reclamando la ayuda econmica a los huelguistas de la carne, etc. Y las marchas de las
mujeres, en solidariedad con los presos, y las jornadas en los atrios de las iglesias o en la Catedral, y la
ocupacin, varias veces, del local de la Junta Departamental de Ro Negro, y las carreteras con sus caminantes
[...]. RODRIGUEZ, op. cit., p. 132.
109
Idem.
110
Idem, p. 150.
302
Para o movimento operrio, a situao parecia definida: junto denncia das mazelas
produzidas pela crise estrutural, havia a necessidade de resistir imposio de um projeto
econmico que acelerava o desmonte do que restava do velho Estado de bem-estar e que exigia o
enquadramento (saneamento) dos trabalhadores, sindicatos, CNT, etc. Era necessrio resistir
ofensiva repressiva que visava instalar um sindicalismo dcil e um movimento operrio
despolitizado e sem pretenses de protagonismos. A construo da unidade que conflua na CNT
ocorria paralelamente formao da Frente Ampla, o que gerou enormes expectativas nas
possibilidades eleitorais de 1971.
303
governo, a crise estrutural e o uso das MPS. As mobilizaes de 1968 se iniciaram com duas
questes pontuais: o aumento da passagem escolar e a discusso do oramento da Universidad
de la Repblica (pblica). Entretanto, a dinmica do movimento ampliou o leque de
reivindicaes, assumindo a rejeio das MPS, o repdio ao congelamento salarial, o protesto
contra a invaso policial nos campis universitrios e, finalmente, o confronto com o governo
quando este tentou destituir as autoridades universitrias. 114 Tudo isso se retroalimentou com
os desdobramentos dos acontecimentos que varriam a Frana, o Brasil, a Argentina, o
Mxico, a Tchecoslovquia, os EUA, etc. Os eventos se aceleraram em maio quando, diante
das massivas mobilizaes, o governo promoveu violenta onda repressiva de interveno
contra os atos estudantis. A interrupo de ruas, as sentadas (no estilo sit-in dos EUA) e
apedrejamento de nibus foram fatos que acompanharam a discusso da passagem escolar por
exemplo. Os secundaristas realizavam manifestaes relmpagos, ocupavam seus locais de
estudo e enfrentavam a Guarda Metropolitana com barricadas de pneus incendiados e
coquetis molotov. Simultaneamente, a Universidad del Trabajo decretava greve geral
funcionrios, alunos e professores reivindicavam a falta dos repasses do governo instituio,
o que inviabilizava seu funcionamento. Apesar do aumento das detenes, a mobilizao no
arrefeceu. Com os liceos ocupados, surgiram os contra-cursos (indito no Uruguai),
experincia que havia expandido, nos anos 60, pelos EUA e na Europa.
As negociaes com as autoridades geraram dissidncias entre os estudantes, o que
tornou mais complexa a situao. No incio de junho, a crise colapsava todo o sistema de
ensino, com paralisaes que se multiplicavam em funo da falta de repasse de recursos. No
6 de junho, 5 estudantes da UTU foram feridos com gravidade originando, como resposta,
ataques contra a Pan American, Pepsi Cola, General Eletric e diversas agncias bancrias,
num processo de crescente radicalizao e acusaes contra o governo e contra os EUA. A
onda atingiu cidades prximas a Montevidu (Las Piedras, Pando, Santa Luca). No 12 de
junho, violentos confrontos no centro de Montevidu deixaram dezenas de feridos e 300
estudantes detidos. Diante desse quadro, o governo implantou novas MPS para por fim
subverso nas ruas, o que gerou mais revoltas e mais prises. Residncias e locais de ensino
foram alvos de batidas policiais a procura de material subversivo. Na evoluo das
Radicais. De origem poltica diversa (anarquistas, dissidncias do PSU, Movimiento Revolucionrio Oriental MRO - e do Movimiento de Izquierda Revolucionaria MIR). Provinham de setores populares, eram crticos das
posturas dos cristos e de Cohn-Bendit e Marcuse e sua referncia era Che Guevara. Questionavam toda
organizao tradicional, mesmo de esquerda. Defensores da ao a partir de pequenos comits. e) Direita.
Ncleo reduzido originado nos setores abastados. Muito limitados, apostaram em mtodos diversionistas e na
ao de contrapropaganda. BAALES, Carlos; JARA, Enrique. La rebelin estudiantil. Montevideo: Arca,
1968. p. 77-79.
304
hostilidades, o Governo, apoiado pela grande imprensa e pelas correntes conservadoras dos
partidos tradicionais, veiculou peas de propaganda sustentadas na tese da Nao Agredida
e colocou-se como garantia incondicional de tranqilidade contra a subverso dos maus
uruguaios. Por outro lado, realizaram-se articulao entre as mobilizaes estudantis e as dos
funcionrios pblicos e bancrios. Enquanto o governo decretava a militarizao dos locais de
trabalho desses ltimos, o Ministro de Cultura, Garcia Capurro, ameaava invadir a
Universidade e violar sua autonomia por ser fonte de distrbios.
A metodologia da ao estudantil apresentava um certo padro de luta: ocupao de
prdios (no caso dos secundaristas, com a participao de alunos com idade entre 12 e 14
anos; montagem de barreiras no trnsito com distribuio de panfletos populao; cobrana
de pedgios para arrecadar fundos; manifestaes relmpago de alta mobilidade com palavras
de ordem e panfletagem; manifestaes contra alvos especficos (bancos, empresas dos EUA,
sedes de organismos estatais), combinadas com apedrejamento e ataques com coquetis
molotov (aes comuns contra nibus em jornadas de greve geral). 115
A construo de barricadas foi outro recurso ttico importante para bloquear ruas e
prdios. A disperso em pequenos grupos consistiu em ttica diversionista empregada para
dividir, cansar e distrair a polcia; de certa forma, a vantagem numrica facilitava o
movimento de recuo, reagrupamento e nova progresso. Embora houvesse planejamento, o
calor do embate exigia rpidas decises e mudana de planos s vezes, motivadas por
desavenas internas entre base e direo.
Entre 11 e 14 de julho de 1968, dezenas de estudantes foram cercados na Faculdade
de Medicina e atacados com armas de fogo. Poucas semanas depois, a polcia invadiu o prdio
central da Universidade e o das faculdades de Agronomia, Arquitetura, Belas Artes e
Medicina. Montevidu virou palco de nova onda de confrontos; as crticas contra a violncia
estatal partiram at dos aliados do prprio governo. Na segunda-feira, 12 de agosto, mais de
trinta estudantes foram feridos; um deles, Lber Arce, foi morto pela polcia. Seu velrio, no
prdio central da Universidade, concentrou uma multido que acompanhou seu corpo at o
cemitrio. A seguir, mais de 5 mil manifestantes avanaram sobre o centro da cidade, o qual
estava sem defesa policial. Nesse momento, houve divergncias entre os manifestantes. Parte
das lideranas tentaram concentrar o movimento na Universidade. A violncia que se
desencadeou faz pensar em provocadores infiltrados, fato que parece ter respaldo no
114
Idem.
O arsenal defensivo podia contemplar estilingues, os citados coquetis molotov, pedras, pimenta (para
esfregar nos olhos dos cavalos das unidades montadas), lenos molhados com suco de limo (para resistir aos
115
305
306
307
CNT assumiu que a autonomia universitria era parte da luta popular e a consigna Obreros y
Estudiantes: unidos y adelante manteve persistncia e vitalidade.
Portanto, verdade que a formao da Frente Ampla impactou e assustou o poder
dominante, j abalado com a existncia da guerrilha tupamara; mas o temor no se restringia a
esses setores. A mobilizao estudantil e o peso da tradio de luta e resistncia sindical,
confluindo na exigncia de mudanas profundas, amplificaram o medo da ordem vigente
levando-a ao recurso de uma represso cada vez mais freqente, desenfreada e feroz.
308
Mesmo este princpio existindo desde 1934, somente uma lei de 18/09/70 normatizou sanes para os
cidados que no comparecessem s mesas de votao.
309
310
Discurso del 11 de setiembre de 1971. In: CRAVIOTTO, Wilson. Jorge Pacheco Areco. La obra de um
estadista. Montevideo: s. ed., 1988, p. 75-79.
311
tergiversao e diversionismo?
Pacheco Areco, ao afirmar que [...] jams un oriental mat a un hombre atado y por
la espalda [...] (aluso a certas execues realizadas at esse momento pelo MLN), esquece
qual era a atividade de atuao profissional dessas pessoas-alvos. Se verdade que o MLN
executou policiais (acusados da prtica de tortura), talvez seja necessrio lembrar qual era a
especialidade a que se dedicava Mitrione, a nacionalidade dos seus esforados alunos e a
nacionalidade daqueles que estavam sendo vtimas da colocao em prtica do aprendizado
desses alunos. Em todo caso, a manipulao da informao e o colaboracionismo de setores
da imprensa garantia que as afirmaes de Pacheco Areco fossem aceitas por parcelas
significativas da populao.
Os resultados eleitorais registraram que 97% dos cidados habilitados participaram
da votao, percentual indito, talvez, em funo das ameaas de sanes para quem no
votasse ou, talvez, como resultado do clima de incerteza e de polarizao vivido. A vitria
pertenceu ao Partido Colorado. Concretamente, os resultados foram os seguintes:
Resultados eleitorais
Eleies nacionais e plebiscito constitucional do 28 de novembro de 1971
Habilitados
Votantes
1.878.132
1.664.119
PARTIDO COLORADO
Bordaberry-Sapelli
Batlle-Rodriguez
Vasconcellos-Flores Mota
Pintos
Ribas
PARTIDO NACIONAL
Ferreira-Pereyra
Aguerrondo-Heber
FRENTE AMPLA
Seregni-Crottogini
UNION CVICA CRISTIANA
Prez del Castillo-Saralegui
Plebiscito constitucional
Projeto de reeleio
681.624
379.515
242.804
48.844
5.402
1.034
668.822
439.649
228.569
304.275
88,6%
dos votantes
41,00%
22,81%
14,59%
2,94%
0,32%
0,06%
40,20%
26,49%
13,74%
18,28%
8.844
0,53%
do Partido
55,07%
35,62%
7,17%
0,80%
0,15%
65,73%
34,17%
*
491.680 votos
312
o candidato individualmente mais votado, mas seu partido acabou derrotado pelo Partido
Colorado, o que deu margem, posteriormente, interpretao de que o candidato mais votado
no havia assumido. Tal afirmao, entretanto, perde sentido diante das regras do jogo
poltico-eleitoral uruguaio. Os nmeros finais indicaram que os colorados tiveram 13 mil
votos a mais do que os blancos. Nos dias seguintes eleio, surgiram denncias de fraude
eleitoral, possibilidade especulada anteriormente no clima rarefeito do perodo pr-eleitoral
alimentando, posteriormente, o debate poltico sobre a legitimidade do governo
Bordaberry. 124 Recente declarao do general Seregni, candidato da Frente Ampla derrotado
em 1971, refuta essa tese:
As denncias passaram pela constatao da falta de listas de votao dentro das cabinas de votao, a
existncia de mais votos do que eleitores em alguns circuitos. Houve, tambm, ameaas, promessas de
compensao futura e a utilizao de favores (transporte durante a eleio).
125
BUTAZZONI, op. cit., p. 209.
126
Os votos da Frente Ampla para o Legislativo se repartiram da seguinte forma: PDC (12,5%), Michelini
(10,3%), FIDEL (32,7%), ERRO (23,4%), PS (11,4%), outros (9,2%). Filgueira apud JELLINEK; LEDESMA,
313
P A R L A M E N T O
PARTIDO COLORADO
N Senadores
N Deputados
Bordaberry
28
Batlle
12
Vasconcellos
Total
13
41
PARTIDO NACIONAL
Ferreira Aldunate
30
Aguerrondo
10
Total
12
40
18
30
99
FRENTA AMPLA
TOTAL GERAL
314
315
que o jornal El Eco apontava a presena da Companhia por detrs de uma Guerra
Psicolgica contra a coalizo de esquerda. Tambm informava que os funcionrios Irwin
Rubenstein, Jeffrey Bunnigham, Harry Camill e John Hennessy, alocados na Embaixada,
estavam sendo associados CIA, da mesma forma que o cidado panamenho Anthony
Barbicri, tambm funcionrio, e que era acusado de ser, simultaneamente, membro da CIA e
do Esquadro da Morte brasileiro. 127
Concluindo a anlise do processo eleitoral e da importncia que assumiu na evoluo
dos fatos, pode-se apontar um forte questionamento aos partidos tradicionais e s regras
eleitorais. A reafirmao da liderana de Pacheco Areco no interior do Partido Colorado
constituiu um elemento a mais na deteriorao das relaes democrticas. Mesmo o seu
insucesso reelecionista tem que ser matizado, pois garantiu a vitria do seu sucessor. Em
realidade, configurou-se [...] una peligrosa situacin de empate entre las tendencias
autoritarias y democrticas que culminara cuando las primeras rercorrieran el camino del
Golpe de Estado. 128 O fato do presidente eleito ter recebido pouco mais de um quinto dos
votos implicou em fragmentao poltica e enormes dificuldades para compor uma base de
apoio parlamentar. Se, na gesto anterior, as relaes entre Executivo e Legislativo haviam
sido conturbadas, com o esvaziamento do Parlamento como espao da mediao poltica, as
expectativas futuras no eram esperanosas, fosse pela escassa votao do setor do novo
presidente, fosse pela forte presena de uma esquerda articulada, fosse pela prprio
menosprezo que o setor vencedor tinha pelas regras democrticas e pelo equilbrio de poderes.
Configurava-se, sim, un muy comprometido horizonte de gobernabilidad, e o [...] empate
relativo que emanaba de estos comicios cruciales y que luego se evidenciara en el
Parlamento indicaba la irresolucin de los conflictos de fondo [...]. 129 Ou seja, com
enormes dificuldades para negociar acordos no Parlamento e forte resistncia no seu interior
(mais qualitativa do que quantitativa), a trajetria dos setores que haviam ascendido ao poder
com Pacheco Areco e que garantiram a continuidade do projeto com Bordaberry apontava
para a ruptura inconstitucional, no mais atravs do uso e abuso das MPS, mas atravs de
solues mais definitivas.
127
Telegrama de uso oficial limitado do Embaixador dos EUA no Uruguai, Charles Adair, endereado ao
Secretrio de Estado, 09/11/71. The National Security Archive.
Disponvel em: <http:\\www.gwu.edu/~msarchiv/NSAEBB/NSAEBB71>. Acesso em: 23 fev. 2003.
128
NAHUM; FREGA; MARONNA; TROCHN, op. cit., p. 81.
129
CAETANO; RILLA, op. cit., p. 231.
316
317
135
318
argentino posterior ditador entre 1966 e 1969 , a respeito das fronteiras ideolgicas. 142
Segundo ele: [...] en la poca, llegaran a Montevideo noticias muy concretas, originadas en
el propio Estado Mayor de las Fuerzas Armadas brasileas, de que los dos jerarcas militares
haban acordado la intervencin conjunta del Uruguay en caso de necessidad [...]. 143 [grifo
de Schilling] Por outro lado, as declaraes do general Ongana defendendo [...] uma aliana
entre os Exrcitos da Argentina e do Brasil, a fim de constituir o ncleo de uma fora
interamericana e circundar os dois pases com uma fronteira ideolgica, como medida
preventiva contra a expanso do comunismo, ao tornarem-se pblicas, causaram visvel malestar em todo o continente, particularmente pela ameaa de interveno que pairava sobre o
Uruguai.
[...] caso sua situao se deteriorasse e a ameaa subversiva, a manifestar-se
atravs de greves e de operaes de guerrilha urbana aumentasse, em meio
da comoo social e poltica, que o crack financeiro, com a insolvncia do
Banco da Repblica e a quebra do Banco Transatlntico, provocara. 144
319
320
O trecho sublinhado por Paulo Schilling a chave das intenes e ameaas concretas
de invaso contra o Uruguai. Por outro lado, o mesmo Paulo Schilling aponta dados que
evidenciavam iniciativas e motivos do que daria origem denominada Operao Trinta
Horas. Suas fontes provinham de crculos militares argentinos. Um documento enviado do
Rio de Janeiro a Buenos Aires pelo general argentino Osiris Villegas apontava indcios sobre
uma provvel interveno brasileira no Uruguai. Villegas afirmou que o Brasil alertara os
meios diplomticos latino-americanos da deciso de invadir o Uruguai num prazo no
superior a seis meses (tais fatos se referem a julho de 1971), de acordo com a evoluo
interna daquele pas. 151 Villegas confirmava que, desde o seqestro do cnsul Dias Gomide,
no ano anterior, tropas do Brasil haviam sido mobilizadas sobre a fronteira uruguaia, no para
pressionar as negociaes do governo Pacheco Areco com a guerrilha, mas com o intuito de
conhecer a regio e avaliar as condies de manobra em caso de interveno. A anlise e as
concluses sobre a deteriorao da poltica interna do Uruguai teriam originado o plano em
questo.
Segundo Schilling, os estrategistas brasileiros concluram que bastavam 30 horas
para o Brasil ocupar o solo uruguaio e esmagar qualquer resistncia. O plano era justificado
com uma srie de afirmaes que, segundo Schilling sempre embasado na informao da
sua fonte argentina , demonstravam que o Brasil vinha considerando h algum tempo
projetar-se sobre esse cenrio territorial. Nesse sentido, afirmava-se que:
a) As foras armadas uruguaias careciam de armas e homens para neutralizar
e derrotar uma ofensiva militar brasileira. A cidadania oriental, embora
politizada em grau extremo, no estava preparada emocionalmente e nem
tecnicamente para oferecer uma resistncia massiva.
b) A ao guerrilheira podia isoladamente provocar alguns transtornos, mas
150
151
321
322
territorial (dentro da lgica dos seus cnones geopolticos). Ou ento, de interferncia nas
questes internas dos pases vizinhos, desequilibrando as disputas internas em benefcio dos
setores alinhados s convices da DSN.
Mas esse editorial de Marcha alertava para outro fato que tornava mais ameaadoras
as palavras do chanceler Barboza. Marcha relacionava a idia de caminos que van llhegando
a la frontera com um documento do Departamento de Estradas do Brasil em que se
informava ao Ministro de Obras Pblicas, Mrio Andreazza, a construo de mais de 27 mil
quilmetros de novas estradas, sendo que, seis delas (consideradas prioritrias), confluindo
sobre a fronteira brasileiro-uruguaia. 156 A notcia que acompanhava esses dados acrescentava:
El amplio dominio de las carreteras orientadas hacia la frontera uruguaya ha
merecido la explicacin oficial de que el polo del desarrollo se proyecta
hacia el sur a partir desde San Pablo; pero resultan tambin, inocultables los
intereses polticos que la diplomacia brasilea ha mostrado en los ltimos
tiempos por el pequeo pas del Ro de la Plata. Segn fuentes bien
informadas, la situacin poltica del Uruguay ha sufrido un acelerado
deterioro en los ltimos tiempos, es el centro de las preocupaciones de la
cancillera brasilea y la mayor parte de sus iniciativas destinadas a
consolidar un frente antiguerrillero en el continente tienen por objetivo crear
las condiciones adecuadas para contener el peligro de una irradiacin del
fenmeno tupamaro o de la izquierdizacin del pas mediante un eventual
triunfo del Frente Amplio. 157
Segundo Marcha, as estradas seriam a BR-471 (668 Km) de Soledade fronteira; a BR-472, de So Borja
Barra do rio Quarai; a BR-337, entre Carazinho e Quarai (489 Km). Tambm so citadas, embora de forma
genrica e, talvez, imprecisa, Fortaleza-Jaguaro (4.403 Km); Belm-Braslia-Acegu (3.749Km); e a BR-158,
de So Flix (Mato Grosso) at Livramento (2.714 Km).
157
Uruguay y Brasil. La sombra de la Cisplatina. Marcha, 30/07/71, p. 7.
158
Brasil quiere disponer de los ros que nacen en su territorio y despus correm por el nuestro, con entera
libertad. Denncia do editorial de Marcha de 06/08/71, p. 7.
323
159
324
a ser el Uruguay.
164
Idem.
Apud SCHILLING, idem.
166
CONTREIRAS, Hlio. Militares: confisses: Histrias Secretas do Brasil. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.
p. 60.
167
Trends in Communist Propaganda, 25/08/71. Foreign Broadcast Information Service (FBIS), confidencial.
The National Security Archive. Disponvel em: <http:\\www.gwu.edu/~nsarchive/NSAEBB/NSAEBB71>
Acesso em: 23 fev. 2003.
168
Referia-se ao j comentado esquema de construo de estradas estratgica que levam ao Uruguai, a
construo da maior base area da Amrica Latina em Santa Maria (Rio Grande do Sul) e presena de um
homem chave da inteligncia brasileira, o coronel Moacir Pereira, como simples agregado militar en una
embajada de tercera categora como es la de Brasil en el Uruguai. SCHILLING, Paulo. Ir Brasil a la guerra?
Marcha, 26/11/71, p. 22.
169
Os EUA enfrentavam: srios problemas no Vietn; forte questionamento por todo o Terceiro Mundo; desafio
com a Unidade Popular chilena. Por outro lado, encaminhavam uma poltica de distenso Leste-Oeste e
165
325
que este pas funcionara, at aquele momento, como pra-choque entre as duas potncias
latino-americanas, a mensagem dos EUA era bem direta. O equilbrio da regio na podia ser
rompido pela radicalizao da esquerda no pequeno pas nem por uma ao unilateral da
Argentina e do Brasil. O entendimento entre ambos devia nortear as aes na geopoltica do
Prata. 170
A derrota eleitoral da Frente Ampla em 1971 e a derrota militar do MLN em 1972
esvaziaram o tensionamento que parecia estar por detrs das verses da existncia do plano
brasileiro de invaso. Um manto de silncio e de negativas encerraram a discusso; a
evoluo da poltica uruguaia rumo consolidao de uma ditadura de Segurana Nacional
definiu o posicionamento dos setores dominantes do pas junto comunidade da DSN e das
fronteiras ideolgicas. Aparentemente, a Operao Trinta Horas cara no esquecimento, ou
no havia passado de especulao da contra-informao da poca.
Mas o jornalista Evandro Paranagu, do Correio Brasiliense, baseando-se em
documentos e entrevistas divulgou, em 1991, que a ao de fato existira e que devia ter
acontecido, em caso de vitria da Frente Ampla, imediatamente aps a divulgao dos
resultados eleitorais. 171 As informaes colhidas pelo jornalista apontam para duas hipteses.
Uma, na qual a ao envolvia todo o comando militar, inclusive o Presidente Mdici e o
Ministro do Exrcito, Orlando Geisel. A outra, restringia-se a um planejamento autnomo do
III Exrcito a espera de uma ocasio concreta para, provavelmente, apresent-lo ao resto da
cpula militar hiptese tambm sugerida pelo jornalista Elio Gspari. 172
Anos antes, em 1985, veio a pblico o depoimento do coronel brasileiro Dickson
Grael, 173 quem desiludido com os rumos que tomou o regime iniciado em 1964 o qual
apoiara com entusiasmo e participao , decidiu apresentar seu relato sobre alguns fatos
notrios de abuso de poder e de corrupo envolvendo o regime militar. Entre eles, em um
texto pequeno mas qualificado pela fala testemunhal, Grael trouxe luz importantes
informaes e esclarecimentos que confirmaram a existncia de um plano para invadir o
Uruguai, se necessrio.
326
174
foi o
Obra publicada pela Editora Global de So Paulo em 1981. H pelo menos uma verso em espanhol
publicada anteriormente (El Expansionismo Brasileo. Mxico: El Cid Editor, 1978).
175
GRAEL, op. cit., p. 11.
176
Grael chega a especular que poderia ser do interesse argentino, na eventualidade de ocorrer o avano da
esquerda no Uruguai, o Brasil como interventor, assim assumindo o nus poltico-econmico que certamente
327
Tal posio bem diferente da defendida pelo tenente Marco Pollo Giordani,
177
que,
na obra Brasil sempre, tece duras crticas a Grael. Giordani diz ter sido mobilizado para a
interveno do Uruguai (ao que denomina como Operao Charrua); informa que havia
muita vibrao entre aqueles que deviam participar parecamos viver um momento
grandioso e afirma que a interveno s no ocorreu porque os uruguaios resolveram o
problema atravs das urnas. Mas o que mais se destaca da sua anlise, apesar de alguma
impreciso cronolgica e conceitual dos fatos, a constatao de que o Brasil havia tomado
uma deciso que mostrava sua pretenso de abandonar uma posio de inrcia continental
diante das ameaas de subverso sobre suas fronteiras. 178
Voltando ao coronel Grael, seu depoimento taxativo. Desde o final de 1969,
encontrava-se na zona fronteiria brasileiro-uruguaia, zona que era rea de segurana. Como
oficial do Estado-Maior do Quartel-General da 2 Diviso de Cavalaria, 179 recebeu ordens
para
[...] efetuar um primeiro estudo das diretrizes a serem seguidas por aquela
Diviso, visando sua participao em um plano de interveno militar no
Uruguai. Tal fato deveria ocorrer caso a chamada Frente Ampla viesse a
vencer as eleies a terem lugar, ainda naquele ano, no pas vizinho. 180
Ao discordar da misso que lhe fora atribuda com argumentaes de cunho poltico
e militar, Grael foi colocado, pelo superior imediato, o general Pellegrino, margem do seu
planejamento.
Uma informao importante no depoimento de Grael seu testemunho de ter
acompanhado, junto com o coronel Newton Alvarez Rodriguez, representante do EstadoMaior do Exrcito, o Adido Militar dos EUA, general Arthur Moura, em uma visita s
guarnies da regio. Grael conta que, descendo o rio Uruguai, Moura chegou inclusive a
fotografar algumas atividades da Frente Ampla. Tudo indica que a presena do militar
estadunidense na fronteira era parte de uma ao de monitoramento. Nas palavras de Grael:
[...] essa visita do General Moura fazia parte do acompanhamento exercido pelo Governo
dos Estados Unidos em relao conturbada situao no Uruguai e aos preparativos militares
brasileiros dela decorrentes. 181
teria que enfrentar.
177
GIORDANI, Marco Pollo. Brasil Sempre. Porto Alegre: Tch, 1986.
178
Idem, p. 246.
179
O autor informa que a 2 Diviso de Cavalaria era comandada pelo General de Brigada Joo Jacobus
Pellegrini e que era diretamente subordinada ao Comando do III Exrcito, sediado em Porto Alegre e
comandado, na poca, pelo general Breno Borges Fortes. GRAEL, op. cit., p. 15.
180
Idem.
181
Idem.
328
Mauricio Rosencof tambm lembra que Fidel Castro j havia advertido ao MLN:
Vocs podem vencer, mas no outro dia tero os brasileiros metidos ali. 183 Um fato
surpreendente, apontado por Grael, que a ao seria de conhecimento e responsabilidade
exclusiva do Exrcito, como apontado em uma das hipteses do jornalista Paranagu. O
coronel Grael levanta fortes suspeitas de que a Fora Area e a Marinha desconheciam a
existncia do plano de interveno ou de que estariam marginalizados do mesmo. 184
Poucos dias antes de ocorrerem as eleies uruguaias, o Comandante do III Exrcito,
general Breno Borges Fortes, fez uma ltima visita s guarnies verificando a preparao da
operao e reunindo-se com a oficialidade envolvida na mesma. Grael diz que, nessa ocasio,
atravs de um assessor militar do general Breno, ficou sabendo que estava sendo engajado no
planejamento da ao e de que deveria inteirar-se [...] de todos os planos, inclusive dos
reconhecimentos j efetuados na futura zona de ao, j que me estava destinada uma
importante funo nas operaes a cargo da nossa Diviso. 185 Como a interveno no
aconteceu, Grael somente soube, 6 anos depois, o teor da misso que lhe estava destinada:
comandar a 2 Brigada de Cavalaria Mecanizada. Apesar de que, naquele novembro de 1971,
182
329
A derrota eleitoral da Frente Ampla e a posterior derrota militar do MLN deixou sem
efeito o plano. O depoimento do coronel Grael de fundamental importncia por ser um
oficial sabidamente anticomunista, engajado no golpe militar que derrubou Joo Goulart e
que, em 1971, estava localizado na zona onde se preparava a invaso. Suas afirmaes e sua
convico sobre a existncia do plano e a mobilizao decorrente demonstram que no se
tratou simplesmente de ao de contra-informao ou de ameaa poltica sobre o pas vizinho.
Sua sensibilidade para contextualizar a presena de oficiais dos EUA, assim como o
desconforto e as desavenas entre as Foras Armadas brasileiras (indicando uma certa
autonomia do Exrcito nessas decises), tambm preciosa. Em 1998, veio a pblico o
depoimento do brigadeiro Srgio Luiz Burger, quem, de forma breve e enftica, reafirmou a
existncia do operativo:
Houve realmente um plano de interveno do Brasil no Uruguai, aprovado
no governo do general Mdici, no incio da dcada de 70, na poca em que
havia ameaa de golpe dos tupamaros, aps a eleio de Bordaberry. Os
tupamaros pretendiam impedir a posse do presidente eleito, e se eles
tomassem o poder pela fora, o Brasil interviria, cumprindo uma deciso da
OEA. 187
Pode-se ver que h uma srie de dados que divergem das contribuies anteriores.
Mas o que se pode ter como princpio o reconhecimento de que o Uruguai foi monitorado e
ameaado, concretamente, por uma interveno armada. Provavelmente h imprecises no
seu depoimento. Em primeiro lugar, pelo superdimensionamento feito sobre o poder de fogo e
numrico da organizao tupamara. Mesmo que, em algum momento, os governos de
Pacheco Areco e de Bordaberry sofreram momentos de grande fragilidade poltica, isso nunca
foi exclusivamente em funo de uma ao guerrilheira, mas, na melhor das hipteses, de
uma combinao de fatores onde o MLN era um dos mesmos. Em segundo lugar, ele no faz
nenhuma referncia possibilidade eleitoral da Frente Ampla, mas, refere-se posse do novo
presidente, o que incongruente, pois esta posterior.
A partir disso constata-se que, ou ele confundiu tupamaros com Frente Ampla, o que
186
Idem, p. 18.
330
331
332
EUA entre os dias 7 e 9 de dezembro. Efetivamente, o Brasil sugeria (em 03/11/71) 25 pontos
de pauta (vrios deles tratando sobre questes de segurana na regio); o ponto XII era sobre
o Uruguai. A resposta dos EUA (em 13/11/71) reduziu a pauta sugerida pelo Brasil a nove
pontos; o 8 era sobre Problemas Hemisfricos: a) Cuba, Chile, Uruguai. Isto digno de
nota. Praticamente na vspera das eleies uruguaias, os EUA consideraram o pas um caso
to preocupante quanto Cuba e o Chile de Allende! O fantasma de uma hipottica vitria da
Frente Ampla era avaliada com muito receio. 192 Posteriormente, na vspera do encontro entre
ambos os presidentes, Kissinger alertou Nixon sobre algumas preocupaes que Mdici
certamente colocaria na mesa de negociaes, entre as quais a fora da esquerda no
hemisfrio, a situao da Argentina, do Chile e da Bolvia e, particularmente, os 20% da
votao nacional obtida pela Frente Ampla no Uruguai. Ao dizer que Mdici simpatizava com
a aplicao das orientaes estadunidenses, Kissinger lembraria a Nixon que aquele poderia
vir a perguntar sobre o que se poderia fazer para restabelecer a ordem no Uruguai. 193
Na poca, questionava-se o resultado do processo eleitoral uruguaio com acusaes
de fraude. Uma segunda recontagem de votos foi necessria at declarar, definitivamente, a
vitria de Bordaberry. Nesse nterim, intensificaram-se as acusaes contra a interveno da
Embaixada estadunidense, estimulando ainda mais o medo psicolgico resultado da intensa
propaganda anticomunista veiculada atravs da imprensa oficial e dos atentados intimatrios
da JUP. Curiosamente, o embaixador Adair no rejeita as acusaes que lhe so feitas.
Simplesmente informa ao seu governo que, consumada a derrota da Frente Ampla, tais
acusaes devero intensificar-se. 194
Colateralmente discusso sobre existncia ou no de um plano de interveno no
Uruguai e sua relao com a conjuntura eleitoral, deve-se destacar que se confirma a conexo
colaboracionista dos governos dos pases vizinhos com o governo Pacheco Areco e com a
extrema direita uruguaia. Os documentos desclassificados pelo governo dos EUA apresentam
333
a solicitao de colaborao sugerida pela sua Embaixada no Uruguai: [...] desejvel que
[...] Argentina e Brasil colaborem efetivamente com as foras de segurana uruguaias. 195
Houve uma resposta imediata (j citada), confirmando a ajuda do governo argentino. 196 Por
sua vez, o general Seregni lembra que o papel do governo estadunidense no foi importante
s nas eleies de 1971, mas tambm durante todo o perodo imediatamente anterior: Todo
ese aparato que funcionaba en el Ministerio del Interior [refere-se aos grupos paramilitares e
ao Esquadro da Morte] [...] fue creado por Estados Unidos, y trado y orquestado a travs de
Brasil. 197 As conexes entre Brasil e EUA parecem bem explcitas.
Seregni cita tambm o ex-Embaixador brasileiro Pio Corra, que publicara, nas suas
memrias, a entrega de armamento e explosivos extrema-direita uruguaia. 198 O coronel
Grael contribui a lanar luz sobre essa conexo ao afirmar que o Adido da Aeronutica na
Embaixada brasileira, coronel Leuzinger, sugeriu e obteve apoio da Agncia Central do SNI
para ajudar organizaes anticomunistas uruguaias como a JUP, a TFP e setores da polcia e
das Foras Armadas que agiam de forma encoberta. O prprio Leuzinger se encarregaria de
introduzir explosivos para aqueles grupos. 199 Gspari confirma a existncia da conexo
brasileira do terrorismo de direita uruguaia. 200
Diante de tudo o que foi exposto e a partir das fontes analisadas, pode-se concluir
que houve uma operao militar brasileira para intervir no Uruguai que no chegou a fase
final diante da derrota eleitoral da Frente Ampla. Portanto, as denncias feitas por parte da
imprensa uruguaia no eram s propaganda poltica da esquerda, embora seja compreensvel
que, no ambiente eleitoral de 1971, procurassem-se capitalizar tais rumores em benefcio da
candidatura de Lber Seregni.
Tambm se pode afirmar que os EUA no s conheciam o plano como o
encorajaram. O monitoramento testemunhado por Grael e a documentao desclassificada so
bastante claros a esse respeito. O nico receio da superpotncia residia na possibilidade de
divergncias no entendimento de como resolver a questo entre Argentina e Brasil: da o
apelo insistente dos EUA no sentido de evitar aes unilaterais que confrontassem esses
pases, pois isso destruiria o equilbrio existente na regio e a desestabilizao desta seria
muito mais perigosa do que os riscos contidos no motivo originrio da preocupao, o
195
Anlise e Papel Estratgico Preliminar secreto da Embaixada dos EUA-Uruguai, 25/08/71. The Nacional
Security Archive. Doc. cit.
196
Telegrama secreto da Embaixada dos EUA (Buenos Aires) ao Departamento de Estado, 27/08/71. Doc. cit.
197
BUTAZZONI, op. cit., p. 210.
198
Idem, p. 228.
199
GRAEL, op. cit., p. 19.
200
GASPARI, op. cit., p. 349.
334
avano comunista na regio. Isto permite supor que, considerando as boas relaes entre os
governos Nixon e Mdici, caso a invaso viesse a ocorrer, no se configuraria como a
sonhada expanso das fronteiras naturais defendida por alguns setores do pensamento
geopoltico, e sim como uma ocupao transitria que devolveria o governo a aliados locais
confiveis.
Em relao aos EUA, h uma outra concluso a ser tirada. No primeiro captulo,
procurou-se evidenciar o papel da CIA como um dos mecanismos mais eficientes e agressivos
da poltica de pentagonizao da Amrica Latina. Atravs de todo tipo de ao encoberta,
s vezes com certa autonomia do seu governo, sua presena constante na desestabilizao
de governos inimigos, na articulao com setores golpistas de direita, no financiamento e
divulgao de propaganda anticomunista, no treinamento de unidades paramilitares, etc. Na
conjuntura pr-eleitoral uruguaia, esse protagonismo e essa metodologia de ao tambm
estiveram presentes. Entretanto, a documentao desclassificada coloca no centro do
envolvimento de interesses estadunidenses no a CIA e suas aes encobertas, sempre
estratgicas, mas o prprio governo norte-americano, na sua forma mais visvel, a
institucional com sua rede de embaixadas, a Secretaria de Estado e o Conselho de
Segurana Nacional , conspirando abertamente.
Na medida que se queria evitar a ascenso da Frente Ampla, a opo seria apoiar um
governo forte da direita uruguaia; naquela conjuntura, tudo apontava para o setor de Pacheco
Areco, homem de mo muito dura apesar dos entraves que lhe colocava a Constituio
vigente. Mesmo assim, extrapolara no uso das Medidas Prontas de Seguridad e negara-se a
qualquer negociao com o MLN, colocando-se com um perfil de tamanha inflexibilidade
poltica que deixou um grau de desgaste acentuado at entre seus aliados e apoiadores. A
correspondncia entre as Embaixadas dos EUA na regio e delas com o Departamento de
Estado apontam para esta concluso, fato tambm indicado pelo historiador norte-americano
Scott Myers. 201
Entre as questes secundrias a concluir, deve-se ressaltar que, embora o fantasma
da luta armada fosse permanentemente usado pelo discurso anticomunista, na hora da
verdade viu-se que no era o nico inimigo que devia ser destrudo. Certamente, mais do que
o MLN, o movimento estudantil e a CNT, a grande ameaa foi a Frente Ampla. Talvez
201
Ao comentar a postura de Pacheco Areco nas negociaes com o MLN no seqestro do Cnsul Dias Gomide,
Myers diz que: Las relaciones entre los dos pases se hicieron muy tensas, especialmente a lo largo de las zonas
fronterizas, en las que se corra el rumor de la existencia de movimientos de tropas brasileas. Se especul,
aunque nunca lleg a confirmarse, que Pacheco permitira la entrada al pas de las fuerzas brasileas si la
situacin con los Tupamaros llegaba a una fase crtica. MYERS, Scott. Los Aos Oscuros 1967-1987.
335
porque albergou dentro do seu interior todas as outras modalidades de luta (como espcie de
dupla militncia). Talvez pelo grande impacto eleitoral que produziu apesar da derrota, pois
teve uma vitalidade desbordante apesar da sua origem recente. Quem sabe se pelo ineditismo
de conseguir abranger, em uma pauta mnima, mas centrada, quase toda a esquerda do pas.
Qui foi pelo dinamismo que imps a partir da militncia nos Comits de Base. E, se no
bastam todos estes argumentos, talvez, ento, como expectativa de ameaa futura. Que outra
coisa poderiam esperar os setores conservadores e golpistas de uma sociedade cada vez mais
imersa em um caldo de cultura de mazelas sociais e de uma crise estrutural incessante? O que
poderiam fazer enquanto, simultaneamente, se consolidava uma fora poltica nova que
recebia quase 20% dos votos nacionais alm de uma importante e combativa representao
legislativa, com uma militncia jovem, permanente e conectada organicamente no movimento
social atravs dos sindicatos, das associaes de bairros, do movimento estudantil, da CNT,
da cultura popular e de parte da intelectualidade? O Terror de Estado a caminho responde
estas interrogaes.
As eleies de novembro de 1971, com as frustraes e incertezas que deixaram de
cada lado, se transformaram em um verdadeiro ponto de inflexo na disjuntiva nacional e
regional. At porque elas no alteraram radicalmente a relao de foras, nem mudaram a
lgica das tendncias que se vinham manifestando e amadurecendo no interior da sociedade
uruguaia (que no era imune, por sua vez, dinmica do contexto regional). E, certamente,
tudo isso foi reforado pela experincia da Unidade Popular no governo do Chile e pelos
desafios que produzira dentro da perspectiva das fronteiras ideolgicas e do
anticomunismo.
Ainda pode-se acrescentar que no se cumpriu a hiptese levantada por Schilling a
partir das suas fontes militares argentinas de que, se a vitria eleitoral pertencesse a um
partido tradicional, os tupamaros intensificariam sua ao e justificariam tambm a
interveno brasileira. O resultado eleitoral confirmou a vitria do continusmo do governo
anterior s que com Bordaberry. De fato, o MLN retomou com intensidade o confronto, mas,
com a disseminao da tortura, a organizao rapidamente foi derrotada e destruda. Com
isso, a ltima justificativa para intervir militarmente no Uruguai deixou de existir; mesmo
assim, a desmobilizao da Operao Trinta Horas, logo aps conhecidos os resultados
eleitorais, um forte sintoma da hierarquizao e da percepo que se tinham sobre os
diversos inimigos internos.
336
337
paralelo na conturbada experincia da Unidade Popular chilena, sinal de que a rede tecida pela
Doutrina de Segurana Nacional se espalhava pelo Cone Sul.
338
convivncia democrtica.
O governo Bordaberry, como fizera o de Pacheco Areco, priorizou a luta antisubversiva por trs motivos. Primeiro, porque o MLN havia crescido em quadros ativos, em
nvel operativo, em armamento e em base poltica, desafiando no s o governo, mas os partidos
tradicionais como um todo; estes reconheciam que havia limites constitucionais que exigiam a
eliminao da guerrilha. Segundo, a luta contra a subverso era a nica iniciativa em que o
governo podia contar com o apoio de Ferreira Aldunate (o que no significava coincidncia nos
instrumentos e mtodos repressivos utilizados), isolando a esquerda. Terceiro, abria espao para
a irrupo protagnica das Foras Armadas, o que mudaria a relao no quadro de foras em
benefcio do governo.204 Conseqentemente, o confronto com o MLN se intensificou; aps a
trgua eleitoral, a organizao guerrilheira retomou as aes armadas, o que serviu de pretexto
para os excessos repressivos. Em janeiro de 1972, o MLN lanava, em Paysand, sua
declarao de guerra:
Al pueblo oriental lo han humillado. Lo humillaron con el hambre y la
desocupacin, con la estafa electoral, con la crcel y el encierro, con la
tortura y la muerte. Pero el pueblo oriental, ofendido y humillado, responde
como respondieron los que antao se alzaron en cuchillas contra la
injusticia... Y en esta guerra van a temblar, porque a pobrera no tiene otra
cosa que perder en esta batalla que un hambre muy vieja, y ustedes, los ricos
de siempre, van a dormir inquietos. Porque les vamos a entrar en sus
mansiones y en sus despensas y sus cajas fuertes. Ahora los humildes alzan
su brazo armado. Y cuidado, que son muchos. Que somos muchos. Que
somos todos. Y queremos patria. 205
Alfaro lembra que o novo patamar de luta projetado pela guerrilha resultara da
avaliao dos resultados eleitorais:
Hemos ganado ya el apoyo que es dable ganar en el marco de la actual lnea.
Es imposible ganar mayores contingentes de masa si no elevamos en
cantidad y calidad el nivel de nuestra accin. 206
Idem, p. 127.
ALFARO, op. cit., p. 25.
206
Idem, p. 26.
205
339
parlamentar da dinmica poltica. Em fevereiro de 1972, o MLN ocupou a cidade de Soca, nas
proximidades de Montevidu, e seqestrou um integrante do Esquadro da Morte (o
fotgrafo e funcionrio policial Nelson Bardesio). 207 A partir do depoimento deste, o MLN
forneceu informaes sobre aquela organizao a juzes, fiscais e legisladores e divulgou que:
Hemos demonstrado del modo ms palmario que el Escuadrn de la Muerte
no se mueve en las sombras, ni mucho menos, se mueve desde el Ministerio
del Interior, desde el Comando de las Fuerzas Conjuntas, desde el Gobierno.
Tiene nombres y apellidos notorios; viste (o mejor, ensucia) el uniforme de
las Fuerzas Armadas. 208
Em cativeiro, Bardesio descreveu o esquema de controle da CIA sobre a Direo de Inteligncia da Polcia e
relatou como surgiu o Esquadro da Morte, sua estrutura, o nome dos seus integrantes e suas aes. No mesmo
14 de abril, dia em que o MLN desencadeou aes contra os integrantes do Esquadro, seu depoimento chegou
aos senadores da Frente Ampla, os quais, ao tentar expor o grau de vinculao dessa organizao com o governo,
visavam evitar a aprovao do Estado de Guerra Interno. MARTNEZ, op. cit., p. 33.
208
Aviso a la poblacin. Documento do MLN-Tupamaros de 14/04/72.
209
Atravs de cadeia de rdio e televiso, Bordaberry conclamou a populao a unir-se ao governo para salvar o
Uruguai da destruio e participar do enterro dos cidados executados pelos tupamaros (qualquer aluso ao seu
pertencimento ao Esquadro foi evidentemente evitado). Martnez acrescenta que a homenagem aos quatro
mortos ocorreu na Plaza Independencia; posteriormente, os corpos foram levados ao Cementerio Central por um
[...] cortejo encabezado por una curea [carruagem] tirada por seis caballos blancos. O ministro de Educao e
Cultura, Julio Maria Sanguinetti, fez o discurso de despedida dos [...] cuatro uruguayos cados en el ms
glorioso de los deberes: el de servir a la patria. [grifo do autor] MARTNEZ, op. cit., p. 21.
210
CALACE, op. cit., p. 12.
340
imprensa, a Igreja Metodista (local onde o comando tupamaro disparara contra Acosta y Lara)
e a residncia do editor de Marcha, Carlos Quijano. 211
Diante da onda de violncia, a Assemblia Geral aprovou, no 15 de abril, a
suspenso das garantias individuais, de acordo com os artigos 253 e 31 da Constituio, 212
declarando o Estado de Guerra Interno (por 30 dias) e legitimando a represso desencadeada
contra toda oposio ao governo. 213 A aprovao dessa medida respondia s alegaes das
Foras Armadas de que [...] la marcha de las operaciones [antisubversivas] haba puesto de
relieve el cmulo de obstculos, de diverso orden que entorpeca su accin, comprometiendo
sus resultados. 214 O governo pressionava pela aprovao dessa lei desde o dia 6 de abril. O
esprito da mesma era o de criar mecanismos para enfrentar situaes de conflito no
contempladas pela Constitucional. Em realidade, com a aprovao do Estado de Guerra
Interno, o Parlamento legalizou o que j acontecia de fato, ou seja, aes policiais sem
necessidade de ordem judicial, interrogatrios sem prazo, suspenso de hbeas corpus, a
interveno da Justia Militar nos delitos polticos, a criao de novos delitos, o aumento das
penas e a recluso dos detidos em qualquer parte do pas. 215 Na noite da aprovao do Estado
de Guerra Interno, o senador Zelmar Michelini, da Frente Ampla, acusou o governo e seus
representantes no Parlamento de ameaarem com um golpe de Estado se a medida no fosse
aprovada:
En la noche de hoy la Asemblea General ha trabajado no dentro de la sala
sino en el Ambulatorio, con un fantasma que se ha movido permanentemente
y es el fantasma de las Fuerzas Armadas exigiendo que se voten
determinadas medidas porque de otra forma quin sabe lo que pode pasar
[...]. Lo que yo digo, seor Presidente [da Assemblia], es que en el
Ambulatorio ha estado permanentemente el fantasma de las Fuerzas
Armadas. Se h dicho que si no se haca tal cosa, las Fuerzas Armadas
adoptaran tal actitud. En definitiva, h existido el fantasma y el cuco [bicho
papo] del golpe de Estado. 216
Logo em seguida (17/04), ocorreu o massacre contra uma sede do PCU (Seccional
211
341
20).
217
342
Significativamente, a aprovao dessa lei permitiu que tudo aquilo que podia ser
identificado como delito cometido contra o Estado, passava para a jurisdio do Cdigo Penal
Militar como, por exemplo, atentados, servios polticos ou militares, revelao de segredos,
servio de inteligncia, sabotagens, etc. (Art. 60). Da mesma forma, eram encarados os
delitos polticos considerados terroristas: subverso, associao para delinqir, manuteno de
impunidade, encobrimento, conspirao, etc. (Art. 60 - V, VI, VII e XI), uso de
documentao falsa (Art. 258 e 259), seqestro de pessoas (Art. 138), etc. O Poder
Executivo recebeu a prerrogativa de suspender reunies que considerasse que podiam alterar a
ordem pblica (Art. 5) e exigir de instituies pblicas e privadas a implantao de medidas
de segurana (Art. 3). Por outro lado, o Artigo 59 estabelecia que eram responsveis do
delito, alm do autor, todos os que concorriam como provocadores, co-autores e cmplices,
ampliando o alcance e os efeitos que podia ter uma medida como essa.
Havia artigos ambguos, imprecisos, onde tudo podia ser computado como delito, como
no caso do Art. 150, de Asociacin para delinquir - Los que se asociaron para cometer delitos,
sern castigados por el simples hecho de la asociacin (...) -, o Art. 147, de Instigacin pblica
a delinquir - aquele que instigare pblicamente a cometer delitos, ser castigado, por el slo
hecho de la instigacin (...) -, ou o 148, de Apologa de hechos calificados como delitos. Vejase que de difcil percepo o limite entre o fato de delinqir, de instigar a delinqir ou de fazer
222
223
Idem.
PREGO, Omar. Reportaje a un Golpe de Estado. Montevideo: Suplemento - La Repblica, 1988. p. 44.
343
apologia.
Alm disso, havia um Captulo III correspondente aos artigos que se referiam
tipificao dos crimes cometidos pela imprensa como a divulgao de fatos qualificados como
delitos, divulgao maliciosa de notcias falsas que ocasionassem tenses junto ao pblico,
alterao da ordem ou prejudicassem a imagem interna ou externa do governo, apologia de
pessoas procuradas ou condenadas por delitos, etc. Quanto responsabilizao por esses
delitos, havia uma gama de sujeitos: empresrios, redatores, jornalistas, depoentes e
entrevistados. O Art. 27 chega bizarra frmula de que: El redactor responsable no se halla
obligado a revelar el nombre del autor [do texto censurado], pero si se abstiene de hacerlo se
har efectivo el apercibimiento y se le castigar como autor del delito.
Uma medida quase desapercebida foi a contida no Art. 46 do Captulo IV
(Disposies Gerais) da lei, que suspendeu, por 4 anos, os tempos mnimos exigidos para a
ascenso policial, o que significou, na prtica, a promoo do inchao de oficiais e o
abandono do critrio do tempo de servio. Dois artigos do Captulo I foram ignorados na sua
aplicao. Um deles, o Art. 60 (VIII), sobre a Asociacin Usurpadora de Autoridades
Pblicas dizia, literalmente, que: Los que se asociaran para sustituir a la autoridad pblica,
en los casos en que a ella competa entender en la prevencin o represin de actos real o
presuntivamente delictuosos, por el slo hecho de la asociacin, sern castigados con pena de
2 a 12 aos de penitenciara. Destaque-se, porm, que se desconhecem registros de que as
aes das organizaes paramilitares da JUP e do Esquadro da Morte tenham sofrido a
aplicao da lei bem como civis que cometeram seqestros, atentados e crimes polticos
contra militantes de esquerda, Comits de Base, sedes estudantis e sindicais. Isso talvez
ocorreu pelo fato de que, nas suas aes, no estavam substituindo a autoridade pblica, e
sim, a representavam, ou agiam no seu nome (embora de forma subversiva e ilegal).
O outro artigo a destacar o 7, que anunciava que:
O funcionrio pblico encarregado da administrao de um crcere, da custdia
ou do traslado de uma pessoa detida ou condenada que cometesse com ela atos
arbitrrios ou a submetesse a rigores no permitidos pelos regulamentos, ser
castigado com pena de seis meses de priso a dois anos de penitenciria.
Esta medida parece ser uma verdadeira pea kafkiana. Salvo rarssimas excees, os
casos de maus tratos e torturas foram generalizados, e, embora o governo se obstinasse na
poltica de negar tais fatos, a denncia dos mesmos tornavam sua ocorrncia de domnio pblico.
Apesar da lei, no se conhecem, no perodo, informaes oficiais de reeducao de indivduos
que tivessem esse padro de desvio de conduta.
344
224
345
ANEXO IV
Constancia de Allanamiento
Documento
346
347
Jaume: Tan enemigos como los Tupamaros son los agiotistas, los usureros, los
contrabandistas, los especuladores y los estafadores del Erario Pblico. 231
La corrupcin pasaba a ser considerada como causa profunda de la sedicin
y ello pareca imprimir un alcance inesperado a la lucha antisubversiva. Esta
nueva inquietud de las FFAA tena como protagonistas a ciertos sectores de
la oficialidad joven que, encargada de las tareas concretas de la represin,
habra tomado conciencia de la problemtica nacional a travs de los
interrogatorios a los detenidos. [...] como cabeza visible de la nueva
tendencia, apareca el coronel Trabal [...] como artfice del dispositivo de
inteligencia que provoc el desmantelamento del MLN. En este contexto,
algunos sectores del ejrcito impulsaron un intento de efectiva represin de
ilcitos, siendo su expresin ms espectacular la detencin de Jorge Batlle
que permaneci durante algunos das en dependencias de un cuartel. 232
Tal fato no teve maiores desdobramentos pessoais, mas enfraqueceu a base poltica
de apoio a Bordaberry, pois os trs ministros da corrente de Jorge Batlle renunciaram ao
gabinete.
Os acontecimentos vinculados trgua surpreenderam o mundo poltico,
especialmente oposio. Comeou-se a falar da existncia de uma corrente peruanista 233
dentro das Foras Armadas uruguaias. Isto induziu a leituras, interpretaes e expectativas
que depois se mostraram equivocadas, obtusas. 234 Caula & Silva 235 consideram que o
encontro de trabalho resultante da trgua, resultou em uma espcie de tupamarizao das
Foras Armadas e apontam que essa interpretao conseguiu simpatizantes inclusive entre os
crculos militares, como cita o capito Trcoli:
La gran paradoja a analizar es cmo el MLN, en franca retirada, vi desde el
cautiverio y habiendo conocido su enemigo, otra forma de llevar a cabo su
guerra poltica, otra forma de alcanzar sus objetivos: realizando una especie
de alianza con su enemigo tctico. 236
O tenente coronel Queirolo faria uma posterior autocrtica a respeito dessa atitude de
alguns integrantes da oficialidade das Foras Armadas:
231
Idem.
Idem, p. 28.
233
O termo peruanistas se refere ao grupo de militares que, em 1968, sob a liderana do general Velasco
Alvarado, no Peru, iniciou um governo marcado pela nacionalizao do petrleo, reforma agrria, criao de
empresas de propriedade social e uma poltica externa independente e terceiro-mundista. Em funo dessa
postura, virou sinnimo de militares de cunho nacionalistas ou reformistas (independente de terem perfil
autoritrio). No cenrio prvio ao golpe de Estado, no Uruguai, especulava-se sobre a existncia de um grupo
militar com esse perfil (os oficiais mais citados eram Gregorio Alvarez e Ramn Trabal).
234
Algumas lideranas do MLN justificaram essa trgua como necessidade de parar, mesmo que
temporariamente, a mquina (tortura), que estava devastando a organizao.
235
CAULA, Nelson; SILVA, Alberto. Alto el fuego 2. La Logia de los Tenientes de Hitler. Montevideo:
Rosebud Ediciones, 1997.
236
TRCCOLI, Jorge Nstor. La ira de Leviatn. Del mtodo de la furia a la bsqueda de la paz.
232
348
Creo que se cometieron algunos errores por parte de oficiales muy tiernos en
aquella poca, que estaban descubriendo un mundo nuevo. Y, muy vivos los
lderes do MLN, los embalaron para que fueran para el lado de los ilcitos
econmicos. 237
349
Chirico esclarece ainda que a importao da DSN ocorreu, num primeiro momento, sob
intermediao brasileira 242 e, posteriormente, a relao se estabeleceu diretamente com a
prpria matriz (estadunidense), mediante os fluxos do pan-americanismo e da Guerra Fria. 243
A assimilao dos ensinamentos da luta contra-insurgente exigiu a maximizao da
estrutura de inteligncia para a deteco do inimigo interno, o que aproximou as tarefas
militares das policiais, precedente que preparou o terreno para a posterior centralizao de
comando nas Fuerzas Conjuntas. Paralelamente, desenvolveram-se atividades que foram
inseridas no marco da ao cvica visando melhorar a imagem pblica das Foras Armadas,
dissociando-as do carter mais repressivo e tornando-as mais presentes no envolvimento em
atividades de infra-estrutura fsica (construo de pontes, aeroportos, estradas, represas). Estas
atividades foram associadas prpria trajetria do ento presidente, o general Gestido,
detentor de longa folha corrida de servios comunitrios e de salvao civil. Havia um esforo
em tornar extensivas, ao conjunto das mesmas, suas caractersticas pessoais de honestidade,
austeridade, eficincia e disciplina. 244 Era a poca em que as Foras Armadas ainda se regiam
pelas diretrizes da Lei Orgnica Militar de 1941, que, no seu Art. 1, dizia:
El Ejrcito Nacional tiene por misin esencial defender el honor, la
independencia y la paz de la Repblica, la integridad de su territorio, su
Constitucin y sus leyes, debiendo actuar siempre bajo el mando superior del
Presidente de la Repblica [...]. 245
Essa lei foi substituda por uma nova Ley Orgnica Militar, em 1974, que, de acordo
com os novos tempos, determinava:
Art. 1 - Las Fuerzas Armadas son el nucleo bsico de la poblacin
organizado para planificar y ejecutar los actos militares que impone la
Defensa Nacional.
Art. 2 - Su misin fundamental consiste en dar la Seguridad Nacional
exterior o interior. 246
Jos Luis Ramagli, militar uruguaio do setor de informaes, estudou na Escola de Comando e Estado Maior
do Brasil e divulgou as concepes brasileiras nos cursos de oficiais do Instituto Militar de Estudos Superiores,
dos qual virou diretor entre 1964 e 1966. GINESTA apud LPEZ CHIRICO, idem, p. 29.
243
Idem.
244
LPEZ CHIRICO, Selva. Las Fuerzas Armadas. De la milicia artiguista al Ejrcito de Seguridad
Nacional. Bases de la Historia Uruguaya, n 23. Montevideo: Las Bases, s. d., p. 24.
245
LEY N 10.050, Ley Orgnica Militar, 27/09/1941. R.N.L.D.
246
LEY N 14.157, Ley Orgnica Militar, 05/03/1974. R.N.L.D.
350
Lpez Chirico conclui que o aumento de efetivos e a criao de novas unidades esto relacionadas com a
nfase das tarefas de ao cvicae com a guerra irregular e suas exigncias de comunicaes, mobilidade e
controle de motins urbanos. LPEZ CHIRICO, Selva. Uruguai 1985-1993. Estratgia e ttica da reproduo
militar no ps-ditadura. Op. cit., p. 35.
248
Idem.
249
ALFARO, op. cit., p. 25; NAHUM, op. cit., p. 285.
250
AMARILLO, Mara del Huerto. El ascenso al poder de las Fuerzas Armadas. Cuadernos Paz y Justicia 1.
351
352
Idem.
AMARILLO, op. cit., p. 45.
257
LPEZ CHIRICO, Selva. Las Fuerzas Armadas. De la milicia artiguista al Ejrcito de Seguridad
256
353
perturbadores da estabilidade social, numa crtica aguda ao prprio Poder Executivo ao qual
estavam subordinadas, de [...] una conduccin poltica que responde a interesses particulares
sin buscar las grandes soluciones nacionales. 258
Lopez Chirico destaca que, simultaneamente a explicitao de objetivos de ordem
poltica, as Foras Armadas comearam a marcar posio defendendo um perigoso processo
de autonomizao das suas aes diante dos Poderes Legislativo, Judicirio e at do
Executivo. Para tanto, lembra do caso dos quatro mdicos torturados e libertados pela Justia
Militar, ordem desobedecida pela linha de comando (fato citado no item anterior), o que
mostra os limites entre uma tnue legalidade e a fora e vontade repressiva em fase de
autonomizao dos marcos jurdicos. Trata-se de um claro sintoma de uma ao que aponta
para a crescente insubordinao diante do sistema poltico como um todo, inclusive, diante do
prprio Poder Executivo. 259
Essa tendncia se acentuou ainda mais em fins de 1972, com a consolidao da
vitria militar sobre o MLN, com a expanso e presso dos militares e tambm com a
claudicante atitude dos partidos polticos:
La falta de coesin de las fuerzas polticas opositoras al militarismo, la
incapacidad de concertar una estrategia de defensa comn del rgimen
democrtico y los escasos impulsos de fidelidad al sistema gravitaban en el
quiebre de la democracia y el ascenso al poder de los militares. 260
354
355
exemplo, uma das idias que confundiam os setores democrticos estava implcita no quarto
item do Comunicado N 4:
Los integrantes de las FF.AA. a todos los nveles, tomaron consciencia plena
de la problemtica que afecta al pas, a travs de su participacin en el
quehacer nacional ocurrida en el ltimo ao y han valorado la gravedad de la
situacin, la que exige una reaccin firme, con la participacin honesta de
todos los sectores del pueblo uruguayo, porque en su defecto
irremediablemente se llegar al caos total. 268
JUNTA DE COMANDANTES EN JEFE. Las Fuerzas Armadas al pueblo Oriental. T II. El proceso
poltico. Op. cit., p. 88.
269
Um dos objetivos do Comunicado N 4 tinha o seguinte enunciado: Atacar con la mayor decisin y energa
los ilcitos de carcter econmico y la corrupcin donde se encuentre, procurando que la moral privada y pblica
nuevamente constituya un elemento principal en la personalidad del hombre uruguayo, creando a los efectos,
tribunales especiales para tratar en la materia y dando participacin decisiva a los Comandos Militares en el
esclarecimiento de los hechos dada su grave incidencia en los problemas de seguridad interna. Idem, p. 89.
356
que certas posies das Foras Armadas apresentavam coincidncias com a plataforma
defendida pelo movimento popular quanto a certos objetivos de reforma econmico-social:
combate ao desemprego; redistribuio da terra; resgate da dvida externa; desenvolvimento
energtico do pas e da infra-estrutura viria; combate aos monoplios; controle pblico da
produo; participao dos trabalhadores na direo das empresas; incremento nos ingressos
dos setores mais prejudicados; aumento das fontes de trabalho; etc. 270 Portanto, a CNT
reconhecia, publicamente, que algumas das preocupaes presentes nos Comunicados 4 e 7
coincidiam com as reivindicaes dos trabalhadores e identificava, assim, o que parecia ser
manifestao de setores peruanistas nas Foras Armadas. Diante do impasse criado, a
Frente Ampla defendia a tese de que s a renncia de Bordaberry possibilitaria uma soluo
constitucional, enquanto que Ferreira Aldunate contatava o Comandante da Marinha, Juan
Jos Zorrilla - o qual, como constitucionalista, se posicionara junto a Bordaberry -, e exigia
novas eleies. J o Partido Comunista lanava a consigna de que a contradio fundamental
no era entre poder civil e poder militar, e sim entre oligarquia e povo, sendo que [...] dentro
de ste caben indudablemente todos los militares patriotas que estn con la causa del pueblo,
para terminar con el dominio de la rosca oligrquica. 271 Para Virginia Martinez, alguns
polticos no s identificavam proximidade entre as proposies dos militares com as da
esquerda como apostavam em no insistir nas denncias sobre os excessos repressivos - para
no fortalecer os setores mais reacionrios das Foras Armadas - enquanto se defrontavam
com o governo Bordaberry. Tinham a expectativa de que os que haviam redigido aos
comunicados fossem maioria e tivessem realmente vontade de mudana. Se, dentro da
instituio militar, existiam correntes progressistas, era o caso de apoi-las e fortalec-las,
mas no fustig-las. 272
O combativo senador Zelmar Michelini outro que fez uma valorizao positiva da
posio das foras insubordinadas e dos Comunicados 4 e 7 (aps o golpe, fez sua
autocrtica 273 ). Lembrou que o Ministro da Defesa, nomeado pelo Presidente e fortemente
270
ALFARO, op. cit., p. 29; LPEZ CHIRICO, Selva. Las Fuerzas Armadas. De la milicia artiguista al
Ejrcito de Seguridad Nacional. Op. cit., p. 27.
271
NAHUM; FREGA; MARONNA; TROCHN, op. cit., p. 92.
272
Wladimir Turiansky, destacado dirigente do PCU, afirma que: [...] confibamos en la existencia dentro de
las Fuerzas Armadas de sectores no golpistas, progresistas. Tuvimos un exceso de ingenuidad. Cremos que
exista la posibilidad de que ese grupo tuviera algn peso. Por eso ramos muy cuidadosos en el manejo pblico
de la informacin, para no debilitar a esos sectores. (MARTNEZ, op. cit., p. 112) Creamos que el sector
peruanista [...] tena peso. Que era una fuerza real [...] aquella que puede influir y transformar la realidad, pero la
verdad es que si existieron, no tenan capacidad de mando ni peso en las decisiones militares. Idem, p. 128.
273
Se ha sostenido que algunos militares eran pro-peruanistas, se ha sostenido que los sucesos de febrero, con
los comunicados 4 y 7 indicaban una sensibilidad distinta o una ideologa diferente. Todo esto puede ser cierto,
en alguna medida. Preo no lo es en lo fundamental. El Ejrcito mantiene su verticalidad y las fuerzas [armadas],
con tal de no romper la unidad de las armas, no estn dispuestas a hacer sentir su discordia, su disentimiento [...].
357
questionado pelo Exrcito e pela Fora Area, general Francese, fora homem de confiana de
Pacheco Areco e vinculado aplicao das MPS. Portanto, devia considerar-se o fato de que
as [...] fuerzas armadas del Uruguay se nieguen a servir bajo las rdenes de un militar a quie
se acusa de obligar al ejrcito a ser en el pasado reciente el brazo armado de intereses
econmicos y polticos ajenos al inters nacional. Para Michelini, tal fato indicava que, nas
Foras Armadas, havia [...] una toma de conciencia que merece aprobacin, una madurez de
juicio que no vacila en reconocer como propios los argumentos que ayer sostenan aparentes
enemigos. 274
Quijano, desde o primeiro momento, questionou fortemente as interpretaes
positivas que setores progressistas e democrticos faziam sobre os comunicados militares.
No incio de um editorial de Marcha intitulado La era de los militares, de 16 de fevereiro de
1973, perguntava queima roupa: Miremos a nuestro alrededor y ordenemos los hechos. O
es que los orientales todava vamos a seguir mintindonos, tomando los deseos por realidades
y arropndonos con grandes y vacas palabras? 275
Enquanto a confuso reinava nas interpretaes da esquerda, a prpria Junta de
Comandantes em Jefe se manifestou esvaziando qualquer iluso ao respeito. O teor da sua
mensagem corroborou a interpretao de Quijano. Para dirimir dvidas, a Junta esclareceu:
Si bien la CNT reconoca la identidad de sus objetivos con los expresados por las FFAA en
sus Comunicados 4 e 7, stas entendian que los caminos preconizados por ambas instituciones
son irreconciliables. 276 [grifo meu]
O dirigente sindical e do PCU, Wladimir Turiansky, ao lembrar de uma entrevista da
CNT com os comandantes militares daquela poca, aponta que, enquanto alguns deles,
aparentemente, se mostravam dispostos a incorporar algumas reivindicaes dos
trabalhadores no programa que elaboravam, outros se mostraram muito refratrios, como o
general Gregrio Alvarez (que j fora reconhecido como peruanista). Ao final da reunio,
este explicitou aos delegados da CNT: Todo muy bien con el programa, pero lo primero va a
se limpiar todo esto, limpiarlo de antipatrias, de subversivos, de corruptos y de putos. 277 Tais
Y en cuanto a que hubiese militares pro-peruanistas, que pudiesen encontrar probanza en lo que fueron los
comunicados 4 y 7, podemos admitirlo. Pero esto no pas sino de un esbozo, de un intento y, en definitiva,
fueron copados por las fuerzas mayoritarias que representaban los gorilas al estilo brasileo y que, adems,
tenan en sus manos el mando de tropas. MICHELINI apud PREGO, 1988, p. 47.
274
MICHELINI, Zelmar. Siempre el pueblo. Documento Poltico n 1. Montevideo: Centro Uruguay
Independiente, 1985, p. 21.
275
QUIJANO, Carlos. La era de los militares. Marcha, 16/02/73. In: CUADERNOS DE MARCHA. Carlos
Quijano. Escritos Polticos I. Op. cit.
276
ALFARO, op. cit., p. 30.
277
MARTINEZ, op. cit., p. 128.
358
ameaas reforavam a postura do senador colorado Amlcar Vasconcellos - uma das poucas
vozes, junto a Carlos Quijano, que se mostrava contrria ao teor das manifestaes anteriores.
Vasconcellos assumiu fortemente a defesa das instituies, mesmo que isso representasse
colocar-se do lado de Bordaberry:
Es necesario colaborar con el Presidente de la Repblica como lo haramos
[...] con cualquier Presidente correctamente elegido por la democracia de
este pas, [sea] de nuestra simpata, de nuestra antipata o de otro partido,
porque com ello nos va la permanencia de las instituciones. 278
278
279
359
Avaliao diferente fazem Caula & Silva, os quais entendem que h nos
Comunicados 4 e 7 [...] una matrz socializante y que son hijos dilectos de la que quizs haya
sido la ms gravitante accin de la guerrilla en el quehacer nacional [grifo dos autores].283 Tal
reconhecimento no significa a aceitao da idia de que os Comunicados resultavam de um
consenso entre os militares, mas, ao contrrio, de divergncias onde havia grupos
conscientizados pelo MLN - ao ponto de, em outra obra, em funo desses acontecimentos,
280
Bordaberry acredita que os Comunicados foram elaborados desde o ESMACO por gente vinculada ao general
Gregrio Alvarez, talvez pelo general Raimundez e pelo coronel Martinez, da Fora Area (este ltimo, brao
direito de lvarez). CAMPODNICO, op. cit., p. 90.
281
Trabal foi enviado como Adido Militar da Embaixada na Frana, onde veio a sofrer um atentado mortal que o
regime identificou de autoria subversiva (dando margem a nova onda repressiva); tudo indica que, em realidade,
Trabal foi vtima de um comando vinculado Operao Condor. Seu assassinato configurou-se como queima de
arquivo ou eliminao de algum que, por divergncias internas, dentro do sistema, tornara-se incmodo. Tudo o
que envolve este militar e sua morte ainda so tema de muita especulao, embora j existam alguns trabalhos
pontuais, como o de Sergio Israel.
282
LPEZ CHIRICO, Selva. Las Fuerzas Armadas. De la milicia artiguista al Ejrcito de Seguridad
Nacional. Op. cit., p. 27.
283
CAULA, Nelson; SILVA, Alberto. Alto el fuego. La Logia de los tenientes de Hitler. Op. cit., p. 141.
360
284
Aps dias de enorme tenso, negociou-se uma sada: o Pacto de Boiso Lanza. O
mesmo significava a claudicao de Bordaberry e a insero das Foras Armadas no sistema
poltico - mediante a co-participao militar na conduo do Estado atravs de um novo
organismo, o Consejo de Seguridad Nacional (COSENA), 285 que assessoraria o presidente em
matria de SN. Como a Bordaberry
[...] slo le interessaba conservar la investidura formal, solucion el conflicto
[...] por el que defenestraba al militar que l mismo haba llamado al
ministerio de Defensa Nacional [o general Francese] y lo substitua por
alguien tan flexible, que slo haba que indicarle con el dedo, donde deba
firmar. 286
CAULA, Nelson; SILVA, Alberto. Alto el fuego. FF.AA. y Tupamaros. 3 ed. Montevideo: Monte Sexto,
1986. p. 185.
285
O COSENA era integrado pelo Presidente da Repblica, pelos Ministros de Defesa, Interior, Relaes
Exteriores e Economia, o Diretor da Oficina de Planejamento e Oramento, pelos Comandantes em Chefe das
trs armas e pelo Chefe do Estado Maior das Fuerzas Conjuntas.
286
BRUSCHERA, op. cit., p. 79.
287
CAMPODNICO, op. cit., p. 63.
288
QUIJANO, Carlos. La era de los militares. Marcha, 16/02/73. In: CUADERNOS DE MARCHA. Carlos
Quijano. Escritos Polticos I. Op. cit.
361
ANEXO V
362
Gonzalo Varela coincide com essa reflexo e acrescenta que a crise de fevereiro foi o
incio do perodo conhecido como golpe en cmara lenta (que durou at o final de junho), nesse
perodo, preparou-se a dissoluo do Parlamento pelo presidente - o qual estava associado associado
s Foras Armadas contra a elite poltica, que, tardia e inutilmente, tentou resistir.293 No ms de
maro, o Poder Executivo encaminhou a Assemblia Geral um projeto de Consolidao da Paz
(lei do Estado peligroso) que aprofundava os traos repressivos. Tal pedido era justificado com a
afirmao de que militarmente a subverso havia sido derrotada, mas que a organizao ainda
subsistia e podia ser reativada. A solicitao mostrou um visvel contra-senso; se a subverso j
estava militarmente derrotada - como reconhecia o governo -,
289
Nos equivocamos obnubilados por la creencia de que haba un solo enfrentamiento valedero, entre oligarqua
y pueblo. [...] cometimos dos erros: el admitir la presencia castrense, que ya era ms que una tutela, porque el
fusil es omnmodo; y segundo, no advertir que se inauguraba realmente la era militar y el desplazamiento
efectivo del poder civil. BRUSCHERA, op. cit., p. 82.
290
Idem, p. 80.
291
QUIJANO, Carlos. La era de los militares. Marcha, 16/02/73. In: CUADERNOS DE MARCHA. Carlos
Quijano. Escritos Polticos I. Op. cit.
292
Idem.
293
VARELA, op. cit., p. 162.
363
prerrogativas legais para a ao repressiva? Aqui cabe retomar o alerta permanente exigido pela
DSN e a instrumentalizao flexvel do conceito de inimigo interno. No s se devia eliminar os
ltimos resqucios do velho inimigo guerrilheiro, como deviam ser tomadas medidas preventivas
para evitar o surgimento futuro de novos focos de contestao em outros espaos sociais
(estabelecimentos de ensino, sindicatos, organizaes de bairros), o que incluia acompanhar o
comportamento dos partidos polticos e dos polticos de oposio, assim como das organizaes
sociais, particularmente os estudantes e os trabalhadores. Todo fato podia ser motivo de
desconfiana e de represso estatal (Anexo VI).
O motivo que precipitou os eventos foi o pedido de cassao, feito pelo Poder
Executivo, do senador frente-amplista Enrique Erro, acusado de estar envolvido com o MLN.
A presso do governo sobre o Parlamento se intensificou. Finalmente, a Cmara de
Representantes, profundamente dividida, rejeitou a solicitao do governo (49 a 48 votos),
fato que definiu o assalto final sobre a democracia. A atitude do Parlamento foi vista como
provocao subversiva. Diante disso,
[...] el 27 de junio, el Poder Ejecutivo decret la dissolucin de las Cmaras
y su substitucin por un Consejo de Estado. Se disolvieron tambin las
Juntas Departamentales, se estableci la censura de prensa y se limit el
derecho de reunin. La dictadura militar comenzaba su marcha. 294
364
ANEXO VI
Encapuchados
Aluso intensificao do TDE h poucos dias do golpe de Estado.
365
Mas o que interessa aqui registrar que, se h uma aluso a militares peruanistas
(dentro dos marcos do que aparece como positivo na experincia de Velasco Alvarado no
Peru), ela colocada como contraponto maioria da oficialidade uruguaia (a linha dura),
considerada como aderente experincia da ditadura brasileira. As simpatias, motivaes e
conexes em relao a ela se foram consolidando durante toda a dcada de 60, mesmo em
situaes de tenso entre ambos os pases. Entre elas, podem ser destacadas a interferncia,
mais ou menos velada, na poltica interna uruguaia: as presses sobre os exilados brasileiros;
a presena de agentes do Esquadro da Morte de Fleury e do SNI; as derivaes do
seqestro de Dias Gomide; a Operao Trinta Horas; a ajuda militar e econmica aos
governos de Pacheco Areco e de Bordaberry; etc. O fato que, na poca, o regime brasileiro
era diretamente associado com o que de mais repressivo e mais vinculado ao imperialismo
estadunidense havia na regio. Nas pginas de Marcha registraram-se permanentes aluses ao
gorilismo 1 e ao sub-imperialismo do Brasil, sendo que muitas delas foram elaboradas por
exilados brasileiros. Por isso, no surpreende essa contraposio entre peruanistas (militares
de perfil progressista, antiimperialista e/ou popular) e brasileiros (militares associados
DSN, represso, oligarquia e aos EUA). Trata-se de um sentimento muito forte,
certamente cultivado pelas simpatias que aquele regime dedicava a boa parte da cpula militar
uruguaia e ao prprio Bordaberry. Por isso, no surpreende quando, no momento do golpe, no
meio de tantas frustraes, se fazem essas aluses.
Como ilustrao, podem ser arrolados alguns trechos retirados das entrevistas
realizadas por Omar Prego na sua obra Reportaje a un Golpe de Estado. Por exemplo, o
senador do PDC, Juan Pablo Terra, entrevistado aps o golpe, acusou Bordaberry pela sua
obsesso repressiva e sua admirao obtusa pela ditadura brasileira. Ao comentar a Greve
Geral (que tentou frustrar o golpe), disse: Los trabajadores estn librando una esplndida
batalla en defensa de sus derechos y de las mejores tradiciones del pas. Tienen que saber
estos abrasilerados que el Uruguay no es el Brasil [grifo meu]. 2 Zelmar Michelini, ao
comentar sobre os Comunicados 4 e 7, reconheceu que o controle dos mandos de tropas era de
gorilas al estilo brasileo [grifo meu]. 3 Finalmente, ao lembrar a metfora de Wilson
Ferreira Aldunate quando diz que, na hora em que os golpistas invadiram o Parlamento, nele
entraram de mos dadas Brasil e Peru (ou seja, o pretenso peruanista Alvarez e o
1
Ligado truculncia e ao uso da fora. Nos anos 60, um sinnimo dos militares golpistas. O desenho de um
gorila fardado, geralmente descomunal, violento e pavoroso recorrente nos ncleos de denncia e/ou
resistncia de todo o continente.
2
Idem, p. 26.
3
Idem, p. 47.
366
Idem, p. 20.
Idem, p. 55.
367
responsvel pelas contundentes denncias contra o governo e as Foras Armadas. Aps delicadas e
tensas deliberaes, o Parlamento se pronunciou contra o pedido.
A CNT reagiu imediatamente e conclamou a Greve Geral; os locais de trabalho
foram ocupados, bem como os prdios da Universidade e os liceos. Diante dessa reao, o
governo decretou a dissoluo da CNT e ordenou a deteno imediata dos seus dirigentes,
acusando-os de subverso. A escalada de detenes, entre as quais as do presidente da Frente
Ampla, Lber Seregni, obrigou, inclusive, a utilizar um estdio coberto (o Cilindro Municipal)
como centro de recluso.
Durante duas semanas, os trabalhadores enfrentaram o golpe de Estado com a Greve
Geral. Porm, embora as significativas mobilizaes e a tenaz resistncia popular, a
disparidade de foras se tornou um fator de desequilbrio favorvel aos setores golpistas. A
direo da CNT, na clandestinidade, avaliou a dureza do enfrentamento, a tendncia dos
acontecimentos e o custo pago pelo movimento operrio. Dividida entre a continuao da
resistncia a qualquer preo e o recuo ttico para recompor foras e tentar retomar a luta, em
uma conjuntura mais favorvel, decidiu-se pela desmobilizao dos grupos que ainda
persistiam nessa hiptese. A verdade que as possibilidades de retomar a luta aps a
recomposio de foras esfumou-se rapidamente. A dinmica repressiva desencadeada pelo
governo impediu qualquer articulao. A CNT foi declarada ilegal, as greves foram proibidas
e imps-se uma nova legislao sindical que acabou com qualquer iluso de retomada de ao
ou autonomia do movimento sindical.
O encerramento da greve, por parte da CNT, inviabilizou a sobrevivncia de uma
resistncia democrtica e significou uma importante descompresso para o novo regime. 6
Neutralizada a CNT e a liderana da Frente Ampla, a ditadura continuou identificando novos
alvos. Nesse sentido, rapidamente dissolveu partidos e organizaes polticas de esquerda
(PCU, PSU, 26 de Marzo, Unin Popular) e suspendeu as atividades polticas dos demais. Na
rea do Ensino, destituiu professores, fechou institutos de formao docente e interveio na
Universidade aps uma eleio cujo resultado contrariou os interesses do novo regime.
Inmeras organizaes estudantis foram dissolvidas.
Uma intensa propaganda oficial foi desencadeada nos meios de comunicao:
Pngale el hombro al Uruguay. Curioso jogo de palavras e fatos. Pacheco Areco, pouco anos
antes, em nome da defesa da Segurana Nacional do pas, dissera que enfrentava a subverso
de peito aberto; buscando galvanizar apoio a partir de uma imagem de fora; mas de nada
adiantou: foi constitucionalmente rejeitado. Com um tom militar que parecia mais uma
368
369
Dentro da polmica sobre o momento particular do golpe de Estado, Caula & Silva
reafirmavam que, efetivamente, o mesmo ocorreu no 27 de junho de 1973 e no em fevereiro,
no momento em que os militares impuseram o Pacto de Boiso Lanza. 9 Os autores
reconhecem, mesmo assim, que, com esse fato, se cometeram agresses contra as liberdades
pblicas e se intensificou a presena militar; porm, alegam que no se pode esquecer que
continuava existindo um Poder Judicial, um Poder Legislativo (mesmo que acuados) e uma
Central Sindical, que, apesar das perseguies, ainda mantinha capacidade de mobilizao.
Lembram ainda que tanto o Estado de Guerra Interno como a cassao do senador Erro foram
votados livremente. Este quadro das instituies fragilizadas mudou, na sua essncia, no final
de junho de 1973. 10
Para Milita Alfaro, o golpe se inicia
[...] en los desajustes estructurales que, presentes en nuestra realidad desde fines
de la dcada del 50, conducirn a la crisis poltica que se hace irreversible en
1972. En essa conyuntura, la amenaza de la guerrilla desencadena la
ingobernabilidad y el vacio de poder latentes desde tiempo atrs en el
sistema, creando las condiciones para la insercin creciente de las FFAA en el
aparato estatal, de acuerdo con las nuevas funciones que les asignaba la
Doctrina de la Seguridad Nacional. 11
370
encabezado desde haca pocos das por el seor Jorge Pacheco Areco,
dispuso ilegal y inconstitucionalmente la clausura de varios peridicos y
organizaciones polticas. Junio de 1968, a su vez, marc el inicio de la
aplicacin de medidas prontas de seguridad, con un alcance y una intensidad
jams vistos en la Histria de la Repblica, determinando que el Poder
Ejecutivo sustituyera de hecho, en todos los planos en los que ello le pareci
oportuno, al Poder Legislativo y al Poder Judicial, pues dict normas que
derogaron o suspendieron leyes, y resolvi por s ante s las controversias
derivadas de su aplicacin adems de continuar ejerciendo competencias
de administracin y de ejecucin, especialmente en el plano de las libertades
y derechos fundamentales, con notorio abuso de las atribuiciones que se le
han conferido. El Uruguay comenz a habituarse a las muertes de los
estudiantes baleados por la polica; a las torturas, practicadas cada vez con
ms profusin de tcnicas, pero desde el principio con la misma barbarie y el
mismo desprecio por la dignidad humana; a la presencia masiva de efectivos
armados patrullando las calles; a la necessidad de transitar munido de una
completa documentacin para no ser arrestado, y la inseguridad ms total
aun en ese caso; a las clausuras de peridicos, a los diarios con espacios en
blanco por la censura. Nuestro pueblo se iba acostumbrando a la reiterada y
cotidiana violacin de todos los derechos humanos. 13
Por outro lado, se a presena cada vez mais decisiva das Foras Armadas estava
vinculada ao golpe de Estado, ento no h como dissociar o papel e o comportamento do MLN
desse processo, j que sua ofensiva de abril de 1972 caiu como uma luva para as pretenses do
governo de intensificar a represso. Embora seja verdade que a organizao estava militarmente
derrotada antes do golpe (o que esvazia o argumento de que o mesmo foi necessrio para
enfrentar e derrotar a organizao), inegvel que o fortalecimento dos militares e sua ascenso
ao poder foram impulsionados pela necessidade de enfrentar, em certo momento, a guerrilha
urbana. Ao longo de 1972, o desafio desta e a crise do sistema poltico criaram as condies para
a ascenso das Foras Armadas ao poder.14
Carlos Quijano escreveu sobre os sangrentos acontecimentos de abril de 1972,
antecipando o futuro cada vez mais prximo do TDE:
Otra vez los cortejos fnebres, transidos y tensos. Vivimos para enterrar a
nuestros muertos y en el desolado acecho de los que puedan caer.
Montevideo es ahora la ciudad de la angustia incierta. Angustia que es cifra
de todas las angustias. Como en territorio ocupado, se est atento al golpe
despiadado, sigiloso o aleve. Pero sobre este fondo vitando de persecucin,
torturas, y asesinatos, nada puede construirse. La muerte nos ha ganado. Hay
que vencer a la muerte que ha llegado a ser duea y seora de nuestro
quehacer. Porque el pas se nos ha ido ya de las manos y el tiempo de
reconquistarlo no admite espera. Mientras enterramos a nuestros muertos,
con ellos vamos enterrando al Uruguay. 15
13
Manifiesto del Consejo de Facultad de Derecho y Ciencias Sociales (29/06/73). In: PREGO, Omar. Reportaje
a un Golpe de Estado. Montevideo: Suplemento - La Repblica, 1988. p. 67.
14
ALFARO, op. cit., p. 25.
15
QUIJANO apud MARTNEZ, op. cit., p. 79.
371
372
Por sua vez, Bordaberry insiste em que, institucionalmente, nada mudou naquelas
jornadas de fevereiro:
Se ha pretendido que la solucin hallada (la aceptacin de las condiciones
fijadas por los jefes del pronunciamiento) cercenara las instituciones. Nada
de eso existe. Todas las instituciones de la Repblica permanecen intactas; el
Poder Ejecutivo tiene la plenitud de sus facultades, el Parlamento goza de
todos sus fueros y la justicia de su independencia; los derechos y garantas
individuales estn en vigencia; las corporaciones autnomas estn regidas
por sus leyes; el orden jurdico rige en su totalidad y se aplica a todos los
habitantes sin excepciones. [...] slo entregar la responsabilidad
presidencial a mi sucesor electo libremente en los comicios que se realizarn
en la fecha que marca la Constitucin. 20
El despido de Bordaberry. Rquiem para nadie. Publicado origialmente pelo jornal mexicano Excelsior em
14/06/76. In: QUIJANO, C. Los golpes de Estado (1973). Vol. II. Montevideo: Cmara de Representantes /
Repblica Oriental del Uruguay, 1989. p. 321.
20
Idem.
21
Idem, p. 322.
373
Os mesmos fatos so apontados pelo deputado Gutierrez Ruiz, o qual acrescenta, ainda, o Massacre de
Ezeiza. PREGO, op. cit., p. 53. Este fato relaciona-se com a volta de Pern Argentina (20/06/73). Enquanto
centenas de milhares de pessoas aguardavam com grande expectativa o fim do exlio do velho lder, grupos
armados vinculados extrema direita peronista atacaram, matando 13 pessoas e ferindo outras 355. Fonte:
VERBITSKY, Horacio. Ezeiza. Buenos Aires: Planeta, 1995. p. 189.
23
Los caminos de la liberacin. Publicado originalmente no Cuadernos de Marcha, Mxico, mayo-junio de
1979. Tambm, no Cuadernos de Marcha. Carlos Quijano: Escritos Polticos I. Montevideo, Tercera poca, n
2, julio 1985, p. 28-29.
24
Apud PREGO, op. cit., p. 30.
374
Para concluir, tecem-se as seguintes consideraes. inegvel que houve uma linha
de continuidade entre os governos constitucionais de Pacheco Areco e de Bordaberry
quanto a uma escalada autoritria gerada desde 1968. No pertinente considerar que os
governos desse perodo tenham sido iguais, na sua essncia, ao regime ditatorial que se
instalou em junho de 1973. Mas o estudo do perodo imediatamente anterior ao golpe de
Estado aponta, a partir da consulta documental e dos depoimentos dos protagonistas,
existncia de diversas conexes que permitem estabelecer algumas afirmaes finais:
Em primeiro lugar, considerando a noo de processo histrico, houve
evidente deteriorao das relaes polticas, marcada por diversos solavancos
(execuo de Mittrione, eleies de 1971, 14 de abril de 72, insubordinao militar,
etc). Tais relaes funcionaram como pontos de inflexo resultantes da combinao de
crise estrutural com conjuntura internacional que, de forma explosiva, se projetava e
se manifestava no continente.
Em segundo lugar, a ditadura civil-militar se configurou, definitivamente, em
junho de 1973, mas inegvel que, como ameaa potencial, foi se gestando desde
1968. O que significa inferir tambm que a democracia realmente existente no
Uruguai, na segunda metade dos anos 60, estava muito distante da aludida Sua da
Amrica ou de uma propalada democracia forte e estvel, muitas vezes apontada
como cenrio destrudo pelo regime de Segurana Nacional. Isto no significa
desconhecer que, mesmo assim, tratava-se de uma democracia (mesmo que frgil),
nem que no existisse uma crena na tradio democrtica da dinmica poltica do
pas.
Em terceiro lugar, o Terror de Estado foi a essncia da ditadura de Segurana
Nacional uruguaia. Como tal, constitui-se a partir do momento em que as Foras
Armadas tiveram condies de ordenar a sociedade de forma plena, segundo seus
objetivos e critrios. Isto comeou a ocorrer no s em junho de 1973, mas a partir da
claudicao do poder civil e, particularmente, do governo Bordaberry, em fevereiro de
1973.
Finalmente, no se pode falar em Terror de Estado no perodo anterior (administrao
Pacheco Areco) no sentido de uma estrutura global, geral, complexa, articulada. Mas parece
inegvel a existncia de mecanismos e de dinmicas que so componentes do Terror de Estado e
que funcionaram naqueles governos, como se fossem uma espcie de laboratrio (tortura,
organizaes paramilitares, esquadres da morte, desaparecimentos, etc.). Neste sentido,
acumulou-se experincia, testaram-se situaes e preparou-se a rotina do medo e do silncio,
375
376
CAPTULO 4
377
Este ponto se apoia, principalmente, nas anlises de NAHUM, Benjamn. Manual de Historia del Uruguay
1903-1990. Montevideo: Banda Oriental, 1995; CAETANO, Gerardo; RILLA, Jos. Breve historia de la
dictadura. 2 ed. Montevideo: Banda Oriental, 1998; CASTAGNOLA, Jos Luis; MIERES, Pablo. La ideologa
poltica de la dictadura. In: ASTORI, Danilo et al. El Uruguay de la Dictadura (1973-1985). Montevideo:
Banda Oriental, 1996; LPEZ CHIRICO, Selva. Las Fuerzas Armadas. De la milicia artiguista al Ejrcito de
Seguridad Nacional. Bases de la Historia Uruguaya, n 23. Montevideo: Las Bases, s. d.; LERIN, Franois;
TORRES, Cristina. Historia poltica de la dictadura uruguaya (1973-1980). Montevideo: Nuevo Mundo,
1987.
2
CAETANO; RILLA. Breve historia de la dictadura. op. cit., p. 14.
3
Aluso aos militares que se orientavam segundo as diretrizes da DSN e que representavam a linha dura,
378
379
380
Dse cuenta al Consejo de Estado, comunquese, etc. RICO, lvaro. La Universidad de La Repblica. Desde
el golpe de Estado a la intervencin. Montevideo: CEIU/Universidad de La Repblica/Ciencias de la
Educacin, 2003. p. 188.
8
SOTO, Julio (Vice-diretor do CONAE). Apud JELLINEK; LEDESMA, op. cit., p. 100.
381
Idem.
DEMASI, Carlos (coord.). El rgimen cvico-militar. Cronologa comparada de la historia reciente del
Uruguay (1973-1980). Montevideo: Fundacin de Cultura Universitaria, 2004. p. 365.
10
382
No caso universitrio, esta declarao, aplicada com efeito retroativo, reforou um sistema
persecutrio contra todos aqueles que, direta ou indiretamente, haviam tido algum tipo de vinculao
com a Frente Ampla, o Movimento de Libertao Nacional-Tupamaros (MLN), ou outras
organizaes de esquerda. Em ltima instncia, usou-se at a estabilidade e a segurana do emprego
como mecanismo amedrontador.
Em fevereiro de 1974, foi aprovada a Ley Orgnica Militar, documento que
explicitamente definiu o regime, o campo de atuao dos novos protagonistas e consagrou a
Doutrina de Segurana Nacional. Segundo Nahum, foi a principal elaborao terica do
regime. A persistncia de elementos formais residuais dos trs poderes constitucionais no
esconde o fato de que, na prtica, o comando decisrio estatal foi concentrado nas Foras
Armadas. A criao de uma extensa rede de instncias com capacidade decisria satisfez as
ambies de protagonismo militar dentro do esprito atribudo pela DSN. 13 Surgiram, assim,
as seguintes instncias organizativas:
11
383
a)
b)
13
384
no deixavam de ser nem de cumprir suas obrigaes militares; quer dizer, os cargos
administrativos tambm passaram a ser considerados como destino militar. 14
Simultaneamente, a habitual ascenso dos oficiais por concurso foi substituda pelo
mecanismo de eleio efetuada pelos prprios pares, que, por sua vez, tambm controlavam o
dispositivo da passagem reserva obrigatria, eliminando qualquer forma de controle externo
sobre a corporao, deste modo garantindo a coeso no exerccio do poder repressivo. 15
Assim, as Foras Armadas se tornaram monolticas, se homogeneizaram internamente e se
estruturam ao redor de uma lgica corporativa.
Em termos econmicos, o governo Bordaberry implementou um plano baseado nas
orientaes do Fundo Monetrio Internacional (FMI), intensificando a subordinao
econmica do pas economia mundial e eliminando as restries e o controle sobre a
abertura da economia nacional ao capital financeiro. O privilegiamento das exportaes
alavancou o setor agropecurio, que era o que tinha as melhores vantagens comparativas de
insero internacional. A nfase no mercado e nos agentes privados foi concomitante
retrao estatal na regulao da economia. Sob a orientao de Vgh Villegas, procurou-se
enfrentar uma conjuntura econmica internacional bastante adversa para o pas; a combinao
da crise do petrleo com o fechamento da Comunidade Econmica Europia s exportaes
de carne acentuou o desequilbrio da balana comercial.
Desde 1974, desregulou-se o mercado de cmbios e o movimento de capitais, o que,
junto com a abertura da economia e os saldos negativos da balana comercial, levou
desvalorizao do peso uruguaio e configurao do pas em praa financeira com garantia de
liberdade total de investimento e de disponibilizao de lucros. Os saldos financeiros negativos
foram compensados com a entrada de capitais argentinos direcionados especulao financeira e
imobiliria - sobretudo na regio balneria de Punta del Este - e o sensvel aumento no
endividamento externo do pas que, entre 1973 e 1985, passou de US$ 716 milhes a US$ 6
bilhes.16
A imposio do modelo praa financeira, desde 1974, criou as condies para que o
Uruguai assumisse importante papel de local de lavagem de dinheiro na regio. Organizaes
14
LPEZ CHIRICO, Selva. Uruguai 1985-1993. Estratgia e ttica da reproduo institucional militar no
ps ditadura. Tese de Doutorado. Campinas/SP, 1995. p. 87.
15
A nova Ley Orgnica Militar inovou nos critrios para o retiro obrigatrio do oficial. At ento,
consideravam-se os limites de idade ou de anos no grau. A novidade foi que os Comandantes em Chefe passaram
a ter a prerrogativa de solicitar o retiro imediato e obrigatrio de qualquer oficial subordinado. Amparado pelo
esprito corporativo, pela fidelidade hierarquia e obedincia devida, acentuou-se, com este mecanismo, o
processo de depurao de elementos dissidentes ou pouco confiveis. LPEZ CHIRICO, Selva. Las Fuerzas
Armadas. De la milicia artiguista al Ejrcito de Seguridad Nacional. Op. cit., p. 29.
16
CARRIO, Miguel. Pas vaciado. Dictadura y negociados (1973-1985). Montevideo: Monte Sexto, 1987. p.
385
como a Loja Manica P-2 e a Seita Moon se instalaram no pas, assim como grande parte dos
capitais vinculados ditadura argentina. Inegavelmente, as altas taxas de remunerao e a
garantia de rgido segredo bancrio captaram importante volume de capitais especulativos, parte
deles, em trnsito para mercados mais seguros.17
O governo ainda procurou promover exportaes no tradicionais18 , outorgando, para
tanto, linhas de crdito preferenciais, facilidades fiscais, exonerao de impostos e induzindo a
forte queda dos custos salariais. De todas as formas, a balana comercial permaneceu negativa
em funo do aumento persistente das importaes.19
Paralelamente, ensaiavam-se tmidos pedidos de normalizao das instituies. No
Conselho de Estado, juristas como Alberto Demichelli e Aparcio Mndez estudavam propostas
de institucionalizao restritiva. Apesar da violenta represso do novo regime, a populao ainda
tinha alguma expectativa de que a ao de saneamento, justificadora do golpe, respeitasse o
calendrio eleitoral constitucional que indicava eleies gerais para 1976. O prprio Bordaberry,
quando indagado sobre o restabelecimento da legalidade constitucional, se encarregou de dirimir
dvidas. Ao confrontar-se com uma Carta aberta ao Governo (01/09/74), na qual cerca de cem
personalidades dos partidos tradicionais solicitavam o pleno funcionamento dos partidos e la
vigencia de la Constitucin y la ley, Bordaberry respondeu contundentemente: Estamos en el
tiempo de la Nacin y no en el de los partidos polticos. [...] Por eso, todos los que invocan el
plazo constitucional de noviembre de 1976, soando con volver a la caza de votos, [...] que hoy
pierdan toda esperanza. 20
A aproximao do ano eleitoral gerou expectativas entre a oposio reprimida e
incertezas entre os apoiadores do regime que, por sua vez, confrontavam-se internamente.
Tomando a iniciativa, Bordaberry sinalizou propondo um Estado que devia continuar vigilante
no enfrentamento do inimigo (o marxismo internacional), e defendendo forte posio contra
qualquer retrocesso que pudesse abrir expectativas de volta democracia formal.
As Foras Armadas, at ento, estavam envolvidas em uma poltica de aproximao
com a populao, visando melhorar sua popularidade e prestgio. Para isso, utilizaram um forte
esquema de propaganda e de apropriao de smbolos da tradio histrica uruguaia, procurando
capitalizar os resultados dessa identidade forada. Neste sentido, o ano de 1975 foi
singularmente instrumentalizado por ser a comemorao do Sesquicentenrio da Independncia
7.
17
Idem.
Os setores que mais se beneficiaram foram a construo e o comrcio; dentro da indstria manufatureira, o
setor txtil, material eltricos, produtos metlicos, papel e derivados. NAHUM, op. cit., p. 351.
19
Idem, p. 352.
18
386
387
388
comando militar e a Bordaberry, era perceptvel que o Terror de Estado recrudescia. Violentos
ataques atingiam a comunidade exilada na Argentina, configurando-se uma espcie de rea
externa de jurisdio da represso uruguaia. Os seqestros e assassinatos do ex-senador Zelmar
Michelini e do ex-Presidente da Cmara de Deputados Hctor Gutierrez Ruiz, entre tantos outros
que ocorreram no vizinho pas, as centenas de novas prises e destituies internas, a segunda
deteno do general Seregni, o afastamento de vrios oficiais do Exrcito, os novos
desaparecimentos de pessoas, as perseguies na Argentina (particularmente contra o Partido
por la Victoria del Pueblo - PVP), marcaram esse contexto. Diante desses fatos, acabaram-se as
poucas expectativas eleitorais projetadas pela oposio.
Tanto Nahum24 quanto Caetano & Rilla25 afirmam que as tendncias continuistas do
protagonismo militar e da manuteno da ordem repressiva devem ter estimulado Bordaberry a
encaminhar uma proposta que, desconsiderando o calendrio eleitoral, visava estabelecer uma
nova ordem institucional. Os documentos que Bordaberry encaminhou aos militares marcaram
sensveis divergncias no interior do Poder Executivo. Bordaberry props eliminar todos os
partidos polticos aos quais responsabilizava, junto classe poltica, pelo processo de
deteriorao institucional e de diviso da sociedade, o que afetava a to propugnada unidade
nacional, um dos pressupostos bsicos da DSN. Para Bordaberry, os partidos deviam ser
substitudos por correntes de opinio pblica espontnea.
O ncleo do poder militar e alguns civis, como o Ministro de Economia Alejandro
Vgh Villegas, discordaram da proposta de Bordaberry, sobretudo por considerar que a ausncia
dos partidos polticos poderia gerar um perigoso vazio de poder a ser explorado pelos setores
marxistas. Os setores militares estavam engajados na eliminao dos partidos subversivos, mas,
entre eles, no incluam blancos e colorados (salvo alguma corrente interna); pelo contrrio, com
eles mantinham relaes prximas e dos seus quadros provinham quase todos os civis que
davam apoio ao governo. E, sabidamente, desde o incio da evoluo da espiral autoritria, os
setores da populao que a apoiaram pertenciam s correntes conservadoras dessas foras
polticas. Abrir mo da formalidade desse apoio era correr o risco de ver aumentar as crticas que
o regime j sofria no exterior. O fato de poder contar com aquele apoio, ao contrrio, no s
ajudava a rebater as acusaes de ser um regime de fora como, ao contrrio, era uma resposta
de setores sociais agredidos com a expanso do comunismo internacional e seus aliados locais.
Para as Foras Armadas o fundamental era garantir a proscrio da gerao poltica que, segundo
elas, eram responsveis pela crise e pela subverso. Porm, tinham claro que os partidos
24
25
Idem.
CAETANO; RILLA. Breve historia de la dictadura. Op. cit.
389
390
JUNTA DE COMANDANTES EN JEFE. Las Fuerzas Armadas al Pueblo Oriental. T II. El Proceso
Poltico. Montevideo: 1978. p. 383.
391
de la Nacin, integrado pelo Conselho de Estado e pela Junta de Oficiais Generais das trs
Armas e ao qual cabia indicar o Presidente da Repblica, os membros da Suprema Corte de
Justia, do Tribunal de lo Contencioso Administrativo e da Corte Eleitoral. Em sntese, dentro
da estrutura hierrquica de poder montada, os mximos organismos do Estado ficavam
subordinados s decises da Junta de Oficiais Generais, presentes no Conselho da Nao.
Com a queda de Bordaberry houve importante refluxo do plo civil da ditadura e iniciou-se o
perodo marcado pela tentativa da sua institucionalizao.
Idem.
392
estratgia do regime no precisava arcar com o desgaste da supresso dos partidos polticos,
instrumentos que, em outra conjuntura, poderiam incorporar uma nova gerao de polticos
alinhados com os critrios da DSN e os interesse das Foras Armadas. 29
Dentro do mbito das definies estruturais, reafirmou-se a poltica econmica de
abertura ao capital estrangeiro (Reunin del Parque Hotel), aplicada desde 1974 por Vgh
Villegas. Em termos polticos, vale destacar a fundao, sob inspirao da experincia da Escola
Superior de Guerra brasileira, da Escuela Superior de Seguridad y Defensa Nacional
(ESEDENA), visando formar uma elite civil-militar para administrar o Estado dentro dos marcos
da segurana para o desenvolvimento.30
Tempo depois, no Conclave de Santa Teresa (agosto de 1977), foi decidido que, em
1981, realizar-se-iam eleies com candidato nico e sufrgio universal e que as mesmas seriam
antecedidas de uma consulta plebiscitria em relao a um texto constitucional a ser proposto
populao. Concomitantemente volta do jogo poltico-eleitoral (com marcadas restries),
acenava-se com a concesso da volta pblica dos partidos tradicionais. Dessa forma,
respondiam-se as questes geradas diante das expectativas do ano eleitoral de 1976 e do
confronto no interior do regime. Apesar de que 1981 parecesse longnquo em 1977 e de que as
regras anunciadas fossem fortemente restritivas, as Foras Armadas haviam definido data,
normas e cenrio para algum tipo de manifestao cidad.
Independente das novas definies, a essncia repressiva do regime permaneceu. O
Terror de Estado permanecia vigente na vida cotidiana, no interior das prises e das instituies
intervidas. Como pano de fundo, o Ato Institucional N 5 (20/10/76) reduzira a vigncia dos
direitos humanos s exigncias da segurana interna.
O Ato Institucional N 7 (27/06/77) criou mecanismos para a destituio de milhares de
funcionrios do Estado. O saneamento da Administrao Pblica era justificado, mais uma vez,
pelas denncias de infiltrao da subverso em todos os nveis. Inclusive, detectaram-se
alarmantes sinais de descontentamento com os rumos tomados pelo autodenominado Processo
Nacional, no interior das Foras Armadas. Lpez Chirico informa que, em 1977, houve um
debate, no interior do mbito militar, sobre um memorando onde 26 coronis propunham uma
sada poltica diante do insucesso militar em resolver a grave situao econmica e social que
sofria o pas. Esses oficiais acabaram sendo passados compulsoriamente reserva por uma
cpula militar contrariada e preocupada com as crticas encontradas no interior da corporao.
28
393
Segundo a autora, este mesmo mecanismo foi aplicado, na mesma ocasio, contra mais de 40
oficiais da marinha e da direo do Clube Naval, suspeitos de posies constitucionalistas
durante os eventos de fevereiro de 1972.31
No contexto internacional, na segunda metade da dcada de 70, ocorreu um ponto de
inflexo particular para as ditaduras de Segurana Nacional do Cone Sul. A mudana de
administrao na poltica externa estadunidense trouxe efeitos negativos para aqueles regimes. O
peso que a questo dos direitos humanos adquiriu na administrao Carter se refletiu na relao
da superpotncia com as ditaduras. Alguns setores do Partido Democrata estadunidense se
tornaram caixas de ressonncia das denncias que os exilados latino-americanos apresentavam
nos fruns internacionais. Em decorrncia disso, em setembro de 1976, o Congresso dos EUA
suspendeu a ajuda militar ao Uruguai, o que acirrou ainda mais a postura do regime. Como
resposta, o governo assumiu uma postura revanchista, restringindo a ao interna das
organizaes internacionais enquanto a propaganda oficial apregoava no exterior que El
Uruguay no tortura, no veja, no maltrata ni al ms abyecto de los criminales. 32
Pressionado externamente, o regime comeou a esboar, em 1978, uma abertura
mnima, como havia sido anunciado na Reunio do Parque Hotel. Tal fato coincidiu com a
ascenso do tenente general Gregrio Alvarez ao cargo de Comandante General do Exrcito.
Reafirmando a linha oficial das Foras Armadas, o crculo de Alvarez anunciava a incorporao
prudente dos polticos ao projeto de estatuto partidrio elaborado pela Corte Eleitoral.33 Embora
fosse ainda um aceno tmido para que os partidos tradicionais abandonassem a clandestinidade
do seu funcionamento, era uma abertura, mesmo que mnima, de espao e negociao poltica.
A linha de continuidade da poltica econmica foi mantida com a nomeao de
Valentn Arismendi no Ministrio da Economia. A entrada de capitais estrangeiros especulativos
e de emprstimos externos junto com a dolarizao da economia, acompanhada da ausncia de
controle oficial e do aumento das taxas de lucro, alimentaram a expanso financeira. Desta
forma, houve sensvel crescimento do volume de operaes bancrias, a imposio da
dolarizao da economia, o abandono quase total de mecanismos de controle sobre a circulao
de recursos financeiros e a tendncia crescente das taxas de juro. O privilegiamento da atividade
financeira sobre a produtiva se traduziu no encarecimento das exportaes, cujos subsdios
foram drasticamente retirados, e no barateamento das importaes, com reduo gradual de
taxaes. Acentuava-se, assim, uma opo que dificultava cada vez mais a insero das
cit., p. 29.
31
Idem, p. 30.
32
CAETANO; RILLA. La era militar. Op. cit., p. 45.
394
395
396
Havia medo? [...]. Medo sim, mas diferente do medo de antes. Era o medo de
pr tudo a perder com um passo em falso. E por isso as palavras-de-ordem
eram claras no sentido de evitar qualquer provocao, no fazer comentrios
nem exteriorizar alegria ante os resultados, por mais animadores que fossem.
Acatar a disposio governamental de no sair rua para festejar em nenhuma
circunstncia; permanecer em casa, se possvel com as janelas fechadas, para
no deixar que as comemoraes ntimas fossem vistas.
Tudo na mais absoluta disciplina e com clara conscincia de que o povo estava
medindo foras com o regime. O governo tinha que continuar confiante de que
ia ganhar at o ltimo momento, quando fosse tarde demais para voltar atrs.
E assim aconteceu. [...]39
397
uma poltica de TDE. E, simultaneamente, por desgaste ou discordncia poltica, perdiam apoio
de alguns setores com os quais, originalmente, haviam confludo na cruzada anticomunista.
Aparentemente, a sociedade, ao derrotar o projeto constitucional, forava uma volta
estaca zero, pois ao rejeitar a proposta de um Estado tutelado pelo poder militar, mantinha,
mesmo que isso no fosse uma opo, um regime ditatorial em sentido estrito, sem matizes ou
aparncia democrtica. O Comandante da 2 Diviso, general Rapela, expressou um curioso
raciocnio, numa tentativa frustrada de esvaziar a vitria da oposio. Segundo ele, havia trs
tipos de votantes do NO. Os inimigos da ptria, os que por razes doutrinrias rejeitavam o
projeto e os que votaram NO porque so contrrios a qualquer mudana e querem que o processo
continue como est.41 Independente destas bizarras interpretaes, o resultado plebiscitrio
apontou, cpula militar, vrios sinais para a reflexo como, por exemplo:
1) a negao da maioria da populao em legitimar uma proposta de Estado
elaborada a partir da lgica da Doutrina de Segurana Nacional;
2) a constatao de que, passados sete anos de restries de toda ordem
(fechamento do Parlamento, censura, intervenes no ensino, proscries, poltica
repressiva, etc.), a pedagogia do medo e a propaganda oficial haviam sido
insuficientes para garantir adesismo ao oficialismo, impor inrcia oposio e evitar a
rejeio do Processo Militar e das suas propagadas faanhas;
3) o reconhecimento de que as Foras Armadas possuam um capital de apoio
e simpatia bem inferior ao imaginado;
4) o impacto do eco no exterior, festejado pelo exlio latino-americano e pela
solidariedade democrtica internacional, isolando ainda mais o regime;
5) a gerao de expectativas de abertura produzida pela dinmica da consulta
e pelo triunfo da oposio removeu a imobilidade to visvel at ento, fruto do medo e
da ausncia de canais polticos que capitalizassem o descontentamento latente;
6) o reconhecimento de que a proposio do jogo da consulta popular
legitimadora, resultou num verdadeiro tiro pela culatra e que, apesar das restries
vigentes, o plebiscito produzira um descongelamento relativo da sociedade civil.
Diante dessas consideraes, reverter os resultados com o uso da fora parecia fora de
questo, fosse pela reao da comunidade internacional ou por que seria reconhecer que o
plebiscito no passara de um verdadeiro blefe para garantir legitimidade para o regime. E,
principalmente, se, com a metodologia do TDE vigente at ento, tinham-se colhido tais
398
resultados, uma sada coercitiva implicaria em ter que aplicar uma dose repressiva muito maior
e, provavelmente, insuportvel para o regime. Tudo indicava que essa possibilidade sequer podia
ser cogitada. O regime j era acentuadamente repressivo. Aumentar esse teor podia abrir riscos
muito perigosos. Nem as condies internas e externas auspiciavam uma opo dessas e,
certamente, nem seria aceita pelos setores que continuavam simpatizando com a ditadura.
Portanto, optar por mais represso podia criar fissuras irreversveis junto base social de apoio e
at no interior dos quartis. Sem dvida, o resultado da consulta popular impedia a legitimao
da ditadura e se o recurso de maior represso parecia inadmissvel, o caminho da negociao
poltica ganhava consistncia.
Em decorrncia disso tudo, ocorreram algumas mudanas na cpula militar e decidiu-se
por nova aproximao com a sociedade civil, s que agora reconhecendo a necessidade de
incluir os partidos polticos em qualquer discusso e negociao sobre uma hipottica abertura.
Esta tambm havia sido uma sinalizao resultante do plebiscito. Mas a situao continuava
muito complexa. Como lembra Lpez Chirico, uma sada negociada, naquele contexto, devia
levar em conta a correlao de foras existente. Por um lado, [...] unas FF.AA. cohesionadas,
autnomas, acrecidas em la experiencia del ejercicio del poder, por otro, una sociedade civil
agredida, desarmada, castigada, pero crecientemente nucleada en demostraciones masivas contra
el autoritarismo y las prcticas dictatoriales. 42
inegvel que os resultados do plebiscito abriram brechas para negociaes polticas
com alguns interlocutores do NO. Neste contexto, embora se possa afirmar que certas prticas de
TDE tenham diminudo de intensidade, a dinmica repressiva, em essncia, permaneceu
inalterada. Como expresso disso, em maro de 1982, o padre Luis Prez Aguirre, figura
histrica do Servicio Paz y Justicia (SERPAJ), 43 pronunciou uma homilia na Catedral
Metropolitana de Montevidu no aniversrio do assassinato do salvadorenho Monsenhor
Romero. Na mesma, Prez Aguirre, corajosamente, denunciou publicamente, aps tantos anos de
41
399
Dois dados importantes aparecem neste trecho. Um a aluso de que, em 1981, ainda
continuavam ocorrendo casos de represso segundo a metodologia do seqestro seguido de
desaparecimento. A outra, o entendimento de que esses seqestros so posteriormente
legalizados; portanto, estamos diante do reconhecimento de que h uma modalidade de
seqestro-desaparecimento em que ocorre a devoluo do indivduo seqestrado, seja colocado
em liberdade ou, majoritariamente, dando-se cincia da sua deteno e passagem Justia
Militar. Isto importante porque amplia significativamente o universo dos seqestradosdesaparecidos. A anlise da metodologia do procedimento permite inferir, ento, que h casos de
desaparecimentos temporrios enquanto que outros so permanentes e, portanto, definitivos.
Provavelmente, a modalidade temporria bem mais freqente do que a outra. Merece registro
tambm a expresso usada por Prez Aguirre: secuestro de Estado. Lembrando que o SERPAJ
maneja uma quantidade significativa de informaes sobre a dinmica repressiva da ditadura e
44
Lo que no trae la paz en el Uruguay de hoy. Homilia de Luis Prez Aguirre em celebrao do martrio de
Monseor Oscar Romero. Catedral Metropolitana de Montevidu, 24 de maro de 1982. Trechos extrados de:
SERPAJ. Op. cit., p. 99-102.
45
Idem.
400
considerando a legitimidade e a autoridade moral do seu porta-voz, a expresso citada, que alude
a uma poltica de Estado, se recobre de uma importncia mpar. Segundo se depreende das
palavras de Prez Aguirre, os seqestros e os desaparecimentos imediatos de indivduos,
independente do seu destino final, so mecanismos orgnicos da racionalidade do Estado de
Segurana Nacional e dos seus objetivos clssicos.
Certamente, o maior desafio contido na homilia foram as palavras finais que o
representante do SERPAJ dedicou aos militares. Provavelmente, as mesmas causaram muita
apreenso dentro da caserna, sobretudo considerando os recados anteriores da homilia e, tendo
tais palavras, vindo de um representante da Igreja que, mesmo que no falasse pela instituio
(de atuao muito discreta at ento diante dos excessos repressivos), o fazia dentro da prpria
Catedral:
A los militares porque Monseor Romero tambin les hablaba a los militares,
y muy bien - qu les dira?: que cuiden y que protejan la vida de todos sus
hermanos sin distincin, que nadie nunca d una orden de apremio fsico, o
moral, de tortura como se dice simplemente, contra su hermano. Nadie tiene
autoridad ni en el cielo ni en la tierra para una tal infamia! Y que no me digan,
hermanos, que eso no se da en Uruguay; como no voy a saber yo que eso se da,
si yo mismo he sido vctima de eso. Hermano militar, nadie puede obedecer o
seguir una orden contra la ley de Dios, contra la integridad de la vida de su
hermano, por ms culpable de la culpa que se le considere. La ley de Dios de la
integridad de la vida, est por encima de todo. Es obligacin obedecer a Dios, y
es obligacin desobedecer una orden pecaminosa. Hermano militar, o hermano
funcionario del Ministerio del Interior, o hermano de Inteligencia, que supongo
que estars aqu cumpliendo con tu trabajo: busca, hermano, busca con tus
compaeros establecer todos tus valores, esas actitudes que fomentan el
respecto de la persona y de la justicia en todos. Hermanos militares, no se
manejen con esquemas blicos simplistas para nuestra patria, de amigo y
enemigo; yo les pedira que s, que combatan y con toda la valenta de que
fueran capaces, con firmeza, que combatan toda la arbitrariedad interna y
externa de las Fuerzas Armadas, y que confen, por ltimo, que confen siempre
en el pueblo, al que pertenecen, para que podamos encontrar todos juntos, y sin
discriminaciones ni proscripciones, una salida digna para el pas. [...]46
Veja-se que anos antes das discusses formais sobre a lgica militar da obedincia
devida (que acontecem no incio da redemocratizao e sob o impacto do julgamento das Juntas
Militares argentinas), Prez Aguirre afirma, nas entrelinhas das suas palavras, que so
conhecidos os excessos repressivos cometidos pelo Estado e prega, certamente que sem maiores
iluses, uma verdadeira desobedincia devida no interior da caserna, fato que muito deve ter
desagradado ao comando militar e sua moral de disciplina e obedincia sem questionamento. 47
46
Idem.
A grande imprensa fez absoluto silncio sobre as palavras de Prez Aguirre e o profundo impacto que
causaram aos ouvintes. Mas a revista La Plaza publicou a homilia integralmente na edio de abril, fato que
47
401
402
cit., p. 30.
403
2.079.566
100%
tantes
1.260.506
60,61%
dos habilitados
619.945
49,18%
dos votantes
rtido Colorado
527.562
41,85%
idem
14.986
1,19%
idem
85.373
6,77%
idem
in Cvica
m branco
50
404
Idem, p. 341.
O nome desta emissora de rdio era Radio Nacional. Historicamente, era vinculada aos setores de esquerda e
s organizaes sindiciais combativas. Alvo de ataques de grupos paramilitares que se escondiam sob a sombra
do governo Pacheco Areco e diversas vezes censurada desde ento, teve seu nome proibido pela ditadura e seu
pblico fiel foi hostilizado. Mesmo assim, continuou funcionando sob permanente ameaa de censura e de
represso. No podendo nome-la publicamente, seus ouvintes passaram a identific-la como La Treinta, ou
simplesmente, la Radio. Dirigida por Germn Arajo, posterior senador da Frente Ampla, La Radio teve papel
52
405
caceroleadas (panelaos) se disseminaram por todo o pas, com graus variados de adesismo, e
foram acompanhadas por mobilizaes e campanhas especficas de denncias e resistncia
sindical (PIT), estudantil (ASCEEP) e das nascentes organizaes de direitos humanos como o
SERPAJ. A esquerda, proscrita e ausente das conversaes com os militares, era visvel nas
manifestaes sociais. A criao da Intersetorial, organismo de discusso de todos os partidos
polticos e dos movimentos sociais, foi um esforo no sentido de criar um frum representativo
da sociedade uruguaia e que, de certa forma, denunciava a ausncia de outros interlocutores nas
negociaes com os militares.
Todos esses esforos de mobilizao e os avanos das negociaes dos setores polticos
legalizados com os militares (apesar dos recuos e entraves existentes) confluram na maior
manifestao de massa da histria do pas at ento, el Obeliscazo ou El Ro de Libertad.
Efetivamente, no 27 de novembro de 1983, em Montevidu, na rea onde est situado o
Obelisco, mais de 400 mil pessoas reclamaram a volta do regime democrtico e repudiaram o
regime existente. O ato contou, pela primeira vez aps tantos anos, com a participao pblica de
dirigentes da proscrita esquerda.
O crescente protagonismo popular preocupou os mandos militares. A abertura e as
negociaes sobre o fim da ditadura pareciam irreversveis, e tudo indicava que os prazos se
esgotavam. A expectativa das Foras Armadas de impor a melhor sada (seu afastamento do
poder sem prestao de contas presente ou futura) era questionada pela sociedade, e at no
interior dos partidos polticos havia sinais de contrariedade diante daquela iniciativa. A maioria
blanca do exilado Ferreira Aldunate defendeu a tese de negociar com uma posio firme; mas,
isolada entre as demais foras polticas partcipes, abandonou as conversaes do Parque Hotel.
Um dos principais motivos do impasse residia na irredutvel posio militar de pr um ponto
final proscrio do lder exilado. Contrapondo-se a essa postura, o Partido Colorado, liderado
por Sanguinetti, e outros setores blancos, consentiam com uma sada moderada que permitisse a
retirada da corporao militar sem que a mesma se sentisse ameaada.
Inegavelmente, os desdobramentos dos resultados da consulta plebiscitria marcaram o
crescimento de uma disposio presso da sociedade civil e das correntes polticas de oposio,
apesar do temor ao recrudescimento da represso ou frente ao impasse de que, rejeitado o projeto
continuista, poderia ficar tudo como estava. No interior das Foras Armadas, tambm ocorriam
debates sobre o rumo a seguir. A pouca publicitao da pugna entre setores duros, favorveis a
congelar ou reverter as expectativas da oposio gerada pela convocao do plebiscito, e os
muito destacado, sobretudo, na campanha do Plebiscito de 1980 e na presso contra a ditadura, nos anos 80.
406
setores que defendiam a normalizao institucional, mesmo que pausada e com restries,
confirmava a procura de uma sada coesa, disciplinada e at discreta dos militares e do aparato
estatal. Da mesma forma, as foras de oposio que negociavam com as Foras Armadas
tambm eram perpassadas por debates internos, polmicas e dissidncias; sinais da
complexidade das negociaes, do que estava em jogo e da difcil conjuntura que devia ser
enfrentada.
Quanto situao econmica, as dificuldades se acentuavam. O ano de 1982 foi chave.
A estagnao produtiva foi acompanhada de um crescente desequilbrio financeiro produzido
pela retirada de capitais. A captao de recursos no exterior para compensar o desequilbrio
acentuou ainda mais o endividamento externo. Por outro lado, os gastos com segurana e com
compra de armas geravam recortes permanentes em reas de investimento social do Estado e
incidiam no desequilbrio da balana comercial. Paralelamente, o endividamento dos setores
produtivos, com o sistema financeiro mediante juros altos, se tornou to grave que os bancos
privados, pressionados pelos seus compromissos e seus acionistas, solicitaram o auxlio do
Banco Central. Ou seja, o Estado assumiu essas dvidas em troca de novos emprstimos externos
e evitou a quebra dos bancos privados, diminuindo ainda mais as reservas do Banco Central.
Sem condies de manter uma paridade cambiria artificial e pr-fixada (tablita), o Banco
Central, em novembro de 1982, deixou o cmbio livre; em 2 dias, o preo do dlar triplicou,
quebrando centenas de empresas endividadas naquela moeda.53
O refinanciamento da dvida externa junto ao FMI, em 1983, obrigou o governo a
aceitar um acordo de cunho neoliberal: equilbrio oramentrio, controle do dinheiro, arrocho
salarial, eliminao de subsdios s exportaes, aumento de 50% no imposto sobre o valor
agregado, aumento das taxas pblicas (entre 25 e 50%), manuteno de impostos aos salrios
(2%), etc. Exigiu-se tambm que o Banco Central continuasse com a poltica de resgatar as
dvidas dos bancos privados. A aplicao daquelas condies de negociao acabaram
produzindo maior recesso, desemprego e aumento da dvida externa. Tentando ganhar tempo, o
governo negociou o adiamento dos vencimentos da dvida, aceitando a compensao de taxas
mais altas que ficaram como compromissos a serem saldados pelos futuros governos civis. Ou
seja, uma das heranas que a ditadura deixaria para as futuras administraes civis seria uma
frgil sade financeira, que comprometeria as expectativas sociais acumuladas pela populao
durante todo o perodo autoritrio e que, em suma, enfraqueceria a incipiente redemocratizao.
Quanto s mazelas sociais diretamente derivadas, elas sinalizavam a existncia do pior salrio
53
Idem, p. 355.
407
real da histria do pas e um desemprego que atingia 15% na capital, no final de 1983.
54
54
408
retirada ocorresse sem sobressaltos e com garantias de imunidade. Apesar de todo o desgaste e
da crescente presso de uma sociedade que recuperara espaos de resistncia (no plano cultural,
na imprensa, nos liceos, nos sindicatos, etc.) e que mostrava vigor nas mobilizaes massivas, as
Foras Armadas impuseram suas condies. Pelo acordo, era garantido a preservao da sua
autonomia, a presena, em instncias de co-participao, no exerccio do poder poltico civil
(atravs do Conselho de Segurana Nacional) e a manuteno do controle do ascenso dos
oficiais de maior posto, com a apresentao de uma lista de candidatos indicados pelo comando
militar, para a escolha do presidente. No interior da corporao, o critrio de escolha e de
cooptao foi mantido em detrimento do concurso, garantindo a coeso do ncleo da ditadura,
assim como sua autonomia diante do poder poltico. 56
Mesmo considerando o fracasso plebiscitrio de 1980 e a derrota dos seus aliados
polticos nas internas partidrias de 1982, o regime autoritrio ainda tinha reservas de poder para
negociar. Beneficiava-se, sem dvida, da vontade poltica de mudana que havia entre os
interlocutores da sociedade civil e, sobretudo, pelo fato de que havia fragmentado a unidade da
oposio ao isolar o setor de Ferreira Aldunate e distanci-lo da Frente Ampla, objetivo sempre
perseguido, pois afastava o pior cenrio possvel nas avaliaes que os estrategistas do regime de
Segurana Nacional faziam desde o golpe de Estado. Simultnea e sorrateiramente, as Foras
Armadas transferiram o Servicio de Informacin de Defensa do Ministrio de Defesa Junta de
Comandantes en Jefe, estratagema para evitar que o futuro governo civil se imiscusse em to
estratgica estrutura do poder militar.
Praticamente, no perodo final da ditadura, as Foras Armadas continuavam com a
mesma postura com a qual haviam consagrado o TDE. Como sntese da retirada militar, ficaram
as palavras do general Rapela: No hay desaparecidos en nuestro pas. Por lo menos no en lo que
se entiende normalmente por ese trmino.57 Mais de uma dcada aps sua interrupo no
cenrio poltico nacional, continuavam negando sua essncia repressiva. Aps a retomada da
democracia, numa nova demonstrao de fora, os militares obtinham do governo Sanguinetti
uma lei que, sancionada pelo Parlamento, garantia a impunidade dos delitos cometidos contra os
direitos humanos durante a ditadura; a imunidade recebida recaia sobre a sociedade como um
prolongamento do TDE, mesmo aps expirar o regime de Segurana Nacional.
56
57
Idem,, p. 31.
RAPELA apud CAETANO; RILLA. Breve historia de la dictadura. Op. cit, p. 139.
409
4.2.1 Antecedentes
Como j foi visto no segundo captulo, os regimes militares latino-americanos dos anos
70 se inspiraram nos postulados da Doutrina de Segurana Nacional (DSN). Independente do
perfil da atuao das corporaes militares nos diferentes casos nacionais, podem-se identificar
alguns traos similares resultantes dos postulados da viso de mundo da DSN. Tal doutrina no
foi originria das instituies militares latino-americanas - com exceo do caso brasileiro, onde
houve reelaborao especfica, embora tambm a partir de fontes externas. A DSN tampouco foi
a nica matriz de pensamento externo dos regimes militares, apesar de ter sido a de maior
impacto e, sob certa forma, a que sintetizou a contribuio de outras matrizes doutrinrias que
foram, em parte, absorvidas por ela e que, atravs dela, foram retransmitidas Amrica Latina.
As matrizes de maior peso com incidncia no Uruguai foram:
1) A derivada da teoria e da prtica da represso colonial francesa nas guerras de
independncia da Arglia e da Indochina, a Contra-Insurgncia. A tese bsica
fundamentava-se na debilidade do sistema democrtico liberal e na crtica influncia da
Revoluo Francesa nos processos nacionais, apregoando a tese conservadora do retorno
a modalidades filosficas e ideolgicas autoritrias. Nessa matriz, o conceito de guerra
psicolgica adquiria centralidade como poltica estatal em funo da possibilidade de
manipulao intensa sobre a sociedade civil. No caso das Foras Armadas uruguaias a
aquisio direta da experincia francesa parece ter sido razovel; a oficialidade lia os
manuais dos estrategistas franceses assim como assistia alguns cursos por eles
ministrados na regio. Mas a incorporao dessa metodologia de ao ocorreu,
principalmente, atravs da mediao da DSN estadunidense e de cursos ministrados na
Argentina e no Chile.
2) As doutrinas militares da Espanha franquista tambm apresentaram certo
impacto em alguns casos latino-americanos, tanto atravs da vertente do pensamento
falangista quanto das idias desenvolvidas por setores catlicos conservadores e/ou pela
prpria experincia do franquismo. Todas elas coincidiam, no reconhecimento
instituio militar, de um papel preponderante na conduo poltica da sociedade. Por
exemplo, Jos Antonio Primo de Rivera, principal liderana falangista, defendia que os
militares deviam manter-se margem da luta poltico-partidria; porm, entendia ele, se
a sociedade estivesse sob o risco de um colapso interno, as Foras Armadas deveriam
intervir para evitar o questionamento dos fundamentos tradicionais da mesma e custodiar
a manuteno dos objetivos nacionais permanentes (elemento importante da posterior
410
DSN).
O esprito cruzadista, de origem hispnica, teve forte aceitao nas experincias
uruguaia e chilena e se articulava com os postulados do anticomunismo e da presena
persistente do inimigo interno (apresentado como tal pela DSN). As aluses feitas a
marxistas, comunistas, sediciosos ou subversivos encontram importante
antecedente nas expresses bolcheviques, herejes, rojos e rojillos da Espanha
franquista. No caso uruguaio, houve uma forte presena de elementos originados do
hispanismo no projeto de ensino pretendido pela nova ordem autoritria, como a famlia,
a cruzada das foras de segurana, a afirmao dos valores do catolicismo tradicional e a
moral.58 Este fenmeno foi estudado com profundidade na obra de Campodnico,
Massera & Sala.59
3) Niurka Sala aponta uma raiz de pensamento nazifascista que confluiu,
posteriormente, com as orientaes da DSN. 60 A difuso daquelas idias ocorreu tanto
por intermediao de setores polticos de direita quanto pelos crculos militares que
haviam tido contato com misses militares da Alemanha e da Itlia na regio ou atravs
de militares uruguaios que haviam sido enviados queles pases antes da Segunda Guerra
Mundial. Nas publicaes especializadas dos crculos das diversas foras armadas da
poca, encontram-se diversos artigos doutrinrios e apologticos da disciplina e do poder
militar da Alemanha. Os acontecimentos posteriores levaram a um recuo dessas
influncias no Uruguai. A tese de Sala a de que tais influncias no foram extintas. A
autora se pergunta: tais correntes so antecedentes significativos de assimilao e
aplicao da DSN no Uruguai? Sem dvida, h importantes pontos de contato com a
DSN, seja na concepo do avano (real ou figurado) do comunismo e a necessidade de
dar-lhe respostas concretas, seja como crtica democracia liberal.61
4) Algumas correntes de pensamento tiveram uma visibilidade mais restrita.
Entre elas, podem-se apontar algumas leituras feitas sobre a interpretao argentina da
DSN, algumas expresses da corrente da Tradio, Famlia e Propriedade (TFP) e,
sobretudo, a Escola Superior de Guerra (ESG) brasileira (e nela o pensamento de
58
ROJAS MIX, Miguel. La dictadura militar en Chile y Amrica Latina. In: WASSERMAN, Cludia;
GUAZZELLI, Cesar A. B. (Orgs.). Ditaduras militares na Amrica Latina. Porto Alegre: Editora da UFRGS,
2004.
59
CAMPODNICO, Silvia; MASSERA, Ema; SALA, Niurka. Ideologa y educacin durante la dictadura.
Antecedentes, proyecto, consecuencias. Montevideo: Banda Oriental, 1991.
60
Ver CAULA, Nelson; SILVA, Alberto. Alto el fuego 2. La logia de los Tenientes de Artigas. Montevideo:
Rosebud Ediciones, 1997.
61
SALA, Niurka. Antecedentes Del catolicismo ultraderechista, del hispanismo y de la doctrina de la seguridad
nacional en nuestro pas. In: CAMPODNICO; MASSERA; SALA, op. cit., p. 73.
411
62
A base da DSN brasileira foi formulada ainda em 1945 por militares ligados Fora Expedicionria Brasileira
(FEB) e sob a influncia da experincia gerada pela convivncia com a mquina de guerra dos EUA. Em 1945,
em uma reunio desses militares saram os pontos norteadores da futura Escola Superior de Guerra (ESG). De
acordo com Joel Silveira, quem cobriu a reunio, as diretrizes aprovadas surgiram das seguintes premissas: a)
faliram as elites civis do Brasil; b) tem havido um completo descaso pelos problemas fundamentais do Brasil; c)
os quadros dirigentes vem sendo mal escolhidos e quase sempre se pe testa de uma tarefa relevante a pessoa
menos indicada para isso; tem prevalecido, no trato da coisa pblica, o interesse pessoal, sempre colocado acima
do interesse nacional; a corrupo se alastra. Rigidamente fechada dentro desse pentgono (sem trocadilho), a
FEB-ESG negava-se ferozmente a aceitar na direo do pas quem no se enquadrasse nas exigncias daqueles
cinco pontos. Da a sua permanente conspirao que iria acabar na tomada do poder - o que ocorreu no dia 31 de
maro de 1964 [...]. SILVEIRA, Joel. Segunda Guerra Mundial: todos erraram, inclusive a FEB. Rio de
Janeiro: Espao e Tempo, 1989.
63
BAUMGARTNER, Jos L.; DURA MATOS, Jorge; MAZZEO, Mario. Os Desaparecidos. A Histria da
Represso no Uruguai. Porto Alegre: Tch!: 1987. p. 139.
412
A DSN admitiu o protagonismo poltico das Foras Armadas e a submisso do poder civil aos
objetivos daquelas, os quais se organizaram em torno da centralidade da segurana para o
desenvolvimento. Dentro desta perspectiva, a segurana foi condio fundamental para
qualquer possibilidade de desenvolvimento e sua imposio implicou na implantao da
ordem e da eliminao do conflito mediante o emprego da fora. Por sua vez, a ocupao do
Estado pelas Foras Armadas instrumentalizou-o como irradiador dos valores castrenses
(disciplina, verticalidade, hierarquia e ordem) sobre o conjunto da sociedade civil. O resultado
desta orientao significou a percepo de um alcance ilimitado da ao profissional militar,
onde as Foras Armadas se viram como fator fundamental da construo nacional e com a
conseqente tendncia a intervir em todos os mbitos da vida social.
H uma observao que deve ser realada. Embora o contato dos militares uruguaios
com as teses da DSN, nos cursos ministrados pelos EUA, remonta ao fim da Segunda Guerra, a
orientao legalista e constitucionalista das Foras Armadas se manteve, apesar de alguns
percalos, at meados da dcada de 60. De 1968 em diante, porm, ocorreu o incio da mudana
fundamental. Durante o governo de Pacheco Areco, as Foras Armadas foram incorporadas ao
projeto autoritrio, mesmo ainda de forma subordinada.
Para Sala, a contribuio uruguaia DSN inexistiu.65 Entretanto, sua importncia sobre
o Exrcito uruguaio foi fundamental. Joseph Comblin, um dos maiores estudiosos sobre o
assunto, na sua obra clssica66 , afirma, entretanto, que o Uruguai deu uma importante
contribuio DSN. Segundo ele, o esboo elaborado por Bordaberry sobre o que deveria ser
um novo Estado uruguaio seria a mais completa exposio de uma proposta de nova ordem,
conforme as orientaes da DSN, em toda a Amrica Latina. Em todo caso, importante
lembrar que Comblin escreveu a obra citada em 1978 e, portanto, desconhecia as propostas
constitucionais que as ditaduras uruguaia e chilena plebiscitariam em 1980.
Por outro lado, o jurista Gross Espiell precisa que a DSN no foi importante no pas
antes de 1973, 67 enquanto Baumgartner, Duran Matos & Mazzeo registram que o termo
segurana nacional estava presente na Resoluo N 1 da Junta de Comandantes en Jefe e do
ESMACO, de setembro de 1971, resoluo na qual as Foras Armadas assumiam [...]
restabelecer a ordem interna e oferecer segurana ao desenvolvimento nacional[...] e [...]
64
Idem, p. 138.
SALA, op. cit.
66
COMBLIN, Padre Josep. A Ideologia da Segurana Nacional. O Poder Militar na Amrica Latina. Rio de
Janeiro: Civilizao Brasileira, 1978.
67
Hctor Gross Espiell. Painel: El Derecho y la Poltica en situaciones de crisis. Evento: 1973-2003. Voces,
memorias y reflexiones sobre el golpe de Estado y la dictadura en el Uruguay. Montevideo, 26/06/03.
65
413
68
414
a partir do golpe de Estado de 1973. Esta corrente, no cenrio da crise anterior ao golpe de
Estado, se expressava atravs de publicaes como Lepanto e Hoja Informativa de la
Vicepostulacin, vinculadas, respectivamente, s filiais uruguaias da Tradio, Famlia e
Propriedade (TFP) e da OPUS DEI. Circulava tambm a revista Tribuna Cristiana, que, desde
maio de 1966, apresentava o programa Radiorama, da Rdio Rural - principal instrumento de
divulgao dos setores integristas contra as mudanas desencadeadas pelo Conclio Vaticano II e
pela Igreja latino-americana, que, posteriormente, tambm se respaldaria na Conferncia
Episcopal de Medelln.73 Como exemplo da manifestao integrista, as autoras identificam no
seguinte discurso do general Ballestrino pronunciado em 1979:
Existe un orden natural de todas las cosas, de las sociedades inclusive, orden
natural del que forma parte el orden moral y porque el orden natural molest, al
desenfreno y a la soberbia del hombre, se lo fue desconociendo con teorias cada
vez ms contrarias a la naturaleza de las cosas, al orden de la propia Creacin; y
las corrientes racionalistas, iluministas, libertarias, en particular el liberalismo y
sus hijos, el marxismo, el socialismo y el comunismo, llevaron a nuestro
mundo moderno al caos intelectual y moral, al fondo del abismo al cual quieren
arrojarnos. 74
415
Bordaberry, os partidos devem ser substitudos por outras instituies que no gerem as tenses
fomentadas por aqueles. Em 1975, pragmaticamente, avaliava que:
El pas estaba en paz, en orden, adems estaba trabajando bien, la gente no
viva mal, por qu bamos a cambiar todo eso? Y en lo que tenamos en ese
momento no haba Partidos Polticos, no haba elecciones, no haba un poder
parcelado en mltiples sectores. En cambio, haba una cabeza dirigente con
autoridad, un poder nico y nacional. [...] la necesidad del voto es lo que
corrompe. De modo que habra un rgano que al no estar sometido a la
soberana popular, estara sometido a la soberana de Dios. La eliminacin de
los Partidos Polticos sera una consecuencia. Lo que yo agred fue el principio
de que la soberana est en el pueblo.76
CAMPODNICO, Miguel Angel. Antes del silencio. Bordaberry. Memorias de un presidente uruguayo.
Montevideo: Lunardi y Risso, 2003. p. 119.
77
SALA, op. cit.
78
ROVIRA, Alejandro. Subversin, terrorismo, guerra revolucionria: la experiencia uruguaya.
Montevideo: 1981. p. 30.
416
A persistncia desse discurso se mantm mesmo na fase final do perodo militar, como
no discurso do general Rapela, durante as negociaes com os partidos polticos, em 1983:
Lo cierto es que existen en el mundo, en este momento de eso tenemos que
convencernos dos grandes ideas: las occidentales que se aferran a la
democracia y las orientales manejadas y dirigidas desde Rusia y Cuba,
explotando si todas las necesidades, las debilidades y las falencias que tienen
los pases occidentales y explotando, adems, la debilidad que tiene la
democracia para autodefenderse, cosa que no sucede en los regmenes
comunistas porque ellos son fuertes y se dan seguridad. 79
Por outro lado, apontado o inimigo interno, este devia ser confrontado em todos os
terrenos. O esprito da cruzada reforava esta ao, que teria que ser constante, profunda,
abrangente e que sempre cumpria uma dupla funo: a de fazer parte do esforo mundial do
Ocidente na luta universal contra o comunismo internacional e a de conter e destruir a subverso
no mbito nacional, revertendo o caos e a desordem produzida pela infiltrao marxista,
restaurando a paz, a ordem e a tranqilidade. A lgica da bipolaridade emoldura toda a
interpretao feita a partir dos setores da DSN. E nem o Parlamento escapava a essa lgica:
Insolitamente, el Parlamento fue transformndose en uno de los ms calificados
voceros de la subversin. sta lograba as un objetivo esencial: el de que fuese
una de las piezas bsicas del prpio Estado la que cultivase y alimentase los
grmenes destinados a aniquilarlo. 81
DINARP. Actos del Parque. Sesin del 16/06/83. Apud CASTAGNOLA; MIERES, op. cit., p. 80.
Idem, p. 81.
81
JUNTA DE COMANDANTES EN JEFE. Las Fuerzas Armadas al Pueblo Oriental. T II. El Proceso
Poltico. Op. cit., p. 46.
82
JELLINEK; LEDESMA, op. cit., p. 38.
80
417
418
contradies de classe ou de outra ordem. O que for considerado de origem subversiva, logo,
s pode ser contra o povo e no pode vir dele. E se os agentes da subverso forem elementos
internos, ento, esto a servio da grande conspirao mundial; portanto, so traidores e, como
tais, tornam-se externos comunidade que deve ser protegida. As Foras Armadas esclarecem
como ocorre este fenmeno:
La amenaza ms grave contra el cuerpo de la Nacin es el peligro de intrusin
de ideologas extraas a la mentalidad popular que, basndose en el poder, sea
mental o econmico, de sus adherentes, pretende propiciar y justificar la
destruccin total de lo existente como precio de un maana utpico bien
definido. El pueblo debe entonces asumir las mltiples formas de tal clase de
agresiones. 85
Essa concepo de Nao um dos pilares ideolgicos bsicos da atuao das Foras
Armadas, j que justificam sua interveno e a continuidade da sua misso de reorganizao
estatal para o fortalecimento dos mecanismos de proteo da sociedade constantemente
ameaada. O bem estar da Nao garantido pela proteo e segurana proporcionadas pela
vigilncia das Foras Armadas, condio para o prometido futuro desenvolvimento nacional.
Essa a base da nova ordem fundada a partir de 1973.
A ocupao militar do Estado para defender a Nao ameaada exige, como
contrapartida da sociedade, a disseminao e o cumprimento de valores militares de disciplina,
obedincia, fidelidade, hierarquia, etc. A coeso da Nao exige a unidade poltica do Estado, e
cabe autoridade governamental a misso de fixar objetivos nacionais e subordinar a vida da
sociedade consecuo dos mesmos apelando, se for preciso, ao emprego da coao e da fora
fsica. Diante dessa perspectiva, a existncia de um pluralismo na sociedade - expresso atravs
da diversidade de grupos polticos, sociais, sindicais ou culturais - se interpreta como
manifestao de interesses particularistas que podem, potencial ou efetivamente, atentar contra a
unidade nacional. Ou seja, o pluralismo poltico, social e cultural devem ser limitados ao ponto
de no inviabilizarem a unidade nacional e a consecuo dos objetivos nacionais. Essa a tarefa
bsica do poder estatal: regular, vigiar e estabelecer sanes no funcionamento da vida poltica,
social e cultural, assim como administrar os mecanismos que socializam valores, conhecimentos
e pautas de comportamento (educao, meios de comunicao, famlia) para disciplinar a
conscincia nacional.86
Um terceiro princpio, a idia de confrontao total, tambm est presente no discurso
dos militares uruguaios. O cenrio do confronto mundo livre versus mundo comunista
85
Idem, p. 13.
419
planetrio, o que o diferencia da guerra convencional, espacialmente restrita. Por outro lado,
abrange toda a sociedade, afetando-a de forma global, ou seja, no s no mbito militar, mas em
todas suas dimenses (cultural, poltica, econmica, social, militar, etc.). Cada fato social ou
ao individual incidem sobre a dinmica do conflito, o qual, na perspectiva da DSN, sempre
possui um agressor, o comunismo internacional. No Uruguai, isso aparece em muitos
testemunhos como o que segue:
El mundo vive en guerra. No hay ms que dos caminos: de los que siguen a
Mosc y se aprovechan de las libertades democrticas para socavar el orden
establecido y el de los que advirtieron a tiempo los peligros del totalitarismo
rojo, y estn dispuestos a sacrificar circunstancialmente algunas libertades con
la esperanza de recobrar sus derechos cuando sea posible. Peor para los que no
hayan comprendido an que la civilizacin llamada occidental y cristiana est
asediada por poderosos enemigos. O nos defendemos o no tardamos en caer en
sus garras. 87
420
cenrio de indefinio e de insegurana que justifica a vigilncia constante das Foras Armadas.
Inclusive porque, no discurso da DSN, condiciona-se a possibilidade do desenvolvimento a
partir da eliminao dos obstculos que o impedem, no caso, a subverso. Uma vez que esta for
destruda, estar aberto o clima para o desenvolvimento econmico. Porm, tal promessa
impossvel de cumprir em funo da essncia dos compromissos econmicos do regime militar.
Portanto, a subverso, no discurso da DSN, sempre persistir, pois a nica forma de legitimar o
Estado de SN e o TDE. Tal concepo da subverso assim aparece em um discurso de outro
militar, o general Christi:
Como lo ha destacado no hace mucho el seor Presidente de la Repblica, la
sedicin no est vencida, en el interior y el exterior contina trabajando en
forma solapada. Adems de las informaciones concretas y siempre vigentes en
el que se funda dicha afirmacin, hay que atender a la naturaleza ntima de la
guerra subversiva para comprender que para erradicar la sedicin emergente de
esa subversin, es necesario una accin en profundidad que, en mi criterio, an
no se ha iniciado formalmente. 90
As Foras Armadas assumem que houve uma agresso terrorista e que o poder poltico
as incumbiu de proteger a Nao, a democracia e os direitos humanos. Alis, esta uma
argumentao que elas reforam at hoje ao lembrar que foi o Poder Executivo que as convocou
para combater a subverso, com a posterior chancela do Parlamento ao referendar o Estado de
Guerra Interna. Diante das denncias sobre excessos repressivos que constantemente e
convictamente rejeitaram, alegam que, se de fato fossem pertinentes, teriam que se ater a uma
realidade concreta, a de que o pecado original foi marcado pela presena e atuao do poder
civil. Ou seja, as Foras Armadas afirmam que no cometeram excessos. Mas se os tivessem
cometidos, teriam sido como resposta aos apelos dos polticos e autoridades de um Estado
democrtico. Nessa linha de raciocnio, expressava-se Alejandro Rovira:
La [...] pregunta [...] es si el estado democrtico debe mantenerse inerme y
pasivo en actitud prcticamente suicida, frente a los embates que pretenden
destruirlo, para reemplazarlo, no por nada mejor, ni siquiera por algo
medianamente definido, sino por un sistema tirnico y opresivo; o si por el
contrario, tiene el derecho, o la obligacin, de defenderse. 91
421
93
Idem, p. 27.
Documento de 29 de junho de 1973. JUNTA DE COMANDANTES EN JEFE. Las Fuerzas Armadas al
Pueblo Oriental. T II. El Proceso Poltico. Op. cit., p 258.
94
422
95
Armadas se apresentam no seu discurso de autopromoo como sendo a nica salvaguarda moral
e material para enfrentar a subverso. Acreditam nisso e se esforam para convencer o resto da
populao. Nessa tarefa, desenvolvem uma metodologia de enfrentamento que, de forma geral,
articula trs conjuntos de aes que podem ser independentes entre si, simultneas ou
complementares: a represso propriamente dita, a preveno e a profilaxia.
A represso propriamente dita, a tarefa mais comum, implica em aes destinadas
destruio das organizaes subversivas, seus eventuais aparatos armados, seus recursos de
infra-estrutura e seus integrantes. A preveno diz respeito s medidas de controle e vigilncia
que os organismos de segurana adotam para evitar o ressurgimento das organizaes
subversivas, tarefas complexas que visam identificar suas modalidades clandestinas de
atuao, tornando a violncia um instrumento de preveno. A profilaxia refere-se
implementao dos mecanismos da guerra psicolgica. Isso ocorre, fundamentalmente, atravs
de medidas a curto prazo, de efeito mais imediato - como o controle e a manipulao da
informao sobre a opinio pblica e de medidas a mdio e longo prazo, mais complexas como a interveno no ensino e na educao.
A implementao dessas aes exigiram organizar um abrangente aparato de
informao e de inteligncia, o que, num pequeno pas como o Uruguai, propiciou um controle
sufocante, como se infere da frase lapidar de Castagnola & Mieres: [...] el rgimen uruguayo
gener un agente de seguridad en la cabeza de cada habitante. 96
Um quarto princpio da DSN relaciona-se com o reconhecimento da anunciada situao
de debilidade do Ocidente diante da guerra total resultante da lgica bipolar e a necessidade de
fortalec-lo para a mesma. A fragilidade se explica pela permissividade das instituies com o
pluralismo de opinies e cultural, com a crise dos dogmas e a aceitao de relativismos e
questionamentos. A debilidade do Ocidente verificada no abandono, por parte da sociedade
contaminada, de uma tica e uma forma de vida que abandona as tradies e o status quo. E
tambm nos limites impostos por princpios jurdico-institucionais ineficientes para enfrentar a
agresso do comunismo internacional. Nesse sentido, questiona-se a democracia liberal pela sua
insuficincia em proteger eficientemente o estilo ocidental de vida; conseqentemente,
necessrio mudar a legislao para estruturar uma efetiva defesa diante de uma subverso que
95
Diante das pretensas posturas respeitosas, alguns autores reagem com ironia: As Mes dos Desaparecidos
precisam saber onde, como, quando e graas a quem, seus filhos receberam um tratamento to educado e
correto e se por casualidade, no mais que isso ningum constatou alguma transgresso ao cavalheiresco
estatuto.... BAUMGARTNER, DURAN MATOS; MAZZEO, op. cit., p. 152. [grifo dos autores]
96
CASTAGNOLA; MIERES, op. cit., p. 88.
423
97
Com muita habilidade, o discurso de Rovira, que segue o discurso oficial das Foras
Armadas uruguaias, coloca a ditadura como vtima da incompreenso da administrao Carter,
conclamando uma nova vinculao com os EUA diante de objetivos estratgicos comuns. Ou
seja, assumiu uma postura de autoridade moral no tema em si ao afirmar que, de fato, est
preocupado com os direitos humanos sim, tentando apropriar-se da luta pela sua defesa e
reforando, como sempre, a responsabilidade das foras subversivas na sua deteriorao. Diante
do advento da administrao Reagan e da nova orientao belicista da poltica externa dos EUA
(Segunda Guerra Fria, Guerra nas Estrelas e Conflitos de Baixa Intensidade), o governo uruguaio
assume o papel do aliado confivel que nunca cessou na luta contra o grande inimigo comum,
mesmo quando temporariamente foi abandonado (injustamente) pelo grande aliado, matriz do
pensamento da DSN. E este fato merece meno, pois, se verdade que a ditadura uruguaia no
97
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contribuiu na elaborao terica da DSN, permanentemente se mostrou muito fiel aos seus
postulados bsicos.
Segurana e Desenvolvimento so os conceitos bsicos do discurso da DSN, mas, em
termos concretos, a segurana foi a essncia da doutrina e a defesa interna foi o complemento da
estratgia hemisfrica para permitir enfrentar a subverso e garantir a proteo e o controle da
regio. No artigo 2 da Lei Orgnica Militar de 1974, consta que a misso fundamental das
Foras Armadas consiste em garantir a Segurana Nacional externa e interna.99 Cabe a elas
sustentar os princpios de defesa interna mediante aes de segurana que protejam o
desenvolvimento e o patrimnio nacional contra agresses de origem externa ou interna. No
Art. 5 da mesma lei, estabelece-se que:
La Defensa Nacional es uno de los medios para lograr la Seguridad Nacional y
consiste en el conjunto de rganos, leyes y reglamentaciones que con ese fin el
Poder Ejecutivo acciona a travs de los Mandos Militares, para anular,
neutralizar o rechazar a los agentes capaces de vulnerar dicha seguridad. 100
425
Portanto, a Segurana Nacional foi vista como [...] el estado segn el cual, el
patrimonio nacional en todas sus formas y el proceso de desarrollo hacia los objetivos
nacionales, se encuentran a cubierto de interferencias o agresiones, internas y externas.104
Assim se estabelece o contraponto. Diante de um Estado de subverso, postula-se um Estado
de segurana que deve enfrentar um inimigo interno, o qual percebido sempre pela sua
capacidade de mutao, o que o torna um perigo permanente. esta caracterstica conferida ao
inimigo interno a que justifica a permanncia do Estado de Segurana Nacional.105
O discurso das Foras Armadas acenava com o desenvolvimento, uma vez imposto o
regime de segurana. Porm, derrotada a subverso, ocorreu uma modificao no discurso
oficial. Da prometida segurana como condio para o desenvolvimento, passou-se para a idia
de desenvolvimento em segurana. O sentido instrumental conferido ao conceito de Segurana
Nacional pelas Foras Armadas permitiu que, independente do jogo de palavras, se dilussem as
diferenas entre violncia e no-violncia, poltica exterior e poltica interior, violncia
preventiva e violncia repressiva.106
4.2.3 Caractersticas
Um elemento importante para a conformao da Segurana Nacional foi o denominado
Poder Nacional, que consistia na ocupao militar do Estado e a utilizao de todos seus recursos
(humanos, polticos, econmicos, militares, psicolgicos, culturais, tcnicos, ideolgicos,
repressivos), concentrados em quatro reas: militar, econmica, poltica e psicossocial. O Estado
foi verticalizado dentro da racionalidade castrense, e o poder foi concentrado no Poder
Executivo. O Poder Legislativo, no Uruguai, deixou de existir. Quanto ao Poder Judicirio, foi
102
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atrelado ao Poder Executivo com a ampliao da atuao da Justia Militar que era subordinada
cpula militar.
Outro elemento importante vinculado identificao de um inimigo interno
relacionou-se com o entendimento do impacto produzido pela existncia da subverso.
La subversin perturba el proceso normal de la vida nacional, transformando
las posibilidades de desarrollo en seguridad [...] y contribuye a la destruccin
de las bases mismas en que se sustenta el Estado. Se alimenta de todas aquellas
actividades, sean o no ilcitas, que [...] afectan fundamentalmente los valores y
las concepciones ticas de un pueblo [...]. 107
General Rapela. DINARP. Actas de Sesin, 16/06/83, apud CASTAGNOLA; MIERES, op. cit., p. 86.
O universo dos inimigos internos reais ou potenciais configurado pelo sistema repressivo estatal como
crculos concntricos onde as organizaes armadas (sediciosas) ocupam o espao do alvo primeiro e principal.
108
427
segurana.
Concomitantemente, a DSN, na consecuo dos seus objetivos essenciais, defesa da
SN e destruio dos focos subversivos, desenvolveu e aplicou a noo de guerra
psicolgica, o que potencializou a capacidade de influenciar e manipular a populao atravs
da interferncia e controle da informao, da educao e da cultura, entre outros, confluindo
na construo de um discurso legitimador da implantao do novo regime. Como instrumento,
a guerra psicolgica foi duplamente eficiente, pois demonizou a subverso aos olhos da
populao e tentou atrair sua simpatia para o novo regime. As Foras Armadas uruguaias a
utilizaram amplamente durante todo o perodo ditatorial. Inmeros fatos foram distorcidos
para produzir o efeito esperado junto populao ou bloquear reaes negativa diante da
poltica repressiva, assim como foi recorrente o diversionismo e a mentira oficial. Tudo isso
para atemorizar os dissidentes e confundir e neutralizar os indecisos.
As Foras Armadas, na sua escalada ao poder e na consolidao do mesmo,
conformaram um amplo discurso patritico que se apropriou do sentimento da orientalidad e do
artiguismo, mitos fundadores ou de consolidao da nacionalidade uruguaia, de profundo
enraizamento popular, e que foram transformados em objeto de culto e adequados s diretrizes
da DSN. Da mesma forma, estimulou-se um culto Ptria e aos smbolos nacionais como
poltica de Estado, sobretudo junto aos jovens estudantes, considerados alvos frgeis da
infiltrao comunista. Multiplicaram-se pelo pas atos oficiais carregados de uma postura marcial
castrense. A inaugurao de todo prdio pblico teve ato oficial e, nestes, o culto bandeira e ao
hino nacional estiveram acompanhados de pronunciamentos salvacionistas. Praas e
monumentos espalharam-se por todas as cidades. O culto aos heris (os pais fundadores da
orientalidade, casualmente militares) mostram mais uma faceta da militarizao da sociedade. A
imposio de atos cvicos obrigatrios foram acompanhados pelo uso oficial do hino nacional
cantado, muitas vezes, de forma provocadoramente baixa para contrastar com o tom alto do
estribilho tiranos temblad; tal modo de cantar, de origem desconhecido, rapidamente foi
assumido como forma de resistncia popular, massivo e pacfico.
Entre marchas e desfiles, a ditadura civil-militar inaugurou a Praa da Bandeira. Esta
praa com sua enorme bandeira uruguaia tremulando permanentemente virou uma das imagens
preferidas do novo regime e ilustrou capas de diversas obras de cunho oficial.109 Junto a isso,
428
fizeram parte dos discursos oficiais expresses como defensa de la orientalidad, nuestro modo
uruguayo de vida e a identificao do ano 1975 como sendo o ao de la orientalidad (referente
ao sesquicentenrio da independncia do pas, ocorrida em 1825).
Uma outra caracterstica da nfase da nova ordem com smbolos nacionais se centrou
na apropriao da figura de Jos Gervasio Artigas, mximo heri nacional. Sua imagem e suas
palavras foram interpretadas de acordo com os interesses das Foras Armadas, que realaram o
carter militar a respeito de Artigas e seus feitos, ignorando, entretanto, seu pensamento social e
poltico. A figura de Artigas acabou reciclada e identificada com os marcos da DSN; o Protector
de los Pueblos Libres terminou associado defesa dos valores ocidentais. E o comando militar
definiu o exrcito que ocupou o Estado como sendo o Exrcito de Artigas. Ou seja, impondo a
viso de uma linha de continuidade autolegitimadora.110
Aproporiar-se da figura de Artigas significou um enorme esforo para vincular-se
quele que foi o maior elemento fundador da nacionalidade uruguaia. Com isso, procurou-se
estabelecer a seguinte conexo: Artigas, o grande prcer, trado e abandonado diante dos
inimigos e que lutou at as ltimas conseqncias por um determinado projeto poltico,
finalmente encontrou sucessores a altura, em outra gerao de militares que, assim como ele, no
mediram esforos contra a traio interna e os poderosos inimigos externos que almejavam
conquistar a antiga Banda Oriental.
Dois comentrios se tornam necessrios. Uma, a de que a grosseira apropriao da
figura do prcer escondia noes diferentes de ptria. evidente que a ptria das Foras
Armadas da Segurana Nacional estava distante da Ptria Grande artiguista, tanto na dimenso
geogrfica quanto, fundamentalmente, em termos polticos e sociais. A outra preciso diz
respeito a que, apesar do culto oficial de Artigas patrocinado pela ditadura, a populao, como
um todo, manteve uma outra relao de identidade com seu heri nacional, sobretudo no que
implicava quanto a valores e princpios. Ela resultava dos fundamentos adquiridos desde tenra
idade, na escola pblica, laica e democrtica, antes da interveno militar. Pode-se afirmar que,
durante a ditadura, houve uma disputa velada sobre a herana dessa figura histrica, fato que
persiste, como legado, at hoje. 111
sobre su imaginario. Montevideo: Trilce, 2001.
110
GAYOSO, op. cit., p. 15.
111
A figura de Artigas sempre foi reivindicada por quase todos os setores polticos do pas, desde os partidos
tradicionais at as diversas organizaes de esquerda. As cores da sua bandeira esto nos emblemas da Frente
Ampla e o prprio movimento tupamaro tambm o reivindicou. No perodo anterior ao golpe de Estado, parte
dos futuros militares golpistas integravam a organizao secreta Tenientes de Artigas. Em traos gerais, a
situao se mantm inalterada, o que, por si, fala da importncia desse mito fundador. Entretanto, nos ltimos
anos, a vinculao de Artigas com os princpios da DSN se limitou aos ncleos duros do entulho autoritrio
sobreviventes em volta da cpula das Foras Armadas, mas que, sem dispor da mquina estatal a sua disposio
429
A DSN partiu da premissa de que as Foras Armadas detinham reserva moral para
assumir funes que extrapolavam a tradicional defesa territorial e as eventuais operaes de
ao cvica incorporadas nos anos 60. Assim, a segurana da Nao e a guarda dos valores
civilizatrios ocidentais foram novas responsabilidades adjudicadas e que lhes abriu um campo
ilimitado de atuao. Uma outra tarefa consistiu em assumir sua autonomia diante das diversas
concepes poltico-partidrias, autonomia assentada numa pretensa iseno diante das
contradies sociais; ou seja, as Foras Armadas viam-se e apresentavam-se como estando
acima de interesses particulares, o que lhes conferia uma legitimidade moral para assumir
protagonismos em situaes de profundo conflito interno e decomposio das relaes polticoinstitucionais, como no caso uruguaio do incio dos anos 70. Assim, arvoraram-se em defensoras
do povo e da Nao, explicitando que, diferentemente dos partidos polticos e dos sindicatos,
falavam em nome de toda a comunidade nacional, o que, segundo elas, justificava sua irrupo
ilimitada no cenrio poltico. As Foras Armadas tambm deviam assumir uma funo que
partia de uma aparente contradio: assumir a incumbncia de defender as instituies
intrometendo-se no funcionamento do Estado. Entretanto, para a DSN, defender as instituies
no implicava, necessariamente, garantir a persistncia do regime democrtico, e, sim, proteger
os valores da vida ocidental, da famlia, do ensino e da religio, diante da agresso subversiva.
Concomitantemente, as Foras Armadas deviam garantir a defesa das instituies e da
ordem interna. Ou seja, incorporando funes policiais, deviam tornar-se instrumento de
controle e de vigilncia sobre o tecido social. Logo, a partir desses novos protagonismos,
tornavam-se responsveis pelas funes de defesa das instituies mediante a manuteno da
ordem, a garantia de segurana ao desenvolvimento nacional e sua conduo a partir do controle
estatal. Tudo isso dentro de uma eficiente capacidade de manuteno da coeso interna e de uma
apresentao pblica monoltica. Independente das tenses internas que de fato existiram, a
imagem corporativa e o comando colegiado assumido pelos militares foram caractersticas
especficas da ditadura uruguaia.112
Ainda segundo Castagnola & Mieres, as novas funes das Foras Armadas exigiram
um conjunto de medidas e aes de interveno ou de reorientao dos mltiplos campos da vida
social. Por exemplo, a adequao funcional das Foras Armadas ao novo protagonismo
adquirido, inserindo-as na estrutura e na dinmica do aparato estatal. Dessa adequao faziam
parte as seguintes medidas:
430
Idem, p. 92.
ROVIRA, op. cit., p. 28.
431
1)
pblico.
Para concluir, cabem algumas reflexes finais a partir da anlise que o padre Comblin
fez sobre a DSN uruguaia. Como visto, ele considera Bordaberry e sua proposta como marcos da
DSN latino-americana. Apresenta como prova das suas afirmaes um memorando de 9 de
dezembro de 1975, onde Bordaberry prope uma nova estrutura poltica, externando a inteno
de acabar com o carter provisrio da nova ordem e assumindo, em ltima instncia, uma
vontade fundacionista, o que, para Comblin, no s se insere dentro dos cnones da DSN como
uma das propostas mais refinadas surgidas na regio. 115 Bordaberry destaca, nesse memorando,
o anticomunismo como eixo permanente do novo Estado e a eliminao de limites
constitucionais para o exerccio do poder. Quanto ao perigo pelo uso excessivo do poder,
Bordaberry alega que tal possibilidade inexiste, pois h uma conscincia nacional vigilante. E
conclui: A liberdade da Ptria, os direitos da pessoa humana, a ordem e a segurana nas
relaes sociais, a autoridade a servio da Nao devem ser defendidos contra o inimigo agressor
e no mais contra o poder. 116
115
116
432
Para Bordaberry, o poder devia centrar-se no Consejo de Estado, rgo supremo e fonte
de tomada de decises controlado pelo Exrcito, depositrio dos valores essenciais da Nao.
Reconhecendo a existncia de reas de atrito no interior da cpula do poder, Bordaberry
defendia que o governo e a administrao estivessem nas mos dos civis, evitando s Foras
Armadas o desgaste do exerccio dessas funes. Ele argumentava que: H necessidade de
governos civis que o exrcito possa substituir quando tiverem perdido sua popularidade. O
governo ser civil para que o regime possa ser permanentemente militar.117 Bordaberry
considerava tambm que, na medida em que o governo recebia o poder dos militares, teria
autonomia diante dos grupos econmicos (retomando a percepo tecnocrata de que os militares
estavam isentos das contradies de classe existentes no interior da sociedade uruguaia). Quanto
aos partidos polticos, defendia abertamente sua eliminao, pois no passavam de mecanismos
instrumentalizados pelo marxismo. O Poder devia ser concentrado e centralizado; as funes
legislativa, executiva e judiciria deviam estar sob a tutela do Consejo de Estado. Alm disso,
ainda propunha uma curiosa distino entre os direitos humanos:
Existem os direitos essenciais do ser humano (vida, honra, liberdade,
segurana, trabalho e propriedade): estes sero defendidos e garantidos pelo
Estado. Em seguida, vm os direitos derivados ou secundrios (associao,
reunio, imprensa); esses devero ser estreitamente controlados e limitados,
exatamente para que no se transformem em um perigo para os direitos
prioritrios. 118
curioso ressaltar que Comblin faz uma associao direta de Bordaberry com a
DSN, desconsiderando que o ditador civil possa estar imbudo de outras matrizes de
pensamento que confluem em alguns pontos com a DSN, sem ser excludentes ou
contraditrias, como assinalam Campodnico, Massera & Sala. 119 Mas, para estas autoras,
Bordaberry e sua interpretao integrista da sociedade acabam sendo relegados por umas
Foras Armadas mais coerentes com a DSN. O que chama ateno o fato de Comblin
considerar a proposta de Bordaberry como sendo a mais completa surgida na Amrica Latina
at ento, dentro da perspectiva da DSN, o que parece um exagero. Sua proposta parece ser
muito mais um projeto hbrido, como pode ser inferido da anlise de Campodnico, Massera
& Sala. Coloc-la como destaque paradigmtico, como faz Comblin, parece ser um tanto
impreciso, explicado por ser uma anlise, talvez, prematura dos acontecimentos uruguaios ou
pelo entendimento de que a matriz integrista no possui importncia nem qualidade na
117
Idem.
Idem, p. 201.
119
CAMPODNICO, MASSERA; SALA, op. cit.
118
433
incidncia dos fatos do processo de escalada autoritria uruguaio. Talvez Comblin considere
que suas diferenas em relao DSN so insignificantes. Seja como for, Comblin justifica a
queda de Bordaberry como sendo o resultado da rejeio das Foras Armadas a sua proposta
de nova ordem. As reflexes de Comblin, de qualquer maneira, parecem dar a Bordaberry um
protagonismo maior que aquele que decorre das anlises e interpretaes contemporneas do
ditador e at das formuladas pelas geraes posteriores, nas quais se refora o entendimento
de que Bordaberry foi subordinado aos militares, a partir de fevereiro de 1973, o que no
significa diminuir-lhe protagonismo e responsabilidades no processo, condio que ele
prprio reivindica nas recentes memrias publicadas. 120
Comblin reconhece a disputa no interior da ditadura, mas no se manifesta quanto
existncia de um projeto militar que se contrape ao de Bordaberry e que teve pretenses de
refundao nacional. Acertadamente, no aceita a argumentao de que as Foras Armadas se
livraram de Bordaberry porque, diante das posturas autoritrias deste, aquelas representaram
certa fidelidade tradio democrtica uruguaia. Comblin acrescenta: [...] os militares no
gostam que seu poder seja limitado nem mesmo por um sistema que parea consagr-los. Por
isso, rejeitam a proposta de um programa poltico completo, uma nova estrutura de Estado e
de vida poltica permanente. Eles preferem a flexibilidade do provisrio. 121
Em realidade, as Foras Armadas tiveram um projeto de reorganizao global do
Estado e da sociedade, segundo os cnones da DSN, no qual tentaram extrapolar a mesma e
assumiram um protagonismo central. Sua implementao foi intensificada a partir da
substituio de Bordaberry e tomou forma na proposta constitucional que, contudo, ao ser
rejeitada na consulta plebiscitria de 1980, impediu sua institucionalizao orgnica e
fundacional.
120
121