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Que Opções para Uma Política Cultural Transformadora - Rui Matoso - 2014

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Revista Lusfona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies

Vol. 2, n.2, pp. 144-164, 2014


ISSN 2183-0886

QUE OPES PARA UMA POLTICA CULTURAL


TRANSFORMADORA?
Rui Matoso
Universidade Lusfona de Humanidades e Tecnologias, Portugal

Resumo: A questo fundamental entender que cultura e cidade so interdependentes e constituintes do


ecossistema urbano-simblico, que poder e cultura so duas dimenses axiais da interao social e da
resilincia cultural, e que neste contexto emerge a necessidade de abrir as diversas esferas pblicas das
cidades democracia radical e ao questionamento dos problemas concretos e das potenciais solues
alternativas. Tal necessidade advm do simples reconhecimento que sem uma transformao do poder
local, sem uma redefinio das estruturas de relao de poder existentes, e do seu corolrio como efetiva
distribuio relacional do poder pelos cidados, o espao pblico continuar refm da inrcia reprodutora
dos mesmos vcios e negligncias. Em suma, qualquer poltica cultural que se pretenda assumir como
transformadora, ter de permitir no seu interior cristalizado a existncia de "prticas instituintes", prticas
que possibilitem a re-instituio das instituies socioculturais, que coloquem em causa a construo social
do consenso operacional e favoream o reconhecimento das diferentes necessidades culturais e das
exigncias feitas por pessoas e organizaes de um dado territrio.
Palavras-chave: Poltica; Cultura; Transformao.

0. PREMBULO
Na nossa atualidade ps-poltica, em que o discurso dominante tenta obstruir a
prpria possibilidade de uma alternativa ordem atual, todas as prticas que
possam contribuir para a subverso e a desestabilizao do consenso neoliberal
hegemnico so bem-vindas.
Chantal Mouffe

Com efeito, nada nos permite afirmar que de repente as polticas sociais se teriam
tornado impossveis, que as polticas industriais apenas teriam efeitos negativos,
que a tecnologia estaria ao servio exclusivo de interesses financeiros dominantes,
que a runa das antigas formas de gesto administrativa da economia apenas
poderia levar ao triunfo de mercados selvagens.
Alain Touraine

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Revista Lusfona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies Vol. 2, n.2

Este artigo surge na sequncia da participao do autor, enquanto moderador e relator


do ciclo de conferncias Cultura, Espao Pblico e Desenvolvimento: Que opes para
uma poltica cultural transformadora1 promovido pela Comunidade Intermunicipal do
Alentejo Central (CIMAC), nos dias 12, 13 e 14 de Junho de 2014 em vora, uma
iniciativa integrada no projecto 3C4 Incubators Culture, Creative and Clusters for
Incubators2, de cooperao territorial europeia, financiado pelo Programa MED 3, o
qual tem como objetivo central a promoo do sector cultural e criativo enquanto fator
de desenvolvimento territorial e de inovao econmica e social.
Os comentrios e snteses das intervenes dos quatro painis constituintes do ciclo de
conferncias (cultura e desenvolvimento; cultura e espao pblico; cultura e territrio;
experincias de interveno cultural), encontram-se includos na publicao bilingue
disponvel na sua verso digital (Comunidade Intermunicipal do Alentejo Central e
Matoso, 2014).
Pretende-se agora proceder a uma (meta)reflexo, distanciada do evento e da respetiva
publicao, com o intuito de identificar horizontes de pensamento, investigao e ao
suscitados pela pergunta inerente ao ciclo de conferncias: Que opes para uma
poltica cultural transformadora?
Resumidamente, diramos que se trata de um conjunto de reflexes em torno das
polticas culturais locais e da sua ntima conexo com a ideia premente de redemocratizao da vida coletiva.

1. ENQUADRAMENTO NO PROGRAMA MED


Conforme referido pela organizao, o ciclo de conferncias pretende abordar e
debater as relaes entre cultura, espao pblico e desenvolvimento, procurando
identificar alternativas de interveno cultural geradoras de desenvolvimento social
(Comunidade Intermunicipal do Alentejo Central e Matoso, 2014: 5). Deste modo, a
CIMAC, na sua qualidade de chefe de fila do referido projecto financiado pelo
Programa MED - de Cooperao Territorial para o Mediterrneo 2017-2013, no eixo
prioritrio 1: inovao, pretendeu igualmente fazer uso do principio de subsidiaridade
previsto nos tratados da Unio Europeia, o qual implica que as decises da Unio
Europeia devem ser tomadas ao nvel o mais prximo possvel do cidado.
Consequentemente, e segundo a entidade lder do projeto, " necessrio tirar partido da
experincia e dos dados entretanto adquiridos, afinando as prioridades e as novas
http://tinyurl.com.pcrqaek
http://www.3c4incubators.eu
3 http://www.programmemed.eu
1

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linhas de orientao e comunicando o sentido das realidades locais, com vista a uma
universalizao dos valores em presena, tendendo a melhorar a caracterizao futura
dos

chamados

programas

de

cooperao

territorial

europeia"

(Comunidade

Intermunicipal do Alentejo Central e Matoso, 2014: 5).


Com o intuito de incentivar os agentes culturais da regio a adotar uma perspetiva
integradora da dimenso cultural no paradigma de desenvolvimento integrado e
duradouro, a organizao complementou o aludido ciclo de conferncias com a
realizao de um workshop relativo ao tema cultura e desenvolvimento sustentvel4,
complementado ainda com uma srie de visitas de estudo a espaos e a estruturas de
produo cultural localizadas em vora.
Dito de forma sumria, o conjunto global das iniciativas agregadas ao projecto 3C 4
Incubators Culture, Creative and Clusters for Incubators, inclui-se na finalidade de
promoo da coeso territorial defendida pela poltica regional da Unio Europeia
(Inforegio) 5 , visando assim apoiar a criao de emprego, a competitividade, o
crescimento econmico, uma melhor qualidade de vida e o desenvolvimento
sustentvel.
Do ponto de vista poltico importava contribuir, atravs do princpio de subsidiaridade,
para a caracterizao dos futuros programas de cooperao transnacional, chamandose a ateno para a necessidade da reflexo crtica em torno das polticas pblicas de
cultura ao nvel local, numa viso integradora da cultura nas restantes dimenses da
democracia (territrio, espao pblico, participao, educao, desenvolvimento
sustentvel, ...).
Do ponto de vista da participao, da capacitao e empoderamento dos agentes
culturais havia que proporcionar um encontro (ciclo de conferncias e workshop) que
promovesse a partilha e o debate em torno das relaes entre cultura, territrio,
desenvolvimento, espao pblico e as respetivas experincias de interveno cultural.
O resultado da interlocuo foi posteriormente publicado e entregue entidade gestora
do programa MED, de modo a que as necessidades e aspiraes dos agentes culturais
locais sejam escutadas pelos gestores dos programas de financiamento europeus
(bottom-up).
Cumpre-se assim o requerimento da "existncia de instituies polticas e culturais que
protejam e promovam o direito narrao e, complementarmente o direito a ser
4
5

http://tinyurl.com/mcjapzs (consultado em 03 de novembro de 2014)


http://ec.europa.eu/regional_policy/index_pt.cfm

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ouvido" (Bhabha, 2007: 25), bem como o entendimento da cultura como capacitao
para exprimir as aspiraes dos cidados diretamente envolvidos nas esferas da criao
e produo cultural, isto , favorecendo uma poltica de reconhecimento. Pois qualquer
projeto ou iniciativa de desenvolvimento, seja grande ou modesta no seu mbito, deve
desenvolver um conjunto de ferramentas para identificar o mapa cultural das
aspiraes (Appadurai, 2004).

2. CULTURA E DESENVOLVIMENTO
Quando um sistema incapaz de tratar os seus problemas vitais, se degrada ou se
desintegra ou ento capaz de suscitar um meta-sistema capaz de lidar com seus
problemas: ele se metamorfoseia.
Edgar Morin

No contexto da histria contempornea, a relao entre cultura e desenvolvimento


econmico esteve durante sculos marcada pela opresso colonial, mas foi com os
processos de produo do capitalismo fordista que surgiu o termo reajustamento
cultural no planeamento do desenvolvimento econmico, o qual se referia
necessidade de promover um processo de sujeio social e de aculturao das
populaes autctones, pois em diversos pases colonizados as suas tradies culturais
dificultavam a expanso do trabalho industrial em massa.
Rodolfo Stavenhagen (2001) foi mais longe ao definir o conceito de colonialismo
interno para se referir condio dos povos nos pases colonizados e a sua subjugao
a uma poltica que os induzia a incorporar a cultura da economia capitalista nas suas
prprias vidas, significando muitas das vezes a destruio das suas representaes e
produes culturais.
Na dcada de 1970, a noo de etnodesenvolvimento (Stavenhagen, 2001) surgiu
como meio de combater o etnocdio, permitindo uma resposta dos grupos tnicos e
minorias e o reencontro com os valores da sua cultura especfica, com foco no reforo
da sua capacidade de resistir explorao e opresso e, especialmente, no seu poder de
deciso independente, atravs de um controlo mais eficaz dos processos polticos,
econmicos, sociais e culturais que afetam o seu desenvolvimento. A cultura do
apartheid na frica do Sul um exemplo clssico de como a imposio da segregao
tnica serviu os interesses exclusivos de desenvolvimento econmico da classe
dominante. Neste contexto s a mundiviso ps-colonial de personalidades como
Frantz Fannon, Leopold Senghor, Aim Cesaire ou Amilcar Cabral, permitiu identificar

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a urgncia da descolonizao cultural como fundamental para a luta pela libertao


nacional.
A UNESCO viria a enfatizar pela primeira vez em 1982 a relao entre cultura e
desenvolvimento na conferncia mundial sobre polticas culturais (Mondiacult). Na
declarao do Mxico (UNESCO, 1982), foi redigido um captulo exclusivamente
dedicado dimenso cultural do desenvolvimento:
DIMENSO CULTURAL DO DESENVOLVIMENTO
10. A cultura uma parte essencial do processo de desenvolvimento e ajuda a
reforar a independncia, a soberania e a identidade das naes. O crescimento tem
sido frequentemente concebido em termos quantitativos, sem levar em conta sua
dimenso qualitativa necessrio, ou seja, a satisfao das aspiraes espirituais e
culturais do homem. O desenvolvimento autntico persegue o bem-estar e
satisfao contnua de todos e cada um.
11. essencial humanizar o desenvolvimento; seu objetivo final a dignidade
individual da pessoa e responsabilidade social. O desenvolvimento envolve a
capacidade de cada indivduo e cada povo a aprender, aprender e compartilhar as
suas experincias.
12. Proporcionar a todos os seres humanos a oportunidade de construir um futuro
melhor pressupem que deve ser ajustado continuamente o ritmo de
desenvolvimento.
13. Um nmero crescente de mulheres e homens querem um mundo melhor. No
s buscar a satisfao das necessidades bsicas, mas o desenvolvimento do ser
humano, seu bem-estar e sua possibilidade de convivncia harmoniosa com todos
os povos. Seu objetivo no a produo, o lucro ou o consumo em si, mas a sua
plena realizao individual e coletiva, e da preservao da natureza.
14. A humanidade o que est nos princpios e nas finalidades do desenvolvimento.
15. Qualquer poltica cultural deve resgatar o sentido profundo e o desenvolvimento
humano. Novos modelos so necessrios e no campo da cultura e da educao
que eles tm de procurar-se.
16. S podemos assegurar um desenvolvimento equilibrado atravs da integrao
de fatores culturais nas estratgias para alcan-lo; consequentemente, estas
estratgias devem sempre levar em conta o contexto histrico, social e cultural de
cada sociedade.

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De 1970 at ao presente foi constante o embate entre perspetivas distintas, por exemplo
entre o Choque de Civilizaes de Samuel Huntington (1999) e o Orientalismo de
Edward Said (2004). Todavia, neste campo, o papel da UNESCO e do Programa das
Naes Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) tem sido relevante na defesa da
importncia da dimenso cultural do desenvolvimento. O relatrio de 1995, Our
Creative Diversity (UNESCO,1995) ou o relatrio de 2004 do Desenvolvimento
Humano Liberdade Cultural num Mundo Diversificado (Programa das Naes Unidas
para o Desenvolvimento, 2004), so exemplos claros disso mesmo.
Independentemente das conquistas polticas e culturais efetivas, inegvel que cultura
e desenvolvimento se interpenetram e quase se fundem, evidenciando o composto
dinmico que Augusto Santos Silva (2000) identifica com o Ser e o Agir, duas
dimenses fundamentais da existncia humana que, na sua interdependncia ntima,
conferem sentido s diversas estratgias de ao. A cultura , portanto, o lugar mais
adequado para pensar a integrao das mltiplas dimenses do desenvolvimento.
Contudo, uma outra correlao indispensvel quando se trata de abordar o tema do
desenvolvimento a sua conexo direta com a qualidade efetiva da democracia,
designadamente quando a colocamos ao nvel local, uma vez que a esta escala que a
participao democrtica ativa e plural mais se faz sentir e os seus efeitos maior
potencial comportam.
Se o desenvolvimento tem necessariamente a ver com transformao, por ser sobretudo
um processo de elaborao, confronto e realizao de projetos, torna-se necessrio uma
poltica cultural do desenvolvimento: a cultura como conscincia crtica do
desenvolvimento; e em simultneo, uma poltica de desenvolvimento da cultura:
reforo da democracia participativa e da diversidade cultural, participao
culturalmente orientada.
Pressupe-se portanto um desenvolvimento endgeno nunca limitado a uma viso
ensimesmada, mas pelo contrrio, aberta ao cosmopolitismo -, para que os atores
possam mudar-se a si mesmos atravs da criatividade social em vez de continuarem
presos a imposies neocoloniais de qualquer gnero. E desta forma, "assegurar a cada
um a possibilidade de contribuir para a formao de ideias e participar na definio das
opes que determinam o futuro", diz a Declarao Europeia sobre os Objectivos
Culturais (Conselho da Europa, 1984).
As possibilidades de auto-determinao e livre interveno cvica correspondem s
ideias desenvolvidas por Amartya Sen na sua obra O Desenvolvimento como
Liberdade, partindo do princpio fundamental de que a liberdade individual um

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produto social que emerge da construo interativa e interdependente entre atores


sociais, e da compreenso cooperante dos problemas e das solues (Sen, 2003).
Assim, a expanso das liberdades substantivas tida como fim prioritrio e como meio
principal do desenvolvimento na liberdade poltica: possibilitar aos cidados a
oportunidade de discutir, debater e participar nas escolhas dos princpios e valores para
eleger as prioridades do desenvolvimento.
Se entendermos que a participao requer capacitao, conhecimentos e competncias
educacionais bsicas, e que a cultura um aspeto fundamental da capacitao,
foroso reconhecer a urgncia de polticas culturais locais inspiradas na democracia e
cidadania cultural

e nos valores do desenvolvimento humano 7 . Em termos

pragmticos, aplicados s realidades municipais, isto que defende a Agenda 21 da


Cultura (A21C) 8 , a qual v na diversidade cultural o principal patrimnio da
humanidade, e defende a incluso da dimenso cultural como quarto pilar do
desenvolvimento sustentvel, pois "existem claras analogias polticas entre as questes
culturais e ecolgicas. Tanto a cultura como o meio ambiente so bens comuns da
humanidade (Agenda 21 da Cultura, 2004).
A Conveno sobre a Proteo e a Promoo da Diversidade das Expresses
Culturais, adotada em Outubro de 2005 pela 33 Conferencia Geral da UNESCO, e
ratificada em Dezembro do mesmo ano pela Unio Europeia, explicita no seu Artigo 2
(princpios orientadores) alnea 6 (princpio do desenvolvimento sustentvel) que "a
diversidade cultural uma grande riqueza para os indivduos e sociedades. A proteo,
a promoo e a manuteno da diversidade cultural constituem uma condio essencial
para um desenvolvimento sustentvel em benefcio das geraes presentes e futuras
(UNESCO, 2005).
Ao ratificar esta conveno, os Estados-membros comprometem-se a empenhar-se em
integrar a cultura nas suas polticas de desenvolvimento, a todos os nveis, tendo em
vista criar condies propcias ao desenvolvimento sustentvel e, neste contexto,
privilegiar os aspetos ligados proteo e promoo da diversidade das expresses

A noo de cidadania cultural denota o papel formativo da cultura na compreenso e construo das
prticas de cidadania, tais como as formaes de identidade e os comportamentos altrustas que
contribuem para uma capacidade coletiva de viver juntos. A cidadania cultural centra-se na expresso,
produo e participao cultural como processos chave atravs dos quais a cidadania se desenvolve e
floresce.
"O desenvolvimento humano est preocupado com o que eu considero ser a ideia de desenvolvimento
de base: ou seja, o avano da riqueza da vida humana, mais do que a riqueza da economia em que os
seres humanos vivem, que apenas uma parte dela." Amartya Sen, PNUD. Consultar:
http://hdr.undp.org/en/humandev
A Agenda 21 da cultura o primeiro documento, com vocao mundial, que aposta por estabelecer as
bases de um compromisso das cidades e dos governos locais para o desenvolvimento cultural.
Consultar: http://www.agenda21culture.net/

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culturais (Artigo 13 integrao da cultura no desenvolvimento sustentvel). Portugal


ratificou a adeso conveno em 2007, tendo entrado em vigor no dia 16 de Junho 9. A
pergunta evidente a de saber se e como os Estados-membros, designadamente
Portugal, realizaram este compromisso ratificado com a UNESCO?
At ao momento no existem evidncias de que tal tenha efetivamente sido realizado, e
para que tal evidncia se verificasse "a todos os nveis" teria certamente de haver uma
resoluo poltica que permitisse alterar o paradigma das polticas de cultura ao nvel
local10.

3. POLTICAS CULTURAIS TRANSFORMADORAS


A vida urbana supe que aconteam encontros, confrontos e diferenas,
conhecimento e reconhecimento recprocos (em que se inclui o combate ideolgico
e poltico) dos modos de viver, patterns que coexistem na cidade.
Henri Lefebvre

De que modo as polticas pblicas de cultura so transformadoras? Transformadoras


de qu? De que forma as polticas culturais locais, (in)existentes atualmente em
Portugal, favorecem este desiderato? Quais so os mecanismos pblicos que promovem
a democracia cultural participativa, por exemplo?
Antes de prosseguir, consideramos que existe uma questo de fundo que no ter sido
ainda suficientemente elucidada na esfera pblica cultural. A ideia hoje muito em voga
de que as polticas culturais so na sua essncia dirigidas cultura objetivada,
declinadas em polticas de arte, polticas de patrimnio, polticas de mercado
(indstrias criativas e culturais), isto , polticas das coisas e dos profissionais; fazendonos esquecer que o processo cultural culmina na receo individual e na interao
social simblica, ou seja, numa qualidade subjetiva da cultura, na qual reside o
potencial da individuao psicolgica (self) e social - a cultura no simplesmente uma
soma de atividades dispersas, mas antes o conglomerado de diversos modos de vida
com sentidos distintos. Atravs desta ultima aceo, a cultura tida para alm das
prticas profissionais e institucionais no campo das artes e do patrimnio, e encarada
como um processo criador continuo que no apenas fruto do trabalho dos artistas ou
de outros profissionais da cultura, nem sequer das instituies, mas de todos os grupos

9
10

Aprovada pela Resoluo da Assembleia da Repblica n. 10-A/2007; ratificada pelo Decreto do


Presidente da Repblica n 27-B/2007.
Vide:
Insights
for
the
future
implementation
of
art.
13
David
Throsby
http://unesdoc.unesco.org/images/0015/001572/157287E.pdf

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sociais e indivduos. neste sentido, que importa ter em considerao o alargamento


inclusivo da base social das prticas e das polticas culturais.
na esfera da cultura-ao "vivida, relacional, assente no incessante ofcio de
reinterpretao e reatualizao dos significados circulantes nos processos de interao"
(Lopes, 2007: 16), que a lacuna existe e persiste, no que respeita construo de
polticas culturais pblicas. Todavia, as causas esto tambm h muito diagnosticadas.
A maior destas lacunas, e a mais estruturante, sem dvida a inexistncia de um
debate construtivo e conclusivo acerca dos modelos de polticas culturais locais
motivadas pela intensificao da democracia e pelo iderio pragmtico do
desenvolvimento humano sustentvel 11 , tendo em considerao que aos executivos
municipais e administrao pblica local cabe, em grande medida, a responsabilidade
de ser facilitador e regulador dos processos de mudana, nomeadamente na
requalificao e adaptao dos servios pblicos de cultura.
Apesar da existncia de excees, a realidade global vem no entanto sendo outra, pois o
forte intervencionismo do poder local, "legitimado, em boa parte, pela debilidade da
sociedade civil ou pela exiguidade do sector privado implicado na produo e
distribuio culturais, cria redes clientelares e mesmo efeitos perversos de imposio
arbitrria de segmentos particulares de gosto. No raras vezes, a poltica cultural da
autarquia, refletindo o presidencialismo municipalista, o reflexo pouco subtil do
gosto do seu responsvel mximo" (Lopes, 2000: 83).
Diversos outros estudos empricos (Ribeiro, 2007; Ferreira, s/d; Fortuna & Silva, 2002)
sobre polticas e prticas culturais em Portugal evidenciam que o principal obstculo
existncia de polticas pblicas de cultura municipais reside num poder poltico cujos
modelos de governao so adversos diversidade e democracia cultural, i.e., a
generalidade dos autarcas, diz Augusto Santos Silva, "tem grande dificuldade em
entender, de forma no instrumental, a natureza e o alcance das manifestaes que
resultam destes ambientes urbanos e se concretizam em participao, interao e
expresso cultural." (Silva,1995: 262). Esta postura radica ainda no ento designado
grau zero do poder local12, ou seja, num funcionamento excessivamente consensual
da ao poltica e na sua contrapartida mais elementar: o fazer obra.

11

Sobre
a
relao
entre
cultura
e
desenvolvimento
humano
sustentvel
vide:
https://www.academia.edu/3504522/CULTURA_E_DESENVOLVIMENTO_HUMANO_SUSTENT%
C3%81VEL

Vide: Juan mozzicafredo, Isabel Guerra, Margarida A. Fernandes, Joo Quintela [1988]. Revista Crtica
de Cincias Sociais n 25/26.
12

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Quando referimos anteriormente que a qualidade da democracia e cidadania cultural se


aferem pela capacidade de assegurar a cada um a possibilidade de contribuir para a
formao de ideias e participar na definio das opes que determinam o futuro,
podemos concluir que estamos ainda longe desta to simples e genuna exigncia de
soberania popular.
Num outro ngulo desta mesma problemtica, o do direito cidade, tal como defendido
por Henri Lefebvre (2012), ou seja do direito a construir a cidade que idealizamos
(democrtica e inclusiva, criativa e bela, inteligvel e justa,...); a situao no melhor,
pois, segundo o gegrafo e urbanista, comissrio da Carta Estratgica de Lisboa13,
Joo Seixas, uma parte considervel do poder local "se encontra aprisionado por
aparelhos partidrios com estratgias laterais e parcelares muitas vezes distintas das
que poderiam prosseguir objectivos mais colectivos () Contribuindo estes factores,
por sua vez, para uma paisagem sociocultural onde so manifestas as dificuldades ou
mesmo o desinteresse no desenvolvimento de culturas activas de cooperao e de
subsidiariedade, e a considervel distncia face aos cidados e s suas formas de
expresso cvica (Seixas, 2013: 44-45).
As cidades ideais so entidades dinmicas, e por isso mesmo geram novas formas de
organizao, novos projetos e novas relaes sociais consubstanciadas em redes locais
de tipologias diversas. As cidades no podem ser meras mquinas artificiais e
administrativas capturadas pelos fluxos globais de hegemonizao, da informao e do
financiamento. Nem produtos prontos-a-consumir enclausuradas numa cultura
burocrtica.
A questo fundamental aqui, entender que cultura e cidade so interdependentes e
constituintes do ecossistema urbano-simblico, e que poder (relacional e distribudo) e
cultura so duas dimenses estruturais da interao social e da resilincia cultural14.
Neste ponto do diagnstico, simples de verificar que a ausncia de determinadas
circunstncias dificulta a implicao dos cidados na conceo das prprias polticas,
estratgias e projetos. Ausncias, tais como:

13
14

http://www.cm-lisboa.pt/municipio/camara-municipal/carta-estrategica (consultado em 06 de
novembro de 2011)
A resilincia cultural de uma cidade a energia interna (vitalidade) que permite que a cidade consiga
reagir a foras externas, adaptar-se criativamente a elas mas conservar a sua identidade especfica, a
longo prazo, apesar dos processos de transformao turbulentos. A noo de resilincia cultural
enfatiza a necessidade de salvaguardar a memria cultural da comunidade enquanto fora produtora e
formadora da conscincia coletiva, contribuindo para a sustentabilidade da confiana, da cooperao e
da coordenao de aes, promovendo um sentido de pertena e de comunidade. A resilincia cultural
depende da capacidade de reflexo e deciso de forma sistemtica, multidimensional, aberta e
relacional, vinculando as perspetivas de curto, mdio e longo prazo.

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de servios pblicos de cultura orientados para o desenvolvimento cultural


duradoiro (sustentabilidade);

de mecanismos pro-ativos de participao cvica;

de medidas que favoream a diversidade cultural, os direitos e as liberdades


culturais;

de estratgias e polticas transparentes e publicadas;

de linhas de financiamento pblico escrutinveis dirigidas a projectos de


cidadania cultural;

da revitalizao do espao pblico e da esfera pblica cultural, abertos ao


agonismo, dissenso, diversidade, estranheza e diferena (Lopes, 2007:
72);

da valorizao da criatividade social e do pensamento crtico;

da promoo da diversidade semitica da cidade;

da capacitao do trabalho em rede e da cooperao entre atores sociais;

da auto-limitao dos poderes do Estado (local, regional, nacional);

da separao clara entre as funes poltico-administrativas e as funes


estticas (comissariados, curadorias, programaes,...); da implementao de
mecanismos e processos de arms lenght, que separem o poder executivo das
opes estticas (culturais, artsticas);

da definio de mecanismos de participao da sociedade civil na gesto,


programao e avaliao de equipamentos culturais pblicos;

de possibilidades de transformao das instituies socioculturais abertas


participao mltipla dos agentes culturais (prticas instituintes);

de polticas e estratgias favorveis diversidade e pluralidade de minorias


culturais e artsticas (iniciativas moleculares) versus a valorizao e empenho
poltico-administrativos em prol de eventos maioritrios e de massas (de largo
espectro eleitoral);

a dificuldade de articulao e cooperao inter-associativa e entre protagonistas


(programadores, artistas, ativistas,...) por um lado; e a tentao (real) da
municipalizao da cultura, ou seja, a absoluta centralidade dos equipamentos e

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dispositivos municipais e participao direta da Cmara como produtora de


eventos culturais, por outro; o que na prtica significa a imposio de um
consensualismo sociocultural, logo um dfice de prticas diversificadas e a
reduo dos mundos possveis a uma unificao ideolgica.
Neste sentido, a cultura enquanto dimenso de poltica pblica no pode continuar a
ser entendida como mero ornamento populista, entretenimento ou ocupao dos
tempos livres vocacionada para a distrao dos cidados mais aborrecidos (po e circo).
Uma poltica cultural democrtica e atenta aos quotidianos e s circunstncias
concretas em cada momento e geografia, deve acima de tudo entender a cultura como
uma capacidade ativa de cidadania: como conjunto de ferramentas simblicas e
conceptuais que os membros de uma comunidade necessitam para lidar com a
realidade difusa do mundo contemporneo e para elaborar novas estratgias de vida
coletiva.
Como no existe desenvolvimento sustentvel sem participao ativa e crtica dos
cidados (de baixo-para cima), tambm a construo de uma poltica cultural local deve
obrigatoriamente nascer de um debate pblico democrtico, plural e inclusivo. O
desenvolvimento cultural apoia-se na multiplicidade dos agentes sociais, e os princpios
de boa governana incluem a transparncia informativa e a participao cidad na
conceo das polticas culturais, nos processos de tomada de decises e na avaliao de
programas e projetos15.
A motivao para a mudana urgente e necessria na direo de sociedades
sustentveis e indutoras de bem-estar equitativamente distribudo no pode fazer
esquecer as circunstncias atuais da poltica e da microfsica do poder, a colonizao
tecnocrtica e o controle do espao pblico ou a concentrao excessiva de poder nas
formas de governao pblica atuais.
No existem contudo frmulas mgicas ou saltos qunticos que permitam passar de um
ambiente urbano monocromtico, em especial nas cidades mdias e pequenas, onde a
dominao sociopoltica exercida atavicamente pelos mesmos agentes de sempre,
para a construo imediata ou espontnea da ao coletiva e da inovao social. Nem a
implementao burocrtica de fruns participativos como um fim em si mesmo deve
ser vista como contributo consistente para o desenvolvimento sustentvel. Iniciar um
processo de construo de uma poltica cultural local requer planeamento estratgico
criativo e participativo e o uso consistente de metodologias que visem a mudana
social e a incluso da ao coletiva.
15

Vide Agenda 21 da Cultura princpios, 5.

155

Revista Lusfona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies Vol. 2, n.2

Um dos processos recentemente realizados em Portugal foi a elaborao das


Estratgias para a Cultura em Lisboa, e a sua publicao num documento que regista
a metodologia participativa e as fases de diagnstico, anlise e identificao de medidas
e projectos. O Gua para la participacin ciudadana en el desarrollo de polticas
culturales locales para ciudades europeas16; Towards an architecture of governance
for participatory cultural policy making e Towards Cultural Citizenship: Tools for
Cultural Policy and Development, da autoria de Colin Mercer17, Cultural Governance
in Sustainable Cities 18 , de Nancy Duxbury ou ainda The Hangzhou Declaration:
Placing Culture at the Heart of Sustainable Development Policies 19 so recursos teis e
pragmticos, entre outros documentos e casos-de-estudo existentes neste mbito e em
diversas geografias 20 . No que concerne a metodologias participativas j testadas o
documento Advice on local implementation of the Agenda 21 for culture21 um guia
eficaz para a implementao de polticas culturais locais destinado s cidades aderentes
Agenda 21 da Cultura.
O Mapeamento Cultural (Cultural Maping) como ferramenta de envolvimento dos
cidados crucial para a formulao de polticas participativas e para a realizao da
cidadania ativamente envolvida como sujeito e objeto do processo de planeamento.
Recentemente o Centro de Estudos Sociais (Coimbra), realizou uma conferncia
internacional: Mapping Culture: Communities, Sites and Stories22, onde foi lanado o
projeto Artria: o Centro em Movimento23, o qual prope para reflexo a forma como a
atividade artstica pode contribuir para refundar as bases da cidadania, da democracia
e da sustentabilidade urbanas, o projeto fornece ainda uma plataforma em linha para
suporte da cartografia das comunidades em causa e relevando simultaneamente
aspetos tangveis e intangveis.
Um outro projeto de investigao, Culturizing Sustainable Cities24, pretende responder
questo: Como podem as prticas artsticas e culturais ser incorporadas no
planeamento e desenvolvimento de cidades mais sustentveis? Enquanto que o
http://www.ecumest.ro/pdf/Guia_participation_ciudadana_ESP_web.pdf
(consultado em 06 de
novembro de 2014)
17 https://www.academia.edu/786688/Towards_Cultural_Citizenship_Tools_for_Cultural_Policy_and_D
evelopment (consultado em 06 de novembro de 2014)
18http://www.ces.uc.pt/myces/UserFiles/livros/1097_Duxbury2014-KultUr1%281%29.pdf (consultado em
06 de novembro de 2014)
19 http://www.unesco.org/new/fileadmin/MULTIMEDIA/HQ/CLT/images/FinalHangzhouDeclaration201
30517.pdf (consultado em 06 de novembro de 2014)
20 Neste campo, mas com uma abordagem sociolgica, as obras de Isabel Carvalho Guerra so um
importante contributo: Guerra, Isabel (2006) Participao e aco colectiva. Cascais: Princpia Editora;
Guerra, Isabel (2002) Fundamentos e Processos de uma Sociologia da Aco. Princpia Editora.
21 http://www.agenda21culture.net/index.php/docman/agenda21/137-d2advice-on-local-implementationof-the-agenda-21-for-culture
22 http://www.ces.uc.pt/eventos/mappingculture/
23 http://www.ces.uc.pt/projectos/arteria7/
24 http://www.ces.uc.pt/projectos/culturizing/
16

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Revista Lusfona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies Vol. 2, n.2

ECLETIS (European Citizens' Laboratory for Empowerment: Cities Shared)

25

publicou recentemente A contribution from Cultural and Creative actors to citizens


empowerment (disponvel em www.ecletis.eu), onde se relatam mltiplas experincias
de cidades europeias em torno do papel da cultura na revitalizao plural da esfera
pblica.

4. COMPLEXIDADE, TRANSDUO E TRANSGOVERNANA


A capacidade transdutiva partilhada pelo homem e pela mquina, contudo o
vivente que na sua dimenso problemtica, geradora de devir e mediao,
opera segundo um teatro de individuaes e que avana de meta-estabilidade em
meta-estabilidade.
Gilbert Simondon

Os processos de desenvolvimento local sustentvel, enquanto sinnimo de


transformao e resilincia, colocam a tnica no papel desempenhado pela governao,
enquanto processo interativo e reflexivo de debate e dilogo e capacidade de gerir a
crescente complexidade da cidade como evoluo e sistema dinmico em constante
fluxo, de resolver conflitos gerando novas snteses, integrando vrios elementos e
componentes

geralmente

considerado

separados

ou

em

conflito/contradio,

identificando novas conexes, sinergias e redes relacionais.


A (trans)governana da cidade promove a cooperao e a capacidade de coordenar
aes de mltiplos atores diferentes, a construo de uma rede neural de conexes,
fornecendo cidade uma capacidade intrnseca de auto-organizao. Neste aspeto, uma
ao bem sucedida mais do que o cumprimento das metas especficas, tambm
sobre a criao eficaz e efetiva de uma plataforma coletiva e permanente de concertao
social (Duxbury, 2014).
O conceito de transgovernana desenvolvido por Louis Meuleman observa que as
estruturas de governana atualmente existentes parecem negar a complexidade social e
a incerteza do nosso mundo contemporneo e argumenta que a governana da
sustentabilidade deve ser mais culturalmente sensvel, reflexiva e dinmica (2013: 37),
o que exige ateno permanente e sistemtica para traduzir ou adaptar as possveis
solues para um determinado contexto cultural, e requer instituies, instrumentos,
processos e envolvimento dos atores sociais.
Em nosso entendimento, e no contexto do urbanismo, a proposta de Meuleman surge
na esteira do conceito de transduo usado por Henri Lefebvre na sua obra O Direito
25

http://www.eclectis.eu/

157

Revista Lusfona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies Vol. 2, n.2

Cidade, onde refere que a transduo supe um feedback incessante entre o quadro
conceptual utilizado e as observaes empricas. A sua teoria (metodologia) d forma a
certas operaes mentais espontneas do urbanista, do arquiteto, do socilogo, do
poltico e do filsofo. Ela introduz o rigor na inveno e conhecimento na utopia
(2012: 111).
A pertinncia do uso da ideia de transduo prende-se com a necessidade de entender a
cidade enquanto suporte das mediaes (relacionais e comunicacionais), i.e., de
conceber a cidade como um sistema semntico, semitico ou semiolgico, a partir da
lingustica, da linguagem urbana ou da realidade urbana concebida como um conjunto
de signos (idem: 65), e que implica compreender a funo de modulao e traduo
(transduo) da pluralidade de informao e conhecimento circulante na cidade.
No campo da filosofia da tcnica e da comunicao (ressonncia, individuao,
iterao, interao, feedbacks mltiplos), a genealogia da hermenutica dos processos
transdutivos (entre seres humanos e os meios ambientes urbanos, naturais e
tecnolgicos) deve contudo ser procurada na obra do filsofo francs Gilbert Simondon
(2009), o qual foi de facto quem mais desenvolveu este quadro conceptual, a partir dos
pressupostos da filosofia evolucionista (Bergson e Georges Canguilhem), da etnografia
e da teoria da projeo orgnica (Ernst Kapp).
A utilidade de transpor para a temtica da governana urbana o quadro terico da
transduo, deve-se, tal como referido anteriormente (Meuleman), necessidade de
desenvolver novos paradigmas e modelos de governana e sustentabilidade que
incluam a dimenso cultural na sua verdadeira potncia (diversidade, pluralismo,
democracia, participao, redes e tecnologias,).
Importa pois reconhecer que a noo clssica de forma (esttica) se tornou insuficiente
para pensar a transduo, pois a teoria da forma ignora a meta-estabilidade (equilibro
meta-estvel); ento necessrio que seja substituda pela noo de in-formao
(forma significativa). Pensar transdutivamente mediar entre ordens diferentes e
colocar realidades heterogneas em contacto, e transformando-as em algo diferente - e
representa a verdadeira marcha da inveno, no sendo por isso dedutiva nem indutiva
(Simondon, 2009). Um evento transdutivo ento aquele que articula realidades
diferentes, fazendo emergir o que antes existia separadamente.
para ns evidente que quando hoje se equacionam as problemticas de governana,
sustentabilidade e polticas pblicas de cultura, temos de ter em mente a complexa
meta-estabilidade

(permanente

tenso

equilbrio-desequilbrio)

associada

ao

desenvolvimento e uso das novas tecnologias, designadamente sabendo de antemo


158

Revista Lusfona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies Vol. 2, n.2

que a essncia das tecnologias transdutivas reside na mediao das relaes entre
pessoas, mquinas, coisas e animais. preciso pois notar que a mediao tcnica no
liga diretamente, mas modula as relaes dos coletivos sociotcnicos (homemmquina). Uma das linhas de pesquisa nesta rea da organologia a desenvolvida por
Bernard Stiegler, e por si designada como psicotecnologias da transindividuao
(Stiegler e Rogoff, 2010), e vem sendo aplicada no centro de investigao coordenado
por Stiegler e Vincent Puig no Centre Pompidou26.
Com maior ou menor nfase no papel das tecnologias no quotidiano das cidades, no
espao pblico ou espao privado, na gesto do bem comum ou na individuao
psicolgica e social, o que no podemos negar que as estratgias polticas de
governana requerem o pensamento complexo para lidar com o incerto, o acaso, o jogo
mltiplos das retroaces (Morin, 1991: 19). Estas transformaes de paradigmas
pressupem uma viragem do pensamento (mindset), do pensamento simples
(disjuntivo e segregador) para o complexo (multidimensional, integrador) capaz de
ultrapassar as dificuldades contemporneas reproduzidas pela "patologia do saber" e
pela inteligncia cega (idem: 16).
5. CODA
Em Notas para una tica hacker en la cultura local, Jos Ramn Insa Alba (s/d),
realiza uma justa sntese da convergncia da cultura tecnolgica nas realidades
culturais institucionais, afirmando mesmo que a capacidade de recombinar
informao e conhecimento atravs das estruturas sociais a verdadeira fonte de
inovao para a cultura local, o contexto tudo e no pode haver nenhum progresso
real sem uma interao aberta.
Ao nvel das instituies, contnua Jos Alba, o autismo produz monstros, pois no h
nenhuma maneira de continuar a trabalhar a partir de modelos institucionais herdados
do sc. XIX. Assim, o trabalho atual das instituies pblicas deveria ser o de
laboratrio, ou seja, mais do que a mera distribuio de programas culturais,
ligeiramente idnticos em todo o lado. simples: Imagine-se as instituies pblicas
locais como espaos para a troca e debate de ideias. simples, mas raramente acontece.
Para alm da crtica dos modelos ultrapassados de governana urbana, importa
igualmente a escala crtica das instituies pblicas, mas tambm a esse nvel nos
confrontamos com a hiptese, levantada por Chantal Mouffe (2014), resultante da sua

26http://www.iri.centrepompidou.fr/

159

Revista Lusfona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies Vol. 2, n.2

participao no Truth is Concrete27, de que a produo simblica agora um objetivo


central do capitalismo e, por meio do desenvolvimento das indstrias criativas, as
pessoas tornaram-se totalmente subjugadas ao controle do capital? Sendo assim,devem
as prticas artsticas crticas estar envolvidas com as atuais instituies, com o objetivo
de transform-las ou devem abandon-las por completo?
De acordo com Chantal Mouffe a primeira hiptese a mais pertinente, pois as prticas
artsticas crticas so aquelas que, de vrias maneiras, desempenham um papel no
processo de desarticulao/rearticulao que caracteriza a poltica contra-hegemnica,
que assim pretende atingir as instituies que incorporam a hegemonia dominante, a
fim de provocar transformaes profundas na forma como elas funcionam. O domnio
da cultura desempenha pois um papel crucial nesta guerra de posio, porque este um
dos terrenos onde o senso comum e as subjetividades so construdos.
Existe uma grande variedade de formas possveis para fazer emergir espaos
agonsticos, defende Mouffe, espaos onde o consenso dominante possa ser desafiado e
que podem surgir dentro e fora das instituies. De facto, ainda que esta seja uma ideia
constantemente referida pela filsofa francesa, a existncia do agonismo pblico
(debate entre projetos alternativos e vises distintas) de particular interesse quando
nos situamos no lugar perigoso que o encontro entre poltica (poder) e a organizao
social e esttica do consenso (controlo).
sabido, desde Kant (1998) e da sua Crtica da Faculdade do Juzo, que o prazer
esttico no se define tanto como o que o sujeito experimenta em relao ao objeto,
mas como prazer que deriva de constatar a prpria pertena a um grupo consensual de
apreciadores desse mesmo objeto e da sua capacidade para apreciar o belo. Formandose assim uma esfera pblica do consenso, dos gostos e do sentir em comum. Ora,
sobre esta esfera pblica que agem as instituies, os poderes e as mquinas de
estetizao meditica, na tentativa de conservar o gosto das massas e assim manter ad
aeternum o consenso social, cultural e poltico.
A necessidade de abrir brechas nas diversas esferas pblicas das cidades, aberturas
democracia radical (de raiz) e ao questionamento dos problemas concretos e das
potenciais solues alternativas, advm do simples reconhecimento que sem uma
transformao do poder local, sem uma redefinio das estruturas de relao de poder
existentes, e do seu corolrio como efetiva distribuio relacional do poder pelos

27

Um acampamento e maratona 24/7 decorrido em Graz, entre 21/09 e 28/09/2012, em torno de


estratgias artsticas na poltica e estratgias polticas na arte.

160

Revista Lusfona de Estudos Culturais | Lusophone Journal of Cultural Studies Vol. 2, n.2

cidados e movimentos sociais, o espao poltico continuar refm da inrcia


reprodutora dos mesmos vcios e negligncias (laissez faire).
Em suma, qualquer poltica cultural que se pretenda assumir como transformadora,
ter de permitir no seu interior institucionalizado a existncia de prticas instituintes
(Transform, 2008), prticas que possibilitem a re-instituio das instituies
socioculturais, que coloquem em causa o falso consenso previamente existente
(consenso operacional) e favoream o reconhecimento das diferentes necessidades
culturais e das exigncias feitas por pessoas e organizaes de um territrio, incluindo
os agentes culturais e todos os cidados.

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Rui Matoso gestor e programador cultural. Professor na Universidade Lusfona (ECATI), na


licenciatura em Cincias da Comunicao e da Cultura e no mestrado em Programao e Gesto Cultural.
membro da European Expert Network on Culture e formador certificado pelo IEFP e pelo CCPFC. No
mbito das polticas culturais municipais vem defendo em Portugal a implementao da Agenda 21 da
Cultura. mestre em Prticas Culturais para Municpios FCSH, Universidade Nova de Lisboa (2008),
tendo anteriormente realizado uma Ps-Graduao em Gesto Cultural (2006). Atualmente desenvolve
investigao sobre Arte Crtica no doutoramento em Cincias da Comunicao, e consultor da Artemrede
para o Plano Estratgico 2015-2020. rui.matoso@gmail.com

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