Que Opções para Uma Política Cultural Transformadora - Rui Matoso - 2014
Que Opções para Uma Política Cultural Transformadora - Rui Matoso - 2014
Que Opções para Uma Política Cultural Transformadora - Rui Matoso - 2014
0. PREMBULO
Na nossa atualidade ps-poltica, em que o discurso dominante tenta obstruir a
prpria possibilidade de uma alternativa ordem atual, todas as prticas que
possam contribuir para a subverso e a desestabilizao do consenso neoliberal
hegemnico so bem-vindas.
Chantal Mouffe
Com efeito, nada nos permite afirmar que de repente as polticas sociais se teriam
tornado impossveis, que as polticas industriais apenas teriam efeitos negativos,
que a tecnologia estaria ao servio exclusivo de interesses financeiros dominantes,
que a runa das antigas formas de gesto administrativa da economia apenas
poderia levar ao triunfo de mercados selvagens.
Alain Touraine
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linhas de orientao e comunicando o sentido das realidades locais, com vista a uma
universalizao dos valores em presena, tendendo a melhorar a caracterizao futura
dos
chamados
programas
de
cooperao
territorial
europeia"
(Comunidade
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ouvido" (Bhabha, 2007: 25), bem como o entendimento da cultura como capacitao
para exprimir as aspiraes dos cidados diretamente envolvidos nas esferas da criao
e produo cultural, isto , favorecendo uma poltica de reconhecimento. Pois qualquer
projeto ou iniciativa de desenvolvimento, seja grande ou modesta no seu mbito, deve
desenvolver um conjunto de ferramentas para identificar o mapa cultural das
aspiraes (Appadurai, 2004).
2. CULTURA E DESENVOLVIMENTO
Quando um sistema incapaz de tratar os seus problemas vitais, se degrada ou se
desintegra ou ento capaz de suscitar um meta-sistema capaz de lidar com seus
problemas: ele se metamorfoseia.
Edgar Morin
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De 1970 at ao presente foi constante o embate entre perspetivas distintas, por exemplo
entre o Choque de Civilizaes de Samuel Huntington (1999) e o Orientalismo de
Edward Said (2004). Todavia, neste campo, o papel da UNESCO e do Programa das
Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) tem sido relevante na defesa da
importncia da dimenso cultural do desenvolvimento. O relatrio de 1995, Our
Creative Diversity (UNESCO,1995) ou o relatrio de 2004 do Desenvolvimento
Humano Liberdade Cultural num Mundo Diversificado (Programa das Naes Unidas
para o Desenvolvimento, 2004), so exemplos claros disso mesmo.
Independentemente das conquistas polticas e culturais efetivas, inegvel que cultura
e desenvolvimento se interpenetram e quase se fundem, evidenciando o composto
dinmico que Augusto Santos Silva (2000) identifica com o Ser e o Agir, duas
dimenses fundamentais da existncia humana que, na sua interdependncia ntima,
conferem sentido s diversas estratgias de ao. A cultura , portanto, o lugar mais
adequado para pensar a integrao das mltiplas dimenses do desenvolvimento.
Contudo, uma outra correlao indispensvel quando se trata de abordar o tema do
desenvolvimento a sua conexo direta com a qualidade efetiva da democracia,
designadamente quando a colocamos ao nvel local, uma vez que a esta escala que a
participao democrtica ativa e plural mais se faz sentir e os seus efeitos maior
potencial comportam.
Se o desenvolvimento tem necessariamente a ver com transformao, por ser sobretudo
um processo de elaborao, confronto e realizao de projetos, torna-se necessrio uma
poltica cultural do desenvolvimento: a cultura como conscincia crtica do
desenvolvimento; e em simultneo, uma poltica de desenvolvimento da cultura:
reforo da democracia participativa e da diversidade cultural, participao
culturalmente orientada.
Pressupe-se portanto um desenvolvimento endgeno nunca limitado a uma viso
ensimesmada, mas pelo contrrio, aberta ao cosmopolitismo -, para que os atores
possam mudar-se a si mesmos atravs da criatividade social em vez de continuarem
presos a imposies neocoloniais de qualquer gnero. E desta forma, "assegurar a cada
um a possibilidade de contribuir para a formao de ideias e participar na definio das
opes que determinam o futuro", diz a Declarao Europeia sobre os Objectivos
Culturais (Conselho da Europa, 1984).
As possibilidades de auto-determinao e livre interveno cvica correspondem s
ideias desenvolvidas por Amartya Sen na sua obra O Desenvolvimento como
Liberdade, partindo do princpio fundamental de que a liberdade individual um
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A noo de cidadania cultural denota o papel formativo da cultura na compreenso e construo das
prticas de cidadania, tais como as formaes de identidade e os comportamentos altrustas que
contribuem para uma capacidade coletiva de viver juntos. A cidadania cultural centra-se na expresso,
produo e participao cultural como processos chave atravs dos quais a cidadania se desenvolve e
floresce.
"O desenvolvimento humano est preocupado com o que eu considero ser a ideia de desenvolvimento
de base: ou seja, o avano da riqueza da vida humana, mais do que a riqueza da economia em que os
seres humanos vivem, que apenas uma parte dela." Amartya Sen, PNUD. Consultar:
http://hdr.undp.org/en/humandev
A Agenda 21 da cultura o primeiro documento, com vocao mundial, que aposta por estabelecer as
bases de um compromisso das cidades e dos governos locais para o desenvolvimento cultural.
Consultar: http://www.agenda21culture.net/
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Sobre
a
relao
entre
cultura
e
desenvolvimento
humano
sustentvel
vide:
https://www.academia.edu/3504522/CULTURA_E_DESENVOLVIMENTO_HUMANO_SUSTENT%
C3%81VEL
Vide: Juan mozzicafredo, Isabel Guerra, Margarida A. Fernandes, Joo Quintela [1988]. Revista Crtica
de Cincias Sociais n 25/26.
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http://www.cm-lisboa.pt/municipio/camara-municipal/carta-estrategica (consultado em 06 de
novembro de 2011)
A resilincia cultural de uma cidade a energia interna (vitalidade) que permite que a cidade consiga
reagir a foras externas, adaptar-se criativamente a elas mas conservar a sua identidade especfica, a
longo prazo, apesar dos processos de transformao turbulentos. A noo de resilincia cultural
enfatiza a necessidade de salvaguardar a memria cultural da comunidade enquanto fora produtora e
formadora da conscincia coletiva, contribuindo para a sustentabilidade da confiana, da cooperao e
da coordenao de aes, promovendo um sentido de pertena e de comunidade. A resilincia cultural
depende da capacidade de reflexo e deciso de forma sistemtica, multidimensional, aberta e
relacional, vinculando as perspetivas de curto, mdio e longo prazo.
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geralmente
considerado
separados
ou
em
conflito/contradio,
http://www.eclectis.eu/
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Cidade, onde refere que a transduo supe um feedback incessante entre o quadro
conceptual utilizado e as observaes empricas. A sua teoria (metodologia) d forma a
certas operaes mentais espontneas do urbanista, do arquiteto, do socilogo, do
poltico e do filsofo. Ela introduz o rigor na inveno e conhecimento na utopia
(2012: 111).
A pertinncia do uso da ideia de transduo prende-se com a necessidade de entender a
cidade enquanto suporte das mediaes (relacionais e comunicacionais), i.e., de
conceber a cidade como um sistema semntico, semitico ou semiolgico, a partir da
lingustica, da linguagem urbana ou da realidade urbana concebida como um conjunto
de signos (idem: 65), e que implica compreender a funo de modulao e traduo
(transduo) da pluralidade de informao e conhecimento circulante na cidade.
No campo da filosofia da tcnica e da comunicao (ressonncia, individuao,
iterao, interao, feedbacks mltiplos), a genealogia da hermenutica dos processos
transdutivos (entre seres humanos e os meios ambientes urbanos, naturais e
tecnolgicos) deve contudo ser procurada na obra do filsofo francs Gilbert Simondon
(2009), o qual foi de facto quem mais desenvolveu este quadro conceptual, a partir dos
pressupostos da filosofia evolucionista (Bergson e Georges Canguilhem), da etnografia
e da teoria da projeo orgnica (Ernst Kapp).
A utilidade de transpor para a temtica da governana urbana o quadro terico da
transduo, deve-se, tal como referido anteriormente (Meuleman), necessidade de
desenvolver novos paradigmas e modelos de governana e sustentabilidade que
incluam a dimenso cultural na sua verdadeira potncia (diversidade, pluralismo,
democracia, participao, redes e tecnologias,).
Importa pois reconhecer que a noo clssica de forma (esttica) se tornou insuficiente
para pensar a transduo, pois a teoria da forma ignora a meta-estabilidade (equilibro
meta-estvel); ento necessrio que seja substituda pela noo de in-formao
(forma significativa). Pensar transdutivamente mediar entre ordens diferentes e
colocar realidades heterogneas em contacto, e transformando-as em algo diferente - e
representa a verdadeira marcha da inveno, no sendo por isso dedutiva nem indutiva
(Simondon, 2009). Um evento transdutivo ento aquele que articula realidades
diferentes, fazendo emergir o que antes existia separadamente.
para ns evidente que quando hoje se equacionam as problemticas de governana,
sustentabilidade e polticas pblicas de cultura, temos de ter em mente a complexa
meta-estabilidade
(permanente
tenso
equilbrio-desequilbrio)
associada
ao
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que a essncia das tecnologias transdutivas reside na mediao das relaes entre
pessoas, mquinas, coisas e animais. preciso pois notar que a mediao tcnica no
liga diretamente, mas modula as relaes dos coletivos sociotcnicos (homemmquina). Uma das linhas de pesquisa nesta rea da organologia a desenvolvida por
Bernard Stiegler, e por si designada como psicotecnologias da transindividuao
(Stiegler e Rogoff, 2010), e vem sendo aplicada no centro de investigao coordenado
por Stiegler e Vincent Puig no Centre Pompidou26.
Com maior ou menor nfase no papel das tecnologias no quotidiano das cidades, no
espao pblico ou espao privado, na gesto do bem comum ou na individuao
psicolgica e social, o que no podemos negar que as estratgias polticas de
governana requerem o pensamento complexo para lidar com o incerto, o acaso, o jogo
mltiplos das retroaces (Morin, 1991: 19). Estas transformaes de paradigmas
pressupem uma viragem do pensamento (mindset), do pensamento simples
(disjuntivo e segregador) para o complexo (multidimensional, integrador) capaz de
ultrapassar as dificuldades contemporneas reproduzidas pela "patologia do saber" e
pela inteligncia cega (idem: 16).
5. CODA
Em Notas para una tica hacker en la cultura local, Jos Ramn Insa Alba (s/d),
realiza uma justa sntese da convergncia da cultura tecnolgica nas realidades
culturais institucionais, afirmando mesmo que a capacidade de recombinar
informao e conhecimento atravs das estruturas sociais a verdadeira fonte de
inovao para a cultura local, o contexto tudo e no pode haver nenhum progresso
real sem uma interao aberta.
Ao nvel das instituies, contnua Jos Alba, o autismo produz monstros, pois no h
nenhuma maneira de continuar a trabalhar a partir de modelos institucionais herdados
do sc. XIX. Assim, o trabalho atual das instituies pblicas deveria ser o de
laboratrio, ou seja, mais do que a mera distribuio de programas culturais,
ligeiramente idnticos em todo o lado. simples: Imagine-se as instituies pblicas
locais como espaos para a troca e debate de ideias. simples, mas raramente acontece.
Para alm da crtica dos modelos ultrapassados de governana urbana, importa
igualmente a escala crtica das instituies pblicas, mas tambm a esse nvel nos
confrontamos com a hiptese, levantada por Chantal Mouffe (2014), resultante da sua
26http://www.iri.centrepompidou.fr/
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