Revista Cultura e Pensamento
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APRESENTAO
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Trata-se de fortalecer a esfera pblica nacional e pr em discusso alternativas para o desenvolvimento cultural do pas.
Em 2006, o programa apoiou a realizao de quatro debates
presenciais, cinco debates em peridicos impressos e dois
projetos em peridicos eletrnicos, escolhidos por meio de
selees pblicas. As linhas temticas previamente escolhidas e em torno das quais se candidataram os seminrios
presenciais foram Biopoltica e Tecnologias, Populaes
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e Territrios, Estado-Nao e Lgicas e Alternativas paras as Dinmicas Culturais. Assim, foram realizados os ciclos de debates A Cultura
Alm do Digital, em Recife e no Rio de Janeiro, Dilogos Interculturais,
em Caratinga (MG) e Rio Branco (AC), Do Estado que Temos ao Estado
que Queremos, em So Bernardo do Campo (SP), Rio Branco (AC) e Olinda
(PE), e Reverberaes Seminrio Ritmos da Urgncia, em So Paulo e
Londrina. Pelo segundo e terceiro edital foram selecionadas, respectivamente, cinco revistas impressas (Azougue, Global/Brasil, Nmero,
MdiaComDemocracia, Revista de Cincias Agroveterinrias/UDESC),
e duas revistas eletrnicas (Portal Raiz e Eptic online).
Em 2007, CULTURA E PENSAMENTO segue patrocinando a realizao de
debates abertos em mbito nacional. Mais uma vez, pensadores de todo
o Brasil foram convidados a propor projetos, e estes, aps uma avaliao,
concorreram ao patrocnio por meio de selees pblicas. Como resultado
dos editais em 2007, o Programa apia ao longo do ano a realizao de
quatro projetos de debates presenciais: Carnaval do Brasil, no Rio de
Janeiro e Salvador; Conhecimento e Cultura Livres: Disputas, Prticas e
Idias, em Porto Alegre e Fortaleza; Alm das Redes de Colaborao:
Diversidade Cultural e as Tecnologias do Poder, em So Paulo e Natal;
quatro projetos de debate em publicaes impressas (Azougue, Global/
Brasil, Revista Grumo e Revista Coquetel Molotov) e quatro projetos
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em publicaes eletrnicas (Estticas da Biopoltica: Audiovisual, Poltica e Novas Tecnologias, no site Cintica; Fluxos Musicais: Trajetrias
Sonoras do Nomadismo, no site Fluxos Musicais; Jornalismo Cultural e
Pauta, no site Cultura e Mercado, e Representao Imagtica das Africanidades no Brasil, no site Studium).
Como se busca aqui dar prioridade difuso de contedos e interao
entre os seus participantes, incentiva-se o compartilhamento contnuo das
reexes articuladas em seu contexto, pe-se disposio um ambiente
virtual de discusso, e parcerias so promovidas com o m de favorecer o
acesso e o intercmbio de idias. Ampliar e qualicar as formas de difuso de contedos uma meta a ser concretizada por meio da Rede Cultura
e Pensamento, de parcerias com a Rede Nacional de Ensino e Pesquisa e
com a Rede Pblica de Televiso, e da publicao desta revista Cultura
e Pensamento.
Detalhes sobre as aes de 2007, assim como os projetos realizados em
2006 e 2007 e os contedos que deles resultaram (textos, udios e vdeos),
esto disponveis no Portal Cultura e Pensamento (www.cultura.gov.br/
culturaepensamento), com acesso gratuito e irrestrito.
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EDITORIAL
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Cultura e Pensamento chega ao seu terceiro nmero com o mesmo princpio norteador dos anteriores: ampliar o mbito da discusso e fazer ressoar
atravs da palavra impressa os temas eleitos pelo programa de que faz parte.
Como pano de fundo, uma situao global que impe desaos inditos a nossas atuais formas e meios de conhecimento, desestabilizando para bem
e para mal certezas, valores e rotinas. Um primeiro bloco focaliza alguns
dos modos novos de produo e/ou veiculao de cultura. A seguir, toda
uma seo dedicada rea da cultura brasileira que historicamente mais
tem se aproximado da noo de espao pblico de discusso. De fato, a chamada Msica Popular Brasileira pela sua organicidade, riqueza de gneros, diversidade regional e presena no dia-a-dia de milhes de pessoas
possui aquilo a que toda cultura moderna sempre aspirou: reexividade e
conscincia da prpria fora e singularidade. Ao longo do tempo, ela foi se
identicando com a prpria autoconscincia dos brasileiros. Certamente por
isso, como uma antena de sintonia na, a MPB tem sido capaz de pensar o
que temos sido e o que poderamos ser como nao, num quadro crescentemente revolvido pela mercantilizao de tudo. Por m, um terceiro e heterogneo bloco prope pensar um tpico que, ao contrrio do discurso ingenuamente globalitrio, no desapareceu: o das relaes centro-periferia, seja
em mbito regional, nacional ou, como sugere o relato que fecha o nmero,
numa espcie de j existente e inclassicvel terra-de-ningum.
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SUMRIO
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INSTANTNEO DE TASHKENT
GUILHERME WISNIK
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WANG QINGSONG
FOLLOW ME
Exposio Entre a
nostalgia e o cinismo.
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WANG QINGSONG
LOOK UP! LOOK UP!
Exposio Entre a
nostalgia e o cinismo.
FOTO ARTE 2007/divulgao.
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WANG QINGSONG
DUPONT & DUPONT
Exposio Entre a
nostalgia e o cinismo.
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WANG QINGSONG
DREAM OF MIGRANTS
Exposio Entre a
nostalgia e o cinismo.
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A ONA E A DIFERENA:
O PROJETO AMAZONE
E AS NOVAS FORMAS
DE CONHECIMENTO
PEDRO DE NIEMEYER
CESARINO
PEDRO DE NIEMEYER
CESARINO DOUTORANDO
NO MUSEU NACIONAL / UFRJ
E CO-EDITOR DA REVISTA
AZOUGUE.
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uma parada, ou meia-trava. Existe uma autoria coletiva, mas ela mais
lenta, no mais rpida, que a autoria pelo mtodo tradicional,
ao contrrio do que eu esperava. O que pode ser uma qualidade, claro.
A autoria coletiva que existe no AmaZone, na verdade, precede a criao e
funcionamento do wiki foi este que resultou dela antes que o contrrio.
CP Como a gura do autor e o trabalho em rede tem se articulado no
projeto?
EVC H questo do lugar muito singular que os ndios, autores
primeiros de tudo o que est sendo elaborado especulado, derivado,
analogizado, conectado no wiki. A presena indgena no wiki ainda
permanece no patamar do discurso indireto livre emitido pelos brancos
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J.ERIGLEIDSON
(FOTO CLUBE CANDANGO)
Srie Inspirao
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ARTUR RENWICK
MOTAVATO
Exposio Delegates
chiefs of the earth
and the sky.
FOTO ARTE 2007/divulgao.
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MERGULHADOR:
UMA PROPOSTA
SERGIO COHN
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ELDA HARRINGTON
LA CALLE DE
LOS MILAGROS
Exposio Pero en
las grietas est Dios
que acecha.
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BLOOKS: A PRODUO
LITERRIA NA ERA
DA INTERNET
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EXPLICITAR A
DIMENSO ESTTICA
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EXPLICITAR A
DIMENSO ESTTICA
isso no creio que exista, pelo menos a partir do que venho lendo na
web e nos blogs poticos. uma literatura que no deixa nada a dever
literatura em papel. claro que temos muita coisa de qualidade ruim,
o que no muito diferente da quantidade de coisa ruim impressa
tambm Entretanto, acho sim que os blogs enquanto instrumento
de convivncia, pertencimento e socializao so um fenmeno
extremamente interessante e que deve ser estudado sem sombra de
dvida. Mas, nesse caso, ou seja, no caso de promover um entendimento
da linguagem desenvolvida nos blogs pessoais, os estudiosos de
literatura que me perdoem, os instrumentos disponveis nos estudos
literrios no vo ser de grande utilidade
CP A facilidade de acesso a textos desde clssicos da literatura
mundial at autores inditos perceptvel de algum modo na literatura
contemplada pela exposio? De algum modo, isso no libertaria
o escritor novo de referncias muito marcadamente nacionais, reetidas
na precariedade de nossas bibliotecas e, at certo ponto, de nosso
mercado editorial?
HBH Voc tocou num ponto essencial. Minha maior surpresa
foi o grau de conhecimento da tradio literria e artstica expresso
nos subtextos dos jovens poetas e ccionistas. O quadro de referncia
cultural desta nova gerao surpreendente e no duvido que isso tenha
sido proporcionado pelo acesso fcil que a internet promove
ao conhecimento.
CP Voc foi uma pessoa fundamental, no sentido de fazer vir
luz e organizar todo um campo, para a divulgao da chamada poesia
marginal. Basta lembrar a antologia 26 poetas hoje (que, alis, tinha
gente muito diferente entre si), que divulgou o trabalho de poetas como
Cacaso, Ana Cristina Csar, Francisco Alvim, Chacal, etc. O que essa nova
gerao revelada por Blooks tem em comum?
HBH Acho que essa gerao de Blooks tem em comum uma ateno
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CLAUDIA JAGUARIBE
BIBLIOTECA
Exposio Quando eu vi.
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ZIG KOCH
PARANATUMUCUMAQUE
Exposio Parque
Nacional das Montanhas
de Tumucumaque.
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WALTER GARCIA
WALTER GARCIA
MSICO E PROFESSOR
DA PUC-SP. AUTOR DE
BIM, BOM A CONTRADIO
SEM CONFLITOS DE JOO
GILBERTO (PAZ E TERRA,
1999). COLABORA
NA REA TEATRAL PARA
A COMPANHIA DO LATO
E A COMPANHIA DO FEIJO.
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era uma sacola plstica; dentro dela, uma escova de dentes, a pasta e
uma camisa. Depois que os shows lhe causariam mais nervosismo que
diverso. J os Mutantes se divertiam em programas de tev e estdios
de gravao, na dcada de 1960, e estrelavam campanhas publicitrias
como se tudo fosse uma brincadeira.
Qualquer tempo passado foi melhor? Ou se tornou mais fcil, de l para
c, trabalhar com cano popular-comercial no Brasil, ingressar no mercado,
armar-se e sobreviver, quem sabe, com alguma boa folga? Cada um dos
trs Mutantes assinalou um caminho prossional diverso, enquanto o grupo
ia se modicando, at ndar. Trata-se de fatos bem conhecidos, mas no
seria desinteressante analis-los. Deixando de lado determinaes de ordem
pessoal, a trajetria de Rita Lee, a de Arnaldo Baptista, a de Srgio Dias e a
forma como o grupo reapareceu h pouco poderiam indicar aspectos constitutivos do mercado da cano, o qual no est mesmo para brincadeiras,
se que esteve antes.
Chico Buarque viu suas canes e seus romances serem estudados
nas faculdades de letras. Tambm digno de estudo seria o fato de Carioca,
praticamente s com novas composies, sair em 2006 pela Biscoito
Fino, enquanto a srie de DVDs que organiza a nada provisria carreira
de Chico lanada por uma major, EMI. Leve-se em conta ainda que seus
shows permanecem lotados, segundo a grande imprensa, apesar (ou
por causa?) do alto preo dos ingressos, objeto de alguma contestao.
Para o artista, cabe agora negociar: O pblico quer ouvir msicas velhas
e eu quero cantar msicas novas. Ento, quando eu fao show, canto
metade do show para satisfao pessoal e a outra metade, para o pblico.
E camos quites.
Tom Jobim, em 1994, negou a autoria de uma frase a ele atribuda e que
se tornara clebre: a melhor sada para o msico brasileiro o aeroporto do
Galeo. Eu jamais disse isso. E nem acho isso, eu acho que tem grandes
msicos vivendo muito bem aqui no Brasil, cantores, cantoras, fazendo
muito sucesso aqui no Brasil. Todavia, dois anos antes armara: Que
assombro ver um pas musical como o nosso, mas onde os msicos no
podem viver!.1
Retomemos a pergunta: est mais difcil trabalhar com msica popular-comercial do que j foi? Embora a resposta dependa do lugar que se
ocupa no mercado, como regra, creio que no vivemos hoje um momento
acentuadamente pessimista. As novas tecnologias de produo, que vm
barateando os custos, as possibilidades de difuso e de distribuio via
internet e at mesmo as restritas e restritivas verbas de patrocnio sustentam um otimismo claramente no-hegemnico, nada efusivo, mas ainda
assim disseminado.
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O MERCADO IDEAL
Mas certo que, h mais ou menos dez anos, o otimismo parecia mais
slido. Se no estou equivocado, foi durante o perodo em que se venderam
discos no Brasil como nunca. O patamar de 1 milho de cpias deixara de
ser co para as majors, conforme anunciavam jornalistas, e as vendas
monstruosas eram todas de produtos brasileiros. Um jornal anunciava quem
eram os vencedores, em 1996, classicando-os como num supermercado
e usando de uma ironia tpica da imprensa (forma de aparentemente se
distanciar daquilo que lhe mais ntimo?): o scio de carteirinha, Roberto
Carlos, o sertanejo de Zez di Camargo e Luciano, o pop do Skank [com dois
discos], o samba de Martinho da Vila, a trilha de O Rei do Gado e o bumbum
do o Tchan.2 Talvez o Mamonas Assassinas merecesse ser includo na
lista, no sei bem em qual prateleira. At maro daquele ano quando
houve o acidente com o avio em que viajava , o grupo vendera 1,8 milho
de cpias em oito meses (recorde para um disco de estria; at onde sei, a
marca no foi superada).3
O segmento MPB, rtulo com maior prestgio no mercado brasileiro,
atingiria o patamar com Prenda minha, de Caetano Veloso, gravado ao vivo
um formato de sucesso e lanado em 1998. Ao ultrapassar 1 milho de
cpias, foi o CD de maior vendagem na carreira de Caetano (rero-me aos
meses de lanamento, de acordo com o que foi noticiado; mesmo porque,
difcil informar-se sobre as vendas de um disco brasileiro ao longo de dcadas). Nele est Sozinho (Peninha), includa em Suave veneno, uma novela
das 8 da Rede Globo. E tambm regravaes e interpretaes de canes
alheias, em sua maioria j conhecidas pelo pblico do show que participa
aplaudindo no s ao nal das execues, mas tambm aos primeiros versos
reconhecidos ou, mais genericamente, pelo consumidor de MPB.
H ainda uma faixa em que Caetano l um trecho de seu livro Verdade
tropical, publicado em 1997, no qual se fala de Gilberto Gil, moo, aparecendo na televiso e sendo saudado por Dona Can. O livro tambm est
em duas fotos do CD. Caso fosse bem examinado, o produto esclareceria
os contornos do segmento de mercado, apesar do conhecido repdio de
Caetano Veloso sigla MPB. No perodo de lanamento, o que pareceu
mais saliente foi o acerto comercial do disco. Mas, numa tentativa rasa
de sistematizao e reiterando o que j se observou, diga-se que o disco
se apresenta como o recorte da carreira bem-sucedida de um trabalhador
que atua, desde a Tropiclia nos anos 60, em vrias frentes: compositor,
cantor e msico, bastante talentoso e carismtico em tudo isso; pensador
com grande capacidade crtica; e personagem da mdia com grande capacidade para se promover, o que feito de modo ostensivo. Estando todos
esses trabalhos, com seus fundamentos artsticos, reexivos ou comerciais,
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Na dcada de 1970, o predomnio da msica estadunidense nas programaes das rdios e a grande quantidade de discos aqui produzidos
com matrizes estrangeiras estavam no centro dos debates sobre o mercado brasileiro de canes. Discutia-se a taxao das cpias fabricadas
com matriz importada. Armava-se que as empresas multinacionais agiam
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mais cresceram no sculo XX, com mdia de 4,5% ao ano. De 1970 a 1973,
alis, foi o pas que mais cresceu no mundo, com mdia de 4,9%.13
No de se estranhar, assim, que durante os anos 70 a chamada MPB
tenha se consolidado no mercado tendo como principal suporte o LP. certo
que lanava tambm compactos, mas seu pblico majoritrio podia arcar com
o gasto obviamente superior escolhendo o formato, digamos, mais completo.
De passagem, note-se a contradio entre a resistncia ditadura militar
que muitos emepebistas (produtores, mediadores culturais e consumidores)
empreenderam e o fato de pertecerem s classes favorecidas pela poltica
econmica; um tema rico, que ainda precisa ser melhor analisado. parte
essa questo, necessrio no perder de vista a complexidade de alguns
produtos de MPB que saem no perodo. H neles investimento artstico no
desenvolvimento de lbuns que merecem ateno renovada. No falarei
da parte grca, completamente secundria ao que procuro discriminar.
Rero-me ao gesto de no enfeixar canes aleatoriamente, de no selecionar hits (ainda que muitas faixas tenham se tornado; h quem jure que
alguns desses lbuns so coletneas), de no forar participaes famosas
e dispensveis mas que atraem consumidores, de no completar de qualquer jeito o tempo que acompanha a cano de trabalho, de no tratar o
Lado B como um banco de reservas. Acima de tudo, rero-me explorao
de uma determinada esttica. Um investimento que torna objetivo para o
ouvinte, na forma de uma cano e na relao entre as canes do LP, uma
certa realidade emocional, muitas vezes em paisagem extensa e sempre
recriada pela imaginao; e com potencial grande de crtica, uma vez que a
realidade foi transgurada e o saldo nal humanizador.
o caso, por exemplo, de A tbua de esmeralda (Jorge Ben, 1974), gua
viva (Gal Costa, 1978), Amoroso (Joo Gilberto, 1977), Ara Azul (Caetano
Veloso, 1973), Cantar (Gal Costa, 1974), Chico Buarque (1978), Clube da
Esquina (Milton Nascimento e L Borges, 1972), Clube da Esquina 2 (Milton
Nascimento e muitos convidados, 1978), Elis & Tom (1974), Estudando o
samba (Tom Z, 1976), Joo Gilberto (1973), Meus caros amigos (Chico
Buarque, 1976), Pssaro proibido (Maria Bethnia, 1976), Refazenda (Gilberto Gil, 1975), Transa (Caetano Veloso, 1972), Urubu (Tom Jobim, 1975).
No se trata de uma lista top music, e sim de alguns exemplos, da a
ordenao e o nmero de LPs. Apenas no citei mais de dois lbuns de um
mesmo artista, para no ser cansativo, nem gravaes de shows, porque
tm caractersticas prprias, e nem citei algum que no tenha iniciado
carreira nas dcadas anteriores.
No se deve confundir esttica com moda, e da o quesito novidade
necessitar de cuidado numa avaliao desse tipo. recorrente, na literatura
da poca, a idia de que esses produtos apresentavam estticas velhas,
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luz dos anos 70, creio que aquele otimismo mais slido e o quadro
dos 90 possam ser melhor avaliados. Talvez eu esteja equivocado, mas salta
vista, duas dcadas adiante, um certo sucesso da orientao prossional
do mercado hegemnico implementada desde o perodo anterior, sucesso
que produziu a naturalizao da empreitada. Em outras palavras, as bases
da prossionalizao do setor se tornariam quase invisveis. Nesse sentido,
mesmo a queda de consumo e de oferta da msica estrangeira, no Brasil,
precisa ser encarada com reservas. Em parte, isso se deve ainda fora da
tradio oral e musical brasileira, levada a contexto diverso ou produzida
dentro da dinmica mercadolgica. Vale lembrar, uma congurao que se
sente desde pelo menos a consolidao do samba de carnaval e do samba
de meio de ano nas rdios, durante a dcada de 1930. E congurao que,
desculpem os nacionalistas, no exclusiva do Brasil, que nisso coincide
com os EUA (p. ex., blues, jazz, soul), com Cuba (rumba, bolero, son, chachach, etc.), com a Argentina (tango), para carmos em alguns exemplos
bem prximos.16
Em outra parte, tampouco foi privilgio do Brasil que a cano tenha se
tornado mais local nos anos 90. Aqui, chegamos a cerca de 80% de venda
de msica brasileira. Mas o lema das grandes corporaes capitalistas no
passou a ser justamente Pense global, aja localmente? E, repetindo aquela
estratgia dos anos 70, o ento presidente da Sony Music Internacional no
advertia, j em meio crise de 2002, que se voc lida apenas com produtos
internacionais, no estar lidando com muitas pessoas o pessoal da mdia,
reprteres, programadores de rdio e outros para quem a cena musical
[domstica] muito importante?17
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claro que a digitalizao alterou profundamente algumas coordenadas que vinham se mantendo. J se disse, o desenvolvimento tecnolgico
barateou os custos de produo. Uma das conseqncias foi que as grandes
gravadoras se deszeram dos estdios de gravao. Terceirizaram igualmente
a fabricao e a distribuio. Mas a lgica da forma-mercadoria prosseguiu
como diretriz principal, se no como diretriz nica. Aprimorando-a, as majors
passaram a investir, cada vez com maior intensidade, na difuso, isto ,
na espetacularizao do produto, isto : intensicou-se cada vez mais o
investimento no na cano em si, mas na forma como a cano seria vista
sim, vista, antes de ser ouvida. As majors tornaram-se assim escritrios
de gerenciamento do produto e elaborao de estratgias de mercado.18
As brechas que ento se abriram podem ser facilmente percebidas. Houve
uma multiplicao das iniciativas independentes e dos pequenos selos, e a
possibilidade de armao no mercado pela associao com alguma grande
transnacional. Foi quando, talvez, a dvida sobre o target a ser atingido, via
tela da tev, se instalou denitivamente no plano de gravao.
Para o consumidor, o CD se tornou um suporte de preo bem mais
acessvel que o LP em tempos anteriores. Some-se a isso a expanso do
crdito para compra de televisores e aparelhos de som, com um nmero
cada vez maior de modelos para todos os bolsos e mantenha-se parte
aqueles aspectos econmicos do qual me esquivei, os quais ampliariam
enormemente a discusso.
Considere-se, porm, que o principal comprador da indstria fonogrca
deixou de ser a loja de discos. Supermercados e, acima deles, cadeias de
hipermercados que passaram a ocupar o posto de grande intermedirio,
fazendo chegar o produto ao consumidor. Tal mudana, salvo engano ainda
no bem analisada, no s facilitou as novas coordenadas do mercado
fonogrco mas contribuiu decisivamente para elas (devo a indicao a uma
entrevista que z com o publicitrio e msico lvaro Faria). Agora, o CD ideal
no ocupa espao em exposio ou no estoque, espera de consumidores,
ao longo de meses ou at de anos. Almeja-se a sua venda, obviamente em
grandes quantidades, num curto tempo, almeja-se a sua rpida substituio
nas prateleiras e nas gndolas. Se preciso, as promoes queimam tudo
o que ameaa encalhar.
Uma vez que a lgica a da pura venda, o compromisso com o funcionamento mercadolgico pelos empresrios, assumido sem muitos problemas
durante a dcada de 1970, se tornaria cada vez mais agudo. E invisvel, de
certo modo, tambm para muitos cancionistas (para a maioria deles, quer
dizer, de ns?). Pensemos no quadro atual. Um dos sintomas do que armo
a diculdade crescente de pr em questo a qualidade artstica do que
quer que seja. No digo que todos assinem embaixo da mxima que ouvi do
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diretor de uma sociedade arrecadadora: Disco no foi feito pra ouvir, disco
foi feito pra vender. Mas no curioso que msicos e cantores justiquem
tantas coisas apenas observando: Ah, mas bem produzido? Anal, o
que isso bem produzido quer dizer? Que tem potencial de venda? Que
se parece um pouco ou bastante com algo que j vendeu? Que se enquadra
perfeitamente nos moldes de um gnero ou de um estilo conhecidos? Que
tem a capacidade de assombrar o ouvinte, grudando em sua cabea logo
primeira audio? Que favorece a imagem da banda?
De resto, um julgamento crtico que sustenta que nem toda cano
popular-comercial uma forma de arte tem gerado reaes que vo do
desprezo ira, com as excees que sempre existem. No estranho que
ofenda o reconhecimento, que nunca ser mesmo consensual, do carter
artstico de algumas canes, no de todas? Que ofenda a valorao qualitativa e a discriminao entre arte e comrcio (imbricados na prtica) que
da advm? Ou que ofenda a tentativa de chegar a um resultado sobre a
questo, antes de ofender o resultado em si?
Canes tm vrias serventias, como se sabe. H cano para toda
sorte de ocasies, inclusive canes que servem admiravelmente como
necessrio pano de fundo. Para uma refeio saudvel, por exemplo. No
estou negando nenhuma das funes. Ao defender a idia de cano artstica, minha preocupao com o totalitarismo, sei que a palavra forte,
da idia de cano meramente comercial. Essa ltima se instalou de tal
modo no nosso dia-a-dia, que parecemos acostumados a supervalorizar
o banal, o repetitivo, o ensurdecedor, o acessrio, o infantil, a cano que
atua radicalmente como jingle de um show visual qualquer; quando no,
como jingle da marca de um cantor, de uma cantora, de um grupo ou, na
forte interao do negcio fonogrco e dos outros negcios, como jingle
de refrigerantes, espelhinhos, perfumes, no nos intervalos comerciais, mas
dentro da programao musical.
Canes no Brasil, desde sempre, serviram tambm sobrevivncia.
Ou melhor, em vrios casos serviram e ainda servem como tbua de salvao
em meio misria econmica, pois tanto essa misria no foi erradicada
como o povo segue com sua rica cultura, um capital nada desprezvel. complicado lidar com essa situao, pois se absurdo justicar a manuteno
da misria pela cultura no h por que ignorar o valor humano, em sentido
amplo, que subsiste nos produtos culturais que resultam dessa histria.
Um msico e produtor independente aqui de So Paulo costuma brincar,
nas sesses de seu estdio: Por que gravar? J tem disco pra caramba por
a!. Vamos levar a srio o chiste. O fato de a produo haver se tornado mais
acessvel inegavelmente facilita hoje o trabalho com a cano. Mas o foco
de interesse do mercado no migrou para a etapa de difuso? Como apostar,
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Notas
1 As informaes sobre Tom Jobim foram retiradas de: entrevista a Cleusa Maria, Jornal do
Brasil, 1/3/1992, disponvel em www2.uol.com.br/tomjobim/textos_entrevistas; Tom Jobim, a ltima
entrevista, entrevista a Walter de Silva, Qualis, So Paulo, Qualis Editora, n 24, jan. de 1995, p. 22;
Trik de SOUZA, Mrcia CEZIMBRA & Tessy CALLADO, Tons sobre Tom. Rio de Janeiro: Revan, 1995,
p. 76; Antonio Carlos JOBIM, A vida de Tom Jobim: depoimento. Rio de Janeiro: Editora Rio Cultura/
Faculdades Integradas Estcio de S, s.d., p. 42; Entrevista: Tom Jobim, entrevista a Almir Chediak,
in: Songbook Tom Jobim volume 2, produzido por Almir Chediak. 7 ed. Rio de Janeiro: Lumiar, 1994, p.
13. Sobre Chico Buarque: As boas novas de Chico Buarque, entrevista a Adriana Del R. O Estado de
S.Paulo, 28/1/2005, p. D5; Regina ZAPPA, Chico Buarque: para todos. Rio de Janeiro: Relume Dumar/
Prefeitura, 1999, pp. 29 a 39; 52 a 63; 104; Julia BANDEIRA, DVD Retrato de Chico por suas meninas.
So Paulo, Coml-PUCSP, 2004; Roberto FREIRE, Chico d samba, Realidade, So Paulo, Ed. Abril,
ano I, n 9, dez. 1966, p. 72; Hamilton RIBEIRO, Chico pe nossa msica na linha, Realidade, So
Paulo, Ed. Abril, ano VI, n 71, fev. 1972, p. 16. Sobre Mutantes, cf. Carlos CALADO, A divina comdia
dos Mutantes. So Paulo: Ed. 34, 1995.
2 Cf. Luiz Antnio RYFF, Venda favorece artista nacional, Folha de S.Paulo, 23/12/1996, p. 4-3.
3 Cf. A morte no auge, Veja, So Paulo, Ed. Abril, 13/3/1996, p. 97.
4 Cf. Caetano VELOSO, Prenda minha, PolyGram, CD 538 332-2, 1998; idem, Verdade tropical.
So Paulo: Companhia das Letras, 1997; Roberto SCHWARZ, Cultura e poltica, 1964-69 e Nota sobre
vanguarda e conformismo; in: O pai de famlia e outros estudos. 2 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992,
pp. 61 a 92; 43 a 48; www.dicionariompb.com.br; Caetano Veloso canta com David Byrne, 2/9/2000,
Caetano Veloso: CD perturbador, 12/12/2000, ambas disponveis em www.estadao.com.br/arquivo/
arteelazer; Marcos Paulo BIN, Caetano ainda mais prximo da Universal, 3/10/2004, disponvel em
www.universomusical.com.br.
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5 Cf. RACIONAIS MCs, Sobrevivendo no inferno, Cosa Nostra/Zambia, CDRA 001, 1997; Srgio
KALILI, Mano Brown um fenmeno, Caros Amigos, So Paulo, Casa Amarela, jan. de 1998, p. 31;
idem, Os mano detonaram, Vip Exame, So Paulo, Abril, set. de 1998, pp. 55 a 58; Walter GARCIA,
Ouvindo Racionais MCs, Ensaios sobre arte e cultura na Formao. So Paulo: Anca/ Coletivo Nacional
de Cultura do MST, [2006], pp. 51-63.
6 Cf. Juan GARRIDO, A lgica do crescimento, Gazeta Mercantil: balano anual, ano XXV, no 25,
julho de 2001, p. 196. Os dados do Censo Demogrco 2000 foram retirados do site do IBGE na internet
e de duas edies de O Estado de S.Paulo, 9/5/2002, pp. C1, C7 a C10, e 30/9/2003, pp. A10 a A12.
7 Cf. Marcia Tosta DIAS, Os donos da voz. So Paulo: Boitempo/ Fapesp, 2000, p. 54; Marcelo
NEGROMONTE, Brasil prioridade da indstria fonogrca, Folha de S.Paulo, 24/7/1997, p. 5-5;
Pedro Alexandre SANCHES, Mercado musical nacional cai 25%, Folha de S.Paulo, 3/5/2002, p. E-4;
site da Associao Brasileira dos Produtores de Discos, www.abpd.org.br.
8 Cf. Clia de Guvea FRANCO, Barulho das massas, Folha de S.Paulo, 12/4/1998, p. 5-4.
9 O termos so citados e comentados por Rita L. C. MORELLI, Indstria fonogrca: um estudo
antropolgico. Campinas (SP): Editora da Unicamp, 1991, pp. 78 e 68, respectivamente. Sobre o assunto,
ver tambm Othon JAMBEIRO, Cano de massa: as condies da produo. So Paulo: Pioneira, 1975,
especialmente pp. 25-38; e A MPB se debate: uma noite com Chico Buarque, Caetano Veloso, Edu
Lobo e Aldir Blanc, suplemento especial da revista Homem, setembro de 1977.
10 Cf. Rita L.C. MORELLI, op. cit., pp. 67 e 73 (as citaes entre aspas foram retiradas da); Marcia
Tosta DIAS, op. cit., pp. 54, 57 e 58; Pedro Alexandre SANCHES, Indstria fonogrca reclama da
pirataria e prev extino do mercado (entrevista com executivos do setor), 25/7/2001, disponvel
em http://tools.folha.com.br; Margarida AUTRAN, O Estado e o msico popular: de marginal a instrumento, in: Adauto NOVAES (org.), Anos 70: ainda sob a tempestade. Rio de Janeiro: Aeroplano/
Editora Senac Rio, 2005, p. 89.
11 Cf. Rita L. C. MORELLI, op. cit., captulo 1.
12 Cf. Marcelo DOLABELA, ABZ do rock brasileiro. 8 ed. So Paulo: Estrela do Sul, 1987; Jairo
SEVERIANO & Zuza HOMEM DE MELO, A cano no tempo, vol 2: 1958-1985. So Paulo: Ed. 34, 1998,
pp. 200 e 201
13 Cf. FURTADO, Celso, O mito do desenvolvimento econmico. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1974, pp. 103, 104 e 107. Os dados foram retirados de Joo Manuel CARDOSO DE MELLO & Fernando
A. NOVAIS, Capitalismo tardio e sociabilidade moderna; in: Histria da vida privada no Brasil, vol. 4.
2 reimpr. So Paulo: Companhia das Letras, 2002, pp. 620, 633 e 634; e tambm de O Brasil do
sculo 20, caderno especial da Folha de S.Paulo, 30/9/2003. Especicando: os 5% mais ricos, em
1960, detinham 28,3% da renda e, em 1980, 37,9%; tomados os 20% superiores, essa camada detinha
54,8% da renda em 1960 e, em 1980, 66,1%; os 60% mais pobres, em 1960, detinham 24,9% da renda;
em 1980, 17,8%; quanto classe mdia baixa, ou seja, os 20% entre superiores e inferiores, em 1960
detinham 20,3% da renda; em 1980, 16,1%.
14 Cf. Margarida AUTRAN, Samba, artigo de consumo nacional; in: Adauto NOVAES (org.), op.
cit., p. 71. Idem, Renascimento e descaracterizao do choro, ibidem, p. 81.
15 Cf. Mrcia Tosta DIAS, op. cit., captulo 2; Fernando REIS, So Paulo e Rio: a longa caminhada,
in: Renato Castelo BRANCO, Rodolfo Lima MARTENSEN & F. REIS (coord.), Histria da propaganda
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no Brasil. So Paulo: T.A. Queiroz, 1990, pp. 365 e 366. Sobre o assunto, ver ainda Renato ORTIZ,
A moderna tradio brasileira. 5 ed. 3 reimpr. So Paulo: Brasiliense, 2001; idem, Mundializao e
cultura, 5 reimpr. So Paulo: Brasiliense, 2003.
16 Cf. Alejandro Ulloa SANMIGUEL, La msica popular urbana de Amrica Latina y el Caribe. Sus
orgenes sociales, Boletn Msica, n 14, Havana, Cuba, Casa de las Amricas, 2004, pp. 22 a 28.
17 Cf. Pedro Alexandre SANCHES, Indstria fonogrca reclama da pirataria e prev extino
do mercado; Renato ORTIZ, Mundializao e cultura, p. 181; Charles GOLDSMITH & Keith JOHNSON,
Pirataria emudece artistas locais em gravadoras, O Estado de S.Paulo (The Wall Street Journal Americas), 4/6/2002, p. B14.
18 Cf. Marcia Tosta DIAS, op. cit., p. 17.
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Exposio River.
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JANELLE LYNCH
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PROPRIEDADE
INTELECTUAL
E MSICA DE
TRADIO ORAL
CARLOS SANDRONI
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Este artigo aborda alguns problemas relacionados a direitos autorais e proteo do que, na falta de melhor expresso,
chamarei de patrimnios musicais da cultura popular. Recorrendo a alguns exemplos, discutirei relaes entre a esfera
legal do direito autoral, e a esfera social onde pode se vericar
a necessidade de proteo a bens intelectuais que se pode
argumentar pertencerem a grupos sociais subalternos.
O debate aqui proposto se d no quadro da viso possivelmente ainda predominante na sociedade brasileira, segundo
a qual existem, por um lado, a msica erudita e a popular,
e por outro lado, a msica folclrica ou de tradio oral.
Esta disjuno pode ser encontrada em vrios livros sobre
msica brasileira e tambm pode ser encontrada no senso
comum. Ela pressupe que existe uma esfera protegida pelo
direito autoral, que englobaria o erudito e o popular, e outra
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original dizia Vem c, Bitu). Essa msica foi usada por compositores clssicos como Alexandre Levy e Francisco Mignone, que escreveram Variaes
sobre um tema popular brasileiro usando essa melodia1. Trata-se pois de
uma melodia cuja histria se consegue retraar at mais de cem anos atrs,
e que, hoje em dia, acho que se pode legitimamente dizer que pertence ao
domnio pblico; ou seja, no Brasil inteiro todo mundo a conhece, e ao
mesmo tempo no h nenhum grupo ou pessoa em particular que possa
reivindicar essa melodia, no que se refere a um pertencimento particular
(individual ou grupal). No se trata, ento, de descartar totalmente a validade
de um possvel domnio pblico no mbito da cultura popular.
O CASO DA QUIXABEIRA
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E a tocamos no seguinte ponto: talvez devamos formular nossas questes no apenas em termos de direitos autorais. Talvez o tipo de solues
que estamos buscando, no fundo, sejam relativas, de maneira mais geral, a
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sua validade legal. O caso do coco de roda ainda mais complicado, pois,
embora a questo esteja sujeita a controvrsias, pessoalmente no acredito que este repertrio pertena a Olinda como um todo. Os coquistas
desta cidade so pessoas de carne e osso, com idias prprias a respeito
dos destinos de suas produes. Isto se refere tanto s composies de
cada um deles, como o caso de muitos cocos que podem estar sujeitos ao
regime autoral de propriedade intelectual; como tambm dos cocos tradicionais, cujos inventores no so conhecidos nem dos prprios coquistas
que os cantam, mas que nem por isso so menos considerados propriedade
intelectual deles coquistas (e alis no s dos coquistas de Olinda, visto
que parte signicativa do repertrio de cocos de l tambm circula por
Igarassu, Itamarac e outras cidades do litoral Norte de Pernambuco, e
at do litoral Sul da Paraba.) Sendo assim, no vejo como a Prefeitura ou
qualquer outra pessoa fsica ou jurdica poderia estar habilitada a licenciar
os cocos tradicionais cantados em Olinda, a no ser uma ainda inexistente
Associao de Coquistas Litorneos, que alis correria os mesmos riscos de
questionamento legal mencionados acima a propsito de qualquer pessoa
jurdica que pretenda ser autor. Tudo isso, supondo que um licenciamento sem retribuio nanceira seria vantajoso para os coquistas (e no
apenas para o desenvolvimento do turismo em Olinda), o que tambm est
sujeito a controvrsias. Em todo caso, o surgimento do creative commons
tambm mais um sintoma da precariedade do direito autoral tradicional
para dar conta por si s dos problemas atuais de gesto legal da criao
intelectual e artstica.
PATRIMNIO IMATERIAL, DIREITO AUTORAL E CANTORIA DE VIOLA
Outra alternativa que surgiu recentemente, e que por assim dizer abre
o leque numa outra direo, menos relacionada a direitos autorais, mas
talvez mais apta a nos ajudar nos problemas especcos que esto sendo
discutidos aqui, a gura legal do registro do patrimnio imaterial. Como
se sabe, o Estado brasileiro passou a reconhecer, desde o Decreto-Lei
3.551, do ano 2000, o valor de patrimnio cultural de bens ditos imateriais, ou seja, saberes, formas de expresso e celebraes tradicionais,
que podem ser caracterizados como atributos simblicos e cognitivos de
certas coletividades.
Tal reconhecimento, ao contrrio do que acontece no caso do patrimnio
construdo (e do que parece estar sendo assumido pelo senso comum), no
se faz atravs do tombamento e tudo que ele implica em imobilidade. Se
faz atravs do registro, que implica em documentao sobre o bem cultural, e em salvaguarda do mesmo. (O que quer que signique salvaguarda,
no signica aqui, como est bem claro no decreto e na documentao
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Fontes citadas
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Lemos, Ronaldo. Direito, tecnologia e cultura, Rio de Janeiro: FGV, 2005.
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Machado, Angela Luiza. Quixabeira: da roa indstria cultural, vdeo, Salvador:
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Ramalho, Z e Batista, Otaclio.Mulher nova, bonita e carinhosa faz o homem gemer
sem sentir dor, gravado por Amelinha no LP homnimo, Rio de Janeiro: CBS,1982.
Sandroni, Carlos (org.). Responde a roda outra vez msica tradicional de PE e da PB
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Caderno Mais!, 4 de setembro de 2005, p.10.
Vianna, HermanoO contrrio do liberou geral, www.overmundo.com.br/overblog/
o-contrario-do-liberou-geral, postado no dia 9 de outubro de 2007. (Tambm publicado em verso
reduzida na Folha de S.Paulo dia 6 de outubro de 2007).
Weid, Bernard von der (org.). Da Quixabeira pro bero do rio, LP, Rio de Janeiro: NOVA, 1992.
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Notas
1 Sobre Vem c, Bitu!, Vasconcelos, 1977:57-62. As Variaes de Levy, para piano, so de
1887, e as de Mignone, para violino e piano, de 1935.
2 http://www.carnasite.com.br/noticias/noticia.asp?CodNot=4295 acessado dia 12 de outubro
de 2005. L-se a: Composta por Carlinhos Brown, a msica um dos maiores sucessos de todos os
tempos do ax.
3 http://www2.uol.com.br/carlinhosbrown/brown_ash.html, acessado dia 12/10/2005.
4 Uma apresentao autorizada do creative commons em seus aspectos culturais, tecnolgicos
e jurdicos, pode ser encontrada em Lemos 2005:79-92.
5 http://www.mombojo.com.br/, acessado dia 12 de outubro de 2005.
LEONARDO DEGORTER
Exposio Imagens
da natureza brasileira.
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LULA QUEIROGA:
PALAVRAS
ANA GARCIA
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Certo de sua inclinao para a arte, Lula Queiroga no restringiu seu mundo
artstico apenas msica. Inspirado pelos trabalhos do pai, ele comeou a
escrever e seus textos serviram de roteiro para muitos consagrados programas
de televiso como o de Chico Anysio e Os Trapalhes. Aventurando-se em outras
formas de arte, Lula se tornou um artista verstil que transita pelo mundo do
roteiro, publicidade (com a sua produtora Luni), e da msica. Contudo, ele se
sente um compositor mais que qualquer outra coisa. Anal, no processo de
compor que ele pode criar clulas meldicas para tortura mental, como ele
prprio descreve. parceiro constante de diversos nomes da MPB como Arnaldo
Antunes, Chico Csar, Silvrio Pessoa e do msico Lenine, com quem fez o primeiro disco, Baque Solto, no incio da dcada de 80, que foi remixado em CD
em 1999 disco que ambos fazem questo de deixar no seu passado distante.
Lula e Lenine tambm dividiram o Prmio Sharp de melhor msica A Ponte em
1998. Lula comps trilhas para diversos lmes, assinando O ltimo Pr-do-Sol,
um dos temas principais de Caramuru, a inveno do Brasil, de Guel Arraes.
Em 2001, Lula Queiroga lanou o lbum Aboiando a Vaca Mecnica (Trama),
conquistando o Prmio APCA (Associao Paulista de Crticos de Arte) de
melhor compositor em 2001 e tambm o Prmio Globonews 2001 (Disco do
ano). Em 2003, recebeu o Prmio Unesco de Fomento das Artes como melhor
show do Mercado Cultural. No ano seguinte, Lula volta com o seu segundo
lbum solo Azul Invisvel Vermelho Cruel (Luni). Atualmente, Lula Queiroga
termina o seu terceiro disco Tudo Enzima que deve ser lanado ainda este
ano. O disco traz novas parcerias com os seus amigos Felipe S. (Momboj),
Lenine, Lirinha (Cordel do Fogo Encantado), Pupilo (Nao Zumbi), Silvrio
Pessoa e muitos outros.
Em uma tarde de outubro, Lula Queiroga me recebeu na Luni Produes
para contar um pouco do seu mundo.
Cultura e Pensamento Poderia contar a sua histria familiar?
Lula Queiroga Eu nasci em 17 de maro de 1960, em gua Fria, na
casa da minha av. O meu pai, Lus Queiroga, era diretor da TV Rdio
Clube, logo quando a TV comeou em Recife, e a minha me Meves Gama
era uma cantora que veio da Paraba, contratada da Rozenblit. Eu sou
o primeiro lho de uma turma e todo mundo virou msico. A casa era
musical. Moramos em Recife e depois fomos pro Rio de Janeiro com a
famlia toda at 1975. Trs anos depois, o meu pai morreu. Em 1980, eu
voltei pro Rio e quei at 1990. Foi quando resolvi sair de casa mesmo
e encarar a luta.
CP Qual foi o motivo que o levou de volta ao Rio de Janeiro?
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puto com essa histria de nem uma coisa e nem outra. Fiquei mal comigo
mesmo porque eu estava fazendo um negcio que eu at acreditava no
incio, mas que depois tomou outro rumo. At a forma dos arranjos. Nos
shows, nunca tocamos Presena. Para mim, ela morreu.
CP Como foi a sua volta ao Recife?
LQ Em 1990, voltei para o Recife. J trabalhava em agncia de
propaganda por causa de grana mesmo para me sustentar, e em 1996
criamos a Luni (Produes). Eu aprendi muito depois dessas crises,
percebi que trazia angstias para a msica, angstia de dinheiro, de tocar
em barzinho e isso no me dar dinheiro. Decidi que no iria mais fazer
isso. Eu parei e eu fui trabalhar com propaganda. Isso deu certo, tenho
o meu estdio, eu gravei o meu primeiro e segundo disco aqui e agora
estou terminando o terceiro.
A partir do segundo disco, eu j tinha outra maturidade para encarar
as coisas. At a pacincia de esperar, de fazer msica ao mesmo tempo
em que fazia as outras coisas da Luni, no trabalho de videomaker.
A gente se satisfaz muito mais quando fazemos co e documentrios,
mas s vezes temos que fazer comerciais de sabo em p tambm. Teve
um dia que foi cruel, eu disse que no faria o comercial da Brilux, que
um sabo em p. Mas sabo representa tudo que a msica no . Hoje,
a Luni uma central. Temos discos, registros de shows de eventos como
o Rec Beat, Abril Pro Rock, PE no Rock e Soul do Mangue. Temos esse
acervo enorme e em 2000 zemos De Malungo pra Malungo que um
vdeo sobre a cena mangue.
Mas, a hora plena a hora de msica para mim.
CP Poderia contar os momentos diferentes da cidade do Recife que
voc j vivenciou?
LQ Minha iniciao musical coletiva foi no Centro Lus Freire, em
Olinda, num projeto chamado MURAL. Foi a que eu conheci artistas
de vrios cantos do Recife e do Brasil. Ouvi sons de diversos cantos
do mundo. Troquei idias e convivi com toda aquela agitao da poca,
em 1978/1979. No entendia muito bem tudo que realmente estava
acontecendo, eu era muito novo, mas achava o mximo. Os ecos tardios
da contracultura, os ltimos gemidos da ditadura que proibira uma
msica de Marco Plo e que vinha riscada em cada um dos vinis do
Ave Sangria. Tinha um cineclube onde a gente assistia em transe os
lmes de arte europeus, os clssicos, lmes de Glauber Minha intuio
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me dizia que era aquilo que eu queria. Mesmo sem conseguir capturar
o verdadeiro sentido, se que havia. Mas, eu estava na onda e levava
a maior f em tudo. Eu morava em Olinda e trocava informaes com a
galera de Casa Amarela (Vila dos Comercirios sede do Tamarineira
Village), com a turma de Boa Viagem (Lenine, Ns e Voz, Bando de
Msica). Ia para as sesses de Arte do Cine AIP. Adorava estar perto
daquelas pessoas que respiravam arte.
Outro momento: anos 90. Assisti de perto toda a cena dos caranguejos
com crebro e a gnese da co manguebeat. Coincidia com nossa
histria de trazer traos de cultura popular para o nosso som, mais pop.
Eu e Lenine falvamos muito nisso. Alis, nesse mesmo momento Lenine e
Suzano gravavam o Olho de Peixe. Recife estava meio no marasmo e nesse
momento eu senti que aquela histria que vinha com Chico Science, Zero
Quatro e Ambrsios tinha caldo. Tinha assunto. Tinha quadrinhos. Tinha
style. Tinha dana e gurino prprios. Era um cenrio novo.
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pai, que me chamava de Kid, chegou para mim, sorrindo ele era muito
risonho e falou: Kid, senta aqui. Eu pensei caralho, ele descobriu que
eu faltava aula h uns 20 dias. Ele disse: olhe, estou pagando colgio
para voc, at com uma certa diculdade, um colgio caro, e voc no
est indo aula e eu acho ridculo voc conseguir levar uma mentira
dessa para frente na minha cara. Ento o seguinte, eu tenho uma
proposta para voc: pare de estudar e v tocar. Voc no gosta de tocar?.
Todo dia ele trazia um violo para mim. Tnhamos uns 19 violes em casa
pendurados na parede. Ento, eu tinha que tocar e j gostava mesmo.
Depois veio a histria de escrever. Tudo foi herdado dele. Eu vivia em
um ambiente propcio a isso. A histria de msica vem disso, de induo
direta, ou voc era msico ou voc estava fora da parada.
CP Voc chegou a ter aula?
LQ No, no aprendi com ningum. Ou eu aprendia ou eu no
tempo. A maior parte das msicas tinha coisa de romance, mas com
um lado concreto. Nunca fui de: ah, meu amor, vem me dar um beijo,
para te namorar, at por causa da exigncia que tinha em casa, do
julgamento. Tambm tocava muito samba. At quando viemos pro Rio
o meu pai era amigo de muitos msicos. Cartola esteve l em casa, a
galera do samba de Recife e ainda nomes como Jacinto Silva, Jackson
do Pandeiro e Luiz Gonzaga. A minha casa era uma embaixada. Baiano
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Agora estou fazendo uma msica com Max Viana, lho de Djavan.
Tambm gravei com Dudu Falco e Ana Carolina. Ela poderosa, j
gravamos vrias msicas, zemos seis msicas juntos, das 8 da noite s
8 da manh. Ela fez uma festa para mim, mas Dudu disse que no iramos
compor na festa, s que ela no conseguiu desmarcar o buffet. A gente
cou biritando, comendo, ela lmava, gravava, com um computador do
lado, violo do outro, tecladinho pequeno e camos fazendo coisas.
Compor fcil para mim, a no ser quando a pessoa trava e diz que no
pode mudar algo. E quando eu comeo a pensar em uma coisa, eu j estou
mudando. Quando chegou a palavra na boca, a palavra j outra. Eu sei
que eu me sinto um compositor, mais que qualquer coisa. Compositor
para criar pequenas clulas meldicas para tortura mental, acho que sou
bom nisso. At para criar um jingle para as pessoas carem repetindo a
mesma coisa. At porque jingle no passa disso, para tapar a sua cabea
e as pessoas carem repetindo automaticamente o produto sem querer.
Propaganda para vender, rapariga safada, nada contra, mas . Msica
diferente, se eu pudesse, eu dava os meus discos, eu no vendia nenhum.
CP Voc acha que est em que fase musicalmente falando?
LQ Bem, nada foi forado. Tudo foi muito ocasional. E sempre
tem uma mudana, uma oxigenao. Tenho feito coisas com Felipe S.
(Momboj), Yuri Queiroga e outros msicos novos, mas no estou
buscando. Posso at parecer um vampiro para sugar sangue de gente
mais nova para oxigenar o meu, mas isso no intencional. Mas
musicalmente falando os discos se parecem entre si, tem uma pessoa
que diz: apesar das msicas serem diferentes umas das outras e os
discos serem diferentes uns dos outros, eles se parecem.
Sempre ter aquela coisa das pessoas me associarem a Lenine.
Eu estava dando um workshop de msica para cinema no Festival de
Cinema de Vitria e duas pessoas vieram perguntar se proposital a
minha voz parecer muito com a de Lenine. Eu perguntei em qual msica
e eles falaram a msica que abre o disco. E eu disse que era Lenine.
Agora a gente foge completamente do violo de Lenine que patenteado,
a no ser que seja ele mesmo fazendo. At para ser diferente. Ele canta
mais srio, eu canto mais na brincadeira. As minhas msicas so poticas,
meio chapadas, as letras tm um entorpecimento que meio chapado,
parece criana pensando. Eu estou melhor quando eu consigo chegar
neste estado, quando no descritiva, mas no deixa de ser e ao mesmo
tempo meio no se entende, para sentir, mas no precisa entender.
As msicas quase que caminham sozinhas.
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MARCUS FREITAS
Exposio E todo dia
a chuva veio.
FOTO ARTE 2007/divulgao.
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MANO BROWN:
POESIA E LUGAR
SOCIAL LEITURA
DOS SEUS RAPS
NO HORIZONTE DA
POESIA BRASILEIRA
LEANDRO PASINI
LEANDRO PASINI
DOUTORANDO NO
DEPARTAMENTO DE TEORIA
LITERRIA E LITERATURA
COMPARADA DA FFLCH-USP
E BOLSISTA DO CNPQ.
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Como est dito acima, o primeiro rap que expressa de modo mais completo o rol pela periferia Fim de semana no parque. Acompanhando
os principais raps cujo tema o rol, alm deste, Frmula mgica da paz e
Da ponte pra c, vemos a progressiva depurao dessa subjetividade itinerante. Deles pode-se depreender um procedimento especco do percurso
formativo da subjetividade de Mano Brown: a princpio o antagonismo social,
em seguida a reexo dentro da dinmica intra-perifrica, e a superao
das contradies pelos seus desvelamento e independncia do eu rapper/
eu lrico em relao a elas, independncia entendida como capacidade
intelectual de pr em perspectiva os condicionamentos histrico-sociais da
subjetividade. O ponto de vista do sujeito nos raps reitera esse percurso:
a circulao entre classes diversas em Fim de semana no parque, intraclasse em Frmula mgica da paz, e o sobrevo urbano e psicolgico em
Da ponte pra c. Em Fim de semana no parque o motor de antagonismo
no rol, contrape a periferia a uma vida de desfrute e ostentao: carros,
parques de diverso, conforto. Na precariedade da periferia encontra-se como
compensao formas alternativas de alegria, a mesma energia nas crianas,
a informalidade mais acolhedora, a identicao o que uma conquista
do pertencimento a uma origem histrico-social determinada, e um tipo de
honestidade moral ligada pobreza, que se deve concluir implicitamente
pela oposio dela ao jogo de interesses que pauta a relao entre ricos,
personicado na mulher interesseira, mas que no fundo seria apenas uma
variao da alienao social e discriminao deliberada ou cmplice a que
estaria ligada a riqueza na sua face mais exterior e ostensiva de posse na
sociedade brasileira.
O RAP E A POESIA LRICA BRASILEIRA
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Sentimento de culpa, sensao de fracasso, tortuosidade na compreenso das razes de viver. Salvo engano, a reconstruo de uma experincia que no se impe imediatamente como vlida, precisando ao mesmo
tempo se auto-justicar e se auto-criticar, coloca Mano Brown no plano dos
obstculos da formao da subjetividade que da mesma ordem da nossa
poesia lrica, da vontade dos brasileiros de congurar uma experincia subjetiva original, uma vida interior. Porm, a perspectiva e o lugar social so o
oposto. Drummond, para citar o exemplo maior, em grande medida se dilacera
contra os constrangimentos do privilgio social, que barra a integridade
reexiva da subjetividade moderna. Em Brown o privilgio outro, trata-se
do privilgio de ser quem est vivo, e no quem est morto. A sobrevivncia
aqui o maior ato de rebeldia de Mano Brown (passei dos 27, eu sou um
sobrevivente). Mas essa sobrevivncia carrega seus mortos, o peso da
sobrevivncia to gratuita quanto as mortes dos amigos, da vida loka, da
tristeza inconsolvel das mes de pele escura e o conito resultante dessa
rbita de opresses. A coragem de analisar o conito e formaliz-lo com
destreza faz de Mano Brown pedra fundamental da expresso subjetiva e
da experincia cultural brasileira, tendo sempre em mente a subversividade,
alterao drstica do lugar social, da natureza da experincia e da linguagem
que a congura, sem prejuzo da identidade estrutural do sentido formativo
desse procedimento.
Aqui a linha reexiva deste ensaio bifurca em dois problemas opostos
e convergentes: 1) a experincia catica num quadro social de violncia
desgovernada e 2) o antagonismo dessa experincia em relao congurao potica da subjetividade brasileira levada a cabo por nossa tradio
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vndalo,/batendo no peito, feio e fazendo escndalo , no legitima a criminalidade, explicitando os caminhos diversos de sua disposio anmica
destrutiva, e muito menos festeja a miserabilidade da favela pela armao
de pertencimento, antes acentua o conito entre armao da origem sem
complexo de inferioridade e dio contra o padro de inferiorizao social de
que aquela origem o resultado. Em todos os aspectos, a integridade do
justo, do homem bom de matriz bblico-evanglica que casa com a revolta
contra a injustia, tema a que voltarei mais adiante. So esses alguns focos
das rasantes da viso panormica de Brown nesse rol.
Na dinmica do rol pela periferia, Brown descobre que da ponte
pra c antes de tudo uma escola9 e que cada favelado um universo
em crise. Nesse percurso formativo o que se v a passagem do lho
pardo sem pai em homem duro do gueto, que se constitui na medida
mesma em que incorpora e articula em chave crtica os mecanismos sociais
e psicolgicos dispostos histrica e socialmente para a sua aniquilao. Eis
a dinmica formal de um rap como Captulo 4, versculo3. Ele a deagrao violenta mais bem articulada do excludo/pobre (negro e favelado)
contra a sociedade urbana paulista em sua condio de ponta de lana
do Brasil moderno. Sem nenhuma concesso, o sujeito desse rap (em que
tambm participam Edi Rock e Ice Blue, outros integrantes do grupo) julga a
sociedade desde seu ponto de vista, de sua liberdade (possvel) de atuao.
A sua destrutividade maliciosa, que tanto assusta a quem ouve e ainda est
preso aos falsos valores paccos da classe mdia brasileira, manifestao forte e juvenil integral do dio perifrico sociedade que o mundo
elitista brasileiro criou.
O comeo da letra j demonstra sua carga pesada:
Minha inteno ruim esvazia o lugar
Eu t em cima eu t a m um dois pra atirar
Eu sou bem pior do que voc t vendo
O preto aqui no tem d cem por cento veneno
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letra e do esprito das Sagradas Escrituras. Nesse sentido, Mano Brown pde
rever a tica do homem justo, el a Cristo, pela tica do bandido arrependido,
e pde tambm buscar uma legitimao espiritual de sua revolta contra o
mundo material que o destinava a todo tipo de rebaixamento. Ao que tudo
indica, esta viso que permite uma ascenso social do sujeito negro/pobre
pela via do trabalho honesto, da participao nos bens materiais desde que
no haja comunho com sua matriz opressiva a identicao entre posse e
valor pessoal nem alienao do sujeito quanto a sua origem social. Nesse
ponto a religiosidade se alia ao ponto de vista social, pois a palavra justa
tem um lugar social especco, ela passa pela experincia da humildade e
do sofrimento, que sero o antdoto contra o deslumbramento do possuidor
culturalmente no-assimilado. Dessa perspectiva, a linguagem ideal da construo dessa subjetividade aquela que apreende toda a heterogeneidade
constituda pela fala popular, com suas grias, sua tonalidade agressiva, seu
repositrio de preconceitos sofridos e assimilados, e constituda tambm
pelas imagens urbansticas do capitalismo brasileiro. Violncia na periferia
e materialismo urbano brutal so as formas do mundo demonaco a que se
ope o sujeito dos raps de Mano Brown, sempre identicado com ele mesmo,
construindo uma das primeiras (talvez a primeira) vises totalizadoras da
sociedade brasileira a partir do campo popular.
A subjetividade que elabora essa viso busca a criao de um espao
diferencial que d conta de expressar sua originalidade, busca tambm superar
uma condio precria que padece de uma urgncia de legitimao, assim como
precisa se diferenciar de um modelo (de classe, comportamento e pensamento)
que tem prestgio, mas que no se adequa sua condio, sentido como falso,
postio, articial se tomados literalmente. Ora, todos esses elementos remontam os dilemas da formao, em outro campo, com material verbal diferente,
com solues diferentes, e com incrveis coincidncias de propsitos, mesmo
em suas ambigidades profundas, como quando o homem justo Mano Brown
se torna o seu oposto, o anjo vingador (uma das imagens de Lcifer), o inimigo explosivo, o depsito de mgoa, dando conta (caracterstica de culturas
perifricas!) de dois pontos de vista sobre o mesmo objeto.
Porm, como verdadeiros irmos inimigos, a coincidncia de propsitos
tambm uma luta de morte. A criao de uma viso da sociedade brasileira
que incorpora precariedade, excluso e violncia testemunho da total
falncia daquela outra Formao, que ela mimetiza para seus propsitos, da
promessa de integrao social, da universalizao dos direitos, da igualdade
perante a lei, da democratizao da cultura etc. Ou seja, Mano Brown pode ser
visto como o anti-sujeito historicamente determinado originado pela falncia
e desagregao do pacto histrico de nacionalismo, ilustrao e elite. Esse
o motivo histrico-social do profundo mal-estar que a audio do Rap causa,
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Bibliograa
KEHL, Maria Rita. Frtrias rfs. In.http://www.geocities.com/HotSprings/Villa/
3170/Kehl5.htm
ZENI, Bruno. O negro drama do rap: entre a lei do co e a lei da selva. In Revista
do Instituto de Estudos Avanados, USP, no. 50. So Paulo, 2004.
GARCIA, Walter. Ouvindo Racionais Mcs. In. Teresa. No. 4/5. So Paulo, Editora 34, 2004.
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Notas
1 KEHL, Maria Rita. Frtrias rfs. http://www.geocities.com/HotSprings/Villa/3170/Kehl5.htm
2 Original em francs Cahier dun retour au pays natal. In. CSAIRE, AIM. La posie. Paris,
LHarmattan, 2001. Estudei comparativamente esse poeta em minha dissertao de mestrado Identicaes problemticas: lrica e sociedade em quatro poetas latino-americanos. So Paulo, 2006.
Faculdade de Filosoa, Letras e Cincias Humanas FFLCH/ USP.
3 DELAS, Daniel. Aim Csaire. Paris, LHachette, 1999.
4 LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio de Janeiro, Nova Aguilar, 1999. Pg. 158.
5 Opto por acompanhar apenas as manifestaes de Mano Brown para fazer um recorte especco,
pois a importncia dos Racionais como um grupo, as interinuncias entre os demais integrantes Edi
Rok, Ice Blue e KL Jay no esto de modo algum descartadas. Sigo uma expresso apenas do grupo, a
de maior teor lrico e originalidade de pensamento, para poder aprofundar mais o estudo.
6 A relao com as outras classes sociais o ponto mais fraco do rap brasileiro, pois visa principalmente seu oposto simtrico o rico, o milionrio e desconsidera as uidas posies intermedirias
e os diversos tipos de subordinao ao sistema.
7 Este texto foi pensado antes dos ataques de 13/05/2006 do PCC, contudo, o sucesso completo
da criminalidade em acuar e humilhar a polcia e a justia ainda no so evidncias de que o crime de
pobre compensa. O crime de rico, como se sabe, a prpria base scio-poltica da nao.
8 Ver lme Assalto ao trem pagador (1961) e o documentrio Notcias de uma guerra particular (1999).
9 A ponte a que ele se refere a Ponte Joo Dias, na Zona Sul de So Paulo, que d acesso
ao Capo Redondo, bairro de origem e residncia de Mano Brown.
10 Lembrando a boa lio de Adorno, a forma no apenas o eco do sofrimento, mas tambm o
atenua; a forma, o organon de sua seriedade, tambm o da neutralizao do sofrimento. ADORNO,
Theodor W. Teoria esttica. Lisboa, Edies 70, 1982. p. 52.
11 A diferena entre os usos da Bblia em Mano Brown e em Chico Buarque, por exemplo,
que neste ltimo, caso, por exemplo, de Clice, as imagens e metforas bblicas ocultam sentidos
de crtica social, em Brown palavra revelada em si recebe nova congurao. E no se depreenda, na
anlise que aqui fao da presena da cultura neo-pentecostal em Mano Brown, qualquer aprovao
ou divulgao, nem mesmo que sua liberdade interpretativa seja algo bom em si, pois tambm para
o engodo e a demagogia so teis algumas liberdades. Apenas em funo do contedo libertrio que
assumem na formulao de Mano Brown dado a ela sentido libertador
12 DA MATTA, Roberto. Sabe com quem est falando? Um ensaio sobre a distino entre indivduo e pessoa no Brasil. In Carnavais, malandros e heris. Para uma sociologia do dilema brasileiro.
Rio de Janeiro, Rocco, 1997.
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ROGRIO GHOMES
Exposio Todos
precisam de um espelho
para lembrar quem so.
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RUI FAQUINI
Exposio Breves
encontros kaiaps.
FOTO ARTE 2007/divulgao.
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O HIP HOP
BRASILEIRO ASSUME
A PATERNIDADE
SPENSY PIMENTEL
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Outrora tido como bastardo trazido ao Brasil pela indstria cultural norte-americana, o Hip Hop lutou para conquistar o status de lho legtimo da dispora africana. Hoje, tem
patrocnio dos rgos pblicos, alm de respeito e admirao
por parte de artistas mainstream e intelectuais da academia,
e um pblico cativo espalhado pelas periferias urbanas de
todo o pas.
Representante da primeira gerao de artistas-ativistas que
difundiram o movimento no Brasil, em ns dos anos 80, e um
dos grandes responsveis por esse reconhecimento to amplo,
o brasiliense (mas gerado em Gilbus, Piau, como faz questo
de frisar) Genival Oliveira Gonalves, 42 anos de idade, mais
conhecido pelas iniciais GOG, sustenta h mais de uma dcada
a reputao de grande letrista do rap nacional, reetida em
uma carreira slida e frutfera. Em 15 anos, Gog j lanou oito
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Ela um fruto que no est perfeito, mas no vai te matar se voc ingerir.
Eu estudei sempre em escola pblica e fui despertado por bons professores.
A educao brasileira falvel no momento em que no tem estmulo para
o professor, para o aluno, mas a gente sabe que mesmo ali voc tem uma
oportunidade para se despertar. O problema no est no habitat, se mora
na favela ou nos prdios, est no que inserido na mente desses moleques.
Por isso que eu falo sempre da campanha: vamos colocar um livro na cesta
bsica, ela tem que contemplar um livro, um ABCD da coisa. Outra coisa que
est evoluindo, e no que o Hip Hop tem contribudo, que os livros hoje
esto conversando coisas que tm mais a ver com a linguagem do povo. J
tem livros de histria hoje que contam a histria do negro da tica do negro.
Antes no tinha. Quando eu estudei, os livros eram todos assim: Duque de
Caxias era o heri, Zumbi era o pilantra. Hoje isso vem mudando, ns temos
acesso a muita coisa. A educao no est falida, ela est trabalhando.
S que muita coisa para movimentar, muita terra para tirar de cima da
verdade, no so s sete palmos de terra para tirar, so vrias carretas.
CP O outro elemento que voc mencionou foi a famlia.
Em particular, o que a sua famlia teve que lhe proporcionou essa
formao diferenciada?
G Primeiramente, a famlia constituda, porque eu tive pai e me,
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G Claro, eu acredito que sim. Voc tem que falar como voc fala
para algum que voc ama de verdade, algum a quem voc quer bem.
CP Por que voc acha que muitos rappers se recusam a assumir
esse discurso de pai pra lho, insistem que esto falando de irmo
para irmo?
G Quando eu falo de pai para lho, no quer dizer que no seja
de irmo para irmo. Eu s falo que tem que ser um discurso pelo certo,
que adiante o lado daquela pessoa. Agora, o Hip Hop do Brasil teve esse
problema, ns passamos por uma fase de maturidade que era a de saber,
realmente, quem somos ns, qual a nossa proposta. Hoje, por exemplo,
o que me guia no Hip Hop a idia de grande ptria latino-americana.
Da Amrica Central para baixo tudo a mesma caminhada, e depois
de a gente estar certo, quem quiser de l de cima estar com a gente,
ento beleza, vem para as trincheiras, mas estamos de olho em vocs,
que vocs esto muito envenenados O Hip Hop americano tem outra
estrutura, outro mundo, outro planeta. O capitalismo j tomou conta ali
de uma forma que sem volta. Voc v, por exemplo, o Jay-Z. Por acaso
ele canta rap na verdade ele um megaempresrio.
CP Muita gente no rap tem exatamente essa marca que voc
mencionou, de no ter o nome dos pais na certido de nascimento,
no ter crescido numa famlia constituda. Como voc sente que isso
marca o rap brasileiro?
G Esse discurso verborrgico de alguns rappers tem muito a ver
com isso. O rap te d a oportunidade de falar em primeira pessoa, voc
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mentirosa. muito bom voc dizer: eu sou eu mesmo, isso aqui que eu
fao sou eu, no tem personagem. o que eu busco, o que eu vejo, a
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o que o povo quer ouvir, mas ele d uma cara de qualidade nisso.
Tem jornalzinho a que voc torce, escorre sangue, mas esse a no
o jornal do povo, eu me nego a falar que aquilo ali o que o povo quer
ler. Mas quando voc fala: olha, mano, aqueles barracos ali que esto
derrubados, tem famlias que moram ali dentro. Quando voc olha
aquele senhor que est ali, vai passar a pista (aponta para um morador
de rua idoso, que passa perto de ns): ele tem uma histria, um dos
caras mais queridos da Candanga, das antigas. Agora, o cara vem aqui,
ap, tira uma foto: Candangolndia repleta de mendigos. Os caras
fazem assim, esses jornais que tentam ser populares e so populistas
agem dessa forma. O Hip Hop, como que faria? Ele poderia at tirar
uma foto dele, mas diria assim: seu Z, trabalhador, vrias derrotas
que nunca o zeram curvar, ele no parou de caminhar, ele no parou
de respirar. Ele ainda tem sangue nas veias. Para mim, ele mais um
rebelde brasileiro. Quer dizer, ele atrao na quebrada, ele no o cara
que s derrota. Dentro da derrota dele, tem vrias vitrias. Hoje, dentro
dessa porra desse capitalismo que tem a, dessa forma que , vrias
restries que voc tem so vitrias para voc. Porque se torna uma
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Pnico na Zona Sul, uma das primeira faixas gravadas pelo grupo).
Eu que j vinha, j tinha um texto, falei: caramba, olha a contundncia,
a dureza, junto com o texto, junto com a verdade, a palavra, a evoluo,
a revoluo A partir da, jamais fui o mesmo. S que eu tenho que dizer
o seguinte: na mesma hora que fez essa revoluo, o Racionais fez o mal
tambm. Porque a frmula do Racionais s funciona para o Racionais,
e ca todo o mundo tentando a frmula do Racionais. Cara de mau s
funciona para o Racionais. Aquela postura a postura deles, no d para
copiar. O fato de eles no irem a uma emissora, no darem entrevista
s funciona para eles, no funciona para mim. E muita gente caiu nessa
armadilha. E eu no sei se o Racionais no contou isso, ou demorou a
falar para os caras, mas isso atrapalhou o Hip Hop, cansou, afastou ele
da sua caminhada de seguir em frente Eu acho que, se voc trabalha
todo dia, vai ter sua casa para morar, vai ter um conforto melhor. E cad o
conforto do Hip Hop? No tem, porque ns muitas vezes no trabalhamos
de forma objetiva. Hoje, o que a gente sente que altos grupos bons, que
existiam por a, sumiram porque muitas vezes no tiveram personalidade
para seguir sua prpria caminhada, para ter seus objetivos no dia-adia e no conseguiram acumular o que era preciso para sobreviver,
seu oxignio As pessoas no observaram o seu ambiente, at onde
poderiam chegar, no tiveram um projeto E se confundiram.
CP Se cresce a diversidade, o que continua unicando o Hip Hop?
G Esse casamento entre o discurso e o ritmo. Porque o ritmo
no d. Quando voc ouve um rap, voc j comea aqui (simula balano
da cabea e dos ombros). Mas o que vai mesmo denir a longevidade
daquilo o discurso. O que vai sempre atrair o pblico perifrico essa
proximidade, essa ligao direta com o dia-a-dia do povo.
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SUSANA DOBAL
Exposio Alm mar.
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CONVERSA URGENTE
SOBRE UMA VELHARIA
UNS PALPITES
SOBRE VIGNCIA
DO REGIONALISMO
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sculo 19. Estamos falando da escravido, claro, que garantiu parte importante da unidade nacional: mesmo em momentos de iminente ruptura de
uma provncia rebelde com o centro imperial (de que a guerra dos Farrapos
exemplo eloqente, no Rio Grande do Sul), os senhores de escravos do
centro e da periferia preferiram abrir mo de posies antes tidas como
inarredveis em favor de manter o instituto da servido intocado.
Isso no explica tudo, mas ajuda a encaminhar o tema: foi esse centralismo a matriz mental, ideolgica, poltica, mais propriamente epistemolgica,
da viso unitarista que a cultura brasileira construiu ao longo do tempo, desde
o Romantismo at, especialmente, o Modernismo paulista (e no que o tema
segundo j apareceu aqui?). A histria brasileira imps, em uma proporo
fortssima (e desconhecida em um pas novo como os Estados Unidos, ou
como a Austrlia, por motivos diversos entre si), uma viso unitarista, que
no acolheu a diferena regional como vlida, e pelo contrrio manteve-a
margem como indesejvel. Isso foi assim no sculo 19, isso se reforou (para
no car pegando no p dos paulistas a toda hora) num momento como o
Estado Novo, quando, pela fora do veculo modernizante que era o rdio,
o samba carioca, em algumas de suas modalidades (o samba mais crnica
de Noel, mas tambm o samba-exaltao de Ary Barroso), se transformou
na cara do Brasil, relegando a patamares subalternos ou mesmo morte
gneros musicais que tinham fora ou comeavam a ganhar pblico pela
mesma poca.
Tivssemos, os brasileiros, uma viso menos unitarista, menos impositiva, menos centralizada acerca de nosso pas, poderamos viver culturalmente usufruindo com mais gosto e eccia o arquiplago cultural da
lngua portuguesa em nosso pas. As diferenas poderiam ser vistas como
isso mesmo, diferenas, mas tramadas na base de uma mesma lngua, um
passado comum, um destino compartilhado.
Sei, essa uma reexo idealista, no mau sentido da palavra. Pois
ento vamos a uma dimenso materialista da coisa. A recente onda de
liberalizao da economia brasileira, comeada por Collor e mantida, em
linhas gerais, por Fernando Henrique Cardoso e por Lula, determinou, entre
outras providncias, que os estados, as unidades federativas, deveriam
desonerar as exportaes; haveria uma compensao por esse buraco
nanceiro, na forma de uma transferncia da Unio para os estados nessa
situao foi a famosa Lei Kandir. Na prtica, os estados que mais fortemente
estavam operando exportaes, entre os quais o Rio Grande do Sul, caram
pendurados no pincel, porque a escada do ICMS foi retirada pelo governo
central, impiedosamente. O argumento de face era respeitvel, aquele de
no exportar imposto, que onera o produto nal; na vida real diria, o argumento transformou-se num gesto unilateral de fora.
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Se por um momento ampliarmos o foco, de modo a abranger, num vistao, o conjunto da histria da literatura (e da cano, igualmente) de lngua
portuguesa aqui na Amrica, quer dizer, aquilo que chamamos de literatura
brasileira, veremos algumas constantes reveladoras. A primeira delas que
desde o Segundo Reinado, o que nos termos da histria da literatura equivale ao Romantismo, at agora, sem exceo, a cada alterao importante
da moda em matria de composio literria aparecem romances, poemas,
dramas, contos tanto versando sobre a cidade grande e/ou sobre o Centro
(o Rio, depois So Paulo), quanto versando sobre a provncia, a cidade
pequena e/ou sobre o mundo rural; no entanto, nos manuais de histria da
literatura aparecero quase que apenas os que operam no primeiro termo,
a cidade grande, o Centro, cando o restante relegado condio de aqui
est o termo, de novo, agora em sua verso completa regionalismo, quer
dizer, coisa vista liminarmente como menor, de alcance acanhado, sem a
totalidade que, na viso do Centro, est apenas na grande cidade ou no
Centro mesmo, tudo isso pensado a partir da noo de que a totalidade
que confere estatuto superior obra de arte. Est mesmo? mesmo?
Isso no est escrito assim, de modo to direto e mesmo trivial, em
nenhum artigo ou livro de histria que eu conhea; mas os efeitos dessa
perspectiva so sensveis, adivinha, por quem no esteja no Centro, ou
discorde dos critrios utilizados para denir o que maior e o que menor,
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Pois bem: eu queria, mesmo assim, deixar aqui uma sugesto, nem
que seja como matria para uma conversa frouxa, de bar, uma hora dessas.
Que a seguinte: antes de mais nada, preste um pouco de ateno faca
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com que est sendo fatiada a histria da literatura brasileira, e veja que
ela existe, para comeo de conversa; depois tente avaliar a natureza dessa
faca, o ngulo de corte que ela opera; depois tente retornar para a literatura
brasileira ela mesma, quero dizer, para os livros, os importantes e os no
importantes, e tente ver se eles no seriam mais bem descritos segundo
outras fatias, mediante outros recortes, com o uso de outra faca.
Tenho at mesmo uma sugesto prtica para oferecer: enumere, como
exerccio, os romances, para car em um gnero apenas, e gnero forte na
tradio brasileira, ou mais amplamente nos relatos narrativos, incluindo
os contos, mas prestando ateno aos relatos que se ocupam da cidade
e do Centro e, ao lado, os que se ocupam do campo, ou da provncia.
O resultado dessa enumerao, na minha leitura, oferece um panorama de
grande eloqncia: vai-se ver de perto, e a constatao que a cada gerao,
desde o Segundo Reinado, h relatos importantes sobre o Centro, a urbe, e
sobre a periferia, o mundo rural ou provincial, congurando uma dinmica
de enfrentamento, de tenso, que ca visvel c pela minha lente. Sumariamente, em um arranjo cronolgico em blocos denidos desde o ngulo
da histria econmica e poltica (e portanto no de uma suposta histria
de estilos, que uma facilidade escolar que quase sempre tambm um
embuste historiogrco), ca assim:
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1
2
momento histrico
relato urbano
Segundo Reinado e
hegemonia do caf no RJ,
anos 1850-1890
Primeira Repblica e
hegemonia do Caf de SP;
o Realismo-Naturalismo,
anos 1890-1920
Repblica Ps-30 e
modernizao econmica;
o romance neo-realista dos
anos 1930-1950
Brasil-Grande durante
a Guerra Fria (de JK e
da Ditadura Militar);
crise da narrativa realista
dos anos 1960-1980
Brasil Neoliberal/
Globalizado na hegemonia
do capital nanceiro
mundializado; anos 1990
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ERIC GARAULT
Exposio Quando
a luz chegar.
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LUCA RINALDINI
Exposio Cacau no
rastro de Jorge Amado.
FOTO ARTE 2007/divulgao.
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ENTREVISTA COM
UGO GIORGETTI
PRISCILA FIGUEIREDO
COORDENADORA DA
REVISTA CULTURA E
PENSAMENTO E AUTORA DE
EM BUSCA DO INESPECFICO
(NANKIN, 2002).
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lme atualmente?
Ugo Giorgetti Depois de Boleiros 2, como trabalho
de co realizei um lme com o Antonio Abujamra, Solo,
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que por sinal est incompleto. Rodei tudo, isto , ele, Abujamra, falando
para a cmera, j que se trata de um monlogo. Filmei, porm, em fundo
azul, o chamado blue screen, que permite que se coloquem imagens no
fundo. Estou neste momento procurando dinheiro para nalizar o lme.
um processo tecnicamente complicado, que demanda pesquisa e
muito trabalho. No se trata de um depoimento do Abujamra, mas de um
personagem criado por mim e que ele interpreta um homem de 70 anos
mais ou menos, de boa famlia paulista do bairro de Higienpolis e que
no entende nada do que aconteceu com o mundo, sua vida, seu bairro,
sua cidade.
CP Voc hoje um dos poucos diretores-roteiristas no cinema de
co no Brasil. Queria lhe pedir que falasse um pouco sobre essa diviso
de trabalho entre roteirista e diretor.
UG Talvez se deva a uma questo de gerao. Eu no sou do Cinema
Novo porque eu no fazia cinema de longa-metragem naquele tempo,
mas esses cineastas tambm faziam roteiro. Eu venho dessa gerao, que
era fundamentalmente literria. No que se quisesse fazer assim, isso
um ponto. O outro ponto o seguinte: o cinema brasileiro se deslocou
de uma matriz europia para uma matriz americana. Na primeira,
especialmente entre os italianos, acho, o diretor estava metido em tudo,
tinha controle do processo. No cinema americano as coisas so mais
compartimentadas, mais independentes. A sociedade est caminhando
para uma americanizao muito grande, e o cinema s o reexo disso.
CP Voc nunca publicou nenhum de seus roteiros ou no pensa
em publicar?
UG No. Roteiro roteiro, literatura literatura. Uma vez o
Drummond disse, a respeito das canes de Chico Buarque, que eram
muito bonitas, muito interessantes, mas poesia no era. Parafraseando
um pouco isso: roteiro pode ser muito interessante, bem escrito,
habilidoso, mas no literatura. No acredito que tenha algum proveito
publicar roteiros, que teatro propriamente no e tambm no lme,
porque entre aquele roteiro escrito e o lme permeia um mundo de coisas.
Vamos pegar o cinema italiano, que um cinema que conheo
melhor. Voc ver que pouqussimos grandes autores da literatura
italiana escreveram para cinema. Muito poucos. H o caso do Pasolini,
que era um grande roteirista e um grande poeta, escritor. Mas o Pasolini
era um caso parte. Que eu saiba, Dino Buzzati nunca escreveu para
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estudei sempre em escola pblica, nunca tive nenhum colega l que fosse
to pobre ou to mais pobre que eu notasse isso visivelmente e pensasse
comigo: puxa, esse cara pobre mesmo. Claro, certamente o ovo da
serpente j estava l. O Joo Goulart era presidente em 1963 e foi deposto
ns sabemos porqu. Mas, de qualquer forma, havia, visivelmente, uma
homogeneidade muito maior.
CP Por outro lado, apenas 30% da populao at ento era urbana.
O grosso da populao estava no campo, e a misria no campo talvez seja
pior ainda que na cidade, no tem nem resto, nem lixo
UG Ser que pior? No estou bem certo disso. Essa pobreza na
cidade to srdida.
CP No sei, muita gente no volta para o campo, embora possa ter
uma lembrana, idealizada talvez, de uma vida melhor l. O fato que
a confuso da cidade parece produzir a esperana de que haver algum
quinho, alguma sobra, no ?
UG possvel, sim, possvel.
CP por mais desumanizador que seja tudo isso, como voc
diz. Por outro lado, essa destruio de So Paulo (no s), no sei
se voc concorda, no tem a ver um pouco com a maneira como se
deu a formao do Brasil, feita de ciclos econmicos que levam uma
determinada regio a uma riqueza indita e depois a uma sbita
decadncia, um embotamento de tudo aquilo? O que curiosamente
parece estar nesse documentrio sobre a usina e a igreja com afrescos do
Volpi e permeia seus lmes de uma maneira geral, desde o lme sobre o
edifcio Martinelli, por exemplo: o fausto e a tendncia para a runa.
UG Por outro lado, visto do prisma de que voc est falando, a
cidade encerra uma grande lio: a fugacidade do sonho humano,
a pouca durao. O edifcio Martinelli um caso: o cara fez um grande
monumento para si mesmo. Eu entrevistei um cara que era sobrinho do
Martinelli, um jovem engenheiro na poca. Ento ele ajudou o tio a fazer
o prdio. Eles no sabiam o que iam fazer dentro do prdio, no havia
diviso interna. Ele tinha construdo um prdio de 30 andares para botar
a casa dele no topo. Era um monumento a ele mesmo, que foi morar l,
pois tinha feito um sobrado na cobertura. Quanto tempo durou esse
sonho, essa pirmide paulista? Veio a guerra, ele perde o prdio.
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O Bairro dos Campos Elseos, que foi um outro bairro que me interessou
muito, sobre o qual eu z um documentrio realmente quanto tempo
durou esse Champs-Elyses de So Paulo? Em poucas dcadas j era
Boca do Lixo. As manses viraram cortio e tal. A antiga Avenida Paulista
quanto durou?
CP Isso me leva a uma pergunta que eu queria fazer: especialmente
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passa por cima daqueles caras e faz o pas avanar. O que vai custar
isso? No sei. Custou 250 mil mortos l.
CP O personagem Mrio, em O prncipe, tem algo de Policarpo
Quaresma, de Quincas Borba. Professor de histria, lamenta o fato de
o Brasil no ter participado das grandes batalhas e acontecimentos
decisivos da histria moderna e contempornea e, como aqueles
personagens, ca louco tambm. Ele prope uma recriao da histria
brasileira, uma grande mitologia. O ponto de vista no lme parece
ter certa simpatia por esse personagem. Mas voc no acha que essa
mitologia, se que j no h, pode levar a mais violncia? Recentemente
houve o episdio do Evo Morales estatizando a Petrobrs na Bolvia
e parte da imprensa brasileira estava quase querendo que o Brasil
declarasse guerra. E a Bolvia um pobre pas
UG Isso no tem nada que ver com a Bolvia, com o Lula, querem
atingir a ele. Ningum est ligando para o Evo Morales, queriam antes
exp-lo, ao Lula, dizendo que ele no tomou determinadas medidas, e
isso para que uma determinada classe mdia o odiasse mais ainda. Acho
que muita gente que escreveu isso sabe que o Evo Morales tinha toda a
razo e tal. Mas, se o Lula de fato zesse o que eles estavam querendo,
ento seria uma grita do mesmo jeito e da parte das mesmas pessoas
provavelmente: mas como! O Brasil, com sua fora desproporcional,
querer agredir um pobre pas da Amrica Latina! provavelmente o que
diriam depois. O preconceito contra o Lula muito grande
CP Mas essa mitologia do personagem Mrio no pode justamente
recalcar, encobrir a dimenso dos pobres, uma dimenso qual o seu
cinema d toda a ateno?
UG Mas, quando voc transforma, o mito leva todo mundo para
cima. Ele no ideolgico, digamos assim. Ou Agora, esse negcio
do Mrio tem outro lado: o personagem mais frgil da histria, o que
se destri. Eu tinha uma simpatia por ele porque o mais desvalido,
o que tem menos estrutura para agentar tudo isso. Mas bvio que
nessa teoria dele tem muito de loucura, de exagero, de desespero
No acho que a gente tenha de discutir a teoria dele como se fosse a de
um historiador racional. Ele evidentemente perturbado.
CP Em seus lmes h diversas situaes de humilhao que
margeiam o principal da cena. Em O prncipe h, por exemplo, uma revista
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INSTANTNEO
DE TASHKENT
GUILHERME WISNIK
GUILERME WISNIK
AUTOR DE LUCIO COSTA
(COSACNAIFY, 2001)
E CAETANO VELOSO
(PUBLIFOLHA, 2005).
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Welcome to Tashkent, disse Ilkhom, enquanto uma algaravia de taxistas se montava ao redor de ns, disputando as
nossas malas. Ele jovem e bonito, com a tez morena e os
olhos rasgados. E esperou impassvel at que os homens se
acalmassem, entendendo anal que no iramos segui-los a
parte alguma. Ilkhom, repetiu pausadamente, separando
bem as duas slabas. Entendi que no era taxista, mas recepcionista do Hotel Rovshan, e fra encarregado de nos receber.
Welcome, dito com sotaque carregado, fechando bem o
e, e emitindo um l seco e prolongado, foi a palavra certa
na sua boca. Pois sem ele no escaparamos ilesos daquele
assdio tumultuoso, varados de sono por mais de quarenta
horas entre vos e escalas. Acaba de amanhecer, e o cu
da sia Central vai deixando aos poucos de ser rosa. Tomamos o rumo de uma alia arborizada, ampla mas descuidada,
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acompanha a minha fuga. O hotel no muito central. Fica numa ruela meio
de terra, com um asfalto gasto por debaixo, prxima a uma grande via perimetral, a avenida Nukus (por onde chegamos h pouco, vindo do aeroporto).
Decido dar um pulo l, para no fritar na cama. O calor seco, e no sua
a pele. As primeiras mulheres que vejo usam vestidos coloridos de mangas
compridas estampados com ores, e feitos de um tecido grosso, tipo veludo.
Uma delas tenta molhar, com uma mangueira, a calada de terra em frente
sua casa. Algumas crianas uniformizadas saem para a escola, conversando
animadamente. So as nicas pessoas que, nitidamente, parecem notar a
minha presena. Pelas caladas h algumas camas espalhadas: ao tempo ou
sob pequenas cobertas, que servem tambm para abrigar motos e bicicletas.
Aqui as casas no tm janelas, nem varandas, nem sacadas At nisso eles
so nmades. Suas camas transformam a rua em sala de estar.
Percebo que errei o caminho. Por vias tortas, cheguei a uma outra avenida tambm larga, em escala siberiana. E que, a essa altura, est deserta.
Sapyorlar Maydoni, se chama. Poucos carros passam e, dado o espao
vago, fazem converses livremente, dando r e mudando de mo fora das
reas de semforo ou trevo de retorno. A cidade parece dimensionada para
uma frota de automveis que no existe, ou que, no mnimo, est ausente.
Ter passado, j, a hora do rush? Vou em busca de algum lugar para trocar
dinheiro. Apesar da avenida vazia, cruzo-a pela passagem subterrnea. Do
outro lado, a escadaria j se conecta entrada de um grande magazine, por
uma escada rolante que me leva a sales amplos e tambm desertos. Sinto
que ser preciso despertar de um sono que eu, na verdade, ainda no dormi.
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***
No ltimo captulo de Tristes trpicos, Claude Lvi-Strauss d um salto
no tempo e no espao, e passa a narrar uma viagem pelas runas do stio
arqueolgico de Txila, no Paquisto, que rene vestgios do helenismo, do
hindusmo, do budismo e do zoroastrismo. O salto desnorteante, depois
de tantos anos e pginas narrados de sua experincia entre os ndios
brasileiros. Aos ps das montanhas de Caxemira, numa paisagem pedregosa
e poeirenta, o narrador-antroplogo se encontra visivelmente contrariado
em meio a homens barbados e mulheres trajando burkah. E a razo desse
mal-estar o fato de perceber no isl no a alteridade distante, mas o seu
prprio universo. O isl triunfou, diz ele, como ponto culminante de um
processo que comeou com o budismo e passou pelo cristianismo, com
intervalos de aproximadamente meio milnio. A tragdia, diz ainda, que
o isl separou aquilo que era uno. Levantou uma barreira entre Ocidente
e Oriente, e, desse modo, nos islamizou. Pois, se o mundo judaico-cristo
criou um alm inacessvel, o isl deu um passo a mais subordinando o
mundo terreno suas instituies ao plano teolgico, mantido assim
inaltervel, como se permanecesse num eterno sculo VI, perodo em que
nasceu Maom. Conseqentemente, o isl permaneceu aferrado a princpios
anacrnicos e conservadores, assim como a Frana em relao ao sculo
XVIII. Assim, diz Lvi-Strauss, paralelamente ao mundo islmico, a Frana
da Revoluo sofreu o destino reservado aos revolucionrios arrependidos,
que o de se tornarem os conservadores saudosos das circunstncias em
relao s quais se situaram uma vez no sentido do movimento.1 Da a
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atitude livresca, o racionalismo jurdico e formalista que aproxima franceses e muulmanos, capaz de sempre reduzir as complexidades mundanas
a uma lgica articiosa e auto-explicativa. Napoleo, diz o antroplogo
francs, o Maom do Ocidente. o Profeta de um tempo em que o Sbio
desapareceu do mapa.
Fica insinuado, no entanto, em Tristes trpicos, que o estruturalismo
surge da procura (impossvel?) de se restabelecer um elo perdido entre Ocidente e Oriente, vislumbrado na identidade fundamental que Lvi-Strauss
identica entre o budismo e o marxismo. Pois ambos libertam o homem de
suas correntes, reduzindo o problema metafsico ao do comportamento
humano, ao mesmo tempo que submetendo o indivduo coletividade.
Desse modo, perante o asceta budista e o camarada socialista laicos e
iguais a seus pares , a moral religiosa, ou supersticiosa, cede histria,
assim como as formas uidas do lugar s estruturas, e a criao engolida
pelo vazio. Quer dizer que tanto para essas duas losoas quanto, por conseqncia, para o estruturalismo, o eu no apenas odioso: ele no tem
lugar entre um ns e um nada.2 Lvi-Strauss, por essa via, busca bloquear
o famigerado princpio linear de existncia a echa cega para o futuro
que sustenta e impulsiona o individualismo ocidental , reintegrando-nos
idealmente a um tempo cclico. Mas o tempo cclico de um mundo j sem
mitos, inevitavelmente desencantado, racionalizado e materialista.
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Notas
1 Claude Lvi-Strauss, Tristes trpicos. So Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 383.
2 Idem, p. 391
TUCA VIEIRA
Exposio Fotograa
de rua.
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MINISTRIO DA CULTURA
Gilberto Gil Ministro da Cultura
Juca Ferreira Secretrio Executivo
Alfredo Manevy Secretrio de Polticas Culturais
Roberto Nascimento Secretrio de Fomento e Incentivo Cultura
Clio Turino Secretrio de Programas e Projetos Culturais
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e Artstico Nacional
Celso Frateschi Fundao Nacional de Arte
Edvaldo Mendes Arajo (Zulu) Fundao Cultural Palmares
Manoel Rangel Agncia Nacional do Cinema
Afonso Luz Programa Cultura e Pensamento
PROJETO GRFICO
Tecnopop
[Snia Barreto]
EDITORAO
Tecnopop
AGRADECIMENTOS ESPECIAIS
Adair Rocha, Adauto Novaes, Andr Stolarski, Danilo Miranda,
Eder Chiodetto, Eduardo Viveiros de Castro, Gog, Helosa Buarque
de Hollanda, Jorge de Almeida, Jos Almino de Alencar, Karla Osrio,
Lula Queiroga, Marcelo Rezende, Marta Colabone, Pola Ribeiro,
Tarciana Portela, Ugo Giorgetti, Vinicius Terra
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