Gerundismo e Adverbios
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ISSN 1415-7403
DIRETORIA
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1. Secretrio:
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1. Tesoureiro:
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1. Procurador:
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Diretor Cultural:
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Manuel Paulino
1. Secretrio: Maria Lda de Moraes Chini
2. Secretrio: Bernardino Alves dos Reis
CONSELHO FISCAL
Membros Efetivos: Albano da Rocha Ferreira
Ronaldo Rainho da Silva Carneiro
Antonio da Silva Correia
Suplentes:
CONFLUNCIA
REVISTA
DO
INSTITUTO DE LNGUA PORTUGUESA
LICEU LITERRIO PORTUGUS
Presidente: Francisco Gomes da Costa
CENTRO DE ESTUDOS LUSO-BRASILEIROS
Diretor: Antnio Gomes da Costa
DIRETORIA DO I.L.P.
Francisco Gomes da Costa (Presidente)
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Maximiano de Carvalho e Silva (Diretor Executivo)
Antnio Baslio Rodrigues
Horcio Rolim de Freitas
Rosalvo do Valle
CONFLUNCIA
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Comisso de Redao:
Antnio Baslio Rodrigues
Horcio Rolim de Freitas
Rosalvo do Valle
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E-mail: liceu@liceuliterario.org.br Internet: www.liceuliterario.org.br
A matria da colaborao assinada da responsabilidade dos autores.
Confluncia 31
SUMRIO
Pg.
RESENHA CRTICA
SILVA, Ams Colho da & MONTAGNER, Airto Ceolin.
Dicionrio latino-portugus.
(MARIZA MENCALHA DE SOUZA) ................................................................ 223
COLABORADORES DESTE NMERO ........................................... 227
Confluncia 31
EDITORIAL
o livro, nessa arquitetura, era uma lanadeira importante. Nas pautas de importao e exportao, ainda que medocres no volume e centradas em meia-dzia
de artigos de sobremesa, ou da saudade, o intercmbio do livro, revistas e jornais ocupava um dos lugares cimeiros, juntamente com os vinhos e os azeites.
Nas ltimas dcadas do sculo passado, entretanto, tivemos reflexos muito negativos que afetaram esse comrcio, sobretudo a importao do livro portugus. Primeiro, vieram as razes de natureza econmica: era impossvel fixar
um preo razovel para a venda do livro importado com as desvalorizaes de
um cmbio descontroladamente varivel e o empate de capital a juros exorbitantes. Depois, as profundas mudanas polticas, culturais, sociais e no ensino
ocorridas nos dois pases (no Brasil chegou-se a acabar com os cursos de
Literatura Portuguesa numa altura em que bons especialistas implicavam com
eles) cortaram o fascnio recproco que existia antes pelos autores de um e de
outro pas e no se chegaram a conhecer os escritores mais novos salvo raras
excees.
Coincidiram com essa fase os espasmos das crises econmicas, os pequenos investimentos dos governos para criar focos de difuso da cultura nacional no estrangeiro, o desprezo dos currculos na apreciao dos contedos
gerados no outro pas, as perdas no hbito da leitura e assim por diante.
O resultado de tudo isso fez com que nos ltimos anos a soluo para o
problema do livro portugus no Brasil e do livro brasileiro em Portugal passasse
a ser uma s: a edio no Brasil de autores portugueses e a edio em Portugal
de autores brasileiros. Esto a os casos bem sucedidos de Jos Saramago ou
de Miguel Sousa Tavares, deste lado do Atlntico, ou de Paulo Coelho e Nlida
Pion do lado de l.
claro que esta soluo facilitada quando se trata de autores conhecidos em que o risco das editoras pequeno, ou nulo. No entanto, quando esto
em causa obras de escritores pouco conhecidos, ou mesmo de outros que apesar do prestgio interno, resistem edio, tudo se paralisa de novo. E nem o
apoio que vem sendo dado pelo Instituto Portugus do Livro e das Bibliotecas a
algumas editoras brasileiras tem sido suficiente para estimular o lanamento
dos novos valores literrios. s ir ao Real Gabinete Portugus de Leitura e
verificar como h autores de sucesso em Portugal que so completamente
ignorados no Brasil.
A verdade que sem o livro, como instrumento difusor, e sem os programas de ensino nas escolas e nas universidades, com grelhas de matrias em
que aparea transversalmente a produo de conhecimento do outro pas, brasileiros e portugueses cada vez mais tero modos diferentes de entender e
apreciar as prprias razes.
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NMERO EM HOMENAGEM A
ERNESTO FARIA
ERNESTO FARIA
(1906 1962)
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2. Dados biogrficos
Ernesto de Faria Jnior, nasceu no dia 23 de maio de 1906 no Rio de
Janeiro, ento Distrito Federal, na Rua Baltasar Lisboa, n 62, hoje Bairro da
Tijuca, filho nico de Ernesto de Faria, funcionrio pblico, e Aurora Barbosa
de Faria, professora de ensino primrio. rfo aos trs anos e pouco, fez os
primeiros estudos na escola em que sua me lecionava, e continuou-os no extinto Colgio Ateneu Brasileiro, ambos prximos de sua residncia. Em 1918
estudou no internato do Colgio Salesiano de Santa Rosa, Niteri, RJ, transferindo-se em 1919 para o Colgio Anchieta, internato jesutico de Nova Friburgo, RJ, onde estudou at 1921. Concluiu o curso secundrio pelo regime ento
vigente de exames parcelados.
Esse ano de 1921 marcante na vida de Ernesto Faria. Aos quinze anos,
conheceu o grande mestre de sua carreira e mestre pela vida fora , o professor Antenor Nascentes, cujas aulas de portugus no Curso de Rui Maurcio
de Lima e Silva, passou a freqentar, naturalmente cativado pelo fascnio do
mestre e vencido pelo irresistvel de sua prpria vocao para estudos lingsticos, como diz a professora Ada Costa, acrescentando que Antenor Nascen-
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3. Atividades docentes
Vita breuis, j tnhamos aprendido com o velho Horcio. No caso de Ernesto Faria a brevidade da vida (morreu com cinqenta e seis anos incompletos) no o impediu de nos deixar um exemplo de quanto se pode realizar, apesar
dos obstculos que teve de superar. Viveu intensamente sua vida pessoal e sua
vida profissional. As perdas, s vezes sem remdio, na famlia, o insucesso do
primeiro concurso no Colgio Pedro II, a morte de amigos queridos, os desencontros profissionais nem sempre fceis de contornar a tudo se sobreps sua
ndole combativa. S no resistiu derrocada do latim e ao esvaziamento programado da cultura clssica de que foi sempre o aguerrido defensor.
Em 1925, recebeu a primeira nomeao para examinador de latim, portugus e francs em comisses oficiais de ensino mdio. No ano seguinte ingressou no Colgio Pedro II como professor suplementar, e em 1927 j fazia parte
de comisses examinadoras. Em 1929, como professor de latim no Lyce
Franais, recebeu uma honrosa referncia especial de um dos maiores historiadores da cultura romana, Jrme Carcopino, professor da Sorbonne, que, visitando o colgio, assistiu a uma aula de Ernesto Faria e fez elogios competncia e ao desempenho pedaggico do jovem professor. Em 1930, tendo sido
classificado em concurso de provas para a seo de portugus, latim e literatura do ensino tcnico-secundrio do Distrito Federal, foi designado para a Escola de Comrcio Amaro Cavalcanti, onde foi professor de Antnio Houaiss, que
evoca esse encontro no belo texto reproduzido adiante. Com a adoo do sistema federal de ensino nas escolas tcnicas municipais, Ernesto Faria foi transferido para latim, por convenincia do ensino e vista dos ttulos apresentados. Continuou a ensinar latim na rede oficial, estando em exerccio no Instituto
de Educao no final de sua carreira.
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(1961) em que Slvio Elia obteve o primeiro lugar , alm de ter integrado
outras comisses de concursos de ensino mdio oficial.
Participou de congressos nacionais como representante da Faculdade
Nacional de Filosofia: Congresso de Dialectologia e Etnografia (Rio Grande do
Sul, 1958), Congresso Internacional de Crtica Literria (Recife, 1960), II Congresso de Lngua Falada no Teatro (Salvador 1956).
Fora do pas, Ernesto Faria tambm teve o reconhecimento da dimenso
universitria de sua obra. Em 1948, a convite do Adido Cultural da Frana,
participou dos trabalhos iniciais do ano letivo da Faculdade de Letras da Universidade de Paris; em 1951 fez na Sorbonne uma conferncia sobre Prsio; a
convite do governo portugus, na Universidade de Coimbra falou sobre Luclio
e as origens da stira latina, conferncia publicada, com alguns acrescentos
e notas na Revista Filolgica. Em outubro de 1953 foi autorizado pelo Presidente da Repblica a se afastar do pas por seis meses a fim de realizar, na
Europa, estudos relacionados com os programas de assistncia tcnica prestada por organizaes internacionais aos pases subdesenvolvidos; e em 1954
vemo-lo representante oficial do Brasil no II Congresso Internacional de Estudos Clssicos, realizado em Copenhague.
Em 1959 mais intensa sua atividade na Europa: delegado oficial do Brasil e representante da Associao de Estudos Clssicos no III Congresso de
Estudos Clssicos, em Londres; estgio na Faculdade de Letras da Universidade de Paris; visita a vrias faculdades portuguesas, como convidado oficial do
governo; participao em Congresso de Filologia, na Rumnia, tambm como
convidado oficial; recepo na Socit des tudes Latines, de Paris, sendo
saudado por Jules Marouzeau, Jacques Perret e Marcel Durry; participao
em sesso especial, a convite do Groupe Romand de la Socit des tudes
Latines, para falar sobre os estudos clssicos no Brasil.
5. Outros ttulos
Constam ainda do curriculum vitae outros ttulos muito expressivos de
seu renome no Brasil e na Europa: membro da Socit des tudes Latines, de
Paris, a convite de Jules Marouzeau (1932); fundador da Sociedade Brasileira
de Estudos Latinos, sendo eleito seu administrador perptuo (1939); presidente
do Departamento de Lingstica da Sociedade Brasileira de Antropologia e
Etnologia (1943); membro efetivo da Academia Brasileira de Filologia (1944);
membro correspondente da Sociedade de Estudos Filolgicos de So Paulo;
membro perptuo da Socit des tudes Latines (1947); membro fundador da
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epgrafe VXORI OPTIMAE, a Prof. Ruth Junqueira de Faria, a esposa incansvel, a colaboradora competente e solcita. Para ns, a colega admirvel, sempre solidria.
Conheci-a em 1949, ltimo ano do curso de Letras Clssicas, quando D.
Ruth assistiu s aulas de Estilstica Latina que o Prof. Faria nos ministrava,
com a leitura indispensvel do Trait de Stylistique Latine, de Jules Marouzeau.
Soubemos que era uma professora de latim do Instituto de Educao, colega do
mestre, a futura uxor optima.
Voltei a encontr-la muitos anos depois, j professora da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, onde fez o mestrado, concludo com a dissertao
Aspectos lexicais e estilsticos do bucolismo vergiliano (1974). Acompanhei de longe sua atividade docente e sua constante presena na revista Calope,
da Faculdade de Letras da UFERJ. Nunca se valeu das glrias do ex-catedrtico. Fez seu cursus honorum honrando-lhe a memria: doutrina segura, participao efetiva na vida universitria, na sala de aula, nas publicaes, nos eventos.
Em abril de 1976 fizemos o concurso de provas e ttulos para a livredocncia em Lngua Latina, no Instituto de Letras da Universidade Federal
Fluminense, disciplina de que eu era titular. Ela defendeu a tese Lvio Andronico:
a obra, a lngua, a mtrica, que dedicou a Ernesto Faria. (8) Eu, a tese
Consideraes sobre a Peregrinatio Aetheriae, que dediquei a Ismael de
Lima Coutinho. (9)
Foi o momento em que passei a admirar ainda mais a grande figura de
mulher e de profissional: seu comportamento em todas as etapas do concurso
foi exemplar.
Morreu no dia 28 de agosto de 1993 na Faculdade de Letras da UFRJ,
participando de uma banca examinadora de doutorado, Como o marido, morreu
no local de trabalho, no exerccio do cargo que ela tambm ocupou com dignidade; at a morte.
11. Bibliografia
Reproduzimos a bibliografia do Dicionrio Escolar Latino-Portugus,
6 edio, reviso de Ruth Junqueira de Faria, com prefcio de Walmrio Macedo
e a homenagem (que transcrevemos adiante) de Antnio Houaiss ex-alunos
do autor. Acrescentamos as teses de concurso e as publicaes que conseguimos localizar em revistas especializadas.
Nota do original: Em alguns casos, no foi possvel ter em mo as edies subseqentes, da a sua no incluso nesta relao.
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1955 14) ______ & FARIA, Ruth. Novo curso de latim. 1 e 2 sries do curso ginasial. Gramtica, textos e exerccios... [por] Ruth Faria e Ernesto Faria. Rio de
Janeiro, Ed. da Organizao Simes, 1955, 218 p.
1955 15) ______. Dicionrio escolar latino-portugus. Org. por Ernesto Faria [ com
a colaborao de Maria Amlia Pontes Vieira e outros 2 ed. Rio de Janeiro, MEC,
Campanha Nacional de Material de Ensino, 1955. 1045 p. ]
15.1 ______. [Colab. de Maria Amlia Pontes Vieira e outros] 4 ed. Rio de
Janeiro, MEC, Campanha Nacional de Material de Ensino, 1967. 1081 p.
15.2 ______. [Colab. de Maria Amlia Pontes Vieira e outros] Rev. de Ruth
Junqueira de Faria. 5a ed. Rio de Janeiro, MEC, FENAME, 1975, 1088 p.
1958 16) ______. Gramtica superior da lngua latina. Rio de Janeiro, Liv. Acadmica 1958. 524 p. (Biblioteca Brasileira de Filologia, 14).
1959 17) ______. Introduo didtica do latim. Rio de Janeiro, Universidade do
Brasil, Faculdade Nacional de Filosofia, 1959. 374 p.
Teses
FARIA JNIOR, Ernesto de. A pronncia do latim. Novas diretrizes ao estudo do
latim. (Tese de concurso para o provimento das cadeiras de Latim do Colgio
Pedro II). Rio de Janeiro, 1933, 131p.
FARIA JNIOR, Ernesto de. Prsio: estudo literrio e lexicogrfico. (Tese de concurso para o provimento da cadeira de Lngua e Literatura Latina da Faculdade
Nacional de Filosofia da Universidade do Brasil). Rio de Janeiro, 1945, 166 p.
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Boletim de Filologia
FARIA, Ernesto. L. LAURAND (1873-1941). Boletim de Filologia, Ano I, Setembro 1946
Fasc. III, p. 153-160
______, ______ JEAN COUSIN, Les tudes Latines Boletim de Filologia, Ano II
Maro 1947 Fasc. V, p. 52-54.
______, ______ J. MAROUZEAU, Introduction au Latin. Boletim de Filologia. Ano II
Junho 1947 Fasc. VI, p. 101-106.
______, ______ J. MAROUZEAU, Rcrations latines, Boletim de Filologia, Ano II
Junho 1947 Fasc. VI, p. 106-108.
______, ______ J. MAROUZEAU, La Prononciation du Latin. Boletim de Filologia,
Ano II Junho 1947 Fasc. VI, p. 109-110.
______, ______ Mmorial des tudes Latines. Boletim de Filologia. Ano II, Setembro
1947 Fasc. VII, p. 157-168.
Humanitas
FARIA, Ernesto. A formao da personalidade de Prsio. Humanitas, Vol. II, Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, Instituto de Estudos Clssicos, Coimbra, 1948 1949, p. 55-65.
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Hic enim est dies, quo sollemniter Doctor Latinus agnosceris, quo in sacrum
Magistrorum gremium reciperis, quo augustam hanc Musarum sedem coronatus
ingrederis. Sed quid te dico ingredientem? Nonne iam multis ex annis hic te
vidimus operantem, erudientem, docentem? Nonne iampridem Magister es
egregius? Sane id quidem; sed Magistri se habent venia sit comparationi
ut boni Christiani, qui, non tantum baptizati, verum etiam confirmati esse debent.
Post baptismum receptum Christianus adhuc indiget confirmatione, sancto
christimatis sacramento, ad fidem firmandam atque roborandam.
Ita amicus Faria, ut bonus Christianus, idem iam erat bonus Magister,
baptizatus in undis laborum magistralium. At felicius quam ego numquam
talem gratiam adeptus Dnus. Faria nunc rite est confirmatus sollemni concursu,
quem vocant, ut Doctor linguae Latinae! Atque, quoniam in confirmatione opus
est patrino aliquo, velut chrismatis patrono, nescio an non videatur temerarium
vel insolens offerre me tamquam talem patrinum, qui manum benevolam
beneficamque nunc tibi imponat dicens: Doctor Faria, esto fortis atque robustus,
utpote munitus ac firmatus in magisterio. En, commissa est tibi ista iuventus
Brasiliana literarum cupida: erudi eam, doce eam linguam literasque Latinas,
hoc sapientiae sacrarium, matrem hanc linguarum Romanicarum omnium
nostraeque Lusitanae. Nobilissima est lingua Latina, prima omnium linguarum
toto orbe terrarum quandocumque inventarum, lingua est Sanctae Matris
Ecclesiae lingua est omnium scientiarum universalis!
Ac vobis, cari discipuli discipulaque, dico: estote dociles assiduique in studiis,
applicantes ad Latinum illud Horatii de Graeco dictum: ... vos (monumenta
Latina) / Nocturna versate manu, versate diurna! Tam insigni Magistro usi
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discite legere Latine, Ioqui Latine, scribere Latine! Sane difficile illud quidern
est, atque, ut ait idem Horatius:
Qui vult optatam cursu contingere metam,
Multa tulit fecitque puer, sudavit et alsit
Sed en, astat vobis victor laureatus, Doctor Faria: eius aemulamini
exemplum, eius utimini auxilio!
Omnia denique ut versibus nostro amico dicatis complectar, disticha aliqua
a me composita pro fine afferre iuvabit:
Sermonis Latii Doctor nunc rite probatus
Es iure ac merito: grator, amice, tibi!
Gratulor ex animo tibi, care et clare Magister,
Doctor perpetuus nunc stabiliris enim
Suumque Magister sis stabilis, stabilis tibi fiat
Haec tibi corde precor vita salusque diu,
Augeat et vires tibi maximus ille Magister,
Ipsius in laudem sisque Magister amans!
Sitque tibi curae semper refovere iuventam
Doctrina solida moribus atque bonis
Atque ita per multos servet Deus optimus annos
Te sophiae columen Brasiliaeque decus!
Gratulabundus cecini
Georgius Henricus Augustinus Padberg Drenkpol
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recente, Mestre Amado Alonso e qual, nos seus empirismos, nas suas dissipaes ou nas suas suffisances (digamos assim), atribui ele grande parte do
malogro das tcnicas ou dos melhores empenhos cientficos.
Quando, pois, h trs anos, transpus o vestbulo da casa, com todos os
nus que isso me acarretou, naturalmente passei a observar de perto o homem
e a obra que j me chamara a curiosidade. Senti e ainda agora este sentimento me permite estes reparos senti que no tnheis muito jeito para medalhopendurado-na-glria ou mesmo para catedrtico-enfaixado-nas-becas-bolorentas. Tanto melhor. Agitava-se ou perpassava, entretanto, nas suas inquietaes
ou na sua vocao apostolar, um autntico estudioso e pesquisador, para o qual
a sua disciplina, o latim, tambm no obrigava a espirros e raps, nem oferecia
engrolaes retricas e pomposas, para engano dalmas ingnuas e embeleco
das rodinhas de botica, entre o gamo e o tabuleiro de damas. Vi que no
possueis o Chernowitz nem leis horscopos para a freguesia.
Foi sempre e ainda a minha observao. E no h decepo nenhuma nisso. Pelo contrrio.
Como quer que seja, escusamo-nos os vossos alunos meros aprendizes
que somos de fazer julgamentos sobre os vossos invulgares mritos culturais
e profissionais, pois os vossos livros so do conhecimento dos doutos, vossa
carreira funcional manteve constante impulso ascendente e, mais do que tudo,
penso eu, vosso recente concurso pblico documenta suficientemente; esse
concurso em virtude do qual vos agora conferida a dignidade de Catedrtico
efetivo da Universidade e, em conseqncia, a de Doutor em Letras Clssicas.
Est presente aqui, neste momento, a maioria dos vossos severos e sapientssimos
examinadores, juizes e, agora, testemunhas mais do que fidedignas da vossa
vitria inconcussa e galharda.
Por falar nesse concurso: assisti a todos os atos pblicos dele e, francamente, vale a pena comprar caro uma cadeira de primeira fila, como fiz eu
(como fez, por exemplo, Mestre Sousa da Silveira), para assistir a justas gentis
e renhidas como essa de que sastes armado cavaleiro da vossa dama, isto , da
vossa ctedra e da vossa disciplina querida. Soubestes, vs e os vossos temveis contraditores da banca examinadora s vezes verdadeiros advogadosdo-diabo evitar o choro e o ranger de dentes desses prlios infernais a que se
d o nome de concursos pblicos de magistrio. Vimos todos, por exemplos,
como nem se queimaram hereges em efgie ou, sequer, a reputao de ningum
saiu ferida com uma flor de retrica ao menos, nem mesmo com um mau
pensamento ou aluso longnqua. Alunos, trouxemos essa lio de nobreza, que
valeu.
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do ensino e de to alta dedicao nobre matria a que se dedicou, sem reservas, que seu nome ficar para sempre ligado histria do nosso incipiente e
mal-aventurado humanismo. Mas, como a gloriosa lngua do Lcio, insupervel
instrumento no apenas de ilustrao, mas de cultura, sobreviver a todas as
mortes e ressurreies parciais a que as reformas de ensino a tem submetido,
o nome do nosso saudoso mestre e amigo tambm sobreviver ao seu prematuro e inesperado desaparecimento.
Jornal do Brasil, 6/4/1962.
3. Dois Textos da Professora Amelinha.
23 de maio de 1962
Nosso querido Mestre Prof. Faria emudeceu. O corao humano
deixou de pulsar, mas persiste a irradiao de sua bondade que nos vai envolvendo pela vida afora, para converter a ausncia dolorosa em uma presena de pensamento, de esprito, de vida verdadeira.
Seus livros, que compem obra douta e esclarecida, ficaram-nos a jorrar
doutrina e autenticidade. Professores ilustres respeitaram-na e louvaram-na,
no Brasil e no estrangeiro. Graas a ela, non omnis morietur, ele no morrer
de todo. Assim conforta-nos o poeta Horcio, quando a saudade convida-nos
a rememorar virtudes do Mestre que se despediu, no apogeu de sua carreira,
com um entusiasmo e um fervor que eram riqueza de sua personalidade. Bem
posso estender sua vida aquelas reflexes que Coelho Neto dirigia, fraternalmente, ao Dr. Carlos de Laet (tambm professor):
Felizes os que chegam tarde da vida com a mesma alegria, com a mesma sade
espiritual e a mesma fra de nimo com que nela amanheceram. Quantos logram
tal ventura? Raros e esses so os privilegiados de Deus.
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Vi-o, a Ernesto Faria, aps as canseiras das aulas dirias, lutar contra o
tempo, no preparo sfrego de sua tese de concurso para a ctedra de latim do
Colgio Pedro II, A pronncia do latim, novas diretrizes no ensino do latim:
era o ano de 1933. Escusa dizer que, com 27 anos de idade, era muita petulncia sua querer dar diretrizes ao ensino de uma lngua que, com razes numa
tradio multissecular, fora tambm a primeira lngua de cultura ensinada no
pas sob diretrizes mais que sabidas e consabidas. Quem era aquele magro
professorzinho para propor nova didtica, mais que isso, novas diretrizes,
novas idias-foras para o ensino, o aprendizado, o uso moderno do latim? E
a haver uso que uso?
Qualquer sntese que se tente fazer da luta docente de Ernesto Faria fica
sem sentido, se no se buscar resumir seu pensamento sobre o ensino, o estudo
e o uso do latim na contemporaneidade sobretudo porque seu pensamento se
tornava maduro a esse respeito exatamente quando a crise do latim chegava
ao auge no Brasil.
Ernesto Faria estava, j ento, convencido de que eram profundamente
negativas as seguintes posturas em face do latim: 1) ensin-lo a reboque da
tradio eu diria mais rigorosamente a reboque da inrcia com que se
amolecera dentro da Cria romana e da docncia nos seminrios catlicos
mundo em fora; 2) ensin-lo como lngua viva e, por conseguinte, como coisa
que tivesse em si mesma seu fim, j que duma lngua viva o que se deve querer
o seu manejo, oral e escrito (se lngua viva de cultura) para as situaes
sociais concretas em que os interlocutores (ou interscribentes) necessitam dela
para se comunicarem. Ao invs disso, Ernesto Faria postulava: 1) no se buscar falar nem se buscar escrever o que j no se fala nem se escreve
e onde se fala e se escreve o latim um reduto que quase nada mais tem do
latim, a Igreja e certas universidades que pediam teses em latim: no mnimo, a
havia ressalvadas as mensagens universalistas papais para povos de todas
as lnguas um exibicionismo aristocrtico e elitista classificatrio, sem possvel proveito seno para os iniciados, muito reduzidos num mundo em democratizao do saber; 2) era a insistncia em querer fazer falar e escrever latim
que transformava esse ensino em algo irracional sensibilidade e inteligncia
dos estudantes, violentados por essa total gratuidade j que, como exerccio mental, dizia-se, o xadrez, a lgica, as matemticas dariam (e davam)
mais; 3) entretanto, o latim era, efetivamente, a chave para uma aquisio
constelar da lngua portuguesa de cultura e, com ela, das lnguas romnicas de
cultura e, com elas, das lnguas de cultura, sem falar da abertura cultural que
havia em saber ver as sementes do presente no passado, em abundncia no
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No citarei nomes dos que se fizeram seus discpulos, numa linha que vem
de Antenor Nascentes e, antes, de Fausto Barreto e por ele continuada.
Temo omitir. Mas estou certo de que a muitos deles que lerem esta nota lhes
ocorrero traos inconfundveis do mestre e amigo que foi Ernesto Faria, to
atento formao cultural de cada um e ao mesmo tempo to solidrio com a
vida material, espiritual e sentimental de cada um.
A bibliografia de Ernesto Faria, aqui estampada, no busca ser exaustiva,
tanto fato que o primeiro ttulo, acima referido, dela no consta a sua tese
de concurso.
Nessa bibliografia ver-se-o as trs vertentes do seu trabalho autoral. O
que no se ver, porm, a adequao de cada texto ao projeto que o animava
fazer do latim e sua cultura um instrumental cultural que situe o estudioso e o
homem no universo da cultura contempornea sempre que esta vise a um tipo
de universalidade humanstica que no busque uma tecnificao que tangencia
a pulverizao dos homens em cada homem.
Os livros os livrinhos, disse o fabulista tm seu destino. Alguns morrem, mas foram ou no foram fecundos. H, no acervo autoral de Ernesto
Faria, alguns que pulsam de vitalidade e que continuam vivos para quantos
queiram no apenas estudar o latim e sua cultura, mas tambm buscar suas
conexes com o portugus e as lnguas de cultura e o mundo moderno. A reedio do seu Dicionrio escolar latino-portugus, assim, relevante e auspiciosa para quantos, muito alm e muito aqum do escolar, se interessem por
aqueles fatos de cultura.
Rio de Janeiro, 31 de janeiro de 1982.
Antnio Houaiss
(da Academia Brasileira de Letras)
6. In Memoriam
Ernesto de Faria (1906-1962)
Avec Ernesto de Faria la latinit perd un de ses rpondants les plus srs et
LAmrique latine um des reprsentants les plus minents de la science
mondiale.
Ds sa vingtime anne, Ernesto de Faria inaugurait sa carrire
denseignement au Collge Pedro II de Rio de Janeiro, et peu aprs entrait au
Lyce Franais comme professeur de latin. Ses premiers cours le dsignrent
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13. Agradecimento
No posso deixar sem registro um agradecimento muito especial a Maria
Dulce de Faria, a filha que me franqueou a leitura da preciosa documentao,
relicrio da famlia, de que muito me vali.
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Notas e Referncias
(1) COSTA, Ada. A vida e a obra de Ernesto Faria, in: Boletim de Estudos Clssicos,
n VI 1967, S.Paulo, . 29-41.
(2) PERRET, Jacques. A Atualidade dos Estudos greco-latinos, F. Briguiet & Cia, Editores, Rio de Janeiro, 1937.
(3) CHEDIAK, Antnio Jos. Sntese Histrica da Academia Brasileira de Filologia
(1944-1949). Primeira parte, indito, Rio de Janeiro, 1999.
(4) ELIA, Slvio. Ensaios de Filologia e Lingstica, 2 edio, refundida e aumentada, Grifo/MEC, Rio de Janeiro, 1975.
(5) TUFFANI, Eduardo. Repertrio Brasileiro de Lngua e Literatura Latina (18301996). bis, Cotia, SP, 2006,
(6) COSERIU, Eugnio. Tradio e Novidade na Cincia da Linguagem. Estudos de
Histria da Lingstica, traduo de Carlos Alberto da Fonseca e Mrio Ferreira,
Presena/Editora da USP, Rio de Janeiro, 1980.
(7) VALLE, Rosalvo do. Os estudos clssicos na Universidade, Cadernos de Letras da
UFF, n 1, Niteri, RJ, 1990.
(8) FARIA, Ruth Junqueira de. Lvio Andronico: a obra, a lngua, a mtrica. Tese de
Livre-Docncia, Niteri, Universidade Federal Fluminense, 1975.
(9) VALLE, Rosalvo do. Consideraes sobre a Peregrinatio Aetheriae. Tese de
Livre-Docncia, Niteri, Universidade Federal Fluminense, 1975.
(10) In: ARAJO, Antnio Martins de. ndices da Revista Filolgica. (Arquivo de
Estudos de Filologia, Histria, Etnografia, Folclore e Lngua Literria). ANPOL
GT Historiografia da Lingstica Brasileira Indexao das Revistas Filolgicas
Brasileiras do Fascculo XX.
(11) Sobre Jorge Henrique Agostinho Padberg Drenkpol (1877-1948) e sua espantosa
erudio, ver Elogio de Padberg Drenkpol no discurso de posse de Gldstone
Chaves de Melo como seu sucessor na Academia Brasileira de Filologia In:
MELO, Gldstone Chaves de e SILVA NETO, Serafim da. Conceito e Mtodo da
Filologia, edio da Organizao Simes, Rio, 1951, p. 59-85.
No se veja malcia ou descortesia na saudao em latim (e lida na pronncia reconstituda que Ernesto Faria defendia e propagou: verba latina...
Farianum in modum pronuntianda) o que destoa frontalmente da nova
orientao de que Ernesto Faria o lder entre ns. Trata-se, na verdade, de
um encontro cordial, por ventura uma despedida, da orientao tradicional, que
sai, (do professor egrediens) com a nova orientao, que chega (do professor
ingrediens). Padberg Drenkpol foi fiel sua slida formao humanstica europia tradicional, revista pelas novas orientaes lingsticas e metodolgicas,
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Rosalvo do Valle
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51
2o. 1As vogais eram distinguidas pelo trao pertinente de altura (quantidade)2
a#, a(, e#, e(, i #, i (, o#, o(, u#, u(
O Prof. Ernesto Faria3 cita Quintiliano: Longa esse duorum temporum,
breuem unius etiam pueri sciunt. (A longa ter a durao de dois tempos e a
breve a de um at as crianas o sabem).
3o. Os ditongos eram: /au/ aurum; /ae/ caelum; /oe/ poena; /eu/ Orpheus
e, rarssimo /ui/ cui.
4o. Quanto s consoantes, h de observar-se: a letra c representava o
fonema /k/ (oclusivo surdo) mesmo diante de /e/ ou /i/; a letra g o fonema
oclusivo sonoro mesmo diante de /e/ ou de /i/.
5o. O h no constitua um fonema, era um sinal de aspirao em Roma
para representar o esprito forte da lngua grega, usado pela elite culta, como,
por exemplo, na palavra , escrita hora, com aspirao da vogal inicial.
Era denominado, em latim, ah (com h aspirado). Na baixa latinidade pronunciou-se como um /k/, da a escrita em certas palavras, como nichil por nihil.
O nome da letra representado, assim, em vrias lnguas ach (ak) e hacca: no
italiano acca, no francs hache, no espanhol hache e, por imitao da pronncia aspirada, ag, no portugus.
6o. O /m/ inicial e medial era uma oclusiva labial nasal, sendo, no final da
palavra, um fonema tnue, mas consonantal, como demonstra a mtrica latina,
seguindo-se-lhe uma consoante.
O /n/ era um fonema labiodental articulado, inclusive, no final da palavra.
7o. O /r/ era um fonema pr-palatal cuja vibrao levou os romanos a
denominarem-no canina littera.
8o. O /s/, inicial, medial, intervoclico ou final, representava um fonema
linguodental sibilante surdo. Sabe-se que, desde o sc. IV a.C. , o /s/ intervoclico, depois de sonorizar-se, sofreu rotacismo (cf. amase > amare). Ainda no
perodo clssico esse fonema era representado tanto pela grafia s- como por
ss-: caussa, causa; cassus, casus. Comprova-se esse fonema surdo tambm
pela transcrio de palavras latinas no grego: Sulpicius em grego v;
Caesar, grego: v.
Niedermann Prcis de Phontique Historique du Latin, Paris, Librairie Klincksieck, 1906, p.7.
Herman, Joseph Le Latin Vulgaire, Paris, Presses Universitaires de France, 1970, p. 36.
52
9o. O fonema /t/ era pronunciado como oclusiva linguodental surda, mesmo no grupo ti diante de vogal: Iustitia.
10o. O /u/ , grafado V, era emitido com a boca apertada e os lbios pouco
esticados para a frente4
Os gramticos latinos comparam a sua pronncia ao ditongo grego oucomo na transcrio do Latim para essa lngua: Epicuros = grego Ev.
Representa um fonema consonantal fricativo labiovelar5, como em Valerius,
grego v.
A cultura helnica introduziu entre os intelectuais a aspirao das consoantes gregas: , representada por ch-, , representada por -ph-, , representado por th-, como nas palavras sepulchrum, sulphur, thesaurus.
Por outro lado, houve os que combateram a chamada pronncia restaurada, defendendo o uso da pronncia tradicional. Entre esses opositores destacamos dois eminentes mestres: Nlson Romero e Cndido Juc Filho.
Cndido Juc6 no considera o trao de intensidade distintivo no Latim,
como apregoaram lingistas, a saber: Lindsay, Laurand, Brugmann, Seelmann.
Considera pertinente o acento de altura, lembrando, por exemplo, passagem de
carta de Ccero em que esta cita a confuso de pronncia entre a palavra latina
bini e a grega bivnei, concluindo ser o acento latino-grego meldico, ou de altura.
evidente a pertinncia do trao de altura, diferenciador de palavras,
como: ve(nit / ve#nit (presente / perfeito), ma(lum (o mal) / ma#lum (ma), ro(sa
(nominativo) / ro#sa (ablativo); po(pulus (povo) / po#pulus (choupo, tipo de rvore). Essa explicao sobre a pronncia na poca clssica nos d J. Herman:
La dure tait un trait phonologiquement pertinent...7. Mais adiante, nas pginas 44 e 45, Herman afirma: No resta dvida de que o acento latino, depois
do perodo clssico, sofreu modificaes, sendo o trao de altura, no curso da
evoluo, substitudo pelo acento de intensidade.
Sobre o exemplo geralmente apresentado da palavra Ccero, transcrita
em grego v, com capa em lugar de sigma, explica o Prof. Juc que se
trata de transliterao, no de igualdade de pronncia. Acresce o exemplo de
palavras latinas escritas com /f/ e transcritas em grego por (), o que no
significa que soavam igualmente. Como abonao, cita passagem de Meillet:
53
Les oclusives non aspires, soit sourdes (pi, tau, capa), soit sonores (beta,
delta, gama) du grec ne devaient pas rpondre exactement a P, T, C et B, D, G
du latin.8
So bem fundamentados os argumentos do mestre Cndido Juc Filho,
grande conhecedor da cultura e lngua latinas e gregas.
Aproveito o ensejo para fazer um reparo, a bem da justia, a uma afirmao feita pelo Prof. Juc desairosa a Serafim da Silva Neto, na pgina 46.9 Ali
critica a Serafim por ter arrolado entre os nomes masculinos em us, a palavra
vinus, sabendo-se que pertence ao gnero neutro: vinum. Realmente, no Manual de Gramtica Histrica Portuguesa, de 1942, na p. 18, encontramos a
seguinte lio: Esse latim corrente lusitnico caracterizava-se pela simplicidade: nele no havia preocupao literria pois era uma linguagem usual. O vocabulrio no contava palavras de cunho literrio, mas apenas designativas de
objetos e cousas cotidianas. A, entre os vrios exemplos, est a palavra vinus,
forma masculina.
A citao de Serafim fidelssima; refere-se ao latim corrente, o sermo
usualis em que a tendncia ao desaparecimento do gnero neutro j se configurava. Os nomes neutros no singular passavam para o masculino, enquanto,
no plural, terminados em a, para o feminino. antiga a lio de Grandgent:
En latn popular y tardio esta tendencia (neutros que pasaron a ser masculinos) era muy marcada10; e cita balneus, caelus, fatus, lactem, vasus, vinus etc.
Encontramos em Petrnio farta exemplificao do gnero neutro substitudo pelo masculino, na obra Satiricon.11 Eis alguns: caelus hic; totus caelus;
Vix me balneus calfecit; Vasus fictilis.
A pronncia reconstituda no leva em conta os aspectos diatpicos e
diastrticos. A aspirao do h, a pronncia das consoantes aspiradas do grego:
(ph), (ch), (th), por exemplo, s eram enunciadas na linguagem culta dos
homens de letras e, assim mesmo, nos centros de erudio.
Diz-nos Serafim da Silva Neto que o h no soava desde o tempo de
Ccero. Escrevia-se mas no se pronunciava.12
Muitas palavras tinham pronncia e forma diferentes, como nas seguintes
situaes fnicas:
8
Meillet, A. Esquisse dune Histoire de la Langue Latine, Paris, Librairie Hachette, 1928, p. 92.
Op. cit.
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11
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extinguiu. No se pode recuar no tempo. Alis, lembra Romero, j os gramticos romanos declaravam que seus contemporneos pronunciavam diversos
fonemas de maneira diferente do perodo da idade urea.18 Explica, tambm,
que mais tarde as pessoas cultas usaram o Latim como lngua de cultura, sendo
Ccero o modelo da linguagem exemplar, mas sem pretenderem reviver a pronncia daquela poca. Defende a pronncia tradicional por no ser ela criada
teoricamente nos gabinetes, mas por representar a pronncia geral, comum, do
Latim que chegou at ns. A rigor, no aceita a expresso pronncia clssica,
uma vez que classicismo traduz um gnero da palavra artstica, literria, no
prosdica. Apia-se, a, na definio de Jean Bayet: Le classicisme est un
quilibre, de pense, de sensibilit et de forme, qui assure loeuvre dart un
intrt humain et une diffusion universelle.19
Romero afirma que muitos confundem teoria com realidade. No se tem
noo perfeita da quantidade das vogais e das slabas na pronncia daquele
perodo ureo. Aduz as palavras de Rebelo Gonalves: Na prtica (a cincia)
no conseguiu fazer dessa leitura uma chapa integral, porque certo que no
sabemos ler o Latim com rigor absoluto.
A grande polmica sobre a pronncia do Latim, no campo didtico, ser
til aos discentes, tanto no ensino escolar como no ensino universitrio? pergunta Slvio Romero.
Para responder a essa pergunta, traz a pblico lio de A. Meillet: Dans
lenseignement secondaire, la prononciation traditionnelle a sans doute plus
davantages que dinconvnients... En matire de prononciation, il ny a jamais
de tradition continue dun tat ancien, mais, dune part, volution dans le parler
courant, de lautre, restauration discontinue dans la langue savante... Un Franais
ne peut, sans un dressage qui serait long et difficile, prononcer vraiment le latin
lantique.20
Constatamos, assim, que a preferncia por uma e por outra pronncia do
Latim mereceu a defesa de renomados estudiosos nacionais e estrangeiros.
Entre ns, destacamos, a favor da pronncia restaurada, Serafim da Silva Neto,
Ernesto Faria et alii. A favor da pronncia tradicional firmou-se Nlson Romero
e, contra a restaurada, posicionou-se Cndido Juc Filho. No nos cabe tomar
posio.
18
19
20
56
Bibliografia
FARIA, Ernesto. A Fontica Histrica do Latim, Rio, Livraria Acadmica,
1955.
______. Manual de Pronncia do Latim, Rio, Briguiet Editores, 1938.
GRANDGENT, C. H. Introduccin al Latin Vulgar, 2 a ed., Madrid,
Publicaciones de la Revista de Filologa Espaola, 1952.
HERMAN, Joseph. Le Latin Vulgaire, Paris, Presses Universitaires de France,
1970.
JUC (filho), Cndido. A Pronncia Reconstituda do Latim, Rio de Janeiro,
EPASA, 1943.
LAURAND, L. Manuel des tudes Grecques et Latines, Tomo III, Paris,
ditions A. et G. Auguste Picard et Cie, 1953.
MAGNE, A. In: Graeca et Latina, n 6/7, rgo da Unio Nacional de Cultura
Greco-Latina, 1960.
MEILLET, A. Esquisse dune Histoire de la Langue Latine, 5a ed., Librairie
Hachette, 1948.
NIEDERMANN, Max. Prcis de Phontique Historique du Latin, Paris,
Librairie C. Klincksieck, 1906.
21
57
60
os fios da teia, as palavras, pelo seu poder de nomear, tambm podem ser
consideradas uma espcie de instrumento (organon) que serve para desembaralhar ou destrinar as substncias (diacriticon tes ousias), impondo certa
organizao ao mundo supra-sensvel das Idias. Uma vez separados, os seres
que se nomeiam podem ser diversamente entrelaados no espao do dizer ou
enunciar (legein), o que permite a construo do raciocnio, a busca da verdade e a instaurao do processo interlocutivo com o propsito de instruir ou
informar. Pelo ato de dizer, o indivduo sempre denomina as coisas para si
mesmo ou para outrem. Deste modo, instaura-se o processo dialgico entre
diferentes sujeitos ou o dilogo da alma consigo mesma. Para Plato, o
dialogismo princpio fundador da linguagem e meio fundamental para a ao
do filsofo: falar, pensar e filosofar so, por excelncia, formas de dialegesthai.
Para compreender o ponto de vista de Plato sobre a linguagem, necessrio pinar e confrontar informaes que se encontram dispersas em vrios
dos seus textos. Tambm necessrio relembrar que a segunda navegao,
mais rdua e difcil, proposta por ele no Fdon, deve conduzir o sujeito
cognoscente ao mundo das formas puras ou Idias2, que existem per se (to
auto) e so realidades anteriores s coisas do universo sensvel. Originrias de
uma dimenso metafsica, que no Fedro (247c-e) corresponde a um lugar
supraceleste (huperouranios topos), as Idias se apresentam como algo
(ousia) unitrio e indestrutvel; algo desprovido de qualquer materialidade; algo
que mantm com os objetos do mundo fsico apenas uma srie de relaes que
se imbricam ou se complementam: precedncia e causalidade; modelo e imitao; presena, participao e comunho. Assim, a Idia vista como princpio
e causa das coisas sensveis, a sua ratio essendi ou seu pressuposto de inteligibilidade. O mundo da empeiria apenas mimetiza modelos preexistentes, formas arquetpicas. A participao, por sua vez, pensada como a presena da
unidade na variedade: trata-se do reflexo de uma Idia que impe determinada
ordem ao caos de nossas incessantes experincias; um ponto comum (limite)
por que se identificam diversos seres apreensveis pelos sentidos em um
continuum aberto e interminvel, que se perde na liberdade do Infinito.
Na Stima Carta (342a-b), Plato apresenta relevante sntese das suas
vrias e variadas reflexes sobre a relao entre o ser, o saber e a linguagem.
Como bem se sabe, Plato atribui ao inteligvel unitrio, per se existente, o nome neutro Eidos
ou o seu equivalente feminino Idea (Forma, Idia). De modo geral, eidos corresponde, em
latim, ao termo species.
61
62
63
Em consonncia com o pensamento platnico, Aristteles tambm descortina, com toda clareza, as dimenses objetiva (referencialidade) e intersubjetiva (alteridade) da linguagem. Conforme ele afirma na Retrica (I, 1358b), o
discurso pressupe obrigatoriamente trs seres ou pessoas: o ser que fala (1
pessoa), o ser a que se fala (2 pessoa) e o ser de que se fala (3 pessoa).
Trata-se, pois, de uma tricotomia que tem fundamento justamente no princpio,
antes abordado por Plato (Crtilo, 388b), de que as palavras essencialmente
existem para estabelecer relaes entre os sujeitos falantes, e destes com o
mundo dos objetos. Em outro texto (Peri Psuches, 420b e 435b), Aristteles
igualmente afirma que a capacidade de expresso verbal serve para significar
alguma coisa para outrem, acrescentando que o seu exerccio tem por finalidade ltima a procura do Bem, o que significa a busca do aperfeioamento do
indivduo, a realizao, em sua plenitude, da humana condio nesta transitria
existncia na Terra.
64
65
dos nomes era com freqncia considerada uma espcie de sinete que se aplicava diretamente aos corpos singulares e sempre cambiveis das coisas apreendidas pelos sentidos6. Tal relao dicotmica atribuda ao processo lingstico, que supe uma espcie de realismo direto, foi veementemente criticada
por Plato e por Aristteles, pois desqualificava a linguagem como meio de
encontrar e manifestar a verdade. Conforme acima explicado, para os dois
filsofos as vozes das palavras representam de imediato algo unitrio ou invarivel, que, por sua vez, remete aos variados e infinitamente variveis estados
de coisas da realidade. Surgem, desse modo, os lineamentos de uma teoria
semiolgica de base triangular, cuja sntese se pode expressar pelo princpio
medieval de que uoces significant res mediantibus conceptibus7.
66
(1450b e 1456b), onde ele precisamente arrola oito partes da expresso (mere
lexeos ), entre as quais aparecem os stoicheia (fonema / letra) e a slaba.
interessante observar que em Commentarium in librum aristotelis
perihermeneias, Bocio (fins do sc. V), traduz o termo lexis por locutio, a
que confere a definio de uox articulata, entendendo por uox uma espcie
de sonus que peculiar aos seres animados e suscetvel de carrear alguma
significao. Interpretando com acerto o texto aristotlico, Bocio reconhece
que algumas partes locutionis (mere lexeos) no so portadoras de valor semntico: Locutio namque non in solis significatiuis uocibus constat sed
supergrediens significationes uocum ad articulatos sonos usque consistit.
Com os pensadores esticos que viveram entre os sculos III a.C. e I a.C,
os termos lexis e logos ganharam novos empregos na descrio da linguagem.
Segundo informaes colhidas em Sexto Emprico (sc. II d.C.) e em Digenes
Larcio (sc. III d.C.), os esticos empregavam logos para indicar uma voz
significativa (phone semantike), ao passo que lexis indicava apenas uma
voz articulada (phone enarthros)8, que podia ser significativa, como hemera
[dia] ou no-significativa (asemantos), como blitri (espcie de onomatopia).
Ao valor semntico associado lexis, os esticos costumavam dar o nome de
lekton. Nesta linha de entendimento, logos sempre corresponde, como sucede
com o signo saussuriano, a uma entidade de duas faces, uma sensvel (lexis) e
outra inteligvel (lekton)9. Enquanto componentes do logos, a face sensvel ou
corprea um significante (semainon); a face inteligvel ou incorprea um
significado (semainomenon). Em conjunto, representam alguma coisa do mundo extralingstico (tuchanon, pragma). Em resumo, temos:
phone no-articulada
phone articulada ......................... (lexis)
lexis sem lekton
lexis com lekton........................... (logos)
interessante comparar a classificao acima com outra anterior, que se
pode inferir do pensamento aristotlico. Na opinio de Aristteles (Peri Psuches,
II, 420b; Peri Hermeneias, II, 16a), alguns dos sons produzidos pelos seres
animados, (psophos empsuchou) podem ser usados com valor de sinal
8
A voz articulada era sempre vista como phone engrammatos, quer dizer, como emisso
sonora suscetvel de ser reproduzida ou representada por letras.
Os termos logos, lexis e lekton ressurgem nos textos de Santo Agostinho (sc. IV d.C.) sob as
formas de uerbum, dictio e dicibile, respectivamente. A distino agostiniana entre uerbum
mentis (cordis) e uox uerbis tambm parece ter as suas razes na oposio estica entre logos
endiathetos e logos prophorikos.
67
realidade (pragma)
10
Para Aristteles, o sinal (semeion) algo que mantm com aquilo que sinalizado (semeioton)
uma relao implicativa. Conforme se infere do que ele diz nos Primeiros Analticos (II, 27,
70a ), a coisa que faz supor a existncia de outra , seja anterior ou posterior, , desta outra, um
sinal. Por conseguinte, o sinal sempre uma coisa que leva ao conhecimento de alguma outra.
Como preferiam dizer os esticos, o semeion serve para revelar o semeioton. Assim, a fumaa
funciona como sinal de fogo; uma cicatriz, como sinal de um antigo ferimento. fato conhecido
que a doutrina estica a respeito dos sinais (inclusive exemplos) reaparece na obra de Santo
Agostinho.
11
12
Em Aristteles, o termo semainomenon aparece, por exemplo, na seguinte passagem da Retrica (III, 1405b): kallos de onomatos to men, hosper Likumnios legei, en tois psophois e toi
semainomenoi... [ como diz Licnio, a beleza de uma palavra pode estar nos seus sons ou no
seu significado...]. Tambm nos textos aristotlicos comum o emprego de semainon para
indicar o que significa (significante).
68
69
13
Entre os primeiros gramticos latinos, a definio da palavra (uerbum), como a menor unidade
significativa, aparece com todas as letras em Varro: Verbum dico orationis uocalis partem,
quae sit indiuisa et minima. (De lingua Latina, X)
70
15
Releva notar que Quintiliano, autor de sc. I d.C., atribui a Aristteles apenas a distino entre
onoma, rhema e sundesmos ( Inst. Orat., I, 4). O mesmo j antes fizera Dionsio de Halicarnasso
(sc. I a.C.), que categoricamente afirma, em seu tratado sobre a combinao das formas
verbais, que Aristteles e alguns seus contemporneos, como Teodeto, s distinguiram as trs
referidas classes de palavras.
71
Em oposio a onoma, Aristteles definiu rhema como uma unidade significativa com marca temporal e como constituinte nuclear do predicado. Esta
segunda parte da definio permitiu-lhe colocar na classe dos rhemata, conforme j fizera Plato, certos adjetivos que em grego assumem freqentemente a funo de predicado, como leukos, branco, e dikaios, justo (cf. leukos
ho hippos, o cavalo branco). Considerando que neste caso o verbo ser na
terceira pessoa do presente est subentendido e sempre suscetvel de insero,
pode-se dizer que tais adjetivos tambm so portadores de referncia temporal.
Aristteles emprega o termo ptosis para indicar variaes gramaticais a
partir de certas formas da palavra tomadas como bsicas ou primitivas. Na
16
O duplo sentido de onoma, entre os gregos, tambm se encontra em uerbum, entre os gramticos latinos. Conforme explica Quintiliano (Inst. Orat., I, 5), toma-se uerbum ora em sentido
genrico, ora em sentido especfico. Genericamente, designa qualquer palavra, equivalendo a
uox, locutio ou dictio; especificamente, aplica-se a determinada parte da orao, como lego
ou scribo.
72
73
Na Techne, o adjetivo (epitheton) visto como uma espcie de nome (onoma) que se junta a
outro nome. Tal interpretao, que implica a adoo de uma perspectiva sinttica, est ligada
distino medieval entre nomen substantivum (que significa per modum per se stantis) e
nomen adiectivum (que significa per modum adiacentis).
74
5.
6.
7.
8.
ex: docilis
ex: doceo
Sobre Varro, diz Santo Agostinho (De Ciuitate Dei, VI, 2), reiterando opinio de Terenciano
Mauro (sc. II d.C.): leu tanto, que no se sabe como teve tempo para escrever; escreveu
tanto, que difcil acreditar que algum possa ler toda a sua obra. Conforme j evidenciado
por vrias pesquisas, Santo Agostinho no se limitou a reconhecer e admirar o talento de
Varro; tambm tirou largo proveito das suas idias.
75
ex: docens
ex: docte
ex: Romulus
ex: mensa
ex: ego
ex: quis?
Utilizando um critrio que hoje se costuma chamar de funcional ou semntico-sinttico, Varro admite que as palavras, ao se combinarem, podem
assumir o papel de termo primrio (nome substantivo e verbo) ou secundrio
(nome adjetivo e advrbio), como sucede nos seguintes exemplos: homo doctus;
scribit docte.
Sobre as divises acima apresentadas, vejam-se os seguintes comentrios
do prprio autor:
Quod ad partis singulas orationis, deinceps dicam. Quoius quoniam sunt diuisiones
plures, nunc ponam potissimum eam qua diuiditur oratio secundum naturam in
quattuor partis: in eam quae habet casus et quae habet tempora et quae habet
neutrum et in qua est utrumque. Has uocant quidam appellandi, dicendi,
adminiculandi, iungendi. Appellandi ut homo et Nestor, dicendi ut scribo et lego,
iungendi ut que19, adminiculandi ut docte et commode.
19
76
Appellandi partes sunt quattuor, e quis dicta a quibusdam prouocabula quae sunt
ut quis, quae; uocabula ut scutum, gladium; nomina ut Romulus, Remus;
pronomina ut hic,haec. Duo media dicuntur nominatus; prima et extrema articuli.
Primum genus est infinitum, secundum ut infinitum, tertium ut finitum, quartum
finitum.
(De lingua Latina, 8. 23)
77
5. Conseqncias e concluso
Observados da situao privilegiada do presente, no difcil apontar equvocos e lacunas nos trabalhos sobre a linguagem realizados pelos antigos gregos e romanos. Desde os fins do sc. XIX, muitos foram os que assumiram
uma atitude questionadora em relao ao quadro tradicional de classificao de
palavras. Como lembra Colombat (1988:5), o resultado dessa atitude, depuis
longtemps critique, a t de considrer lapproche du langage em termes de
parties du discours comme dpass, car celui que sy engage parat senfermer
dans une problematique dfinitivement obsolte. Todavia, gerativistas, estruturalistas ou funcionalistas, de diferentes orientaes, continuam a falar em
nome, verbo, conjuno, etc., o que evidencia que a doutrina e a terminologia
gramaticais paulatinamente forjadas pelos antigos continuam a alimentar as
modernas teorizaes e as atuais descries das lnguas espalhadas pelo mundo. Ademais, no se deve ignorar que as palavras so objetos classificveis.
Trata-se de uma possibilidade terica que no se pode desprezar pela simples
constatao de deficincias ou insuficincias dos critrios classificatrios usados no passado: h que se buscar novos critrios ou melhor avaliar e aproveitar
os previamente adotados.
Resgatando, por exemplo, a tricotomia onoma, rhema e sundesmos, estabelecida por Aristteles, e retomando sugestes que se encontram em Minerva,
obra do sc. XVI, escrita por Sanctius (Snchez de las Brozas), pode-se moldar um sistema em que as palavras so classificadas no apenas enquanto
signos, entidades com significante e significado, mas tambm como objetos
contveis. No primeiro caso toma-se como critrio de classificao esta ou
aquela qualitas da palavra (determinada propriedade semntica, morfolgica
ou morfossemntica); no segundo, leva-se justamente em conta a noo de
quantitas.
78
Para ser adequada, toda classificao deve atender a trs requisitos lgicos: a) apoiar-se em critrio homogneo e relevante; b) ser exaustiva; c) observar o princpio da irredutibilidade. Enquanto modi significandi, as palavras
carregam em si um contedo genrico e irredutvel (valor categrico) associado a outros traos semnticos particulares (valor especfico). Pelo modo genrico de significar, as palavras pem em relevo a essncia, a existncia ou as
relaes dos seres pertencentes ao espao infinito do real e do imaginrio, que
elas reticulam e representam. Assim, com amparo no seu valor categrico,
possvel distribuir primariamente as palavras em trs classes:
1. Apelativo (Palavra que apenas desvela a essncia dos seres, isto ,
o qu permanente e imutvel das coisas.)
2. Verbo
(Palavra que indicia certo modo de existncia dos seres,
que os concebe como evento, como algo suscetvel de
ocorrncia e mudana na linha do tempo.)
3. Conectivo (Palavra que exprime relao entre os seres.)
Associando-se classificao acima o critrio da quantificao, pode-se
dicotomicamente agrupar as palavras em um inventrio aberto (palavras
lexicais) e em um inventrio fechado (palavras gramaticais). Ao primeiro
grupo pertencem os verbos; ao segundo, os conectivos. Os apelativos entram
nos dois grupos, repartindo-se em nomes (unidades lexicais) e pronomes
(unidades gramaticais). Cabe ressaltar que o nome e o pronome, a par da
diferena quantitativa, obviamente diferem entre si no que diz respeito ao modo
especfico de significar: a estes, ao contrrio do que sucede com aqueles, normalmente se atrelam a noo de pessoa do discurso, a funo vicria e o valor
ditico/anafrico.
vista do exposto, possvel configurar o seguinte quadro:
INVENTRIO ABERTO
INVENTRIO FECHADO
Nome
Verbo
Pronome
Conectivo
Confrontando a diviso de palavras acima sugerida, a que por mera conveno se dar o nome de classificao bsica, com a diviso proposta pela
NGB amplamente empregada nas descries tradicionais do Portugus
pode-se estabelecer entre ambas (excluindo, por ora, a interjeio) as seguintes correlaes:
Classificao Bsica
Classificao da NGB
Nome
Substantivo
Adjetivo
Numeral
Pronome
Pronome
Artigo
Advrbio
Verbo
Verbo
Conectivo
Preposio
Conjuno
79
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Evanildo Bechara
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Evanildo Bechara
surpreendente o clima emocional e hostil em torno da presena no portugus brasileiro falado e escrito de estruturas que contm ir+ estar+
V____NDO como nas frases: Vou estar transferindo R $ 3.000,00 de sua
conta bancria e Ele vai estar dormindo. O uso do gerndio nas referidas
frases chamado de gerundismo. Os formadores de opinio rotulam tais
construes de terrvel praga, vcio, maldito gerndio, modismo,
gerndio bastardo, gerndio desproposital, patinho feio do estilo, samba
do gerndio doido e o gerndio assassino. Com respeito a este ltimo, cabe
a pergunta: o que exatamente o gerndio estaria assassinando?
O discurso antigerundista2 constri um quadro no qual a prpria sade do
idioma nacional questionada. O emprego das metforas sugere um idioma
doente e usurios infectados, que lembra uma verdadeira epidemia, fora
1
Quero agradecer a leitura crtica dos seguintes colegas: Gladis Massini-Cagliari, Marli Quadros Leite, Renato Miguel Basso e Sumiko N. Ikeda. As falhas so da minha responsabilidade.
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sexta seo, especulo se o uso gerndio deve ser considerado um erro e pergunto o que um erro realmente. Na stima, teo comentrios sobre a crena
por parte de muitos usurios de que a ocorrncia do gerndio se deve influncia da lngua inglesa em contato com o portugus. Na ltima parte do trabalho,
apresento algumas concluses que decorrem da anlise.
90
Estou espalhando, Estava espalhando, Estive espalhando, Estivera espalhando, Estarei espalhando, Estaria espalhando, esteja espalhando, estivesse espalhando, estiver espalhando, estando espalhado,6 estar espalhando.
Entre os exemplos arrolados por Mattoso Cmara, Estando espalhado verdade que o
verbo principal no est no gerndio. Mesmo assim, o gerndio em si em portugus muito
produtivo em comparao com o francs, holands ou alemo. Devo a observao a Renato
Miguel Basso.
Existem gerndios perifrsticos no portugus contemporneo como: Maria est/esteve/estar/estaria trabalhando e o no perifrstico que tm a forma composta: No tendo conseguido
dormir, fui escaldar um ch na cozinha e dei de cara com a Rosa e a Idalina. (Otto Lara
Resende) e a forma simples: Cai a chuva estrepitando.(F. Varela). Para mais dados, ver Celso
Cunha, Gramtica Moderna. Belo Horizonte:Editora Bernardo Alves, 1970, pgs. 182-183.
Um dos livros citados por Bechara de autoria de Coseriu El Sistema Verbal Romnico.
Mxico:Siglo Veiteuno, 1996.
91
Est mais de acordo com o gnio da lngua portuguesa (nfase minha) o uso do
gerndio com auxiliar estar ou infinitivo com a para traduzir atos que se realizam
paulatinamente, em vez do uso de forma simples do verbo, como faz o francs
(Jeanne nous regarde / Joana est-nos olhando ou a nos olhar (p. 232)).
O francs tem o gerondif: Ils vont chantant e En attendent le plaisir de vous rencontrer...,
mas no uma forma perifrstica como tre (estar)+ gerndio.
92
O francs tem equivalentes para as sentenas (i) e (ii) acima, mas no para (iii)
e (iv). O italiano, por sua vez, apresenta tradues para (i) e (ii) respectivamente invier la relazione domani e nvio la relazione domani; no sistema
verbal italiano no existem equivalentes para (iii) e (iv).
guisa de exemplo, o falante do portugus pode dizer Maria canta e
tambm Maria est cantando. Existe em francs uma nica possibilidade
Marie chante, orao essa que comunica o que Marie sabe fazer e tambm
o que ela est fazendo num determinado momento da fala. Para transmitir
continuidade, a lngua francesa depende exclusivamente de advrbios ou expresses adverbiais: maintenant, dans ce moment ou tre en train de+
infinitivo. Obviamente, uma orao isolada (fora de contexto) ambgua.
Quanto ao portugus brasileiro, cabe observar que o prprio verbo estar
(com ou sem ser+NDO) precede adjetivos dinmicos tais como: Ele est (sendo)
curioso, barulhento, intransigente, exibido, oferecido, fingido Esses mesmos
adjetivos tambm seguem o verbo de ligao ser: Ele curioso, barulhento,
intransigente, exibido, oferecido, fingido etc. Da se pode concluir que o portugus de acordo com a figura abaixo possui um quadro verbal diferenciado
em contraste com o ingls ou com o francs.
Mrio
est sendo
est
curioso.
Ao comparar os trs idiomas, usei o adjetivo diferenciado para caracterizar o portugus com respeito a estar (sendo) e ser. O portugus brasileiro,
neste caso, diferente. Afirmar que ele mais expressivo ou rico do que o
ingls e o francs um argumento to subjetivo como alegar que a construo
(ir)+estar+V____NDO no seja plenamente verncula. A lngua portuguesa
se distingue dos outros idiomas do mundo e eis aqui a sua originalidade, pois ela
um dos poucos idiomas do mundo que admite o uso do gerndio como imperativo.10
10
93
Cunha (1970: 282) observa que no portugus popular ... o gerndio substitui por vezes a forma imperativa. Eis alguns exemplos retirados do livro de
Cunha:
Andando! = v andando! Ande!
Apresento dos meus registros outras estruturas em NDO que funcionam como ordens ou mandatos:
Gente, vo se acomodando!
Tudo mundo votando!
Vai entrando, Zeca!
V falando, rapaz!
Pode ir esquecendo! No haver aumento!
Vai saindo, vai saindo, ordenei fazendo com que voltasse pelo mesmo caminho.
Lygia Fagundes Telles, Suicdio na Granja, Inveno e Memria. Rio de Janeiro:
Rocco, 2000, p. 18.
94
Enunciados como Ele deve estar chegando na parte da tarde ou Boa coisa no h de estar
fazendo (Cf.A Cilada de autoria de Otto Lara Resende, (In:nio Silveira, org. Os Sete Pecados
Capitais. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira, 1964) nem sempre so alvos de crtica,
vistos como pragasou vcioscomo no caso de enunciados que comeam com o verbo ir
(ir+ estar+ V___NDO).
95
No me parecem procedentes as definies propostas. Em primeiro lugar, a noo de exagero na linguagem um assunto pessoal e depende do estilo
oral (e escrito) dos usurios. Exagerar ou no um direito e da responsabilidade do usurio. Alguns falantes exageram no uso de gria, outros no emprego
de palavres e ainda outros no excesso de marcadores conversacionais como
t?, n?, viu?, sabe? e entende?. Ainda outros exageram no uso de
vocbulos de origem estrangeira que tm equivalentes em portugus. Os que
condenam o uso de estruturas V+ estar + V___NDO recorrem igualmente ao
exagero como uma estratgia para censurar o emprego da referida construo. Eis um exemplo de texto confeccionado para ridicularizar o uso excessivo
do gerndio.
Este artigo foi feito especialmente para que voc possa estar recortando, estar
imprimindo e estar fazendo diversas cpias, para estar deixando discretamente
sobre a mesa de algum que no consiga estar falando sem estar espalhando essa
praga terrvel que parece estar se disseminando na comunicao moderna, o
gerundismo. (Manifesto antigerundista).
96
saiba exatamente quando, no decorrer da prxima semana, que ela vai poder
enviar.12 O referido enunciado no ocorreu num ambiente de telemarketing
mas num ambiente universitrio. Da se v que vou estar+V____NDO pode
ser recebido diferentemente por dois ou mais usurios. Generalizar com base
em uma opinio sempre perigoso. A linguagem plural e no propriedade
de um indivduo s.
Vou estar pode ser recebido por parte de um determinado ouvinte como
exemplo de m-vontade em realizar a ao logo. A causa da irritao pode ser
muito mais a prpria situao em que a linguagem usada. Teclar no telefone
nmero 1 para alhos e 2 para bugalhos e assim nmero 8 !! para finalmente
ouvir uma gravao que diz: Obrigado, voc vai estar recebendo um telefonema de um de nossos representantes, contribuiria, sem dvida, para a perda de
pacincia por parte de uma pessoa at bem equilibrada. O problema nem
sempre lingstico. Em uma situao em que o lapso de tempo necessrio para
que uma ao de enviar ou transferir algo, um documento por fax, por exemplo, depende da prpria eficincia do servio prestado: as linhas telefnicas so
lentas? A rede vive fora do ar ou est lenta? provvel que alguns usurios que
trabalhem diretamente com a Internet e aparelhos de fax estejam acostumados
s demoras nas tentativas de enviar e transferir devido ao tamanho dos
arquivos, mas outros ficam irritados e impacientes com a demora.. Os que dependem de servios de entrega em domiclio esto cientes da morosidade do
trfego nas ruas e avenidas congestionadas: o enviar e o transmitir se tornam
(para eles) aes de durao e no atividades pontuais. Ainda, outras situaes:
o funcionrio ou a funcionria est dando conta do grande nmero de chamadas? A fila no anda? Os funcionrios esto revoltados devido a problemas
trabalhistas ou de ordem pessoal? A lngua e a linguagem so fenmenos sociais
e os acontecimentos no dia-a-dia dos seres humanos afetam a linguagem que eles
utilizam. Cabe lembrar que mesmo sem usar nenhum gerndio, um(a) telefonista pode ocasionar irritao quando deixar um indivduo esperando muito tempo
para ser atendido. O problema pode ficar em certas instncias fora da prpria
linguagem, pois filas interminveis em reparties ou em bancos tambm irritam mesmo quando no ocorrerem gerndios na interao entre indivduos.
importante tambm no adotar uma postura preconceituosa contra grupos de pessoas que trabalham no campo de telemarketing que atribuem
12
Os meus agradecimentos a todos os colegas e tambm aos informantes leigos que debateram
comigo a respeito do gerndio. No menciono nomes especficos, pois a consulta por minha
parte foi realizada informalmente por correio eletrnico. Julgo que no seria tico indicar
nomes, pois muitos dos consultados disseram que gostariam de refletir mais sobre o assunto.
97
Numa das pginas na Internet que ataca o uso do gerndio, os autores do site consideram o
grupo de indivduos que trabalham no campo de telemarketing como sendo um gueto.
Lamentvel o uso da referida palavras que lembra a excluso social de milhares de judeus na
Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial.
Considerando que um bom nmero de pessoas que trabalham na rea de telemarketing so
mulheres, pergunto se no poderia haver certa dose de discriminao contra elas. Recentemente, na programao de uma novela televisa, uma alta executiva de uma empresa humilhou uma
secretria por ela ter usado ir+estar+V___NDO. Mais um exemplo do uso da lngua (e a
linguagem) como instrumento de poder e autoridade. Existe uma dose de terrorismo em
certas atitudes sobre a linguagem,
14
Infelizmente, afirmei em trabalho anterior (Schmitz, 2004) que a construo ir (poder, dever,
ficar) recente no idioma. Com base nos exemplos encontrados nas obras de D. Machado,
Telles e Resende, retiro a afirmao. Os enunciados retirados de D. Machado mostram que a
construo em tela data de 1935, mais de 70 anos atrs. Cabe observar que no encontrei
enunciados com ir+estar+V___NDO nos referidos textos. possvel que essa forma seja
realmente mais recente e restrita a textos orais informais. Seria interessante saber exatamente
quando ingressaram no idioma pela primeira vez construes como poder+estar+V___NDO,
dever+estar+V___NDO, e haver de+estar+V____NDO. No encontrei exemplos de ir (poder, dever, haver de+ V___NDO no corpus das obras de Maria Helena de Moura Neves,
Gramticos de Usos do Portugus. So Paulo: Editora Unesp, 2000 e tambm de Odette
Gonalves Luiza Altmann de Souza Campos. O Gerndio em Portugus. Rio de Janeiro:
Presena, 1980.
98
(iv) Quis dizer-lhe como esse encontro me deixou desanuviado, mas ele devia estar sabendo, eu no precisava mais falar ( p. 93) Lygia Fagundes
Telles, Inveno e Memria. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
No conto A Cilada de autoria de Otto Lara Resende (In:nio Silveira,
org. Os Sete Pecados Capitais. Rio de Janeiro: Editora Civilizao Brasileira,
1964) h dois exemplos:
(v) Boa coisa no h de estar fazendo, (p. 71)
(vi) O negro deve estar dormindo, (p. 77)
Observa-se que todos os enunciados respectivamente retirados dos textos de Machado, Telles e Resende tm o auxiliar estar posicionado entre o
verbo inicial ( esquerda) poder (i), haver de (ii), (v), parecer (iii) , dever (iv),
(vi) e ( direita) os respectivos verbos principais em NDO: agenciando, cavando (i), lendo (ii), vibrando (iii), sabendo (iv), fazendo (v) e dormindo (vi).
Possenti (2005: 21), em vez de considerar oraes vou estar morando
em S. Paulo exemplos de gerundismo, prefere rotular as mesmas como casos
de estarismo. Exemplos retirados dos trs autores acima citados (i) a (vi)
tambm seriam exemplos. O sistema verbal do portugus muito rico e bastante complexo. No corpus consultado h exemplos de outros auxiliares que
ocorrem entre o verbo inicial e o verbo principal com o sufixo em NDO:
(vii) Pode ir tirando o cavalo da chuva. (p. 53), A Cilada, Otto Lara Resende.
(In: nio Silveira, org. Os Sete Pecados Capitais. Rio de Janeiro: Editora
Civilizao Brasileira, 1964)
(viii) Enfim, at quando eu teria que ficar justificando o que escrevi, (p.77),
Lygia Fagundes Telles. Que nmero faz favor? Inveno e Memria.
Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 73.
Existem tambm exemplos de estarismo fora da rea de literatura. Eis
alguns exemplos de textos jornalsticos:
Mas deve estar sendo comemorado pelos responsveis... Editorial, Folha de S.
Paulo, Objetivo Duvidoso, 27 de outubro de 2004, p. A2.
...uma vez a sempre prefervel estratgia de auto-regulamento parece estar falhando, Editorial, Folha de S. Paulo, 06 de junho de 2005, p. 2.
Muitos devem estar pensando que esse uma questo de Estado e de poltica
pblica, Mil Villela, O Tsunami Nosso de Cada Dia, Folha de S. Paulo, 03 de
fevereiro de 2005, Tendncias e Debates, p. A 3.
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regularmente s festas de aniversrio e de casamento sem mencionar as freqentes baladas que tm por a.; Os sabis j esto desaparecendo das nossas florestas.
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Neto (1998b):No temos o hbito de dizer faremos, dizemos mesmo Vamos fazer. Uma usuria questionada a respeito do gerndio reclama nestes
termos: Ficamos cansados de ouvir tantas construes com o gerndio que,
em verdade, pouco acrescentam quilo que efetivamente as pessoas querem
dizer. Os comentrios por parte da usuria mostram certa irritao com o
exagero e a repetio. Mas, em se tratando de tantos falantes e tantos intercmbios entre diversas pessoas, pergunto se em todas as instncias pensadas
pela usuria ocorreram malentendidos como se fosse caso de duas lnguas
estrangeiras diferentes.
O desejo de buscar conciso pode, em certos casos, ter resultados trgicos. Por exemplo, num folheto de orientao de trnsito, a Secretaria de Transportes da Cidade de So Paulo informa: Cuidado: mesmo que os automveis
estejam parados, os nibus, motos e txis podem estar andando na faixa exclusiva. Se o estar andando for substitudo por podem andar, o significado
seria outro e diferente da inteno da Secretaria de Transportes.15
Os que argumentam que o gerndio prolixo nem sempre sabem que, em certos casos, o
presente indicativo e a forma perifrstica estar+NDO funcionam como variantes estilsticos,
pois os usurios de portugus podem escolher: Envio neste momento um e-mail com dois
anexos/ Estou enviando neste momento um e-mail com dois anexos.
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8. Concluindo
a) Neste trabalho tentei mostrar que o portugus uma das lnguas do
mundo que apresenta uma variedade de construes perifrsticas com a presena do verbo auxiliar estar (e vrios outros): Ele est, vem, vai, anda, vive
estudando. Bechara (2001:219-220) resume com propriedade a complexidade
do sistema verbal do portugus: o que ocorre com estive fazendo, que
expressa, alm do nvel do tempo e da perspectiva primria, tambm a viso.
Tenho estado fazendo expressa nvel temporal, perspectiva primria, perspectiva secundria e viso. J tenho estado vindo fazendo, tinha-se estado
pondo a fazer embora teoricamente possveis, no so correntes.
b) Comentei no decorrer do artigo que os prprios usurios do idioma
empregam a referida construo perifrstica com criatividade nos textos escritos e tambm orais. Alguns exemplos:
Deu o que deu. Ou est dando no que est dando, Eliane Cantanhde, Dor no
corao, Folha de S. Paulo, 29 de fevereiro de 2004, p. A2.
Falando de futebol estava, falando de futebol continuava, Eliane Cantanhde,
Hermanos, Folha de S. Paulo. 05 de maio de 2005, p. A 2.
c) Argumentei nesta apresentao que dada a produtividade da construo estar+ V___NDO, possvel os usurios expressarem sutis diferenas de
tempo e de aspecto. Por exemplo, a construo com estar+V____NDO pode
se referir ao costumeira: Ele sempre est andando na praia ou no momento exato de falar: Ele est andando na praia neste instante, ou a ao que
acontece no futuro: Ele est viajando para Frana no prximo sbado .
d) Com base nesses comentrios e, em particular, levando a proposta de
Castilho (1967) que a perfrase com estar a mais verstil, argumento que
17
A polmica sobre o gerndio infelizmente traz crticas figura do tradutor. Alguns antigerundistas culpam ao tradutor brasileiro de lngua inglesa pela presena do gerndio em
portugus. injusto generalizar e afirmar que todos os tradutores so incompetentes e que no
respeitam a sua prpria lngua. Existe muita seriedade e profissionalismo por parte dos
tradutores e intrpretes brasileiros.
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as construes com gerndio precedido de ir + estar so reflexo de um desenvolvimento natural no idioma. Se a lngua portuguesa no possusse o gerndio
perifrstico, em primeiro lugar, os falantes no poderiam, em segundo lugar,
chegar a produzir a gama de construes que ocorrem no idioma e bastante
arraigados de longa data no portugus (cf., D. Machado, 1935 (2005). Na realidade a presena de gerndio perifrstica serve como ponte para a ocorrncia de novas formas (ir+estar+V____NDO) e novos usos no sistema de aspecto verbal da lngua. No deve ser uma surpresa atestar as referidas formas
em portugus devido presena das formas perifrsticas numa variedade de
tempos. Comentei no item (c) desta oitava parte que o gerndio incorpora, em
certos casos, o papel de futuro: cf. Ele est viajando para Frana no prximo
sbado. O portugus se destaca de outros idiomas do mundo, como argumentei acima (seo 1 (a), em apresentar vrias formas de expressar o futuro: (i)
encaminhei o relatrio amanh, (iii) vou encaminhar o relatrio amanh,
(iii) estarei encaminhando o relatrio amanh. Baseando-me nas observaes de Castilho (1967) a respeito da versatilidade da perfrase com estar e
tambm nas de Possenti (2005) a respeito de estarismo no portugus, aventuro-me a propor que as construes em ir+estar + V____NDO funcionam,
em certos casos, como um (novo) futuro no portugus do Brasil: (iv) vou estar
encaminhado o relatrio amanh. Outra evidncia que me leva a propor que a
construo ir+ estar+ V___NDO expressa futuridade a sua compatibilidade
com locues adverbiais de tempo (voltadas ao futuro). Comparem, por exemplo, os enunciados no tempo presente com os que, de acordo com a minha
argumentao, focalizam o futuro
Carlos est morando em So Jos do Rio Preto desde 1985.
Carlos vai estar morando em So Jos do Rio Preto nas prximas semanas.
Eles j esto resolvendo aos trancos e barrancos os problemas deles.
Eles vo estar resolvendo os problemas deles ao longo do prximo semestre.
109
e) Tentei argumentar que preciso repensar a noo de erro em portugus porque as construes com gerndio so, na verdade, sinttica e semanticamente bem formadas. A polmica em torno do gerndio e gerundismo
mostra que faltam entre ns, debates respeitosos e tranqilos entre gramticos,
lingsticas, professores de portugus, jornalistas, publicitrios e advogados com
o pblico em geral com respeito a uma atualizao ou aggiornamento da
norma padro. Tal debate necessrio para eliminar a defasagem entre o que
apregoado com base na Tradio e o que realmente usado no dia-a-dia
pelos diferentes usurios do idioma, independentemente de sua classe social e
grau de instruo.
f) Argumentei tambm que a presena do gerndio em portugus no
resultado da interferncia de aprendizes brasileiros de lngua inglesa e a presena de gerndio na lngua portuguesa nada tem a ver com problemas de
traduo.18
Ciente de que o tema escolhido para a minha reflexo polmico, agradeo a ateno dos meus leitores e aguardo comentrios, sugestes e crticas.
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(particpio). Um gerund readingem Reading develops the mind (A leitura desenvolve
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vs. forme
forma
accident(al)s
variante externa
112
Barbara Spaggiari
mal, e pode ser grafada duma s maneira, sob pena de no ser entendida pelo
leitor, ou ento, de introduzir um erro patente no texto.
Nas lnguas clssicas existia, portanto, um sistema no apenas gramatical,
mas tambm (orto)grfico, que no admitia oscilaes, ou mudanas, graas
estandardizao suportada, tanto pela lngua grega como pela latina, em sua
expresso literria, ou culta.
A situao muda radicalmente com o advento das lnguas vernculas, que,
em seu secular processo de afastamento da matriz comum latina, atravessam
vrias etapas evolutivas, chegando s em poca assaz recente a uma norma
estandardizada, oficial, ne varietur (o que, nem sempre, mas freqentemente,
coincide com a afirmao de uma estrutura estadual, ou de qualquer modo
centralizada, capaz de impor uma norma lingstica unitria).
A distino entre crtica das lies e crtica das formas, introduzida por
Gaston Paris na sua edio da Vie de Saint Alexis (1872),2 constitui, portanto,
uma pedra angular na histria da ecdtica moderna. Com isso, o fundador da
filologia romnica toma em conta o fato de que a mesma palavra pode ser
grafada, numa lngua neolatina antiga, com diferenas formais, que no incidem sobre a substncia, isto , sobre a identidade e o significado da palavra. Na
sua introduo metodolgica Vie de Saint Alexis, Gaston Paris retoma vrias
vezes o mesmo conceito, articulando sempre a oposio entre o que ele chama
fond (altrations apportes au fond, refonte du fond, p.10) e o que ele
define como forme (altrations apportes la forme, refonte de la forme,
ibid.), at ele chegar definio da tarefa do editor crtico, como sendo constituda por duas operaes distintas, mesmo que complementares: se ao editor
cabe, por um lado, la constitution du texte en ce qui concerne les leons, ele
deve tambm, por outro lado, dterminer les formes du langage et dcriture
quil faut adopter (p.27).
Dentro da varia lectio ser preciso, ento, distinguir entre lies divergentes quanto substncia, que tero que ser levadas em conta aos fins
estemticos, e lies que apenas divergem quanto forma, isto , do ponto de
vista grfico ou fontico. Sendo definida a oposio entre fond e forme,
como acabamos de ver, por Gaston Paris, ficou essa terminologia prpria dos
fillogos franceses, ou francfonos, que falam, portanto, de variantes de fond
e de variantes de forme.
Cf. La Vie de Saint Alexis. Pome du XIe sicle (...), publ. par Gaston PARIS et Lopold
PANNIER, Paris, Franck, 1872.
113
Cf. Graa Almeida RODRIGUES, Edies crticas, textologia, normas para a transcrio de
textos do sculo XVI , in Arquivos do Centro Cultural Portugus, 17 (1982), p.637-660; Ivo
CASTRO, Editar Pessoa, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1990.
Cf. Emmanuel PEREIRA FILHO, Uma Forma Provenalesca na Lrica de Cames, Rio de
Janeiro, Gernasa, 1974.
114
Barbara Spaggiari
muito significativo o fato de que s altura de 1968, ano de seu falecimento, Emmanuel Pereira Filho chega a essa sistematizao terica e prope a
correspondente definio terminolgica. Antes, ele emprega termos diferentes,
por vezes algo aproximativos (p.ex., caractersticas individualizadoras). Em
1961, fala de variantes relevantes (S aludimos quelas cujo teor reflete a
vontade deliberada de mudar. De divergncias ortogrficas, erros de leitura,
saltos etc., no cogitamos, porque quase sempre se devem ao exclusiva de
copistas ou tipgrafos).5 Uma vez apenas, aparece a definio de variantes
substanciais num artigo de 1963, consagrado Ode ao Conde do Redondo
(A Ode est agora marcada por mais de 30 variantes substanciais...).6
5
Cf. Emmanuel PEREIRA FILHO, Estudos de Crtica Textual, Rio de Janeiro, Gernasa, 1972, que
rene os dispersos de 1954 a 1967: a citao na nota 36, p.215.
Veja-se No quarto centenrio da primeira publicao de Cames, in Estudos, o.c., p.32-36 (a p.34).
115
ainda mais significativa a referncia dicotomia saussuriana entre significante e significado, para explicar a diferena entre os dois tipos de variantes, isto , o recurso dimenso lingstica junto com a aceitao dos fundamentos tericos do estruturalismo como premissa da prtica ecdtica. Nisso
Emmanuel Pereira Filho distingue-se dos predecessores europeus e norte-americanos, entre os quais ningum operou com igual clareza com base na dicotomia do signo lingstico. De fato, a teoria saussuriana do signo lingstico, historicamente posterior formulao de Gaston Paris, mas largamente disponvel
para os representantes da Nova Filologia italiana, bem como para os da Bibliography anglo-saxnica, era a nica capaz de racionalizar, em termos cientficos, a engenhosa intuio de Gaston Paris. Ora bem, s Emmanuel Pereira
Filho chegou a impostar a questo das variantes substantivas e formais apoiando-se nas teorias lingsticas prprias do chamado estruturalismo.
Nem saussuriana, nem estruturalista, , porm, a terminologia por ele
empregada no momento em que apronta a sua tese de docncia livre, em 1968:
o par adjetival interna/externa, no apenas totalmente indito na terminologia ecdtica, para definir a distino entre as variantes dos textos vernculos,
mas tambm desconhecido s teorias lingsticas de Saussure e de seus discpulos.
Merece, talvez, abrir um parntese sobre o emprego do par adjetival externo e
interno dentro do manual preparatrio aos estudos histricos, publicado no
final do sc. XIX por Ch.V. Langlois.7
Sendo a filologia (Sprachkunde) por ele colocada dentro das cincias auxilirias,
conforme este manual, a metodologia histrica propriamente dita constituda
por duas sries de operaes, respectivamente analticas e sintticas. A anlise
articula-se em crtica externa8 e crtica interna,9 constituindo a premisssa das
7
Cf. Ch.V. LANGLOIS et de Ch. SEIGNOBOS, Introduction aux tudes historiques, Paris,
Hachette,1898.
A critique externe, ou critique drudition, abrange, na verdade, vrias etapas e, diramos hoje,
vrias metodologias, a saber : 1. a critique de restitution, ou critique des textes, que , nada mais
nada menos, o estabelecimento do texto segundo critrios cientficos, isto , a edio crtica do
documento a analisar ; 2. a critique de provenance, ou critique des sources, que prev a
investigao sobre o lugar de provenincia do documento, a sua datao e a identificao do
nome do autor, bem como a recolha e a classificao das fontes que nos transmitiram o
documento.
116
Barbara Spaggiari
Ora bem, temos finalmente encontrado a origem desta peculiar terminologia empregada por Emmanuel Pereira Filho e, na sua esteira, pelos fillogos
brasileiros. Aqui tambm o molde revela-se, em fim das contas, filosfico; mas,
em lugar das doctrinas aristotlicas, que esto no pano de fundo dos tecnicismos
franceses ou anglo-saxnicos, no caso de Pereira Filho o background , antes, constitudo pela filosofia da linguagem e o referente prximo , sem qualquer dvida, o grande linguista alemo Wilhelm von Humboldt.
10
Como se pode ver, Humboldt confere, deste modo, lngua uma funo intermediria entre o
espiritual e o sensvel, numa espcie de equilbrio, em que a lngua nem coincide com um, nem
com outro, precisamente porque ela brota da sntese dialgica (e no dialtica, no sentido
hegeliano do termo) dum com outro. No se trata, contudo, de uma separao ontolgica, mas
sim de uma distino meramente conceitual.
117
Cf. Donatella Di Cesare, Innere Form der Sprache: Humboldts Grenzbegriff Steinthals
Begriffsgrenze, in Historiographia Linguistica, 1996, p.321-346.
118
Barbara Spaggiari
terrogando os textos dele, durante cerca de quatorze anos. A atividade hermenutica de Steinthal comea, de fato, com a dissertao em latim De pronomine
relativo (1847), at acabar com a monumental edio dos escritos humboldtianos
sobre a filosofia da linguagem (Wilhelm von Humboldt, Sprachphilosophische
Werke, 1884).
atravs desta incansvel atividade de interpretao, que a teoria lingstica de Humboldt conseguiu sobreviver, apesar da reviso crtica do sc.XIX,
dominado pelas correntes da lingstica histrica e comparatista. De fato, a
Steinthal cabe o mrito de ter divulgado as doutrinas humboldtianas, num meio
cultural alheio, seno propriamente hostil, desenvolvendo ao mesmo tempo a
prpria peculiar viso da lngua que, afinal, no coincide com a de Humboldt.
No admira, portanto, que essas divergncias do discpulo ao encontro do mestre, possam ter causado algum desvio na divulgao do verdadeiro pensamento
de Humboldt, nomeadamente no que diz respeito filosofia da linguagem.
Mais detidamente, Steinthal censura a incapacidade, em Humboldt, de
conciliar a inveno especulativa (Erfindung) com a descoberta emprica
(Entdeckung). A sntese dialtica de Hegel constitui, aos olhos de Steinthal, a
sntese por antonomsia; por conseguinte, a unidade entre filosofia e cincia
desgua numa doutrina cientfica que, atravs de procedimenos dialticos, obtm os seus objetos a partir do empirismo. Steinthal pretende, por isso, explicar
as teorias lingsticas de Humboldt, baseando-se nestes processos de dedues
empricas e operaes dialticas12.
A partir destas bases tericas, Steinthal distingue, na lngua, entre
Physiologie e Psychologie, com isso aludindo, respetivamente, esfera do
som e do significado. diferena de Humboldt, porm, Steinthal privilegia o
segundo, isto , o significado, como elemento fundamental da lngua. A atividade interna do Esprito, que ele identifica diretamente com a atividade lingstica, resulta de maior importncia com respeito aos instrumentos de expresso
orgnicos e fnicos, isto , atividade externa.
Enquanto, na teoria humboldtiana, a lngua rgo do Esprito, ou seja, o
meio dele se exprimir, numa efetiva identidade de lngua e Esprito, na interpretao de Steinthal existe na lngua um dualismo entre forma externa e interna, entre o espiritual e o sensvel. Devido a esse dualismo, as duas entidades,
em Steinthal, aparecem como ontologicamente separadas, e, nesta separao,
o que predomina o espiritual, a forma interna.
12
119
Invertendo, deste jeito, a relao entre as duas entidades, tal como era
concebida por Humboldt, Steinthal afirma a primazia da forma interna, enquanto princpio que modela a lngua. Isto acaba por significar que o som algo de
exterior (ein usseres), mesmo que derive do interior (aus dem Innern
stammt), assim representando apenas o sinal (Zeichen) dum contedo j
preexistente na conscincia (Gedanken-Element).
Colocando, desta maneira, em bases meramente psicolgicas, quer a filosofia da linguagem, quer a pesquisa lingstica emprica, o afastamento de
Steinthal com respeito s teorias de Humboldt torna-se numa distncia irrecupervel.
O ncleo desta distncia, que separa irremediavelmente Steinthal de Humboldt, o prprio conceito de forma lingstica interna. O objeto especfico da
lingstica, na opinio de Steinthal, a forma interna concebida como causa
lingisticamente independente da prpria lngua, medida que o som se reduz
apenas a um puro sinal exterior. Em lugar de, como escreve Humboldt, brotar
de um ato de sntese do sensvel com o espiritual, da esfera interna com a
externa, na doctrina de Steinthal a lngua dissolve-se no Esprito, ficando o som
lingstico apenas como instrumento externo.
A lngua, ou melhor, as diferentes lnguas, deixam de ser um rgo criativo no sentido humboldtiano, para se reduzir a simples meio da forma interna,
que tende para a expresso.
Esse exame pormenorizado das diferenas tericas entre o mestre e o
discpulo pertence, porm, aos estudos mais recentes e aprofundados no mbito da filosofia da linguagem. Na primeira metade do sculo passado, a situao
era bem diferente. Divulgada e, de certo modo, simplificada pela obra editorial
de Steinthal, a teoria humboldtiana lanou razes e se consolidou no apenas no
estruturalismo europu, como premissa e corolrio da arbitraridade do signo
saussuriano,13 mas tambm, entre 1920 e 1940, na escola americana e, nomeadamente, na antropologia lingstica de Edward Sapir (1884-1939) e Benjamin
Whorf (1897-1941).
A chamada hiptese Sapir-Wolf e, com ela, o relativismo lingustico, baseiam-se, como sabido, na observao emprica de que a lngua no reflete
13
Philosophes et linguistes se sont toujours accords reconnatre que, sans le secours des
signes, nous serions incapables de distinguer deux ides dune faon claire et constante. Prise
en elle-mme, la pense est comme une nbulose o rien nest ncessairement dlimit. Il ny
a pas dides prtablies, et rien nest distinct avant lapparition de la langue (cf. Ferdinand
de Saussure, Cours de Linguistique Gnrale, publi par Charles Bally et Albert Sechehaye.
d. critique par Tullio De Mauro, Payot, Paris, 1972, p. 155).
120
Barbara Spaggiari
15
Cf. Joaquim Mattoso Cmara Jr, Dispersos. Nova edio revista e ampliada. Organizado por
Carlos Eduardo Falco Ucha, Rio de Janeiro, Editora Lucerna, 2004, p.19.
121
linguagem, que foi apresentado como Aula Inaugural na Universidade Catlica de Petrpolis, a 6 de maro de 1965. Mattoso Cmara tinha, naquela altura,
mais de 60 anos, e uma longa vida de estudos e reflexes por trs dele.
Mattoso comea por notar que no possvel conceber o homem sem
linguagem (homo sapiens diz ele pressupe homo loquens). Igualmente
impossvel pensar sem linguagem, na opinio concorde de todos aqueles
que se tm preocupado com o problema da conexo entre a linguagem e o
pensamento. As experincias dos psiclogos e psicolingistas tm demonstrado que a aprendizagem da lngua materna o primeiro instrumento cognitivo do
homem, e, nas palavras de Leo Weisgerber, o prprio ponto de partida para a
construo da nossa cultura (cf. Dispersos, o.c., p.76).
Essa formulao de Weisberger inspira-se, claramente, nas idias de Humboldt, que se contrapunham s correntes lingsticas predominantes do sc.XIX.
Com efeito, foi a lingstica histrica e comparativa, inaugurada por Franz Bopp,
que acabou por prevalecer, numa poca em que se buscavam as razes comuns
da cultura europia, bem como uma origem nica para o sistema das falas
(com respeito s relaes genealgicas da grande famlia indo-europia).
No ser intil lembrarmos que o impulso a ocupar-se da linguagem veio,
para Humboldt, no momento em que ele descobriu a existncia do basco, isto ,
duma lngua pr-indo-europia irreduzvel aos modelos gramaticais normalmente
utilizados. Este encontro casual com o basco abriu-lhe um universo lingstico
totalmente desconhecido, o universo das lnguas no-europias, ou extra-europias, s quais Humboldt dedicou o resto da sua vida, chegando a estudar dezenas de idiomas amerndios, ocenicos e asiticos (e, em medida menor, africanos). Da, a primeira intuio humboldtiana sobre a diversidade (Verschiedenheit)
das lnguas: uma diversidade tipolgica, que enriquece o homem, precisamente
porque cada lngua organiza o mundo, e o pensamento, duma maneira especfica e particular, sendo cada uma capaz de exprimir-se com meios diferentes,
conforme a sua prpria viso do mundo, como acima j acenamos.16
16
Ainda recentemente, foi descrita mais uma lngua at hoje desconhecida, a duma tribo amaznica, os Piraha, que no possuem palavras para exprimir nmeros, quantidades ou cres. Essa
variedade lingstica emprega apenas sete consoantes e trs vogais, no conhece forma alguma
de escritura, nem qualquer sistema de signos. Os antroplogos americanos da Columbia
University, que descobriram a sua existncia, tentaram, sem sucesso, ensinar a contar aos
adultos dessa tribo, mas eles so incapaces de distinguir os nmeros, depois de meses de
tentativas (cf. Holden, How Language Shapes Math , in Science, 2004: 1, 19 August 2004).
Na viso do mundo dos Piraha, cuja memria coletiva no ultrapassa as duas geraes, no se
precisa, evidentemente, contar, nem catalogar as cores, ou avaliar as quantidades das cousas.
122
Barbara Spaggiari
Como claramente se pode perceber, com respeito ao que antes foi dito
sobre as idias de Humboldt e a interpretao de Steinthal, o resumo que Mattoso
Cmara aqui oferece, relativamente definio de forma interna e forma
externa, sofre, por um lado, de simplificao excessiva, enquanto, por outro
123
lado, disponibiliza uma identificao imediata com a definio de signo lingstico em Ferdinand de Saussure. De fato, Mattoso Cmara introduz, logo a seguir, o nome do lingista suo:
Da, uma integrao entre o som e o sentido, to completa e essencial, que na
lngua como estabeleceu outro grande teorista, Ferdinand de Saussure o som
vocal sempre o significante e a idia sempre o significado (ibid.).
A co-presena, dentro de poucas linhas, do par humboldtiano forma interna / forma externa, logo antes do par saussuriano significante/ significado, constitui um estmulo, no apenas visivo, mas tambm conceitual, que
procurou, como vimos, consequncias inesperadas noutro terico, brasileiro, de
crtica textual: Emmanuel Pereira Filho.
Diante desses dados, parece no apenas provvel, mas provado, que a
escolha feita por Emmanuel Pereira Filho da terminologia de variante interna
e variante externa, por volta de 1968, resulta, em linha direta, da teoria lingstica humboldtiana, isto , da definio, acima relatada, de forma interna e
forma externa, enquanto elementos inscindveis do signo lingstico.
Essa breve reflexo acaba por nos confirmar dois aspectos fundamentais
da cultura brasileira do sc.XX. Primeiro, o papel primordial desempenhado
por Mattoso Cmara Jr. na (alta) divulgao das teorias lingsticas modernas,
e, nomeadamente, das de Wilhelm von Humboldt, nos anos 1965-67, a partir da
resenha sobre a edio dos Schriften zur Sprachphilosophie,17 at comunicao Wilhelm von Humboldt e Edward Sapir, apresentada num congresso
internacional em Bucurest. A reflexo sobre as idias de Humboldt, apesar de
ser, em Mattoso Cmara, bastante tardia, encontra, como vimos, seu lugar nas
discusses contemporneas sobre o relativismo lingstico de Sapir e Whorf.
O segundo aspecto, que ressalta da nossa pesquisa, a incontornvel
vertente lingstica que, desde as origens, sempre caracterizou a filologia brasileira, constituindo assim um marco no panorama internacional da crtica textual. De fato, nos fins do sc.XX, a ecdtica europia, se, por um lado, empreendeu a reviso do chamado mtodo lachmanniano, por outro, acabou por
progressivamente se afastar da lingstica e de seus mtodos. No Brasil, pelo
contrrio, as discusses tericas elaboradas em torno do eixo Bdier-Lachmann
quase no encontraram eco, enquanto a ecdtica propriamente dita nunca
17
124
Barbara Spaggiari
interrompeu as suas ligaes com uma robusta tradio lingstica, o que foi
sobretudo possvel em virtude da relao, desde logo estabelecida, entre a identidade lingstica do pas, e o conflito de mais a mais evidente com a norma
lingstica portuguesa. No tocante crtica textual, esta tenso teve, alis, conseqncias sumamente benficas (Fundamentos da Crtica Textual, o.c., p.55).
Referncias bibliogrficas
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fr die Preussische Akademie der Wissenschaftlichen, Berlin, Behr, 19031936 [G.S.].
Wilhelm von H UMBOLDT , Schriften zur Sprachphilosophie, Stuttgart,
J.G.Cotta, 1963: cf. resenha de J.Mattoso Cmara Jr., in Linguistics. An
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crits sur le langage. Prsent, traduit et comment par Denis Thouard,
Paris, Seuil, 2000.
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Emmanuel PEREIRA FILHO, Estudos de Crtica Textual, Rio de Janeiro,
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125
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Edward SAPIR, Language, an Introducion to the Study of Speech, New
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Ferdinand de SAUSSURE, Cours de Linguistique Gnrale, publi par Charles
Bally et Albert Sechehaye [1922]. d. critique par Tullio De Mauro, Payot,
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Barbara SPAGGIARI-Maurizio PERUGI, Fundamentos da Crtica Textual, Rio
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Johann Leo WEISBERGER, Die Muttersprache im Aufbau unserer Kultur, 2.
erweit. Aufl., Dsseldorf, Pdagogischer Verl. Schwann, 1957.
Benjamin Lee WHORF, Language, Thought, and Reality. Ed. John B. Carroll,
Cambridge Mass., Press of MIT, 1956.
Sobre este tema, consultem-se as seguintes referncias: Paul J. HOPPER, Elizabeth Closs
TRAUGOTT, Grammaticalization, Cambridge, Cambridge University Press, 1993; Ekkehard
KNIG, Elizabeth Closs TRAUGOTT, The Semantics-Pragmatics of Grammaticalization
Revisited, em Elizabeth Closs T RAUGOTT , Bernd H EINE (eds.), Approaches to
Grammaticalization, Amsterdam, Jonh Benjamins, 1991, vol. I, p. 189-218; Elizabeth Closs
TRAUGOTT, From Propositional to Textual and Expressive Meanings: Some SemanticPragmatic Aspects of Grammaticalization, em Winfred P. LEHMANN, Yakov MALKIEL (eds.),
Perspectives on Historical Linguistics, Amsterdam, John Benjamins, 1982, p. 245-271; Elizabeth
Closs TRAUGOTT, Subjectification in Grammaticalisation, em Dieter STEIN, Susan WRIGHT
(eds.), Subjectivity and Subjectivisation, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p.
37-54.
Reunimos uma seleco de textos, em registo escrito, dos sculos XIII a XVI, passando pelo
sculo XX.
128
Surgem alguns trabalhos no mbito do estudo do gerndio, dos seus sentidos e valores, do seu
lugar no sistema verbal do portugus ou de outras lnguas romnicas, nomeadamente, no
castelhano, embora no de forma sistematizada e aprofundada, mas como exemplo de mais um
possvel uso do gerndio. Arrolamos, assim, alguns trabalhos que consideramos dignos de
nota, mas que, quer por tratarem de aspectos no directamente relacionados com o nosso tema
quer por no terem como objecto de estudo, exclusivamente, a lngua portuguesa, no incidem
directa e particularmente sobre o propsito do nosso estudo: Henrique BARROSO, O aspecto
verbal perifrstico em portugus contemporneo viso funcional/sincrnica, Porto, Porto
Editora, 1994; Jos Lus MUO VALVERDE, El gerundio en el espaol medieval (S. XII-XIV),
Mlaga, gora, 1995; Mrio SQUARTINI, Verbal Periphrases in Romance, Aspect, Actionality,
and Grammaticalization, Berlim, New York, Mouton de Gruyter, 1998; Alicia YLLERA,
Sintaxis histrica del verbo espaol: las perfrasis medievales, Zaragoza, Departamento
Filologia Francesa, Universidad de Zaragoza, 1980.
Doravante CIPM. Este ser, maioritariamente, o nosso corpus de eleio e o suporte para o
presente estudo pelo facto de ser diversificado e de se encontrar em verso electrnica,
permitindo, deste modo, uma procura mais rpida, mais eficaz e mais produtiva. O CIPM est
disponvel em http://cipm.fcsh.unl.pt/corpus/. O CIPM um corpus que, no obstante se
encontrar em construo, possui j um nmero considervel de textos disponveis on-line para
consulta dos estudiosos. Tem como base textos editados, publicados at data, de vrios tipos
129
10
11
Note-se que esta no uma forma de gerndio, mas uma forma participial.
12
130
dam antel chorando mil vegadas / foronsse chegando ataa que se viron as
hostes13).
este o corpus que servir de alicerce ao estudo no qual tentaremos
percepcionar a gramaticalizao das formas j mencionadas; ser a partir deste que tentaremos perscrutar quais os graus, pois pensamos ser possvel estabelecer diferentes nveis, de gramaticalizao dessas formas e a sua progressiva evoluo. Numa fase final, pensamos poder estabelecer algumas conexes
com o portugus moderno, embora este estudo se centre, preferencialmente,
no perodo compreendido entre os sculos XIII e XVI, como j referencimos.
Direccionando o escopo concretamente para o nosso corpus, vejamos
algumas questes, de ordem prtica, que nos parece ser necessrio esclarecer.
Elabormos, j o dissemos, tendo como base o CIPM, o nosso prprio corpus
de estudo. Recorreremos aos excertos que considerarmos pertinentes para
corroborao das propostas de anlise e para o descortinar dos possveis sentidos das perfrases verbais em observao. Cada excerto seleccionado est
devidamente identificado, de forma a facilitar o seu reconhecimento14.
As consideraes que ora sero protagonistas da nossa reflexo e preocupao lingusticas prender-se-o, antes de mais, com questes terminolgicas de pendor formal e terico. Deste modo, vejamos quais os conceitos que
ser necessrio explanar no contexto do nosso estudo. Ao falarmos de formas
verbais do tipo V [x] + Ger., estamos a afirmar que estas so formas compostas e no formas simples. Estas so conhecidas, vulgarmente, por perfrases
verbais ou por locues verbais. A ideia subjacente a tal rotulagem parece-nos
advir da forma que tais estruturas apresentam e do valor que veiculam. Este
tipo de construo apresenta uma estrutura complexa, composta, geralmente,
por dois ou mais elementos que, quer do ponto de vista formal quer do ponto de
vista semntico, funcionam como uma construo una e indivisvel, veiculando,
assim, um sentido de conjunto que no igual soma das vrias partes, mas ,
em si, uma unidade coesa com uma significao e sentidos prprios. Esta ideia
13
14
131
16
17
18
Entre outros, distinguimos Henrique BARROSO, ob. cit.; Maria Helena Mira MATEUS et alii,
Gramtica da Lngua Portuguesa, Lisboa, Caminho, 2003; Anabela GONALVES, Aspectos
da sintaxe dos verbos auxiliares do portugus europeu, em Matilde MIGUEL, Telmo MIA,
Quatro estudos em sintaxe do portugus, Lisboa, Edies Colibri, 1995, p. 7-50.
132
verbo auxiliar conjugado, veiculando as ideias de tempo, modo, pessoa e nmero, e um verbo principal numa das suas formas nominais (particpio, gerndio,
infinitivo). Desta sorte, enquanto o primeiro grupo constituir um conjunto
finito, o segundo ser um conjunto, conjecturalmente, infinito19.
Para a investigao, concretamente, interessam as estruturas verbais complexas compostas, designadamente, por V [estar, ser, andar, ir, vir] + Ger.
[-ndo]. Estes verbos so comumente designados de auxiliares. Contudo, no
parece haver unanimidade relativamente anlise deste tipo de construo,
mormente no que concerne definio e resultante identificao dos chamados
verbos auxiliares20. Dado que os ditos verbos auxiliares so elementos fundamentais na configurao das estruturas que tencionamos estudar, ser pertinente considerarmos alguns dos critrios, variveis segundo os autores e as perspectivas tericas, para a definio de verbo auxiliar. Por conseguinte, ser
necessrio ter em conta o maior ou menor grau de gramaticalizao sofrido
pelo verbo auxiliar, pois este perde alguns dos traos smicos que o distinguem
enquanto verbo de significao plena21; ser, tambm, relevante, como j
referimos, a noo de que o complexo V (auxiliar) + V (principal) apresentar uma significao de conjunto, sendo mais do que a simples fuso do significado do V (auxiliar) + o significado do V (principal)22; no de descurar, ainda,
no tipo de construo que nos ocupa, a existncia de um sujeito nico, pois,
19
Cf. Henrique BARROSO, ob. cit., p. 65. Esta ideia j defendida por Bernard POTTIER no
estudo sobre a auxiliaridade no castelhano. Veja-se, deste autor, Lingstica moderna y filologa
hispnica, Madrid, Editorial Gredos, 1976, em especial o captulo XVIII, Sobre el concepto
de verbo auxiliar, p. 194-202. Cf., ainda, Rosa Virgnia Mattos e SILVA, Estruturas trecentistas,
elementos para uma gramtica do portugus arcaico, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da
Moeda, 1989, p. 437-471, onde a autora, relativamente ao mesmo assunto, faz referncia a um
inventrio restrito e a um inventrio aberto de verbos que ocuparo determinado lugar nas
estruturas em causa.
20
21
Ex.: Gosto muito de Woody Allen. Tenho visto todos os seus filmes. / Gosto muito de Woody
Allen. Tenho todos os seus filmes. Veja-se como um sema que caracteriza indubitavelmente o
verbo ter (o trao semntico [+ posse]) se perde, no primeiro exemplo, com perfrase verbal,
em que o verbo ter funciona como auxiliar do verbo ver.
22
Ex.: Estou a ver televiso. / Estou vendo televiso. / Descanso vendo televiso. No
possvel parafrasear os dois primeiros exemplos por estou e vejo, no entanto, , perfeitamente, lcito, em relao ao terceiro exemplo, dizer eu descanso e vejo.
133
embora surjam duas formas verbais, o sujeito a que estas reportam um s23.
Para terminar, e porque j afirmmos no ser nosso intuito arrolar de forma
exaustiva todos os critrios que permitam a identificao do verbo auxiliar, apontamos mais um critrio que nos parece bastante significativo e que a frequncia
de ocorrncia destes elementos, na medida em que existem verbos que ocorrem de forma muito pontual como auxiliares em contraste com outros que surgem constantemente em contextos em que adquirem estatuto de verbo auxiliar.
Como vemos, possvel recorrer a variadas formas de testar, das quais s
alistmos um pequeno nmero, a ttulo de exemplo, para aferir o grau de
auxiliaridade de determinados verbos. Contudo, apesar da complementaridade destes exerccios, tem sido muito custoso assentar uma lista de verbos auxiliares. Todavia, como frismos anteriormente, no nos parece necessariamente
relevante possuirmos uma lista estabelecida de verbos auxiliares atestada e
aprovada pelos diversos estudiosos. Para o actual estudo no essa a questo
essencial, dado que, independentemente de determinado verbo ser considerado
tendencialmente mais ou menos auxiliar, importa notar o comportamento de
ambos os verbos que formam o conjunto, ou seja, a perfrase verbal, e s depois
interessar perceber se o verbo chamado auxiliar , efectivamente, auxiliador
do verbo principal, e por isso momentaneamente despojado de alguns semas,
ou se, pelo contrrio, continua revestido de todos os seus traos semnticos que
fazem dele um verbo com sentido pleno. Antes, contudo, de nos abalanarmos
na anlise especfica das chamadas perfrases verbais com gerndio, teceremos algumas consideraes sumrias acerca do gerndio, dos seus usos e
valores no panorama do sistema verbal portugus24.
23
Ex.: Estive a ver televiso. / Ando a ver os filmes do Woody Allen. Apesar de surgirem duas
formas (estive + ver / ando + ver), estas remetem para um mesmo sujeito. Na verdade, o
ncleo da significao transmitido pela forma de infinitivo e atravs desta que entendemos
qual a aco praticada pelo sujeito. Ao contrrio daquilo que, erroneamente, se poderia crer, a
forma verbal que precede a de infinitivo no aponta para outra aco desse mesmo sujeito ou
de outro sujeito, mas vem revestir de diferente tonalidade a aco veiculada pela forma de
infinitivo.
24
A exposio que pretendemos, nesta fase, no ser exaustiva, na medida em que, apesar de ser
importante conhecer os usos, sentidos e valores do gerndio na lngua portuguesa, esse no
o ponto fulcral deste estudo. No descuramos, obviamente, que para o exame das perfrases
verbais com gerndio h que conhecer, precisamente, os seus usos, sentidos e valores. No
entanto, no devemos esquecer que o objecto final da anlise sero as perfrases verbais, isto
, um complexo verbal cujo sentido, temos vindo a refor-lo, no j a soma dos sentidos de
cada parte, mas um sentido uno e indivisvel, um sentido de conjunto e no um sentido
construdo dos retalhos dos sentidos de cada forma de per si.
134
Na gramtica de Celso Cunha e de Lindley Cintra, apresentam-se algumas propostas de entendimento dos usos e sentidos do gerndio, observando
que o gerndio tem uma forma simples e outra composta e apresentando
exemplos das possveis ocorrncias do gerndio em contexto sintctico25. Said
Ali, na sua gramtica histrica26, expe tambm os contextos sintcticos em
que o gerndio pode surgir e os sentidos da advindos. Na gramtica de Evanildo
Bechara27, no existe uma seco que se debruce concretamente sobre o uso
do gerndio, mas as consideraes acerca deste vo sendo feitas ao longo da
seco que diz respeito, precisamente, ao estudo do verbo.
Expomos, de seguida, sumariamente, um pensamento que entendemos
ser de ressalvar relativamente ao gerndio, seus usos, sentidos e valores28.
Epifnio da Silva Dias diz o seguinte relativamente origem da forma de
gerndio e sua evoluo para o portugus:
A forma verbal em -ndo representa etymologicamente o ablativo do gerundio
latino; herdou, porm, em parte, os empregos syntacticos no s do ablat. do
gerundio, seno tambem, e principalmente, do participio presente latino.
25
26
Manuel Said ALI, Gramtica Histrica da Lngua Portuguesa, So Paulo, Edies Melhoramento, 6 ed., 1966, p. 355-361.
27
28
Reforamos que no vamos tocar em profundidade as possveis questes tericas que possam
desenvolver-se roda do estudo do gerndio, na sua incluso numa classe sintctica, no seu
comportamento sintctico, nas suas compatibilidades ou incompatibilidades, etc. Notamos,
uma vez mais, que nos importa, sobretudo, a compreenso dos seus sentidos para deste ponto
partirmos para o estudo dos sentidos e valores das perfrases verbais com gerndio. Assim, e
para no repetirmos o que se encontra exposto em vrias gramticas, remetemos para as
seguintes obras de reflexo metalingustica, de modo a dilucidar quaisquer questes: A. GRIVET,
Grammatica Analytica da Lngua Portugueza, Rio de Janeiro, Tipografia de G. Leuzinger &
Filhos, 1881; Manuel Said ALI, Gramtica Histrica da Lngua Portuguesa, So Paulo,
Edies Melhoramento, 1966; Epiphnio da Silva DIAS, Syntaxe Historica Portuguesa, 5
edio, Lisboa, Classica Editora, Imp. 1970; Celso CUNHA, Lus F. Lindley CINTRA, Nova
Gramtica do Portugus Contemporneo, 13 edio, Lisboa, Edies S da Costa, 1997;
Evanildo BECHARA, Moderna Gramtica Portuguesa, 37 edio, revista e ampliada, Rio de
Janeiro, Editora Lucerna, 1999.
135
Temos, do ponto de vista formal, uma explicao bastante completa acerca do gerndio. Enfatizamos a referncia herana dos usos sintcticos do
particpio presente latino30 e, particularmente, a sua participao na conjugao
perifrstica. Registamos, sem comentar, porque achamos curiosa, a observao de Grivet respeitante relao do gerndio com o infinitivo e sua incluso num grupo especfico:
Desta exposio theorica, o que resalta, que, por tudo quanto essencial, os
gerundios so verdadeiras frmas do infinitivo [] os gerundios se porto frequentemente como adjectivos, ou, para fallar de conformidade com a nomenclatura desta grammatica, como apposies junto a um substantivo ou pronome: desta
observao, e de sua origem verbal proveiu provavelmente o desacerto de sua
classificao entre os participios31.
Notemos que o uso das perfrases verbais com gerndio muito mais
assinalado no portugus do Brasil do que no portugus europeu contemporneo
29
Epiphnio da Silva DIAS, Syntaxe Historica Portuguesa, 5 edio, Lisboa, Classica Editora,
Imp. 1970, p. 240.
30
Vejam-se alguns exemplos que podemos encontrar no portugus actual como herana, precisamente, do particpio presente latino: lente<LEGENTE- (aquele que l), part. pres. de LEGRE;
servente<SERVIENTE- (aquele que serve), part. pres. de SERVRE; parturiente<PARTURIENTE(aquela que d luz), part. pres. de PARTURRE; paciente<PATIENTE- (aquele que padece), part. pres. de P ATI ; utente<U TENTE - (aquele que usa), part. pres. de U TI ;
intendente<INTENDENTE- (aquele que intende), part. pres. de INTENDRE, nubente<NUBENTE(aquele que casa), part. pres. de NUBRE, entre muitos outros (docente, discente, falante,
orante, edificante, cantante, presidente, pretendente) e confrontem-se com os seguintes:
baptizando, crismando, mestrando, alimentando, educando, confessando, graduando,
magistrando, ordinando, vincendo, etc. A estas formas sincrnicas subjaz a herana da sintaxe
latina, como afirma Epifnio; em ambas as formas poder vislumbrar-se, atravs da parfrase
que se faz de cada uma delas, as funes sintcticas em causa, veiculando a ideia de aco, de
movimento, de processo, de durao Diz Manuel Said Ali, referindo-se ao gerndio, []
Tem aplicao muito mais ampla que em latim, fazendo as vezes do particpio do presente, o
qual perdeu a funo verbal, passando a servir de adjetivo e substantivo. Vide Gramtica
Histrica da Lngua Portuguesa, So Paulo, Edies Melhoramento, 1966, 6 ed., p. 146.
31
136
32
33
Atente-se nas seguintes frases: Proferindo estas palavras, o gardingo atravessou rapidamente a caverna e desapareceu / Ganhando a praa, o engenheiro suspirou livre. O gerndio
expressa uma aco realizada imediatamente antes daquela que indicada na orao principal.
Assim, vejamos como o uso do particpio com o gerndio (a forma composta de gerndio) ,
de todo, possvel, conseguindo-se o mesmo sentido: Tendo proferido estas palavras, o gardingo
atravessou rapidamente a caverna e desapareceu. / Tendo ganhado a praa, o engenheiro
suspirou livre. Encontramos estes exemplos em Celso CUNHA, Lus F. Lindley CINTRA, ob.
cit., p. 488 e seguintes.
34
Temos vindo a falar dos usos, sentidos e valores do gerndio e das perfrases verbais com
gerndio de uma perspectiva sincrnica, sem, contudo, esquecermos que nosso objectivo o
estudo das perfrases verbais com gerndio no portugus medieval e o apuramento do seu grau
de gramaticalizao. Acreditamos, no entanto, que a partir de um determinado momento
recuado no tempo os sentidos principais dessas perfrases se cristalizaram e continuaram at
aos nossos dias, apenas com possveis cambiantes, sem que isso transtorne, consideravelmente, os seus sentidos.
35
Celso CUNHA, Lus F. Lindley CINTRA, ob. cit., p. 487-491. Escolhemos esta gramtica para
representar a chamada gramtica tradicional, sem que com isso queiramos fazer qualquer tipo
de juzo positivo ou negativo a uma obra que consideramos de valor e que ter que ser vista e
analisada luz do seu tempo e dos seus objectivos. A gramtica tradicional, em abstracto, nem
sempre responde s necessidades tericas que determinadas matrias suscitam. Contudo,
relativamente a este assunto, parece-nos til a informao que se recolhe na referida obra.
36
137
ESTAR e SER
Os verbos estar e ser43 podem adquirir trs estatutos diferentes. Esta
parece-nos, no campo dos estudos lingusticos e gramaticais, uma questo con37
Exemplo: Chorou soluando sobre a cabea do co. Cf. Celso CUNHA, Lus F. Lindley
CINTRA, ob. cit, p. 488.
38
39
Exemplo: Em se lhe dando corda, ressurgia nele o tagarela da cidade. Cf. Celso CUNHA, Lus
F. Lindley CINTRA, ob. cit, p. 489.
40
Exemplo: Viajando, viajando, esquecia-se o mal e o bem. Cf. Celso CUNHA, Lus F.
Lindley CINTRA, ob. cit, p. 489.
41
42
43
Parece-nos clara a importncia da diferena de matizes existente entre o uso de estar e o de ser,
no portugus ou no castelhano, em contraponto, por exemplo, com a existncia de tre, no
francs, ou de to be, no ingls. Notemos que no francs e no ingls temos uma s forma para
significar aquilo que no portugus ou no castelhano se expressa com duas estruturas distintas.
138
sensual. Estar e ser podem adquirir quer uma funo atributiva, quer uma funo predicativa44, quer uma funo auxiliar45. Ser, concretamente, no mbito
da auxiliaridade que estes verbos mais nos importaro para este estudo46.
Deste modo, interessar conhecer o sentido de estar e de ser, ou melhor
diramos, os sentidos que estar e ser foram adquirindo desde o latim at ao
momento em que esses sentidos se cristalizaram e se prolongaram at ao presente. Estar procede do verbo latino STRE que significava estar de p47; ser
Por isso, no irrelevante no portugus e no castelhano o uso de uma ou de outra e o jogo de
tonalidades que se consegue nem sempre ser fcil de entender para os falantes de lnguas que
no possuem estas duas formas.
44
45
Se para alguns verbos como andar, ir, vir, entre outros, nem sempre consensual a atribuio
da funo de verbo auxiliar, para os verbos ser e estar esta concesso parece-nos ser aceite
pelos diversos estudiosos. Note-se que as listas de verbos auxiliares variam de autor para
autor e ainda no foi possvel, e certamente ser muito difcil que se consiga, estabelecer uma
lista de verbos auxiliares aceite por todos. Ressalvamos, ainda que, apesar das diferenas
existentes, fruto dos vrios critrios adoptados, a classe dos verbos auxiliares far parte de um
inventrio restrito (lista limitada, fechada), em contraponto com a classe maior que esta
integra, a classe dos verbos, a qual, poder, conjecturalmente, fazer parte de um inventrio
alargado (lista ilimitada, aberta).
46
Lembramos que objectivo deste trabalho o estudo das perfrases verbais com gerndio, o que
implicar a considerao do maior ou menor grau de auxiliaridade dos verbos que co-ocorrem
com estas formas, com vista ao apuramento de um maior ou menor grau de gramaticalizao do
complexo verbal.
47
Andrs BELLO aponta a particularidade de ser se aplicar s qualidades essenciais e permanentes e de estar se identificar com as qualidades transitrias e acidentais; apud Ricardo NAVAS
RUIZ, Ser y estar. Estudio sobre el sistema atributivo del espaol, Salamanca, Universidad de
139
provm da fuso dos verbos latinos ESSE e SDRE, significando, este ltimo,
estar sentado. Segundo Andrs Bello, no hay verbos de ms frecuente uso
que los dos por cuyo medio se significa la existencia directamente: ser y estar48. Estar e ser so destacados de entre todos os outros verbos como aqueles a que mais se recorre por veicularem o sentido da existncia49, a base de
todos os outros possveis sentidos. Por este motivo, decidimos analis-los a par
neste estudo e perceber mais pormenorizadamente o seu comportamento, confrontando um e outro; os seus sentidos primordiais e os seus sentidos adquiridos
aps a unio a uma forma de gerndio; a frequncia de ocorrncia de uma e
outra forma; o prevalecimento da escolha de uma forma sobre a outra.
Segundo diversos dicionrios etimolgicos50, podemos verificar que o
sentido que se encontrava, primordialmente, associado s formas estar e ser
desde o latim at evoluo para as lnguas romnicas sofrer uma evoluo. Sincronicamente, sero muito raros os casos em que estar e ser mantero os seus sentidos primevos de estar de p e estar sentado, respectivamente. No que respeita co-ocorrncia destas formas com formas de
gerndio, em perfrase verbal, as primeiras acabaro, ainda que possa existir um ou outro caso pontual, por se gramaticalizar e perder totalmente esse
sentido matricial.
Salamanca, Filosofa y Letras, 1963, p. 117. Cremos ser indispensvel a conscincia da diferena de colorao semntica dos verbos em anlise que poder, desde logo, ser corroborada
com o sentido que os verbos possuam no latim; um significando estar sentado (relevando
um estado permanente e assumpto) e o outro estar de p (marcando um estado passageiro
e casual).
48
49
50
140
Como j notmos, no existem muitos trabalhos que se concentrem, sobremaneira, neste tema,
especialmente no mbito da lngua portuguesa. Por isto, seguimos de perto alguns estudos,
que tambm j referimos, na esfera do castelhano. Cf. notas 4 e 41.
141
142
53
Atente-se, tambm, no uso da conjuno coordenativa copulativa e que ajuda, ainda mais, ao
sentido de progresso. importante notar o facto de no excerto que se apresenta surgir
representado, graficamente, um ponto final entre uma orao e outra. Este facto deve ser
considerado luz da transmisso textual e do posterior tratamento dos textos. sumamente
conhecido que no perodo temporal em que estes textos se inserem (sculos XIII a XVI) no
existia uma norma fixada quer quanto ortografia quer quanto pontuao, por isso nem
sempre sero relevantes todos os sinais que surgem em alguns textos, nem a sua colocao;
para alm de que para a feitura de um corpus como o do CIPM foi necessrio consultar vrias
edies crticas e estabelecer um critrio uniforme e coerente. Por conseguinte, no vamos
discutir em pormenor esta questo, muito embora no hesitarmos em questionar um ou outro
sinal, cuja colocao ou ausncia se mostre realmente pertinente e til para o desbravar de
determinado sentido. Vide, por exemplo, Michael METZELTIN, Segmentation Smantique
dun acte de vente mdival, em Jean ROUDIL, Phrases, textes et ponctuation dans les manuscrits
espagnols du Moyen Age et dans les ditions de texte (Actes de le Colloque organis par le
Sminaire dtudes Medivales Hispaniques (Paris, 20-21 novembre 1981), Paris, Librairie
Klincksieck, s.d., p. 141-155.
No podemos esquecer que muitas vezes a tentativa de apuramento dos usos, sentidos e
valores de cada perfrase verbal no pode descurar os elementos que constituem a perfrase.
Isto , apesar de considerarmos o valor do conjunto, pois esse o objectivo do nosso exerccio,
no podemos descuidar o valor que cada unidade tem em si mesma. Poder parecer um
paradoxo, mas, efectivamente, no o ; o que acontece que, muitas vezes, para o apuramento
do sentido de uma determinada perfrase verbal, se tomam em conta aspectos que podem
tornar as concluses duvidosas. Considere-se o seguinte trecho, apenas a ttulo exemplificativo,
que usado num estudo para corroborar um possvel valor durativo da perfrase ir + gerndio:
Os portogueeses asi for durdo e sofre~do sa batalha e~ tal presa e coita, como ouuides.
Facilmente verificamos a falibilidade da sustentao deste exemplo, pelo facto de que o verbo
143
PR
Simultaneidade
ME
Legenda
PR ponto de referncia
ME momento da enunciao
144
Reforamos, uma vez mais, que o facto de estar toda a noite obrando e
cantando no transporta, irrevogavelmente, a ideia de o fazer de p55. Mesmo
que estivessem de p quando cantavam os salmos, que era, efectivamente, a
posio litrgica recomendada, no estariam a noite inteira nessa posio, mas,
com certeza, apenas parte da noite. A ideia que se pretende reforar no ser
a de que estavam toda a noite cantando salmos e louvores a Deus, de p,
mas a ideia de que esse foi um processo contnuo que se prolongou durante um
espao de tempo considervel; cremos ser este o ponto mais importante56.
54
Reforamos, apenas, que o facto de estar esperando, no contexto em causa, envolver permanncia, no tem necessariamente de acarretar a ideia prxima da forma latina, isto , no tem de
ser, inevitavelmente, uma espera feita de p. Poder, cremos, vislumbrar-se, neste exemplo,
um pequeno grau de gramaticalizao da forma estar, na medida em que, pelo menos um dos
seus semas (de p), no tem obrigatoriamente de estar activado.
55
56
Apesar de j o termos referido, acreditamos ser importante reforar, uma vez mais, a seguinte
preocupao: para uma anlise dos usos, dos sentidos e dos valores das unidades da lngua no
145
146
sucede que o exemplo poder ser parafraseado por no podia estar sobre
os meus ps, por isso sentei-me, cuidando em mim; o que mostra que estamos, efectivamente, perante duas aces diferentes e independentes. Na frase
que se segue, inclusa no mesmo troo de texto, podemos notar, uma vez mais,
um valor de permanncia, reforado, ainda mais, pelo facto de estar se encontrar no gerndio juntamente com pensar (E estando assy pensando emtendy
(L) donde me acontiia tal cousa Ca p(o)lla ugidade das minhas maas obras
nom podia eu adorar (L) o lenho da Santa Vera Cruz)57. Repare-se que esta
frase vem na sequncia daquela que analismos anteriormente, o que poder
implicar uma continuao reforada do sentido de permanncia ou prolongamento da aco ou de um estado nessa mesma aco. O mesmo acontece com
o troo seguinte, com uma ligeira diferena:
v) E disse lhe Sam Paulo: Este he aquelle que eu preego, que decendeo dos ceeos
e tomou carne~ e padeceo morte e resurgio ao terceyro dia. Estando assy departindo,
pasou perante elles hu~u~ cego. E dise lhe Dinis per ma~dado de Sam Paulo que
recebesse vista em nome de Jhesu Christo, e logo vio, e logo Dinis con sua molher
e co~ toda sua familia recebeo a fe de Christo e bautizou se. E, depois que foy
e~sinado per Sam Paulo per tres a~nos, feze o bispo de Athe~nas, e elle per sua
preegaom tornou aa fe de Jhesu Christo a cidade de Athe~nas e grande parte
daquella terra e depois foy glorioso martir e~na cidade de Paris.
OE livro 3/captulo 11/flio 30v (Sc. XV)
Neste exemplo, algumas dvidas podero surgir quanto verdadeira classificao deste complexo verbal. Notemos que ambas as formas se encontram no gerndio. No entanto, no nos
parece que sejam duas formas independentes. Na literatura especializada, as definies de
perfrase verbal que encontrmos vo, genericamente, ao encontro daquela que adoptmos,
partindo da obra de Henrique BARROSO. E nesta no existe nenhuma referncia possibilidade de o verbo auxiliador poder ocorrer no gerndio, o que nos poder levar a entender o
composto verbal em causa como no sendo uma perfrase verbal. Porm, parece-nos que,
apesar dos argumentos contra esta conjectura, neste contexto, o complexo em causa poder ser
considerado uma perfrase verbal, cujo verbo auxiliador se apresenta na forma de gerndio com
um propsito enftico e reforador do sentido de prolongamento da aco.
147
Vejamos, de seguida, as duas nicas ocorrncias que, no conjunto do nosso corpus, conseguimos reunir, com ser + gerndio:
vi) E em os (L) rramos desta arvore estava~ muitos lirios e muitas (L) rrosas. e
hervas de muitas naturas que dava~ de sy (L) muy boo odor. E so aq(ue)lla
arvore estava~ muitas (L) co~panhas aseentadas e~ cadeiras douro. e de marfil
(L) em que siiam louva~do ao senhor Deos pollos muit(os) be~es que lhes dava.
E eram vistidos de muy fremosas (L) vistiduras. e tiinham coroas muy /||r||/
sprandece~tes (L) em suas cabeas. E ento~ disse a alma. Senhor (L) di-me que
sinifica esta arvor. ou que conpanhas som (L) estas. E o ango disse. Esta arvor
sinifica a s(an)c(t)a (L) ig(re)ja. e estes que estam so ella som aq(ue)lles que a bem
guardarom. (L) e bem acrece~taro~ p(er) seus boos m(er)ecime~tos (L) e porque
leixarom o mal e obraro~ bem.
VS5 flio 129v (Sc. XIII/XIV)
vii) Tanto que Sancto Agustinho esto leeo, logo foy espargida e~no seu coraom
hu~a luz de segurana, que tirou delle todalas treeuas da duuida da ffe de Jhesu
Christo que ante auia. E foy depois muy sancto e muy glorioso doutor e declarou
muyto estes marauilhosos e~xertos da Sancta Trindade. Onde aueeo que hu~u~
dia, se~e~do elle estudando, ueeo a elle hu~a molher pera lhe demandar conselho.
E ella feze lhe grande reuerena e recontou lhe seu negocio, mais o sancto home~
tam solamente nom tornou a cousa que lhe ella dissesse nem a oolhou, e a molher
partiu se dally con grande tristeza.
OE livro 2/captulo 2/flio 7r (Sc. XV)
No rejeitamos, contudo, uma outra leitura que tambm ser aceitvel e que a de permanncia
num determinado estado, num sentido que se aproxima daquele veiculado pela perfrase de
estar + gerndio. Podemos experimentar a permuta de uma forma por outra sem que isso
afecte, significativamente, o sentido das frases: co~panhas aseentadas e~ cadeiras douro.
e de marfil (L) em que estavam louva~do ao senhor Deos/ Onde aueeo que hu~u~ dia,
estando elle estudando. Ainda porque, no primeiro caso, o argumento que serve para fazermos
a leitura no sentido etimolgico de ser (co~panhas aseentadas e~ cadeiras douro. e de
marfil) poder servir tambm para reforar a possibilidade de estar aparecer em lugar de ser
sem se perder informao relevante, porque essa informao surge precisamente na frase
co~panhas aseentadas e~ cadeiras douro. e de marfil. Admitimos, no entanto, que a nossa
opo de leitura, por nos parecer mais natural, se aproxima mais do sentido etimolgico de ser.
No podemos, porm, ignorar todas as possibilidades que possam surgir como vlidas.
148
marfil. No nos foi possvel, em todo o corpus que reunimos, encontrar outras
ocorrncias de ser + gerndio e, to pouco, de ser + gerndio onde ser
manifeste um sentido que no aquele ligado sua etimologia latina59.
Analisados os usos, os sentidos e os valores de estar e ser + gerndio,
vejamos as ideias que dessa anlise conseguimos recolher. Pela amostra que
congregmos, percebemos que estar e ser + gerndio podero ocorrer nos
mesmos contextos, sem com isso acarretar uma significativa alterao de sentido. Deste modo, cremos poder afirmar que o uso da perfrase com estar
prevalece sobre o uso da perfrase com ser, dado que no nosso corpus de
anlise, como j referencimos, encontrmos apenas dois exemplos com ser +
gerndio60. Podemos afirmar, tambm, que a perfrase estar + gerndio no
ter sofrido um considervel grau de gramaticalizao, na medida em que, considerando a perfrase moderna, o valor principal que nela distinguimos o de
permanncia num espao, num tempo, num determinado estado, etc. Esse valor advm-lhe do sentido matricial de ficar de p, por isso no se desprendeu
totalmente da sua etimologia61.
Deixamos algumas concluses, que cremos mais relevantes, para o termo
desta anlise, para assim passarmos ao estudo das formas andar, ir e vir e
podermos, no final, estabelecer as ligaes necessrias ao bom esclarecimento
dos pontos fundamentais desta investigao.
ANDAR, IR e VIR
O verbo andar deriva do latim *AMB-TRE frequentativo de AMBRE
(dar voltas, rodear), o verbo ir provm do verbo latino RE (deslocar-se de
um local para o outro) e vir procede do latim VNRE (movimentar-se em
direco ao sujeito do enunciado62). Estes so considerados verbos de movi59
Este facto, por si s, dar-nos- j indcios do comportamento desta perfrase verbal. Mais
adiante, em lugar que considerarmos prprio, volveremos a este assunto.
60
Para completar a nossa ideia, usamos as palavras de Alicia YLLERA quando diz: Seer +
gerundio, documentado ya en el Cid aunque en minora frente a estar, alcanza un desarrollo
relativo en el siglo XIII, apareciendo en las mismas construcciones que estar y con idntico
valor. Pero su empleo cae en desuso a finales del siglo XIII o principios del XIV; en este siglo
slo aparecen raros ejemplos en verso, la prosa lo ha abandonado definitivamente, em ob. cit.,
p. 50.
61
Mais adiante, em comparao com as formas andar e ir, por exemplo, ser mais fcil percebermos a distino.
62
149
150
ix) Ou Meliom Garcia queixoso ou nom faz come home de parage escontra duas
meninhas que trage, contra que[m] nom cata bem nem fremoso: (V5) ca lhas vejeu
trager, bem ds antano ambas vestidas de mui mao pano, nunca mais feo vi nem
mais lixoso. Andam antel chorando mil vegadas, por muito mal que ham com el
levado; (V10) [e] el, come home desmesurado contra elas, que andam mui coitadas, nom cata rem do que catar devia; e poilas [el] tem sigo noite dia, seu mal
trag-las mal lazeradas.
CEM416 /D. Dinis /B 1533 (Sc. XIII/XIV)
Em ix), acima transcrito, podemos entrever j uma outra leitura, pelo facto
de, em conformidade com o contexto, no se descreverem duas aces diferentes (o andar e o chorar), mas sim uma s aco: andar chorando.
Podemos experimentar a troca de andar por estar, sem com isso afectar o
sentido da frase: esto antel chorando mil vegadas, por muito mal que
ham com el levado; ainda porque a prpria preposio ante pede, ainda mais,
o uso de estar do que de andar. Este exerccio refora a hiptese da gramaticalizao em detrimento do sentido matricial de andar. O efeito que se consegue com ambas as perfrases (andar e estar + gerndio) o de persistncia
num determinado estado, no sentido de reforar o que substancial, o choro.
No fragmento que se segue, ambos os complexos verbais so passveis de
serem entendidos luz da anlise que elabormos para ix). Temos, por isso,
uma vez mais, o verbo andar desprovido do seu sema de movimento, no
implicando que as estruturas anda juntando e andel trabalhando veiculem
a ideia, ligada a andar, de deslocamento fsico, espacial.
x) Pois teu preitanda juntando aquel que do teu bando, di-me, doutor, como ou
quando lhe cuidas fazer enmenda (V5) por quantandel trabalhando comaposta
ta fazenda. Pois com muitos h baralha por te juntar prol sem falha, di, doutor, si
Deus ti valha, (V10) se lhe cuidas dar merenda por quantel por ti trabalha como
apostata fazenda.
CEM435 / Estvo da Guarda / B 1308, V913 (Sc. XIII/XIV)
Nos fragmentos xi), xii) e xiii), abaixo reproduzidos, podemos ver como o
verbo andar atingiu o grau mximo de gramaticalizao, dado que nenhum dos
seus semas se encontra em actividade nestes trechos.
xi) E todos estes fogos asu~ados se aju~tam asu~adame~te e~no mu~do. Depois
que os angios disero~ esto a aquele sancto home~, teue elle me~tes e vio os
demo~es que andaua~ uoa~do e~ aquelles fogos e fazendo batalhas contra os
sanctos home~e~s.
OE livro 4/captulo 1/flio 38v (Sc. XV)
151
xii) Ca a molher he tal como o pintor, que, asy como o pintor faz muytas pinturas e
muytas linhas de collores, bem assy a molher com seus afaagos pinta as ymage~e~s
das maas cuydao~es e~no coraom do home~. E jsso meesmo faz o diaboo.
Onde Salamo~: Com os afaagos dos seus beiios tira per elle. E, assy como a
berbeleta tanto anda voando acerca da candea ataa que sse queyma e~ ella, bem
assy fazem aquelles que ameude husam a co~panha das molheres.
OE livro 4/captulo 57/flio 135r (Sc. XV)
xiii) Depois desto, pescadores que andauo~ pescando e~no ryo, acharo~ o seu
corpo e trouxero~ no aa egreya de Sam Pedro, e, seendo aly, viro~ todos clarame~te
hu~as ymage~e~s de sancto[s] que hi estauo~, que lhe faziam reuere~a e o
saudauo~ ho~rradame~te.
OE livro 4/captulo 36/flio 99v (Sc. XV)
152
alegraria con a tua morte aquelle que mais [ha] dauer. Onde conta Valerio que
hu~u~ home~ rrico auya huum filho que continuadamente andaua cuydando como
mataria seu padre por herdar sua rriqueza e pensaua como o mataria, con ferro ou
co~ peonha ou per outra maneyra.
OE livro 4/captulo 54/flio 130v (Sc. XV)
153
xvii) Q(ua)ndo esto ouvio Agapito e~tendeo (L) e ssoube cousa tam maravilhosa.
ficou mui espantado e foy correndo ao abbade e contou-lhe (L) todo como acontecera de Panunio e (L) de sua filha e veo o abbade e deitou-sse em t(e)rra
fazendo sseu p(ra)nto e dizia: ay Eufrosina esposa (L) de Jhesu Cristo e filha dos
Santos nenbra-te dos (L) servos de Deos con que serviste a Nosso Ssenhor (L) e
nenbra-te deste moesteiro e hora por nos a Nosso (L) Ssenhor Jhesu Cristo que
nos faa chegar ao (L) porto de ssaude e aver q(ui)nhom com os sseus (L) santos
e mandou o abbade que sse juntassem todos (L) os frayres e ffezessem ssupultura
honrradamente (L) aaquel santo corpo assy como co~viinha (L).
VS6 flio 49v (Sc. XIII/XIV)
xviii) E, despois que esto ouve feyto, tomou co~sselho com suas gentes e foysse
con suas naves pello mar ataa que chegou ao ryo Bethis, ao que agora chama~
Guadalquivyr, e foy per elle acima ataa que chegou ao logar a que agora chama~
Sevylha. E senpre hia buscando a ribeira onde acharia bo~o~ logar pera pobrar em
elle hu~a grande cidade e nom achou outro tam bo~o~ como aquelle em que agora
Sevylha he pobrada.
CGE captulo 6/flio 5a, 5b (Sc. XIV)
xix) E porem pobrou hu~a cidade ao pee do monte Cayo e pobrouha de hu~as
gentes que com elle veheram de Grecia; e hu~u~s delles era~ de Tiran e os outros
de Anssona e pore~ pos nome aa cidade Tirassona e oje em dia lhe chama~
Taraona. E, despois que esto e outras muytas cousas ouve feyto, comeou de
hyr conquerendo toda essa terra ataa que chegou a hu~u~ logar que lhe pareceo
que era bo~o~ pera pobrar e fez hi hu~a fortelleza e poselhe nome [Ur]gel, que
quer dizer em latym apremame~to, por que mais guaanhou elle aquella terra per
prema que per amor.
CGE captulo 9/flio 7c,7d (Sc. XIV)
154
que este amor foy posto e o moo foy crecendo e fazendosse mancebo, foy muy
ligeiro e valente mais que outro homem que se no mundo soubesse.
CGE captulo 5/flio 4b (Sc. XIV)
xxi) E esto faziam por duas cousas: a primeira, por que ella era muy boa e muy
fremosa e muy filha dalgo; e a segunda, por que era herdeyra do reyno. E ella no~
queria outorgar de casar con ne~ hu~u~ e esteve assy hu~u~ tempo. O padre hya
envelhecendo e os home~e~s bo~o~s da terra temyansse da sua morte. Pedironlhe
que casasse sua filha por tal que, se elle morresse, que no~ ficassem elles sem
senhor.
CGE captulo 11/flio 8b (Sc. XIV)
xxii) Qual he mayor sandice que a me~te do home~ no~ seer trigosa pera perfeio~,
quando o corpo se uay ya tostemente pera perdiom, co~ue~ a saber e~na uilhice,
e~ que os olhos ua~a~o perdendo a uista e as orelhas o ouuido e os cabellos
caaem e os dentes mi~gua~ e o coyro se e~uerruga e seca sse e o baffo cheyra mel
e o peyto offega e a tosse no~ queda e os geolhos treme~ e os pees e as pernas
incha~?
OE livro 4/captulo 9/flio 52r (Sc. XV)
xxiii) Os dAragom, que soem donear, e [os] Catales com eles a perfia, leixados
som por donas a lidar, vam-sacordando que era folia; (V5) e de bu[r]las, cuideu,
ri[i]r-sendia quem lhe dissessaqueste meu cantar: a dona gaia do bom semelhar,
amor qui nnos prearia.
CEM414 /Caldeirom /B 1623, V 1157 (Sc. XIII/XIV)
155
ueer todallas ryquezas da raynha de Ethiopia, hya per aquelle caminho, ca elle
ueera orar a Jherusale~ e tornaua-se pera sua terra em seu carro e hya leendo per
o liuro da propheta Ysai[a]s. E disse o Spiritu Sancto a Filippe: Achega te e ajunta
te ao carro.
OE livro 3/captulo 4/flio 19v (Sc. XV)
xxv) E outrossy, porque Plato, perfeyto da cidade de Constantinopla, e Marino,
per ma~dado do enperador, emaderom a hu~u~ hymno da Triindade palauras
contra a ffe e ho yam cantando con seu maao emadime~to pella praa da cidade,
ueo subitamente sobre elles nuve~e~s que lanaua~ sobre as cabeas delles
cijnza em logo de chu~u~a, e toda a cidade e a proui~cia foy cuberta.
OE livro 2/captulo 13/flio 15r (Sc. XV)
xxvi) Quando o padre esto vio, ma~dou que este terceyro filho que ouuesse o
regno pella sua grande priguia. E este rey he o diaboo que regua sobre todollos
filhos da soberua. E o seu primeiro filho he aquelle que esta e~ peccado e~
conpanhia de maaos, per que se uay hindo de mal e~ pior. E, como quer que elle
esto uee, mais escolhe de sse queymar co~ fogo de peccado que se partir de maa
conpanhia.
OE livro 4/captulo 69/flio 154r (Sc. XV)
156
65
66
Esta expresso encontra-se cristalizada ainda na actualidade. Veja-se, por exemplo, Guilherme
Augusto SIMES, Dicionrio de Expresses Populares, Lisboa, Dom Quixote, 1993, p. 375.
157
xxix) E, estando elle aa mea nocte chorando ante o loguar de Sam Pedro em oraom,
veo hu~a luz do ceeo que toda a egreya alomeou, e~ guisa que as candeas e as
lampadas no~ luziam nehu~a cousa, e com aquella claridade conpanha de sanctos,
que uiinham cantando muy doceme~te, e elle ficou muy espantado.
OE livro 2/captulo 11/flio 13v (Sc. XV)
xxx) Qve~ quer q(ue) aia deffenso~ subre algu~a demanda que lli faz seu
(con)tendor, se a defensyo~ remata o preyto todo como se fosse p(re)yto que
auya co~ seu (con)tentor q(ue) nu~nq(ua) lhy demandasse rre~ aaquel q(ue) o
dema~da ou de paga q(ue) aya feyta daquel au(er) q(ue) lhy ue~ dema~da~do en
iuyzo ou d(e) tempo q(ue) a gaada a cousa q(ue) lhy demande~ ou out(ra) cousa
semellauil, atal deffe~so~ possa parar ante sy p(er) q(ue) se deffenda an(te) q(ue)
o juyzo seya fijdo.
FR livro 2/ttulo 10/flio 97r (Sc. XIII, 1280?)
67
Entendemos este exemplo como sendo uma perfrase verbal com vir + gerndio. Temos, no
entanto, que referir que tambm pondermos tratar-se apenas de dois verbos independentes
para duas aces distintas; vejamos: o sacerdote veio a ele e admoestou-o; esta hiptese seria
possvel sem se perder o sentido.
158
159
Nos trechos abaixo transcritos, temos a perfrase ir + gerndio que transmite um sentido de movimento veiculado pela semntica do prprio verbo que
reforado com o gerndio do verbo principal.
xxxii) [...] so levados para fora numa carroa de rodas baixas puxada a seis cavalos, como s para gente real ou de grande ttulo se usa, o que, se no prova a
realeza e a dignidade dos touros, est mostrando quanto eles so pesados, digam-no os cavalos, alis bonitos e luzidamente aparelhados, encabuzados de
veludo carmesim lavrado, com as mantas franjadas de prata falsa, assim como as
cabeadas e cobertas de pescoo, e l vai o touro crivado de flechas, esburacado
de lanadas, arrastando pelo cho as tripas, os homens em delrio apalpam as
mulheres delirantes, e elas esfregam-se por eles sem disfarce [...].
MC/p. 94 (Sc. XX)
xxxiii) Cada branco vale meio preto, agora arranjem-se para conseguir entrar no
paraso, por isso que, um dia, as praias deste jardim, por acaso beira-mar
plantado, estaro cheias de postulantes a enegrecer os costados, ideia que hoje
faria rir, alguns nem praia iro, deixam-se ficar em casa e untam-se com untos
vrios, e quando saem no os reconhece o vizinho, Que faz aqui este cabra, essa
a grande dificuldade das irmandades de cor, por enquanto vo saindo estas, o
que se pode arranjar [...].
MC/p. 147 (Sc. XX)
xxxiv) Desceram Scarlatti e Bartolomeu de Gusmo ao Terreiro do Pao, a se
separaram, o msico foi inventar msicas pela cidade enquanto no eram horas de
comear o ensaio na capela real, o padre recolheu a casa, sua varanda donde se
via o Tejo, na outra margem as terras baixas do Barreiro, as colinas de Almada e do
Pragal, por a fora, at, j invisvel, Cabea Seca do Bugio, que dia luminoso,
quando Deus andou a criar o mundo no disse Fiat, se assim fosse teria ficado o
mundo todo por igual, uma palavra e basta, mas foi andando e fazendo [...].
MC/p. 159 (Sc. XX)
xxxv) Do outro lado do convento, num rebaixo que dava para a encosta, que
eram as runas. Havia paredes altas, abbadas, recantos que se adivinhava serem
de celas, bom lugar para passar a noite ao abrigo do frio e das feras. Blimunda,
ainda receosa, entrou no breu profundo das abbadas, apalpou o caminho com as
mos e os ps, temendo cair em algum buraco. Aos poucos, os olhos foram-se
habituando ao negrume, depois a claridade difusa do espao recortou os vos
das frestas, assinalando as paredes.
MC/p. 338 (Sc. XX)
160
forado, ainda mais, pelo significado dos verbos arrastar, sair, andar e fazer.
No podemos, deste modo, afirmar que ir se apresenta gramaticalizado nos
exemplos xxxii), xxxiii) e xxxiv). No entanto, se observarmos o trecho xxxv),
perceberemos que o uso do verbo ir convoca j um sentido gramaticalizado e
no um sentido enraizado na etimologia da forma verbal em causa. O contexto
ajuda ao esclarecimento desse valor, na medida em que os olhos, sujeito da
frase em causa, no podem caminhar, deslocar-se sozinhos sem o resto do
corpo, por isso possvel, ao autor, usar metaforicamente a perfrase como o
faz neste trecho: Aos poucos, os olhos foram-se habituando ao negrume. O
verbo ir perdeu o seu sema deslocar-se de um lugar para outro para, no
conjunto verbal, expressar um valor de progresso, de crescendo relativamente
a um estado.
Olhemos, agora, para o fragmento que se segue onde surge a perfrase
andar + gerndio e vejamos como andar no se apresentar totalmente
gramaticalizado.
xxxvi) J andam os lavradores lavrando, vo para o campo mesmo debaixo de
chuva, a leiva cresce da terra hmida como saem as crianas l donde vm, e, no
sabendo gritar como elas, suspira ao sentir-se rasgada pelo ferro, e deita-se de
lado, luzidia, oferecendo-se gua que continua a cair, agora muito devagar,
quase poalha impalpvel, para que no se perca a forma do alqueive, terra encrespada para o conchego da seara.
MC/p. 68 (Sc. XX)
Se pensarmos que para lavrarem a terra os lavradores tero de se movimentar, podendo deslocar-se s voltas no campo, conseguimos vislumbrar, ainda, o sentido matricial de andar. No obstante, podemos tambm entender
este andar no como um movimentar-se, caminhando, dando passos, mas,
com o mesmo sentido que vramos aquando da anlise das perfrases com
andar + gerndio nos textos mais antigos, por exemplo, em ix), onde observmos
que as aces implicadas no se desdobravam em dois actos distintos. O mesmo sucede nesta situao: no se trata de andar e de lavrar, mas de andar
lavrando ou, poderamos dizer, de estar lavrando. Assim, na perfrase em
estudo, o verbo andar apresentar um grau de gramaticalizao que no
ainda completo, mas que poder desenvolver-se nessa direco.
Foquemos, de imediato, os troos que recolhemos, onde surge o complexo
verbal com vir + gerndio.
xxxvii) Equilibrada a contagem, desinteressa-se Deus dos funerais, por isso em
Mafra foi s um anjinho a enterrar, como a tantos outros sucede, mal se d pelo
161
acontecimento, mas em Lisboa no podia ser assim, foi outra pompa, saiu o infante da sua cmara, metido no caixozito que os conselheiros de Estado levavam,
acompanhado de toda a nobreza, e ia tambm el-rei, mais os irmos, e se ia el-rei
seria por dor de pai, mas principalmente por ser o falecido menino primognito e
herdeiro do trono, so as obrigaes do protocolo, vieram descendo at ao ptio
da capela, todos de chapu na cabea, e quando o caixo foi colocado nas andas
que o haviam de transportar, descobriu-se el-rei e pai, e, tendo-se descoberto e
coberto outra vez, voltou para o pao, so as desumanidades do protocolo.
MC/p. 101 (Sc. XX)
xxxviii) Quase trinta metros de altura ser a queda, e dela morrer, e esta Ins
Antnia, por ora to orgulhosa do favor de que goza o seu homem, tornar-se-
numa viva triste, ansiosa se lhe cair agora o filho, pobre. Diz mais lvaro se
mudaro os novios para duas casas j construdas por cima da cozinha, e, a
propsito desta informao, lembrou Baltasar que, estando os rebocos ainda to
hmidos e correndo to fria a estao, no iriam faltar doenas aos frades, e
lvaro Diogo respondeu que j havia braseiros ardendo noite e dia dentro das
celas acabadas, mas que, mesmo assim, a humidade escorria pelas paredes, E as
esttuas dos santos, Baltasar, deram muito trabalho a trazer, Nem por isso, o pior
foi carregar, depois, com jeito e fora, mais a pacincia dos bois, viemos andando.
MC/p. 322 (Sc. XX)
Em ambos os casos, vir ostenta, no conjunto verbal, o seu sentido primeiro, de movimentar-se em direco ao sujeito do enunciado. Em xxxvii), toda
a descrio que envolve a aco de vieram descendo aponta para esse sentido de vir. Recorremos ao mesmo argumento que usmos atrs neste estudo,
aquando da anlise dos excertos xvi), xvii), xviii) e xix), relativos a textos de
fases pretritas da lngua portuguesa, com perfrase verbal com ir + gerndio.
Neste caso, cremos, tambm, que no composto verbal em causa o valor essencial aquele que intrnseco a vir (movimento em direco ao sujeito da
enunciao 69), verbo auxiliador de descer e andar, os quais envergam a for69
No o havamos referido, ainda, mas parece-nos a propsito a observao de que ser, com
efeito, relevante, para a distino dos sentidos de ir e de vir, a existncia de um ponto de
referncia, de uma perspectiva. Esse ponto de referncia, cuja perspectiva sumamente
pertinente, um sujeito enunciador, ponto fulcral para essa diferenciao, pois s assim
possvel perceber verdadeiramente o sentido de ir e o sentido de vir, na medida em que ambos
implicam movimento de um determinado local para outro. A disjuno de sentidos feita,
precisamente, partindo desse sujeito enunciador: ir implica movimento a partir desse ponto
de referncia, afastando-se dele, e vir envolve movimento para esse ponto de referncia,
aproximando-se dele. Fazemos este reparo, pelo facto de, mormente, nos excertos que apresentamos para a perfrase com vir + gerndio, termos de partir do princpio que existe esse
sujeito enunciador que, factual ou ficticiamente, serve, com efeito, de ponto de referncia,
desenrolando-se a aco em funo dele.
162
ma de gerndio, especificando o modo como se activa esse valor de vir: vieram descendo; viemos andando. O contexto, mais uma vez, serve de argumento para a leitura proposta, dado que alguns dos seus constituintes apontam,
efectivamente, para a leitura prima de vir: no excerto xxxvii), o verbo sair em
saiu o infante da sua cmara; o verbo levar e ir em levavam, acompanhado
de toda a nobreza, e ia tambm el-rei e o verbo transportar em o caixo foi
colocado nas andas que o haviam de transportar e, no extracto xxxviii), o
verbo trazer em E as esttuas dos santos, Baltasar, deram muito trabalho a
trazer. Note-se como neste ltimo caso o verbo trazer consolida, ainda mais,
o nosso raciocnio relativamente ao que atrs afirmmos acerca de vir e de ir.
Tal como vir se poder parafrasear como movimento em direco ao sujeito
do enunciado, tambm trazer se poder explanar deste modo, em oposio,
por exemplo, a levar que melhor se coadunar com a parfrase que
apresentmos para o verbo ir.
~~~~~
Chegamos ao cabo deste breve estudo ao longo do qual tentmos fazer
um percurso atravs das chamadas perfrases verbais com gerndio. Dentro
das possibilidades existentes, escolhemos os verbos estar, ser, andar, ir e vir
por nos terem parecido, de antemo, aqueles que ocorreriam com maior
frequncia, facto que se confirmou com o desenrolar das nossas leituras e da
nossa investigao. Deste modo, atentemos nos aspectos que cremos de importncia evidenciar, guisa de concluso. No que concerne perfrase verbal
com estar + gerndio, importa ressaltar que esta ter, desde muito cedo70,
adquirido o valor que ainda hoje lhe reconhecemos, que nos parece ser, em
grande parte dos casos, um valor de permanncia em que a aco descrita
apresentada no seu desenvolvimento, numa determinada extenso de tempo ou
no seu decorrer em simultneo com outra aco71. Em nosso entender, o verbo
estar, na maioria dos contextos, ter-se-, tambm precocemente, despegado
do seu sentido primitivo de ficar de p, ou seja, muito precocemente se ter
gramaticalizado. A perfrase com ser + gerndio apresentar, genericamente,
70
71
163
usos aproximados aos usos de estar + gerndio, tambm desde muito cedo72,
prolongando-se essa proximidade at aos nossos dias; o que facilmente se comprova se tivermos em considerao os usos sincrnicos que fazemos de ser e
estar nas diversas construes onde estes podem aparecer como auxiliares.
Por vezes, porm, parece-nos difcil distinguir qualquer cambiante de sentido
nos usos sincrnicos destas duas formas. Aventamos a hiptese de, na perfrase ser + gerndio, ser no ter sofrido gramaticalizao ou pelo menos no a
ter sofrido em elevado grau. Isso explicar, em parte, o facto de, pelo que
fomos verificando ao longo da nossa pesquisa e at pelos escassos exemplos
que conseguimos reunir, o complexo verbal ser + gerndio no ter sido muito
usado e, por esse motivo, ter sido, desde cedo, destronado pelo composto estar
+ gerndio que abriria as portas a um maior leque de sentidos, na medida em
que ter sofrido um maior grau de gramaticalizao73.
No respeitante perfrase verbal com andar + gerndio, em confronto
com os compostos ir e vir + gerndio, parece-nos ser aquela que, depois de
ter sofrido gramaticalizao74, ter sido mais usada e, sincronicamente, o seu
uso continua a ser talvez o mais recorrente. Foi-nos permitido verificar, embora, admitimo-lo, a nossa amostra seja pequena, que andar ter sido muito usado com verbos de movimento ou em contextos que veiculem essa ideia; lem72
73
74
Alicia YLLERA, referindo-se ao verbo ser, diz: En el siglo XIII se dibuja ya el empleo anlogo
al de estar en la lengua moderna como ocurra tambin en el caso de este auxiliar. Alterna en un
gran nmero de construcciones con estar. Cf. ob. cit., p. 48.
Socorremo-nos, novamente, das palavras de YLLERA: Seer + gerundio, documentado ya en el
Cid aunque en minora frente a estar, alcanza un desarrollo relativo en el siglo XIII, apareciendo
en las mismas construcciones que estar y con idntico valor. Pero su empleo cae en desuso a
finales del siglo XIII o principios del XIV; en este siglo slo aparecen raros ejemplos en verso,
la prosa lo ha abandonado definitivamente. Tomamos esta ltima observao para reforar
que na literatura, em prosa ou em verso, quando se pretende um efeito esttico diferente e at,
atrevemo-nos a afirm-lo, arcaizante, se recorre ao uso de ser em detrimento de estar. Vejamos
os exemplos que se seguem: E a outra sacudiu o seu (facho) sobre as duas cidades, e sbito no
lugar, onde elas foram, estavam dois montes de runas (A. Herculano); Todas as terradas
que eram no ancoradoiro (Filinto Elsio); Fiel ao que prometo, num instante, qual voa o
pensamento, aqui de volta serei, trazendo mo as tuas naves (Porto Alegre); Tomou um
trote e sendo sobre a atalaia do Barroso viu que levavam grande dianteira (A. Garrett);
Muito h que eu devera ser c, no assim?; Pelo seu conto enfim de prfidas promessas| amanh l serei no prazo dado (F. Castilho); Ia que nam sabiam o novo amor que s
consigo tem respeito, e assi se foram pra Almina por serem presentes em seu parto (J.
Ferreira de Vasconcelos), entre outros. Confrontem-se os exemplos apresentados em Antnio
de Morais SILVA, Grande Dicionrio da Lngua Portuguesa, [Lisboa], Editorial Confluncia,
10 ed., 1949, vol. X, p. 92.
Segundo R. SPAULDING no existem ocorrncias verdadeiramente perifrsticas de andar +
gerndio at ao sculo XIV. Apud Alicia YLLERA, ob. cit., p. 82.
164
76
77
78
Para um melhor entendimento, integrem-se as expresses no seu contexto original. Cf. seco
II b) deste estudo.
165
principal pelo gerndio, o que prova que, nestes casos, possvel, com efeito,
que ir surja de forma pleonstica. No entanto, ir poder ocorrer j de forma
metafrica, o que indiciar um processo de gramaticalizao, na medida em
que o seu significado prprio est totalmente ausente: foy crecendo; hya
envelhecendo; vam-sacordando; hya lendo; yam cantando79. No composto ir + gerndio, o verbo ir, hodiernamente, apresenta-se quase sempre
gramaticalizado, excepo de quando ocorre com verbos de movimento em
que adquire um papel redundante do ponto de vista da informao til a transmitir pelo conjunto.
Quanto ao conjunto verbal vir + gerndio, pudemos perceber,
inclusivamente, pelos exemplos que recolhemos, que ser, por contraste com
as perfrases com andar e ir + gerndio, aquela a que mais raramente se
recorrer, pelo menos quando vir mantm na perfrase o seu significado profundo de deslocamento no espao fsico em direco a um sujeito enunciador. Acreditamos que vir se ter gramaticalizado muito cedo, pelo facto de,
mais do que um movimento no espao fsico, o verbo vir aduzir perfrase
verbal um sentido de progresso temporal, mais do que fsica e espacial; observe-se: ue~dema~da~do em aaquel q(ue) o dema~da ou de paga q(ue) aya
feyta daquel au(er) q(ue) lhy ue~ dema~da~do en iuyzo ou d(e) tempo q(ue)
a gaada a cousa q(ue) lhy demande~ ou out(ra) cousa semellauil80. Contudo,
cremos que, nos nosso dias, o uso de vir + gerndio se distribuir quase equilibradamente pelo sentido associado ao significado de vir, enquanto verbo pleno, implicando deslocamento e aproximao no espao fsico e pelo sentido
metafrico que implica progresso e aproximao no tempo.
Havendo caminhado, consideravelmente, por entre as linhas e as entrelinhas de alguns textos do passado, situados entre os sculos XIII e XVI, e
passando por uma obra do sculo XX, deixamos para trs aqueles sentidos e
valores que conseguimos retirar dos usos das perfrases estar, ser, andar, ir e
vir + gerndio81, numa investigao que consideramos o tubo-de-ensaio de
uma pesquisa que merecer um maior desenvolvimento e maturao, na crena de que seria objecto de um estudo muito desafiante o levantamento e a
posterior comparao das perfrases verbais com gerndio com as perfrases verbais com preposio (a) + infinitivo.
79
80
Idem.
81
Atravs dos exemplos que escolhemos e partindo de toda a reflexo que fomos urdindo ao
longo deste estudo, podemos comprovar a lentido com que ocorrem muitos processos evolutivos e a copresena, em determinada fase, de usos sucessivos, isto , a memria da lngua.
168
caractersticas masculinas
caracterstica femininas
agressividade
autoridade
deciso
vigor
razo
independncia
raciocnio analtico
profundidade reflexiva
discernimento
doura
submisso
timidez
sensibilidade
emoo
dependncia
ilogicidade
superficialidade
intuio
Considerada a atualidade da recolha dos dados, observa-se que as atitudes arroladas decorrem de visadas bastante ultrapassadas que tentam explicar
o mundo como, de h muito, se convencionou ser ele estabelecido, sem atentar
para a falta de ressonncia com o que se verifica cotidianamente: so mantidos
e, cobrados de uns e de outros ao sabor da convenincia , os rtulos que no
mais correspondem realidade dos indivduos construtores, por igual, da realidade que os acolhe.
Alguns informantes do sexo masculino, de mais de 50 anos, declararamse saudosos do tempo em que mulher cabiam trs elocues bastantes e
suficientes para justificarem o seu estar-no-mundo:
shiit, galinha; cala a boca, criana e sim senhor, meu marido.
169
170
171
b 1) origem da mulher
b 2) evoluo da mulher,
172
173
mulher da zona
mulher de amor
mulher do piolho
mulher de m nota
mulher fatal
mulher do fado
mulher perdida
mulher do mundo
mulher pblica
mulher do pala aberto mulher vadia
( exceo de mulher do piolho, todas as lexias
ora arroladas so perfrases de meretriz).
Bem mais poderia ser dito sobre a mulher numa sociedade em que o
julgamento prvio dos indivduos comea pelas suas caractersticas sexuais.
Buscou-se, por ora, demonstrar que, na boca do povo, ao expressar a sua viso-de-mundo, o falante declara que, embora perceba a mulher como membro
necessrio de uma sociedade, ele a ope classe de ser humano essa
desigualdade bsica foi reiterada no s pelas escolhas lxicas com que so
designados os entes femininos, como tambm pelo instigante cmbio de significados que circunscrevem o estar-no-mundo quando o referente mulher.
Das expresses citadas no Aurlio nucleadas em torno da palavra homem,
100% apresentam semas positivos; das que tm mulher por foco, cerca de
92% referem-se atividade sexual e portam conotaes negativas. Enquanto a
lexia homem ou se refere humanidade no seu todo ou ao ser masculino
unicamente, mulher restringe-se sistematicamente ao ente feminino e, quase sempre, deprecia o ser a que designa, apelando, por isso, no raro, a recursos eufmicos.
174
As prprias instituies que estabelecem as condutas desejveis e esperadas dos pares sociais, as quais, quando banalizadas na fala popular, configuram a amplitude da diversidade de tratamento dispensado ao homem e mulher, explicitada pela seguinte regra:
um homem com muitas mulheres poligamia;
uma mulher com muitos homens poliandria;
um homem com uma s mulher monotonia.
A dependncia da mulher, estabelecida e cobrada por uma sociedade construda em moldes masculinos, um aprendizado longo e continuado: desde a
infncia, os meninos so educados para serem homens; as meninas para
serem mocinhas/moas, nunca para serem mulheres (o que incorreria numa
conotao depreciativa). Nessa conjuntura, tanto se fabrica a feminilidade como
a masculinidade, a virilidade, a macheza.
As constataes at aqui propostas no se esgotam nas reflexes de cunho sociolgico, antropolgico ou mesmo religioso com que se tece este texto
at este ponto; tais assertivas podem ser sonorizadas e ritmadas pelas e nas
criaes da MPB.
Com base num corpus estruturado por 12 msicas selecionadas do cancioneiro nacional, compostas no perodo entre 1940/ 1980, tituladas com nome
de mulher, tal como se expe no QUADRO 1, d-se conta das visadas de
mundo e dos estatutos organizadores das hierarquias vivenciais e vivenciadas
que plenificam a aventura vital.
QUADRO 1
CORPUS
1-Amlia
2-Emlia
3-Aurora
4-Marina
n de lexias CORPUS
95
73
42
84
5-M.Betnia
6-Dindi
7-Helena
8-Laura
n de lexias CORPUS
127
122
63
89
9-Conceio
10-Maria
11-Tieta*
12-Maria-Maria*
nde lexias
66
129
100
113
175
OCORRNCIA Mdia
23,6
4,2
3,0
21,4
7,7
8,2
9,3
4,8
9,7
5,3
2,5
0,3
N 01 N 02 N 03 N 04 N 05 N 06 N 07 N08
1-s.conc
2-verbo
3-pron
4-prep
5-p.pes
6-adv
7-art
8-conj
9-interj
10-adj.
11-explet
21,70
17,05
12,40
18,60
7,75
6,97
3,10
3,87
0,77
3,87
0
N09
N10
Total
21,70 20,49
17.05 20,02
12,40 9,17
18,60 9,09
7,57 8,75
6,97 8,44
3,10 6,10
3,87 5,57
0,77 4,11
3,87 4,08
0
0,35
176
177
178
g) das conjunes, a mais presente a aditiva e, o que garante a seqencialidade do discurso potico;
h) o rang 4 ocupado pelas preposies, de certa forma, deve-se alta
incidncia de frases nominais, principalmente em decorrncia da contribuio
das composies Emlia e Maria Bethnia, que, reconhecidamente,
destorceram a quantificao;
i) a classe dos artigos preencheu fracamente o rang 7, apesar de outros
estudos, como os do Professor Antnio Geraldo da Cunha (da Casa de Rui
Barbosa) apontarem o artigo a como o item e maior incidncia na Lngua
Portuguesa;
j) as interjeies aqui consideradas parte em virtude da natureza marcadamente emocional do corpus selecionado surpreendemente superaram
os substantivos abstratos em quantificao, ainda que se reconhea o peso da
contribuio interjectiva ocorrente em Aurora;
l) os elementos expletivos foram palidamente representados neste levantamento, ocupando o ltimo rang na cotao geral.
Com base nos demonstrativos elaborados e aqui explorados, afirma-se
que, apesar dos esforos em prol da igualdade que marcam os nossos dias, a
mulher ainda tem uma longa estrada a percorrer para se livrar dos grilhes que
lhe foram impostos por milnios de servido e mitificao de tabus, em especial
os referentes ao seu poder decisrio e a sua sexualidade. Tambm se pode
cogitar que, quando rompe as fronteiras que lhes so consentidas, a mulher se
revela, via de regra, uma pessoa que dificilmente disfara a sua revolta atvica,
tornando-se rida de afeto: distancia-se definitivamente ou quase das oportunidades de gozo da sua sensualidade e cerceia vigorosamente o seu erotismo.
Tais constataes possibilitam cogitar que a mulher de verdade assim o seria
por se tornar intangvel s carcias de um par, avessa aos devaneios e
despreendimentos s justificveis pelos holocaustos que s o desvelo amoroso
compensa e proporciona, na medida em que acena com parasos impensados.
No caso especfico do arqutipo Amlia, que, de certa forma, instiga esta
reflexo sobre o iderio feminino, reitere-se o fato de que ela nunca
presentificada mas s referida no pretrito (era, passava, gostava, sabia);
cabe perguntar se ela no se ter liberado ou libertado em vo, uma vez que
pouco se pode esperar de algum cujo padro comportamental marcado pela
conformidade; faz-se legtimo pensar que ela apenas deva ter mudado de dono.
A Amlia da cano hiperblica apesar de cotidiana; consegue ser
nem rainha nem escrava, e a sua maior virtude inscreve-se num possvel ma-
179
soquismo, cuja exacerbao tem por lema achar bonito no ter o que comer e conseguir alegrar-se com a fome que lhe bate porta; no entanto
cabe questionar-se a que tipo de fome Amlia se submete e qual teria sido a
carncia que a levou a desertar: fome de qu? quanto ter ela resistido
carncia fsica to convenientemente louvada pelo companheiro simplista? qual
ter sido a gota dgua para que ela se evadisse? quanto teria pesado para a
sua saturao o conceito exarado pelo amante no que se refere, por exemplo,
ao que seja ter conscincia? Onde estariam traadas as fronteiras famlicas de Amlia-lembrana? E mais, onde estaria ela agora, herona ausente e
santificada, j que o tempo presente do amante preenchido pela substituta
que se inscreve no grupo das que suprem as suas carncias com a explorao
desmedida e compulsiva do trabalho do companheiro? Se Amlia a mulher
de verdade, por oposio, a sua sucessora , ento, a mulher de mentira,
mas esta que est viva e presente, satisfazendo-se no exerccio de teda-emanteda do lacrimoso parceiro, na medida em que tudo que v (ela) quer:
se a consagrada mulher de verdade no preenche as exigncias do egohic-et-nunc com que se estabelece uma ao presente, tem-se de sucumbir ao
fato de que o ideal de mulher, para se sustentar, tem de acionar uma inverso
no eixo verdade-mentira. E mais: se Amlia confessadamente no tinha nenhuma vaidade (do latim, vanitas, de vanus, vazio) era tambm e por
isso mesmo um ser incompleto, longe, portanto, da perfeio acalentada pelo
discurso masculino.
A radicalizao dos papis femininos expressados pelos dados em tela d
conta da fantasia que relata a luta sem guarida entre o desejo fsico e o constrangimento socialmente definido das mulheres que parece se dividirem contraditoriamente ao se realizarem de acordo com os seus prprios desgnios, sem
pr-julgamento do que conveniente ou permitido, sem, por se autodeterminarem,
ter de ocupar irreversivelmente ou o nicho do lar ou o reduto do prostbulo
no se esquecendo que, redoma ou lupanar, esses espaos resultam da
mensurao masculina. Em Tieta, por exemplo, em que se poderia suspeitar
de uma aparente ruptura dos padres conservadores (uma vez que dela parece
advirem as decises de vir com calor, sem pudor, pra tirar nosso juzo,
rompendo-se assim o estatuto preestabelecido pelo qual no cabe mulher a
iniciativa nem da escolha da parceria nem do jogo amoroso), a uma leitura mais
atenta, revela-se, em verdade, que a personagem feminina nada mais faz do
que atender ao chamado masculino, circunscrevendo-se, desse modo, num dos
plos da linha de desempenho consentido j aludido.
Com base no levantamento lexicogrfico, morfossinttico e semntico
propiciado pelos data do corpus, pode-se apontar que o contraponto da ao
180
181
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184
Nelly Carvalho
185
2-Palavras e sentimento
Cada povo tem as suas palavras com que expressa os prprios sentimentos. Mas estes sentimentos adquirem, at certo ponto, conotaes diferentes,
consoantes as palavras que a eles se referem. Trata-se, afinal, de uma natural
decorrncia do conhecer humano. A atividade do pensar est indissociada dos
conceitos; e estes, das palavras que os suportam. Um a forma do outro;
alterando-se o elemento formal, altera-se o contedo de que forma.
Daqui decorre um problema clssico: o d real intraduzibilidade das palavras. Do mesmo modo que no existem tradues perfeitamente equivalentes
dum idioma para o outro. No basta conhecerem-se mecanicamente os vocbulos em nvel de dicionrio. Para que se traslade toda a ressonncia de uma
lngua, tem que haver aquela permeao interior, que no resultado de aprendizagem, mas de vida.
um problema amplo que se pe e que abarca questes de sociolingstica. Se uma lngua no um frio sistema de rotulaes com correspondncia
nas outras o que se poderia esperar de uma simples nomenclatura , fcil
prever a sua total falncia quando se pretende decifrar ou traduzir o mundo
ideal ou sentimental de um povo. Pode, quando muito, ver-se mitigado o seu
desvirtuamento nos campos da prxis comercial ou da mera informao objetiva; nunca, porm, em se tratando de significar vivncias interiores e estados
psquicos originais.
186
Nelly Carvalho
Poderamos ainda ajuntar um terceiro elemento que, a modo de condicionamento extrnseco, pode concorrer para a exacerbao saudosa: a emigrao
Se saudade insatisfao consciente, o homem busca na terra a possibilidade de reencontrar a plenitude. Busca fundir-se no todo material, ao encontro da radicalidade positiva. No contempla a paisagem; sente-a panteisticamente
como um todo impreciso e conciliador. Fundir-se nessa harmonia fsica, mais
do que experincia esttica , possibilitar o reencontro com o bem perdido e
desejado. Da o sentimento peculiarssimo da morria pequena morte ,
porventura o sentimento mais genuinamente saudoso entre os galegos.
Pela morria realiza-se uma espcie de ritual mistrico: a alma aspira
a morrer na terra e fundir-se nela, para garantir a posse da mesma, no tempo.
Tal forma de apego telrico e inconsciente leva o galego a sentir saudades da
sua terra mesmo quando nela vive. que, em ltima anlise, criou-se entre
ambos uma relao que transcende o campo psicolgico. Entra-se no metafsico. A terra a contemplao do homem, a sua ultrapassagem. E porque
impossvel a fuso absoluta, agrava-se a experincia da finitude: nasce a saudade.
Quanto saudade portuguesa, ela decorre sobretudo, de uma vivncia
espacial diferente: o espao dinmico, aberto, criador. Foi sem dvida, a dimenso autntica que reforou esta peculiar forma de sentir. Aquele instinto atvico
de nomandismo celta que no galego se consubstanciou, por transferncia,
num certo instinto de morte, ou morria , teve, no portugus, a sua forma de
libertao sobretudo nas grandes viagens martimas. Foi no mar que Portugal
descarregou essa tenso.
Situado entre a ltima terra mediterrnea e primeira atlntica, Portugal
projetou na oceanidade o apelo da terra e da planura a que no teve acesso:
compensou com o mar a sua escassez de continente. E este curso histrico,
alm de individuar Portugal no quadro do mundo moderno, influiu na psique
portuguesa num sentido ativista, apurando-lhe as aptides de adaptao e enriquecendo-as com experincia, exotismo, calor e claridade.
S possvel, pois, a gerao da saudade pelo amor e ausncia, quando
estes pais da saudade forem integrados num espao criador. este espao
que, finalmente h a ultrapassagem da mera saudadesolido em saudade
ausncia e desta, finalmente, em saudadecompanhia Saudade companhia
que, sendo o ltimo termo deste sentimento fundamental, engloba, em sntese
superior, ambas as primeiras. Engloba-as enriquecidas pela dimenso de servio, epopia e destino sagrado. Nele o csmico e o divino esto presentes: o
187
ente saudoso est sempre acompanhado. A relao do amor ausente transcedentaliza-se e, como tal, encontra um tempo e um espao novos: saudade
portuguesa portanto um sentimento que s se compreende tridimensionalmente, que envolve relaes essenciais com o csmico e o divino.
A saudade pois, o sentimento da soledade ontolgica do homem. Este
estado sentimental s se reflete ou transparece na poesia lrica, que , por
conseguinte, a voz da intimidade humana, a mais direta manifestao do seu
ser, a revelao do homem. Saudade e lirismo so, pois, duas etapas de uma
mesma coisa: a vivncia e a expresso da intimidade do ser humano, da sua
soedade ontolgica E mais adiante, ao analisar o pendor de transcedncia que
nos ajuda a ultrapassar a soedade original escura soedade que quase no
mais do que um puro latejar de vida individualizada o grande pensador
galego reafirma a sua tese: o eco espiritual desta soedade , j o vimos, o
sentimento a que chamamos saudade; e a manifestao deste sentimento a
lrica. A lrica , pois, a exteriorizao a transcendncia da sociedade ontolgica do homem, uma transcendncia a que poderamos chamar de confidencial, posto que a comunicao da intimidade radical do homem, quase que um
falar consigo mesmo.
Lrica que, sem se situar predominantemente na esfera do sentimento
assumido pela mente, mas, antes, na esfera da emocionalizao do pensamento, no deixa de ser legitimamente lusada e, enquanto tal, saudosa. Lirismo e
saudade, repetimos, vo juntos como os dois termos da relao significante
significado.
A terceira maneira de relacionamento com a natureza e o mais intrinsecamente lusada ao modo celta; ou seja, personificando essa mesma natureza. No h nem pretensa anulao do eu no complexo csmico, nem a
sobrenceria transcendente de quem joga esteticamente com o objeto. H antes, uma atitude de confidncia, de confronto do eu e do tu, de dualismo harmonioso elevado ao nvel pessoal.
a saudade do amor leal, que nasce da ausncia do amado enquanto a ele
ligado afetivamente. S quem ama, e fiel ao amor, que sente a solido e
tristeza da ausncia do outro, com o desejo de reencontr-lo.
Mas na minha alma triste e saudosa / a saudade escreve, e eu translado.
Neste desabafo camoniano, desde o seu desterro de Ceuta est implcito o
problema de que nos ocupamos: a relao entre saudade e lirismo.
188
Nelly Carvalho
189
190
Nelly Carvalho
Ai que saudades que tenho da aurora da minha vida! Da minha infncia querida
que os anos no trazem mais!
191
Olegrio Mariano, ligando a saudade ao amor na encruzilhada do destino, diz que ela veio ao mundo para ser boa e dar o seu sangue a quem a
queira.
Outros dizem ser parte de ns que algum leva, parte de algum que
nos fica.
E as saudades da casa em que moramos e que vemos ser derrubada em
nome do progresso? E dos bairros que se uniformizam e que se transformam
em lpides morturias das vivendas que ali existiam, cemitrio de sonhos e
jardins,dos espao das brincadeiras infantis?
S um poeta capaz de nos consolar, neste canteiro de demolies de
casas e memrias:
Vo derrubar esta casa. Mas meu quarto vai ficar, no como forma imperfeita
Neste mundo de aparncias: Vai ficar na eternidade, com seus livros com seus
quadros, Intacto, suspenso no ar!
5- Concluso
Para comemorar todas as saudades que sentimos, sentiremos e carregamos conosco, pela vida afora seja j longa ou breve ainda, um cancioneiro
inteiro no basta. As saudades que carregamos transbordam do corao.
Como diz o paraibano Ernani Stiro:
que saudades que tenho
Da minha rua da Aurora
Do rio naquela rua
Da aurora naquele rio
Daquele rio na aurora
192
Nelly Carvalho
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CMARA E CMERA
Ricardo Cavaliere
(UFF, LLP, ABF)
Fato ordinrio nas lnguas modernas, a dupla forma lexical das palavras de
significao externa atrai a ateno dos lexiclogos empenhados nos estudos
diacrnicos. Sabe-se que as variantes contemporneas de um vocbulo portugus devem-se ordinariamente a fatos restritos ao plano fontico, como ocorre
nos casos em que coexistem formas com b ou v assobio, assovio , decorrentes de degenerao da consoante oclusiva, e nos pares de alternncia voclica
em slaba tona dezasseis, dezesseis , em que atuaram foras assimilatrias
no curso prosdico da palavra. Situaes h, entretanto, em que a coexistncia
de formas anlogas se deve ao duplo ingresso de certos termos no lxico do
portugus, no raro de fontes distintas e em pocas diferentes. Este o caso de
corredor lugar de passagem e corredouro, em que o primeiro advm do
italiano antigo corridore (CUNHA, 1994), j registrado na segunda edio do
dicionrio de Moraes Silva, e o segundo encontra registro no sculo XII (cf.
VITERBO, 1965) como derivado de cu( rre(re. Nas duplas divergentes em que
figuram uma forma erudita e outra hereditria, h via de regra grande distino
semntica na lngua contempornea, como em artelho e artigo, plano e cho
etc. No caso de cmara e cmera, a duplinha a que nos dedicaremos nesse
breve estudo, o enquadramento das variantes no parece explicar-se facilmente, dado que o uso dessas formas configura-se hoje indistinto em alguns casos
e, em outros, compulsoriamente distinto, em face de sua polissemia.
Ouve-se, por exemplo, atualmente que os deputados pouco compareceram (como si acontecer) s sesses da Cmara, fato registrado pelas cmeras dos fotgrafos jornalistas. A convivncia dos dois termos paronmicos nos
textos contemporneos d ensejo a uma suposta distino de sentido, como se
constitussem dois vocbulos diferentes, o primeiro designador de aposento
ou recinto a que se restringe, em face de suas peculiaridades, o acesso das
pessoas cmara nupcial, cmara morturia, cmara-ardente etc. , sentido que metonimicamente se estende aos conselhos e colegiados de cunho
representativo cmara comercial, cmara de deputados, cmara cvel etc.
194
Ricardo Cavaliere
Cmara e Cmera
195
196
Ricardo Cavaliere
(FARIAS, 1970) esta influncia do etrusco constitui a nica explicao plausvel para a variao de grafias de palavras gregas em latim, em que ora se
transcrevem com p palavras originalmente escritas com , ora com b termos
originalmente escritos com , dentre outras mudanas. Isso porque o etrusco
no tinha as sonoras b, d e g, fato que impunha aos termos helnicos com tais
consoantes grande variao de grafia ao ingressarem no latim: gr. kubernn,
lat. gubernare; gr. pyrrs, lat. burrus; gr. amorga, lat. amurca (FARIAS,
1970: 22).
Somente aps a derrocada da ocupao etrusca entre os sculos V e IV
a.C., puderam os romanos manter contato direto com as cidades gregas j
fundadas na Pennsula Itlica. A partir desse momento, a influncia helnica no
latim intensificou-se exponencialmente, facilitando o ingresso de emprstimos
que se iam adaptando com grande facilidade ao sistema fontico latino. A alterao fontica do gr. v para o latim camera parece seguir uma regra
geral de dissimilao que atinge a vogal de slaba tona interna. Assim, a par de
kamra>camera, registram-se outros casos anlogos de dissimilao: gr. Taras, Trantos, lat. Tarentum; gr. kthornos, lat coturnus (cf. FARIAS, 1970:24).
De qualquer modo, probabilssima a hiptese de que o ingresso de v
se tenha efetuado com a preservao da vogal baixa interna, ainda que por
curto perodo. Para que se admita a regra de mudana acima referida, h de
acatar-se necessariamente uma forma anterior ainda com a em latim, de tal
sorte que se possa normalmente enquadrar a mudana de a( para e( dentro da
regularidade que atingia a vogal baixa em slabas abertas. A soluo sofre pequeno revs se observarmos que, em slaba interior aberta, o a( normalmente
passa a e ( e depois a i ( , como em *perfacio>*perfercio>perficio e
abago>abego>abigo (cf. FARIAS, 1970:182). No caso de came(ra, pois, o a(
precendente a r, proveniente ou no de rotacismo, passa a e(, como aconteceu
com *transdade>*tradare>tradere. Cumpre ainda notar que, para avalizar
essa hiptese de alterao fontica por dissimilao, haveremos igual e necessariamente de admitir um prvio deslocamento sistlico que transformou o termo helnico em um proparoxtono latino.
Uma outra questo atinente presena de came(ra e cama(ra em latim diz
respeito ao emprego das palavras nas variveis de uso, tanto em lngua oral
quanto em lngua escrita. Observe-se que a forma cama(ra atribuda pacificamente ao latim vulgar, fato de que no se duvida aqui, sem que se fundamente
com clareza, entretanto, o motivo de essa variante com a( haver-se fortalecido
nos usos populares, em dissonncia com a forma com e(, que se consolidou em
lngua escrita. Em princpio, o fato refora a tese de que, no obstante por
Cmara e Cmera
197
breve perodo, a vogal baixa interna do timo grego se manteve em latim antes
de dissimilar para e.( Da, teriam seguido curso paralelo a primitiva forma camar( a
e a alterada forma came(ra, sendo que a essa ltima se conferia maior prestgio
em registro literrio.
O Appendix Probi, como sabemos, registra a correo came(ra non
camma(ra, clara evidncia de maior prestgio da forma com e( em sermo
litterarius. Registrem-se, contudo, testemunhos de ambas as formas em alguns textos escritos, conforme nos informa o erudito lexicgrafo Guill. Freund
(FREUND,1860:399), fato que nos parece comprovar a existncia de uma forma primitiva no lxico latino com a vogal baixa interna. Nessa linha, revela-se
elucidativa a lio de Juan Corominas, para quem a forma came(ra a normal
em latim escrito, mas cama(ra no s aparece como vulgarisco como tambm
em textos de autores hispnicos como Sneca (cf. COROMINAS, 1954).
Saliente-se, por sinal, que os registros dessa forma no so to raros em
textos de temrio popular, como o Itinerario terrae sanctae, de Admnanus:
Ecclesiae interior domus sine tecto, et sine camara, ad coelum sub aere nudo
patet (CANGE, 1937:38). Diga-se, ademais, que durante o largo perodo anterior ao sculo I a.C., quando floresce em magnitude a literatura latina, no se
podia falar em diferenas lexicais expressivas entre o sermo urbanus e o
sermo litterarius. Na verdade, no se h de esquecer de que a fonte do vocabulrio prestigiado em norma culta escrita sempre foi o vocabulrio popular
sedimentado pelo uso exemplar ao longo dos sculos (cf. MAURER JR., 1962).
A coexistncia de variantes diastrticas do latim oral em cultos religiosos e nas
peas teatrais, sobretudo, favorecia o surgimento de formas lexicais em concorrncia, fato que pode explicar a mudana gradual de cama(ra para came(ra
sem que o termo original se tenha elidido totalmente.
Em sua edio do Appendix, Serafim da Silva Neto (SILVA NETO,
1946:231) ocupa-se singularmente da nasal geminada1 na forma vulgar a seu
juzo, uma pronncia expressiva, similar a outros casos como *brutto>bruto;
*burriccu>burrico; camello>camelo etc. sem que trace ao menos uma
linha para a questo da vogal tona interna. De qualquer forma, a presena da
correo came(ra non camma(ra no Appendix deixa supor que os gramticos
latinos acreditavam ser a forma com a( uma corrupo secundria da forma
com e(, criada pelo falante como resultado de um processo de assimilao
1
Sobre a evoluo mm>mb (fr. chambre, cat. cambra), leia-se o substancioso texto Camara
non cammara (App. Pr. 84): la geminada latina mm- em euskera, de Maria Jess Pantoja
(PANTOJA, 2000).
198
Ricardo Cavaliere
Cmara e Cmera
199
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Ricardo Cavaliere
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REAL ACADEMIA ESPAOLA. Diccionario de la lengua espaola. 20
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SILVA NETO, Serafim da. Fontes do latim vulgar: o appendix probi. Rio
de Janeiro, Imprensa Nacional, 1946.
SILVA, Antonio de Moraes. Diccionario da lngua portugueza. Lisboa,
Typographia de Lacrdina, 1813.
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lhes, Arajo Porto Alegre e outros lanaram a revista Niteri, na qual propunham
uma renovao esttica de cunho nacionalista para a literatura brasileira.
Nosso Romantismo coincidiu com o perodo ps-Independncia, em que
havia um forte sentimento de auto-afirmao nacionalista (uma das marcas
dessa escola) e de lusofobia. Alm disso, nossa formao tnica, histrica,
nosso meio ambiente, nossa inclinao ao sentimentalismo e sensibilidade,
tudo contribuiu para que o Romantismo se adaptasse to bem entre ns, tornando-se um movimento bastante popular, pois com ele identificaram-se profundamente, desde cedo, o gosto e a alma brasileira. Para ns, o Romantismo
significou, sobretudo, a independncia literria, propiciou o surgimento de vrias geraes de homens de letras com o pensamento voltado para o Brasil e,
no plano da linguagem, permitiu uma adequao maior entre a lngua escrita e
a lngua falada.
No campo da poesia, destaca-se o nome do poeta maranhense Gonalves
Dias (1823-1864), autor da clebre Cano do exlio. Considerado o consolidador da escola romntica no Brasil, sua obra potica, a par do lirismo amoroso, caracteriza-se pelo nacionalismo, o culto da natureza e o indianismo, sendo
ele autor de um dicionrio da lngua tupi.
Em carta a Pedro Nunes Leal, escrita em 1857, Gonalves Dias (1959:826)
reconhece a importncia do estudo dos escritores lusitanos (Que se estudem
muito e muito os clssicos), mas, coerente com a linha nacionalista do Romantismo, no se esquece de valorizar o portugus do Brasil: A minha opinio
que, ainda sem o querer, havemos de modificar altamente o portugus. E mais
adiante, enftico: E que, enfim, o que brasileiro brasileiro, e que cuia vir
a ser to clssico como porcelana, ainda que a no achem to bonita. A
propsito, atente-se para a apossnclise que a no achem, colocao pronominal clssica, lusitana, contrria ndole prosdico-sinttica do portugus do
Brasil, que nesses casos prefere a prclise: que no a achem. Trata-se de
colocao freqente nos nossos escritores do sculo XIX, sinal de que as ousadias lingsticas do Romantismo tinham seus limites. Sinal tambm de que a
tese da chamada lngua brasileira nunca passou de um grande equvoco.
No campo da prosa romntica, destaca-se o nome do romancista cearense Jos de Alencar (1829-1877). Considerado o patriarca da literatura brasileira, seus romances fizeram extraordinrio sucesso, originalmente em folhetins e
depois sob a forma de livro. Alm de abranger os grandes temas do Romantismo brasileiro, sua obra revela-se inovadora, incorporando termos indgenas e
regionalistas, a par de uma sintaxe mais prxima do portugus falado no Brasil.
Na questo da linguagem, Jos de Alencar se destaca pelo esforo desenvolvido em prol da libertao dos rgidos cnones gramaticais lusitanos, batendo-
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se pela defesa de um estilo brasileiro, mas dentro dos limites do sistema lingstico portugus e no de uma suposta lngua brasileira, absurdo que nunca lhe
passou pela cabea. Alis, tanto no ps-escrito de Diva e de Iracema, quanto
no prefcio de Sonhos douro, a posio de Alencar revela-se bastante equilibrada, como lembra Gladstone Chaves de Melo (1972:23):
Em tais escritos, bem de notar que nem uma vez falou em lngua brasileira:
sempre se refere lngua portuguesa. Fala, sim, em dialeto brasileiro, e em
abrasileiramento da lngua portuguesa. Reagiu, e quase sempre com assaz de
razo, contra o purismo exagerado, contra a caturrice gramatical, contra a superstio do classicismo.
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inexistem ou so mnimas. Nossas diferenas em relao modalidade lingstica empregada pelos portugueses residem, sobretudo, nos planos do vocabulrio cultural e da fontica ou, mais propriamente, no da prosdia (ritmo de fala
mais rpido e tendncia para a sncope das vogais pr-tnicas em Portugal). O
plano da sintaxe, principalmente a de regncia e a de colocao, tambm apresenta algumas diferenas especficas, mas a verdade que o sistema lingstico o mesmo. Conclui-se, portanto, que os nossos escritores escreveram suas
obras em lngua portuguesa com estilo brasileiro. esse estilo, que consagra o
princpio da diversidade na unidade, que buscaremos apontar, em seu aspecto
lexical, nas obras dos nossos principais escritores do sculo XIX, nas quais se
destacam os chamados brasileirismos de origem indgena e africana.
Tupinismos Foram largamente empregados pelos escritores romnticos adeptos da corrente indianista, com destaque para Gonalves Dias e Jos
de Alencar. Gladstone Chaves de Melo (1981:43), em livro clssico, cuja primeira edio de 1946, estima em cerca de 10.000 os vocbulos indgenas, a
maioria de origem tupi, incorporados ao portugus do Brasil. Mais recentemente, Gladstone (1990:112) reduz esse nmero, incluindo-se os topnimos, para
algo em torno de 4.500 tupinismos.
Os tupinismos encontram-se principalmente nos campos semnticos da
flora (abacaxi, carnaba), fauna (araponga, capivara), nos topnimos
(Abaet, Guanabara), antropnimos (Araci, Ubirajara), usos (arapuca),
costumes (moqueca), crenas (caipora), doenas (catapora) e objetos de
uso geral (jac). Nos poemas pico-indianistas de Gonalves Dias, a exemplificao j comea pelos prprios ttulos: Os Timbiras, I Juca-Pirama (Aquele que h de ser morto), O canto do piaga.
Em Os Timbiras, encontram-se, dentre outros, os seguintes termos: piaga
(paj, feiticeiro; termo dos ndios do Caribe, adaptado por Gonalves Dias),
tup (raio, trovo, por extenso, deus), cauim (bebida base de mandioca e
milho), pocema (grito de guerra dos indgenas), muurana (corda com que se
amarrava o prisioneiro), bor (flauta de bambu). No Canto do piaga, aparecem: anhang (demnio, gnio do mal), manit (penates, esprito tutelar entre
os ndios da Amrica do Norte; Gonalves Dias, consciente da universalidade
da corrente indianista entre os romnticos, no se limitava aos nossos tupinismos),
marac (chocalho), taba (aldeia), embira (fibra de certas rvores, usada para
tecer cordas), cip (planta trepadeira), coati ou quati (mamfero carnvoro).
Em I-Juca-Pirama, temos: canitar (penacho, cocar), enduape (fraldo de
penas usado pelos guerreiros), iverapeme (tambm chamada de tacape ou
tangapema = espcie de clava), tapuias (os antigos tupis). Trata-se de um
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no cap. XV da 2 parte. O termo mucama aparece no cap. XXI de Ressurreio, de Machado de Assis. Neste mesmo autor, em Memrias pstumas de
Brs Cubas, cap. LXVIII, encontram-se dois exemplos representativos: o defunto autor Brs Cubas usa o termo moleque para se referir a um ex-escravo
seu, o Prudncio. Este, por sua vez, emprega o termo quitanda. Observe, a
propsito, como Machado recorre a um desvio gramatical de sintaxe, comum
no portugus coloquial do Brasil, para poder reproduzir com fidelidade a fala
espontnea do personagem: Ainda hoje deixei ele [e no deixei-o] na quitanda, enquanto eu ia l embaixo na [e no ] cidade. O parnasiano Raimundo Correia (1860-1911) deu a um dos seus mais famosos poemas o ttulo de
Banzo (Nostalgia).
No cap. VI de Brs Cubas, Machado pe um africanismo na boca da
personagem: Ora, defuntos! respondeu Virglia com um muxoxo (gesto de
enfado). Em Quincas Borba, cap. LXVIII, diz o narrador que Maria Benedita estava nos seus calundus (de mau humor). Cumpre mencionar que muitas dessas palavras africanas, uma vez incorporadas ao nosso idioma, vestiram-se portuguesa morfologicamente, como lembra Gladstone Chaves de
Melo (1981:88). o caso, dentre outros, do verbo cochilar, que aparece conjugado na traduo que Machado de Assis fez para o poema The raven (O
corvo), de Edgar Allan Poe: Mas como eu, precisando de descanso,/J cochilava....
Os africanismos lexicais distribuem-se por diversos campos semnticos,
representativos das mltiplas atividades desempenhadas pelos negros escravos, que tiveram um contato mais ntimo e mais duradouro com os senhores
brancos do que os ndios. Desse longo contato resultou a profunda influncia
africana na cultura brasileira em geral, assunto magistralmente estudado por
Gilberto Freyre no livro clssico Casa-grande & senzala. Termos de uso corrente entre ns podem servir de exemplo, como: acaraj, angu, bab, bang,
bunda, caamba, cachaa, cachimbo, caula, candombl, camundongo,
dend, dengue, exu, fub, Iemanj, lundu, macumba, mandinga,
marimbondo, moleque, muxoxo, orix, Oxum, quilombo, quitanda, quitute,
samba, senzala, tanga, umbanda, vatap, Xang, xingar, zumbi. Alguns
podem ser encontrados nas obras da literatura brasileira do sculo XIX, mas
no fazem parte de um iderio esttico, conforme ressalvamos acima.
Arcasmos A tendncia dos romnticos para a evaso no tempo e no
espao levou-os, por motivao estilstica, a empregar diversos arcasmos, como
se v, por exemplo, no poema Sextilhas de Frei Anto, em que Gonalves
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oferece diversos exemplos da linguagem popular, alguns reveladores da tendncia animalizao dos personagens, prpria do Naturalismo: baiacu da
praia, bestas no coito, galinha podre, grande besta, gente danada para
parir, pedao dasno, perua choca, praga de piolhos, pareciam ratas, que
v para o diabo que a carregue!, sua vaca, dentre outros. s vezes, o discurso narrativo toma liberdades extremas, resvalando para a linguagem chula,
como se l no cap. XXI: Exclamava uma delas, com o pequeno seguro entre
as pernas a encher-lhe a bunda de chineladas. Ou nesta outra, do cap. VIII:
Sai da, safado! Toca l, no que quer que seja, que te arranco a pele do
rabo!. Nesse mesmo captulo, o autor emprega, em seu prprio discurso, um
coloquialismo: Ele tinha paixa [regressivo de paixo] pela Rita. A forte
sensualidade animal presente no livro aparece em passagens como esta, do
cap. XV, que descreve o pice da relao sexual de Jernimo e Rita: E com
um arranco de besta-fera caram ambos prostrados, arquejando..
Em Quincas Borba, cap. L, Machado de Assis usa um termo coloquial
para se referir a um personagem enfadonho: O Siqueira um cacete, mas
pacincia. Neste mesmo romance, cap. CLXXIX, um dos personagens refere-se loucura de Rubio empregando um coloquialismo irnico: Como vai
o gira (o louco)? O gira vai bem. A propsito, oportuno mencionar o
estudo clssico de Mattoso Cmara Jr. (Ensaios machadianos. 2 ed. Rio de
Janeiro: Ao Livro Tcnico, 1979) a respeito dos termos co e cachorro em
Quincas Borba. Mattoso chama a ateno para o valor erudito do primeiro e
o coloquial do segundo e mostra como Machado explora estilisticamente essa
dicotomia lexical.
Outra fonte importante para o estudo da linguagem coloquial-popular empregada no Rio de Janeiro, nas ltimas dcadas do sculo XIX, so as peas do
teatro de revista. Do livro Arthur Azevedo: a palavra e o riso (Rio de Janeiro: UFRJ/Perspectiva, 1988), de Antnio Martins de Arajo, extramos os seguintes exemplos: bilontra (malandro), bestunto (cabea), canoa (batida policial), chinfrim (ordinrio), mina (mulher de malandro), morcegada
(guardas-noturnos), tribofe (pessoa fracassada). Abundam tambm as frases
feitas: comer arara (deixar-se enganar), da p virada (indivduo turbulento),
arranjar/fazer gancho (arranjar-se na vida), dar cabo do canastro (assassinar algum), dar com a lngua nos dentes (cometer uma indiscrio). O
linguajar caipira tambm aparece caricaturado na fala dos personagens de Arthur
Azevedo (1855-1908): O janjo foi recrutado/Para a Guarda Nacion;/Onte
eu vi ele fardado:/Parecia um gener.
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verificar no cap. VIII do livro acima citado: La maison est moi, cest vous
den sortir (A casa minha, voc que deve abandon-la), frase de Tartufe,
personagem da pea homnima, de Molire. Em crnica de 7-3-1889, Machado (1997:517, v. 3) trata com humor a questo dos galicismos, apresentando
alguns exemplos com o respectivo sucedneo em portugus.
Regionalismos A corrente regionalista outra faceta importante do
nacionalismo literrio do Romantismo brasileiro. Acrescente-se a isto a tendncia dessa escola para a evaso no tempo e no espao, alm da preocupao em
exaltar a vida rural e as virtudes do homem do campo. Jos de Alencar, com o
romance O gacho (1870), foi o primeiro a servir-se estilisticamente da linguagem regional. Aqui, transcreveremos exemplos do romance Inocncia, de
Alfredo dEscragnolle Taunay (1843-1899), obra publicada em 1872, em plena
vigncia, portanto, do Romantismo, mas que apresenta traos fortemente realistas, em virtude de o seu autor ter vivido no sul de Mato Grosso durante o
perodo em que participou, como oficial do Exrcito brasileiro, da Guerra do
Paraguai.
O linguajar sertanejo caracteriza estilisticamente o ambiente fsico e humano da regio sul-matogrossense, aparecendo, s vezes, sob a forma de arcasmos ou de termos deformados foneticamente. Alguns exemplos: anarquia
(desmoralizao), anarquizar (desmoralizar), anicetos (insetos), ansim (assim), arrudo (barulho), cangueiros (pessoas inteis), carovel (acostumado), carreira (trabalho), casa de andar (sobrado), coco (dinheiro), data (poro, certa quantidade), doce (acar, rapadura), enfernizado (com raiva),
entonces (ento), estmbago (estmago), fsico (mdico), fundes (lugares
distantes), gimbo (quantia), imundcie (grande quantidade), lavrados (jias),
luxarias (coisas suprfluas), manducar (comer), mapiar (tagarelar), mofina
(sovina ou covarde), perciso (necessidade), permessa (promessa), pinia
(homem fraco), pirlas (plulas), rejume (regime), rufio (namorador), sabena
(conhecimento, sabedoria), socaves (lugares retirados), sustncia (alimentao), tutu (pessoa influente), trens (objetos em geral), talento (importncia,
fora fsica), tento (cuidado, juzo), trabucar (trabalhar), vosmec, mec,
vassunc, voc (pronomes de tratamento).
Lxico e estilo de poca Alm dos itens lexicais especficos arrolados ao longo deste trabalho, possvel identificar um vocabulrio prprio,
caracterizador de cada movimento literrio existente no sculo XIX, pois as
escolas e os poetas tm as suas preferncias lexicais, que os identificam esti-
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listicamente. Desse modo, parece-nos pertinente falar de um vocabulrio romntico, digamos assim, ou parnasiano ou simbolista, conforme se verifica no breve levantamento abaixo apresentado. importante notar a formao
verncula da maioria dos termos relacionados, reproduzidos aqui exatamente
como aparecem nos textos pesquisados.
Vocabulrio romntico Aproxima-se da lngua comum, apresenta um
certo tom coloquial e reflete a subjetividade prpria da escola. Distribui-se pelos campos semnticos dos sentimentos e sensaes, da idealizao da mulher
amada, da natureza. Substantivos: alma, amor, nsia, anjo, beijo, bero,
bosque, campa, crepsculo, crime, cruz, compaixo, cu, corao, dor,
Deus, delrio, desejo, donzela, xtase, escurido, floresta, febre, fibra,
flor, insnia, iluso, infncia, lbios, laranjais, lua, luar, me, medo, morte, mancebo, manh, noite, nuvem, olhos, orvalho, prazer, pranto, primores, ptria, peito, palmeira, primavera, riso, rola, sonho, sabi, sangue,
saudade, sepultura, sepulcro, sol, sombra, segredo, seio, tristeza, tarde,
vrzea, virgem, vida, volpia. Adjetivos: ardente, audaz, alegre, bravo, ditoso, etreo, escuro, forte, fraco, louco, lnguido, plida, proscrito, sagrado, sombrio, solitrio, triste, verde, venturoso. Verbos: amar, ansiar,
brilhar, beijar, dormir, fitar, lutar, morrer, querer, viver.
Vocabulrio parnasiano mais erudito, ligado mitologia e s artes
plsticas. Devido identificao da escola com a literatura clssica, registra-se
a presena de vocbulos de origem grega ou latina. Alguns helenismos: Anacreonte, Afrodite, argonautas, arcdio, Corinto, eco, Febo, heleno, Homero,
Inio, misantropo, musa, ninfa, Olimpo, plago, stiro, Tocrito, Teos,
zodaco. Latinismos (alm daqueles j citados): Baco, canora, divas, Ceres,
fauno, ignota, lmpida, Marte, mcula, moribundo, nvea, Netuno, pvido,
plagas, serpe, tenebras, Vnus, vetusto, verba, vrtice, via, vesano. No
campo das artes plsticas, so freqentes termos como: alabastro, cinzel,
estaturio, esmero, esttua, flores, gesso, lavrado, mimos, mrmore, relevos, taa, templo, vasos.
Vocabulrio simbolista Ligado msica, captao de matizes e
religiosidade. H preferncia por vocbulos exticos, por um lxico espiritualizado, tendendo ao misticismo ou transcendentalismo. Substantivos (alguns so
abstratos no plural): aucenas, arcanjo, ngelus, bandolins, brancura, bruma, ctara, claustro, cantos, catedral, desejos, distncias, diluncias,
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eflvio, epstola, Evangelho, fosforescncias, formas, harpa, imortalidades, incenso, lua, lrio, luar, latescncias, liturgia, longes, mirra, majestades, naves, neblinas, neves, plangncias, quebranto, sonata, sacro, surdina, salmos, sacrrio, soluo, serenidades, solenidades, sonhos, sol,
triunfamentos, violo, vozes. Adjetivos: arcanglico, alvo, azulado, augustas, branco, bblica, bdica, hialino, castos, cristalinas, cndido, celestial,
diludas, errantes, ebrneo, finas, flgidas, fluidas, funambulescos, gtico, letrgico, lvidas, leves, lirial, lcteo, msticos, nveo, neblinantes,
nivosas, pulcro, purpreo, sonora, sidreo, sacro, tpidas, turvo, tantlicos,
transfigurado, vaporosas, vagos, virgens. Verbos: alvorar, notambular,
ondular, oscilar, tremer, transfigurar (verbo-chave no Simbolismo). Advrbios: amargamente, remotamente, noturnamente, pulverulentamente,
soluantemente, torcicolosamente (os trs ltimos so neolgicos).
4 Concluso
O sculo XIX foi extremamente importante e decisivo para o Brasil, em
muitos aspectos. Politicamente, preservamos nossa unidade e afirmamos nossa Independncia como nao. Culturalmente, criamos uma literatura autnoma, genuinamente brasileira como expresso e afirmao esttica dos nossos
valores nacionais. Lingisticamente, incorporamos e reelaboramos termos e
maneiras de dizer que servem de expresso aos sentimentos e s aspiraes do
nosso povo, em sua diversidade tnica e cultural. A partir do sculo XIX, consolida-se o portugus do Brasil, nos diversos planos da lngua. No caso do
lxico, o levantamento aqui apresentado, embora sumrio, oferece uma idia
geral do acervo empregado pelos nossos escritores dos Oitocentos, em seus
variados aspectos, quer lingsticos, quer estilsticos, e reafirma a existncia de
um idioma comum ao Brasil e a Portugal, vale dizer, lngua portuguesa com
estilo brasileiro. Oxal este modesto artigo sirva de ponto de partida para a
elaborao de futuros dicionrios das escolas literrias e dos autores que pontificaram no Brasil ao longo do fecundssimo sculo XIX.
5 Bibliografia
CASTRO, Yeda Pessoa de. Falares africanos na Bahia. Rio de Janeiro,
Academia Brasileira de Letras/Topbooks, 2001.
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Castelar de Carvalho
RESENHA CRTICA
Mariza Mencalha de Souza
UFRJ
SILVA, Ams Colho da & MONTAGNER, Airto Ceolin. Dicionrio latinoportugus. Apresentao de Evanildo Bechara. Rio de Janeiro: Ingrfica
Editorial, 2006.
(Contatos: (21) 2270-7478/Fax 3105-8224)
H muito tempo, os latinistas vnhamos sentindo a falta de um dicionrio
latino-portugus. Isso se explica porque os dicionrios em lngua verncula esto esgotados, e os estrangeiros, alm de caros, so difceis de serem encontrados e exigem, sobretudo dos iniciantes em latim, o conhecimento e domnio de
uma outra lngua que nem sempre eles tm.
Quem da rea sabe que os dois ltimos dicionrios de latim publicados
no Brasil datam da dcada de noventa. Um de autoria do fillogo e latinista F.
R. dos Santos Saraiva, e o outro do clebre latinista Ernesto Faria, homenageado recentemente num colquio organizado pelas Universidades Federal do Rio
de Janeiro e Federal Fluminense. O do professor Ernesto Faria, lanado pela
Fundao de Assistncia ao Estudante, rgo do MEC, nunca mais foi reeditado,
e o do professor Saraiva, da Garnier, est esgotado h mais de dez anos.
Essas edies, quando disponveis, so vendidas como raridade pelos livreiros, tornando-se, desse modo, difcil adquiri-las, devido ao preo elevado
que passam a ter, principalmente se bem conservadas. As edies mais antigas, tanto dos autores estrangeiros quanto dos nacionais, so encontradas, s
com muita sorte, escondidas em um cantinho das prateleiras empoeiradas de
um sebo e por preo nem sempre acessvel ao estudante de Letras.
Conscientes dessas dificuldades e pensando nos docentes e alunos de
latim, Ams Colho da Silva e Airto Ceolin Montagner, doutores em lngua e
literatura latinas, professores da Universidade do Estado Rio de Janeiro, tiveram a louvvel iniciativa de trazer a pblico o Dicionrio latino-portugus. A
obra resgata os estudos clssicos e revaloriza os diacrnicos, hoje praticamente abandonados em nossas Faculdades de Letras e, entretanto, to importantes
para a compreenso do funcionamento sincrnico de nossa lngua.
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Resenha crtica
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Confluncia 31
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ROSALVO DO VALLE. Professor Emrito pela Universidade Federal Fluminense. Aposentado como Titular de Lngua Latina da Universidade Federal
Fluminense. Membro da Academia Brasileira de Filologia.
TEREZINHA BITTENCOURT. Doutora em Lingstica pela Universidade
de So Paulo. Professor Adjunto de Lingstica da Universidade Federal Fluminense. Membro da Academia Brasileira de Filologia.
Confluncia
ASSINATURA
Os nossos leitores podero receber em suas residncias a revista, ao preo de
R$ 25,00, correspondente ao nmero 27 e 28 (duplo) do 1 e 2. semestres de 2004, ou
de R$ 30,00, para a assinatura anual dos nmeros 29 e 30 (duplo) do 1. e 2. semestres
de 2005, mais a despesa de porte, caso utilizem os servios dos correios.
Estes preos so vlidos para os nmeros anteriores, com exceo do 1 ao 5, que
esto esgotados.
Para os pedidos do exterior o preo de cada nmero ser de US$ 10.00 (dez
dlares americanos) e de US$ 20.00 (vinte dlares americanos) para a anuidade, mais as
despesas de remessa.
Os interessados devero enviar o seu pedido com os dados solicitados na ficha
abaixo, e remet-lo, acompanhado do comprovante de depsito para:
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