Marx No Brasil
Marx No Brasil
Marx No Brasil
Armando Boito
Luiz Eduardo Motta
crescente o interesse pela obra de Karl Marx no Brasil atual. Essa tendncia est
perfeitamente integrada nova vaga de interesse pela obra do fundador do materialismo histrico
em escala internacional. Porm, a recepo da obra de Marx no Brasil est marcada,
evidentemente, pelas caractersticas da formao social brasileira, pelas suas tradies
intelectuais e pela conjuntura terica e ideolgica do Brasil das dcadas de 1990 e 2000.
A nova vaga internacional de interesse pela obra de Karl Marx teve incio na segunda
metade da dcada de 1990, quando o modelo capitalista neoliberal comeou a apresentar fortes
sinais de desgaste. Alguns acontecimentos representativos desse desgaste foram, na Europa, a
greve geral que paralisou a Frana durante os meses de novembro e dezembro de 1995, dando
incio a uma nova fase da luta social na Frana que redundaria na vitria do Partido Socialista
nas eleies gerais de 1997, e, na Amrica Latina, a posse de Hugo Chvez na Presidncia da
Venezuela em 1999. No meio-tempo, em 1998, foram realizados, em diversos pases, encontros
em comemorao aos 150 anos da publicao do Manifesto do Partido Comunista de Marx e
Engels. Numa poca em que se tinha proclamado, mais uma vez, a morte do marxismo, a
presena massiva de ativistas polticos e de intelectuais nesses encontros surpreendeu os seus
prprios organizadores.
Encontros, centros e associaes
No Brasil, alm dos diversos encontros comemorativos dos 150 anos do Manifesto
Comunista, tivemos, em 2001, grandes eventos, em diversas cidades do pas, em comemorao
aos 130 anos da Comuna de Paris de 1871. Esses encontros j exibiam uma das caractersticas
da atual fase de interesse pela obra de Marx no Brasil: de um lado, a aproximao entre ativistas
polticos e intelectuais no trabalho de recuperao do marxismo, porm, de outro lado, a clara
predominncia do grupo intelectual e a dependncia desse trabalho de recuperao frente s
instituies culturais do Estado capitalista, principalmente as universidades. Essa caracterstica
de origem estar presente na formao de inmeros centros de pesquisa marxista que foram
organizados em diversas universidades do pas, nas revistas e nas demais publicaes que
surgiram a partir da dcada de 1990, nos diversos encontros cientficos e culturais regulares que
contam com a participao majoritria de marxistas e na interveno institucional e organizada
dos socilogos, cientistas polticos, filsofos, economistas e historiadores marxistas nas
principais associaes cientficas brasileiras.
Em 1996, foi criado o Centro de Estudos Marxistas (Cemarx) na Universidade Estadual de
Campinas (Unicamp). Depois dessa iniciativa pioneira, vrios centros semelhantes foram criados
em diversas universidades pblicas do Brasil. Hoje, existem centros semelhantes na
Universidade Federal Fluminense, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, em
universidades do Rio grande do Sul e outras. O Cemarx realizou em 1999 na Unicamp o I
Colquio Internacional Marx e Engels. Desde ento, esse colquio bienal tem sido realizado
regularmente, reunindo em cada uma de suas edies centenas de pesquisadores de todo o Brasil.
Na dcada de 2000, foram surgindo encontros marxistas nacionais ou regionais regulares, anuais
ou bienais, e especializados tematicamente, como, por exemplo, o encontro dos pesquisadores
1
A verso em ingls deste artigo foi publicada no nmero 54 da revista Socialism and Democracy.
Professor de Cincia Poltica da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e Editor da revista Crtica
Marxista.
Duas outras revistas marxistas importantes, a revista Prxis, editada por um coletivo de intelectuais nacionalmente
organizado, e Praga, prxima ao grupo de marxistas oriundos da FFLCH da Universidade de So Paulo, surgiram
na dcada de 1990, mas j deixaram de ser publicadas.
Edmundo Fernandes Dias, Elisa Guimares, Flavio Lyra, Hector Benoit e Marcio Naves.
Margem Esquerda foi lanada em 2003 com o seu Comit de Redao integrado por: Afrnio
Cattani, Conrobert Costa Neto, Celso Frederico, Jesus Ranieri, Marcelo Ridenti, Marcio Naves,
Maria Lcia Barroco, Maria Quartim de Moraes, Maria Orlanda Pinassi, Ricardo Antunes,
Ricardo Musse, Sedi Hirano. Essas trs revistas, alm de serem vinculadas, fundamentalmente,
ao meio universitrio, tm o seu ncleo dirigente localizado na cidade de So Paulo. J Histria
e Luta de Classes uma publicao marxista de jovens historiadores animada, principalmente,
por um grupo do Estado do Rio de Janeiro. Foi criada em 2004 e tinha a sua Comisso Editorial
formada por Carla Silva, Enrique Padros, Florence Carboni, Francisco Domingues, Gilberto
Calil, Marcelo Badar, Mario Maestri, Theo Pieiro e Virgnia Fontes. A revista Praga, que
como j afirmamos deixou de ser publicada, trazia na sua Comisso Executiva Carlos Machado,
Cilaine Cunha, Fernando Haddad, Francisco Alambert, Isabel Maria Loureiro, Leda Paulani,
Ricardo Musse e Rubens Machado Jr.
Essas revistas agregam intelectuais marxistas filiados a correntes marxistas, ou prximas
do marxismo, bastante diversas, correntes cujas obras de referncia pertencem a Antonio
Gramsci, George Lukcs, Louis Althusser, Escola de Frankfurt, E. P. Thompson e outros. As
revistas apresentam algumas caractersticas particulares umas privilegiam os textos tericos ou
de anlise estrutural da economia e da sociedade capitalista, como o caso de Crtica Marxista,
enquanto outras so mais abertas a temas da conjuntura, como so os casos de Margem Esquerda
e Outubro. Em todas elas, contudo, podemos destacar duas caractersticas importantes. Primeiro,
como j afirmamos, a dependncia frente ao aparelho universitrio do Estado brasileiro. Os
intelectuais que organizam essas revistas so, na sua quase totalidade, professores universitrios
e o pblico leitor dessas publicaes , tambm, fundamentalmente, o pblico universitrio. Isso
verdadeiro mesmo para revistas como Outubro, que tem vnculos com o Partido Socialista dos
Trabalhadores Unificados (PSTU), e a Novos Temas, que vinculada indiretamente ao Partido
Comunista Brasileiro (PCB). Em segundo lugar, essas publicaes trazem pouca coisa sobre a
obra de Marx. Predominam a anlise da sociedade capitalista, da conjuntura e, quando se trata de
teoria, predominam anlises da obra de tericos marxistas, como Gramsci e Lukcs, e de temas e
polmicas referentes aos diferentes marxismos do sculo XX e dos debates que dividiram essas
correntes. Essas duas caractersticas marcam a nova vaga de estudos marxistas no Brasil:
dependncia frente ao aparelho universitrio e foco do trabalho terico, no na obra de Marx,
mas sim nas correntes marxistas do sculo XX.
Pelas razes apontadas, essa nova fase de valorizao do marxismo difere da fase anterior
de estudos marxistas no Brasil. De fato, nas dcadas de 1930, 1940 e seguintes, quando a
divulgao da obra de Marx ganhou fora no Brasil e quando a produo dos marxistas
brasileiros se tornou mais significativa, boa parte dessa produo dava-se nos aparelhos culturais
vinculados ao Partido Comunista Brasileiro, no nas universidades. Podemos afirmar que o
marxismo s chegou universidade quando, no final da dcada de 1950, passou a se reunir o
conhecido grupo de estudos de O Capital, coordenado por Jos Arthur Giannotti na USP. Alm
de correr em grande medida fora da universidade, a produo terica marxista era focada na obra
do prprio Marx. No que tange s anlises histricas, econmicas e sociais, essa foi a fase em
que os marxistas brasileiros, tambm diferentemente daquilo que predomina nas pesquisas
marxistas atuais, dedicaram-se anlise da natureza da sociedade brasileira escravista? feudal?
capitalista? e do processo de revoluo burguesa no Brasil. Destacaram-se nessa poca os
trabalhos de Caio Prado Jr., Nelson Werneck Sodr, Florestan Fernandes, Luiz Pereira, Jacob
Gorender, Roberto Schwartz, Jos Arthur Giannotti, Ruy Fausto e muitos outros.
Publicao de obras de Marx e sobre Marx
Voltemos ao perodo atual. A edio de obras de Marx tambm ganhou um novo alento no
Brasil. Esse ponto merece um pequeno retrospecto histrico para informar o leitor.
A edio das obras de Marx e de Engels no Brasil deficiente, tanto no que respeita
quantidade de obras publicadas quanto no que respeita qualidade das tradues. Obras
importantes desses autores ainda no foram traduzidas ou s o foram muito recentemente e
muitas dessas edies se valeram de outras tradues e no das obras originais. Consideremos,
como exemplos, a histria das edies brasileiras de O Capital, a obra magna de Marx, e a
histria das edies de O Manifesto do Partido Comunista, texto de formao de geraes de
militantes comunistas em todo o mundo. Apenas em 1944, O Capital apareceu no mercado
editorial brasileiro na forma de uma edio resumida, acompanhada de um estudo de Gabriel
Deville Edies Cultura, So Paulo. A primeira edio completa de O Capital e traduzida
diretamente do alemo veio luz apenas no ano de 1960 graas iniciativa da editora
Civilizao Brasileira do Rio de Janeiro. Em 1986, a editora Abril lanou uma nova traduo da
obra maior de Karl Marx. Quanto ao Manifesto do Partido Comunista, a sua primeira edio
surgiu, salvo engano, apenas em 1945, pela Editora Horizonte da cidade do Rio de Janeiro. Esse
texto teve, no mesmo ano, uma edio publicada pelas Edies Populares com introduo
histrica de D. Riazanov e numerosos documentos apendiculares, inditos, inclusive os Estatutos
da Liga dos Comunistas e um estudo crtico comparativo das I, II e III Internacionais. Depois
disso, o Manifesto voltou a aparecer nas Obras Escolhidas de Karl Marx e de F. Engels,
publicadas pela Editora Vitria, do Rio de Janeiro (Jos Nilo Tavares 1983: pp. 121-123). A
partir da dcada de 1970 e, principalmente nas dcadas de 1990 e 2000, o Manifesto teve
inmeras novas edies.
Hoje, duas editoras que tm dado destaque para publicao de textos de Marx nos seus
catlogos so as editoras Boitempo e Expresso Popular. A Boitempo tem privilegiado a obra de
juventude de Marx (Crtica da Filosofia do Direito de Hegel, A Questo Judaica, A Sagrada
Famlia, Manuscritos Econmicos-Filosficos), ou de seus escritos da segunda metade dos anos
1840 (Ideologia Alem, Misria da Filosofia, Manifesto Comunista). A Expresso Popular no
se detm em nenhuma fase especfica da obra de Marx, publicando desde a Questo Judaica e o
Manifesto Comunista (numa edio popular) at As Lutas de Classe na Frana, O 18 Brumrio
de Lus Bonaparte, Trabalho assalariado e capital, Salrio, preo e lucro, Contribuio
crtica da economia poltica.
Nesses ltimos 15 anos de revitalizao do marxismo no Brasil, foram publicados
aproximadamente trinta livros que trataram diretamente da obra de Marx, em grande parte
resultados de pesquisas universitrias, e, em destaque, oriundos das faculdades de filosofia.
Destacam-se dentre essas publicaes os livros de Francisco Teixeira, Pensando com Marx: uma
leitura crtico-comentada de O Capital (1995), Carlos Henrique Escobar, Marx, filsofo da
potncia (1996), Jorge Grespan, O negativo do Capital. O conceito de crise na crtica de Marx
economia poltica (1998), Marcio Bilharinho Naves, Marx cincia e revoluo(2000), Jesus
Raniere, A cmara escura. Alienao e estranhamento em Marx (2001), Ruy Fausto, Marx:
Lgica &Poltica - Tomo III (Investigao para uma reenstituio do sentido da dialtica(2002),
Celso Frederico,O jovem Marx:1843-1844 - As origens da ontologia do ser social(2009), Jose
Chasin, Marx:estatuto ontolgico e resoluo metodolgica (2009), Hector Benoit/Jadir
Antunes, Crise: o movimento dialtico do conceito de crise em O capital de Marx (2009), e a
coletnea organizada por Armando Boito, Caio Navarro de Toledo, Jesus Raniere e Patrcia
Tropia A obra terica de Marx atualidade, problemas e interpretaes (2000), que publicou os
trabalhos apresentados no I Colquio Marx-Engels de 1999. Apesar de no tratar principalmente
da obra de Marx, mas do marxismo no Brasil, merece destaque a obra coletiva Histria do
Marxismo no Brasil. Esse trabalho, publicado em seis volumes, reuniu dezenas de autores sob a
coordenao de Joo Quartim de Moraes, Daniel Aaro Reis, Marcos Del Roio e Marcelo
Ridenti. Tambm a republicao das obras de autores marxistas como Caio Prado Jr., Nelson
Werneck Sodr e Florestan Fernandes tem sido uma marca no campo editorial nesse contexto de
revitalizao do marxismo.
Uma questo para encerrar
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MORAES, Joo Quartim; DEL ROIO, Marcos; REIS, Daniel Aaro; RIDENTI, Marcelo.
Histria do Marxismo no Brasil. Campinas, Editora da Unicamp, 2007, 3a edio.